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Políticas públicas regionais: uma análise da regulação de direitos sociais no Mercosul Clarissa Franzoi Dri * Resumo Em geral, as instituições de um processo de integração regional são mais conhecidas e estudadas do que as políticas geradas por ele. No entanto, são essas últimas que configuram a dinâmica da integração, conferindo concretude aos projetos. Mas, pode-se falar em políticas públicas regio- nais no seio do Mercosul? Existem esforços no sentido de regulação co- mum em certas áreas, e como eles acontecem? Na tentativa de averiguar tais questionamentos, o artigo apresenta um balanço de dois tipos de po- líticas regionais: uma relacionada a questões econômicas e sociais, que fogem aos objetivos explícitos do Mercosul, e outra diretamente vinculada ao mercado comum. Assim, na primeira parte, o artigo trata do combate ao trabalho infantil e ao trabalho escravo no Mercosul e no Brasil. Na segunda parte, discutem-se as medidas adotadas pelo bloco relativo à liberdade de circulação de pessoas, mais especificamente aos direitos trabalhistas e de seguridade social, além das políticas de geração de emprego. Como conclusão, apresenta-se uma análise da pertinência dessas áreas na im- plementação do mercado comum buscado pelo bloco. O trabalho baseia- se em fontes bibliográficas e documentais, traz uma revisão da literatura nos temas abordados e busca mapear e analisar as normas, declarações e resultados de reuniões no âmbito regional. Palavras-chave: Políticas públicas. Integração regional. Direitos trabalhis- tas e sociais. Mercosul. * Doutoranda do Instituto de Estudos Políticos da Universidade de Bordeaux; Rua dos Andradas, 1448 – apar- tamento 401, 97010-03, Santa Maria – RS; [email protected] 187 Espaço Jurídico, Joaçaba, v. 11, n. 1, p. 187-216, jan./jun. 2010

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Políticas públicas regionais: uma análise da regulação de direitos sociais

no Mercosul Clarissa Franzoi Dri*

Resumo

Em geral, as instituições de um processo de integração regional são mais conhecidas e estudadas do que as políticas geradas por ele. No entanto, são essas últimas que configuram a dinâmica da integração, conferindo concretude aos projetos. Mas, pode-se falar em políticas públicas regio-nais no seio do Mercosul? Existem esforços no sentido de regulação co-mum em certas áreas, e como eles acontecem? Na tentativa de averiguar tais questionamentos, o artigo apresenta um balanço de dois tipos de po-líticas regionais: uma relacionada a questões econômicas e sociais, que fogem aos objetivos explícitos do Mercosul, e outra diretamente vinculada ao mercado comum. Assim, na primeira parte, o artigo trata do combate ao trabalho infantil e ao trabalho escravo no Mercosul e no Brasil. Na segunda parte, discutem-se as medidas adotadas pelo bloco relativo à liberdade de circulação de pessoas, mais especificamente aos direitos trabalhistas e de seguridade social, além das políticas de geração de emprego. Como conclusão, apresenta-se uma análise da pertinência dessas áreas na im-plementação do mercado comum buscado pelo bloco. O trabalho baseia-se em fontes bibliográficas e documentais, traz uma revisão da literatura nos temas abordados e busca mapear e analisar as normas, declarações e resultados de reuniões no âmbito regional.Palavras-chave: Políticas públicas. Integração regional. Direitos trabalhis-tas e sociais. Mercosul.

* Doutoranda do Instituto de Estudos Políticos da Universidade de Bordeaux; Rua dos Andradas, 1448 – apar-tamento 401, 97010-03, Santa Maria – RS; [email protected]

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1 INTRODUÇÃO

Em geral, as instituições de um processo de integração regional são mais conhecidas e estudadas do que as políticas geradas por ele. No en-tanto, são essas últimas que configuram a dinâmica da integração, con-ferindo concretude aos projetos. A integração europeia, por exemplo, foi construída a partir de políticas pelas quais os estados aceitaram transferir uma parcela de sua soberania.1 A Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, com objetivos específicos, esteve na origem da atual e abrangente União Europeia. As instituições foram criadas, portanto, para organizar as políticas comuns desejadas pelos países membros, não o contrário. Nesse contexto, o famigerado processo de cessão de soberania significa nada mais do que coordenar conjuntamente certas competências escolhidas pelos estados. A partir de então, surgem as políticas públicas regionais, que podem se revelar mais eficazes e versáteis do que as políticas que se restringem às fronteiras de um estado somente.

Sabe-se que um processo de integração entre estados compreende diferentes etapas. A zona de livre comércio é considerada a primeira, e consiste na eliminação, previamente acordada, dos obstáculos tarifários e não tarifários às trocas comerciais dos produtos originários dos estados-membros. Compreende, portanto, a livre circulação de bens e mercado-rias. A união aduaneira, mais profunda, implica a definição de uma mesma política tarifária em relação a produtos de terceiros estados. Já o mercado comum requer a liberalização de todos os fatores de produção, os quais devem entrar e sair livremente dos países participantes do bloco. Nesse estágio, verifica-se a presença das quatro liberdades básicas: mercado-rias, capitais, trabalhadores e estabelecimento. Abrange, também, a apli-cação de regras comuns, particularmente em matéria de concorrência e em assuntos fiscais, a existência de políticas setoriais comuns, como nos setores agrícola e de transporte; e um início de aproximação das políticas econômicas. O mercado único diz respeito à eliminação total de entraves fiscais e técnicos, a fim de fazer desaparecer os obstáculos nas fronteiras internas. Adiante, fala-se na união econômica e monetária, que supõe uma homogeneidade de políticas orçamentárias e econômicas e um sistema

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comum de bancos centrais, com vistas à centralização progressiva do con-trole monetário e à consecução de uma moeda comum.

A União Europeia configura hoje um processo que atingiu o estágio da união econômica e monetária, com a implantação do euro em 2002. As políticas vinculadas à organização do mercado comum e às questões econômicas e monetárias são, portanto, comunitárias, pertencendo à ad-ministração da união e não mais individualmente aos estados-membros. Por outro lado, certas políticas econômicas e sociais e a política externa continuam de competência nacional. Embora não façam parte da adminis-tração comunitária, são objeto de coordenação entre os governos, que bus-cam consensos para uma gestão concertada. Diferenciam-se, assim, as políticas integradas (comunitárias) e as políticas coordenadas (intergover-namentais). Segundo a nova denominação estabelecida pelo Tratado de Lisboa (2009), classificam-se em competências exclusivas da união, com-petências partilhadas pela união e pelos estados-membros e competên-cias de coordenação, em que estes conservam a maior margem de ação.

O Tratado de Assunção (1991) e o Protocolo de Ouro Preto (1994), normas constitutivas do Mercosul, afirmam que o bloco visa à criação de um mercado comum. O artigo 1º do Tratado de Assunção estabelece que este mercado comum implica a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre os países, por meio, entre outros, da eliminação dos direi-tos alfandegários, ou seja, restrições não tarifárias à circulação de merca-do de qualquer outra medida de efeito equivalente, além do compromisso dos estados-partes de harmonizar suas legislações, nas áreas pertinentes, para lograr o fortalecimento do processo de integração.

