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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP MARISA DA COSTA A produção dos sentidos do humor nos cartuns de Maitena: um estudo linguístico-discursivo MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA SÃO PAULO 2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

MARISA DA COSTA

A produção dos sentidos do humor nos cartuns de Maitena:

um estudo linguístico-discursivo

MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA

SÃO PAULO

2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

MARISA DA COSTA

A produção dos sentidos do humor nos cartuns de Maitena:

um estudo linguístico-discursivo

MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA

Dissertação apresenta à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Língua Portuguesa, na Linha de Pesquisa Texto e Discurso nas modalidades oral e escrita, sob a orientação da Profª Drª Leonor Lopes Fávero.

SÃO PAULO 2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

A produção dos sentidos do humor nos cartuns de Maitena: um estudo linguístico discursivo

Marisa da Costa

ERRATA

São Paulo- 2011

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Página 22, linhas 16 e 17: onde se leem “linguagem não-verbal ” e “linguagens verbal e não-verbal ” leiam-se: “linguagem não verbal ” e “ linguagens verbal e não verbal ”.

Página 34, linha 29: onde se lê “Charolles (1987)”, leia-se “Charolles (1997).

Página 30, linha 12: onde se lê “o uso eficiente da linguagem voltado ”, leia-se “o uso eficiente da linguagem é voltado ”.

Página 35, linha 17: onde se lê “de nosso conhecimento prévio, que não é mais um elemento de coerência como os modelos cognitivos globais”, leia-se: “de nosso conhecimento prévio, que não é mais um elemento de coerência, como, por exemplo, os modelos cognitivos globais”.

Página 46, linha 10: onde se lê “a polifonia pode ocorrer tanto no nível do locutor quanto do enunciado ”, leia-se “a polifonia pode ocorrer tanto no nível do locutor quanto do enunciador ”.

Página 57, linha 13: onde se lê “em que se associam as expressões ‘familiar’ e ‘milionário’, na expressão familionarmente, leia-se “em que se associam as expressões ‘familiar’ e milionário na expressão familionariamente”.

Página 65, linha 12: onde se lê: “Cavalcante” (2003), leia-se: “Cavalcante, (2005)”.

Página 65, linha 24: onde se lê “b) quando o anafórico leva em conta os atributos do referente, leia-se “quando o anafórico não leva em conta os atributos do referente”.

Página 92, linha 13: onde se lê: Embasados no fato de que a subversão não tem valor argumentativo, leia-se “Embasados no fato de que a subversão tem valor argumentativo”.

Página 108, linha, 10, onde se lê: “CAVALCANTI , Mônica Magalhães. Anáfora e dêixis: quando as retas se encontram. In: KOCH, Ingedore Villaça; MORATO, Edwiges Maria; BENTES, Anna Christina (Org.). Referenciação e discurso. São Paulo: Contexto, 2005. p. 125-14.”, leia-se: “CAVALCANTE , Mônica Magalhães. Anáfora e dêixis: quando as retas se encontram. In: KOCH, Ingedore Villaça; MORATO, Edwiges Maria; BENTES, Anna Christina (Org.). Referenciação e discurso. São Paulo: Contexto, 2005. p. 125-14.”

Página 108, linha 5: onde se lê: “BRANDÃO, Helena Hatsue Nagamini. Introdução à análise do discurso 2. ed. rev. Campinas: Unicamp, 2004” , leia-se: “BRANDÃO, Helena Hatsue Nagamini. Introdução à análise do discurso 2. ed. 4ª reimpressão . Campinas: Unicamp, 2009” .

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Banca Examinadora

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AGRADECIMENTOS

A Deus, que me deu a vida, a força, a coragem, a sabedoria e os amigos.

A meus pais (in memoriam), pela formação de parte do que eu sou.

À minha Professora Orientadora, Professora Doutora Leonor Lopes Fávero que, com sua

sabedoria, chamou-me à certeza de meus propósitos, tornando factível este trabalho.

À Professora Doutora Esther Gomes de Oliveira e à Professora Doutora Vanda Maria da

Silva Elias que, com suas valiosas sugestões e observações, ajudaram-me a engrandecer

este trabalho.

A Maria Rodrigues de Oliveira, que veio a meu encontro antes mesmo que eu a ela

recorresse. Uma pessoa a quem defino como competente, profissional, incansável

pesquisadora e, sobretudo, como uma grande amiga.

A Rodrigo Leite da Silva, a quem carinhosamente chamo de amigo acadêmico, pelo

incentivo, pelo apoio, pelas gargalhadas.

A meus alunos, segunda razão pela qual desejo saber mais.

A todos aqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram para a realização deste trabalho.

A mim mesma, pelo meu esforço, pela minha fé, pelo meu desejo de aprender, pela minha

persistência.

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Diante do humor, podemos ter

sempre a reação de falar: – Ué!

não é que é isso mesmo.

Ziraldo

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RESUMO

Esta dissertação situa-se na Linha de Pesquisa Texto e Discurso nas

modalidades oral e escrita do Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua

Portuguesa. Tem, por propósito, investigar os recursos linguístico-discursivos

presentes nos cartuns de Maitena com vistas à produção do sentido do texto e,

por conseguinte, da comicidade nele presente. Como pressuposto, tem-se a

concepção interacional da linguagem, que reconhece o leitor como sujeito ativo e

participante na construção do sentido do texto. Os cartuns são um gênero

discursivo constituído de texto verbal e não verbal, cuja característica principal é a

atemporalidade e a universalidade temática e cujo propósito comunicativo

consiste em provocar uma reflexão social com certo grau de humor. Para atingir

nosso objetivo, apresentamos um panorama de outros gêneros que se utilizam da

linguagem icônico-verbal, com o fito de melhor situar o cartum como nosso objeto

de estudo. As teorias apresentadas por Possenti (2008), Travaglia (1990) e Rosas

(2002) acentuam a importância dos textos humorísticos como fontes de pesquisa

da linguagem. Nosso trabalho contribui, assim, como um reforço à ideia desses

autores na forma com que explora linguística e discursivamente o gênero em

questão.

PALAVRAS-CHAVE: Humor. Cartum. Produção de sentido.

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ABSTRACT

This essay is related to the Research Field Text and Discourse in

spoken and written modalities of Portuguese Language Post-graduate Studies

Program. It has the target to examine the linguistic-discoursive resources which

appear on Maitena‟s cartoons, aiming the production of the meaning of the text

and, therefore, the comicality present in it. As a presupposed there is the

interactional language conception, which recognizes the reader as an active

subject, who participates in building the text sense. Cartoons are a discoursive

genre constituted by verbal and non-verbal text, which main characteristic is

atemporality and universal set of themes, and have the communicative proprosal

of promoting a social reflection with a certain grade of humour. To achieve our

target, we present a broad view of other genres that use the iconic-verbal

language aiming to better situate cartoon as our object of study. The theories

presented by Possenti (2008), Travaglia (1990), and Rosas (2002) stresses the

importance of humouristic text as a source of language research. Our essay

contributes, thus, as a reinforcement to these author‟s ideas in the way it explores

linguistic and discoursively the genre in question.

Keywords: Humour. Cartoon. Production of meaning.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 9

1 TEXTO, DISCURSO E GÊNERO .................................................................... 13

1.1 Texto e discurso ........................................................................................ 13

1.2 Gêneros do discurso: a realização da língua dentro de um campo

específico ................................................................................................... 14

1.3 Domínio discursivo ................................................................................... 18

1.4 Histórias em quadrinhos, tiras, charges e cartuns: diferentes gêneros

dentro de um quadro ................................................................................ 19

1.4.1 Histórias em quadrinhos ................................................................. 19

1.4.2 A linguagem dos quadrinhos ......................................................... 21

1.4.3 A tira .................................................................................................. 26

1.4.4 A charge ............................................................................................ 26

1.4.5 O cartum ........................................................................................... 27

1.5 Tipos de discurso ...................................................................................... 29

2 OS SENTIDOS DO TEXTO: FATORES INTERVENIENTES ..................... 33

2.1 Coerência textual ...................................................................................... 33

2.2 Intertextualidade e interdiscursividade ............................................ 42

2.3 Dialogismo e polifonia ..................................................................... 44

2.4 Contexto ..................................................................................................... 46

2.5 A questão dos implícitos ........................................................................... 49

3 O HUMOR EM DIFERENTES PERSPECTIVAS .......................................... 51

3.1 Contribuições linguísticas ........................................................................ 51

3.1.1 O homem é um animal que ri e faz rir .......................................... 54

3.1.2 Pelos chistes, Freud explica .......................................................... 55

3.1.3 Os scripts no humor ........................................................................ 58

3.2 Recategorização e humor ....................................................................... 61

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3.3 A carnavalização em oposição à seriedade ......................................... 67

3.4 Détournement ............................................................................................ 68

3.5 Ironia em duas vozes ............................................................................... 72

3.6 Humor: suportes de veiculação .............................................................. 75

4 ANÁLISE DO CORPUS .................................................................................... 77

4.1 Coerência Textual ..................................................................................... 78

4.1.1 Focalização ...................................................................................... 78

4.1.2 Inferências ........................................................................................ 86

4.2 Polifonia, interdiscursividade e intertextualidade ................................. 91

4.3 Recategorização ....................................................................................... 97

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 104

REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 107

APÊNDICE A – Cartuns de Maitena utilizados a título de exemplificação na

fundamentação teórica. ......................................................... 113

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INTRODUÇÃO

Uma pesquisa sobre língua exige o esclarecimento sobre qual

concepção de linguagem será adotada. Segundo Travaglia (2003), são três as

possibilidades com que se pode conceber a linguagem: a linguagem como

expressão do pensamento, a linguagem como instrumento de

comunicação e a linguagem como forma ou processo de interação.

A primeira concepção não considera, no ato de comunicação, as

expectativas do receptor em relação ao contexto de situação, não importando,

dessa forma, “quem fala”, “para quem fala”, “para que fala”. A segunda

concepção vê a linguagem como instrumento de comunicação ou como meio

para a comunicação, e a língua é vista como um código comum aos falantes

em que um emissor codifica e envia uma mensagem a um receptor pronto a

decodificá-la. A terceira concepção de linguagem caracteriza-se pelo diálogo

em sentido amplo e vê a linguagem como forma ou processo de interação.

Nessa concepção, os interlocutores interagem como sujeitos que ocupam

lugares sociais e, por isso, falam e ouvem desses lugares.

De acordo com Travaglia (2003), essa última concepção é

representada por todas as correntes de estudo da língua que podem ser

agrupadas sob o rótulo de Linguística da Enunciação, tais como a Linguística

Textual, a Análise da Conversação, a Semântica Argumentativa e todos os

estudos de alguma forma ligados à Pragmática. É, pois, dentro dessa última

concepção de linguagem que integra experiências sociais, culturais e históricas

dos indivíduos que daremos norte a nosso trabalho.

Nas teorias da linguagem como interação, a noção de coerência

apresenta-se como uma questão de sentido. Assim sendo, Koch & Travaglia

(2009) observam que a coerência deve ser vista como um princípio de

interpretabilidade do texto e ligada a sua inteligibilidade, pois é ela que faz com

que um texto faça sentido para os usuários. Sendo assim, dedicaremos um

espaço deste trabalho para reflexões acerca desse assunto com base

essencialmente em estudos da Linguística Textual.

Nossa pesquisa tem, por objetivo geral, estudar aspectos

linguístico-discursivos em textos humorísticos. Os objetivos específicos visam à

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investigação desses recursos na produção do sentido cômico dos cartuns de

Maitena, bem como dos conhecimentos mobilizados pelo leitor para a produção

desse sentido, considerando-se o cartum como um gênero que só pode ser

compreendido na relação estabelecida entre a imagem e o texto. Tal

complexidade exige que o leitor mobilize seus conhecimentos para a leitura do

verbal, do não verbal e da conjugação dessas duas linguagens para a

compreensão do humor. Todavia, devido à existência de outros gêneros que

também se apropriam dessa conjugação, delineamos o nosso objeto de estudo

paralelamente a outros gêneros que a ele se assemelham, como as Histórias

em Quadrinhos, as Tiras e as Charges.

O entendimento da linguagem do cartum a partir da noção de gênero

do discurso é fundamental para a elucidação de seu propósito comunicativo.

Com pouca informação verbal, porém com o aparato da imagem, o cartum,

caracterizado pela atemporalidade e pelo anonimato das personagens, tem por

objetivo apresentar temas de caráter universal que conduzam o leitor a uma

atitude reflexiva, ou seja, sua finalidade é provocar uma observação social com

certa graça, sem necessariamente provocar o riso.

Cientes desses fatos, propomos as seguintes questões: Quais são

os recursos linguístico-discursivos utilizados nos cartuns de Maitena para a

produção do sentido do texto e, por conseguinte, para a produção da

comicidade e que conhecimentos são mobilizados, na busca desse sentido, a

ponto de considerarmos um cartum cômico ou não?

A fim de responder aos questionamentos propostos, adotamos os

seguintes procedimentos metodológicos: i) levantamento bibliográfico; ii)

constituição de um corpus a partir de cartuns selecionados dos livros Mulheres

Superadas 1 e Mulheres Superadas 2, da cartunista argentina Maitena; iii)

análise dos cartuns selecionados com vistas: a) ao levantamento dos recursos

linguístico-discursivos utilizados pela autora para a produção da comicidade; b)

à detecção dos conhecimentos ativados para a construção dos sentidos desses

cartuns pelo interlocutor.

A dissertação está organizada em quatro capítulos. No primeiro

capítulo, apresentamos um panorama dos gêneros que se utilizam da

linguagem icônico-verbal, na tentativa de melhor situar o objeto de nosso

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estudo: o cartum. Nesse mesmo capítulo, embasados na teoria de Bakhtin de

que a ação comunicativa do homem não é uma ação solitária, mas

constitutivamente dialógica, fazemos uma breve abordagem sobre os tipos de

discurso propostos por Orlandi (2009), pois entendemos que a forma como o

discurso se organiza é determinante para a dinâmica das relações entre o eu e

o tu.

O segundo capítulo trata de fatores intervenientes na produção dos

sentidos do texto, tais como: coerência textual, intertextualidade,

interdiscursividade, dialogismo, polifonia e contexto, conceitos que

implicam relações entre o leitor e o texto, entre um texto e outro, entre as vozes

do discurso, entre o texto e o contexto. Aborda, também, a questão dos

implícitos, responsáveis pelas relações entre a informação explícita no texto e

a informação inferível.

Nessas relações, destacamos o tema da coerência textual, que se

relaciona com os outros temas ao estabelecer, para o leitor, um princípio global

de interpretação. Devido a sua amplitude, a coerência subsume os processos

pelos quais os elementos cognitivos são ativados. (Cf. MARCUSCHI, 2008).

Relações de coerência são, sobretudo, relações de sentido.

Dedicamos o terceiro capítulo ao estudo do humor, já que os

produtores desse domínio valem-se do discurso humorístico para atingir seu

propósito comunicativo. Abordando as principais teorias sobre o humor, o

capítulo apresenta a proposta de Possenti a respeito da importância do estudo

de textos humorísticos para os estudos linguísticos. O humor, que em tempos

passados encontrou resistência nos estudos considerados “sérios” no meio

acadêmico, tem, hoje, graças a inúmeros trabalhos de autores renomados

como Travaglia, Possenti e Rosas, ocupado um lugar de destaque para os

estudos linguísticos. O texto de humor torna-se um interessante objeto de

pesquisa na área da Linguística Textual, porque, além de tratar de temas

controversos e operar com estereótipos é, também, “veículo de um discurso

proibido, subterrâneo, não oficial” (POSSENTI, 2008, p. 26).

Embora nosso trabalho não pretenda justificar o que provoca o

humor, acreditamos que os textos que tenham o objetivo de provocá-lo acabam

por oferecer subsídios para uma análise de como ocorre a interação do leitor

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com o texto, na busca de um sentido que leve esse leitor a achar graça ou não

no enunciado.

No quarto capítulo, procedemos à análise do material escolhido. A

opção pelos cartuns deve-se ao fato de eles constituírem interessante fonte de

estudos linguísticos e discursivos, já que objetivam o humor e exploram as

linguagens icônica e verbal. Além disso, ao apresentar uma linguagem que

conjuga o verbal com o não verbal, amplia a visão que se tem em relação aos

fatores que, integrados, dão sentido ao texto.

O corpus é formado por dezoito cartuns de autoria da ilustradora

argentina Maitena Inéz Burundarena, publicados nas coletâneas Mulheres

superadas 1 e Mulheres superadas 2. Salientamos que, além dos dezoito

cartuns mencionados, exemplificamos as teorias que fundamentam nosso

trabalho com outros onze cartuns de Maitena, num total de vinte e nove

ilustrações dessa autora, com o intuito de melhor explorar as possibilidades do

gênero trabalhado.

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1 TEXTO, DISCURSO E GÊNERO

1.1 Texto e discurso

Há uma diversidade de posicionamentos no que diz respeito às

relações entre texto e discurso: alguns autores apontam para os limites

existentes entre eles; outros assimilam as convergências que fazem da sintonia

texto/discurso uma unidade linguístico-social.

Para Koch & Travaglia (2009), discurso diz respeito a “toda atividade

comunicativa de um interlocutor, numa situação de comunicação determinada,

englobando não só o conjunto de enunciados por ele produzidos em tal

situação, como também o evento de sua enunciação”. O texto, por sua vez, é

entendido por esses autores como “unidade linguística concreta, que é tomada

pelos usuários da língua em uma situação comunicativa reconhecível e

reconhecida, independentemente de sua extensão”.

Guimarães (2009) observa que, mesmo que se prestem a

abordagens diferentes, texto e discurso estão implicados. Para a autora, o

vínculo entre as propostas da Linguística Textual e da Análise do Discurso abre

espaço para a captação do sentido do complexo texto/discurso; por isso, ela

propõe a substituição do termo “dicotomia texto/discurso” por “intersecção

texto/discurso”, pois a distinção entre os dois planos deve ser considerada

como mero instrumento operatório para elucidar alguns aspectos essenciais da

composição macroestrutural do texto, não como distinção absoluta de dois

domínios autônomos. A autora defende uma harmonização entre texto e

discurso sob o argumento de que o discurso não é outra coisa senão o mesmo

texto que se discursivisa, na medida em que o seu analista busca as intenções

não explicitadas.

Em concordância com Guimarães (id.), optamos por não fazer uma

partição rigorosa entre as regras de abrangência textual e as de abrangência

discursiva, pois julgamos que a ideia de intersecção entre texto e discurso é

mais adequada ao trabalho que pretendemos, seguindo o viés da análise

linguístico-discursiva.

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1.2 Gêneros do discurso: a realização da língua dentro de um campo

específico

O entendimento do papel dos gêneros discursivos é fundamental

para a assimilação, de forma mais clara, do que ocorre quando utilizamos a

linguagem. Em nosso trabalho, tal entendimento é imprescindível para a

análise que faremos dos cartuns, tendo em vista sua particularidade como

forma discursiva.

Segundo Fiorin (2006), desde a Grécia, o Ocidente preocupava-se

em unir os textos que obedecessem a uma tipologia geral, pelas

especificidades e pelas diferenças encontradas. Para a clássica teoria dos

gêneros, a definição das formas poéticas manifestava-se em termos de

classificação.

Bakhtin (2003) define os gêneros como tipos relativamente estáveis

de enunciados, ou seja, os gêneros apresentam-se marcados por certa

regularidade no tocante ao conteúdo temático, ao estilo e à construção

composicional. O autor afirma que a riqueza e a diversidade dos gêneros

discursivos são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da atividade

humana e porque, em cada campo dessa atividade, é integral o repertório de

gêneros do discurso. Esse repertório cresce e se diferencia à medida que se

desenvolve e se complexifica um determinado campo. O autor informa ainda:

Dispomos de um rico repertório de gêneros de discursos orais e escritos. Em termos práticos, nós os empregamos de forma segura e habilidosa, mas, em termos teóricos, podemos desconhecer inteiramente a sua existência. [...] Nós falamos por gêneros diversos sem suspeitar de sua existência. (BAKHTIN, 2003, p. 282).

Por representarem formas específicas de uso da língua, os gêneros

do discurso, conforme postulado por Bakhtin, destacam a concepção

sociointeracionista de linguagem.

De acordo com Fiorin (id.), Bakhtin interessa-se menos pelas

propriedades formais dos gêneros que pela maneira como elas se constituem;

assim, o conteúdo temático relaciona-se ao domínio de sentido de que se

ocupa o gênero e não ao assunto do texto. A construção composicional, por

sua vez, está ligada ao modo de estruturação do texto, como as cartas, por

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exemplo, que trazem em seu formato, indicação do local e da data, do nome de

quem escreve e da pessoa para quem se escreve. Quanto ao estilo, ele é

entendido por Fiorin (2006) como uma seleção de meios lexicais, fraseológicos

e gramaticais utilizados pelo produtor do texto – como efeito de sua

individualidade –, em função da imagem do interlocutor e como presume sua

compreensão do enunciado.

Para esse autor, a pedagogia tem ido de encontro às ideias de

Bakhtin ao fazer uma interpretação dos gêneros numa perspectiva normativa,

como modelos a que o texto deve obedecer.

Marcuschi (2008) refere-se aos gêneros como “gêneros textuais”,

explicando tal colocação em nota de rodapé:

Não vamos discutir aqui se é mais pertinente a expressão “gênero textual” ou a expressão “gênero discursivo” ou “gênero do discurso”. Vamos adotar a posição de que todas essas expressões podem ser usadas intercambiavelmente, salvo naqueles momentos em que se pretende, de modo explícito e claro, identificar algum fenômeno específico. (MARCUSCHI, 2008, p. 154)

Segundo esse autor, os gêneros têm um propósito que os determina

e lhes dá uma esfera de circulação. Marcuschi situa o gênero dentro de um

evento de comunicação, constituindo-se em um conjunto de ações linguísticas

recorrentes em situações típicas, como um jogo de futebol ou um congresso

acadêmico. Para ele, a escolha que se faz por um ou por outro gênero, tem em

vista as esferas da necessidade de atuação, o conjunto de participantes e a

intenção do locutor, considerando, em primeira instância, a natureza do

enunciado. Ao distinguir tipos de texto (narração, argumentação, exposição,

descrição, injunção) de gêneros textuais, o autor adverte que tal distinção não

deve acarretar uma visão dicotômica, pois estes são dois aspectos

constitutivos do funcionamento da língua em situações comunicativas da vida

diária.

