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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Maria do Socorro Suzano Montinegro MISSA DO GALO, DE MACHADO DE ASSIS, E A AVALIATIVIDADE IMPLÍCITA Um Enfoque da Linguística Sistêmico-Funcional Mestrado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem São Paulo 2018

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP

Maria do Socorro Suzano Montinegro

MISSA DO GALO, DE MACHADO DE ASSIS, E A AVALIATIVIDADE IMPLÍCITA

Um Enfoque da Linguística Sistêmico-Funcional

Mestrado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem

São Paulo

2018

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Maria do Socorro Suzano Montinegro

MISSA DO GALO, DE MACHADO DE ASSIS, E A AVALIATIVIDADE IMPLÍCITA

Um Enfoque da Linguística Sistêmico-Funcional

Mestrado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem

Dissertação apresentada à Banca Examinadora

da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para obtenção do

título de Mestre em Linguística Aplicada e

Estudos da Linguagem.

Orientadora: Dra. Sumiko Nishitani Ikeda

São Paulo

2018

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Maria do Socorro Suzano Montinegro

MISSA DO GALO, DE MACHADO DE ASSIS, E A AVALIATIVIDADE IMPLÍCITA

Um Enfoque da Linguística Sistêmico-Funcional

Banca Examinadora

_________________________________________________ Profa. Dra. Sumiko Nishitani Ikeda (Orientadora) – PUC-SP

_________________________________________________ Profa. Dra. Maximina Maria Freire – PUC-SP

_________________________________________________ Profa. Dra. Eliane Alves de Sousa – SEE-SP

São Paulo, 23 de fevereiro de 2018.

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Aos meus pais, Laécio e Aracy, aos quais devo tudo o que sou e tenho.

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À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal e Nível Superior (CAPES), fundação

vinculada ao Ministério da Educação (MEC), meu profundo agradecimento pelo auxílio

que permitiu a realização desta dissertação de mestrado.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus, por abrir o caminho e conceder-me forças para

a realização deste trabalho.

À Professora Sumiko Nishitani Ikeda, pela orientação e os conhecimentos

ensinados com serenidade e sabedoria.

Aos colegas de curso pela agradável convivência.

À secretária Maria Lúcia, sempre solícita e eficiente.

Às professoras doutoras que integraram a banca de defesa desta dissertação e

contribuíram para o enriquecimento deste trabalho.

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“Pois o silêncio não tem fisionomia, Mas as palavras muitas faces...”

(Machado de Assis)

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RESUMO

Missa do Galo é um conto de Machado de Assis (1893) que trata do diálogo entre

Nogueira, um jovem pensionista, e Conceição, a hospedeira, em uma noite de Natal.

O foco da narrativa não está nas ações, mas numa aproximação inusitada, em que

uma simples conversa pode apresentar um jogo sublime e indireto, aparentemente

banal, mas que intriga Nogueira. Supõe-se que nada aconteceu entre os dois, mas a

genialidade de Machado de Assis convida-nos a ler o texto nas suas subjacências. A

propósito, a procura de um sentido implícito no texto, mas talvez presente no discurso,

exige o apoio de teorias que possibilitem essa relação, para revelar uma camuflada

intenção. Nesse sentido, este estudo tem o apoio da Linguística Sistêmico-Funcional

(LSF), que oferece um instrumento analítico específico para o exame sistemático das

motivações, propósitos, suposições e interesse dos produtores do texto. O objetivo

desta dissertação de mestrado é a análise crítica das escolhas lexicogramaticais feitas

no conto Missa do Galo com o fim de desvendar o que subjaz ao diálogo entre

Conceição e Nogueira. Guiada por propostas da Linguística Crítica e com o apoio do

contexto analítico oferecido pela LSF, a pesquisa examina duas dimensões da

gramática da oração: transitividade e avaliatividade, associadas respectivamente com

as funções ideacional e interpessoal da linguagem, complementadas pelas teorias de

frame e de intersubjetividade. Para tanto, a pesquisa procura responder às seguintes

perguntas: (a) o que podem as escolhas lexicogramaticais feitas por Machado de

Assis em Missa do Galo, em termos das metafunções ideacional e interpessoal,

revelar sobre o diálogo entre Conceição e Nogueira? (b) qual é o papel da leitura

relacional e das metarrelações nesse processo? (c) que importância tem a teoria do

frame para explicar o comportamento dos protagonistas? A análise revela um

problema para a atribuição de atitude positiva ou negativa, já que uma mesma

situação – digamos um tremor – é interpretada por Conceição como resultante do

contato físico com o rapaz, enquanto para ele, o tremor seria resultado do frio do

ambiente. E é justamente esse desencontro de interpretações que intriga e prende o

leitor.

Palavras-chave: Missa do Galo. Linguística Sistêmico-Funcional. Transitividade.

Avaliatividade. Linguística Crítica.

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ABSTRACT

Missa do Galo is a tale by Machado de Assis (1893) that deals with the dialogue

between Nogueira, a young pensioner, and Conceição, the hostess, on a Christmas

night. The focus of the narrative is not on actions, but on an unusual approach, in which

a simple conversation can present a sublime and indirect game, apparently banal, but

that intrigues Nogueira. It is assumed that nothing happened between the two, but the

genius of Machado de Assis invites us to read the text in its underlings. By the way,

the search for an implicit meaning in the text, but perhaps present in the discourse,

requires the support of theories that make possible this relation, to reveal a

camouflaged intention. In this sense, this study has the support of Systemic-Functional

Linguistics (SLF), which offers a specific analytical instrument for the systematic

examination of the motivations, purposes, assumptions and interest of the text

producers. The objective of this dissertation is the critical analysis of the lexicographic

choices made in the Missa do Galo tale in order to unravel what underlies the dialogue

between Conceição and Nogueira. Guided by proposals from Critical Linguistics and

with the support of the analytical context offered by SLF, the research examines two

dimensions of the grammar of prayer: transitivity and Appraisal, associated

respectively with the ideational and interpersonal functions of language,

complemented by frame and intersubjectivity theories. In order to do so, the research

tries to answer the following questions: (a) what can the lexicographic choices made

by Machado de Assis in Missa do Galo, in terms of ideational and interpersonal

metafunctions, reveal about the dialogue between Conceição and Nogueira? (b) what

is the role of relational reading and meta-relations in this process? (c) how important

is frame theory to explain the behavior of the protagonists? The analysis reveals a

problem for the attribution of positive or negative attitude, since the same situation -

say a tremor - is interpreted by Conceição as resulting from the physical contact with

the boy, while for him, the tremor would be the result of the cold of the environment.

And it is precisely this misunderstanding of interpretations that intrigues and arrests

the reader.

Keywords: Missa do Galo. Systemic-Functional Linguistics, Transitivity, Appraisal

System, Critical Applied Linguistics.

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Relação Processos/Participantes/Circunstâncias ................................. 17

Quadro 2 – Metafunção Interpessoal ...................................................................... 20

Quadro 3 – Mood e Modalidade .............................................................................. 21

Quadro 4 – Exemplos de Avaliatividade ................................................................. 22

Quadro 5 – Redundância ......................................................................................... 23

Quadro 6 – Meios de ativação da Avaliatividade ..................................................... 23

Quadro 7 – O Sistema de Avaliatividade ................................................................ 24

Quadro 8 – Avaliatividade interna e externa .............................................................29

Quadro 9 – As teorias ...............................................................................................37

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LISTA DE ANEXOS

Anexo A-Missa do Galo.........................................................................................67

Anexo B-Machado de Assis...................................................................................74

Anexo C-Discurso de Machado de Assis...............................................................75

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 12

1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA.. .......................................................................... 15

1.1 Linguística Sistêmico-Funcional ........................................................................ 15

1.1.2 Metafunção interpessoal ................................................................................ 18

1.1.3 Metafunção textual ......................................................................................... 20

1.2 Avaliatividade (Appraisal) .................................................................................. 20

1.3 Linguística Crítica .............................................................................................. 23

1.3.1 A Leitura Relacional e as Metarrelações ........................................................ 25

1.4 Persuasão ......................................................................................................... 28

1.4.1 A Relevância da Teoria de Frame na Linguística Aplicada ........................... 31

1.4.1.1 Frames e Coerência ..................................................................................... 33

1.4.2 Intersubjetividade ............................................................................................ 34

2 METODOLOGIA ................................................................................................... 37

2.1 Dados ................................................................................................................ 37

2.2 Procedimentos de Análise ................................................................................ 40

3 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS ................................................... 43

3.1 Análise de registro ............................................................................................. 43

3.2 Análise do conto ................................................................................................ 43

3.3 DISCUSSÃO DA ANÁLISE ............................................................................... 56

Considerações Finais ................................................................................................ 58

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 60

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INTRODUÇÃO

Este estudo, que une Literatura e Linguística Crítica (FOWLER, 1991)

vislumbrou-se após o contato com pesquisas que envolvem a relação entre a

macroestrutura do sentido no discurso e as escolhas de certas formas linguísticas

feitas na macroestrutura do texto.

Literatura “é um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os

leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a,

deformando-a” (CANDIDO,2008, p. 84). O século XIX, época da publicação da obra

escolhida para este estudo, apresentou-se, de acordo com Coutinho (2004) como

“uma grande encruzilhada de correntes literárias”, na qual Realismo-Naturalismo-

Parnasianismo reagiram contra o Romantismo. No Brasil, explica Coutinho, muitos

escritores migraram do Romantismo para o Realismo ou Naturalismo.

A Linguística Crítica, por sua vez, tem como objetivo "a recuperação dos sentidos

sociais expressos no discurso pela análise das estruturas linguísticas à luz dos

contextos interacionais e sociais mais amplos” (FOWLER et al., 1979, p.195-196).

A escolha de Missa do Galo, de Machado de Assis, um dos maiores escritores

brasileiros, cuja importância literária é bem definida por Coutinho (2004), “representa

Machado de Assis, no Brasil, o primeiro e o mais acabado modelo de homem de letras

autêntico”, além da admiração pelo autor, deu-se por se tratar de um texto intrigante,

que prende o leitor e o leva a tentar desvendar as pistas deixadas nas suas

entrelinhas. O conto, publicado em 1893, narrado em retrospectiva, apresenta o

diálogo entre Nogueira, um jovem pensionista de 17 anos de idade, e Conceição, a

hospedeira, de 30 anos, em uma noite de Natal. Os fatos que se sucedem durante

essa conversa envolvem um jogo delicado e indireto, aparentemente banal, mas que

intriga o rapaz, sentimento esse, talvez gerado pelo desencontro que marca cada

situação que cerca o par. Supõe-se que nada aconteceu entre os dois, mas a

genialidade de Machado de Assis nos convida a ler o texto nas suas subjacências. A

procura de um sentido implícito no texto, mas talvez presente no discurso, exige o

apoio de teorias que possibilitem essa relação, isto é, encontrar nas escolhas

lexicogramaticais feitas pelo autor a sua camuflada intenção. Para tanto, segundo

Fairclough (2001), um método e uma análise do discurso, para serem úteis, teriam de

preencher pelo menos algumas condições, das quais apresentamos as seguintes para

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a análise do conto em foco: (a) um método de análise multifuncional, como é a

Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) de Halliday (1994, 2004), capaz de captar

simultaneamente os três significados construídos pela língua: informação, interação e

construção do texto; (b) um método crítico, para mostrar conexões e causas que estão

ocultas e, portanto, nem sempre são transparentes para as pessoas envolvidas.

Segundo Li (2010), a visão funcional da LSF, das escolhas linguísticas como

índices de significados, se cruza com a análise do discurso crítica, pois ambas são

guiadas pela suposição subjacente de que as formas linguísticas e as escolhas

expressam significados ideológicos. A LSF oferece um instrumento analítico

específico para o exame sistemático das motivações, propósitos, suposições e

interesse do produtor do texto. Com seu foco na seleção, categorização e ordenação

do significado no nível da oração mais do que no macro nível do discurso, a LSF é

especialmente útil para uma análise sistemática, com enfoque nos traços linguísticos

no micronível dos textos do discurso, que revele as intravisões críticas na organização

dos significados.

A propósito, segundo Kitis e Milapides (1997) e Li (2010), embora se afirme que

a Linnguística Crítica deva examinar a língua como discurso; como texto dentro de

condições sociais de produção e interpretação para ser independentemente

identificado e examinado (FAIRCLOUGH, 2001; HODGE; KRESS, 1988), pode-se

também chegar a essas condições por meio da análise da linguística crítica,

empregando todos os métodos e instrumentos que a disciplina oferece.

Assim, esta pesquisa tem o apoio das propostas da Linguística Crítica

(FOWLER, 1991) e do contexto analítico oferecido pela LSF, uma teoria do uso da

língua como “ação social”, que procura analisar e explicar como os significados são

construídos nas interações linguísticas do dia-a-dia (HALLIDAY, 1994, 20041).

Para classificar os tipos de significados que os atores sociais geram, a LSF concebe

a língua como a expressão de três significados, ou metafunções, concorrentes:

ideacional (informação), interpessoal (interação) e textual (construção do texto

envolvendo as demais metafunções). Como Martin e White (2005, p. 7) explicam, "a

LSF é um modelo multiperspectivo, designado a dar aos analistas lentes

complementares para a interpretação da língua em uso".

