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    Revista Filosofi a CapitalISSN 1982 6613 Vol. 3, Edio 7, Ano 2008.

    PARA UMA COMPREENSO DA POLTICA DOS AFETOS NA FILOSOFIA DE

    ESPINOSA

    Renato Nunes [email protected]

    Rio de Janeiro - RJ

    2008

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    Revista Filosofi a CapitalISSN 1982 6613 Vol. 3, Edio 7, Ano 2008.

    A CRISE DA CULTURA BRASILEIRA E O PAPEL ATUAL DA FILOSOFIA

    Renato Nunes Bittencourt1

    [email protected]

    RESUMO: Este artigo pretende versar sobre as caractersticas centrais da filosofia polticaelaborada por Espinosa, sobretudo o seu vnculo essencial com uma reflexo tica pautadanuma compreenso imanente da realidade, destituda de traos axiolgicos estranhos aomundo concreto. Na filosofia de Espinosa evidenciada a extrema importncia daconstituio de uma tica poltica do relacionamento entre os homens, originada a partir dacompreenso da prpria ordem dos afetos pessoais. Nessas condies, a perspectiva tica deEspinosa proporciona uma reflexo sobre a importncia de uma relao poltica e social entreos homens, que seja marcada pela cooperao, pela agregao mtua de foras em prol daconcretizao de um bem comum. Esse estado de afirmao das singularidades individuais,unidas em torno de um objetivo que favorea a ampliao do poder de ao do grupo social,

    possibilita, de acordo com Espinosa, o desenvolvimento efetivo da paz social. Nessascondies, o texto que apresentado visa contribuir para uma efetiva compreenso dainterao entre tica e filosofia poltica, aproveitando as importantes contribuies intelectuaisde pensadores que se apropriaram de maneira competente da filosofia de Espinosa.

    Palavras-chave: Espinosa Poltica Afetos - tica.

    Introduo

    Como ponto de partida do presente artigo, que prope uma genuna reflexo sobre a

    relao intrnseca entre tica e filosofia poltica, podemos defender a tese de que um dos

    aspectos mais importantes presente no pensamento poltico elaborado por Baruch de Espinosa

    consiste no seu projeto de suprimir qualquer tipo de interferncia dos valores da moralidade

    teolgica (normativa) no processo de elaborao da reflexo sobre a vida tica e as prticas

    polticas de uma sociedade. Inclusive, poderamos considerar a redao do Tratado

    Teolgico-Poltco(publicado anonimamente em 1670 como uma medida de segurana contra

    as perseguies de intolerantes religiosos holandeses), como fruto desse objetivo intelectual.

    Espinosa se prope a retirar da dimenso da ao poltica os preconceitos comuns da

    viso moral de mundo, que se caracteriza por pretender legislar acerca de supostas questes

    1Doutorando em Filosofia do PPGF-UFRJ. Professor do Departamento de Filosofia do Colgio Pedro II/Bolsistado CNPq

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    universais, normativas e abstratas, uma vez que recebe a influncia direta de uma religio

    metafsica de cunho rigorosamente transcendente. Essa perspectiva religiosa se esfora em

    desprezar o carter singular das aes humanas, pois age em favor de uma postulada primazia

    da dimenso abstrata (supra-sensvel) sobre o plano concreto, por considerar que a dimenso

    do pensamento, do esprito, ontologicamente mais perfeita do que a dimenso material.

    Pretendendo desenvolver uma viso poltica pautada na perspectiva da imanncia da

    vida e dos seus elementos conaturais, Espinosa elabora uma compreenso da relao de foras

    do ser humano com o mundo e com os demais homens radicalmente diferente dos

    famigerados valores dicotmicos moralistas de Bem e de Mal, em decorrncia da

    poderosa conotao metafsica presente na interpretao que tradicionalmente feita destes

    dois conceitos pela nossa filosofia ocidental. Eis como Espinosa justifica a sua perspectiva:

    S em poucas palavras direi aqui o que entendo por bem verdadeiro e,igualmente, o que o sumo bem. Para que se compreenda isso corretamente,deve-se notar que bom e mau s se dizem em sentido relativo, visto que,de diversos pontos de vista, uma mesma coisa pode ser dita boa ou m;assim tambm com o perfeito e o imperfeito. Efetivamente, coisaalguma, considerada s em sua natureza, pode ser dita perfeita ou imperfeita,

    principalmente depois que se chega a compreender que tudo o que aconteceacontece segundo uma ordem eterna e segundo leis imutveis da natureza(ESPINOSA, Tratado da Reforma da Inteligncia, 11).