Partindo-se da lógica conceitual criada com a integração europeia, isso significa, em tese, que o Mercosul objetiva integrar as políticas re-lacionadas à implementação do mercado comum e busca apenas coorde-nar as demais questões. Na prática, o Mercosul não passou do estágio da união aduaneira, em que a política comercial deva ser integrada. No entanto, como todas as decisões tomadas no seio do bloco são fruto do consenso e como muitos produtos estão excluídos da tarifa externa co-mum, a integração da política comercial é apenas relativa. Nos setores não vinculados à união aduaneira, há um esforço pela cooperação. O traço

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comum em ambos os casos é a ausência de cessão de competências à estrutura regional.

Considerando essas variáveis, pode-se falar em políticas públicas regionais no seio do Mercosul? Existem esforços no sentido de uma regu-lação comum em certas áreas, e como eles acontecem? Na tentativa de averiguar tais questões, o artigo busca apresentar um balanço de dois tipos de políticas regionais: uma relacionada a questões econômicas e so-ciais, que fogem aos objetivos explícitos do Mercosul, e outra diretamente vinculada ao mercado comum. Assim, na primeira parte, trata-se do com-bate ao trabalho infantil e ao trabalho escravo no Mercosul e no Brasil. Na segunda parte, discutem-se as medidas adotadas pelo bloco relativo à liberdade de circulação de pessoas, mais especificamente aos direitos trabalhistas e de seguridade social, além das políticas de geração de em-prego. O trabalho baseia-se em fontes bibliográficas e documentais, traz uma revisão da literatura nos temas abordados e busca mapear e analisar as normas, declarações e resultados de reuniões no âmbito regional.

2 COOPERAÇÃO REGIONAL PARA A ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL E DO TRABALHO ESCRAVO

O trabalho infantil e o trabalho forçado pertencem à história. Na Idade Contemporânea conheceram seu apogeu, respectivamente, na re-volução industrial e nas colônias europeias, das Américas. Na primeira década do século XXI, as democracias ocidentais condenavam unanime-mente esses tipos de trabalho, em termos políticos e jurídicos. Contudo, eles continuam presentes. Em termos econômicos, portanto, a sociedade ainda se interessa pela exploração do trabalho de crianças e escravos. A identificação das raízes do problema frequentemente oferece as melhores soluções para combatê-lo.

Após décadas de lutas nacionais e internacionais pela afirmação dos direitos humanos, surgiram a Declaração Universal dos Direitos Hu-manos (1948), o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966), o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), a

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Convenção Interamericana de Direitos Humanos (1969), a Declaração da Organização Internacional do Trabalho (OIT) relativa aos princípios e di-reitos fundamentais do trabalho, a Convenção Internacional a respeito dos Direitos da Criança (1989) e outros instrumentos jurídicos que garantem a liberdade e a dignidade do ser humano e proíbem o trabalho precoce e o trabalho forçado. No âmbito do Mercosul, o Protocolo de Assunção (Decisão do Conselho do Mercado Comum (CMC) 17/05) e a Declaração sobre os Direitos Humanos dos presidentes do Mercosul e dos estados associados (2005), reafirmam a plena vigência, em seus países, dos prin-cípios e valores que sustentam a proteção dos direitos humanos no plano internacional.

No entanto, estimativas da OIT apontam que 246 milhões de pesso-as, com idade entre 5 e 17 anos, são vítimas do trabalho infantil no mun-do, o que equivale a uma criança em cada seis. Na América Latina, 16% das crianças entre 5 e 14 anos são economicamente ativas.2 Quanto ao trabalho escravo, também é disseminado mundialmente e suas práticas, as mais variadas. Além de consistir em um trabalho degradante, tolhe a liberdade da vítima. Na América Latina, 1,3 milhão de pessoas estão nessa situação e os países do Mercosul não são exceção; pelo contrário, trata-se de uma realidade intimamente ligada à pobreza, que ainda caracteriza fortemente os estados da região. Em geral, as crianças trabalham para aumentar a renda da casa e reduzir o nível de pobreza da família, mas o trabalho infantil, ao impedir outras oportunidades à vítima, perpetua a situação de pobreza.

Esse círculo vicioso encontra-se igualmente presente na questão do trabalho forçado, em que os trabalhadores buscam promessas de trabalho farto, na falta de terra, emprego e comida em sua região. “O cativeiro é apenas a ponta de um novelo que, desenrolado, se inicia na própria terra de cada trabalhador.” (SAKAMOTO, 2005). Mas as eternas dívidas com os patrões, criadas ilegalmente por conta da comida, instrumentos de traba-lho e alojamento fornecidos, privam o empregado de obter o salário sonha-do e de sua mobilidade.

Consequências diretas da miséria, o trabalho infantil e o trabalho escravo são comuns aos países do Mercosul. Políticas públicas isoladas somente poderão realizar ações parciais no combate a essas práticas. Já

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a harmonização legislativa e cooperação técnica nos âmbitos educacio-nal, social e policial devem potencializar a efetividade da luta por esses direitos humanos na região. As seções 2.1 e 2.2 analisam o histórico das medidas adotadas pelo Mercosul nesse sentido, enquanto a seção 2.3 se concentra na situação do Brasil.

2.1 O CAMINHO ATÉ O PLANO REGIONAL PARA PREVENÇÃO E ERRA-DICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL

No Mercosul, a coordenação de políticas nas áreas social e traba-lhista é de responsabilidade da reunião dos Ministros do Trabalho (Deci-são CMC 16/91) e do Subgrupo de Trabalho 10 (SGT 10), responsável por assuntos trabalhistas, emprego e seguridade social. Esse órgão foi criado em 1995 (Resolução GMC 20/95) e substituiu o SGT 11 (Resolução GMC 11/91), que parecia mais ambicioso e possuía objetivos mais voltados ao estudo da livre circulação do que dos movimentos migratórios. O SGT 10 constitui um órgão de apoio técnico do Grupo Mercado Comum (GMC), ao qual compete analisar os temas da esfera do trabalho e da seguridade social e propor recomendações e medidas. Tem estrutura e funcionamen-to tripartites, a exemplo da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Para implementar sua agenda, organiza-se em três Comissões Temáticas: relações de trabalho; emprego, migrações, qualificação e formação profis-sional e saúde, segurança, inspeção do trabalho e seguridade social.

Depois de reiterados debates no seio do SGT 10, os primeiros passos concretos do Mercosul no que diz respeito à discussão sobre o trabalho infantil na região, iniciam com a Declaração Sociolaboral de 1998, que es-tabelece em seu artigo 6º:

1. A idade mínima de admissão ao trabalho será aquela esta-belecida conforme as legislações nacionais dos Estados Partes, não podendo ser inferior àquela em que cessa a escolaridade obrigatória.2. Os Estados Partes comprometem-se a adotar políticas e ações que conduzam à abolição do trabalho infantil e à eleva-ção progressiva da idade mínima para ingressar no mercado de trabalho.