O objetivo desta dissertação de mestrado é a análise crítica das escolhas

1 Esta obra com revisão feita por C.M.I. Matthiessen.

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lexicogramaticais feitas no conto Missa do Galo com o fim de desvendar o que subjaz

ao diálogo que reuniu Conceição e Nogueira na véspera do Natal. Guiada por

propostas da Linguística Crítica e com o apoio do contexto analítico oferecido pela

LSF, indicada por estudiosos críticos da linguagem como a mais adequada para a

análise do discurso (FOWLER, 1991; FAIRCLOUGH, 2001; CHARTERIS-BLACK,

2004), a pesquisa examina duas dimensões da gramática da oração: transitividade e

avaliatividade, associadas respectivamente com as funções ideacional e interpessoal

da linguagem complementadas pelas teorias de frame e de intersubjetividade. Para

tanto, a pesquisa procura responder às seguintes perguntas: (a) o que podem as

escolhas lexicogramaticais feitas por Machado de Assis em Missa do Galo, em termos

das metafunções ideacional e interpessoal, revelar sobre o diálogo entre Conceição e

Nogueira? (b) qual é o papel da leitura relacional e das metarrelações nesse

processo? (c) que importância tem a teoria do frame para explicar o comportamento

dos protagonistas.

Esta pesquisa insere-se no projeto de pesquisa “Recursos para a realização da

persuasão através da avaliação implícita”, inserido no grupo de pesquisa ACLISF

(Análise Crítica e Linguística Sistêmico-Funcional), coordenados pela professora

Ikeda. Cito alguns trabalhos feitos pelo grupo: SANTOS, V. A. M. Diálogos entre D.

Quixote e Sancho Pança: uma abordagem Sistêmico-Funcional, doutorado, 2017;

SANTOS, A. A Avaliatividade e o Pós-Guerra em Home, de Toni Morrison - Uma

Abordagem Sistêmico-Funcional, mestrado, 2016; MONTEFUSCO, R. M., A Crítica

Social em Capitães da Areia: Um Enfoque da Gramática Sistêmico-Funcional,

mestrado, 2015; BARBOSA, E. O. A idealização do herói em As Minas de Prata, de

José de Alencar, sob o enfoque da GSF, mestrado, 2015; VALLEZI, N. A ameaça em

O ATENEU: Análise da Avaliatividade sob o enfoque da Linguística Sistêmico-

Funcional, mestrado 2014, entre outros.

A estrutura desta dissertação de mestrado é assim constituída: além desta

Introdução, esta dissertação abrange os seguintes capítulos: (1) Fundamentação

Teórica, incluindo: (a) Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) e as metafunções,

referindo-se à (i) transitividade; (ii) estrutura temática; e (iii) modalidade e

avaliatividade (explícita e implícita); (b) persuasão, e as noções de intersubjetividade

e de frame; (c) linguística crítica, que também tem o apoio da LSF. (2) Metodologia,

incluindo os Dados e os Procedimentos de Análise. (3) Análise e Discussão dos

Resultados. (4) Considerações Finais, seguidas pelas Referências e Anexo.

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1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Apresento a seguir, a teoria que servirá de apoio à análise de Missa do Galo:

Linguística Sistêmico-Funcional (LSF), abrangendo a modalidade e a Avaliatividade

(tradução de Appraisal), além da Linguística Aplicada Crítica.

1.1 Linguística Sistêmico-Funcional

Para a Linguística Sistêmico-Funcional (LSF), a língua está estruturada para

construir simultaneamente três tipos de significados – ou metafunções: ideacional,

textual e interpessoal. A língua pode manipular esses três tipos de significados

simultaneamente, porque possui um nível intermediário de codificação: a

lexicogramática. É esse nível que possibilita à língua construir três significados

concomitantes, e eles entram no texto por meio das orações mediante escolhas feitas

no sistema linguístico. Daí por que Halliday (1994) dizer que a descrição gramatical é

essencial à análise textual. Importante para a LSF é a noção de escolhas. Assim,

quando se faz uma escolha no sistema linguístico, o que se escreve ou o que se diz

adquire significado contra um fundo em que se encontram as escolhas que poderiam

ter sido feitas, mas que não o foram, fato importante na análise do discurso. Em

resumo, a LSF procura desenvolver uma teoria sobre a língua como um processo

social e uma metodologia que permita uma descrição detalhada e sistemática dos

padrões linguísticos.

1.1.1 Metafunção ideacional

Quando se expressa a experiência do mundo material ou interior, utiliza-se a

metafunção ideacional. A experiência exterior corresponde a ações ou eventos, mas

nosso mundo interior constitui-se de lembranças, reflexões e estados de espírito que

se verificam no nível da consciência (HALLIDAY, 1994).

A metafunção ideacional está ancorada no sistema da transitividade. Trata-se

de um modelo de descrição de toda a oração, que se compõe de processo (grupo

verbal); os participantes (grupo nominal) e as circunstâncias (grupos adverbiais ou

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frases preposicionais). A configuração processo + participante constitui o centro

experiencial da oração (HALLIDAY; MATHIESSEN, 2004, p. 176).

A metafunção ideacional representa os eventos das orações em termos de fazer,

sentir (processamento simbólico) ou ser, por meio do sistema da transitividade. O

Quadro 1 mostra o sistema da transitividade, dessa metafunção, que representa os

eventos da oração, envolvendo: processos, participantes e circunstâncias.

Quadro 1 - Relação Processos/Participantes/Circunstâncias

PROCESSOS

Participantes

Material Conceição [Ator] endireitou a cabeça [Meta] em sua direção [Circunstância]

Ela [Ator] entrou na sala. [Extensão]

Comportamental A mulher [Comportante] suspirou cruzando os braços. [Comportamento]

Mental Conceição [Experienciador] suportava os esquecimentos do marido. [Fenômeno]

Existencial Eu [Existente] vivia naquela casa. [Circunstância]

Relacional (a) Atributivo: Ela [Portador] era uma santa. [Atributo]

(b) Identificativo: Essa mulher [Identificado] era a Conceição. [Identificador

Verbal Nogueira [Dizente] disse lhes [Receptor] algumas palavras [Verbiagem]

Elaborado pela autora com base em Halliday (1994)

Há seis categorias de processos, cada uma delas associando-se a participantes

específicos. Em princípio, Halliday agrupa os processos que representam a

experiência externa ― materiais ―, a experiência interna ― mentais ― e aqueles que

se referem à identificação e caracterização ― relacionais. Em seguida, aponta mais

três processos que, segundo ele, encontram-se na fronteira desses três primeiros.

São eles os comportamentais (manifestação de atividades psicológicas), os verbais

(atividades linguísticas dos participantes) e os existenciais, aqueles que representam

a existência dos seres. Exemplifico, a seguir, os processos com seus participantes.

Processos materiais – são processos de fazer, ou seja, envolvem ações físicas e

expressam a noção de que alguma entidade (Ator) fez algo que pode atingir outra

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entidade (Meta).

Ana entregou seu texto para a professora na aula passada. Ator MATERIAL Meta Beneficiário circunstância

Processos mentais – são os processos de sentir (HALLIDAY, 1994) e dizem respeito

ao que ocorre (fenômeno) no mundo interior, na mente (do experienciador). Os verbos

que compõem essa categoria são ver, ouvir, amar, gostar, saber e muitos outros que

se referem à afeição e cognição.

Ana pensou seriamente sobre a questão. Ator MENTAL Circunstância Fenômeno

Processos relacionais – são processos de ser, estar e ter. Eles estabelecem uma

relação entre duas entidades diferentes, e a função deles é somente sinalizar a

existência da relação, ocorrendo sempre um só participante no mundo real, pois o

outro participante é meramente um atributo que lhe pertence.

Ana era uma professora. (a) Atributivo: Portador RELACIONAL Atributo

(b) Identificativo: A professora era a Ana. Identificado RELACIONAL Identificador

Processos verbais – são os processos do dizer. São representados pelos diversos

verbos expressos nos variados tipos de discurso, dada sua característica

predominante de fala. Auxiliam no texto narrativo, tornando possível a existência de

passagens dialógicas.

Ana contou a verdade à professora. Dizente VERBAL Verbiagem Receptor

Processos existenciais – são aqueles que expressam a existência de uma entidade,

o existente, sem relacioná-la com qualquer outra coisa. São representados pelos

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verbos haver, existir, ter, mas podem ocorrer com outros verbos, dependendo do

contexto.

A seca SE FAZIA PRESENTE no sertão. Existente EXISTENCIAL Circunstância

Processos comportamentais – são aqueles que se referem às ações físicas, porém

como resposta a um estado mental: rir, chorar, dormir, soluçar, gargalhar, tossir,

sonhar etc., que provocam a atividade física.

A mulher GEMIA de agonia. Comportante COMPORTAMENTAL Comportamento

Com relação aos processos, diz Halliday (1994) que hoje é comum dizer: tomar

banho, fazer um trabalho, cometer um erro, ter um descanso. O verbo aqui é

considerado lexicalmente “vazio”; o processo da oração é expresso pelo nome

funcionando como Escopo. A principal razão para essas construções é a possibilidade

de adjetivação do nome “avaliação”, já que seria difícil encontrar um verbo para: tomar

um banho quente, cometer três erros sérios, dar uma olhada rápida, dar aquele

sorriso, realizar revisões menores.

Ao comparar:

O joalheiro ainda não fez a avaliação. O joalheiro não avaliou ainda ....

Se o escopo (avaliação) fosse substituído por um processo (avaliou), essa

construção, de um lado, exigiria uma meta explícita (avaliou o quê), e de outro não

poderia ser explicitada pelo artigo definido a.

Finalmente, as circunstâncias ampliam o sentido da oração, definindo o contexto

no qual uma proposição ocorre (Halliday, 1994). Em termos de significado, elas se

associam aos processos, referindo-se à localização de eventos no tempo (quando?)

ou espaço (onde?), modo (como?) ou causa (por quê?).

1.1.2 Metafunção interpessoal

A metafunção interpessoal envolve as relações sociais com respeito à função da

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oração na interação, envolvendo os sistemas de modalidade e de avaliatividade.

Para Halliday (1994), os papéis de fala fundamentais na interação são apenas

dois: dar e pedir – informação ou bens & serviços. Nesse sentido, o falante/escritor

não está apenas realizando algo para si, mas também solicitando algo de seu

ouvinte/leitor. Trata-se de “uma troca em que dar implica receber e pedir implica dar

em resposta” (HALLIDAY, 1994, p. 68). Na troca de informação, a oração assume a

função semântica de proposição, ao passo que na troca de bens e serviços a função

assumida pela oração é de proposta. Para a realização dessa troca – seja de

informação, seja de bens & serviços – a metafunção interpessoal vê a oração dividida

em duas partes essenciais: mood2 (incluindo, Sujeito + Finito) + Resíduo, conforme o

Quadro 2:

Quadro 2 - Metafunção interpessoal

Mood Resíduo

Sujeito Finito

(a) João precisa (Modalidade) estudar a lição

(b) João precisa-va (Tempo

Primário)

estudar- a lição

Fonte: Halliday (1994)

Nessa análise, o mood inclui a modalidade, definidos respectivamente, como:

(a) mood é o recurso gramatical para se realizarem movimentos interativos no

diálogo (MARTIN,MATTHIESSEN; PAINTER, 1997, p. 58). Portanto, nesse

processo se estabelecem relações entre papéis de falante e ouvinte, por meio

de verbos modais ou adjuntos modais. Esse sistema não só apresenta

alternativas para a realizaçao da interação (modos declarativo, imperativo e

interrogativo), como também realiza, no nível lexicogramatical, as proposições

e propostas.

(b) modalidade expressa significados relacionados ao julgamento do falante em

diferentes graus sobre o conteúdo da mensagem, abrangendo:

2 Mood tem sido traduzido por Modo (com inicial maiúscula). Mantivemos o termo inglês para evitar confusão como Modo (variável de registro) em início de sentença.

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(i) modalização (probabilidade + frequência) – quando se refere à

proposição (troca de Informação);

(ii) modulação (obrigação + desejabilidade) – quando se refere à proposta

(troca de bens & serviços), conforme o Quadro 3:

Quadro 3 – Mood e Modalidade

PEDIR DAR Produto MODALIDADE

Informação

Proposição → (Informação)

Modalização

probabilidade

(epistêmica): talvez

Quando? Amanhã. frequência: sempre

Bens e Serviços

Proposta → (Bens &

Serviços)

Modulação

obrigação (deôntica):

deve, precisa

Me dá

isso?

Toma. desejabilidade: quero

Fonte: Halliday (1994)

1.1.3 Metafunção textual

A metafunção textual organiza os significados ideacionais e interpessoais de

uma oração, trabalhando os significados advindos da ordem das palavras na oração,

com enfoque no sistema de tema e rema. Esta metafunção não será examinada na

análise de Missa do Galo.

A seguir, será apresentada a avaliatividade, que veio a ampliar o escopo da

metafunção interpessoal, constituída até então pelo sistema da modalidade,

envolvendo a modalização e a modulação, referentes especialmente ao

posicionamento do escritor em relação a modalizar sua declaração em termos de

probabilidade e frequência ou em termos de obrigatoriedade e desejabilidade,

respectivamente.

