PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO · 2020. 2. 7. · Premio Vladimir Herzog de...

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA ALDO PATRICIO FLORES QUIROGA RODAS DE CONVERSA VLADIMIR HERZOG: UM ESTUDO DAS ESTRATÉGIAS PARA A COBERTURA JORNALÍSTICA DE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL SÃO PAULO 2019

Transcript of PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO · 2020. 2. 7. · Premio Vladimir Herzog de...

  • PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

    ALDO PATRICIO FLORES QUIROGA

    RODAS DE CONVERSA VLADIMIR HERZOG:

    UM ESTUDO DAS ESTRATÉGIAS PARA A COBERTURA

    JORNALÍSTICA DE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL

    SÃO PAULO

    2019

  • ALDO PATRICIO FLORES QUIROGA

    RODAS DE CONVERSA VLADIMIR HERZOG:

    UM ESTUDO DAS ESTRATÉGIAS PARA A COBERTURA

    JORNALÍSTICA DE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL

    Dissertação apresentada ao Programa de

    Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da

    Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como

    requisito para obtenção do título de mestre. Área de

    concentração: signo e significação nos processos

    comunicacionais. Linha de pesquisa: Regimes de

    sentido nos processos comunicacionais. Sob a

    orientação da Prof. Dra. Ana Claudia Mei Alves de

    Oliveira.

    SÃO PAULO

    2019

  • ALDO PATRICIO FLORES QUIROGA

    RODAS DE CONVERSA VLADIMIR HERZOG:

    UM ESTUDO DAS ESTRATÉGIAS PARA A COBERTURA

    JORNALÍSTICA DE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL

    Dissertação aprovada como requisito para

    obtenção do título de Mestre no Programa de Pós-

    Graduação em Comunicação e Semiótica da

    Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

    Aprovado em / / .

    Banca Examinadora:

    Dra. Ana Claudia Mei Alves de Oliveira, PUC-SP

    Dra. Ana Luiza Zaniboni Gomes, USP

    Dr. Júlio Wainer, PUC-SP

  • “Assim, a figuratividade não é uma simples ornamentação das coisas, ela é esta tela do

    parecer cuja virtude consiste em entreabrir, em deixar entrever, graças ou por causa de sua

    imperfeição, como que uma possibilidade de além (do) sentido. Os humores do sujeito

    reencontram, então, a imanência do sensível.”

    (A.J. Greimas, Da Imperfeição, p.82)

    “’É na linguagem e pela linguagem, que o homem se constitui como sujeito, porque só

    a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de ego”.

    (E. Benveniste, Da subjetividade na linguagem, p. 286)

    “Quando perdemos a capacidade de nos indignar com as atrocidades praticadas contra

    outros, perdemos também o direito de nos considerar seres humanos civilizados.”

    (Vladimir Herzog)

    “La historia es nuestra y la hacen los pueblos (...). Sigan ustedes sabiendo que mucho

    más temprano que tarde, de nuevo, abrirán las grandes alamedas por donde pase el hombre

    libre a construir una sociedad mejor.”

    (Salvador Allende)

  • RESUMO

    A partir do corpus selecionado entre relatos feitos por jornalistas vencedores do

    Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos na Roda de Conversa

    Vladimir Herzog e da análise de uma série de reportagens premiadas, e tendo

    como base a teoria desenvolvida por A. J. Greimas para a Semiótica Discursiva,

    o trabalho tem por objetivo entender os mecanismos de ajustamento entre

    Destinadores complexos, empresa de notícias e jornalista, para a realização de

    reportagens sobre Direitos Humanos no Brasil e as estratégias adotadas pelos

    jornalistas para provocar esse ajustamento e, assim, garantir a publicação da

    cobertura qualificada e equilibrada dessa temática fundamental para o

    aprimoramento do Estado Democrático de Direito. Para entender como esses

    valores se enfrentam numa redação e como eles influenciam a geração de

    efeitos de sentido na publicação de reportagens aparentemente polêmicas é que

    se dá esta pesquisa, que também quer contribuir com o ensino de práticas e

    técnicas de jornalismo aplicadas à cobertura de direitos humanos.

    Palavras-chave

    Comunicação e Semiótica 1., Jornalismo (Reportagem) 2., Direitos Humanos 3.,

    Prêmio Vladimir Herzog 4., Rodas de Conversa Vladimir Herzog 5., Práticas e

    Ensino de Jornalismo 6.

  • ABSTRACT From the corpus selected in reports by journalists winning the Vladimir Herzog

    Award for Amnesty and Human Rights at the Vladimir Herzog Conversation

    Wheel and from the analysis of a series of award-winning reports, and based on

    the theory developed by A.J. Greimas for Discursive Semiotics , the paper aims

    to understand the adjustment mechanisms between complex senders, news

    company and journalist, for reporting on Human Rights in Brazil and the

    strategies adopted by journalists to bring about this adjustment and thus ensure

    the publication of coverage. of this fundamental theme for the improvement of the

    Democratic Rule of Law. To understand how these values confront each other in

    a newsroom and how they influence the generation of meaning effects in the

    publication of apparently controversial reports, this research takes place, which

    also wants to contribute to the teaching of journalism practices and techniques

    applied to the coverage of rights. humans.

    Key words

    Communication and Semiotics 1., Journalism (Reporting) 2., Human Rights 3.,

    Vladimir Herzog Award 4., Conversation Wheels Vladimir Herzog 5., Journalism

    Practice and Teaching 6.

  • RESUMEN A partir del corpus seleccionado en los informes de los periodistas ganadores del

    Premio Vladimir Herzog de Amnistía y Derechos Humanos en la Rueda de

    Conversación Vladimir Herzog y del análisis de una serie de informes

    galardonados, y teniendo como base la teoría desarrollada por A.J. Greimas para

    la Semiótica Discursiva, esta investigación tiene como objetivo comprender los

    mecanismos de ajuste entre Remitentes complejos, empresa de noticias y

    periodista, para publicar reportajes sobre los derechos humanos en Brasil y las

    estrategias adoptadas por los periodistas para lograr este ajuste y así garantizar

    la publicación de temas fundamentales para la mejora del Estado democrático

    de derecho. Para comprender cómo se enfrentan estos valores en una sala de

    redacción y cómo influyen en la generación de efectos de significado en la

    publicación de informes aparentemente controvertidos, se lleva a cabo esta

    investigación, que también quiere contribuir a la enseñanza de las prácticas y

    técnicas de periodismo aplicadas a la cobertura. de derechos. humanos

    Palabras clave Comunicación y semiótica 1., Periodismo (Reportaje) 2., Derechos humanos 3., Premio Vladimir Herzog 4., Ruedas de conversación Vladimir Herzog 5., Práctica y enseñanza del periodismo 6.

  • DEDICATÓRIA Aos repórteres do futuro, que ajudarão a abrir as grandes alamedas...

  • O presente trabalho foi realizado com o apoio da Fundação São Paulo.

  • AGRADECIMENTOS

    Insisto sempre com meus alunos que o jornalista tem apenas duas coisas

    na vida: o nome que carrega e as palavras que escolhe. Uso estes determinantes

    para agradecer aqui aos que me deram um nome no cartório e no ofício, uma

    identidade pessoal e profissional, um querer ser alguém na vida e depois dela.

    E aos que me deram as palavras, das balbuciadas às almejadas, das

    sussurradas às gritadas, das perenes às etéreas. Não apenas pela contribuição

    para este singelo trabalho, mas fundamentalmente pelo que transcende o papel.

    Agradeço a meus pais e à família distante, pelo chamado à existência

    nunca contente com a mera sobrevivência. E, sempre, resistência.

    Agradeço a minha esposa por ser meu encanto, o sul da minha bússola,

    a mãe dos meus filhos, a companheira mais-que-sonhada, meu refúgio e

    suporte, o vento que leva minhas velas para outros mares, por ser comigo contra

    o mundo.

    Agradeço a meus filhos, pela paciência, pelos olhos brilhantes, pelas

    perguntas desconcertantes, pelos abraços-combustível, pelos passos miúdos e

    firmes em direção a uma sociedade melhor.

    Agradeço a meus professores, que dividiram seu querer-conhecimento,

    seu olhar-de-mundo ao longo dos anos e semearam a inquietação e a

    esperança.

    Agradeço à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, este lugar de

    contradições e afirmações, de princípios e finais, de história e de memória, onde

    aprendi e aprendo a enxergar o mundo. Ser professor aqui é tentar devolver o

    que recebi. Este trabalho é mais uma tentativa de devolução.

    Agradeço profundamente à Professora Ana Claudia Mei Alves de Oliveira,

    por não desistir deste trabalho, com abnegação docente inabalável. Nela,

    agradeço aos demais professores, professoras, funcionários e funcionárias do

    programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP.

    Agradeço aos amigos da Obre Projetos Especiais, pelos sonhos vividos e

    os futuros tramados em corações antigos.

    E agradeço Àquele que é Mistério, de onde vem a Solidariedade e a

    Esperança.

  • SUMÁRIO

    Introdução 13

    1. Imprensa e Direitos Humanos 17

    1.1. A Importância Dos Direitos Humanos Para A Democracia 17

    1.2. Direitos Humanos na Imprensa 18

    1.3. Vladimir Herzog: o Jornalista e a Ditadura 21

    2. O Prêmio Vladimir Herzog De Anistia E Direitos Humanos

    (PVHADH)

    28

    2.1. Objetivos Do Prêmio 28

    2.2. As Conquistas 29

    3. Série “Terra Bruta” 33

    3.1. As Reportagens 33

    3.2. A Visualidade em Terra Bruta 39

    3.3. O Percurso Gerativo De Sentido Em “Terra Bruta” 44

    3.3.1. Plano Da Expressão 45

    3.3.2. Plano Do Conteúdo 47

    3.3.3. As Outras Reportagens 52

    3.3.3.1. Domingo 54

    3.3.3.2. Segunda-Feira 57

    3.3.3.3. Terça-Feira 58

    3.3.3.4. Quarta-Feira 59

    3.3.3.5. Quinta-Feira 60

    3.3.3.6. Sexta-Feira 61

  • 3.3.3.7. Sábado 61

    3.3.3.8. Outro Domingo 62

    4. As Rodas De Conversa Vladimir Herzog (RCVH) 64

    4.1. Criação 64

    4.2. Objetivos 65

    4.3. Revelações 67

    4.4. Depoimentos 73

    4.5. O Relato Bruto 79

    4.5.1. A Peça Audiovisual 79

    4.5.2. A Oralidade Do Relato 82

    5. Destinador polêmico? Quem são os maiores ganhadores do

    PVADH ao longo de sua história.