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3. O trabalho dos menores será objeto de proteção especial pelos Estados Partes, especialmente no que concerne à ida-de mínima para o ingresso no mercado de trabalho e a outras medidas que possibilitem seu pleno desenvolvimento físico, intelectual, profissional e moral.4. A jornada de trabalho para esses menores, limitada confor-me as legislações nacionais, não admitirá sua extensão me-diante a realização de horas extras nem em horários noturnos.5. O trabalho dos menores não deverá realizar-se em um am-biente insalubre, perigoso ou imoral, que possa afetar o pleno desenvolvimento de suas faculdades físicas, mentais e mo-rais.6. A idade de admissão a um trabalho com alguma das caracte-rísticas antes assinaladas não poderá ser inferior a 18 anos.

Em 2000, após a XIX Reunião do Conselho Mercado Comum (CMC), os presidentes destacam, em seu comunicado conjunto, os esforços na-cionais pela erradicação do trabalho de crianças e adolescentes e reco-mendam o estabelecimento de um conjunto de indicadores que permita a fixação de metas e o seguimento dos processos alcançados. Contudo, é apenas a partir da Declaração Presidencial de 2002 que o assunto entra na agenda política do bloco.

Em 2002, um projeto de resolução da Comissão Sociolaboral enviado ao GMC, torna-se a Declaração Presidencial sobre Erradicação do Traba-lho Infantil. Pode-se questionar se a opção pela resolução não ensejaria um acordo mais claro sobre as políticas a adotar na matéria e maior efi-cácia nos ordenamentos nacionais. A Declaração Presidencial, de modo genérico e sem fixar prazos, estabelece compromissos entre os governos nacionais, recomenda tarefas ao CMC e busca sua concretização. Dispõe também sobre a incorporação do trabalho infantil como temática do Ob-servatório do Mercado de Trabalho. Os compromissos são:

a) a harmonização normativa com relação aos Convênios 138 e 182 da OIT;b) a articulação e consequente coordenação de ações e esfor-ços de todos os atores sociais;c) a ativa participação das organizações governamentais em organizações de trabalhadores e empregadores;d) a educação, a saúde e a proteção integral dos direitos da infância como objetivos essenciais da erradicação do trabalho infantil;

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e) a constante atualização de informação, por meio de pesqui-sas, levantamentos, mapeamentos, que permitam diagnósti-cos periódicos e efetivos;f) a permanente sensibilização e conscientização social;g) o fortalecimento das redes sociais e a imediata capacidade de resposta às demandas que a erradicação exija em cada caso concreto;h) o fortalecimento dos sistemas de monitoramento e inspeção do trabalho infantil;i) a articulação das políticas para a erradicação do trabalho infantil com o sistema educacional, de modo a garantir a inser-ção escolar de meninas e meninos e sua manutenção;j) a garantia de que todas as políticas, programas e ações que sejam implementados em matéria de erradicação do trabalho infantil contem com mecanismos de avaliação de impacto e re-sultados, a fim de possibilitar reformas ou ajustes e aperfeiçoar seus resultados;k) a incorporação de mecanismos adequados para a obtenção de informação vinculada ao nível de acatamento das normas e disposições em matéria de trabalho infantil, com vistas a con-tar com os insumos necessários para aperfeiçoar a eficácia das políticas de prevenção e erradicação do trabalho infantil;l) a adoção de mecanismos e instrumentos estatísticos homo-gêneos de coleta de dados sobre trabalho infantil entre os Es-tados Partes, que facilitem a análise comparada desta proble-mática, com fins de elaboração e implementação de políticas conjuntas.

Na reunião seguinte do CMC (23/02), o órgão delega à reunião de Ministros do Trabalho, por meio da Comissão Sociolaboral e do SGT 10, o seguimento das tarefas acordadas na Declaração. O trabalho é desen-volvido no seio das reuniões regionais das Comissões Nacionais para a Erradicação do Trabalho Infantil (Conaetis), que são instâncias tripartites dos Ministérios do Trabalho. Como fruto dessas atividades, aprovou-se em 2006 o Plano Regional para Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil no Mercosul (Resolução GMC 36/06), com vigência de três anos (2006 a 2009). O marco jurídico do Plano abarca as seguintes normas, vigentes em todos os países do Mercosul: a Convenção Internacional dos Direitos da Criança (1989), o convênio sobre a idade mínima de admissão ao emprego ou trabalho (1973), o convênio sobre as piores formas de trabalho infantil (1999), a Declaração Sociolaboral do Mercosul (1998) e a Declaração Presi-dencial sobre Erradicação do Trabalho Infantil (2002).

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Além de estabelecer uma política comum para a área, o Plano apre-senta objetivos específicos, precisando os resultados a atingir e as ativi-dades a desenvolver. Entre eles estão harmonização legislativa, criação de mecanismos de controle, supervisão e implementação dos direitos da infância, conhecimento sobre a realidade do trabalho infantil na região e fortalecimento da cooperação entre os países. O Plano será desenvolvido mediante a criação de uma Unidade Executora, composta por um conse-lho diretivo de caráter tripartite (representação governamental, sindical e empresarial de cada país). Contará, também, com o apoio de uma secreta-ria técnica-administrativa. O conselho diretivo se reunirá ordinariamente duas vezes ao ano. O Plano prevê ainda recursos orçamentários dos Fun-dos Estruturais do Mercosul (Decisão CMC 45/04), para aplicá-los confor-me o Plano de Coesão Social (Decisão CMC 18/05).3

2.2 O TRABALHO FORÇADO NO MERCOSUL

Também tratada no âmbito do SGT 10, a questão da exploração e escravização de pessoas não recebe a mesma atenção no Mercosul do que o trabalho precoce. As convenções OIT 29 (1930) e 105 (1957) a respeito da abolição do trabalho forçado, foram ratificadas por todos os Estados-Partes e, juntamente com a Declaração Sociolaboral, compõem o marco jurídico do bloco na matéria. O artigo 5º da Declaração estabelece:

1. Toda pessoa tem direito ao trabalho livre e a exercer qual-quer ofício ou profissão, de acordo com as disposições nacio-nais vigentes.2. Os Estados Partes comprometem-se a eliminar toda forma de trabalho ou serviço exigido a um indivíduo sob a ameaça de uma pena qualquer e para o qual dito indivíduo não se ofereça voluntariamente.3. Ademais, comprometem-se a adotar medidas para garantir a abolição de toda utilização de mão-de-obra que propicie, au-torize ou tolere o trabalho forçado ou obrigatório.4. De modo especial, suprime-se toda forma de trabalho força-do ou obrigatório que possa utilizar-se:a) como meio de coerção ou de educação política ou como cas-tigo por não ter ou expressar o trabalhador determinadas opi-

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niões políticas, ou por manifestar oposição ideológica à ordem política, social ou econômica estabelecida;b) como método de mobilização e utilização da mão-de-obra com fins de fomento econômico;c) como medida de disciplina no trabalho;d) como castigo por haver participado em greves;e) como medida de discriminação racial, social, nacional ou re-ligiosa.