1.2 Avaliatividade (Appraisal)

O sistema interpessoal, na LSF, tem sido gramatical em sua base, funcionando

no nível da oração, em que MOOD e MODALIDADE servem como pontos de partida

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para o desenvolvimento de modelos (da função de fala, estrutura de troca, etc.

(HALLIDAY, 1994; VENTOLA, 1987)). A tradição baseada na gramática tem

focalizado o diálogo como uma troca de bens e serviços ou informação. O que tendeu

a ser omitido pelas abordagens da LSF, segundo Martin (2000) é a semântica da

avaliação – como os interlocutores estão sentindo, os julgamentos que eles fazem

e a apreciação de vários fenômenos de sua experiência. Nos exemplos do Quadro 4,

é evidente, diz o autor, que em diálogos como esses é mais que uma simples troca

de bens & serviços ou de informação. Juntamente com modelos baseados-na-

gramática, então, precisamos elaborar sistemas lexicalmente orientados que tratem

também desses elementos.

Quadro 4 – Exemplos de Avaliatividade

AFETO – emoções RITA Eu adoro esta sala. Eu adoro aquela janela. E você gosta também? FRANK O quê?

JULGAMENTO – ético (avaliando comportamento) FRANK E é o seguinte, entre você, eu e as paredes, eu sou na verdade um professor péssimo.

Na maioria das vezes, veja, nem interessa realmente – dar aulas péssimas está bem para a maioria dos meus alunos péssimos.

APRECIAÇÃO – estética RITA Sabe, a Rita Mae Brown, que escreveu Rubyfruit Jungle? Você leu esse livro? Ele é

fantástico.

Fonte: Martin (2000)

Martin examina o léxico avaliativo que expressa a opinião do falante (ou do

escritor) sobre o parâmetro bom/mau. Ele se enquadra na tradição da Linguística

Sistêmico-Funcional (LSF). O sistema de escolhas usado para descrever essa área

de significado potencial é chamado APPRAISAL (doravante, avaliatividade).

(1) É inaceitável que o espírito de competição degenere em mortes.

A categoria principal ou subsistema é o AFETO, que trata da expressão de

emoções (felicidade, medo, etc.). Relacionado a ele há mais dois subsistemas:

JULGAMENTO (tratando de avaliação moral: honestidade, generosidade, etc.) e

APRECIAÇÃO (tratando da avaliação estética: sutileza, beleza, etc.).

Os sistemas de avaliatividade ligam-se por meio do conceito técnico de

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redundância: cada sistema “redunda com” sistemas em outra parte da lexicogramática

(isto é, em termos simplificados, eles cobrem a mesma área semântica usando

diferentes recursos linguísticos). Por exemplo, significados apreciativos são próximos

em termos semânticos a processos mentais de afeto, como é mostrado no Quadro 5.

Quadro 5 – Redundância

O filme era muito triste Com proc..relacional + apreciação

O filme me comoveu até as lágrimas. com processo mental

Fonte: Martin (2000)

Esse fato levou Martin a postular uma distinção importante entre avaliatividade

inscrita (explícita) e evocada (implícita) e, mais recentemente, a evocada provocada,

conforme Quadro 6. Quando a avaliação está explicitamente realizada, é fácil a

análise da atitude em positiva ou negativa em relação a algum evento: (a)

Felizmente/Infelizmente, o Brasil desafiou os EUA na ALCA. Mas o que fazer em

casos onde a avaliação não está inscrita explicitamente, como em: (b) O Brasil

desafiou os EUA na ALCA.

Quadro 6 - Meios de ativação da Avaliatividade

Inscrita (explícito) As crianças estavam falando alto.

Evocada (implícito) (tokens ‘fatuais’) As crianças conversavam enquanto ele dava aula.

Implícita provocada (alguma linguagem avaliativa) A professora já estava na sala, mas as crianças continuavam falando.

Fonte: Martin; White (2005)

Martin fala em pareamento do significado ideacional com o interpessoal presente

na avaliação na linguística. Assim, surge um item complicador que é o fato de que o

que conta como a avaliatividade depende do campo do discurso. Por isso, significados

Ideacionais que não usam léxico avaliativo podem ser usados para evocar apreciação,

afeto e julgamento. No caso da menção por Rita do livro Rubyfruit Jungle, esse fato

mostra o quanto ela é ignorante nessa área.

Toda instituição está carregada com pareamentos (ideacional + avaliação) desse

tipo, e a socialização em uma disciplina envolve tanto um alinhamento com as práticas

institucionais envolvidas quanto uma afinidade com as atitudes que se espera que

tenhamos em relação a essas práticas. Talvez devesse ser enfatizado que os

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analistas da avaliatividade deveriam declarar sua posição de leitura – já que a

avaliação por evocação depende da posição institucional que se toma ao ler um texto.

Assim, muitos leitores se alinhariam com Rita e não com Frank em termos de textos

populares como o citado Rubyfruit Jungle.

A avaliatividade, a negociação e o envolvimento constituem as relações, uma

das variáveis de REGISTRO, ou seja: Campo, Relações, Modo, que se refere às

relações de poder e solidariedade entre os interlocutores. Martin diz que a expressão

de atitude não é simplesmente uma questão de posicionamento pessoal, mas uma

questão interpessoal, pois a razão básica de adiantar uma opinião é provocar uma

resposta de solidariedade do interlocutor. A seguir, o Quadro 7 apresenta um

detalhamento do sistema de Avaliatividade.

Quadro 7 - O Sistema de Avaliatividade

Avaliatividade

(Appraisal)

ENGAJAMENTO

Monoglóssico

Heteroglóssico

ATITUDE

Afeto

Julgamento (ético)

Apreciação (estética)

GRADUAÇÃO

FORÇA

Aumenta

Diminui

FOCO

Aguça

Ameniza

Fonte: Martin (2003)

1.3 Linguística Crítica

A análise crítica do discurso (ACD) é, segundo Fairclough (2001), uma

orientação no estudo da língua que associa a análise do texto linguístico a uma teoria

social do funcionamento da língua. Embora pesquisadores tenham estabelecido em

fins dos anos vinte os princípios para uma análise crítica, sugerindo que a língua é

apenas um modo de uma pessoa se comportar, mas também de fazer os outros se

comportarem, somente na década passada a orientação crítica começou a se impor.

A abordagem crítica inclui a linguística crítica, de Fowler (1991), o trabalho de

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Fairclough sobre linguagem e poder (2001), a abordagem da análise do discurso

desenvolvida por Pêcheux (1982), estudos culturais desenvolvidos nos anos noventa

e os trabalhos sobre linguagem e gênero (CAMERON, 1990; CALDAS-COUTHARD;

COUTHARD; 1996, entre outros, apud FOWLER, 1991).

A linguística crítica é uma abordagem que foi desenvolvida por um grupo da

Universidade de East Anglia na década de 1970 (FOWLER et al., 1979; KRESS;

HODGE, 1979 apud FOWLER, 1991). Esses linguistas tentaram casar um método de

análise linguística textual com uma teoria social da linguagem em processos políticos

e ideológicos, recorrendo à teoria Linguística Sistêmico-Funcional (HALLIDAY, 1994).

O ponto teórico principal na análise de Fowler é de que qualquer aspecto da

estrutura linguística carrega significação ideológica - seleção lexical, opção sintática,

etc. – todos têm sua razão de ser. Há sempre modos diferentes de dizer a mesma

coisa, e esses modos não são alternativas acidentais. Diferenças em expressão

trazem distinções ideológicas e assim diferenças de representação.

Nesse sentido, seguimos na esteira de Li (2010), para quem, apesar da série de

abordagens à análise do discurso crítica (ADC), o que há de comum entre elas é a

compreensão de como as ideologias sócio-políticas ou socioculturais estão

entrelaçadas com a língua e o discurso. Van Dijk (1993), por exemplo, desenvolve

uma abordagem da ADC que procura ligar o texto com o contexto, integrando a

análise textual com processos de produção e interpretação do discurso. Analisando a

estrutura discursiva de textos, Van Dijk (1985) oferece um modelo analítico de três

níveis. O primeiro nível, a superestrutura, refere-se a esquemas textuais que

desempenham um papel importante na compreensão e na produção de textos.

Incluídas aí estão a estrutura temática hierarquizada dos textos, a organização geral

em termos de temas e tópicos, que envolve as formas linguísticas concretas do texto,

como as escolhas lexicais, variações sintáticas ou fonológicas, relações semânticas

entre proposições e traços retóricos e estilísticos. Essas formas linguísticas no nível

superficial implicam significados no terceiro nível, a estrutura profunda. Aqui, o

analista do discurso crítico examina, por exemplo, como certas estruturas sintáticas,

como as construções passivas, expressam posições ideológicas subjacentes ao omitir

ou ao desenfatizar agentes da posição de sujeito ou como escolhas retóricas

específicas atribuem maior poder a certos indivíduos ou grupos sociais.

A abordagem de Van Dijk tenta relacionar a noção macro da ideologia às noções

micro dos discursos e das práticas sociais de membros de grupo, estabelecendo um

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elo entre o social e o individual, o macro e o micro, o social ao cognitivo. Van Dijk

recorre a uma metodologia que se apoia na gramática-da-oração, nesse caso, a

Linguística Sistêmico-Funcional entra para entender como os traços do texto na

superfície e a estrutura superficial comunica ideologias específicas e identidades de

grupo no nível profundo. Assim, a língua é entendida como uma "rede de opções

entrelaçadas" (HALLIDAY, 1994, p. xiv) pela LSF, que é uma gramática do significado,

ou seja, ela vê a língua como um sistema de significados realizados por meio de

funções do rico recurso de opções gramaticais selecionadas pelo usuário da língua.

O significado envolvido na língua emerge em relação a escolhas específicas

feitas pelos seus usuários. Essas escolhas gramaticais são descritas em termos

funcionais para que sejam significativas semântica e pragmaticamente.

A LSF oferece um instrumento analítico específico para o exame sistemático das

relações de poder no texto bem como as motivações, propósitos, suposições e

interesse dos produtores do texto. Com seu foco na seleção, categorização e

ordenação do significado nas microestruturas no nível da oração mais do que no

macro nível do discurso, a LSF é especialmente útil para uma análise sistemática e

que enfoca os traços linguísticos no micronível dos textos do discurso.

É nesse contexto que procuro realizar o meu desejo de envolver em um mesmo

estudo a Literatura e a Linguística Aplicada Crítica, amparada pela proposta teórico-

metodológica da Linguística Sistêmico-Funcional (LSF), que possibilita, por meio da

relação entre as escolhas lexicogramaticais feitas na microestrutura do texto e a

macroestrutura do discurso, ler o texto nas suas subjacências.

Não tenho conhecimento de estudo focalizando as escolhas lexicogramaticais

do conto Missa do Galo para tentar entender o que de fato envolveu Conceição e

Nogueira naquela véspera de Natal. Se a literatura é a arte da palavra, creio que é na

palavra – na sua parte mais tangível, mas também nas indefinições que

necessariamente a cercam – que a análise deve considerar na busca do significado

ou dos significados sempre possíveis. Afinal, o que Machado quis dizer em Missa do

Galo?

1.3.1 A Leitura Relacional e as Metarrelações

Macken-Horarik (2003) apresenta um enquadre para investigar a “compreensão

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responsiva ativa” (MACKEN-HORARIK, 2003, p. 286) da narração pelo leitor. A autora

tenta mostrar como os recursos linguísticos para a construção de emoção e de ética

estão dispostos de maneira específica para cocriar complexos de significados de

ordem superior, ou metarrelações, que posicionam os leitores a adotar atitudes

específicas em relação aos personagens no decorrer de um texto. Em termos

linguísticos, seu estudo apoia-se na pesquisa da semântica avaliativa da

Avaliatividade, e também nos trabalhos dos sistemicistas Jay Lemke (1998) e Paul

Thibault (1991), que enriquecem as perspectivas linguísticas do significado

interpessoal. Lemke ampliou o termo axiologia, de Bakhtin (2003), para capturar a

complexa orientação de valores de textos e práticas textuais.

Os textos constroem modelos hipotéticos de seus destinatários e do mundo

discursivo de vozes competidoras, no qual serão lidos. Eles se posicionam em relação

a interlocutores reais e possíveis e em relação ao que eles mesmos e os outros

possam dizer. Essa visão fundamentalmente dialógica do texto foi introduzida por

Bakhtin (2003) juntamente com a noção de heteroglossia: de que todas as vozes

sociais divergentes (classes, gêneros, movimentos, épocas, pontos de vista) de uma

comunidade formam um sistema intertextual, no qual cada um deles é

necessariamente ouvido. Bakhtin (2003) mostrou que as relações que os textos

constroem juntamente com essas vozes são tanto ideacionais (representativamente

semânticas) quanto axiológicas (orientadas a valores).

