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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP DAMIÃO COSME DE CARVALHO ROCHA NAS FRANJAS DA HISTÓRIA: SINGULARIDADE E DISTINÇÃO NA CONSTITUIÇÃO DA LIGA CAMPONESA DE MATINHOS NA TERRA DOS CARNAUBAIS PIAUÍ DOUTORADO EM HISTÓRIA SOCIAL SÃO PAULO-SP 2017

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

DAMIÃO COSME DE CARVALHO ROCHA

NAS FRANJAS DA HISTÓRIA:

SINGULARIDADE E DISTINÇÃO NA CONSTITUIÇÃO DA LIGA

CAMPONESA DE MATINHOS NA TERRA DOS CARNAUBAIS – PIAUÍ

DOUTORADO EM HISTÓRIA SOCIAL

SÃO PAULO-SP

2017

1

DAMIÃO COSME DE CARVALHO ROCHA

NAS FRANJAS DA HISTÓRIA:

SINGULARIDADE E DISTINÇÃO NA CONSTITUIÇÃO DA LIGA

CAMPONESA DE MATINHOS NA TERRA DOS CARNAUBAIS – PIAUÍ

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontificia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de doutor em História Social sob a orientação da professora Dra. Maria do Rosário da Cunha Peixoto.

SÃO PAULO-SP

2017

2

DAMIÃO COSME DE CARVALHO ROCHA

NAS FRANJAS DA HISTÓRIA:

SINGULARIDADE E DISTINÇÃO NA CONSTITUIÇÃO DA LIGA

CAMPONESA DE MATINHOS NA TERRA DOS CARNAUBAIS – PIAUÍ

Tese defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de

História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, para obtenção

do título de Doutor em História Social, aprovada em _____/_____/_______ pela

Banca Examinadora constituída pelos professores:

___________________________________________________

Profª. Dra. Maria do Rosário da Cunha Peixoto (PUC-SP)

Presidente

___________________________________________________

Profº. Dr. Antonio Fonseca Neto (UFPI)

Membro

___________________________________________________

Profº. Dr. João Batista do Vale Junior (UESPI)

Membro

___________________________________________________

Profª. Dra. Estefânia Knotz Canguçu Fraga (PUC-SP)

Membro

___________________________________________________

Profª. Dra. Heloísa de Faria Cruz (PUC-SP)

Membro

___________________________________________________

Profª. Dra. Maria Antonieta Martines Antonacci (PUC-SP)

Suplente

___________________________________________________

Profº. Dr. Marcos Antônio da Silva (FFLCH/USP)

Suplente

3

AGRADECIMENTOS

Foram quatro longos anos de pesquisa, período de grandes dificuldades

que por várias vezes me levaram a questionar se valeria apena tamanho esforço.

Portanto, são muitas as pessoas às quais devo gratidão eterna pelo incentivo,

inspiração, exemplo e força neste percurso que finalmente alcança seu desiderato.

Agradeço primeiramente aos meus queridos, estimados e valorosos pais.

Luis Rocha de Sousa, o Velhinho sempre presente com sabedoria inigualável e

disponibilidade para além do tempo; à sra Antônia de Carvalho Paz Souza, minha

amada mãe, mulher forte, presente e sempre na espreita dando os arremates

necessários para burilar com a lima da coragem suas joias mais preciosas.

Agradeço também a todos os colegas do curso de doutoramento em

História Social da PUC-SP, turma 2013, em especial Moisés Pereira da Silva,

Gustavo dos Santos e Daniel Valentini, companheiros de todos os seminários,

dificuldades e alegrias.

Também agradeço os professores que desde muito cedo, ainda nos

tempos de CAT – Colégio Agrícola de Teresina me iniciaram na luta por uma

sociedade mais justa, igualitária e fraterna, em especial o professor Fonseca Neto e

a professora Izalia Lustosa.

Estes agradecimentos não ficariam completos sem a menção especial a

figuras humanas maravilhosas, solidárias e companheiras como o Sr Abraão Gama,

homem probo, trabalhador e sensível, por quem tenho respeito de pai; ao profº

Magnus Martins Pinheiro, o Belfagorzinho afoscalhado, amigo com quem

compartilhei ótimos momentos na produção de idéias tão úteis e necessárias à

feitura do presente texto-tese. Francisco das Chagas, homem de coragem e

determinação que generosamente me recebeu em seu apto em São Paulo,

possibilitando as condições de conforto e tranqüilidade necessárias para enfrentar o

frio e o pesado ano de 2013, dedicado integralmente à conclusão das disciplinas

básicas do doutoramento. Também ao professor José de Moura, o Zezão, amigo leal

e sempre otimista quanto ao nosso sucesso acadêmico e profissional.

Levo meus agradecimentos à UESPI – Universidade Estadual do Piauí,

SEMEC- Secretaria Municipal de Educação e à FAPEPI – Fundação de Amparo a

4

Pesquisa do Piauí, Instituições sem as quais este doutoramento não teria sido

possível.

Gratidão eterna aos principais protagonistas desta pesquisa: Senhor Luis

Edwiges e toda a sua família, ao Sr. Antônio Damião e Luiz Edite, camponeses que

viveram naquele contexto de tensões, mas também de possibilidades ilimitadas

sobre o qual escrevo. Agradeço ainda aos pesquisadores Antonio José Medeiros e

Ramsés Pinheiro que também trataram do tema e foram bastante úteis na

caminhada. Também rendo gratidão a todos os entrevistados essenciais na

produção desta pesquisa.

Agradeço de modo especial à minha orientadora professora doutora Maria

do Rosário Cunha Peixoto, pela autonomia, confiança, paciência e contribuição

fundamentais não somente para a produção textual, mas para toda futura vida

acadêmica. Tenho convicção e confiança que, para muito além da relação de

orientação, construímos uma sólida amizade que nem o tempo e a distância

abalarão.

Agradeço ainda os professores João Junior da UESPI, Estefânia Knotz da

PUC-SP, presentes no exame de qualificação, momento decisivo na definição dos

rumos desta pesquisa.

Rendo graças de modo muito especial e particular à minha família pelo

amparo e força nesta trajetória cheia de dificuldades: meus irmãos Raimundo

Nonato, Benedito Rocha, Libonato de Carvalho e Cosme Rocha, também ao meu

sogro Jacinto Cardoso e a minha sogra Raimunda Almeida, todos realizados e

felizes com o meu crescimento intelectual.

Por fim agradeço com carinho, amor e reconhecimento especiais à minha

esposa e companheira Maria Salete, por ter sido a segurança e o conforto em toda

essa caminhada cheia de angustia, percalços, avanços e recuos. Mulher forte e

determinada. Obrigado Nega!

Agradeço por último e por primeiro a Deus e as minhas filhas Marcia

Lorenna, ex - gordinha e Ingrid Danielle, meu eterno pescoço seco, fontes de alento

e inspiração intermináveis sem as quais esta tese não teria sequer iniciada.

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RESUMO

No final dos anos 50 e início dos anos 60, a reforma agrária no Brasil entrou a contrapelo na agenda nacional como uma necessidade urgente e imperiosa. Entre os diferentes atores políticos e sociais que a defendiam e os que a reprovavam havia um ponto de confluência: a miséria e a situação de abandono do homem do campo assim como a imediata necessidade de solucioná-la, sob o perigo de a nação ser instabilizada por uma grande revolução social. As ligas camponesas receberam a partir da imprensa, de outros sujeitos políticos atuantes no período, e também da memória, o significado simbólico deste atestado de convulsão social em que o Brasil e, particularmente o nordeste experimentavam. Ancorado na importância desse momento para a História do Brasil e do Piauí em especial, o objetivo nuclear desta pesquisa é analisar o processo de formação das Ligas Camponesas no Estado, a partir da experiência exitosa, singular e distinta da Liga de Matinhos, na terra dos Carnaubais. Nessa perspectiva, a análise recai sobre a constituição deste movimento social embasado na luta sistemática dos trabalhadores rurais que conseguiram forjar formas de organização e resistência capazes de se contrapor aos ditames unilaterais dos latifundiários e do estado, como agentes históricos, na luta por reconhecimento político, por direitos e contra toda e qualquer experiência de rebaixamento social. Argumento que essas experiências históricas absolutamente únicas destes sujeitos foram fundamentais para a criação das ligas no Piauí a partir, principalmente do Governo de Chagas Rodrigues no fim dos anos 50 e início da década de 1960. Nesta abordagem estruturada a partir de um arcabouço teórico renovado, cujo os conceitos e categorias forneceram elementos que priorizassem a dinâmica histórica, e não, retratos estáticos da realidade que, por serem formulados como modelos estanques nunca existiram, procuro enfatizar a questão da terra, o debate sobre a reforma agrária no Piauí, as tensões entre grupos de poder locais, inclusive destacando a atuação da Igreja Católica e a luta cotidiana por acesso à terra, na maioria das vezes sem qual quer mediação do aparato jurídico estatal. A análise sustenta-se em fontes orais, hemerográficas, processos judiciais e na bibliografia acadêmica disponível sobre o tema e objeto. No que diz respeito aos referencias teóricos destaco a importância do conceito de experiência elaborado por E. P. Thompson, aplicado como instrumento para discutir as maneiras como os sujeitos desta pesquisa compreenderam a realidade no seu entorno, e se fizeram atores principais dessa trama alinhavada num tempo saturado de agoras, para construir expectativas de transformação social e política emolduradas pela esperança de acessar e conquistar a terra.

Palavras Chave: Camponeses, Experiência, Liga Camponesa, Território dos Carnaubais, Piauí.

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ABSTRACT

In the late 1950s and early 1960s, agrarian reform in Brazil fell on the national agenda as an urgent and pressing need. Among the different political and social actors who defended it and those who rejected it, there was a point of convergence: the misery and abandonment of the rural man, as well as the immediate need to solve it, in the danger of the nation being destabilized By a great social revolution. The peasant leagues received from the press, from other political subjects active in the period, and also from memory, the symbolic meaning of this attestation of social upheaval in which Brazil and, particularly, the northeast experienced. Anchored in the importance of this moment for the History of Brazil and Piauí in particular, the core objective of this research is to analyze the process of formation of the Peasant Leagues in the State, based on the successful, singular and distinct experience of the League of Matinhos in the land of the Carnaubais. In this perspective, the analysis is based on the constitution of this social movement based on the systematic struggle of rural workers who have been able to forge forms of organization and resistance capable of opposing the unilateral dictates of landlords and the state as historical agents in the struggle for political, By rights and against any experience of social demotion. I argue that these absolutely unique historical experiences of these subjects were fundamental for the creation of the leagues in Piauí from, mainly from the Government of Chagas Rodrigues in the late 1950. and early 1960. In this approach structured from a renewed theoretical framework, whose concepts and categories provided elements that prioritize historical dynamics, not static portraits of reality that, because they are formulated as watertight models, never existed, I try to emphasize the question of land, Debate on agrarian reform in Piauí, tensions between local power groups, including highlighting the Catholic Church's action and the daily struggle for access to land, most often without any mediation of the state legal apparatus. The analysis is based on oral sources, hemerográficas, judicial processes and in the available academic bibliography on the subject and object. Regarding the theoretical references, I emphasize the importance of the concept of experience elaborated by EP Thompson, applied as an instrument to discuss the ways in which the subjects of this research understood the reality in their surroundings, and became main actors of this plot aligned in a time saturated with Agoras, to build expectations of social and political transformation framed by the hope of accessing and conquering the land. Keywords: Peasants, Experience, Peasant League, Carnaubais Territory, Piauí.

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ABSTRACTO

A finales de los años 50 y principios de los 60, la reforma agraria en Brasil fue contra la corriente en la agenda nacional como una necesidad urgente e imperativo. Entre los diferentes actores políticos y sociales que defendía y los que reprochaban era un punto de convergencia: la miseria y el campo de la situación de abandono del hombre, así como la necesidad inmediata de resolverlo, en peligro de ser la nación no estabilizado para una gran revolución social. Las ligas campesinas recibidas de la prensa, otros sujetos políticos activos en el período, así como la memoria, el significado simbólico de este certificado de agitación social en el que Brasil y en particular el noreste experimentaron. Anclado en la importancia de este momento de la historia de Brasil y Piauí, en particular, el objetivo nuclear de esta investigación es analizar el proceso de formación de las Ligas Campesinas en el estado, a partir de la exitosa experiencia, única y distinta de Matinhos Liga, en la tierra de Carnaubais. En esta perspectiva, el análisis se basa en la constitución de este movimiento social basada en la lucha sistemática de los trabajadores rurales que han logrado forjar formas de organización y resistencia capaz de contrarrestar los dictados unilaterales de los terratenientes y el Estado como actores históricos en la lucha por el reconocimiento político, derechos y en contra de cualquier experiencia de la degradación social. Argumento de que estas experiencias históricas absolutamente únicas de estos sujetos fueron fundamentales en la creación de aleaciones piauienses de todo el Gobierno Rodrigues de Chagas a finales de los años 50 y principios de los 1960. Este enfoque estructurado a partir de un nuevo marco teórico, cuyos conceptos y categorías proporcionado elementos que dan prioridad a los retratos dinámicos y no estáticos históricas de la realidad de que, que se formulen como nunca existieron modelos separados, trato de hacer hincapié en la cuestión de la tierra, debate sobre la reforma agraria en Piauí, las tensiones entre los grupos de poder local, entre ellos destaca el papel de la Iglesia Católica y la lucha diaria por el acceso a la tierra, lo más a menudo sin que, o bien la mediación del aparato legal del estado. El análisis argumenta en fuentes orales, hemerográficas, bibliográficas judicial y académica disponibles en el sujeto y el objeto. Con respecto a las referencias teóricas de relieve la importancia del concepto de la experiencia desarrollada por EP Thompson, aplicado como una herramienta para analizar las formas en que los sujetos de este estudio comprendieron la realidad en su entorno, y se convirtieron en los principales actores en este terreno bañado en un tiempo saturado ahoras, para construir expectativas de cambio social y política enmarcada por la esperanza de acceso y conquistar la tierra. Palabras clave: Campesinos, la experiencia, la Liga Campesina, Territorio de Carnaubais, Piauí.

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SIGLAS UTILIZADAS

ACB- Ação Católica Brasileira

ALTACAM- Associação de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas de Campo Maior

AP- Ação Popular

CNBB- Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

CODESE- Companhia De Desenvolvimento Econômico do Estado

CONSIR- Conselho Nacional de Sindicalização

CONTAG- Confederação de Trabalhadores na Agricultura

D’NOCS- Departamento Nacional de Obras Contra as Secas

DPE- Defensoria Pública do Estado

FAREPI- Federação de Associações Rurais do Piauí

FETRACE- Federação de Trabalhadores Rurais do Ceará

FRIPISA- Frigorífico do Piauí / S.A

IAEE- Instituto de Água e Esgoto

IBGE- Instituto Brasileiro de Geografia Estatística

MEB- Movimento de Educação de Base

PCB- Partido Comunista Brasileiro

PDC- Partido Democrático Cristão

PSD- Partido Social Democrático

PTB- Partido Trabalhista Brasileiro

SAPPP- Sociedade Agrícola e Pecuária de Plantadores de Pernambuco

SERSE- Serviço Social do Estado

STRCM- Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campo Maior

SUDENE- Superintendência Desenvolvimento do Nordeste

SUPRA- Superintendência da Reforma Agrária

UDN- União Democrática Nacional

UESPI- Universidade Estadual do Piauí

UFPI- Universidade Federal do Piauí

ULTAB- União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícola do Brasil

UNICAMPI- União dos Camponeses Piauienses

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TFP- Tradição Família e Propriedade

IPES- Instituto de Pesquisa Econômicas e Sociais

BNB- Banco do Nordeste do Brasil

SERSE- Serviço Social do Estado

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SUMÁRIO

RESUMO ................................................................................................................ 005

ABSTRACT ............................................................................................................ 006

ABSTRACTO ......................................................................................................... 007

SIGLAS UTILIZADAS ............................................................................................ 008

INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 012

CAPÍTULO I

1. QUEM TÁ POR BAIXO, UM DIA VAI SUBIR: A LUTA PELO .

RECONHECIMENTO POLÍTICO E OUTROS DIREITOS ..................................... 040

1.1 Matinhos do Meio, lugar de resistência ....................................................... 040

1.2 O pioneirismo da família Osório Lopes e a Liga Camponesa de Matinhos .. 064

1.3 Luiz Edwiges, uma voz contra o latifúndio .................................................. 075

1.4 Terra: sinal de riqueza e de pobreza contra a renda e a sombra da casa .. 083

1.5 A luta pela terra no Brasil e nos Carnaubais ............................................... 091

CAPÍTULO II

2 A IGREJA ENTRA EM CAMPO: ENTRE INSTITUIÇÃO CLERICAL E AGENTE .

DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL; A DIFÍCIL RELAÇÃO A PARTIR E ALÉM DO .

CONCÍLIO VATICANO II ....................................................................................... 105

2.1 Uma Igreja, vários caminhos e um único fim? ............................................ 105

2.2 O Trem do Nordeste ....................................................................................... 127

2.3 Piauí, a última estação ................................................................................... 134

2.4 Sindicato católico: a luta continua, mas com outras táticas ...................... 145

2.5 Antônio Damião de Sousa: O dono da voz contra a voz do dono ............. 155

CAPÍTULO III

3 UM PE LÁ E OUTRO CÁ: DO IDEÁRIO MODERNIZADOR À PRÁTICA .

ASSISTENCIALISTA DE CHAGAS RODRIGUES AO CONSERVADORISMO .

REFORMISTA DO ESQUEMA PORTELLA .......................................................... 163

3.1 Ecos do trágico acidente da Cruz do Cassaco ............................................ 163

3.2 Governo Chagas Rodrigues: nada do que foi será! .................................... 177

3.3 Entre a realidade e o sonho: a promessa de (re) fundação do Piauí pela .

via da modernização conservadora .................................................................... 193

11

3.4 O assistencialismo como capital político: o papel do Serviço Social do .

Estado – SERSE; e da primeira dama, Maria do Carmo, a mãe dos pobres ... 199

3.5 Estrangeiro na terra pátria ............................................................................. 207

3.6 A travessia de Petrônio pelo conveniente caminho do meio ..................... 212

3.7 Um Governo conservador e reformista, mas nem tanto! ............................ 219

3.8 Pelo Piauí, com a “Revolução” até o fim ...................................................... 229

3.9 Vitória da derrota: O autoritarismo como método ...................................... 231

3.10 Petrônio, o hidridismo em movimento ........................................................ 243

CAPÍTULO IV

4 O FAZER-SE DA NARRATIVA ACADEMICA LOCAL SOBRE AS LIGAS NO .

PIAUI, uma crítica epistemológica ao discurso colonizado que nega a .

experiência peculiar de Matinhos ....................................................................... 247

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 277

REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 283

ANEXOS

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INTRODUÇÃO

O tempo passou, dado a celeridade dos fatos, a exigir uma maior urgência

no cotidiano das pessoas. Tudo que acontece é partilhado e logo chega, dentro de

certa instantaneidade, ao conhecimento de todos.

A celeridade com que as mudanças ocorrem deixa a todos atônitos,

perdidos. Certezas quase absolutas tornaram-se dúvidas. Aquilo que era verdadeiro

já não se mostra tanto, e muitas incertezas explodem em diferentes campos e

planos. Uns não arredam pé de suas convicções, alguns poucos tentam manter

certas premissas e comportamentos. Já outros mudam profundamente, e, por vezes,

seguem errantes, agarrando-se a diferentes lugares e posições. Crise tornou-se a

palavra mais recorrente do momento. E na sua recorrência, desmontam-se sonhos,

projetos, modelos e até paradigmas.

A história segue e, há muito, superou a falsa ideia de partir da premissa

absoluta, reta, fixa e que acomodaria uma única explicação sobre os acontecimentos

do passado e do presente. A história se reinventa a partir de diferentes lugares de

reconstrução e recepção, com variadas fontes de informações e linguagens. É uma

mutação fantástica.

Desse modo, os questionamentos formulados ao passado e também ao

presente podem representar caminhos ou descaminhos. José Honório Rodrigues

elucida bem essa questão quando afirma:

O presente é um fator decisivo na compreensão do passado; são as inquietações, são os problemas presentes que levantam as novas perguntas que se devem fazer aos velhos documentos. Sem a formulação do presente, o passado é morto, (do mesmo modo que) a atualização do passado é uma exigência do presente carregado de futuro (RODRIGUES, 1981, p. 30).

Eric Hobsbawn tem também uma contribuição importante e muito

elucidativa sobre a questão:

O passado é (...) uma dimensão permanente da consciência humana, constitutivo inevitável das instituições, valores e padrões da sociedade humana. O problema para os historiadores é analisar a natureza desse sentido do passado na sociedade e identificar suas mudanças e transformações (HOBSBAWN, 1998, p.22).

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A história a ser aqui narrada é impregnada de experiências do

pesquisador. Primeiro como estudante do curso técnico-secundarista no Colégio

Agrícola de Teresina, quando vivenciou , especialmente nos estágios, os problemas

do homem do campo. Segundo, como acadêmico de História, época em que

conviveu com a mais absoluta falta de textos que discutissem a temática campo e o

objeto ligas camponesas.

Há um senso comum de que as escolhas das pessoas estão, na maioria

das vezes, ligadas à forma como elas percebem individualmente o mundo.

Percepções essas referenciadas sempre de suas particulares expectativas.

Em razão disso, sentindo-se ancho na sua condição de observador atento

aos fatos – antes mesmo de narrar os motivos que o conduziram à definição do

tema, bem como o percurso metodológico de produção desta tese de doutoramento –,

o autor desta pesquisa entende ser oportuno deixar claro a sua percepção em relação

à terra, esse bem essencial de produção: O pilar edificante da formação social e

territorial do Brasil e particularmente do Piauí foi e tem-se mantido a concentração

ilimitada de terras em forma de propriedade garantida pelas leis ou que burlem as

leis. Isso tem determinado o que somos e o que não conseguimos ser.

A inclinação do autor deste estudo pelo mundo rural remonta aos tempos

de sua formação em técnico-agrícola e de sua graduação em História. Entretanto,

essa inclinação se consolidou durante o mestrado, época em que investigou o livro

didático de História e sua contribuição para a formação da consciência cidadã dos

alunos. Foi quando percebeu, com maior nitidez – mesmo não sendo esta a

centralidade do foco de seu objeto de estudo –, o quanto a temática do homem do

campo, notadamente o do Piauí – em termos de trabalho, resistência e organização

camponesa como um todo – era invisível, esquecida. Uma realidade não

contemplada pela maioria dos autores pesquisados ou, quando muito, recebia um

tratamento de importância menor.

O agravante maior é quando o camponês ou mesmo suas organizações e

lutas são apropriados historiograficamente a partir de uma compreensão que se

revela reducionista ou generalizante. Em outras palavras, a vida, a luta e a história

dos camponeses em suas especificidades constituem uma lacuna na historiografia

piauiense. Esse tipo de acontecimento segue uma lógica inversa à do pesquisador

atento, comprometido e consciente.

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Esse também é o entendimento de Peter Burke (1992, p. 250) quando,

reportando-se ao papel do pesquisador, estudioso e verdadeiramente

comprometido, alerta que “(...) Nesse sentido, o historiador é alguém que quer se

lembrar de acontecimentos que os outros querem esquecer”.

Também reforçaram o seu interesse pelo tema as incontáveis e repetidas

matérias jornalísticas que evidenciavam sempre a miséria, a fome, os confrontos, a

violência no campo e o dito conformismo do agricultor. Tais matérias o alimentaram

e o encorajaram a pesquisar sobre as lutas levadas a efeito pelos camponeses em

oposição a essa condição – de rebaixamento da dignidade social e desrespeito

jurídico – situação histórica de aviltamento e desumanidade.

Em sua atividade de professor do curso de História da UESPI –

Universidade Estadual do Piauí - orientou, a convite dos próprios alunos, algumas

pesquisas que traziam como objeto de estudo a problemática dos trabalhadores

rurais no estado. Percebeu-se que, na quase totalidade desses trabalhos,

predominava análises circunscritas a relatos canonizados. Em outras palavras, eles

não consideravam as especificidades da realidade piauiense e, mais ainda,

limitavam-se a relatar fatos e apresentar reminiscências.

Dessa maneira – e nem podia ser diferente –, acabou reconduzindo seu

olhar sobre as Ligas Camponesas, principalmente no que tange à singularidade e à

distinção da organização e da luta dos trabalhadores rurais do Piauí. Também, diga-

se, no sentido do reconhecimento enquanto classe trabalhadora que se fazia nos

embates e por outros direitos sociais, econômicos e políticos, ainda situados no

campo da promessa constitucional.

Por outro lado, a sua militância política e a sua participação em

vários cursos de formação patrocinados pela Igreja e pelo Partido dos

Trabalhadores facilitaram-lhe o acesso a muitas lideranças sindicais da cidade

e do campo. Entre elas, o senhor Luiz Ribamar Ozório Lopes, o Luiz Edwiges,

principal liderança camponesa, de então, viva no Piauí e um dos protagonistas deste

estudo.

A proposta desta pesquisa é analisar a singularidade, a especificidade e a

distinção do processo de formação e organização da resistência camponesa no

Estado do Piauí. O foco central de observação é a Liga Camponesa emergida da

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fazenda Matinhos em Campo Maior, município conhecido como Território dos

Carnaubais¹. Assim denominado em razão de sua mata ser predominantemente

formada por carnaúba, palmácea de cujas palhas um fino pó é extraído para o

fabrico industrial da cera. A sede do município fica a 86 km da capital Teresina.

O recorte temporal deste estudo compreende o período entre 1958 a

1968. Tal recorte caracteriza-se como um período marcado pela crise do modelo

populista², aqui é entendido, grosso modo como uma política de manipulação das

massas por lideranças carismáticas e pela imposição do governo civil-militar, o que

corresponde ao momento em que se abateu dura repressão sobre todos aqueles

que eram rotulados como comunistas ou suspeitos de atos subversivos pelas

autoridades. Autoridades essas não só militares, mas também civis e eclesiásticas

ou ainda pelos latifundiários com estreitas relações com os poderes instituídos pelo

regime de então.

Ressalta-se que o recorte temporal da pesquisa é flexível e está

permeado por várias microconjunturas. Todas caracterizadas por fatos situados

como marcos de tensão próprios do contexto daquele momento. Marcos que se

explicam em razão de o período (1958/1968) ter sido pautado por grandes e

profundas transformações – políticas, econômicas, ambientais, sociais – envolvendo

todos os seus mais diversos atores que protagonizaram essa trama histórica: o

poder estatal, os latifundiários, a Igreja Católica e os movimentos sociais,

particularmente as Ligas Camponesas.

Entre estes ditos marcos, destacam-se a grande seca de 1958; a eleição

não prevista de Chagas Rodrigues para o governo do Estado, a partir da inédita e

estranha aliança política do PTB do governador sufragado – diga-se, o único

candidato a vencer naquele pleito o cargo majoritário por esta sigla – e a UDN de

Petrônio Portella; a emergência e a sedimentação em esfera nacional, desde

o governo de Kubitschek, de um discurso modernizante, de integração nacional e

________________________

¹ Território dos Carnaubais, Localizado na Região Centro Norte do Estado, com uma área de 19.651km², e uma população de 168.024 habitantes com, 84.420 mil residindo na zona rural, formada por 16 Municípios dos quais o mais importante é Campo Maior.

² Populismo, Conceito histórico aplicado quando ocorre a perda de prestígio e força política

da classe dominante unida a uma massa proletária “alienada” de sua posição no meio social, liderada a um líder político carismático capaz de mobilizar o poder e a nação normalmente em um contexto pós-crise econômica associada à crise política. São marcados por governos autoritários e paternalistas.

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desenvolvimentista que afetou boa parte dos movimentos sociais. Com isso, cria-se

uma expectativa de inclusão desses atores na promessa de modernização.

Tem-se ainda outro momento, embora no mesmo contexto, representado

pela crise mais intensa do governo de Goulart, quando os discursos se polarizam e

radicalizam, afetando até mesmo a compreensão que os movimentos sociais vão ter

de si mesmos. Finalmente, o golpe e a consequente ditadura civil-militar são

impostos; isso marca um divisor de águas na forma como os discursos e as práticas

dos movimentos sociais vão se apresentar.

Dentro dessa dinâmica ampulheta temporal, assistiu-se à atuação de

Dom Avelar Brandão Vilela³ à frente da Arquidiocese de Teresina; o notório

resfriamento da participação política dos trabalhadores, a partir da chegada ao

governo de Petrônio Portela; e, finalmente, a decretação com seus gravosos

desdobramentos do AI-5 – Ato Institucional nº 5, que marcou o momento mais duro na

vida social e política do Brasil e do Piauí, em particular com o fechamento de inúmeras

entidades representativas de trabalhadores, prisões e cassações de mandatos.

No Piauí, partes desses fatos foram oportunamente narrados pelo

advogado Jesualdo Cavalcanti (2006, p. 189) que, na época, integrava uma das

frentes estudantis de apoio aos movimentos sociais que ocorreram no estado e,

particularmente, às Ligas Camponesas. Trata-se muito mais de um memorial

autobiográfico do que de um estudo de caráter acadêmico, sem tanto rigor científico.

Nesse memorial, ele descreve um dos eventos que retrata a atuação dos militares

junto a manifestantes e principais líderes da liga:

A caçada empreendida em Campo Maior rendeu resultados: foram presos Raimundo Antunes Ribeiro (Totó), Antônio Luiz Higino, Luiz Ribamar Ozório Lopes, José Esperidião, Antônio Damião de Sousa, Jesualdo Cavalcante, Manuel Domingos Cardoso e Martim Pereira de Abreu (BARROS, 2006, p. 189).

Os nomes grifados em itálico acima pelo autor da pesquisa ressaltam

justamente as lideranças dos camponeses, tanto de orientação radical, Luiz Ribamar

Ozório Lopes, conhecido por Luiz Edwiges, da ALTACAM – Associação de Lavradores

________________________

³ Dom Avelar Brandão Vilela, Nasceu Viçosa 13 de junho de 1912 e faleceu em Salvador

em 19 Dezembro de 1986. Foi Arcebispo de Teresina de 1955 a 1971 período em que criou a rádio Pioneira de Teresina.

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e Trabalhadores Agrícolas de Campo Maior –, quanto de orientação conservadora,

Antônio Damião de Souza, líder do STRCM – Sindicado dos Trabalhadores Rurais

de Campo Maior, e protegido da Igreja comandada por Dom Avelar Brandão Vilela,

arcebispo de Teresina.

Por consequência, analisaram-se também os impactos da ação do

governo civil-militar sobre as lideranças políticas e sociais do estado, de modo

particular em Campo Maior, a partir da memória dos sujeitos que integravam esse

movimento social voltado à organização e à luta pelo reconhecimento político e por

outros direitos dos trabalhadores do campo naquela região.

Historicamente, em tempos diversos, o homem do campo sempre

procurou criar uma cultura de resistência e um plano reivindicatório referente aos

direitos relacionados à terra; plano no qual sua lida se faz. Em razão disso, ele se

aproxima de seus pares formando um conjunto de sujeitos coletivizados por

experiências compartilhadas no cotidiano.

O pesquisador se apropria teoricamente, nesse contexto de experiência

coletiva, do conceito de classe postulado por Thompson (1981, p.182). Para esse

autor, portanto, a classe é construída em meio a um processo marcado por opções

políticas tomadas por sujeitos que são de “carne, osso e dente” e, nessa condição,

são artífices atuantes de seus próprios destinos.

Esse postulado será oportunamente, como dito, utilizado pelo

pesquisador no momento em que ele caracterizar, neste seu estudo, o movimento

dos trabalhadores rurais, liderados por Luiz Edwiges, que deu organicidade à Liga

Camponesa emergida da fazenda Matinhos no município de Campo Maior.

Para Thompson, a categorização de classe e, por via de consequência, a

sua noção conceitual é resultante de um processo histórico. Isso porque ela é – e

não há como ser diferente –, em termos orgânicos na sua formação, sitiada por um

processo sociocultural. E, portanto, um fazer-se constante e dinâmico.

Não é sem razão, portanto, que ele possibilita inferir que a classe é

situada sempre como construção de uma unidade coletiva. Para esse teórico, a

classe – raciocinando sociologicamente – é um sujeito que se constrói em um fazer-

se contextualmente histórico. Um fazer-se que, segundo ele, Thompson, emerge das

relações de força instauradas entre grupos constantemente em tensão.

18

Desse modo, a classe se faz presente quando os indivíduos se

aproximam e se reconhecem em meio a uma situação de exploração e expropriação.

Assim, a partir da vivencia e da própria experiência do rebaixamento social a que

estão submetidos, esses indivíduos, num empenho de dar um basta a tudo que os

oprimem, articulam objetivos comuns contra os grupos que lhes cerceiam direitos e

lhes impõem certas obrigações abusivamente repressivas.

É comum alguns atores sociais, nos seus protagonismos, principalmente

quando vivenciam uma realidade nova ou impelidos por um enfrentamento mais

acirrado, como, por exemplo, em um regime de exceção, no qual não se vive sob a

égide da lei ou quando a lei existe, mas não vige, darem organicidade a uma classe;

a sua em particular.

Pode-se, portanto, dizer – concordando com a lógica thompsiana – que a

classe insurge em diferentes lugares e momentos; mas nunca exatamente da

mesma maneira. Ela não é, portanto, algo pronto; mas, sim, dinâmica. E não podia

ser diferente porque se funda, conforme já fora preconizado anteriormente, nos

processos históricos em que os sujeitos protagonizam diversas situações

compartilhadas por meio das experiências vividas.

Desse modo, os indivíduos experimentam relações produtivas e de

classe, que são indissociáveis da cultura e da ação política. Portanto, a classe só

adquire existência ao longo de uma trajetória de um processo de luta. É nessa

trajetória que o seu fazer-se, de modo social e político, adquire essência, funda-se,

ganha materialidade.

Os homens e mulheres também retornam como sujeitos dentro desta ideia do termo – não como sujeitos autônomos, “indivíduos livres”, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades de interesses e como antagonismos, e em seguida “tratam” essa experiência em sua consciência e sua cultura (...) das mais complexas maneiras e em seguida agem, por sua vez, sobre sua situação determinada (THOMPSON. 1981, p. 182).

Em oposição a esse entendimento, o sociólogo Otávio Ianni, orientado por

um viés estruturalista mais conservador, apoiado na ideia de modelo no qual a

realidade concreta se enquadra, argumenta que os camponeses de então não

19

tinham condições de formular “demandas em termos propriamente políticos”. Isso

porque, segundo ele, seu universo social estava impregnado de valores e padrões

comunitários e patrimoniais, “a exemplo do voto de cabresto, do misticismo e do

mutirão” a serem extirpados (OTÁVIO IANNI, apud SANTOS; COSTA. 1997 p. 108-

109).

Análises preconceituosas como essa que enxergam o camponês

brasileiro e particularmente o piauiense nos anos 60 como simples massa rural

incapaz de expressar por si só suas demandas e que, invariavelmente, dependeriam

de forças externas para agir, são resultantes, principalmente, da influência marxista

ortodoxa. Como tais, não reconhecem nos camponeses capital político para se constituir

com força revolucionária.

Essas análises, porém, contrastam com o quadro real que se encontrou

no Piauí, - uma típica região de dentro, marginalizada em relação aos demais

horizontes do país; mas nem por isso imune ou infensa a transformações quando da

realização da pesquisa aqui empreendida. No fluxo dessa jornada, tais coletivos

também evidenciam o momento em que “novos personagens entram em cena”

(SADER, 1988, p.15), enquanto forma de resistência organizada.

Como, então, escapar desses estereótipos? E como, em particular,

pretende-se estudar a ALTACAM4 na crise do populismo às vésperas, durante e logo

depois do golpe civil-militar de 1964? Tem-se por certo, desde o começo, que as

formulações de algumas questões são fundamentais; do contrário, como pensar em

ir além dos modelos cristalizados e canonizados pela historiografia? Quais os

objetivos, a natureza e o comportamento da ALTACAM?

Além desses outros questionamentos pensados e possíveis: como

atuavam, quem foram seus protagonistas, seus antagonistas e quais os principais

desdobramentos advindos de sua atuação? Assim, ao responder a esses e a outros

questionamentos igualmente importantes, acredita-se alcançar o objetivo central e

norteador deste estudo: analisar a singularidade, a especificidade e a distinção do

processo de formação e organização da resistência camponesa da fazenda

Matinhos, no Estado do Piauí.

________________________ 4 ALTACAM, Associação dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas de Campo Maior, nome

representativo da Liga Camponesa de Matinhos, liderada por Luis Edwiges.

20

Também norteia esta pesquisa a certeza de que uma coisa é formular tais

questionamentos, outra muito distinta é encontrar respostas razoavelmente

apropriadas para essas indagações. Com esses questionamentos e também com

essas certezas, vai-se a campo.

Thompson, ao estudar as ações da multidão inglesa no século XVIII, que

foram identificadas por certas literaturas como práticas sem caráter político e

dotadas de profunda ingenuidade, argumenta:

É fácil caracterizar este comportamento [o da multidão] como infantil, sem dúvida, se insistirmos em olhar para o século XVIII, apenas pela lente do movimento operário do séc. XIX, só veremos o imaturo, e pré-político, a infância de classe (THOMPSON. 1998, p. 62-64).

O autor em questão entende e explica a razão de alguns historiadores

pensarem assim desse modo. Pois tal entendimento é decorrente daquilo que

denomina de “percepção histórica tardia”. Para ele, esses historiadores têm como

referencial o protagonismo da classe do século XIX.

E, sob um aspecto, isso não é uma inverdade; vemos repetidamente prefigurações das atitudes e organizações de classe do século XIX, expressões passageiras de solidariedade em motins, greves – até mesmo diante do patíbulo. É tentador ver os trabalhadores do século XVIII como uma classe trabalhadora imanente que tem sua evolução retardada pelo senso de futilidade de transcender a sua situação (...) uma dose exagerada de percepção histórica tardia nos impede de ver a multidão como realmente era, sui generis, com seus próprios objetivos, operando dentro da complexa e delicada polaridade de forças de seu próprio contexto (THOMPSON, 1998, p. 62-64).

Nesse contexto, Thompson (1998, p. 62-64) elabora a noção de economia

moral na perspectiva de interpretar o comportamento dos ingleses pobres no século

XVIII. Essa postura era orientada por pressupostos éticos e morais, todos referendados

nos costumes, na tradição e em um consenso popular. E estes, ao serem quebrados

pelos poderosos, geravam indignações e ações diretas e indiretas no intuito de

reduzir os prejuízos provocados pela emergente economia do livre mercado.

É James Scott (2002, p. 34-44) quem redimensiona essa noção de

economia moral de Thompson. Ele faz isso ao incluir os princípios de reciprocidade

e de subsistência. Tais princípios, segundo o próprio autor, estão ligados a um

conjunto de deveres e obrigações mútuos. Para ele, esses princípios serviram de

21

orientação às diversas formas de resistências cotidianas do campesinato frente aos

mais fortes. Essa compreensão de Scott foi constituída e consolidada quando ele

estudou, na década de 1970, o comportamento dos camponeses asiáticos.

A pesquisa aqui desenvolvida, também, estabeleceu uma ancoragem

dialogal com três distintas orientações teóricas: com a história vista de baixo; com a

história oral e com a história do tempo presente. Essas correntes forneceram o

necessário suporte para a construção do tema como um estudo relevante e

significativo na sua dimensão historiográfica.

A primeira orientação – história vista de baixo –, aqui colocada, justifica-

se principalmente por reconhecer nos camponeses uma classe social com poder

revolucionário e, também, por ser uma abordagem polêmica (HILL 1987, p. 29-55)

que questiona as velhas certezas históricas. O próprio Hill (1987, p. 35) bem ilustra

a importância e a oportunidade de tal orientação:

Podemos descobrir que homens e mulheres obscuros (...), juntos com alguns menos obscuros, falam mais diretamente a nós que Carlos I ou Pym ou ainda o general Monk, que nos manuais figuram como os autores da história.

A história vista de baixo transgride as convenções, inova nos objetos, não

se prende a preceitos recorrentes e pré-estabelecidos; e por vezes, afronta na

medida em que recorre a fontes não tão convencionais. Sua narrativa contempla,

comprovadamente, pelo menos duas funções importantes.

A primeira serve como um corretivo, paralelo à história da elite, para

mostrar que numa guerra, por exemplo, estão envolvidos minimamente dois lados:

os soldados – que na maioria morrem enquanto lutam, desconhecendo inclusive as

causas da guerra – e também os que criam e os que executam a guerra, como os

governantes e os generais que ocupam posições de mando e, por isso, quase nunca

morrem.

A segunda é que, oferecendo essa abordagem alternativa, a história vista

de baixo abre possibilidade de uma síntese mais rica da história; de uma fusão da

história da experiência do cotidiano das pessoas comuns – camponeses, operários

e artesãos – com a temática dos tipos mais tradicionais da história. A história vista

22

de baixo mantém, em torno de si, uma aura subversiva e isso lhe confere um quê de

atratividade essencial para a pesquisa. Para Hill, é possível outro caminho para o

estudo dos movimentos sociais.

Com base nessas referências, analisa-se como se concretiza, por meio

de ações cotidianas – diretas, como os mutirões, e indiretas ou fragmentárias, como

a cera (morosidade na execução da tarefa) –, o processo de formação e a

organização da resistência camponesa em Matinhos, a luta pelo reconhecimento

político, a luta em defesa do acesso e permanência na terra, pela indenização das

benfeitorias realizadas nas áreas que lhes foram destinadas durante o tempo em

que permaneceram nas terras, como agregados de proprietários, além de outros

direitos, no Piauí entre 1958 -1968, mais precisamente no Território dos

Carnaubais.

As ditas indiretas ou fragmentárias foram assim nominadas porque

sistematicamente – muito a propósito – passavam despercebidas, como a precária

marcação de animais e os conscientes e premeditados descuidos nas colheitas.

Dentre as ações cotidianas diretas anteriormente citadas, os mutirões

devem ser aqui entendidos como atividades coletivas solidárias. Eles se reportam,

em todos os casos, a “trabalho associado, unido” (CALDEIRA. 1956 p. 25-28). Esses

mutirões se configuravam, em favor dos camponeses, como estratégia de

transformação das relações sociais entre os fazendeiros e os camponeses, já que

eram aproveitados pelos últimos, também como espaço de luta política.

Esse caminho não significa que se está apenas, conforme alerta

Hobsbawm (1998, p.219-221), “tentando conferir-lhe um significado político

retrospectivo que nem sempre teve; estar-se sim tentando, mais genericamente

explorar uma dimensão desconhecida do passado”.

Credita-se da maior importância esclarecer que o conjunto de autores

pesquisados e aqui considerados alguns, não todos – E. P. Thompson, Christopher

Hill, Eric Hobsbawm, J.Scott, Roger Chartier e Michel de Certeau –, do campo da

História e outros – Axel Honneth, Bourdieu e Luhmann – da Sociologia. Esse elenco,

porém não se pretende completo e nem tem por objetivo totalizar o conjunto de

abordagens historiográficas e sociológicas referentes ao tema em exame. É

simplesmente resultante da escolha particular e parcial do autor.

23

Esses autores foram selecionados porque representam as referências

mais apropriadas para suporte teórico dessa pesquisa. Particularmente porque

oportunizaram uma leitura mais herética do marxismo, enfatizando a este uma

noção diferenciada, não ortodoxa, aplicada à pesquisa histórica. Esses historiadores

incorporam novas interpretações, novos objetos e novos personagens à

historiografia.

Em relação à história oral, ressalta-se que os pesquisadores das mais

diferentes áreas, mas principalmente da História, nas últimas décadas, têm-se

utilizado, em boa medida, de determinados procedimentos metodológicos de

pesquisa que outrora lhes eram negados: relatos autobiográficos, entrevistas,

depoimentos pessoais, história de vida e outros mais. Esse campo tem-se

constituído num espaço fértil que busca compreender o homem em sua dimensão

social e histórica a partir de seu relato vivo, sua memória e sua oralidade.

Poder trabalhar com os vivos e não somente com os mortos significou

para os pesquisadores de todas as áreas uma grande e fecunda novidade. A história

oral se entrecruza muito frequentemente com outras estratégias, como as histórias

de vida, as análises de trajetórias e com biografias coletivas. Esse tipo de

congraçamento se revela positivo para a história à proporção que possibilita, por

exemplo, a valorização da oralidade como fonte, como registro e como linguagem.

Outra importante contribuição vem da chamada história do tempo

presente. Essa perspectiva se revelou útil e eficaz ao pesquisador na medida em

que o fez enfrentar e superar alguns estigmas, medos, plantados a partir de uma

leitura tradicional e que eram encarados como problemas, convertendo-os em elos

positivos: o envolvimento pessoal e a proximidade temporal. Outro aspecto

importante é que a história do tempo presente representou um duro golpe numa

abordagem historiográfica sedimentada na ideia de imparcialidade, pura

objetividade e narrativa a distância; ou seja, na ilusão de uma história isenta de

subjetividade.

Quanto ao Annimus, destaca-se que a história do tempo presente – o que

em alguns aspectos também se operou em relação à história oral – foi compelida a

recuperar para a História algumas experiências ainda muito recentes e de relevante

importância, mas com rara ou mesmo nenhuma documentação disponível.

24

Nesse diapasão, evidencia-se que também nesse aspecto a história do

tempo presente se vinculou à perspectiva da história vista baixo, consagrando a

necessidade de registrar a experiência histórica de trabalhadores em seus

movimentos sociais, fossem eles reivindicatórios, políticos, de classe ou de qualquer

outra natureza.

Nessa trajetória, tem-se que a relação entre o homem e a terra remonta a

tempos longínquos. A terra sempre se configurou como principal meio de produção

de alimentos. A propriedade na sua origem e evolução tem sido historicamente a

causa principal de inúmeros conflitos, mesmo assim, e por tudo isso, ainda se

configura um tema bastante polêmico e atrativo para os debates acadêmicos.

Não há e talvez não seja muito recomendável existir consenso acerca da

questão. O que se tem é apenas um conjunto de teorias, como pode ser entendido

das palavras de Clóvis Araújo (2005, p. 43):

(...) não há consenso entre os estudiosos no tocante à existência ou inexistência da propriedade em toda a história da sociedade humana. Discute-se se a propriedade é um direito natural ou um fenômeno humano, tendo sido intenso o debate, principalmente, entre jus-naturalistas e positivistas.

Varella (1998, p. 161) concorda com Clóvis Araújo sobre a inexistência

do consenso em relação à origem da propriedade; porém, acrescenta e assume

o entendimento de que a propriedade é um fenômeno social, uma intervenção

humana provavelmente oriunda dos primeiros cercamentos e não um direito

natural.

Nesse sentido, os camponeses, ao se colocarem na luta pela libertação da terra e dos frutos nela produzidos, ou mesmo quando realizam ações solidárias em apoio às famílias com problemas e mais castigadas, estão inseridos num processo contínuo de aprendizagem (FREIRE. 2011 p.123).

É razoável entender que a observação de Freire acima contempla os

camponeses do Piauí também. Desse modo, o mutirão, enquanto prática coletiva e

comunitária constitui-se como uma etapa do processo de aprendizagem e formação

desses trabalhadores. Processo esse que implica em novos comportamentos sociais

25

e políticos na busca de superação provisória – visto oportunizar um espaço de

sociabilidade – de certas situações de exploração imposta aos camponeses

agregados pelos proprietários.

Para o desenvolvimento da pesquisa e elaboração textual da tese, traçou-

se um percurso metodológico ancorado em três pilares distintos. O primeiro diz

respeito à escolha e à natureza da literatura sobre o tema e das fontes (moldura

teórica). O segundo faz referências ao tratamento (Modus operandi) a ser

dispensado a essas fontes e, finalmente, procedeu-se – a partir da inédita relação

experiência e consciência – uma leitura da realidade sócio-histórica, na qual se fez o

movimento campesino no Piauí.

Nesse estudo, utilizaram-se principalmente os relatos realizados pelos

sujeitos que fizeram parte dessa experiência histórica, tanto os que a constituíram

diretamente, como os que a ela se ligaram organicamente.

Acerca dessa modalidade, tornam-se significativas as posições de Michel

Pollack (1982. p. 200-202), o qual aponta para a valorização das memórias

residentes ao núcleo social. Seriam, no caso, as memórias por vivências e as

memórias por tabela. A memória por vivência se refere aos sujeitos que adquiriam

uma memória histórica por serem contemporâneos das situações de sua época, por

terem vivido pessoalmente. E a memória por tabela se refere a acontecimentos

vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer.

Outra particularidade a ser considerada nos estudos da memória é a sua

dimensão coletiva. Esse ensinamento vem de Halbwachs (1990, p. 26), para quem a

memória tem uma dimensão individual e outra coletiva, e tanto uma como a outra

são socialmente compartilhadas. Isso ocorre, entre outras razões, segundo o autor,

porque as pessoas não vivem isoladas, e as experiências, ainda que individuais, são

também sociais, e as lembranças, embora aconteçam de forma diferente para cada

pessoa, são invariavelmente compartilhadas entre o grupo a que ela pertencia

quando da vivência lembrada, seja a família, o sindicato, os amigos ou qualquer

outro grupo social.

Para a efetivação da pesquisa memorial, entrevistaram-se ao longo de

quatro anos 53 pessoas: camponeses, religiosos, proprietários, sindicalistas,

advogados, servidores públicos, pesquisadores, assessores políticos e políticos com

26

mandatos no período da pesquisa. Em relação aos camponeses, entrevistaram-se

tanto os que participaram ativamente da Liga de Matinhos, como os irmãos Edwiges,

como outros que não exerceram qualquer função na entidade.

Quanto aos participantes do Sindicato de Trabalhadores Rurais de

Campo Maior, entidade que acabou rivalizando com a liga pela representação dos

camponeses, entrevistou-se o presidente Antônio Damião de Sousa e outros oito

agricultores que passaram pela entidade durante a fase de repressão imposta pelo

regime militar.

Outro grupo de trabalhadores entrevistado foi formado a partir de

indivíduos que apenas conviveram à época do movimento, sem dele ter feito parte.

Foram entrevistados seis deles, sendo quatro homens e duas mulheres. No grupo de

servidores públicos, entrevistou-se o policial militar, o sargento Loiola – hoje

professor aposentado – responsável, na patente de cabo à época, pela prisão do

líder camponês Luiz Edwiges. Outro servidor participante foi o advogado Reginaldo

Furtado, que ocupou o cargo de secretário particular do então governador Chagas

Rodrigues e o Sr. Alfredo Nunes, presidente da SUPRA.

Também foram entrevistados os advogados Celso Barros Coelho, Carlos

Lobo, José Luiz Martins Maia e Manoel Emílio Bularmaqui, todos diretamente

envolvidos no apoio jurídico aos vários dos movimentos sociais de então. Quanto

aos demais entrevistados, o sociólogo Antonio José Medeiros, que também

pesquisou a organização dos camponeses no estado e o Sr. Antônio dos Reis,

conhecido como Mestre Zumba, atualmente professor aposentado e que na época

da pesquisa frequentou o grupo escolar localizado na fazenda São Francisco, na

região conhecida como Lagoa dos Corró, única escola da região, de natureza

privada, destinada à preparação dos filhos dos moradores daquelas cercanias, dos

quais alguns são sujeitos dessa pesquisa.

As questões colocadas nas entrevistas foram, na sua quase totalidade,

pensadas de modo a evidenciar – a partir dos referenciais teóricos que balizam este

estudo – a formação, as reivindicações, principais lutas e desafios dos camponeses

no Território dos Carnaubais. Também se levantaram questões complementares

acerca dos núcleos de organização das ligas, do seu funcionamento, das formas de

trabalho, das estratégias de defesa dos camponeses e até da rotina diária dos

trabalhadores.

27

Buscou ainda, assim, saber sobre a relação com outras instituições como

a Igreja, partidos políticos e sobre a quase completa ausência de moeda – o vil

metal, meio circulante –, já que o camponês como ficou evidenciado, vendia sua

produção e recebia o pagamento em mercadorias, como café, açúcar, óleo e

querosene. Essa realidade limitava ainda mais a sua já reduzida autonomia.

Outro recurso metodológico aplicado foi a pesquisa documental. Utilizou-

se de fontes hemerográficas, como importante alternativa de análise, por se tratarem

de instrumentos de comunicação que ocupavam considerável influência na

sociedade. Nesse intento, pesquisaram-se nos arquivos públicos, na Cepro, Fundação

Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí, na Secretaria de Planejamento

do Estado e nas bibliotecas das Universidades Federal e Estadual do Piauí.

Os jornais, tanto os comerciais – O Dia, Folha da Manhã, Jornal do

Comércio e O Estado do Piauí –, quanto os de temáticas específicas – O Dominical,

Santuário de São Francisco (de caráter religioso) e Terra Livre (classista

revolucionário) –, que circulavam em diversas regiões do Piauí, eram, na época,

junto com as emissoras de rádio, os mais importantes meios de difusão de notícias

(Teresina ainda não dispunha de emissoras de TV).

Ressalta-se que os periódicos impressos de então se diferenciavam

enquanto veículos que estabeleciam determinadas produções de sentidos. Eles se

configuravam como elementos subsidiários de acepção do olhar social por meio de

sua linguagem e comunicabilidade. Por esses aspectos, pode-se compreendê-los

não apenas como uma modalidade de leitura do mundo, uma geratriz que fabrica

verdades e valores aos indivíduos, mas como prática social, como ação politica que

expressa e defende interesse e realiza intervenções ativas.

Do mesmo modo, é importante destacar o fato de que estes, através de

sua capacidade narrativa, conseguiam aglomerar os vários deslocamentos, os

acontecidos, as noções de tempo e espaço que compunham os movimentos da

sociedade. E dessa forma devem ser entendidos aqui pelas menções de Braudel:

Crônica ou jornal fornece, ao lado dos grandes acontecimentos, ditos históricos, os medíocres da vida ordinária: um incêndio, uma catástrofe ferroviária, o preço do trigo, um crime, uma representação teatral, uma inundação. Assim cada um compreenderá que haja um tempo curto de todas as formas da vida econômica, social, literária, institucional, religiosa e mesmo geográfica (uma ventania, uma tempestade), assim como política (BRAUDEL, 1992, p. 45-46).

28

Também são valiosos os ensinamentos de Walter Benjamim, quando

critica a noção de tempo linear e progressivo e postula que cada presente é sempre

um tempo saturado de agoras, tenso e que não se configura como um meio onde

existe um antes e um depois, sendo ele uma passagem, ou ainda como afirma

Thompson quando infere das varias possibilidades de futuro que estão postas em

cada tempo, onde algumas vão se realizar ou não.

No artigo Na oficina do historiador: conversas sobre história e imprensa

(Projeto História da PUC-SP. N° 35, 2007; p. 253-270), as professoras Heloísa Cruz

e Rosário Peixoto alertam para a premissa de pensar a imprensa como prática social

com interesses e projetos definidos e que as matérias da imprensa não existem para

que os historiadores e cientistas sociais façam pesquisa. A ponderação delas é a

que se segue:

[...] transformar um jornal ou revista em fonte histórica é uma operação de escolha e seleção feita pelo historiador e que supõe seu tratamento teórico metodológico no decorrer de toda pesquisa desde definição do tema à redação do texto final.

Dessa forma, por abarcar do notável ao corriqueiro, do dramático ao

pitoresco, a produção jornalística abre um amplo leque de possibilidades situadas

nos meandros do cotidiano, nessa instância subjetiva e pela qual a história dos

homens se faz constantemente, nos quais são articuladas as artes de fazer.

Suas dimensões tendem a expor toda uma mentalidade social, as

retratações de um perfil em torno de um sujeito – as quais podem inclusive conflitar

com sua sociedade –, as versões elaboradas aos acontecimentos, as teses que

sustentam ou refutam determinados acontecimentos, a trama de um crime, um

confronto de ideias. Em suma, pode-se deparar com uma teia discursiva em que um

jogo e um conflito semântico entram em cena. Em meio a esse cenário, cabe a

quem pesquisa perceber como se davam a apropriação e recepção dessas

produções e ainda quais os interesses contidos nos enunciados propostos, como

infere Bourdieu:

O analista procura a intenção objetiva escondida por baixo da intenção declarada, o querer dizer no que ela declarava. E supõe que nela se enuncia um sentido profundo, uma pulsão expressiva, biológica ou social que a alquimia da forma imposta pela necessidade social do campo tende a tornar irreconhecível (2000, p.73).

29

Em relação às fontes de natureza jurídica – também investigadas nesta

pesquisa –, ressalta-se sua utilidade por estarem vinculadas a questões viscerais

para o desenvolvimento desta análise, no que se refere aos acordos de trabalho

celebrados entre os agricultores e os proprietários e ainda em relação aos

desdobramentos das acusações feitas aos integrantes do movimento no estado.

Também pela possibilidade efetiva de ampliação da visão direcionada ao passado

sobre a qual esta pesquisa se debruça.

Importante nessa perspectiva foi a publicação do livro Brasil Nunca Mais –

emergido de um projeto homônimo da Igreja Católica, elaborado no período de 1979

a 1985, lançado nesse último ano. Nele, encontram-se inúmeros documentos que

narram episódios envolvendo lideranças camponesas participantes desta pesquisa,

das quais se falará oportunamente.

Para qualificar ainda mais a argumentação-base do texto da tese,

recorreu-se a uma extensa bibliografia sobre o tema. Consultou-se, ainda, teses,

dissertações, monografias, mensagens governamentais ao legislativo, artigos, atas

das associações, sindicatos, processos judiciais e inquéritos policial-militares. Isso

porque como pondera Vilanova (1998, p.4):

Uma história para ser bem feita, para a qual, necessariamente, devem-se utilizar fontes orais, além de números, imagens, textos e sons. Se não for assim, corremos o risco de escrever histórias incompletas que silenciem aspectos essenciais de nosso viver.