A função elementar dos gêneros, na vida social, é de organizar,

rotinizar e condicionar soluções para problemas comunicativos recorrentes,

afirma Bazerman (2005), informando também que sociedades diferentes não

têm o mesmo repertório de gêneros comunicativos e que os gêneros

comunicativos de uma época podem diluir-se em processos comunicativos

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mais “espontâneos”, enquanto outros gêneros, até então pouco definidos,

podem se congelar em novos gêneros.

Para esse autor, ao criar formas tipificadas ou gêneros, também

somos levados a tipificar as situações nas quais nos encontramos. Quando nos

deparamos com documentos, percebemos certas características que parecem

sinalizar pertencerem a um gênero ou a outro e procuram realizar certo tipo de

interação conosco. Para caracterizar a forma com que os gêneros se

configuram e se enquadram em organizações, papeis e atividades mais

amplas, o autor propõe o conceito de conjunto de gênero como a coleção de

tipos de textos que uma pessoa, num determinado papel, tende a produzir, a

exemplo de um engenheiro civil que precisa produzir, entre os vários textos

exigidos por sua profissão, relatórios, avaliações de segurança, propostas e

assim por diante. Portanto, de acordo com esse conjunto, é possível identificar

o tipo de trabalho com que se ocupa uma pessoa.

Salientamos, conforme Bazerman (2005), que “novos” gêneros

textuais não são inovações absolutas sem uma ancoragem em gêneros já

existentes. Podemos, dessa forma, depreender que grande parte dos gêneros

tem origem em outros gêneros. Marcuschi, na apresentação à obra de

Bazerman (id.), observa que os gêneros nunca surgem num grau zero, mas

num veio histórico, cultural e interativo dentro de instituições e atividades

preexistentes; assim, o gênero escrito referente às leis e às ordens teria

advindo dos comandos orais das autoridades, e o gênero “carta”, com sua

comunicação direta entre dois indivíduos, pode ter servido como forma

transitória para outros gêneros. Para Bazerman (id.), de usos formais e oficiais,

as cartas evoluíram para incluir expressões pessoais. Conforme o autor, há

marcas do gênero “carta” em documentos como letras de câmbio, cartas de

crédito, livros do Novo Testamento, encíclicas papais e romances, por

exemplo.

Para Marcuschi (2003), o suporte ou o ambiente em que os textos

aparecem podem interferir no gênero do texto, pois há casos em que o próprio

suporte ou o ambiente em que os textos aparecem determinam o gênero

presente. A epígrafe, por exemplo, constituída de múltiplos gêneros como

poemas, provérbios ou máximas; torna-se efetivamente “epígrafe” quando

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posta em determinado lugar de um livro ou de um trabalho acadêmico.

Portanto, é o gênero que determina a relação que o sujeito estabelece com o

texto.

Ressaltamos ainda que um gênero pode assumir a forma de outro,

acarretando o fenômeno da hibridização ou intertextualidade intergêneros, ou

seja, um gênero qualquer, ao ser utilizado em um plano de composição

diferente do esperado para o gênero, será interpretado no propósito

comunicativo do plano atual de apresentação. Usando o exemplo de

Koch & Elias (2006), o gênero “receita”, ao ser apresentado na moldura de uma

tira, terá o propósito da tira e não o da receita, imperando o predomínio da

função sobre a forma (MARCUSCHI, 2008). Assim, o leitor saberá que o

encaminhamento de sua leitura deve ser feito no propósito comunicativo da

tira, não levando a sério a receita apresentada, por entender que a tira tem por

objetivo a crítica por meio do humor.

Por fim, quando entendemos o funcionamento da língua no interior

de um gênero discursivo, podemos observar, num melhor ângulo, as várias

possibilidades do dizer que a língua oferece, nos diferentes tipos de texto que

circulam no mundo social. O processo interativo é determinante para que as

formas comunicativas componham um tipo de gênero e, quanto maior o

domínio das formas discursivas, maior será a liberdade de escolha para seu

uso. Pessoas com proficiência na língua podem sentir-se impotentes dada à

inabilidade de domínio de formas de gênero em determinadas esferas da

comunicação, ou seja, a vontade discursiva do falante realiza-se,

primeiramente, pela opção por certo gênero do discurso, pois são os gêneros

que organizam os nossos discursos, não sendo possível, pois, ocorrer

comunicação sem a concorrência dos gêneros.

Segundo Bazerman (2005), cada pessoa que escreve

competentemente para mais de uma área reconhece a necessidade de

escrever diferentemente para diferentes áreas, com diferentes estados

mentais, com diferentes motivos sociais, com diferentes ferramentas simbólicas

e com a consciência dos diferentes interesses e conhecimentos das

audiências.

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O estudo por meio de gêneros contribui para a compreensão da

construção dos textos, considerando a natureza social da linguagem, princípio

fundamental da teoria de Bakhtin.

1.3 Domínio discursivo

Os domínios discursivos, entendidos como esferas da atividade

humana, operam como enquadres globais de superordenação comunicativa,

subordinando práticas sociodiscursivas orais e escritas que dão origem aos

gêneros. Dessa forma, na modalidade escrita, os gêneros cartum, editorial,

notícia e reportagem, dentre outros, pertencem ao domínio discursivo

jornalístico. Nas palavras de Marcuschi:

Entendemos como domínio discursivo uma esfera da vida social ou institucional (religiosa, jornalística, pedagógica, política, industrial, militar, familiar, lúdica etc. na qual se dão práticas que organizam formas de comunicação e respectivas estratégias de compreensão). Assim, os domínios discursivos produzem modelos de ação comunicativa que se estabilizam e se transmitem de geração para geração com propósitos e efeitos definidos e claros. (MARCUSCHI, 2008, p. 194).

Para o autor, a noção de domínio discursivo não abrange um gênero

em particular, mas dá origem a vários deles, constituindo práticas discursivas

dentro das quais podemos identificar um conjunto de gêneros que às vezes lhe

são próprios ou específicos como práticas ou rotinas comunicativas

institucionalizadas e instauradoras de relações de poder.

A noção de domínio discursivo humorístico, para Silva (2007),

corresponde a um campo de interação definido por um conjunto de práticas

voltadas para um efeito risível. Segundo o autor, se no domínio discursivo

religioso prevalece a evocação do sagrado e no discurso acadêmico a do rigor

formal, no humorístico, a prevalência é da ambiguidade e da subversão.

Feita essa breve exposição sobre o conceito de gêneros do discurso

e sobre a noção de domínio discursivo, ressaltada sua importância para a

compreensão da prática social da linguagem, prosseguiremos nosso trabalho

com um panorama sobre os gêneros Histórias em Quadrinhos, Tiras, Charges

e Cartuns.

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1.4 Histórias em quadrinhos, tiras, charges e cartuns: diferentes gêneros

dentro de um quadro

Os quatro gêneros acima, muito utilizados como objetos de

avaliação em concursos públicos, vestibulares e outras provas de seleção,

diversas vezes são apresentados sem distinção, devido a certas afinidades que

guardam entre si, no plano da expressão. Tais afinidades devem-se à

conjugação necessária da linguagem no nível textual e paratextual (não -

verbal) para sua interpretação.

É importante considerar, contudo, que os objetivos das histórias em

quadrinhos diferem daqueles dos cartuns, das tiras e das charges. Julgamos,

pois, necessário esclarecer as diferenças existentes, já que pertencem a

gêneros distintos apesar de se utilizarem da mesma linguagem e de formatos

semelhantes. Dessa forma, discorreremos sobre os quatro gêneros em pauta,

com ênfase para os cartuns, nosso objeto de análise.

O jornal Folha online, nas normas de seu 4º concurso de ilustração,

publicadas na edição de 15 de abril de 2010, assim resume as características

dos cartuns, das charges e dos quadrinhos:

o Cartum: Desenho de humor, retratando qualquer fato ou situação. Independe do contexto histórico ou temporal.

o Charge: Piada gráfica que faz referência a algum assunto recente, em especial de natureza política.

o Quadrinho: História que pode ser dramática ou humorística, narrada em forma de quadrinhos sequenciais.

1

O gênero tira não foi definido nas normas do concurso acima, talvez

pelo fato de ser considerado, pela empresa jornalística, como pertencente ao

gênero das Histórias em Quadrinhos já que, como estas, sua narração

efetiva-se na forma de quadrinhos sequenciais.

1.4.1 Histórias em quadrinhos

As histórias em quadrinhos (HQs) constituem um esquema narrativo

composto pelos códigos verbal e visual e o entendimento da maioria das 1Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/concurso_ilustracao-regulamento.shtml>.

Acessado em: 28/08/2010.

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mensagens por elas transmitidas se dá pela interação entre tais códigos. Com

linguagem icônica ou icônico-verbal, sua organização constrói-se pela

sequencialidade dos quadros, marca fundamental desse gênero. Seus

elementos típicos são a moldura em forma de quadros, os desenhos e os

balões.

Quadrinhos, segundo Ramos (2010), seriam “hipergêneros”, ou seja,

um grande rótulo que une características semelhantes usadas em maior ou

menor grau por uma diversidade de gêneros, como as tiras, os cartuns e as

charges.

Diferentes registros icônicos da história do mundo têm

características que se assemelham às das histórias em quadrinhos, como os

desenhos dos homens das cavernas e murais fenícios, entre outros, conforme

Passarelli (2004). Ainda segundo a autora, o gibi Tico-Tico, de Angelo Agostine

– a quem Carlos Drummond de Andrade dedicou grandes elogios –, é

considerado o primeiro representante de expressão, no Brasil, das HQs.

Segundo Vergueiro (2009), a evidente popularidade do gênero

história em quadrinhos no mundo acabou por provocar, principalmente nos

educadores, um olhar crítico e desconfiado sobre a influência desse tipo de

leitura nos jovens e nos adolescentes, seu público alvo. Por esse motivo, as

HQs encontraram restrições para sua entrada em sala de aula.

As restrições apontadas por Vergueiro (id.) acabaram,

paulatinamente, por extinguir-se e, hoje, é muito comum a inclusão desse

gênero em manuais didáticos, tanto no âmbito escolar quanto em outras áreas

– governamentais ou privadas – com finalidades educativas. Como exemplo,

podemos citar a reprodução de autores clássicos, como o brasileiro Machado

de Assis que, em 2002, teve seu conto Pai contra mãe lançado em forma de

quadrinhos, e o austríaco Franz Kafka, que teve sua obra A metamorfose

adaptada para a forma icônico-verbal por Peter Kuper. Isso não só confirma o

fim das restrições ao gênero “quadrinhos”, como reforça sua utilização no

cenário educacional.

Temas religiosos têm sido objeto de trabalho por parte dos

profissionais da comunicação icônico-verbal, haja vista a narrativa da Via

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Sacra2, representada iconicamente nas igrejas católicas, que pode ser

considerada uma espécie de história contada em quadrinhos. A propósito, o

americano Robert Crumb lançou, em 2009, uma versão quadrinizada do Livro

do Gênesis. No Brasil, Maurício de Souza fez uma parceria com a editora

Ave-Maria e o padre Luís Erlin para uma versão infantil da Bíblia, intitulada

Minha primeira Bíblia com a Turma da Mônica.

Atualmente, as histórias em quadrinhos ganham espaço na internet

com o surgimento das “HQtrônicas” (histórias em quadrinhos eletrônicas),

criadas para leitura na tela do computador. Segundo Franco (2008), a partir de

meados da década de 1980, muitos artistas dessas histórias passaram a fazer

uso do computador como instrumento para suas criações visando a um

aperfeiçoamento dos trabalhos a serem publicados na imprensa. Aos poucos,

surgem os primeiros trabalhos feitos em CD-ROM, incluindo animação e uso do

som. Com a popularização da internet, os quadrinistas tiveram a oportunidade

de veicular seus trabalhos on line. Para o autor (o ambiente virtual oferece a

possibilidade de uma diagramação dinâmica em que se pode explorar, além do

som, a narrativa multilinear, a interatividade e a tridimensionalidade dos

quadrinhos, fazendo romper o paradigma tradicional imposto pelo papel.

“Mangá telemático”, “HQinterativa”, “Quadrinhos on line” ou “HQnet” são outras

nomenclaturas propostas para Histórias em Quadrinhos veiculadas por meio do

computador. Para o autor, no entanto, o termo “HQtrônicas”, formado pela

contração da abreviação “HQ” com o termo “eletrônicas” é o mais adequado

por considerar que a veiculação ocorre não apenas por meio da internet, mas

também por CD-ROMs.

1.4.2 A linguagem dos quadrinhos

As linguagens organizam-se em sistemas aceitos e reconhecidos

pela sociedade que dela se utiliza. De acordo com Aguiar (2004), se é verdade

que a linguagem verbal desempenhou papel de suma importância na História

2Via Sacra é a narrativa icônica do percurso de Jesus desde o pretório de Pilatos até o sacrifício no monte

Calvário.

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da Civilização, não é menos verdade que outras linguagens têm sido

enfatizadas também com relevância nos últimos tempos.

A comunicação ocorre por intermédio de algum tipo de linguagem

que o indivíduo utiliza por meio de códigos verbais e/ou não-verbais. Orlandi

(2009) chama a atenção, no entanto, para o fato de que a escola privilegia a

linguagem verbal em detrimento de outras linguagens, não levando em

consideração a convivência do aluno com a linguagem em suas diferentes

formas. Para a autora, o processo de compreensão é construído na articulação

entre as várias linguagens que constituem o universo simbólico.

A linguagem verbal tem, como unidade, a palavra. Organiza-se com

base na linguagem articulada, formada pela língua. A linguagem não verbal –

muito anterior na história da humanidade à linguagem verbal – emprega outros

tipos de unidades que não a palavra. Assim, as cores verde, vermelha e

amarela em um semáforo, os símbolos de identificação de reserva de vagas a

portadores de necessidades especiais, bem como o apito do guarda de

trânsito, são apenas alguns exemplos de linguagem não- verbal.

A combinação de unidades das linguagens verbal e não-verbal

constitui a linguagem mista, a exemplo das histórias em quadrinhos, das tiras,

das charges e dos cartuns, que abordaremos a seguir, para cuja produção de

sentido concorrem os textos escritos e as figuras, a exemplo do cartum a

seguir:

(Superadas 1, p. 41)

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O exemplo de linguagem mista apresentado mostra que a

compreensão do cartum exige também a compreensão da relação do texto

com a imagem. Nesta apresentação, há uma crítica feita às mulheres que,

cedendo aos apelos da publicidade para parecerem sempre jovens,

submetem-se a procedimentos estéticos que, por vezes, acabam por

transfigurar a expressão facial. A mensagem do cartum está, pois, na interação

entre a fala da filha e a expressão caricata da mãe.

Segundo Vergueiro (2009), os quadrinhos são organizados no

sentido da leitura do texto escrito: do alto para baixo e da esquerda para a

direita. Em alguns países asiáticos, no entanto, essa representação ocorre da

direita para a esquerda, acompanhando a leitura da escrita japonesa e chinesa.

Ainda de acordo com esse autor, à linguagem icônica estão relacionadas

questões de enquadramento, planos, ângulos de visão, formato dos

quadrinhos, montagem de tiras e páginas, gesticulação e criação de

personagens, bem como a utilização de figuras cinéticas, ideogramas e

metáforas visuais.

São informativas também as linhas que demarcam o contorno das

imagens na formação dos quadrinhos. A tira a seguir, do cartunista Glauco,

reproduzida em Vergueiro (id.), omite essa demarcação sem, no entanto,

dificultar a compreensã7o do leitor que, de maneira fácil, pode entender a

mensagem pela demarcação imaginária dos quadrinhos.

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(Vergueiro, 2009, p. 39)

As expressões corporais e faciais das personagens são importantes

para sua caracterização e, consequentemente, para a compreensão da

mensagem. Nessa tira, a expressão de contentamento do filho ao anunciar ao

pai que passara no vestibular “Papai! Passei! Passei!” dá lugar à expressão

de sua frustração na evolução da narrativa. A expressão corporal do pai, ao

fingir indiferença ao fato, aliada a sua fala “Não fez mais que obrigação” é

modificada no quadro seguinte pela expressão de satisfação em relação à

aprovação do filho.

De acordo com Vergueiro (2009), as expressões faciais evidenciam

os estados de ânimo dos personagens por códigos já convencionados. As

histórias em quadrinhos firmam-se, normalmente, em estereótipos para fixação

das características de um personagem junto ao público. Para o autor, algumas

representações apresentam forte carga ideológica e reproduzem preconceitos,

conforme apresenta:

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E não se trata apenas de apresentar o herói como uma figura agradável ao olhar e o malfeitor com traços semiescos, mas às vezes até sub-repticiamente, salientar traços ou situações que fortalecem a visão estereotipada das raças, classes, grupos étnicos, profissões, etc. (VERGUEIRO, 2009, p. 53).

(Superadas 2, p. 86)

Percebemos, pela linguagem não verbal utilizada nesse cartum, a

imagem estereotipada da mulher loira relacionada à ideia de independência

sexual. A linguagem verbal do enunciado reforça o estigma da “loura burra” na

revelação da personagem de que sua filosofia está ligada ao ato de pensar.

Quanto aos balões, eles são um recurso representativo das falas

dos personagens e mostram, também, a ordem dessas falas, ou seja, balões

colocados na parte superior esquerda do quadrinho, por exemplo, devem ser

lidos antes daqueles colocados à direita e abaixo.

Ainda segundo Vergueiro (2009), os balões devem também

acompanhar as convenções dos diálogos: o balão que é lido primeiro no

quadrinho deve ser também aquele que representa a fala inicial em uma

conversa. As linhas que delimitam os balões também são convencionadas:

vozes baixas são transmitidas por linhas tracejadas; em formato de nuvem,

indicam pensamento; com traçado semelhante ao de uma descarga elétrica,

indicam que o som vem de aparelhos eletrônicos e também representam gritos;

com múltiplos rabichos nos balões, apresentam vários personagens.

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O formato e a cor da letra utilizados também têm significado,

podendo representar o tom da fala. A cor de letra tradicional é a preta, a qual

indica neutralidade; portanto, qualquer cor de letra que fuja a esse padrão

levará a um resultado expressivo diferente. Letras com um tamanho menor

podem indicar tonalidade baixa; o negrito, por sua vez, pode sugerir um tom

mais alto ou uma fala mais emocional. O tom mais forte serve também para

dar ênfase a alguma palavra ou expressão, não indicando, necessariamente,

volume mais elevado.

Em relação à legenda, são elas representativas da voz onisciente do

narrador e servem para situar o leitor no tempo e no espaço em que ocorrem

as histórias. Por fim, também as onomatopeias são signos convencionais

utilizados para a representação verbal dos sons.

1.4.3 A tira

De acordo com Mendonça (2002), tira é um subtipo de HQ. Tem até

quatro quadrinhos e pode ser sequencial ou fechada, com um único episódio.

Com narrativa curta, a tira encontra espaço para publicação diária nos jornais.

Em seus estudos, Silva (2007) afirma que o aspecto dominante na linguagem

das tiras de humor não é o processo narrativo – típico dos gêneros de

aventura –, pois, em grande parte das tiras de humor, o objetivo não é o de

narrar uma história, mas sim de estabelecer uma visão crítica sobre um fato.

Na década de 1970, as tiras cômico-humorísticas passam a ser

publicadas com frequência nos jornais voltados para o público adulto. Como

autores de tiras conhecidos, podemos citar o argentino Quino e os brasileiros

Glauco e Laerte.

1.4.4 A charge

O termo charge data de 1680 e, conforme o Dicionário Houaiss da

Língua Portuguesa, significa: “o que exagera o caráter de alguém ou de algo

para torná-lo ridículo, representação exagerada e burlesca, caricatura”.

Apresentada normalmente em um único painel é, geralmente, veiculada em

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jornais ou revistas e caracteriza-se pela construção do humor por meio da

apresentação de uma imagem caricatural. Tem, como foco, assuntos da

atualidade com temas específicos e retrata personalidades conhecidas. À

semelhança dos outros gêneros em quadrinhos, para cuja interpretação entra

em cena o entendimento dos códigos verbais e não-verbais, a charge

distingue-se desses por suas características específicas, as quais serão

apresentadas a seguir.

Segundo Teixeira (2001), a charge elege a política como objeto

privilegiado e a eficácia de seu discurso está ligada à sociedade na qual está

inserida. Outro caráter da charge é o fato de tratar de assunto ocorrido em

época definida, dentro de determinado contexto cultural, econômico e social

específico, dependendo, pois, do conhecimento de mundo e partilhado para

seu entendimento. Fora desse contexto, ela provavelmente perderá sua força

comunicativa, sendo, portanto, efêmera e localizada.

As charges relativas às matérias de primeira página assemelham-se,

muitas vezes, à voz da editoria do jornal, constituindo-se numa espécie de

editorial gráfico em que os chargistas mostram-se comprometidos com o

conteúdo do periódico (Cf. POSSENTI, 2008). Para Ramos (2010), a charge é

um texto de humor que aborda algum fato ou tema ligado ao noticiário

estabelecendo, com a notícia, uma relação intertextual.

1.4.5 O cartum

O humorista Chico Caruso apresenta o cartum como uma máquina

fotográfica que ajusta seu foco a uma realidade genérica. O termo cartoon

deve-se ao suporte em que eram confeccionados os cartuns: papel cartão.

Significava, a princípio, desenho animado ou caricatura. A acepção atual de

cartoon surgiu em 1841 nas páginas da revista inglesa Punch, a mais antiga

revista de humor. Em algumas línguas, a palavra cartoon não tem equivalente.

Na França, na Alemanha e na Itália, por exemplo, utiliza-se a própria palavra

cartoon, mantendo a grafia inglesa. No Brasil, o cartunista Ziraldo lançou o

neologismo “cartum” na revista Pererê, em 1964.