    89

    6. OESP: Um Destinador Cambiante? 93

    7. Como As Empresas De Comunicação Usufruem Do

    Reconhecimento No PVHADH

    96

    8. Algumas contribuições da Roda de Conversa Vladimir

    Herzog para o ensino de jornalismo e para a produção de

    reportagens sobre direitos humanos

    98

    Conclusão 102

    Referências 109

    Anexos 115

    A. Série de reportagens “Terra Bruta” 115

    B. O relato do repórter André Borges 126

    C. Cobertura do PVHADH 132

    D. Casaldáliga no tempo de OESP 134

  • 13

    INTRODUÇÃO

    As Rodas de Conversa Vladimir Herzog (RCVH) fazem parte do Prêmio

    Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos (PVHADH), criado

    em outubro de 1979. Desde 2012, os jornalistas vencedores do prêmio

    participam de uma roda de conversa sobre os bastidores das reportagens e

    contam como foi elaborar a pauta, dificuldades enfrentadas, particularidades

    da produção e outros detalhes. Participo desde o início da atividade como um

    dos coordenadores dessa roda e pude constatar a riqueza dos relatos e a

    importância das informações reveladas para a compreensão do que é produzir

    reportagens sobre direitos humanos hoje no Brasil.

    O PVHADH é o principal e mais antigo prêmio voltado para a temática

    dos direitos humanos e o jornalismo no Brasil. Jornalistas de todo o país e de

    todo tipo de publicação participam de seu processo de seleção, com a sessão

    do júri transmitida pela internet ao vivo. O acervo de reportagens premiadas

    ao longo de suas 38 edições é uma vitrina altamente qualificada do que o

    jornalismo brasileiro produziu sobre a violação e a garantia dos direitos

    humanos nas últimas quatro décadas.

    Com sete edições e em preparação para a oitava, as RCVH,

    transmitidas em vídeo ao vivo pela internet e depois, disponíveis no site do

    prêmio, permitem conhecer o processo de elaboração das reportagens

    premiadas.

    O que chama a atenção nos relatos, e esse é o foco principal deste

    trabalho repousa sobre as estratégias que os jornalistas precisam usar para

    driblar as dificuldades impostas aos temas de direitos humanos que não

    interessam aos grandes veículos ou que de alguma forma contrariam os

    interesses dos grupos econômicos que os sustentam. Identificar e entender

    esses mecanismos carrega o sentido de ampliar e diversificar a cobertura

    desses temas e contribuir para o ensino das técnicas em cursos de jornalismo

    no país.

    O problema central a analisar nesta dissertação está relacionado à

    possível polêmica entre Destinador-Empresa e Destinador-Repórter. Da

  • 14

    análise dessa relação também sairão pistas sobre quais são e como funcionam

    os mecanismos utilizados e revelados pelos jornalistas participantes das

    Rodas de Conversa Vladimir Herzog para realizar as reportagens sobre

    direitos humanos que nem sempre são prioritárias para a imprensa

    hegemônica no Brasil. E, apesar de não priorizar essa cobertura, como essas

    empresas de comunicação – o Destinador-Empresa – se beneficiam da vitória

    conquistada no Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos.

    A compreensão desses mecanismos pode contribuir para o ensino de

    jornalismo e para a ampliação da cobertura de direitos humanos no país, um a

    vez que os relatos da RCVH apresentam as estratégias que os jornalistas

    utilizaram para realizar as reportagens premiadas no PVHADH, dando a

    professores, estudantes e pesquisadores do tema, além dos próprios

    profissionais, um panorama válido das práticas concretas que levam a um

    resultado eficiente na produção jornalística em geral.

    O recorte desse extenso corpus teve como critério a oposição entre a

    temática da série de reportagens – assassinatos no campo contra pequenos

    agricultores e lideranças de movimentos sociais – com os valores empresariais

    – latifúndio e agronegócio – defendidos tradicionalmente pelo veículo de

    comunicação, como será descrito e comprovado durante a dissertação. Esta

    oposição, inclusive, é visibilizada no relato de um dos autores das reportagens,

    como ser verá. Este relato dado pelo repórter André Borges, um dos quatro

    profissionais que assinam a reportagem Terra Bruta, à RCVH, será estudado

    a partir do registro em vídeo realizado pela TV PUC, com seus planos da

    expressão e do conteúdo e os arranjos de seus formantes a fim de construir

    os efeitos de sentido. Do depoimento também extraímos os mecanismos e

    estratégias apontados pelo repórter e outros vencedores do PVHADH nas

    RCVH analisadas, para realizar uma cobertura jornalística de primeira

    qualidade sobre a temática dos direitos humanos. Estes serão elencados,

    descritos e sistematizados para possível aplicação em outras situações

    comuns na produção jornalística.

    As 25 reportagens que compõem a série premiada Terra Bruta,

    publicada no jornal O Estado de S. Paulo entre os dias 10 e 18 de julho de

    2016, sobre mortes no campo pela disputa de terras. Além da relevância do

  • 15

    trabalho apresentado ao júri do PVHADH e por ele chancelado como de

    excelência na produção jornalística daquele ano (2016), a escolha do corpus

    se justifica, como dissemos, por este permitir estudar a relação entre

    Destinadores complexos, já que o tema das reportagens, o conflito por terra

    no Brasil, atinge valores fundamentais para o ambos Destinadores, como

    veremos. O interesse público deve ser o orientador da atividade do destinador-

    jornalista. O destinador-jornal deve considerar também as conveniências para

    o negócio, uma vez que se trata de uma empresa privada, cujo objetivo

    primeiro é o lucro. Além disso, a publicação tem um histórico ligado, desde sua

    fundação, aos proprietários de terra paulistas, e hoje, um século e meio depois,

    tem como público consumidor majoritariamente membros da elite paulistana

    sensível a questões como a reforma agrária e á ocupação de terras por

    populações originais. Em alguma medida e em algum ponto do horizonte, estes

    dois valores – o interesse público e o interesse privado – entrarão em choque.

    A temática dos direitos humanos tangencia muitos interesses corporativos ao

    tratar de minorias ameaçadas por agentes do Estado, por proprietários de

    terra, por empresas, por políticas públicas inadequadas ou mal implementadas

    pelos governos de plantão que também são os principais anunciantes dos

    meios de comunicação tradicionais. Os exemplos de relações empresariais,

    comerciais ou financeiras que terminam por antagonizar interesses de

    jornalistas e proprietários dos meios de comunicação são inúmeros. Por outro

    lado, os jornais também precisam fazer jus ao papel de fiscalizadores do poder

    e contribuintes da manutenção da democracia, auxiliando no fortalecimento

    das instituições democráticas, denunciando desmandos e o desrespeito aos

    direitos fundamentais. É justamente para entender como esses valores se

    enfrentam numa redação e como eles influenciam a geração de efeitos de

    sentido na publicação de reportagens aparentemente polêmicas é que se dá

    esta pesquisa que propõe a utilização dos recursos analíticos da teoria da

    Semiótica Discursiva para tal objetivo.

    Durante este estudo, apresentaremos a relação dos direitos humanos

    com a democracia e, por conseguinte, com a imprensa. Lembraremos a

    trajetória do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, que

    chancela a excelência da reportagem escolhida, permite a troca valiosa de

  • 16

    experiências da Roda de Conversa Vladimir Herzog, com os jornalistas

    vencedores e atualiza o legado do jornalista Vladimir Herzog, assassinado pela

    ditadura cívico-militar que assolou o país entre 1964 e 1985. Também

    evidenciaremos a importância dessa marca para o fomento da cobertura

    jornalística de direitos humanos. Em seguida, nosso trabalho se debruçará no

    estudo do ajustamento entre Destinadores Complexos a partir da Semiótica

    Discursiva nas reportagens que integram a série Terra Bruta e no relato de

    autor à RCVH. Estes elementos nos ajudarão a entender se há polêmica entre

    destinadores e como ela pode ser superada. Os mecanismos de superação

    serão evidenciados, cumprindo um dos objetivos do trabalho, que é contribuir

    para a formação jornalística de estudantes e profissionais, e para a ampliação

    da cobertura sobre direitos humanos pela imprensa.

  • 17

    1. IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS

    1.1. A IMPORTÂNCIA DOS DIREITOS HUMANOS PARA A

    DEMOCRACIA

    A Declaração Universal dos Direitos Humanos acaba de completar 70

    anos. Ela é um pacto da comunidade internacional ocidental contra os horrores

    da guerra. Um manifesto civilizatório para as gerações futuras, assinado pelos

    que protagonizaram a maior carnificina dos tempos modernos durante a

    Segunda Guerra Mundial e o Holocausto dentro dela. A humanidade assumiu

    em documento o que as revoluções burguesas desde o século XVIII vinham

    reivindicando e construindo. A dignidade de todo ser humano, desde sua

    concepção até o fim último, expressa e garantida como parâmetro para

    qualquer ação, em qualquer tempo e sob qualquer objetivo é uma conquista

    realizada a custa de muito suor, sangue, intelecto e política.

    A garantia dos também chamados direitos fundamentais é missão

    primeira e determinante para um Estado que queira ser Democrático e de

    Direito. Desde a formação do estado moderno, esse valores estão presentes.

    A “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, da França de 1789, é

    considerada “o atestado de óbito do Antigo Regime”(TRINDADE, 2002). Nela

    já estavam expressos valores como a liberdade: “Os homens nascem e são

    livres e iguais em direitos”(artigo 1o); e outros, já no artigo segundo: “...a

    propriedade, a segurança e a resistência à opressão.” Ainda que a igualdade

    não tenha sido garantida nesse texto embrionário, é ali que começa a se

    desenhar o que dois séculos depois viria a ser o pacto entre as nações

    civilizadas.

    O estado democrático de direito enfrenta hoje um desafio dos maiores.