Neste estudo, o que se pretendeu foi construir uma narrativa, entre as

muitas outras possíveis, de um processo que resultou na formação e organização da

Liga Camponesa de Matinhos. Entidade esta que não aceitou e nem pactuou com a

forma de organização do espaço territorial do campo no Brasil e particularmente no

Piauí. De igual modo, a liga reivindicou, propugnou e reinventou utopias e projetos

para uma sociedade mais justa que desenvolvessem a cultura do respeito aos mais

pobres e humildes.

As lutas empreendidas pela Liga Camponesa de Matinhos, na sua

singularidade e distinção, foram pautadas, inicialmente, a partir de reivindicações por

uma vida digna, com direito de acesso à terra, liberdade de ir e vir; pela

possibilidade de ter outros direitos e pelo reconhecimento no âmbito das relações

políticas e jurídicas.

30

A propósito, a respeito da ação dos movimentos sociais na luta por

reconhecimento político e outros direitos, Axel Honneth faz a seguinte ponderação:

[...] O reconhecimento específico referente às relações jurídicas está vinculado às necessidades dos indivíduos de serem membros com igual valor na comunidade política, isto é, cidadãos. Disto decorre a adjudicação, obtida através da luta social, dos direitos de participação política e dos direitos de bem, que incluem uma medida mínima de formação cultural e de segurança econômica (Honneth, 2003, p 193).

Também se analisaram nessa pesquisa as tensões vividas no interior da

Igreja; entre a Igreja e o Estado; e ainda o papel protagonizado pelos latifundiários

nesse processo durante os governos de Chagas Rodrigues e Petrônio Portella, às

vésperas, durante e nos anos imediatamente seguintes ao golpe civil-militar de 1964.

Reis (1990) explica que, durante a crise do período político identificado

como populismo e a instalação da ditadura civil-militar em março de 1964, “as

instituições políticas pareciam incapazes de conciliar os interesses dominantes e

canalizar as pressões e as insatisfações dos dominados”. Num empenho de melhor

explicar o contexto em questão, o autor acentua:

[...] a crise contaminou os veneráveis suportes dos regimes políticos brasileiros: as forças armadas e a igreja católica. Nas primeiras, divisões verticais e horizontais colocaram em xeque suas bases e organização: a hierarquia e a disciplina. A segunda perdeu coesão e unidade, dividida entre a maioria conservadora, assustada com a união dos “sindicalistas” e “comunistas” e uma minoria progressista favorável às mudanças sociais (REIS, 1990, p. 57).

No caso da Igreja brasileira e em particular a piauiense, os camponeses

constituíram o segmento social privilegiado para as investidas dos religiosos. Assim,

os camponeses de cariz mais conservador foram criando, na proporção de sua

organização, agora orientados e tutelados pelo clero local, os chamados sindicatos

católicos, diga-se, com a chancela da Arquidiocese de Teresina. À frente dela,

encontrava-se Dom Avelar Brandão Vilela, que se mostrava claramente decidido a

conter o movimento das ligas, barrar o comunismo e sufocar, ainda no nascedouro,

outras denominações religiosas, os chamados crentes.

31

Nesta análise, destacou-se a ação do religioso, marcada por uma postura

dúbia, plural: por vezes, medianeira entre o estado e os camponeses; por outras,

propositora à formação de variadas frentes de luta, na maioria tuteladoras.

Embora o chefe religioso se apresente de modo variado, ora mais

progressista, ora mais conservador, não é difícil perceber que, na maioria das vezes,

D. Avelar adota uma posição mais legalista e quando muito avança, torna-se

reformista. É o próprio líder episcopal quem revela sua preferência religiosa ao falar

de sua compreensão sobre a Igreja:

(...) existe uma Igreja popular e uma Igreja institucional. A popular é aquela que nasce do povo, uma Igreja sem muita preocupação com a segurança doutrinária, sem pretender levar em conta a missão especial da hierarquia, dentro da paisagem global (VILELA, 1983 p. 125 -126).

Segurança de qualquer natureza nunca foi competência popular. A Igreja,

como toda e qualquer instituição encravada numa realidade histórica concreta

surgiu, emergiu, sim, a partir de um anseio demandado por uma vontade popular.

Entretanto, logo se estabeleceu, ganhou força e foi vislumbrada como uma possível

ameaça ao estado, a qual veio a ser cooptada por este por meio de um grupo de

elite a ele aliado.

Ao admitir a existência dessa dita Igreja popular – na verdade, embora

não bem vista pelo religioso, uma corrente religiosa que buscava a libertação das

amarras da dominação e principalmente da exploração da força de trabalho dos

campesinos – apenas possibilita se inferir o quanto o clero piauiense na sua

ambiguidade foi conivente e, por um razoável período, submisso à ditadura militar.

Além da fala do chefe religioso acerca de sua compreensão sobre a Igreja

de sua predileção, outros fatos e declarações irão confirmar a posição mais

comedida de Dom Avelar, em torno daquilo que seria seu dito compromisso e

missão à frente da Igreja no Piauí, ou seja, o respeito às determinações da Doutrina

Social da Igreja e a atuação como agente de mobilização social.

Em relação à Liga Camponesa de Matinhos no Piauí, cerne desta

pesquisa, o conjunto de trabalhos produzidos no âmbito das Universidades Federal

e Estadual do Piauí, aos quais se teve acesso, aponta pelo menos três abordagens

32

diferentes entre si, de linhas de análises, posto que em todas elas encontraram-se

alguns elementos diferenciadores a caracterizar esse movimento.

Ressalta-se, entretanto, que mesmo apresentando alguns elementos que

as diferenciem entre si, a quase totalidade das pesquisas examinadas acha-se em

conformidade com os postulados já consagrados, apresentados ora por Clodomir

dos Santos Morais, que defendia a chamada via agrorreformista e tributava a

organização e atuação das ligas aos investimentos comunistas e outros agentes, ou

em oposição a esta, são pesquisas que se filiam à corrente que enaltecem a

atuação pública e destemida do ativista, advogado e deputado federal pelo PSB de

Pernambuco, Francisco Julião, defensor do chamado movimentalismo agrário, como

via para se chegar à revolução camponesa com uma reforma agrária radical e

rupturista. Também existe outro grupo de pesquisa que postula pela total autonomia

dos camponeses, de qualquer maneira todas seguem modelos teóricos prontos.

Na primeira linha na qual se enquadra, por exemplo, a pesquisa de

Libonato de Carvalho Rocha – Ligas Camponesas no Piauí: Município de Campo

Maior. Uma trajetória de Vida –; percebe-se apenas uma preocupação descritiva da

história das ligas, que neste cenário são justificadas pela exploração capitalista,

deveu-se a organização dos camponeses exclusivamente aos seus líderes, sem

influencia externa e segue a mesma análise já canonizada na literatura

historiográfica dominante.

Na segunda linha de análise, os camponeses são considerados

incapazes de arregimentarem, por si só, forças para fazer frente à exploração dos

latifundiários, carecendo de agentes mobilizadores externos como a Igreja e o

Partido Comunista. Nessa linha, o mais significativo estudo, no meio acadêmico, é o

do sociólogo Antônio José Medeiros, intitulado Sindicalização rural e mobilização

camponesa na crise do populismo: o caso do Piauí, 1958-1964.

Na terceira linha –, a luta camponesa é tida como vitoriosa. Entretanto,

além de ser creditada aos investimentos comunistas na região, ressalta também a

incapacidade de os agricultores agirem sozinhos, ou seja, fazerem o enfrentamento

empreendido sem o apoio e a orientação dos agentes externos, como o Partido

Comunista, que almejava a revolução popular no campo. Nesse grupo encontraram-

se apenas duas pesquisas.

33

Ressalta-se, porém, que das duas pesquisas, uma delas adota o termo

“cooperação” entre comunistas e camponeses para justificar, no entendimento do

autor que não havia dependência de um grupo em relação ao outro, mas tão

somente uma relação de cooperação.

A pesquisa aqui em questão – Nas franjas da História: singularidade e

distinção na constituição da Liga Camponesa de Matinhos nos Carnaubais (Piauí) –,

pretensiosamente já colocada pelo próprio autor como um estudo distinto e,

portanto, divergente das pesquisas aqui já analisadas, parte de diferentes

constatações que irão – aí reside a divergência – conferir a esse dito movimento um

caráter particular e específico. Particular e distinto porque, apesar de apresentar

pontualmente alguma semelhança, não guarda relevante similaridade com nenhum

outro estudo anterior. Isso porque esse pesquisador tributa à pesquisa em curso que

os trabalhadores rurais do Brasil, em particular os do Piauí, já registravam, a partir

de suas práticas e comportamentos consciência de si, da conjuntura na qual

estavam inseridos e, principalmente de sua importância como atores políticos na

transformação da dura realidade por eles vivida.

Por ser assim, reconhece, nesses campesinos, a necessidade e a

disposição de organicidade, via entidade que, entre outros desafios, defendessem e

os representasse na luta pelo direito ao reconhecimento, como sujeitos políticos que

pudessem dentro e até mesmo fora da dita legalidade do estado, acessar diferentes

garantias. Garantias, diga-se, constitucionalmente previstas, sobretudo com a

entrada em vigor da Constituição Liberal de 1946, mas somente efetivadas com

muita luta e sofrimento. Em relação à influência ideológica – se o movimento sofreu

– foi seguramente do trabalhismo expresso no Piauí por Chagas Rodrigues, então

governador e uma das principais personalidades políticas do estado.

O movimento emergido da propriedade Matinhos em Campo Maior,

classificado neste estudo como um movimento reivindicativo outro aspecto

diferenciador em relação às demais experiências ocorridas no período, teve, entre

outras motivações, a disposição de lutar contra o desrespeito jurídico, a experiência

do rebaixamento da dignidade social e, de modo particular, contra a permanente

condição de excluídos da posse de direitos – como a liberdade de comercializar sua

produção para outros proprietários além do patrão, o de receber a indenização por

benfeitorias realizadas nas terras em que viviam como agregados, de acesso à

34

escola, de assistência médico-hospitalar – no interior da sociedade da qual

acreditavam ser parte.

Foi, sim, um movimento social vitorioso, o que diverge também dos outros

estudos, em razão das significativas demandas alcançadas. Dentre as quais,

destacam-se acordos agrários jurídico-cartoriais intermediados pela SUPRA, a

redução da renda, a mudança na execução da obrigação de realizar a sombra da

casa e, no limite, representou mudança política considerável na vida tranquila do

interior das propriedades, o que antes era inimaginável.

A relevância da pesquisa reside necessidade de elaboração de uma

produção histórica interpretativa, crítica, que valorize as experiências vividas pelos

trabalhadores e cumpra, além do papel acadêmico, uma função política. Postula-se

ainda pela importância reflexiva desta pesquisa na medida em que auxilie os

movimentos sociais de hoje e contribua para uma melhor compreensão e

consequente resgate da memória do movimento camponês no estado. Assim como

da imagem de Luiz Edwiges e de outras lideranças sociais, no que tange à

organização e ao protagonismo das Ligas Camponesas no Piauí.

Pretende, sim, escapar dos estereótipos sacralizados no meio acadêmico

a partir das primeiras pesquisas que se debruçaram sobre o mesmo objeto: Ligas

Camponesas no Piauí. Nesse propósito, a pesquisa se propõe a resgatar e a

ressignificar a força e a luta da ALTACAM, no contexto da crise do populismo às

vésperas, durante e logo depois do golpe civil-militar de 1964. Essas e outras

questões com suas respectivas amplitudes serão devida e oportunamente

trabalhadas no desenvolvimento dos capítulos que formam esta tese.

Postula-se por tal necessidade dada a ausência de um estudo de fôlego

que possa aferir uma leitura mais substantiva a respeito da trajetória desse

movimento, como também da própria história de luta dos trabalhadores rurais no

estado.

Em outras palavras, pode-se dizer que predomina o silêncio nas

produções relacionadas ao movimento campesino no estado. Eventos como a prisão

e a perseguição de lideranças camponesas no Piauí, como Luiz Edwirges, Luiz

Ceará e muitos outras ficaram ocultados. Tal fato se percebe, inclusive, na mais

recente obra – Retrato da Repressão Política no Campo, Brasil 1962-1985,

35

Camponeses Torturados, Mortos e Desaparecidos –, de Ana Carneiro e Marta

Cioccari, lançada pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário, em parceria com a

Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

A obra a que se propõe fazer um retrato da geografia da repressão no

campo inicia com um esclarecimento à segunda edição. Inferindo que foram

introduzidas no texto, agora revisto pequenas alterações corrigindo problemas

técnicos, imprecisões ou informações equivocadas que escaparam à edição anterior,

fazendo referência a alguns nomes da lista de vítimas da repressão em outros

estados do Nordeste. Mas que novamente ignora, desconhece a perseguição e

repressão em outros, como no Piauí, ante a resistência campesina que ainda pulsa

como lugar de memória; e, assim, precisa ser lembrada para não cair no abismo do

esquecimento.

Outro aspecto de relevância deste estudo está no fato de denunciar que

os governos constantes do período considerado (1958-1968), como Juscelino

Kubistchek e também outros jamais fizeram propostas com o efetivo compromisso

de reestruturar o campo. Particularmente, com vistas a tornar o seu uso mais

produtivo e justo, reduzindo de modo significativo as desigualdades. O que se fez, e

muito, foi lançar mão de políticas compensatórias – fomento de crédito agrícola,

assentamentos rurais minguados, distribuição de insumos, frentes de trabalho – com

o intuito de confundir as populações pobres, desassistidas, e de conter as pressões

dos movimentos sociais.

Tem-se analisado questão agrária por um olhar essencialmente político-

ideológico e isso remonta a projetos implantados ao longo da história, bem como a

intenção do Estado com a regulação da propriedade da terra. Uma das razões pelas

quais o Estado brasileiro nunca resolveu o problema fundiário está no fato de que

essa questão sempre foi tratada como caso de polícia, sendo reduzida,

estrategicamente, a esfera do debate aos conflitos agrários, que foram sempre

judicializados.

No tocante ao material documental utilizado – entrevistas, notícias de

jornais, atas de assembleias, fotografias, mensagens governamentais, entre outros –,

destaca-se o compromisso movido pela consciência do pesquisador de não buscar

na leitura um espelho da realidade, mas sim e tão somente tê-la como

36

representação. Uma representação que possa configurar um ponto de vista, dentre

vários possíveis, de um ativista social importante, ou de um jornalista, de um

proprietário e outros mais.

De igual modo, também evidenciar que o pesquisador levou em

consideração que as fontes não se explicam por si só. É o mesmo que, a partir dos

questionamentos levantados e das análises procedidas, dá sentido ao objeto de

estudo que norteia a pesquisa, tendo em mente sempre o auxílio de outras áreas do

conhecimento, como no caso aqui em questão, a sociologia, a política e a geografia,

por exemplo. O diálogo com outros pesquisadores sejam eles historiadores,

antropólogos, sociólogos, filósofos certamente contribuirão no sentido de ampliar os

horizontes de investigação e elaborar de modo mais adequado as categorias de

análises do processo histórico em estudo, sem, contudo, toma-los como modelos

prontos, não submetidos a críticas.

Em relação à organização do texto final da tese, deu-se a seguinte

estrutura: Introdução, quatro capítulos – dos quais os três primeiros foram

nominações emergidas das falas dos camponeses e de outros entrevistados – assim

intitulados: Quem tá por baixo... um dia vai subir: a luta pelo reconhecimento político

e outros direitos; A igreja entra em campo: entre instituição clerical e agente de

transformação social; a difícil relação a partir e além do Concílio Vaticano II; Um pé

lá e outro cá, do ideário modernizador à pratica assistencialista de Chagas

Rodrigues ao conservadorismo reformista do esquema Portella; e, finalmente, O

fazer-se da narrativa acadêmica local sobre as ligas Camponesas , uma crítica

epistemológica ao discurso colonizado que nega a experiência peculiar de Matinhos

e Considerações Finais.

A introdução revela a intenção do pesquisador, pois discorre sobre o

estudo como um todo: explica de forma sucinta o conteúdo, sumariza a estrutura,

descreve o percurso metodológico, trata das fontes e, também, referencia algumas

ancoragens teóricas: Thompson (classe), Hill (história vista de baixo) e Scott

(economia moral), Honneth (movimento social e luta por reconhecimento), Portelli e

Halbwachs (memória), entre outros.

No primeiro capítulo – Quem tá por baixo... um dia vai subir: a luta pelo

reconhecimento político e outros direitos –, tem-se por foco a experiência

37

organizativa das ligas. Narra-se a luta pela terra no Brasil e no Piauí. Buscam-se as

memórias e evidencia-se a singularidade, especificidade e distinção no processo de

formação das Ligas Camponesas. De modo particular, no Piauí: a experiência

organizativa na Terra dos Carnaubais; motivações, natureza e desafios. Caracteriza-

se a realidade socioeconômica da região e, ainda, relata-se o vanguardismo da

família Osório Lopes. O cerne desse capítulo, como dito, é singularizar e distinguir a

experiência organizativa de Matinhos, em Campo Maior.

No segundo capítulo – A Igreja entra em campo: entre instituição clerical e

agente de transformação social, a difícil relação a partir e além do Concílio Vaticano

II – analisa-se o contexto social e político das décadas de 1950 e 1960 no Piauí,

Brasil e América.

Relacionam-se e comentam-se as principais mudanças ocorridas no

interior da Igreja Católica, e a ação desta no cenário de organização e luta dos

trabalhadores rurais do Piauí a partir das influências do Concílio Vaticano Segundo,

dentre as quais, as advindas da Encíclica Mater at Magister e Pacem in Terris,

entendido como o maior e mais importante acontecimento da Igreja Católica no

século XX. Assim, tecem-se considerações sobre a atuação de Dom Avelar à frente

do clero piauiense.

Sumariza-se o papel das Semanas Ruralistas com ênfase nas semanas

realizadas no Estado. Relata-se, nesse contexto, o primeiro congresso sindical dos

trabalhadores e camponeses do Piauí em 1961. Registra-se a fundação do Sindicato

dos Trabalhadores Rurais de Campo Maior – STRCM, em 1962. Evidencia-se, ainda

no rol de atuação da Igreja, o papel do rádio – de modo particular da emissora

Pioneira de Teresina, de propriedade da Diocese – na transmissão do MEB,

Movimento de Educação de Base – e de programas como Desperta Camponês

associado a outro veículo de comunicação e evangelização, o jornal O Dominical,

nesse processo.

No terceiro capítulo – Um pé lá e outro cá: do ideário modernizador á

prática assistencialista Chagas Rodrigues ao conservadorismo reformista do

esquema Portella –, transita-se entre os governos de Chagas Rodrigues (1959-

1962) e Petrônio Portella Nunes (1963-1966). Discute-se a chegada acidental de

38

Chagas Rodrigues ao Palácio de Karnak, a estranha aliança política PTB/UDN, a

abertura política do governo (Chagas) aos movimentos sociais, o assistencialismo e

as tentativas de modernização do Estado (empenho em implantar a barragem de

Boa Esperança) e ainda a criação de uma atmosfera mais democrática e favorável à

ação das organizações populares – criação da casa dos sindicatos – os conflitos em

torno das questões que envolviam a terra e as propostas de reforma agrária, com

ênfase na atuação da SUPRA – Superintendência da Reforma Agrária (1962).

Fazem-se considerações pertinentes à Constituição de 1946,

particularmente aos aspectos relacionados à dita função social da propriedade, aos

Estatutos do Trabalhador Rural (1963) e aos da Terra (1964). Analisa-se, ainda, o

retrocesso político - com cassações de mandatos de parlamentares –, instalado no

Piauí e procede-se uma leitura crítica da atuação política de Portella no estado e,

também, no cenário nacional.

No quarto e último capítulo – O fazer-se da narrativa acadêmica local

sobre as ligas no Piauí, uma crítica epistemológica ao discurso colonizado que nega

a experiência peculiar de Matinhos –, procede-se uma leitura analítica dos estudos

produzidos no estado, no âmbito das Universidades Estadual e Federal por

estudantes dos diversos níveis de formação – graduação e especialização, os quais

foram agrupados nesta pesquisa em três diferentes linhas interpretativas, já

mencionadas sobre as ligas.

Nesse empenho, busca-se identificar, sem qualquer pedantismo teórico a

visão de seus autores sobre o movimento desses campesinos, com vistas a situar a

lógica individual – reducionista ou generalista – deles. E, principalmente, historicisa-

se o movimento social reivindicativo de Matinhos, evidenciando a sua trajetória de

luta pelo reconhecimento político, pelo acesso e permanência na terra, pela reforma

agrária e outros direitos na década de 1960. Também se buscou conhecer as

diferentes concepções de historia, as fontes e os variados percursos metodológicos

desses autores.

Caracteriza-se ainda a estrutura organizacional da liga, observando as

convergências e divergências entre as principais experiências desenvolvidas na

Terra do Sol e do Equador e no Brasil. E, finalizando, busca-se também caracterizar

a composição social do movimento no Brasil e no Piauí vislumbrando detectar

diferenças e semelhanças na sua composição.

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Nas Considerações Finais, evidencia-se – subjacente a todo o

procedimento analítico do estudo aqui empreendido – a ancoragem conclusiva do

pesquisador, na qual aponta e elenca as transformações sociais emergidas na

região de Campo Maior e no Estado do Piauí a partir do movimento, entendido como

vitorioso, dos campesinos de Matinhos, mostrando a riqueza das mobilizações dos

camponeses, como ações autônomas e criativas num contexto de exploração

profunda.

Também, reconhece-se a importância do papel subversivo e transgressor

do movimento desses sujeitos que protagonizaram o enfrentamento necessário à

conquista do reconhecimento político; à imputabilidade moral na mesma medida

dada aos outros membros da sociedade; à defesa da reforma agrária, da

democracia, tenuamente frágil à época; e, por via de consequência, à luta pela

cidadania.

Finalmente, tecem-se conjecturas possíveis, dentro da situação social

vivida às respostas apresentadas aos problemas de então, e também caso o

movimento da Liga Camponesa de Matinhos tivesse sido abortado como pretendiam

os poderes constituídos.

Sobre as informações elencadas em cada capítulo atinentes a

referenciais teóricos e fontes, o pesquisador ressalta que as constantes aqui na

introdução são circunscritas apenas às de maior relevo, às que sinalizam de modo

mais evidente o eixo basilar das abordagens. As outras – as não registradas – têm,

obviamente, suas inserções na oportunidade de suas contextualizações nos seus

respectivos capítulos.

40

CAPÍTULO I

1. QUEM TÁ POR BAIXO, UM DIA VAI SUBIR: A LUTA PELO

RECONHECIMENTO POLÍTICO E OUTROS DIREITOS.

1.1 Matinhos do Meio, lugar de resistência.

Enfrentar o latifúndio e opor-se ao estado – representante maior da classe

dominante – tem marcado a história de vida dos camponeses.

Para Martins (1981, p. 113), Azevedo (1982, p. 70) e também para Bastos

(1984, p. 93) Grynszpan (2014. P, 20) estes novos atores históricos passaram, a

partir dos anos 40 e 50, a compor o quadro de agentes que contribuíram para

transformar o cenário da sociedade brasileira, resistindo à expropriação, à expulsão

das terras e à recusa do assalariamento.

Essa resistência objetivava o crescimento da mobilização dos

trabalhadores rurais em diversos pontos do país de forma mais integrada. Assim,

esse novo quadro deu origem às associações de trabalhadores rurais em todo o

país – no Piauí, a União dos Camponeses Piauienses – UNICAMPI, no Brasil a uma

federação de entidades rurais, a ULTAB - União de Lavradores e Trabalhadores

Agrícolas do Brasil, criada em 1954, são exemplos dessas experiências.

Formaram-se ainda um número expressivo de outras entidades

representativas, na forma de associações e sindicatos de perfil político, de classe ou

simplesmente reivindicativo não vinculado a essas entidades federativas. São

exemplos dessas experiências o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Santa Luzia

(MA), a Federação de Trabalhadores Rurais do Ceará (Fetrace) e o Sindicato de

Trabalhadores Rurais de União (PI), dentre outros de forte atuação no meio rural e

que tiveram suas lideranças vitimadas pelos governos militares.

Nesse contexto, as Ligas Camponesas se constituíram na mais

importante das organizações do período, por seu papel fundamental na projeção das

41

lutas do homem do campo pela posse e propriedade ainda que precárias da terra,

muitas vezes com adoção de táticas e estratégias que desafiavam os poderes

estabelecidos.

De acordo com Montenegro (2004, 391-416), as Ligas Camponesas –

aqui apresentadas de forma genérica – ganham destaque, na região Nordeste, como

organizações coletivas desenvolvidas pelos próprios trabalhadores, voltadas às

propostas de melhoria das condições de trabalho e de assistência aos trabalhadores

rurais.

Elas teriam seu gérmen nutrido, em 1954, no Engenho Galileia, em Vitória

de Santo Antão, Pernambuco, a partir da fundação da SAPPP – Sociedade Agrícola

e Pecuária de Plantadores de Pernambuco.

A presença de Francisco Julião, advogado, escritor e deputado pelo

Partido Socialista Brasileiro – PSB conferiu maior radicalismo e visibilidade às ligas

em Pernambuco. Tanto é que se tornaram, em alguns aspectos, modelo e referência

para várias outras experiências organizativas de trabalhadores rurais em todo

território nacional; mas, em maior proporção, na região Nordeste. Jorge Ferreira e

Ângela de Castro Gomes pontuam bem esse momento:

A proposta inicial das ligas era defender os camponeses da exploração dos latifundiários, conscientizando-os sobre as péssimas condições de trabalho e procurando esclarecê-los de que tinham direitos a reclamar. Contudo, sua orientação mudou quando Francisco Julião assumiu a liderança do movimento, tornando-o mais radical na luta pela reforma agrária. Na época, Julião visitou Cuba e voltou bastante influenciado pela experiência revolucionária que ocorria naquele país (FERREIRA; GOMES. 2014, p. 82).

As Ligas Camponesas se tornaram, assim, necessárias e, por excelência,

tidas a partir de então como:

(...) instrumentos de organização e mobilização das massas rurais pelo Partido Comunista, que atuava não só com assalariados da grande propriedade comercial, mas encampou também as reivindicações específicas do campesino, do pequeno produtor ou arrendatário, dos parceiros e posseiros (AZEVEDO 1982, p. 69).

Nessa mesma linha de análise, Andrade (1986. p 27-28) argumenta que

as ligas ganharam importância nas áreas:

42

Onde havia camponeses a serem explorados devido à expansão de cana-de-açúcar, como nos municípios de Vitória do Santo Antão, em Pernambuco e Marí e Sapé, na Bahia, ou nas áreas em ocupação, onde os posseiros eram expulsos da terra por latifundiários e grileiros nos sertões do Maranhão, Piauí e Bahia (ANDRADE, 1986, p. 27-28).

Outra particularidade apresentada às ligas é dada por Clodomir Santos

Morais quando, a despeito de divergências com o advogado Francisco Julião, outro

defensor das ligas, aborda diferentes aspectos de caracterização desse importante

movimento social e que, segundo ele, teria implicação direta no resultado político do

movimento.

Para esse ativista e ao mesmo tempo um dos mais destacados

estudiosos desse movimento social, as ligas possuem estruturação regional e não

local, como afirma Julião. Para ele, elas estavam umbilicalmente ligadas às

estratégias políticas do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e – ao contrário do que

defende Francisco Julião – contavam com uma cúpula urbana com funções políticas

específicas e bem definidas, que respaldava os campesinos nas suas demandas.

Também diverge de Julião quanto ao surgimento das ligas, por ele identificadas

como modernas, e organicamente constituídas entre 1945-1947, que corresponde

ao período de legalidade do PCB, força política sem a qual, segundo ele, as ligas

não teriam existido. Além desses existem outros aspectos divergentes.

Pesquisando a experiência piauiense, chegou-se à Vila de Santo Antônio

do Surubim, elevada à categoria de município, de acordo com João Alves Filho

(2011), com o nome de Campo Maior em 28 de dezembro de 1889, região integrante

nos dias atuais do Território dos Carnaubais, distante de Teresina, capital do estado,

aproximadamente 86 km. (conceituar território dos carnaubais)

Foi nessa região, identificada pelos moradores que lá vivem, legítimos

“trabalhadores da memória” (Bosi, 1983) como “lugar valente” que se desenvolveu

na propriedade Matinhos do Meio, pertencente ao senhor João Edwiges (vaqueiro e

pequeno proprietário), pai de Luiz Ribamar Osório Lopes (lavrador), conhecido como

Luiz Edwiges, a mais expressiva organização coletiva de trabalhadores rurais do

estado, a ALTACAM – Associação de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas de

Campo Maior.

O processo organizativo dessa Associação, depois de iniciado pelos

próprios campesinos de Matinhos do Meio, veio possivelmente, posterior a este

43

primeiro momento, de algum modo, a ser inspirada, em termos tão somente

documentais, e não orgânicos, na Liga de Teresina, na Fazenda Iniga e,

provavelmente, também nos mesmos termos, na Liga Camponesa de Pernambuco,

do Engenho Galileia. Tal inferência se torna evidente por se saber que cópias dos

estatutos, bem como de outros documentos, como cartilhas de orientação desta

circularam, muito propositalmente, por todo o Nordeste.

Embora as primeiras conversas e ações no sentido de organizar e fazer

atuar as ligas remeta ao ano de 1961, oficialmente a Liga de Matinhos só foi fundada

em 08 de julho de 1962, e teve como principais membros os irmãos Lopes: Luiz

Osório Lopes, uma espécie de ativista forjado nos marcos constitucionais da carta

liberal de 1946, Raimundo José Osório Lopes, com perfil mais pacificador e,

finalmente, Ribamar Osório Lopes, uma espécie de autor intelectual, ou como dizia o

próprio Luiz Edwiges, “uma lanterna que iluminava os passos e as ideias dos outros

membros da liga”. A liga contou também no início com a atuação incansável dos

agricultores Francisco de Souza Pereira e Luiz Pedro da Rocha, o Luiz Edite.

Em entrevista realizada em 27.02.2012, na sua própria casa – uma

construção simples que combina o velho com o novo, o passado com o presente e

que guarda, segundo o próprio Edwiges, “bons e maus bocados de sua vida” –, o

lavrador, ao puxar pela memória para falar do tempo de luta, recorda do irmão

Ribamar Lopes, que, segundo ele, estava sempre disposto a orientar os

companheiros. O líder camponês visivelmente emocionado, apoiado em um cacete

de jucá, que funciona como extensão de seu corpo cada vez mais corcunda, ao

relembrar a luta para fundar a liga e da forte atuação do irmão nesse intento,

declarou:

(...) era um home danado de sabido, todo mundo gostava da prosa dele. O Ribamar pegava tudo que era de jornal, papel, livro, qualquer coisa que ele encontrasse no munturo e que servia para ensinar nóis. Ele pegava, separava e lia na boca da noite com uma lamparina de querosene na mão. E tinha mais! Explicava tudo, às vezes até com versos, acredita? Tinha um que dizia assim: Eu sou de uma terra que o povo padece, mas não esmorece e procura vencer. Não me alembro mais... sei que falava de luta.

Embora fossem oriundos de uma região econômico-social pouco

abastada, os irmãos Lopes detinham uma apurada consciência política em relação à

44

necessidade de organizar e defender os trabalhadores rurais de Matinhos e de

outras localidades circunvizinhas, tais como: Buritizinho, Belo Monte, Puba, Floresta,

Corredores e Fazendinha, que também sofriam diversas retaliações por parte dos

proprietários. Assim, como sujeitos pensantes e reflexivos (CHAUÍ. 2001.p.118)

procuravam romper com as ordens estabelecidas.

Na região de Campo Maior, particularmente na fazenda Matinhos e

localidades próximas e também circunvizinhas, percebia-se a clara coerção e

privação dos direitos civis, políticos, econômicos e culturais impostos aos

camponeses. Dentre essas, uma das que mais se contrapunha à vontade dos

camponeses era a obrigação de executar a sombra da casa. O agregado se sentia

humilhado porque era coagido – obrigação aviltante e indigna segundo muitos deles

– a comparecer, no dia determinado, para fazer a sombra da casa, sob pena de sua

falta ser punida com a expulsão dele, agregado, e da sua família das terras do

patrão. O não comparecimento era injustificável; tolerado apenas se, no

impedimento do morador, o agregado enviasse para a tarefa um filho ou enteado.

Mas porque a realização da sombra da casa agredia tanto aos camponeses?

Realizada quase sempre aos domingos dia consagrado na cultura

sertaneja, ao Senhor e também ao descanso familiar, essa obrigação talvez

provocasse nos agricultores e vaqueiros da região mais indignação e revolta do que

o próprio pagamento da renda. Em entrevista a este pesquisador o senhor Salomão

Pereira, devoto de Santo Antônio, santo padroeiro do lugar, ao se reportar ao dia de

domingo, dia do senhor e também escolhido pelos proprietários para realizar a

sombra da casa, assim se posiciona:

“Seu moço eu não me alembro de quantas moradas eu pedi pra ir embora, é certo que fizemo, eu a dona Chica, mãe dos meninos e um afiado que morava com agente umas três a quatro mudas. Era de terra em terra, sabe por quê? Por que o único dia que nós tinha pra ficar junto, rezar e agradecer a Deus Pai todo poderoso, era o Domingo e agente ainda tinha que trabalhar? E trabalhar pro outros? eu não aceitei mais e juntei mais 5 companheiros e fizemos um pedido aos donos das terras. Você me acredita que só dois aceitaram mudar pro sábado de tarde? O meu foi um dos que não aceitou, peguei meus trapos e fui me embora e nesse dia combinei com a mulher que nós só ia agora pra donde o patrão desse o domingo pra nosso descanso e agradecimento ao Pai Nosso Senhor, num sabe”?.

45

Com esse posicionamento ficou evidenciado que os camponeses

guardavam os dias considerados santificados e a pressão dos proprietários gerava

uma espécie de rebeldia em defesa desses costumes. Thompson entende tratar-se

de “comunidade de interesses” e quando os supostos direitos desse grupo eram

ameaçados, os camponeses reagiam com exigências do cumprimento daquilo que

entendiam ser direito deles e obrigação das elites respeitarem.

Além da dita tarefa de fazer a sombra da casa, os campesinos agregados

da fazenda Matinhos e regiões adjacentes e circunvizinhas também consideravam

absurdamente aviltantes o monopólio da venda, sem recebimento de qualquer valor

em dinheiro, dos produtos por eles extraídos do babaçu e do tucum: palmáceas, cujas

bagas dos frutos (cocos) serviam para abastecer as indústrias oleaginosas da região,

além de ser para muitos deles uma fonte de renda complementar, obtida a partir do

fabrico artesanal e da venda ou troca na “moita” do azeite entre os próprios lavradores.

Também lhes agrediam outras proibições, dentre as quais a da realização

solidária de atividades recíprocas de trabalhos. Aqueles feitos por tradição cultural

entre si, os conhecidos mutirões, utilizados na recuperação de cercas caídas, na

cobertura de casas, nas brocas, nos plantios e colheitas. Esses mutirões

representavam aos olhos dos proprietários oportunidades conspiratórias e, portanto,

um espaço de prática política e de reforço de sociabilidades.

O disparate desses cerceamentos chegava ao absurdo de proibir até

mesmo a realização de certas cerimônias religiosas – nominadas aqui no Piauí entre

os agricultores de adjuntórios – como batismo de crianças, celebrações de

novenários, com ou sem leilões, nos quais os lavradores tinham por tradição doar

uma “prenda”, dar um adjunto.

As lideranças do movimento dos trabalhadores rurais da região – à frente

o Luiz Edwiges e seus irmãos – contrapunham-se a todos esses absurdos

protagonizados pelos patrões proprietários das fazendas, ilegalidades invisíveis aos

olhos do estado.

As taxas cobradas pela ocupação e exploração da terra (renda), irritavam-

lhes sobremaneira, deixavam-lhes – e também aos demais – possessos, porque eles

as consideravam injustas e consequentemente ilegais. Essas taxas se traduziam no

46

pagamento de duas a três quartas de produtos (milho e feijão) e, no caso da

mandioca, duas cargas (a carga corresponde a 60 Kg) por cada linha de roça

plantada (uma linha representa 25 braças em quadra).

Além dessas cobranças, o agregado ainda era submetido ao pagamento

de prestação de serviços em dois dias da semana (cambão) na propriedade do

fazendeiro. Essa obrigação era outra violência comum que muito os agredia. Muitos,

ainda que indignados, respondiam às vezes com silêncio profundo, abandonando as

terras onde viveram por muito tempo, deixando, para trás, casa, plantações e

recordações, que, às vezes, doíam mais que os prejuízos materiais não indenizados

pelos proprietários; em outras, com ações concretas e diretas, como as invasões de

terras, como a recusa de se retirar da propriedade sem indenização ou, ainda, a não

concordância de certos pagamentos que os proprietários lhes impunham naqueles

momentos.

Luiz Edite, um dos fundadores da Liga de Matinhos e posterior membro

do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campo Maior, ilustra bem a questão:

[...] Nós tava tudim, eu, cumpade Luiz, o Damião, o Chico da Cruz, que mora nas Pubas, e uns outros mais... quando escutemos a notícia que um fulano, lá de perto da Lagoa dos Corró, tinha sido corrido das terra de um certo proprietário, e pense... sem direito a nada... já pensou? Pois a história que todo mundo sabe aqui é que esse pobre fez um destroço tão grande, mas tão grande, dizem e foi verdade, que eu mesmo fui lá pra espiar. Sabe o que esse caboquim veio fez? Derrubou uma casa de farinha, um bocado de pé de manaíba, arrancou outros pelo tronco, cortou umas mangueiras bonitas que tinha na terra, derrubou uma casa de morada. Meu amigo... lá foi coisa! O cabra se vingou e nós achemos bonito. Afinal, ele já morava lá uma vida!

Entretanto, a maior de todas as agressões era mesmo a humilhante

indiferença dos proprietários com os seus moradores. A situação, não raras vezes,

chegava a ser exasperadora, principalmente quando aqueles negavam auxílio a

estes ou a qualquer membro da família em caso de enfermidades e até de

acidentes. Embora não fossem todos, a maioria sempre se mostrava indiferente em

tais situações, por maior que fosse a dor, o infortúnio da família agregada. Isso ficou

evidenciado na fazenda Monte Belo da família Gentil Alves, como bem relata Luiz

Edwiges:

47

Foi um dia da semana, num sei se quarta ou quinta-feira. Sei que era do mei pro fim. Um homi bem pouquim, chegou lá em casa na boca da noite dizendo que tava sendo corrido das terras do fulano, porque vendeu umas bagas de coco para comprar remédio para passar a febre do filho mais velho, que tava muito doente (cezão), se queimando de febre. Pra quê? O homi ficou sabendo... eles tudim tinha um puxa-saco, num sabe?... que a venda tinha sido feita em outra quitanda de outro proprietário, num sabe? Rapaz, pra quê? Esse homi se danou e disse cobras e lagartos com o pobre... disse as do fim e que ele nunca mais ia fazer venda para ninguém, pois daquele dia em diante ele podia procurar outras terras para morar.

Naquele dia não preguei os oi, não dormia, levantava e rezava pra aquela noite passar logo e eu ir com outros companheiros na casa do homi lá, do coisa ruim, defender nosso irmão que tava cuidando do filho, da família, e nem assim o fazendeiro ajudava. Isso não aguentei.

Esse tipo de atitude dos proprietários de terra constituía-se naquilo que

Honneth (2003, p. 224) classifica de “experiência do desrespeito.” Isso só fazia

aumentar a revolta dos camponeses. Alguns desses respondiam com ações –

sabotagens – (táticas), fragmentárias, sutis e difusas, como na realização precária

de consertos das cercas das fazendas, na sombra da casa5, ou no cometimento

deliberado de erros na marcação de animais (boi, cabras e burros) e até na colheita

de milho, feijão e mandioca, furando as fileiras do plantio para reduzir a produção e,

consequentemente, a quantia a ser paga aos proprietários na forma de renda ou meia.

Como se percebe, no Piauí dos anos 60, ainda persistia a manutenção de

formas de trabalho fundadas na coerção extraeconômica, com liames de

dependência e subordinação que se mostraram para além das relações impessoais

e que variavam desde a violência aberta como as identificadas anteriormente, até a

intromissão privada na vida do agregado, que era às vezes proibido, embora não

acatasse, de receber visitas e até mesmo entregar o filho para outro proprietário

apadrinhar. O apadrinhamento por outro proprietário somente era tolerado se esse

ainda que não fosse correligionário, pelo menos não alimentasse alguma diferença

com aquele proprietário onde o agregado morava ou fazia sua roça.

_____________________ 5 Sombra da casa, espécie de obrigação a que eram submetidos os trabalhadores

agregados das propriedades localizadas na região do território dos carnaubais. Obrigação de limpar os arredores da casa do proprietário até o limite da sombra delimitada pelo sol do meio-dia. Obrigação normalmente exercida em mutirão e aos domingos.

48

Como os camponeses poderiam superar essas práticas e

comportamentos dos proprietários presentes na vida social que simbolizavam clara

experiência de ofensa ou desrespeito, ferindo profundamente a honra e a dignidade

desses indivíduos como membro de uma comunidade cultural de valores?

Os movimentos sociais, como bem se sabe, continuam sendo

atores sociais, jurídicos e políticos de grande importância. Superada a fase

clássica de enfrentamentos sociais e mais especificamente trabalhistas do

século XlX e pacifistas do século XX, há hoje uma agenda bastante ampla de

mobilizações.

Postula-se, também, que os movimentos sociais existem principalmente

como consequência de um estado omisso ou opressor, e de uma sociedade

desigual e injusta, que demandem um tipo de organismo social de reivindicação e

luta. A cultura nos movimentos sociais se expressa através do conflito e da

solidariedade, da carência, da escassez e da falta, e é justamente essa cultura que

se reúne em um mesmo organismo de resistência.

Para Touraine (2003), os movimentos sociais contemporâneos – campo

ou cidade – não estão necessariamente a serviço de nenhum modelo de sociedade

perfeita, mas lutam pela democratização das relações sociais. Ele enfatiza melhor

sua posição ao afirmar:

Os movimentos sociais são aqueles que combinam um conflito social com um projeto cultural, e que defendem um modelo diferente de uso dos valores morais. Portanto, baseiam-se na consciência de um conflito com um adversário social. (TOURAINE, 2003, p.119).

Na mesma perspectiva de Touraine, o sociólogo alemão Axel Honneth

argumenta que a luta pelo reconhecimento e a forma como a falta de

reconhecimento atinge os indivíduos estão diretamente relacionados à maneira de

constituição do contexto político e cultural dos sujeitos afetados. A argumentação

por ele proposta é a de que somente pela articulação a um movimento social:

[...] a experiência do desrespeito pode tornar-se uma fonte de motivação para ações de resistência política. No entanto, só uma análise que procure explicar as lutas sociais a partir da dinâmica das experiências morais orienta acerca da lógica que segue o surgimento desses movimentos coletivos (HONNETH, 2003, p. 224).

49

Assim, o contexto brasileiro e particularmente o piauiense nas décadas de

50 e 60 do século passado, era marcado pela ausência ou presença mínima de uma

efetiva e sólida esfera pública que deixava populações inteiras, especialmente as do

campo, às margens do processo econômico, social e político. Isso quando leva à

organização popular, o que se deu no Piauí, faz surgir um sujeito coletivo e

empoderado que enfrenta as lealdades locais e repercutem quando mostram a

deficiência do estado diante da questão social. Nessa perspectiva, os movimentos

sociais mais ostensivos são aqueles cuja pauta de demandas está ligada ao

questionamento e consequente enfrentamento das profundas desigualdades sociais

e econômicas.

Esses movimentos, a exemplo da Liga de Matinhos, aqui classificada

como movimento social reivindicativo, têm sua legitimidade garantida por uma

cultura de exclusão do popular, de invisibilidade e da notória fragilização do público

em favor dos interesses privados. Nesse contexto, muitos sujeitos sociais atuavam

cada um defendendo seu interesse específico, no sentido de desqualificar, reprimir e

deslegitimar as demandas que questionam o status quo econômico e social, fonte de

toda desigualdade.

Certa vez, Hannah Arendt (2007) mencionara que a condição humana se

constitui enquanto um processo dinâmico e relacional distribuído em vários aspectos

e faces da vida cotidiana (labor, ação, trabalho). Em meio a tais aspectos, os

sujeitos são levados a pensar sobre o lugar social que ocupam, e,

concomitantemente, seus papéis dentro do núcleo coletivo ao qual pertencem.

É a partir desse momento que estes trafegam por caminhos nos quais se

torna possível perceber o jogo de relações sociais e políticas que se

encontram articuladas às suas condições de existir e, em contrapartida,

constroem possibilidades para expressar certos questionamentos acerca de tais

condições.

O fragmento transcrito na citação a seguir denota a emergência

dessa percepção de compreensão crítica relacionada a uma realidade

experimentada. Através do ato de rememorar e lançar mão de determinadas

sensibilidades por meio de um exercício memorialístico, reflexivo e pessoal,

ela evidencia uma leitura de mundo feita por um indivíduo que se percebeu

50

enquanto alguém comprometido com a tarefa de edificar um lugar de direito para si

mesmo e para seus pares, enquanto categoria social esculpida na teoria e na

prática.

[...] eu sentia que alguém que tinha documento alguém que tinha, era categoria, e a gente que não tinha, aí eu começava a falar essas coisas pra ele, e eu perguntava pra ele: será se não tinha um jeito, da gente se organizar?Porque os motoristas já tinham uma categoriazinha meio pequena, os militares tinham, os médicos tinham, os padres tinham, os bancários tinham e alguns empresários também já tinham, e ele olhava pra mim e achava graça e dizia: “Luiz, tem. Desse jeito, tem; mas o rico não quer que o pobre faça isso não, porque eles pensam assim, muitos deles, não é todos não! Mas tem um bocado aí que pensa assim: esse gado aqui é todo meu, essa terra toda é minha, esses “cabocos” são tudo meu, aqui quem manda sou eu, quem não fizer o que eu quero, do meu jeito, vai embora”. Sempre acontecia essas coisas desse tipo assim.... Aquilo também despertava a gente um pouco... Saber daquelas histórias de longe, e eu era interessado em saber dessas histórias, nós continuamos assim, no rumo das histórias das ligas camponesas.

O sujeito em questão é um vaqueiro e lavrador que percebera, diante das

condições do meio social ao qual pertencia, a necessidade de romper com o quadro

de rebaixamento social, de não reconhecimento político e de exploração a que

estava submetido. Seu nome: Luiz Osório Lopes, conhecido como Luiz Edwiges

Lopes.

Atento ao devido cuidado para não confundir realidades de lugar e tempo

distintos, correndo o risco de assumir postura inclusive anacrônica, o pesquisador

considerou o contexto – formação e desenvolvimento – da liga de Matinhos,

envolvendo ações, tensões e revoltas em torno da posse e permanência na terra, na

luta pelo reconhecimento político e pela legalidade de outras demandas – no período

entre 1958/1968 –, que pode ser compreendido à luz da noção de economia moral,

postulado por Thompson e ampliado por James Scott.

Essa noção, de acordo com a leitura processada, auxilia na explicação do

comportamento e nas ações dos camponeses piauienses. Isso porque agricultores

“independentes”, agregados e até pequenos sitiantes, quando (re) agiam, faziam-no

impulsionados por referências morais e éticas, senso de justiça, necessidade de

segurança alimentar e reconhecimento político, justificados, inclusive, pelo

significado histórico da terra culturalmente livre, compartilhada e sem cercas.

51

Por atenção a essas diferenças, e com o cuidado de considerar as

particularidades do Piauí, como região marginal em relação a outros centros,

percebeu-se que muitas das situações que envolviam o sertanejo local guardavam,

de certo modo, uma identidade comum com a situação daqueles camponeses

asiáticos, particularmente na utilização da terra para o cultivo familiar.

Nesse mesmo paralelo, também se assemelha a posse da terra para

enriquecimento dos grandes proprietários rurais, latifundiários, que agiam

violentamente na exploração dos agricultores; muitas vezes, com a proteção da

polícia e do poder judiciário, instrumentos constitutivos do estado.

Acerca do significado político dos latifúndios e da atuação de seus

proprietários no complexo mundo jurídico-político brasileiro, BRUNO (1997, p.11) faz

a seguinte ponderação:

Ser grande proprietário de terras no Brasil é sinônimo de prestígio, status e autoridade. Diria mesmo que a implementação de um modelo de desenvolvimento que “casou numa figura única” o capitalismo e a grande propriedade fundiária, as novas relações e alianças que se estabelecem entre o capital e a propriedade capitalista, a imensa força política dos grandes proprietários de terra, desproporcional ao seu peso econômico, são processos que, por sua vez, também expressam a apologia da grande propriedade no país.

[...] As leis, as instituições políticas, os tribunais e o direito consubstanciam este Ethos de grande propriedade fundiária, com o cuidado de, ocasionalmente, conceder alguns direitos aos trabalhadores rurais e, continuamente, preservar o monopólio e o privilégio dos grandes. Hoje, a propriedade está mais protegida e cercada pelas leis, pela força, pelo capital territorializado e pelo Estado. A integração de capital gerou, ao nível dos dominantes, interesses muito mais amplos, e assim os grandes proprietários de terra se sentem mais seguros porque não contam apenas com aliados potenciais, mas com parceiros que têm interesses comuns. Por isso, é que as designações latifundiários e empresários são complementares, não opostas, porque ambas inscrevem-se em um espaço de referências e de significações e ambas englobam a improdutividade e o lucro. Em conjunto, elas instituem uma nova realidade, onde velhas e novas formas de dominação convivem sem maiores escrúpulos: através da agroindústria esconde-se o latifúndio; atrás do banqueiro, organiza-se a associação de criadores; atrás das sociedades anônimas, decidem os clãs familiares; atrás do rei da produção, flagra-se o jagunço ou pistoleiro, ou seja, atrás do discurso moderno, tenta-se dissimular o conservador.

52

Era comum, nesse cenário, a truculência dos delegados de polícia, braço

armado do estado, sempre na espreita a serviço dos fazendeiros. Tal situação é

evidenciada na matéria publicada no Jornal do Piauí, em 16 de novembro de 1963,

com o título: Latifundiários alugam bandidos para atacar camponeses indefesos:

Há pouco tempo, um dos mais ferrenhos latifundiários do município na zona chamada de Puba, alugou 45 capangas para atacar os camponeses que limpavam a terra, obrigando-os a caminharem por cinco léguas.

Situações como a descrita acima, além de outras tantas – de teor

semelhante – reforçavam para os trabalhadores a necessidade de criação de uma

entidade representativa que amparasse as suas demandas como legítimas,

justificando ainda as lutas pelo reconhecimento político dos campesinos. Eles, os

irmãos Lopes, foram os primeiros a vislumbrarem essa possibilidade e a

empreenderem a concretização desse ideal.

Quanto mais cresciam as tensões, mais os irmãos Lopes se davam conta

de que precisavam, e de forma imperiosa, de uma entidade que, além de se

constituir num canal de interlocução, zelasse pela classe de trabalhadores e a

defendesse, inclusive juridicamente, nas suas demandas por reconhecimento

político, por respeito, por segurança alimentar e, de igual modo, buscasse

desenvolver outras estratégias de sobrevivência, numa sociedade marcada pela

cultura do favor como instrumento do aniquilamento da autonomia pessoal e da

liberdade negativa proporcionada pela lei.

Assim, os irmãos Lopes logo procuraram de modo muito consciente

adquirir subsídios e se articularam com vários outros companheiros para dar feitura

a uma entidade organizativa, voltada aos interesses dos camponeses.

Com esse propósito, mantiveram contato com o agricultor José Esperidião

Fernandes, um conhecido ativista e idealizador de uma associação organizativa de

camponeses da capital Teresina. Este já organizava também alguns trabalhadores

no povoado Ininga, zona rural de Teresina – hoje um bairro da classe alta – onde se

localizava uma importante fazenda do mesmo nome, pertencente ao Senhor Noé de

Araujo Fortes, grande proprietário rural e destacado representante da Federação

das Associações Rurais do Piauí – FAREPI, principal órgão de defesa dos

latifundiários do estado.

53

Esperidião também costumava fazer reuniões em Timon, vizinha cidade

do Maranhão, onde uma grande quantidade de trabalhadores rurais igualmente

aspirava fundar um núcleo das Ligas Camponesas.

Os primeiros diálogos dos irmãos Lopes com Esperidião ocorreram

inicialmente por meio de cartas, nas quais compartilharam questões comuns sobre

uma organização para os camponeses de Campo Maior e de todo o estado. A partir

desses diálogos missivistas, resolveram se encontrar para discutir e aprofundar

sobre o itinerário a seguir para criar núcleos das ligas em suas localidades.

Os diálogos ocorridos entre José Esperidião e os irmãos Lopes

oportunizaram a estes a possibilidade de conhecerem o Estatuto da Liga

Camponesa de Pernambuco – documento deliberadamente difundido com o

propósito de auxiliar no surgimento de outras organizações – e se inteirarem sobre o

movimento político dos campesinos liderado por Francisco Julião. Esse documento,

de certo modo, transformou-se no abecedário – Vade mecum – para o processo de

articulação, em termos documentais das ligas no Piauí.

Luiz Edwiges tratou de adquiri-lo, por intermédio de José Esperidião

Fernandes, para fazer uma cópia e, através dela, orientar os passos futuros desse

líder campesino com vistas a melhor organizar o movimento embrionário da Liga

Camponesa de Matinhos e, mais à frente, criar delegacias – núcleos da liga de

trabalhadores em alguns outros povoados da região (Catinga, Puba, Floresta).

O intento de expandir a liga, por meio de núcleos, a povoados

circunvizinhos não foi alcançado plenamente por Luiz Edwiges. Nesses povoados,

ele apenas conseguiu ter contatos com lideranças locais para fazer as interlocuções

necessárias à divulgação das ações da Liga Camponesa de Matinhos.

Aliás, a liga de Campo Maior não era, assim como nenhuma outra,

subordinada à Liga Camponesa de Teresina; todas eram entidades autônomas,

orgânicas e juridicamente independentes. Esse perfil organizativo das ligas do Piauí

se contrapõe ao centralismo democrático, preceituado nos Estatutos das Ligas

Camponesas do Estado do Rio de Janeiro e Pernambuco formulados por Francisco

Julião para servir de modelo para os demais estados.

Convém ressaltar que essas formas organizativas de caráter

associativistas eram constituídas a partir de lacunas legais existentes no Código

54

Civil, que permitia a criação de associações rurais desde que não ficasse evidente

que se tratasse de organizações de trabalhadores com fins sindicais.

Ao relembrar tal momento, Luiz Edwiges se afoitou na memória e buscou

reproduzir o diálogo que teve com o companheiro Esperidião, num empenho de

melhor ilustrar aquele significativo momento:

– Esperidião, me empresta esse documento. Meu irmão sabe datilografar, e eu mando ele tirar copia né! E quando eu tirar lá, eu venho deixar aqui: – Luiz, tudo bem! Eu lhe empresto com maior prazer né! Eu vou logo lhe dizendo... se você quiser ir fazendo o negócio lá, em Campo Maior primeiro que nós aqui, vá fazendo lá, que eu não tou ainda articulado como você tá, não! Pela sua história, lá tá bem andado.

Desde sua fundação, a ALTACAM foi alvo de forte repressão.

Inicialmente, por parte dos proprietários de terra, que usavam de meios coercitivos

para inibir as reuniões entre os camponeses. Em seu primeiro encontro oficial,

realizado na fazenda Matinhos, os líderes estimavam reunir cerca de 1.300

lavradores vindos das mais variadas regiões. No entanto, a partir de uma série de

estratégias de intimidação dos fazendeiros latifundiários, plantou-se certo temor do

que poderia acontecer com os campesinos e suas famílias, caso eles fossem

adiante com aquele intento.

Assim, muitos dos lavradores foram advertidos que seus contatos e

filiações junto aos disseminadores da ideia de criação de uma associação, clube,

irmandade ou mesmo sindicato receberiam, consequentemente, variados tipos de

retaliações.

Com esse propósito, disseminaram o estigma de comunista na identidade

das lideranças; ameaçaram de desagregação da terra os que viessem aos

comunistas se juntar e, no mínimo, sofreriam de início a redução das áreas de

cultivo e, caso continuassem, até mesmo suspensão do direito de plantar; e, por fim,

torná-los proscritos entre os detentores latifundiários de terra no estado, ou seja, não

mais agregá-los em nenhum pedaço de chão.

Assim, mais ainda, espalharam-se, também, boatos de que a

polícia estaria à espreita para reprimir os comunistas desordeiros. Isso tudo

55

reduziu para aproximadamente 500, ainda assim uma verdadeira multidão, o

número de presentes no primeiro encontro marcado para a fundação da

associação.

Depois da difícil tarefa de mobilizar os lavradores, organizar na prática a

associação, compor sua direção provisória e apresentá-la às instituições e à

sociedade como legítima representante dos agricultores de Campo Maior e regiões

vizinhas, as lideranças, a partir de então, tiveram a missão de reconhecer, em

cartório, conforme a legislação vigente seus estatutos, e finalmente completar o rito

institucional – Código Civil – de fundação da mais importante entidade

representativa da classe de trabalhadores rurais do Piauí, até aquele momento.