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Diferente da charge, em que os personagens são identificáveis, os

personagens do cartum são anônimos. A principal marca de distinção entre a

charge e o cartum, no entanto, reside no fato de este não estar vinculado a um

fato do noticiário. Duas características fundamentais desse gênero são a

atemporalidade e a universalidade temática. Essa última caracterização, por si

só, justifica o fato de nosso objeto de análise, apesar de serem cartuns de

autora argentina, poderem ser entendidos, sem nenhum prejuízo, por leitores

brasileiros.

A título de exemplo da atemporalidade do cartum, apresentamos um

trabalho do cartunista Orlando, publicado na Folha de S. Paulo, em 19/05/1992,

e reproduzido em Possenti (2008)3. O cartum em questão foi veiculado há

dezoito anos, mas é passível de compreensão nos dias atuais.

(Possenti, 2008, p. 122)

O tema desse cartum é o desemprego. Ele explora o conhecimento

de mundo de que as crianças geralmente colocam seus pais em posição de

superioridade em relação aos pais de seus colegas. No cartum em tela, “ser

mais” é o que importa, mesmo que seja decorrente de um fato negativo: o

desemprego, tema de caráter universal e atemporal.

Na sequência de nosso trabalho, julgamos importante analisar os

tipos de discurso estudados por Orlandi (2009) – discurso lúdico, discurso

3Possenti não faz distinção entre charge e cartum em seu trabalho.

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polêmico e discurso autoritário –, a fim de focalizarmos melhor o objeto de

nosso estudo.

1.5 Tipos de discurso

A noção de tipologia atende a uma necessidade metodológica para o

estudo do discurso, conforme Orlandi (id.). Existem, entretanto, tipologias de

diferentes ordens para apreensão do discurso, de acordo com a orientação

comunicacional. Segundo Maingueneau (2008), categorias como “discurso

didático” e “discurso prescritivo” indicam aquilo que se faz com o enunciado.

Essas categorias, para o autor, apresentam-se como classificações por

funções da linguagem ou como funções sociais, oscilando entre categorias

abstratas (polêmico, informativo, prescritivo) e as que dividem a sociedade em

classes ou setores de atividades como o “discurso pedagógico”, o “discurso

político”, “o discurso machista”, entre outros.

Orlandi (2009) propõe que se distingam três tipos de discursos: o

discurso autoritário, o discurso polêmico e o discurso lúdico. Os critérios

adotados para essa distinção derivam da interação e da polissemia. Da

interação resulta o critério que leva em conta a forma como se relacionam os

interlocutores; da polissemia resulta a forma de relação da disputa com o

objeto do discurso.

No discurso autoritário, não há reversibilidade de papéis entre os

interlocutores, pois há um elemento exclusivo que domina a palavra, na

imposição de um só sentido e na contenção de outras vozes discursivas. O

discurso polêmico, por sua vez, caracteriza-se pela dinâmica na troca de

papéis, isto é, pela reversibilidade que ocorre sob certas condições. Nesse tipo

de discurso, o locutor leva em consideração o interlocutor sob certa

perspectiva, buscando simetria na relação de disputa pela palavra. No discurso

lúdico, a polifonia é aberta e a reversibilidade é total.

Como exemplo de discurso autoritário, podemos citar o discurso

religioso, cuja finalidade é persuadir o auditório a respeito de valores que

ultrapassam os limites do conhecimento humano. Nesse discurso, o locutor fala

em nome de uma divindade e aqueles que têm fé não questionam sua palavra.

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Esse discurso é assimétrico e autoritário por natureza, pois o locutor coloca-se

numa posição superior à do auditório, uma vez que detém a palavra de Deus –

que é inquestionável – e a transmite. Podemos entender, dessa forma, que o

discurso autoritário apresenta-se num enfoque monologal de negação da

existência de outra consciência.

O discurso polêmico pode ser ilustrado pelo discurso político, no

qual cada participante procura dar uma direção a seu discurso sob

perspectivas particularizantes e com a verdade disputada pelos interlocutores.

O discurso lúdico, por sua vez, caracteriza-se pela utilização da

linguagem pelo prazer, sendo possível o non sense. Dessa forma, não importa

a simetria ou a assimetria entre a posição dos interlocutores, mas a troca que

provoca o prazer do jogo. É a forma mais aberta e democrática do discurso. Tal

fator faz com que esse tipo de discurso surja como contraponto em relação aos

outros dois, já que, em relação às práticas sociais em geral, o uso eficiente da

linguagem voltado para fins mais específicos, a exemplo dos discursos

autoritário e polêmico.

Conforme Orlandi (2009), diferente do discurso religioso em que a

voz de Deus se fala na voz do padre e do discurso político, em que a voz do

povo se fala na do político, o discurso cômico não necessita de um estatuto

jurídico de seu locutor. Qualquer voz, independente de seu status, pode fazer

uso dele. É, pois, na possibilidade do confronto de várias vozes (polifonia) que

está sua principal característica. A autora observa, contudo, que não há tipos

puros de discurso, tampouco marcas exclusivas de um só discurso. A tipologia

estabelecida por ela funciona pelo jogo da dominância de um sentido com os

outros de forma que, no discurso polêmico, disputa-se um sentido; no discurso

autoritário, absolutiza-se o sentido; no discurso lúdico, o sentido ocorre por

uma variação de ecos. Para a autora, esses discursos são modos de ação ou

modos de interação, sendo preciso primeiramente fazer a análise do

funcionamento discursivo antes de avaliações categóricas a esse respeito.

A título de exemplificação de como o funcionamento discursivo é

determinante para o estabelecimento de uma tipologia, selecionamos a seguir

dois cartuns de Maitena.

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(Superadas 2, p. 65)

A constatação, por parte da primeira interlocutora, de que esposas e

amantes têm inveja uma da outra pela relação que vivenciam com o mesmo

homem, instaura o cômico no cartum, já que rompe com a convenção de que

ser a esposa é estar em papel privilegiado. Dentro da convenção social,

quando duas pessoas se casam é por que têm o desejo de estarem sempre

juntas. Assim, o desejo amante de estar integralmente ao lado do homem

contrasta com o desejo da esposa em “ter de estar” com ele o tempo todo.

O cartum apresenta predominância do discurso lúdico,

considerando-se a interação entre as interlocutoras. No entanto, ao configurar

o posicionamento de outro ponto de vista pela fala da personagem, a cartunista

instaura um discurso polêmico com as vozes da sociedade.

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(Superadas 2, p. 10)

O cartum apresenta duas mulheres maduras interagindo sobre

formas de esconder um “defeito”: a velhice. O imaginário social é de que

parecer velha é algo que deve ser evitado. O que provoca o cômico, nesse

exemplo, é a apresentação, de forma acentuada, que a segunda interlocutora

dá ao fato, enfatizando a impossibilidade de não se ver velha, voltando seu

discurso para um sentido único. A dimensão dada ao fato é ainda ampliada na

observância de que esta se maquila sem fazer uso de um espelho.

A situação de linguagem apresentada é, para nós, nesse cartum,

classificada como uma combinação do discurso lúdico com o autoritário, pela

forma com que a segunda interlocutora absolutiza o discurso. Num “eu”

impositivo, a interlocutora em questão modaliza seu discurso utilizando a forma

do infinitivo do verbo “ver” com valor imperativo.

Na apresentação ilustrativa desses dois cartuns, percebemos que

as categorias que tipificam o discurso devem ser consideradas não como

autônomas, mas como de dominância, de forma que o polêmico pode conter o

lúdico, ou o autoritário o polêmico etc.

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2 OS SENTIDOS DO TEXTO: FATORES INTERVENIENTES

2.1 Coerência textual

Fávero (2003) pontua que muitos autores não distinguem coesão de

coerência, pois alguns as estudam sem rotulá-las e outros, como Beaugrande e

Dressler (1981), consideram-nas em níveis diferentes de análise. A coesão

manifesta-se, no nível microtextual, enquanto a coerência manifesta-se, em

grande parte, em nível macrotextual, afirma a autora, a qual também informa

que a coesão é uma relação linear entre as sentenças, não sendo necessária

nem suficiente para a coerência, já que pode haver textos destituídos de

coesão, cuja textualidade se dá no nível da coerência.

Coesão e coerência são dois fenômenos distintos, conforme Koch

(2003), porém, a autora adverte que existem zonas de imbricação entre as

duas, nas quais é difícil ou impossível o estabelecimento de uma separação

nítida entre esses dois fenômenos. Para Koch & Travaglia (2009), os conceitos

de coesão e de coerência formam uma espécie de par opositivo/distintivo, pois

enquanto a coesão é explicitamente revelada por meio de marcas linguísticas e

apresenta um caráter linear – já que se manifesta na organização sequencial

do texto –, a coerência é o resultado de processos cognitivos operantes entre

os interlocutores. Koch & Elias (2006), por seu turno, afirmam que as marcas

de coesão encontram-se no texto, enquanto a coerência se constrói a partir

dele, em dada situação comunicativa, com base em uma série de fatores de

ordem semântica, cognitiva, pragmática e interacional.

Tendo em vista as características de nossa pesquisa, não nos

alongaremos nas diferenças existentes entre coesão e coerência passando,

então, ao estudo individualizado da coerência.

O termo coerência pode ser utilizado em sentido geral para denotar

que alguma forma de relação de sentido foi estabelecida pelo usuário. De

acordo com Koch & Travaglia (2009), a coerência pode ser local (proveniente

do bom uso dos elementos da língua, em sequências menores, para expressar

sentidos que possibilitem realizar uma intenção comunicativa) ou global

(relacionada ao texto em sua totalidade).

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Os autores abordam quatro possibilidades de coerência

mencionadas por van Dijk e Kintsch (1983), que são: a) coerência semântica

(relação entre significados dos elementos das frases em sequência em um

texto ou entre os elementos do texto como um todo); b) coerência sintática

(meios sintáticos utilizados para expressar a coerência semântica); c)

coerência estilística (uso de elementos linguísticos pertencentes ou

constitutivos do mesmo estilo ou registro linguístico); d) coerência pragmática

(relaciona-se com o texto visto como uma sequência de atos de fala).

Marcuschi (2007), postulando que coerência é um processo de

produção de sentido, observa que se deve dar atenção especial às noções de

referência, de significado, de cognição e de efeito de sentido envolvidas no

processo de produção da coerência. Para o autor, mais que um princípio de

materialidade textual, a coerência afigura-se como um critério de

processamento textual, seja na fala seja na escrita. O autor propõe a distinção

de ao menos três noções de coerência: a noção estrutural, que concebe a

coerência como uma propriedade do texto; a noção inferencial, perspectiva

em que a coerência ocorre mediante processos cognitivos lógicos manifestos

em atividades inferenciais; e a noção interacional, que toma como base, para

a produção de sentidos, os processos colaborativos no uso efetivo da língua.

Observamos, pelo exposto, que a construção da coerência decorre

de fatores linguísticos, discursivos, cognitivos, culturais e interacionais.

Partindo do princípio de que há textos coerentes, perguntaríamos: “Há, então,

textos incoerentes?” Diversos autores tratam desse tema, dentre eles

Beaugrande e Dressler (1981), para os quais o texto coerente é aquele que faz

sentido para seus usuários, enquanto o texto incoerente é aquele no qual o

leitor/ouvinte não consegue descobrir nenhuma continuidade, comumente

devido às discrepâncias entre a configuração de conceitos, às relações

expressas e ao conhecimento de mundo dos receptores.

Charolles (1987) afirma que as sequências de frases não são

coerentes ou incoerentes em si, pois tudo depende dos interlocutores e da

situação comunicativa. Para esse autor, não há texto propriamente incoerente,

pois o receptor do texto age como se ele fosse sempre coerente e faz o

possível para encontrar um contexto para lhe atribuir um sentido.

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Fávero (2003) resume a discussão sobre coerência e incoerência

textuais da seguinte forma:

O texto contém mais do que o sentido das expressões na superfície textual, pois deve incorporar conhecimentos e experiência cotidiana, atitudes e intenções, isto é, fatores não linguísticos. Deste modo, um texto não é em si coerente ou incoerente. Ele o é para um leitor/alocutário numa determinada situação. (FÁVERO, 2003, p. 60).

Quanto ao processo de criação de textos coerentes, Bernárdez

(1982) aponta para um processo que prevê: a) uma intenção comunicativa

possível; b) o desenvolvimento de um plano global que lhe favoreça em sua

intenção comunicativa, e c) a realização de operações necessárias para a

expressão verbal desse plano, de maneira a levar o ouvinte a reconstituir ou

identificar a intenção comunicativa. Às fases apontadas pela autora para a

formação de textos coerentes, agregam-se os princípios que propiciam o

estabelecimento da coerência.

De acordo com Fávero (id.), os estudiosos do texto ressaltam que a

coerência depende, antes de tudo, de nosso conhecimento prévio, que não é

mais um elemento de coerência como os modelos cognitivos globais, mas o

elemento base, subjacente a todos os outros. A compreensão de um texto

realiza-se pela ativação desse conhecimento, no qual se encontram os

conhecimentos linguístico, textual e de mundo.

O conhecimento linguístico é o saber implícito que faz com que

um indivíduo fale uma língua como falante nativo. (Cf. FÁVERO 2003, p. 71).

Koch & Travaglia (2008) o definem como o conhecimento que os interlocutores

detêm sobre a língua e sua estrutura. Para esses autores, embora não seja

possível apreender o sentido de um texto com base apenas nas palavras que o

compõem e na sua estrutura sintática, é indiscutível a importância dos

elementos linguísticos do texto para o estabelecimento da coerência.

O conhecimento textual, segundo Fávero (2003), está relacionado

à classificação do texto quanto a sua estrutura e quanto à interação autor-leitor.

Para essa autora, quanto mais conhecimento textual o leitor/ouvinte tiver,

melhor será a compreensão.

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O conhecimento de mundo abrange todo o conhecimento

enciclopédico do mundo e da cultura dos interlocutores, adquirido tanto formal

como informalmente. O exemplo de Kleiman (2009, p. 20) de que não basta

aprender um sinônimo para serventia se não se é capaz de entender o conceito

de servidão, ilustra bem a relação que se estabelece entre o conhecimento

linguístico e de mundo.

O cartum a seguir ilustra a importância do engajamento do

conhecimento prévio do leitor para sua compreensão, já que o conhecimento

de mundo sobre o que é natureza morta é essencial para seu entendimento.

(Superadas 1, p. 122)

Koch & Travaglia (2008) afirmam que o conhecimento linguístico é

insuficiente para o estabelecimento do sentido de um texto, pois somente o

conhecimento de mundo dos usuários permite a construção de um mundo

textual, o relacionamento de elementos do texto – aparentemente sem relação,

por meio de inferências –, o estabelecimento da continuidade de sentido –

através do conhecimento ativado pelas expressões do texto na forma de

conceitos e modelos cognitivos – e a construção da macroestrutura, cruciais

para a compreensão. Os autores apontam para o fato de que o conhecimento

de mundo é armazenado na memória em blocos denominados modelos

cognitivos globais. Desses modelos, os autores citam os frames, os esquemas,

os planos, os scripts e as superestruturas.

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Fávero (2003) afirma que os limites entre os modelos cognitivos

globais apresentados por diversos autores não são muito nítidos e

terminologias diferentes nem sempre significam teorias diferentes. Para a

autora, frame parece ser a noção mais abrangente, sendo mais produtivo

considerá-lo o modelo cognitivo mais global e com capacidade de abarcar os

demais, segundo suas palavras:

Quando alguém se defronta com uma situação nova, seleciona na memória uma estrutura lá armazenada – o frame; essa estrutura, porém, “pode ser adaptada para se adequar à realidade, mudando-se, quando necessário, alguns pormenores”. Assim, um professor provavelmente ativará, em Natal, elementos como: encerramento das aulas, correção de provas, entrega de notas; e um diretor de firma, gratificação aos funcionários, brindes, encerramento do exercício, balanços e outros. (FÁVERO, 2003, p. 64).

O cartum, a seguir, exemplifica as palavras da autora:

(Superadas 1, p. 73)

Vestido de noiva normalmente ativa frames relacionados à cerimônia

de casamento com todo o seu roteiro – igreja, festa, valsa, presentes –,

constante da fala da menina. Observamos, nesse cartum, no entanto, a

ativação de outra situação, do ponto de vista da mãe: a de que, quando era

magra, cabia no vestido.

Além dos conhecimentos linguístico, textual e de mundo, Koch &

Travaglia (2008, 2009) elencam o conhecimento compartilhado, a

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inferência, a situacionalidade, a intencionalidade, a aceitabilidade, a

informatividade, a focalização, a intertextualidade e a relevância como

fatores de coerência.

O conhecimento compartilhado é aquele que os interlocutores

detêm sobre um mesmo assunto. Segundo Koch & Travaglia (2008, 2009), é

impossível que duas pessoas partilhem o mesmo conhecimento de mundo,

porém, é necessário que os conhecimentos do leitor e do produtor guardem

certo grau de similaridade para que possam compartilhar esses

conhecimentos, pois é isso que determina a estrutura informacional do texto.

Para esses autores, para que um texto seja coerente é preciso que haja

equilíbrio entre as informações dadas e as novas, já que um texto composto

apenas de informação nova seria ininteligível, ao passo que um texto formado

apenas de informação dada seria altamente redundante.

A inferência, segundo Beaugrande e Dressler (1981), busca

resolver problemas de continuidade de sentido. Para Koch & Travaglia (2008),

a inferência está ligada ao conhecimento de mundo do leitor e é usada para

estabelecer uma relação não explicitada no texto entre dois elementos desse

mesmo texto. Esses autores informam que, por vezes, o receptor faz

inferências imprevistas ou não desejadas pelo produtor. Por isso, vários

autores têm se preocupado em procurar meios que limitem as inferências

àquelas que julgam necessárias e/ou relevantes para a interação sem,

contudo, terem chegado a resultados satisfatórios.

A situacionalidade diz respeito à relação texto-situação. Refere-se,

portanto, à situação comunicativa. Conforme Koch & Travaglia (2008, 2009), a

situacionalidade exerce também um papel de relevância. Assim, um texto

coerente em dada situação pode ser incoerente em outra, daí a importância da

adequação do texto à situação comunicativa. De acordo com os autores, o

contexto de situação reflete-se não só no pragmático, mas também no

semântico, como evidencia o caso dos dêiticos e a especificidade do

significado dos homônimos, cujo sentido varia de acordo com a focalização

imposta ao texto pela situação em que ele é produzido.

A intencionalidade refere-se ao modo como os emissores usam os

textos para atingirem seus objetivos, produzindo textos adequados à obtenção

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dos efeitos pretendidos. Segundo Fávero (1986), a intencionalidade, no sentido

estrito, é a intenção do locutor de produzir uma manifestação linguística

coesiva e coerente, ainda que essa intenção nem sempre se realize na sua

totalidade. De acordo com Marcuschi (2008), o problema maior no caso da

intencionalidade acha-se no conceito de sujeito que ela subentende, pois tudo

se passa como se o sujeito fosse dono do conteúdo e como se ele fosse uma

fonte independente e a-histórica.

A aceitabilidade, em sentido estrito, diz respeito ao que é aceito na

comunicação; em sentido amplo é a disposição ativa dos usuários da língua de

participar de um discurso e/ou compartilhar um propósito (Cf. FÁVERO, 1986,

p. 37). Para a autora, a aceitabilidade constitui-se num importante controle para

a seleção e motivação do uso das alternativas num texto, que estão na

dependência direta das intenções do locutor, que, por sua vez, irá utilizar

elementos linguísticos determinados na orientação do sentido pretendido. A

aceitabilidade pode ser entendida, então, como a contraparte da

intencionalidade.

A intencionalidade e a aceitabilidade são duas faces constitutivas do

Princípio de Cooperação de Grice, para quem toda conversação depende de

um esforço cooperativo entre os participantes numa base contratual mínima

entre os interlocutores, a qual deve conter os princípios que regulam qualquer

transmissão verbal de informação: a) (qualidade) dizer somente o que julga

verdadeiro; b) (quantidade) dizer só o necessário; c) (relevância) dar

informações relevantes e d) (modo) ordenar seu enunciado com clareza.

Exemplifica-se, pelo cartum seguinte, a interação entre os

participantes na relação com os princípios de Grice:

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(Superadas 1, p. 131)

O “há” do verbo “haver” é utilizado para indicar existência de algo ou

tempo decorrido. Ao fazer a pergunta, o marido espera que a esposa dê uma

resposta relativa ao aspecto temporal: dias, semanas, meses ou anos. Ao

utilizar-se da expressão “há uns seis quilos”, a esposa associa o tempo em que

não utiliza o vestido, ao tempo em que adquiriu os quilos a mais, dizendo

apenas o que pensa ser relevante e necessário em sua resposta.

É possível, todavia, que o falante infrinja uma das máximas de modo

a ultrapassar os limites do Princípio de Cooperação; quando isso ocorre,

obriga-se o interlocutor a fazer cálculos de forma a deduzir o motivo da

violação. Quando duas pessoas interagem por meio da linguagem, elas se

esforçam por se fazerem compreender e procuram calcular o sentido do texto

de seus interlocutores, partindo das pistas contidas no texto e ativando seus

conhecimentos de mundo, da situação, etc. Assim, mesmo que um texto

pareça incoerente e não tenha explícitos os elementos de coesão, o receptor

vai tentar estabelecer sua coerência dando-lhe a interpretação que lhe pareça

cabível.

De acordo com Fávero (1985), a informatividade designa em que

medida os materiais linguísticos apresentados no texto são esperados,

conhecidos/desconhecidos por parte dos receptores. Para a autora, a

informatividade determina a seleção e o arranjo das alternativas no texto.

A focalização tem ligação direta com a questão do conhecimento de

mundo e do conhecimento compartilhado, pois o ouvinte/leitor depende de

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crenças compartilhadas sobre o que está sendo focalizado para fazer a

interpretação adequada. Ela tem a ver com a concentração dos usuários em

apenas uma parte do seu conhecimento, bem como com a perspectiva pela

qual são vistos os componentes do mundo textual. Diferenças de focalização

podem causar problemas sérios de compreensão, impedindo o

estabelecimento da coerência. Um mesmo texto, dependendo da focalização,

pode ter várias leituras. Apreende-se em Koch (2008) que há um

relacionamento entre a língua e a focalização, ou seja, o que é dito influencia a

focalização e vice-versa.

