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    404 Estudos Feministas, Florianpolis, 21(1): 395-412, janeiro-abril/2013

    PPPPPolticas sexuais da carneolticas sexuais da carneolticas sexuais da carneolticas sexuais da carneolticas sexuais da carneA poltica sexual da carne:arelao entre carnivorismo e a

    dominncia masculina.ADAMS, Carol.

    So Paulo: Alade Editorial, 2012. 350 p.

    Carol J. Adams escritora e ativista feministaformada em Teologia pela Yale University, e tempesquisado sobre temas como vegetarianismo,direitos animais, violncia domstica e abusosexual. A poltica sexual da carne: a relaoentre carnivorismo e a dominncia masculina,livro de sua autoria, o primeiro a ser publicado

    no Brasil, 22 anos aps seu lanamento nosEstados Unidos sob o ttulo The Sexual Politics ofMeat: A Feminist Vegetarian Critical Theory.

    Neste livro, Adams convida-nos a uma leiturasobre os significados de gnero presentes emnossa cultura alimentar. A partir de anlisediscursiva, ela defende que o modo como vemose nos alimentamos de animais mantm umarelao profunda com a cosmologiaandrocntrica predominante nas sociedadesocidentais modernas. A alimentao tomadapela autora como um fenmeno socialconstitudo por prescries que estorelacionadas com as normas de gnero. Assim,ela se prope a analisar um hbito extremamentearraigado em nossa cultura o consumo de

    carne animal a partir de uma perspectivafeminista.

    O livro est dividido em trs grandes partesque, por sua vez, so internamente subdivididasem nove captulos. Aqui enfocaremos as ideiasprincipais desenvolvidas em cada uma delas.

    A pr imeira parte , inti tulada Os tex tospatriarcais da carne, tem por objetivo situar aproduo do significado da carne dentro docontexto de dominao masculina. A autora

    toma anncios, cardpios, caixas de fsforos eoutdoors como objetos de anlise dasrepresentaes culturais que caracterizam,

    segundo seu argumento, a poltica sexual dacarne. Adams tambm apresenta trechos decontos populares e de fadas, compndios sobrealimentao e livros de receitas. Nestes, ela notouque, com frequncia, as sees de churrascodos livros dirigem-se aos homens e que ascomidas recomendadas para o Dia das Mesno incluem carne ao contrrio dorecomendado para o Dia dos Pais , de modo aendossar a prescrio de gnero de que oshomens precisam de carne.

    A partir dos seus dados de pesquisa, Adamsaponta a construo da carne como umalimento capaz de conferir fora e virilidade atributos socialmente considerados masculinos.Ela defende que a masculinidade, entre outrosaspectos, constituda, portanto, pelo acessoao consumo de carne e pelo controle de corposconstrudos, por sua vez, como comestveis. Aprerrogativa masculina de comer carne caminhapari passucom o padro valorativo em vignciana escolha do que(m) comer: a carne considerada o alimento a priori, de sorte quelegumes, verduras, frutas e gros so tidos comoalimentos de segunda classe e acrescentaAdams femininos. A palavra vegetal adquire,assim, o sentido de aptico, montono, passivo.

    Subsequentemente, a autora constri oargumento da superposio discursiva derepresentaes culturais de animais feminilizadose mulheres animalizadas, em que ambos so

    sexualizados. A superposio estaria assente noque a autora chama de referente ausente recurso analtico que ocupa posio-chave naideia central do livro. Para elucidar o conceito,so apresentados alguns exemplos: umachurrascaria em Nova Jersey que recebeu onome de Costela de Ado; a revistapornogrfica The Hustler, que, antes de se tornaruma publicao, era um restaurante emCleveland cujo cardpio apresentava o traseiro

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    de uma mulher acompanhado da frase Servimosa melhor carne da cidade, entre inmeros outrosexemplos.

    Para que exista a carne, os animais se tornamreferentes ausentes; isto , antes vivos, eles sotransformados em comida por meio de umaoperao simblica pela qual os animais setornam ausentes e que renomeia os corpos mortosantes de chegarem aos/s consumidores/as.Vacas, depois da morte e ento fragmentadas,se tornam bifes, rosbifes, hambrgueres referenciais, segundo a autora, menosinquietantes.

    Da mesma forma que animais com vida, asmulheres, uma vez indivduos em sua

    integralidade, seriam transformadas emreferentes ausentes. Para a autora, os exemplosevidenciam o mecanismo comum que objetifica,isto , esvazia os corpos femininos de umaidentidade ao retalh-los em partes sexualizadas(bundas, seios, pernas, etc.), e os constri comocorpos metaforicamente comestveis.

    O conceito de referente ausente ,portanto, o recurso heurstico lanado pela autorapara estabelecer as conexes anunciadas. Umavez restaurados os referentes ausentes, podemosnotar que os significados de gnero extrapolamas relaes homens-mulheres e esto presentesnas relaes que mantemos com os animais,para alm da fronteira entre as espcies. Essa ,

    possivelmente, a contribuio da obra para ocampo dos Estudos Feministas, e que reafirma apremissa sobre a qual estes estudos estoassentes: todo fenmeno social gendrado, isto, atravessado por significados de gnero embora, preciso ressaltar, esta categoria estejalonge de exercer uma funo central na anlisedesenvolvida no livro.