E a Liga Camponesa de Campo Maior, passou a ter, assim, mais força,

visibilidade e também maior perseguição, no cenário piauiense. E, a seguir, foram

registradas, com extrato no Jornal O Dia, edições 03 e 04 de 24 de agosto de 1962,

e a ALTACAM ganhou organicidade e foi então, de fato e de direito, apresentada à

sociedade piauiense.

Fonte: Foto de carteira da associação de Campo Maior: ALTACAM

É importante ressaltar que esse fato evidenciou o potencial de subversão

e a força que a Liga Camponesa de Matinhos, isto é, a associação dos lavradores –

a ALTACAM – representara às elites dos detentores latifundiários de terra. Mesmo

tendo sua estimativa numérica, no início, bastante reduzida, ainda assim, a

associação recém-criada se revelou um instrumento de apoio e mediação

fundamental de seus associados e dos trabalhadores campesinos de Campo maior e

de outras regiões.

56

Depois de oficialmente criada, a ALTACAM contratou os serviços do

advogado Francisco Bento, que – em sintonia com as demandas dessa associação

– logo passou a atuar de forma efetiva no embate com alguns proprietários em

defesa de companheiros associados ou não. Esses embates deram mais

visibilidade, prestígio e respeito à associação. Tanto que passou a servir de modelo

local a ser seguido junto a outras experiências organizativas de trabalhadores rurais

em importantes cidades do estado, dentre as quais, Parnaíba, Regeneração e

Miguel Alves.

Consequentemente, a liderança de Luiz Edwiges também se consolidou e

ele passou a ser convidado a ajudar na constituição de novos núcleos das ligas nas

circunvizinhanças, o que ocorreu – embora sem a efetiva organicidade jurídica – nos

povoados de Boa Hora e Belo Monte, região das Pubas considerada na

circunvizinhança como um lugar efervescente, de luta, valente. Os núcleos aqui

reportados funcionaram apenas como grupos de lideranças para as interlocuções

locais das ações da Liga de Matinhos. A esses grupos de lideranças, aglutinaram-se

uma boa leva de gente, trabalhadores rurais, assalariados e retirantes. Todos unidos

e mobilizados por interesses e propósitos comuns, inclusive nos momentos também

festivos, como o que ocorreu quando a ALTACAM completou o seu primeiro

aniversário de fundação.

Desde cedo chegaram a Matinhos camponeses de todas as localidades do município e municípios vizinhos, sócios da associação que já abarcava vários municípios da região de Campo Maior. Demonstravam esses camponeses uma alegria vitoriosa pelo aniversário da entidade que consideravam a defensora de seus direitos, de seus interesses (Alegria pela vitória de existir por 1 ano. Jornal O DIA. 1963, p.4).

Para muito além de quaisquer outras possíveis considerações, a Liga

Camponesa de Campo Maior, emergida de Matinhos assim como outras entidades

foram de imediato rotuladas, pela elite ruralista e por setores conservadores da

Igreja e da imprensa piauiense, como grupos revolucionários, qualificados como um

substantivo inimigo do setor rural produtivo. Essa pecha é claramente expressada

em matéria veiculada em um jornal de circulação no estado.

57

As instituições tipicamente comunistas e os responsáveis por elas na sua maioria auxiliares diretos ou indiretos do Governo (...). Espera-se do Governo que, na defesa da integridade do Estado, tome providências que o caso requer, esclarecendo inclusive ao povo qual é a posição do governador Chagas Rodrigues, que vem sendo inspirador desse movimento. Com a palavra sua S. Exa. (Jornal do Piauí, Teresina. p.6, 22 /03/1962).

Com isso, não só os proprietários de terra se mobilizaram contra a

ALTACAM, mas também outros segmentos organizados como a Igreja, a imprensa,

os partidos políticos e até mesmo parte do governo. Embora o Piauí apresentasse

elevados índices de analfabetismo, as fontes impressas (jornais) ligadas na sua

maioria aos proprietários de terra, manipulavam os discursos sobre os

acontecimentos cotidianos, convertendo-se em protetora das informações e se

autoconferindo um status de autoridade dona da verdade, principalmente quando

estava em jogo criminalizar organizações de defesa da classe trabalhadora, como as

ligas.

Sem dúvida, essas instituições ou pelo menos alguns de seus principais

nomes no Piauí se apresentaram enfaticamente, cada uma segundo seu interesse

específico, como importantes frentes de oposição às Ligas Camponesas do estado e

em especial à de Matinhos, ALTACAM, em Campo Maior, e à ALTATE – Associação

de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas de Teresina. Esse fato se deve a uma

orientação pavimentada, de maneira mais ampla, por distintas frações de perfil

conservador, que estariam associadas em combater o comunismo, segundo elas,

expresso nas ligas. Pois a relação comunismo/liga camponesa tornou-se um atributo

recorrente a tais designações, mesmo não havendo, como no caso de Matinhos, um

vínculo político ou partidário propriamente declarado ou identificado nos documentos

analisados.

Em relação à atuação do estado, particularmente a partir da gestão de

Petrônio Portella, percebeu-se um esforço aberto do governo em prevenir e controlar

essas organizações ditas mais autônomas – Ligas –, contra o que chamavam de

infiltrações políticas e ideológicas indevidas, perigosas e nefastas.

Outra instituição que também tinha interesse em combater as ligas, era a

Igreja Católica. Para isso, utilizava, a pretexto de frear o comunismo e outras

denominações religiosas como os protestantes e os espíritas que começam a surgir

no Piauí, um discurso que associava indevidamente, mas bem a propósito, a

58

organização dos camponeses de Matinhos e de Teresina aos comunistas. Nesse

propósito - contando inclusive com o apoio da imprensa comercial-empresarial e

católica (Jornal Dominical e Santuário de São Francisco) –, além do combate às

ligas, programara um arrojado esforço de enquadramento, ainda maior e sem riscos,

dos camponeses com vistas a conservá-los na sua base religiosa.

Esse enquadramento se materializaria através de um grande projeto de

evangelização que passava invariavelmente pela alfabetização via rádio, do

agricultor e de toda sua família, essa proposta apoiava-se inclusive no fato de a

maioria da população piauiense ser analfabeta, mas também muito católica.

Em 27 de março de 1962, o arcebispo de Teresina, Dom Avelar Brandão

Villela, manifestou-se sobre as ligas em discurso realizado na Rádio Difusora de

Teresina, onde afirmou: “Condeno as atividades dos que desejam implantar, no

Brasil, regime de força, emanado da ditadura que desconsidera a lei e os princípios

da vida moral privada e pública”.

A posição do religioso se evidencia como a de um guardião do Estado de

Direito e da Democracia. Uma das explicações dessa postura tem por base o fato

de que, mesmo reconhecendo a crise política do país, emergida a partir da renúncia

de Jânio Quadros, o golpe civil-militar era ainda, embora bastante considerada,

apenas uma possibilidade.

Em outra entrevista, concedida na Rádio Pioneira de Teresina, o líder da

Igreja assim se expressou: “Está provado: o objetivo dessas ligas nacionalistas do

Piauí é subverter a ordem, levantando as populações interioranas contra as

autoridades, ou melhor, contra os proprietários de terras”.

A fala do arcebispo de Teresina na Rádio Pioneira foi explorada pelo

jornal Folha da Manhã (Edição de 27.03.1962) como um convite do líder episcopal

para a mobilização de todos no sentido da manutenção da ordem. O tom da fala do

líder religioso, na forma que foi colocado, revela-se nesse momento como mais um

argumento forte contra as Ligas Camponesas, que estariam abrindo caminho para

os comunistas, evangélicos e outros ensinamentos alienígenas, “diferentes e

contrários aos nossos costumes, à nossa educação religiosa, às nossas tradições de

cidadãos pacatos, mansos e até mesmo contra a pessoa humana”.

59

Dom Avelar Brandão Vilela (1983, p. 125-126), de modo subliminar,

preceitua que a intenção dos campesinos era criar e dar substância a uma Igreja

popular, contrária à institucionalmente orientada pelo Vaticano:

(...) Esse tipo de Igreja coloca-se contra o que se chamaria de Igreja institucional, aquela que na sua estrutura aceita e valoriza os elementos transcendentais da fé religiosa, a oração pessoal e comunitária, a doutrina social da Igreja, a missão redentora de Jesus Cristo, as legítimas tradições que se deixam iluminar pela Bíblia Sagrada. Estou certo de que no conceito de Igreja popular, há verdades subjacentes ao lado de proposições inaceitáveis.

(...) Se a intenção da Igreja popular é a de separar o povo da hierarquia, já não existe Igreja. Se se perde a ideia do infinito de Deus e da vida eterna, já desapareceu uma dimensão característica da Igreja. Vivendo num mundo, a igreja é um sacramento de salvação, é uma luz que se acende na consciência dos homens.

O religioso se mostra publicamente contrario á igreja popular e forma

fileira ao lado da ala conservadora do clero. A missão redentora de Jesus Cristo, de

acordo com todos os evangelistas, é a libertação.

Para além de qualquer orientação e preceitos cristãos, alguém quando se

dá conta de que vem sendo aviltado, rebaixado na sua condição humana e, mais

ainda, explorado como trabalhador em termos salariais, é natural que busque dar, de

modo consciente, um basta a isso tudo e criar condições dignas de vida.

A tendência desse e todos os indivíduos que pensam o coletivo, uma vez

conscientizado é procurar influenciar os irmãos, familiares, amigos e, principalmente,

agregar-se a outras pessoas também já conscientizadas, a fim de tornar a libertação

do coletivo desse jugo possível e mais fácil.

Não prospera a tese do religioso; direciona-se e descaracteriza a verdade

sobre o movimento dos trabalhadores rurais de Campo Maior e de outras regiões do

Estado para sociedade católica piauiense.

Ele deixa de considerar e, portanto, não anuncia que foi também assim

que se deu com o povo hebreu quando, conduzido por Moisés, decidiu dar um basta

à escravidão egípcia (Êxodo). Isso porque era a necessidade do povo e também a

vontade de Javeh.

Essa premissa de verdades subjacentes, postulada por Vilela, sempre foi

utilizada, historicamente, pelo dominador que, ao longo de vários séculos, buscou

60

fundar, a partir de sua ótica e conveniência, a história do dominado. Inclusive a

própria Igreja que, como bem se sabe desvirtuada de sua essência doutrinária,

recorreu, em que pese os diferentes contextos, a proposições inaceitáveis,

subjacentes – essas, sim – de verdades nutridas pelo erro e pela prepotência de

uma elite que integrava a cúpula da Igreja Católica, por ocasião da Inquisição e em

outros períodos igualmente questionáveis.

Não há um mínimo de razoabilidade imaginar que uma classe de

trabalhadores oprimidos como a dos integrantes da Liga Camponesa de Matinhos –

e ele, Dom Avelar, tinha ciência disso – nutrisse esse intento de separar o povo da

hierarquia da Igreja. Ademais, o religioso em questão sabia – os campesinos, não –

que da noção de reino, inclusive o de Deus, emerge um conceito orgânico, e, como

tal, subjaz sim uma hierarquia, onde há um superior e vários “súditos”, isto é, alguém

que orienta e os que seguem sua orientação.

Os campesinos, explorados, aviltados em sua condição humana e

rebaixados socialmente, pretendiam não mais que a libertação de todo aquele jugo

forçado pelos latifundiários detentores da terra. Desesperados e se vendo perdidos,

porque a orientação daquele superior religioso se contrapunha ao anseio dos

campesinos, na sua quase totalidade católicos e isso aumentava a decepção

daqueles que, por certo, clamavam a Deus – como os hebreus também o fizeram –

a libertação de todo aquele padecimento insuportável à condição humana.

Em momento algum houve da parte de lideranças dessa classe esse

intuito. Ninguém insuflou ninguém nesse sentido. Não houve esse tipo de

enfrentamento. Dom Avelar Brandão Vilela nunca externou publicamente; mas, na

verdade, embora muito comedidamente, talvez por ser um legalista era defensor da

propriedade e por extensão do lado de lá, dos poderes constituídos.

Ele, Dom Avelar, sempre que podia declarava sua oposição ao

movimento das Ligas, comparando de modo, inclusive, deliberado, o movimento de

resistência do Piauí, que ele sabia ser diferente ao de Pernambuco. O exemplo de

tal posicionamento está na própria declaração do religioso em jornal local:

Declaramos, para o conhecimento de todos os piauienses, que a reportagem do Jornal do Brasil: “Ligas no Piauí têm apoio do Governo e da Igreja” não tem fundamento ao que tange à posição da Igreja. Demos apoio ao Congresso Sindical dos Trabalhadores Camponeses do Piauí, jamais às chamadas ligas camponesas de Pernambuco (Jornal do Piauí. Ed. 27.11.1961, p.4).

61

O advogado Jesualdo Cavalcanti (2006. 150), que na época integrava a

Mocidade Petebista, uma das frentes estudantis de apoio aos movimentos sociais e,

em particular, os do campo, em seu relato autobiográfico, menciona o fato de que a

Igreja procurou barrar o crescimento das ligas no estado. As ligas, como se sabe,

por meio de seus vários núcleos espalhados nos povoados pelo interior adentro, já

desfrutavam de grande visibilidade e a Diocese, segundo ele, pensando melhor as

estratégias para contê-las, já havia planejado três frentes de atuação.

A primeira investida foi fomentar a fundação dos sindicatos católicos –

ação inspirada argumentativamente pelo religioso na tendência mais conservadora

da Doutrina Social da Igreja, de então. Dessa manobra, conduzida no estado pelo

advogado Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira, ocorreu a cisão dos trabalhadores

filiados à ALTACAM, da qual resultou um ano depois da fundação desta, em 12 de

junho de 1963, o surgimento de uma nova entidade para organizar os camponeses.

Assim, os dissidentes da ALTACAM criaram, com a orientação do clero e do estado,

o STRCM – Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campo Maior – de feição

claramente conservadora e assistencialista que passou a defender, a partir das

bênçãos do Padre Mateus, vigário da cidade, bandeiras mais palatáveis junto à

Delegacia Regional do Trabalho, porém mais distantes daquelas apresentadas pelas

ligas.

Esse movimento de criação do STRCM foi liderado – do lado dos

campesinos – pelo agricultor Antônio Damião de Souza, que teve seu

reconhecimento atestado no Ministério do Trabalho, por meio da Carta Sindical6

n°19.38.16/1963. A carta sindical, entretanto, somente foi liberada (3) três anos

depois. Esse documento era, portanto, a condição determinante para a existência

jurídica e reconhecimento público do sindicato e também o meio pelo qual se

efetivava o intervencionismo estatal nos movimentos sociais.

Outra ação, a segunda, a partir da qual a Igreja passou a trabalhar

efetivamente com o objetivo de fragilizar e desorganizar a liga, foi a realização

institucional – Arquidiocese/Governo do Estado – das Semanas Ruralistas.

_____________________ 6 Carta Sindical- Documento Público expedido pelo Ministério do Trabalho que reconhece e

atesta a existência jurídica conferindo efeito legal para o funcionamento de Sindicado Classista (CS nº 193816/1963 STRCM).

62

Esses eventos, que ocorriam, na verdade, com fins de informação,

doutrinamento e controle – eram uma espécie de encontros municipais com duração

de até cinco dias. Embora fossem públicos, o debate e a efetiva participação

somente eram permitidos aos trabalhadores rurais, pré-selecionados, por meio de

um sistema interno de credenciamento. Estes ficavam “confinados” em espaços

previamente definidos pela Igreja, governo do estado ou prefeitura, conforme

entendimento. Depois dos eventos, os participantes passavam a compor

preferencialmente o público alvo para recebimento de informes e documentos da

Igreja e do governo com a finalidade de um acompanhamento contínuo, permanente

e bem direcionado.

Em entrevista concedida a este pesquisador, o agricultor Raimundo Doca,

81 anos, do povoado Fazendinha, conta como ele mesmo sendo analfabeto e

sabendo apenas “escrivinhar” o nome, vivia recebendo jornais, folhetos e outros

materiais, além de convites para eventos depois que participou da Semana Ruralista

de Campo Maior.

Rapaz era tanto papel, tanta coisa que a gente não dava nem conta de olhar. Sei bem que o meu irmão mais novo, o Pedro, gostava de pegar era o jornal do padre. Esse ele olhava, lia e guardava. Teve uma época que tinha uma ruma de jornal guardado numa petisqueira da mamãe. Depois, foi indo e não vi mais os documentos; isso depois de uns três para quatro anos. Foi muito tempo que esse material veio pr’aqui na Fazendinha.

Em outra entrevista concedida a este pesquisador – em junho de 2016,

dessa vez pelo advogado e ex-deputado estadual do PDC, cassado pelo regime

militar de então, Doutor Celso Barros Coelho, afirma que ministrou pelo menos três

palestras sobre sindicalização, justiça social e reforma agrária. Sobre sua atuação,

ele pondera:

Eu não acreditava nos dois partidos (UDN e PSD) que disputavam o poder no Piauí. Eles não se diferenciavam em sua ideologia, pois ambos representavam os interesses de uma elite política, presa aos mesmos vícios no exercício do poder. Tive que aguardar uma oportunidade para ingressar na política partidária. Essa oportunidade por fim chegou com a fundação do PDC (Partido Democrático Cristão, 1962). Para mim, esse partido representava ideias novas, compatíveis com minhas aspirações de reforma da estrutura política nacional e local. Acredito que foi por isso que Dom Avelar, um

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homem muito inteligente, me convidou para dar umas palestras nos encontros que ele preparava com o governo no interior, para os trabalhadores rurais, ele chamava de Semanas Ruralistas. Eu participei de duas ou três e falei em todas sobre como devia ser a reforma agrária que a Igreja defendia e qual tipo de organização do campo que ele, Dom Avelar, como maior pastor da Igreja, desejava.

A participação do governo do estado se dava através do efetivo

envolvimento de técnicos, agrônomos, veterinários e agentes de financiamento. A

Arquidiocese criou uma Secretaria de Planejamento para cuidar de toda a

infraestrutura necessária a cada evento. A chefia dessa secretaria foi entregue ao

advogado Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira. Este profissional, que era vinculado

ao governo do estado, fora cedido pelo governador de então à Arquidiocese.

Nessas semanas, a programação, incluindo pauta, palestrantes e

condução, tinha origem quase sempre na figura do arcebispo Dom Avelar. Nesses

eventos, eram tratados temas diversos, como a formação de lideranças cristãs,

associativismo, convivência com a seca, queimadas, desmatamento e educação

para o homem do campo, entre outros. Todos em consonância com o projeto

Evangelizar e Humanizar, criado por Dom Avelar para a sua gestão na Arquidiocese.

De igual modo, outra providência, a terceira ação, adotada pelo clero para

ampliar ainda mais seu alcance sobre os trabalhadores e toda sua família, foi

transformar o Rádio, particularmente a Rádio Pioneira de Teresina e o jornal O

Dominical, em importantes instrumentos de comunicação direta com os movimentos

sociais, principalmente os rurais vistos como mais vulneráveis.

Empenhada nesse propósito, a Arquidiocese incluiu na grade da

programação de sua emissora de rádio o programa Desperta Camponês,

apresentado, sempre às 06h30min – nos dias de terça, quinta, sábado e domingo –,

pelo advogado Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira, um técnico do governo

estadual – da Comissão de Desenvolvimento do Estado –, como dito anteriormente

cedido, à Arquidiocese.

(...) após haver sido colocado à disposição da Arquidiocese pelo Governador do Estado, pois era técnico da Comissão de Desenvolvimento do Estado, iniciei um trabalho junto aos lavradores, de todos os municípios ligados à Arquidiocese, chegando à organização de 10 sindicatos de trabalhadores rurais.

64

Além de visitas pessoais, valia-me dos rádios cativos do Movimento de Educação de Base para divulgar um programa de rádio, na Rádio Pioneira, pertencente, então, à Arquidiocese, que denominei de “Desperta Camponês”, sempre às terças, quintas, sábados e domingos (OLIVEIRA, 2013, p. 36).

Os dois veículos – emissora de rádio e jornal – empenhavam-se em fazer

uma espécie de catequização do povo, objetivando a construção de um mundo

melhor. Com esses instrumentos, a Igreja, lançando mão das paróquias e capelas e

de um grande número de colaboradores voluntários, acreditava manter o controle e

até aumentar o número de fiéis.

Finalmente, visando barrar e progressivamente acabar com as ligas, Dom

Avelar determinou a proibição dos camponeses de se filiarem a qualquer entidade

associativa que não fosse autorizada, permitida por ele e que não mantivesse uma

relação de muita cordialidade e obediência ao chefe religioso.

Com as paróquias, os sindicatos católicos, as Semanas Ruralistas e a

proibição de filiação em associação sindical, clube ou qualquer entidade contrária ou

desobediente à orientação da doutrina católica estava, assim, montada a estratégia

da Igreja – com o apoio do estado e com respaldo de muitos proprietários rurais,

nem todos – para barrar a atuação das ligas e fortalecer os recém-criados sindicatos

católicos, ditos “menos perigosos”.

Desse modo, acabaram fragilizando e reduzindo significativamente a

força das ligas, especialmente a de Matinhos, como a primeira e mais importante

porta voz das reivindicações dos trabalhadores rurais na região.

Esses aspectos serão tratados, na análise aqui empreendida, em outro

capítulo, em que se discutirá com maior aprofundamento a atuação do Sindicato dos

Trabalhadores Rurais de Campo Maior – STRCM, a liderança do agricultor Antônio

Damião de Souza e o significado político das Semanas Ruralistas para a

organização dos camponeses no estado e, ainda, os papéis desempenhados pela

Rádio Pioneira e pelo jornal O Dominical nesse processo de evangelização e

desmonte das Ligas Camponesas no estado.

1.2 O pioneirismo da família Osório Lopes e a Liga Camponesa de Matinhos

Inicialmente, faz-se oportuno e necessário uma explicação para o uso do

nome Matinhos, originário, segundo alguns dos entrevistados, por associação com a

pobreza das terras que formavam no conjunto três propriedades: Matinhos de Cima,

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pertencente a Manoel Pereira de Abreu; Matinhos do Meio, esta pertencente aos

Edwiges; e Matinhos de Baixo, pertencente à família Pacheco e que, sendo muito

pobres, somente produziam em quantidades reduzidas feijão, milho, mandioca e,

nas áreas de alagadiço, arroz.

O agricultor Humberto Pereira, ao falar de Matinhos de Cima, terra de seu

pai, assim se expressa: “As terras eram tão fracas que, às vezes, a gente não tirava

nem o que tinha plantado. O jeito era criar algum bicho e ser morador dos outros”.

O autor da pesquisa aqui empreendida esteve em Campo Maior pela

primeira vez em agosto de 1998. Na ocasião, acompanhava a professora Regina

Souza – hoje constituída e investida na condição de primeira senadora da história

política do Piauí – em uma visita à casa de Luiz Edwiges e de outras lideranças do

movimento sindical rural do estado.

Outra viagem àquele município só aconteceria dez anos depois, quando

foi inaugurada pelo governo do estado uma rodovia de 14 km que liga o município

de Campo Maior à Nossa Senhora de Nazaré, a PI 320, que recebeu o nome de

Rodovia Luiz Edwiges.

Passados quatro anos, uma nova visita ocorreu. O propósito era ir à casa

do lavrador Luiz Edwiges Osório Lopes. O encontro fora previamente acertado com

José Carlos de Sousa Osório Lopes, o Carlão, filho dele.

Era um sábado, este pesquisador e um ex-aluno da Universidade Estadual

do Piauí – UESPI – agora doutorando da Universidade Federal do Paraná – UFPR –,

Francisco Atanásio cedo se deslocaram para lá. Os dois – professor-pesquisador e

aluno – foram de carro e chegaram à localidade Matinhos por volta de 7h30.

O Carlão que já os aguardava, pois tinha ido à casa do pai no dia anterior,

ao avistar o carro, gritou: “Pai, os homens chegaram”. Então o Atanásio desceu do

carro, abriu a primeira cancela, a segunda, orientou o rumo e seguiu a pé. Foi então

que se avistou distante uns 30 a 40 metros, um homem comprido, deitado numa

rede de tucum7 balançando, apoiado por um cacete de jucá próximo a uma mesa e

um tamborete de madeira e couro. Agora mais perto, seguiram-se os cumprimentos.

_____________________ 7 Rede de Tucum- Utensílio doméstico de origem indígena fabricado a partir do cipó extraído

da palha da palmeira do tucum produto muito utilizado para dormir ou descansar.

66

Decorridos alguns segundos, ouviu-se o ruído das cordas da rede e o

som do cacete no piso de chão batido provocado pelo esforço de levantar; mais uns

segundos e escutou-se: “Tá bom que ainda tô vivo e contando história”. Com um

sorriso fácil no rosto, aquele homem corcunda recebeu os visitantes já com uma

pergunta e um convite: “Já tomaram café hoje? Vamos tomar?”

O pesquisador que gosta muito de um cafezinho e sabe o quanto um não

pode ser entendido como ofensa que pode até fechar portas, respondeu de pronto:

“Só se for agora” e ainda indagou-lhe “tem pra dois?” Ele respondeu: “Tem prá

mais!” O pesquisador então continuou: “E pra acompanhar, tem alguma coisa? Um

beiju? Um bolo? Qualquer coisa serve”. Ele brincou e perguntou sorrindo: “Até

farinha de puba8?”

Após esse diálogo amistoso e convidativo, o pesquisador e seu discípulo

chegaram bem perto, apertaram a mão daquele agricultor, homem de boas relações

e publicamente envolvido com os movimentos sociais do lugar e muito identificado

com um projeto específico de sociedade, e se apresentaram.

O pesquisador: “O senhor tem um tempo pra conversamos sobre sua

história de vida? Queremos indagar-lhe sobre sua lida, sobre sua luta”. Ele deu as

costas, voltou a deitar na rede de tucum e disse: “Tenho sim, agora só tenho tempo e

umas poucas lembranças, vamos pra esse canto apontando com o cacete de jucá”.

Antes de iniciar a conversa, os dois – o pesquisador Damião Carvalho

Rocha e o assistente Francisco Atanásio –, apresentaram-se com mais detalhes,

falaram da pesquisa e externaram a grata satisfação de estar ali para dialogar com

ele sobre a sua luta e a luta de todos os camponeses do Piauí e do Brasil.

Ele então disse que estava com a “mente fraca”, mas que também estava

feliz em colaborar com os estudos, pois sabia que era uma forma de “mostrar a luta

dele para os mais novos”. Para Bossi (2003, p. 18), cabe-nos interpretar tanto a

lembrança quanto o esquecimento.

Eram oito e meia da manhã de sábado, dia 27/02/2012, quando

finalmente foi iniciada a primeira entrevista com aquele lavrador-vaqueiro de 84 anos

de idade, conhecido em todo estado como “o homem das Ligas Camponesas no

_______________________ 8 Farinha de Puba-, alimento extraído da mandioca fermentada, tem coloração variada,

normalmente amarelada muito utilizada na produção de biscoitos, bolos e muitas outras receitas caseiras. No Piauí é muito consumida com café.

67

Piauí”. A primeira pergunta foi: Quem é Luiz Edwiges? Ao que ele prontamente

respondeu:

Eu sou um home, filho de outro homi, chamado João Edwiges Lopes e minha mãe chamava-se Inês Osório Lopes. Eu tenho descendência por parte de pai, e meus avós uma parte são de Pernambuco. Esses Lopes vem de lá. Bom.. minha avó por parte de pai ela era filha de uma escrava né, e essa escrava nasceu de um fazendeiro, de uma família rica. A gente é assim misturado, uns moreno como eu, outros claros. A gente nasceu e se criou aqui nos Matinhos, eu sou de 16 de novembro de 1929. Nós era nove vivos, aí morreu José Ribamar Lopes. Esse, como se diz terminou sendo a chave da família, porque era uma pessoa que estudava, sabia das coisas. Meu pai era vaqueiro e meu tio era vaqueiro, meu avô era vaqueiro. Era dessa família que todos são do campo, da roça. Meu pai era um homi pobre mais criava a gente com muito gosto e trabalho. Ele comprava e vendia gado, cinco boi, oito boi e até que comprou 20 boi: ele era o homi muito correto, comprava e pagava direitim. E assim criou nós tudim, dentro do que era direito, do trabalho, da luta para ganhar as coisas sem deixar que os outros botasse cabresto na gente.

Marx ensina que a elaboração de conceitos e teorias não acontece no

vazio da mente, mas dentro de determinados processos históricos econômicos e em

sintonia com seus protagonistas políticos.

Desse modo, a leitura do mundo torna-se tanto maior quanto mais

os sujeitos analisam as contradições do processo produtivo e mais

próximo estiverem das lutas dos injustiçados e explorados: “É necessário fazer

parte do movimento real que supere o estado de coisas existentes” (Marx 1989, p.

11-32).

Gramsci (1974), certa vez, afirmou que todo homem é um filósofo a partir

do momento em que percebe de maneira reflexiva o jogo de relações sociais e

políticas que se encontram articuladas à sua condição de existir e expressar

determinados questionamentos sobre tal condição.

A premissa ora descrita por Gramsci denota a emergência dessa

percepção. Ela evidencia uma leitura de mundo feita por um determinado sujeito que

se viu como sujeito consciente – alguém realmente comprometido – com a tarefa de

edificar um lugar de direito para si e para seus pares, enquanto categoria social

esculpida na teoria e na prática.

68

O sujeito em questão é – como ele próprio, Luiz Edwiges, afirma – um

vaqueiro e lavrador que percebera, diante das contradições do meio social ao

qual pertencia, a necessidade de romper com o quadro de exploração ao qual

estava submetido: seu nome: Luiz Ribamar Osório Lopes, conhecido como

Luiz Edwiges. À sua trajetória, estava agregado um processo de luta pela

melhoria das condições de vida e conquista de direitos pelos trabalhadores rurais

do Piauí. Com isso, a sua história se mistura com as próprias incursões

dos movimentos camponeses no estado. Uma história marcada por confrontos,

tensões e embates, nos quais os trabalhadores da região procuravam

institucionalizar-se enquanto categoria detentora de um espaço reconhecido e

respeitado.

Estabelecidas as condições para o primeiro diálogo, as conversas com o

Senhor Edwiges iniciaram-se e sofreram apenas três interrupções: a primeira

provocada por um galo que insistia em cantar próximo de onde a entrevista estava

sendo gravada; a segunda pelo convite para almoçar da Senhora Santinha, esposa

de Edwiges, e a terceira e última interrupção, pela chegada do quarto irmão de

Edwiges, o Senhor Raimundo José Ribamar Osório Lopes, vulgo Raimundo

Edwiges, nascido em 17 de fevereiro de 1931, que exerceu os cargos de 1° e 2°

tesoureiros da ALTACAM. Um homem de aparência frágil, voz baixa; mas, como ele

próprio afirma: “de saúde de ferro”.

Embora morem próximos, os irmãos não costumam se visitar. Talvez por

isso, o Luis Edwiges, o entrevistado, naquele momento, ao avistar

Raimundo, solicitou que o gravador fosse desligado e, sem esboçar muito esforço

para se levantar da rede, falou dali mesmo com o irmão. Depois de uns quinze ou

vinte minutos, quando já se escutava mais o silêncio do que suas vozes, o

pesquisador indaga: “Senhor Luiz e o seu irmão aí? Ele também pode nos ajudar na

pesquisa?” Ele categoricamente respondeu: “Acho que não; quer dizer, não sei...

queira Deus que sim. Ele também participou da diretoria; mas, era mais afastado...

num sabe?”

Por essas e outras, o pesquisador e assistente perceberam que, após

contar e recontar em diversos novelinhos de vezes a mesma história, o Senhor Luiz

Edwiges se mostrava o próprio protagonista daquela narrativa. E mais, queria ser

69

assim percebido e respeitado como o grande mentor e verdadeiro guardião das

memórias das Ligas Camponesas no Piauí.

Essa postura, em relação ao irmão Raimundo Edwiges, fez o pesquisador

planejar outra entrevista, com aquele que ocupou por diversas vezes distintas

funções na diretoria da ALTACAM. Ele foi como dito antes, tesoureiro e membro do

Conselho de Mobilização e Filiação no último mandato que ocupou.

A entrevista continuou pelo resto da manhã. E, à medida que os diálogos

variavam de tempo, lugar, pessoas e temas, perceberam-se lapsos de memória e de

informações, próprios de um narrador octogenário que teve uma profunda e variada

inserção social, política, ideológica. Com certo esforço de memória, selecionando

informações, elencando pessoas, identificando e valorando a si e aos outros, a

narrativa de Edwiges fluiu lentamente em idas e vindas.

Nesse diapasão, o pesquisador e o assistente – ancorados nos

ensinamentos de Maurice Halbwachs (1990, 26), para quem “a memória é individual

e social e está em permanente processo social de partilha” – respeitaram a condição

do entrevistado, deixando-o bem à vontade.

Em certa passagem da entrevista, Edwiges, ao narrar a experiência de ter

frequentado a escola, confirmando a análise de Halbwachs, assim se expressa:

(,,,) quando a gente tinha de 6 para 7 anos, minha mãe entendeu de botar a gente para estudar. A escola era uma casinha bem pobre que ficava na Lagoa dos Corró. Nós tinha medo... medo de frequentar. Foi preciso uma tia levar um cipó pra gente não escapulir. Aí, o Ribamar, meu irmão mais veio, tomou um interesse muito grande, ao ponto de não querer mais lidar com gado. O professor, um senhor chamado Zumba, pai desse Zumba novo, era muito jeitoso e tinha muita paciência. O Ribamar, esse tinha muito interesse eu e o Chico não tinha muito interesse, não. Ainda frequentemos uns três anos; Mas, Ribamar... esse continuou. Foi até se formar doutor, jornalista e um bocado de coisa.

Ao que parece, os irmãos tinham destinos traçados: ao Ribamar, as

letras, a cidade grande, o mundo; aos outros, Chico, Luiz Edwiges e Raimundo, o

trabalho no campo, a pega do gado e a roça. O próprio Luiz Edwiges diz, em certo

momento da entrevista, que recebeu do irmão mais velho, Ribamar Lopes, a missão

de cuidar da família e dos negócios.

70

Fonte: José Ribamar Ozório Lopes

Indagado por que não o Chico, o mais velho? Já que na tradição só por

morte ou impedimento do mais velho, o segundo mais velho sucederia os pais na

chefia da família? Ele respondeu dizendo que o Chico era doente, tinha um

problema na cabeça e não poderia cuidar das coisas.

Essa situação parecia apontar para a separação dos irmãos, já que pouco

tempo depois o Ribamar Lopes foi para Campo Maior e, em seguida, para Teresina,

capital, onde morou na Casa do Estudante Pobre e frequentou o Colégio Diocesano,

uma escola confessional dos jesuítas. Por essa época, segundo ele, o pai, João

Edwiges, já havia falecido, vítima de “mancha no pulmão”, nome popular dado à

pneumonia – ou teria sido tuberculose? –, não sabe ao certo. O fato é que morreu

muito novo, com apenas 60 anos de idade.

O sociólogo Antônio José Medeiros, que estudou a sindicalização rural no

Piauí, fez referências à família Osório Lopes, destacando de modo muito particular

José Ribamar Osório Lopes. Este, no seu entender, exerceu um papel primordial

não somente na organização das ligas, mas na luta política de Campo Maior e de

todo o Piauí, como estudante e depois como jornalista e advogado e, também, na

condição de alto funcionário da SUPRA – Superintendência da Reforma Agrária.

Não fez grandes alusões aos demais integrantes da família.

71

O sociólogo, entretanto, ressaltou – em entrevista ao pesquisador – a

posição de vanguarda que Ribamar Lopes sempre manifestou e relembra a postura

dele nas eleições municipais de Campo Maior no ano de 1950.

O Ribamar era tão à frente do seu tempo que teve a coragem de apoiar, inicialmente sozinho e depois com outras lideranças, a candidatura a prefeito de Campo Maior, do jovem advogado Raimundo Nonato Santana, que acabou rompendo com as forças poderosas e venceu a eleição pelo PTB, naquele ano. O Ribamar parecia não ter medo das consequências, naquele tempo os proprietários mexiam com toda a família por causa do comportamento dos filhos.

Embora Antônio José Medeiros e outros pesquisadores, como Ramsés

(2015), Reinaldo (2012) Paz (2010) Carvalho (2000), destaquem o ativismo político

do jornalista e advogado Ribamar Lopes na orientação das Ligas Camponesas no

estado, não há como deixar de considerar – memória que foi resgatada por esta

pesquisa – o caminho político pavimentado por seu irmão, Luiz José Ribamar Osório

Lopes, ou simplesmente Luiz Edwiges, como assim é conhecido e como afirmou em

certo momento da primeira entrevista: “Ele tinha a missão de dar voz ao povo e não

aos poderosos”.

Esse personagem, ao lado de outros homens sofridos, como Luís Pedro

da Rocha, Pedro Simplício e Francisco Gomes, tinha a percepção de si e do lugar

que ele e os demais campesinos ocupavam naquela conjuntura. Articulados,

ajudaram a construir – no início, meio anônimos; talvez, por isso, ignorados pelos

documentos oficiais da história – a memória da luta camponesa no Piauí entre os

anos de 1958 a 1968.

Para a construção dessa narrativa, que tem como centralidade a liga de

Matinhos e o protagonismo do lavrador Luiz Edwiges, realizaram-se 53 entrevistas:

três com o próprio Edwiges, sendo uma em fevereiro de 2012, outra em novembro

de 2013 por ocasião de seu aniversário de 83 anos e a última em julho de 2015.

Entrevistou-se também Humberto Pereira de Abreu, de 83 anos de idade dos quais

50 como trabalhador rural, como ele diz “brocando, plantando e sofrendo”, morador

da localidade Buritizinho, próximo à fazenda Matinhos de Cima, pertencente ao seu

avô Manoel Pereira de Abreu, que também participou da Liga de Matinhos. Outra

entrevista foi realizada com Francisca Edwiges de Souza, Dona Santinha, esposa do

Edwiges, com quem teve quatorze filhos.

72

Além dessas, foram realizadas outras mais com os irmãos Francisco e

Raimundo Edwiges. Francisco, o mais velho, pouco participou da vida das ligas;

entretanto, guarda boas lembranças da atuação dessas entidades organizativas. Já

Raimundo Edwiges, o mais novo dos irmãos Osório Lopes, teve participação efetiva

nas ligas, chegando a ocupar funções na diretoria. Prosseguiu-se esta etapa de

entrevistas com o professor Antonio dos Reis (Mestre Zumba), filho de José dos

Reis e Silva, que alfabetizou praticamente todos os agregados das povoações

próximas e também a família Osório Lopes.

Foram ainda, além dessas realizadas outras entrevistas com

agricultores e agricultoras da região. Camponeses como o senhor Antônio

Pereira da Silva, (Antônio Conrado) de 93 anos de idade que exercia a função de

procurador da fazenda “Canto do Periquito”, de propriedade do

desembargador Manoel Castelo Branco e com a senhora Maria de Lourdes Araújo

Silva de 87 anos, esposa de Antônio Conrado, responsável pelas atividades

religiosas da região e também por ser uma das poucas pessoas com estudo e por

isso se ocupava do controle da renda dos mais 150 agregados que moravam na

propriedade.

Outra entrevista foi

realizada com o Cabo armeiro

Loiola, responsável à época

pela prisão do líder camponês

e de outros ativistas que

também militavam em Campo

Maior no período da fundação

e atuação da Liga Camponesa.

Ao falar do cotidiano de seu

pai, que também era professor

e atuou na alfabetização das crianças daquele período, Mestre Zumba, na tentativa

de recuperar aqueles momentos, assim se posiciona:

Nº 2 Cabo armeiro Loyola Fonte: Grupamento Militar responsável pela prisão de membros da liga de Matinhos.

73

Meu pai era uma espécie de agregado especial, tá vendo! Ele trabalhava na roça, fazia muita farinha, plantava muito feijão que era o que dava mesmo. Agora ele tinha um negócio com o senhor Gentil Alves, o dono da propriedade São Francisco, onde fica a Lagoa dos Corró. Lá nesse lugar ele morava e tinha na casa dele mesmo a Escola, era particular num sabe? Alguns chamavam Escola da Lagoa dos Corró e outros chamavam Escola do Mestre Zumba. Eu digo que meu pai era um agregado diferente porque tinha autorização do Seu Gentil pra botar morador e depois só informava que tinha recebido renda e botado um agregado novo. Por lá na região tinha meu pai e o Seu Pedro Linoca que podiam botar morador. Esse negócio de ser professor era por temporada, eu não lembro bem, mas sei que passava um tempo sem ninguém, sem aula e depois a casa ficava movimentada com muita gente, esses Duwiges, principalmente o Ribamar e o Luiz, esse da associação, eu era pequeno, mas lembro deles por lá, e foi muitas vezes, ta vendo?

Esse agregado especial do qual o mestre Zumba fala, condição

hierárquica superior no conjunto dos agregados representa em pleno sistema

capitalista uma similitude, embora o Brasil não tenha experimentado tal sistema,

uma herança feudal, pois este dito agregado especial que recebia autorização do

proprietário e poderes para autorizar a entrada de novos moradores e até receber

destes o pagamento da renda, era uma espécie de “vassalo”, figura típica do

Feudalismo com relações econômicas e sociais assemelhadas às praticadas nas

propriedades do Piauí dos anos 60, do século XX.

Esse agregado especial (espécie de vassalo) recebia do proprietário o

benefício de poder autorizar a entrada na fazenda de novos agregados e receber

destes o “eterno agradecimento pela nova morada” e ainda cobrar e receber a renda

dos mesmos. A renda paga era integralmente repassada ao proprietário, o suserano

dos tempos feudais vivenciado por muitos estados europeus.

A presente pesquisa foi fundamentalmente respaldada em

relatos de experiências vividas, produzidas e assistidas por pessoas comuns

como o Mestre Zumba. Isso por se acreditar que eles ajudam na construção da

memória e que as lembranças, embora se realizem de forma diferente para cada

pessoa, são inevitavelmente compartilhadas entre o grupo a que ela pertencia

quando da vivência lembrada. É assim porque as pessoas não vivem isoladas e por

mais que as experiências sejam individuais são também socializadas,

compartilhadas.

74

Essa compreensão é respaldada por autores como Alessandro Portelli:

Uma coisa que a história oral pode ver, que todos os arquivos e a história convencional não veem, é precisamente a vida cotidiana. Por exemplo, sobre a história das mulheres, a história da família, a história da casa, do espaço doméstico (...) (2014, p. 203).

O estudo desse campo (ALBERTI, 2006, p. 1), embora tenha sido muito

questionado como fonte para a construção da história, foi superado e tem hoje

importância considerável, ocupando, nos últimos tempos, volumes diversos em

grandes livrarias e centros especializados de todos os lugares do mundo.

Além dos relatos desses personagens, também se buscou respaldo,

apoio, nos trabalhos de outros pesquisadores, como já dito, principalmente

dissertações, monografias e artigos produzidos por alunos do curso de História das

Universidades Federal e Estadual do Piauí / Teresina e Campo Maior e em matérias

publicadas nos jornais locais como O Dia, Folha da Manhã e Estado do Piauí e

jornais de circulação nacional como Jornal do Brasil.

Essa narrativa compreende a história de vida e luta do lavrador Luiz

Edwiges desde a mais tenra idade, quando começou a frequentar a escola,

passando pela juventude, quando publicamente participava de diversas atividades,

como a pega de boi no mato, festas dançantes, partidas de futebol etc. Também

compreende a sua maturidade política, quando começa a se preocupar com as

dificuldades enfrentadas pela povoação onde morava e ainda com as precárias

condições de vida de seus companheiros campesinos.

Essa maturidade ganha força e se consolida com o trabalho de

organização e fundação da ALTACAM, da qual foi seu primeiro presidente; da União

dos Camponeses do Piauí – UNICAMPI, entidade formada a partir de entendimento

entre a liga de Matinhos e a liga de Parnaíba, na qual ocupou o cargo de 1° vice-

presidente e por sua atuação no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campo

Maior.

Com a da interdição das ligas e atuação na fundação da Confederação

dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG, no Rio de Janeiro; os tempos de

prisão no 25° Batalhão de Caçadores de Teresina, durante o regime militar;

75

chegando finalmente ao ano de 2015, ano em que foi protocolada a proposição de

Declaração da Condição de Anistiado Político e de Reparação Econômica, junto ao

ministro de Estado da Justiça da República Federativa do Brasil.

1.3 Luiz Edwiges, uma voz contra o latifúndio.

O presidente da ALTACAM,

Luiz José Ribamar Osório Lopes,

conhecido como Luiz Edwiges, foi

preso no dia 25 de junho de 1964, sob

a alegação de crime de subversão

política e social, e por pregar a ideologia

comunista, conforme descreve o

advogado Jesualdo Cavalcante

(2006), que na época integrava uma

das frentes estudantis de apoio às Ligas Camponesas:

(...) a caçada empreendida em Campo Maior rendera resultado: foram presos Raimundo Antunes Ribeiro (Toto), Antonio Luiz Higino, Luiz Ribamar Osório Lopes, José Esperidião e Antonio Damião de Souza, Jesualdo Cavalcanti, Manoel Domingos Cardoso e Martim Pereira de Abreu (BARROS, 2006, p.189).

O líder camponês ficou preso por aproximadamente quatro semanas,

tempo durante o qual sofreu torturas físicas e psicológicas, humilhações e ameaças

de morte, além de ficar exposto às péssimas condições da carceragem. A prisão do

líder camponês ocorreu na frente dos filhos, na ocasião todos menores de idade

com a mãe grávida, vindo inclusive a perder o bebê devido à forma brutal com que

sua prisão foi efetivada.

Sobre os episódios que marcaram a noite em que ocorreu a prisão do

líder camponês Luiz Edwirges e de outras lideranças, o cabo armeiro Loyola oriundo

de Recife pertencente à 7 região e um dos responsáveis à época pela missão em

Campo Maior, faz o seguinte relato:

Fonte: Luiz José Ribamar Osório Lopes (Luiz Edwiges)

76

“Por ser armeiro não podia sair, mas fiquei tão empolgado com o convite do sargento comandante da patrulha que deixei outro no meu lugar e fui cumprir a missão, era uma noite e chovia muito em campo maior. Naquela noite ninguém foi preso, mas na manhã seguinte, por volta de 10 horas algumas pessoas foram presas e levadas em cima de um caminhão para o 2 BEC em Teresina. Eu levei o senhor Totó Barbosa, o Luiz Edwiges e uns outros dois ou três que foram como presos políticos. Ninguém foi tratado com grosseria e lá em Teresina foram feitos os procedimentos que eram comuns em relação a qualquer um que fosse preso.”

Nascido em 16 de novembro de 1929 na localidade Matinhos do Meio,

município de Campo Maior (hoje pertencente ao município de Sigefredo Pacheco,

desmembrado de Campo Maior), Luiz Edwiges, mesmo sendo oriundo de um lugar

social pouco abastado, alimentava apurada consciência política em relação à

necessidade de organizar os trabalhadores rurais do município, os quais sofriam

diversas retaliações por parte dos latifundiários locais.

A arrogância e a violência dos proprietários no trato dos moradores

agregados podem ser percebidas na matéria intitulada “Latifundiários alugam

bandidos para atacar camponeses indefesos”, publicada no jornal Hora do Piauí, de

30 de novembro de 1963.

(...) mais recentemente um “coronel” tonitruante, proprietário, chegou a chamar a sua presença um dos seus moradores de suas terras que se havia inscrito na Associação de Lavradores, “sem me haver consultado”. Disse-lhe que ele teria de abandonar imediatamente suas terras, sob pena de ser destruída sua casa. Como o camponês procurasse explicar-se, o arrogante dono das terras ordenou-lhe que calasse, senão vai apanhar.

Ao relembrar a conjuntura e a necessidade de criar uma entidade

representativa que amparasse as demandas e ao mesmo tempo se apresentasse

como interlocutora das questões que afetavam os trabalhadores rurais, Luiz Edwiges

procurou adquirir subsídios documentais para dar feitura a uma organização voltada

aos interesses dos camponeses. Com esse propósito, entrou em contato com um

companheiro – outro ativista idealizador – de uma associação que se iniciava em

Teresina, o agricultor José Esperidião Fernandes.

Os diálogos ocorridos entre Luiz Edwiges e José Esperidião

oportunizaram àquele homem tenaz de Matinhos a possibilidade de conhecer o

estatuto da Liga Camponesa de Pernambuco, liderado por Francisco Julião. Esse

documento, de certo modo, tornou-se um importante referencial para o processo

77

liderado por Edwiges em Campo Maior na fazenda Matinhos. Ele tratou de adquiri-lo,

por meio de José Esperidião Fernandes, para reproduzir uma cópia e, através desta,

orientar os passos, dentro de suas condições locais, para organizar institucionalmente

os trabalhadores. Ao relembrar de outro encontro, o segundo que mantivera com os

companheiros de Teresina, Luiz Edwiges se propõe, em sua narrativa, a reproduzir o

diálogo que teve com o parceiro de causa, nesse empenho ele assim se expressa:

– Esperidião, depois daquele dia que passei o documento e você levou para Ribamar datilografar, fizeram o que depois?

– Edwirges, nós tiremo umas copias, distribuímos e depois fomos estudar pra ver como agente ia fazer o negocio lá, né!

– Esperidião, se você quiser ficar mais tempo com o documento pode.

– Edwirges, tudo bem! Mas não precisa não, já tiremos as copias e o Ribamar ficou de explicar umas coisas lá pra nóis. Umas coisas que não entendemos direito, né!

– Esperidião, e lá tá bom? Aqui os latifundiários tão prometendo até taca em quem se meter com esse negócio de liga.

– Edwirges, Em Campo Maior tem muita gente assombrada, mas vamos continuar nossa luta assim mesmo.

Os primeiros contatos que os irmãos Lopes – organizadores da

ALTACAM – tiveram a respeito das ligas ocorreram por meio de um jornal em

particular – Santuário de São Francisco – distribuído pela Igreja Católica, que de

certa forma, fazia paradoxalmente propaganda contra o comunismo.

Esse fato foi possível em razão de a mãe dos irmãos ser devota fervorosa

de São Francisco e assinante-associada do referido jornal editado em Canindé,

cidade-santuária do vizinho Estado do Ceará. Esse periódico no Piauí era distribuído

a partir do agente Nunes de Souza, que recebia periodicamente os exemplares e se

encarregava de distribuí-los junto aos associados contribuintes.

Minha mãe era sócia do jornalzinho de São Francisco, lá em Canindé, e o jornalzinho vinha todos os meses pro endereço aqui. O jornal era anticomunista, né!? Aí o jornal trazia muita história do comunismo daqueles. Eles faziam um terror danado nas terras, do comunismo, e aí aconselhava as pessoas não querer saber daquilo e tal, mas já falava muito nas Ligas Camponesas de Pernambuco, o jornalzinho.

78

Esse jornalzinho – pautado por uma linha editorial bastante reacionária –,

utilizado pela Igreja como um instrumento de aparelhamento ideológico, propunha-se

a alertar a comunidade católica para o perigo comunista. Em matéria publicada na

edição de 15 de abril de 1962 - número 1131- na Doutrina Social da Igreja, ele postula:

[...] a Igreja não se contenta com reprovar a doutrina comunista, mas apresenta também o seu programa construtor. Ensina que a igualdade, tão preconizada pelos comunistas, é uma utopia. A própria razão nos demonstra claramente que é uma quimera. A natureza deu a uns uma inteligência fulgurante, enquanto que outros não têm gosto e aptidão para estudar, outros têm boa saúde enquanto que outros se arrastam a vida toda doentes.

Em outra edição, em matéria sob o título A reforma agrária e os inimigos,

o periódico afirma:

[...] a economia nacional sempre repousou sobre os ombros do agricultor, e é mais do que tempo de redistribuirmos um pouco daquele bem-estar que ele criou para as outras classes da nação. A efetivação da Reforma Agrária é dever de justiça para com a classe rural. Bispos, sacerdotes, governantes [...] gente de todas as classes trabalham e lutam pela reforma rural. Assinalamos aqui alguns dos movimentos ruralistas, criados em benefício do campesinato: Aliança Libertadora da Família. Agrária de Pernambuco, Liga Camponesa Católica das Alagoas, etc. Isso sem esquecermos a importantíssima atividade da Juventude Agrária Católica e o Movimento de Educação de Base. Todas essas associações rurais inspiram-se nos princípios cristãos e democráticos, e tem apoio da Hierarquia Católica. Desejam a Reforma Agrária o mais cedo possível, mas dentro da lei e sem atropelos e violência criminosa. Do outro lado, estão as ligas do Francisco Julião, já denunciadas como instrumento de agitação e de propaganda comunista. Dentro delas existem, com certeza, homens bem intencionados, mas seus dirigentes pregam a violência, já que ousam fazer ameaças até a governos e proprietários. Querem uma Reforma Agrária nos moldes cubanos e marxistas (Santuário de São Francisco – 1 de junho de 1961, Nº 1.089).

Curiosamente, muito para além do propósito da Diocese, o Santuário

oportunizou aos irmãos Ozório Lopes um amadurecimento político. Fortaleceu neles

a necessidade de avançar com o movimento de criar uma entidade de classe para

os campesinos da sua região.

79

Também foi, ironicamente, através desse periódico que os irmãos Ozório

Lopes se depararam com as primeiras referências ideológicas das Ligas

Camponesas. Isso porque logo as associaram aos trabalhos por eles desenvolvidos

em Campo Maior. Do mesmo modo, alimentaram um ideal calcado na relação de

solidariedade e equidade de direito para todos e, com isso, também desenvolveram

o que eles autodenominaram de comunismo rústico.

Sobre o processo de apropriação levado a efeito pelo leitor, sabe-se que

se concretiza fora do alcance de quem produz o texto, a matéria ou qualquer notícia

impressa que circule para além de sua origem matricial. Nesse sentido, o

pesquisador se apoiou nos ensinamentos de Chartier, que argumenta: “abordar a

leitura é, portanto, considerar, conjuntamente, a irredutível liberdade dos leitores e

os condicionantes que pretendem refreá-la” (CHARTIER,1990, p. 123).

Uma boa operação para o historiador talvez seja imaginar que uma das

matérias apresentadas pelo jornalzinho tenha sido esta publicada no dia 13 de

setembro de 1961, com o título: Derrota da política agrária comunista.

É vergonhoso e desumano usar o homem como instrumento de lucro e só estimulá-lo na proporção do vigor de seus braços, como faz o comunismo. A Igreja não se contenta em reprovar a doutrina comunista, mas apresenta o seu programa construtor.

As ligas falavam em nome de uma ampla e diversificada categoria de

trabalhadores que incluía foreiros, meeiros, arrendatários e até pequenos

proprietários, como era o caso de Luiz Edwiges, que produziam uma cultura de

subsistência e comercializavam os excedentes produzidos normalmente em terras

alheias. Assim, convém lembrar que a utilização do termo camponês parece ter sido

fator de autoidentificação e de unidade para designar a categoria tão ampla que

lidava no campo em oposição a um adversário comum, politicamente denominado

pelas lideranças como “o latifúndio improdutivo e espoliante”.

A propósito, Martins (1995, p. 22), reportando-se a tal designação, diz que

“a palavra camponês não designa apenas seu nome, mas também o seu lugar

social, não apenas o espaço geográfico, no campo em contraposição à povoação ou

à cidade, mas na estrutura da sociedade”.

80

Edwiges concebia a grande propriedade, pertencente ao

latifundiário, como a razão maior da servidão do homem livre do campo. Ele dizia

que a história do homem livre do interior, o campesino agregado do dono da terra,

era a história das pessoas abandonadas – esquecidas pelos poderes constituídos –

e reféns nas mãos dos latifundiários que diariamente eram obrigados a uma lida

terrível.

Ele lembra que viviam sob o “arbítrio dos poderosos” e não tinham “um

pedaço de terra que (...) e pudessem chamar de seu”. Era um problema político e

era também um grave problema social; moravam em casebres, não tinham escola,

alimentação e nem incentivos para o trabalho. Por isso, carregavam, inclusive, a

pecha de indolentes e eram chamados pelos donos da terra, invariavelmente, de

preguiçosos.

Sua luta foi sempre no sentido da justiça social, da redução da situação

de miséria que assolava seus pares. Edwiges acreditava na igualdade e na

legalidade e se protegia utilizando a Constituição como escudo. Assim inspirado,

repetia muito a ideia da igualdade retirada da Carta Magna, e citava o artigo 141,

preconizando o princípio de que “todos somos iguais perante a lei”. E arrematava,

numa clara demonstração de seu papel social de defensor de uma sociedade mais

justa e mais igual. Arguia também o artigo 147 daquele mesmo estatuto jurídico,

onde reza que “o uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social.” Ele

sabia que a justiça, com base na observação da lei, podia promover a justa

distribuição da terra, com igual oportunidade para todos.

Luiz Edwirges era um homem de poucas letras o que leva o pesquisador

a acreditar que tamanho conhecimento da constituição e também sobre esses

aspectos que versavam sobre a igualdade de todos perante a lei e da supremacia

do interesse social coletivo sobre o interesse individual, se devia a convivência com

irmão Ribamar Lopes, homem consagrado por todos e particular mente por Luiz

como a “chave” da família e do lugar e também por ser um verdadeiro intelectual

orgânico operando na região de Matinhos.

A propósito, muito esclarecedor sobre a questão dos direitos positivados

nos ordenamentos jurídicos, Vannuchi (2009) assim se posiciona:

81

[...] a previsão legal é apenas o reconhecimento dos direitos que são inatos aos seres humanos. A intenção é adequar o ordenamento jurídico nacional para a garantia desses direitos. A incorporação desses direitos no Brasil oriunda do Poder Constituinte visa orientar as ações do Poder Executivo e as interpretações do Poder Judiciário para a efetiva promoção (Vannuchi. p. 2009).