A intertextualidade é definida por Guimarães (2009) como sendo

um processo de incorporação de um texto em outro, reproduzindo-o ou

transformando-o. Koch & Elias (2006) dizem que a intertextualidade ocorre

quando, em um texto, está inserido outro texto produzido anteriormente, que

faz parte da memória social de uma coletividade. A identificação da presença

de outros textos por parte do leitor, porém, em muito, dependerá de

conhecimento prévio.

Em acordo com as ideias de Giora (1985), Koch & Travaglia (2009)

adotam a relevância discursiva como outra condição indispensável para o

estabelecimento da coerência. Para Giora, um texto é coerente quando o

conjunto de enunciados que o compõe pode ser interpretado como tratando de

um mesmo tópico discursivo. O requisito de relevância exige que o conjunto de

enunciados que compõem o texto seja relevante para um mesmo tópico

discursivo subjacente.

Em resumo, a coerência está ligada à possibilidade de se encontrar

um sentido global para o texto, sendo seu estudo um fator complexo que só se

estabelece na relação do leitor com o texto. Para haver coerência, é preciso

que haja, de alguma forma, relação entre os elementos constituintes do texto. A

relação estabelecida pode não ser só semântica, mas também pragmática,

entre os atos de fala, ou seja, entre as ações que realizamos ao falar.

A intertextualidade é fator de coerência importante no processo de

produção de sentido de um texto e, portanto, de sua compreensão. Por isso,

além do exposto anteriormente, o assunto merecerá um tópico à parte em

nosso trabalho.

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2.2 Intertextualidade e interdiscursividade

O conceito de intertextualidade surge, inicialmente, como um foco de

estudo no campo da literatura, como a inclusão de um texto em outro por

intermédio das citações textuais para efeitos de reprodução ou de

transformação. A ocorrência intertextual dá-se por meio de três processos: o da

citação, o da alusão e o da estilização.

A citação firma-se por mostrar a relação discursiva explicitamente,

podendo confirmar ou transformar o sentido do texto citado. Ao confirmar, o

discurso citado reforça o argumento do produtor do texto, mostrando ao leitor

que existe uma comunidade que compartilha da mesma ideia.

A alusão reproduz a ideia central de algo já discursado, aludindo a

um discurso já conhecido do público em geral, exigindo, do leitor/ouvinte, certa

cultura para sua compreensão.

A estilização é uma forma de reproduzir os elementos de um

discurso já existente, como uma reprodução estilística do conteúdo formal ou

textual, com o intuito de reestilizá-lo.

De acordo com Fiorin (2006), o termo intertextualidade é introduzido

como pertencente ao universo bakhtiniano por Júlia Kristeva, em sua

apresentação de Bakhtin, na França, publicada em 1967, na revista Critique.

Isso se justifica porque aquilo que Bakhtin denomina de enunciado, Kristeva

denomina texto. A difusão do termo, no entanto, é feita por Roland Barthes; a

partir de então, as relações dialógicas passam a ser denominadas de

intertextualidade. Segundo Bakhtin (1988), o enunciado é da ordem do sentido;

o texto, do domínio da manifestação desse sentido.

Para Fiorin (2006), se há uma distinção entre enunciado e texto, há

relações dialógicas entre enunciados e textos, passando a existir

interdiscursividade e intertextualidade. Dessa forma, a intertextualidade passa

a ser a relação dialógica materializada em textos. Segundo o autor, toda a

intertextualidade implica a existência de uma interdiscursividade, mas nem toda

interdiscursividade implica uma intertextualidade a exemplo de que, quando o

discurso não mostra, no seu fio, o discurso do outro, não ocorre

intertextualidade, mas, sim interdiscursividade.

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Koch (2006) aponta para a existência de dois tipos de

intertextualidade: a intertextualidade explícita e a intertextualidade

implícita. O primeiro caso ocorre, segundo a autora, quando no próprio texto é

feita menção à fonte do intertexto, como acontece nas citações, nas

referências, nas menções, nos resumos, nas resenhas, nas traduções e no

discurso de autoridade, como também em situações de interação face a face,

no caso de retomada do texto do parceiro para encadear sobre ele ou para

contraditá-lo.

Temos um exemplo de intertextualidade explícita, com citação direta

do texto primitivo, na forma de paródia, na figura abaixo.

(BERGOCCE, 2008, p. 46)

O segundo caso apresenta-se quando se introduz, no texto,

intertexto alheio, sem qualquer menção da fonte, com o propósito de seguir-lhe

a orientação argumentativa ou para colocá-la em questão para argumentar em

sentido contrário. Nesse caso, espera-se que o leitor/ouvinte seja capaz de

reconhecer a presença do intertexto pela ativação do texto fonte, em sua

memória discursiva. Sem esse reconhecimento, a construção pretendida do

sentido não tem efeito.

O cartum seguinte serve como demonstração de intertextualidade

implícita:

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(Superadas 1, p. 146)

A depreensão do sentido desse texto está relacionada à

competência leitora que capacita aquele que lê a ativar o enunciado primitivo

“um zero à esquerda”, convencionalmente utilizado para expressar que alguém

não tem valor. A substituição de zero por seio implica o reconhecimento de

que, naquele momento, ela, a mãe, só tem importância na hora da

amamentação do recém-nascido, centro das bajulações.

Além de trocadilhos como o apresentado acima, a intertextualidade

implícita pode ser ilustrada, dentre outras possibilidades, pela prática do

détournement, como mostrado no capítulo 3 deste trabalho.

Como vimos, um discurso nunca é totalmente autônomo. Fiorin

(2006) reserva o termo intertextualidade para os casos em que a relação

discursiva é materializada em textos; a interdiscursividade, por sua vez, se

constitui nas relações dialógicas. A questão do interdiscurso, segundo o autor,

aparece sob o nome de dialogismo, quando tratado por Bakhtin.

2.3 Dialogismo e polifonia

Para Bakhtin (1988), a orientação dialógica é naturalmente um

fenômeno próprio de todo discurso. Conforme suas palavras:

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Apenas o Adão mítico que chegou com a primeira palavra num mundo virgem, ainda não desacreditado, somente este Adão podia realmente evitar por completo esta mútua orientação dialógica do discurso alheio para o objeto. Para o discurso humano, concreto e histórico, isso não é possível: só em certa medida e convencionalmente é que pode dela se afastar. (BAKHTIN, 1988, p. 88).

Para o autor, todo discurso é orientado para uma resposta, pois ao

se constituir na atmosfera do “já dito”, acaba por regular o discurso do locutor;

em outras palavras, o enunciador, para constituir seu discurso, leva em

consideração o discurso do outro.

Fiorin (2006) apresenta três conceitos de dialogismo: o primeiro é o

dialogismo constitutivo, que não se mostra no fio do discurso, pois há sempre

outro que o mostra. Assim, quando se afirma que homens e mulheres têm a

mesma capacidade, comparecem dois discursos: o que preconiza a igualdade

entre os dois e o que reafirma a superioridade do homem.

O segundo trata da incorporação, pelo enunciador, da voz ou das

vozes de outros no enunciado. Muitas vezes isso ocorre de forma mais

explícita e clara na inserção do discurso do outro no enunciado pelos

procedimentos do discurso. Pode, ainda, ser apresentada de forma

internamente dialogizada pela paródia, pela estilização, pelo discurso indireto

livre e pela polêmica.

O terceiro refere-se à historicidade dos enunciados pois, como

afirma o autor, sendo constitutivamente dialógicos, os enunciados são sempre

históricos. Nessa concepção, a história não é exterior ao sentido, já que é ele,

o sentido, que é histórico, por constituir-se fundamentalmente no confronto, na

contradição, na oposição das vozes que se entrechocam na arena da

realidade. Dessa maneira, é na captação das relações do texto com a história

que se pode apreender o movimento dialético de constituição do sentido.

Salientamos que os termos “dialogismo” e “polifonia” são utilizados

muitas vezes sem distinção. Para Barros (2003), os textos são dialógicos

porque resultam do embate de muitas vozes sociais, vozes que, quando se

deixam escutar, podem produzir efeitos de polifonia ou de monofonia quando o

diálogo é mascarado e uma só voz se faz ouvir.

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Ducrot (1980, apud Brandão, 2009) adota o conceito de polifonia de

Bakhtin, operando-o numa área especificamente linguística para contrapor-se à

ideia de unicidade do sujeito falante. Segundo essa tese, o autor especifica três

propriedades do sujeito: a) ser ele o agente de toda atividade psicofisiológica

necessária à produção do enunciado; b) ser ele o agente dos atos ilocutórios

executados na produção do enunciado (atos de asserção, ordem, pergunta

entre outros; c) ser designado no enunciado pelas marcas da primeira pessoa

“eu”, “meu”, “aqui”.

Em sua tese, o autor distingue locutor de enunciador e afirma que a

polifonia pode ocorrer tanto no nível do locutor quanto do enunciado. Dessa

forma, o locutor constitui-se para o autor como o responsável pelo enunciado; o

enunciador, como o ser que se exprime na enunciação, sem que, no entanto,

lhe seja atribuída a responsabilidade pela fala.

Assim, para Ducrot, em Paulo me disse: eu preciso estudar, temos

duas figuras de locutor: um responsável pela totalidade do enunciado e outro

responsável por parte da enunciação eu preciso estudar. Desse modo, as

formas expressas pelos pronomes me e eu referem-se a locutores diferentes,

cujas vozes mostram-se linguisticamente demarcadas. No caso de Paulo disse

que, infelizmente, precisa estudar, o modalizador infelizmente refere-se à

perspectiva de Paulo e não à do locutor responsável por todo o enunciado.

Tomando por base a formulação de Ducrot (1980), Koch (2006)

relaciona a polifonia com a noção de intertextualidade. Para a autora, o

conceito de polifonia é mais amplo que o de intertextualidade, pois, enquanto

nesta faz-se necessária a presença de um intertexto cuja fonte é explicitamente

demonstrada ou não; naquela exige-se que se represente, em determinado

texto, perspectivas ou pontos de vista de enunciadores diferentes.

2.4 Contexto

As concepções de contexto variam não só no tempo, como também

de autor para autor. Não encontramos, assim, definições únicas e precisas

sobre o que é contexto, pois o termo significa coisas diferentes em modelos

diferentes de pesquisa.

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Para Hanks (2008), a forma como esse conceito é tratado depende

de como são construídos outros elementos como a concepção que se tem de

linguagem, de discurso etc. Para esse autor, o contexto é um conceito teórico,

estritamente baseado em relações, não havendo, portanto, contexto que não

seja “contexto de”, ou “contexto para”.

Na pesquisa sobre textos, em sua fase inicial, o contexto era visto

como o entorno verbal, o co-texto. Segundo Koch (2003), com o advento da

Teoria dos Atos de Fala e da Teoria da Atividade Verbal, a Pragmática

incorpora a presença dos interlocutores na compreensão do contexto,

voltando-se para o estudo e a descrição de suas ações em situação de

interlocução. Para van Dijk (2004), antes que os usuários da língua sejam

capazes de relacionar as informações recebidas com o conhecimento

linguístico mais geral e outros conhecimentos arquivados na memória, eles

devem analisar o contexto em relação ao qual um determinado ato de fala é

realizado.

Na Teoria dos atos de fala, Austin (1990) distingue três tipos de ação

linguística: os atos locucionários, os ilocucionários e os perlocucionários. O ato

locucionário é a simples enunciação de uma sentença; o ato ilocucionário está

relacionado à força ilocucionária (de pergunta, de asserção, de ordem,

promessa) sobre um conteúdo proposicional. O ato perlocucinário, por sua vez,

destina-se a exercer certos efeitos sobre o interlocutor (persuadi-lo, agradá-lo).

A Teoria da Enunciação formulada por Bakhtin explica os

significados dos enunciados produzidos pelas falas dos indivíduos de uma

determinada língua, levando em consideração não só o sentido desses

enunciados, como também suas condições de produção, ancoradas pelo

espaço de enunciação. O enunciado amanhã estarei livre, em diversas

situações de enunciação, pode ter sentidos diversos, já que pode tratar apenas

de uma simples constatação, se consideramos que o dia seguinte refere-se a

um sábado e que o falante não trabalha nos finais de semana; pode tratar

também de um convite para um passeio, pode ainda referir-se à finalização de

um processo de divórcio ou de qualquer outro impedimento que faça com que o

falante tenha a sensação de estar aprisionado.

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A incorporação dos interlocutores na compreensão do contexto, no

entanto, mostra-se insuficiente se não considerarmos que eles se movimentam

em um tabuleiro social. Assim, aos poucos, outro tipo de contexto passou a ser

levado em consideração: o contexto sociocognitivo. Van Dijk (2004) coloca

como problema o seguinte: “Como o ouvinte sabe que o falante, ao produzir

uma sentença, está fazendo uma promessa ou uma ameaça? Que informações

devem ser passadas para o ouvinte a fim de que ele seja capaz de atribuir à

sentença uma determinada força ilocucionária?” As respostas às questões do

autor podem vir, segundo ele próprio, de vários pontos e por diversos canais:

a) da propriedade das estruturas dos enunciados (determinadas por

regras gramaticais);

b) das propriedades paralinguísticas (velocidade, ênfase,

entonação);

c) da observação/percepção real do contexto comunicativo

(presença e propriedade dos objetos, pessoas etc.);

d) dos conhecimentos/crenças já armazenadas na memória a

respeito do falante, de suas idiossincrasias, ou sobre outras características da

situação social;

e) dos conhecimentos e das crenças relativas aos tipos de interação

e de estruturas dos contextos precedentes à interação;

f) dos conhecimentos e crenças derivados de atos de fala, i.e, partes

precedentes do discurso nos níveis micro (local) e macro (global);

g) da semântica geral, em particular a convencional, conhecimentos

sobre a inter(ação), regras etc.;

h) de outros tipos de conhecimento de mundo (frames).

Para que duas pessoas possam compreender-se mutuamente é

necessário que, pelo menos em parte, seus contextos sociocognitivos sejam

semelhantes, ou seja, que tenham conhecimentos compartilhados (Cf. KOCH,

2003). A autora postula que o contexto cognitivo engloba todos os demais tipos

de contexto. O contexto, da forma como é entendido hoje na Linguística

Textual, abrange não só o co-texto, como também a situação de interação

imediata, a situação mediata, (entorno sociopolítico-cultural) e também o

contexto sociocognitivo dos interlocutores. A mobilização dos diversos

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conhecimentos, por ocasião do processamento textual, realiza-se por meio de

estratégias de ordem:

Cognitiva: as inferências, as focalizações, a busca da relevância;

Sociointeracionais: preservação das faces, polidez, atenuação etc.;

Textuais: conjunto de decisões concernentes à textualização,

tomadas pelo produtor do texto, tendo em vista seu projeto de dizer (pistas,

marcas, sinalizações).

Gumperz (1998) designa como pistas de contextualização os sinais

verbais e não verbais utilizados pelos usuários da língua na interação face a

face. Como exemplo dessas pistas, o autor cita a prosódia (entonação, acento

de intensidade, mudanças de clave); os sinais paralinguísticos, como pausas,

hesitações, sobreposições de turnos, tom e volume de voz; a escolha do

código ou do registro; as formas de seleção lexical, as expressões fisionômicas

ou qualquer movimento do corpo que sugira apoio, discordância, oposição,

ironia, ênfase etc.

Na escrita, Dascal e Weizman (apud KOCH, 2003), ao analisarem textos

jornalísticos, mencionam as aspas, a seleção lexical, certas questões retóricas,

o uso de algumas formas de tratamento, e assim por diante, como pistas

importantes para a captação do sentido esperado pelo produtor, assim como a

diagramação, a localização do texto na página ou no veículo – no caso de

jornais de revistas –, o tipo de letra, os travessões, os parênteses e os

destaques (itálico, negrito), entre outros.

2.5 A questão dos implícitos

Sobre os implícitos, Ducrot (1987) ensina que o primeiro traço

observável no subentendido consiste no fato de que existe sempre, para um

enunciado com subentendidos, um “sentido literal” do qual eles estão

excluídos. O autor salienta que o subentendido reivindica a possibilidade de

estar ausente do próprio enunciado e de somente aparecer quando um ouvinte,

num momento posterior, refletir sobre o referido enunciado. A detecção do

subentendido ocorre por meio de um uma espécie de raciocínio; porém, como

esse raciocínio consiste em retirar do enunciado as conclusões nele

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implicadas, é difícil de compreender como o locutor poderia rejeitar a

responsabilidade do subentendido e proteger-se por de trás do sentido literal

de suas palavras, deixando, ao seu interlocutor, a responsabilidade pela

interpretação.

Os pressupostos de um enunciado continuam a ser afirmados pela

negação desse enunciado ou por sua transformação em pergunta, informa

Ducrot (1987) o qual acrescenta que o pressuposto não pertence ao enunciado

da mesma forma que o posto. Para descrever esse estatuto particular do

pressuposto, seria possível dizer que ele é apresentado como um quadro

incontestável no interior do qual a conversação deve necessariamente

inscrever-se, ou seja, como um elemento do universo do discurso.

A respeito da identificação dos pressupostos e dos

subentendidos, Maingueneau (1996) postula que qualquer falante de português

pode, em princípio, identificar os pressupostos, enquanto a decifração dos

subentendidos é mais aleatória. Acrescenta que o subentendido, tirado do

enunciado, é inferido de um contexto singular e sua existência é sempre

incerta; já o pressuposto, tirado da enunciação, é estável.

Procuramos, neste capítulo, apresentar conceitos que intervêm na

produção do sentido do texto e que, por isso, servirão de guia à análise de

nosso corpus. No próximo capítulo, trataremos do humor e de aspectos

linguísticos e discursivos que o envolvem.

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3 O HUMOR EM DIFERENTES PERSPECTIVAS

Aquele que se propõe a estudar o humor atualmente, mesmo que

sob pontos de vista diversos aos estudados, não poderá deixar de ver as

contribuições de Bergson, de Freud e de Raskin, já consagrados pela literatura

do humor, mesmo visando a objetivos variados, como no caso de Freud, cuja

obra presta-se a fins psicanalíticos. No Brasil, Possenti (2008) e Rosas (2002)

valem-se dos estudos desses autores para a fundamentação de seus

trabalhos, os quais visam a explicar não o porquê, mas como estes textos

funcionam de forma linguística.

3.1 Contribuições linguísticas

Em suas pesquisas sobre piadas, Possenti (2008) defende a ideia

de que os estudos sobre textos humorísticos são fontes expressivas para os

estudos linguísticos por pelo menos três razões: A primeira, pelo fato de as

piadas versarem sobre temas socialmente controversos e, por isso, relativos a

domínios discursivos “quentes”, como racismo, política e instituições em geral,

defeitos físicos (considerados, também como defeitos, a velhice, a calvície, a

obesidade), entre outros. A segunda razão é que as piadas operam,

sobretudo, com estereótipos, fornecendo, assim um material valoroso para

pesquisas sobre representações; a terceira, porque elas quase sempre são

veículos de um discurso subterrâneo, não oficial ou pouco oficial. O argumento

mais forte, no entanto, é o fato de as piadas serem peças textuais que exibem

um domínio da língua, de certa forma complexo, já que qualquer domínio que

uma teoria linguística tematize pode ser exemplificado por uma piada.

A figura a seguir, extraída de BERGOCCE (2008), confirma a

posição de Possenti sobre o fato de os textos humorísticos serem objetos

profícuos para estudos linguísticos.

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(BERGOCCE, 2008, p. 46)

A utilização do termo “privado” como adjetivo, no primeiro quadrinho,

e como verbo, no segundo, codifica a diferença entre os dois meninos no

tocante ao acesso à educação. Sendo essa uma questão social grave em

nosso país, a tirinha poderia não ser bom exemplo de texto humorístico, no

entanto, ela o é. O efeito cômico é provocado pela quebra de expectativa na

resposta do segundo garoto, a quem o ensino é negado. Se entendermos que

não fazer parte do ensino privado representa estar privado do ensino,

entenderemos também o que se diz do descaso do Estado em relação ao

ensino. O fato de os protagonistas da conversa serem duas crianças acentua a

problemática social, pois coloca, no centro da cena, as vítimas do sistema

educacional público.

De acordo com Possenti (2008), a diferença entre estudos sobre

piadas realizados por linguistas e os empreendidos por pesquisadores de

outras áreas do conhecimento reside na pergunta a que se busca responder.

Assim, para o autor, a preocupação linguística deve ter como pergunta o como;

caso a preocupação seja, no entanto, sociológica, psicológica ou antropológica,

é o porquê que deve nortear o questionamento. O autor cita Raskin (1987), o

qual lamenta que os estudiosos do humor tenham se fixado no uso da palavra,

sublinhando, principalmente, questões ambíguas no momento em que já se

tem uma linguística do discurso apta a explicar melhor os chistes, que se

sustentam em pressuposições, inferências, implicaturas, estratégias

conversacionais, entre outras. Para Possenti, no entanto, o humor da palavra

apresenta grande sofisticação e pode oferecer aos linguistas outros atrativos

além da polissemia, como no exemplo:

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(Conversa de meninos de três anos) – Ontem eu vi uma camisinha no pátio! – O que é pátio? (POSSENTI, 2008, p. 82)

Segundo comentários do autor, observamos que o que faz desse

texto um texto humorístico é a subversão dos valores, ou seja, um menino de

três anos conhecer uma palavra que se supõe não ser de seu domínio, devido

a sua pouca idade, mas desconhecer outra que lhe poderia ser familiar.

