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Política, memória e futuro em Joaquim Felício dos Santos: a escrita da história do Brasil (1860-1873) Raína de Castro Ferreira. Mestranda pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) Minas Gerais. Através do trabalho de Joaquim Felício dos Santos, analisamos a escrita da História do Brasil, no Brasil, no final do século XIX. De 1860 a 1873, Joaquim dos Santos escreveu em seu próprio jornal, O Jequitinhonha (publicado em Diamantina, MG), para o qual escreveu alguns folhetins, sendo dois deles futurísticos: A História do Brasil escrita pelo Dr. Jeremias no ano de 2862 (1862) e Páginas da História do Brasil escriptas no Anno de 2000 (1868-1873). Para compreendermos melhor essas obras, fizemos uma cronologia do autor tijuquense ressaltando sua participação no cenário político brasileiro. Analisamos a escrita da História futurística de Joaquim dos Santos através do conceito de temporalização de Reinhart Koselleck (2014), que permite considerar os folhetins como utópicos ou prognósticos por meio das noções de escalonamento temporal e temporalização do futuro. Por fim, através da perspectiva de Hans Ulrich Gumbrecht (2014), as noções de stimmung e efeito de presença são utilizadas em um esforço para compreender o efeito destas obras na sociedade e justificar a opção pela escrita de textos futurísticos. A ausência da experiência cria uma atmosfera de expectativa e desejo de presença. Palavras-chave: Escrita da História; Stimmung; Temporalização. Politics, memory and future in Joaquim Felício dos Santos: the writing of the Brazilian history (1860-1873) Raína de Castro Ferreira. Master’s student in Federal University of Ouro Preto (UFOP) - Minas Gerais, Brazil. Through the work of Joaquim Felício dos Santos, we analysed the writing of the Brazilian History, in Brazil, in the end of the 19 th century. From 1860 to 1873, Joaquim dos Santos wrote for his newspaper, O Jequitinhonha (publicized in Diamantina, MG), and published some leaflets, two of which were futuristic: A História do Brasil escrita pelo Dr. Jeremias no anno de 2862 (1862) and Páginas da História do Brasil escriptas no Anno de 2000 (1868-1873). In order to better comprehend these works, we made a chronology of the tijuquense author emphasizing his role in the Brazilian political scene. We analysed his writing when it comes to the futuristic History of Brazil through Reinhart Koselleck’s concept of temporalization (2014), by which we described the leaflets as utopic or prognostic by

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Política, memória e futuro em Joaquim Felício dos Santos: a escrita

da história do Brasil (1860-1873)

Raína de Castro Ferreira. Mestranda pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) – Minas Gerais.

Através do trabalho de Joaquim Felício dos Santos, analisamos a escrita da História do Brasil, no Brasil, no final do século XIX. De 1860 a 1873, Joaquim dos Santos escreveu em seu próprio jornal, O Jequitinhonha (publicado em Diamantina, MG), para o qual escreveu alguns folhetins, sendo dois deles futurísticos: A História do Brasil escrita pelo Dr. Jeremias no ano de 2862 (1862) e Páginas da História do Brasil escriptas no Anno de 2000 (1868-1873). Para compreendermos melhor essas obras, fizemos uma cronologia do autor tijuquense ressaltando sua participação no cenário político brasileiro. Analisamos a escrita da História futurística de Joaquim dos Santos através do conceito de temporalização de Reinhart Koselleck (2014), que permite considerar os folhetins como utópicos ou prognósticos por meio das noções de escalonamento temporal e temporalização do futuro. Por fim, através da perspectiva de Hans Ulrich Gumbrecht (2014), as noções de stimmung e efeito de presença são utilizadas em um esforço para compreender o efeito destas obras na sociedade e justificar a opção pela escrita de textos futurísticos. A ausência da experiência cria uma atmosfera de expectativa e desejo de presença.

Palavras-chave: Escrita da História; Stimmung; Temporalização.

Politics, memory and future in Joaquim Felício dos Santos: the

writing of the Brazilian history (1860-1873)

Raína de Castro Ferreira. Master’s student in Federal University of Ouro Preto (UFOP) - Minas Gerais, Brazil.

Through the work of Joaquim Felício dos Santos, we analysed the writing of the Brazilian History, in Brazil, in the end of the 19th century. From 1860 to 1873, Joaquim dos Santos wrote for his newspaper, O Jequitinhonha (publicized in Diamantina, MG), and published some leaflets, two of which were futuristic: A História do Brasil escrita pelo Dr. Jeremias no anno de 2862 (1862) and Páginas da História do Brasil escriptas no Anno de 2000 (1868-1873). In order to better comprehend these works, we made a chronology of the tijuquense author emphasizing his role in the Brazilian political scene. We analysed his writing when it comes to the futuristic History of Brazil through Reinhart Koselleck’s concept of temporalization (2014), by which we described the leaflets as utopic or prognostic by

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using the notions of time-scaling and future temporalization. Finally, through Hans Ulrich Gumbrecht’s perspective (2014), we used stimmung and effects of presence notions are used as an effort to understand the effect of the mentioned works on society and justify our choice on the writing of futuristic texts. The absence of experience generates an atmosphere of expectation and wish that the narrative is present.

Key-words: Writing of History; Stimmung; Temporalization.

1. Cronologia: formação do escritor tijuquense

Joaquim Felício dos Santos nasceu em 1º de fevereiro de 1828 na Vila do

Príncipe, sede da Comarca do Serro Frio, Província de Minas Gerais. Filho de

Antônio José dos Santos e Maria Jesuína da Luz, sua família possuía propriedades

de terras na região do Serro, nas quais seus familiares exerciam inúmeras

atividades, como a agricultura e exploração de ouro e pedras na região.

Em 1838, quando a Vila Diamantina é elevada ao status de cidade, Joaquim

permanece no Serro aprendendo as primeiras letras. Logo após, ele vai para

Congonhas do Campo a fim de concluir o Ensino Fundamental e, em seguida, para

São Paulo, onde faz seus estudos superiores na faculdade de Ciências Jurídicas do

Largo de São Francisco. Seus contemporâneos foram Aureliano José Lessa,

Bernardo Guimarães, Álvares de Azevedo e José de Alencar.