    A segunda parte do livro dedica-se a umaanlise histrico-literria que busca resgatar asvozes de mulheres feministas vegetarianasescritoras e ativistas ao longo do tempo, amideinvisibilizadas. So mulheres que, para a autora,subverteram o mecanismo acima e reestabe-leceram o referente ausente. Inicialmente Adamsmenciona as produes literrias nas quaisfeminismo e vegetarianismo aparecem juntosdesde o sculo XVIII, no contexto do Romantismo,no qual foram desenvolvidas as ideias modernassobre vegetarianismo. Dentre outros romances,ela d destaque obra Frankenstein, de MaryShelley, filha da destacada sufragista MaryWollstonecraft, ressaltando o vegetarianismo dacriatura de Shelley, que, na interpretao deAdams, transmite sign if icados paci fi stas efeministas.

    Em seguida ela se reporta Primeira GuerraMundial, momento no qual a viso utpicapacifista presente em Frankenstein encontradaem diversos romances escritos por mulheres.Investigam-se as estratgias narrativas postas emfuncionamento quando, no contexto da guerra,muitas escritoras relacionaram as causas dobelicismo ao consumo de carne e ao domniomasculino, postulando um mundo ideal compostode feminismo, vegetarianismo e pacifismo. Adamsmostra que diversos romances escritos pormulheres nesse perodo usam a carne como umaalegoria para a opresso feminina, isto , comoum indicativo da sobreposio de opresses. Amorte de pessoas e de animais tida como

    expresso do poder masculino, uma vez que,nesses romances, figura a ideia mais ou menosdifusa de que culturas consumidoras de carneso mais inclinadas violncia.

    Uma vez que as mulheres so as principaispreparadoras de comida na cultura ocidental e,como visto acima, a carne definida como umacomida masculina, a autora prope que vejamoso vegetarianismo como uma linguagem quecarrega os significados femininos numa culturapatriarcal; elas inscrevem no corpo sua dissensopor meio do vegetarianismo, elegendo ascomidas com as quais se identificam.

    A autora conclui que h uma tradiofeminista-vegetariana literria e histrica irrefutvel

    e pe a questo: o que precisamos paraexaminar e interpretar esta tradio? SegundoAdams, o conhecimento produzido sobre a longarelao entre pensadoras feministas ativistas e ovegetarianismo com frequncia distorcido, poisno reconhece os aspectos culturais doconsumo de carne, tratando o vegetarianismocomo uma opo pessoal ou mesmo invisvel. Olivro prope ento a construo de umaabordagem feminista alternativa para a histricaabstinncia de carne pelas mulheres dedeterminados meios feministas.

    Destarte, na terceira e ltima parte, o livrofinda com um convite para uma nova posturapoltica-analtica diante dos animais. Aponta-seque as opes de dieta levadas a cabo pelasmulheres (tomadas como um bloco homogneo)devem ser consideradas, pois so objeto designificao. Conforme o livro mostra, o que ovegetarianismo representou para as mulheres ea reao destas a ele uma questo ainda emaberto, que exige pesquisas por vir, e que o livroem questo pretende ter iniciado.

    A despeito das relevantes contribuiesacima pontuadas, notamos, no entanto, que aanlise empreendida por Carol Adams funda-

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    menta-se em amplos esquemas explicativoscausais a partir de um sujeito universal e estvel.Mais precisamente, uma obra datada cujo lugarde fala est situado no feminismo radicalestadunidense dos anos 1970, assentada nasteorias derivativas do conceito de patriarcado,as quais, ao universalizar a categoria mulher,incorrem numa anlise sinedquica.

    Alm disto, o livro constri vegetarianismoe feminismo como dois blocos monolticos,ignorando a sua diversidade interna no que dizrespeito aos sujeitos, demandas e mtodos deao poltica. patente a limitao em articularos diversos marcadores sociais da diferena:embora Adams dedique algumas poucas

    pginas para ressaltar as conexes histricas entrefeminismo e vegetarianismo na vida de mulhereslsbicas, e estabelea paralelos entre o racismoe a superposio de referentes ausentes, abranquitude e a sexualidade das mulheressufragistas citadas permanecem intocadas.

    Uma ltima palavra deve ser dita acercados limites da obra. Na traduo brasileira o ttulooriginal, que seria, num sentido mais literal, algocomo Pol tica sexual da carne: uma teor iacrtica feminista-vegetariana, foi transformadoemA poltica sexual da carne: a relao entreo carnivorismo e a dominncia masculina, umsubttulo assaz duvidoso que pe em questo aspolticas editoriais do pas. Ao omitir o termofeminista e introduzir um termo eufemstico parafazer meno dominao masculina, as/oseditores estariam investindo em estratgiasdiscursivas para tornar o livro mais palatvel?

    ris Nery do Carmo

    Universidade Federal da Bahia

    Alinne BonettiUniversidade Federal da Bahia