Caso as estreitas ligações entre migração internacional e trabalho

forçado seja reconhecidas, a Convenção sobre a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes da Organização das Nações Unidas (ONU) é também um importante instrumento jurídico para os países do Mercosul. A Convenção foi assinada em 1990 e entrou em vigor em 2003. O Brasil é o único país do bloco que ainda não ratificou o documento. Em abril de 2008, foi realizado em Foz do Iguaçu um encontro de cooperação e coordenação policial no Mercosul e Chile para o combate ao tráfico de pessoas, orga-nizado pelo Centro de Coordenação de Capacitação Policial do Mercosul (Decisão CMC 17/00) e OIT. O evento teve a participação das polícias fe-derais, representantes dos Ministérios da Justiça e outros órgãos governa-mentais dos países, além de organizações da sociedade civil. Ao assumir que o tráfico de seres humanos resulta quase sempre em algum tipo de trabalho forçado – urbano, rural ou sexual – as autoridades divulgaram no final dos trabalhos a Carta da Tríplice Fronteira, na qual recomendam a intensificação da capacitação dos corpos policiais para a proteção às víti-mas e o aprofundamento da colaboração regional para o combate conjunto ao tráfico de pessoas.

2.3 LEGISLAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL

Em 2005, a fiscalização da Secretaria de Inspeção do Trabalho regis-trou 7.748 crianças trabalhando no Brasil e 33.706 adolescentes, apren-dizes ou não, em um total de 375.097 empresas fiscalizadas.4 Em 2006, existia um total de aproximadamente 5,1 milhões de crianças entre 5 e 17 anos trabalhando no Brasil.5 Não obstante, a normativa brasileira é exem-

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plarmente protetora na matéria. Se é verdade que o trabalho infantil foi tolerado por muito tempo, a partir dos anos 1990 observa-se uma mudança de legislação e de comportamento no Brasil, mas que ainda não é sufi-ciente para a erradicação do trabalho infantil e para o exercício legal do trabalho adolescente.

A Constituição Brasileira de 1988 proíbe o trabalho noturno, peri-goso ou insalubre aos menores de 18 anos e qualquer forma de trabalho aos menores de 16, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos. Também, proíbe a diferença de salário por motivo de idade e garante ao trabalhador adolescente o acesso à escola e plenos direitos laborais e pre-videnciários. A jornada de trabalho do menor regula-se pelas disposições legais relativas à duração do trabalho em geral, ou seja, 8 horas diárias e 44 horas semanais. Após cada período de trabalho deve haver um interva-lo de repouso não inferior a onze horas.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA − Lei n. 8069/90 art. 67) regulamenta as disposições constitucionais na matéria e sistematiza novas normas, como a proibição do trabalho penoso e do trabalho realiza-do em locais prejudiciais à formação e ao desenvolvimento físico, psíqui-co, moral e social do adolescente em horários e locais que não permitam a frequência à escola (BRASIL, 1890). O ECA também determina que o direito à profissionalização e à proteção no trabalho do adolescente deve observar o respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento e à capacitação profissional adequada ao mercado de trabalho (BRASIL, 1990, art. 69).6

Em 1994, foi criado o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil. Suas atividades levaram à aprovação, em 1996, do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI). Em 2005, o PETI foi integrado com o Programa Bolsa Família, ação que buscou racionalizar a execução de ambos os programas e evitar a fragmentação e superposição de funções. Trata-se de um programa de transferência direta de renda do governo federal para famílias de crianças e adolescentes envolvidos no trabalho precoce, com o objetivo de erradicar as piores formas de trabalho infantil no país, consideradas perigosas, penosas, insalubres ou degra-dantes. Para isso, o PETI concede uma bolsa às famílias desses meninos e meninas em substituição à renda que levam para casa. Em contrapartida,

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as famílias devem matricular seus filhos na escola e fazê-los frequentar a jornada ampliada (atividades extraclasse na escola).7

Em 2008, a Câmara dos Deputados estabeleceu uma parceria com a OIT para o lançamento de uma campanha de conscientização sobre o tra-balho precoce. A revista em quadrinhos do Plenarinho será utilizada para contar histórias em que as próprias crianças atuem como protagonistas das ações de combate ao trabalho infantil. A OIT ficará responsável pela impressão do material e a equipe editorial da Turma do Plenarinho desen-volverá o conteúdo e a arte das revistas.

Quanto à escravidão, foi proibida no Brasil tardiamente, em 1888. A partir de então, passou a ser incompatível com os princípios de liberdade e dignidade declarados nas constituições. O Direito Penal Brasileiro tam-bém regula a questão. O Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei n. 2848/1970) estabelece:

Artigo 149 − com modificação pela Lei 10803/2003 - Redução à condição análoga à de escravo.Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer sub-metendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer res-tringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívi-da contraída com o empregador ou preposto:Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena cor-respondente à violência.§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apo-dera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:I – contra criança ou adolescente;II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

Artigo 203 - Frustração de direito assegurado por lei trabalhis-ta.Frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho.Pena: detenção de 1 (um) a 2 (dois) anos e multa, além da pena correspondente à violência.

Artigo 207 - Aliciamento de trabalhadores.

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Aliciar trabalhadores, com o fim de levá-los de uma para outra localidade do território nacional.Pena: detenção de 2 (dois) meses a 1 (um) ano e multa.

Apesar da proteção legislativa, entre novembro de 2002 e novembro de 2004, a fiscalização do Ministério do Trabalho encontrou um total de 9.252 trabalhadores submetidos à condição análoga à de escravo, em suas 272 ações de fiscalização concentradas na região da Amazônia.8 A Comis-são Pastoral da Terra estima que 25 mil trabalhadores se encontram em situação de submissão, a maioria formada por homens entre 20 e 35 anos. A pecuária responde por 43% dos casos, o desmatamento por 28% e a agri-cultura por 24%. No Brasil, são comuns a servidão por dívida, a retenção de documentos, a dificuldade de acesso do estado e a presença de capatazes armados. Em maio de 2008, a Anistia Internacional denunciou a existên-cia de trabalho forçado no setor canavieiro, principalmente nos estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul. Também foi verificada exploração de indígenas nos canaviais sul-mato-grossenses, onde vivem em condições extremamente precárias e insalubres.

A partir de 2003, os esforços pelo combate ao trabalho forçado resul-taram em aumento de notícias sobre o assunto na mídia impressa, criação de grupos no Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público Fe-deral (MPF) e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), criação da Frente Parlamentar contra o Trabalho Escravo, campanhas estaduais, lançamen-to da “lista suja” (divulgação dos proprietários flagrados com escravos), criação de varas itinerantes e aumento de processos judiciais. Em abril do mesmo ano, o governo adota o Plano Nacional para a Erradicação do Tra-balho Escravo, elaborado pela Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. O Plano estabelece propostas precisas em termos de ações gerais, melhoria das estruturas de fiscalização, ação policial e MPT e MPF, ações específicas de combate à impunidade e cons-cientização social, além de alterações legislativas. Indica a instituição res-ponsável pelo cumprimento de cada proposta e o prazo, e cria o Conselho Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), com represen-tantes de nove ministérios e de nove de Oganizações não governamentais do setor. Aguarda votação no plenário da Câmara dos Deputados, a Pro-posta de Emenda Constitucional 438/2001, a qual permite a desapropria-

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ção para fins de reforma agrária das fazendas onde ocorra o fenômeno. Tal proposta encontra forte resistência de setores parlamentares conservado-res vinculados à exploração de grandes latifúndios.