Em 1850, Joaquim Felício voltou para Diamantina, lugar no qual exerceria a

advocacia e, mais tarde, atuaria como jornalista (EULÁLIO apud SANTOS, 1976, p.

27). Atuando como docente e trabalhando no fórum, as questões políticas cercavam

Joaquim dos Santos. “Liberal convicto, insatisfeito com a situação do partido no

País, resolve levantar a bandeira das ideias na região, já que a cidade, das mais

progressistas da Província, possui amplo raio de influência” (EULÁLIO apud

SANTOS, 1976, p. 27). Devido a todas estas atribuições, em 1860 Joaquim dos

Santos, juntamente com seu cunhado, Josefino Vieira Machado, funda o jornal O

Jequitinhonha “com o maquinário adquirido do deputado Teófilo Otoni, proprietário

do jornal O Eco, do Serro” (REIS, 2007, p. 158). É neste jornal, caracterizado por

Joaquim dos Santos, seu principal autor, como um jornal “político, literário, comercial

e noticioso”, que, em breve, Joaquim Felício começa a publicar folhetins, nos quais é

perceptível o forte caráter doutrinário e direcionador dos debates voltados para a

questão da república, além de suas ideias progressistas e abolicionistas. Joaquim

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Felício “procurava estar atualizado com as letras e filosofias européias- admirava

profundamente Rousseau e Kant, defensores das liberdades individuais” (REIS,

2007, p. 157), deixando transparecer a influência da corrente iluminista em suas

obras.

Joaquim dos Santos participou ativamente da política. Numa primeira

tentativa, candidatou-se à assembleia da Província em 1861, porém não teve êxito.

Dois anos depois, foi eleito deputado-geral pelo 6º distrito de Minas Gerais para a

legislatura 1864-1866, tendo que interromper sua atividade no jornal neste período.

Seu projeto de uma reforma constitucional na qual seria abolida a vitaliciedade do

Senado, além de outros princípios defendidos também pela constituição de Pouso

Alegre, não é considerado pelo plenário, que rejeita o projeto.

Joaquim Felício, então, se desliga da vida política e passa a atuar na revisão

e transcrição de textos antigos. Em 1868, devido à crise política que provoca uma

extrema radicalização durante a guerra externa, os liberais diamantinenses se

reúnem e ressuscitam O Jequitinhonha: “Em 1871 será este o primeiro órgão da

imprensa mineira a se declarar sem subterfúgios republicanos e disposto a

acompanhar o programa do Manifesto do ano anterior (...)” (EULÁLIO apud

SANTOS, 1976, p. 28). Entretanto, em 1873, após o fim da guerra do Paraguai, O

Jequitinhonha foi fechado.

Anos mais tarde, com as falhas tentativas de Teixeira de Freitas e Nabuco de

Araújo de criar uma constituição para o Brasil, Joaquim dos Santos foi convidado

pelo gabinete conservador para redigir um novo projeto do Código Civil Brasileiro.

Então, de 1878 a 1881 o referido autor se afastou de algumas atividades forenses

que exercia e redigiu Apontamentos para o Projecto do Codigo civil Brazileiro, que

contava com 3577 artigos, encaminhado à corte no final do ano. Porém, Joaquim

Felício não conseguiu que seu projeto fosse aprovado devido a suas convicções

contra a monarquia. Iniciou-se, então, uma tarefa de revisão do Código Civil que se

arrastaria por vários anos (REIS, 2007, p. 160). As obras feitas por Joaquim dos

Santos sobre o Código Civil Brasileiro são: Apontamentos para o Projecto do Código

Civil Brasileiro, publicado em 1881; Projecto do Código Civil Brasileiro, publicado em

1882; Projecto do Código Civil e Commentario, publicado entre 1884 e 1887 e, por

fim, Projecto do Codigo Civil da República dos Estados Unidos do Brazil, publicado

em 1891.

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Em 1883, Joaquim dos Santos aceita se candidatar ao senado pelo Partido

Republicano, mas não se classifica entre os mais votados. Ele, então, é lançado

como candidato ao senado pelo Partido Republicano em 1888 e, no ano seguinte,

fica em segundo lugar na lista tríplice. “Não sem declarar que, mesmo escolhido pelo

Poder Moderador, não assumiria a cadeira”. (EULÁLIO apud SANTOS, 1976, p. 30).

Finalmente, em 1890, ele é eleito senador por seu Estado natal.

Ao final de 1893, adoentado, Joaquim Felício se afastou da política e se

retirou para Biribiri, local onde viria a falecer em 21 de outubro de 1895. Seus restos

mortais foram transferidos para a Igreja do Carmo em Diamantina e, em 1968, a

família os levou de volta para Biribiri.

De 1881 até a data de seu falecimento, Joaquim dos Santos tentou a

aprovação de seu projeto do Código Civil Brasileiro, sendo a última recusa em 1896.

2. O Jequitinhonha: um jornal político, literário, comercial e noticioso.

Dentre os anos de 1860 e 1873, as páginas do jornal semanal O

Jequitinhonha foram palco para a escrita de muitos textos, novelas, peças teatrais e

literários. Sua primeira edição foi em 30 de dezembro de 1860. Foram colaboradores

do jornal Teodomiro Alves Pereira, os irmãos Francisco e Sebastião Corrêa Rabello,

Teófilo Ottoni, Carlos Honório Benedito Ottoni e D. João Antônio dos Santos.

(MARTINS, 2003, p. 467). Suas publicações seguiram até o ano de 1864, momento

no qual houve uma pausa. A circulação só retornou em 1868, seguindo até sua

última edição, de número 179, em 6 de abril de 1873.

Em todos os anos de publicação, o jornal, que continha apenas quatro folhas,

considerado pequeno, era apresentado como “político, literário, comercial e

noticioso”, diagramado da seguinte forma: a primeira sessão, denominada “O

Jequitinhonha”, era um texto de caráter político, no qual o redator principal, Joaquim

dos Santos, opinava sobre o cenário político local. Em seguida, encontrava-se um

capítulo do folhetim, totalizando treze histórias diferentes ao longo de todo o jornal.