    Dessa maneira, devemos salientar que o pensamento poltico espinosano no se

    institui atravs da elaborao de uma moralidade normativa e coercitiva, vituperando as aes

    vis e ansiando pela prtica das ditas boas aes, confabulando no como o homem

    realmente , mas idealizando como ele deveria ser. Afinal, conforme Espinosa salienta, tal

    empreendimento, caso efetivado, seria na realidade uma grande stira ou uma quimera, jamais

    uma autntica e rigorosa investigao sobre as peculiaridades que motivam a efetivao das

    mais diversas e contraditrias aes humanas ao longo de sua existncia (Tratado Poltico, I,

    1).

    Nesses termos, de acordo com Espinosa, os filsofos predominantemente teriam se

    deixado levar pelos devaneios da metafsica e, tanto pior, permitiram que esse ramo de

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    investigao interferisse na formulao da compreenso precisa dos aspectos ticos e poltica

    da realidade social na qual viviam. Distanciando-se dessa grande classe de tericos

    metafsicos que nada compreenderam da dinmica imanente da vida humana, Espinosa,

    atravs das suas reflexes, pretende alcanar a compreenso pormenorizada do elemento que

    determina efetivamente a realizao da ao humana de uma forma geral: o afeto, analisado

    em sua natureza intrnseca, ou seja, a sua definio e de que modo ele se d na vida humana,

    destacando ainda a sua presena indissocivel da condio de ser humano. Aps estas

    questes introdutrias, podemos avanar adequadamente para o cerne do problema

    presentemente proposto, a saber, a problemtica dos afetos na perspectiva da tica singular e

    as suas conseqncias imediatas no desenvolvimento da ao poltica.

    O afeto como elo entre a tica e a poltica no pensamento espinosano

    Segundo a perspectiva tica de Espinosa, o homem constitudo por uma relao

    interativa entre o modo finito pensamento (alma/mente) e o modo finito extenso (corpo).

    Por corpo entendo um modo que exprime, de uma maneira certa e determinada, a essncia de

    Deus, enquanto esta considerada como coisa extensa. [tica, II, Definio I] Tal concepo

    se caracteriza pela ruptura radical em relao ao tradicional dualismo metafsico originado

    pela viso de mundo platnica e perpetuado pela dogmtica teolgica da religio crist,

    perspectivas convergentes que consideram o ser humano como um misto heterogneo de

    corpo e alma. Segundo essa tendncia filosfica hegemnica na civilizao ocidental, a alma

    seria o ncleo da verdadeira identidade e essncia do ser humano, enquanto o corpo

    considerado como um reles instrumento utilizado pela inteligibilidade da alma para a

    realizao do seu projeto teleolgico rumo ao estado de salvao espiritual.

    Como contraponto aos parmetros dessa viso de mundo nitidamente dicotmica e

    idealista, Espinosa, ao desenvolver uma compreenso imanente da vida humana, considera

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    que quando vivemos (pensamos, agimos, afetamos ou somos afetados), vivemos de corpo e

    alma/mente, ou seja, no mais adequado equilbrio entre as duas partes: por conseguinte, no

    existe um dado evento que venha a afetar separadamente apenas a alma/mente ou o corpo: um

    encontro, quando ocorre na vida de um indivduo, motiva necessariamente uma impresso no

    seu corpo e na sua alma/mente, simultaneamente. Pensando de acordo com os conceitos da

    filosofia de Espinosa, podemos considerar que desenvolvemos ao longo de nossas vidas uma

    gama de interaes com outros corpos. Tais eventos, mediante as circunstncias pelas quais

    nos afetam, podem ampliar ou diminuir a nossa capacidade de agir, posto que uma interao,

    quando impressiona extensivamente nosso corpo, faz com que se origine desse evento um

    dado afeto. Nessas condies, se porventura essa interao for adequada, ou seja, pautada no

    desenvolvimento de afetos que ampliem a nossa capacidade de agir, adquirimos o saudvel

    acrscimo de nossa fora intrnseca, tal como ocorre no caso da alegria, definida por Espinosa

    como a passagem do homem de uma perfeio menor para uma maior [tica, III, Definies

    das Afeces, II].

    Numa situao diametralmente oposta, quando sofremos uma diminuio da

    intensidade de nossa potncia intrnseca, (mais precisamente na ocorrncia de vivncias que

    motivam a formao de afetos tristes, tais como o dio, o cime, o rancor, dentre outros),

    situao essa que enfraquece terrivelmente a nossa capacidade de agir, uma vez que tais afetos

    decorrem de uma idia inadequada que fazemos da realidade. Para Espinosa, somos passivos

    (sofremos), quando em ns se produz qualquer coisa ou qualquer coisa se segue da nossa

    natureza, de que no somos seno a causa parcial. [tica, III, Definio II]. Essa

    circunstncia nos limita numa compreenso obtusa e parcial da realidade do mundo no qual

    atuamos, ao invs de favorecer a elaborao de uma compreenso global dos eventos

    constituintes de nossa existncia.