Embora a organização para o combate ao trabalho escravo no país seja satisfatória e propicie a eficiência, ainda persistem obstáculos vincu-lados às restrições orçamentárias e ao nível insuficiente de fiscalização. A troca de experiências com os demais países do Mercosul, a cooperação para o combate ao tráfico de pessoas na região e uma fiscalização conjun-ta das regiões de fronteira, são ações que poderiam trazer mais eficácia às políticas nacionais.

3 IMPLICAÇÕES SOCIAIS DA LIVRE CIRCULAÇÃO DE PESSOAS NO MERCOSUL

A migração, embora seja um fenômeno que remonta ao surgimento do homem, constitui um dos fatores de destaque no cenário internacional contemporâneo. Se é verdade que o mundo globalizado esclarece e tor-na mais interessantes as possibilidades de deslocamento dos indivíduos, também é certo que se fecham, com a mesma rapidez, as fronteiras nacio-nais. Nas palavras de Morin (2000, p. 67-69):

[...] o mundo torna-se cada vez mais um todo. Cada parte do mundo faz, mais e mais, parte do mundo e o mun-do, como um todo, está cada vez mais presente em cada uma de suas partes [Mas] o mundo, cada vez mais, tor-na-se ao mesmo tempo cada vez mais dividido [...] Dessa maneira, o século XX a um só tempo criou ou dividiu um tecido planetário único; seus fragmentos ficaram isola-dos, eriçados e intercombatentes.

No século XXI, a mudança de país soa paradoxalmente acessível em termos de transporte, atraente quanto aos fins econômicos e culturais e extremamente complexa quanto à entrada e à permanência em território estrangeiro. O próprio processo de flexibilização das fronteiras internas da União Europeia é acompanhado de medidas de combate à imigração externa. O Acordo Schengen, que permite a movimentação sem fronteiras

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para os cidadãos da Europa, exclui com maior veemência o trabalhador não europeu, sobretudo o não branco.9

Essa parte pretende estudar as ações adotadas de modo conjunto pelos países do Mercosul, no sentido de estimular a liberdade de circu-lação de seus cidadãos e assegurar sua proteção trabalhista e social. A seção 3.1 trata da proteção ao trabalho, enquanto a seção 3.2 dedica-se às políticas de geração de emprego. Diferentemente dos casos do trabalho infantil e escravo, a questão laboral diz respeito diretamente à formação do mercado comum, objetivo primordial do Mercosul.

3.1 TRATAMENTO DOS DIREITOS TRABALHISTAS E DE SEGURIDADE SOCIAL NO MERCOSUL

No Mercosul, a maioria da população estrangeira residente nos paí-ses membros é originária dos outros Estados do bloco, conforme pode ser verificado na Tabela 1:

Tabela 1: Origem da população residente do Mercosul

População total Mercosul 215.000.000

População estrangeira nos países do Mercosul 3.500.000

População estrangeira originária dos países do Mercosul 2.000.000

Porcentagem da população estrangeira de cada país

originária dos demais Estados do Mercosul

Argentina 67%

Brasil 50%

Paraguai 83%

Uruguai 49%

Brasileiros residentes nos países do Mercosul 730.000

Fonte: dados aproximados fornecidos por Brasil (2009).

O objetivo de constituir um mercado comum compreende a livre cir-culação de pessoas, que implica a liberdade de se deslocar a outro país e obter ali emprego e residência. O Mercosul deu um passo importante nesse sentido em dezembro de 2002, com a assinatura de quatro acordos sobre regularização migratória interna e residência para nacionais dos Estados

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Partes, Bolívia e Chile (Acordos 11 a 14/02, Decisão CMC 28/02). Segundo os documentos, os cidadãos de quaisquer países do Mercosul, natos ou naturalizados há pelo menos cinco anos, terão um processo simplificado na obtenção de residência temporária por até dois anos em outro país do bloco, tendo como exigências o passaporte válido, certidão de nascimento, certidão negativa de antecedentes penais e, dependendo do país, certifi-cado médico de autoridade migratória. De forma igualmente simples, sem necessidade de vistos ou emaranhadas burocracias, a residência tempo-rária, no decurso do prazo, pode se transformar em residência permanente com a mera comprovação de meios de vida lícitos para o sustento próprio e familiar. Embora ainda não se trate de plena livre circulação, a simplifi-cação dos trâmites burocráticos contribui significativamente para tanto. Os acordos, contudo, ainda não são vigentes, tendo em vista a ratificação pendente na Argentina e no Paraguai.

A livre circulação abrange também, além da liberdade de desloca- livre circulação abrange também, além da liberdade de desloca-mento, residência e trabalho, o gozo efetivo de um nível satisfatório de igualdade de oportunidades e de tratamento, e o reconhecimento dos fa-tores acessórios de bem-estar do trabalhador migrante, nos quais se in-cluem seguridade social, acesso à escolaridade, ferramentas de trabalho, reunião com familiares, entre outros (SANT´ANNA, 2001). Esse passo cor-responde a uma medida de integração positiva. Enquanto a integração negativa visa apenas a suprimir os obstáculos à liberdade de circulação, aquela inclui medidas que objetivam a regulação do mercado. Nessa pers-pectiva, não se trata somente de permitir o deslocamento de pessoas, mas de protegê-las, o que implica o exercício de direitos sociais e trabalhistas para além das fronteiras nacionais.

Para o desenvolvimento dessas políticas, o Mercosul conta com o Fó-rum Consultivo Econômico e Social (FCES), com a Reunião dos Ministros do Trabalho e com o Subgrupo de Trabalho 10. Entre as principais realiza-ções do SGT, estão a Declaração Sociolaboral do Mercosul (1998), o Acordo Multilateral de Seguridade Social do Mercosul (1997), o Observatório do Mercado de Trabalho do Mercosul, os Planos Operativos Conjuntos de Ins-peção do Trabalho e o estudo comparativo das legislações trabalhistas da região.

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As discussões que levaram à Declaração Sociolaboral remontam à criação do SGT 11, em 1991. As negociações, que culminaram com a assi-natura do documento em dezembro de 1998, foram facilitadas pelos princí-pios comuns dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos e sociais assinados pelos países do Mercosul, nos quais se inclui a Declara-ção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) relativa aos princípios e direitos fundamentais do trabalho, de 1998.10 A Declaração Sociolaboral procura harmonizar, em termos gerais, as determinações nacionais relati-vas aos direitos individuais e coletivos dos trabalhadores, considerando que “[...] a integração regional não pode se restringir às esferas comercial e econômica, mas deve alcançar a temática social.”

Como se trata de um instrumento jurídico sui generis, não previsto no ordenamento do Mercosul, a Declaração não precisa ser incorporada nos ordenamentos nacionais. Essa faculdade, que deveria facilitar a apli-cação do documento, revela-se ambígua e dependente de interpretações constitucionais. Os tratados internacionais em matéria de direitos huma-nos, como é o caso da Declaração, são obrigatórios e vinculantes, mesmo que não passem pelo processo de ratificação, mas, em caso de conflito com a legislação nacional, a aplicação no caso concreto ainda dependeria da orientação dos tribunais no que diz respeito às relações entre o direito internacional e o direito interno.