Em suma, no entender desse autor, para que a linguística possa dar

sua contribuição ao campo do humor, deve ser feito o questionamento sobre a

característica textual verbal da piada. Rosas (2002), que tem seus estudos

voltados à tradução do humor, questiona a visão mecanicista que reduz o ato

tradutório ao transporte de significados equivalentes de uma língua para outra,

equivalendo a dizer, em suas palavras:

Tendo sido predeterminado pelo autor, o significado “adere” ao texto, cabendo ao tradutor apenas identificá-lo e repassá-lo ao leitor. Diante dessa apologia do significado “predestinado” torna-se fácil entender a razão das máximas depreciativas em torno da tradução – como traduttore traditore – ou de expressões como “complexo de Judas”, que José Paulo Paes cunhou para referência àquilo que denominou de “enfermidade profissional”. (ROSAS, 2002, p.18)

Para a autora, os estudos que unem tradução e humor encontraram

e ainda encontram resistência para definirem-se como objetos dignos de

pesquisa acadêmica por conta da influência do gerativismo – linha

predominante na linguística teórica por quase quarenta anos – para o qual não

interessavam conceitos como contexto e interpretação.

Para Travaglia (1990), o humor é uma atividade ou faculdade

humana cuja importância se deduz de sua enorme presença e disseminação

em todas as áreas da vida humana. Ele aparece como uma forma de revelar e

de flagrar outras possibilidades de visão de mundo gerando, quando em busca

de uma verdade, conflito e desequilíbrio ao desorganizar padrões

convencionados.

O autor acredita que não só a Linguística Textual, como também a

Análise do Discurso podem dar excelentes contribuições à pesquisa sobre o

humor. Assim, as formações discursivas da Análise do Discurso podem ajudar

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a explicar, por meio do plano histórico-social, certos fatos de humor étnico, tais

como o estabelecimento cômico de alguns pré-juízos ou preconceitos, como

aqueles circulantes no Brasil sobre algumas etnias, a exemplo do próprio

brasileiro, tido como esperto e sagaz.

Lauriti (1990) considera que a condição necessária para que um tipo

de discurso possa apresentar o título de humorístico é o fato de engendrar um

efeito de sentido “não sério”, por intermédio de um modo de interlocução que

se aponta como jogo, como brincadeira, metacomunicativamente, como um

“modus ridens”.

De forma abrangente, podemos dizer que as teorias sobre o humor

podem ser classificadas em três grandes campos: campo social, campo

psicanalítico e campo cognitivo (Cf. ATTARDO, 1994). No campo social,

deparamo-nos com Bergson (1983) [1940]; no campo psicanalítico, com Freud

(1977) [1905]; no campo cognitivo, com Raskin (1987) [1944].

3.1.1 O homem é um animal que ri e faz rir

Bergson (1983) [1940], em O Riso – ensaio sobre a significação do

cômico, chama a atenção para três aspectos acerca do riso: a) não há

comicidade fora do que é humano; b) existe certa insensibilidade que

acompanha o riso; c) o riso sempre irá exigir uma terceira pessoa que dele

compartilhe, atentando-se para o fato de que todo riso é sempre o riso de um

grupo, já que seu meio é a sociedade.

No primeiro aspecto, o autor observa que uma paisagem poderá ter

vários qualificadores, como bela, insignificante, feia, entre outros, mas jamais

será risível, pois a comicidade é própria do que é humano. Poderemos até rir

de um animal, mas isso só ocorrerá porque teremos surpreendido nele uma

atitude de homem ou certa expressão humana.

No segundo aspecto, de que é preciso estar insensível para

estarmos abertos ao riso, Bergson associa o riso ao envolvimento que temos

em relação à situação provocadora do riso ou quando esquecemos a afeição

que sentimos por uma pessoa quando rimos dela.

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No terceiro aspecto, podemos afirmar que, para Bergson, o riso,

por ser social, tem um caráter dialógico, pois não se deixa acontecer sozinho,

mas em uma interação viva com o discurso do outro. Para esse autor, as

pessoas riem como forma de castigo à rigidez do hábito, isto é, pelo desvio de

um comportamento automatizado; assim, uma mudança brusca de atitude

causará riso, pois se a mudança ocorre involuntariamente, é porque reflete um

ato desajeitado do indivíduo. Dessa forma, um tombo provoca o riso porque a

queda representa uma ruptura no conjunto dos gestos sociais e, por isso,

acaba por ser corrigida pelo riso.

Com a propalada virtude curativa do riso, de Hipócrates, somada à

máxima aristotélica de que o homem é o único ser vivente que ri, o

Renascimento descobre os filósofos do riso. Assim, o riso passa a ser visto

como uma força criadora, positiva regeneradora. Conforme Bernardi (2009):

Para os humanistas, o riso e o sério formavam as duas maneiras opostas e possíveis de ver o mundo e tudo o que é essencialmente humano. No entanto, a opção por um ou por outro desses paradigmas tem implicações sobre a história e sobre a produção sociocultural humana. Movido por circunstâncias especiais (as fronteiras históricas de que fala Bakhtin) e por entender a importância de ver o mundo na sua totalidade, o Renascimento incorporou, entre seus valores, os meios de avaliar e representar a realidade a partir dessas duas óticas. Assim, a grande literatura da época vai aceitar, sem traumas, as duas visões de mundo, convicta de que a realidade é feita de opostos. (BERNARDI, 2009, p. 81)

Submetidos à ordem rígida no século XVII, o riso e o cômico são

colocados num plano secundário, como pertencentes à literatura popular e de

menor expressão.

3.1.2 Pelos chistes, Freud explica

Para Freud (1977) [1905], é possível chegar ao inconsciente por

meio da análise dos mecanismos expressivos da linguagem dos sonhos e dos

chistes. Em suas palavras:

O trabalho de condensação nos sonhos produz, não estruturas compostas, mas quadros que nos recordam com exatidão uma coisa ou uma pessoa, exceto por um acréscimo ou por uma alteração

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derivada de alguma fonte: modificação precisamente do mesmo tipo encontrado nos chistes. [...] Não podemos pôr em dúvida que em ambos os casos somos confrontados com o mesmo processo psíquico, ao qual podemos reconhecer devido a seus resultados idênticos. Uma analogia tão abrangente entre a técnica do chiste e a elaboração onírica sem dúvida aumentará nosso interesse na primeira e suscitará em nós uma expectativa de que uma comparação dos chistes com os sonhos ajudará a lançar luz sobre os chistes. (FREUD, 1977, p. 43)

A piada, a anedota e o gracejo são definidos por Freud como

chistes, entendendo-se o chiste como o cômico que se utiliza da palavra e do

dizer. Para o autor, a realização do chiste ocorre a partir de situações que

envolvem desejos reprimidos, sendo o riso um escape para a energia psíquica.

Ao discutir as técnicas de elaboração dos chistes, Freud dá relevância ao

prazer que essa elaboração causa e o quanto isso se relaciona com o

inconsciente. O autor afirma que quem ouve um chiste e compreende seu

significado, ri, libera a energia recalcada de um conteúdo inconsciente. Não só

o ouvinte/leitor da piada, como também seu produtor/emissor beneficia-se

psicologicamente da piada que lhe serve como uma válvula de escape.

Para Freud, portanto, a comicidade é uma descoberta que causa

prazer. O cômico faz referência a eventos ou objetos lúdicos, estando o humor,

por sua vez, ligado ao comportamento individual, à medida que o indivíduo

encobre seus próprios infortúnios e vê neles o aspecto engraçado.

Para esse psicanalista, o humor é uma questão de “economia de

gasto psíquico.”. Ao classificar os chistes em maliciosos e inocentes, Freud

considera que os primeiros conduzem ao prazer por abrandarem os controles

morais. Assim, as piadas que tematizam o sexo permitiriam ao indivíduo a

liberação das ansiedades reprimidas sobre esse tema. Os chistes inocentes,

por seu turno, dizem respeito ao afrouxamento dos nossos controles e estão

relacionados à fase inicial de aquisição da linguagem, quando a criança produz

a troca de sons e se confunde na aquisição de sentidos, fazendo com que o

adulto ache graça.

No dizer de Rosas:

No chiste tendencioso sempre está em vigor uma finalidade substitutiva da ação – a realização de um desejo recalcado, seja agressivo, seja sexual – que opera no sentido de acrescentar ao prazer da técnica do chiste, o prazer de fugir a um recalque. Porém,

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ao lado do chiste tendencioso (ou “carregado”, por assim dizer), Freud reconhece a existência do que denominou “chiste inocente”: aquele que não visando substituir a ação, contém em si mesmo seu fim, ou seja, não tem que ocultar um conteúdo recalcado, um tabu ou interdito. (ROSAS, 2002, p. 28)

Quanto à forma dos chistes, Freud propõe uma tipologia que

contempla três grupos: condensação, múltiplo uso do mesmo material

linguístico e duplo sentido. Nesses três grupos, Freud reforça sua teoria da

obtenção do prazer por meio da economia psíquica.

O primeiro grupo, o da condensação, tem como base a integração

de duas palavras na construção de novo termo, com significação própria, como

no clássico exemplo do autor, em que se associam as expressões “familiar” e

“milionário”, na expressão “familionarmente”, num chiste em que um pobre

agente da loteria ao gabar-se por ter tido um contato breve com o rico Barão

Rothschild diz: [...] Doutor, sentei-me ao lado de Salomon Rothschild e ele me

tratou como um seu igual – bastante familionariamente. (FREUD, 1977, p. 29).

No segundo grupo, do múltiplo uso do mesmo material

linguístico, não há fusão de palavras para a construção do elemento novo,

mas há o aproveitamento do mesmo material linguístico com valor semântico

diferente. O aproveitamento pode ser observado quanto à alteração da forma e

quanto à alteração do conteúdo. Para Freud, quanto mais sutil essa alteração,

melhor é o chiste, pois maior é a impressão de que algo está sendo dito de

modo diferente pelas mesmas palavras.

Por fim, o grupo do duplo sentido é apontado por Freud como o

mais produtivo e ocorre quando as mesmas palavras prestam-se a múltiplos

usos, sendo as anedotas eróticas exemplos abundantes dessa modalidade.

Possenti (2008) observa que Freud fez, mesmo que intuitivamente,

análises dos chistes que podem ser vistas como discursivas. Entre diversos

exemplos de chistes a que Freud aduz em sua análise, citaremos um, a título

de justificarmos a observação de Possenti:

O médico a cujos cuidados se confiou a Baronesa em sua gravidez, anunciou que ainda não chegara o momento de dar à luz e sugeriu ao barão que enquanto esperavam jogassem cartas no cômodo vizinho. Após um momento um grito de dor da Baronesa feriu os ouvidos dos dois homens: “Ah, mon Dieu, que je souffre!”. Seu marido levantou-se de um salto mas o médico fez lhe sinal que se assentasse: “Não é

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nada. Vamos continuar com o jogo!” Pouco depois, novos brados da mulher grávida: “Mein Gott, was für Schmerzen!”. “Não vai entrar professor?”, perguntou o Barão. “Não, não, não. Ainda não é a hora” Finalmente chegou da porta próxima um inconfundível grito de “Ai, ai, ai”. O doutor largou as cartas e exclamou: “Agora é a hora”. (FREUD, 1977).

Nessa exemplificação, Freud mostra a consciência que o falante tem

na utilização da língua. A baronesa sabe que seu comportamento “diz” coisas

sobre ela, portanto, ao interpretar a dor que ainda, de fato, não sentia,

utilizou-se dos gritos à maneira de sua posição social. Sua encenação, no

entanto, não perdura, visto que o sentimento real de dor foi capaz de

desnudar-lhe o comportamento. A reação do médico mostra que ele foi capaz

de inferir, por seu conhecimento de mundo, o momento propício à intervenção,

compreendendo que o sentido do primeiro e do segundo apelos da baronesa

eram diferentes do segundo. Freud, ao fazer a análise do chiste, faz a seguinte

observação:

Este bem sucedido chiste demonstra duas coisas pela modificação gradual do caráter dos gritos de dor emitidos por uma aristocrática dama na hora do parto. Mostra também como a dor faz com que a natureza primitiva irrompa entre as diversas camadas de verniz de educação e como uma decisão importante pode ser adequadamente tomada na dependência de um fenômeno aparentemente trivial. (FREUD, 1977).

Observamos, pelo comentário de Freud, que o autor considera

apenas como relevante o fato de que a dor faz com que a natureza irrompa

entre as diversas camadas de verniz de educação. Comentário coerente, haja

vista seus objetivos de estudo, voltados à área da psicanálise.

3.1.3 Os scripts no humor

Em nossos estudos, encontramos a proposta de Raskin (1987)

[1944] para uma teoria semântica do humor, baseada em frames e scripts.

Para o autor algumas condições são necessárias para a caracterização do

chiste: a) uma mudança do modo de comunicação bona-fide (de boa fé,

confiável) para o modo non bona–fide de contar piadas; b) o texto a ser

considerado chistoso; c) o texto ser compatível em parte, ou totalmente, com

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dois scripts diferentes; d) uma relação de oposição entre os dois scripts; e) um

gatilho óbvio ou implícito, que permite passar de um script para outro. A piada

seguinte é apresentada por Raskin como um exemplo de sua tese:

– O doutor está em casa? (pergunta o paciente com voz rouca)

– Não – sussurra em resposta a jovem e bela esposa do médico.

– Pode entrar.

Nesse exemplo, se o leitor/ouvinte não considerar o modo non

bona-fide de contar piadas, o texto parecerá incoerente, pois, para ser coerente

dentro de um modo bona-fide, a resposta da esposa deveria ser a de que ele

voltasse mais tarde ou a sugestão, dada a ausência do marido, de que ele

procurasse um outro médico. Como tal resposta não ocorre, o leitor/ouvinte

logo trata de perceber o “caso” como um caso de adultério, numa situação

plausível, mas, nesse caso, irreal.

O cartum a seguir ilustra a teoria de Raskin no que diz respeito à

mudança de um script a outro, levando-se em conta a compatibilidade entre os

dois:

(Superadas 2, p. 81)

A fala da primeira personagem sugestiona a ativação do script de

relacionamento íntimo. O uso de reticências reforça tal ideia, permitindo que se

complete o enunciado com o script ativado. A resposta da primeira

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interlocutora, de que suas concessões aos desejos do namorado são as de

assistir a jogos de futebol, leva o leitor a observar a compatibilidade entre os

scripts, já que o pedido indireto do namorado para que a namorada faça o que

ele gosta, não só dá margem ao primeiro entendimento, como permite o

redirecionamento para a construção da piada.

França (2006) aponta para o fato de que a alteração do modo

bona-fide para o modo non bona-fide de contar piadas, da teoria de Raskin,

desafia os Princípios Conversacionais de Grice, no tocante às Máximas da

Qualidade e da Relevância, cujas regras preveem que se diga apenas o que se

julga confiável e relevante, ou seja, o leitor/ouvinte da piada, devido a sua

competência humorística, não espera que o que se conte em uma anedota seja

verdadeiro, tampouco relevante. De acordo com a autora, ao associar a teoria

semântica do humor ao modo de comunicação non bona-fide, Raskin

pretendeu estabelecer a forma como o leitor/ouvinte percebe se aquilo que está

lendo/ouvindo é uma piada – e que, por isso, deve ser lida/ouvida como uma

brincadeira ou um enunciado sério, confiável, relevante.

Inferimos, pelos apontamentos de França (2006), que há uma lógica

própria para a conversação nos textos humorísticos que não pode ser

submetida às mesmas regras postuladas por Grice para a comunicação séria

do cotidiano. A violação às Máximas da Relevância e da Qualidade passa,

portanto, a ser a regra da piada. Nesse ponto, Attardo (1994) destaca que o

fato de se perceber que o falante violará o princípio de cooperação não altera a

condição da violação, apenas a torna óbvia. Para Grice (1982), os diálogos são

esforços cooperativos reconhecidos, já que cada participante reconhece neles

um propósito comum ou um conjunto de propósitos que orienta a conversa.

Nesse sentido, observa-se que uma das estratégias utilizadas por aqueles que

produzem humor é fingir que tal reconhecimento não ocorre, como no exemplo

abaixo, que tomamos emprestado de Travaglia.

Médico: Dói? Paciente: Não, eu só estou gritando para assustar a enfermeira. (TRAVAGLIA, 2003, p. 88)

A noção de script, muitas vezes tomada pela mesma noção de

frame, é fundamental para o entendimento da teoria de Raskin, merecendo, por

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isso, um parêntese. Segundo Attardo (id.) um script é uma porção organizada

de informação a respeito de alguma coisa, em sentido amplo. É uma estrutura

cognitiva internalizada pelo falante, que lhe proporciona informação sobre

como as coisas são feitas e organizadas. Para Fávero (2003), os

conhecimentos são conceitos que representam sequências de acontecimentos

ou eventos sem estarem diretamente ligados a campos lexicais e sim a campos

conceituais, como no exemplo: “Luzia queria aprender um novo idioma, então

sua mãe a matriculou em X”. Nessa situação não é difícil perceber que X pode

ser facilmente substituído por escola de línguas ou em qualquer outro lugar em

que se possa aprender o novo idioma. O conceito utilizado por Raskin em sua

teoria, no entanto, é um conceito de script a partir de itens lexicais. Assim, o

modelo clássico de restaurante, com mesas, cadeiras, cardápio, prato, pedido,

é exemplo do que ele entende como script.

Silveira e Nélo (2009) também estudaram o texto narrativo de humor

a partir das noções de frame e script, em um trabalho que dá relevância ao

papel da cognição nesse tipo de produção textual. Para as autoras, o risível,

nas crônicas de humor, explica-se pelas estratégias cognitivas do leitor que,

percebendo rompidas suas expectativas anteriormente representadas por um

marco de cognição, vê-se obrigado a processar a nova informação em um novo

contexto de cognição.

3.2 Recategorização e humor

Entre os vários estudos linguísticos que se fazem sobre textos

humorísticos, a recategorização metafórica tem sido analisada como uma

ocorrência que pode servir como gatilho para o humor. De acordo com Lima

(2007), tal análise, no entanto, demanda uma abordagem não só no aporte

teórico do campo da Linguística Textual, como também das vertentes do

cognitivismo, num enlace entre os dois campos. Segundo Cavalcante (2005), a

recategorização é, por definição, uma alteração nas associações entre

representações categoriais parcialmente previsíveis. Consoante Leite (2007), a

recategorização metafórica é um fenômeno textual que se manifesta, de modo

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particular, como forma nominal referencial e desempenha um papel

argumentativo na produção do sentido.

De acordo com Koch (2006), a formação de categorias depende de

nossas capacidades perceptuais e motoras. Marcuschi (2007) afirma que não

existem categorias naturais porque não existe um mundo naturalmente

categorizado. Para ele, as coisas ditas são coisas discursivamente construídas

e a maioria de nossos referentes são objetos de discurso.

Para Koch (2005), a discursivização ou textualização do mundo por

meio da linguagem não consiste em um simples processo de elaboração de

informações, mas em um processo de reconstrução do próprio real, conforme

afirma:

Os objetos-de-discurso não se confundem com a realidade extralinguística, mas (re)constroem-na no próprio processo de interação: a realidade é construída, mantida e alterada não apenas pela forma como nomeamos o mundo, mas acima de tudo pela forma como, sociocognitivamente, interagimos com ele. Interpretamos e construímos nossos mundos na interação com o entorno físico, social e cultural. (KOCH, 2005, p. 34)

Assim, analisar a referência sob uma perspectiva interacionista e

discursiva pressupõe uma concepção de língua que não se esgota no código

nem implica uma correspondência direta com o mundo.

Segundo Mondada e Dubois (2003), a instabilidade das categorias está

vinculada a suas ocorrências, uma vez que se situam nas práticas do sujeito,

em que os locutores negociam uma versão provisória, contextual, coordenada

do mundo. Para esses autores, tal instabilidade lança a desconfiança do leitor

sobre toda descrição única, universal e atemporal do mundo.

Observamos, no próximo cartum, a construção das categorias como

objetos de discurso.

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(Superadas 2, p. 32)

Com a indagação feita à mãe, a menina tenta entender como

surgem as categorias pelas quais os sujeitos compreendem o mundo. A prática

de tirar a parte superior do biquíni pode ser categorizada como topless para a

mãe, sem nenhum prejuízo à sua imagem, como uma prática da modernidade.

Como a pergunta foi feita à mãe, infere-se que a avó, tentando mascarar seu

comportamento, tenha tentado explicar, à neta, a sua atual postura como uma

prática filosófica de viver.

Mondada e Dubois (2003) chamam a atenção para a questão da

variabilidade das categorias como dependente do contexto, no envolvimento

também do ponto de vista ideológico adotado. Assim, um piano pode ser

categorizado como um móvel pesado e incômodo ou como um instrumento

musical, da mesma forma que um indivíduo pode ser igualmente tratado como

um “traidor” ou como um “herói”.

O cartum a seguir é exemplo de como a categorização depende de

nossa percepção sobre o mundo.

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(Superadas 2, p. 139)

Com uma chave de fenda na mão, como que a consertar o que

parece ser uma tomada, e com a caixa de ferramentas a seu dispor, a filha, de

forma implícita e de acordo com sua percepção, categoriza a época de

juventude de sua mãe, como um tempo ruim, em que as mulheres se privavam

de opinar, não se cuidavam, tinham poucas oportunidades de lazer e viviam

para cuidar dos afazeres domésticos. Esse mesmo tempo, no entanto, é

categorizado pela mãe como um “paraíso”, numa demonstração de que a

época atual nada tem a acrescentar a seu bem estar no mundo. A

apresentação da mãe, no estereótipo de pessoa bastante idosa, com os

cabelos brancos e com o corpo envergado contrasta com a postura da filha,

ajoelhada, no chão, de forma a evidenciar a diferença de idade entre as duas e,

por conseguinte, da visão de mundo de uma e de outra em relação às épocas

retratadas.

Para Mondada (2005) a questão da referência atravessa a filosofia

da linguagem e assume, na Linguística, formas teóricas diferenciadas. De um

lado a referência é vista dentro de um modelo de correspondência entre as

palavras do discurso e os objetos de mundo, de outro lado é concebida como

um processo dinâmico e intersubjetivo que se estabelece na interação,

constituindo-se, dessa forma, em uma atividade discursiva.