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    Ao considerar que a vida humana se desenvolve, sobretudo, atravs das

    imprescindveis interaes corriqueiras com os demais corpos (enfatizando mais uma vez o

    carter de uma relao imanente presente na vida humana), Espinosa elabora uma reflexo

    tica que se pauta na tentativa de compreender as motivaes das mais diversas paixes

    humanas, procurando ento decifrar a conexo existente entre a impresso extensiva, o afeto

    intensivo e a ao do homem, o qual, de uma forma geral, se esfora pela manuteno da

    continuidade de sua existncia. Espinosa denomina por conatus o princpio vital que nos leva

    a desenvolver cada vez mais a nossa intensidade de foras ao longo do nosso processo de

    vida. Segundo Marilena Chau,

    O conatus, esforo para perseverar na existncia, define nossa potncia deagir e os obstculos por ela enfrentados e que podem reduzi-la passividade.Ser bom tudo quanto aumenta a potncia de agir do conatus, e mau, tudoquando diminu-la. Assim, bom e mau exprimem apenas a qualidade atual domovimento interno de uma essncia singular na busca de sua realizao. Sorelaes (CHAU. Da realidade sem mistrios ao mistrio do mundo:Espinosa, Voltaire e Merleau-Ponty, p. 50).

    Essas citadas interaes, afetivamente favorveis ao desenvolvimento de nosso bem-

    estar, proporcionam o acrscimo da potncia de agir humana e, consequentemente, a

    perseverana na existncia, pois que toda coisa se esfora, enquanto est em si, para

    perseverar no seu ser, segundo a concepo espinosana (tica, III, Proposio VI). Enquanto

    constitudos por essa potncia intrnseca de perseverana seletiva na existncia, buscamos

    participar de interaes que proporcionam a elaborao de um conjunto de afetos, associados

    principalmente ao poder de afirmao dos valores pautados no amor e pela otimizao da vida

    enquanto inserida na convivncia social da coletividade dos indivduos.

    Aps essas consideraes, podemos afirmar que a reflexo tica de Espinosa no

    seria de forma alguma um tratado destinado para o uso de homens solitrios, eremitas

    independentes do mundo social, mas sim, para aqueles que buscam manter, mediante o

    relacionamento cotidiano entre os homens, o desenvolvimento adequado das suas foras

    criativas, situao essa que beneficia em curto prazo o fortalecimento da estrutura orgnica da

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    prpria sociedade em que vivem. O aumento da nossa potncia de agir decorre diretamente da

    realizao de um bom encontro, que decorre da nossa capacidade de, mediante a compreenso

    do fluxo de afetos que so gerados atravs das impresses das causas externas, utilizarmos

    essa relao como suporte para a ampliao do sentimento de alegria na nossa alma, posto

    esse afeto se transformou em causa ativa, da qual temos pleno domnio de seu modo

    constituinte. Eis como Espinosa define essa relao:

    Digo que somos ativos agimos quando se produz em ns, ou fora de ns,qualquer coisa de que somos a causa adequada, isto , quando se segue danossa natureza, em ns ou fora de ns, qualquer coisa que pode serconhecida clara e distintamente apenas pela nossa natureza (ESPINOSA.

    tica, III, Definio II).Mediante a compreenso da perspectiva espinosana, podemos dizer que de grande

    importncia o ato de propormos o desenvolvimento de uma rede de interaes para com os

    demais homens pretendendo o aproveitamento mtuo daquilo que exista de excelente no

    potencial criativo de ambas as partes que interagem entre si. Podemos considerar que, de tal

    circunstncia, decorreria a tese espinosana da utilidade de ocorrer um relacionamento

    harmnico entre os indivduos, em prol da realizao de um objetivo comum que favorea o

    aprimoramento e o benefcio social da coletividade:

    [...] H, portanto, fora de ns muitas coisas que nos so teis e que, por isso,devem ser desejadas. Entre elas no podemos conceber nenhuma preferncias que esto inteiramente de acordo com a nossa natureza. Com efeito, se,por exemplo, dois indivduos, absolutamente da mesma natureza, se unemum ao outro, formam um indivduo duas vezes poderoso que cada um delesseparadamente. Portanto, nada mais til ao homem do que o prprio homem.Os homens digo no podem desejar nada mais vantajoso para conservaro seu ser do que do que estarem todos de tal maneira de acordo em tudo queas almas e os corpos de todos formem como que uma s alma e um s corpo,

    e que todos, na medida das suas possibilidades, se esforcem para conservar oseu ser; e que todos, em conjunto, procurem a utilidade comum de todos.Daqui se segue que os homens, que se governam pela Razo, isto , oshomens que procuram o que lhes til sob a direo da Razo, no desejamnada para si que no desejem para os outros homens, e, por conseguinte, elesso justos, fiis e honestos (ESPINOSA. tica, IV, Esclio da ProposioXVIII).