No caso do Brasil, os dispositivos da Declaração coadunam-se, em geral, com as normas vigentes. Uma notória exceção é a igualdade de direitos entre os trabalhadores prevista no artigo 1º da Declaração: a le-gislação brasileira não garante a todas as profissões os mesmos direitos trabalhistas. As demais dificuldades de concretização do documento re-lacionam-se com a generalidade de alguns de seus dispositivos. O docu-mento não poupa expressões como “os Estados Partes comprometem-se a adotar medidas”, sem especificar políticas públicas nem prazos para realizá-las. Esse tipo de norma relativiza sua própria eficácia ao deixar de fornecer instrumentos de ação mais concretos aos parlamentares, demais membros do poder público e operadores jurídicos e sociais. Mesmo assim, essas disposições são dotadas de validade jurídica e, portanto, passíveis de aplicabilidade e exigência em juízo, o que já permite atitudes criativas por parte dos atores interessados.

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Com o objetivo de fomentar e acompanhar a aplicação da Declaração, conforme previsto em seu artigo 20, foi criada em março de 1999, pela Re-solução GMC 15/99, a Comissão Sociolaboral do Mercosul (CSLM), órgão auxiliar do GMC com caráter tripartite, promocional e não sancionador. Seu regimento interno foi aprovado pela Resolução GMC 12/00 e determi-na que ela é composta por 12 membros, sendo um representante por es-tado para os setores governamental, empregador e trabalhador. A Comis-são pode formular planos, programas de ação e recomendações tendentes a fomentar a aplicação e o cumprimento da Declaração. Pode, também, examinar consultas, observações e dúvidas a respeito da interpretação do documento, instrumento que poderia ser mais utilizado por segmentos sociais, judiciais e governamentais, inclusive pelo Parlamento do Merco-sul. Ademais, pode elaborar análises e informes sobre o cumprimento da Declaração Sociolaboral. A Comissão reúne-se ordinariamente duas vezes ao ano, com encontros restritos aos membros e dois assessores por comis-são, o que limita a participação de setores interessados, como academia e sociedade civil e o conhecimento social acerca de seu trabalho. As deci-sões são tomadas por consenso entre todos os membros. Uma importante realização da Comissão foi a Conferência Regional do Emprego, organiza-da em Buenos Aires nos dias 15 e 16 de abril de 2004, com apoio técnico da OIT, buscando encontrar soluções integradas ao desafio da criação de empregos qualificados na região.

A questão da seguridade social também foi uma preocupação do SGT 10 desde sua formação inicial.11 Depois de fracassadas tentativas de harmonização das legislações nacionais na matéria e reiteradas negocia-ções, optou-se pelo Acordo Multilateral de Seguridade Social do Mercosul, aprovado pela Decisão CMC 19/97, após a Recomendação SGT 10 02/97 e a Resolução GMC 80/97. O tratado, contudo, somente passou a viger a partir de junho de 2005, após ratificação em todos os Estados partes. A Venezuela comprometeu-se a aderir ao tratado até 2008.

O Acordo reconhece aos trabalhadores que tenham prestado servi-ço em qualquer dos Estados-partes do Mercosul e a seus familiares os mesmos direitos dos nacionais do estado onde vivem. Isso significa que se pode computar o tempo de serviço realizado em qualquer país do Mer-cosul e mesmo em países terceiros, quando exista convênio nesse sentido

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e reciprocidade. Criam-se, também, mecanismos para a transferência de fundos entre contas de capitalização individual. Todos os trabalhadores são contemplados, mesmo os servidores públicos. Cada país deve con-ceder as prestações por velhice, idade avançada, invalidez temporária ou permanente e morte segundo sua própria legislação.

O artigo 16 do Acordo cria uma Comissão Multilateral Permanente encarregada de zelar pelo cumprimento da legislação, elaborar propostas de modificação e mediar conflitos entre as partes. A Comissão é formada por três membros de cada estado e deve reunir-se uma vez ao ano (MUR-RO OBERLIN, 2004).

3.2 ESTRATÉGIA MERCOSUL DE CRESCIMENTO DO EMPREGO

Além do tratamento dos direitos trabalhistas e previdenciários, po-líticas públicas comuns de geração de emprego são essenciais à criação de um efetivo mercado comum. Em um bloco de integração regional, um espaço sem fronteiras internas deve compreender a livre circulação de mercadorias, serviços, capitais e pessoas. Enquanto as três primeiras li-berdades referem-se ao âmbito econômico do processo, a circulação de pessoas, derivando dele, inaugura, necessariamente, sua dimensão social. À medida que a integração afeta as condições de trabalho e de vida das populações, acarretando mudanças no nível e na composição do emprego e na pertinência de habilidades profissionais, além de assimetrias laborais e de proteção social, surge a necessidade de regular um quadro que supe-ra significativamente as condições meramente econômicas. Tal situação exige dos Estados-partes um esforço conjunto dirigido não somente à har-monização das legislações trabalhistas e à garantia dos direitos da segu-ridade social, mas também voltado à melhor compreensão dos problemas comuns da esfera do trabalho e à aproximação entre os serviços públicos nacionais nessa questão (SANT´ANA, 2001, p. 79).

Esse quadro está vinculado à complexa e integrada noção de desen-volvimento que vem ganhando espaço no cenário internacional. Afirma-se

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um direito dos povos à riqueza, não somente na esfera econômica. Segun-do Sem (2005, p. 14),

[...] devemos tratar da interdependência entre diferentes as-pectos do desenvolvimento – econômico, social, político e, mais especificamente, o aspecto jurídico. Pode-se dizer que se os diferentes aspectos do desenvolvimento não forem levados em conta de forma conjunta e simultânea na análise e na prá-tica, cada um destes aspectos pode acabar enforcado.

O direito internacional do desenvolvimento trata-se justamente de um “[...] conjunto normativo que trata de realizar, no âmbito internacio-nal, o processo de elevação do nível de vida e de atingir um progresso econômico que equilibre as enormes diferenças que hoje existem entre os povos, eliminando os grandes núcleos de pobreza vítimas da depressão econômica e social.” (ESPIELL, 1975. p. 5). Seguindo essa orientação, a integração regional deve pautar-se por uma consideração abrangente das necessidades dos povos envolvidos. Assim, as liberdades proporcionadas por um processo integracionista não podem se restringir aos aspectos econômico-comerciais, ao contrário, devem ser ampliadas a partir deles. Políticas sociais, em especial no âmbito do mercado de trabalho, por afetar diretamente o dia a dia dos cidadãos, são relevantes.