    A diferença fulcral, entre várias outras de menor relevância, entre a democracia

    como a conhecemos hoje e a entendida nos primórdios gregos é justamente

    algo que deriva do artigo segundo citado acima. Na Grécia antiga, mulheres,

    escravos e estrangeiros não eram considerados cidadãos, e portanto, não

    eram detentores de direitos. A democracia moderna, atualizada com a

    universalidade dos direitos, tem como marca fundante a defesa do indivíduo

    hipossuficiente diante de um Estado hipersuficiente. No tripé que mantém o

  • 18

    estado moderno estruturado, entre Executivo, Legislativo e Judiciário, cabe a

    este último a garantia dessa proteção do indivíduo. Sem essa garantia de

    exercício pleno de suas liberdades individuais e proteção radical de seus

    direitos fundamentais, não há como pensar em uma convivência dentro de um

    marco legal sustentável em democracia. Falhando isto, falha a democracia e o

    que temos é um estado de exceção.

    A defesa e, antes, a luta pela conquista dos e acesso aos direitos

    fundamentais, é portanto um exercício em defesa da própria democracia. Algo

    que garante a dignidade, o equilíbrio e a convivência pacífica de homens e

    mulheres em sociedade.

    1.2. DIREITOS HUMANOS NA IMPRENSA

    A principal contribuição que a imprensa pode dar ao avanço das

    garantias fundamentais se encerra em duas palavras: visibilidade e contexto.

    Ao identificar pautas relevantes, realizar o discurso a partir de uma apuração

    rigorosa e da clareza no transmitir a informação, não admitindo

    descontextualizações, o jornalista contribui com o empenho civilizatório

    através do qual países como o Brasil ainda precisam avançar em direção às

    garantias fundamentais. A ANDI, Agência de Notícias dos Direitos da Infância,

    organização da sociedade civil sem fins lucrativos para o aprimoramento da

    cobertura jornalística dessa temática, aponta em sua publicação Mídia e

    Direitos Humanos, de 2006, a importância da imprensa na defesa dos direitos

    humanos da seguinte forma:

    Nas democracias, por sua vez, a

    imprensa, mais livre, é uma das instituições

    centralmente envolvidas na promoção,

    proteção e apontamento de violação dos

    Direitos Humanos. Valendo-se do instrumental

    que os jornalistas têm à sua disposição – a

    investigação, o texto, a imagem e o áudio –, a

    mídia pode contribuir para um agendamento

    contextualizado do debate público. O cenário

  • 19

    brasileiro não destoa dessa regra geral: de

    momentos heroicos de resistência à ditadura

    (cujo exemplo mais extremo está no

    assassinato do jornalista Vladimir Herzog),

    passando pela Campanha pelas Diretas e

    progredindo em direção a uma postura de

    maturidade perante a defesa dos direitos de

    crianças e adolescentes, a imprensa nacional

    tem, a despeito de não desprezíveis

    escorregões ao longo da jornada, cumprido um

    papel histórico, digno de nota, nessa seara. Por

    isso mesmo, organizações internacionais de

    proteção aos Direitos Humanos e de verificação

    do estágio de violação dos mesmos (como a

    Anistia Internacional ou a Human Rights Watch)

    valem-se, em muito, do que sai publicado na

    imprensa para a emissão de seus relatórios

    sobre a situação de diversos países. Diante de

    tal contexto, parece-nos absolutamente

    necessário compreender o estágio da evolução

    da cobertura da imprensa brasileira sobre as

    mais diversas temáticas que integram a agenda

    dos Direitos Humanos.

    Uma das primeiras conceituações necessárias para destacar a

    importância da cobertura de direitos humanos e como ela pode ser

    potencializada ou reduzida, a depender das escolhas de profissionais e

    empresas de comunicação, é a da chamada objetividade jornalística, posta em

    cheque pela Teoria do Jornalismo há tempos, sem no entanto, perder seu lugar

    nas argumentações dos que pretendem defender certas posições editoriais na

    cobertura diária, como afirma Alcina.

  • 20

    O conceito de objetividade jornalística,

    apesar das diversas críticas que recebeu

    continua sendo um dos elementos-chave para

    compreender a ideologia que o modelo liberal da

    imprensa mantém/ no entanto, é bom frisar que

    o conceito de objetividade não tem sido imutável

    ao longo da história da imprensa.

    Por outro lado, é bom lembrar que a empresa jornalística – e o próprio

    jornalista – determina sua cobertura sobre determinados fatos usando

    diferentes mecanismos de subjetivação de conteúdo. Ainda que o

    posicionamento de empresa e jornalista possam por vezes coincidir, a relação

    heterogênea entre empregado e patrão, com a participação hipossuficiente

    daquele nos processos decisórios últimos – posteriores à apuração, escolha

    de fontes, realização de entrevistas e elaboração do texto, nos quais o

    empregado jornalista tem mais condições de influenciar o resultado – mantém

    a palavra final, assumindo seu lugar de destinador, tal qual apontado pela

    teoria semiótica. Os mecanismos usados para garantir a realização dos efeitos

    de sentido desejados por este destinador estão elencados por ALSINA, e

    esses são:

    1) O viés de conteúdo, em que se reflete

    a orientação geral de um meio de comunicação.

    Podemos apreciar como interpreta a importância

    dos acontecimentos conferindo-lhes valores e

    determinando a quantidade e a qualidade da

    cobertura e sua prioridade. Mesmo que na

    seleção das notícias, como já dissemos, a

    liberdade de ação seja menor, esse viés poderá

    ser apreciado mais claramente na hierarquização

    e na tematização.

  • 21

    2) O viés das fontes. Acontece na escolha

    de uma fonte que se manifesta e que fala de um

    acontecimento. Esse viés ocorre,

    fundamentalmente, na utilização de especialistas

    que interpretam os acontecimentos. (...)

    Além de identificar os obstáculos presentes nas redações da mídia

    hegemônica para a cobertura sobre direitos humanos e os mecanismos de

    superação encontrados pelos jornalistas sensíveis ao tema para sua

    publicação, este trabalho quer ser uma contribuição relevante para o ensino

    de jornalismo, ao identificar e refletir sobre esses dois mecanismos que se

    contrapõem e que farão parte do cotidiano profissional dos que se preparam

    para ingressar numa redação. Conhecer os elementos de resistência aplicados

    às pautas que não interessam ao destinador do jornal e as práticas e técnicas

    jornalísticas capazes de enfrentar e vencer tais elementos é passo

    fundamental para o melhor exercício da profissão e para a garantia de uma

    cobertura profunda e equilibrada dos diversos fatos implicados na temática dos

    direitos fundamentais da cidadania.

    1.3. VLADIMIR HERZOG: O JORNALISTA E A DITADURA

    A escolha da Roda de Conversa Vladimir Herzog como ambiente do

    corpus selecionado é calcada em dois pilares: a dinâmica dos encontros, nos

    quais os jornalistas revelam suas estratégias e dificuldades na elaboração das

    reportagens; e na trajetória e relevância do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia

    e Direitos Humanos no reconhecimento da melhor produção jornalística em

    direitos humanos no país. Neste sentido, é importante destacar que o nome do

    prêmio determina sua natureza profundamente marcada pela preocupação

    com a garantia dos direitos fundamentais e a denúncia de suas violações.

    O jornalista Vladimir Herzog foi assassinado nas dependências do DOI-

    CODI, em São Paulo, em 25 de outubro de 1975, depois de se apresentar

    voluntariamente por ter sido convocado no dia anterior, quando estava no

    trabalho, como diretor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo. A disputa de

  • 22

    narrativas entre os detentores do poder e aqueles que a eles se alinhavam de

    um lado e do outro, a família, os amigos e colegas, o Sindicato dos Jornalistas

    do Estado de São Paulo e lideranças religiosas daria um estudo semiótico a

    parte. A versão oficial do regime era a de suicídio. Para afiançá-la, uma

    fotografia que até hoje, como registro fotojornalistico e histórico, é um

    enunciado a ser estudado e desvendado, provoca diversos efeitos de sentido.

    Um corpo preso a uma janela pelo pescoço, pendurado com a cabeça caída

    em direção ao ombro do lado do coração. Cabelos desarrumados de horror, a

    calvície livre de não mais pensar. O corpo magro, vestido em macacão de

    preso, apesar de magro, parece ter uma tonelada. Os braços pensos e as

    pernas escandalosamente dobradas, espremidas num espaço menor que o

    seu, pelo peso da massa sem vida contra um chão de tacos em escala de cinza

    na foto preto e branco. Ao lado, um colchão sem lençol. Em primeiro plano,

    uma cadeira universitária com algo sobre a superfície do braço de apoio. Uma

    macabra ironia para compor a cena de morte de um também professor

    universitário (ECA-USP). No chão, pedaços de papel que conteriam a

    confissão de próprio punho de participar das forças subversivas. Uma imagem

    que rodou o mundo, contestando em si mesma a afirmação que fazia.

    Em 1995, um ano antes de morrer, o ex-presidente Ernesto Geisel

    admitiria que aquilo se tratara de um “verdadeiro assassinato” (FESTER,

    2005). O mesmo Ernesto Geisel ganhou novamente as manchetes de alguns

    jornais pela descoberta do pesquisador Matias Spektor, da Fundação Getúlio

    Vargas, em 2018, de documentos desclassificados pela agência de inteligência

    norte-americana, a CIA, que dão conta de que a execução sumária de

    “elementos subversivos” não foi apenas tolerada, como autorizada pelo então

    Presidente da República recém empossado. A autorização foi dada numa

    reunião com o alto comando das Forças Armadas, em janeiro de 1974

    (SPEKTOR, 2018). Apesar dos registros históricos de que Geisel era contrário

    à continuidade dos métodos e das instalações utilizadas por organizações

    repressivas como o DOI/CODI, em São Paulo (FESTER 2005), a revelação

    pode comprovar que mortes como a do jornalista Vladimir Herzog não teriam

    sido ‘acidente’ nos porões da repressão, mas fariam parte de uma prática

    deliberadamente motivada pelo então mandatário do Estado brasileiro.

  • 23

    Liderados pelo Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, na

    pessoa de seu presidente, o jornalista Audálio Dantas, que prontamente

    encampou a versão da família, amigos, colegas e até líderes religiosos

    agilmente fizeram circular, primeiro, a notícia da morte de Vladimir Herzog, e

    em seguida a denúncia de seu assassinato. Meses depois, 1004 jornalistas

    assinariam um manifesto que cobrava respostas da justiça militar e do próprio

    governo, com incongruências e informações não apuradas no já concluído

    Inquérito Policial Militar que investigara o caso (JORDÃO, 1979)

    A reação à morte provocou o primeiro grande ato popular contra a

    ditadura, quando a Catedral da Sé ficou lotada, com pessoas aglomeradas no

    entorno, a praça da Sé, para o ato ecumênico celebrado pelo então cardeal

    arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, pelo Reverendo James

    Wright e o Rabino Henri Sobel, oito dias depois do assassinato do jornalista.