Nesse mesmo sentido, Bobbio (1996) esclarece que a igualdade

somente se constitui como valor quando situada num contexto político. Assim,

pode ser inspiradora de filosofias, ideologias e lutas que se explicam pelo fato

de que nas principais situações em que ela é invocada ou negada, reveste-se de

um conteúdo de valor muito relevante. E ainda ressalta que esse conteúdo

valorativo, essa carga emotiva positiva que se retira do termo, não é,

necessariamente, a igualdade, mas a expressão “de todos”. Esse “todos” transporta

um significado espinhoso e revolucionário, que se contrapõe a uma realidade em

que poucos têm acesso e controle dos bens e dos direitos dos quais a maioria é

privada.

Desse ponto, emergiu a voz consciente do ativista de Matinhos. Edwiges

olhava para seus pares e somente enxergava miséria, doença, desigualdade, tudo

exatamente diferente daquilo que preconizava a Constituição. Na verdade, ele a

conduzia debaixo do braço para todos os lugares onde andava. Nas reuniões, em

suas falas, Edwiges então perguntava:

Foi sempre assim? Até quando? Quem pode mudar isso? Tem jeito? Deus deseja isso para seus filhos? Por que alguns têm tanta terra e outros não possuem terra nenhuma? Por que a minoria da cidade e uns poucos do campo mandam mais que a maioria do campo? Por que a constituição fala em igualdade de direitos? Onde tá essa igualdade?

Edwiges é daquele tipo de homem que acredita ter a missão de apoiar

sempre a causa de seus semelhantes que era também a sua, e isso era muito claro

nele. Entretanto, nem mesmo ele sabe explicar a origem desse comportamento. Em

entrevista concedida a esse pesquisador sobre sua luta, sua participação na liga, no

sindicato e até mesmo nas inúmeras visitas que fizera à Assembléia Legislativa e ao

Palácio do Governo para falar em nome dos agricultores de sua região, ele assim se

explicou:

82

Eu nunca gostei de injustiça. Não aguentava ver um homem batendo num animal, num burro pra andar pra frente quando ele empancava; quanto mais assistir um dono de terra igualzim a mim correr com um companheiro, gritar com ele, humilhar. Isso era mesmo que me dar uma facada. Acho que aprendi essas coisas com a mamãe. Ela reclamava até com o papai quando ele puxava a orelha de qualquer um de nois. Também o padre e o professor, mestre Zumba, falavam que nois era tudo irmão e que ninguém era maior ou melhor do que os outros. Agora, o que eu nunca esqueci mesmo foi escutar a mamãe dizendo que nois tinha que tomar as dor de qualquer um que tivesse sendo pisoteado por outro. Ah, isso eu nunca esqueci. Acho que foi assim que eu aprendi a defender os outros, até mais do que a mim mesmo.

Movidos pela dor do sofrimento e pela consciência de justiça, os

integrantes da liga, sobretudo os nominados linha de frente, foram discursivamente

(táticas) campeando, catequizando outros companheiros, trabalhando-os ombro a

ombro, de modo a fazer com que eles entendessem que juntos podiam promover as

mudanças que todos tanto almejavam: transformar gente trabalhadora, explorada,

ignorada e por isso invisível aos olhos das autoridades em cidadãos de fato

detentores de direitos. Direitos como possuir uma gleba de terra para plantar, deixar

de pagar o imposto da renda sobre a terra, de poder frequentar livremente sem

pressão a missa e outros credos, ter um dia de descanso e escola para seus filhos,

dentre outros. Essas eram conquistas comuns a muitos brasileiros, mas que no

Piauí parecia uma realidade ainda distante.

Noções sobre Constituição, direitos, direitos humanos, justiça, igualdade

povoavam há muito o imaginário dos irmãos Ozório Lopes. Talvez a consciência

viesse mesmo da experiência vivida. Experiência cotidiana de pedir e não ganhar,

de reclamar e não ver mudanças concretas, de gritar e ninguém ouvir e,

principalmente, da certeza de que a verdadeira mudança, aquela que traria melhoria

real de vida para toda a classe de campesinos, bem sabiam eles que jamais

chegaria pelas autoridades políticas e menos ainda pelos patrões latifundiários, que

na lembrança de Edwiges, assim se revelavam:

Os donos das terras se mostravam diferentes em três épocas do ano: na Semana Santa, nas eleições e no Natal. Acho que eles ficavam assim porque queriam alguma coisa. De Deus, talvez o perdão dos pecados. E dos homens, de nóis, o voto nas eleição, só podia ser.

83

Edwiges sabia que embora o direito à igualdade figurasse na Constituição

como uma garantia, na prática era uma espécie de promessa, pois as leis e o

próprio direito são sempre um campo de disputas e as vantagens auferidas pelas

partes dependem da luta, da correlação de forças e ele compreendia a partir dos

muitos momentos de tensão já vividos a necessidade de lutar, pois como ele próprio

dizia: “ fazer a defesa dos pobres, pois a dos ricos já está feita”. Luiz Edwiges sabia

que a necessidade só é revolucionária quando consegue mobilizar as pessoas.

1.4 Terra: sinal de riqueza e de pobreza contra a renda e a sombra da casa

Esta cova em que estás com palmos medida // É a conta menor Que tiveste em vida. //

É de bom tamanho nem largo nem fundo.// É a parte que te cabe deste latifúndio. //

Não é cova grande, é cova medida, // É a terra que querias ver dividida.

(Funeral de um lavrador, JOÃO CABRAL DE MELO NETO).

A terra pode significar riqueza e pobreza, vida ou morte, poder político,

posição social ou marginalização. Para cada pessoa ou grupo social, ela tem um

valor (GANCHO, 1955 p. 5). A história da luta pela terra, sua organização e os

conflitos dela advindos, na maioria das vezes, não têm sido analisados do ponto de

vista da posse e da efetiva ocupação por parte daqueles que retiram dela o seu

próprio sustento e de toda sua família.

Como estratégia para contornar a legalidade da propriedade, os posseiros

introduziram a chamada legalidade alternativa da posse, caminho a partir do qual

meeiros, foreiros e arrendatários, que produziam para a subsistência, justificavam as

ocupações e a luta pela permanência, mesmo que precária, na terra como direito

sagrado de plantar e colher. Estes, em regra, organizavam-se em torno de princípios

que exaltavam sobremaneira a posse e o uso produtivo da terra, com fundamento,

muitas vezes, na história de vida, na qual a terra passava de pai para filho, conforme

se pode depreender da fala do agricultor Pedro Celestino, morador do povoado

Floresta, região de Campo Maior:

84

(...) quando eu me entendi por gente minha família toda já morava aqui nesse lugar. Meus tios, meus irmãos, meus parentes tudim. Só depois de grande é que eu vim, a saber, que essas terras era da família dos Gayoso. Mais meu avô morou aqui e meu pai nasceu e morreu aqui e agora eu. Nós fazia roça e criava os animais solto, correndo pra todo lado.

Em outra, na própria Bíblia, que decretava: “A posse da terra tem limites:

Deus é o único dono da terra e as pessoas são simples administradores. (Lev. 25.

23, Apud Santuário de São Francisco Ano 47, 01.06.1961, Ed. 1089)”.

Ou ainda a partir do discurso da Igreja que, por meio de seus clérigos e

agentes pastorais mais progressistas, enxergava no Evangelho um projeto, um

canal, um instrumento revolucionário de transformação das condições sociais

vigentes.

Nessa perspectiva, os movimentos sociais que se constituíram com

fundamento em uma série de reivindicações relativas aos problemas que envolviam

os camponeses, tiveram durante os seus processos de formação e amadurecimento

o apoio efetivo e até patrocínio, quando não da Igreja como instituição, pelo menos

do segmento ligado à chamada esquerda católica ou, em última análise, da ação

isolada de vigários e agentes pastorais que assumiam a causa camponesa por

missão ou por obediência à Doutrina Social da Igreja.

No Piauí, como de resto no país inteiro, a Igreja Católica exerceu no meio

rural, uma atuação difusa. Essa atuação variava desde o apoio aberto aos

trabalhadores, fomentando sua organização e luta, até a formação de aliança com

os latifundiários. Essa posição difusa fica evidente na fala do sociólogo Antônio José

Medeiros, quando em entrevista concedida a este pesquisador, em 20 de março de

2015, afirmou:

(...) aqui, nós encontramos de tudo: em União que é minha terra, o padre Izaque fazia um trabalho. Em Campo Maior o monsenhor Mateus fazia um trabalho, já em Angical e Regeneração o Padre Borges que era um reacionário ficava o tempo todo ao lado dos grandes proprietários. Em Amarante, o padre Davi também mobilizava os agricultores e em Miguel Alves, aqui próximo a União, o padre Josino, por várias vezes, entrou em conflito com o padre Izaque que também andava por aquelas bandas organizando trabalhadores.

85

Nessa concepção, percebe-se que as ocupações, bem como a resistência

camponesa em torno da terra no Piauí, possibilitaram não somente as condições

para a formação das ligas, mas ofereceram também a munição necessária para que

essas mesmas entidades dessem visibilidade às injustas e degradantes condições

de vida e trabalho daqueles que tinham a terra como algo sagrado e, talvez para a

maioria deles, o único meio de sobrevivência.

Ao observar por esse prisma, pode-se compreender que a classe, como

postula Thompson (1987, p.10) emerge enquanto categoria histórica permeada em

meio a uma formação social e cultural. Enquanto tal, conforme esse teórico, a classe é

situada como uma unidade coletiva, um sujeito que se constrói no seu fazer-se. Essa

unidade coletiva, ou seja, a classe se insurge das correlações de forças instauradas

entre grupos, normalmente em tensão. Ela se faz presente quando os indivíduos

adquirem proximidades ao se reconhecerem em meio a uma mesma situação de

exploração e expropriação e, numa tentativa de ceifar a malha fina que subjuga e

encobre tal relação, articulam objetivos comuns contra os grupos que impõem certo

exercício repressivo.

No Piauí, as relações entre lavradores e os proprietários geralmente se

faziam por intermédio de contratos verbais de arrendamentos de terra, nos quais

eram pactuados aspectos como duração da permanência, as obrigações do lavrador

para com os proprietários, a possibilidade de criação de algum tipo de animal, entre

outros pontos acordados.

Embora fossem muitos os deveres e poucos os direitos, dois desses

deveres: o pagamento da renda e obrigação de realizar a sombra da casa eram, de

longe, os principais tormentos dos agricultores da região dos carnaubais. Nesses

versos recitados pelo lavrador Raimundo Edwiges, que exerceu cargos na diretoria

da ALTACAM, bem se pode aferir como era grande o sofrimento e a angústia diante

dessas obrigações:

Quem na terra mora // E dela depende, // Pra si não tira nada, // Vive só de pagar renda.// Lutar nós luta muito, // Só não vê o resultado. // O que mais nois quer, // É

morar sem ser agregado. // Tem coisa que vem de Deus, // Outra vem do cão, // Uma é a água fria, // A outra é o cambão. // Tem hora que falta força, // Bate uma

tristeza danada. // Temos que rezar pro santo, // Pra dar força na jornada.

86

Além da renda e do cambão9, mencionados nos versos acima, existiam

outras obrigações que agravavam ainda mais a situação de penúria e pobreza

extrema na qual vivia a quase totalidade dos agricultores do estado. Para a maioria

dos agregados o problema da renda estava vinculado aos baixos níveis de colheita,

especialmente em épocas de seca, o que redundava em dívidas ou

comprometimento da produção futura.

O pesquisador do IBGE, Joaquim Luiz Cantuária, em levantamento

realizado no ano de 1958, ano identificado com um dos mais secos da década,

assim caracteriza a situação anteriormente identificada:

(...) eu lembro que visitei a região da caatinga de baixo mais ou menos pelo mês de agosto. Era uma fome de gritar, entrei numa casa que não tinha nada, só o pilão vazio e o fogo apagado. Um sol de rachar e muito sofrimento. Nem uma esperança eu vi nos olhos daquela família.

Outro problema que afetava a vida dos trabalhadores diz respeito à lida

diária com as bagas de coco do babaçu e do tucum. Duas palmeiras nativas

intocáveis, pois era monopólio dos fazendeiros proprietários que obrigavam os

arrendatários a colher – extrair as bagas, partindo os cocos e a vendê-los a preços

irrisórios, geralmente menores do que os praticados em outras fazendas da região,

somente para os donos da terra onde aqueles eram agregados e sem receber

qualquer valor em moeda corrente, apenas produtos. Essa forma de pagamento

limitava ainda mais a liberdade dos agregados e isso os oprimia bastante.

Como se percebe, a rotina do trabalhador rural agregado se realizava

entre a criação de alguns animais, como cabras e galinhas e a obrigação de fazer as

roças, geralmente duas. Ambas na propriedade do fazendeiro que o agregava. Uma

para seu próprio sustento, com o cultivo de feijão, milho, mandioca e arroz; e outra

para o proprietário como forma parcial de pagamento pelo direito de morar e cultivar

a terra resultante de um contrato de arrendamento.

Na lida de suas roças, os lavradores contavam com o apoio de toda

a família, envolvendo mulheres, filhos, irmãos e, uma vez ou outra, com ajuda de

_____________________ 9 Obrigação de trabalhar gratuitamente por dois ou três dias na semana na propriedade do

fazendeiro. Espécie de herança “Feudal”. No Piauí poderia ser realizado pelo agricultor ou dependente.

87

outros campesinos, agregados provenientes de outras fazendas, constituindo

mutirões de solidariedade. Para a feitura da roça dos proprietários, os agricultores

normalmente utilizavam os dias em que não estavam realizando alguma atividade,

como broca, capina ou mesmo a colheita em suas próprias lavouras.

Nos dias em que se encontravam desobrigados das lidas de suas roças,

eles estavam cortando, fazendo a broca, a limpeza e o plantio das roças dos

proprietários, o chamado cambão. Além disso, esses agricultores ainda eram

forçados a realizar a sombra da casa, uma espécie de limpeza do pátio da fazenda,

serviço pelo qual não recebiam nenhuma espécie de pagamento, a não ser o

almoço, geralmente cozidão de boi com pirão de farinha.

Apesar de não figurar entre as obrigações mencionadas nos contratos

verbais de arrendamento das terras, o não comparecimento do agricultor ou de um

filho nos dias destinados à tarefa da sombra da casa, podia ensejar a saída dele das

terras do proprietário, além de macular a imagem do camponês como alguém que

fazia corpo mole.

Em conversa com o agricultor Antônio Simplício da localidade Puba, ele,

ao relembrar um dia desses dedicado à sombra da casa, falou que era o dia do

batizado de sua filha mais nova. Na tentativa de reconstituir aquela situação, ele

assim se expressou:

Moço, foi um dia pra mais nunca. Lembro como se fosse hoje. Ia ser o batizado de minha filha, do menino do compadre Manoel e parece que também era o batizado da Francisquinha, filha da comadre Raimunda, lá da Lagoa dos Corró. O leitão já tava preso para ficar limpo, as galinhas também. Naquele dia, o menino do meu vizinho, compadre Pedro, amanheceu lá em casa. Fizemos o fogo para pelar o leitão, a mulher cuidando das galinhas, quando foi lá pelas 6 ou 7 horas o vaqueiro do proprietário chegou num cavalo gritando: – O homi mandou chamar para fazer a sombra da casa. Rapaz... correu uma raiva tão grande! Mais eu pensei e disse: – Posso não. Hoje é o batizado das crianças aqui do lugar e o padre não batiza sem nóis que semos os pais. O encarregado disse: – Pois então manda teu filho mais velho que já tem sustança nos braços.

Diante das agressivas e cada vez mais frequentes investidas dos

latifundiários, constatou-se que a alternativa aparentemente mais plausível a ser

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adotada pelos camponeses para garantir e conservar o acesso à terra era a

criação da associação que já vinha sendo gestada pelos irmãos Ozório

Lopes, liderados pelo Luiz Edwiges, e recorrer aos mutirões que, embora

paliativamente, funcionavam como verdadeiras redes de proteção em relação aos

proprietários.

A tônica pautada pelo pesquisador foi a de se conduzir de forma atenta e

sempre zelosa para não confundir realidades de lugar e tempo distintos, caindo em

anacronismos e outros equívocos que desvirtuam a experiência de Matinhos.

Desse modo, pode constatar que a formação das ligas, a experiência dos

mutirões e até os pedidos de intervenção junto ao judiciário, na proteção dos

agricultores, funcionavam como estratégias e prestam-se, a partir de um

alargamento do conceito de economia moral pensado por E.P. Thompson e

ampliado pelo antropólogo J. Scott nos anos 70, para explicar essas práticas

desenvolvidas pelos agricultores, agregados e até pequenos sitiantes. Isso porque

impulsionados por referências morais, inclusive com foco no significado histórico da

terra, culturalmente livre, sem cercas e compartilhada, eles reagiam em defesa de

suas vidas como sabiam e podiam.

Pesadas as diferenças, a situação dos agricultores piauienses guardava,

em certos momentos, uma relação comum – identificação de proximidade – em torno

da manutenção da terra para cultivo familiar e para a reprodução da vida,

contrastando naquele contexto com a terra para enriquecimento dos grandes

proprietários que agiam violentamente na exploração daqueles. Muitas vezes, com a

proteção do estado, por intermédio dos delegados de polícia, braço armado sempre

à espreita a serviço dos latifundiários, tornando mais precária e sofrida a vida

daquelas famílias que já não tinham nada.

Com tantas humilhações, provavelmente os lavradores até

questionassem, argumentando que eles tinham um contrato, o qual certamente

assegurava alguns direitos que compreendiam como justos e dos quais não

desejavam abrir mão. Acredita-se que essas situações geravam espaços para

constantes negociações e forjavam um terreno próprio para criação de inúmeros

núcleos das ligas, verdadeiras redes de solidariedade que se efetivavam com

práticas cotidianas, especialmente em tempos de seca.

89

Lançando mão das lembranças de Chico Edwiges, irmão de Luiz

Edwiges, identificou-se uma dentre as muitas situações em que a prática do mutirão

funcionava como um momento de celebrar a união, fortalecer a resistência e tornar

menos sofrida a vida daqueles camponeses.

Nós nos ajudava muito. Algumas vezes, eu ia para as roças deles; outras, eles vinham para a minha, e assim todo mundo se ajudava. Nós tinha dia para o trabalho na roça, para a pega do gado e até para as festas, como batizado e festejo do santo. Também nós tirava dia para defender nossos amigos. Teve um dia que fui bater, eu mais o Luiz, na casa de um caboquim que o coisa-ruim do Gentil Alves disse que ia correr das terras, porque tinha vendido umas bagas de coco de babaçu em outra quitanda. Pra quê? Fiquei na casa do omizão o dia todo e defendemo ele, principalmente o Luiz, que tomava frente mesmo.

A essas arbitrariedades que agrediam de morte a cultura e a dignidade

daqueles homens e mulheres de carne, osso e sentimentos, os agricultores

respondiam, às vezes, com ações diretas, como ficou evidente na narrativa acima;

em outras, com ações (táticas) difusas e fragmentárias, como na realização precária

de consertos de cercas das fazendas, na execução da sombra da casa, no

cometimento deliberado de erros na marcação de animais (porcos, bode e boi) e até

na colheita de milho e feijão, furando as filas para reduzir a produção e,

consequentemente, a quantidade a ser paga na forma de renda ou meia.

Esse comportamento dos agricultores aos poucos foi sendo assimilado e

os proprietários também foram criando estratégias para combater aquilo que

chamavam de “sabedoria ou esperteza” dos agregados. Uma das primeiras medidas

adotadas foi criar a figura do apontador, uma espécie de procurador, vigia, olheiro,

que acompanhava tanto a realização dos serviços quanto a colheita e medição da

renda ou da meia, nos dias de pagamento da quantia devida por cada um dos

agregados. Alguns desses procuradores se tornaram figuras tão importantes que

tinham poderes até par aceitar ou rejeitar pedidos de agregação.

Ao que se sabe, não faltaram ocasiões em que a quantia apresentada

pelos moradores não batia com a medida cobrada pelo apontador. Isso ensejava

constantes desentendimentos, algumas deles com desfecho nas delegacias. Uma

dessas situações foi narrada pelo agricultor Luiz Edite que, com riquezas de

detalhes, assim descreveu o episódio:

90

Teve um dia, num me lembro bem se foi o cumpade Raimundo ou foi o Zeca lá dos Corró... eu sei que um deles levou os legume e disse lá pro Chicão, que era o apontador, que aquele tanto que ele tava cobrando tava errado; que ele não ia dá todo o legume dele e ficar sem nada. O Chicão disse que tava só fazendo a obrigação dele. Foi um bate boca danado e eles tudim, muié, filho e mais outras pessoas foram até o delegado. Tiveram por lá e foi tempo. Até que o delegado, um homem até jeitoso com agente que era agregado, disse lá um tanto de coisa e a confusão acabou. Isso era rojão que acontecia muito.

Situações, como a narrada acima, eram relativamente comuns revelando

que, apesar de ocuparem praticamente as mesmas terras, proprietários e agregados

viviam, embora não em todos os casos, um clima constante de tensão. Essas

contendas ao tempo em que revelavam uma nova postura politica dos moradores-

agregados em relação aos proprietários, também simbolizavam o desdobramento

de todo esse processo de tensões, a criação e expansão para algumas localidades,

de núcleos das ligas, instrumento que reforçaria a luta diante dos abusos cometidos

pelos apontadores ou encarregados de fiscalizar as roças e cobrar a renda e outras

obrigações. Era a experiência forjada na luta que recriava as táticas e estratégias de

resistência.

Possivelmente, a família Ozório Lopes tivesse a percepção que a luta

contra o latifúndio, a renda e tudo que tivesse ligado a essa “praga”, fosse ao

mesmo tempo a luta em favor da expansão da cidadania, contra a pobreza absoluta

que marcava a cara, a barriga e a cabeça de todos os seus companheiros.

Para Luiz Edwiges, a lei que deveria assegurar a igualdade de todos,

acima do poder dos latifundiários, do poder privado, algo a ser respeitado e

valorizado, apresentava-se apenas como um instrumento que não gerava justiça.

Nessas circunstâncias, cabia a ele, como “representante dos pequenos”, lutar com

todas as armas possíveis contra o latifúndio, inclusive ocupando terras e evitando

que companheiros fossem expulsos de outras. Era ele e toda a força de sua voz

contra o latifúndio e todos os seus efeitos danosos.

Luiz Edwiges se mostrava um homem de fé e muito otimista. Acreditava

que, assim como o governo do Presidente Goulart, havia legalizado os sindicatos,

embora depois de muita luta, também ele e todos os seus companheiros

conseguiriam superar algumas daquelas situações e problemas contra os quais

91

lutavam bravamente. Ver o custo do arrendamento e da parceria baixar, o crédito

chegar para o pequeno agricultor e, finalmente, ter liberdade para organizar os

camponeses e ver o sagrado direito à terra respeitado, representava o cumprimento

de uma missão para aquele homem simples, de fibra, aguerrido e muito

comprometido com sua classe. Acreditar que a necessidade não tem lei, mas que

faz a lei, talvez fosse sua principal inspiração.

1.5 A luta pela terra no Brasil e nos Carnaubais

Em tempos diversos, o homem do campo no mais das vezes procurou

criar uma cultura de resistência e um exercício reivindicatório referente aos seus

direitos em relação à terra, plano no qual sua lida, via de regra, se fez. Nesse

intento, ele se aproxima de seus pares formando corpos coletivos, nos quais irá

experimentar situações cotidianas divididas com eles, compartilhando, assim, sua

gama de vivência e lutas por valores e questões em comum. É essa experiência

coletiva que os sujeitos irão constituir aquilo que E.P. Thompson (1981) postulou

como classe.

O autor de tal postulado defende que a classe, enquanto categoria,

emerge sempre a partir de um contexto histórico. O seu argumento é o de que ela é

permeada em meio a uma formação social e cultural. Por isso, segundo ele, a classe

é situada como uma unidade coletiva, um sujeito que se constrói em um fazer-se.

Um fazer-se que nasce das relações de força instauradas entre grupos em luta.

Para o autor, ela se faz presente quando os indivíduos adquirem

proximidades ao se reconhecerem em meio a uma situação de exploração e

expropriação. Assim, esses indivíduos, numa tentativa de ceifar a malha fina que

subjuga e encobre tal relação, articulam objetivos comuns contra os grupos que lhes

impõem certos exercícios repressivos.

Essa foi a trajetória que se deu com os trabalhadores rurais da fazenda

Matinhos. Foi Luiz Edwiges, com a sua vivacidade e tenaz determinação, quem os

fez próximos, ativos e críticos de si e da situação, possibilitando-os a se

reconhecerem vítimas de uma situação histórica de exploração e expropriação por

parte dos patrões detentores das terras que os agregavam.

92

Entretanto, faz-se oportuno dizer que, estranhamente, há quem não veja

como exitoso o movimento dos camponeses do Brasil. Dentre essas posições, está

a de Caio Prado Júnior. Para ele, o camponês de então era totalmente desprovido

de ação política, principalmente as de natureza transformadoras, as revolucionárias:

Assim como ocorreu com os escravos que, apesar do considerável número, não formavam uma massa coesa e, por isso, representava um papel político insignificante, o mesmo pode ser dito da população livre das camadas inferiores, pois não atuavam sobre elas fatores capazes de lhes dar coesão social e possibilidade de uma eficiente atuação política (PRADO JÚNIOR. 1987, p. 68).

Mais à frente, contrapondo-se a essa posição, o pesquisador –

entendendo-a como contextualizadamente deslocada e signatária de modelos

prontos – fará oportunamente a narrativa, de modo mais detalhado, do processo de

organização exitosa dos trabalhadores rurais, liderados por Luiz Edwiges, que

resultou, como fruto da experiência de luta, na criação da Liga Camponesa de

Matinhos, no interior de Campo Maior, município do Piauí. Isso vem demonstrar que

a visão de Prado Júnior se mostra torta e não traduz a realidade vivida no Piauí.

Embora a relação entre o homem e a terra remonte a tempos longínquos

– a terra sempre se configurou como principal meio de produção de alimentos –, a

origem e a evolução da propriedade é ainda um tema bastante polêmico.

Não há consenso acerca da questão. O que se tem é apenas um conjunto

de teorias, como pode ser entendido das palavras de Clóvis Araújo (2005, p. 43):

(...) não há consenso entre os estudiosos no tocante à existência ou inexistência da propriedade em toda a história da sociedade humana. Discute-se se a propriedade é um direito natural ou um fenômeno humano, tendo sido intenso o debate, principalmente, entre jus-naturalistas e positivistas.

Varella (1998, p. 23) concorda com Clóvis Araújo sobre a inexistência de

consenso em relação à origem da propriedade; entretanto, assume o entendimento

de que a propriedade é um fenômeno social, uma intervenção humana

provavelmente oriunda dos primeiros cercamentos e não um direito natural.

Atribuindo ao debate jurídico um plano secundário, mirando

principalmente no fenômeno histórico dos cercamentos, fica configurado que tal

93

fenômeno gerou uma situação paradoxal, visto que coloca em lados opostos os

detentores, os ditos proprietários, permitindo a eles o uso exclusivo da terra e a

garantia do sustento alimentar e político; e, do outro lado, legava àqueles que teriam

ficado fora do conjunto da relação familiar uma condição de banimento social e

sujeição política.

Ampliando as fronteiras do debate em torno da origem, evolução e função

social da propriedade, o pesquisador segue e amplia o pensamento de Carlos

Frederico Marés (2003, 242-256), para quem a função social não é apenas da

propriedade; mas também da terra:

Na realidade, quem cumpre a função social não é a propriedade, que é um conceito, uma abstração, mas a terra, mesmo quando não alterada antropicamente, e a ação humana ao intervir na terra, independentemente do título de propriedade que o Direito ou Estado lhe outorguem. Por isso, a função social é relativa ao bem e ao seu uso, e não ao direito. A disfunção social ou violação se dá quando não a um uso humano, seja a proprietário legitimado pelo sistema, seja por ocupante não legitimado.

Nesse sentido, pensando a função social da propriedade ou da terra, em

qualquer das situações, essa nova forma de interpretar a propriedade se constitui

numa revolução e num horizonte para as lutas sociais por acesso à terra, pelo direito

de propriedade e por uma reforma agrária ampla, profunda e que transformasse

para melhor a vida das pessoas.

No Brasil, o conflito pela terra é manifesto violento desde que os

invasores portugueses aportaram por aqui. No contexto da dita colonização, já nos

seus primórdios, invasores dominadores e nativos dominados travaram uma

sangrenta luta pela posse, permanência e exploração da terra. Os invasores

europeus autoproclamados “mais civilizados”, pela força de suas armas, saíram

vitoriosos.

A partir desse ponto, os dois lados vão protagonizar uma história de luta

pela terra que se apresentará agressiva e com marcos cronológicos diversos. Baldez

(1997, p. 75) entende que essa luta inicia com os quilombos, pois, a luta dos negros

significou não só o fim de um cruel sistema, mas também “a procura de um espaço

de organização, produção e preservação da identidade cultural do negro”.

94

Ainda conforme esse autor, na luta pela terra, deve-se levar em conta

também que os embates pela reforma agrária sempre se configuraram gênero de

primeira grandeza. Entretanto, eles somente ganharam pujança em termos de força

como proposta possível a partir da década de 50, do século passado, através das

Ligas Camponesas, principalmente no Nordeste, que expressavam intensa

insatisfação com a ordem e com as estruturas vigentes no Brasil. O pico de

intensidade ocorre entre 1955 e 1964, período que corresponde a mais profunda

crise do modelo politico apelidado por certos campos da historiografia como

populismo e às vésperas do golpe civil-militar.

Muito antes dessa fase, ainda nos primórdios da colonização portuguesa,

já se assistiu à preparação da – ainda presente e aviltante – concentração fundiária.

Foi quando o Reino de Portugal iniciou um particular processo de concessão de

extensas faixas de terras a perder de vista. Esse processo de concentração de

terras aprofundou-se ainda na primeira metade do século XVI. A partir de então, até

a primeira metade do século XIX, mais precisamente 1850, o Estado português

desenvolveu, nas terras de sua mais rica e principal colônia, o modelo de

exclusividade sobre a propriedade, ou seja, todas as terras pertenciam à Metrópole.

Todavia, levada pela crescente necessidade de capitais para aplicar e

desenvolver suas atividades econômicas, todas movidas pelo braço escravo, a Corte

passou a adotar o modelo de concessões de uso com direito de transferência de

posse, isto é, apesar dos beneficiados pela Corte terem direito de explorar a terra e

repassar tais direitos a seus herdeiros, não existia a possibilidade de negociar, ou

seja, a terra não era ainda tratada como mercadoria.

A regulação em lei, como se percebe, extingue a posse como forma de

aquisição da terra, tornando válida somente a compra e a venda. Tal medida retirou

do trabalhador, do homem simples, a possibilidade de acesso à terra. Reforça-se,

assim, o poder dos latifundiários ao tornar ilegais as posses dos pequenos

produtores.

Outro momento na transitoriedade entre o trabalho escravo e o trabalho

livre se deu com a chegada em grandes levas de imigrantes, principalmente

europeus, que passaram a trabalhar nas lavouras de café do Rio e de São Paulo no

sistema de parceria, base do colonato brasileiro. Sobre a Lei de Terras e o próprio

Direito Agrário, no tocante ao reconhecimento da posse, Raimundo Faoro assim se

posiciona:

95

[...] daí por diante, em lugar dos favores do poder público, a terra só se adquire por herança, pela doação, pela compra e, sobretudo, pela ocupação – a posse, transmissível por sucessão e inalienável pela compra e venda, isso é uma inovação.” (FAORO, 2000, p. 408).

O que se fez com essa medida, que já conjecturava o processo de

“libertação” dos escravos, foi libertar o escravo para escravizar o acesso à terra,

impossibilitando que a maioria de trabalhadores tivesse possibilidade de algum

benefício ou sobrevivência.

Em 1891, foi instituída a lei que aprovava a emissão de propriedade por parte dos Estados e não mais como função da união. Isso demonstra não só o desinteresse sobre a questão (terra) como também a omissão da Federação em relação à estrutura fundiária da nação (SILVA,1997 p 67/68)

Depois da Primeira Guerra Mundial, o contingente de camponeses pobres

que migravam para o Brasil, desde o fim do tráfico de escravos, foi

progressivamente reduzido até ser interrompido. Assim, nesse contexto, a

combinação de imigrantes empobrecidos e a população de mestiços, formada ao

longo de quatro séculos, após a invasão – “descobrimento” –, e que não se

submeteu ao trabalho escravo nem tinha acesso à propriedade, em razão,

principalmente, da lei de terras, constituirá o campesinato brasileiro.

É importante frisar que a partir de 1930, com a crise do modelo

agroexportador, ascende ao poder Getúlio Vargas, que inicia um novo modelo

econômico. Esse modelo identificado como industrial tardio, apesar de financiado

em grande parte pelo capital internacional, ainda mantinha estreitas relações com a

velha oligarquia rural, da qual, inclusive, emergia parte da nova elite industrial. No

campo político, a composição de Vargas, que permitia a sua governabilidade, não

era das melhores; de tendência fascista, impregnada pelas velhas oligarquias e

fazendo uso da violência como método banal a fim de manter a ordem e o sossego

público, estava aquém do que pode se esperar de um governo para todos.

A partir do final dos anos 50 e, de modo mais consistente e substancial

nos primeiros anos da década 60, mesmo assim, com as raízes fincadas nas bases

liberais que forjaram a Constituição de 1946, o Brasil produziu um intenso debate

sobre Reforma Agrária. Isso foi possibilitado, em parte, por essa mesma

96

Constituição, que consagrou pela primeira vez, de modo mais preciso, a discussão

sobre a função social da propriedade, isso equivale a dizer que, a partir de então, a

propriedade estará tutelada pela Carta Magna e os seus proprietários devem se

resignar com o ônus social de tal direito.

Embora não se possa negar que a invenção inovadora da função social

da propriedade foi, em parte, triunfo das pressões sociais, de articulações do campo

progressista – ligas, sindicatos, partidos políticos e setores da Igreja Católica, é

preciso reconhecer também que esses avanços não impactarão positivamente na

vida dos trabalhadores, pelo menos enquanto o aparato estatal em suas diversas

instâncias ainda se encontra sobre o controle de aliados dos latifundiários. Tal

inovação jurídica acaba se limitando ao simbolismo de sua existência, de legitimador

de um sistema excludente.

A prova dessa situação é que, mesmo com alguns poucos avanços, depois

de meio século de existência da função social da propriedade no ordenamento

jurídico brasileiro, o país continua com inaceitáveis níveis de concentração fundiária.

O Piauí e o Maranhão são exemplos vivos e presentes dessa concentração.

Em matéria publicada no Portal O Dia, de 16/02/2009 sobre a questão

fundiária no Estado, o superintendente estadual do INCRA, assim se manifestou:

“Especialmente na região sul do Piauí, há uma nuvem “preta” pairando sobre os registros e domínios de imóveis. Na sanha por adquirir terras, falsificam-se documentos de propriedade e expulsam antigos moradores”. Ainda na mesma matéria a Comissão Pastoral da Terra apresenta os seguintes dados estatísticos sobre a concentração no Estado. “62,4% da área total dos imóveis rurais do país são improdutivos. No Piauí esse percentual chega a 49,54% de acordo com os dados do INCRA”.

Ainda segundo o jornal:

“No Piauí 310 imóveis rurais estão com o cadastro cancelado por suspeitas de fraudes na cadeia dominial de posse. A área é estimada em mais 4 milhões de hectares. Esse número que não é real, pois certamente existem mais imóveis, representa um crescimento de 142% em relação ao ano de 2000, quando foram identificados 128 imóveis com a mesma suspeita; grilagem”.

Também em relação a esse processo de formação, continuidade e

permanência do latifúndio em nossa desigual e profundamente injusta estrutura

97

fundiária, (GALEANO, 1983, MARTINS, 2003, SILVA; MARTINS 2010) assim se

posicionam: “Esses latifúndios, que outrora dependiam da mão de obra indígena e

da importação de negros africanos agora experimenta grande crescimento à custa

de pagamento de baixos salários e péssimas condições de trabalho”.

Assim, como protagonista desse debate, destacou-se a ala progressista

da Igreja, alimentada pelas decisões do Concílio Vaticano II, particularmente pelas

orientações, em 1961, da encíclica Mater Et Magister e Pacem In Terris –, que

deram um vigoroso impulso à linha do compromisso social, fomentando no Brasil o

crescente engajamento da Igreja nas questões referentes à evangelização, à luta

pelo reconhecimento do ser humano como sujeito de direitos e deveres com vida

dígna, à sindicalização rural, à educação de base no campo e, principalmente, à

reforma agrária, atividades que seriam desenvolvidas pela atuação articulada do

MER, MEB, e CEB’s, em parceria sempre que possível com o estado.

Nesse sentido, o Poder Público arrogou para si – temendo ser deslocado

do comando – as diretivas desse processo, já bastante convulsionado com a

atuação política das Ligas Camponesas. Com esse objetivo, criou a SUPRA,

promulgou o Estatuto do Trabalhador Rural, o CONSIR e, finalmente, instituiu o

Estatuto da Terra. Instrumentalizado assim, o estado acreditava ser possível atenuar

os graves problemas do campo e até, progressivamente, solucioná-los.

Para José de Souza Martins (1984), isso efetivamente não ocorreu.

Segundo ele, toda essa legislação priorizou principalmente o uso de tecnologia no

campo, sem atacar o cerne da questão que residia na concentração, no monopólio,

pois era necessário um novo modelo de redistribuição de terras. Além disso, para

ele, essa legislação era profundamente ambígua, visto que permitia, por exemplo,

manter e até modernizar com recursos públicos os antigos latifúndios e, ao mesmo

tempo, incentivar a propriedade familiar, que sempre foi desvalorizada.

A chegada dos militares ao poder em 1964 significou o mascaramento e a

invisibilização do tema da reforma agrária do debate nacional, apesar do Estatuto da

Terra (1964), os militares que se sucederam e sempre contaram com o apoio das

elites proprietárias, jamais tiveram em mente fazer qualquer mudança na estrutura

fundiária brasileira constituída desde os primórdios da colonização. Pelo contrário,

prepararam uma sofisticada legislação para criminalizar todo e qualquer movimento

social que questionasse a “nova ordem” estabelecida.

98

Passado mais de 500 anos, a luta pela terra continua. Agora, os

autoproclamados mais civilizados – grandes proprietários – sentem-se agredidos

pelas reivindicações e ocupações e, nesses embates, têm sido vitoriosos, pelo uso da

força de suas armas e de seus propalados direitos respaldados, que ainda são, num

sistema jurídico lento, caro e inacessível à maioria dos vitimados nesses ditos embates.

Fernandes (2000, p. 7) afirma ser de primeira necessidade distinguir a

luta pela terra da luta pela reforma agrária. “Primeiro, porque a luta pela terra

sempre aconteceu, com ou sem projeto de reforma agrária. Segundo, porque a luta

pela terra é feita pelos trabalhadores e na luta pela reforma agrária participam

diferentes instituições”, entre estas, igreja, sindicatos, partidos políticos. Afirma,

ainda, que a luta pela terra é anterior à luta pela reforma agrária; mas ambas

perfilam lado a lado, são interativas. “A luta pela reforma agrária contém a lula pela

terra. A luta pela terra promove a luta pela reforma agrária” (FERNANDES. 2000, p. 7).

No Brasil dos anos 50, especialmente no Nordeste, ganhou notoriedade o

movimento das Ligas Camponesas, e dos anos 80, a luta dos Sem-terra no centro-

oeste e no sul, além da luta dos seringalistas na Amazônia.

Aqui no Piauí, a Balaiada, 1838/1841, a Guerra dos Caceteiros10, 1937, e

as Ligas Camponesas, além de outros, são exemplos desse tipo de enfrentamento.

A Balaiada foi um movimento popular que teve, dentre suas causas, a

reação à ditadura de Manuel de Sousa Martins, Barão da Parnaíba. Essa rebelião,

embora tenha se iniciado no vizinho Estado do Maranhão, alcançou o território

piauiense pela região Norte, abrangendo as cidades de Parnaíba, Piracuruca,

Piripiri, dentre outras, até se estender a Campo Maior.

A Guerra dos Caceteiros foi um movimento decorrente da situação de

descaso, tradicionalmente estudado a partir de um viés religioso que não considera

o contexto histórico e a profunda ligação entre miséria e abandono dos sertanejos.

Cerca de 4 mil famílias pobres que lutavam a partir da liderança do beato José

Senhorinho pela criação de escolas, abertura de estradas, registros de terras e de

pessoas, entre outros direitos reivindicados.

_____________________ 10 Guerra dos Caceteiros ou pau de colher, movimento popular rural que alcançou dimensão

regional (Piauí e Bahia) num raio de 20km. Provocado entre outras razões pela completa ausência do poder público e exploração de homens e mulheres pobres da região com forte espiritualidade católica. Ocorreu no município de Casa Nova na Bahia e se expandiu até os municípios de Dom Inocêncio e São Raimundo Nonato, no Piauí em 1938. Foi liderado por Francisco Antonio da Silva, conhecida com “Bitozo Silva”.

99

Esse movimento – também conhecido como Pau de Colher – teve origem

em território baiano, espalhou-se por Pernambuco e alcançou as terras do Piauí. Em

solo piauiense, ocupou fazendas do sul do estado, particularmente no município de

São Raimundo Nonato. A denominação Pau de Colher se explica, provavelmente,

em razão de, na região de alcance do movimento, existir em abundância uma árvore,

cuja madeira era utilizada para o fabrico artesanal de cacetes e colheres de pau.

Em razão de ser estudado, de modo recorrente, como messiânico, esse

movimento é pouco explorado em seus aspectos históricos, não se fazendo relação

com a miséria, a pobreza e o abandono dos revoltosos com a concentração de terra

nas mãos dos grandes latifundiários da região. Ao se posicionar sobre as lutas que a

historiografia tradicional denomina de fanatismo religioso, Schlling (1979, p. 127) tem

outra análise:

Durante todos esses séculos o interior brasileiro foi cenário de lutas permanentes. Algumas assumiram o caráter definido de rebelião de escravos como a epopeia de Palmares (que revestiu quase um século) e dezenas de outros quilombos. Outras, apesar de serem apresentadas pela historiografia oficial como levantes de fanáticos religiosos, foram autênticas rebeliões camponesas, (Canudos e Contestado).

O autor não faz referência alguma, talvez por desconhecimento, ao

movimento Pau de Colher, que longe de ser levante de fanáticos, como, de modo

tradicional, tem sido pela historiografia interpretado.

Para a pesquisadora Maria Isaura Pereira de Queiroz (1976. p. 16), estes

movimentos identificados como rústicos são na verdade “uma resposta à situação

histórica de uma classe abandonada, que se mostra capaz, utilizando modelos

tradicionais ou não de passar da servidão à cooperação”.

A consideração de Queiroz se estende quando afirma que se trata de “um

campesinato que progride através da utilização dos movimentos religiosos, que,

para além desse aspecto, deve ser entendido como uma sociedade presente,

reagindo sobre estímulos internos e externos”.

No Piauí, a quase totalidade dos conflitos por terra vem de longas datas;

tem, em última análise, origem no processo de colonização. Esse processo se deu

de forma espontânea e, consequentemente, desordenada. Seus principais

100

protagonistas foram os fazendeiros, ansiosos por expandir suas propriedades, e

também os aventureiros, que não recebiam estímulo e proteção dos poderes públicos.

Sem a intervenção do poder constituído, esse processo foi efetivado à

base da violência contra tudo e todos. Igualmente foi também a exploração das

extraordinárias riquezas das regiões mineradoras, para onde agora se voltavam os

interesses das autoridades do período colonial. No Nordeste, continua a se

desenvolver, embora não mais com a mesma pujança e importância, a agro

exportação do açúcar, principalmente nas regiões litorâneas; e como

desdobramento e suporte desta, a criação de gado bovino, deslocada mais para o

interior. No Piauí, as fazendas criatórias de gado constituem uma atividade

principal.

A implantação das fazendas de gado exigia imensas faixas de terras. Isso

acarretou, já no nascedouro desse processo, a formação embrionária dos

latifúndios, surgindo desde aí os apossados detentores de terra na futura província

do Piauí.

A respeito da origem do latifúndio no Brasil, Vinhas (2011, p. 136) esclarece:

Esta concentração que leva ao latifúndio, base predominante de nossa produção agropecuária, remonta à época colonial do Brasil e conserva até hoje suas principais características. O acentuado grau de concentração da propriedade fundiária que caracteriza a generalidade da estrutura agrária brasileira é reflexo da natureza da nossa economia e resulta da formação do país desde os primórdios da colonização.

A marca da gradual e desorganizada penetração e ocupação do Piauí

evidencia que essas ditas fazendas foram instaladas dentro de um processo de

força, violência e conquista de terras de grandes mananciais, com a sumária

exterminação das nações indígenas que aqui habitavam. Esse processo de matança,

de extermínio dos índios do Piauí, foi, ironicamente, nominado de “guerra justa”.

Para Mott, (1985) o desbravamento e, consequentemente, a ocupação

das terras do Piauí tem início com Mafrense.

O germe do povoamento piauiense, que apresenta na atividade criatória o modelo dominante de ocupação daquele território, tem origem na década de 1670, quando Mafrense instalou nas margens dos rios Canindé e Piauí cerca de 30 fazendas de gado, na maioria, entregues à administração de vaqueiros (MOTT. 1985, p. 98).

101

O caráter particular da colonização foi construído com a falsa ideia de que

as relações sociais constituídas no Piauí haviam sido mais amistosas e que

apresentou reduzidas diferenças sociais. A melhor ilustração disso é a propalada

sociabilidade entre vaqueiro e fazendeiro, chegando o segundo a apadrinhar os

filhos do primeiro. Isso, na verdade, ao juízo mais criterioso, revela uma rotina

submissa tomada de terror.

A solidez das fazendas pecuárias de criações bovina, caprina e plantação

de pequenas roças de subsistências à base de feijão, milho, mandioca, dentre

outras, além do persistente combate ao índio, serviu para mascarar uma realidade

de exploração sistematicamente presente no povoamento das terras do Piauí.

Embora o processo de povoamento do Nordeste esteja vinculado ao

plantio da cana e exportação do açúcar, as terras do Piauí têm seu processo de

ocupação vinculado, como dito antes, à criação de gado e à implantação de

fazendas. Nesse sentido, não só a economia, mas toda a organização socioespacial

da futura província do Piauí será definida em razão da atividade criatória.

Outro traço marcante na formação do território piauiense foi a

manutenção, mesmo com o avanço do povoamento, de uma baixa urbanização, na

qual os núcleos urbanos que se formavam não quebravam barreiras de pequenas

povoações de populações móveis. Essa particularidade é revelada pelo vigário

Antônio Luiz Coutinho, da Vila da Mocha, que assim se expressa:

Acha-se situada essa freguesia de Nossa Senhora da Vitória no sertão do Piauí, não tem outra povoação, vila ou lugar mais que a Vila da Mocha, que consta de 60 moradores, pouco mais ou menos, e pouco ou nenhum permanente, por serem mais deles solteiros, e, se hoje, se acham nela, amanhã fazem viagem e que se avulta são os oficiais de justiça. Tem circunvizinhos alguns moradores na distância de uma légua, que tratam de algumas pequenas roças de mandiocas, milhos e arrozes, que nem a terra admite agricultura abundante (Apud NUNES. 1983, p. 35).

Além dos já citados, aspecto econômico que particulariza ainda mais a

região de Campo Maior, no Piauí, com desdobramento na formação social de sua

população foi o peso que teve a extração da cera de carnaúba, produto que se

constituiu um dos principais itens de exportação do estado no século XIX.

Comercializava-se o pó aromatizado, a cera e a palha. O tucum é outra palmeira que

102

era totalmente aproveitada: da amêndoa, produz-se óleo doméstico de uso culinário;

e da palha, fabricam-se diversos produtos artesanais como cestos, redes e cordas.

Essa paisagem caracterizava praticamente todo o Estado do Piauí, mas era marca

particular da cidade de Campo Maior, município para o qual está voltada a atenção

deste estudo.

A sede desse município foi criada através de Carta Régia em 19 de junho

de 1861, instalada depois já com o nome de Campo Maior, foi elevado à categoria

de cidade em dezembro de 1889. Desde sua fundação como vila, a economia girou

em torno da pecuária, agricultura e extrativismo. Foi na década de 1940, no entanto,

como cidade polo do atual Território dos Carnaubais, que Campo Maior alcançou

seu destaque econômico com elevados dividendos oriundos da cera de carnaúba.

A cidade tem no seu espaço geográfico os rios Jenipapo, (em cujas

margens aconteceu uma das principais batalhas do estado, durante as guerras da

Independência), Longá e o Surubim, todos temporários. De acordo com a

enciclopédia dos municípios piauienses, as principais famílias representantes de

Campo Maior na política e na economia eram, entre outras, Paz, Andrade, Pacheco,

Miranda, Melo, Lustosa, Leite, Ibiapina, Bona e Santos. Curiosamente, algumas

dessas famílias estavam no centro dos conflitos de terras na região que deram

origem as Ligas Camponesas.

O município sofreu profundas transformações ao longo de século XX. O

censo realizado no ano de 1960, período central de nossa pesquisa – informa que

Campo Maior tinha uma população de pouco menos de 60 mil habitantes, sendo que

aproximadamente 14 mil moravam na cidade e o restante, cerca de 40 mil morava

na zona rural. Desse total, apenas cinco mil do total que moravam na cidade sabiam

ler e escrever. Campo Maior tinha aproximadamente 63% da população analfabeta.

Alguns elementos particularizavam

na época Campo Maior: a Igreja Matriz e sua

representativa Praça Bona Primo tinham nas

suas circunvizinhanças os prostíbulos da

Zona do Baixo Meretrício – conhecido como

Zona Planetária em razão de as casas

que albergavam as mulheres terem nomes de

planetas: Mercúrio, Vênus, Marte, Plutão etc. – com grande variedade de atrativos

mundanos para o público masculino. Nesses lugares, a sociedade tradicional da

Fonte: Zona Planetária de Campo Maior.

103

cidade cultivava um imaginário na maioria das vezes invisível, plural, de um espaço

não apropriado para circulação familiar, conforme bem evidencia Olavo Pereira da

Silva Filho:

Na igreja e no cinema não podiam sentar no mesmo banco junto com as senhoras da cidade. Além disso, deveriam ter um vestido descente para sair à rua e até mesmo no mercado público. [...] para a mulher católica, a rua Santo Antônio era um projeto leviano de quem só pensava no dinheiro causando realmente muitos danos para a boa sociedade e a família da época. O comportamento das prostitutas não se adequava ao contexto religioso no qual estavam inseridas. A Igreja Católica mantinha certa discriminação com as mulheres. O padre Mateus chegou a tirar uma da procissão alegando que estava mal vestida e que representava um perigo aos bons costumes (2007, tomo 1, p. 56)

A propósito, por trás da Zona Planetária, frequentada pela elite campo-

maiorense, escondia-se o prostíbulo, destinado aos menos abastados da dona

Izabel, mais conhecido como Zabelão. Porca Ruiva, Foquite e Maria Zangada eram

algumas de suas frequentadoras.

Traço comum na maioria das sociedades é ter seus regramentos

assentados nos valores morais e éticos. Assim, estabelece no decorrer de uma

época, ainda que de modo implícito, o que é permitido, o que é tolerável, o que é

proibido, e o que é perigoso à sua realidade singular. Stephanov postula isso como

controle social:

Entende-se por controle social, o conjunto de meios de intervenção acionados por cada sociedade ou grupo social a fim de induzir seus membros a obedecerem às normas vigentes, desestimular os comportamento contrário e estabelecer condições de conformação. O controle social pode ser exercido de duas formas na busca do consenso através de controles externos (sanções, punições e leis), que se acionam contra indivíduos ou grupos quando estes não obedecem às normas dominantes, e internos, aqueles com os quais a sociedade procura mentalizar os indivíduos sobre suas normas, valores e metas sociais vitais para a ordem social. Ambos limitam o agir individual e coletivo da sociedade (STEPHANOV. 2001, p. 28).

Foi no interior de Campo Maior, precisamente na fazenda Matinhos, que

ocorreu a principal experiência organizativa de resistência camponesa no Estado do

Piauí entre os anos de 1958/1968, objeto central deste estudo. O fato é que no

104

Brasil e muito menos no Piauí nunca se realizou uma reforma agrária, nem nos

moldes clássicos, com caráter de distribuição de terras, como na maioria dos países

capitalistas desenvolvidos. Nunca houve preocupação verdadeira em se aliar o

desenvolvimento econômico com a melhoria de vida da população historicamente

mais pobre e marginalizada.

105

CAPÍTULO II

2 A IGREJA ENTRA EM CAMPO: ENTRE INSTITUIÇÃO CLERICAL E

AGENTE DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL; A DIFÍCIL RELAÇÃO A

PARTIR E ALÉM DO CONCÍLIO VATICANO II

2.1 Uma Igreja, vários caminhos e um único fim?

Os anos 50 e 60 do século XX são marcados no Brasil por intensas,

variadas e profundas transformações. Em relação à economia, pode-se afirmar que

o Brasil já não era mais aquele país agrícola de economia claramente

subdesenvolvida. Ao contrário, passou a ser, especialmente, na transição do

governo de Vargas para Juscelino, um país industrializado, em estágio intermediário.

Ocorre, nessa fase, o desenvolvimento e a expansão, para o campo, do chamado

capitalismo moderno.

No tocante às questões sociais, surgem novas classes. Dentre elas, a

classe média que, como se viu, apropriou-se das mais variadas atividades urbanas,

como o pequeno e o médio comércio, a indústria e até das novas funções públicas

que começavam a surgir.

Essa classe média, inclusive a brasileira, em termos conceituais, de

acordo com alguns estudiosos, é um tanto imprecisa e ainda carece de uma melhor

conceituação. A propósito, a pensadora Marilena Chauí, assim, reporta-se: “(...) uma

classe média de difícil definição sociológica, mas caracterizada por uma ideologia e

uma prática heterônomas, oscilando atrelar-se à classe dominante ou vir a reboque

da classe operária” (CHAUÍ. 2001, p. 27).

Também, assiste-se à entrada em cena do camponês, um novo sujeito

social de dentro do capitalismo e não de fora deste, como sustentam alguns.

Rosemeire Aparecida de Almeida sustenta tal premissa. Ela argumenta que “os

camponeses são ao mesmo tempo proprietários de terra e trabalhadores, acrescido

106

o fato que a organização do campesinato se funda numa relação não capitalista”

(ALMEIDA. 2003, p. 82).

No campo dos direitos sociais, efetiva-se, em 1962, durante o governo de

Jango, o regulamento da sindicalização rural; muito embora tal direito já fosse

assegurado pelo Decreto 7.038 sancionado em 10 de novembro de 1944, ainda no

governo ditatorial de Vargas.

No terreno político, é também, nessa conjuntura, que o Brasil vivencia a

pior das experiências administrativas da história republicana mais recente. A jovem

democracia sucumbe, e o país, mais uma vez, amargará nova experiência ditatorial;

agora, uma ditadura civil-militar de 21 anos, na qual direitos e garantias políticas e

sociais foram contidas, o pluripartidarismo foi exterminado, estabeleceu-se a

censura nos meios de comunicação, principalmente nos jornais, e os direitos civis

foram sufocados pelo terror da vontade dos militares apossados do poder.

Nesse cenário de transformações, insere-se também a Igreja. No Brasil,

talvez por ser um país social e culturalmente muito diversificado, também aqui a sua

inserção se dá, embora fracionadamente, no sentido de atuar mais efetivamente

junto às camadas mais pobres: os desassistidos, os mais fragilizados. Isso reflete

por outro lado, as contradições, complexidades e heterogeneidades de seu caráter

institucional. Para Guimarães (1998), esses aspectos estão presentes em toda a sua

trajetória de ser e fazer-se Igreja.

Explicar a presença de grupos e comportamentos diferentes, por vezes

antagônicos, dentro de instituições inclusive seculares, como a Igreja, não é tão

simples. Para Antônio Moser, frei e diretor-presidente da Editora Vozes, “a Igreja é

uma instituição complexa de mais de 2.000 anos, presente em muitos países, claro

que tem várias caras”. Para ele, essas caras dependem do lugar, da ala que está no

comando e da cultura em que está inserida.

Compreender, pois, a atuação da Igreja Católica no Brasil, encravada

numa realidade social, econômica e política muito diferente se pensada a partir das

várias regiões do país ou entre capital e interior, por exemplo, faz-se necessário

dimensionar as distintas concepções, bem como os diferentes papéis que compõem

o seu caráter de ser Igreja instituição clerical e ou agente social. Desse modo,

segundo postula Guimarães (1998), a Igreja aponta para um caráter social, político e

moral que, segundo ele, assim se expressa:

107

De um lado, podemos olhar a Igreja Católica tomando por base o seu caráter institucional. Como tal, situando-a como instituição hierarquicamente organizada, que expressa normas, regulamentos e modos de ser, viver e atuar no mundo terreno que visam à unidade, à universalidade e a coerência de seus propósitos. A Igreja instituição tem na figura do papa a expressão máxima da autoridade e da busca permanente dessa unidade, dessa universalidade e dessa coerência e tem na hierarquia dos seus membros (padres, bispos, arcebispos, diáconos, etc) os executores e guardiães da instituição e de seus valores [...] de outro lado, podemos situar a Igreja como detentora, formadora e precursora de valores, hábitos, costumes e comportamentos que buscam uma sincronia ou não entre o sobrenatural e o transcendente, o racional e o temporal. Nesse aspecto, a Igreja Católica é carregada de sentido, papéis, representações e simbologias. É portadora de dogmas, conceitos e preconceitos em que estão presentes categorias como fé e razão, transcendência e imanência, filosofia e ideologia, matéria e espírito, teologia e política, ética e moral. Com isso, fé e razão misturam-se, entrelaçam-se e/ou assumem polos opostos, divergentes, antagônicos e irreconciliáveis, já que a fé pode adotar e adquirir uma natureza suprarracional ao se proclamar acima de todos os valores [...] e finalmente, podemos entendê-la como instituição integrante da sociedade, estabelecendo relações e vínculos com indivíduos, grupos, classes e movimentos sociais e o estado, dentro desses parâmetros, os movimentos sociais e lutas da sociedade perpassam visceralmente a Igreja Católica. Sociedade e igreja mantêm assim uma relação dinâmica e dialética, influenciando-se, constituindo-se mutuamente (GUIMARÃES, 1998, p. 27).