Na pesquisa de Macken-Horarik, há dois aspectos da axiologia textual relevantes

a uma explicação do destinatário da narrativa. Primeiro, o leitor é convidado a uma

posição de empatia - solidariedade emocional com, ou, ao menos, compreensão das

motivações de um dado personagem. Segundo, espera-se que o leitor assuma uma

postura de percepção/julgamento dos valores éticos adotados por um determinado

personagem. A autora sugere que a narrativa ensina por meio de dois tipos de

subjetividade – intersubjetividade (a capacidade de “sentir com” (MACKEN-HORARIK,

2003, p. 287) um personagem) e a supersubjetividade (a capacidade de

“supervisionar” (MACKEN-HORARIK, 2003, p. 287) um personagem e avaliar

eticamente suas ações).

A autora fala também em leitura relacional. Há um nível de “jogo” (MACKEN-

HORARIK, 2003, p. 287) na estratégia de resposta disponível numa leitura literária.

Evidentemente, uma leitura relacional (ou sinótica) da narrativa como um todo precisa

ser feita por meio de um processamento passo a passo do texto. Uma interpretação

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bem-sucedida, então, depende de duas habilidades:

uma de processar as palavras do texto dinamicamente; e

outra de construir a relação semântica de cada fase com outra.

Numa perspectiva sinótica (leitura do todo, resumido), de retrovisão, os leitores

reconhecerão que algumas fases confirmam, outras se opõem e ainda outras

transformam o significado avaliativo de fases anteriores.

Os leitores também são sensíveis a síndromes ou complexos de significado

atitudinal e aos modos como confirmam, opõem-se ou transformam escolhas de

palavras em outros locais do texto. Essas configurações de escolhas avaliativas

relevantes criam o que Thompson (1998) denomina “ressonância” – uma harmonia de

significados que é um produto de uma combinação de escolhas não identificáveis com

qualquer outra escolha, consideradas isoladamente. Como veremos na análise da

avaliatividade, as expressões de atitude evocadas [implícitas] e inscritas [explícitas]

entram numa espécie de dança através do texto criando um espaço semântico mais

amplo que, por si, se torna avaliativo. Outros perceberam esse fenômeno em estudos

de avaliação. Veja, por exemplo, Hunston e Thompson (2000) sobre a complexidade

de sua realização em diferentes discursos e Lemke (1998) sobre a qualidade

propagativa da avaliação. A esse respeito – embora algumas partes do texto possam

ser mais ou menos interpessoalmente salientes do que outras - precisamos ver todo

o texto como aberto para e criativo de avaliação, seja ela implícita ou explícita. Embora

seja muito difícil desenvolver uma metalinguagem para o que David Butt chama de

padrões latentes do significado textual (BUTT, 1991, p. 295), o fato é importante se

quisermos desenvolver um modelo textual adequado que leve em conta o

posicionamento do leitor.

A percepção ética, diz a autora, é o resultado de um conjunto de relações

semânticas – ou metarrelações – juntamente com as que cocriam empatia. As

metarrelações tendem a articular o mundo externo de “deviam” e projeta-o para o

mundo interno focalizador dos “queros” (MACKEN-HORARIK, 2003, p. 307).

Naturalmente, nem todas as avaliações externamente projetadas são globais em seu

alcance; nem todos entram nas relações semânticas através do texto. Para tornar-se

“meta-“ (MACKEN-HORARIK, 2003, p. 307) do significado, precisam relacionar-se e

harmonizar-se com as metarrelações em algum lugar no texto, conforme o Quadro 8:

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Quadro 8 - Avaliatividade interna e externa

Metarrelação Significado semântico

Confirmação Fase que cria equivalência com fases anteriores por meio de avaliatividade semelhante.

Oposição Fase que cria contraste com fases anteriores por meio de avaliatividade de oposição.

Transformação Fase que cria mudança com fases anteriores por meio de mudança nas escolhas de avaliatividade.

Avaliação interna Fase que projeta visão interior e sentimentos do personagem.

Avaliação externa Fase que verbaliza as visões e os sentimentos do personagem.

Fonte: Macken-Horarik (2003)

Outra metarrelação importante para a percepção focaliza a mudança. Uma

transformação é uma fase que indica uma mudança significante de experiência. Isso

pode ser representado como uma mudança nos valores de avaliatividade em um dos

domínios externos.

A categoria como a metarrelação,continua a autora, é importante porque

possibilita interpretar a copadronização de escolhas de avaliatividade em certas fases

e construir as relações semânticas entre uma fase e outra. Assim, podemos tratar não

somente de formas explícitas de avaliação como a avaliatividade inscrita, mas

também de escolhas de avaliatividade evocada através de longos trechos do texto.

Podemos ver os modos pelos quais as combinações de escolhas conspiram, para

criar atitudes específicas no leitor ideal conforme ele processa o texto. E podemos ver

como certas configurações de metarrelações coocorrem em diferentes aspectos no

posicionamento do leitor. Enquanto a empatia favorece a seleção de confirmações, as

oposições e avaliações internas, percepção ética favorece as avaliações externas,

internas e transformações.

1.4 Persuasão

Persuadir é saber gerenciar uma relação, é falar à emoção do outro, é construir

algo no campo das ideias: quando convencemos alguém, esse alguém passa a pensar

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como nós, esse alguém realiza algo que desejamos que ele realize (ABREU, 2008).

Poggy (2005) apresenta um modelo de persuasão em termos de metas e

crenças. Ela vê a persuasão como um meio de influenciar uma pessoa, isto é, de gerar

novas metas ou ativar metas antigas, por meio do recurso da meta comunicativa de

fisgamento, especialmente através da convicção: A persuade B quando A, por meio

da comunicação, consegue que B persiga uma meta MA (meta de A) proposta por A.

A assim faz levando B a acreditar que MA é uma submeta da meta de MB. A fim de

persuadir B, A pode usar três diferentes estratégias: logos – argumentando que MA

é útil para MB; ethos – aparentando ser confiável a B; e pathos – fazendo B sentir

emoções que desencadeiam MA ou antecipando emoções que seriam sentidas

aceitando MA.

Poggy argumenta que essas estratégias estão em geral ativas em discursos

persuasivos verbais ou não verbais, e mostra como, em termos de hierarquia de

metas, uma análise de diferentes tipos de atos persuasivos – discursos políticos,

propaganda, diálogos – esclarecem a relação entre as metas do persuasor e do

persuadido e elucida o quanto e como o persuasor recorre a logo, ethos e pathos em

seu discurso.

Nesse contexto, Kitis e Milapides (1997) distinguem entre convicção e sedução,

processos que, para os autores, incluem-se no hiperprocesso da persuasão. A

convicção envolve a listagem de uma série de passos argumentativos, para que o

leitor os aceite (VAN DIJK, 1988). Pelo fato de incluir a ativação e a participação do

sistema cognitivo, essa aceitação constitui-se num processo cognitivo.

Porém, a persuasão pode se apropriar da participação cognitiva do leitor no

processo de aceitação da perspectiva do autor. Nesses casos, podemos falar de

sedução em vez de convicção. Sornig nota que:

Enquanto os mecanismos de convencimento e convicção trabalham

obviamente ao longo de linhas cognitivas argumentativas, a sedução, ao

contrário, em vez de confiar na verdade e/ou credibilidade de argumentos,

explora a aparência externa e a aparente confiabilidade do persuasor. (1988,

p. 97)

Pode-se conjecturar, explicam Kitis e Milapides (1997), que os mecanismos de

sedução na relação entre o persuasor e sua vítima ou cúmplice (KITIS; MILAPIDES,

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1997, p. 561) sejam identificáveis tanto no nível do texto quanto no do subtexto, i.e.,

não somente no nível do léxico, estruturas e figuras de linguagem como componentes

da estrutura local do texto, mas também no nível de sua coerência geral. O que está

implícito em tudo isso é a seleção de um certo estilo. Devemos supor que há algo que

não varia: o significado subjacente ou referência, que deve ser conservado constante.

O estilo, assim, parece ser capturado pela conhecida frase “dizer a mesma coisa

através de diferentes modos" (VAN DIJK, 1988, p. 73).

A propósito, Latour e Woolgar (1979, p. 240) afirmam que “o resultado de uma

persuasão retórica é que os participantes devem ser convencidos de que não foram

convencidos”. Segue-se que a persuasão tende a ser, altamente, implícita, sem o

recurso da linguagem avaliativa, geralmente, associada ao significado interpessoal,

caso em que sua interpretação depende em grande parte do sistema de valores

compartilhados.

Esses instrumentos retóricos são empregados no nível interpessoal como

veículos para recuperar no nível do discurso um argumento do “não dito” (KITIS;

MILAPIDES, 1997, p. 579), mas que realiza o nível da coerência subjacente do texto.

Tais instrumentos ajudam a transformar o discurso em uma sedutora crypto-

argumentação, a argumentação que subjaz ao texto descritivo e narrativo,

contribuindo assim para a construção geral da ideologia do texto, segundo Kitis e

Milapides (1997, p 579).

Relacionado a esses fatos, a noção de dialogismo, de Mikhail Bakhtin (BAKHTIN,

2003) proporcionou, aos teóricos literários e linguistas, a consciência da característica

endereçadora dos chamados textos monológicos. Nessa perspectiva, os textos

escritos estabelecem um diálogo virtual com os leitores conforme o desenrolar do

processamento do texto.

Nesse sentido, Fløttum (2010) indica a polifonia como um recurso persuasivo

efetivo, com a inclusão de traços explícitos ou implícitos de diferentes vozes, por

exemplo, a presença de múltiplos pontos de vista, típica do discurso político. Essa

presença pode ser efetivada com a atribuição a fontes distintas ou confusas. A

abordagem polifônica pode, assim, revelar algumas interações sutis por meio de

vozes e argumentos implícitos, segundo a autora.

A seguir, apresento a noção de frame – conhecimento de mundo do leitor – que

pode facilitar o processo persuasivo, ao permitir ir ao encontro das expectativas do

interlocutor, fenômeno chamado de intersubjetivismo (KÄRKKÄINEN, 2006).

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31

1.4.1 A Relevância da Teoria de Frame na Linguística Aplicada

Bednarek (2005) explica a aplicação de frames ao discurso pelo ouvinte –

estruturas mentais de conhecimento (mental knowledge structures) que captam as

feições típicas de uma situação para garantir a coerência.

Segundo a autora, depois da reviravolta cognitiva de 1980, a linguística moderna

tem favorecido cada vez mais uma abordagem da linguagem baseada na experiência

de mundo e no modo como o percebemos e o conceitualizamos, i.e., a abordagem da

linguística cognitiva (UNGERER; SCHMID, 1996, p. x). Alguns dos interesses-chave

desse ramo da linguística são protótipos, categorias, metáforas, metonímia e – o

tópico deste artigo – frames.

Falando em termos amplos, diz a autora, a teoria de frame trata do conhecimento

de mundo. Numa primeira definição, um frame pode ser considerado como uma

estrutura mental de conhecimento que capta feições típicas do mundo. Desde a sua

concepção, o conceito de frame tem interessado pesquisadores de vários campos e

tradições (cf. TANNEN, 1993a, p. 3; 1993b, p. 15). Os pioneiros vieram da filosofia e

da psicologia (KONERDING, 1993, p.8 apud ODA, 2008, p.29), mas seus conceitos

foram desenvolvidos e reinterpretados por pesquisadores da inteligência artificial

(MINSKY, 1975, 1977) e da sociologia (GOFFMAN, 1974, 1981) para nomear apenas

alguns campos e autores.

Infelizmente, mas talvez inevitavelmente, continua a autora, o resultado dessa

situação tem sido uma terminologia confusa: frame tornou-se um termo associado e

ligado a fenômenos diferentes, embora relacionados. Ao mesmo tempo, uma série de

outras expressões (script, schema, scenario) foi escolhida para fazer referência a

essas noções.

Apesar de suas raízes estarem na filosofia e na psicologia, a teoria do frame está

em geral associada ao trabalho de Minsky na inteligência artificial. Em sua pesquisa,

Minsky toma a noção introduzida pelo psicólogo Bartlet em 1932: “[...] o passado opera

mais como uma massa organizada do que um grupo de elementos cada um dos quais

retém um caráter específico” (BARTLETT, 1932, p. 197).

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De acordo com Minsky, um frame pode ser considerado uma representação

mental do nosso conhecimento de mundo, uma estrutura de dados que está localizada

na memória humana e pode ser selecionada ou recuperada quando necessária. Um

frame é considerado uma estrutura: é “uma rede de nós e relações” (MINSKY, 1977,

p. 355) que parece estar estruturada em diferentes níveis.

Basicamente, isso significa que em nossa memória, o conhecimento é estocado

em grande número de frames ou sistemas de frames (coleção de frames relacionados,

MINSKY, 1977, p. 355). Por exemplo, o frame de [QUARTO] abrange elementos

típicos como CAMA, LÂMPADA, CRIADO-MUDO, etc. Quando encontramos uma

situação nova (e.g. um quarto específico), inicia-se um processo de seleção e de

combinação: primeiro, um frame é “evocado com base numa evidência parcial ou

expectativa" (MINSKY, 1977, p. 359). Então, comparamos a experiência nova (o

quarto específico) com esse frame selecionado ([QUARTO]) e finalmente, designamos

feições a essa nova experiência (uma cama, lâmpada, criado-mudo específicos, etc.)

aos terminais do frame (dependendo se as feições satisfizerem as condições que

regem as escolhas).