    Espinosa preconiza a interao humana como forma de que, uma vez reunidos,

    possamos proporcionar a perseverana e o aprimoramentos das condies de vida de nossa

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    prpria sociedade, efetivada principalmente a partir do momento em que adquirimos a

    compreenso da importncia desse relacionamento social, que potencializa o ncleo de foras

    vitais da coletividade, a multido, a qual, nessa perspectiva, no pode ser confundida com o

    vulgar termo massa. Faamos uma breve distino axiolgica entre esses dois termos:

    enquanto a multido representa o anseio de transformao social e a potncia

    empreendedora dos membros de uma dada sociedade, a massa, por sua vez, seria a

    desarticulao dos indivduos enquanto membros dessa sociedade, alienados das suas prprias

    potncias intrnsecas de criao e assimilao.2

    Podemos ento definir essa multido como um grande corpo de indivduos

    caracteristicamente diferentes entre si nos mais diversos modos de expresso, mas que, apesar

    dessas diferenas singulares, adquiriram a capacidade de mobilizao associada a partir da

    apropriao dos afetos ativos, favorveis ao desenvolvimento da potncia de agir,

    intensificada nesse conjunto que visa realizar um bem comum. Formando um grande corpo

    poltico, a multido efetiva os resultados planejados por meio da unio intrnseca dos esforos

    dos indivduos que a compem. A massa social, pelo contrrio, quando manipulada pelo

    jogo de interesses de outras causas externas (mais precisamente os governos de cunho

    demaggico e lderes polticos que oportunamente se aproveitam da boa vontade e da

    credulidade popular), age sobremaneira atravs do fluxo das paixes tristes, devido sua

    incapacidade de expandir a sua potncia intrnseca atravs dos signos da criatividade. A

    massa humana permanece, portanto, no estado de dependncia e de passividade diante do

    poder institudo, pois incapaz de se mobilizar enquanto corpo poltico para contestar a

    arbitrariedade dos detentores do poder. Ao interpretar a concepo do vnculo tico e poltico

    2 Devemos ressaltar que essas categorias so problematizadas na contemporaneidade por Michael Hardt eAntonio Negri em Multido. Guerra e democracia na era do impriop.12-13, mediante influncia direta dafilosofia espinosana. Com efeito, Antonio Negri ao elaborar em A anomalia selvagem: poder e potncia emSpinoza comentrios sobre o conceito de multido, diz que esta Multiplicidade de sujeitos e presenasconstrutivas que emana da dignidade deles, entendida como totalidade (p. 34).

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    no pensamento espinosano, Deleuze, elucidando a ao caracterstica do tirano, o vil homem

    que se utiliza do afeto de medo das massas para poder exercer o seu poder, de acordo com a

    satisfao dos seus interesses particulares, conclui que

    O tirano precisa da tristeza das almas para triunfar, do mesmo modo que asalmas tristes precisam de um tirano para se promover e propagar. Dequalquer forma, o que os une o dio vida, o ressentimento contra a vida(DELEUZE. Espinosa: Filosofia Prtica, p. 31).3

    A capacidade de afetarmos e de sermos afetados pelos outros homens seria, segundo

    a perspectiva espinosana, o grande impulsionador da ao humana no mbito social, pois

    procuramos, sempre que possvel, desenvolver relaes com indivduos que venham a

    proporcionar o acrscimo de nossa potncia de agir e, consequentemente, se desvencilhar das

    interaes com aqueles que diminuem a mesma, deprimindo a sua vitalidade e seu quantum

    de foras. Cada potncia individual constituda por intensidades de foras concordantes ou

    conflitantes e se relaciona com uma totalidade cujas foras podem concordar ou conflitar com

    a sua, podendo fortalecer-se ou enfraquecer-se nessa relao.4

    Podemos dizer que a reflexo poltica espinosana se destaca sobre as perspectivas

    ticas e polticas excessivamente tericas pelo fato de afirmar o primado da capacidade de

    agir como potncia empreendedora, capaz de transformar uma situao estabelecida que no

    coadune com os propsitos dos agentes, pois o homem, sendo um modo constitudo pela

    regulao da natureza, necessita interagir com outros homens, para que possa efetivar os seus

    projetos criativos, mediante o somatrio das suas foras. Espinosa considera que,

    Se duas pessoas concordam entre si e unem as suas foras, tero mais poderconjuntamente e, consequentemente, um direito sobre a Natureza que cadauma delas no possui sozinha em quanto mais numerosos forem os homensque tenham posto as suas foras em comum, mais direitos tero eles todos.(ESPINOSA. Tratado Poltico, II, 13).