Estando imbricadas, as concepções de Igreja apresentadas acima não se

encerram em si mesmas, pois alimentam um processo contínuo e dinâmico que se

mostra infindável e que se renova sistematicamente. Entretanto, em todas essas

concepções, existe, clara ou subliminarmente, a propositura de valores cristãos

Guimarães (1998). Nesse sentido, é oportuno, como exemplo dessas concepções, a

inclusão de mecanismos como a Cáritas do Brasil em nível nacional, inclusive e

principalmente no Nordeste e a ASA do Piauí em âmbito local, nesse rol de

concepções enquanto instituições da Igreja Católica, nas suas relações com o

Estado e a sociedade, relativamente ao seu caráter dinâmico, ambíguo e contraditório.

Para Sousa (2002, p. 54), a Igreja Católica é uma instituição

conservadora por excelência. Essa é uma premissa praticamente inquestionável.

Poucos se contrapõem a ela. Assim, não se pode deixar de considerar, entretanto,

que a Igreja Católica, ao longo de toda a sua existência, tem apresentado

posicionamentos ambíguos. As variações vão desde posições revolucionárias a

inserções oportunistas e tradicionais.

108

Embora a presença de correntes ou grupos dentro da Igreja não seja

propriamente uma novidade, visto que existem desde os tempos de Pedro e Paulo,

busca-se, de modo particular, entender a gênese e alguns desdobramentos dessa

divisão, ou desse dito fracionamento, e, por via de consequência, como cada uma

dessas alas – progressista e conservadora – tem orientado suas estratégias de

intervenção nos diferentes problemas que afetam a sociedade.

Nesse sentido, é importante justificar algumas razões que explicam a

identidade de progressistas e conservadores, bem como as diferentes formas de se

entender o mundo e também os diversos posicionamentos políticos assumidos por

essas alas frente à realidade. Conservadores são aqueles que defendem as formas

litúrgicas e disciplinares anteriores ao Concílio Vaticano II, a teologia neotomista, a

ética no seu sentido primordialmente moral, como também a primazia do indivíduo

sobre o coletivo, inclusive na questão da propriedade.

No campo político, são também conservadores. Progressistas,

por outro lado, são aqueles que buscam a harmonia entre a doutrina católica

e a filosofia moderna, e tem a teologia das fontes como leituras particulares e,

com reflexos na liturgia, adotam ferramentas científicas, dialogam com

outras correntes religiosas, defendem a ética social e adotam posicionamentos,

inclusive políticos, consubstanciados nas decisões emanadas do Concílio

Vaticano II.

Compreender, pois, o comportamento da Igreja, essa instituição secular,

assim como os diferentes papéis por ela desempenhados ao longo dos tempos, não

é tarefa, como já posto anteriormente, simples. Exige de quem postule fazê-lo

alguns cuidados.

Quem decidir empenhar-se nesse intento precisa, primeiramente, ter em

mente que a Igreja Católica – nessa sua condição de instituição da sociedade civil –,

para além de suas ações clericais, há muito encena a sua liderança junto aos

movimentos e lutas sociais. Nem sempre, diga-se, em defesa dos oprimidos como

bem seria de se imaginar. Essa sua inserção se efetiva através de seus membros,

quer sejam os intelectuais que ocupam posições de mando, dos leigos, de seus

colegiados e também de organismos; no Brasil, a ACB – Ação Católica Brasileira,

109

fundada em 1935, e a CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, fundada

em 1952, são exemplos pontuais.

Outro cuidado a ser também observado é o de compreender que a Igreja

– dotada de uma estrutura hierárquica complexa, espalhada pelo mundo todo –

sempre vivenciou e vivencia as mais variadas situações políticas e sociais.

No Brasil, desde os tempos do Império, por exemplo, a relação que

perpassava entre a Igreja e o Estado – longe de chegar a excessos – sempre se

configurou como conflituosa, desfavorável àquela na maioria das vezes. Isso já

subjaz, por exemplo, na Constituição de 1824, a qual estabelecia, em seu artigo 102,

incisos § 2 e 14, que o direito de conceder, validar ou negar os decretos

eclesiásticos era prerrogativa do imperador.

Essa relação, apesar de conflituosa, foi mantida até o final do Império,

quando definitivamente ocorreu a cisão; oficialmente demarcada no Decreto 119-A

de 07.01.1890. Sua ratificação se deu com a Constituição Republicana de 1891.

Embora existam outros cuidados, o pesquisador se limita a apresentar

apenas mais um, por entender que, somados aos anteriores, é suficiente para se

obter uma leitura satisfatória do papel da Igreja. Assim, é preciso reconhecer a Igreja

Católica como uma instituição civil autônoma, hierárquica, conduzida por intelectuais

heterogêneos – tanto conservadores como progressistas – susceptível e vulnerável,

portanto, às influências do meio social com as suas diferentes relações de forças.

Tal consideração, por certo, iluminará na compreensão da longa e dinâmica

trajetória de atuação da Igreja. Inclusive de sua própria hierarquia.

Estruturada a partir de diferentes estratos, a hierarquia da Igreja

(pt.wilkepedia.org/wiki/hierarquia) pode ser, de modo genérico, assim especificada:

primeiro estrato, o principal, sob o ponto de vista da autoridade, é constituído pela alta

cúpula de homens detentores do poder clerical; são eles, o papa e seus assessores

imediatos, bispos e vigários gerais. O segundo estrato, nominado intermediário,

composto pelos clérigos, que funcionam como elo entre o primeiro e o terceiro

estrato, que vem a ser composto, por sua vez, por homens comuns: leigos

engajados, operários que trabalham a partir de uma orientação doutrinária

verticalizada.

É preciso considerar, dadas as condições políticas e sociais que,

principalmente, esse terceiro estrato nem sempre se pautava por agir de modo

deliberadamente consciente e espontâneo.

110

Mesmo sendo esta a constatação recorrente e comumente aceita,

deve-se reconhecer que não se aplica à totalidade do seu corpo clerical. Corpo este,

dada a sua própria natureza, um tanto heterogêneo. No Brasil, tal premissa pode ser

constatada por meio de suas alas progressistas e conservadoras.

A progressista, ao contrário do que ocorre em outros países latino-

americanos, é a mais bem sedimentada, possuindo em seus quadros cardeais,

bispos, padres, das mais diversas ordens e congregações. Essa sedimentação foi

possível e adquiriu maior higidez com o surgimento da CNBB.

Fundada em 14.10.1952, a CNBB – logo transformada num dos principais

mecanismos de atuação da Igreja, através da sua ala progressista –, sob a

condução de Dom Hélder Câmara, que se manteve no comando durante os seus 12

primeiros anos, tem atuado muito efetivamente para fortalecer a sociedade civil. Sua

participação foi intensa e muito ativa, por exemplo, no amplo processo de

organização do segmento rural, iniciado nos anos 50 e consolidado na década de

60. Ela se dedicou de modo efetivo à elaboração de estudos sobre a realidade social

brasileira, particularmente a do Nordeste.

Essa preocupação com a região fica patente e bastante evidenciada no

documento produzido pela CNBB no final do Segundo Encontro dos Bispos do

Nordeste, realizado em Natal-RN, no período de 24 a 26 de maio de 1959, com o

título Declaração dos Bispos do Nordeste (disponível In Presidência da República,

Serviço de Documentação):

Nós bispos da Santa Igreja temos bem presente a missão que Deus nos confiou, de ordem sobrenatural e de distinção eterna, mas, tendo de agir não junto a puros de espíritos, mas a criaturas humanas, de corpo e alma, e lembrados da repercussão, sobre a alma, de tudo o que atinge o corpo, também afirmamos nosso direto dever de interessar-nos pela situação temporal do povo, sobretudo em área subdesenvolvida como o Nordeste (CNBB. Natal, 1959, p.17).

A ala mais conservadora da Igreja – composta na sua maioria por bispos

e arcebispos das regiões Sul e Sudeste, em princípio, não demonstrou muito

interesse na gestão da CNBB. Isso talvez tenha sido em razão de que, já naquela

época, nas suas regiões, as desigualdades sociais entre as zonas urbana e rural

111

não se apresentavam tão discrepantes como no Nordeste e também porque, para

essa ala da Igreja, a sua atuação deveria ficar circunscrita ao campo religioso. Sobre

essa postura, Bruneau (1974) faz a seguinte análise:

Foi também no Nordeste que a Igreja reagiu primeiro e mais positivamente às ameaças. Os manifestos dos bispos, nesse período, são ilustrativos. Os mais progressistas surgiram no Nordeste (os de Natal) em 1951 e Campina Grande em 1956; e, de novo, em Natal, em 1959. Houve poucos manifestos semelhantes no resto do Brasil, e só muito mais tarde. [...] Assim, enquanto os bispos do Nordeste, sentindo-se ameaçados por toda sorte de inimigos se tornaram conscientes dos problemas sociais e empenharam-se em agir, os bispos da região relativamente pacífica do sul notaram que havia alguns problemas, mas interpretaram o papel da Igreja em termos exclusivamente religiosos: a sua influência não deveria se estender ao social (BRUNEAU, 1974, p. 144).

Mas logo que perceberam a força e a importância da CNBB, eles se

mobilizaram e derrotaram – na sua VI Assembleia Ordinária, de 28 a 29 de setembro

de 1964 – os progressistas, e assumiram o comando da instituição, que assim se

burocratizou internamente de forma conservadora. A evidência dessa premissa ficou

patente quando a mesma apoiou e respaldou o golpe dos militares em 1964 (SILVA

e MARQUES).

A falta de sintonia e descontentamento dos conservadores para com

os progressistas era notória e já vinha de longe. Esse descontentamento se

tornou açodado e chegou a se acirrar a partir do posicionamento destes em

relação às reformas de base, ditas populistas, do já conturbado governo de Jango

Goulart.

A ala progressista, sob o comando e a orientação de Dom

Hélder Câmara, não era um grupo homogêneo, porém disciplinado e

atento às determinações do comando. Era formado por dois subgrupos;

um, de maior peso (Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte) influenciado

por Dom Eugênio Sales e o outro (Ceará e Pernambuco) pelo próprio Dom Helder

Câmara.

A Diocese de Teresina, comandada por Dom Avelar, não estava

inclusa em nenhum dos grupos. A única inferência possível é a de que o

cariz conservador desse religioso o fazia transitar entre os dois grupos sem engajar-

112

se oficial e publicamente a nenhum. Nesse processo, tem-se que Dom Eugênio

Sales tinha uma atuação mais na linha de promoção social com menor furor

ideológico e Dom Helder, por outro lado, mostrava-se publicamente mais

ideologizado.

Essa ala progressista por defender publicamente reformas diversas,

inclusive a agrária, aprofundava as divergências com os conservadores. Sobre a

questão agrária e outras demandas dela advindas, a Igreja, através da CNBB,

produziu, naquela conjuntura, três documentos expressando seu posicionamento em

torno dos problemas oriundos da terra: A Igreja e a Reforma Agrária (1954); A Igreja

e a Situação do Meio Rural Brasileiro (1961); e Mensagem da Comissão Central da

CNBB (1963). Esse terceiro texto-documento – também apoiando a reforma agrária

– já evidencia uma CNBB mais moderada, talvez pelo agravamento político que

prenunciava rumos um tanto incertos; remetendo ao estado a responsabilidade

maior da questão:

Agimos com absoluta independência apostólica e nossas afirmações não se inspiram em nenhum oportunismo, mas exclusivamente em aguda consciência de nossa responsabilidade pastoral, no momento em que atravessamos [....] Não cabe, entretanto, a nós definir que fórmula poderá melhor responder às condições atuais da realidade brasileira. Lembramos que, na consecução do objetivo visado, é responsabilidade grave da União e dos Estados dar o exemplo, começando, desde já, com a distribuição equitativa de suas terras, quando não constituírem reservas patrimoniais. (Mensagem da Comissão Central da CNBB, p. 99)

Embora a Comissão Central da CNBB tenha produzido e assinado esse

documento, o que se assistiu logo depois – já sob o comando da ala mais

conservadora da Igreja – foi o apoio declarado da Comissão ao golpe civil-militar de

1964. Esse apoio é expresso publicamente nos principais veículos da mídia

impressa brasileira.

Isso se deu ao término de uma reunião da CNBB, ocorrida entre os

dias 27-29 de maio de 1964, quando, por decisão de seus pares – bispos,

arcebispos e cardeais – torna pública uma declaração de apoio aos militares

instalados no poder:

113

Atendendo à geral e angustiante expectativa do povo brasileiro que via a marcha acelerada do comunismo para a conquista do Poder, as Forças Armadas acudiram em tempo e evitaram que se consumasse a implantação do regime bolchevista em nossa Terra. Logo após o movimento vitorioso da Revolução, verificou-se uma sensação de alívio e esperança, sobretudo porque em face do clima de insegurança e quase desespero em que se encontravam as diferentes classes ou grupos sociais, a Providência divina se fez sentir de maneira sensível e insofismável (In ROLLEMBERG, Denise e QUADRAT, Samanta Viz, apud TORRES, Renato Rosa).

Esse apoio da Igreja aos militares, embora oficial declaradamente, não

detinha a unanimidade do conjunto de seu clero. A ala progressista – mesmo já

destituída do comando da CNBB – não comungava com esse apoio e não se

constrangia em escondê-lo. Dom Hélder Câmara, por exemplo, não se intimidou e

continuou a desenvolver as ações de sua Arquidiocese de Olinda, sempre pautadas

pelas concepções mais progressistas da Igreja. De igual modo, assim se conduziram

os demais integrantes da ala progressista nas suas respectivas dioceses.

É nesse contexto que surge o MEB – Movimento de Educação de Base, o

SAR – Serviço de Assistência Rural, o MER – Movimento de Evangelização Rural e

as CEB’s – Comunidades Eclesiais de Base, que se propunham a contribuir com as

necessárias transformações sociais.

É importante ressaltar que a emergência dessas ações foi resultante da

vontade e da determinação da ala progressista da Igreja, que acreditava ser possível

mudar a realidade do país a partir da educação e da cristianização da sociedade,

principalmente a rural, por se apresentar ainda muito carente e abandonada.

Convém, contudo, ressaltar que a eficácia dessas ações estava diretamente

relacionada à orientação de suas respectivas dioceses.

Leitura crítica acerca da presença desses instrumentos nas suas

respectivas áreas de atuação é feita por Safira Ammann (1992), para quem: “as

ações dessas entidades (MER/MEB) pode ter provocado um movimento de

despolitização”. Para ela, tais ações se baseavam no pressuposto filosófico do

chamado otimismo pedagógico, segundo o qual a educação de base seria capaz de

superar os problemas da marginalidade social e do atraso cultural das populações

camponesas brasileiras, mascarando, dessa forma, a questão rural, deslocando-a

para o nível dos indivíduos e da comunidade local, ao invés de contextualizá-la em

114

níveis social e político, onde existem as verdadeiras raízes da problemática

(AMMANN. 1992, p. 49).

Considerando as dimensões totais do homem e utilizando todos os

processos autênticos de conscientização, o MEB, visando alcançar seu objetivo

principal, empenhou-se em contribuir, de modo efetivo, para o desenvolvimento

integral do povo brasileiro, numa perspectiva de autopromoção que levasse a uma

transformação decisiva da mentalidade política e das estruturas socioeconômicas,

transformações que se afiguravam, para os progressistas da Igreja, como imperiosas.

A criação do MER, do SAR e do MEB, naquele contexto, denotava uma

abertura da autoridade hierárquica da Igreja. Sua lógica centrava-se em formar

novas pastorais com vistas a neutralizar e a inviabilizar a propagação da ideologia

comunista e consequentemente suplantar a simpatia pujante das Ligas Camponesas

no meio rural, principalmente nos grotões de pobreza do Nordeste.

Os religiosos empenhados nesse objetivo acreditavam que a Igreja

Católica era uma referência muito forte no campo. Faz sentido, pois bem se sabe

que, apesar do sofrimento ou em razão dele, o homem campesino, assim como toda

sua família, ainda viam na Igreja Católica a sua principal referência espiritual e

ideológica, principalmente diante das agruras, como a seca, a fome, a doença e

particularmente em relação à frieza rústica e ao alheamento dos latifúndios.

Há ainda e convém considerar que Igreja, circunstanciada pelo

desenvolvimento urbano, começava a se dar conta de que o púlpito não se prestava

mais a amplificar o seu discurso e sustentar a sua doutrina. Seu rebanho começa a

sofrer baixas, a urbanização trouxe novas urgências para o homem, para a família.

O comunismo era para a Igreja uma ameaça inadmissível, inaceitável na

medida em que colocava em risco toda a sua doutrina e também todos os valores

morais, éticos e cívicos. Essa preocupação se tornava mais aguda em relação à

população do campo, pois o analfabetismo – que detinha índices alarmantes –

tornava essa população ainda mais vulnerável a influências perigosas, nefastas à

família de Deus, segundo a Igreja. Assim, meio rural, por sua natureza e ótica

religiosa, era o lugar ideal para a Igreja entrar em campo e proteger seu rebanho,

manter e aumentar sua base religiosa.

115

É nesse cenário que o MEB cumprirá uma missão fundamental para o

projeto de evangelização e politização de jovens e adultos preferencialmente no

campo. Estruturado a partir de uma Equipe Técnica Nacional articulada a uma

equipe local formada por coordenadores, supervisores e uma gigantesca rede de

monitores, pessoas da comunidade que atuavam de forma voluntária na instalação

de escolas, matrícula dos alunos, controle de frequência e aplicação de provas, o

MEB será, em colaboração com o Estado, a presença viva da Igreja no meio social,

preferencialmente junto aos pobres explorados e injustiçados.

Cumpre salientar que essa ala da igreja que fez a proclamada opção

preferencial pelos pobres, foi identificada pelos conservadores da própria Igreja, pelo

Estado e principalmente pela imprensa e os setores mais ricos da sociedade civil,

como padres subversivos e comunistas.

Refletindo sobre essa conjuntura e pensando a atuação e importância das

CEB’s, Frei Betto formula a seguinte conclusão:

As Comunidades Eclesiais de Base desenvolveram-se de modo particular nas áreas rurais, por vários motivos, dentre eles: o fato de os campesinos enxergarem na Igreja a principal referência religiosa e também porque na cidade, nas zonas urbanas, principalmente nas áreas mais desenvolvidas, não encontraria esse pilar, que era o homem simples e ainda puro, do meio rural (1981, p. 26).

Particularmente sobre as ações do MEB e ASA no Piauí, novos e mais

profundos elementos serão acostados quando da apresentação do tópico “Piauí, a

última estação”.

O envolvimento da Igreja Católica ou de parte de seus membros, com a

questão da terra no Brasil, remete, como bem se sabe, há tempos mais distantes,

ainda na Primeira República. A maior expressão de resistência dessa natureza, no

Brasil rural do final do século XIX e início do século XX, que envolveu a Igreja Católica,

foi a revolta popular de Canudos – exemplo clássico da luta pela terra – que fez

despontar a figura do beato Antônio Mendes Maciel, o célebre Antônio Conselheiro.

A origem do beato de Canudos é relacionada às atividades do padre José

Maria Ibiapina, que – orientado por um catolicismo rústico, próprio de seu tempo –

buscou melhorar as condições de vida dos campesinos. E nesse intento, tomou a frente

116

e construiu, inclusive, estradas, açudes, escolas e casas de caridade, obras, a priori, de

responsabilidade do poder público. Isso ajudou também a estreitar a comunicação

entre a sua prática religiosa e os seus fiéis assistidos. Tais obras, que oportunizaram

o desenvolvimento, eram administradas por ordens leigas não reconhecidas, mas

toleradas pela ala mais conservadora – no comando de então – da Igreja.

Por outro lado, concomitantemente a esse momento – correspondente

também à fundação da República –, já começavam a ser vislumbrados os impactos

de desenvolvimento da modernização do capitalismo, expandida ao campo inclusive.

Essa expansão, que de certa forma assustava os campesinos, além de

fazer cair o véu que ocultava a miséria e a opressão reinantes no meio rural,

favoreceu e serviu para explicar, em certa medida, o surgimento dos beatos. Esses

líderes espirituais – verdadeiras expressões vivas da religiosidade no sertão

nordestino de então –, que, para além de suas preocupações ordinárias, ligadas ao

ofício religioso, contrapunham-se ao discurso fundante da República. Isso porque

ainda que centrado no otimismo de melhores dias, contribuía para dessacralizar os

valores mais arraigados na sociedade, particularmente na rural.

Foi nessa conjuntura que Igreja Católica, ligada como foi aos grandes

proprietários de terra que sustentavam o Império, viu ocorrer a separação definitiva –

por determinação constitucional – em relação ao Estado. Ressalta-se, entretanto,

que mesmo já separada do Estado, esta continuou apoiando esse segmento rico e

poderoso do Brasil. Azzi, citado por Paiva (1985), assim se refere, quando trata dos

desdobramentos dessa separação:

Esta separação exigiu da Igreja sua articulação com a classe média e com a burguesia emergente – de base agrária ou não – como forma de solucionar os problemas ligados à sobrevivência financeira. Sua ação pastoral concentrou-se, pois, sobre tais setores, desenvolvendo-se fundamentalmente através das paróquias e dos colégios (PAIVA. 1985, p.15).

Na forma de movimentos populares, essas reações foram um protesto

trágico contra a opressão e a miséria, mas sem projetos políticos mais bem definidos

e delineados. Na maioria das vezes, as aspirações dos líderes e de seus seguidores

mesclavam-se, sim, com uma profunda religiosidade e uma aspiração política,

117

embora essa última sem orientação mais precisamente consciente. Isso talvez

explique o seu isolamento e fragilidade e a consequente derrota diante das forças

repressivas dos poderes instituídos de então.

O isolamento trazia, aos seguidores desses beatos, certo favorecimento

em relação ao uso produtivo da terra, o que lhes asseguravam, ainda que

temporariamente, o fim da sujeição aos regramentos e ditames opressivos dos ditos

proprietários. Isso porque estes sempre se mostravam impiedosos e intolerantes

com as ocupações sem as suas devidas anuências, como era bem o caso desses

campesinos.

(...) expulsar o camponês de sua terra, que quase sempre foi de maneira violenta, compromete a sua sobrevivência, porque o priva não só de seu trabalho, mas de seu meio e instrumento de sua dignidade e de sua condição como pessoa. É nesse plano que se dá o encontro moral e, muitas vezes, religioso entre o trabalhador rural e a Igreja. A concepção de pessoa está na doutrina social da Igreja e na sua ideologia camponesa (MARTINS. 1989, p 00).

Em que pese toda a sumarização dos aportes históricos anteriormente

registrados, a ancoragem temporal considerada para a consecução deste estudo

está centralizada nos anos 50 e 60. Período em que, mesmo tendo uma maioria

conservadora, a Igreja defendeu, a partir de algumas lideranças progressistas,

diversas reformas sociais. Tais reformas, porém, ainda não eram tão amplas porque

não contemplavam o anseio social, que já clamava por mudanças mais profundas,

as quais viriam a ocorrer somente tempos depois, particularmente sobre a égide e a

influência do Concílio Vaticano II.

O clero, nessa época, entretanto, já defendia reformas diversas, inclusive

a agrária, e concebia esta como um esforço a ser empreendido a partir de uma ação

articulada entre Estado e sociedade.

A concepção dessa dita reforma agrária era, todavia, moderada,

progressiva e deveria constar de um programa mínimo defendido pela Igreja

Católica, que recomendava aos trabalhadores procurar um sacerdote, a fim

de orientá-los no plano da revisão agrária. Isso evitaria, de acordo com as

estratégias religiosas, que os camponeses interpretassem mal a proposta da Igreja

Católica.

118

Vossa responsabilidade também é muito grave. Procurai, o quanto antes, uma pessoa esclarecida e cristã que vos dê a palavra exata sobre o alcance da revisão agrária, pois seria uma lástima desconhecê-la e seria um perigo entendê-la mal, caso ela vos fosse apresentada de modo tendencioso por agitadores interessados em explorá-los (...) quando o comunismo vos convidar para grupos ou ligas de defesa dos vossos interesses, já deveis estar organizados em núcleos democráticos que desejamos ajudar a criar (REVISTA REB. 1961, p. 136-137).

Recomendação semelhante foi também dirigida aos sacerdotes,

coordenadores de paróquias a fim de procurar os proprietários rurais para explicar

os objetivos da reforma proposta pela Igreja.

Procurai, um a um, os proprietários rurais que têm propriedades em vossas paróquias. Transmiti-lhes o espírito autêntico da Revisão Agrária. Afastai dúvida. Removeis possíveis preconceitos. Conciliai a boa vontade. Não vacileis em afirmar que a Reforma Agrária é inevitável; a escolha é entre uma reforma equilibrada e razoável e a revolução rural que o comunismo ateará explorando a situação precária e, por vezes, explosiva, do meio rural (REVISTA REB. 1961, p. 136-137).

Foi dentro desse espírito que a ala conservadora lançou, em 1954, a obra

Reforma Agrária, uma questão de consciência. Um trabalho coletivo de vários

teóricos do conservadorismo católico. Um dos autores, Plínio Correa de Oliveira, foi

também um dos idealizadores da TFP – Tradição Família e Propriedade, que viria a

surgir em 1960. Essa obra tanto demarcava a posição da ala mais conservadora do

clero, como representava uma espécie de recado para os mais progressistas de

dentro e fora da Igreja.

Essa ala da Igreja, que tinha como lema a ordem, o progresso e a fé,

albergada como foi na TFP, defendia, além da família, valores outros,

tais como: propriedade, nacionalismo, patriotismo e se mostrava intransigente

com tudo que pudesse trazer qualquer ameaça aos dogmas da Igreja e à

soberania nacional. Em razão disso, ao eleger o anticomunismo como a sua

principal bandeira de luta, organizou a Marcha da Família com Deus pela Liberdade,

que ocorreu praticamente em todos os grandes centros urbanos, inclusive

em Teresina.

119

Fonte: Marcha da Família com Deus pela liberdade em Teresina-PI.

Na segunda metade da década de 50, as transformações que vinham

ocorrendo no cenário brasileiro se acentuaram. Novas demandas surgiram; agora

mais específicas e diretamente afetas ao meio rural. E a Igreja entra em campo

novamente, assumindo, assim, uma nova frente de atuação, um novo protagonismo.

Essa sua nova inserção se propõe a atuar efetivamente junto às camadas mais

pobres, desassistidas, mais fragilizadas socialmente.

Tem-se, assim, um espaço fértil para aprofundar o debate sobre

reforma agrária com vistas a modificar a estrutura da terra, dominada pelo

latifúndio improdutivo, apontado como uma das principais causas da

profunda desigualdade social brasileira. Isso foi possibilitado, em parte,

pela Constituição Liberal de 1946, que consagrou pela primeira vez, de modo

mais preciso, a discussão sobre a função social da terra. No protagonismo

desse debate, destacou-se a ala progressista da Igreja, seguramente

ancorada pelas decisões do Concílio Vaticano II, particularmente pelas

orientações da encíclica Mater Et Magister (1961) – Mãe e Mestra –, Pacem In Terris

(1963) que deram um contundente impulso à linha do compromisso social,

120

fomentando no Brasil o crescente engajamento da Igreja nas questões referentes à

sindicalização rural, à educação de base, à evangelização do campo e,

principalmente, à reforma agrária.

Sobre a circunstancial e conveniente inserção da Igreja no cenário rural,

de modo particular e mais constante junto aos camponeses, no contexto pós-guerra,

o brasilianista Scott (2004, p. 56), assim se reporta:

As mudanças que a Igreja acabou fazendo foram mais em razão da necessidade da instituição manter seus interesses tradicionais, do que propriamente por uma decisão de responder às demandas dos novos tempos.

Ainda para este mesmo autor, “a sociedade tem passado por

transformações, que a igreja não tem acompanhado, não tem feito o mesmo,

inclusive resistindo à secularização, uma das manifestações da crise”.

Paiva (1985), sobre a conduta da Igreja em relação às transformações

que se operam no meio rural brasileiro, dentro desse mesmo contexto, difere do

brasilianista Scott e traz outra compreensão:

(...) a ação da Igreja Católica brasileira no campo e seus pronunciamentos sobre a questão agrária no pós-guerra estiveram marcados por valores e ideais que fazem parte da tradição católica (que se manifestou, por exemplo, na defesa da pequena propriedade rural como base para a estabilidade da família), mas sofreram o impacto da intensificação da urbanização e da industrialização de substituição de importação dos anos 40/50 e viam-se influenciados pelo nacionalismo e pelo desenvolvimentismo que caracterizaram o período... Ela responde especialmente ao surgimento do campesinato como classe social emergente no cenário político, a partir de meados dos anos 50 e à transformação das relações sociais no campo brasileiro desde então – em que pese a heterogeneidade de posições e ações de seus diferentes setores (PAIVA. 1985, p. 14).

As divergências entre progressistas e conservadores são bastante antigas

e têm origem, muito provavelmente, nas diferentes formas de interpretação da fé

religiosa, bem como no fundamento teológico que embasa as muitas formas

possíveis de entender o mundo e, também, os diferentes posicionamentos políticos

assumidos por essas alas da Igreja frente à realidade. Entretanto, para além dessas

divergências, a Igreja, empenhada em atenuar os açodamentos cada vez mais

121

agravados no meio rural, institucionaliza novas frentes de atuação. Assim, justifica-

se e registra-se, por exemplo, a proposição e criação dos sindicatos católicos e das

Semanas Ruralistas.

A ação das ligas mobiliza ainda mais a Igreja no sentido de controlar os

camponeses, de modo especial em relação à expansão do comunismo. Vargas

(1986, p. 19), a respeito dessa compreensão cristã, assim se reporta: “O comunismo

não pode trazer melhoria para o homem do campo porque acaba com a liberdade,

gera ódio e a vingança entre os homens e é contra Deus.”

Dessa forma, a Igreja inicia a formação dos sindicatos católicos para se

contrapor às ações das ligas e do Partido Comunista Brasileiro. No entendimento da

Igreja, sindicato não deveria levar instabilidade ao campo ou exigir reforma agrária

sob a lógica da violência e na ilegalidade, como faziam as ligas.

Para suplantar a ação das ligas, Calazans explica e orienta:

O sindicato deve trabalhar pelo bem comum e nunca pelo bem de uma só pessoa. O sindicato deve trabalhar por uma mudança, pela educação, e nunca pela luta de classe. Trabalhar no sindicato em colaboração e de forma organizada. O sindicato deve orientar reivindicações programadas. Reivindicar quer dizer: procurar a conquista de alguma coisa que pelo direito já deveria ser sua. O sindicato é uma associação profissional e não política. (1961, p.18).

Os sindicatos orientados pela Igreja, emergidos da ação formadora do

MEB, eram disputados pelos partidos políticos com o propósito de se fortalecerem,

terem capital eleitoral nas situações em que as negociações políticas eram a

principal e, às vezes, a única forma de negociação com os comunistas, com as ligas

e com outras forças de esquerda e com o Partido Trabalhista Brasileiro.

Colleti (1998, p. 51), ao analisar o objetivo da Igreja quando da criação

dos sindicatos cristãos, assim se posiciona: “O objetivo principal do sindicalismo

cristão que se encontra em gestão era o combate ao comunismo, o seu princípio

básico era a negação da luta de classe e a defesa da harmonia social”.

Para Dreiffus (1998.p 2003), “Os setores conservadores da Igreja

Católica também se envolviam em suas próprias tentativas de conter a mobilização

no campo e de fazer oposição às atividades das ligas camponesas. Muitas vezes,

esses esforços coincidiam ou eram mesmo coordenados com os do complexo

IPES/IBAD e os sindicatos por ela patrocinados”.

122

Outro fator de aprofundamento das divergências entre conservadores e

progressistas pode ser pontuado nas orientações advindas da Teologia da

Libertação. Iokoi (1996) relaciona, em Igreja e Camponeses, que Gustavo Gutierrez

lançou, em 1964, uma série de conferências contendo as bases teóricas mais

elaboradas dessa Teologia. Nessas conferências, segundo Iokoi, Gutierrez

dimensiona a pastoral em duas frentes dialeticamente recíprocas e inseparáveis: a

realidade em que se deve atuar e as exigências evangélicas.

Para esse teórico, essas exigências evangélicas – por serem históricas –

implicavam necessariamente o conhecimento da realidade temporal para que a

Igreja pudesse entrar em campo com os pés no chão. Agrega-se, aos efeitos da

Teologia da Libertação sobre os progressistas, as orientações advindas da

Conferência de Medellin, realizada na Colômbia entre os meses de agosto e

setembro de 1968. Essa conferência ampliou as perspectivas de comprometimento

da Igreja com as mudanças sociais e políticas já experienciadas pelo clero na

America Latina.

Denunciar as injustiças sociais, a dependência econômica que aniquilava

não somente as economias desses países pobres, mas principalmente o povo

sofrido e humilhado e ainda se converter num espaço permanente para o diálogo no

sentido da paz, da redução das desigualdades e, finalmente, representar o próprio

exemplo de Cristo na luta contra os poderosos, constituíram também bandeiras de

luta dos progressistas que atuavam no interior do país fomentando a sindicalização

rural já em curso.

Para Alves (1989, p. 13), “Comunistas e trabalhistas, por outro lado,

interessavam-se por estes sindicatos para aumentar sua influência sobre uma classe

até então mantida afastada da vida política e para se prepararem para as eleições

presidenciais, previstas para 15 de novembro de 1964”.

Cava (1975, p.73/76...), ao analisar a relação entre a Igreja e o Estado, no

Brasil do século XX, ressalta que a interação do corpo clerical dessa com a

sociedade civil durante o regime militar se essencializa efetivamente a partir da ação

das CEB’s. Para esse autor, as CEB’s se tornaram o “alicerce do processo de

mudança no papel sociopolítico da Igreja”.

De acordo com Mainwaring (2004, p. 72), a primeira Semana Ruralista

aconteceu em 1950, em Minas Gerais, e foi realizada na cidade de Campanha sobre

123

o patrocínio da Diocese desse município. Na oportunidade, o bispo Dom Inocêncio

Engelke escreveu uma Carta Pastoral intitulada Conosco, sem nós ou contra nós se

fará a reforma rural.

Esse documento externava a preocupação da Igreja no sentido de não

perder a influência sobre o trabalhador rural, o que já tinha acontecido em parte com

o trabalhador urbano. Em razão disso, conclamava que a Igreja deveria participar

mais efetivamente, em parceria com o poder público e outros setores da sociedade

organizada, dos grandes temas nacionais, como: a expansão do comunismo, os

efeitos desagregadores da vida nos centros urbanos, agitação política no campo, o

subdesenvolvimento, a miséria no meio rural, a falta de assistência técnica, dentre

outros.

Esses temas integravam alguns dos pontos principais da pauta constante

da Semana Ruralista. Nasceu também nesse evento a proposição de cursos

destinados à formação de líderes rurais católicos. Desse evento, participaram

padres, freiras, fazendeiros, professores, membros do governo, entre outros.

A Igreja acreditava que os camponeses, apoiados nas suas ações –

criação e expansão dos sindicatos católicos; semanas ruralistas e a proibição

associativa a entidades contrárias à orientação ou independentes da doutrina social-

cristã – aprenderiam a se defender das ideias externas ao campo, como o

comunismo, o protestantismo e o espiritismo. E foi assim que a Igreja, ao levar a

experiência da Semana Ruralista de Campanha, em Minas Gerais, para as suas

mais diversas dioceses, principalmente para as do Nordeste – onde elas

aconteceram em praticamente todos os estados –, deu continuidade também à

criação de sindicatos católicos.

Outros eventos, com propósitos semelhantes aos das Semanas

Ruralistas, também aconteceram concomitantemente. Entre os quais, merecem

destaque: a I Conferência de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Estado do

Pará em 1955; a I Conferência de Trabalhadores e Camponeses do Ceará em 1957;

e, em 1958, a II Conferência Agrária do Maranhão.

Ampliando a sua concepção de mundo, sem perder ou se distanciar de

sua ideologia da salvação, a Igreja atribuiu, assim, para si – tomada de temor pelo

avanço do comunismo no mundo – a função de suporte organizativo da sociedade,

principalmente no campo. Essa atuação se deu de modo particular junto aos

124

trabalhadores rurais, fragilizados, em suas múltiplas dimensões, por uma vida

marcada pelo analfabetismo, pela pobreza extrema, pelas doenças e todo tipo de

má sorte.

Essa condição de penúria foi denunciada por Dom Inocêncio Engelke,

bispo da Diocese de Campanha, Minas Gerais, em setembro de 1950. Essa

denúncia, conforme está abaixo transcrita, foi registrada por Mainwaring (2004, p. 73):

A situação do trabalhador rural é, em regra, infra-humana entre nós. Merecem o nome de casa os casebres em que moram? É alimento a comida de que dispõem? Poderá se chamar de roupas os trapos com que se vestem? Pode-se chamar de vida a situação em que vegetam, sem saúde, sem anseios, sem visão, sem ideais? É urgente, pois, estabelecer um programa mínimo de ação social de que venham a beneficiar-se esses trabalhadores. Faz-se mister uma reforma de estrutura de base.

Nos anos 50 e 60, as precárias condições de vida do sertanejo

provocaram reações, convulsões sociais e também a formação de lideranças. Agora,

não mais religiosas; mas, principalmente políticas, como as de João Pedro Teixeira,

na Paraíba; Vicente Pompeu da Silva, ex-presidente da Fetraece – Federação dos

trabalhadores na Agricultura no Estado do Ceará; e Luiz Edwiges Lopes, ex-

presidente da Liga Camponesa de Matinhos, no Piauí; Antônio Damião de Souza,

presidente do STRCM – Sindicato de Trabalhadores Rurais de Campo Maior,

também no Piauí. Todos perseguidos pela ditadura.

Assim, como naquela conjuntura, as alterações provocadas pelo

capitalismo desestabilizaram as formas presentes de dominação e organização

social, também, na segunda metade do século XX, processo semelhante, porém

mais agudo, ocorreu. Mais agudo porque um novo cenário se configurou – intenso

processo de urbanização, formação da classe média, desenvolvimento do setor

público, ampliação e modernização dos polos industriais já existentes etc. – e novos

atores foram inseridos nesse protagonismo das relações sociais: os assalariados de

um modo geral, incluindo os do campo e os operários do setor industrial no Sul e

Sudeste; e no Nordeste, os comerciários e os servidores públicos nos centros

urbanos, e os campesinos no meio rural. Para os trabalhadores rurais –

principalmente no Sul e Sudeste – as transformações se deram de forma mais

significativa.

125

Uma das mais importantes efetivadas, pelo menos nas regiões mais

desenvolvidas do país, onde a produção agrícola se modernizava e ganhava um

importante conjunto de máquinas e implementos de última geração, foi o acelerado

desmantelamento das antigas relações de trabalho. No campo, em particular, o morador

– o agregado ou meeiro – foi sendo substituído pelo trabalhador rural assalariado.

No Nordeste, porém, a vida parecia seguir os mesmos passos lentos de

antes. Os contratos de trabalho permaneciam verbais, sem qualquer segurança para

o lavrador e sua família. A agricultura, principal atividade econômica, e as relações

sociais seguiam fundadas em princípios tradicionais. Continuavam o camponês e

toda sua parentela, como também toda sua vizinhança, na miséria, na ignorância e

dentro do mais completo abandono.

Foram, seguramente, significativas e substanciais as mudanças, também,

operadas no interior da Igreja. Essas ocorreram principalmente a partir de eventos

importantes, como o Concílio Vaticano II, realizado entre 1962/65, por convocação

do papa João XXIII. Momento em que a Igreja buscou uma adequação ao

movimento político. Não querendo perder o controle sobre suas bases, abriu, nesse

evento, espaço para discussões e orientações políticas para o clero como um todo e

até segmentos de fora da Igreja.

O Concílio em questão foi um marco no que tange a mudanças nas

ações operativas da Igreja, que se renovou em termos de doutrina religiosa e

também de posicionamento político. Foi um importante momento, que dele advém

grande parte dos avanços dessa instituição, dentre os quais se encontra a teologia

da libertação. Teologia esta vinculada, como bem se sabe, às lutas sociais. Também

nesse Concílio, a Igreja aprovou a celebração da missa na língua nacional de cada

país.

Em relação a essa importante decisão, um dos principais periódicos em

circulação no estado assim se manifestou:

Acontecimento religioso dos mais expressivos está marcado para o dia 16, domingo, quando a cidade estará completando 112 anos de existência. Trata-se da primeira missa que será celebrada em português, no Piauí. O local escolhido foi o adro da Igreja de São Benedito. A missa foi, portanto, campal, e aconteceu às 17 horas e teve como celebrante o senhor arcebispo de Teresina, Dom Avelar Brandão Vilela. (O DIA. ano XIV, nº 1312, p. 01, 14.08.1964. Teresina-PI).

126

Outro evento de profunda relevância na mudança de orientação da

Igreja foi a Conferência Episcopal Latino-Americana, ocorrida em Medellin,

Colômbia, em 1968, convocada pelo papa Paulo VI, da qual participou Dom Avelar

Brandão Vilela como vice-presidente e, posteriormente, presidente por morte do

titular.

Esses dois eventos internacionais deram, cada um em proporções

diferentes, mas complementares entre si impulso, alento, coragem e legitimidade –

se não para a Igreja como um todo, pelo menos para a sua ala progressista – para

defender a causa dos oprimidos. Embora a Igreja se declarasse mais aberta para o

novo, havia resistência no interior dela em relação às mudanças em curso

orientadas a partir de tais eventos.

Paralelo a esses eventos, também a violência praticada pelos

latifundiários, a possibilidade real de conquista pelos comunistas da massa de

trabalhadores, o avanço do protestantismo e ainda a forte atuação das Ligas

Camponesas exigiram, ao lado de outros inimigos eleitos, – no primeiro momento

apenas de alguns sacerdotes solitários e isoladamente, e, depois, da Igreja como

instituição – um reposicionamento de sua postura e, assim, tomar como sua a causa

dos camponeses.

O papa João XXIII, acerca desse momento de mudanças possibilitadas

pelo Concílio, assim se posiciona: “[...], o Concílio estava a indicar caminhos,

renovar a postura da Igreja diante do mundo e de si mesma”.

Embora os ventos da transformação, da mudança, estivessem arejando a

cabeça e provavelmente boa parte do corpo clerical, também é fato que os setores

mais conservadores estavam se articulando para continuar ocupando posições de

mando e não permitir que os valores mais importantes, sagrados, e intocáveis, pelo

menos do ponto de vista dessa ala da Igreja, não fossem corrompidos.

Assim, aqueles a quem chamavam de “inimigos”, as classe perigosas,

vindas de baixo e que já marcavam presença na vida política, deviam, ao lado do

comunismo e de outros inimigos da tradição, da família, da propriedade, da terra, do

patriotismo e do nacionalismo, ser enfrentados. Uma vez que, sendo inimigos da

ordem, da nação, eram também inimigos do catolicismo.

127

É a partir desse contexto, caracterizado por contradições que se

antagonizam o desenvolvimento e a expansão do capitalismo que chegava, com

toda a sua euforia, ao campo inclusive – com a posse de grandes áreas de terras,

tecnologias, máquinas etc. – e a pobreza predominante dos campesinos, que o

pesquisador vai ambientar as considerações pertinentes a este capítulo. Este terá

como centralidade a atuação da Igreja Católica junto aos camponeses do Piauí, mas

em particular dos que formavam a Liga Camponesa de Matinhos, em Campo Maior.

É, portanto, a partir dessa perspectiva que se pretende analisar a atuação

da Igreja Católica no Piauí, no propósito de entender a sua orientação emanada por

Dom Avelar, no contexto rural, no período compreendido entre 1958/1968,

temporalidade em que se desenvolve este estudo.

2.2 O Trem do Nordeste

As conturbações advindas dos governos (37/45, ditadura; e 51/54,

democrático) de Getúlio Vargas – consolidação da Lei Trabalhista (1943); a

expansão, embora tutelado, do sindicalismo; processo de urbanização, movido pelas

ações desenvolvimentistas desse visionário gaúcho ao incentivar implantação de

polos industriais nas grandes cidades do Sul e Sudeste –, culminadas com o seu

suicídio.

Posteriormente, sugiram outras transformações - emergidas no governo

de Juscelino Kubistchek - que expandiu e modernizou esses polos industriais,

incentivando a instalação das primeiras indústrias (1956-1961). Essa criação acabou

fomentando a atividade de sindicalização, que tanto assustava os detentores do

capital. Assim como a bipolarização imposta pela Guerra Fria, que podia se

converter numa variável em favor de manifestações e protestos, vistos como

caminho principalmente para a expansão do socialismo e comunismo. Entre outras

preocupações políticas, estas eram as que mais traziam medo e abalavam a Igreja,

no Brasil como um todo, e de modo particular no Nordeste. Todas essas evidências

comprometiam a efetividade de sua doutrina social cristã.

No Nordeste, sim, porque, na região, a pobreza era reinante e a

população, notadamente a rural, suscetivelmente vulnerável em sua condição social,

política e cultural. Nesse aspecto, as políticas públicas com o objetivo de, pelo

128

menos, atenuar ou minimizar o quadro de abandono, eram inexistentes. Tanto era

assim que o índice de analfabetismo de então se apresentava muito elevado,

bastante superior aos da média nacional (IBGE, Censo de 1958). Entre os jovens

brasileiros, a partir de 15 anos, o IBGE registrava um índice de 50% de analfabetos.

Os índices relacionados à mortalidade eram também alarmantes.

Como os problemas, em sua maioria, eram comuns, a Igreja buscou

estabelecer uma estreiteza entre as suas dioceses espalhadas pelos estados

integrante da região, de modo a fortalecer as suas ações. Um bom exemplo é a

editoração do jornal O Santuário de São Francisco, semanário oficial da Basílica de

Canindé, no Ceará, que circulava por todas as dioceses do Nordeste, e que

abertamente fazia um enfrentamento ao comunismo.

O mundo, relativamente, a imprensa, pode comparar-se a um vasto campo dividido em dois partidos diametralmente opostos e diversos: a boa imprensa e a má imprensa. A primeira, paladino da verdade e da virtude, baluarte contra as investidas do mal; a segunda entorpece e degrada a razão, materializa e entristece o homem (SANTUÁRIO DE SÃO FRANCISCO. 15 de agosto de 1965, ed. 1181).

O enfrentamento ao inimigo declarado, os comunistas, mostra-se patente

na matéria, assim intitulada: Posição da Igreja é de repúdio ao comunismo.

O comunismo é intrinsicamente perverso; não se pode admitir em nenhum terreno a colaboração com ele de parte de quem queira salvar a civilização cristã. A Igreja de Cristo não cogita abandonar o terreno a seu inimigo declarado, o comunismo ateu. Este combate será continuado até o fim com as armas de Cristo (SANTUÁRIO DE SÃO FRANCISCO. 15.09.1964, p.1).

Assim, progressistas, moderados e conservadores, cada ala à sua

maneira, literalmente, pegou o trem rumo ao campo, objetivando, segundo o seu

posicionamento clerical, ocupar o espaço nos diferentes estratos sociais de

abrangência da Igreja. Essa situação levou a ala mais conservadora da Igreja a

desenvolver ações constantes de retomada da hegemonia numa perspectiva

bastante ampla.

Prova disso, o Serviço de Assistência Rural do Governo do Rio Grande do

Norte, em parceria com a Igreja, de 22 a 27 de janeiro de 1951, realiza a sua

129

primeira Semana Ruralista, que contou com a presença de vários religiosos, leigos,

agrônomos, técnicos agrícolas, representantes do governo do estado e um número

bem expressivo de trabalhadores rurais. Seguindo a mesma orientação dessas

semanas, foram realizadas várias Conferências e Congressos de lavradores e

trabalhadores rurais em vários estados do Norte e Nordeste.

Em 13 de maio de 1955, ocorreu a primeira conferência do Pará, em

agosto de 1958, ocorreu a segunda conferência agrária do Maranhão, em setembro

de 1959 ocorreu o segundo encontro estadual de trabalhadores do Ceará. Todos

esses eventos, que contaram com a efetiva atuação da Igreja Católica, foram

realizados dentro de uma atmosfera de grande articulação política com os estados

da região, de outras regiões e, finalmente, em todo o país.

Esse evento serviu de modelo para outros semelhantes que viriam ocorrer

naquele estado e para todos de igual natureza fora deste. Isso porque esse evento

se expandiu e se proliferou por todo o Nordeste. A primeira Semana Ruralista do

Piauí aconteceu em Teresina, de 06 a 11 de agosto de 1956, já sob o comando do

recém-chegado arcebispo ao Piauí, Dom Avelar Brandão Vilela, que aqui já aportou

trazendo uma vasta experiência de seu bispado, de 45 a 54, em Petrolina-PE.

A propósito, convém ressaltar que essas Semanas Ruralistas objetivavam

fomentar o cooperativismo, introduzir técnicas de plantio e manuseio de animais;

mas também treinar líderes para atuarem junto a sindicatos de orientação católica,

e, fundamentalmente – propósito particular da Igreja – evitar que os trabalhadores

rurais deixassem de seguir a orientação da doutrina social cristã da Igreja. Esta

queria esse seu rebanho pacífico, ordeiro, temente a Deus, e bem longe da sedução

dos comunistas, os quais também estavam atentos e ávidos por ampliar a sua base

de atuação política no campo, o que se dava principalmente através das ligas.

A disseminação desses sindicatos católicos esteve a cargo do Serviço de

Assistência Rural dos governos dos estados em parceria com as dioceses. A

atuação desse serviço é, oportunamente, assim registrado:

Foram criadas equipes de sindicalização no Rio Grande do Norte, Piauí, Paraíba, Sergipe, Maranhão e Alagoas. Essas equipes tinham o propósito de treinar e preparar líderes sindicais cristãos (CRUZ. 1982, p. 45).

130

No Piauí, já havia, no ano de 1960, um pouco menos de 60 associações

rurais congregando especificamente trabalhadores. Representando os proprietários,

fundada em 1951, existia a FAREPI, entidade não sindical estruturada conforme as

normas da legislação federal sob a organização da vida no meio rural. Essa entidade

representava e defendia os interesses dos grandes proprietários e pecuaristas,

particularmente, junto aos órgãos federais desse setor. Esta entidade promovia,

articulada com a Igreja, um trabalho assistencialista. Para tanto, dispunha do seu

específico Serviço Social Rural, que contava já àquela época, com uma equipe

especializada (MEDEIROS. 1996 p. 112).

Importante ressaltar que o número de trabalhadores registrados nas

respectivas entidades associativas crescia ano após ano em todas as regiões do

Brasil, mais de modo particular no nordeste conforme tabela abaixo:

ESTADOS DO

NORDESTE

ASSOCIAÇÕES RURAIS

NÚMERO DE ASSOCIADOS

1959 1960 1961 1962 1963 1964

MARANHÃO 9.564 9.878 11.878 11.872 11.038 11.160

PIAUÍ 3.362 3.597 4.597 4.597 3.932 4.082

CEARÁ 8.547 9.010 12.010 12.012 12.411 12.411

PERNAMBUCO 6.893 6.993 7.993 7.993 9.007 9.063

Fonte: Tabela sistematizada pelo autor a partir dos dados contidos nos anuários estatísticos do Brasil de 1962-1965.

É prudente ressaltar que nem todos as associados estavam vinculadas ao

fenômeno das ligas camponesas. O registro estatístico do segundo exército menciona

que havia no segundo semestre de 1963 duzentas e dezoito ligas espalhadas país a

fora. No Piauí, existiam apenas quatro, ALTATE (Teresina), ALTACAM (Campo

Maior), Associação Profissional dos Camponeses e Lavradores de Parnaíba e uma

última Associação Profissional dos Camponeses e Lavradores de Amarante. Embora

existissem pelo menos mais quatro ligas atuantes no estado, estas não

reconhecidas. Assim se deduz que o número deveria ser bem maior em todo

o país.

131

Fonte: Conselho Fiscal da Associação Profissional dos Camponeses e Lavradores de Parnaíba.

Em Campina Grande, na Paraíba, a Igreja Católica realizou, de 21 a 26

de maio de 1956, um importante encontro – o primeiro – dos bispos do Nordeste.

Esse evento contou com a participação de 19 bispos e foi prestigiado com a

presença do então Presidente da República Juscelino Kubistchek. O segundo

encontro de bispos do Nordeste ocorreu em Natal de 18 a 20 de maio de 1959.

Dentre as reivindicações mais importantes e significativas desse evento, destaca-se

a necessidade de criação de um órgão capaz de cuidar das políticas de governo

voltadas para a região Nordeste. Assim, foi criada em dezembro de 1959 a

Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE.

Vale ressaltar que a Igreja, por sua ala dita mais conservadora, já vinha,

assim, atuando há algum tempo de forma mais sistemática desde a criação da ACB

– Ação Católica Brasileira, conforme orientação estatutária. A origem da ACB é

descrita por Bruneau (1974, p.89) e de um modo mais preciso por Romeu Dale.

Considerando que a ação social cristã, ao visar à pacificação e à concórdia das classes, na mútua cooperação – que é fruto não só de justiça, mas de benevolência e caridade cristãs em toda a sua nobre função social –, que contribui muito para o bem-estar da sociedade civil; considerando os motivos sobrenaturais que, pela voz augusta do papa, nos impõe o dever de “preservar os operários das falsas doutrinas e dos perigos do socialismo e do comunismo” [...] (Estatutos da Ação Católica In: DALE. 1985, p. 35-36).

132

Nesse momento, alguns dos principais nomes do pensamento católico

conservador – entre eles, Plínio Correa, Alceu do Amaro Lima, defensor da

intervenção da Igreja sobre a educação formal e simpatizante do Integralismo de

Plínio Salgado, Geraldo Sigaud, arcebispo de Diamantina, em Minas Gerais, um dos

apoiadores do golpe civil-militar de 1964 e Vicente Scherer, arcebispo de Porto

Alegre-RS – mostram-se dispostos a marcar presença mais efetiva na vida política

do país. Para eles, a viabilidade de uma república aberta à possibilidade de ampla

ascensão das camadas mais populares e dispostas ao enfrentamento e à

desestabilização da ordem, da moral, da família, da propriedade era impensável. A

conjuntura política determinava ao clero, portanto, um posicionamento superior,

digno naquele embate de posições irreconciliáveis.

Nasce, nesse contexto, um organismo de assistência clerical nominado

de Cáritas. Uma entidade religiosa que, desde o seu nascedouro, já se apresentava

como responsável pela distribuição assistencial de toda ordem, tais como financeira,

material de construção, medicamentos e até com a formação de mutirões para

ações mais importantes, de envergaduras mais complexas, como construção e

reforma de moradias.

A Cáritas foi implantada em toda a América Latina. No Brasil, em

praticamente todas as dioceses do país. Ela trazia, no bojo de suas preocupações, a

determinação de atuar junto aos mais pobres, diminuindo os efeitos da situação de

mazela presente nas sociedades latino-americanas, colocando-se em oposição aos

movimentos revolucionários que avançavam muito naquele momento.

A ala progressista da Igreja também se movimentava. E nesse embate, a

voz firme e corajosa de Dom Helder dá o tom ao proclamar:

Que humilhação ver a pior das heresias tomar grandes causas cristãs do nosso século! Que cegueira, quando cristãos gastam mais tempo para denunciar o comunismo, do que para denunciar o escândalo; o maior do século – a miséria (WOLF e CASTILHO. 1968, p. 10).

O período central dessa análise corresponde às décadas de 50 e 60,

período em que os trabalhadores rurais no Brasil e também no Nordeste iniciam um

intenso processo de organização, objetivando conquistar direitos, inclusive

previdenciários, como a licença médica e aposentadoria, além de outros já

conferidos, pelo poder público, aos trabalhadores da cidade.

133

Esse dito processo de organização ocorre de modo intenso. Queda (1987,

p. 75) assim o descreve: “Nos primeiros anos da década de 1950, já existiam 511

associações rurais. Em agosto de 1958, estavam regulamentadas, no Serviço de

Economia Rural do Ministério da Agricultura, 1.500 associações rurais”. Tais entidades,

de acordo com o levantamento do próprio Queda (1987, p.75), estavam assim

quantificadas: Minas Gerais, 221; São Paulo,173; Ceará, 105; e Rio Grande do Sul, 100.

Como fica evidenciado pela expressividade dos números acima, pelo

menos em termos de associações, a partir de 1950 ocorre não somente um aumento

quantitativo, mas também qualitativo da participação dos trabalhadores rurais na

vida política brasileira.