As negociações, no sentido de integrar as políticas públicas de gera-ção de emprego no Mercosul, têm avançado significativamente nos últimos anos. Diante da constatação do agravamento do nível de desemprego na região, da queda na qualidade do emprego e do aumento do trabalho infor-mal e do subemprego (CALLE; ORSATTI, 2003), o GMC autoriza em 2003 a realização da Conferência Regional do Emprego. A própria Declaração Sociolaboral abarca disposições sobre políticas do mercado de trabalho, entre seus artigos 14 e 16 – fomento ao emprego, proteção aos desempre-gados e formação profissional e desenvolvimento dos recursos humanos. O Consenso de Buenos Aires, em outubro de 2003, declara apoio dos go-vernos argentino e brasileiro ao evento e ressalta o trabalho decente como o instrumento mais efetivo para a promoção das condições de vida dos povos da região. A XVII Reunião dos Ministros do Trabalho do Mercosul, ainda em 2003, reafirma o conteúdo da Recomendação CMC 02/03, segun-do a qual o emprego deve ser mantido como tema prioritário em todas as

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instâncias institucionais do bloco, considerando-se que a integração deve ser um fator de criação de mais e melhores postos de trabalho. A Ata de Copacabana, em 2004, assinada por Brasil e Argentina, insiste na necessi-dade de integração das políticas laborais e sociais como fator de geração de empregos de qualidade. O evento buscou colocar a política laboral no centro da agenda política do Mercosul, discutindo impactos do comércio mundial, da formação e da tecnologia no emprego, além das condições econômicas para a geração de vagas de qualidade.12

O trabalho da Comissão Sociolaboral e os debates na Conferência impulsionaram a Decisão CMC 46/04, a qual estabelece um Grupo de Alto Nível para elaborar uma estratégia comum de geração de empregos nos países do bloco. As atividades do Grupo culminaram com a Estratégia Mercosul de Crescimento do Emprego, aprovada pela Decisão CMC 04/06. O documento prevê a geração de emprego como centro da articulação das políticas econômicas, sociais, trabalhistas e educativas, em consonância com as normas trabalhistas. Metodologicamente, o Grupo de Alto Nível de Emprego será o responsável pela elaboração da política regional, reunin-do-se uma vez por ano sob a coordenação dos Ministérios do Trabalho dos países-membros e assistido tecnicamente pelo Observatório do Mercado de Trabalho do Mercosul. As primeiras diretrizes regionais foram definidas pelo Grupo, a partir das propostas nacionais, e aprovadas pelo CMC por meio da Decisão 19/07. Os planos de emprego nacionais devem agora ser elaborados segundo estas diretrizes, que são:

promover o desenvolvimento das micro, pequenas e médias a) empresas, de cooperativas, de agricultura familiar e a integração de redes produtivas, incentivando a complementaridade produtiva no contexto da economia regional; orientar investimentos públicos e privados a setores com mão b) de obra intensiva e a setores estratégicos da economia, como infraestrutura e novas tecnologias, entre outros.

A crescente aplicação das normas trabalhistas, nacionais, regionais e internacionais, e a incorporação progressiva ao mercado de trabalho de grupos em situação de desvantagem, sobretudo das mulheres, devem ser

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contempladas com essa política. O Brasil, que ainda não elaborou seu Pla-no de Emprego Nacional com base nas recomendações do Mercosul, apre-senta uma das taxas de desemprego menos elevadas do Mercosul (8% em janeiro de 2008). O número total de empregos com carteira assinada (ex-cluídos servidores públicos e trabalhadores autônomos), atingiu o recorde de 30 milhões em maio de 2008, sobre uma população total de quase 190 milhões de pessoas.13

A Estratégia Mercosul de Crescimento do Emprego é uma inovação importante no âmbito do bloco.14 As medidas a serem tomadas ainda de-penderão dos governos, mas serão fruto de um acúmulo de debates e do conhecimento partilhado sobre a realidade regional. Trata-se de um início de cooperação em matéria de políticas públicas, no âmbito do trabalho que precisa ser permanentemente revista e aprofundada com o auxílio das demais instituições do Mercosul. Nesse sentido, o Parlamento do Mercosul e o Fórum Consultivo Econômico e Social surgem como atores centrais, ao lado de organizações como a Coordenadoria de Centrais Sindicais do Mer-cosul15 e outros grupos representando interesses de trabalhadores, empre-gadores e sociedade civil do bloco. Quanto à economia social e solidária, setor a ser desenvolvido no Mercosul conforme as diretrizes do Grupo de Alto Nível do Emprego, não podem ser negligenciadas as experiências da Reunião Especializada de Cooperativas do Mercosul e do Programa Mer-cosul Social e Solidário.

4 CONCLUSÃO: INTEGRAÇÃO OU COOPERAÇÃO?

Em 18 anos de Mercosul, os avanços na coordenação de políticas pú-blicas foram significativos, embora os passos mais concretos sejam relati-vamente recentes e, portanto, de efeitos ainda indeterminados. A análise demonstrou que os esforços pelo combate conjunto ao trabalho escravo e ao trabalho infantil são exemplos de como é possível atingir objetivos comuns por meio de estratégias nacionais. No caso dos direitos trabalhis-tas e de seguridade social, mais do que um projeto de cooperação, dizem respeito aos aspectos centrais da integração e, por isso, deveriam ser tra-

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tados com um olhar verdadeiramente comunitário. O trabalho, no entan-to, tratou de um espectro reduzido das políticas públicas regionais. Uma abordagem completa do tratamento dos direitos sociais e econômicos no âmbito do Mercosul poderia trazer elementos mais conclusivos nesse sen-tido e deve ser objeto do desenvolvimento futuro dessa pesquisa.

A livre circulação de pessoas – trabalhadores e suas famílias, es-tudantes e cidadãos em geral – e, portanto, a proteção de seus direitos, mostra-se fundamental para a integração econômica, já que a mera cir-culação de alguns dos fatores produtivos restringiria a pretendida libera-lização das fronteiras em termos comerciais no Mercosul. Sua presença, logo, evidencia o apelo econômico da integração, complementando-o e reforçando-o. Ademais, a simples liberdade do comércio no espaço comu-nitário ensejaria, ao invés de um desenvolvimento harmonioso e equilibra-do das atividades de produção, a imposição da superioridade de estados mais produtivos aos parceiros menos industrializados. A ausência da livre circulação de pessoas acentuaria, e não atenuaria, as assimetrias de de-senvolvimento (CAMPOS, 2001; ROBLES, 2004).

Ela surge também como essencial a processos integracionistas com objetivos para além do comércio. Por despertar a criação de mecanismos sociais, trabalhistas e ambientais no bloco e ser próxima da realidade do cidadão, a migração pode atuar como força integradora de mais alcance do que o comércio e os investimentos. Assim, a livre circulação de pesso-as, depois de constituir um elemento do mercado comum, passa a configu-rar um fator-chave da cidadania e, portanto, do desenvolvimento do bloco. Com efeito, tais fatores somente são impulsionados quando, a partir da liberdade de deslocamento e por meio dela, indivíduos de diferentes na-cionalidades passam a contar com direitos em comum. As políticas de em-prego e seguridade social encabeçam a lista desses direitos. No entanto,

[...] o núcleo das políticas migratórias no Mercosul ainda não considera os movimentos populacionais como fator de desen-volvimento econômico e social, continuando a encarar as fron-teiras como espaço de conflito, em evidente contradição com a concepção subjacente ao processo de integração regional, que redefine essa mesma região como área política e econômica contínua. (VICHICH apud SANT´ANA, 2001, p. 83).