    Mas esse não foi o único ato, como bem lembra o jornalista e amigo de Herzog,

    Fernando Pacheco Jordão, em seu Dossiê Herzog:

    “Naquele mesmo momento,

    manifestações semelhantes aconteciam em

    outras cidades. Em Campinas, durante missa

    realizada na Igreja Nossa Senhora de Fátima,

    as orações pediam ‘pelos que sofrem pela

    causa da liberdade, pelos que são ameaçados,

    pelos que são denunciados, pelos que são

    perseguidos, pelos que são presos porque

    clamam por Justiça.’ Estudantes universitários

    leram trechos da Declaração Universal dos

    Direitos do Homem. Em Brasília, mais de 300

    pessoas compareceram a missa celebrada em

    memória de Vlado. No Rio de Janeiro, um culto

    que seria celebrado na Igreja de Santa Luzia foi

    cancelado por ordem direta do cardeal Dom

    Eugenio Sales. Os jornalistas cariocas, em

    lugar da oração que lhes proibiram no templo,

    fizeram do silêncio a manifestação de seu

  • 24

    protesto contra a violência. Enquanto em São

    Paulo se realizava o Culto Ecumênico, eles se

    reuniram na sede da Associação Brasileira de

    Imprensa. Um imenso aparato policial, primeiro

    em frente à Igreja, depois em frente ao prédio

    da entidade, foi montado para intimidá-los. No

    auditório, dois velhos lutadores, o presidente da

    ABI, Prudente de Moraes, neto, e o presidente

    do Conselho, Barbosa Lima Sobrinho,

    comandaram a manifestação: dez minutos de

    silêncio absoluto, perturbado apenas pelas

    sirenas que os carros da repressão tocavam

    ostensivamente pelas ruas do centro.”

    (JORDÃO, 1979)

    Três anos depois, durante o Congresso Brasileiro de Anistia realizado

    em Belo Horizonte, em 1978, articulado e promovido pelo CBA - Comitê

    Brasileiro de Anistia. se percebeu a necessidade de criar um prêmio de

    imprensa com o objetivo de estimular jornalistas e artistas do traço a tratarem

    do tema da Anistia e dos Direitos Humanos. “Foi de Perseu Abramo, à época

    diretor do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo e

    representante da entidade no Congresso, a ideia de dar o nome de Vladimir

    Herzog ao prêmio que ali surgia”, como informa Ana Luiza Zaniboni Gomes,

    curadora do PVHADH.

    A consequência primeira da morte de Vladimir Herzog foi a indignação,

    que por sua vez, deu lugar à mobilização. É o jornalista Celso Lungaretti quem

    analisa os motivos pelos quais a morte de Herzog ganhou destaque e teve a

    aderência rápida de quem já não aguentava mais o estado de exceção:

    “Há vários motivos. Primeiramente,

    chocou e até hoje choca sabermos que Herzog

    se dirigiu pelas próprias pernas ao encontro da

    morte, acreditando que sofreria apenas o

    interrogatório para o qual foi convocado. Por

    que ele não desconfiou de que poderia ter o

  • 25

    mesmo destino que tantos tiveram antes dele?

    Por um motivo simples: em 1975 a tortura já

    arrefecera, depois de dizimada a esquerda

    armada.(...) Vlado não levou em conta os

    bastidores do regime e seguiu confiante para o

    matadouro, certo de que em seu caso não

    abririam a caixa de ferramentas. Os

    torturadores, ao excederem a dose,

    despertaram a indignação mundial – para o que

    também concorreu a ascendência judaica da

    vítima, repetindo em escala ampliada o que já

    sucedera no fim de 1969, quando da morte em

    circunstâncias semelhantes de Chael Charles

    Schreier, militante da VAR-Palmares.”

    (LUNGARETTI, C., Mártir da redemocratização,

    publicado na edição 272 de Observatório da

    Imprensa -

    http://observatoriodaimprensa.com.br/dossie-

    vladimir-herzog-1937-1975/martir-da-

    redemocratizacao/ )

    Os atos em memória de Herzog, seu sepultamento na área do Cemitério

    Judaico destinada a vítimas de homicídio, e a repercussão internacional,

    quando se imaginava que o pior da repressão já havia passado, obrigaram o

    então presidente Ernesto Geisel a advertir seus comandados do DOI/CODI a

    evitar casos semelhantes, sob ameaça de desativar o grupo. Três meses

    depois, o operário Manoel Fiel Filho, de 49 anos, foi morto da mesma maneira.

    O jornalista Ricardo Kotscho conseguiu os detalhes da história para o jornal O

    Estado de S. Paulo, que a publicou (FESTER, 2005). A nova repercussão

    provocou a reação imediata de Geisel, que exonerou o comandante

    responsável pelo 2o Exército, general Ednardo D’Ávila Monteiro, e desativou

    as instalações do DOI/CODI. As duas mortes colocaram fim a uma das casas

    de horror mais relevantes na história da tortura no país.

    http://observatoriodaimprensa.com.br/dossie-vladimir-herzog-1937-1975/martir-da-redemocratizacao/http://observatoriodaimprensa.com.br/dossie-vladimir-herzog-1937-1975/martir-da-redemocratizacao/http://observatoriodaimprensa.com.br/dossie-vladimir-herzog-1937-1975/martir-da-redemocratizacao/

  • 26

    A parte mais visível do legado de Herzog é a reação à sua morte. Os

    atos realizados em vários pontos do país, culminando com o Ato Ecumênico

    da Catedral da Sé, em São Paulo, onde três mil pessoas pela primeira vez se

    concentraram em contrariedade ao regime, foram para alguns historiadores,

    um divisor de águas na articulação das forças da sociedade civil para

    responder aos desmandos e ao autoritarismo. Mas outros aspectos da vida de

    Herzog são menos conhecidos. Aos dez anos do golpe militar de 1964, Herzog

    era editor de cultura da Revista Visão, em São Paulo. Ao lado de Zuenir

    Ventura, da sucursal do Rio de Janeiro, realizou uma grande e desafiadora

    reportagem sobre o chamado “apagão cultural” promovido pela censura no

    país. Antes, passou três anos na BBC de Londres. Tinha como hobby a

    fotografia e queria ser cineasta (MARKUN, 1985).

    Por todos os motivos já expostos, o nome Vladimir Herzog está presente

    hoje em diversos lugares públicos onde sua invocação faz sentido e memória.

    Uma praça no coração da capital paulista, logo atrás da sede do Poder

    Legislativo Municipal, leva seu nome. O centro acadêmico dos estudantes de

    jornalismo das Faculdades Cásper Líbero também o recorda. A redação do

    jornalismo da TV Cultura de São Paulo foi batizada assim. Uma escola

    municipal, na Zona Leste de São Paulo, e uma estadual, em São Bernardo do

    Campo, apresentam esse nome a novas gerações. Nome intimamente

    conectado pela história à causa dos Direitos Humanos.

    Em 2008, a família decide criar uma entidade para lidar com esse legado

    e dar conta dessa conexão feita pela história e confirmada pela sociedade. Em

    2009 surgia o Instituto Vladimir Herzog, que tem como missão, segundo

    publicação em seu próprio site na internet, “trabalhar com a sociedade pelos

    valores da Democracia, Direitos Humanos e Liberdade de Expressão”.

    Talvez o legado mais relevante para confirmar, ou quem sabe, fomentar

    essa conexão íntima com a causa dos Direitos Humanos seja o Prêmio

    Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos e a recente Roda de Conversa

    Vladimir Herzog.

  • 27

  • 28

    2. O PRÊMIO VLADIMIR HERZOG DE ANISTIA E DIREITOS

    HUMANOS

    2.1. OBJETIVOS DO PRÊMIO

    Criado em 1979, meses antes da promulgação do decreto que anistiava

    parte dos perseguidos pela ditadura cívico-militar vigente desde abril de 1964

    no país, o prêmio foi uma estratégia das forças democráticas e em particular,

    das entidades ligadas à categoria dos jornalistas, para fomentar a cobertura

    dos fatos que o governo queria negar e somar forças com os diferentes

    agentes sociais que lutavam pela Anistia. Antes de tudo, o PVHADH é fruto do

    esforço da sociedade civil e da coragem de homens e mulheres que souberam

    perceber os sinais e as necessidades de seu tempo para recuperar e garantir

    os valores democráticos então sequestrados. Como relata a jornalista Ana

    Luiza Zaniboni Gomes (2015):

    A criação de um prêmio de imprensa

    com o objetivo de estimular jornalistas a

    tratarem do tema da Anistia e dos Direitos

    Humanos foi uma das resoluções

    aprovadas no Congresso Brasileiro de

    Anistia realizado em Belo Horizonte, em

    1978. Foi de Perseu Abramo, à época

    diretor do Sindicato dos Jornalistas de São

    Paulo e representante da entidade no

    Congresso, a ideia de dar o nome de

    Vladimir Herzog ao concurso que ali surgia.

    Já em sua primeira edição, em outubro de

    1979, o prêmio estimulou a luta pela

    Democracia: ajudou a chegada da Anistia,

    em agosto do mesmo ano, e a mobilização

    pelas eleições diretas para Presidente da

    República, que só ocorreu em 1989. Deste

  • 29

    então, além de reverenciar a memória de

    Vladimir Herzog, preso pela ditadura civil-

    militar, torturado e morto em 25 de outubro

    de 1975 nas dependências do DOICodi, em

    São Paulo, o prêmio reconhece o trabalho

    de jornalistas que colaboram na defesa e

    promoção da Democracia, da Cidadania e

    dos Direitos Humanos e Sociais.

    Atualmente, integram a sua Comissão

    Organizadora onze instituições: Associação

    Brasileira de Jornalismo Investigativo;

    Centro de Informação das Nações Unidas

    no Brasil; Comissão Justiça e Paz da

    Arquidiocese de SP; Escola de

    Comunicações e Artes da USP; Federação

    Nacional dos Jornalistas; Instituto Vladimir

    Herzog; Conselho Federal da Ordem dos

    Advogados do Brasil; Ordem dos

    Advogados do Brasil - Secção SP;

    Ouvidoria da Polícia do Estado de SP,

    Sindicato dos Jornalistas de SP e

    Sociedade Brasileira dos Estudos

    Interdisciplinares da Comunicação.