Logo após, havia a sessão de notícias, correspondências a pedido ou transcrições.

Quando dois folhetins estavam sendo publicados ao mesmo tempo, o segundo era

exposto depois da sessão noticiosa. Por fim, o leitor encontrava notas rápidas da

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política nacional e anúncios. O preço do jornal era 8 mil réis1 por ano, pagos

adiantados, o que era avisado aos leitores em apresentação do jornal, como se vê

no seguinte texto:

Publica-se uma vez por semana na Tipografia do Jequitinhonha. – Ao editor Giraldo Pacheco de Mello, na cidade de Diamantina, é que deverão ser dirigidas quaisquer correspondências, anúncios ou reclamações – O preço das assinaturas é de 8.000 réis por ano pagos adiantados. Imprimem-se gratuitamente todas as publicações e correspondências de interesse público; o preço das mais será o que se tratar (O Jequitinhonha, Diamantina, página 1 de 27 de abril de 1861, edição 13).

Até a edição 44, de 1862, ainda na apresentação do jornal, havia a frase: “A

la loi son empire, aux hommes leur dignité2”, conforme apresentado na imagem

abaixo, da página 1 de 20 de janeiro de 1861, edição 3.

A apresentação do jornal enfatizava o caráter e objetivo de seu fundador e

principal redator, Joaquim Felício dos Santos. A citação em francês explicita a

influência das correntes iluministas em seus textos e obras, assim como a constante

procura e dedicação em estar atualizado com as letras e filosofias européias. A

citação também nos apresenta seu posicionamento político com relação ao Império.

Visto por muitos contemporâneos como um homem erudito, Joaquim Felício

prezava pela manutenção da ordem e das leis, porém, tais leis deveriam ser

1 O preço do jornal O Jequitinhonha era considerado baixo comparado com outros jornais de grande circulação naquele mesmo período, como o Diário de Minas, que custava 12 mil réis ao ano, e o diário do Rio de Janeiro, que custava 24 mil réis ao ano, ambos para a Corte. 2 “A lei tem seu império; os homens, sua dignidade” (tradução livre).

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elaboradas baseadas na dignidade dos homens, pensando na população e no futuro

da nação, e não apenas criadas e seguidas em prol da manutenção do império,

principalmente na cidade de Diamantina, região na qual os mandos imperiais eram

considerados, por Joaquim dos Santos, como despóticos. A todo momento, O

Jequitinhonha foi um meio de veiculação de críticas veladas ao império. A referida

citação em francês é mais uma destas críticas, sob o véu da erudição e do

conhecimento das movimentações políticas e literárias internacionais.

Na edição 40, de 1861, a autoria dos redatores é alterada: além de Joaquim

Felício dos Santos, Francisco Joze Ferreira Torres é apresentado também como

redator do Jequitinhonha. Na edição 100, de 1863, Ferreira Torres encerra sua

contribuição para o jornal e o único redator volta a ser Joaquim Felício dos Santos.

O jornal segue, então, este formato até sua pausa, em 1864.

Francisco Joze Ferreira Torres inicia sua participação no jornal após ter uma

poesia escolhida para ser publicada no Jequitinhonha, na página 2 da edição 32, de

1861. Felício dos Santos o apresenta como um distinto poeta, caracterizado pelo

espírito da independência, do patriotismo e do amor pela liberdade. O poeta tem

uma rápida participação como redator d´O Jequitinhonha após esta primeira

aparição, encerrando suas atividades devido à falta de afinidade com o objetivo

marcadamente político liberal do jornal. É notório que a parte política e noticiosa

ganha mais espaço ao longo dos anos, não havendo motivo para que Francisco

Torres continuasse a publicar suas poesias e ensaios literários.

Em 1868, o jornal retorna com publicações dominicais e com uma mudança

nos preços: as assinaturas agora equivaleriam a um ano, mantida em 8 mil réis; seis

meses, e o valor passaria para 4 mil e 500 réis; e três meses, com valor de 2 mil e

500 réis. Para fora do município, os preços seriam: por assinatura de um ano, 9 mil

réis; por seis meses, 5 mil réis; e três meses, 3.mil réis.

O jornal tornou-se propriedade de Josefino Vieira Machado, barão de Guaicuí

e proprietário de diversas empresas brasileiras. Membro efetivo do partido Liberal,

teve uma significativa participação política, tendo sido eleito membro da comissão

dos trabalhos eleitorais do partido em 1863 e vereador liberal de Diamantina no ano

seguinte, com 1601 votos.

A compra do Jequitinhonha demonstra, primeiramente, um aparelhamento

dos membros do partido liberal em um momento crucial para a política brasileira.

Joaquim dos Santos, que começa a ganhar fama por sua atuação política, é visto

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por Josefino Machado como um continuador dos feitos liberais. Machado, que, com

o capital empresarial, compra o jornal, é incumbido de reforçar o caráter liberal das

publicações, auxiliando Joaquim dos Santos, que não se encontrava em condições

de manter sozinho a tipografia em vista dos inúmeros pedidos para o pagamento

adiantado da assinatura dos jornais.

O jornal segue nesses formatos gráfico e ideológico até a edição 1 de 1869,

na qual o proprietário se torna Herculano Carlos de Magalhães Castro. Os preços se

mantêm e a apresentação do jornal vem com o seguinte texto:

Assigna-se na Tipografia do Jequitinhonha, Rua do Macau, nº3. As assinaturas e todas as publicações particulares são pagas adiantado. As correspondências e as reclamações serão dirigidas ao proprietário. Publica-se todos os domingos. O JEQUITINHONHA professa a doutrina liberal em toda a sua plenitude, propagando-se as reformas constitucionais radicais no sentido da DEMOCRACIA PURA. (O Jequitinhonha, Diamantina, página 1 de 31 de outubro de

1869, edição 1).