    3 Vale ressaltar que Andr MARTINS realiza em seu artigo Nietzsche, Espinosa, o acaso e os afetos encontros entre o trgico e o conhecimento intuitivo uma aproximao entre Espinosa e Nietzsche a partir do

    problema da tristeza e do ressentimento na vida humana, e da afirmao dos afetos alegres como maneira de seproporcionar ao ser humano adquirir um nvel de atividade efetiva na sua existncia.

    4 Para mais detalhes sobre essa questo, ver, de Marilena CHAU, Poltica em Espinosa, p. 150.

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    Espinosa salienta que os homens, quando so movidos efetivamente pela realizao

    de um bem comum, conseguem alcanar o estado de concrdia, a associao harmoniosa

    entre os corpos em prol do sucesso dos seus objetivos. Esta seria a paz genuna, posto que

    derivada justamente do consenso entre os homens acerca de uma dada questo, no

    consistindo, portanto, na mera ausncia de um momento de tenso ou de conflito entre os

    corpos. Tal como Espinosa enfatiza, a paz no consiste na ausncia de guerra, mas na unio

    das almas, isto , na concrdia. (Tratado Poltico, VI, 4). Nessas circunstncias, no

    poderia de forma alguma existir uma paz genuna em uma relao poltica em que os

    membros e os dirigentes de dois Estados distintos no so capazes de confiarem entre si

    mutuamente, mascarando sob o nome de paz o esprito de beligerncia e os afetos

    agressivos que deprimem a estabilidade da potncia de agir da nao.

    Podemos considerar que essa perspectiva espinosana, se porventura tivesse sido

    estudada e compreendida adequadamente pelas grandes potncias militares europias do

    perodo anterior ao do grande caos da Primeira Guerra Mundial, teria servido de

    desmascaramento da trama belicosa que se realizava secretamente nos bastidores da teia

    poltica da Europa desse tenso momento histrico, que denominamos usualmente como a

    Paz Armada.5Afinal, mesmo na atmosfera social de crena no progresso da tcnica e da

    atividade cientfica como instncias pretensamente capazes de aprimorarem a vida humana e

    as suas organizaes sociais, pode vir a ocorrer essa situao ilusria de paz, pautada apenas

    5Termo utilizado para explicar o perodo poltico de 1871 1914, entre o fim da Guerra Franco-Prussiana e a

    erupo da Primeira Guerra Mundial. Frana e Alemanha, grandes potncias imperialistas do final do sculoXIX, controlavam grande parte do mundo colonizado. Dessa maneira, ambos os pases, apesar de viveramrelativamente numa paz diplomtica, iniciaram uma grande corrida armamentista, de modo que, aps aecloso da Primeira Guerra Mundial, tanto Frana como Alemanha estavam muito bem preparadas para

    participar de um possvel evento de tal proporo, assim como outras grandes potncias imperialistas, como aInglaterra, tambm envolvida nesse processo. Podemos ainda citar, nesse mesmo contexto de polmicas ecrises, o caso dos povos localizados na regio dos Balcs (Srvia, Bsnia, Montenegro) os quais, submetidosaos ditames do Imprio Austro-Hngaro, viviam em constante tenso poltica, vislumbrando a libertao destedomnio. Inclusive, no devemos esquecer que o estopim para o incio desta catstrofe ocorreu justamentenessa regio (o assassinato do arquiduque austraco Francisco Ferdinando).

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    no formalismo das suas relaes ticas e polticas. Com efeito, tal paz se manifesta apenas

    no seu nome. O pretenso estado de progresso, quando norteado para a realizao de fins

    destrutivos capitaneados por homens dominados pelas flutuaes dos afetos tristes, no traz

    consigo quaisquer tipos de benefcios concretos para a existncia humana, servindo, pelo

    contrrio, de arma para a destruio mais eficaz e terrvel da prpria humanidade.

    Nessas condies, importante salientarmos que a concrdia poltica no se coaduna

    de forma alguma com os afetos de averso, medo ou dio. Vejamos como Espinosa define tais

    afetos: A averso a tristeza acompanhada da idia de uma coisa que, por acidente, causa

    de tristeza. (tica, III, Definio das Afeces, IX, p. 326); O medo uma tristeza instvel

    nascida da idia de uma coisa futura ou passada, do resultado da qual duvidamos numa certa

    medida. (tica, III, Definio das Afeces, XIII, p. 327); O dio no seno a tristeza

    acompanhada de uma causa exterior. (...) aquele que odeia esfora-se por afastar e destruir a

    coisa que odeia (tica, III, Esclio da Proposio XIII, p. 287).