    2.2. AS CONQUISTAS DO PRÊMIO

    O PVHADH é hoje o principal e mais antigo prêmio voltado para a

    temática dos direitos humanos e o jornalismo no Brasil. Jornalistas de todo o

    país e de todo tipo de publicação participam de seu processo de seleção, que

    tem a sessão do júri transmitida pela internet ao vivo. O acervo de reportagens

    premiadas ao longo de suas 40 edições é uma vitrina altamente qualificada do

    que o jornalismo brasileiro produziu sobre a violação e a garantia dos direitos

    humanos nas últimas quatro décadas.

  • 30

    Ao longo desse período, o apoio das entidades que inicialmente deram

    fôlego e substância para o surgimento do Prêmio variou. A partir do final dos

    anos 1990, muitas acabaram desarticuladas ou se desligando da realização do

    PVHADH. Isso reduziu a relevância da premiação junto a seu público primeiro,

    os jornalistas. Para recuperar o sentido original do PVHADH que é fomentar a

    cobertura jornalística na temática dos Direitos Humanos, família e amigos

    uniram forças. Mas foi somente em 2008, ao atingir os 30 anos, que a

    premiação recebeu um impulso importante. As comemorações dos 60 anos da

    Declaração Universal dos Direitos Humanos pelas Nações Unidas no Brasil,

    incluíram a criação do Troféu Especial de Imprensa ONU. Os 800 vencedores

    da história do PVHADH foram convocados a votar em cinco nomes que

    receberiam naquela única edição o Troféu criado pelo artista plástico Elifas

    Andreatto. Caco Barcelos, José Hamilton Ribeiro, Zuenir Ventura, Henfil e

    Ricardo Kotscho receberam a estatueta “Vlado Vitorioso”. Com a visibilidade

    recebida, o PVHADH também viu voltar as entidades representativas que o

    fortaleciam. No ano seguinte, a fundação do Instituto Vladimir Herzog trouxe a

    família de volta aos bastidores da organização da premiação.

    Atualmente, o jurado é composto por jornalistas e representantes das

    treze entidades que constituem a Comissão Organizadora do prêmio:

    Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI); Centro de

    Informação das Nações Unidas no Brasil (UNIC Rio); Comissão Justiça e Paz

    da Arquidiocese de São Paulo; Conectas Direitos Humanos; Escola de

    Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP); Sociedade

    Brasileira dos Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom);

    Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB Nacional); Ordem

    dos Advogados do Brasil - Secção São Paulo; Ouvidoria da Polícia do Estado

    de São Paulo; coletivo Periferia em Movimento; Sindicato dos Jornalistas

    Profissionais no Estado de São Paulo, Federação Nacional dos Jornalistas

    (FENAJ), Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e Instituto Vladimir Herzog.

    A sessão do júri na qual é feita a escolha dos vencedores é transmitida ao vivo

    em vídeo pela internet, garantindo a transparência no processo.

    Na edição de número 41, em 2019, conta com recorde histórico de

    inscrições: 692 produções inscritas nas categorias Artes (ilustrações, charges,

  • 31

    cartoons, caricaturas e quadrinhos), Fotografia, Produção jornalística em texto,

    Produção jornalística em vídeo, Produção jornalística em áudio e Produção

    jornalística em multimídia. A quantidade recorde de inscrições denota a

    relevância renovada do PVHADH, mas também a urgência do tema num país

    de contexto social turbulento depois das eleições de 2018. Não à toa, os

    jornalistas homenageados com o Prêmio Especial Vladimir Herzog 2019 – que

    homenageia a cada edição personalidades ou jornalistas com atuação

    destacada no período e pelos relevantes serviços prestados às causas da

    Democracia, Paz e Justiça – são Patrícia Campos Melo, autora da série de

    reportagens que expôs o esquema de compra do serviço de distribuição em

    massa de notícias falsas por aplicativo de mensagem, e Glenn Greenwald,

    responsável pela divulgação de mensagens de texto que demostram ligações

    antidemocráticas e nada republicanas entre membros do judiciário

    responsáveis pela operação contra a corrupção denominada Lava Jato, que 7

    de abril de 2018, colocou na prisão o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva.

    Uma colocou em xeque a legitimidade e a legalidade da campanha vitoriosa

    nas urnas em outubro de 2018. O outro abriu caminho para o fortalecimento

    do movimento “Lula Livre” e a natural contestação na justiça da condenação

    do ex-presidente Lula, impedido por ela de concorrer nas eleições daquele

    ano, apesar de liderar as pesquisas de intenção de voto mesmo estando preso,

    fato que garantiu a vitória da chapa vencedora. Ambos, perseguidos nas redes

    sociais, criminalizados por afirmações de autoridades públicas e sob proteção

    armada contra as ameaças de morte que receberam.

    Além de ser um incentivo à produção de reportagens na temática dos

    direitos fundamentais e dos valores democráticos, o Prêmio Vladimir Herzog

    de Anistia e Direitos Humanos e as Rodas de Conversa Vladimir Herzog, pelo

    seu objetivo e realização, contribuem para a ruptura do ciclo programático de

    leitura diária de um jornal que impõe prazo de validade a seu conteúdo, e de

    consumo unilateral da informação, onde o leitor tem acesso apenas ao que o

    jornal quis dizer. Ao disponibilizar o trabalho vencedor na rede mundial de

    computadores, dando-lhe a chancela de excelência e organizado por ano,

    tema e mídia, o prêmio dá perenidade ao material antes fugidio. Ao criar o

    espaço público para o relato do bastidor e manter esse relato no mesmo

  • 32

    repositório, as Rodas de Conversa introduzem uma relação que antes previa

    apenas um discurso com um destinador para as reportagens premiadas, um

    discurso complementar, com um novo destinador, o(a) repórter. Ainda que sob

    influencia do destinador do jornal, por lá desenvolve seu trabalho, ao participar

    da Roda, este novo destinador produz um discurso que não confronta, mas

    complementa e até critica as condições sob as quais o discurso da reportagem

    é produzido. Essa complementaridade é benéfica para o destinatário de ambos

    discursos por ampliar e desmistificar a compreensão do material publicado.

  • 33

    3. SÉRIE “TERRA BRUTA”

    3.1. AS REPORTAGENS

    A série de reportagens analisada aqui (anexo A) foi publicada pelo jornal

    O Estado de S. Paulo, um dos principais jornais do país, com tiragem atual

    média, na versão impressa, de 110 mil exemplares (2017), segundo o Instituto

    Verificador de Comunicação, IVC, o jornal é distribuído principalmente no

    Estado de São Paulo, mas sua rede de distribuição abrange formadores de

    opinião em todo o país. Para analisar o veículo, o sujeito semiótico constituído

    pelo jornal, seguimos os passos de Eric Landowski, que em seu A Sociedade

    Refletiva, propõe a personificação do jornal:

    “Em primeiro lugar, proporemos

    considerar o jornal como uma pessoa – uma

    verdadeira pessoa, mora, se entende.

    Institucionalmente, a coisa é óbvia: o jornal é

    uma empresa que, como outra qualquer, age

    como coletividade dotada de personalidade

    jurídica, de um estatuto e de uma razão social

    que garantem sua individuação ante o direito e

    ante terceiros. Há mais, porém: o jornal precisa

    possuir também o que se chama uma imagem

    de marca, que o identifique no plano da

    comunicação social. Para lá do simples

    conhecimento jurídico, isso implica que uma

    entidade figurativamente reconhecível tome

    corpo detrás do seu título: é preciso que o jornal

    se afirme socialmente como um sujeito

    semiótico.” (LANDOWSKI, 1992)

    Uma característica fundante desta pessoa, deste sujeito semiótico,

    precisa ser destacada de imediato para servir de referência e contraste diante

    do tema geral e da forma como ele será tratado na série de reportagens

  • 34

    analisada. Fundado em 1875, como A Província de S. Paulo, o jornal que

    adotou o nome de O Estado de S. Paulo, logo depois da proclamação da

    República (SODRÉ, 1983), nasceu identificado com a elite rural do Estado,

    zelosa da propriedade privada.

    O jornal, em seus primórdios, surge na revoada de publicações

    impulsionada pelos ventos da pós-independência de 1822, que passaram a

    dar destaque para uma economia agrária baseada na escravidão, mesmo

    depois da proibição oficial do tráfico de negros escravizados desde 1850. Além

    disso, outras marcas do Império passavam a ser questionadas.

    “A coroa espanhola foi banida em toda a

    América, mas no Brasil a coroa portuguesa

    resiste. A Igreja Católica permanece sob tutela

    do Império, possui a propriedade dos

    cemitérios, o controle do ensino primário e

    secundário. O casamento civil não é permitido

    e, não obstante o direito de culto, os não-

    católicos são obrigados a esconder o local de

    seu templo.” (BAHIA, 1990, p. 111q)

    Os ideais republicanos e liberais, acomodados aos interesses das

    oligarquias rurais de Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São

    Paulo, ganham defensores e – mais do que isso – propagadores em páginas

    de periódicos aqui e acolá. O jornal A Província de S. Paulo, surge, portanto,

    como o principal deles, uma colossal empresa, nas palavras de SODRÉ:

    “Em 1875, o ambiente em São Paulo

    refletia os acontecimentos que abalavam o

    país: terminara a guerra com o Paraguai há um

    lustro, surgira a tempestade da lei do Ventre

    Livre, os fazendeiros temiam o futuro, as ideias

    republicanas ganhavam adeptos em todas as

    áreas, realizara-se a Convenção de Itu, o

  • 35

    abolicionismo alastrava-se. A imprensa do

    governo era ardorosa e disciplinada; sentia-se

    a necessidade de um jornal que, ‘não sendo

    republicano extremado, viesse a discutir com

    serenidade os absorventes problemas do

    momento’. Para esse fim, constituiu-se uma

    sociedade em comandita, como ‘colossal

    empresa’, levantando 50 contos de réis de

    capital.” (SODRÉ, 1983)

    Era a primeira vez que diferentes interessados da oligarquia se

    organizavam para levantar recursos e constituir o que passou a ser o desafio

    da nova imprensa para os tempos republicanos, uma empresa.