Neste período, O Jequitinhonha se torna um jornal mais radical, com críticas

mais veementes ao império, levando todo o movimento mais brando do partido

liberal para uma vertente mais radical e voltando-se para as pretensões

republicanas. Acredito que pela trajetória de moderação e contenção de Joaquim

dos Santos na política, o radicalismo é mais atribuído ao novo dono do Jornal,

Herculano Carlos de Magalhaes Castro, membro do partido liberal, e com uma

carreira política importante na região do Serro. Eleito vereador liberal de Diamantina

em 1864 com 1535 votos, Herculano Castro também foi delegado de polícia de

Diamantina, em 1867 e Presidente da Câmara Municipal e substituto do juiz

municipal da cidade de Diamantina em 1869. Neste ano, sua participação política

estava mais evidente e ele, então, aproveitou para disseminar as tendências mais

radicais do partido liberal, utilizando O Jequitinhonha, que, por ser um jornal barato e

de caráter liberal, era muito lido. Na edição 25 de 1870, Herculano Castro se retira

do cargo de dono do Jornal.

O jornal segue nesse formato até o ano de 1871, quando Joaquim Felício dos

Santos volta a ser o redator principal juntamente com seu irmão, Antônio Felício dos

Santos. O jornal é apresentado como “Órgão Republicano”.

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O Jequitinhonha, Diamantina, página 1 de 19 de setembro de 1871, edição 68.

Em 1872, a tipografia do jornal muda para o número 2 da Rua de Theophillo

Ottoni e passa a se apresentar como uma folha “política e noticiosa”. Com o controle

do jornal de volta às mãos de seu principal redator, Joaquim Felício se mostra

completamente dedicado à causa republicana. O Jequitinhonha, que há muito

demonstrava a radicalidade liberal em seus textos, mantém-se como um jornal

político e noticioso, retirando o caráter literário e comercial. O objetivo era

transformar O Jequitinhonha em um meio de publicação exclusivamente político e

social, no intuito de aumentar seu caráter e influência na formação da opinião

popular, para, então, conseguir que mais cidadãos aderissem aos ideais

republicanos. O jornal torna-se mais militante, embora não tenha perdido seu tom

satírico, com fortes críticas ao império veladas pelos folhetins apresentados.

O jornal aqui detalhado teve muitas publicações literárias, a maioria em

formato de folhetins, e todas de autoria de Joaquim Felício dos Santos, conhecido

pelo seu romance indianista Acayaca, Romance indígena (1862-1863)3, e Memórias

do Districto Diamantino da Comarca do Serro Frio (Província de Minas Geraes)

(1861-1862).

Para além destas obras, publicadas também em livros, e dos projetos

constitucionais, Joaquim Felício escreveu novelas e contos, como Fragmento de um

Manuscripto (1861); Os Invisíveis (1861); Scenas da Vida do Garimpeiro João Costa

(1862); O poção do Moreira (1862); Braz (1862); O Acaba-Mundo (1863); O Capitão

Mendonça (1863) e Um Manuscripto Velho (1863). Dedicou-se a duas obras teatrais:

O Intendente dos Diamantes (comédia em 1 ato) (1861-1862); John Bull ou O Pirata

Inglez (farsa em 1 ato) (1863). Também é de sua autoria o texto futurístico Páginas

da Historia do Brasil escriptas no Anno de 2000 (1868-1873), juntamente com o

3 As datas citadas são das publicações no jornal O Jequitinhonha.

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pequeno texto crítico, publicado em 1862, A História do Brasil escrita pelo Dr.

Jeremias no ano de 2862.

3. O Jequitinhonha e suas principais obras.

Os folhetins mais famosos d´O Jequitinhonha foram: Memórias do Districto

Diamantino da Comarca do Serro Frio, publicado nos anos de 1861 e 1862,

considerado um documento da história colonial de Minas Gerais, e o romance

indígena Acayaca.

“Memórias do Districto...” narra a história da descoberta do Arraial do Tijuco e

de seus principais moradores (personagens), a geografia da cidade, as festividades

e as leis e decretos que vinham do Imperador ou eram criadas pelos Intendentes da

própria região. Utilizando-se basicamente de documentos jurídicos, como decretos,

leis e devassas, além do relato e do acervo particular dos entrevistados, o autor foi

narrando, por exemplo, como a cidade reagiu ao contexto nacional da Inquisição e

aos debates para a construção da nova constituição brasileira. O livro inicia-se no

final do século XVII com a descoberta do ouro em todas as Minas Gerais e, em

específico, nas terras de Serro Frio, perpassa pela atuação dos bandeirantes (nos

últimos anos do século XVII), o estabelecimento do Arraial do Tijuco (1713) e do

Distrito Diamantino (emancipado de Serro em 1831) e segue até as leis de

regulamentação das terras, executadas a partir de 1853. Em 1868 foi publicada a

primeira versão do livro Memórias do Districto Diamantino da Comarca do Serro Frio

(Província de Minas Geraes), uma compilação com 42 capítulos.

O romance indígena Acayaca, que se passava em 1729, foi lançado em

folhetim nos anos de 1861 e 1862. Depois foi editado no formato de livro, em 1866, e

recentemente foi reeditado pela PUC de Minas Gerais sob os cuidados de Valéria

Seabra de Miranda e Oscar Vieira da Silva. O romance novelesco retrata a saga de

índios e homens em Diamantina nos séculos XVIII e XIX. É necessário ressaltar a

importância dada ao gênero romântico, que começava a se tornar popular no Brasil

no período em que a obra foi escrita. O único romance que Joaquim dos Santos

escreveu foi amplamente divulgado e rapidamente compilado e publicado pela

Revista da Biblioteca Brasileira em duas fases: uma no ano de 1863 e a outra, em

1869.

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Por fim, destacamos os dois textos que serão analisados nesta pesquisa.

Primeiramente A História do Brasil escrita pelo Dr Jeremias no ano de 2862,

publicada em 1862, narra a história de um viajante que chega a uma cidade

brasileira do futuro e compra um livro que conta a história do Brasil. Ao abri-lo,

dedica-se a transcrever o capítulo sobre o segundo reinado. O protagonista, Dr.

Jeremias, se torna mediador entre os dois mundos. Ele é um escritor erudito,

poliglota e faz uma história do Brasil

[...] completa, imparcial e minuciosa, compreende o espaço de 1362 anos, 4 mêses, 8 dias e 26 minutos, isto é, começa no descobrimento do Brasil e termina-se no momento em que ele deixara a pena de historiador (SANTOS apud EULÁLIO, 1957, p. 111).