    Tais afetos tendem a suprimir a possibilidade de desenvolvermos um relacionamento

    efetivamente interativo com os demais, tanto no nvel individual, como no nvel internacional,

    havendo assim a repugnante tendncia de se considerar o outro, o estrangeiro, como um

    terrvel inimigo em potencial. Interpretada segundo as reflexes polticas de Espinosa,

    poderamos enquadrar a xenofobia no rol dos afetos tristes, pois decorreria da incapacidade do

    cidado reconhecer no estrangeiro o estatuto de ser humano constitudo pelos mesmos modos

    finitos. A xenofobia se caracteriza, portanto, por ser um sentimento de tristeza decorrente da

    mera compreenso da existncia de um dado indivduo estrangeiro, o qual, em decorrncia

    dos hbitos culturais diferentes praticados na sua sociedade, visto como inimigo por um

    membro de outra sociedade, quando afetado por esse distrbio de intolerncia e de

    incapacidade de conviver com a diferena. O estrangeiro se torna ento passvel de receber os

    mais ferrenhos afetos de dio por parte daquele que avesso ao mbito da diferena, do novo.

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    Quem no capaz de basear a prpria vida no uso pleno da razo se encontra

    submetido ao acaso das paixes, circunstncia que envolve o xenfobo, caracterizado pela

    incapacidade de se relacionar adequadamente com os membros de pases distintos, adeptos de

    outros costumes e de outros valores culturais, pelo fato de se acreditar na posse de uma

    pretensa auto-suficincia pessoal em relao aos nativos de outros pases, postulados como

    brbaros. Esse sentimento arrogante que brota da sua imaginao leva-o a crer que existe

    uma predominncia de sua qualidade pessoal sobre a do estrangeiro, qualidade essa que, para

    ser legitimada, deve ser considerada como inata, desconsiderando ento todo tipo de

    compreenso das circunstncias histricas que possibilitaram a formao do seu povo, em

    prol da proclamao de um pretenso mito de superioridade racial.

    O entrelaamento entre a tica e a reflexo poltica de Espinosa, possibilitaria, na

    minha interpretao pessoal, o desenvolvimento de uma compreenso da relao entre os

    diversos povos da humanidade caracterizada por se pautar no na iluso do formalismo do

    direito internacional, mas na prtica efetiva de uma interao adequada entre os estados

    nacionais. A teoria dos afetos na tica espinosana, ao preconizar o desenvolvimento de uma

    prtica de vida na qual homem possa conhecer primeiramente de maneira adequada a sua

    potncia de agir e a natureza dos seus sentimentos, certamente auxilia no desenvolvimento de

    um nvel de contato entre os povos do mundo atravs da compreenso mtua, em prol do

    estabelecimento de um bem-estar comum, partilhado por todos. Suprimindo a viso parcial de

    mundo motivada pelos efeitos das paixes tristes no nosso corpo e na nossa alma/mente, a

    filosofia espinosana nos instiga a estabelecermos um nvel de relacionamento para com o

    outro a partir do uso dos afetos adequados, de maneira que a concretizao dessa relao

    exclua qualquer possibilidade de manifestao dos afetos tristes, motivadores das tenses

    polticas entre os Estados e seus respectivos membros.

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    No quadro poltico contemporneo, podemos considerar que a perspectiva

    espinosana serviria de denncia para o entrelaamento entre o poder poltico-militar e o

    sentimento de medo diante do outro, do diferente, afeto passivo que, problematizado

    numa perspectiva poltica, decorre da incapacidade do Estado, que sofre desse distrbio, se

    relacionar adequadamente para com aquele pelo qual nutre esse sentimento de temor. Atravs

    da autoridade coercitiva do medo, so legitimadas as intervenes militares nos pases pelos

    quais, porventura, o Estado agressor venha a nutrir algum tipo de averso ideolgica.

    Para a compreenso deste problema, podemos fornecer, por exemplo, a idia de

    guerra preventiva, que decorreria diretamente da influncia desse asfixiante sentimento de

    medo no ato de organizao da estrutura militar de um Estado, pois este, ao invs de procurar

    estabelecer um sistema de contato poltico que permita a compreenso mtua entre os povos,

    mantm, pelo contrrio, uma postura de pretensa superioridade (nos mais diversos mbitos),

    para com o Estado no qual se nutre a divergncia, se propondo a simplesmente domin-lo no

    plano poltico, utilizando-se dos mais sofsticos subterfgios para legitimar tal atitude. Nessas

    condies, o Estado que desenvolve as suas aes apenas pela nsia de controle e exerccio de

    poder para com os demais, no age de acordo com as interaes proporcionadas pelos afetos

    criativos e ativos, mas apenas por causas inadequadas, sobretudo o afeto de dio para com

    outro.