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Nas palavras de Koch:

Não se entende aqui a referência no sentido que lhe é mais tradicionalmente atribuído, como simples representação extencional de referentes do mundo extra mental, mas, sim, como aquilo que designamos, representamos, sugerimos quando utilizamos um termo ou criamos uma situação discursiva referencial com essa finalidade: as entidades designadas são vistas como objetos de discurso e não como objetos do mundo. (KOCH, 2006, p. 57)

Assim, o referente passa a ser tomado pela noção de

objeto-de-discurso e a ideia de referência passa a ser tomada pela noção de

referenciação, evidenciando a ideia de processo que caracteriza o ato de

referir. Cavalcante (2003) observa que quando passamos da noção de

referência para a de referenciação, acabamos por questionar os processos de

discretização e de estabilização, implicando em uma visão dinâmica que

considera o sujeito sócio-cognitivo e não somente o sujeito “encarnado”.

Para Marcuschi (2007), o processo referencial caracteriza-se melhor

quando considerada a interatividade entre os falantes da língua. Segundo ele,

o entendimento de que a linguagem é uma atividade colaborativa pressupõe

seu envolvimento com a questão referencial. Isso explicaria, por exemplo, o

caso de A saber, com segurança, que B sabe o mesmo que ele quando usa a

expressão X para referir-se à entidade Y.

Numa proposta de classificação e de recategorização lexicais, Apothéloz

e Reichler (1995, apud Lima 2007) determinam três níveis de ocorrência do

processo: a) quando a transformação é operada pelo próprio anafórico; b)

quando o anafórico leva em conta os atributos do referente; e c) quando o

anafórico leva em conta os atributos do referente e os homologa. Esta proposta

de classificação considera a forma como se manifestam as expressões

anafóricas do discurso; dessa forma, observamos que as expressões

anafóricas não são usadas somente para apontar para um objeto- de -discurso,

mas podem ser usadas, também, para modificá-lo.

Segundo Koch e Elias (2006), na construção dos referentes textuais,

estão envolvidas as seguintes estratégias de referenciação:

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Introdução (construção): quando um objeto até então não

mencionado é introduzido no texto;

Retomada (manutenção): quando um objeto já presente no texto

é reativado por meio de uma forma referencial, de modo que o

objeto-de-discurso permaneça em foco;

Desfocalização: quando um novo objeto de discurso é introduzido,

passando a ocupar posição focal, mantendo, contudo, o objeto

em stand by, ou melhor, disponível para utilização imediata

sempre que necessário.

As recategorizações metafóricas usadas como gatilhos para o humor

estão entre as ocorrências das transformações operadas pelo processo

anafórico. De acordo com Leite (2007), uma expressão pode tomar a forma de

uma metáfora ao acrescentar um novo ponto de vista argumentativo à

expressão referencial antecedente, recategorizando-a. De Lima (2007),

extraímos o exemplo que ilustra tal ocorrência:

O cara chega para o amigo e fala: Minha sogra morreu e agora fiquei em dúvida, não sei se vou trabalhar ou se vou pro enterro dela... O que é que você acha? E o amigo: Primeiro o trabalho, depois a diversão. (PIADAS SELECIONADAS, 2003, p. 25)

Em Leite, encontramos outro exemplo:

Na redação do jornal: – Não deu pra sair a notícia do seu casamento – fala o repórter para um figurão. – Tivemos uma catástrofe mais importante. (SARRUMOR, 1999, p. 226)

Constatamos, no primeiro exemplo, a recategorização metafórica de

enterro da sogra como diversão e, no segundo exemplo, a recategorização

metafórica de casamento por catástrofe.

A recategorização metafórica a que Lima (2007) deu ênfase em

textos de humor é apresentada por Koch (2006) como uma manobra lexical de

orientação argumentativa, sobretudo, em textos opinativos.

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3.3 A carnavalização em oposição à seriedade

A concepção carnavalesca de mundo, de Bakhtin, marca oposição à

seriedade, negando o discurso autoritário e opondo a força centrípeta desse

discurso à força discursiva centrífuga do riso (Cf. FIORIN, 2006, p. 89).

Conforme inferimos em Bakhtin (1981), o carnaval é constitutivamente

dialógico, pois opõe duas realidades: uma oficial, monoliticamente séria e triste

e outra, a da praça pública, a do riso. Diferente da festa de carnaval que temos

na atualidade, em que o indivíduo tem uma posição mais de expectador, o

carnaval a que se refere Bakhtin é o carnaval da participação ativa do homem,

de uma festa que se vive e não apenas se presencia. Essa vida carnavalesca é

uma vida desviada de sua ordem natural, sendo, em certo sentido, “uma vida

às avessas”, “um mundo invertido” (monde à l’enver). Em outras palavras, o

carnaval desvia, de forma transitória, o curso normal das relações humanas.

Com a eliminação momentânea da distância entre os homens, entra

em vigor uma categoria carnavalesca específica: o livre contato familiar. A

liberdade que se usufrui no carnaval não admite hierarquias nem discursos

autoritários. Dessa forma, vislumbra-se uma possibilidade de mundo em que

todos são iguais.

Os festejos de tipo carnavalesco ocupavam lugar de destaque na

vida das mais amplas massas populares da Antiguidade grega e especialmente

romana, onde os festejos centrais – mas não os únicos – de tipo carnavalesco

eram as Saturnais, festas oferecidas a Saturno, deus da fertilidade, ao qual

estava associado um reino de abundância. Nesses festejos, os escravos

tornavam-se momentaneamente senhores de seus amos e eram atendidos por

esses da mesma forma que lhes atendiam.

Para estudar a carnavalização, Bakhtin busca textos da Idade

Média, em que se debochavam das Escrituras Sagradas. Neste período, sob a

cobertura da liberdade legalizada do riso, era possível a paródia sacra. Contra

o supremo, também o riso carnavalesco dirige-se para a mudança dos poderes

e das verdades, para a mudança da ordem universal. De acordo com o autor:

Na Idade Média, a vastíssima literatura do riso e da paródia nas línguas populares e no latim estava, de um modo ou de outro,

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relacionada com os festejos de tipo carnavalesco, com o carnaval propriamente dito, com a “festa dos bobos”, com o livre “riso pascal” (risus paschalis), etc. Na Idade Média, quase toda festa religiosa tinha, em essência, seu aspecto carnavalesco público-popular (sobretudo festejos como o Corpus Christi). (BAKHTIN, 1981, p. 147)

Bakhtin (1981.) afirma ainda que o carnaval é uma grandiosa

cosmovisão que liberta do medo e aproxima ao máximo o mundo do homem e

o homem do homem, com as mudanças e sua alegre relatividade, opondo-se à

seriedade oficial, unilateral e sombria.

Em síntese, para Bakhtin (id.) a literatura carnavalizada é a literatura

que, direta ou indiretamente, sofreu a influência de diferentes modalidades do

folclore carnavalesco (antigo ou medieval). Para o entendimento disso, é

necessário que se abandone a interpretação simplista de carnavalização como

fenômeno boêmio e banal e se passe a entendê-la segundo a cosmovisão

descrita pelo autor.

3.4 Détournement

O détournement consiste na produção de um enunciado que

apresenta as marcas linguísticas de uma enunciação proverbial. Como uma

variante do texto cômico, o détournement pode ser considerado um texto

paródico reduzido (Cf. Lauriti, 1990). Ele implica sempre uma modificação, no

plano do significado e no plano do significante, tendo como base os provérbios

que operam principalmente com a competência ideológica do indivíduo, ao

filtrar uma lição de moral.

Antes de darmos sequência à caracterização do détournement,

faremos uma breve exposição sobre paródia e provérbios, pois são conceitos

que se interrelacionam na formação do détournement, entendido, por nós,

como parodização proverbial.

Sobre paródia, em Sant‟Anna (2003), há uma definição curta e

funcional encontrada por ele no dicionário de Brewer como “uma ode que

perverte o sentido de outra ode”, na implicação de que originalmente a ode era

um poema a ser cantado. Para Fávero (2003), “paródia significa canto paralelo

(de para = ao lado de e ode = canto), introduzindo a ideia de uma canção

cantada ao lado de outra”.

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A partir da noção de desvio, Sant‟Anna diferencia paródia, paráfrase

e estilização. Assim, a paráfrase surge como um desvio mínimo; a estilização

como um desvio tolerável; a paródia como um desvio total. Em outras palavras,

no dizer do próprio autor, “a diferença entre esses termos está em que „a

paródia deforma, a paráfrase conforma e a estilização reforma‟”. Para ele, a

paródia é sempre inauguradora de um novo paradigma por estar ao lado do

novo e do diferente.

Examinando a natureza carnavalesca da paródia, Bakhtin (1981)

observa que a paródia é um gênero organicamente estranho aos gêneros

considerados puros da Antiguidade (tragédia, epopeia), sendo, ao contrário,

própria dos gêneros carnavalizados. Na Idade Moderna, há uma ruptura da

paródia com a cosmovisão carnavalesca da Antiguidade, que a tudo parodiava.

Josef (1980) afirma que a paródia mostra-se como uma escrita

transgressora que engole e transforma o texto primitivo, reestruturando-se

sobre ele ao mesmo tempo em que o nega. Em consonância com Fávero,

Lauriti (1990) vê a paródia como uma linguagem que, na ruptura com a

convenção, cria novas formas de ver o mundo, sendo um discurso que se

distancia da verdade constituída. Para ela, na paródia, as vozes estão

orientadas em diferentes sentidos e podem enfatizar diferentes aspectos,

conforme afirma:

[...] ela pode recair sobre o estilo do texto primitivo; pode-se parodiar a maneira típico social ou caracterológico individual de o outro ver, pensar e falar. Além disso, ela tanto pode agir apenas sobre as formas superficiais como sobre os princípios mais profundos do discurso do outro. (LAURITI, 1990, p. 208)

Fávero (2003) observa que a marca principal da paródia é a luta

entre vozes, o que implica seu caráter dialógico, dissonante e polissêmico.

Os provérbios, como modelos cristalizadas por uma comunidade,

são uma asserção sobre a maneira como funcionam as coisas no mundo. (Cf.

MAINGUENEAU, 2008). A natureza do provérbio é fundamentalmente

polifônica, pois o enunciador apresenta sua enunciação como uma retomada

de inúmeras enunciações anteriores. Isso significa dizer que o enunciador faz

com que seja ouvida, por intermédio de sua própria voz, a voz da sabedoria

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popular (vox populi) evidenciando uma citação de autoridade. O enunciador

apoia-se nele para introduzir uma situação particular em um quadro

preestabelecido, delegando ao co-enunciador a tarefa de determinar a relação

entre eles. Assim, o provérbio “Água mole em pedra dura tanto bate até que

fura” é convencionalmente associado à ideia de perseverança.

De acordo com Fernandes4 (1961, apud Lucena, 2006), a apelação

aos provérbios ocorre porque se pensa ou se acha que os outros pensam “que

tudo está ali”, com a convicção de que os provérbios exprimem a verdade. Para

esse autor, os provérbios fazem parte do ajustamento das pessoas a

determinadas situações sociais.

Sabemos que os provérbios fazem parte do folclore e, de acordo

com alguns estudiosos, sua existência é tão antiga quanto a história da própria

humanidade. Os provérbios são transmitidos de um para outro e sobrevivem às

novas gerações que surgem.

No Brasil, por meio de adornos de para-choques, os provérbios

transitam por todo o território nacional. Para Cohen (1991), o entendimento da

relação entre os provérbios, países e culturas não pode fugir à análise de

algumas circunstâncias étnicas, históricas e geopolíticas que permitem sua

disseminação. Os provérbios brasileiros são, de acordo com esse autor,

irônicos, sábios e pacatos, reflexos da característica pacifista de seu povo e

das diferenças socioeconômicas que existem no país, sendo comum a

repetição de provérbios como “Alegria de pobre dura pouco” ou “Quando a

esmola é muita, o santo desconfia”.

Segundo Lucena (op. cit.), os provérbios, por constituírem um

gênero oral, são de fácil memorização e possuem amplos recursos da retórica

e da poesia como, por exemplo, a metonímia, a metáfora, a aliteração, entre

outros.

Retornando à noção de détournement, Grésilon e Maingueneau

(apud KOCH, BENTES e CAVALCANTE, 2007) preconizam a existência de um

détournement do tipo lúdico e outro do tipo militante. O primeiro apresenta a

modificação de um provérbio de forma “inocente”, apenas com o intuito de

4FERNANDES, Florestan. Folclore e mudança social na Cidade de São Paulo. São Paulo: Anhambi S/A.

1961.

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brincar com as palavras, sem compromisso de adesão ou de recusa à ideia

expressa no provérbio. O segundo, com utilização estratégica, pode tanto

valorizar a carga ideológica contida no provérbio, tomando-lhe a mesma

direção, como contraditá-la, orientando-a para um novo sentido.

Para Maingueneau (2008), todo slogan aspira a ter a autoridade de

um provérbio, a ser universalmente conhecido e aceito pelo conjunto de

falantes de uma língua. Para ele, em um slogan como “Beleza é fundamental”

existe a captação do gênero provérbio, pois, não sendo um provérbio, a

expressão possui propriedades linguísticas semelhantes às de um provérbio,

podendo ser utilizado como tal.

No caso de “Os cães ladram, os Lee Cooper passam” existe a

captação de um provérbio reconhecido, ou seja, a imitação opera a partir de

um texto que favorece tal reconhecimento: “Os cães ladram, a caravana

passa”. Para o autor, portanto, quer se trate de captar ou de subverter, a

imitação se dá em dois planos: o do gênero do discurso e o do texto

reconhecido.

O détournement comporta, basicamente, as estratégias de captação

e de subversão. Quando o enunciador utiliza-se da autoridade do provérbio a

seu favor, temos a captação do provérbio a exemplo de “Quem procura acha”

para “Quem procura acha, aqui!”. A subversão, por sua vez, ocorre na

discordância de vozes.

De acordo com Koch, Bentes e Cavalcante (2007), o détournement

ocorre, em grande parte dos casos, pela estratégia de subversão, numa

contradição ao texto fonte, por intermédio da negação de uma parte ou do todo,

pelo apagamento da negação que aquele encerra, ou ainda pelo acréscimo de

expressões adversativas, como em “devagar se vai ao longe, mas chega-se

muito tarde”; “É mais fácil um camelo passar pelo olho de uma agulha do que

um rico entrar no reino do céu sem subornar o porteiro”. “Água mole em pedra

dura, tanto bate até que a água acaba”. Percebemos, pelo demonstrado, que

no détournement o humor nasce da ruptura com o previsível. Em sua utilização

lúdico-humorística, o détournement constrói-se pela subversão decorrente do

confronto entre o mesmo e o diferente, na expressão do conflito entre o

garantido e institucionalizado e a tematização de seu deslocamento.

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Segundo as autoras, o détournement tem sempre valor

argumentativo em diferentes graus. Assim, no exemplo “Cão que ladra, não

morde”, convertido para “Cão que ladra não morde enquanto ladra”, a

argumentação contida no provérbio de que as pessoas que esbravejam não

são capazes de atitudes mais drásticas desfaz-se pelo acréscimo da oração

adverbial de tempo “enquanto ladra”, que argumenta em contrário à primeira

ideia.

Possenti (2010, p. 132) utiliza-se do aforismo de Millôr Fernandes

Ser pobre é um pecado venial. Se conformar com isso é um pecado mortal

como exemplo de subversão e do confronto entre vozes, já que tratar a

aceitação da pobreza como pecado grave é dialogar com doutrinas religiosas

que a consideram quase que uma virtude.

Em suma, concluímos que o détournement, ao romper com as

“verdades” pré-estabelecidas pelas estruturas convencionadas, acaba por

relativizar o discurso, que se pretendia absoluto, na construção de um novo

modelo.

3.5 Ironia em duas vozes

A palavra ironia provém do grego eiróneía, que significa

dissimulação, fingimento. Segundo MUECKE (1995), ironizar é dizer alguma

coisa de uma forma que ative não uma, mas uma série infindável de

interpretações subversivas.

Para Aristóteles (2005), a ironia quadra melhor ao homem livre do

que a bufonaria, pois ironizamos para nos deliciarmos, enquanto bufoneamos

para deliciar os outros. Propp (1992) [1976] aproxima a ironia do paradoxo e

afirma que, se no paradoxo conceitos que se excluem mutuamente são

reunidos apesar de sua incompatibilidade, na ironia se expressa com as

palavras um conceito, mas se subentende outro contrário a ele. Para o autor, a

comicidade que advém da ironia explica-se pelo fato de ela constituir um dos

aspectos da zombaria. Brait (1996) postula que é possível saltar de uma

concepção retórica da ironia para uma concepção que a considere dentro de

uma perspectiva discursiva. Para a autora:

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A ironia pode ser enfrentada como um discurso que através de mecanismos dialógicos oferece-se basicamente como argumentação direta ou indiretamente estruturada, como paradoxo argumentativo, como afrouxamento de ideias e de normas institucionais, como instauração da polêmica ou mesmo como estratégia defensiva. É possível assim abandonar a série caracterizada como sendo a das figuras de linguagem, da frase de efeito de um texto que compõe, e mesmo da comicidade, delineando-se o horizonte de outra perspectiva. (BRAIT, 1996 p. 58)

Segundo a autora, a dupla leitura mobilizada por um enunciado

irônico envolve formas de interação entre os sujeitos, bem como a relação

entre o objeto da ironia e as estratégias linguístico-discursivas que põem em

movimento o processo. Dessa forma, o produtor da ironia chama a atenção do

destinatário para o seu discurso, convocando-o a uma construção

interpretativa. Nesse sentido, lembramos o Princípio de Cooperação de Grice,

para quem a comunicação depende de um esforço cooperativo entre os

participantes.

A ironia é, conforme Brait, uma categoria estruturadora de textos que

denuncia um ponto de vista, promovendo uma argumentação indireta. Conta

para isso, com a perspicácia do destinatário – intérprete final – para

concretizar-se em sua significação. Nas palavras da autora:

[...] o discurso irônico joga essencialmente com a ambiguidade, convidando o receptor a, no mínimo, uma dupla descodificação, isto é, linguística e discursiva. Esse convite à participação ativa coloca o receptor na condição de co-produtor da significação, o que implica necessariamente sua instauração como interlocutor. (BRAIT, 1996, p. 96).

O processo da ironia evidencia conceitos como intersubjetividade,

conhecimentos partilhados, convivência e comprometimento entre os sujeitos

de forma que, mesmo assinalado por valores atribuídos ao enunciador, o

procedimento irônico passa a exigir do leitor/ouvinte a mobilização de seus

valores culturais no trabalho de interpretação. Dessa forma, percebemos que a

participação do leitor/ouvinte dá-se de forma a ultrapassar o nível linguístico do

processo da ironia, afirma Brait.

Para a autora, devemos estudar a ironia como um procedimento

intertextual e interdiscursivo, numa concepção que a relaciona à ideia de

heterogeneidade discursiva, isto é, o discurso construído a partir do discurso do

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outro. Ainda, segundo a autora, para haver ironia, existe a opacificação do

discurso que, em outras palavras, significa o enunciador produzir um discurso

de forma a chamar a atenção não apenas para o que está dito como também

para a forma de dizer e para as contradições existentes entre as duas

dimensões.

Depreende-se, pela leitura de Ducrot (1987), que a ironia pertence

ao grupo das manifestações polifônicas que se contrapõe à ideia de unicidade

do sujeito. Assim, quando em um enunciado retoma-se o que o outro disse (e

que, por isso, o locutor não assume como seu), observa-se um movimento de

polifonia. O autor, ao distinguir locutor de enunciador, exemplifica:

[...] quando há uma retomada (em um sentido mais largo deste termo, e que não implica nem repetição literal, nem paráfrase). L, a quem se censurou por ter cometido um erro, retruca: “Ah! eu sou um imbecil; muito bem, você não perde por esperar!”. L é aqui ainda o produtor das palavras e é ele igualmente que é designado pelo eu. Mas a responsabilidade do ato de afirmação realizado no primeiro enunciado não é certamente L que assume – já que justamente L tem a modéstia de o contestar: ao contrário, L o atribui a seu interlocutor I (mesmo que I não tenha, de fato, falado de bobeira. Mas somente feito uma censura que, segundo L, implica em boa lógica para I, a crença na imbecilidade de L). (DUCROT, 1987, p.180)

Dessa forma, concluímos que os enunciados podem apresentar

declarações que não condizem com o ponto de vista daquele que as enuncia,

sendo que, na ironia, isso acontece de forma mais evidente. Segundo

Maingueneau (2008), a ironia ocorre quando o enunciador subverte a sua

própria enunciação. Para ele, o fato de alguém apontar a gentileza de outro

alguém que acaba de ser grosseiro é como uma encenação, em que a voz que

ele escuta ressoa como a de outro, que ele põe em cena, e que dele se

distancia.

Para Castro (2005), a ironia apresenta-se como um caso típico de

bivocalidade – marca principal da obra de Mikhail Bakhtin – pois a

consideração pelo discurso do outro implica o reconhecimento do segundo

contexto como forma de percepção da ironia.

O discurso irônico também tem sido estudado pelas relações com as

Máximas postuladas por Grice (1982), no tocante ao princípio da qualidade, em

que se espera veracidade em um enunciado. Nesse caso, a interpretação de

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que a fala é contraditória ocorre pelo processo inferencial que leva o

ouvinte/leitor ao estabelecimento de implicaturas. O enunciador sinaliza, por

meio de marcas, que o que ele diz não é o que efetivamente pretende dizer.

Tais marcas transparecem na oralidade pela entonação, enquanto na escrita,

ela é revelada por índices que marcam distanciamento, como reticências,

palavras enfáticas e aspas, dentre outros.

Por fim, lembramos que a ironia, não sendo uma condição para a

existência do humor, a ele relaciona-se. Julgamos que a abordagem feita neste

tópico sobre a ironia é mais condizente, para nosso trabalho, que outras mais

tradicionais e que a limitam a mera figura de linguagem. Ao considerar o

receptor como intérprete final do enunciado irônico, a perspectiva adotada

acaba por considerar, também, a linguagem como uma atividade do sujeito,

como um lugar de interação.

3.6 Humor: suportes de veiculação

Os textos humorísticos são veiculados de diversas formas e em

suportes variados. Podemos citar, como meios de veiculação para esses

textos, os jornais, as revistas especializadas, os programas de televisão e de

rádio, entre outros. Daremos destaque ao humor na imprensa escrita, já que

ela é um veículo que, tradicionalmente, serve como suporte para os cartuns,

objetos deste trabalho.