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Um dos principais obstáculos geralmente apresentados ao livre des-locamento de pessoas no Mercosul, é que ele geraria intenso fluxo migra-tório a centros industriais. Embora não se possa descartar essa possibili-dade, há de se considerar que os estados-membros não apresentam uma heterogeneidade socioeconômica equiparável à existente entre Estados Unidos e México, por exemplo. Ao contrário, as disparidades econômicas internas são frequentemente maiores do que as diferenças em relação aos outros países. Na União Europeia, os diferenciais de ganho e renda não constituíram, até o momento, estímulo à migração laboral massiva nem perturbaram mercados de trabalho nacionais, sendo a livre circulação quase restrita a pesquisadores e funcionários comunitários. De qualquer forma, as consequências de eventuais fluxos migratórios podem ser preve-nidas com políticas públicas sérias, criteriosas e coordenadas, relativas às condições de trabalho e planejamento urbano, principalmente nas regiões mais procuradas.

Para desenvolver um debate qualificado sobre a questão, é impor-tante compreender que a livre circulação de pessoas não é um efeito inde-sejável do mercado comum, mas um elemento indispensável à sua cons-tituição. Isso passa pela concretização de um aparato institucional e de instrumentos reguladores que promovam a eliminação das barreiras para residência no país vizinho, a harmonização das leis trabalhistas dos esta-dos-membros, o tratamento igual aos trabalhadores de diferentes naciona-lidades, a continuidade das garantias assistenciais e previdenciárias com a mudança de país, a possibilidade de filiação sindical e outros direitos fundamentais comuns.

Nesse contexto, os atores decisórios do Mercosul precisam definir mais claramente seus projetos de integração e de cooperação. Além dis-so, é necessário identificar quais as áreas prioritárias de ação, em que esforços coordenados ou integrados dos países seriam mais eficazes na consecução de anseios partilhados pelas sociedades. Isso passa pela re-tomada da discussão sobre cessão de competências, para que a estrutura institucional criada pelo Mercosul não se restrinja a uma burocracia vazia, impedida de colaborar para o desenvolvimento da região.

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Regional public policy: an analysis of the social rights regulation in Mercosur

Abstract

In general, regional integration institutions are more well-known and stu-died than the policies it generates. However, the dynamics of an integration process is assured by its policies, which offer materiality to the projects. But can one talk about regional public policy in Mercosur? Are there efforts towards a common regulation of certain areas, and how they happen? This paper presents an analysis of two types of regional policy: the first one dea-ling with economic and social questions, therefore out of reach of Mercosur explicit objectives, and the second directly related to the common market. The first part of the article deals with struggling against child and forced labor in Mercosur and Brazil. The second part presents some measures adopted by the bloc related to free movement of people, labor and social se-curity legislation, besides employment policies. As a conclusion, the article presents an analysis of the pertinence of those areas in the implementation of the common market searched by the bloc. The paper is based in biblio-graphical and documental sources which serve as a basis for a literature review and a mapping of norms, declarations and results of meetings in the regional ambit.Keywords: Public policy. Regional integration. Social and labor rights. Mer-cosur.

Notas explicativas

1 D’ARCY, François. Les politiques de l’Union européenne. Paris: Montchrestien, 2003, p. 7.2 Veja o site do Programa Internacional para a Erradicação do Trabalho Infantil da OIT. Disponível em: <www.oit.org.pe/ipec>. Acesso em: 8 out. 2009.3 Sobre o tema, veja Arriagada (2003), Organização Internacional do Trabalho e Festa (2003). 4 Dados do Ministério do Trabalho e Emprego, disponíveis em: <www.mte.gov.br>. Acesso em: 10 out. 2009.

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5 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, disponíveis em: <www.ibge.gov.br>. Acesso em: 10 out. 2009.6 Para uma abordagem atual e crítica sobre a história e a regulamentação nacional e internacional do trabalho precoce no Brasil, veja Custódio e Veronese (2007), Kassouf (2007), Antão de Carvalho et al. (2003) e Caceres (2003).7 Para uma análise dos resultados do PETI, veja Carvalho (2004). Veja, também, interessante análise dos custos e benefícios econômicos decorrentes da eliminação do trabalho infantil no Brasil: a pesquisa conclui que o valor dos futuros ganhos seria muito maior do que os investimentos públicos necessários (KASSOUF, et al., 2005).8 Dados do Ministério do Trabalho e Emprego. Disponível em: <http://www.mte.gov.br>. Acesso em: 11 out. 2009.9 Castro (2001). A chamada “Diretiva de Retorno” (COM/2005/391 – COD/2005/167), proposta pela Comissão Europeia e aprovada no Parlamento em primeira leitura, em junho de 2008, corrobora a afirmação. O documento prevê a harmonização das legislações nacionais da UE quanto à política migratória, permitindo retenção de até 18 meses de imigrantes ilegais e expulsão em caso de recusa de retorno voluntário, com proibição de retornar ao território europeu nos cinco anos seguintes à saída.10 Para uma análise comparada das reformas trabalhistas nos países latino-americanos nos anos 1990, que se caracterizaram majoritariamente pela paulatina perda de representatividade dos sindicatos, maior flexibilização das relações de trabalho e avanço do processo de informalidade no mercado de trabalho, veja Cacciamali (2002).11 Os dados referentes a 2007 sobre os sistemas de seguridade social ibero-americanos coletados pela Organização Ibero-americana de Seguridade Social estão disponíveis em: <www.oiss.org>. Acesso em: 11 out. 2009. Para uma análise comparada dos sistemas, veja Dixon (2000) e Silva (2004).12 Veja os documentos relativos ao evento (sobretudo a Declaração dos Ministros do Trabalho e os documentos de trabalho da Coordenadoria das Centrais Sindicais do Cone Sul e da Organização Internacional do Trabalho, preparados especialmente para a conferência) em <http://www.trabajo.gov.ar/crem/conferencia/centrales.htm>. Acesso em: 15 out. 2009. 13 Dados fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (disponível em <www.ibge.gov.br>, acesso em: 15 out. 2009) e pelo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (disponível em <www.caged.gov.br>, acesso em: 15 out. 2009). Para um panorama geral da situação do mercado de trabalho no Mercosul até 2003, veja o último Informe do Mercado de Trabalho no Mercosul. Brasília, DF: MTE, maio 2005. Disponível em: <www.observatorio.net>, acesso em 15 out. 2009. Para um histórico das políticas de emprego no Brasil, veja Ramos (2003). 14 Sobre as políticas nacionais de emprego no Mercosul veja Cacciamali (2005) e Notaro (2003). 15 A Coordenadoria foi criada em 1986 com o apoio da Organização Interamericana de Trabalhadores e reúne oito centrais sindicais representativas dos países do

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Cone sul (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai). Veja <www.ccscs.org> e <www.sindicatomercosul.com.br>.

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Recebido em 2 de agosto de 2010Aceito em 27 de setembro de 2010

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