    Posteriormente, a sociedade seria entregue ao controle familiar dos Mesquita,

    no século seguinte, sem perder o caráter empresarial e o objetivo de lucro.

    Entre os nomes da alta classe rural que participaram da constituição da

    empresa, estavam os principais proprietários rurais do interior paulista, com

    presença em cidades como Campinas, Itu, Araras, Rio Claro e a capital, São

    Paulo.

    “A Província de S. Paulo constitui, talvez,

    o caso mais evidente dessa mobilização de

    proprietários rurais, interessados na imprensa.

    (...) Nas últimas décadas do século XIX, a

    imprensa brasileira passa (...) para as mãos de

    uma organização familiar, sólida, solidária,

    permanente, convergente em seus interesses

    de classe”. (BAHIA, 1990)

    Além das tensões da Guerra do Paraguai, finalizada em 1870, as

    pressões abolicionistas, republicanas e descentralizadoras vindas das elites

    brasileiras, influenciadas pelo pensamento europeu, notadamente francês,

    minaram as forças de D. Pedro II. Mas foi a participação da imprensa em

  • 36

    defesa da agenda liberal que desempenhou papel decisivo na mudança. Bahia

    conta:

    “O Partido Radical (1868), o Partido

    Republicano (1870), o fim da guerra, as

    agitações culturais e o poder de fogo da

    imprensa de oposição provocam a rotura da

    política moderadora da monarquia e levam ao

    colapso toda ordem hierárquica herdada do

    período colonial. Jornais cariocas e paulistas

    desses últimos anos do século XIX e início do

    século XX são os portadores da mudança.”

    (1990, p. 113)

    O O Estado de S. Paulo é o terceiro jornal mais longevo do país, atrás

    apenas do Diário de Pernambuco (1825), e de O Mossoroense (1872)1 que

    hoje só é publicado em formato digital. A importância desse fato, como se verá

    na analise seguinte, é que nestes quase 145 de existência, o jornal pouco

    mudou de sua agenda inicial, conforme consta do Código de Conduta e Ética

    adotado pelo Grupo Estado, do qual faz parte:

    “A missão editorial do Grupo Estado está

    em grande parte inspirada nos princípios

    fundadores do jornal Província de São Paulo.

    Figura na declaração inaugural de propósitos

    de 4 de janeiro de 1875. No entanto, sensível

    às mudanças históricas e aos avanços da ética,

    o Grupo acrescentou ao compromisso com a

    democracia, a luta pela defesa da liberdade de

    expressão e de imprensa, a promoção da livre

    iniciativa, da justiça e a permanente busca da

    1 A Associação Nacional de Jornais (ANJ) mantém, em seu portal na internet, uma tabela atualizada com os jornais centenários do país. A ressalva para o alagoano O Mossoroense é que a publicação passou a ser feita apenas por meio digital a partir de 31/12/2015. É possível assessor a lista completa em https://www.anj.org.br/site/servicos/menindjornalistica/109-jornais-no-brasil/744-jornais-centenarios.html

    https://www.anj.org.br/site/servicos/menindjornalistica/109-jornais-no-brasil/744-jornais-centenarios.htmlhttps://www.anj.org.br/site/servicos/menindjornalistica/109-jornais-no-brasil/744-jornais-centenarios.html

  • 37

    verdade. Comprometido com os valores

    proclamados na Declaração Universal dos

    Direitos do Homem, o Grupo Estado está

    sintonizado com o presente e o futuro dos

    brasileiros, com a defesa de seus valores

    culturais, éticos e históricos e a preservação do

    seu patrimônio natural. Como grupo

    empresarial do setor de comunicação e

    informação, persegue a eficiência, a

    modernidade, a criatividade e a rentabilidade,

    pré-requisitos da sua independência

    informativa e editorial. Ademais, comunga com

    os princípios das empresas socialmente

    responsáveis: geração de riqueza com

    sensibilidade social e respeito ao meio

    ambiente. (Missão Editorial do Grupo Estado,

    Código de Conduta e Ética, in

    https://www.estadao.com.br/ext/codigoetica/co

    digo_de_etica_miolo.pdf)

    A série intitulada “Terra Bruta – Pistolagem, devastação e morte no

    coração do Brasil” aborda a violência no campo na disputa pela terra e suas

    riquezas. Publicada ao longo de oito dias, entre 10 e 18 de julho de 2016, é

    composta por 25 textos diferentes. Ela é assinada por quatro profissionais: os

    repórteres Leonêncio Nossa e André Borges, e os fotógrafos Dida Sampaio e

    Hélvio Romero. O trabalho de pesquisa, apuração, entrevistas, redação e

    edição do material levou sete meses, segundo relato do repórter André Borges,

    um dos responsáveis pela reportagem e o participante escolhido pela equipe

    para estar na Roda. A escolha do tema, segundo ele, veio da percepção

    compartilhada com outro experiente repórter de OESP, Leonêncio Nossa, de

    que as mortes no campo estavam em patamares altíssimos. Na realização de

    outras pautas, em viagens pelo Brasil, na conversa com entrevistados e fontes

    diversas, André explica que ambos tinham informações semelhantes de

    https://www.estadao.com.br/ext/codigoetica/codigo_de_etica_miolo.pdfhttps://www.estadao.com.br/ext/codigoetica/codigo_de_etica_miolo.pdf

  • 38

    diversos casos de mortes provocadas pela disputa pela terra. A coleta de

    informações e entrevistas preliminares foi feita em paralelo com outras pautas,

    até conseguirem reunir material suficiente que comprovasse a tese de um

    aumento na violência no campo. Quando tiveram essa certeza, fizeram a

    proposta ao jornal para a realização da série.

    Interessante destacar que em seu relato, André Borges aponta dois dos

    valores correntes nas redações que determinam se uma pauta é valida ou não.

    O chamado gancho, ou seja, um fato maior correlato ou uma efeméride, que

    sirva como que de aparente justificativa para abordar determinado tema; e o

    numerão (sic), um dado quantitativo que resuma em si a grandeza do assunto

    abordado. Como gancho, eles tinham pela frente a efeméride dos vinte anos

    do que ficou conhecido como Massacre de Eldorado do Carajás2. Faltava o

    número de mortes no campo.

    Depois de buscar fontes oficiais, perceberam que não existe um

    cadastro unificado ou uma contagem organizada para ocorrências desse tipo.

    Resolveram então buscar eles mesmos o número de mortes no país. Através

    de registros oficiais3 e relatos de testemunhas, chegaram a pouco mais de mil

    mortes em decorrência de conflitos por terra nas diferentes unidades da

    federação. Depois da publicação da reportagem, outros nomes foram

    adicionados, seja porque a morte foi posterior ao término da apuração, seja

    porque a informação sobre ocorrências anteriores veio depois da divulgação

    do trabalho. Um ano depois da publicação, o Memorial dos Mortos4, parte

    integrante do material disponível na versão digital da publicação, que não será

    objeto de análise aqui, registrava 1309 mortes no campo desde 1996.

    2 Em 17 de abril de 1996, no município de Eldorado do Carajás, dezenove trabalhadores rurais sem-terra foram mortos numa ação da Polícia Militar do estado do Pará, que reprimia o protesto de 1500 manifestantes pela desapropriação de terras no estado. 3 FONTES: Dossiês da Secretaria Especial da Saúde Indígena, do Ministério da Saúde, que trata de homicídios de índios de 2003 a 2015, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), sobre assassinatos de camponeses de abril de 1996 a 2015, de CPIs do Congresso e entidades rurais de 2001 e 2006, que ressaltam mortes de pistoleiros e fazendeiros, do Ministério de Desenvolvimento Agrário, centrado em dados de 2001 a 2015 da Polícia Civil, da Funai, da Secretaria de Direitos Humanos, do Judiciário e Ministério Público, de 2003 a 2016, relatórios de violência contra os povos indígenas, do Cimi. A análise incluiu ainda dados de cartórios, fóruns e delegacias às margens de 15 mil quilômetros percorridos de estradas nos Estados do Amazonas, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Rondônia e Tocantins. 4 http://infograficos.estadao.com.br/politica/terra-bruta/extra-memorial-dos-mortos

  • 39

    A escolha desta reportagem para análise se dá porque ela reúne os

    elementos necessários e suficientes para colocar a prova as hipóteses

    aventadas neste trabalho, seja através do material publicado, que será

    analisado sob a luz da semiótica discursiva – destacando as marcas do

    destinador e do enunciador nos textos, ou discursos enunciados nos

    destaques das manchetes e na diagramação das páginas; seja nos relatos

    sobre o fazer da reportagem, que revelam os obstáculos enfrentados pelos

    jornalistas para a realização da cobertura e os mecanismos de superação

    aplicados a esses.

    3.2. A Visualidade em Terra Bruta

    Nas próximas páginas evidenciaremos o uso da espacialidade da

    página do jornal e os sintagmas mais relevantes na serie de reportagens Terra

    Bruta. Entre eles, destacamos a horizontalidade adotada em toda a série.

    Ainda que divididas em seis colunas, o texto das reportagens é sobreposto,

    uma sobre a outra, em camadas horizontais, como a levar o Destinatário a

    descer, a aprofundar seu entendimento sobre o assunto, camada por camada.

    Além disso, cabe notar que as fotografias das pessoas em situação de

    vulnerabilidade ocupam a metade inferior das páginas, enquanto as que

    representam pessoas com poder econômico ou das armas estão na parte

    superior.

    Outra constante é a presença de um conjunto de sintagmas que

    evidencia o ajustamento entre destinadores complexos. Essa marca está

    presente no alto das páginas que compõe a série. A fotografia do pistoleiro

    empunhando seu rifle, que ultrapassa a margem padrão da página, ocupando

    um espaço destinado apenas ao nome do jornal, à data e ao caderno ou

    editoria à qual pertence a página. Essa imagem símbolo da série, incrustrada

    numa tarja com cromatismo que varia do verde – da mata – presente em toda

    a série para o azul do Jornal, com o título da série em preto e a marca da

    importância e contextualização do texto, identificando-o como ‘reportagem

  • 40

    especial’ em vermelho, é uma assinatura de permissão e ajustamento do

    Destinador-Jornal sobre o conteúdo produzido pelo Destinador-Jornalista.