O período do Segundo Reinado é descrito como miserável, em que a

constituição jurada pelo povo não era respeitada e os partidos lutavam apenas pela

liderança e não por suas divergências de ideais. Chamamos atenção para o fim do

texto, no qual Dr. Jeremias afirma ter acontecido uma revolução em 1863, ano

seguinte ao qual Joaquim dos Santos escreve: “Assim ia o Brasil, quando em 1863

um partido político, desgostoso de ter sido arredado do poder de que estava em

posse a 14 anos, excitou uma revolução em todo Império, e então....” (SANTOS

apud EULÁLIO, 1957, p. 113).

Neste texto, Joaquim dos Santos recorre ao futuro para olhar ao passado e

narrar tudo o que a sua perspectiva sobre si e sobre o partido liberal pretendia para

o Brasil, porém esse passado se torna hipotético, embora muito próximo da

realidade do autor.

A última obra é denominada Páginas da História do Brasil escritas no Ano de

2000, publicada entre 1868 e 1873. Através deste texto, Joaquim dos Santos fez

com que todos os personagens que atuaram a favor da monarquia fossem

ridicularizados. Segundo Ana Cláudia Ribeiro, o autor

[...] promoveu uma verdadeira campanha que ironizava, escarnecia e levava “ao último ridículo” todas as figuras do Governo responsável pela queda dos liberais, pela dissolução da Câmara e pela vitória eleitoral comprada (RIBEIRO, 2011, p.2).

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Nestas páginas, Dom Pedro II, que morava em uma Petrópolis habitada por

pessoas que viviam da caça e de uma indústria que extraía salitre, faz uma viagem

no tempo para o futuro, no ano 2000, para a cidade de Guiacuí, capital da

Confederação dos Estados Unidos do Brasil. Lá, aboliram-se os títulos de nobreza,

privilégio e aristocracia há o espírito de igualdade entre os cidadãos, liderado pelas

virtudes e qualidades próprias. O imperador era tratado como uma lembrança ruim e

maldosa, como o “bicho papão” que assusta as crianças. Em Guiacuí, o presidente

da República do Brasil é um indivíduo de “baixa origem”, denominado João Servius

Pugirá, e o Brasil é um país onde qualquer tipo de distinção pela cor (negros,

mestiços, brancos e índios) não existe. Devido a isso, na visão de Dom Pedro II,

“Barbarizaram-se os brasileiros”. (SANTOS apud EULÁLIO, 1957, p. 113)

Algumas críticas mais veementes são claras, como no momento em que Dom

Pedro II é questionado pelo médium Dr. Tsherepanoff se realmente queria ir para o

futuro, a quem o imperador respondeu: “Quero e já” (SANTOS apud EULÁLIO, 1957,

p. 127), fazendo uma referência direta ao Golpe da Maioridade em 1840. Outro

ponto é a referência iluminista, notada quando Joaquim Felício define as bases da

constituição do Brasil nos anos 2000: “Liberdade, igualdade e fraternidade, é a base

da constituição moderna” (ibidem, p. 130). Um terceiro momento é o encontro de

Dom Pedro II com uma família que morava no Palácio Imperial. Ao encontrar uma

mulher, Luísa, com a filha no colo, a criança começa a chorar e a mãe tenta acalmá-

la com as seguintes palavras: “- Cala-te, minha filha, [...], que aí vem o Imperador.”

(ibidem, p. 145). Sem entender a situação, Dom Pedro II questiona Luísa sobre tal

fala e ela o responde: “Quando queremos acalentar uma criança, para amedrontá-la,

costumamos dizer: aí vem o imperador!, como se disséramos aí vem o tutu, ou o

lobisomen” (ibidem, p. 146).

Podemos, portanto, identificar na obra de Joaquim dos Santos as premissas

nacionalistas que movem os escritos e as características de um futuro para o Brasil,

influenciadas pelo modelo do IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro) ao

mesmo tempo em que foram formuladas com o processo de construção dos Estados

nacionais, idealizados, basicamente, aos moldes europeus.

As Páginas de Historia do Brasil escriptas no Anno de 2000 voltaram ao

âmbito de discussões e debates devido a Alexandre Eulálio, que reproduziu alguns

excertos na Revista do Livro em junho de 1957. Porém, anterior a este período,

Rodrigo Gurgel (2010) afirma que “Carlos de Laet, polêmico monarquista católico, já

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considerava as Páginas insultuosas, e seu autor, ‘um invasor de reputações’.

Contudo, ao ler os trechos transcritos por Eulálio, descobrimos o quanto de sense of

humour faltava a Pedro II” ( p. 1).

4. Temporalização do futuro: utopia e prognóstico

Para tratar da questão temporal, recorremos às teorias de Reinhart Koselleck,

que analisa as relações de reciprocidade do tempo presente com a dimensão

temporal do passado e do futuro: “No processo de determinação da distinção entre

passado e futuro, ou usando-se a terminologia antropológica, entre experiência e

expectativa, constitui-se algo como um ‘tempo histórico’” (KOSELLECK, 2006, p. 16).

Percebe-se que o Novo Regime de Historicidade, ao adquirir uma qualidade

temporal própria, possibilitou que tempos e períodos de experiências diversificados

tomassem o lugar do passado, entendido como exemplo. Nosso objetivo é a

identificação clara do uso da política como fonte de reflexão para um futuro através

da experiência e das reflexões sobre a unidade social.

Desta forma, a perspectiva de um novo futuro só pode ser compreendida

através de um novo passado. O campo de experiência torna-se, então, a perspectiva

experimentada de um futuro através das ideologias dominantes, no momento em

que o autor escreve. A perspectiva engole por completo a experiência. Expectativa e

experiência definem a unicidade do conceito de história.