Muitos eventos importantes, que bem denotam a capacidade política de

mobilização desse segmento, acontecem de Norte a Sul do país. São exemplos

dignos de registro: a I Conferência Nacional de Trabalhadores Agrícolas, envolvendo

lideranças de São Paulo, Ceará e Paraíba (1953); em 1954, ocorre o I Congresso

Nordestino de Trabalhadores Rurais; nesse mesmo ano, realiza-se a II Conferência

Nacional de Trabalhadores Agrícolas, evento que, além de contar com a presença

de mais de 300 integrantes e com a participação de 17 estados, ao final, aprovou a

Carta de Direitos e Reivindicações, documento em que inclusive confirmava a

fundação da ULTAB – União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil,

cuja orientação ficou com o PCB.

Também nesse mesmo contexto, aconteceu em 1961 o I Congresso

Nacional de Trabalhadores Agrícolas do Brasil, em Belo Horizonte, que contou com

um expressivo número de participantes do Nordeste, inclusive do Piauí. No mês de

maio, do mesmo ano, ocorreu o I Congresso de Trabalhadores e Camponeses do Piauí.

Quando chegou ao Piauí em 1956, para assumir

a Arquidiocese de Teresina, Dom Avelar vinha de Petrolina,

onde exerceu – bispado de nove anos – a sua missão

evangelizadora. Fortalecido pela rica experiência à frente

daquela diocese, os primeiros passos do religioso foram no

sentido de dialogar com os poderes constituídos e

apresentar seu projeto de evangelização para o estado,

particularmente para o então governador Chagas

Rodrigues, uma liderança de muita afinidade com os

trabalhadores do campo e da cidade.

Fonte: Arcebispo Dom Avelar B Vilella.

134

Convém ressaltar que Dom Avelar, sendo alagoano e de família ilustre,

conhecia bem a economia do açúcar e seus desdobramentos e, por ter passado em

Petrolina no exato momento da grande transformação do médio São Francisco com

os grandes projetos de irrigação da Codevasf e ter vindo para Teresina, uma cidade

com uma economia altamente paralisada sem qualquer fator de dinamismo, como

era o caso do litoral piauiense e da região do São Francisco, empreendeu com

relativo sucesso reformas, principalmente sociais.

2.3 Piauí, a última estação

No Piauí// de cada 100 crianças que nascem// 78 morrem antes de completar 8 anos de idade// No Piauí// de cada 100 crianças// que nascem// 78 morrem// antes// de

completar// 8 anos de idade// antes de completar 8 anos de idade// antes de completar 8 anos de idade// antes de completar 8 anos de idade// antes de

completar 8 anos de idade. (Poema Brasileiro, Ferreira Gullar, 1962)

O fim da linha é o fim da linha! Agora, o que esperar de uma estação

encravada exatamente no fim da linha? Movimentação? Não! Grande número de

embarcados e desembarcados? Não! Nesse tipo de estação, a leva de embarcados

é composta por aqueles já marcados pela desesperança. Os desembarcados, por

aqueles vindos a trabalho para cumprir uma missão temporária e por alguns

retirantes fugindo da seca. Estes, oriundos de alguns municípios do Piauí e também

de outros estados, aqui em Teresina, estabeleciam-se temporariamente em casas

de parentes ou, se não, já em barracos rústicos erguidos na periferia urbana nas

vizinhanças dos parentes.

Essa comparação metafórica – reportando-se ao Piauí, como uma

estação no fim da linha – quem a fez foi Dom Avelar Brandão Vilela, em 1985,

quando veio, em peregrinação pelas dioceses por onde passou comemorar, junto ao

clero piauiense, seus 50 anos de pregação sacerdotal.

Reinava um estado de desânimo. Ninguém acreditava em ninguém. As coisas começavam, mas não terminavam. O Piauí, eu comparava sempre como uma estação, onde o trem do Nordeste, saindo da Bahia e percorrendo os Estados, quando lá chegava não tinha mais o que deixar. Já tinha ficado no meio do caminho por onde passava os vagões do trem (MAGALHÃES. 1985 p.23).

135

“Eh, Piauí difícil!” Esta expressão – cunhada por Deoclécio Dantas e

muito recorrente em suas falas, inclusive no seu programa noticioso radiofônico

Revista Pioneira, quando, complementando-a, dirigia-se, expressivamente

estupefato, a seu operador de áudio, “(...) É uma lástima, Chico Paulo!” – endossa

de certa forma a metáfora de Dom Avelar.

Na década de 50, a população do Piauí chegava a 1 milhão de

habitantes. Em números mais precisos, a sua população era de 1.045.696 almas.

Desse total, 83,7% viviam na zona rural. Esses dados indicam que de cada seis

habitantes apenas um vivia na zona urbana. As maiores concentrações urbanas

estavam em Teresina, a capital, com 51.418 habitantes; Parnaíba, cidade litorânea,

situada ao Norte, com 30.174 habitantes; e Floriano, cidade do Médio Parnaíba, com

9.100 habitantes. Nesse período, o Piauí apresentava-se como um estado

totalmente dependente da importação de produtos manufaturados. Esses dados

populacionais correspondem à estatística do IBGE referenciada por Agenor de

Sousa Martins Et. al. (1979, p.127).

O cenário econômico do Piauí, portanto, na década de 50, ainda se

mostrava muito acanhado. Assim, 82,2% da população ativa compunham o setor

primário, que, por sua vez, dispunha de mão de obra não qualificada e com baixa

produtividade. Completando esse quadro, 3,7% desse contingente ativo

concentravam-se no setor secundário da economia produtiva do estado e 14,1%

compunham o setor de serviços.

Esse acanhamento perdurou até por volta de 1955, na verdade, revelava

um cenário de crise circunstancial na atividade agroexportadora da carnaúba e do

babaçu. Isso representou, num primeiro momento, a estagnação econômica, uma

vez que o extrativismo representava, à época, o principal setor do estado. Passada

essa primeira fase, a economia volta a dar sinais de recuperação, agora,

capitaneada por uma agricultura de subsistência: arroz, feijão, mandioca e milho. A

comercialização do excedente desses gêneros era destinada ao próprio mercado

nordestino. A chegada e a comercialização desses produtos representaram uma

espécie de concorrência aos produtos industrializados do Centro-Sul do País.

Teresina, nos anos 50, contava com 90.723 habitantes. Destes, 88.764

eram católicos. Esse percentual correspondia, em termos totalizantes, a 98% de

136

todo o universo populacional da capital, de acordo com o Censo de 1950. Ainda de

acordo com esse mesmo Censo, os que se diziam protestantes totalizavam 1.089 e

espíritas somavam 260.

Em 1944, são criadas as Dioceses de Teresina, Oeiras e Parnaíba. Em

09 de agosto de 1952, ainda na gestão de Dom Severino, a de Teresina é elevada à

condição de Arquidiocese. Quatro anos depois, Dom Avelar, após desembarcar na

capital do Piauí, na condição de arcebispo, apresenta às autoridades locais o seu

projeto evangelizador intitulado Evangelizar e Humanizar. Ele próprio em entrevista

ao jornal O Dominical (12 de agosto de 1956, p. 5) o explica:

(...) Dom Avelar Brandão Villela disse que o seu programa arquiepiscopal se resume em duas palavras: humanização e evangelização. Evangelizar é conquistar almas para Deus! Humanizar é dar, no seu corpo, a dignidade a quem tem jus a seu templo natural do espírito. Nessas duas palavras pode resumir a ação da atual igreja.

Dom Avelar foi atento às orientações da sua Igreja. De modo particular,

às emanadas diretamente pelo Vaticano, como, nesse tempo, às definidas na

Encíclica Miranda Prosus, de Pio XII, que dispensava uma atenção especial ao

progresso técnico e a tudo que representasse simbolicamente a modernidade.

Assim, esse religioso desenvolveu, na Arquidiocese de Teresina, a sua ação

evangelizadora de modo obediente e disciplinado aos preceitos postulados por essa

Encíclica.

Os meios de comunicação mereceram uma atenção cuidadosa da dele.

Ele sabia que se prestavam à amplificação dos discursos sociais; em mãos erradas,

seriam danosos, pois podiam prestar um desserviço aos preceitos da moral e da

ética cristãos.

Ao que parece, ao aportar no solo piauiense, seu projeto evangelizador já

estava traçado. Isso porque já no ano em que desembarcou no Piauí, em 1956, a

sua Arquidiocese realizou a primeira Conferência dos Bispos da Província

Eclesiástica do Piauí, tendo como centralidade temática a formação da opinião

pública através dos agentes de publicidade.

Na efetivação do projeto Evangelizar e Humanizar, Dom Avelar se

esmerou em fazer do jornal O Dominical, fundado em 1937 – assegurando a sua

137

periodicidade, que já havia, num certo momento, sido interrompida – um importante

instrumento de sua ação evangelizadora. E isso ele conseguiu, na medida em que o

reestruturou, melhorando inclusive a sua oficina e fortaleceu a marca e a presença

desse semanário no meio social, conforme bem ilustra a matéria intitulada O

Dominical será reestruturado, publicada no jornal O Dominical, (26 de julho, 1964,

página 2).

A equipe redacional desse semanário se mostrava muito atenta às

preocupações e às ações da Arquidiocese. Qualquer evento promovido por esta ou

qualquer outro similar ou fato/acontecimento alheio à Arquidiocese ou qualquer

paroquia, mas que comungasse com os preceitos da orientação católica, era motivo

de pauta. Alguns exemplos são, a seguir, registrados:

Matéria 01: Sobre os auspícios da Seplan, funcionará de 2 a 10 de maio próximo vindouro, um curso para líderes rurais. Será ministrado em regime de internato a 20 elementos da zona rural de Teresina e adjacências. O curso será ministrado pela senhora Julieta Calazans, especialista em sindicalismo e cooperativismo rural (O DOMINICAL. 29 de abril de 1962. p. 2). Matéria 02 A convite especial de. S. Exa. Revma. o Sr. Arcebispo Metropolitano de Teresina, Dom Avelar Brandão Vilela, chegará a Teresina, no próximo dia 6 de maio, a Equipe Nacional do Movimento por um Mundo Melhor, chefiada pelo Pe. José Marins. O curso será destinado a três categorias de pessoas, a saber: a) religiosos; b) estudantes secundaristas; c) adultos, e funcionará em regime de internato para as duas primeiras categorias na seguinte ordem: 1) religiosos: de 6 as 12, no Colégio Sagrado Coração de Jesus; 2) estudantes: de 12 as 15, na Socopo; 3) adultos: diariamente, à noite. Cada grupo constará de, no máximo, 80 cursistas recrutados nas paróquias da Arquidiocese de Teresina (O DOMINICAL. 29 de abril de 1962. p. 3). Matéria 03 Dentro de mais alguns dias estará no ar a Voz da Arquidiocese, a Rádio Pioneira de Teresina. (O Dominical, edição de 20.05.1962).

Também, a equipe editorial do semanário O Dominical se mostrava

vigilante em relação aos inimigos da orientação católica, como bem ilustram as

matérias abaixo:

138

Matéria 01 Para vencer a ideologia vermelha, os principais meios são a fé e a oração. Um exército de fé, organizado em todo o mundo, derrotará o comunismo, pois as armas espirituais são mais poderosas do que quaisquer outras. Há outros meios para a salvação do mundo do comunismo? Não. Apenas fé e oração (DOM ARMANDO LOMNARDI In O DOMINICAL, ed. de 06 de novembro de1960). Matéria 02 Considerando que a missão deste juizado (...) declarar o caráter obsceno de revistas ou outros impressos, no sentido de proibir sua exposição e venda (...) considerando que cresce a reação das famílias contra as más revistas (...) fica expressamente proibida na capital, a exposição, venda ou fornecimento das seguintes publicações: Mundo Ilustrado (número 9, de 26.02.1958); Manchete (número 305 de 22.02.1958 e número 306 de 01.03.1958); Revista do Rádio (número 442 de 01.11.1958); Seleções de Idílio (romance); Seleções de Rir Ilustrada (pornografia); TAB; Tentação e VUE (pornografia); Guia Sexual (...) os exemplares encontrados no comércio serão apreendidos (O DOMINICAL. 08.03 de1959, p.03)

Como se pode perceber, o jornal O Dominical (1937-1971) foi um

importante instrumento da ação evangelizadora do clero piauiense. Tanto que se

fazia atento e vigilante a tudo que se apresentava como nocivo a ela, como é bem o

caso da matéria acima relacionada à proibição de revistas e outras publicações por

determinação judicial.

Nesse empenho, o jornal trazia, também, com frequência, matérias e/ou

artigos abordando temas – alguns inclusive de certa complexidade – que

favorecessem uma reflexão capaz de fortalecer o ideário cristão, em conformidade

com os ditames da doutrina social da Igreja. Assim, eram constantes as reflexões e

orientações sobre as normas de conduta do bom cristão. Desse modo, era também

recorrente alertar as famílias e a sociedade sobre os perigos advindos da

modernidade e do avanço do protestantismo, comunismo e do espiritismo, todos

considerados arqui-inimigos do catolicismo.

Outro importante instrumento do qual a Arquidiocese de Teresina também

lançou mão para dar sequência eficaz ao seu projeto evangelizador foi o rádio.

Nesse empenho e muito consciente de sua missão arquidiocesana, fundou, em

08.09.1962, em parceria com empresários da capital, a Rádio Pioneira de Teresina,

integrada à RENEC – Representação Nacional de Emissoras Católicas e sob a

139

responsabilidade da CNBB. Essa emissora, desde o nascedouro do seu projeto, é

parte integrante da Fundação Dom Avelar.

Essa emissora em questão, idealizada por esse arcebispo, constituiu-se

como personalidade jurídica a partir, sim, de um ideário clerical, porém comungado

por um grupo de acionistas da capital. A Arquidiocese tomou à frente do projeto,

como acionista majoritária, seguida pelo empresário Jesus Elias Tajra.

A visão de Dom Avelar tinha um alcance extraordinário. Ele era detentor

de uma incomum capacidade de prospecção. Assim, ele conseguia antever,

inclusive, situações muitos antes de serem enunciadas ou mesmo pensadas pela

maioria dos mortais. O papel e a força do rádio naquele contexto histórico é um bom

exemplo. No caso do Piauí, em particular, que contava com apenas duas emissoras

de rádio pertencentes a dois grupos políticos antagônicos – Clube e Difusora – e

nem sequer ainda dispunha de canais de televisão.

A força do rádio naquele contexto era indiscutível. Pensava assim Pio XII,

que já recomendava o seu uso pelo clero na Encíclica Miranda Prosus (1957).

Considerando (...) atentamente as possibilidades que nos oferece o rádio para o apostolado, e impelidos pelo mandato do Divino Redentor “Indo por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura”, rogamo-vos, veneráveis irmãos, que aumenteis e aperfeiçoeis mais ainda, segundo as necessidades e possibilidades de cada lugar, as transmissões religiosas (ENCÍCLICA MIRANDA PROSUS. 1957. Tóp. 49)

A abrangência do rádio, para muito além das considerações geográficas –

no caso do Piauí em particular – alcançava um público grandioso do contingente

populacional, que era predominantemente católico e constituído de um alto índice de

analfabetos.

Uma emissora de rádio católica facilitaria, portanto, como realmente

facilitou e de forma substancial, a ação evangelizadora pensada por Dom Avelar

para a sua Arquidiocese.

A Rádio Pioneira de Teresina logo se integrou ao cotidiano da sociedade

piauiense, com a sua diversificada programação.

Integrava a programação noticiosa a Revista Pioneira – de segunda a

sábado, às 7h, apresentado por Deoclécio Dantas – e o Correspondente Pioneira –

140

de segunda a sexta, às 12h, apresentado por Carlos Augusto de Araújo Lima e

Deoclécio Dantas.

Os programas de cunho religioso eram diluídos na grade da programação

diária da emissora. Dentre estes, Oração Por um Dia Feliz, diário, apresentado por

Dom Avelar, às 6h da manhã e ao meio-dia; Desperta Camponês, levado ao ar por

Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira, terça, quinta, sábado e domingo, sempre às 6h30.

Dos educativos, merece registro o Movimento de Educação de Base.

Tratava-se de um programa decorrente de um entendimento, parceria entre o

Governo Federal, através da Campanha Nacional de Educação Rural do Ministério

da Educação e Cultura, e a CNBB. A sua operacionalidade, no Piauí, ficou a cargo

da Igreja e esta o executava via Rádio Pioneira. O MEB acontecia sempre à noite,

na forma de aulas radiofônicas direcionadas às escolas integrantes do movimento,

principalmente as do interior. Essas aulas, para além dos assuntos conteudísticos

voltados para a alfabetização de adultos, eram utilizadas, também, como meio de

disseminação de valores católicos.

O MEB tinha em sua coordenação pessoas formadas, na sua maioria, em

nível superior, normalmente, jovens dispostos a contribuir a partir de uma forte

preparação levada a efeito por bispos, padres e outros agentes pastorais para a

melhoria das condições de vida da população. Para tanto, foram recrutados

monitores que frequentemente participavam de cursos de formação, de encontros

que trabalhavam estratégias de abordagem dos temas a serem levados a efeito nas

aulas. Esses cursos geralmente aconteciam nos centros urbanos, onde um

verdadeiro arsenal de informações, cuidados, estratégias e saberes eram

repassados; ao mesmo tempo, os cursistas eram convocados a realizar

levantamento dos principais problemas encontrados nas bases onde atuariam.

Na sua relação com a Igreja, o MEB foi definido como um projeto pastoral,

uma ação que colocava esta e sua hierarquia em uma atuação direta com a

comunidade.

A religiosidade é um referencial de lugar de sujeito na sociedade, e, no momento em que a rádio Pioneira coloca-se como emissora católica, e veicula a ideologia cristã, as “orações por dias felizes” produzem processo de identificação imediata com os ouvintes. Como as classes populares também possuem sua religiosidade, desde que tendo acesso ao rádio, é possível de ter na Pioneira um representante de si próprio (SANTIAGO JÚNIOR 2002, p 48-49).

141

E a mídia impressa local oportunamente também o endossou.

O rádio indiscutivelmente é uma grande invenção. Como é interessante, do conforto de nosso católico lar, cuidando dos afazeres ou mesmo em repouso – estarmos a par de tudo que se passa no mundo, de minuto a minuto. Anuncia-se um desastre de avião em qualquer parte. Uma conferência entre chefes de Estado. O lançamento de homem ao espaço, numa velocidade extraordinária de mais de 25 mil quilômetros por hora. Inundações e catástrofes nos mais diferentes pontos do globo. Acontecimentos de além-fronteiras, onde as línguas e os costumes se confundem com as religiões. Tudo vem até nós através do rádio (FOLHA DA MANHÃ. 1963, p. 3).

Com o semanário O Dominical reformulado e a sua periodicidade

garantida, a Rádio Pioneira em pleno funcionamento e a realização efetiva das

Semanas Ruralistas, promovidas pelo interior do estado, a Arquidiocese de Teresina

estava, assim, definitivamente instrumentalizada com vistas à implementação do

projeto Evangelizar e Humanizar, elaborado por Dom Avelar.

Em relação às Semanas Ruralistas, a Arquidiocese de Teresina pretendia

tornar possível uma intervenção mais direta no processo social.

A Semana Ruralista, no Piauí, foi instalada – tendo por tema central O

Homem para a Terra e a Terra para o Homem – oficialmente em 6 de agosto de

1956 em Teresina. O evento que contava com as parcerias do Ministério da

Agricultura e do Governo do Estado foi aberto solenemente na manhã desse dia

pelo seu idealizador Dom Avelar, que, após acolher, saudar e agradecer a presença

de todos, falou sobre a importância daquele momento, sumarizando os eixos

temáticos constantes da programação: formação do produtor rural, financiamento

público da agricultura, vantagens de sementes selecionadas, valor econômico da

fruticultura, convivência com a seca, formação de líderes rurais cristãos, aspectos

sociais e econômicos de Teresina, educação de base como fator de progresso de

um povo e de uma região, cooperativismo e associativismo.

Dos temas abordados, Dom Avelar não escondia a sua predileção por

dois em particular: a educação de base e cooperativismo e associativismo. Sobre o

primeiro, seu cuidado era esmerado porque entendia que o camponês alfabetizado a

partir de uma orientação cristã – evangelização – tornar-se-ia mais ciente sobre o

sentido da vida – humanização – e, assim, não mais se descuidaria dos inimigos –

142

comunistas – que ameaçavam a ordem social a partir de um discurso contrário aos

preceitos do verdadeiro catolicismo.

Em relação ao tema que discorria sobre o cooperativismo e o

associativismo, Dom Avelar o via como propício para fundamentar a importância do

estar junto de modo corporativo por identidade. E aí, nesse momento, surgia a

oportunidade de fomentar e subsidiar a criação de sindicatos católicos.

Prestigiaram a solenidade de abertura do evento autoridades dos

executivos estadual, municipal e diversas outras compostas por militares, civis,

eclesiásticas e jurídicas. Dentre as jurídicas, destacou-se a FAREPI – Federação

Ruralista do Piauí.

A Semana Ruralista de Teresina – ocorrida do dia 6 a 11 de agosto de

1956 – de acordo com a mídia local, radiofônica e impressa, foi muito produtiva e

contou com um expressivo número de inscritos participantes, tais como: produtores

rurais, trabalhadores rurais, líderes camponeses, técnicos dos governos federal,

estadual e municipal e professores.

O sucesso da experiência dessa Semana Ruralista superou tanto a

expectativa que Dom Avelar – entendendo estar consolidada como estratégia de

ação do seu projeto Evangelizar e Humanizar – logo cuidou de dar sequência a essa

ação, como pretendia e estava previsto no seu projeto arquidiocesano. Assim,

começou a interiorização da Arquidiocese de Teresina.

Depois de Teresina, o município que primeiro sediou a experiência desse

evento foi Campo Maior. Assim, em 1957, de 18 a 25 de agosto, aconteceu a

Semana Ruralista de Campo Maior.

A Comissão de Propaganda e Publicidade – criada pela Arquidiocese de

Teresina para divulgação das Semanas Ruralistas – reportando-se à de Campo

Maior em particular dias antes do início do evento, assim, manifestou-se:

Trata-se, essa Semana Ruralista, como a primeira de mais uma notável iniciativa de Sua Exa. Sr. Dom Avelar Brandão Villela pelo desenvolvimento social e econômico do nosso estado. Durante essa Semana Ruralista, inúmeros problemas serão debatidos, exposição de produtos agrícolas, de trabalhos manuais, de pecuária, serão feitos cursos de indústria rural caseira e economia doméstica, será ministrado tudo para o progresso piauiense. Esperamos que todos os desejosos de resolução dos nossos problemas mais vitais compareçam à segunda Semana Ruralista do Piauí (O DOMINICAL, 29 de julho de 1957, p. 2).

143

Emissoras de rádio e jornais impressos da época pautaram a Semana

Ruralista de Campo Maior no decorrer de todo o evento, desde a abertura solene,

também a cargo de Dom Avelar, até o encerramento.

O evento em Campo Maior teve uma repercussão muito positiva no meio

social. Tais repercussões se consubstanciaram fundamentalmente no fato de, no

decorrer de alguns eixos temáticos da programação constante da pauta, terem sido

perpassadas algumas precisas orientações técnicas. Todas no sentido de

possibilitar o desenvolvimento econômico da região.

Uma, em particular, mereceu destaque especial e ensejava a orientação

técnica de se incrementar o plantio de algodão, mamona e gergelim.

A esse respeito, por sugestão do deputado estadual Sigefredo Pacheco,

as sementes de mamonas e gergelim ficariam por conta dos próprios interessados.

Em relação às restantes, ou seja, às sementes de algodão, o parlamentar pontuou

que se fizesse um apelo ao Ministério da Agricultura com vistas ao envio de uma

verba extra destinada à aquisição delas.

A terceira Semana Ruralista do Piauí aconteceu na cidade de União de 3

a 8 de novembro de 1959. A programação desse evento não difere muito das duas

Semanas Ruralistas – a de Teresina e a de Campo Maior – anteriores. A abertura

seguiu o mesmo rito sob a responsabilidade de Dom Avelar. Os eixos temáticos

constantes na programação dessa Semana Ruralista também contemplaram, entre

outros temas, a formação do produtor rural, linhas de financiamento da agricultura,

vantagens de sementes selecionadas, valor econômico da fruticultura, convivência

com a seca, formação de líderes rurais cristãos, aspectos sociais e econômicos do

município, educação de base como fator de progresso de um povo e de uma região

e também cooperativismo e associativismo.

Das proposições e sugestões emergidas desse evento, destacam-se a

continuidade e a intensificação de formação de líderes rurais, cooperativismo e

associativismo e a consequente expansão do sindicalismo de orientação cristã a

partir da criação de novos sindicatos, a criação de uma secretaria arquidiocesana

para cuidar administrativamente das Semanas Ruralistas, e a modernização da

agricultura na região, que se encontrava ainda muito rudimentar.

As Semanas Ruralistas da Arquidiocese de Teresina se restringiram a

esses três municípios – Teresina, Campo Maior e União – porque esses municípios na

144

época eram os que mais tensões e conflitos apresentavam e já havia movimentos com

vistas à organização dos trabalhadores rurais. Era um período marcado por conturbações

políticas e os comunistas, mesmo sem registro de suas legendas – cassadas por

Dutra em 1946 – buscavam criar espaços nas zonas rurais no arrepio da lei.

O posicionamento de Dom Avelar era bastante claro em relação aos

movimentos sociais alheios à doutrina cristã. O religioso se contrapunha de modo

transparente a esses movimentos e os combatia de modo estratégico, oportunizando

cursos regulares de lideranças rurais, orientando e subsidiando a criação de

sindicatos católicos.

O movimento social que já estamos empreendendo coloca-se na esfera exclusiva da doutrina social da Igreja. Apresenta-se ao público sem qualquer compromisso, não endossa conceitos alheios, não se confunde com interesses partidários. Precisa da cooperação bem intencionada de todos e a todos lembra a necessidade de sensatez e da ação, em termos de verdade, de justiça e de amor (FOLHA DA MANHÃ. 31 de março de 1962, p.6).

O arcebispo de Teresina acreditava que o enfrentamento aos movimentos

sociais contrários à doutrina da Igreja seria exitoso se pautado em ações específicas

e planejadas, tais como: cursos de lideranças rurais, criação de sindicatos católicos

e, principalmente, a realização das Semanas Ruralistas.

O sistema de relação entre proprietários e “agregados” não funciona em termos de justiça social. Por essa brecha estão entrando as ligas camponesas, levando, por isso mesmo, certo conteúdo social (...) Sim, vínhamos nos preparando desde algum tempo para o lançamento dos sindicatos rurais, quando eclodiu o movimento das ligas. Nosso movimento não sai a campo por causa do outro para combatê-lo sistematicamente. Esperamos organizar os sindicatos de trabalhadores do campo e promover os cursos de lideranças rurais, organizar outras semanas ruralistas que irão garantir o êxito e a orientação das organizações (...) Nós distinguimos certos líderes ou pretensos líderes que atuam no meio da massa trabalhadora que vive desassistida (...) é nosso dever alertar contra as infiltrações comunistas ou para comunistas (DOMINICAL. 1 de abril de 1962, p. 1).

Outros eventos semelhantes às experiências implementadas por Dom

Avelar se registraram em outras Dioceses do Piauí. Assim, foram realizadas

Semanas Ruralistas em Curimatá, de 23 a 25 de setembro de 1959; e em Corrente,

de 5 a 11 de outubro de 1960.

145

Ao decidir entrar em campo, a Igreja muito mais que interiorizar a sua

ação evangelizadora pretendia mesmo era afugentar de perto do seu rebanho de

fiéis – particularmente das ditas ovelhas desgarradas – os comunistas que

buscavam seduzir seu rebanho via criação de Ligas Camponesas. Assustava

também a Igreja a expansão do protestantismo e a doutrina kardexista.

Embora tenha se revelado contrário ao movimento das Ligas

Camponesas no Piauí é importante e necessário considerar que Dom Avelar,

mesmo sendo uma personalidade de comportamentos ambíguos, ora mais

avançado e reformista, ora claramente conservador e legalista, representou um

contraponto, ao poder político, dos latifundiários e do próprio estado até então

absolutos, instalado no Piauí nesses 300 anos.

O Palácio da Graça, a casa do Arcebispo, foi tão ou mais prestigiado do

que o próprio Palácio de Karnak. Dom Avelar foi seguramente um diferencial na

motivação e divulgação do pensamento. A criação da Rádio Pioneira de Teresina e

da Faculdade de Filosofia representa bem essa capacidade fomentadora.

2.4 Sindicato católico: a luta continua, mas com outras táticas

A miséria agravou-se no país na segunda metade do século XX – de

modo bem mais aguçado nos seus derradeiros anos – e isso acarretou graves

problemas à esfera pública. Esse quadro foi bem mais acentuado no Nordeste que,

sempre castigado pela seca, viu ampliar na população a legião de indigentes. Embora

a pobreza e a miséria estejam espalhadas por todo território nacional, sua presença

é seguramente mais forte no meio rural, principalmente no semiárido nordestino.

É praticamente um consenso que essa região passou a ser, vista de cima,

um problema para o país. Mas um problema para quem? Por quê? E mais, era um

problema com ou sem solução plausível? Tendo solução, quem deveria empenhar-

se nessa missão? Albuquerque (1999) ao se reportar ao Nordeste o faz identificando

essa região como sendo: “um espaço de utopias, um lugar de sonhos, o novo

amanhã, com uma identidade espacial construída no preciso momento histórico do

entrecruzamento de práticas e discursos regionalistas”.

Para Callado (1979), nesse cenário de efervescência e construção de

utopias, Pernambuco se distancia das demais unidades da federação, a

compreensão dele é a seguinte:

146

Pernambuco é, nesse momento, o maior laboratório de experiências sociais e o maior produtor de ideias no Brasil. Pernambuco nem se parece com Cuba, nem com a URSS. Por um lado já não se parece mais com o resto do Brasil. Sua pobreza continuava enorme, mas sua atividade revolucionária, sua busca de soluções em todos os terrenos, dá-lhe uma vitalidade maior que a de qualquer Estado (CALLADO. 1979, p. 46).

Sabe-se que, desde a República Velha (1889-1930), o trabalhador, fosse

ele urbano ou rural, era tratado como caso de polícia e não de política. Não era,

portanto, visto como uma questão social. Porque isso acontecia? Em parte, devido à

formação autoritária e patrimonialista da elite brasileira que comandava o estado e,

também, já como desdobramento desse perfil social e político, porque a legislação

populista e fascista do governo Vargas (1937-1945), no que tange à legislação

trabalhista, não contemplava os trabalhadores do meio rural.

A criminalização dos movimentos sociais foi a forma mais desastrada de

administrar a complexidade de expectativas sociais que demandavam o judiciário.

Esta se ampara na normatividade cultural de pertencer a um segmento social e a um

conjunto de crenças. Crenças estas que fazem, por sua vez, ver nos movimentos

sociais um inimigo, outro contra quem cabe defender-se pelos mecanismos

instituídos.

Diante dessa conjuntura desfavorável ao trabalhador, a solução possível

seria a organização em associações civis. Bezerra (1979) ilustra tal contexto ao

afirmar:

[...] nesta época, ou até mesmo antes de 1945, existiram organizações no campo com objetivo reivindicativo. Estas entidades tinham quase sempre nomes de santos, de acordo com a preferência da população e com o objetivo de evitar a reação do governo, do latifúndio e da própria Igreja, como União Camponesa Santa Teresinha, Irmandade Camponesa Santa Madalena, Associação de Trabalhadores e Camponeses de Jesus, dentre outras. (BEZERRA. 1979, p. 225).

Como se sabe, as tentativas de fugir do olhar condenatório da Igreja,

perseguidor dos latifundiários e expositivos da imprensa, não deram muito resultado.

O próprio Julião, líder do movimento social em Pernambuco, ao se referir à

denominação liga assim se reporta:

147

Quem batizou a Sociedade Agrícola com esse nome de “LIGA”, em 1955 foram os jornais de Recife para torná-la ilegal. A liga começou sendo crônica policial. Qualquer coisa relacionada com a liga estava na página policial (JULIÃO.1979, apud SILVA, 2003, p. 3).

No Piauí, um dos aspectos que agudizou a questão e provocou a Igreja

liderada por Dom Avelar com o objetivo de acelerar a criação e difusão dos

sindicatos católicos, principal meio de enfraquecimento das associações ou ligas,

pode ser explicado, principalmente, a partir da percepção pelo clero do importante

papel desenvolvido pela ALTACAM, em Campo Maior e ALTATE em Teresina.

Essas duas entidades fomentavam um importante diálogo de interesse

das classes populares na luta por melhores condições de vida. A emergência dessas

entidades ocorre nas incursões administrativas do governo Chagas Rodrigues –

governador do estado pelo PTB, com forte apelo trabalhista, entre 1959-1962.

A gestão de Chagas Rodrigues foi marcada por uma postura desviante,

em certa medida, do perfil adotado pelos governadores que o antecederam como

também por seu sucessor, Petrônio Portela. Exemplo dessa postura desviante pode

ser percebido na criação da Casa dos Sindicatos e de um programa radiofônico na

Rádio Clube de Teresina de propriedade do jornalista Walter Alencar. O programa

intitulava-se Falando ao Povo.

Essa postura do governador desagradara a muitos; inclusive e

principalmente aos latifundiários e à Igreja. A questão se apresentava como bastante

delicada para Chagas Rodrigues na medida em que ele se esforçava para evitar

qualquer tipo de animosidade com instituições populares, de peso e importância,

como era na época a Igreja Católica.

Empenhada em cumprir sua missão e, ao mesmo tempo, combater os

inimigos já eleitos e declarados, por sua hierarquia e doutrina, a Igreja Católica

ancorada na argumentação de que precisava defender seu rebanho desses ditos

inimigos comunistas e anticristãos, mobiliza-se e entra em campo. Sua presença,

nesse ambiente de miséria e injustiça, dá-se a partir instrumentos como o MEB, os

sindicatos católicos e outros mecanismos, como a ASA – Ação Social

Arquidiocesana, e, mais tarde, a CÁRITAS do Piauí.

A atuação mais efetiva da Igreja Católica, no Piauí, dá-se a partir de

1956, ano em que chega a Teresina Dom Avelar. A partir de então, a população

pobre da cidade começa a conviver com os trabalhos e ações de voluntários. Sobre

148

o trabalho e atuação da ASA, entidade que coordenava esse serviço voluntário, a

partir e somente sobre a orientação do novo bispo, Setubal faz a seguinte ponderação:

Em 1960 foi criada oficialmente a ASA, com várias obras sociais, como os centros sociais de Nossa Senhora de Fátima, Leão XII e Cristo Rei, onde funcionavam as oficinas de serraria, carpintaria, sapataria [...] e eram distribuídos donativos (inicialmente a todos as pessoas necessitadas que procuravam os centros) depois apenas às pessoas dos bairros onde as mesmas estavam localizadas (SETÚBAL. 1983, p. 130).

Embora Teresina fosse uma capital pobre, necessitasse muito e

absorvesse sozinha essa ação da Igreja, sabe-se que as atividades da ASA não

ficaram circunscritas à sede e progressivamente se expandiram sob a forma de

projetos, programas sociais e instituições que foram, em parceria ou

individualmente, sendo criadas num esforço de atenuar e até solucionar as

crescentes demandas da população.

No intento de frear o crescimento das Ligas Camponesas - já

estabelecidas em Teresina, Campo Maior, Parnaíba, Regeneração e Amarante e

em outras cidades de menor importância política e econômica -, fortalecer sua

atuação evangelizadora e consolidar sua hegemonia e poder junto ao camponês e

toda sua família, Dom Avelar traça um audacioso plano de sindicalização para o

interior do estado.

O plano seria levado a efeito em cada cidade pelo padre responsável pela

paróquia com apoio e respaldo do MEB e ainda o assessoramente da Secretaria de

Planejamento do Estado. Sobre esse plano, nas palavras de Nascimento (2004,

p85) o líder religioso faz a seguinte ponderação: “a Igreja partirá, oficialmente a partir

de 1962, para o trabalho de sindicalização. Essa iniciativa é orientada por um roteiro.

Mas esse processo tem como norte a esfera exclusiva da doutrina social da igreja”.

Nos quadros da Igreja, alguns bispos levaram muito a termo a tarefa de

fundar sindicatos que pudessem, dentro da orientação mais moderada da sua

doutrina social, dividir, fragilizar e até mesmo transformar, a partir dos necessários

expurgos de certas lideranças, as ligas em sindicatos cristãos. Dom Avelar no Piauí,

Dom José Terceiro na Diocese de Penedo, em Alagoas, e Dom José Távora em

Aracaju, figuram como nomes mais destacados.

149

Foi no esforço de concretizar seus objetivos que Dom Avelar orientou a

criação em Teresina no ano de 1962, do primeiro sindicato do Estado: o Sindicato de

Trabalhadores Rurais de Teresina, cujo primeiro presidente foi o agricultor Joaquim

Campelo da Silva, que participaria, com financiamento da Arquidiocese de Teresina,

em julho de 1963, em Natal, da I Convenção Brasileira de Sindicatos Rurais. Esse

evento contou com a participação de 18 estados brasileiros.

Em entrevista concedida a este pesquisador, um dos principais líderes

dos trabalhadores rurais de Campo Maior e primeiro presidente do STRCM, o

agricultor Antonio Damião de Sousa, ao falar das motivações e estratégias para

criação do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Campo Maior, faz a seguinte

declaração:

No começo eu e meus companheiros o Luis Pedro da Rocha, o Pedro Simplício e mais outros, tava tudo junto com os Eduwiges. E fiquemo quase uns sete mês, um ano, mas além da gente não concordar com as maneiras deles levarem o movimento, nois também não tinha muita importância. Tudo, tudo era o Luiz que tocava, que botava pra frente e tudo da maneira dele. Um dia eu procurei ele e perguntei: Luis tu não quer dividir esse trabalho de organizar os agricultores com outros companheiros, não? Tu já reparou que se tu não marcar uma conversa, uma reunião fica tudo na mesma, parado? Ele respondeu meio esquentado, e o que é que tu quer que eu faça?

O agricultor Antônio Damião conta que já não estava muito interessado e

que por isso nunca havia feito a carteira de sócio da ALTACAM. Depois daquela

conversa, ele estava disposto não somente em se afastar, mas principalmente

catequizar alguns amigos para fundar o sindicato. O líder camponês também afirma

que já tinha conversado sobre o assunto com o padre Mateus, responsável pela

paróquia de Santo Antônio e homem autorizado por Dom Avelar para criar na cidade

de Campo Maior um sindicato com a orientação da Igreja.

Para dar andamento à ideia, o líder campesino conta que a primeira

providência foi participar de um curso que iria acontecer em Fortaleza-CE. Esse

curso seria patrocinado pela própria Igreja em parceria com o governo do Ceará. O

agricultor afirma ainda que lá encontrou gente de Campo Maior, Piripiri e Teresina.

Quanto aos temas, ele relembra que as palestras foram sobre legislação sindical,

liderança no meio rural, participação política, associativismo e outros assuntos.

150

Para Ramsés Sousa, a Igreja Católica tinha, na pessoa de Dom Avelar,

muito mais do que um plano de evangelização para o campo. Outras preocupações

povoavam e inquietavam o clero. Ele, ao descrever a atuação do líder religioso no

Piauí, usa o seguinte argumento: “A celeridade com a qual a Igreja Católica pôs em

prática seu planejamento em relação à sindicalização rural, dificilmente poderá ser

separada da sua pretensão de evitar as infiltrações no campo” (SOUZA. 2015, p.

58).

A criação logo em seguida dos sindicatos católicos em Campo Maior,

Regeneração, Amarante, Angical, Monsenhor Gil, União e Miguel Alves revela a

disposição do líder religioso, não somente em minar a atuação das associações /

ligas, vistas por ele como entidades inferiores se comparadas aos seus sindicatos,

mas também de consolidar por meio dessas organizações laicas como os ditos

sindicatos e o MEB, o seu projeto evangelizador. Registra-se que a fundação da

quase totalidade desses sindicatos se deu em cidades onde as associações eram

bem atuantes.

A Igreja tinha profundo conhecimento da realidade brasileira,

especialmente no campo onde ela atuava mais efetivamente na última década

correspondente ao recorte temporal desta pesquisa. O padre Tiago G. Cloin (1962),

ao tentar explicar a grande mobilização que acontecia no meio rural, especialmente

no Nordeste, assim se posiciona: “a zona rural constitui a zona mais explosiva do

país, mais explosiva até que a urbana. O comunismo tramita-se e agita-se, tentando

conquistá-la pela sindicalização das ligas camponesas”. Sobre a situação

educacional do país, a Igreja mostrava-se muito preocupada com o elevado número

de analfabetos; grupo este mais vulnerável aos apelos das ligas e outras entidades

não recomendadas por ela.

Para Fernando Novaes (1997), “Julião foi reconhecido pelos camponeses

como profeta que trazia pessoalmente a nova era”. Dentre as propostas das ligas,

figurava uma em especial, a escolarização via alfabetização de jovens e adultos.

Esta muito preocupava a Igreja, pois sabia, por exemplo, que, dos 70 milhões de

habitantes que o país tinha na década de 50 para 60, somente 15 milhões podiam

votar e, mais, sabia também que o voto para os analfabetos era uma das bandeiras

de lutas defendidas por Julião e as ligas.

151

Nesse sentido, e principalmente preocupada em não sofrer mais esse

golpe na disputa com as ligas ou associações inimigas, a Igreja implementou em

toda região as Escolas Radiofônicas. Através dessas escolas, o MEB deu

organicidade e legalidade a centenas de sindicatos. A educação sindical passou a

ser a principal estratégia para se chegar ao homem do campo, livrá-lo das ligas e de

qualquer ideologia anticristã. O MEB foi, portanto, o maior programa de educação

pelo rádio, com apoio do governo e de outras organizações que tinham interesse na

questão.

Para Ramsés Sousa (2015), o MEB realmente transformou o meio rural

piauiense. Para este pesquisador:

[...] é impossível não imaginar o enorme alargamento das possibilidades de acesso à educação que os camponeses tiveram após a criação do MEB. Tendo em vista que a Arquidiocese concedia os pequenos aparelhos de rádio e pilha para os camponeses, as aulas transmitidas pela Rádio Pioneira de Teresina deveriam ser bastante aguardadas pelos lavradores. Em um período em que mais de 2/3 da população piauiense não tinha acesso à educação formal. Os camponeses certamente encararam os programas radiofônicos do MEB como uma possibilidade de emancipação através da educação (SOUSA. 2015, p. 307).

O agricultor e líder do Sindicato Rural (católico) de Campo Maior, Antonio

Damião, ao descrever os encontros na sede da entidade para assistir às aulas,

ilustra bem essa situação:

Você acredita que a maior satisfação nossa era encontrar o pessoal na porta do sindicato esperando dona Jesus, esposa do Deusdete, lá do Recreio, para abrir as portas, e nois assistir as prosa. Era bom demais! A gente se animava, aprendia e ainda tomava café com bolo. Isso mesmo, toda aula a gente combinava quem ia trazer a merenda.

A professora Maria do Amparo Carvalho (2006), sobre a atuação da

Igreja, através do MEB – mesmo sem se reportar especificamente a ele na citação a

ser exposta com a propriedade e a profundidade norteada na sua dissertação de

Mestrado – a orientação de filiação sindical e a própria atuação de Dom Avelar no

estado, faz a seguinte ponderação:

152

[...] de um modo ou de outro, a sindicalização proposta por Dom Avelar desencadeou um processo de organização na zona rural, e, por outro lado, causou uma série de dificuldades e mal entendidos entre as lideranças eclesiásticas e os proprietários de terras (CARVALHO. 2006, p. 52).

Embora as bandeiras defendidas pelo sindicato fossem claramente mais

moderadas não somente no conteúdo, mas também nas estratégias de lutas, o que

se percebeu foi um rápido crescimento do sindicato católico de Campo Maior. Muitos

de seus novos integrantes vinham da ALTACAM. Gente como o agricultor

Pedro Soares de Brito, da localidade “ Corredores”, que entrou no sindicato no início

de sua fundação, no final do ano de 1963, também participou da liga. Ao explicar por

que se afastou da ALTACAM e se filiou ao sindicato católico, o lavrador faz uma

verdadeira declaração de reconhecimento ao trabalho da Liga de Matinhos quando

afirma:

Na verdade eu e alguns outros acreditava que a liga era mais verdadeira na hora de defender a gente. O seu Luiz era homi que enfrentava as coisas de perto. Agora, também, as coisas era tudo na mão dele. Ninguém mais fazia coisa de nada se ele não tivesse por perto. No sindicato, nois via que tinha mais gente para resolver as coisas. Lá, tinha até aquele bicho que arranca dente, como é? O doutor que arranca dente! Um dentista. Também, tinha gente que ajeitava nosso aposento. Lá, eu vi que nossas coisas iam dar certo também. Tinha outra coisa... o padre Mateus tava sempre junto de nois, porcurando saber se tava tudo indo bem.

Como se pode depreender da fala do agricultor, o sindicato atuava

principalmente nas demandas previdenciárias e assistencialistas. Não fazia o

enfrentamento direto com os latifundiários; e quando fazia era sempre com a

mediação pacífica das Juntas de Conciliação e Julgamento, isto é, na esfera dos

tribunais no âmbito da legalidade do estado e da orientação do clero campo-

maiorense.

O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campo Maior, fundado em 12

de junho de 1963, teve sua primeira diretoria eleita por aclamação. Antonio Damião

de Sousa, Raimundo Alves da Silva e Luis Gonzaga Alves Pereira foram seus

respectivos presidente, secretário e tesoureiro, os dois últimos já falecidos.

153

Entre suas principais bandeiras

de reivindicações, destacam-se: a

presença de médicos para assistência à

saúde dos campesinos, a criação de uma

política de assentamento ou qualquer

alternativa para fixar o homem no campo,

aposentadoria para os trabalhadores rurais,

indenização das benfeitorias feitas pelos

campesinos agregados nas propriedades,

liberdade para comercializar seus excedentes para os outros donos de terras, além

do proprietário agregante, instalação de mais escolas radiofônicas na região,

levantamento de terras devolutas e de particulares não produtivas para reforma agrária.

A presença de médicos clínicos era crucial, pois as localidades ficavam

todas distantes da sede do município e, em razão disso, os campesinos ficavam

desassistidos no que tange à saúde; principalmente, as mulheres que, por falta de

um pré-natal, detinham um obituário altíssimo.

A indenização pelas benfeitorias tornou-se uma reivindicação de primeira

ordem porque constituía um anseio generalizado de há muito e vinha pôr fim a

fragilidade dos campesinos quando o proprietário decidia mandá-los embora. Além

do mais, prestava-se a corrigir uma distorção social e, consequentemente, a fazer

justiça. Aposentadoria para os trabalhadores rurais, bandeira também de primeira

ordem abraçada pelo sindicato era um sonho acalentado por todos. De igual modo, a

grande – talvez a mais significativa de todas – reivindicação encampada pelo sindicato

estava centrada no levantamento de terras ociosas e devolutas; todos almejavam

um cantinho de terra e só a reforma agrária poderia tornar isso possível. Muito a

propósito, todas as reivindicações encampadas e tornadas bandeiras de primeira

ordem por esse sindicato contavam com o respaldo dos padres Mateus e Moreira.

A atuação da Igreja Católica na política de sindicalização rural trouxe

algumas conquistas para essa classe sofrida, porém trouxe também – e mais ainda

– a divisão, o fracionamento e a consequente desmobilização da classe no seu todo,

particularmente em relação às ligas. João Paulo Silva (2010) demonstra ter uma

compreensão muito ponderada sobre a questão, quando, ao sumarizar o que

ocorreu logo que os militares se apossaram do poder, afirma:

Fonte: Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campo Maior

154

[...] foi uma violenta repressão sobre os sindicatos de trabalhadores rurais e urbanos, bem como, em particular, sobre as ligas camponesas, que sofreram perseguições; fecharam-se várias organizações sindicais e muitas perdem seus direitos de representação (SILVA. 2010 p. 85).

Pela atuação em Campo Maior, os líderes da ALTACAM e, mesmo sendo

claramente menos ofensivos, também foram presos lideranças do STRCM. Sobre

essas prisões todas justificadas, por serem acusados ou suspeitos pela prática de

crimes contra a ordem, os quais foram genericamente denominados como “crimes

políticos”.

Em nova entrevista a esse pesquisador, o líder rural e presidente do

Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campo Maior, fez a seguinte declaração:

Fui preso dentro do sindicato; não me deixaram nem fechar as portas. Me lembro que pedi pra deixar eu guardar uns papelos de carteira para uns integrantes que queriam se associar e nem isso deixaram. Sei também que tocaram fogo nuns papelos e nos jornais que tinha lá dentro, destruíram quase tudo. Foi um crime muito bárbaro. Eu então perguntei por que eu estava sendo preso. Eles ficaram calados; um deles disse apenas que eles estavam cumprindo uma ordem e que eu não devia ser solto logo.

A repressão se instalou com força sobre e contra as ligas, sindicatos e

outros grupos minoritários, como a Ação Popular, que defendiam causas iguais e ou

semelhantes, como a reforma agrária. Organização laica de origem singular, a Ação

Popular teve seu tronco principal nos setores leigos da Juventude Católica que

representou uma ruptura dos católicos progressistas com a estrutura da Igreja.

A partir da dura repressão instituída, abriu-se, paradoxalmente, uma

perigosa brecha política dentro do aparato opressor do estado, razão pela qual o

movimento camponês não foi totalmente aniquilado. Em razão disso, sobreviveu

através de alguns sindicatos persistentes de trabalhadores rurais. Estes foram

enquadrados pelos militares apossados do poder como um mal necessário.

Para o estado, as questões conflituosas emergidas desse contexto

seriam solucionadas por canais institucionais nas negociações, tais como as Juntas

de Conciliação e Delegacias de Trabalho.

Nesse contexto, a não revogação do Estatuto do Trabalhador Rural pelos

militares representou muito mais uma solução, na lógica do novo governo de

155

compromissos entre classes do que um instituto de proteção e valorização do

trabalhador, pois serviu principalmente como estatuto legal que mediasse dentro da

legalidade do estado as demandas trabalhistas rurais.

2.5 Antônio Damião de Sousa: O dono da voz contra a voz do dono

Lavrador, filho de camponês, líder e primeiro

presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Campo

Maior, no Território dos carnaubais, Piauí. Conhecido como

Damião do Sindicato. Antonia Helena dos Santos e José

Damião de Sousa eram seus pais e avós de três netos,

filhos de Antônio Damião. O líder sindical foi preso por duas

vezes, sendo que a primeira vez na sede do próprio

sindicato, uma casa simples situada no local denominado

“Prato dos Pobres”, em alusão ao salão paroquial que oferecia

comida aos populares reconhecidamente sem posses e que perambulavam nas

ruas pedindo comida e outros donativos.

A segunda vez foi preso em sua própria casa, diante dos filhos,

acusado novamente de prejudicar a ordem social e de ser comunista. Em relação à

prisão desse e de outros líderes considerados pelos militares apossados do

poder como “elementos ligados à ideologia comunista e ao crime de subversão da

Ordem Política e Social”, o jornal Estado do Piauí, de 25 de junho de 1964, faz

registro de tais fatos com destaque na matéria intitulada “Resumo dos

acontecimentos”, na Guarnição Federal de Teresina, com início 31 de março

de 1964:

[...] Esclareceu o Maj. Costa que entrando em ação a Guarnição Federal de Teresina, com a participação do 25º BC, Secretaria de Polícia e Polícia Militar, foram efetuadas muitas prisões. Em consequência, foi instaurado um Inquérito Policial Militar para a necessária apuração dos fatos e de responsabilidade dos elementos ligados à ideologia comunista e ao crime de subversão da ordem política e social. Foi encarregado do IPM o Maj. Idalécio Nogueira Diógenes, pertencente a 10ª RM. Seguem a relação nominal das pessoas que foram presas para prestarem depoimentos no 25º BC, junto ao encarregado do inquérito.

Fonte: Antônio Damião, Sindicato dos Trab. Rurais de C. Maior

156

Na relação dos presos constantes na matéria acima do jornal Estado do

Piauí, figuram os nomes de Jesualdo Cavalcante Barros, Luiz José Ribamar Osório

Lopes (o Luiz Edwiges), Antônio Damião de Sousa, Manoel Emílio Burlamaqui de

Oliveira e José Ribamar Osório Lopes.

Durante os exatos trinta e três dias em que ficou preso e incomunicável, o

presidente do Sindicato afirma ter sofrido torturas físicas e psicológicas. Ao relembrar

uma dessas passagens de sua vida, o lavrador enche os olhos d’água e declara:

Eu nunca vou esquecer aquele dia 16 de junho de 1964. Os militares chegaram onde eu tava, isso era meia noite e disseram que iam me levar para um passeio na beira do rio Poti. Chegaram lá, botaram um saco plástico preto na minha cabeça, me amarraram e me jogaram dentro do rio, que por sinal estava muito cheio, uma largura maior do mundo. Me jogaram e achando que eu tava morto saíram e foram embora. Graças a Deus tinha umas moitas de canarana e uns pescadores perto que ouviram minhas batidas n’água e me socorreram, nunca mais esqueci aquelas horas sufocantes.

Depois que foi socorrido, ele se apresentou “espontaneamente”. Dessa

vez, no 2º BEC e não mais para o 25º BC, considerado por ele e por todos os outros

entrevistados como “lugar de gente muito violenta”. Embora “estivesse solto, o líder

sindical considerava-se preso, pois tinha por obrigação informar todo mês onde

estava e se manter longe de confusões sob pena de voltar para a cadeia”.

As prisões, conforme seu relato ocorreram por conta de ele, na condição

de trabalhador e líder sindical, questionar e lutar contra as péssimas condições de

vida do homem do campo. Embora a luta fosse a mesma, as estratégias e as

práticas diferiam e até divergiam das levadas a efeito pela ALTACAM, que tinha à

frente Luiz Edwiges. Assim, Antônio Damião empenhou-se em buscar – com o

assessoramento da Igreja – junto ao poder público, os direitos civis, políticos, sociais

e econômicos, assegurados, mas não tão respeitados, aos trabalhadores.

Fundado oficialmente em 12 de junho de 1963, o Sindicato de

Trabalhadores Rurais de Campo Maior teve seu reconhecimento junto ao Ministério

do Trabalho, através da Carta Sindical nº 193816/1963. Registra-se que a fundação

desse e de outros sindicatos no interior do estado já estava programada pela Igreja

quando selecionou, diga-se, “escolheu” privativamente, segundo seus interesses,

157

trabalhadores rurais de Teresina, Campo Maior, Amarante, Piripiri e Parnaíba para

fazerem o curso Por um Mundo Melhor em Fortaleza no final do ano de 1962.

Destaca-se que esse curso teve duração de trinta dias, foi custeado pelas

dioceses de Teresina e Fortaleza e integralmente conduzido por padres, educadores

e técnicos, todos alinhados com as recomendações da Hierarquia da Igreja, que

estava decidida e instrumentalizada para iniciar e consolidar num curto espaço de

tempo a sindicalização no campo. O tema, segundo o agricultor Antônio Damião,

único participante do curso da Cidade de Campo Maior versava sobre muitos temas,

todos, porém, com centralidade na Formação Integral do Homem. Sobre o curso e

sua dinâmica pedagógica de aplicação, Damião afirma:

O curso era de manhã e tarde. Muito cedo uma campainha acordava a gente... tinha um café muito farto e, depois das orações, a gente ia para um salão grande e bem alto. Tinha dia que começava com palestra em outro começava com os agricultores em grupo dizendo o que tinha entendido, era muito bom e animado. Todo dia tinha canto e reza. Em outras vezes, a gente conversava com companheiros de outras cidades. Eu mesmo fiquei, na primeira semana, com um companheiro do Maranhão; e nas outras, era um do Ceará e parece que um do... não lembro... sei que era de outro lugar. Depois de muito tempo, foi que um padre explicou porque a gente mudava de companheiro nos alojamento. Nesse curso tinha até filme, eu lembro de um chamado de Onças e Gatos. Os gato queria virar onça para comandar os outro. Era uma história bonita... no fim os gato se juntou e venceu a onça.

Embora empolgado com as dinâmicas adotadas com cânticos, orações e

apresentações culturais, o que marcou muito o agricultor foi o filme do qual ele

lembra com muita satisfação. Damião cita outros temas como legislação sindical,

direitos trabalhistas, aposentadoria (previdência), práticas de negociação,

comunismo, convivência com a seca, o papel do sindicato cristão e reforma agrária.

Convém ressaltar que ordem temática aqui apresentada segue e respeita

rigorosamente a lembrança do líder sindical centro dessa narrativa.

A luta continuava com o sindicato, apenas com outras frentes e táticas:

No campo, visitava os companheiros de propriedade em propriedade, naquelas que

não podia entrar voltava no outro dia, no começo ou na boca da noite, até falar o que

desejava. Ainda no campo, organizava mutirões e palestras para fortalecer o

sindicato criado recentemente. Na cidade, sempre lembrado como o homem do

158

sindicato dos padres, Damião levava sempre as reivindicações para a Assembleia

Legislativa e para a Junta do Trabalho, onde apresentava as denúncias de

exploração de seus representados.

Em menos de um ano, o sindicato já se mostrava numericamente mais

representativo do que a Liga de Matinhos. Para o agricultor Luiz Pedro da Rocha,

em entrevista concedida a este pesquisador (meses antes de falecer), a explicação

para essa situação era a seguinte:

O Seu Luiz da liga era um omi muito sério e duro; o cabra mole não falava nem com ele. Agora era muito correto e lutador. Também a gente notava que o sindicato, que tinha o apoio dos padre, era mais respeitado. As muié dos cumpanheiro aconselhava mais o sindicato... lá em casa mesmo, era assim. Quando chegava uma pessoa da liga já sabia que a mué ia recramar, dizendo: tu já tá na liga de novo? Eu mesmo achava que nois devia andar junto, liga e sindicato, mas isso nunca aconteceu, pelo contrário andaram se estranhando umas poucas de vez. O Antônio, aqui do sindicato, era danado, também um cabra muito jeitoso. Eu acredito que essas coisas e mais as histórias que a liga era muito briguenta fortaleceram o Damião e o sindicato, enquanto a liga foi ficando mais cansada.