    Mais uma marca de ajustamento entre Destinador-Jornalista e

    Destinador-Jornal está na presença de elementos na cor azul, do mesmo tom

    utilizado para grafar o nome do jornal. O Destinador-Jornal permite assim, que

    o Destinador-Jornalista dê a seu conteúdo uma marca identitária importante,

    que produz um efeito de sentido de concordância, de chancela, de unidade

    sobre o Destinatário.

    A seguir, outros exemplos e evidenciamentos do ajustamento entre

    Destinadores e marcas do percurso gerativo de sentido que serão desvelados

    adiante. Nesta parte, utilizo apenas algumas páginas para demonstrar

    características que se repetem ao longo da série. As demais serão analisadas

    nos capítulos seguintes. As páginas em tamanho ampliado e nas cores

    originais podem ser vistas ao desdobrá-las no anexo A, pg. 109.

  • 41

    Cromatismo azul do Ddor

    Cromatismo amarelo do país, relíquia

    Isotopia de ‘corte’ é dada pelo verbal ‘corte de despesas’ e pelo visual fotográfico do corte de árvores.

    Semas disfóricos

    Isotopia de ‘investigação’: por caixa dois, morte no coração do brasil, novo massacre

    Cromatismo azul do Ddor parceiro anunciante

    A primeira página está, como vemos, organizada em função da chamada da série de reportagens, o que denota o ajustamento entre Destinador-empresa e Destinador-jornalista.

  • 42

    Ho

    rizo

    nta

    lid

    ade

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    po

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    o a

    lto

    A centralidade do mapa situa a Terra Bruta reportada ao leitor

    Semissimbólico: personagem das ocupações ‘invade’ área do texto da reportagem.

  • 43

    Topo de página ocupado pelas marcas identitárias do Destinador-jornal

  • 44

    Pistoleiro símbolo da série ocupa área do Destinador-Jornal

    Horizontalidade marcada pela linha fina que segue o olhar do fazendeiro, que ocupa a porção superior da página.

    Personagens em situação de vulnerabilidade ocupam, a porção inferior da página.

  • 45

    3.3. O PERCURSO GERATIVO DE SENTIDO EM TERRA BRUTA

    Em seu artigo A Leitura do Jornal Como Experiência Sensível, a

    semioticista Ana Claudia de Oliveira aponta a principal função do arranjo visual

    estabelecido no projeto gráfico de uma publicação noticiosa diária: atingir a

    sensibilidade do leitor. A autora postula:

    “Como modo de reafirmação identitária,

    o sentido cognitivo do projeto gráfico atinge a

    sensibilidade do leitor e, nas repercussões dos

    efeitos sensíveis, o estado de ânimo e d'alma

    do leitor são mobilizados quer por operações

    de manipulação, quer de ajustamento. Sobre

    a sua configuração visual recai a estruturação

    da face do jornal, o que significa que o

    encontro entre o jornal e o leitor se desenrola

    regrado pelas normatizações e convenções do

    modo do primeiro apresentar-se ao leitor pela

    sua identidade visual.”

    Desta forma fica claro o ato de manipulação e de ajustamento de um

    para com o outro. Portanto, o projeto visual, “o que o jornal dá a ver de si

    mesmo ao leitor”, é o terreno do sensível e pode assim ser analisado a partir

    da teoria própria da semiótica francesa e seus desdobramentos, a partir de

    GREIMAS, FIORIN E LANDOWSKI. Também usamos os conceitos da

    semiótica plástica apresentados por Floch, segundo o qual, toda linguagem é

    composta por signos não-verbais e verbais que geram efeitos de sentido nos

    planos da expressão e do conteúdo (1985 p.143). Finalmente, os conceitos de

    semiótica pictórica apresentados por OLIVEIRA em artigo de 1995, em que

    analisa o sistema semi-simbólico da pintura, compõe a base para o estudo dos

    planos da expressão e do conteúdo que integra toda e qualquer manifestação

    que é apresentado a seguir.

  • 46

    O material analisado é do tipo sincrético, pois se utiliza de diferentes

    sistemas semióticos, como o visual, o verbal e o espacial da página do jornal.

    Esse sincretismo é próprio das publicações noticiosas, nas quais o enunciador

    apresenta ao enunciatário o conteúdo em dada expressão em busca de obter

    credibilidade. Quanto mais os diferentes sistemas se confirmarem nos efeitos

    de sentido gerados, maior será essa credibilidade. No seu dizer verdadeiro, o

    enunciatário busca no ato da enunciação o fazer-crer de um enunciatário.

    Usando a definição dos três actantes da comunicação, de LANDOWSKI, temos

    um objeto sobre o qual recai o crer, um sujeito do fazer persuasivo, que é o

    enunciador, e um sujeito do fazer interpretativo, que é o enunciatário

    (LANDOWSKI, 1992). Na imbricação dos actantes, ao objeto caberá uma

    relação de verossimilhança, ao enunciador, a de credibilidade. E ao

    enunciatário, a relação de credulidade, que se realizará com maior ou menor

    intensidade quanto maior ou menor forem as superposições entre os diferentes

    sistemas semióticos que compõem o texto em questão.

    Todo texto se organiza na tradição que vem do linguista Louis Hjelmslev

    e adotada por Algidas Julien Greimas em dois planos, o da expressão e o do

    conteúdo, que se pressupõem. Passamos a explorá-los para verificar como

    esses se correlacionam em homologação.

    3.3.1. PLANO DA EXPRESSÃO

    A edição que inaugura a publicação da série de reportagens carrega na

    capa a chamada no quadrante intermediário direito. O jornal é encimado pela

    sua marca, impressa em cor azul sobre o fundo branco, em caixa alta sem

    serifa. Logo abaixo, ao centro, em cinza sobre fundo branco, a figura

    sombreada de um homem a cavalo, que toca uma corneta, ladeado pelos

    dizeres “Fundado em 1875” e “Julio Mesquita (1862 – 1927)”. A linha seguinte

    tem detalhes de identificação da edição como data, preço e número. A linha

    contínua que separa esta da próxima sessão está interrompida pela foto da

    tela de um computador, que aparece junto de outras telas eletrônicas, com um

    laptop, tablet e celular. Todas tem o rosto de um homem reconhecido como

    deputado preso por corrupção, de olhar baixo, como chamada para o novo site

  • 47

    do veículo. Ao lado disso, a chamada para o caderno de veículos traz a

    fotografia de um fusca amarelo, cor também presente do lado oposto da

    página, na chamada para o site. A manchete do dia está do lado esquerdo, na

    porção intermediária da página, com letras em negrito, pretas sobre fundo

    branco, em duas colunas. Abaixo seguem-se pequenas notas secundárias e

    no rodapé da página, um anúncio de veículo sedan, último modelo, em fundo

    azul, com carro em pintura prateada e mais uma linha amarela com dizeres

    promocionais.

    A primeira reportagem da série Terra Bruta disputa esse espaço,

    através de uma fotografia de plano-geral em formato retangular vertical, com a

    parte superior preta (artificial) e a inferior bege, verde e marrom (natural). Sobre

    o fundo preto do efeito vinheta, letras serifadas, bold, contrastantes em

    vermelho, em caixa alta e baixa dão o chapéu da notícia: “Reportagem

    Especial”. Logo abaixo, ainda em contraste, letras brancas sem serifa em caixa

    alta e tipo espesso apresentam a manchete: “TERRA BRUTA”. Sob esta, mais

    uma linha de texto em letras serifadas e brancas, a chamada linha-fina,

    complementa o sentido da manchete: “Pistolagem, devastação e morte no

    coração do Brasil”.

    Depois, o olhar segue para a imagem que começa a surgir do preto da

    vinheta. Um homem armado de espingarda, com roupa camuflada, olha para

    o lado direito da imagem, para fora do quadro, para algo que não aparece. Ele

    está sobre um enorme tronco de árvore deitado na terra. Atrás dele, finos

    troncos alguns ainda em pé, outros na diagonal, formam um fundo listrado,

    cinza e verde. Ao lado do grande tronco tombado no chão está outro homem,

    com roupas claras e escuras, também armado de espingarda, apoiada na

    perna e apontada para o alto, que olha para o espectador. Sua perna, dobrada

    em ângulo reto, está apoiada sobre o tronco de outra árvore, menor do que o

    anterior. Abaixo de tudo, um chão que ora é lama, ora é pedra, mas é sempre

    irregular. A legenda da foto traz, em negrito, as palavras “floresta” e

    “ameaçada”, acompanhadas pela frase sem negrito: “Éder Dias e João Coelho

    tentam impedir a entrada de invasores em mata de Rondônia.”

    Em seguida, no sentido do olhar, segue-se a manchete da matéria

    principal da série no dia, na tipologia padronizada no jornal, de cor preta em

  • 48

    fundo branco: “A cada cem dias, um novo massacre”. Logo abaixo, a

    assinatura da reportagem por André Borges e Leonêncio Nossa. O texto é

    apresentado em três colunas de seis ou quatro linhas, e termina com a

    chamada para o material disponível na internet, em letras azuis, mesmo tom

    da marca do jornal, sem serifa, sobre o fundo branco. Na primeira linha da

    terceira coluna, ainda há, destacado do texto, em negrito, o nome do jornal.

    Entre os formantes plásticos e rítmicos presentes no texto verbo-visual-

    espacial apresentado pelo jornal, podemos destacar as cores preto, cinza,

    branco, amarelo, verde e subtons, marrom e subtons, vermelho e azul, como

    os principais formantes cromáticos. A verticalidade dos homens e das árvores

    ainda vivas, a horizontalidade dos troncos mortos, das palavras e do próprio

    esvaecer da cortina preta constituem alguns dos formantes topológicos. A

    forma retangular verticalizada da fotografia colocada na página, o retângulo

    horizontalizado preto na porção superior, os retângulos verticais dos troncos

    ao fundo, o retângulo vertical formado pelas pernas do homem que olha para

    a câmera e o bloco disforme da madeira estão entre os formantes eidéticos.

    Nos formantes matéricos, a edição impressa apresenta toque rugoso imposto

    pelo papel jornal utilizado. A versão digital mantém a suavidade da tela de vidro

    em que os pontos luminosos formam a imagem analisada.

    3.3.2. PLANO DO CONTEÚDO

    O primeiro destaque possível a fazer nesta reportagem que abre a série

    é o posicionamento secundário no espaço do caderno, seção e página que a

    série que viria a ser premiada em sua categoria recebe do Destinador-jornal.