Koselleck (2014) ressalta que a narrativa e a forma como é construída nos

permitem levar a fundo a história criada uma vez que “O que caracteriza todas as

nossas histórias, o que as transforma em histórias, é o fato de as narrarmos sempre

de novo” (p. 116). A hermenêutica tem um papel central para a análise da história e

sua escrita, pois nos ajuda a entender como a importância da narrativa e do

reconhecimento humano recíproco permite o efeito da compreensão e interpretação

de determinada história. No caso de análises de obras futurísticas, a hermenêutica é

fundamental para separar e possibilitar, ao mesmo tempo, a tênue divisão daquilo

que é historicamente impossível e daquilo que ocorreu ou poderá ocorrer de fato.

Através dela, podemos discernir o que é fundamental para a análise dos textos de

Joaquim dos Santos: uma utopia ou uma projeção possível.

Diferenciar estas duas técnicas de escrita está além de fazer uma análise

puramente narrativa ou filológica. Assim como propõe Koselleck (2014), é

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necessário fazer uma temporalização desta utopia, incorporá-la à filosofia da

história, analisando a sátira contida nela através do humor, da ironia e da seriedade.

Seguindo a tendência de escrita de utopias que vem tomando força desde o

século XVIII no mundo, Joaquim dos Santos faz seu primeiro texto, em 1862,

apresentando um contra mundo no futuro, deduzido pelo presente em que escreve,

voltado para o passado, através da narrativa de um passado (presente) que

possibilitou o futuro imaginado. Encontrar a dimensão temporal do futuro da utopia

ou da projeção é fator primordial para diferenciar a importância e a finalidade destas

duas narrativas.

Joaquim dos Santos, porém, não escreve uma utopia; ele convoca a

sociedade leitora de seus folhetins para se responsabilizar por aquele futuro

narrado, mostrando que somente uma ação coletiva da população e dos liberais, ao

mudarem o sistema vigente, permitiria que o futuro fosse ilimitado, narrado com uma

possibilidade infinita de realidades reproduzidas, fluindo livremente. Não seria um

futuro utópico, que só seria possível porque suas extrapolações não cabem no

presente, mas um futuro possivelmente real, se todos lutarem no presente por ele.

Diferente da utopia, que ganha credibilidade de acordo com a distância

proposta pela narrativa, a projeção futurística só ganhará credibilidade e realidade

se o presente for alterado o mais rápido possível. O horizonte de expectativa

proposto deve funcionar como força motriz para uma ação no presente, já que o

passado não cabe mais no presente, a História não é mais mestra da vida, ela não

guia o futuro almejado, porém ainda é fundamental para projetar uma História

diferenciada, extrapolando as ações constantes, rompendo com o passado, para

seguir o que seria visto como um “caminho” para alcançar o futuro proposto. Na

utopia futurística, o futuro não pode ser observado nem verificado, não pode ser

alcançado pela experiência. Por isso, é considerada, dentro do repertório da criação

ficcional, um feito genuíno e puro da consciência do autor (KOSELLECK, 2014, p.

124).

Diante dessa análise, não é possível chamar de utopia a revolta idealizada

por Joaquim dos Santos em 1863, visto que a utopia não cabe no presente e

necessita do distanciamento temporal para fazer sentido e ser acreditada. Joaquim

dos Santos criou um trampolim fictício, um fato histórico fictício, que ocorreria

naturalmente devido às insatisfações dos partidos políticos existentes, mas que seria

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fundamental para projetar um futuro mil anos à frente, tempo que o Brasil levaria

para alcançar todas as nações em nível de progresso e desenvolvimento.

Podemos identificar na obra de Santos duas fases, quando se trata da forma

com que o futuro é narrado e construído: na primeira, o evento fictício é extrapolado

a partir da revolução liberal, que ocorreria em 1863. Na segunda, há um futuro

cuidadosamente projetado, possível, materializado e real. O espaço de experiência

não nos leva a inferir sobre a revolução de 1863, mas é utilizado para remodelar e

criar o futuro dos anos 2.000. Poderia esta, então, ser considerada uma utopia

espacial e não temporal?

O status ficcional de uma utopia temporal se distingue do status de uma utopia espacial. Os sinais da realidade de sua ficção não estão mais no espaço presente, mas só na consciência do autor. Só ele, nenhuma outra pessoa além dele, é o artífice da utopia, que se transforma em ucronia. A realidade do futuro só existe como produtor do escritor: o fundamento verificável do presente é abandonado (KOSELELCK, 2014, p. 125).

Tanto o futuro narrado quanto o evento que o possibilita estão ligados ao

presente, são projeções que partem da realidade vivida por aquele cidadão-escritor,

por aquele ser político que narra os eventos, e do futuro remodelado. Para que a

utopia espacial exista é, de fato, necessário um evento para alterar a realidade e

possibilitar uma projeção, porém a criação e a motivação do evento são colocadas

em questão.

Sendo assim, toda a utopia futurística tem um contato com o presente, seja

ele resgatado de forma fictícia ou empiricamente. O espaço narrado e vivido é

temporalizado, criando uma sucessão geracional. O autor não apresenta como o

Brasil deve ser, mas sim como ele será, sem as bases empíricas para que aquela

mudança fosse seguida. O desejo não é uma possibilidade; é um futuro afirmativo,

concreto, que mostra, em um segundo momento, o progresso dessa projeção e não

apenas a contraposição do presente. No que tange à nossa análise, Joaquim dos

Santos apresenta como foi o Brasil no Segundo Reinado com uma noção de

contramundo no primeiro texto publicado em 1862, narrando a partir de 2862. Já no

segundo texto, publicado entre 1868 e 1873, apresenta um desenvolvimento do

futuro projetado. Cabe ressaltar a importância de se temporalizar essa narrativa

tanto para o melhoramento quanto para o prejuízo, que pode advir desse progresso.

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Como apresentado no texto Páginas da História do Brasil escriptas no Anno

de 2000, alguns cidadãos dos Estados Unidos do Brasil, vivem em condições menos

favoráveis economicamente, na antiga capital do Brasil, junto aos destroços do

palácio onde viveu a família real portuguesa. Esse futuro, não foi criado para ser

perfeito; ele é posicionado aos moldes da realidade de 1862, revelando a

consciência do autor, que, apesar de ter como objetivo conquistar a maior parte dos

leitores, tem a consciência de que a perfeitabilidade não agradaria e não

proporcionaria ao texto alcançar os objetivos propostos de um futuro maximamente

possível.