Conscientes que as dificuldades e a exploração dos trabalhadores de

Campo Maior eram as mesmas enfrentadas pelos agricultores e pequenos

proprietários em todo o Estado do Piauí, os líderes sindicais decidiram dar

organicidade a uma entidade que além de representar, também fortaleceria a classe

junto aos poderes públicos e privados dentro e fora do estado. Nesse propósito,

fundaram, em 14 de dezembro de 1963, na Casa dos Sindicatos, na rua

Desembargador Freitas,1808 em Teresina, com a participação de 17 sindicatos, a

Confederação dos Trabalhadores Autônomos e Pequenos Proprietários do Piauí,

que teve na pessoa do lavrador Antonio Damião de Sousa um de seus principais

idealizadores e entusiastas.

Na condição de idealizador da nova entidade, o líder do sindicato católico

Antônio Damião de Sousa foi convidado por muitos dos presentes naquele encontro

para assumir a presidência da Confederação. Entretanto, o agricultor e presidente

do STRCM, ainda que tentado a assumir mais aquela representação de classe,

optou por conveniência apoiar o nome de outra liderança: o agricultor Gonçalo

Oliveira Cardoso, um dos seus mais fiéis aliados. O nome do abdicante, após

159

entendimento firmado entre os presentes foi indicado como delegado junto à

Federação. Esse significativo acontecimento para os trabalhadores do estado foi

registrado pelo jornal Folha da Manhã de 17 de dezembro de 1963, com o título

Eleita a Diretoria da Confederação dos Trabalhadores Autônomos:

Em reunião de Assembleia Geral Extraordinária realizada na tarde de ontem, na sede do Movimento de Educação de Base, MEB, procedeu-se a eleição da Confederação dos Trabalhadores Autônomos e Pequenos Proprietários Rurais do Piauí, ficando a diretoria eleita constituída dos seguintes representantes sindicais: Presidente, Gonçalo Oliveira Cardoso; Secretário, Mariano Francisco de Sousa; Tesoureiro, Aderbal Gomes Martins; Conselho Fiscal, Raimundo Nonato Dutra de Araújo, Antônio Mendes Benigno e Evaristo Oliveira N. Neto. Representantes à Confederação: Antônio Damião de Sousa, Raimundo Nonato de Carvalho e Francisco Ferreira Cardoso. Participaram da Assembleia de eleição delegados dos sindicatos dos seguintes municípios: União, Miguel Alves, Altos, Campo Maior, Capitão de Campos, Piripiri, Alto Longá, São Pedro, Agricolândia, Barro Duro, Angical do Piauí, Regeneração, Pedro II, Barras e Palmeirais.

Com a nova entidade, os trabalhadores rurais de todo o estado passaram

a contar, além dos sindicatos já então organizados em cada município, com a

Confederação para defendê-los, inclusive, juridicamente dos abusos e ameaças

constantes a que eram submetidos pelos latifundiários em todo o Piauí. Essa nova

entidade conferia à luta dos agricultores um caráter estadual e, ao mesmo tempo,

representava uma nova ferramenta de defesa dos campesinos e pequenos

produtores em nível nacional.

Passados alguns anos e principalmente depois da prisão dos líderes,

tanto da Liga de Matinhos em Campo Maior quanto dos vários sindicatos já

existentes no Piauí, a partir da instalação dos militares no poder, a

organização camponesa desse município, como de resto todo tipo de

organização de trabalhadores, foi desmontada no estado e em todo o país.

Entretanto, em 1967 o sindicato de Campo Maior voltaria a funcionar; desta feita,

porém, com uma diretoria sem qualquer expressão e ainda tutelada pela Delegacia

de Trabalho.

Antônio Damião de Sousa, depois de se ver livre das prisões (duas) em

Teresina levada a cabo pelos militares, foi agraciado – dado ao bom relacionamento

160

que mantinha com a Igreja – com uma viagem, custeada pelo clero piauiense, aos

Estados Unidos da América. Sua estadia naquele país prestava a lhe assegurar um

refúgio momentâneo à perseguição dos militares; mas também lhe possibilitou fazer

– sob a orientação da Igreja – o curso de Capacitação de Recursos Humanos para o

Desenvolvimento do Brasil, ministrado pela Universidade de Loyola em Nova

Orleans. Sua permanência nos EUA foi curta, pouco menos de três meses. Logos

após sua chegada ao Brasil, Antônio Damião foi novamente preso pelo delegado de

Campo Maior. Em todos esses seus reveses, ele sempre contou com a compaixão,

a solidariedade e a ajuda, inclusive jurídica, da Igreja.

Em 2008, Antônio Damião requereu, com o respaldo da Igreja e a

orientação de uma equipe de advogados da cidade de Campo Maior - Processo Nº

01.62266/2008 – junto à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, reparação

econômica. O processo em questão, depois de transitado, foi pautado, julgado e

deferido favorável ao pleiteante na 3ª Sessão de Julgamento de Turma da Caravana

da Anistia, realizada em 30.03.2012, às 9 h, no Salão Nobre da Câmara Municipal

de Teresina.

A reparação econômica – cem salários mínimos – foi paga então, em

parcela única, a Antônio Damião de Sousa, conforme determinação do juiz Paulo

Abrão Pires Júnior, que presidiu aquela sessão.

A reparação política e civil de Antonio Damião foi uma consequência

incontinenti do processo anteriormente transitado e julgado. Assim recebeu, na

mesma data em que seu processo foi julgado, a sua Declaração de Anistiado

Político.

A propósito, convém registrar que o local inicialmente pensado e

solicitado para a realização em 30.03.2012, da 3ª Sessão de Julgamento da Turma

da Caravana da Anistia, fora a Assembleia Legislativa Estadual. A solicitação foi

formalmente encaminhada àquela casa; porém o seu presidente, Themistócles

Sampaio Filho, negou, não permitiu a realização do referido julgamento. A conduta

dele evidencia bem o ranço arcaico, direitista e conservador do parlamento estadual,

que teima ainda em albergar os remanescentes atávicos da antiga e tardia tradição

coronelística político piauiense, comandado por mais 15 anos por esse mesmo

presidente.

161

O mais paradoxal é saber que essa realidade perdura e ainda vai

perdurar por muito e muito tempo mais; ele permanece lá sempre (re) conduzido, e

sempre soberbo, e sempre impávido, e sempre soberano. Fazer o quê?... É uma

lástima – como bem diria o saudoso jornalista piauiense Deoclécio Dantas –, Chico

Paulo!

Em julho de 2016, precisamente no dia 09 às 20h, no Salão Nobre da

Câmara Municipal de Campo Maior, Antônio Damião de Sousa externou, talvez, sua

última palavra de ordem em defesa dos camponeses ao lançar o livro O homem e a

terra: ditadura militar e latifúndio contra os camponeses.

Na ocasião, o líder camponês mobilizou agricultores do passado e do

presente, estudantes, pesquisadores, autoridades estaduais e municipais além de

familiares para dizer que acreditava que sua luta e de muitos companheiros não

tinha sido em vão, nem se perdido, e que embora a maioria dos presentes não

soubesse, o Brasil e o Piauí passaram por uma “ditadura cruel e sangrenta”, que

praticou o pior dos crimes. Crimes que segundo ele:

[...] calou ou pelo menos tentou calar a voz de quem só tinha mesmo a voz para lutar contra todos aqueles que, além da voz, queriam e se achavam donos de tudo, inclusive da voz, dos direitos e dos sonhos daqueles agricultores [...]

Na prática, de todos os que se contrapunham ao regime de exceção

instalado no país a partir do golpe civil-militar de 1964, com efeitos perversos e

duradouros que marcariam a vida de gerações inteiras, talvez somente aqueles

agricultores – como os companheiros de Antônio Damião e outras lideranças

campesinas de então – fossem ainda capazes de acreditar ser possível reescrever,

a partir deles, do jeito deles, a história da qual os trabalhadores do campo e da

cidade acreditavam ser, ainda que silenciados, quase sem memorias, os sujeitos

principais daquele processo ainda em curso e sem previsão para o fim, pelo menos

em suas lembranças.

Como movimento social, a formação e emergência das ligas

(ALTACAM/ALTATE) e dos Sindicatos (STRCM/STRT) representaram uma resposta

concreta à exploração a que estavam submetidos os trabalhadores rurais piauienses

162

na década de 60. Essa dita resposta se materializa na medida em que aquelas

entidades fomentavam com suas existências e atuação a passagem da dispersão e

impotência dos campesinos para um estágio de mobilização e luta, revelando, dessa

maneira, que existiam, sim, como força social independente, que sabiam o que

queriam o que aspiravam e, principalmente, que tinham consciência de sua

personalidade e da oposição dos seus interesses aos dos proprietários de terra.

Assim, em que pese a luta declarada contra o latifúndio, inimigo comum,

havia outra luta surda, tornada aparentemente invisível pelos líderes das entidades

representativas dos camponeses no município. Era a luta pela legitimidade do direito

de representar os campesinos da Terra dos Carnaubais. Essa luta foi protagonizada

pela ALTACAM e o STRCM. Tanto foi assim que ficou registrado que essas duas

entidades, cada uma a sua maneira, ressignificaram a resistência e a luta dos

trabalhadores rurais na região e também no estado.

Liga e sindicato, talvez por se perceberem defensores da mesma causa,

salvaguardaram a fé e a esperança como meios de evitar os ímpetos da impaciência

e da cegueira que os levariam, por certo, a perder tudo; inclusive a solidariedade

relativa aos interesses de classe e à consequente essencialização do sentimento de

pertença, reduzindo a alienação de modo a evitar que a luta por representatividade

entre as lideranças sindicais não fosse suficientemente forte para pôr em oposição

entidades que juntas deveriam, mesmo que por caminhos distintos, defender os

campesinos de um inimigo comum, declarado e poderoso: o latifúndio improdutivo.

163

CAPÍTULO III

3 UM PE LÁ E OUTRO CÁ: DO IDEÁRIO MODERNIZADOR À

PRÁTICA ASSISTENCIALISTA DE CHAGAS RODRIGUES AO

CONSERVADORISMO REFORMISTA DO ESQUEMA PORTELLA

3.1 Ecos do trágico acidente da Cruz do Cassaco

Marx postulou, de

forma enfática, que toda

relação é uma relação de

força marcada por uma

disputa de poder. Em razão

disso, observando-se o

percurso histórico do

processo civilizatório, nos

seus mais diversos momentos

e períodos, bem se pode

inferir o quanto a disputa de poder pautou a trajetória do ser humano. Não é sem

lógica, portanto, afirmar-se que nada traduz melhor a cobiça do homem que o poder.

Essa disputa fascina, seduz; mas, também, forjam conflitos, crises e, por vezes, até

litígios intermináveis.

A disputa de poder tem protagonismo em todos os campos; notadamente,

no político. Um campo, talvez por isso, que sempre se mostrou muito fértil para

estudos e pesquisas acadêmicas. E principalmente por se saber – porque assim se

mostra e se evidencia – que na disputa do poder nesse campo vale tudo. Para

Arendt (1981, p.212), o poder é “momento fugaz” que, por si só, não garante a

durabilidade da comunidade política. Nada pode, portanto, ser desconsiderado.

Assim, não existe o imponderável. Tudo é sempre uma possibilidade não

Fonte: acidente da Cruz do Cassaco

164

descartável. Em razão disso, há espaços para ocorrências de situações inéditas e

totalmente estranhas. Tais ocorrências quando se materializam se tornam fatos,

alimenta a imprensa, a comunicação e, por vezes, ganham registros nas narrativas

históricas.

Não é sem razão que a política é costumeiramente definida como a arte

do entendimento ou da busca. O desentendimento traz a mesma lógica de todas as

coisas; não é eterno. E, assim, se decompõe na lei maior de Lavoisier: tudo se

transforma. O entendimento soma esforços e interesses, favorece ganhos. Políticos

albergados em partidos extremistas – tanto de esquerda como de direita, que jamais

se aliam – não têm possibilidade de alçar voos mais altos.

Nesses termos, a tradição brasileira da política partidária tem mostrado

que o caminho mais viável é o do entendimento. Candidatos majoritários que contam

com o maior número de partidos aliados têm, na maioria das vezes, mais chances

de vitória. A própria legislação eleitoral favorece a possibilidade de alianças

partidárias.

Essa prática se mostra presente a partir do Segundo Império do Brasil

(1840-1889) quando liberais e conservadores, orientados pelo imperador,

estabeleceram um entendimento e consolidaram o direcionamento político daquele

momento. Também, agora mais proximamente na chamada República Liberal, entre

1946 e 1964, fase politicamente marcada – embora tardiamente, se comparada a

outros países da America Latina – por ampla participação de vários setores da

sociedade. Setores que historicamente sempre ficaram fora de qualquer

possibilidade de participação, por mais modesta que fosse. Tal fato, inédito até

então, teve uma enorme repercussão. Como novidade ganhou destaque nos

principais veículos de comunicação da época.

Ainda em relação às novidades dessa fase, cita-se a formação de

partidos nacionais, a possibilidade de um mesmo candidato disputar mais de uma

vaga (Governo e Câmara Federal) e ainda a condição danosa para o processo de

estabilidade política, de se eleger para o Poder Executivo – nacional ou estadual –

candidatos concorrentes de chapas opostas, às vagas de presidente e vice da

República ou governador e vice do estado.

Exemplo clássico de estratégia política no sentido da conciliação foi

levado a efeito pelo imperador Pedro II, na transição da primeira para a segunda

165

metade do século XIX , quando, sentindo instável sua governança, o mesmo

efetivou a partir de um modelo político, que ficou conhecido como Parlamentarismo

às Avessas, a conciliação entre liberais e conservadores. A efetividade dessa

manobra casuística se deu a partir de um rodízio no cargo de chefe político

(primeiro-ministro) de governo de representantes dos dois partidos, o chamado

Ministério da Conciliação. Assim um ministério composto, ao mesmo tempo por

políticos liberais e conservadores, daria a estabilidade político-administrativa

desejada pelo imperador Pedro II, para dar prosseguimento ao seu reinado.

Sobre essa manobra do imperador Pedro II, Capistrano de Abreu (1969,

p. 74) faz a seguinte ponderação:

Gabinete da Conciliação. Termo honesto e decente para qualificar a prostituição política de uma época [...], a política da conciliação era o imperialismo que se organizava em regra para o poder absoluto, formando-se com elementos de todos os partidos, que o executivo podia absorver pela intimidação ou corrupção, desculpando, por interesse próprio, todas deserções, conduzindo ao triunfo todas as traições, mercadejando e procurando tarifar todas as consciências.

Esse era o Parlamentarismo à moda brasileira, que constituiu 36 gabinetes

com duração de aproximadamente 5 décadas, dos quais os conservadores dominaram

por mais de 29 anos, revelando que com suas propostas de centralização estavam

mais próximos do imperador ou o imperador mais próximo deles.

Para Soares (2008, p. 123), “os dois partidos (Liberal e Conservador) não

apresentavam diferenças ideológicas marcantes, aceitando cada um deles a filosofia

liberal clássica, de pouca intervenção do Estado no domínio econômico e outras

características próprias do liberalismo do século XX”. Ainda em relação à atuação

desses dois partidos, Soares citando as professoras Maria Freire e Marlene

Ordonez, faz a seguinte ponderação:

Na prática, esses dois partidos funcionavam independentemente de sua ideologia e não eram orientados pelos seus princípios. Lutavam apenas pela posse do poder. Havia elementos do Partido Liberal, bastante conservadores em suas ideias e Conservadores que apresentavam projetos de reformas progressistas. Tudo dependia da conveniência.

Ao explicar o porquê dessas condutas, as pesquisadoras lançam mão de

um célebre provérbio cunhado durante o Segundo Reinado, atribuído a Holanda

166

Cavalcanti, que expressa bem o perfil desses partidos: “Não há nada mais parecido

com um Saquarema(conservador) do que um Luzia(liberal) no poder”. Para o

professor Ilmar Matos (2004, p. 115), essa conduta também se explicava, porque “os

dois partidos eram formados por elementos da aristocracia. Portanto eram os

mesmos interesses que defendiam”.

Durante a República Velha o interesse pela questão política continuou

restrito, assim como no Império, aos membros das elites e aos partidos políticos,

agora estadualizados, também não atuavam de modo diferente, se comparados aos

liberais e conservadores, da fase imperial.

Silva, ao se reportar às candidaturas, aos partidos políticos e ao processo

eleitoral faz a seguinte afirmação:

A gênese da candidatura do último presidente constitucional da republica Velha foi repetição dos conciliábulos de que falavam mal os políticos, quando não se beneficiavam deles. Não havia partidos políticos, mas simples rótulos vistosos, atrás dos quais os políticos se agrupavam, de acordo com suas conveniências. Não havia voto livre, mas fraude generalizada, oficializada, praticada pelo Governo e pela oposição, porque não existia sequer outra forma de eleição (SILVA. 1998, p. 76)

O processo político ganhou ares de maior organicidade e legalidade com

a promulgação da Constituição de 1934. O texto constitucional permitia a pluralidade

sindical. Entretanto, mantinha-se a exigência do reconhecimento dos sindicatos pelo

Ministério do Trabalho. O trabalho da mulher e da criança passou a ter

regulamentação especial. Boris Fausto (2006, p. 64), ao analisar a vida partidária e o

processo político regulamentado por esta constituição, assim se posiciona: “As

eleições marcaram um florescimento partidário como nunca existira no país, ainda

que a grande maioria das organizações partidárias tivesse cunho regional”.

Agora mais recentemente, na propalada República Liberal (1946-1964),

com a existência de muitos novos partidos políticos, assistiu-se, depois da eleição

de Dutra, embora tenha sido somente no início do governo, uma inclinação liberal

que logo em seguida deu lugar a um posicionamento político reacionário,

antissoviético e que culminou com o Partido Comunista, principal força política de

esquerda, empurrado para a ilegalidade pelo presidente da República. Ocorreram

167

também nessa fase maior abertura e possibilidades efetivas de participação dos

partidos políticos e da sociedade civil. Em relação aos partidos, essa participação

podia se efetivar de modo isolado ou através de composições e alianças.

Quanto à sociedade civil, especialmente os segmentos representados

pelos operários e as classes médias urbanas, esta inserção na cena política

brasileira fez-se através de sindicatos, associações, irmandades e de outras formas

autônomas de mobilização. Também o direito de votar ampliava o exercício da

cidadania e impunha certo limite ao domínio oligárquico.

É importante realçar, porém, que essas alianças políticas eram

celebradas, assim como se deu no Império, principalmente no sentido de ganhar ou

manter o poder uma vez conquistado, ficando para um plano secundário ou até

mesmo esquecido os programas políticos e as aparentes convicções ideológicas.

Isso talvez explique, pelo menos nas últimas décadas, o reduzido tempo de duração

dessas alianças.

Nesse cenário, os partidos majoritários (PSD e UDN), sem bases

populares no Brasil e no Piauí, por exemplo, tinham dificuldades em organizar

coligações fortes para concorrer ao próximo pleito marcado para outubro de 1950.

Isso se dava principalmente, no caso de os estados, em razão de a articulação

nacional dos partidos, entrarem em rota de confronto com as conjunturas estaduais

das mesmas oligarquias em esfera federal.

O PTB, partido criado por Vargas nas entranhas da máquina autoritária do

Estado Novo, iniciou minúsculo com posicionamento político um tanto conservador.

Sua finalidade principal – orientação do próprio Getúlio Vargas, seu idealizador – era

a de atuar junto às questões trabalhistas, com vistas a reduzir e até neutralizar a

influência comunista de então.

Ocorre, entretanto, que gradativamente esta legenda cresceu e se viu

obrigada assumir uma postura mais progressista e, às vezes, até radical. Mas, nem

por isso deixou de se constituir, nas mais diversas oportunidades, no sempre

oportuno, conveniente e fiel aliado político do PSD ou – em situações mais incomuns

e não tão incursas – da UDN, principal partido de oposição ao trabalhismo em esfera

nacional. Ainda assim, conforme o momento e as especificidades locais algumas

alianças foram possíveis.

168

O PSD também nascido da inventividade varguista tinha nos seus

quadros representantes dos latifundiários, da classe média alta e dos setores

empresariais. Este partido tinha sua inclinação voltada para a esfera administrativa e

foi o maior vencedor de eleições durante a república populista.

Em relação às eleições seguintes (1950), a análise feita pelos principais

líderes desses partidos apontava para uma vitória das forças getulistas que

grassava o país com um discurso nacionalista popular. A análise se confirmou e

sufragou em 03 de outubro de 1950 a vitória do candidato do PTB, Getúlio Vargas,

com 48,70% dos votos.

No Piauí, o PSD era constituído a partir de grupos familiares poderosos

ligados ao latifúndio. Em razão disso, congregava a grande maioria dos coronéis

municipais em torno das lideranças estaduais. Também mobilizava setores do

comércio exportador e tinha um perfil local muito afinado com o nacional.

No que diz respeito à UDN estadual, de seus quadros participavam

profissionais liberais, servidores públicos e parte da burguesia comercial. Com seu

discurso liberal moralizante, esse partido conseguiu grande penetração na capital

Teresina, elegendo, ao lado do PSD, uma grande base parlamentar numa sequência

de pleitos entre os anos de 1945 a 1964, ganhando cada uma das siglas duas

eleições e o PTB apenas uma.

Em relação ao PTB, sabe-se que esta agremiação partidária passou a ser

considerada, por muitos estudiosos, pesquisadores e profissionais da mídia de então

– jornal impresso e rádio – o fiel da balança a partir de 1950. Principalmente após

contar com a adesão de um dos mais fortes e influentes grupos políticos do Estado

liderado por Matias Olímpio, considerado, até então, o maior nome da UDN. Nas

palavras de Wilson Brandão (2015, p. 59), o “PTB torna-se um partido representativo

e decisivo nas eleições estaduais no Piauí. Uma espécie de fiel da balança”. A partir

de então, essa legenda passou a ser muito cortejada por suas perspectivas de

crescimento. Ressalta-se, porém, que em todas as eleições, especialmente nas

disputas para o executivo estadual, a montagem dos esquemas políticos era mais

decisiva para a vitória eleitoral do que propriamente o nome do candidato com suas

propostas. Isso se confirmava, por exemplo, na eleição de candidatos que, mesmo

vivendo fora do Estado, sagravam-se vitoriosos apenas pela força dos esquemas

políticos aos quais pertenciam.

169

O quadro político piauiense colocava o PSD como partido

consolidado e, não havendo situação nova, imponderável, deveria vencer as

eleições subsequentes, uma vez que o mesmo se mostrava – no campo e na

cidade – bastante estruturado. Essa condição ficou evidenciada nas eleições

de 1954 quando o PSD elegeu o governador, um senador e a maior bancada

federal.

Após assumir o comando da nação, Vargas encaminhou ao Congresso

Nacional um programa de governo objetivando a expansão da indústria nacional.

Neste, ele propunha o fomento para o setor produtivo. A prioridade era a empresa,

notadamente a pública, em termos a financiamento de investimentos industriais. O

plano de Vargas era fortalecer o capital nacional, ainda muito frágil. Para tanto,

fazia-se necessária a criação de uma instituição bancária voltada essencialmente

para a linha de investimento. Assim, surgiu o BNDE – Banco Nacional de

Desenvolvimento Econômico.

Nesse conjunto de medidas, visando ao crescimento da economia

brasileira, veio também a Eletrobrás e a Petrobrás, o que facilitou a consolidação

das prioridades político-administrativas de Vargas. No primeiro discurso enviado por

ele ao Congresso Nacional, o presidente expressa bem a filosofia da política

econômica que pretendia implementar:

[...] A elevação dos níveis de vida, num país como o Brasil, depende, assim, muito menos da justa distribuição da riqueza e do produto nacional, do que do desenvolvimento econômico. A grande verdade é que temos pouco que dividir. Devemos, portanto, por um lado, atender ao problema de justiça, corrigindo os abusos e a ostentação de uma minoria, e ainda elevar a produtividade através de melhores níveis de consumo, mas por outro lado, não devemos permitir que uma distribuição insensata venha prejudicar o potencial de capitalização necessário ao desenvolvimento econômico geral, e assim, à criação de maiores e mais amplas oportunidades de emprego e de salários. [...] O progresso nacional se vinculará solidamente ao desenvolvimento econômico. O governo não poupará esforços para favorecer a acumulação de recursos públicos e privados, que se destinem a ampliar a produção nacional e, assim, melhorar, pelo emprego e pela abundancia, as condições de vida do nosso povo [...] (Câmara dos Deputados. Mensagens presidenciais – 1947-1964. Brasília 1978.)

A orientação da prática populista de matiz trabalhista era a tônica de

Vargas. Ele a deixou mais evidente quando nomeou João Goulart para o cargo de

170

Ministro do Trabalho mesmo sabendo que o seu nomeado não era bem visto pelos

militares pela oposição e até mesmo pela ala mais conservadora de seus aliados.

Essa desconfiança que recaia, à época, sobre Goulart era decorrente da estreita

ligação do ministro recém-nomeado com os sindicatos urbanos e rurais, muitos dos

quais ajudou a fundar, já preparando a intervenção do Estado por meio dessas

entidades.

Outro acontecimento que fragilizou perante a elite ainda mais a imagem

de Jango e, por extensão, a de Getúlio e de seu governo, junto ao empresariado, à

classe política conservadora, e a imprensa, foi o aumento do salário mínimo em

100% em 1954. Embora esses fatos digam respeito a Jango, eles afetam

principalmente o presidente Getúlio Vargas, real mentor dessas medidas.

Todos esses fatos revelaram-se mais gravosos e prejudiciais ao projeto

nacional-populista de Vargas quando a eles foram acrescidos o crime da rua

Toneleros e a frequente pressão da UDN, principalmente através dos agressivos

ataques – nos jornais e, no Parlamento – de Carlos Lacerda. Tais acontecimentos,

juntos, deixaram a situação política do presidente Getúlio Vargas insustentável,

levando-o, depois de constatada a impossibilidade de contornar a situação pela via

do diálogo, do entendimento ou pelo resultado positivo de medidas populistas

adotadas como o controle dos preços de gêneros básicos e aumento do salário

mínimo, a cometer suicídio em agosto de 1954.

A morte do presidente Getúlio nas condições em que ocorreu provocou

comoção jamais vivida pelo povo brasileiro, que logo passou a responsabilizar a

UDN e o governo americano pela tragédia nacional. Este fato abriu uma enorme

crise política que perduraria até a eleição e posse na Presidência da República

(1956-1961) de Juscelino Kubitschek (PSD), conhecido popularmente como JK, e de

seu vice João Goulart (PTB), também conhecido pelo nome de Jango.

Nesse meio tempo que antecedeu a eleição e posse da coligação PSD-

PTB – encabeçada por Juscelino e Jango –, o país vivenciou meses de

instabilidades. Todas pautadas por tentativas de golpe, ataques populares nos

grandes centros do país e até rompimento de coligação e consequente apoio

político. Este protagonizado por Café Filho, vice-presidente que rompeu com

Vargas, nos últimos momentos de seu governo. E uma vez rompido com Vargas,

171

Café Filho se empenhou em comandar uma reorientação na política nacional,

culminando inclusive com esforços no sentido de impedir a posse de Juscelino.

É importante ressaltar que para alguns estudiosos – Ferreira 2001, Günter

Axt, 2009 e Lira Neto 2012 –, o suicídio de Getúlio Vargas representou um

contragolpe do líder populista nas forças conservadoras; inclusive, e principalmente,

entre militares que já vinham planejando a tomada do poder.

Ainda em relação ao líder populista Getúlio Vargas, o historiador Günter,

faz a seguinte ponderação: “Mesmo sendo oriundo de um universo político

tradicional – baseado na honra e em costumes machistas e conservadores – o ex-

presidente foi sempre um político moderno para seu tempo”.

Outro importante personagem da vida política brasileira que analisou o

papel e a importância de Getulio Vargas foi Osvaldo Aranha. Ao falar sobre sua

morte e seu legado para o Brasil, o mesmo fez por ocasião do sepultamento, em

profundo estado de emoção, a seguinte ponderação:

Quando, há tantos anos, assumistes o governo deste país, o Brasil era terra parada, onde tudo era natural e simples; não conhecia nem o progresso, com as leis de solidariedade entre as classes, não conhecia as grandes iniciativas, não se conhecia o Brasil. Tu entreabriste para o Brasil a consciência das coisas, a realidade dos problemas, a perspectiva dos nossos destinos.

Para Ferreira (2001.p,110,111), a morte de Getúlio Vargas manteve

acesa a chama do trabalhismo e do PTB, adiou o golpe civil-militar e de “quebra” se

revelou o principal ingrediente da campanha vitoriosa de Juscelino Kubistchek para

o período 1956/1961.

Em 1958, apenas em 11 dos 21 Estados brasileiros aconteceriam

eleições para os governos estaduais; e destes, em 10 a UDN fez coligações, das

quais, quatro foram com o PTB.

O cientista social e professor da UFPI – Universidade Federal do Piauí –

Antônio José Medeiros (1996, p. 65), ao analisar a questão das alianças políticas no

estado do Piauí, faz a seguinte ponderação:

[...] a UDN piauiense se aliava justamente nessa postura mais pragmática do partido que tinha o deputado Cândido Ferraz, visto como representante do ‘grupo chapa branca’, sempre aberto a acordos e concessões em troca de favores políticos.

172

Ainda na visão deste pesquisador, o Piauí, mesmo sendo um estado de

economia predominantemente agrícola sofreu, à sua maneira, influência direta do

trabalhismo varguista. Este trabalhismo populista foi expresso, neste Estado, pela

figura midiatizada do governador Francisco das Chagas Caldas Rodrigues – oriundo

de Parnaíba, cidade litorânea situada ao Norte do Piauí –, eleito numa inusitada,

inesperada e ousada aliança política com a UDN.

Esse também é o sentimento do economista Felipe Mendes. Em

entrevista concedida a este pesquisador (2016), fez esta pertinente observação:

Dessas ideologias; comunismo, socialismo e trabalhismo a que realmente teve penetração mais forte no Piauí foi a última. O comunismo esse ideário, na minha opinião, só alcançou aquele pessoal mais letrado, tipo jornalista, estudante universitário e um ou outro gato pingado sem uma rígida formação familiar. Agora, o trabalhismo, sim, tomou de conta, dominou a cabeça de muita gente do campo e da cidade. Sabe por quê? Porque o governador Chagas Rodrigues era um homem de palanque, falava como poucos e fez do discurso populista e trabalhista uma de suas principais bandeiras. O pai dele era uma mistura de industrial e comerciante e talvez fosse dono da principal fortuna do Norte.

O nosso Estado, como todos sabemos, era dominado por uma agricultura de roça, de subsistência. Faltava quase tudo ao Piauí, Suas cidades, inclusive a capital Teresina, não dispunham nem mesmo de vigor urbano. Luta de classes, sindicato, luta sindical envolvendo patrão e empregado; as poucas que tomei conhecimento ocorreram mais em Parnaíba e Floriano do que aqui em Teresina. Se teve um líder trabalhista no Piauí daqueles tempos, esse líder foi o governador Chagas. Desse modo só posso atribuir a ele o crescimento das idéias de um trabalhismo social e ao favorecimento do movimento das ligas camponesas por aqui. Agora dizer que o Chagas era comunista!?... Isso era jogo baixo das elites que sabiam que a Igreja, o povo e os latifundiários, todos, temiam essa ideologia. E,

assim, associando o Chagas ao comunismo todos ficariam contra ele.

Ainda segundo Medeiros, o campo político do estado de então

oportunizava um bom mote – “demolição da inepta e nefasta oligarquia instalada no

poder” – para o discurso oposicionista que viria a se mostrar decisivo para a vitória

eleitoral da aliança PTB/UDN. O Piauí apresentava, à época, segundo o sociólogo,

uma situação oligárquica típica. Tal situação, o mesmo assim a ilustra:

Coronel Pedro Freitas governara o estado de 1950 a 1954; foi eleito como seu sucessor, em 1954, o seu cunhado general Gayoso e Almendra; agora José Gayoso Freitas, -- filho do primeiro e sobrinho do segundo – era o candidato a governador (MEDEIROS, 1996, p. 64).

173

Na mesma linha de Medeiros, o Wilson Nunes Brandão, na obra Mitos e

Legendas da Política Piauiense (2015, p. 59), afirma que a conjuntura política levou

o PSD à derrota. Ao analisar aquela conjuntura, ele assegura que sobravam

interesses familiares e faltavam interesses coletivos do povo e da sociedade civil

como um todo. Conforme ainda a sua análise, havia também as disputas internas,

as ambições pessoais e familiares, a incompetência administrativa, a confiança

demasiada, e a perda do principal aliado político, o PTB. Para, além disso, o

imediato uso político da mídia em torno da trágica ocorrência da Cruz do Cassaco,

que suscitou uma grande comoção no imaginário coletivo, e a célere apresentação

de uma chapa com nomes à altura para substituir a anteriormente formada por

Demerval Lobão para o Governo e Marcos Santos Parente para o Senado,

asseguraram a vitória da oposição e a consequente primeira grande derrocada da

oligarquia.

Em relação ao trágico acidente, o jornal Folha da Manhã do dia 10 de

setembro de 1958, na sua primeira página, apresenta a seguinte matéria intitulada

Os dois mártires do Piauí:

Na manhã do dia 4 de setembro o destino implacável tragou essas duas vidas que simbolizavam, no presente, a bandeira de redenção do Piauí, Demerval vitorioso candidato ao Governo do Estado e, Marcos, já consagrado Senador da Republica, imolados em pleno ardor da lua para reconduzir o nosso Estado às condições essenciais de honradez e dignidade, ficarão perpetuados no civismo dos nossos corações agradecidos. Paz às duas almas bem-aventuradas!

Ainda sobre essa fatídica ocorrência e seu rápido e competente uso

político, José Lopes dos Santos (1988) faz a seguinte afirmação:

[...] O sucessor de Pedro Freitas, general Gayoso e Almendra, eleito por aliança entre o PSD e o PTB – então sob a presidência do senador Matias Olimpio de Melo, que havia rompido com a UDN – não foi vitorioso nas eleições de 1958 além de todas as dificuldades que já enfrentava naturalmente, e também por forças do rompimento do PTB com o PSD, de que resultou a candidatura que se prenunciava vitoriosa ao Governo do Estado, do advogado Demerval Lobão Veras, de quem Marcos Parente Veras era companheiro de chapa como candidato ao Senado – ocorreu fato doloroso, que o Piauí ainda hoje recorda e lamenta o desastre da Cruz Do Cassaco no qual, entre outros, Demerval Lobão e Marcos Parente perderam a vida, em plena campanha.

174

Apressadamente, a menos de um mês da data marcada para a eleição, os dois candidatos foram substituídos por Chagas Rodrigues (PTB) e Joaquim Parente, (UDN) inclusive pelo impacto emocional da tragédia que enlutou o Piauí inteiro. Na mesma eleição Tibério Nunes e Petrônio Portela, ambos da UDN, foram guindados aos cargos de vice-governador e prefeito de Teresina, respectivamente pelo que passaram a comandar postos-chave de influência decisiva nas eleições de 1962. O desastre foi o principal fator da vitória (SANTOS,1988, p. 18).

Para Alfredo Nunes, deputado estadual e líder da oposição

durante o governo de Chagas Rodrigues, àquela situação absolutamente inesperada

da morte dos principais nomes das Oposições Coligadas, deve-se acrescentar a

situação de total penúria financeira da maioria dos candidatos que já tinham gasto

seus recursos e a menos de um mês do pleito não possuíam qualquer recurso para

novas empreitadas. Tal consideração ele a fez em entrevista concedida a este

pesquisador em 10.06.2016. E em razão dessa dita consideração, assevera:

[...] foi nesse momento que – apesar das dificuldades para se encontrar candidatos à altura para substituir os vitimados – as duas famílias, a do Chagas e a da esposa, senhora Maria do Carmo, mulher mais rica do que ele, não pensaram duas vezes e financiaram a campanha do Chagas para governador.

Faz sentido, sim, a ponderação de Alfredo Nunes. É incontestável, bem

se poderia dizer. Realmente, o fato de o povo todo se encontrar em comoção pela

tragédia, a boa higidez financeira das famílias disponibilizada às candidaturas de

Chagas Rodrigues (PTB) e Tibério Nunes (UDN), garantiram a vitória das oposições.

Para Alfredo, “sem comoção, muito dinheiro e a aliança com a UDN, as oposições

não teriam vencido”.

Em relação à dificuldade para encontrar substitutos, o jornal O Dia, na

matéria Novos Candidatos, traz a seguinte declaração:

Com o desaparecimento repentino dos dois candidatos a governador e senador, a política piauiense tomará novos rumos e grandes transformações. O partido trabalhista está encontrando grandes dificuldades em apresentar um nome que preencha as qualidades e simpatias de que gozava o candidato falecido. A UDN, hoje propriedade exclusiva do Sr Cândido Ferraz, também está lutando com as mesmas dificuldades, pois os homens de maior projeção não desejam ser derrotados. Surgem vários boatos (O DIA.

07.09.1958, p.2)

175

Embora a classe política, especialmente aquela ligada à situação,

identificasse, na movimentação do PTB e da UDN, dificuldades para lançar nomes

competitivos para concorrer ao pleito que se avizinhava, por estratégia ou

desconforto, a mesma não perdia tempo e lançava sistematicamente criticas ao

comportamento de seus líderes, acusando-os de exploração política do acidente do

dia 4 de setembro. Em nota publicada no jornal O Dia datado de 28 de setembro de

1958, página 5, intitulada Exploração demagógica, se referindo ao comportamento

de integrantes da UDN, faz o seguinte comentário:

Discurso extemporâneo do sinistro Sr. Petrônio Portela, que feriu substancialmente a boa ética parlamentar, com a manifestação de seu primarismo político, é o sintoma de que a oposição levará para os comícios a tragédia da Cruz do Cassaco, explorando demagogicamente os cadáveres de seus ex-candidatos ao Governo e ao Senado federal, sacrificados na horrível catástrofe, com o fim de emocionar o povo, tocar-lhe a sensibilidade, arrancando-lhe lágrimas.

Assim as coligações governista, liderada pela família Freitas denominada

Coligação Democrática Piauiense – formada pelo PSD/PR/PSP/PRP e dissidentes

do PTB e UDN – e oposicionista denominada Oposições Coligadas – formadas pelo

PTB e UDN – lançaram-se em defesa de suas plataformas.

Diante da nova conjuntura e respaldada pelo lema: Crescer para vencer,

do senador Juracy Magalhães – um autodeclarado defensor das composições

políticas locais com o argumento de que as mesmas representavam o caminho

seguro para evitar humilhantes derrotas – a aliança PTB-UDN, para além do coro

dos descontentes, se formalizou no estado. Assim a UDN, do então senador,

conhecido por suas posições objetivas – diga-se por demais pragmáticas – passou a

ser criticada no seu interior por setores que se mostravam intransigentes. Àquela

coligação, esses a sentenciaram de destruição dos padrões éticos, por visarem tão

somente ao êxito eleitoral; a qualquer preço e a qualquer custo, distanciando-os e

todos os demais udenistas do fim programático do partido. Essas posições,

entretanto, não conseguiram evitar o entendimento já em curso no Piauí, com vistas

à aliança que consagraria Francisco das Chagas Caldas Rodrigues (PTB) para

governador e Tibério Nunes (UDN), como vice para o período 1958/1962.

176

Em que pese às particularidades e proporções de cada caso, este

pesquisador entende, e nesse intento não figura solitário, que, assim como a morte

do presidente Vargas provocou incalculável prejuízo político para a UDN de Carlos

Lacerda, garantindo a eleição de Juscelino Kubistchek no pleito seguinte, também

no Piauí a tragédia da Cruz do Cassaco, teve peso decisivo na eleição do trabalhista

Francisco das Chagas Rodrigues para governador em 1958, quebrando a

hegemonia política do PSD. Conforme declarações apresentadas na mídia

impressa.

A melancolia invadiu a alma da cidade consternada, dando-lhe um aspecto sombrio, retratando o sofrimento dos que choraram num pranto amargurado e triste, em hora dolorosa a perda de vidas tão preciosas. Demerval Lobão Veras morreu tragicamente no cumprimento de um dever cívico, na missão que lhe impôs o idealismo democrático. Era um homem de valor, reconhecidamente honesto, de comprovada capacidade de ação de esclarecido espírito de luta (JORNAL DA MANHÃ. 10.09.1958, p. 05)

Com a tragédia da Cruz do Cassaco, que vitimou os candidatos das

Oposições Coligadas, as executivas partidárias rapidamente indicaram, embora com

dificuldades, novos nomes para o preenchimento das vagas abertas. O historiador

Wilson Brandão (2015, p. 62), assim, analisa:

O clima, além de tenso, era de forte apelo emocional. O povo, sentindo o drama e a tragédia dos envolvidos no episodio, tomou também para si o sentimento de dor e de perda, o que, decisivamente, influenciou no resultado do pleito. No pleito de 3 de outubro, aconteceu o que já era esperado. O eleitorado piauiense sacramentou maciçamente nas urnas os nomes de Francisco das Chagas Rodrigues (PTB) para governador; Tibério Nunes (UDN) para vice Governador e Joaquim Parente, irmão de Marcos Parente para o Senado. Foi uma vitoria retumbante.

Embora o trágico acidente tenha pesado de forma substancial

para a vitória das Oposições Coligadas, é preciso – por dever de ofício e

compromisso de analista político – reconhecer que outros fatores foram

importantes, não somente para consolidar a vitória eleitoral, mas também

para permitir ao governador eleito, pelo menos no inicio de sua gestão certa

estabilidade política.

177

Dentre estes fatores, pode-se inferir: o rompimento do senador Matias

Olímpio de Melo com a UDN e a sua imediata adesão ao PTB, levando consigo o

então deputado federal Francisco das Chagas Rodrigues, representante, por

relações familiares, das duas mais ricas, poderosas e tradicionais famílias da

Parnaíba – Poncion Rodrigues, de seu pai Poncion Rodrigues; e Moraes Correia, de

seu sogro Zeca Correia –, que já detinha uma destacada posição política adquirida

como parlamentar na Câmara Federal, onde se firmou com defensor dos direitos

humanos, da democracia, da justiça social e da reforma agrária.

Para muito, além disso, há ainda a considerar a pública, acirrada e

incontrolável disputa interna entre os principais nomes do PSD. Nas palavras do

líder político da região valenciana Djalma Veloso, “Chagas representava,

paradoxalmente, a possibilidade de alinhamento ou realinhamento de forças porque

tinha o apoio dos ricos e o respaldo dos pobres”.

3.2 Governo Chagas Rodrigues: nada do que foi será!

Com a promessa de

modernização do estado e o

compromisso de realizar uma marcada

gestão de rupturas, o governador

Chagas Rodrigues iniciou seu primeiro

e único governo com um perigoso

equilíbrio numérico entre as bancada

governista e de oposição na

Assembléia Legislativa, onde inclusive

tinha minoria de um parlamentar naquela legislatura. Mesmo nessas condições

afirmou: “Estado de economia feudal, de verdadeira colônia, o Piauí vai passar à

vanguarda do desenvolvimento nordestino” (O DIA. 07.12.1958, p. 08). Embora em

nível estadual o chefe do executivo não contasse com números muito favoráveis, o

que trazia certo desconforto naquele cenário político que exigia dos governadores,

assim como agora no presente, a construção de maioria para aprovar seus projetos

Fonte: Governador Chagas assinando termo de posse

178

e governar com certa estabilidade, Chagas Rodrigues, mesmo nessas condições,

iniciou sua caminhada rumo à modernização e transformação do Piauí.

O mesmo quadro político, entretanto, não se podia dizer, em relação à

esfera federal onde Chagas Rodrigues contava com a maioria dos senadores, da

bancada federal e ainda com apoio considerável do Presidente da República, com

quem compartilhava a promessa de desenvolvimento econômico integrado no qual o

Nordeste e sua gente, especialmente o camponês sofrido e castigado pelas

sucessivas secas, seriam tratados com dignidade. Nesse sentido, a modernização

da máquina pública seria indispensável, pois somente assim enfrentaria tamanho

desafio. Sobre as precárias condições de sobrevivência do camponês e os efeitos

da seca no Nordeste, o presidente fez a seguinte reflexão:

“Repetia-se no Nordeste o fenômeno cíclico de uma grande seca. Durante algum tempo, a população nordestina, percebendo a ausência de qualquer chuva, estivera olhando o céu, num misto de terror e perplexidade. Não se viam nuvens, e o sol, como um braseiro errante, realizava seu curso, atravessando o firmamento de ponta a ponta. O camponês, ilhado na sua casa, assistia ao dramático espetáculo, sem nada poder fazer. O gado morria. As plantações secavam. O paiol ficava vazio. Para tornar ainda mais cruel aquela agonia, o fenômeno não era repentino. Tratava-se de uma desgraça, que era um suplício chinês. Insinuava-se de mansinho, aumentando aos poucos a poeira nas estradas, reduzindo a água das cisternas e emagrecendo aos poucos o gado [...] O que ocorria no Ceará se reproduzia no Rio Grande do Norte, na Paraíba, no Piauí e em Pernambuco. Havia fome e desespero por todo lado”.

O quadro pintado por Juscelino Kubitschek já era por demais conhecido e

de todos os lados emergiam reivindicações ao governo da união que solucionasse

ou pelo menos socorresse com mais recurso a região, considerada por muitos como

“um problema”. Para Araújo (2000, p. 143), “O Nordeste com sua economia

estagnada figurava entre as regiões mais pobres do mundo”.

De acordo com Cano (1998, p. 61), os problemas regionais brasileiros,

como se sabe, só afloram mais intensamente ao debate político no final da década

de 50 por duas razões principais: “O flagelo das secas em 1958 e 1959 e pela

elevada concentração de investimentos produtivos industriais no sudeste,

especialmente em São Paulo, notadamente no governo JK (1956-1961) via Plano de

Metas. Essa situação se agravou com a construção de Brasília e o progressivo

endividamento do Estado brasileiro, o rebaixamento do valor dos salários provocado

179

pela inflação e outros problemas decorrentes da politica econômica do governo

Juscelino”.

A bem da verdade a situação descrita acima revela o quanto promessa

de desenvolvimento e integração do Brasil, com a redução progressiva das

distancias entre as áreas consideradas mais ricas em relação às mais pobres,

ficou no campo da promessa, pois o que se assistiu foi, apesar dos esforços de

muitos, o aprofundamento das desigualdades, ficando as regiões mais

desenvolvidas com a maior parte dos recursos, pois não havia estímulo, muito

menos interesses em se realizar investimos em regiões pobres com baixo nível de

retorno dos capitais aplicados.

Ainda assim, embalados por uma conjuntura que só na aparência parecia

favorável e por uma parceria político-administrativa promissora, presidente e

governador prometiam, ancorados em nível nacional no Plano de Metas de JK e no

plano estadual no trabalhismo social de Chagas Rodrigues, transformarem o Brasil e

o Piauí, eliminando definitivamente a estatística estigmatizante, pelo menos em

relação ao estado, de ser a unidade mais pobre da federação. Era chegada a hora

de promover o encontro do Piauí com o seu futuro eliminando ou pelo menos

reduzindo os entraves de infraestrutura indispensáveis à tarefa de modernização,

ainda que, pelas reais condições, em moldes conservadores do estado. Mas que

futuro? Quem desse processo participaria? Os mesmos de sempre ou teria naquela

nova conjuntura, espaço para novos personagens?

Com a pressa e a motivação de quem não tinha tempo a perder, Chagas

Rodrigues fez da sua primeira mensagem como governador, enviada ao Legislativo

piauiense, em janeiro de 1959, uma espécie de declaração de intenções e projetos

para retirar o Piauí daquela situação de penúria, de abandono e de atraso em

relação às demais unidades da Federação. Situação que de há muito já vinha sendo

denunciada, conforme se pode depreender da matéria publicada pelo Jornal do

Piauí (17.01.1957, p. 5):

O Piauí possui a mais baixa renda do país [...] Sabe-se, por outro lado que devido à concentração da propriedade territorial nas zonas produtivas de cera, em mãos de poucas famílias detentoras das terras mais ricas a distribuição dessa renda insignificante espelha quadro essencialmente perigoso para o desenvolvimento piauiense. A reduzida capacidade de compra da população explica o fenômeno que ocorre, por exemplo, em Campo Maior, onde os níveis de consumo são extraordinariamente baixos.

180

Embora o governador e seus auxiliares mais próximos, denunciassem a

ausência de sinais, ainda que modesto daquilo que modernamente se chama de

máquina pública, era preciso considerar, contudo, que seu antecessor, Gayoso e

Almendra, havia legado à população do estado um conjunto de ações, projetos e

obras – e isso Chagas não menciona e nem faz referência na sua já aludida primeira

mensagem ao Legislativo – que representavam um embrião do processo instituidor

da máquina física do estado, demarcando o Piauí dos Começos, propalado pelos

defensores do governo Gayoso.

Nesse sentido, há que se considerar – pela natureza fomentadora à

arrancada desenvolvimentista do Piauí – a criação em 1956 da CODESE –

Comissão de Desenvolvimento Econômico do Estado; em 1957, do FRIPISA –

Frigorífico do Piauí S.A; também, no mesmo ano, a instituição do GEB – Grupo de

Estudo do Babaçu; em 1958, a instalação e inauguração do BEP – Banco do Estado

do Piauí, e também, da criação do IAEE – Instituto de Águas e Esgotos. Todos

esses órgãos foram implantados com a finalidade de dotar o estado de infraestrutura

capaz de sustentar o desenvolvimento esperado e que permitisse ao estado o

recebimento de investimentos tanto público quanto privado.

Para além da incumbência primeira de identificar as fragilidades da

economia piauiense, a CODESE foi pensada e criada para ser um centro de

estudos, elaboração e execução de ações e projetos de desenvolvimento a partir da

captação de recursos. Tanto foi assim que, a partir dos primeiros estudos, já

observou e apontou como pontos restritivos ao desenvolvimento do estado, dentre

outros: a pequena dimensão do mercado urbano; o baixo poder aquisitivo da

população do estado; a existência de uma legislação estadual pouco estimulante ao

setor industrial – impondo taxações exorbitantes sobre este, frangilizando-lhe,

inclusive, o capital ou forçando o seu deslocamento; a queda na cotação dos

produtos piauienses de exportação; a escassez de crédito e de energia.

O Piauí, como se percebe a partir das informações constantes do relatório

da CODESE, sem vigor infraestruturante, mostrava-se bastante vulnerável em

termos econômicos e, por via de consequência, limitado ao surgimento de indústrias.

Era um estado profundamente dependente de recursos federais, repassados à

181

época em cota única; com o campo permanentemente em crise e, por essa e outras

razões, com um setor industrial praticamente inexistente. Detinha, talvez por isso,

um elevado grau de dependência externa, especialmente com relação a

manufaturados.

Esses fatos apontavam claramente que a expansão de um setor industrial

atrofiado – praticamente restringido e dependente do extrativismo do babaçu,

carnaúba e outras palmáceas, com importância econômica bastante reduzida – era

muito mais que uma vontade política; era um desafio de gestão.

Essa situação somada a uma população muito pobre favoreceu sim, o

surgimento de estabelecimentos artesanais de base familiar. O produto interno bruto

se mostrava inexpressivo, o que também se caracterizava como problema para o

desenvolvimento.

“Não pode haver consumo de massas semelhantes ao das economias

desenvolvidas onde a grande massa não ultrapassa os níveis de subsistência”

(PINTO. 1976, p. 76). E esta era, à época, a realidade do estado. Esse foi o Piauí

que Francisco das Chagas Caldas Rodrigues, o governador eleito – pautado por um

discurso populista de matriz trabalhista – recebeu na sua posse ocorrida em 1º de

janeiro de 1959. A situação ainda se via agravada pelos terríveis desdobramentos

econômicos e sociais advindos da seca de 1958.

A difícil situação do Piauí, o governador veio a denunciar na mensagem

enviada à Assembleia em 1960. Nela, reportando-se ao ano de 1959, registrou que

“as despesas realizadas com pessoal chegava a 76,6% contra 4,5% das despesas

com material e 18% em gastos diversos”.

Chagas, como governador, tentou implantar uma gestão diferenciada

dos demais governadores que lhe antecederam. Isso fica patente quando evidencia

uma postura “desviante”, em certa medida, do perfil adotado pelos chefes do

executivo estadual de até então. Nesse intento, desde sua chegada ao cargo mais

alto do estado, almejou desenvolver uma política mais próxima dos grupos tidos

como espoliados. Sua prática pretendeu uma gestão em sintonia com os anseios e

as reivindicações das classes ditas populares aviltadas e marginalizadas.

Tal postura, o governador do estado evidenciava em seus discursos

políticos e em suas práticas administrativas, sempre transparentes desde a

182

campanha eleitoral. E depois de iniciado o seu governo, esse discurso se amplificou

através de um programa de rádio levado ao povo sempre nas quartas-feiras pelas

ondas da Rádio Clube de Teresina.

Essa retórica empolgante e com tons claramente emotivos e

“populistas” pode ser aferida, por exemplo, na mensagem enviada, em janeiro

de1961 à Assembleia Legislativa, quando o governador assim se expressou:

É o Piauí a área mais atrasada, habitada por um povo cujas condições de vida são as mais deploráveis. Não se tem notícia de outra área no país ou no continente, com renda global inferior e de renda per-capita tão baixa. Nossas populações, mormente as do sul do Piauí, vivem tal estado de penúria e pauperismo, que seria difícil descrevê-lo. Em meio às grandes propriedades latifundiárias, dormentes na improdutividade, vagueiam essas populações, subnutridas e andrajosas, sem trabalho certo, doentes, sem assistência médica e hospitalar, sem escolas e sem terras [...] Observando-se o nosso Estado no quadro geral da Federação Brasileira, a situação que se nos depara é constrangedora e revoltante. O Piauí é o único Estado marítimo que a não dispõe, sequer, de um ancoradouro; nossa Capital (Teresina) é a única que não possui aeroporto com pista pavimentada; dois terços do Estado carecem de rodovias; Teresina ainda não está ligada por estrada pavimentada à principal cidade, situada na faixa litorânea, que é Parnaíba; e é a única, em todo o país, que não dispõe de serviço de esgoto [...]

Outro momento que pode servir de termômetro para aferir a grande

audiência do governador pelas ondas da Radio Clube através do programa Falando

ao Povo, foi registrado pelo jornal Folha da Manhã, nº 1179, p. 6, 09.04 de 1961, que

em tom crítico disparou:

Na noite de ontem, o governador Chagas Rodrigues mais uma vez ocupou o microfone da gigantesca cadeia de emissoras piauienses, paga com dinheiro do povo. Muita gente deixou de ir ao espetáculo do Circo norte-africano, ora nesta cidade, para preferir permanecer em suas residências, com receptores ligados [...]

Como era de se esperar até pelas circunstâncias da escolha de seu nome

e posterior eleição, os discursos com conteúdo mudancista, o perfil elegante,

midiático e popular adotado por Rodrigues contrastavam, em certos aspectos, com

suas origens e ao mesmo tempo desagradou desde a primeira hora os grupos

oligárquicos, as tradicionais elites agrárias locais alojadas na sua maioria no PSD,

183

assim como alimentou também o sentimento de repúdio por parte de seus

adversários políticos. As memórias de um dos seus principais adversários na época,

José Gayoso Freitas, demonstram como seu perfil era caracterizado em meio aos

opositores.

Chagas Rodrigues não trazia experiência administrativa. Seus aspectos mais fortes eram, a nosso ver, a boa comunicabilidade, a oratória populista e certa influência econômica nos últimos momentos da campanha. Usando aquela linguagem populista, enfatizou temas que estavam sensibilizando áreas nordestinas, como a reforma agrária. Procurou difundir uma imagem renovadora e fez apelos aos sentimentos emocionais do povo (GAYOSO, 1958, p. 43).

Por outro lado, as

características que incomodavam os

adversários políticos e as tradicionais

elites locais forjaram as condições

necessárias para a estruturação e

fortalecimento de muitos movimentos

sociais urbanos e rurais, a exemplo

da Liga Feminina Trabalhista e das

Ligas Camponesas. Estes e outros

movimentos tinham considerável espaço no governo de Chagas Rodrigues, que por

muitas vezes participou de eventos organizados por suas lideranças no interior e na

capital do estado, como na abertura do 1º Congresso Piauiense de Camponeses.

Defensor público do ideal de reforma agrária no estado, Chagas

Rodrigues viu com bons olhos a formação da ALTATE em Teresina e da ALTACAM

em Matinhos, Campo Maior, chegando a prestar apoio aberto a toda e qualquer

entidade representativa da classe trabalhadora. Esse apoio se deu, por exemplo, na

via direta, tanto com o recebimento por diversas vezes de militantes e ativistas

sociais, do campo e da cidade, no Palácio de Karnak, sede do governo do estado,

como também com a criação da Casa dos Sindicatos, espaço destinado, segundo o

governador, para que os “trabalhadores pudessem exercer com maior liberdade sua

cidadania política”.

184

Para além dessas mencionadas demonstrações, o apoio de Chagas

Rodrigues também se traduzia e efetivava através de seus aliados na Assembleia

Legislativa, como se pode perceber no pronunciamento do deputado do PTB,

Deusdeth Ribeiro, registrado no dia 15 de novembro no jornal Folha da Manhã:

Os lavradores de Teresina haviam fundado recentemente a “Associação dos Lavradores de Teresina” com grande sacrifício para ver hoje tocado fogo pelos latifundiários e reacionários [...] que agora começaram pelas sedes das associações para amanhã, talvez, tocarem fogo nas próprias residências dos camponeses.