O humor na imprensa escrita aparece em cadernos diversos. De

acordo com Possenti (2010), a publicação do humor no caderno cultural implica

reconhecê-lo como cultura ou arte; quando publicados em forma de charges ao

lado dos editoriais, a implicação é a da expressão de opinião comprometida

com os ditos noticiários “quentes” do jornal. Para o autor, as charges relativas

às matérias de primeira página apresentam, muitas vezes, a mesma voz da

editoria, só que em outro registro.

Os critérios que orientam a organização do humor nesse tipo de

imprensa relacionam-se com o grau de ligação com as notícias em evidência.

Assim, há o humor dos que têm compromisso com o conteúdo do periódico e o

humor dos que não têm esse tipo de compromisso, afirma Possenti (2008).

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O primeiro caso está relacionado ao humor dos chargistas, já

comentado no capítulo 1. Como exemplo de chargistas conceituados na

imprensa brasileira, podemos citar Ziraldo, Angeli e Caco Galhardo.

Recentemente, destaca-se o jovem João Montanaro que, aos 14 anos, assina

charges políticas aos sábados na Folha de S.Paulo. O segundo caso volta-se a

outros tipos de humor e aparece, de forma mais livre, na disposição do

periódico e sem comprometimento com as matérias em destaque. Os autores

desse tipo de humor são normalmente consagrados, a exemplo de Luís

Fernando Veríssimo, Jô Soares e José Simão que, com a autonomia

conquistada, publicam com mais liberdade, apesar de, eventualmente,

guardarem relação com os fatos mais destacados na imprensa.

Feitas essas considerações acerca do humor, lembramos que, para

Travaglia (1990), humor e riso são indissociáveis, mas o riso a que ele se

refere não é, necessariamente, o riso audível, mas, sim, aquele que se entende

de forma mais ampla, como um movimento de satisfação do espírito.

Destacamos que, em nosso trabalho, não faremos distinção entre

humor e comicidade; por isso, sempre que nos referirmos a “humor”, o

estaremos fazendo na concepção de Travaglia (id.).

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4 ANÁLISE DO CORPUS

O corpus, conforme já exposto, é representado por dezoito cartuns

de Maitena, nas seguintes categorias de análise: Focalização, Inferências,

Interdiscursividade, Intertextualidade, Polifonia e Recategorização. A

organização por blocos deve-se a uma questão metodológica no intuito de

enfatizar os recursos analisados, sendo difícil fazer uma partição rigorosa,

quando se fala em produção de sentido, dada a sua complexidade. Os critérios

utilizados para a análise ancoram-se em estudos da Linguística Textual,

conforme explicitado na introdução.

Para uma contextualização do nosso corpus é necessário que se

faça uma breve apresentação da autora dos cartuns selecionados e de seu

trabalho. Maitena Inés Burundarena trabalhou como ilustradora gráfica para

jornais e revistas argentinos, fez animações para programas televisivos e foi

roteirista de TV. Em 1993, foi convidada pela revista Para ti, de maior tiragem

em seu país, para escrever uma página semanal sobre o universo feminino.

Vem publicando, a partir de 1999, seus trabalhos nos jornais espanhol El Pais,

francês Le Figaro, italiano La Stampa, mexicano El Universal, português

Público, entre outros. No Brasil, seus cartuns tiveram publicação no Caderno

Equilíbrio, do jornal Folha de São Paulo, e na revista Claudia.

Dos cartuns veiculados nos jornais, surgiram algumas coletâneas,

dentre elas, as reunidas sob os títulos Curvas perigosas, Mulheres alteradas,

Mulheres superadas. A temática principal de Maitena é a inquietação da mulher

com o seu estar no mundo.

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4.1 Coerência Textual

4.1.1 Focalização

Cartum 1: Superadas 1, p. 135

O cartum 1 apresenta dois homens em um provável ambiente de

trabalho, pelo que inferimos a partir da indumentária (camisas sociais e

gravatas) e pelo ambiente (mesa e telefone). O primeiro falante tem, como foco

de insatisfação, a dependência da mulher; o segundo focaliza, justamente, a

independência como fator de desconforto.

Pela interjeição “ufa!” e pela expressão do primeiro interlocutor,

intuímos que ele está cansado com os constantes pedidos da mulher. Ainda

com relação ao primeiro interlocutor, as cores da camisa e da gravata (cinza

clara e cinza escura) contribuem para um apagamento da sua imagem.

Também podemos supor que o primeiro interlocutor não seja casado, pela

ausência da aliança.

O segundo interlocutor aparenta tranquilidade e demonstra maior

preocupação com a aparência, como percebemos pela combinação das cores

da camisa e da gravata. A aliança na mão esquerda explicita uma relação

oficial. Pela sua posição (mão no ombro do amigo) percebe-se que ele procura

acalmar o primeiro, apresentando-lhe uma situação que, para ele, é pior.

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O humor, neste cartum, é construído pela perspectiva particularizada

dos interlocutores. A diferença de focalização, nesse caso, provoca a reflexão

sobre o que seja estar bem ou mal no mundo em diferentes contextos. O leitor

passa a ter certa identificação com um ou com o outro falante e passa a rir da

ideia que, para ele, é inusitada. A afirmação do segundo falante, de que a

independência da mulher é um incômodo, encontra eco no discurso machista,

que vê o homem como o provedor da família, tema controverso na sociedade

atual.

Cartum 2: Superadas 1, p. 123

Esse cartum apresenta duas mulheres sentadas à mesa, em

ambiente que sugere ser um restaurante, pelos objetos que se encontram

sobre a mesa. Reflete a inquietação da segunda personagem com relação ao

marido tê-la trocado por outra mulher da mesma idade que ela. A personagem

Clarinha parece não ter tido essa mesma vivência em seu casamento, já que

Focalização 1: Não existe coisa

pior para um homem que ter uma

mulher dependente.

Focalização 2: A independência

financeira da mulher causa

desconforto para o homem.

Ruptura: É pior ter uma

mulher independente.

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seu comentário aparece modalizado pela forma linguística “não deve haver

coisa pior”. O aspecto cômico deve-se à forma como a segunda interlocutora

posiciona seu sentimento de forma mais “aguda”, como se dissesse que ser

trocada por uma mais jovem é mais aceitável. A observação dessa

interlocutora tem respaldo no discurso da sociedade que vê o homem como

que inclinado a relações motivadas pelo aspecto físico. A mobilização do

conhecimento desse discurso faz com que o leitor compreenda a agudeza com

que a personagem apresenta sua versão.

,

Entendendo que mais nova pode significar “melhor” e da mesma

idade pode significar “igual”, observamos a “superioridade” da apreensão da

segunda já que, ausente o motivo físico (responsabilidade externa à

personagem) para a troca, resta o motivo comportamental e intelectual

(responsabilidade interna à personagem).

Na análise desse cartum, rememoramos as posições de Bergson

(v. capítulo 3 deste trabalho), o qual associa o riso ao envolvimento que temos

em relação à situação provocadora do riso, pois, dentro do contexto de quem

viveu a situação, a apresentação do cartum pode provocar sentimentos

contrários ao do riso.

Focalização 1: Não existe coisa pior

que ser trocada por uma mulher mais

nova.

Focalização 2: Ser trocada por uma

mulher da mesma idade é menos

aceitável, já que, na condição de

igualdade, o motivo da separação é

de natureza mais complexa, razão

que amplia o sentimento de

inferioridade da mulher.

Ruptura: é pior ser trocada

por uma mulher da mesma

idade.

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Cartum 3: Superadas 2, p. 60

No cartum acima, são apresentados dois meninos, provavelmente

no quarto do primeiro, já que os dois estão sentados sobre uma figura que

sugere uma cama, onde o primeiro abre o presente que acaba de receber de

sua avó. O primeiro menino mostra-se irritado pelo fato de, em todo

aniversário, receber roupas como presentes de sua avó. O segundo o consola

(pela expressão do tapinha no ombro), dizendo-lhe que, pior que receber

roupas, é ganhar joguinho didático.

A coerência deste cartum está no conhecimento partilhado de que

os familiares costumam dar presentes úteis para as crianças que,

normalmente, desejam brinquedos. Jogos didáticos, apesar de serem

considerados pelos adultos como brinquedos, não são vistos da mesma forma

pelas crianças, já que desejam brincar sem o compromisso da aprendizagem.

Salientamos o uso do diminutivo “joguinho” utilizado pelo segundo menino que,

Focalização 1: Não existe coisa pior

que ganhar roupas no aniversário.

Focalização 2: Não existe coisa

pior que ganhar joguinhos

didáticos no aniversário, pois

estes não são considerados

propriamente brinquedos.

Ruptura: É pior ganhar

joguinho didático.

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de forma irônica, amplia seu desprezo por esse tipo de presente. O

reconhecimento, por parte do leitor, de que crianças e adultos focalizam de

forma diferente a “utilidade dos presentes”, desencadeia o humor do cartum.

Cartum 4: Superadas 1, p. 64

Nesse cartum, temos a replicação do verbo comer nas formas

“comê-lo” / “comi” em acepções diferentes e, neste enunciado, antagônicas.

Para a primeira interlocutora, o sentido é de “saborear”, “desfrutar”,

nutrir-se de coisa boa; para a segunda, o sentido é de “destruir”, “eliminar” o

que é ruim. O contraste, construído pelo mesmo verbo, causa a comicidade do

cartum e revela a característica antitética do estilo de Maitena.

A relação intertextual ocorre, em sentido amplo, pela memória social,

na lembrança que os leitores têm do hábito das mães de ostentarem a

formosura de seus bebês. A segunda interlocutora, porém, remete o leitor ao

costume das mães de se queixarem do comportamento dos filhos quando eles

ultrapassam o limite da infância.

Focalização 1: Filho bebê –

motivo de alegria.

Focalização 2: Filhos são

motivos de alegria e de

descontentamento.

Filho adulto – motivo de desconte.

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Cartum 5: Superadas 1, p. 85

O cartum 5 apresenta uma mulher que, ao analisar seu corpo com

celulite, constata a impossibilidade de afastar-se de seu lado “humano”.

A ideia de que a tecnologia afasta o homem de seu lado humano é

rompida nesse cartum pela substituição do valor que se dá ao sentido da

palavra “humano”. A acepção que a personagem dá para a palavra, no primeiro

balão, corresponde à de calor humano, que tem sido enfraquecido nas

relações, hoje, mecanizadas pela tecnologia. De forma implícita, no segundo

balão, a expressão tem valor de “imperfeição”, no mesmo sentido de que “errar

é humano (ter defeitos)”. Quem é humano está sujeito à imperfeição. A

personagem, por ser humana e, consequentemente “imperfeita”, tem celulite.

A produção do cômico dá-se pela ambivalência com que se constrói

o termo “humano”. No cartum em questão, a mudança de foco acaba por

provocar também uma mudança temática, que desloca o tema das relações

humanas frente à tecnologia para as inquietações da mulher com a questão da

Focalização 1: A tecnologia

afasta as pessoas de seu lado

humano.

Focalização 2: É impossível

para o ser humano afastar-se

de seu lado humano.

Ruptura: A celulite aproxima as pessoas de seu lado humano.

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estética. A mudança temática, nesse caso, não interfere na coerência, haja

vista que a prática comunicativa do cartum reside na provocação ao humor.

Observamos, na análise dos cartuns referentes a esse bloco, que a

produção do sentido cômico se estabelece pela interação do leitor com as

diversas abordagens dos temas, focadas pelas personagens.

Chamamos a atenção para os cartuns 1, 2 e 3, nos quais a

cartunista utilizou-se da estrutura de pergunta e resposta, de forma semelhante

à dos jogos de adivinhas, contando com a competência metagenérica do leitor

na produção do sentido, dada sua configuração intergenérica. Os jogos de

adivinhas, as famosas brincadeiras de charadas para decodificar enigmas,

costumam ter, em sua decifração, uma resposta inesperada. Sobre a estrutura

própria dos jogos de adivinhas, afirma Marini (1999, p. 68): A estrutura

canônica “O que é o que é?”, anuncia, sem sombra de dúvidas, que se está

diante de uma adivinha. Entretanto, a estrutura interrogativa pode variar quanto

a sua forma.

Muitas charadas sofrem reconstrução como forma de atualização de

seu enigma, como no exemplo: “O que é o que é? Tem bico, mas não bica, tem

asa mas não voa”. A palavra “bule” é a resposta esperada. Em sua forma

reconstruída, entretanto, a charada traz, como solução, “passarinho morto”:

“Tem bico, mas não bica; tem asa, mas não voa”. A resposta inesperada,

nesse caso, é um dos fatores de construção do sentido do texto, justamente

por estar contida no gênero charadas, em que o leitor já espera a quebra do

script.

Ao fazermos uma correlação desses três cartuns com os jogos de

adivinhas reconstruídos, observamos que Maitena utiliza estruturas à

semelhança desse tipo de jogo, como se constata nos seguintes quadros:

Jogos de adivinhas:

ENIGMA RESPOSTA ESPERADA RESPOSTA RECONSTRUÍDA

O que é, o que é? Tem bico, mas não bica, tem asa mas não voa?

Bule. Passarinho morto.

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Cartuns 1, 2 e 3

PERGUNTA (ENIGMA) RESPOSTA ESPERADA RESPOSTA

RECONSTRUÍDA

Alguma coisa te deixa pior? Não. Sim. [...]

Não deve haver coisa pior. Não. Tem, sim. [...]

Tem coisa pior? Não. Tem... [...]

Nesses cartuns, as respostas afirmativas para a existência de

situações piores que as propostas rompem com as expectativas do interlocutor

que, primeiramente, situa o tema abordado, no foco do primeiro personagem,

para depois voltar a sua atenção a coisas mais desagradáveis que as focadas

por ele. O movimento polifônico ocorre pelas várias vozes que falam de

perspectivas ou pontos de vista diferentes, levando o interlocutor à percepção

de diferentes mundos discursivos aos quais são submetidos pelo jogo de saber

o que é pior.

Com base nos exemplos apresentados, representativos desse

conjunto de cartuns, concluímos que o sentido do humor constroi-se pela

ruptura, que desconcentra o leitor do primeiro foco, para levá-lo a uma

possibilidade argumentativa ainda não imaginada por ele. Diante do “novo”, o

leitor se vê na condição de pensar: “Ué! não é que é isso mesmo?”.5

5“[...]Diante do humor podemos ter sempre a reação de falar: – Ué! Não é que é isso mesmo.” Expressão

utilizada por Ziraldo no artigo Ninguém entende de humor. (Cf; TRAVAGLIA, 1990, p.68)

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4.1.2 Inferências

Cartum 6: Superadas 1, p. 10

Um rapaz reclama com a namorada que o estilo de vida dele não

encontra correspondência ao estilo dela na relação dos dois. Sua vestimenta,

sua postura e sua própria fala o caracterizam como “moderninho”, “ousado”

“aventureiro” (usa brinco, cabelos desfiados pelo corte, óculos de sol e

camiseta em cor viva). A garota, por outro lado, apresenta uma postura ereta,

mão no bolso, cabelos arrumados). Ao requisitar que a namorada o exponha a

emoções fortes – dada a primeira inferência de que, para ele, o relacionamento

é monótono – o interlocutor é surpreendido com a resposta de que as

emoções fortes e as vertigens serão possíveis quando ela o apresentar a seus

pais.

O leitor/ouvinte só perceberá o cômico, na resposta da jovem, se

fizer a inferência de que seus pais são conservadores, fato esse que provocará

um embate no possível encontro com o namorado.

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Cartum 7: Superadas 1, p. 138

É perceptível, nessa apresentação, que as duas interlocutoras

pertencem a classes sociais diferentes. A leitura do não verbal ajuda na

produção do sentido, já que representa, pelo estereótipo da vestimenta, o lugar

social de cada uma. A primeira interlocutora é apresentada com roupas simples

e com os cabelos ajeitados com lacinho. A segunda, maquilada e vestida

socialmente, é caricaturizada como pertencente a uma classe social mais

elevada em relação à primeira.

A inferência feita pela segunda interlocutora sobre a profissão do

namorado da filha da outra ser a de pintor de quadros (artista) justifica-se por

seu contexto social, que entende essa profissão como de status, de fama. A

primeira interlocutora, ao contrário, e devido também a seu contexto social,

surpreende a segunda ao responder que imaginava ser ele um pintor de

paredes, profissão, para ela, considerada como de “gente que trabalha”. A

expressão linguística “imaginei outra coisa” mostra claramente que há uma

diferença entre o que uma e outra entendem sobre a situação.

Lembramos que são os marcos de cognição dos grupos sociais,

construídos pelos conhecimentos sociais, que fazem com que cada grupo

tenha um ponto de vista específico. Grupos sociais com marcos de cognição

sociais diferentes costumam entrar em desacordo. Isso justifica o porquê de o

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sentido intencionado pela primeira ter sido contrariado pela inferência da

segunda.

Cartum 8: Superadas 1, p. 113

Só é possível apreender o efeito cômico pretendido nesse cartum

com o conhecimento partilhado que se tem sobre o discurso dos homens

casados em adiarem a separação para assumirem outro compromisso. A

aparência da primeira interlocutora demonstra que ela é jovem e que, talvez,

pela pouca idade, desconheça tal argumento (a blusa cor de rosa e o jeito do

cabelo lhe dão um ar de ingenuidade). A segunda interlocutora (fumando,

tomando cerveja), aparentando ser mais experiente que a primeira, deixa

transparecer, em sua expressão, conhecimento desse discurso em decorrência

de sua vivência pessoal em relação ao assunto.

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Cartum 9: Superadas 1, p. 11

Em consulta, a paciente indaga ao médico sobre em qual parte do

corpo deve-se injetar colágeno para preenchimento do vazio existencial.

O conhecimento enciclopédico sobre o fato de que as mulheres

utilizam-se de procedimentos estéticos, injetando colágeno para preenchimento

de rugas é essencial para a compreensão do cartum. Também pertence ao

conhecimento de mundo o fato de que muitas mulheres procuram, na

intervenção estética, formas de driblar insatisfações de ordem não estéticas.

Cartum 10: Superadas 1, p. 145

Uma mulher expõe à amiga suas inquietações em relação a um

possível encontro com alguém que ela conheceu pela internet.

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Ao contrário das características apresentadas pela interlocutora para

o homem com o qual se corresponde (magra, alta, ruiva e de olhos cinza), a

mulher é apresentada no cartum como baixa, gordinha e com aparência não

condizente com os padrões de beleza estipulados pela sociedade. Há um

discurso social de que esse padrão é o que deve ser alcançado pelas mulheres

que querem ser bem sucedidas com os homens, como um modo de ser

fisicamente. Embora não negue a importância de outras características

importantes para a mulher, como a de ser amorosa, inteligente etc., tal discurso

maximiza o padrão estético.

Em sites de relacionamento, muitas vezes, os interlocutores

apresentam um falso ethos na tentativa de conquistar o parceiro. O

conhecimento de tal prática, aliado à imagem mostrada no cartum, a qual não

corresponde às características que a interlocutora diz ter passado para o

pretendente, é responsável pelo efeito cômico.

Os cartuns 7, 8, 9, 10 e 11, apresentados nesse grupo, comprovam

que a produção do sentido considera as inferências utilizadas nas relações

estabelecidas com os elementos não explicitados. Como já destacado no

capítulo 2, as inferências estão ligadas ao conhecimento de mundo. Entender

as estratégias que levam o leitor à compreensão dos sentidos apresentados,

nesses cartuns, é também entender o texto como um evento comunicativo em

que convergem ações linguísticas, sociais e cognitivas.

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4.2 Polifonia, interdiscursividade e intertextualidade

Cartum 11: Superadas 1, p. 80

Duas jovens conversam sobre a perda da custódia de uma delas

pela mãe. A representação da filha em padrão não convencional (que aparece

fumando, com cabelo verde, batom azul, colar em forma de coleira e utilizando

piercings) induz o leitor à construção de uma imagem negativa sobre ela, razão

pela qual, a rejeição da mãe é capaz de provocar o humor. A apresentação

visual da amiga (cuja fivelinha no cabelo e a mão na cintura lhe dão um ar de

“mocinha”) acentua a diferença entre as duas.

A situacionalidade dá coerência ao texto à medida que transmite ao

leitor, de forma estereotipada, a imagem da filha como “problemática”, numa

situação que poderia motivar o leitor a aceitar a rejeição.

Observamos, nesse cartum, a estratégia de subversão, semelhante

à estrutura do détournement. A situação apresentada transgride a tradição,

pois a vox populi é de que toda mãe luta pela guarda de um filho num processo

de separação conjugal. Esse procedimento contraria, pois, a moral do senso

comum. A resposta da garota rompe com a expectativa inicial do leitor ao

afirmar que a mãe teve de ficar com ela justamente por ter perdido o processo.

Percebemos que, para a mãe, ficar com a filha, passou a ser uma obrigação,

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numa espécie de padecimento sem paraíso, negando a máxima de que “ser

mãe é padecer num paraíso”.

A palavra “mãe” é carregada de sentido. Não raras vezes,

ouvimos/lemos em slogans publicitários que “mãe é amor”, que “mãe é aquela

que se sacrifica de todas as formas pelos filhos”, que “mãe é sempre mãe”,

numa espécie de coroação por um papel quase que sagrado. Esse cartum

apresenta, de forma carnavalizada, o descoroamento da figura consagrada da

mãe. A mãe desconsagrada, em vez de lutar, como mártir, pela guarda da filha,

luta por renunciá-la, voltando-se contra o curso “normal”, rompendo com o

previsível.

Concluímos, portanto que, nesse cartum, há uma refutação de vozes

e de ideias pré-construídas que se contrapõem ao “mundo em repouso” que a

ideia de ser mãe veicula. Embasados no fato de que a subversão não tem valor

argumentativo, podemos depreender que, na figura apresentada, existe o

argumento no sentido de se retirar do papel de mãe a imagem santificada de

mulher que tudo suporta em nome dos filhos.