Um dos problemas com a teoria de frame de Minsky é a sua vaguidade. Como o

próprio Minsky admite, sua teoria está incompleta e fragmentada. Apesar dessas

dificuldades, o referido conceito permanece útil, se não se considerarem as

especificidades. No todo, o conceito de frame derivado daquele que Minsky ajudou a

desenvolver explica muitos fenômenos linguísticos e prova ser um instrumento valioso

na análise do discurso.

Na linguística, foi inicialmente considerado como sendo um conceito linguístico

por Fillmore (1975), mas, com o passar dos anos, foi considerado como uma

reinterpretação cognitiva; atualmente, muitos linguistas concordam na definição de

frame como fenômenos mentais, uma estrutura de conhecimento (e.g. YULE, 1996,

p.85, TANNEN; WALLAT, 1993, p. 60, STUBBS, 2001, p. 3). Tais estruturas de

conhecimento não são inatas, mas adquiridas através da socialização, construída a

partir da experiência (da nossa experiência ou relatos de experiência de outros etc.),

e são, portanto, tanto dependentes diacrônicamente quanto culturalmente. A

importância da dependência cultural foi mostrada por Tannen (1993b) e Yule (1996,

p. 87).

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1.4.1.1 Frames e Coerência

Assim como acontece com o conceito de frame, a coerência também é uma

noção um tanto vaga na linguística e não há ainda uma definição geralmente aceita

ou uma teoria da coerência (cf. BUBLITZ, 1999, p.1). Bednarek (2005) não discute a

noção em detalhe, restringindo-se a algumas observações referentes à diferença

entre coesão e coerência. A coesão é uma propriedade de textos e refere-se aos

meios linguísticos para prover textura (i.e., liga as sentenças de um texto), tal como a

referência, a substituição, a elipse, a reiteração, a colocação e a conjunção, conforme

Halliday e Hasan (1976) ou os padrões do léxico, de Hoey (1991), etc.

A coerência, por outro lado, é mais bem descrita como conexão semântica,

lógica ou cognitiva que está subjacente ao texto (cf. de BEAUGRANDE; DRESSLER,

1981, p. 4; BUSSMANN, 1996, P. 80; THOMPSON; ZHOU, 2000, p. 121). Ao invés

de supor que essas conexões existam independentemente do falante ou do ouvinte,

a coerência é hoje claramente definida em relação à contribuição do ouvinte: “[...] a

coerência somente é mensurável em termos da avaliação do leitor” (HOEY, 1991, p.

11). Assim, chega-se a uma simples distinção entre coerência e coesão: a coerência

não é uma propriedade inerente ao texto; ela se refere a relações lógicas de um texto

e é estabelecida pelos ouvintes. Em outras palavras, ela se refere à extensão pela

qual os ouvintes julgam que este texto “está unido” e constitui um todo unificado. A

coesão, por outro lado, é uma propriedade inerente ao texto, o que nem sempre

acontece como explica Cornish (2003), podendo depender do frame do leitor, que

diante de seu conhecimento do assunto pode recuperar os elementos anafóricos

omitidos, preenchendo-os no texto. Esse fato, corriqueiro na poesia, é evitado em

texto dissertativo-argumentativo.

Assim, a autora supõe que sejam os ouvintes que estabelecem a coerência, e

não os textos, embora os meios coesivos dos textos exerçam um amplo papel

ajudando os ouvintes a estabelecer a coerência. Em geral, operamos por princípio

automático de coerência (cf. BROWN; YULE, 1983, p. 66; BUBLITZ; LENK, 1999, p.

156), supondo que o texto seja coerente e que o falante obedeça aos princípios de

cooperação (GRICE, 1975) que são tacitamente aceitos na conversa. Daí a razão do

esforço que fazemos para criar coerência, apoiando-nos em pistas possíveis,

presentes no frame.

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A seguir, apresento a noção de intersubjetividade, que tem íntima relação com a

noção de frame.

1.4.2 Intersubjetividade

Kärkkäinen (2006) afirma que a atitude no discurso não é a apresentação

linguística transparente de estados internos de conhecimento, mas emerge da

interação dialógica entre interlocutores. Assim, a atitude é mais apropriadamente vista

de um ponto intersubjetivo, e não considerada primordialmente como uma dimensão

subjetiva da linguagem.

A autora procura demonstrar que o posicionamento atitudinal/avaliativo no

discurso emerge da interação dialógica entre interlocutores, afastando-se da ideia de

que ele possa ser considerado uma apresentação linguística transparente de estados

internos de conhecimento. Dessa forma, a atitude é mais apropriadamente

compreendida do ponto de vista da intersubjetividade do que como uma dimensão

subjetiva da linguagem.

Kärkkäinen inicia sua proposta com uma definição linguística de subjetividade,

com base em Finegan, que afirma:

A subjetividade é a expressão do self e a representação da perspectiva ou

ponto de vista do falante (ou mais genericamente, do agente locucionário) no

discurso o que tem sido chamado de “marca do falante”. (FINEGAN, 1995, p.

1)

A subjetividade, então, refere-se ao fenômeno que o falante com suas atitudes

ou crenças faz-se presente nos enunciados que produz. Em outras palavras, em vez

de simplesmente descrever um evento ou apresentar uma declaração objetiva de

algum evento ou estado de coisas, o falante representa um evento ou estado de coisas

a partir de uma perspectiva específica.

Quando a perspectiva avaliativa – afetiva ou epistêmica – do falante se reflete

em suas escolhas linguísticas, estamos falando da função expressiva, emotiva, afetiva

ou atitudinal da linguagem, em oposição à função referencial, cognitiva ou descritiva.

As pesquisas estão começando a mostrar que não somente as categorias gramaticais,

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como: termos dêiticos, modo, modalidade, tempo verbal e evidenciais, são índices do

ponto de vista ou atitude do falante, mas também que o nosso uso da linguagem diária

é inerentemente subjetivo, em muitos, senão na maioria, dos casos.

Ochs e Schieffelin (1989, p. 22) mostram que o afeto permeia o sistema

linguístico inteiro, de tal modo que os recursos linguísticos para a avaliação afetiva e

epistêmica incluem, não somente o léxico, mas também as estruturas gramaticais e

sintáticas (e.g. escolha de pronomes, determinantes, voz verbal, tempo e aspecto

verbais, advérbios sentenciais, modalizações, construções clivadas (cleft sentences),

diminutivos, aumentativos, quantificadores, ordem de palavras, feições fonológicas e

estruturas discursivas (code-switching instanciadas por palavras-tabu, dialeto,

repetição de enunciado alheio). É também, em geral, o caso de que os participantes

não tratam da fala prévia puramente em seus próprios termos, mas eles a endereçam

de um modo que seja relevante para seus propósitos subsequentes (GOODWIN;

GOODWIN, 1987, p. 4). Como resultado, os participantes podem construir avaliações,

modificando a avaliação imediatamente copresente de um interlocutor dialógico (DU

BOIS, 2000).

Outros termos têm sido usados para o domínio formal-nocional da impressão do

falante e da perspectiva subjetiva; a recente avaliação tem ganhado lugar como

sinônimo (próximo) de subjetividade. Kockelman (2004) propõe a seguinte definição

para os marcadores de avaliação: qualquer sinal que os membros de uma

comunidade associam com a contribuição pessoal do falante para a construção-do-

evento em que as avaliações são entendidas como tipos possíveis dessa contribuição

pessoal.

Kärkkäinen (2006) considera uma visão de avaliação mais dialógica, dinâmica e

emergente – considerando-a mais como uma característica da língua intersubjetiva

do que subjetiva. Ela se baseia no trabalho de Du Bois (2000, 2002, 2004) que advoga

a noção de avaliação envolvendo não somente a dimensão subjetiva, mas também o

compromisso intersubjetivo com outras subjetividades: "sem a intersubjetividade, a

subjetividade é inarticulada, incoerente, disforme" (DU BOIS, 2004, 704). Hunston e

Thompson também afirmam que:

[...] a expressão da atitude não é, como se costuma dizer, simplesmente uma

questão pessoal (o falante "comentando" sobre o mundo), mas uma questão

interpessoal em que a razão básica para adiantar uma opinião é eliciar a

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resposta solidária do endereçado. (2000, p. 143)

A seguir, o Quadro 9 apresenta os títulos das teorias até aqui apresentadas.

Quadro 9 – As teorias

LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL Metafunções

Escolhas lexicogramaticais

LINGUÍSTICA CRÍTICA

AVALIATIVIDADE Leitura relacional

Metarrelações

PERSUASÃO Teoria do Frame

Frame e coerência Intersubjetividade

Elaborado pela autora

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2 METODOLOGIA

A pesquisa tem o apoio da Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) - um modelo

multiperspectivo, designado a dar aos analistas lentes complementares para a

interpretação da língua em uso (MARTIN; WHITE, 2005, p. 7). Por outro lado, levo

em conta, de acordo com Fowler (1991), Charteris-Black (2004) e de Kerbrat-

Orecchioni (2004), que o apoio teórico em pesquisa de linguística aplicada tende a ser

eclético, empregando metodologia mista, “já que os mesmos recursos não são

apropriados para descrever diferentes níveis e componentes da interação, sendo

necessário o apelo a várias tradições descrtivas” (KERBRAT-ORECCHIONI, 2004, p.

9).

2.1 Dados

O conto Missa do Galo, de Machado de Assis, encontra-se no livro Melhores

Contos Machado de Assis, publicado em 2010, com 2ª reimpressão em 2012, pela

editora Global Editora, São Paulo/SP, 16ª edição, nas páginas 250 a 258.

Segundo o site da Academia Brasileira de Letras, instituição que Machado de

Assis ajudou a fundar e da qual é presidente perpétuo, Joaquim Maria Machado de

Assis é considerado um dos mais importantes escritores da literatura brasileira.

Mulato e de origem pobre, Machado de Assis, nascido no Rio de Janeiro em 21

de junho de 1839, foi criado no Morro do Livramento, frequentou a escola apenas

durante o ensino primário e ainda criança ficou órfão de mãe. Em 1854, com apenas

15 anos, publicou seu primeiro trabalho literário, o soneto “À Ilma. Sra. D. P. J. A.”, no

Periódico dos Pobres. Em 1856, começou a trabalhar como aprendiz de tipógrafo na

Imprensa Nacional, onde conheceu Manuel Antônio de Almeida, que se tornaria seu

amigo e incentivador de sua arte. Em 1858 tornou-se revisor e colaborador no Correio

Mercantil e, em 1860 passou a pertencer à redação do Diário do Rio de Janeiro.

Escrevia também para a revista O Espelho, onde estreou como crítico teatral. Aos 50

anos já era um escritor nacionalmente consagrado, sua obra abrange, praticamente,

todos os gêneros literários. Na poesia, inicia com o romantismo de Crisálidas (1864)

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e Falenas (1870), o indianismo em Americanas (1875), e o parnasianismo em

Ocidentais (1901). Em prosa, as obras de Machado de Assis dividem-se em duas

fases: na primeira delas, os personagens apresentam características românticas,

como em: Ressurreição (1872), seu primeiro livro; A Mão e a Luva (1874), Helena

(1876) e Iaiá Garcia (1878); na segunda fase, Machado dá ênfase aos traços

psicológicos dos personagens, característica do realismo literário. São dessa fase os

romances: Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1892), Dom

Casmurro (1900) e Memorial de Aires (1908). Machado de Assis também escreveu

poemas, crônicas e contos como: A Carteira, A Cartomante, Missa do Galo, O

Alienista. Foi teatrólogo e crítico literário. Para Candido (2004), ao analisarmos a

carreira intelectual de Machado de Assis, verificaremos que sua obra foi reconhecida

desde cedo, de tal maneira que aos cinquenta anos já era considerado o maior escritor

brasileiro. A caracterização de Machado como Bruxo do Cosme Velho, segundo

Kujawski (2011), “serve à sua personalidade sob medida” (KUJAWSKI,2011,p.105),

“[...]um terrível ilusionista, tira coelhos de cartolas invisíveis, faz tomar a nuvem por

Juno, despista o leitor, arma ciladas a cada passo da narrativa [...]” (KUJAWSKI,2011,

p.35).

Machado de Assis faleceu em 29 de setembro de 1908 em sua cidade natal,

Rio de Janeiro.

Missa do Galo3

Missa do Galo é ambientado no Rio de Janeiro de antes da Abolição. Os

personagens são Nogueira, o narrador-personagem, estudante de 17 anos, ingênuo

jovem do interior que vai ao Rio de Janeiro estudar e hospeda-se na casa de Meneses.

Conceição, mulher de 30 anos, é a fonte das perturbações do protagonista, era

considerada santa por este, pois sabia das traições do marido, mas nada fazia.

Meneses, escrivão; marido infiel de Conceição, não aparece no conto, somente é

citado. Fora casado com uma das primas de Nogueira; dizia que ia ao teatro para

encontrar-se com a amante. Morre de apoplexia. Duas escravas e a mãe de

Conceição, que dormia no momento da conversa entre os dois personagens.