Assim, o futuro é evocado no presente por meio de argumentos históricos: se

a filosofia da consciência do autor foi usada para criar o evento que alteraria o

futuro, foi a filosofia da história que deu continuidade e progresso a um futuro que

tem referências empíricas no presente. A história, então, seria reconhecida através

dos postulados morais e das continuidades, e não rupturas, do processo. O que a

torna real é o progresso embasado em continuidades com relação ao

presente/passado, visto que um texto apenas de rupturas seria caracterizado

facilmente como temporalmente fictício ou utópico. O profeta histórico, voltado para

o futuro, se distingue do historiador tradicional, voltado para o passado. Ao

reinterpretar os elementos escatológicos de forma progressista, há o chamado

antiapocalipse, criando eventos ou situações que impediriam a destruição,

permitindo a recriação de um futuro completamente diferente. No caso de Joaquim

dos Santos, são utilizadas ruínas desse possível apocalipse para reconstruir o

futuro.

A consciência por trás da dimensão temporal só seria percebida no presente

se fosse forçada por um futuro, ou progressivamente, ironizando o ato da escrita da

história, já que tal consciência só é tomada no presente se for estimulada pelo

passado ou por possibilidades futurísticas diferenciadas, que, mesmo assim, são

apenas extrapolações possíveis da experiência obtida. Por isso, algumas utopias

tendem ao equívoco, pois não conseguem recriar futuros que extrapolem

maximamente a experiência do autor porque não há como escrever algo além do

seu campo de imaginação propiciado pelo presente. Com isso, vemos que Joaquim

dos Santos exclui a possibilidade de equívoco dos seus textos ao apoiá-los no

presente. Ele escreve um futuro não tão perfeito, mas completamente melhorado e

alterado pela mudança na forma do regime político, a saída da monarquia e a

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entrada da república, como, se após isso, um efeito cascata continuasse,

naturalmente, as mudanças propostas.

5. Stimmung e o efeito de presença na escrita da história

Para formulação deste tópico, recorremos aos trabalhos de Hans Ulrich

Gumbrecht (2014), que, principalmente através da ideia de stimmung, nos permitem

analisar o equilíbrio da teoria com a estética, ampliando nosso horizonte para uma

nova historiografia, aberta à alteridade e sensibilidade, juntamente com o debate

sobre o cronótopo historicista e pós-historicista e a função do escritor/historiador ao

publicar e escrever sua obra.

No livro Modernização dos Sentidos (1998), Gumbrecht faz uma releitura da

modernidade, questionando o que é feito com o nosso crescente conhecimento

sobre o passado. Sobre a construção do cronótopo tempo histórico, Valdei Araujo

(2006) nos esclarece que este território seria fundamentalmente distinto e distante

do presente, que anulou a efetividade da clássica história magistra vitae. Porém, um

campo de experiência foi criado devido à visão de unidade processual dos eventos,

a partir da qual foram constituídas as filosofias da história e suas tentativas de

revelar o sentido do movimento histórico. O moderno é usado para caracterizar o

tempo presente como algo novo, sem precedentes, em um momento de transição

para um futuro que começa. Isto consolida a compreensão do moderno como um

conceito que caracteriza uma nova época, sem firmar seu caráter transitório

(ARAUJO, 2006, p. 316).

Com a geração que emerge nas revoluções pós-1830, a noção de aceleração

do tempo histórico e da transitoriedade do presente reforçam a linguagem. O

progresso tecnológico não garantia nenhum tipo de utopia social ou política, o que

possibilitou encontrar a caracterização da modernidade como velocidade,

interpretando o presente e antecipando o futuro continuamente.

Para Gumbrecht (1998), devido aos avanços do conhecimento histórico nos

últimos vinte anos, foi possível produzir uma sensação de viver o passado com o

intuito de ir do nascimento em direção à morte. A condição humana já não nos

permite pensar em um tempo que produz transformações sob as quais não podemos

reagir, o que leva a um esgotamento da modernidade. A relação entre historiografia

moderna, consciência histórica e modernidade nos leva a repensar a história da

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historiografia. De um lado, a historiografia da quietude, que se regala com o que a

ultrapassa, e, de outro, uma historiografia da ação, que é central ao desvelamento

do significado do discurso e das técnicas que garantem sua interpretação correta

(ARAUJO, 2006, p. 322-323).

Para análise de uma obra literária, Gumbrecht (2014) sugere o uso da

ontologia da literatura, onde são analisados, por exemplo, modos fundamentais da

relação entre os textos literários e as realidades existentes fora deles

(GUMBRECHT, 2014, p. 10). Ele acredita que este campo combina diversas forças

intelectuais, não se encaixando apenas dentro do debate entre alegorias de leitura e

os estudos culturais.

O Stimmung, tomado aqui como capacidades de clima, demonstra como

somos atingidos por sons ou por climas atmosféricos, uma experiência que afeta

concretamente nosso ambiente físico e nosso estado de espírito. Por isso,

Gumbrecht (2014) defende que o stimmung abre uma nova perspectiva sobre a

existência da ontologia da literatura (p. 14), já que os elementos contidos nos textos

produzem atmosferas, de forma que a riqueza de stimmung em uma obra não tem

que ter sua natureza exclusivamente descritiva. A dimensão física deste fenômeno é

responsável pelo efeito de presença enquanto objeto de pesquisas ligadas à esfera

da experiência estética, que, para o autor supracitado, consiste numa muito

carregada simultaneidade de efeitos de sentido e feitos de presença (ibidem, p. 16).

Logo, stimmung se torna uma existência complexa e unificada, fase impossível de

se atingir na modernidade, sugerindo que o futuro da humanidade estava por ceder

às forças do irracionalismo. “(...) concentrar-se nas atmosferas e nos ambientes

permite aos estudos literários reclamar a vitalidade e a proximidade estética que, em

grande parte, desapareceram” (ibidem, p. 23). A saída é encontrar as formas íntimas

de alteridade através das atmosferas e do ambiente.