Observamos, no cartum apresentado, semelhança à estrutura do

détournement, na destruição de “verdades” representadas socialmente pelos

marcos de cognições sociais. A subversão, nesse caso, não é feita pelo

intertexto, pois o reconhecimento que se faz do que é subvertido não decorre

da presença de outro texto, mas pela de outro discurso; ou seja, o que se ativa

na memória não é um texto original, mas uma representação. O quadro abaixo

explicita de que forma se dá tal semelhança.

PADRÃO DESVIO PARADIGMA

VIGENTE NOVO

PARADIGMA

A mãe briga para ter a guarda da filha.

A mãe briga para não ter a guarda da filha.

Ser mãe é padecer no Paraíso.

Mãe = mulher santificada

Ser mãe é viver no Paraíso Ser mãe é não padecer Mãe = mulher humana

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Cartum 12: Superadas 1, p. 72

Quando pensamos no ritual de cumprimento aos noivos em

cerimônia de casamento, temos em mente os desejos, por parte dos

convidados, de felicidade eterna. Todavia, nesta apresentação, a naturalidade

da fala da senhora com a declaração de que haverá uma separação, causa

surpresa ao casal – pelo que percebemos pelos seus olhares – e ao leitor por

duas razões: primeiro, pelo fato de ser esse um cumprimento oposto ao

esperado pela rotina já consagrada; segundo, porque não é um tipo de

constatação que se espera de uma senhora representante de uma geração que

guarda padrões tradicionais em relação ao casamento. A comicidade do cartum

é provocada pela forma discrepante de felicitação no cumprimento aos noivos,

na antecipação do fim do casamento.

Marcado pelo texto visual e verbal, notamos, neste cartum, o discurso

parodístico no palco de luta entre as vozes da sociedade moderna, que tende a

aceitar a efemeridade das relações conjugais e a voz do discurso religioso,

subvertendo os valores cristãos, que pregam o casamento como um contrato

espiritual cujo término, feito no juramento da cerimônia, só pode ocorrer com a

morte.

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PADRÃO DESVIO PARADIGMA VIGENTE

NOVO PARADIGMA

Em uma cerimônia de casamento, os noivos são cumprimentados com votos de felicidade eterna.

Em uma cerimônia de casamento, os noivos são cumprimentados visualizando-se um término de relação.

Até que a morte os separe, posição imposta pela religião.

Até que a vida os separe, posição aceita pela sociedade moderna.

Cartum 13: Superadas 2, p. 20

O cartum apresenta um casal “comum”, comentando a relação de

outro casal com apresentação estereotipada de união por interesse.

Observamos, no casal alvo do comentário, a feição orgulhosa de um

ostentando o outro na forma do que eles representam: ele, poder; ela, beleza e

juventude.

No julgamento que a mulher faz à união do segundo casal, fica

implícita a ideia de que ela e o parceiro já desconhecem a razão de estarem

juntos. Sua expressão, aliada à confissão de que sente inveja do outro

relacionamento, permite a inferência de que ela vive uma relação desgastada.

Pela expressão “pode ser inacreditável pra você”, é possível inferir

que a fala da mulher é uma fala-resposta, regulada por um possível comentário

crítico do parceiro (e da sociedade) em relação à situação apresentada. Dessa

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forma, a mulher incorpora a voz do companheiro no enunciado, na polêmica de

seu discurso. O operador argumentativo “pelo menos” modaliza o tom do

enunciado, ao deixar subtendido que existem outros argumentos mais fortes

sendo veiculados. Observamos, portanto, que o enunciado presente nesse

cartum relativiza o discurso da sociedade, numa espécie de discurso crítico

sobre outra forma possível de relação.

Cartum 14: Superadas 2, p. 13

Um homem e uma mulher relacionam a utilização de jóias aos

valores específicos de uma época. A correspondência que a mulher faz entre

“ego” e “umbigo” é uma alusão a expressões detonadoras de egoísmo, do tipo

“Olhar para o próprio umbigo”, “Preocupar-se com o próprio umbigo”, “Voltar-se

para o próprio umbigo”. Essas expressões são comumente utilizadas quando

se quer dizer que alguém é indiferente ao que está a sua volta, que não se

importa com o que acontece de “seu umbigo para fora”. O piercing, hoje, na

moda, é usado por homens e mulheres em diferentes partes do corpo, antes

não imaginadas: língua, nariz, genitália e umbigo. A produção do sentido do

enunciado do cartum dá-se na relação que o leitor faz entre essa prática

discursiva e a utilização de piercing no umbigo. Essa relação só é possível no

entendimento de que a língua desenvolve-se a partir de práticas sociais.

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Cartum 15: Superadas 1, p. 127

O cartum apresenta dois homens conversando sobre o

relacionamento do primeiro interlocutor com uma moça mais jovem. Com

aparência que revela uma idade muito superior à dela, anunciada por ele como

trinta anos a mais, o homem também é apresentado como baixinho, gordo e

careca. A moça, por sua vez, é caracterizada como jovem, loura e de corpo

bem definido. A expressão “gosta de mim pelo que sou”, dita pelo primeiro

interlocutor, é forma cristalizada em referência à ideia de ser (essência) em

oposição à ideia de ter (possuir). Nesse caso, a crença primeira é de que a

moça gosta dele pelo que ele é e não pelo que ele tem. Essa crença é

valorizada pelo gesto de sua mão no próprio peito, como uma representação

de seu interior. Tal ideia, no entanto, é desviada pela fala do segundo

interlocutor que, de forma irônica, reavalia e transforma a qualidade de “ser” do

amigo como a de um “milionário” (recategorização). A aproximação de sentidos

dos verbos “ser” e “ter” causa efeito cômico ao contrariar o paradigma do

confronto com que, muitas vezes, se apresentam esses verbos.

A forma com que o primeiro interlocutor marca, linguisticamente,

hostilidade à voz social, no uso das expressões “e daí? Hein? Pensem o que

quiserem”, evidencia a presença do aspecto polifônico do enunciado maior do

cartum. A ironia serve, pois, como recurso de demarcação da presença do

outro no discurso.

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Observamos, nesse grupo de cartuns, que a produção do sentido se

estabelece também no reconhecimento do discurso do outro, instaurado

historicamente pelos sujeitos que, por sua vez, se instauram e são instaurados

por esses discursos.

4.3 Recategorização

Cartum 16: Superadas 2, p. 41

Neste cartum, a esposa recategoriza o “lugar desconhecido” a que

se refere o esposo como as atividades rotineiras no acompanhamento da vida

dos filhos; construindo, de forma irônica, outra versão que possa satisfazer o

desejo do marido. Dessa forma, por meio da desfocalização, a esposa põe em

cena o seu problema: o de não compartilhar com o cônjuge as suas “viagens”

no cotidiano com os filhos.

A leitura do não verbal, com a mão da mulher apontando para si

mesma reforça a ideia de que a questão colocada por ela é que deve estar em

posição focal.

O pressuposto compartilhado referente ao descomprometimento de

muitos pais nesse universo de cuidados com os filhos é responsável pela

construção do constrói o humor.

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Cartum 17: Superadas 1, p. 20

Uma mulher, desesperada pelo fato de o marido ainda não ter

retornado, recebe da(o) amiga(o) o consolo de que o acontecimento que o

fizera se atrasar possa ser de pouca gravidade. Ao fazer a interpretação da

mensagem, a personagem infere um possível acidente. Ao dizer que tem que

ser otimista, pois pode ter sido só um acidente na estrada, a personagem

recategoriza a situação do possível acidente como uma situação positiva, se

comparada à possibilidade de o marido estar com outra mulher.

A produção do sentido cômico dá-se pela forma com que a

personagem reavalia uma situação trágica, como um acidente, como motivo

para tranquilizar-se.

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Cartum 18: Superadas 2, p. 27

Ao dizer que, com a separação, a amiga se livrou do marido como

algo de que não utiliza há muito tempo, a segunda personagem recategoriza a

“utilidade” do esposo da outra como um objeto de uso, que, se inútil, deve ser

descartado para o fluir das boas energias, conforme a filosofia do Feng-Shui.

O sentido cômico vincula-se ao saber partilhado sobre os discursos feministas

que, muitas vezes, relegam o homem à posição de objeto de uso doméstico e

sexual.

Observamos que os cartuns 16, 17 e 18, apresentados neste último

bloco, referente à recategorização, são exemplos de como os objetos de

discurso são construídos e reconstruídos durante a interação verbal, atendendo

a um propósito argumentativo.

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QUADRO SINÓTICO

LIVRO PRIMEIRO BALÃO SEGUNDO BALÃO TERCEIRO BALÃO SITUAÇÃO DE ANÁLISE

PÁGINA

Superadas 1, p. 135 Ufa! Alguma coisa te deixa pior do que uma mulher que não trabalha e fica te pedindo dinheiro para tudo?

Sim, ter uma mulher que trabalha e nunca te pede nada... porque ganha mais do que você...

- Focalização 78

Superadas 1, p. 123 Não deve haver coisa pior do que seu marido te trocar uma mais nova...

Tem sim, Clarinha, que ele te troque por uma da sua idade...

- Focalização 79

Superadas 2, p. 60 Ih, todo aniversário minha vó faz a mesma coisa! Tem coisa pior que ganhar roupa?

Tem... ganhar um joguinho didático...!

- Focalização 81

Superadas 1, p. 64 Ah, estou babando tanto com meu bebê! Foi assim com você? Quando teus filhos eram pequenos, não te dava vontade de comê-los?

...Sim, e depois, quando cresceram, fizeram tanta besteira que às vezes me pergunto por que não comi!

- Focalização 82

Superadas 1, p. 85 Esse papo de que a tecnologia afasta a gente do lado humano é besteira... eu tenho celular, computador, laptop, agenda eletrônica, e--mail...

E continuo com celulite!

- Focalização 83

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LIVRO PRIMEIRO BALÃO SEGUNDO BALÃO TERCEIRO BALÃO SITUAÇÃO DE ANÁLISE

PÁGINA

Superadas 1, p. 10 ...É que eu gosto da vertigem, da aventura, das emoções fortes, entendeu? E você nunca me expõe a nada...!

Tá legal... Vou te apresentar a meus pais.

- Inferências 86

Superadas 1, p. 138 Quando minha filha me disse que o namorado se dedicava à pintura, eu me acalmei porque imaginei outra coisa, entendeu?

Que pintava quadros, que expunha!

Não, que pintava apartamentos... que trabalhava!

Inferências 87

Superadas 1, p. 113 É casado sim... mas está se separando, sabe?

Uhh! Imagino... Só não se separa porque a mulher está doente e é meio doida, né?

Ééé... Como sabe? Conhece ele?

Inferências 88

Superadas 1, p. 11 Desculpe, doutor, mas... onde é que se injeta colágeno para preencher o vazio existencial?

- - Inferências 89

Superadas 1, p. 145 Conversamos por várias semanas, trocamos e-mails... Ele diz que é alto, moreno e de olhos verdes... mas não sei se devo encontrá-lo!

Não seja desconfiada! E por que não acreditar nele?

...porque eu disse que era magra, alta, ruiva e de olhos cinza...

Inferências 89

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LIVRO PRIMEIRO BALÃO SEGUNDO BALÃO TERCEIRO BALÃO SITUAÇÃO DE ANÁLISE

PÁGINA

Superadas 1, p. 80 É, meus pais se divorciaram mal pra caramba, sabe? E minha mãe perdeu o processo pela custódia no tribunal...

Ih, que chato! Você a vê...?

Claro, ela teve que ficar comigo...

Polifonia, interdiscursividade e intertextualidade

91

Superadas 1, p. 72 ...Decidi dar os abajures de presente para que, quando se separarem, cada um possa levar um sem brigar...

É, pode ser inacreditável pra você, mas me dá uma inveja

Polifonia, interdiscursividade e intertextualidade

93

Superadas 2, p. 20 É, pode ser inacreditável pra você, mas me dá uma inveja...

Pelo menos os dois sabem por que estão juntos...

- Polifonia, interdiscursividade e intertextualidade

94

Superadas 2, p. 13 ...As jóias sempre foram usadas para enfeitar as partes do corpo que merecem destaque... numa certa época, foram os decotes, em outra as mãos... os brincos também! Para emoldurar o rosto, dar brilho ao olhar...

Ah é? E nestes tempos de tanto individualismo, histeria e ego... onde são usadas?

Onde mais? No umbigo!

Polifonia, interdiscursividade e intertextualidade

95

Superadas 1, p. 127 ...Sim. Tenho 30 anos a mais, e daí? Hein? Pensem o que quiserem. Enfim... eu sei que ela gosta de mim pelo que sou!

...Um milionário. - Polifonia, interdiscursividade e intertextualidade

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LIVRO PRIMEIRO BALÃO SEGUNDO BALÃO TERCEIRO BALÃO SITUAÇÃO DE ANÁLISE

PÁGINA

Superadas 2, p. 41 ...Não falo de uma viagem só por viajar, é para conhecer algo novo, ir a um lugar desconhecido...

...Bom, se é assim, você pode levar os meninos ao médico... ou ir a uma reunião da escola...

- recategorização 92

Superadas 1, p. 20 E o que quer que eu pense? São duas da manhã e ainda não voltou para casa! Saiu com uma mulher! Entendeu? Ele tem outra!

Calma, deve ter acontecido alguma coisa...

Ah, tem razão. Tenho que ser otimista. Pode ser só um acidente na estrada!

recategorização 97

Superadas 2, p. 27 O feng-shui é alucinante! Trata de modificar o espaço para alterar nossos destinos, entendeu? Por exemplo... diz que é preciso se livrar de tudo o que você não usa há mais de um ano...

Ahh... Agora entendi por que sua vida mudou. Você se separou?!

- recategorização 98

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embasados nas teorias da Linguística Textual, fizemos, neste

trabalho, um estudo dos mecanismos linguístico-discursivos presentes nos

cartuns de Maitena, responsáveis pela construção do sentido do texto e, por

conseguinte, da comicidade, própria da intenção comunicativa do gênero

trabalhado. A análise foi feita considerando as diversas teorias da Linguística

Textual, as quais orientam nosso olhar para a produção do sentido,

principalmente pela concepção de linguagem adotada por nós, que concebe o

leitor como sujeito do ato de leitura, como um ser social capaz de construir um

sentido para o que lê, num processo de colaboração com o uso efetivo da

língua.

Ao interpretar a linguagem do cartum, todavia, esse sujeito-leitor

pode ou não perceber um movimento cômico que o leve a achar graça no

enunciado, pois isso dependerá da mobilização de seus conhecimentos de

mundo, enciclopédico, linguístico, genérico e textual, quando da interação com

o texto que, no caso do cartum, conjuga-se à imagem. A intencionalidade do

autor em provocar o humor em um texto, portanto, não é o suficiente para

provocar o riso. Cumpre salientar, no entanto, que, sendo o propósito

comunicativo do cartum a provocação do humor, aquele que ri não estará rindo

sozinho, já que, com ele, há os que compartilham da mesma crença.

De maneira geral – e estrategicamente –, na promoção do risível, a

cartunista utiliza-se do diálogo, de forma recorrente, com o intuito de romper,

na interlocução, com as expectativas do leitor em relação a seus

conhecimentos e crenças (frames), conduzindo-o a outra orientação

argumentativa. A partir do jogo lúdico, Maitena instaura a polêmica com a

sociedade, apresentando discursos institucionalizados ao lado de outros que,

por estarem ainda em discussão na sociedade, apresentam-se como novos.

Essa estratégia torna latente o aspecto dialógico a que se refere Bakhtin

(1988), pois sendo o dialogismo o princípio constitutivo da linguagem, o

reconhecimento do discurso alheio passa a ser um pressuposto para a

interação. Nesse ponto, rememoramos as ideias de Bergson (1983)[1940], para

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quem o riso não se deixa acontecer sozinho, mas em uma interação viva com o

discurso do outro.

Constatamos, pela análise referente à focalização, que um dos

recursos utilizados pela autora para dar comicidade aos seus cartuns é a

ruptura entre as diferentes focalizações que, num primeiro momento,

concentram o leitor em um paradigma discursivo para, depois, desviá-lo para

outro. Os cartuns analisados apresentam, dessa forma, uma caricatura da vida

cotidiana sob um enfoque duplo, permitindo ao leitor a formação de uma nova

compreensão das normas e valores advindos dos discursos sociais. Tal

constatação encontra eco nas palavras de Travaglia (1990), para quem o

humor aparece como uma forma de revelar e de flagrar outras possibilidades

de visão de mundo, gerando conflito ao desorganizar padrões convencionados

quando da busca de uma verdade.

Quanto às inferências, enfatizamos o processo inferencial como

estritamente relacionado a um conjunto de saberes de natureza histórica, social

e cultural, sem os quais não se podem estabelecer relações de sentido. No

caso dos cartuns, as inferências são realizadas quando se é capaz de

apreender as informações disponíveis, não só pelos componentes verbais,

como também pelos não verbais.

Em relação à polifonia, interdiscursividade e intertextualidade,

demos relevância ao processo intertextual e interdiscursivo, bem como

evidenciamos o movimento polifônico. Nos cartuns apresentados nesse bloco

observamos, de forma mais nítida, o entrechocar das vozes sociais.

No tópico referente à recategorização, atentamos para a forma como

os sujeitos representam os objetos do mundo em uma situação discursiva, de

acordo com os pressupostos compartilhados na interação e com outros fatores

contextuais.

Com base nos resultados obtidos da análise, podemos afirmar que o

sentido do texto não está no texto; tem, contudo, sua construção a partir dele

quando o sujeito-leitor é capaz de estabelecer, no momento da interação, as

relações autorizadas por:

a) reconhecimento do discurso do outro (interdiscursividade);

b) focalização;

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c) forma de utilização do léxico (modalizações/categorização/

recategorização);

d) inferências na busca do implícito;

e) reconhecimento do uso social que se faz da língua;

d) conhecimentos constituídos (de mundo, enciclopédico, textual,

intergenérico e linguístico);

e) propósito comunicativo do gênero;

f) relacionamento dos textos entre si (intertextualidade);

g) conjugação do verbal com o não verbal.

A percepção do jogo linguístico-discursivo que promove o sentido do

humor está, de forma intrínseca, ligada aos fatores acima relacionados.

Em consonância com Possenti (2008), estamos certos de que os

gêneros que pertencem ao domínio humorístico podem ser fontes expressivas

para estudos linguísticos. Dessa forma, consideramos o nosso trabalho

relevante, pois o cartum, dentro desse mesmo domínio (humorístico),

apresenta-se como um gênero de abrangência múltipla à investigação da

construção do sentido. Devido à característica icônico-verbal do gênero em

questão, acreditamos ter contribuído também com a valorização de estudos no

universo da imagem ligada à palavra.

Os resultados não se pretendem conclusivos – haja vista o universo

de possibilidades oferecidas por esse gênero discursivo – e merecem, portanto,

ser complementados por outras pesquisas voltadas ao funcionamento da

língua.

De natureza anárquica – própria do humor que lhe é característico –,

com textos curtos e com o apoio da imagem, o cartum apresenta-se de forma

dinâmica para o leitor, reduzindo-lhe a resistência à leitura. Constitui-se, dessa

forma, em um gênero aliado àqueles que se dedicam ao ensino e à

aprendizagem da língua. Ademais, indaga-se: por que não aprender a língua

rindo?

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TEXTO FONTE

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APÊNDICE A – Cartuns de Maitena utilizados a título de exemplificação na fundamentação teórica.

CARTUM PRIMEIRO BALÃO SEGUNDO BALÃO TERCEIRO BALÃO SITUAÇÃO

EXEMPLIFICADA PÁGINA

Superadas 1, p. 41 ...Mamãe, lembra quando a gente era parecida?

- - Linguagem verbal e não-verbal

22

Superadas 2, p. 86 Você deve achar que sou uma dessas histórias compulsivas que se assanham para qualquer um... e no entanto, na hora da sedução, eu também tenho minha filosofia... “Penso, logo excito.”

- - Linguagem verbal e não-verbal

25

Superadas 2, p. 65 ...Olha, sempre que um cara tem duas mulheres, as duas têm inveja uma da outra. Uma inveja que a outra coma com ele todo dia, vá com ele a toda parte e durma com ele toda noite...

E a outra? ...Que não. Tipos de discurso 31

Superadas 2, p. 10 Sabe qual é a melhor coisa para não se ver velha?

Sei. Não se ver. - Tipos de discurso 32

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CARTUM PRIMEIRO BALÃO SEGUNDO BALÃO TERCEIRO BALÃO SITUAÇÃO

EXEMPLIFICADA PÁGINA

Superadas 1, p. 122 ...Imagino que isso que está na mesa é uma natureza-morta que você vai pintar, né?

- - Conhecimento de mundo

36

Superadas 1, p. 73 Mamãe! Quando lha seu vestido de noiva, você se lembra da igreja, da festa, da valsa, dos presentes?

Não. Lembro de quando ele cabia em mim.

- Frames 37

Superadas 1, p. 131 ...Você diz que não tem o que vestir, mas seu armário está cheio, Carolina... Olha este vestido, por exemplo, é lindo! E há quanto tempo não usa, hein?

...Há uns seis quilos...

- Aceitabilidade (Princípio de cooperação)

40

Superadas 1, p. 146 ...E eu sou o quê, hein? Um seio à esquerda?

- - Intertextualidade 44

Superadas 2, p. 81 Ele não me pede diretamente... Faço porque ele gosta. Por um homem, as mulheres são capazes de qualquer coisa!

É, Paulinha, mas com o sexo não tem que fazer concessões...

Que sexo? Quisera eu! O que faço é ver futebol.

Mudança de script (Teoria de Raskin)

59

Superadas 2, p. 32 Mãe... Por que, se você tira a parte de cima é topless... E se a vovó tira é naturalismo?

- - Categorização 63

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CARTUM PRIMEIRO BALÃO SEGUNDO BALÃO TERCEIRO BALÃO SITUAÇÃO

EXEMPLIFICADA PÁGINA

Superadas 1, p. 80 Mas mãezinha, vocês eram bonecas! Não opinavam, não trabalhavam, não tinham responsabilidades, nem sabiam o que era uma terapia, andavam por aí cheias de celulite, assando massa, visitando amigas e colocando renda em camisolas. Em que mundo viviam?

No Paraíso. - Categorização 64