3 O texto na íntegra encontra-se no Anexo A.

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Coutinho (2004) qualifica Missa do Galo como um “conto célebre”, em que nada

passa aparentemente. Segundo o autor, um tumulto interior, que Moisés (2007)

denomina ação interna, aquela que se passa na consciência ou/e na subconsciência

de uma personagem, transparece numa conversa sem sentido, de palavras

espaçadas, entre dois personagens: um adolescente que aguarda a missa da meia-

noite e uma senhora insone. Conceição, a senhora, é o mesmo arquétipo feminino da

mulher madura, “[...] que atrai como para um desaguadouro o filete inquieto e sem

profundidade da sensualidade nascente [...]” (COUTINHO, 2004, p. 163-164). Bosi

classifica este conto e outros dessa mesma fase de Machado de Assis, de contos-

teoria:

Vejo nos contos maduros de Machado, escritos depois de franqueada a

casa dos quarenta anos, o risco em arabesco de ‘teorias’, bizarras e

paradoxais teorias, que, afinal, revelam o sentido das relações sociais mais

comuns e atingem alguma coisa como a estrutura profunda das instituições.

(BOSI, 1999, p. 85)

Missa do Galo relata o diálogo numa noite de Natal entre um jovem e uma

senhora casada e traída pelo marido. A história é contada sob a ótica do jovem

Nogueira, intrigado com a conversa, ao mesmo tempo banal e misteriosa, envolta num

clima de sensualidade. Praticamente nada acontece objetivamente entre os dois, mas

o autor parece nos querer dizer que, onde nada acontece, tudo pode estar

acontecendo subjetivamente e, para que o percebamos, é preciso apurar os ouvidos

e ler nas entrelinhas as marcas do desejo não explícito. Moisés (2004) afirma que,

além do realismo positivista ou realismo exterior, voltado para o meio social, há o

realismo interior, uma vertente complementar, na qual o foco está voltado para o

íntimo das personagens, de que é exemplo a ficção de Machado de Assis.

Conceição, a personagem feminina do conto, é misteriosa e de comportamento

ambíguo. Leia um trecho da descrição da personagem: “Pouco a pouco, (Conceição)

tinha-se inclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa. Não estando abotoadas,

as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muito claros, e

menos magros do que se poderiam supor. A vista não era nova para mim, posto

também não fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande.

A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro.” Entretido pela

conversa, o jovem Nogueira quase se esqueceu do horário da missa a que esperava

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assistir. Durante a cerimônia, o rapaz não conseguia se concentrar, pensando na

figura de Conceição. No trecho final, informa: Na manhã seguinte, ao almoço, falei da

missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a curiosidade de Conceição.

Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar

a conversação da véspera. Pelo ano-bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio

de Janeiro, em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no

Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com

o escrevente juramentado do marido.

2.2 Procedimentos de Análise

A análise de Missa do Galo deve responder às seguintes perguntas: (a) o que

podem as escolhas lexicogramaticais feitas por Machado de Assis em Missa do Galo,

em termos das metafunções ideacional e interpessoal, revelar sobre o diálogo entre

Conceição e Nogueira? (b) qual é o papel da leitura relacional e das metarrelações

nesse processo? (c) que importância tem a teoria do frame para explicar o

comportamento dos protagonistas? Para tanto, procedo seguindo os passos abaixo

alistados.

(i) Inicialmente, devido à extensão do conto, o texto foi dividido em duas partes:

as partes selecionadas para análise (veja a seguir critério de seleção) em tipo

ARIAL 12; as partes mantidas para servir de cotexto da análise em tipo ARIAL

10.

(ii) Creio que a seleção dos trechos a analisar depende, em grande parte, do

frame – o conhecimento de mundo - que o leitor traz em sua interação com o

texto. Assim, poder-se-ia dizer que cada leitor selecionaria diferentes trechos

do conto como sendo os mais propícios para responder às perguntas de

pesquisa, embora pudesse haver algum consenso devido, exatamente, a

essas perguntas que acabariam limitando as escolhas.

(ii) A seguir, realizei a análise de registro – contexto de situação – por meio de

suas variáveis: campo (assunto), relações (interactantes) e modo (linguagem

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que organiza os significados ideacionais e interpessoais) com vistas a

diminuir a subjetividade da análise (GOATLY, 1997).

(iii) Feito isso, analisei as escolhas feitas pelo autor em termos da metafunção

ideacional e da metafunção interpessoal, por meio do sistema da transitividade

e da modalidade/avaliatividade, respectivamente. Em função da boa

visibilidade da análise, dividi essa análise, colocando na linha logo abaixo do

texto a análise da transitividade e na linha seguinte, a análise da

modalidade/avaliatividade, seguindo o esquema abaixo:

Apresento, a seguir, um exemplo da análise, que seguiu o esquema abaixo:

Código de análise

Transitividade (metafunção ideacional):

PARTICIPANTE (ator e circunstância): sublinhados

PROCESSO (material, verbal, mental, comportamentel,

existencial e relacional): em CAIXA ALTA

Avaliatividade (metafunção interpessoal): em negrito

Os sinais (+) e (-) indicam se a avaliatividade é positiva ou

negativa respectivamente, além do token de Atitude para o caso

de avaliatividade implícita. e os sinais (↑) ou (↓) indicam

graduação mais ou menos intensa respectivamente.

Conceição PADECERA, a princípio, com a existência da comborça; Transit: Experienciador Mental Fenômeno

Avaliat: Afeto(-) Julgamento (-)

mas afinal, RESIGNARA-se, ACOSTUMARA-se, e ACABOU ACHANDO (= CONCLUIU) Mental Mental Mental

Afeto (-) Afeto (-) Afeto (-)

que ERA muito direito. Relacional Atributo

Julgamento (-) token (negativo no contexto)

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(iv) Cada trecho analisado recebe uma Interpretação da análise, tendo em vista a

leitura relacional que, aos poucos, num processo prosódico (segundo a LSF),

deve revelar também a mensagem subjacente no processo discursivo do

conto.

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3 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

3.1 Análise de registro

Campo: Numa noite de Natal, dialogam Nogueira, um jovem ingênuo de 17

anos, e Conceição, uma senhora, de 30 anos, casada e traída pelo marido.

Nada acontece entre os dois no plano explícito, mas Machado de Assis

parece insinuar que algo acontecia no plano implícito.

Relações: Nogueira e Conceição

Modo: Modalidade escrita, com inserções de conversa, formal.

3.2 Análise do conto

MISSA DO GALO Machado de Assis

Nunca pude ENTENDER a conversação Processo mental Fenômeno

Modalização de frequência Modalização de probabilidade

que tive com uma senhora, há muitos anos, CONTAVA eu dezessete, ela trinta. Processo relacional Atributo Atributo

Comentário: O conto inicia-se com as circunstâncias que fazem duas pessoas

– ele (Nogueira) com 17 e ela (Conceição) com 30 anos de idade – passarem

juntas parte da noite de Natal. “Nunca pude entender”, antecipa o aparente

desencontro entre a interpretação do rapaz diante da situação que os envolveu

e a intenção da mulher.

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Cotexto:

Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir;

combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.

A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses, que fora casado, em primeiras

núpcias, com uma de minhas primas. A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem

quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia

tranquilo, naquela casa assobradada da Rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns

passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às

dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao

teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo.

Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se,

saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em

ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez

por semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência da comborça; mas afinal, resignara-se,

acostumara-se, e acabou achando que era muito direito.

Boa Conceição! Chamavam-lhe "a santa", e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os

esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes

lágrimas, nem grandes risos.

No capítulo de que trato, dava para maometana; ACEITARIA um harém, Processo mental

Julgamento (-)

com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a JULGO mal. Atributo

Julgamento (-)

Tudo nela ERA atenuado e passivo. O próprio rosto ERA Processo relacional Atributos Processo relacional

Apreciação (-) token

mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Atributos Atributo

Apreciação (-) Julgamento (-) token

Não dizia mal de ninguém, PERDOAVA tudo. Não sabia ODIAR; Processo mental Processo mental

Julgamento (-) token Julgamento (-) token

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pode ser até que não SOUBESSE AMAR. Processo mental Processo mental

Julgamento (-) Julgamento (-) token

Comentário: Processos relacionais fazem a descrição de Conceição,

enquanto processos mentais mostram a sua passividade, sua personalidade

morna. Vários tokens mostram que Machado de Assis caracteriza a mulher

com avaliatividades de Apreciação (avaliação estética) e de Julgamento

(avaliação ética) negativos, em geral tokens, ou seja, negativos no contexto.

Tudo indica uma mulher pouco atraente em termos sensuais, e daí talvez o

desinteresse do marido; também não exerce qualquer atração nesse sentido

em Nogueira, ao menos inicialmente.

Cotexto: Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já devia

estar em Mangaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para ver "a missa do galo na Corte". A família

recolheu-se à hora do costume; eu meti-me na sala da frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor

da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu

levaria outra, a terceira ficava em casa.

— Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? perguntou-me a mãe de Conceição.

— Leio, D. Inácia.

Tinha comigo um romance, Os Três Mosqueteiros, velha tradução creio do Jornal do Comércio.

Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a

casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D'Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em

pouco estava completamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do que costumam

fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto,

um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da

sala de visitas à de jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de

Conceição.

— Ainda não foi? perguntou ela.

— Não fui, parece que ainda não é meia-noite.

— Que paciência!

Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um roupão branco, mal

apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro

de aventuras. Fechei o livro, ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé.

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Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza:

— Não! qual! Acordei por acordar.

Fitei-a um pouco e DUVIDEI da afirmativa. Os olhos não ERAM Processo mental Portador Processo relacional

Julgamento (+)

de pessoa que ACABASSE de DORMIR (= acordasse); pareciam Modalização de probabilidade

não ter ainda pegado no sono (= dormido). Essa observação, porém, Atributo Portador

Apreciação (-)

que VALERIA alguma cousa em outro espírito, depressa Processo relacional Atributo Circunstância Circunstância

Julgamento (-) token

a BOTEI FORA, sem ADVERTIR que talvez não DORMISSE Processo mental Processo mental Processo mental

Julgamento (-) token Julgamento (-) Token

justamente por minha causa, e MENTISSE para me Circunstância Processo comportamental

Julgamento (-) ↓

não afligir ou aborrecer. Já DISSE que ela ERA boa, muito boa. Processo relacional Atributo

Julgamento (+) Julgamento (+) ↑

Comentário: Nogueira duvida – Julgamento positivo, que parece mostrar sua

percepção da realidade – da resposta de Conceição de que estivera dormindo.

Essa dúvida – em uma leitura relacional – dá continuidade aos seus dizeres

iniciais: “Nunca pude entender”. Mas, logo, o leitor também é convidado a

entrar no estado de dúvida, que decorre das afirmações de Nogueira: “valeria

alguma coisa em outro espírito” e “depressa botei fora”. Valeria o quê? E o

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que teria jogado fora?

As escolhas lexicogramaticais desse trecho – processos mentais (pensamentos

de Nogueira) e relacionais (descrição da situação) sugerem ambiguidade

decorrente do frame de cada um dos personagens: Conceição mente para,

talvez, ocultar seus sentimentos; Nogueira julga-se culpado pela insônia de

Conceição, talvez porque a teria acordado.

A análise das metarrelações (o vai vem das avaliatividades) mostra que a

ambiguidade persiste nos dizeres de Nogueira: “talvez não dormisse

justamente por minha causa”, que pode ter dois sentidos, um dos quais

coincidiria com o desejo romântico de Conceição, já que Nogueira admite que

“valeria alguma coisa em outro espírito”.

Conceição “era boa, muito boa” pode significar a qualidade que de fato

caracterizava a mulher, mas também pode soar como uma desculpa para o que

lhe ia no espírito, e que não pudera ‘jogar fora” inteiramente.

Como se vê, o trecho é extremamente rico em metarrelações, em que as

avaliatividades se confirmam, se opõem, se modificam, projetando a visão

interior do personagem. Tudo isso mostra a ambiguidade de significados

verbais e corporais aos quais recorre Machado para criar uma situação difícil

de ser classificada.

Cotexto:

— Mas a hora já há de estar próxima, disse eu.

— Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E esperar sozinho!

Não tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu.

— Quando ouvi os passos estranhei: mas a senhora apareceu logo.

— Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros.

— Justamente: é muito bonito.

— Gosta de romances?

— Gosto.

— Já leu a Moreninha?

— Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba.

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— Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que

você tem lido?

Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns nomes.

Conceição OUVIA-me com a cabeça reclinada no espaldar, Processo mental Circunstância

Apreciação (-) token

ENFIANDO os olhos por entre as pálpebras meio-cerradas, Processo material Meta Circunstância

sem os TIRAR de mim. De vez em quando PASSAVA a língua pelos beiços, Processo material Processo material

para UMEDECÊ-los. Quando ACABEI de FALAR (= calei-me), Processo material

não me DISSE nada; FICAMOS assim alguns segundos. Processo verbal

Em seguida, VI-a ENDIREITAR a cabeça, CRUZAR os dedos e

sobre eles POUSAR o queixo, TENDO os cotovelos nos braços da cadeira,

tudo sem DESVIAR de mim os grandes olhos espertos.