    A página de um jornal diário no formato standard, segundo SILVA, R.S., recebe

    um passeio padrão do olhar acostumado ao sentido de leitura ocidental,

    conforme esquema apresentado a seguir:

  • 49

    O olhar segue do ponto 1, em diagonal, ao ponto 2, e só depois se dirige

    aos pontos centrais e a seguir às duas outras pontas do retângulo composto

    pela página. Assim, o autor destaca que há dois pontos de maior atenção, que

    são os de maior destaque para a informação. O canto superior esquerdo e o

    topo da página. A reportagem está posicionada no segundo terço da superfície,

    nas três colunas da direita, com seu início, portanto, posicionado no centro

    ótico da página. A manchete principal permanece distante da temática da série

    e atrai o olhar primeiro do Destinatário. Ao não colocar a reportagem Terra

    Bruta no lugar de maior destaque, o Destinatário evidencia que há outros

    assuntos mais importantes que aquele dentro do enunciado. Para o

    Destinatário, a escolha não é estranha, uma vez que a temática do campo e

    da violência não faz parte dos destaques habituais. Os possíveis cortes

    pretendidos pelo Ministro da Fazenda sim estão entre as prioridades de um

    veículo que se declara defensor dos ideários liberais, conforme consta em

    Código de Conduta e Ética publicado pelo Grupo Estado.

    O contraste de cores, com a força da cor preta no alto da foto, é bem

    verdade que atraem o olhar. Claro para o Destinatário que aquele não é o

    1 3

    5

    6

    1- Zona Primária 2- Zona Secundária 3- Zona Morta 4- Zona Morta 5- Centro Ótico 6- Centro Geométrico (SILVA, 1985)

    2 4

  • 50

    principal assunto, a escolha da foto em ponto grande, com o contraste de cores

    com a tipografia, atrai o olhar e evidencia o querer-fazer-saber do Destinador

    sobre o Destinatário. A imagem é a promessa de um conteúdo dramático. Sem

    adentrar ainda na textualidade verbal, o texto visual é carregado de sentido em

    cada detalhe. O desvelar de uma realidade, dado pelo efeito vinheta que

    entrelaça pontos negros com os elementos plásticos originais da foto, dá a

    ideia de uma cortina que se abre, de um mistério que será revelado, de uma

    realidade escondida que o jornal passa a contar. Essa é a essência do querer

    jornalístico em plena expressividade.

    A escolha da tipologia que dá suporte ao texto verbal do nome da série

    é condizente com seu significado. A brutalidade de uma terra compacta, forte,

    quase impenetrável, tem esses adjetivos suscitados no conjunto de letras

    brancas grafadas em tipo reto e angular, negritado, como um bloco sólido:

    “TERRA BRUTA”. Antes, o texto chama a atenção com cor e significado para

    a importância da frase que segue. O termo “reportagem” entrega ao

    Destinatário o contrato de fidúcia próprio da relação jornal/leitor. Ali há um

    conteúdo produzido pelo próprio jornal, com todos os critérios de apuração,

    checagem de informações, entrevistas e procedimentos próprios do fazer

    jornalístico que o leitor conhece. Seguido de “especial”, esse conteúdo ganha

    nova significação, com a promessa de um conteúdo ainda mais aprofundado,

    mas incomum, mais satisfatório para o querer-saber do enunciatário.

    Abaixo, a frase que explica o título da série, ainda em fundo preto com

    tipos brancos, completa o contrato sobre o que o leitor encontrará nas páginas

    a seguir, com requintes de dramaticidade ao escolher termos que evocam

    recursos folhetinescos, ao citar a prática da “pistolagem”, algo distante do

    imaginário urbano do destinatário, a “devastação”, que atinge a preocupação

    crescente com o meio ambiente, e a “morte”, como resultado da violência. Tudo

    isso acontece num lugar de cuidado, que deveria estar protegido. É o sentido

    que realiza a palavra “coração”.

    Quando a cortina já se foi e ficam apenas as cores admitidas como

    “reais” pelos actantes da enunciação, surge em primeiro plano a ameaça de

    um homem armado que olha para o não-revelado, o que ainda será contado

    pela reportagem. Seu aspecto e roupas evocam um Brasil desconhecido, a

  • 51

    milhares de quilômetros do local da enunciação. Entramos na debreagem

    enunciva actancial e espacial, que se completa com a temporal, na foto que

    representa uma ação que já aconteceu, mas pode acontecer de novo agora e

    continuar acontecendo no depois de enunciação. Enunciva, porque se dá fora

    do ato da enunciação. Essa é a debreagem mais adequada ao jornalismo, pois

    produz um efeito de sentido da objetividade (FIORIN, 2008). Ao contrário, a

    debreagem enunciativa, com suas marcas realizadas no ato da enunciação,

    evocam a subjetividade, como nos relatos da Roda de Conversa.

    Sob os pés do indivíduo armado, o tronco de uma árvore com dois

    formantes plásticos do tipo cromáticos distintos. A parte que está por cima tem

    um tom amarelado, de um amarelo sujo, mas ainda amarelo. Em uma

    disposição de equilíbrio com aquele fusca amarelo que está no topo direito da

    página. O amarelo e a figuratividade do conjunto veículo/motorista,

    acompanhada do texto verbal com a palavra “nasceu” evocam vitalidade, força,

    alegria. Mas o amarelo da árvore, em pleno tronco, se transforma em ocre

    cinzento, bege lama, como o chão que o sustenta. A mudança de uma cor viva

    para uma cor pálida produz o efeito de sentido pretendido pelo Destinador ao

    apontar ao Destinatário que estamos no terreno da morte.

    O homem no plano inferior, ao lado do tronco caído, tem uma postura

    menos apreensiva que seu companheiro. Sua perna repousa sobre o tronco

    menor, numa sinalização de comodidade, conforto, com a espingarda apoiada

    sobre a perna, vertical, apontando para o céu. O cano da arma está em

    paralelo com os troncos finos das árvores do fundo, porém, numa

    cromaticidade contrastante, que pode denotar uma atitude contrária. Se

    aqueles, claros, passivamente aguardam seu fim, esta, escura, ao contrário,

    ativamente está pronta a reagir.

    Diferente também é a postura dos dois homens retratados. Se o que

    está no alto vigia, ao olhar para um ponto indefinido fora do quadro, este

    questiona o Destinatário. Seu olhar apontado para a lente, encontra o olhar do

    enunciatário e provoca a conexão inevitável de duas realidades. É quase a

    proposição de um encontro em ato na e pela mídia. Ao mesmo tempo, esse

    olhar denuncia a enunciação fotográfica, a presença do fotografo no ato do

    fotografar. Mas a fração mais forte deste olhar é a que indaga e posiciona o

  • 52

    destinatário diante da cena apresentada pelo texto visual e situada pelo texto

    verbal. Não há como não lembrar aqui do olhar do pintor no quadro As

    meninas, de Diego Velásquez. No autorretrato em ato, o pintor olha fixamente

    para o ponto fora do quadro, ocupado pelo destinatário. O reflexo do espelho

    atrás dele revela que este é o lugar do rei e sua rainha, as personagens que

    dispõe de meios e poder constituído sobre toda a cena. Será esse o lugar

    destinado ao Destinatário pelo texto visual apresentado? Haverá poder ou

    influência de quem contempla a imagem sobre a realidade nela expressa? Tal

    qual o pintor de Velásquez ao observador do quadro, o olhar de um homem

    com seu rifle questiona e desafia o leitor do jornal a decifrar o significado dessa

    figuratividade proposta no texto visual.

    As três grandes faixas horizontais compostas pelo preto superior, o

    verde entrecortado por árvores finas, homens e espingardas, e o bloco

    amarelo-ocre dos troncos, repousam sobre uma faixa horizontal mais estreita,

    em tons de marrom, que revela o solo em que tudo isso acontece. Um chão

    irregular, inóspito, entremeado por pedra, terra e lama. É esta fina camada de

    formantes que sustenta um conteúdo fundamental para a compreensão da

    totalidade não apenas do enunciado em questão, mas de toda a série de

    reportagens anunciada. É nesse terreno irregular, traiçoeiro, desafiador, sem

    as normatizações asfálticas da urbanidade, que a reportagem convida o leitor

    a entrar: um outro mundo, distante da realidade do estado sudestino que

    emana significados sobre as páginas deste jornal, O Estado de S. Paulo.

    A legenda da fotografia produz uma ancoragem dúbia. A linguagem

    verbal explica que a floresta está sob ameaça e informa os nomes dos dois

    homens retratados, além de apresentar o que fazem ali. Mas não deixa claro

    de que lado eles estão, apenas diz que ambos tentam impedir a entrada de

    invasores em algum trecho de mata no estado de Rondônia. O que querem os

    invasores? Se há invasor, há proprietário. A mata é deles (homens armados)?

    Se não, de quem é? E, principalmente, eles derrubaram aquelas árvores e

    agora guardam a madeira ou chegaram depois da derrubada e querem impedir

    novas ações?

    A manchete desta chamada para a série faz-saber a intensidade da

    violência no campo, ao destacar que a cada centena de dias acontece um novo

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    massacre. Mas essa frase só ganha ancoragem definitiva na verbalização

    seguinte, do texto da reportagem, que referencia a “chacina de Eldorado do

    Carajás”, assim como a quantidade de mortos e a qualificação, o lugar-no-

    mundo, dos mortos. Em seguida, o Destinador se identifica no enunciado ao

    grafar em letras negritadas a palavra “estado”, com primeira letra em caixa-

    alta, denotando nome próprio. Essa é a maneira como o jornal se

    autoreferencia na internalidade do discurso que produz. Também é a forma

    com que o Destinador-jornal se apropria do discurso realizado pelo Destinador-

    repórter, ou, fora do enunciado, como a empresa expressa a propriedade sobre

    o trabalho realizado pelo repórter e vendido em troca do salário.

    3.3.3. AS OUTRAS REPORTAGENS

    A mesma base teórica nos leva às conclusões seguintes sobre o

    percurso gerativo de sentido e os planos da expressão e do conteúdo das

    demais reportagens que formam a série.

    Cabe destacar, antes de prosseguir no detalhamento, que a serialidade

    do conteúdo realiza ainda com mais ênfase os dois contratos possíveis que

    Eric