    O poderio militar, muitas vezes, mascara o enfraquecido nvel do conatuscoletivo de

    um Estado, pois a perseverana autntica na existncia, na perspectiva de uma relao

    poltica, no de maneira alguma a posse de grandes arsenais blicos de grande poder de

    destruio, de aparatos tecnolgicos utilizados para a dominao do homem pelo homem;

    pelo contrario, a beatfica disposio entre os membros de um Estado de se relacionarem

    adequadamente (alegremente, amistosamente), com os indivduos de outras naes, buscando,

    na medida do possvel, a ampliao mtua da capacidade de agir de seus cidados, em prol do

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    aprimoramento das condies de vida e do estabelecimento da concrdia entre os indivduos.

    Nas circunstncias em que se desenvolve o dilogo bilateral entre os povos, torna-se possvel

    o estabelecimento de uma diversidade de acordos que proporcionem para ambas as partes o

    desfrute de benefcios sociais considerveis.

    Por outro lado, o sentimento de medo, quando utilizado como impulso norteador das

    aes de um Estado, certamente motiva catstrofes lamentveis, pois, decorrendo de uma

    interpretao parcial da realidade, faz com que o agressor (o Estado dominado pelo fluxo de

    paixes tristes), acredite agir segundo o livre desenvolvimento de sua potncia, quando, em

    verdade, age segundo uma afetao ruim (triste) originada das suas relaes polticas com o

    exterior. Dessa maneira, podemos dizer categoricamente que esse Estado no age em

    considerao com a idia de uma liberdade efetiva de ao, mas sim de forma diretamente

    determinada pela diversidade das causas externas, cujo fluxo incapaz de assimilar, ou seja,

    de interagir adequadamente. Nesse tipo de relao, a nao agressora investe militarmente

    contra outra no para que possa dar vazo ao seu poderio blico, mas pelo fato de temer que a

    nao agredida, numa circunstncia posterior, possa vir a destru-la. Portanto, para evitar esse

    malefcio contra a sua infra-estrutura, o Estado que se encontra marcado por uma

    instabilidade afetiva (geradora do medo, da parania social dos cidados), se utiliza do

    falacioso argumento da guerra preventiva para exercer o seu poder sobre outros territrios,

    evitando assim que, posteriormente, tal transtorno, que existe apenas hipoteticamente, venha a

    acontecer efetivamente.

    Podemos afirmar que o grande problema dessa situao decorra do fato de que esse

    Estado agressor, inserido numa atmosfera de intensas tenses internas, confabula as mais

    inverossmeis situaes para que possa justificar a necessidade de se utilizar desses recursos

    arbitrrios contra a nao pela qual ele nutra algum tipo de divergncia ideolgica. Mais

    ainda, esse Estado se utiliza do sentimento da apreenso da coletividade social diante de uma

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    causa externa, para poder controlar a vida e o comportamento de seus prprios habitantes,

    manipulando, no jogo de interesses das relaes internacionais, essa massa de corpos em

    favor da concretizao dos seus objetivos particulares, lanando mo assim dos mais vis

    subterfgios, tais como a falsificao de informaes documentais, a fim de que se justifique

    legalmente qualquer ataque militar a outra nao.

    Estudando a histria das civilizaes, podemos constatar que no raramente um

    Estado invade o espao territorial de outro vislumbrando se apropriar dos seus maravilhosos

    esplios, das suas riquezas naturais. Entretanto, o reverso da situao ocorre geralmente

    quando as foras militares desse Estado agressor, ao efetivarem as suas funes blicas, criam

    uma atmosfera de insegurana na vida de sua prpria populao civil, a qual acaba por sofrer

    dos extenuantes transtornos das tenses psquicas, decorrentes do medo e do anseio pela

    sobrevivncia, em detrimento da qualidade de vida, posto que atemorizada de, numa dada

    circunstncia, vir a sofrer das retaliaes das foras militares do Estado agredido. Todos esses

    fatores diminuem consideravelmente tanto a intensidade da fora do conatus individual, posto

    que tomado pela vivncia desses afetos conturbados, que inibem o desenvolvimento da

    potncia de agir, quanto o conatus do prprio Estado, em decorrncia das conseqncias

    anteriormente apresentadas.

    Sem dvida, um dos pontos mais importantes da questo presentemente discutida

    reside no fato de que estas consideraes refletem imediatamente a perspectiva de Espinosa

    acerca do exerccio do poder poltico pelo governante e suas artimanhas para a manuteno

    dos seus benefcios, de maneira que o filsofo, numa realidade social um tanto diferente da

    nossa, j pensara, todavia, acerca de problemas polticos semelhantes aos que vivemos

    atualmente, ainda que inserido numa circunstncia histrica distinta. Todavia, como os afetos

    que motivam a formao do conflituoso jogo das aes humanas so os mesmos, os

    problemas levantados por Espinosa nas suas reflexes tico-polticas mantm assim a sua

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    mais extraordinria atualidade diante um mundo subjugado pela desconfiana mtua entre as

    pessoas:

    Se os homens pudessem, em todas as circunstncias, decidir pelo seguro ouse a fortuna se lhes mostrasse sempre mais favorvel, jamais seriam vtimasda superstio. Mas, como se encontram freqentemente perante taisdificuldades que no sabem que deciso ho de tomar, e como os incertosbenefcios da fortuna que desenfreadamente cobiam os fazem oscilar, entrea maioria das vezes, entre a esperana e o medo, esto sempre prontos aacreditar, seja no que for: se tm duvidas, deixam-se levar com a maior dasfacilidades para aqui ou para ali; se hesitam, sobressaltados pela esperana epelo medo simultaneamente, ainda pior; porm, se esto confiantes, ficamlogo inchados de orgulho e presuno [...]. Se acontece, quando esto commedo, qualquer coisa que lhes faz lembrar um bem ou um mal por que jpassaram, julgam que o prenncio da felicidade ou da infelicidade echamam-lhe, por isso, um pressgio favorvel ou funesto, apesar de j seterem enganado centenas de vezes. A que ponto o medo ensandece oshomens! O medo a causa que origina, conserva e alimenta a superstio.[...] os homens s se deixam dominar pela superstio quando tm medo [...](ESPINOSA, Tratado Teolgico-Poltico, Prefcio, p.5; 6; 7).

    Os sentimentos de medo e de insegurana diante da expectao do futuro e da

    presena ameaadora da figura do outro sempre se manifestaram na constituio da vida

    poltica e social do ser humano, decorrendo da as prticas intolerantes e as aes que fazem

    da pessoa um joguete das paixes tristes e dos oportunistas polticos que aproveitam esse

    estado de impotncia coletiva para estabelecerem sua tirania sobre a sociedade. A

    problemtica incapacidade humana de compreender adequadamente o fluxo dos seus afetos,

    motivando, numa perspectiva microcsmica, a formao de uma viso inadequada e parcial

    da realidade concreta, gera, numa escala macrocsmica, justamente a instabilidade poltica e

    social de um dado Estado. Afinal, os seus cidados perdem a capacidade de agir segundo o

    mecanismo das causas adequadas, dos bons afetos, necessrios para a formao de homens

    efetivamente livres, conscientes das suas singularidades e potncias pessoais, sendo portando,

    aptos a proporcionarem o desenvolvimento harmonioso do local em que habitam, ao mesmo

    tempo em que se esforam em interagir com membros de outros Estados de maneira

    concordante. Qualquer dirigente de Estado que manipule os afetos da populao de sua nao,

    em prol da concretizao de objetivos escusos e mesquinhos, no hesitar em se utilizar do

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    efeito paralisante do medo como fora mobilizadora da ao dos homens, mediante o anseio

    de realizao dos seus interesses pessoais, que solapam, com efeito, os prprios interesses da

    coletividade.

    Consideraes Finais

    Ao longo do presente escrito, pretendi versar sobre a problemtica das relaes

    polticas tendo como suporte a teoria dos afetos desenvolvida por Espinosa, por considerar

    que este, ao elaborar uma interpretao do desenvolvimento da ao do homem segundo a

    livre flutuao dos seus diversos afetos, proporcionou o desenvolvimento de uma importante

    compreenso das tenses polticas que afligem o mundo contemporneo; alis, podemos dizer

    que, apesar de todo o seu avano tecnolgico e das suas inovaes nos mais diversos mbitos

    das cincias e das artes, nossa civilizao demonstra ainda ser incapaz de compreender

    adequadamente a prpria trama de relaes de fora que se manifestam nas disposies de

    afetivas dos indivduos. Portanto, se porventura um dado Estado, considerado enquanto

    conatuscoletivo se capacitasse a desenvolver um nvel de relacionamento amistoso para com

    as outras naes, buscando o estabelecimento de uma poltica afirmativa do melhor e do til

    para a humanidade, certamente proporcionaria a concretizao de uma paz efetiva entre as

    naes do mundo e dos seus habitantes. Essa situao no seria de forma alguma utpica, pois

    que concretizada mediante o acordo sincero entre os seres humanos. Eis, por conseguinte, a

    importncia da apresentao de tais reflexes, a despeito da obtusidade da pseudo-

    intelectualidade que julga realizar uma efetiva relao entre os problemas ticos da existncia

    humana e as prticas polticas tal como de fato ocorrem nesse mundo atribulado pelo medo.

    Com efeito, o academicismo de publicaes que julgam estabelecer uma genuna reflexo

    entre tica e filosofia poltica faz com que tais projetos se tornem apenas quimeras e discursos

    vazios, jamais estudos consistentes sobre a imanncia da prxis das relaes de foras sociais.

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    _________. Tratado da Reforma da Inteligncia. Trad. de Lvio Teixeira. So Paulo: MartinsFontes, 2004.

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