Comentário: Há aqui dois fatos a considerar, e devido a isso deixo de colocar

a análise no quadro acima. Assim, nos trechos a seguir: “enfiando os olhos por

entre as pálpebras meio-cerradas, sem os tirar de mim”, “passava a língua

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pelos beiços”, “sem desviar de mim os grandes olhos espertos” seriam meras

descrições das diversas posturas adotadas por Conceição em seu diálogo com

Nogueira, e, portanto, sem valor avaliativo. Confirmando esse estado de

coisas, Nogueira diz até que ela passava a língua pelos beiços “para umedecê-

los”.

Já por parte de Conceição, a meu ver, e aqui entra meu frame de mulher, o seu

comportamento traduz um jogo de conquista sensual, embora – como mostra

uma leitura relacional, sua personalidade pouco atirada não lhe permite mais

que o apoio de sugestões.

Nesse sentido, suas atitudes seriam classificadas como sendo de apreciação

negativa, já que não conseguem o intento desejado: não têm a força necessária

para, em termos intersubjetivos, envolver romanticamente o rapaz.

Cotexto: "Talvez esteja aborrecida", pensei eu.

E logo alto:

— D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu...

— Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio, são onze e meia. Tem tempo. Você,

perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia?

— Já tenho feito isso.

— Eu, não, perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que seja,hei de

passar pelo sono. Mas também estou ficando velha.

— Que velha o que, D. Conceição?

Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos demorados e as

atitudes tranquilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu

alguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o desalinho honesto

que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no andar, como

quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite. Parava

algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou concertando a posição de algum objeto no

aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o círculo das suas ideias;

tornou ao espanto de me ver esperar acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira

missa do galo na Corte, e não queria perdê-la.

— É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem.

— Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na

Corte é mais bonita que na roça. S. João não digo, nem Santo Antônio...

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Pouco a pouco, tinha-se reclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto

entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe

metade dos braços, muito claros, e menos magros do que se poderiam supor. A vista não era nova

para mim, posto também não fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande.

As veias eram tão azuis, que apesar da pouca claridade, podia, contá-las do meu lugar. A presença de

Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e

da cidade, e de outras cousas que me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos, sem saber

por que, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la sorrir e ver-lhe os dentes que

luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco

e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo.

Quando eu alteava um pouco a voz, ela reprimia-me:

— Mais baixo! mamãe pode ACORDAR. Ator Processo mental

Julgamento (-) Modalização de possibilidade

E não SAÍA daquela posição, que me ENCHIA de gosto (=gostava), Processo material Circunstância Processo mental

Apreciação (+) Afeto (+)

tão perto FICAVAM as nossas caras. Realmente, não ERA Atributo Processos relacional

Apreciação (+)

preciso FALAR alto para SER OUVIDO: COCHICHÁVAMOS os dous, Processo verbal

Modulação de obrigação Apreciação (+)

eu mais que ela, porque FALAVA mais; ela, às vezes, FICAVA séria, Processo verbal

Graduação (↑)

muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, CANSOU, Atributo Processo mental

Apreciação (-) Afeto (-)

TROCOU de atitude e de lugar. DEU volta à mesa e Processo material

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VEIO SENTAR-se do meu lado, no canapé. Processo material Circunstâncias

Apreciação (-) token

Comentário: Nogueira sente-se feliz ao lado de Conceição (afeto positivo),

bem perto dela, falando lhe ao ouvido; porém, está mais interessado em falar

do que em tomar uma atitude romântica. Isso parece decepcionar Conceição,

a supor pelo seu rosto sério, talvez tentando avaliar suas possibilidades (“testa

um pouco franzida”).

Não sendo correspondida (afeto negativo), ainda tenta mais uma cartada

sentando-se ao lado de Nogueira, no canapé, lugar mais propício para seus

intentos nada discretos.

Em termos da intersubjetividade, percebe-se que, em especial por parte de

Nogueira, há uma incapacidade de adivinhar os desejos de Conceição e, assim,

satisfazê-la.

Cotexto:

Voltei-me e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o

roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceição disse baixinho:

— Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve, se acordasse agora, coitada, tão cedo não

pegava no sono.

— Eu também sou assim.

— O quê? perguntou ela inclinando o corpo, para ouvir melhor.

Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti-lhe a palavra. Riu-se da

coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves.

— Há ocasiões em que sou como mamãe, acordando, custa-me dormir outra vez, rolo n cama,

à toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me e nada.

— Foi o que lhe aconteceu hoje.

— Não, não, atalhou ela.

Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a entendesse Pegou das pontas do cinto

e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois

referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo, em criança. Quis saber se eu

os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem pela

missa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela inventava outra pergunta ou outra

matéria e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-me:

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— Mais baixo, mais baixo. . .

Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos,

cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para

ver rnelhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os

tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me

aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me.

Uma das que ainda TENHO frescas É que Atributo

Apreciação (+)

em certa ocasião, ela, que ERA apenas simpática, Processo relacional Atributo Graduação (↓)

FICOU linda, FICOU lindíssima. Processos relacionais + Atributos Apreciação (+) Graduação (↑)

ESTAVA de pé, os braços cruzados; eu, em respeito a ela, Circunstância

Julgamento (-) token

quis LEVANTAR-me; não CONSENTIU, PÔS uma das mãos Processo material Meta

Modulação de desejabilidade Afeto (+)

no meu ombro, e OBRIGOU-me a ESTAR SENTADO (= sentar-me).

CUIDEI que ia DIZER alguma cousa; mas ESTREMECEU, Processo mental Processo verbal Processo comportamental

Apreciação (-) token

como se TIVESSE um arrepio de frio VOLTOU as costas Processo relacional Atributo

Afeto (-) token

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e FOI SENTAR-se na cadeira, onde me ACHARA lendo.

Comentário: A descrição (“belíssima”) revela um novo ângulo pelo qual

Nogueira vê Conceição, mostrando sua felicidade em desfrutar da companhia

da mulher. Porém, nada além disso, somado a uma atitude de muito respeito

(Julgamento (-), token, já que, no contexto, seria desejável para Conceição que

o rapaz agisse de outra forma.

As circunstâncias acabam aproximando o par, mas enquanto algumas atitudes

de Conceição sugerem seu desejo de contato físico (“pôs uma das mãos no

meu ombro”), chegando a “estremecer”, talvez como consequência desse

toque; contudo para Nogueira não passariam de “arrepio de frio”. Assim

“estremecer” é avaliado como apreciação negativa, e token, pois não é

(corretamente?) entendido por Nogueira.

O frame que ambos trazem para o contexto não envolve o mesmo

conhecimento de mundo. Daí o desencontro em suas interpretações do mesmo

fato. Novamente a ambiguidade surge como resultado do desencontro entre o

significado pretendido por Conceição, e a interpretação não adequada de

Nogueira. Uma mesma situação tem assim dois significados diferentes.

Cotexto:

Dali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam

da parede.

— Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros.

Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio deste homem. Um

representava "Cleópatra"; não me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos;

naquele tempo não me pareciam feios.

— São bonitos, disse eu.

— Bonitos são; mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia duas imagens, duas

santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro.

— De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro.

— Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e namoros, e

naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em casa de família é que não

acho próprio. É o que eu penso, mas eu penso muita cousa assim esquisita. Seja o que for, não gosto

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dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de

escultura, não se pode pôr na parede, nem eu quero. Está no meu oratório.

A ideia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis dizê-lo. Penso

que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava, com doçura, com graça,

com tal moleza que trazia preguiça à minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava das suas

devoções de menina e moça. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de passeio,

reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção. Quando cansou do passado, falou

do presente, dos negócios da casa, das canseiras de família, que lhe diziam ser muitas, antes de casar,

mas não eram nada. Não me contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos. Já agora não

trocava de lugar, como a princípio, e quase não saíra da mesma atitude. Não tinha os grandes olhos

compridos, e entrou a olhar à toa para as paredes.

— Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se falasse consigo.

CONCORDEI, para DIZER alguma cousa, para Processo mental

Julgamento (-)

SAIR da espécie de sono magnético, ou o que quer que ERA Processo mental Circunstância

Apreciação (-) token

que me TOLHIA a língua e os sentidos. Queria e não queria Processo comportmental

Apreciação (-) token Modulação de desjabilidade

ACABAR a conversação; FAZIA esforço (esforçava-me) Processo material

Afeto (-)

para ARREDAR os olhos dela, Processo material

Afeto (-)

e ARREDAVA-os por um sentimento de respeito; mas a ideia Circunstância

Julgamento (-) token

de PARECER que era aborrecimento, quando não ERA, LEVAVA-me Processso relacional Atributo

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Julgamento (-)

os olhos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo (= morria). Circunstância Processo existencial

Afeto (-) Apreciação (-)

Na rua, o silêncio ERA completo. Portador Processos relacional Atributo

Apreciação (-)

Comentário: Conceição dá por encerrado o assunto dúbio: para ela, o

romance que não se consumou e, para ele, algo que o envolveu de maneira

desconhecida, mas que por alguns momentos o fez feliz.

O silêncio que se faz, passado aqueles momentos, pode denunciar a diferença

de vivência dos dois: ele, apreciador de leituras sérias ao que tudo indica, e

ela, uma dona de casa entediada, levando uma vida monótona, que aspirou por

alguns momentos de envolvimento amoroso com o rapaz.

A leitura relacional, por meio das metarrelações, em que as avaliatividades se

cruzam, ora somando-se, ora contrapondo-se, pode elucidar o modo como

Machado de Assis descreve o diálogo entre duas pessoas com diferentes

expectativas, que em tese nunca se encontrariam em situação como a que os

envolveu.

Para mim, a duplicidade de significado para uma mesma situação cria a

ambiguidade que se torna o ponto mais alto no interesse que desperta o conto,

já que cada leitor, munido de seu frame, encontrará motivo para tentar

descobrir o que está na subjacência dessa intrigante trama.

Cotexto:

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Chegamos a ficar por algum tempo, — não posso dizer quanto, — inteiramente calados. O rumor único

e escasso, era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de sonolência;

quis falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia estar devaneando.

Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: "Missa do galo!

missa do galo!"

— Aí está o companheiro, disse ela levantando-se. Tem graça; você é que ficou de ir acordá-lo,

ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus.

— Já serão horas? perguntei.

— Naturalmente

— Missa do galo! — repetiram de fora, batendo.

— Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus até amanhã.

E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor dentro, pisando mansinho.

Saí à rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a figura de

Conceição interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o padre; fique isto à conta dos meus dezessete

anos. Na manhã seguinte, ao almoço falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar

a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que

fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio

de Janeiro em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo,

mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do

marido.

3.3 DISCUSSÃO DA ANÁLISE

Missa do Galo é um conto intrigante, que trata de uma situação até muito comum,

envolvendo mulher madura e rapaz jovem e inexperiente nos assuntos do amor.

Porém, o modo como Machado de Assis traça aos poucos a personalidade de cada

um dos protagonistas – Conceição e Nogueira – pode-se ver o encontro de duas

pessoas que em situações normais, não se teriam encontrado como aconteceu na

noite da missa do galo.

Conceição, a mulher “nem bonita nem feia”, traída pelo marido, submissa ao seu

papel de mulher e esposa, suporta tudo, mas em seu coração havia o desejo de ser

amada, que fosse por uma noite. Porém seus poucos atrativos não conseguem atrair

o jovem Nogueira. Este, vindo de outro mundo, muito diferente do cotidiano da dona

da pensão, está mais interessado em suas leituras e, assim, é tomado, por dúvidas

diante da situação que o intriga e que nunca conseguirá entender. Seus

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conhecimentos não contavam com a nova situação, mas que, aos poucos o envolvem,

deixando-o mais confuso diante das atitudes de Conceição.

Essa delicadeza de minúcias que constroem o perfil do par central do conto tem

o apoio da noção de avaliatividade, que por meio das metarrelações, que ora

confirmam, ora se opõem, ora transformam as avaliações, possibilita uma leitura

relacional que não só a avaliação interna – que projeta a visão interior e os

sentimentos do personagem, mas também externa – que verbaliza as visões e os

sentimentos do personagem.

Além disso, a noção de intersubjetivismo faz entender os desencontros de

interpretação dos fatos por Nogueira, mostrando que, dependendo do frame que o

interlocutor traz para a situação de diálogo, o mesmo acontecimento pode sofrer

diferentes leituras.

As escolhas lexicogramaticais, tão caras para a LSF, apontam para processos

em geral materiais para Conceição – mais ativa nas suas investidas, digamos assim,

sensuais – e mais mentais para Nogueira, em geral tomado de surpresa pelo

desenrolar dos eventos daquela noite. Como não se trata de gênero primordialmente

persuasivo, não há muita ocorrência de modalidade, tanto modalizações quanto

modulações.

Creio que não se fala em adultério concretizado, mas sim adultério insinuado e

desejado por Conceição – e os fatos levam a essa conclusão – mas não compreendido

por Nogueira que, supondo que o conto tenha sido escrito posteriormente, pode-se

estranhar suas palavras iniciais “Nunca pude entender a conversação que tive com

uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta”. Esta é a minha

interpretação, fruto do conhecimento de mundo – o frame – que em minha mente foi-

se acumulando diante das experiências que vivi.