Outro ponto apresentado por Gumbrecht (2014) com relação ao stimmung é o

efeito de imediatez, que acontece quando o passado através de sons e dos ritmos

das palavras são atirados contra nossos corpos, havendo um encontro, uma

objetividade do passado ao se fazer presente. As realidades do passado

encontradas durante a leitura envolvem um presente do passado em substância. A

grande diferença que diferencia a leitura voltada para o stimmung dos outros

modelos é a ausência da distinção entre experiência estética e experiência histórica

(ibidem, p. 26). Gumbrecht (2014) acredita que a leitura do stimmung, acrescentada

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pela experiência da empatia, deve ser acompanhada de uma sobriedade e de

moderação verbal, já que realizar uma leitura por esta chave não significa decifrar

atmosferas e ambientes. O objetivo do autor, aqui, é revelar o potencial dinâmico e

promover o seu tornar-se presente. “A ânsia pelo ambiente e pela atmosfera é uma

ânsia pela presença - talvez uma variante dessa ânsia que pressuponha o prazer de

lidar com o passado cultural.” (GUMBRECHT, 2014, p. 32).

Esse autor define presença como aquilo que não é linguagem, ressaltando

também o existencialismo linguístico, que é a incapacidade da linguagem de se

referir às coisas do mundo, já que nossa relação com as coisas nunca é somente

baseada numa relação de atribuição de sentido, sendo este o motivo de Gumbrecht

para se afastar da metafísica. Fica claro que a linguagem em culturas de sentido

cobre todas as funções que a descendência da filosofia moderna europeia aborda,

porém não é tão óbvio quais os papeis que a linguagem pode desempenhar em

culturas de presença.

A forma mais elementar de tornar o passado presente através da linguagem

são linguagens que apontam para objetos e lugares que conferem uma presença

material ao passado dentro do presente temporal, através do contato, por exemplo,

com documentações antigas. O relato ou a descrição da história propõem que os

elementos do passado foram interpretados e transformados em conceitos no

presente. A relação entre linguagem e presença não obedece ao modelo estrutural

dos dois níveis metafísicos que diferenciam superfície material e profundidade

semântica, entre o primeiro plano negligenciável e o segundo plano significante

(GUMBRECH, 2009, p. 19-20).

A crença em se aprender com a História tornou-se elemento central na

construção do tempo, construção que hoje chamamos de consciência histórica, e

que tendemos a interpretar como condição imutável da vida. A filosofia da história

surgiu, então, com o intuito de ser uma saída para a primeira crise moderna do

aprendizado da História. O novo historicismo, surgido com a intenção de transformar

as perdas da história, é um gesto estilístico que reúne um conjunto vago e

impressionante de diferentes correntes da mesma atmosfera intelectual.

O novo presente, como moldura para a experiência da simultaneidade, pode

ser associado a uma crise na categoria de sujeito. A compreensão, em seu nível

mais pretencioso, e a interpretação afirmavam que o seu poder de revelação era

superior à percepção do sujeito. Assim nasceu a vontade, dentro da cultura histórica,

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de satisfazer -o desejo de presença e a consciência de que esta é uma tarefa

impossível. Optar abertamente por este desejo de representação não pode também

deixar de ser irônico, já que representa o passado como uma realidade, embora

reconheça que todas estas representações são simulacros (GUMBRECHT, 1999, p.

473).

Baseados na “ontologia da literatura” proposta por Gumbrecht, fica-nos claro,

nas obras aqui analisadas, como Joaquim dos Santos as utilizava para informar à

população leitora de seu jornal e instigá-la a discutir, debater e, principalmente, se

filiar ao movimento liberal. O uso da sátira é de extrema relevância para se provar

como os textos se relacionavam com realidades existentes fora deles,

principalmente num cenário de disputas políticas como o da segunda metade do

século XIX.

Tomando os textos pela chave do stimmung, percebemos que o uso do futuro

como aparato para transformar o presente leva o leitor a uma nova dimensão,

permeada pela sátira, que permite-lhe sentir este novo mundo sem a culpa de ser

real, sem a culpa de estar tomando um posicionamento a respeito das disputas

políticas locais e nacionais. O efeito de presença que atribuímos à obra de João dos

Santos vem do futuro alternativo, ainda não vivido, diferenciado da realidade

insatisfatória. A minúcia da narrativa, a descrição de objetos, das tecnologias, do

clima, do vestuário, permite ao leitor uma percepção simultânea de efeitos, como se

o autor daquelas páginas fosse esquecido, e aquele cenário estivesse esperando

pelo leitor em algum lugar concreto do futuro. Esse futuro se faz presente com

imediatez. As propostas de Joaquim dos Santos para um novo Brasil se fazem

presentes no futuro narrado, que pode ser vislumbrado pelo leitor que concordar

com, desejar e mostrar fascínio por tais ideais.

Através da suposta revolta liberal, que ocorreria no ano de 1863, Joaquim

Felício dos Santos leva os leitores a acreditarem em um desenvolvimento histórico

natural, baseado no progresso e nos ideais republicanos. Fica nítida a

responsabilidade partidária do autor ao escrever uma história do Brasil baseada em

uma revolta liberal - que, em seus textos, levou ao desenvolvimento, ao progresso, à

igualdade, à justiça, à moralidade e às inovações.

De forma contraditória, o desejo de presença é, por si só, impossível de ser

alcançado em sua totalidade. Assim como este desejo não pode reconstituir todo o

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passado, o futuro, em sua total complexidade, não pode ser reconstituído da forma

apresentada.

Assim como existe a tentativa de tornar presente determinado futuro, cada

indivíduo interpreta e representa de formas variadas aquele mesmo futuro, porém

tomando-o como seu, próximo à sua realidade, produzindo diversos conhecimentos

através de um mesmo fato. A diferença é que no discurso futurístico a fidelidade aos

fatos depende de determinadas transformações no sistema atual para se tornarem

“reais”. Depender de uma transformação que ainda não aconteceu é facilmente

encoberto pela idealização do futuro narrado, tomado aqui como utópico. Pode-se,

assim, identificar nos textos Páginas da história do Brasil escritas no ano de 2000 e

A História do Brasil escrita pelo Dr. Jeremias no ano de 2862 como são destruídas

todas as formas de rememoração da monarquia, seja pela memória ou

representação desse passado.

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