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Considerações Finais

Concluo esta pesquisa, a análise crítica de Missa do Galo, conto de autoria

de Machado de Assis, publicado em 1893, com a satisfação de compreender melhor

as escolhas lexicogramaticais feitas na microestrutura do texto, relacionando-as à

macroestrutura do discurso e elucidando seus sentidos implícitos. Este estudo, o

primeiro a utilizar as teorias organizadas em língua inglesa por Michael Alexander

Kirkwood Halliday para a análise de Missa do Galo, um dos principais contos de

Machado de Assis, uniu Literatura e Linguística Crítica (FOWLER,1991) e identificou

estruturas de linguagem, possibilitando a leitura do texto nas suas subjacências e a

revelação da camuflada intenção do autor, com base na proposta teórico-

metodológica da Linguística Sistêmico-Funcional (HALLIDAY, 1994; HALLIDAY;

MATTHIESSEN, 2004) e a Avaliatividade (MARTIN, 2000), para as quais a linguagem

“é usada como instrumento de ação, materializado nas escolhas linguísticas que cada

falante precisa fazer, tendo de considerar sempre o conjunto de variáveis contextuais

que condicionam a comunicação” (FUZER; CABRAL, 2014, p. 26).

Analisar uma obra machadiana proporcionou-me momentos de muito

contentamento pelas descobertas feitas no texto, mas, por outro lado, foi um trabalho

desafiador e de grande responsabilidade diante da excelência literária de Machado de

Assis.

Julgo que consegui responder às perguntas de pesquisa: (a) o que podem as

escolhas lexicogramaticais feitas por Machado de Assis em Missa do Galo, em termos

das metafunções ideacional e interpessoal, revelar sobre o diálogo entre Conceição e

Nogueira? (b) qual é o papel da leitura relacional e das metarrelações nesse

processo? (c) que importância tem a teoria do frame para explicar o comportamento

dos protagonistas?

A análise da metafunção ideacional, via sistema da transitividade, por meio,

em especial, dos processos mentais, constroem o perfil de Nogueira, suas reações

diante da intrigante situação em que se envolveu, e dos processos relacionais que

descrevem as situações que envolvem Conceição e Nogueira.

A delicadeza das situações, as ambiguidades decorrentes do desencontro

entre as interpretações de Nogueira frente às atitudes de Conceição, mostram a

construção intrincada e a complexa rede de avaliatividade que – pelas metarrelações

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– ora sugerem o completo desnorteamento de Nogueira, ora sua vaga compreensão

rapidamente dispersa da anormalidade do contexto.

Este estudo também foi muito enriquecedor para mim enquanto professora,

pois a teoria da Linguística Sistêmico-Funcional, com destaque a teoria da

Avaliatividade, as teorias que a complementam, bem como os conhecimentos

adquiridos em todas as disciplinas do curso de mestrado, trouxeram-me subsídios

para uma análise textual mais ampla e profunda, que certamente contribuem com

minha prática pedagógica em sala de aula. Houve um avanço nas habilidades dos

meus alunos em leitura e produção textual, os educandos estão mais atentos às

formas de construção e às escolhas lexicais dos textos. Segundo Halliday (1998), a

linguagem vista como comportamento direciona para a formação do indivíduo, ou seja,

é um processo social, e, em virtude dessas funções sociais, a língua desempenha

papel fundamental.

Considerando a amplitude, variedade, mutabilidade e suas relações de

interdependência, como principais características da linguagem, espero que este

trabalho instigue o interesse em novas pesquisas que contribuam para um melhor

entendimento da linguagem e, consequentemente do mundo, mas também para a

formação de cidadãos mais críticos e participativos.

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ANEXO A

MISSA DO GALO4

Machado de Assis

Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos,

contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho

irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.

A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses, que fora

casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas. A segunda mulher,

Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem quando vim de Mangaratiba para o Rio

de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranquilo, naquela casa

assobradada da Rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns

passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas.

Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e

meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao

Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra

fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e

só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um

eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido,

e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a

existência da comborça; mas afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando

que era muito direito.

Boa Conceição! Chamavam-lhe "a santa", e fazia jus ao título, tão facilmente

suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento

moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de

que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus

me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era

mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia

mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse

amar.

Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862.

4 Com os trechos analisados sublinhados.

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Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para ver "a missa

do galo na Corte". A família recolheu-se à hora do costume; eu meti-me na sala da

frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar

ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria outra, a

terceira ficava em casa.

— Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? perguntou-me a mãe de

Conceição.

— Leio, D. Inácia.

Tinha comigo um romance, Os Três Mosqueteiros, velha tradução creio do Jornal

do Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e à luz de um candeeiro

de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de

D'Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de

Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de

espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto,

um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura. Eram uns passos no

corredor que ia da sala de visitas à de jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar

à porta da sala o vulto de Conceição.

— Ainda não foi? perguntou ela.

— Não fui, parece que ainda não é meia-noite.

— Que paciência!

Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um

roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão

romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro, ela foi sentar-

se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse

se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza:

— Não! qual! Acordei por acordar.

Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de pessoa que

acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado no sono. Essa observação,

porém, que valeria alguma cousa em outro espírito, depressa a botei fora, sem advertir

que talvez não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não afligir

ou aborrecer. Já disse que ela era boa, muito boa.

— Mas a hora já há de estar próxima, disse eu.

— Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E esperar

sozinho!

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Não tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me

viu.

— Quando ouvi os passos estranhei: mas a senhora apareceu logo.

— Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros.

— Justamente: é muito bonito.

— Gosta de romances?

— Gosto.

— Já leu a Moreninha?

— Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba.

— Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que

romances é que você tem lido?

Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça

reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meio-cerradas, sem

os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los.

Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em

seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo

os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos

espertos.

"Talvez esteja aborrecida", pensei eu.

E logo alto:

— D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu...

— Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio, são onze e meia. Tem

tempo. Você, perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia?

— Já tenho feito isso.

— Eu, não, perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora

que seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha.

— Que velha o que, D. Conceição?

Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos

demorados e as atitudes tranquilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou

para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a porta do

gabinete do marido. Assim, com o desalinho honesto que trazia, dava-me uma

impressão singular. Magra, embora tinha não sei que balanço no andar, como quem

lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite.

Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou concertando a posição

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de algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permeio.

Estreito era o círculo das suas ideias; tornou ao espanto de me ver esperar acordado;

eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo na Corte, e não

queria perdê-la.

— É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem.

— Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a

semana santa na Corte é mais bonita que na roça. S. João não digo, nem Santo

Antônio...

Pouco a pouco, tinha-se reclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e

metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas as mangas,

caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muito claros, e menos magros

do que se poderiam supor. A vista não era nova para mim, posto também não fosse

comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão

azuis, que apesar da pouca claridade, podia, contá-las do meu lugar. A presença de

Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que pensava das

festas da roça e da cidade, e de outras cousas que me iam vindo à boca. Falava

emendando os assuntos, sem saber por que, variando deles ou tornando aos

primeiros, e rindo para fazê-la sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos

iguaizinhos. Os olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo,

um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava um pouco

a voz, ela reprimia-me:

— Mais baixo! mamãe pode acordar.

E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as

nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido: cochichávamos

os dous, eu mais que ela, porque falava mais; ela, às vezes, ficava séria, muito séria,

com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou, trocou de atitude e de lugar. Deu volta

à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me e pude ver, a furto, o bico

das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido

e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceição disse baixinho:

— Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve, se acordasse agora, coitada,

tão cedo não pegava no sono.

— Eu também sou assim.

— O quê? perguntou ela inclinando o corpo, para ouvir melhor.

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Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti-lhe a palavra.

Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves.

— Há ocasiões em que sou como mamãe, acordando, custa-me dormir outra

vez, rolo n cama, à toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me e nada.

— Foi o que lhe aconteceu hoje.

— Não, não, atalhou ela.

Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a entendesse. Pegou das

pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque

acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me

que só tivera um pesadelo, em criança. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-

se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem pela rnissa.

Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela inventava outra pergunta

ou outra matéria e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-

me:

— Mais baixo, mais baixo. . .

Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir;

mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como

se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes, creio que deu por

mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se

apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me aparecem

truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me.

Uma das que ainda tenho frescas é que em certa ocasião, ela, que era apenas

simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados; eu, em

respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e

obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma cousa; mas estremeceu, como

se tivesse um arrepio de frio voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me

achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canapé,

falou de duas gravuras que pendiam da parede.

— Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros.

Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio deste homem.

Um representava "Cleópatra"; não me recordo o assunto do outro, mas eram

mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não me pareciam feios.

— São bonitos, disse eu.

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— Bonitos são; mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia duas

imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro.

— De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro.

— Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e

namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em

casa de família é que não acho próprio. É o que eu penso, mas eu penso muita cousa

assim esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora

da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se pode pôr na

parede, nem eu quero. Está no meu oratório.

A ideia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis

dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela

contava, com doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça à minha alma e

fazia esquecer a missa e a igreja. Falava das suas devoções de menina e moça. Em

seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de passeio, reminiscências de

Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção. Quando cansou do passado, falou

do presente, dos negócios da casa, das canseiras de família, que lhe diziam ser

muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me contou, mas eu sabia que casara

aos vinte e sete anos. Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não

saíra da mesma atitude. Não tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa

para as paredes.

— Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se falasse

consigo.

Concordei, para dizer alguma cousa, para sair da espécie de sono magnético,

ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria acabar

a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela, e arredava-os por um

sentimento de respeito; mas a ideia de parecer que era aborrecimento, quando não

era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua,

o silêncio era completo. Chegamos a ficar por algum tempo, — não posso dizer

quanto, — inteiramente calados. O rumor único e escasso, era um roer de

camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de sonolência; quis falar

dele, mas não achei modo. Conceição parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi

uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: "Missa do galo!

missa do galo!"

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— Aí está o companheiro, disse ela levantando-se. Tem graça; você é que ficou

de ir acordá-lo, ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus.

— Já serão horas? perguntei.

— Naturalmente.

— Missa do galo! — repetiram de fora, batendo.

— Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus até amanhã.

E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor dentro, pisando

mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja.

Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o

padre; fique isto à conta dos meus dezessete anos. Na manhã seguinte, ao almoço

falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a curiosidade de

Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que

fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba.

Quando tornei ao Rio de Janeiro em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia.

Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais

tarde que casara com o escrevente juramentado do marido.

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ANEXO B

Machado de Assis: Perfil do Acadêmico5

Imagem 1: Machado de Assis

Fonte: Site da Academia Brasileira de Letras

Machado de Assis (Joaquim Maria Machado de Assis), jornalista, contista, cronista,

romancista, poeta e teatrólogo, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 21 de junho de

1839, e faleceu também no Rio de Janeiro, em 29 de setembro de 1908. É o fundador

da cadeira nº. 23 da Academia Brasileira de Letras. Velho amigo e admirador de José

de Alencar, que morrera cerca de vinte anos antes da fundação da ABL, era natural

que Machado escolhesse o nome do autor de O Guarani para seu patrono. Ocupou

por mais de dez anos a presidência da Academia, que passou a ser chamada também

de Casa de Machado de Assis.

Cadeira: 23

Posição: Fundador

Sucedido por: Lafayette Rodrigues Pereira

Data de nascimento: 21 de Junho de 1839

Naturalidade: Rio de Janeiro – RJ Brasil

Data de falecimento: 29 de Setembro de 1908

Local de falecimento: Rio de Janeiro, RJ

5 Fonte: Site da Academia Brasileira de Letras

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ANEXO C

DISCURSO DE MACHADO DE ASSIS 6

Discurso de Inauguração da Academia (20/07/1897):

Pronunciado na sessão inaugural da Academia Brasileira de Letras em 20 de julho de 1897, ao empossar-se Presidente.

SENHORES,

Investindo-me no cargo de presidente, quisestes começar a Academia Brasileira

de Letras pela consagração da idade. Se não sou o mais velho dos nossos colegas,

estou entre os mais velhos. É simbólico da parte de uma instituição que conta viver,

confiar da idade funções que mais de um espírito eminente exerceria melhor. Agora,

que vos agradeço a escolha, digo-vos que buscarei na medida do possível

corresponder à vossa confiança.

Não é preciso definir esta instituição. Iniciada por um moço, aceita e completada

por moços, a Academia nasce com a alma nova, naturalmente ambiciosa. O vosso

desejo é conservar, no meio da federação política, a unidade literária. Tal obra exige,

não só a compreensão pública, mas ainda e principalmente a vossa constância. A

Academia Francesa, pela qual esta se modelou, sobrevive aos acontecimentos de

toda casta, às escolas literárias e às transformações civis. A vossa há de querer ter

as mesmas feições de estabilidade e progresso. Já o batismo das suas cadeiras com

os nomes preclaros e saudosos da ficção, da lírica, da crítica e da eloquência

nacionais é indício de que a tradição é o seu primeiro voto. Cabe-vos fazer com que

ele perdure. Passai aos vossos sucessores o pensamento e a vontade iniciais, para

que eles os transmitam aos seus, e a vossa obra seja contada entre as sólidas e

brilhantes páginas da nossa vida brasileira. Está aberta a sessão.

6 Fonte: Site da Academia Brasileira de Letras