Atitudes dessa natureza geravam um olhar atravessado tanto em relação

à sua pessoa, quanto ao seu grupo político, direcionado pela imprensa, latifundiários

e toda sorte de opositores.

Muitas das críticas sobre a postura política de Chagas Rodrigues e sua

aproximação com as Ligas Camponesas eram feitas em determinados jornais, os

quais detinham nitidamente orientação política partidária de oposição. O fragmento

abaixo, por exemplo, foi extraído do Jornal do Piauí. Ele expressa abertamente o

sentimento de insatisfação no que diz respeito ao governador Chagas Rodrigues que,

além de apoiar declaradamente essas entidades, ainda participava de seus eventos.

Um congresso sindical de trabalhadores e camponeses realizado em fins de abril deste ano, no Piauí, constitui, no Estado, as Ligas Camponesas, que já estão confortavelmente instaladas no Palácio do Governo. O Senhor Chagas Rodrigues é o patrocinador das Ligas Piauienses que, por causa disso, estão em melhores condições de que as ramificações da instituição espalhada no Nordeste, embora não contem com a popularidade das Ligas de Pernambuco (JORNAL DO PIAUÍ, 1961, p. 6).

Na sua posse, ocorrida em 1º de janeiro de 1959, foram registradas

presenças de diversas entidades de classes de trabalhadores urbanos e rurais. Em

decorrência dessa proximidade, Chagas Rodrigues – e ele bem a estimulava –,

ganhou dos grupos políticos mais reacionários que lhe eram contrários a alcunha de

Governador Comunista. Esse fato denotava uma posição acentuadamente aversiva

às Ligas Camponesas, que sequer – aqui no Piauí – alinhavam-se aos ideais de

orientação político-partidária.

185

Os trabalhadores rurais, notadamente os de Campo Maior, mesmo os

integrantes da Liga Camponesa de Matinhos, informados à época por encontros

políticos, jornais e pela própria luta, talvez não tivessem compreensão mais clara do

que era comunismo. Mesmo assim foram estigmatizados de comunistas pela ala

mais conservadora da Igreja Católica, pelos latifundiários e pelos políticos

oligárquicos. Luiz Edwiges e seus companheiros campesinos, em momento algum –

de sua a trajetória inicial de luta da Liga de Matinhos – hastearam bandeiras de

qualquer legenda partidária. Essa postura porem mudou tempos depois quando se

tornou um dos primeiros fundadores do Partido dos Trabalhadores.

O estigma, assim forjado, trouxe aborrecimentos, incômodos, perdas e

danos, individuais e familiares. Alguns foram presos, inclusive! Os militares lhes

tiraram o sossego, arrefeceram-lhes o ânimo, sim; mas não lhes tiraram o humor e a

ironia. Edwiges, assim, rebatia tal rotulação de forma seca e direta: “Somos adeptos

praticantes de um comunismo rústico”.

As críticas direcionadas ao governador pela oposição e que associavam sua imagem aos comunistas campesinos e até aos anarquistas urbanos, apesar de, às vezes, o incomodar não preocupavam tanto a ponto de lhes tirarem o sono. Entretanto, o achincalhamento, a desqualificação política e administrativa que atribuíam ao governador uma identidade amadora, oportunista e, principalmente de aproveitador, afirmando que o então deputado federal e sucessor de Demerval Lobão já tramava nos bastidores sua caminhada rumo ao Palácio de Karnak, o agredia profundamente. Tais situações podem ser identificadas nos trechos retirados do Jornal O Dia 28.09.1958, pág. 3. [...] acusado como promovente e recebedor de verbas federais para instituições fantasmas, o deputado Chagas Rodrigues conseguiu proteção e nunca apresentou defesa, sob a máscara de ser trabalhista. Fez força para queimar a candidatura de Demerval Lobão Veras e contribuiu para enfraquecer a indicação de Matias Olimpio ao Ministério do Trabalho, enfraqueceu a votação daquele piauiense, no último pleito e tomou ares de dono do PTB [...]

E a matéria segue afirmando:

[...] Por motivo de causar desconfianças aos seus competidores, nas próximas eleições, diante da fortuna recebida com lucros fantásticos, viu seu nome registrado ao cargo de governador do Estado, mas conservou a posição de candidato a deputado federal. O mandato majoritário não lhe oferece qualquer possibilidade de vitória. Políticos

186

de responsabilidade, conscientes de seus deveres, conhecedores das exigências que se recomendam para a escolha de nomes, aos postos eletivos, não indicariam elemento como Chagas Rodrigues ao sufrágio popular. O sentimento de honestidade, o respeito ao povo e outros fatores evitariam apresentação desse quilate. Somente a cegueira partidária e o desapreço aos brios dos piauienses aproveitariam aquele “artista” como substituto de Demerval Lobão Veras.

Em outras ocasiões, as críticas e acusações descambavam para o

deboche e comparações pejorativas e bizarras, como a que veiculada no jornal O

Dia de 3 de agosto de 1958, que compara o governador Chagas Rodrigues, depois

de tê-lo apelidado de Chaguinha, Chagão, Chico e Chiquinho e o associado ao

barbeiro causador da temível Doença de Chagas:

Sanear a política e higienizar os costumes. E necessário premunir o povo contra as endemias de todos os gêneros, notadamente, defendê-lo da perigosa “Doença de Chagas”, aquela que ataca a tireoide, faz chupanças. Defendamos a nossa saúde contra os insetos criminosos que nos ameaçam com a moléstia de Chagas (O DIA. 23.08.1958. p. 01).

Em entrevista concedida a este pesquisador, o advogado Reginaldo

Furtado, que na época exercia a função de secretário particular do governador

Chagas Rodrigues, ao falar da disposição do governador em trabalhar pelo Piauí,

fez a seguinte afirmação:

O Chagas era tão dinâmico e trabalhador que ele inventou umas audiências populares aos sábados. Falava com povo através de um programa de rádio que ele criou na Rádio Clube. O Programa chamava-se Falando ao Povo, lá nesse programa ele parecia uma criança. Ele era um ótimo orador e quando alguém fazia uma pergunta daquelas que gostava, aí que ele se soltava e falava sem parar.O governador Chagas era o Homem que o Piauí precisava para transformar o velho e sofrido estado em coisa nova. Ele, o Chagas, era um homem da mídia; acredito que ele foi o maior em termos de comunicação direta com o povo. Ele era realmente brilhante, acho que foi esta a razão dele apoiar a instalação da Rádio Clube de Teresina.

O advogado Reginaldo Furtado, um reverenciado conhecedor do

comportamento político de Chagas Rodrigues, afirma que a administração do então

governador teve claramente duas fases.

187

A primeira compreende os dois primeiros anos de governo (1959/1960),

no qual o governador ponderava muito sobre as decisões, principalmente as

políticas, porque tudo provocava melindro e desconforto nos integrantes da UDN,

partido de natureza mais conservadora, mas que em tempos de eleição se

apresentava como legítimo herdeiro das últimas reservas morais existentes,

defendendo-as com discursos sentimentais e reformistas.

A segunda fase – a mais importante para o estado, na opinião de

Reginaldo Furtado – foi administrativamente mais significativa. Nessa fase, Chagas

Rodrigues voltou-se, de modo mais decidido, para o cumprimento de suas

promessas de campanha e passou a tomar as principais medidas para o

desenvolvimento do Piauí. Sobre essas medidas, ele faz a seguinte ponderação:

O governador Chagas se preocupava com muitos setores. Agora, o principal setor – aquele que tirava o sono dele – era o povo, a miséria do povo. Ele me disse e me mandou por duas vezes a outros Estados da região Nordeste ver se existia e, existindo observar como funcionava o Serviço Social do Estado. Ele pretendia montar um serviço no Piauí voltado a prestar assistência médica, alimentar e que diminuísse o sofrimento do povo pobre. Ele revelava um carinho especial com as mulheres e as crianças. Ele, uma vez me confidenciou que antes mesmo de enviar a mensagem criando o SERSE, já tinha conversado várias vezes com a dona Maria do Carmo Rodrigues, sua esposa sobre um órgão desses no estado. Ela também era uma mulher de luta, guerreira, carismática e muito elegante, apesar desses atributos refinados, nunca disse um não para alguém do povo. Tenho muitas lembranças dela; agora, guardo duas em especial. Uma, a primeira foi no dia em que fomos entregar centenas de foices, enxadas e facões para mais de mil trabalhadores e trabalhadoras que estavam sem ferramentas para trabalhar, foi lindo, inesquecível. Naquele dia ouvi muitos trabalhadores chamarem dona Maria do Carmo de Mãe da Pobreza. A outra foi um evento no Karnak, era muita gente com faixa de agradecimento, saudações por tudo que ela fazia pelos mais pobres do campo e da cidade.

Chagas Rodrigues fazia questão de reafirmar, em todas as ocasiões, que

seu compromisso com o povo era uma espécie de missão dada por Deus e que lhe

fora confirmada quando os piauienses o escolheram para governar o Piauí. Seus

adversários e até alguns políticos (UDN) a ele coligados não gostaram nada disso.

Chagas parecia não dar a menor importância ao fato. E isso ele demonstrou a partir

de sua posse, pois chegou a ser cáustico ao atribuir às elites conservadoras a culpa

pelo fato de o Piauí ser a unidade federativa mais pobre do Brasil. Para muitos, tal

afirmação era grotesca e hilária.

188

De fato Chagas Rodrigues, inegavelmente, fazia parte desse segmento

social que agora, ascendido ao cargo de governador, escarniava-o; ele nasceu,

cresceu e sempre viveu nesse meio. Ele descendia de uma das famílias mais ricas

de Parnaíba, principal cidade do norte do estado, a qual lhe assegurou uma

expressiva votação e o elegeu deputado federal pela UDN. O seu ingresso no PTB

se deu somente em 1954.

A retirada do Piauí dessa situação de extrema penúria e dificuldade de

trilhar o caminho do desenvolvimento exigiria um esforço incomum. Esforço que ele

próprio demonstrava, de modo convicto e altruístico, estar disposto a capitaneá-lo.

Lastro moral e principalmente político que ele, Chagas Rodrigues, tinha de sobra.

Superar aquela situação histórica de atraso lhe era imperiosa. A arrancada para tal

condição o governador a prenunciou na mensagem enviada à Assembleia

Legislativa em 1960:

É necessário que o povo piauiense compreenda – e isto já começa a verificar-se – que precisa confiar em homens de luta e coragem moral e cívica, para com eles à frente, de outro modo, acordar todas suas extraordinárias energias e, unido num trabalho de fé e patriotismo, superar-se a si mesmo, forjando seu glorioso destino. O pauperismo e o subdesenvolvimento piauienses estavam a exigir uma análise profunda, da qual se partisse para a programação administrativa, econômica e social [...] Os aspectos geopolíticos, geoeconômicos, demográficos de comunicações, transportes, energia, combustíveis, produção, comércio, educação, saúde e saneamento, financeiros, sociais e administrativos, foram cuidadosamente examinados, ponderados e estabelecidos em termos exequíveis para uma política de recuperação.

Como se percebe, a fala e as práticas do governador são emolduradas

dos principais ingredientes presentes nas ideias do populismo e do trabalhismo.

Mas, afinal, o que se pode entender desses dois conceitos? Como e a partir de

quais elementos o pesquisador identifica, dentre os variados tipos existentes na

Europa e América, os estilos de populismo mais adotado na cena política brasileira

e piauiense em particular? Qual o trabalhismo expresso na retórica do petebista

piauiense? Chagas era realmente um trabalhista? Que tipo de trabalhismo era

possível desenvolver numa região de economia estagnada e predominantemente

agrária como a do Piauí?

189

Longe de aceitar a ideia de conceitos como realidades dadas, modelos

prontos e discursos tradicionais reproduzidos pela imprensa, partidos políticos e pela

própria historiografia, sobre os governos de Vargas, Juscelino e principalmente

sobre João Goulart, enquadrando-os simplesmente como governos populistas, o

autor entende que a queda e o consequente desmonte do projeto nacional-popular

que seria levado a efeito por Jango e o PTB, foi resultado não de uma “crise de

modelo”, mas da ação de forças politicas conservadoras de direita que se

mobilizaram contra e desferiram um golpe não apenas no governo, mas na

democracia brasileira.

D’Araújo (1996) afirma que, ao ponderar em relação ao partido político ou

mesmo sindicato, a dupla Jânio e Jango faz a seguinte ponderação:

[...] o partido, além de se apoiar na estrutura corporativa, deveria ser um agente de mobilização popular. Partidos e Sindicatos deveriam atuar simultaneamente junto aos trabalhadores, visando ao crescimento eleitoral e à formação de ampla base de apoio para programas reformistas e nacionalistas.

Para a autora, o PTB nasce e se mantém ao longo dos anos como partido

fortemente centralizado, autoritário e com evidentes contornos carismáticos, girando

até 1954, em torno de Vargas. Segundo D’Araújo, essa situação foi modificada com

a morte de Vargas e o consequente controle do Partido por outras lideranças como

Brizola e Jango.

Desde a era Vargas, a colonização e a reforma agrária eram interpretadas

como fatores essenciais à modernização da agricultura, à formação de um mercado

interno consumidor e à efetiva industrialização do país. Tal debate e perspectiva

ganharam vitalidade entre nacionalistas e trabalhistas dos anos 50 e principalmente

os membros do PTB, Partido Trabalhista Brasileiro, destacaram-se na luta política

pela reforma agrária. Exemplo de luta pela reforma agrária o deputado Josué de

Castro (PTB/PE) defendia a seguinte posição:

[...] é hoje de consenso de todas as nações que a estrutura agrária brasileira, arcaica, está superada, e não satisfaz às necessidades da nossa expansão econômica. Todos nós que nos batemos pela emancipação econômica brasileira, estamos certos de que só podemos alcançar nosso objetivo através da industrialização intensiva. Temos consciência de que não se atingirá esse estágio sem uma agricultura suficientemente forte, estruturada em bases racionais, de modo que forneça as matérias-primas indispensáveis à industrialização e os bens de subsistência necessários à alimentação das massas que se deslocarão do campo para a indústria.

190

Enquanto Josué de Castro reivindicava a necessidade de um setor agro-

pastoril moderno e racional, que sustentasse o processo industrial, e via na reforma

agrária um meio de atingir tal objetivo, outras figuras de relevo no partido como o

próprio governador Chagas Rodrigues e o deputado Osvaldo Filho (PTB/PE) eram

mais radicais e criticavam, abertamente, por exemplo o dispositivo constitucional da

Carta de 1946, que estabelecia a “prévia” e “justa” indenização em dinheiro aos

proprietários que tivessem terras desapropriadas. Para o deputado:

[...] se tornou verdadeiramente impossível a realização da reforma agrária ao se estabelecer que a desapropriação se faria apenas mediante a prévia indenização em dinheiro, [...] Na verdade, devemos ter a coragem de afirmá-lo: aquilo de que padece este país é possuir vinte milhões de semiescravos. A abolição da escravatura ainda não se realizou no Brasil integralmente [...] O trabalhador rural neste país não tem direitos. A ele não se estende a legislação trabalhista; ele trabalha de sol a sol, acorda de madrugada e entra pela noite: não tem direito a férias, a salário mínimo a nenhum benefício que a legislação já assegurava a todos os trabalhadores das nações civilizadas.

Para o deputado que tinha uma visão mais severa de reforma agrária,

indenizar os proprietários não era fazer reforma e transformação pela base do país,

era dar prêmios a quem já tinha expulsado de forma violenta os camponeses por

meio de cercamentos e grilagem. Além dessas, existiam outras divergências entre

os integrantes do PTB em relação à ideia de reforma agrária, o próprio

governador Chagas que defendia em discurso uma reforma agrária mais

profunda, na prática desenvolveu um processo mais moderado que deveria,

segundo suas próprias palavras, partir inicialmente de um planejado e

cauteloso programa de distribuição das terras públicas aos trabalhadores e suas

respectivas famílias. Igualmente defendia empréstimos de terra sem cobrança de

pagamento, a desapropriação com a devida indenização em moeda

corrente e, somente em último caso, com pagamento com títulos da dívida

do tesouro. (mensagem do governador de 31 de janeiro 1961, p. 25/26,

mensagem n 98.)

O modelo político-administrativo levado a efeito pelo governador Chagas

Rodrigues tem sido analisado de diversas maneiras, (Medeiros, 1996, p. 69) diz que:

191

“a administração estadual consegue capitalizar e encarnar com grande força as ideias reformistas: populismo, desenvolvimentismo – industrialismo, nacionalismo. O jornalista A. Tito Filho em resumo feito ao jornal O Dia (05.06.60 p 3) afirma que o governador depois de desiludido com as perspectivas de atuação da SUDENE no Piauí assume um discurso mais radical. Nas comemorações de 1º de maio de 1960, o governador se posiciona com veemência. [...] deve ser construído um mundo novo sobre o mundo velho do atraso e do pauperismo, [...] o homem não será mais explorado pelo próprio homem,[...] tudo farei contra o latifúndio para desapropriar terras e entregá-las aos trabalhadores e suas famílias.

Os grandes proprietários de terras, por sua vez, atribuíam ao governador

uma identidade comunista, oportunista e demagógica. Em matéria veiculada no

jornal Folha do Nordeste de 09/03/62 p. 2, denominada O Arlequim, Simplício

Mendes assevera:

“Há também o Arlequim político, isto é, o homem sem ideias próprias, sem firmeza de princípios, personificação do oportunismo, da demagogia que falseia que ilude, que aparenta moral, mas verbalista e arrojado falador, anda a cata de êxito, a qualquer preço, sempre encobrindo a verdade, as realidades evidentes, com as máscaras diversas e bem confeccionadas da mentira, elevadas à altura de um programa. É o ridículo, o mistificador, é o intrigante e o aventureiro, afivelador de todas as máscaras em perene carnaval.

Em outra matéria, desta feita veiculada pelo jornal Folha da Manhã em

06/04/1961 p. 01, o alvo é o governador e suas práticas assistencialistas. O autor

assim se refere:

“ilude-se o homem do trabalho com uma falsa assistência social,

distribuída pelos Institutos de Previdência que nada mais são do que meio de uma

propaganda individualista, representada nos páreos benefícios de ordem puramente

demagógica.”

Como se percebe são muitas as críticas feitas ao governador e ao seu

modo de fazer política. Embora o ideário defendido pelo PTB, isto é, o trabalhismo,

fosse constituído de valores e princípios que já povoavam a cabeça de alguns

segmentos da sociedade antes mesmo da criação do partido, convém ressaltar que

tais ideais tinham sentido e impactos diferentes em cada região do país. Por que

isso acontecia? Evidente que sendo a sociedade brasileira caracterizada por

importantes clivagens – regionais, econômicas, culturais e políticas – e que somente

192

conviveu com a obrigatoriedade de partidos organizados nacionalmente no pós

Estado Novo, é recomendável observar-se que o grau de representatividade e a

força política dos partidos estavam diretamente relacionados ao poder do grupo que

os comandava em cada região e estado do país.

Essa era uma situação que podia facilmente ser percebida no Piauí, onde

o PTB somente se tornou um partido importante com alguma representatividade,

depois da chegada de nomes já consolidados na política como do senador Matias

Olímpio, deputado federal Chagas Rodrigues e outros nomes como Ribamar de

Castro Lima e Alberto Bessa Luz. Antes, sob o comando do jornalista João Emílio

Falcão, a legenda além de não ter qualquer expressão eleitoral no estado ainda

deixava de receber recursos e apoios por meio de obras. Também pouco participava

da grata distribuição de cargos federais aos correligionários no estado.

Essa condição de partido nanico foi alterada e o PTB passou, depois da

chegada dessas personalidades, a disputar em condições mais igualitárias os pleitos

municipais e estaduais, chegando finalmente à vitória com Chagas Rodrigues em

58. No poder o movimento do governador Chagas, no sentido do apadrinhamento

dos sindicatos aos órgãos da administração, como o Ministério do Trabalho, foi

bastante intenso, tanto assim que no caso do Piauí, esses sindicatos cresciam sem

influência de outro grupo mais à esquerda como o Partido Comunista. Isso porque a

única força que realmente disputava com o PTB, era a Igreja por meio da ação de

Dom Avelar, ainda assim, os resultados eleitorais desse não foram expressivos junto

a esse segmento social.

O governador Francisco das Chagas tinha conhecimento das muitas

tendências ideológicas que se alojavam no interior de seu partido. Tendências que

variavam desde os nacionalistas, passando por reformistas até o grupo defensor do

chamado pragmatismo e idealismo político. Chagas sabia também que a

musculatura que seu partido possuía em esfera nacional e que permitia a João

Goulart, a partir de um variado leque de forças trabalhistas e de esquerda como o

próprio Partido Comunista, levantar bandeiras mais profundas e até radicais. A força

politica do PTB em nível nacional não se verificava no Estado onde a sigla foi

sempre uma força coadjuvante, mesmo durante seu governo.

Nesse sentido Chagas Rodrigues que fazia parte do grupo identificado

como Pragmático, defendia o uso da máquina partidária como instrumento de

193

prestação de serviço de assistência ao povo, com o firme propósito de “conquistar

as massas trabalhadoras”. O governador também sabia que essa posição tinha

cheiro e sabor assistencialista e clientelista, já que estimulava e esperava das

classes trabalhadoras laços de fidelidade e gratidão ao sindicato, partido e governo,

principalmente em momentos eleitorais.

Por todas essas razões, Chagas temia que sua obra trabalhista no Piauí

entrasse para a vida da classe trabalhadora e para a história social do estado como

uma obra inacabada, pois em um único governo não teria condições de consolidar

seu projeto e mais, ele temia que seu sucessor operasse no sentido contrário ao seu

projeto, desmobilizando os trabalhadores do campo e da cidade, dificultando ainda

mais a libertação de homens e mulheres que representavam, no seu entendimento,

a maior riqueza do Piauí.

Embora as preocupações do governador fossem legitimas é preciso

reconhecer que sua gestão fora marcada por uma politica claramente voltada para o

atendimento das muitas demandas oriundas das classes trabalhadoras,

especialmente dos camponeses. Chagas Rodrigues não apenas orientou sua

administração no sentido de atender reivindicações e demandas, mas também no

sentido de organizar e fortalecer as entidades representativas desses trabalhadores

fossem sindicatos, associações e as próprias ligas camponesas.

3.3 Entre a realidade e o sonho: a promessa de (re) fundação do Piauí pela via

da modernização conservadora.

Ainda durante a campanha eleitoral para o governo do estado, muito

possivelmente movidos pelo combustível da emoção, da dor pela perda dos

membros inicialmente indicados para compor a “chapa das oposições coligadas”, e,

pelo compromisso de transformação, especialmente para e em benefício dos mais

necessitados, Chagas e seus correligionários correram o Piauí de Norte (Parnaíba) a

Sul (São Raimundo Nonato) levando a promessa de (re) fundação agora, pela via da

modernização, ainda que conservadora, do Piauí. O então candidato sabia por certo

que esta era uma tarefa difícil, cara e lenta, porém, politicamente possível, bastava

para isso alguém destemido para iniciar. Nesse intento buscou primeiramente forjar

194

um conjunto de alianças, em nível local, regional e até nacional, depois estruturar

uma competente e comprometida equipe de trabalho, para tornar possível seu

projeto transformador pela via da modernização do Piauí.

Para Chagas, a dívida política e social da União para com o Estado era

muito mais fruto da inércia da classe política local do que pela falta de sensibilidade

e disposição do governo federal.

No entendimento das “oposições coligadas”, havia chegado o momento

da histórica coincidência da necessidade com a oportunidade, pois a instalação em

esfera nacional de uma proposta de modernização que incluía a ampliação e

modificação da produção industrial brasileira, até então totalmente tutelada

pelo estado, por uma, que mantivesse a linha desenvolvimentista liberal, adotasse

outras estratégias de inclusão ampliando ainda mais os investimentos para o

Nordeste.

Nessa perspectiva, que promovesse a integração do interior com o

litoral, o que se daria por intermédio do fortalecimento da malha rodoviária,

uma das prioridades do governo. Também fomentasse o desenvolvimento da

região através da criação de agentes financeiros como o Banco do Nordeste

e da SUDENE – Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, sendo

esta última criada com a incumbência de aprofundar estudos sobre a

situação socioeconômica da região e encontrar soluções imediatas para os

mais graves problemas. Foi criado ainda o Departamento Nacional de Obras

contra a Seca – DNOCS. Todos esses investimentos levaram o Estado

e os piauienses a acreditarem que agora, finalmente, havia chegado a vez do

Piauí.

Ressalta-se, porém, que a questão da reforma agrária, principal

reivindicação dos trabalhadores e outras demandas de interesse do Piauí foram

deixadas de lado, pois a SUDENE tinha seus interesses voltados quase que

exclusivamente para o Ceará, Bahia e Pernambuco, ficando o Piauí fora dos

interesses dessa superintendência. Fato ilustrativo desse comportamento pode ser

identificado nas orientações dadas por esta superintendência na solução de dois dos

principais problemas do Piauí. Sobre essas orientações, Felipe Mendes assim se

expressa:

195

“Pelas orientações do Celso Furtado, o problema de energia do Piauí, por exemplo, deveria ser resolvido com a ampliação da usina termo elétrica de Teresina e de Parnaíba, assim somente essas duas cidades teriam energia permanente por 24 horas, e as demais cidades? Na questão dos transportes, ele mandou desativar, por exemplo, a construção de várias linhas de trem, exceção feita à linha Parnaíba - Teresina e Teresina – Fortaleza, as demais por exemplo, Teresina -- Paulistana, que poderia ser hoje a ligação com o nosso semi-árido transportando nosso minério e também o porto de Luís Correia, pois as prioridades eram os portos de Recife, Fortaleza e Salvador.[...] A SUDENE não considerou o Piauí como área de atuação para o desenvolvimento.

Evidentemente que Chagas Rodrigues e seus apoiadores sabiam que nada

“cairia do céu” gratuitamente e continuou acreditando muito nas ações da SUDENE,

por isso todos precisavam de muita mobilização para conquistar o que lhe era devido,

nesse sentido continuou sua luta, acreditando nas ações que a superintendência

poderia fazer pelo Piauí, conforme se pode perceber de suas palavras:

“Acreditamos na SUDENE, que talvez seja a última esperança de solução dos problemas nordestinos. Se falhar, na SUDENE que é sistematização, coordenação, planejamento, teremos então, realmente, uma situação crítica no Nordeste. Temos que resolver os problemas do Nordeste encarando-o como um todo e à base de estudos, à base de análise, à base de planejamento. (O Dia, n 985, p. 1 de 31 de maio de 1962)

A cobrança da dívida da União para com o Piauí era recorrente e já havia

sido lembrada em discurso pelo ex-interventor durante o Estado Novo, Leônidas

Melo; -- “ser o Piauí o estado mais pobre, mais esquecido, mais abandonado, mais

desprezado pelo Governo Federal todos sabemos” [...] e segue dizendo: “se o Piauí

fosse reivindicar tudo o de que necessita não sobraria vez para mais nenhum outro

Estado, pois ele não tem nada e desse nada, o governo lhe toma para beneficiar as

regiões do sul do país”(Folha da Manhã,1959, p. 4).

Também respaldava o candidato a governador na perspectiva de

viabilizar suas promessas de campanha à compreensão que ele tinha do novo papel

e responsabilidade que o poder público (Estado) havia assumido a partir década de 50,

especialmente em relação aos mais pobres da cidade e do campo. Nesse intento, a

fim de amenizar e até mesmo eliminar conflitos sociais que podem aflorar quando a

população tem seu nível de subsistência comprometido, o Estado passou a adotar,

196

particularmente em período de seca e ou de cheias, as chamadas frentes de

emergência que trabalhavam nos serviços de construção de açudes, rodagens e

aberturas de estradas e nas chamadas “operações tapa buracos”, dentre outras frentes.

Essa situação foi narrada pelo senhor Francisco Alves de Macedo

Sobrinho, servidor do DNOCS, à época, alistado como diarista na rodovia Castelo –

Campo Maior onde trabalhou nos anos 1958 e 1959, sendo depois servidor

nomeado em 1964, no qual atuou na construção do açude de Pio lX e em outras

áreas até 2001 e depois finalmente se aposentou por invalidez. Sobre as frentes de

serviço, ele conta que:

“Era muita gente trabalhando nessas frentes. Formava turma de 300,400 e chegava a 500 homens trabalhando, era tudo dividido. Uns ficava cavando a piçarra, outros carregava nos carros de mão e os outros ficavam espalhando o material que vinha nos carros. Serviço muito pesado de sol-a-sol, o dia todo a semana inteira. Era assim numa semana, na outra trocava tudo. Quem tava no carro de mão ia espalhar a piçarra, quem tava espalhando ia cavar e assim todo mundo passava por todas as tarefas. Tinha também o apontador, era uma pessoa que sabia anotar, conferir e botar para assinar a folha. Quando o cabra era duro e interessado ia mudando de trecho e rodava o Estado todo nas frentes de serviço. Quase todo mundo vinha da roça e virava cassaco.

Assim, a política de assistência aos camponeses – retirantes ou

flagelados, foi além da abertura de vagas nas frentes de trabalho, como descrita

acima para ocupar mão de obra ociosa, em período de escassez; o governo

interferiu ainda através de entidades como o SERSE e outras, também no mercado

de alimentos, regulando os preços e o abastecimento. Além dessas ações,

distribuíam medicamentos, cobertores, redes, cestas de alimentos, dentre outras de

caráter puramente assistencialista, mas que se mostravam oportunas e essenciais

naquele mar de miséria e sofrimento. Contudo, embora essas ações e outros

programas fossem efetivamente desenvolvidos, ressalta-se que, muito mais que aos

camponeses pobres, tais práticas fortaleciam os coronéis e o poder público, cada

vez mais importante na vida daqueles homens e mulheres abandonados pelo

estado.

Movido pelo ideal de transformação da realidade social e econômica a

partir da base e, progressivamente reduzir o poder privado dos latifundiários sobre a

197

classe trabalhadora, especialmente dos trabalhadores agregados e dos que viviam

vendendo sua força de trabalho por falta de terra, iniciou seu próprio projeto de

Reforma Agrária em etapas.

Nesse intento, primeiramente autorizou a concessão de lotes de terra

para trabalhadores rurais na região de São Vicente, Fazenda Soares, Lagoa do Sítio

para fins de Reforma Agrária. Em seguida, no dia 28 de novembro de 1959 enviou

para aprovação pela Assembleia Legislativa a Lei Complementar 1.908, que

autorizava a locação de áreas territoriais do patrimônio do estado, de até 20

hectares, para famílias pobres com a determinação de que se fixassem no território

locado. (Mensagem do governador 1961.p 44)

Com essa medida, o governador efetivamente retirava do papel e dos

sonhos, dele e de muitos piauienses, colocando em prática seu projeto de Reforma

Agrária e aumentava, em paralelo, a resistência dos latifundiários na sua maioria

alojados no PSD. Também fornecia munição para a imprensa e outros setores mais

conservadores contra ele, Chagas pessoalmente e contra seu governo como um todo.

A conjuntura econômica e política do Piauí dos anos 50 e 60 parecia ser a

mesma dos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, quando da implantação da

chamada “Política dos Estados”, pelo então presidente Campos Sales ainda na

transição do século XIX para o XX (1898 e 1902).

Para Sales, “era dos Estados que se governava a República”, e continua

“A política dos Estados [...] é a política nacional”. Contudo, enquanto no sudeste se

assistia à decadência econômica dos fazendeiros e o consequente enfraquecimento

do poder político dos coronéis em face de seus dependentes e rivais, no Piauí, essa

situação mostrava-se inalterada com os coronéis dominando a cena econômica e

política e exercendo ainda grande poder sobre os governadores, influindo

decisivamente em suas eleições e governabilidade.

Evidencia da situação posta, foi o resultado eleitoral nas eleições de

1958, não em relação ao cargo de governador propriamente, mas naquilo que se

referia a influencia dos coronéis no sentido de orientação a votação nos candidatos

por eles apoiados. Prova cabal dessa força eleitoral se percebia na transferência de

votos para os cargos executivos municipais e legislativos estaduais. Essa influência era

ainda maior nas povoações onde inexistia qualquer foco de urbanização e mobilização

de trabalhador, nesses lugares o peso eleitoral do chefe local era quase ilimitado.

198

Em regiões nas quais os trabalhadores recebiam orientações como as

que advinham da Igreja, inicialmente através de programas de formação comunitária

e tempos depois por meio das aulas do MEB que as desenvolvia a partir de uma

perspectiva de conscientização, trabalhando temas que levavam os trabalhadores e

suas famílias a compreenderem mais e melhor a dinâmica da sociedade, faziam

muita diferença. Nesses ambientes, o resultado eleitoral, embora ainda dominado

pelos tradicionais grupos, já revelavam mudanças importantes nos números e às

vezes no próprio resultado.

As Oposições Coligadas, a exemplo do que se afirmou acima, “venceram

o pleito para as vagas de governador e senador, com a coligação PTB-UDN,

alçando resultados superiores a 30% nas cidades Teresina, a Capital e nas três

outras maiores cidades do Estado – Parnaíba - terra do candidato a Governador,

Floriano e Picos, essas duas últimas na região sul do estado. Esse mesmo

desempenho não foi atingido em nenhuma das cidades menores onde o poder do

chefe político local era notório e se refletia em votos a favor do candidato que este

apoiasse. Exemplo dessa presença pode ser constatado no resultado eleitoral da

cidade de José de Freitas, que mesmo sendo uma extensão de Teresina, o

candidato governista teve 1.835 votos contra o candidato da oposição, que obteve

apenas 130”. (CASTRO 1958, p.37).

Para Oliveira Viana (1949), a manutenção e perpetuação da estrutura

clânica que se espalhava Brasil afora e que se sobrepunha às exigências eleitorais

deu origem a vários clãs eleitorais dominados por ricas e poderosas famílias que

comandavam o poder no interior do país. Ainda segundo Viana, a origem do poder

político desses grupos familiares se deve a uma base econômica essencialmente

associada à posse da terra.

Nessa mesma perspectiva, Martins (1981 p 28) postula que:

“na cultura popular camponesa, as relações ‘de favor’ aparecem como uma obrigação inerente ao direito de propriedade do fazendeiro. Sendo assim, a terra é uma concessão que exige uma contrapartida. Apenas a quebra desse pacto – o alijamento brusco de suas condições objetivas de sobrevivência – golpeou o/a trabalhador (a) e pode, em alguns casos, servir como fator ‘libertador das consciências’, possibilitando ações associativas horizontais.

Nesse mesmo sentido, Leal (1949) afirma ser o coronelismo:

199

“um sistema político nacional, baseado em barganhas entre o governo e os coronéis. O governo estadual garante, para baixo, o poder do coronel sobre seus dependentes e seus rivais, sobretudo cedendo-lhe o controle dos cargos públicos, desde o delegado de polícia até a professora primária. O coronel hipoteca seu apoio ao governo, sobretudo na forma de votos. Para cima, os governadores dão seu apoio ao presidente da República em troca de reconhecimento por parte deste de seu domínio no Estado.

No Piauí, a trilogia grande propriedade, família e poder, apesar de

caracterizar o país inteiro, parecia mais recrudescida e, ainda que remetesse a

tempos mais longínquos, ganhou maior dimensão e clareza na formação de

agrupamentos estaduais com lideranças fortemente personalizadas, como

Eurípedes de Aguiar, governador de 1916 a 1920, Matias Olímpio, governador

de 1924 a 1928, além de outras como os FREITAS, ALMENDRA ,GAYOSO,

PACHECO e PORTELA.

Era contra o poder dessas oligarquias que transformavam o estado numa

“fazenda familiar” que se transferia indefinidamente pelas gerações, passando de pai

para filhos e netos, e onde a ausência de identidade ideológica, política ou mesmo

programática dos Partidos Políticos forçavam principalmente, a partir da

cooperação familiar e econômica, a supremacia dos interesses familiares em

relação aos interesses da sociedade, que o governador afirmava se insurgir. Foi

exatamente essa situação que fez com que Chagas Rodrigues acreditasse

que aparelhar o estado, fortalecer a classe dos trabalhadores bem como suas

entidades representativas e desenvolver a economia, principalmente a partir do

comércio, indústria e serviços, gerando maior distribuição de riqueza, fossem para

ele as únicas armas possíveis de libertação do Piauí.

3.4 O assistencialismo como capital político: o papel do Serviço Social do

Estado – SERSE; e da primeira dama, Maria do Carmo, a mãe dos pobres.

Enquanto ele empreendia//Trabalho excepcional//Sua esposa – todos sabem//Dava-lhe força total//O Serviço Social//Aos pobres, aos desvalidos//Esta senhora olhava//Com sua equipe atuante// Pra eles nada faltava//Dava-lhes roupa e

comida//Tudo o que necessitava//Seu nome ficou na história//Do Piauí agradecido// Dona Maria do Carmo//É sempre um nome querido//O povo não a esquece//Pelo

seu dever cumprido [...]

200

Para Orlandi (2007, p),para se compreender como a linguagem produz

sentido, é preciso relacioná-la à sua exterioridade, ou seja, trabalhar com a relação

entre a língua, o discurso e a ideologia. Isso equivale considerar o sujeito como

sendo interpelado pela ideologia, já que é através das marcas ideológicas que a

língua faz sentido e é através dessa que ele produz sentido.

O uso do cordel nesse caso retratando a atuação do SERSE e da esposa

do governador, Maria do Carmo, identificada como “a mãe dos pobres”, tem por

objetivo servir como um espaço de resgate da memória e de História que subjazem

ao texto e que são revelados por meio de discurso. Também justificam seu uso o

fato de servir como registro da memória de um povo que se utiliza dos relatos que

são parte de sua cultura, de seu folclore, exercendo, dentre várias funções, a de

guardar essa memória coletiva por meio de um registro escrito, por intermédio da

memória individual que seria do sujeito cordelista, como a narração daquilo que ele

presenciou, os fatos.

O sujeito – cordelista, portanto, faz o papel de cronista do seu tempo, do

sujeito e historiador, que é testemunha e, portanto, faz história – testemunho

observando, criticando, registrando os fatos e acontecimentos da vida social, política

e econômica que ficam em sua memória. Ele convoca o leitor a acreditar em sua

narrativa como verdadeira.

Acreditar ou não em sua versão dos fatos exige por parte do leitor um

exercício interpretativo do discurso. Diante disso, fica evidente a relação entre o

discurso, que é veiculado em um determinado gênero discursivo e sua função

histórica – social, a qual é influenciada por uma memória discursiva social e coletiva,

ou mesmo individual, portadora de informações que edificam verdades que

possibilitam o exercício do poder.

Nas estrofes, o sujeito cordelista se prontifica a fazer uma narrativa

verdadeira baseada no que ficou na história. Conta como a primeira dama, a quem o

Piauí era grato, tornou-se braço direito do governador, limitando-se ao texto, a narrar

os fatos, as boas ações em favor dos pobres. A bondade e a capacidade de assistir,

ajudar dando comida e roupas aos pobres e humildes são virtudes exaltadas na

pessoa da primeira dama e no próprio serviço social.

O que se percebe nesse discurso é um reforço da versão oficial da

história, cuja imagem do governador e da primeira dama é construída como de

201

pessoas voltadas para o trabalho e assistência aos mais pobres e que cumpriram o

dever. Esse cumprimento de dever é confirmado com a gratidão do povo que não

esquece. Essa imagem que o governador e também a primeira dama se esforçaram

para construir junto ao povo começou a ser produzida muito antes de ocupar o

Palácio de Karnak.

A experiência de dona Maria do Carmo remetia aos trabalhos de

assistencialismo que ela já desenvolvia nas empresas da família ainda na cidade de

Parnaíba e ele, agora governador, iniciou tal trabalho nos tempos de advogado

militante no SESI, Serviço Social da Indústria no Rio Janeiro. O uso pelo governador

e também pela primeira dama da prática do assistencialismo como importante

instrumento político, será objeto de análise nas páginas que se seguem.

Quando assumiu o governo do estado, em janeiro de 1959, o governador

Francisco das Chagas Caldas Rodrigues encarnava não somente a esperança dos

mais de 100 mil eleitores que esperavam dele o cumprimento das promessas feitas

durante a diminutíssima campanha rumo ao Palácio de Karnak. Ele – na condição

de protagonista do maior, ainda que incipiente discurso trabalhista – para além da

esperança de eleitores, correligionários e apoiadores do PTB e também da UDN,

personificava a promessa de uma administração que rompesse com os padrões

oligárquicos dominantes até então. Em razão disso, esperava-se que ele

transformasse a vida política e econômica do estado; e que, preferencialmente,

nesse bojo atendesse aos anseios de milhares de homens e mulheres

desamparados da cidade e do campo que acreditavam em sua promessa de “mudar

o Piauí”.(O DIA.07.12.1958, p.8)

Solucionar ou minimamente reduzir tais anseios, intensamente vividos

pela população pobre e de há muito reclamados, somente seria possível – e Chagas

realizou isso, com assistência médico-hospitalar; com escolas, praticamente

inexistentes no interior do estado; com distribuição de sementes para possibilitar o

plantio das roças, principal e muitas vezes a única fonte de alimentos das famílias no

campo; com perfuração de poços, para a distribuição de água canalizada, pois as

principais fontes (rios, lagoas, poços e até cacimbas) ou secaram ou eram muito

distantes, impondo dor, sofrimento e humilhação principalmente às crianças e

idosos, segmentos sociais mais vulneráveis e, portanto, carentes de uma ação bem

mais efetiva e imediata do governo.

202

Uma alternativa a partir da qual se dava a intervenção do estado era

através das frentes de serviço, assegurando mesmo que precariamente a dignidade

do trabalho e da renda para milhares de agricultores chefes de famílias espalhados

pelo interior do estado. Ressalta-se, porém, que a transformação dos camponeses

em ‘operários’, ‘cassacos’ representava outro golpe naqueles agricultores de origem,

que, não tendo alternativa, foram destituídos de suas identidades para dessa

maneira continuarem mantendo a vida de suas famílias, ainda que para isso

perdessem as suas.

No intuito de prontamente iniciar sua obra transformadora – mesmo

lançando mão de medidas assistencialistas –, Chagas Rodrigues enviou mensagem

à Assembleia Legislativa determinando a imediata abertura de frentes de serviço,

distribuição de sementes e cestas básicas, além do cadastramento das famílias mais

castigadas pela seca, que seriam alvo de outras futuras ações. Para fazer frente

àquela situação de total calamidade, o governador esperava contar também com

indispensável contribuição do DNOCS – Departamento Nacional de Obras Contra a

Seca – que naquele ano (1959) foi obrigado a dar início a novas frentes de serviço,

mesmo não tendo recursos planejados, conforme se depreende do relatório:

Embora com o programa de construções de rodovias limitado, inclusive por orçamento, a conclusão de obras que faziam parte do plano do Departamento de Secas, a crise climática, obrigou o inicio de novos serviços para permitirem socorro a maior número de operários (DENOCS. 1989, p.04).

Também, ainda na mensagem enviada à Assembleia, por ocasião da

abertura do ano legislativo, Chagas Rodrigues evidenciou a sua preocupação e o

seu compromisso, na condição de governador, com o estado e com a sua gente.

Uma reafirmação de promessa de campanha, agora em tom proclamativo:

[...] lutar, tenazmente, em todas as frentes, contra o atraso, o pauperismo e a miséria, ou seja, contra o secular subdesenvolvimento piauiense, para o que necessariamente, se fazia e se faz um clima de ordem e tranquilidade, compreensão e tolerância (MENSAGEM LEGISLATIVA. 1960, p. 14,livro ll)

Conhecedor dos principais problemas do estado e consciente de que

algumas soluções se dariam somente no longo prazo, o governador criou, a partir do

203

Decreto 292 de 31 de janeiro de 1960, o SERSE – Serviço Social do Estado, para

fazer frente aos problemas de pequena monta cujas soluções não demandavam

muitos recursos; suas execuções não demandavam licitações, eram relativamente

baratas e seus resultados se davam de forma imediata.

Assim, sob a responsabilidade de sua esposa, Maria do Carmo Correia

de Caldas Rodrigues, o SERSE iniciou o seu roteiro de ações efetivadas através de

uma grande peregrinação, de modo a levar às áreas mais pobres da capital, assim

como do interior, obras físicas como os abrigos Santa Teresinha e São Vicente em

Teresina, e o abrigo São José, em Parnaíba, que atendia 40 idosos. Outra ação criada e

levada a efeito por aquele novo órgão foi a instalação de cinco postos de alimentação

diária para a população carente, que ficou conhecida como a Sopa dos Pobres.

O SERSE continuou, ainda durante todo o governo de Chagas, a fazer

também distribuição semanal de pequenos auxílios financeiros a famílias

cadastradas e reconhecidamente pobres. Também fazia parte das atividades

assistenciais desenvolvidas pela presidente do SERSE, conhecida publicamente

como a Mãe dos Pobres, a realização de uma grandiosa festa de final de ano –

confraternização natalina – para encerrar as suas atividades do exercício findo, que

ficou conhecida como o Natal dos Pobres.

Na programação, constavam, além de um farto lanche, vários momentos,

todos voltados para crianças, idosos, gestantes e mendigos, que se viam

contemplados durante o grande sorteio de brindes que variavam de kits com

cobertores, mudas de roupas, maquinas de costura, brinquedos para as crianças e,

também, de cestas básicas de alimentos; estas distribuídas para todos os presentes.

Como era de se esperar as ações desenvolvidas pelo SERSE se

expandiram por todo o Estado do Piauí, provocando, principalmente em razão dos

custos para aquele momento e pelos resultados eleitorais previstos, duras críticas da

oposição que logo passou a denunciar as ações desenvolvidas pelo SERSE como

meramente assistencialistas e eleitoreiras.

Os números realmente eram grandiosos e assustavam principalmente

por se converter numa novidade política, tendo em vista que era a primeira vez que

uma primeira dama se colocava à frente de toda e qualquer atividade do governo,

204

não importando se na capital ou no interior, se na poeira ou na lama como se pode

depreender dos dois depoimentos que se seguem.

Dona Maria do Carmo era uma mulher destemida, dura. Ela andava só ou com o governador. Todas as vezes que um pobre dava de frente com ela e conseguia dizer alguma coisa ela ajudava; e quando não dava certo, ela pelo menos tratava bem todo mundo. Dona Maria do Carmo foi sempre uma mulher muito fina, educada e todo mundo admirava ela. Eu mesmo ganhei dela uma muda de roupa, certo que não deu para os meninos lá de casa, mas eu dei para os filhos de uma vizinha que era até mais necessitada do que nós lá em casa. Ela ajudou muito o governador Chagas. Ela trabalhava muito, todo dia (MANOEL MESSIAS, 84 anos, alfaiate e morador do bairro Primavera, em Teresina, à época).

Eu lembro que pra onde a comitiva do governador viajava Dona Maria do Carmo ia junto; Entregar mantimentos, medicamentos, inauguração de obras, especialmente obras de caridade, tipo abrigo ou mesmo quando descia para o interior entregar instrumentos de trabalho como foice, enxada, facão, essas ferramentas que o agricultor precisa para realizar suas atividades diárias. Me arrisco a dizer que Dona Maria do Carmo foi a maior primeira dama que vi trabalhar sem granfinagem. Ela enfrentava tudo para ajudar o marido e cumprir a missão dela. Para se ter uma ideia do trabalho realizado, em 1959, foram atendidas, aproximadamente, 2.300 pessoas; em 1960, 3.700 pessoas; em 1961, 4.500 pessoas, e a tendência era aumentar porque vinha gente de todo lugar (REGINALDO FURTADO, advogado, secretário particular, à época, do governador Chagas Rodrigues).

As ações administrativas do

governador Chagas Rodrigues iam muito

além das práticas assistencialistas

descritas acima, pois sendo um social-

trabalhista, tinha a convicção de que a

sua gestão deveria ser acentuadamente

marcada por mudanças efetivas na vida

dos piauienses, especialmente daqueles

que mais necessitavam de trabalho e renda. Assim procurou dar prosseguimento e

aprimorar o sistema estadual de planejamento, expandir a rede estadual de ensino,

criando escolas públicas para a formação e contratação de professores em Floriano,

Parnaíba e Oeiras, que representavam ao lado da Capital as principais cidades do

estado. Também procurou desenvolver uma política de valorização do servidor

Fonte: SERSE / Natal dos pobres.

205

público sendo o primeiro governador a pagar o salário mínimo; decisão somente

possível depois de sanear e equilibrar as finanças do estado.

Outra importante medida tomada pelo governador foi a instituição da

Assistência Judiciária do Estado, uma espécie de embrião daquilo que

viria ser a Defensoria Pública. Tal criação foi respaldada pela Lei Estadual

2.239 de dezembro de 1961. Além dessas medidas, o governador

procurou consolidar sua posição de gestor popular. Assim pautando-se, abriu as

portas do Karnak para receber comitivas de trabalhadores, da cidade e do

campo; participou e financiou eventos de classes trabalhistas, como o

Primeiro Congresso Piauiense de Operários e Camponeses, realizado em 1º de

maio de 1961; hipotecou apoio direto e irrestrito aos trabalhadores. Isso ficou

evidenciado quando custodiou pecuniariamente a criação da Casa dos Sindicatos

em 1959.

Ainda no ano de 59, o governador enviou à Assembleia Legislativa a Lei

Complementar 1.908 editada de 28.11, artigo 9º, aprovada naquela casa

pelos parlamentares – permitindo a locação de áreas territoriais do patrimônio

do estado, até 20 hectares, a pessoas pobres que não possuíssem nenhum

imóvel e dispusessem a se fixar no terreno locado. Também enviou

decreto determinando a desapropriação de terras não produtivas e as

disponibilizando à venda para os trabalhadores rurais pela metade do preço

em até 30 anos, implementando, assim, de modo pioneiro, a reforma agrária

no Estado do Piauí. Nesse seu vanguardismo, merece registro a criação dos

postos de serviço denominados de Comandos Rurais, objetivando a assistência

técnica ao homem do campo, distribuição de lotes de terra na capital e interior e,

também, a entrega de equipamentos de uso cotidiano como force e facão através do

SERSE para os trabalhadores rurais e suas respectivas famílias, conforme

ilustração.

Sabendo existir esse tipo de abertura e disposição de o governador abrir

as portas de seu gabinete no Karnak a todos que o procurassem indistintamente, o

líder camponês Luiz Edwiges assevera:

206

Fonte: Governador Chagas entregando ferramentas para trabalhadores rurais.

Umas poucas de vezes nós marquemos de falar com o governador lá no palácio, até que deu certo. Era uma equipe grande, mas ele só mandou entrar cinco. Eu, o Raimundo Galdino, o Gregório e o menino do Sindicato da Construção Civil, que não lembro o nome dele agora. Nós falamos muito dos problemas do homem do campo foi quando ele chamou o secretário dele para ver o que os camponeses mais precisavam naquele momento. E mandou que fornecessem foice, machado, enxada, facão, ciscador, essas coisas que o homem do campo precisava para fazer a roça. Ele disse que fazia questão de entregar. E, no dia marcado, foi mesmo. Foi uma festa bonita (entrevista realizada em 03.05.2015).

A mídia de então, notadamente a Rádio Difusora, pertencente ao

conglomerado dos Diários Associados; e O Dia, jornal diário pertencente à família

Miranda, opunham-se ao governador Chagas Rodrigues e o atacavam de forma

sistemática. Em razão disso, fundou junto com o amigo Walter Alencar, jornalista,

advogado e professor da Faculdade de Direito, a Rádio Clube de Teresina. O

propósito era fazer frente e também dispor de microfones para contrapor-se às

açodadas críticas de seus opositores veiculadas naquela emissora associada, e,

assim, servir de canal necessário ao esclarecimento junto à opinião pública.

207

3.5 Estrangeiro na terra pátria

Inicia-se este tópico, que encerra o terceiro capítulo relativo aos governos

de Chagas Rodrigues e Petrônio Portella, com uma pergunta pertinente e necessária

e recomendada em estudos com intenção – por menor que seja – de se converter

em pesquisa acadêmica, com rigor metodológico e científico necessários a qualquer

estudo que se proponha sério e com propósitos “utilitários” e práticos como é caso.

Tal questionamento deve aqui ser encarado como uma via, um caminho

no sentido de auxiliar no entendimento das várias interpretações possíveis acerca da

real importância para o Piauí e para os piauienses a passagem de Francisco das

Chagas Caldas Rodrigues pelo comando do estado. Assim, pergunta-se: por que

Chagas Rodrigues fez um mandato considerado por muitos como popular, voltado

para os mais pobres da cidade e do campo, especialmente se comparado aos três

últimos governadores que o antecederam com ações administrativas marcadas em

sua maioria por um viés trabalhista e mesmo assim não obteve correspondência

eleitoral no pleito de outubro de 1962?

Para o advogado, escritor e ex-deputado estadual Celso Barros Coelho,

do PDC, cassado durante o regime militar, Chagas Rodrigues foi vítima de pelo

menos três circunstâncias que comprometeram, momentaneamente, sua vida

política durante e logo após seu mandato de governador. Sobre essas

circunstâncias, ele faz a seguinte ponderação:

O Chagas era um homem habilidoso e paciente, mas também gostava de dizer o que pensava mesmo não devendo ou não podendo. Ele padeceu pelo fato de não ser um ruralista, já que era vinculado ao setor do comércio e da indústria, tanto pela família dele quanto da esposa, por isso falava tanto em reforma agrária, mesmo não tendo base política para realizá-la. Também foi muito castigado pela imprensa local, especialmente a Rádio Difusora e Jornal Folha da Manhã, na maioria pertencente aos grandes proprietários, que associavam a imagem dele aos comunistas ainda que de comunista ele não tivesse nada, pois era um burguês acostumado a iguarias, luxo e bons ambientes desde a tenra infância até os tempos de acadêmico de Direito no Rio de Janeiro. Finalmente, a meu ver Chagas sofreu forte oposição da UDN que era muito poderosa na capital e influenciava as maiores cidades do interior, particularmente depois que o governador Tibério assumiu e exonerou um verdadeiro exército de servidores e comissionados que passaram a exigir do ex-governador que tomasse uma posição e revertesse aquela situação. Isso efetivamente não aconteceu, o que prejudicou muito a imagem do então governador. Assim, sem o governo, na oposição e com imprensa toda contra ele não tinha muito o que fazer e só não perdeu pra deputado porque andou muito, tinha um certo prestígio e dinheiro para fazer a campanha.

208

Essa habilidade do governador também foi reconhecida e tornada pública

no artigo intitulado A Fleuma do Governador, de autoria do jornalista Cunha e

Silva:

Apesar de moço, o governador Chagas Rodrigues é um político sagaz e matreiro. Com calma e a algidez do britânico, não se apressa na solução de casos encrencados da política estadual. Homem de partido e conhecedor já das manhas dos políticos, deixa que o fator tempo resolva as pendências entre os grupos políticos em que se dividem os partidos que o apoiam [...] Os velhos chefes do PTB já perceberam que Chagas tem aspirações políticas mais altas [...] Seu governo lucrar muito com Jânio Quadros no Palácio da Alvorada. Jânio não é Juscelino que prometeu muito para o Piauí e nada fez por ele. (O DIA. 25.09.1960, p. 04).

O artigo 139, lV, da Constituição Federal de 1946 determinava que o

candidato no exercício de um mandato no executivo estadual para disputar no

mesmo pleito eleitoral outra vaga no legislativo federal – Senado ou Câmara – teria

que se desincompatibilizar enviando uma carta de renúncia à Assembleia Legislativa

com anterioridade de seis meses. O pleiteante só podia disputar outra eleição fora

do cargo. Ressalta-se que, pela primeira vez no Piauí, desde a República dos

Coronéis (1989-1930), um governador renunciava para disputar outro cargo eletivo.

Eleito para o mandato de deputado na Câmara Federal pelo PTB, para o

quadriênio (1963-1967) e reeleito agora pelo MDB para o período (1967/71), Chagas

Rodrigues teve seu mandato cassado em 29 de abril de 1969, com os direitos

políticos suspensos por dez anos, com base no (AI-5) Ato Institucional nº 5 que,

além de suspender os direitos dos eleitos, também impedia a convocação dos

suplentes.

No exercício do mandato que assumiu em fevereiro de 63, tornou-se vice-

líder da maioria e do PTB na Câmara, função que acumulou com a da vice-

presidência do PTB nacional. Continuando sua carreira de líder oposicionista,

assume em setembro de 1964, depois da destituição de Jango pelo golpe civil-

militar, a condição de vice-líder da minoria oposicionista o que lhe rendeu a missão

de combater o governo do Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco. No final

desse mesmo ano, assume a presidência nacional do PTB. Esse papel de

combatente do governo Castelo teria sido uma das causas de sua cassação mais

tarde, segundo alguns críticos.

209

Castelo Branco, líder do “grupo da Sorbonne”, ligado à chamada Escola

Superior de Guerra (ESG), ao assumir a Presidência da República, fê-lo – segundo

ele próprio assim afirmou – com o compromisso de instalar no país uma “democracia

restringida”, para o presidente e também para o bloco civil-militar que lhe dava

sustentação. O argumento foi o de que este era o caminho seguro para o estado

“reformular a economia e combater o comunismo promovendo simultaneamente a

consolidação do regime democrático ora correndo riscos”. Com poderes

gigantescos, o governo civil-militar de Castelo Branco promoveu prisões arbitrárias,

torturou opositores, aposentou, de forma compulsória, civis e militares, e muitas

lideranças do campo e da cidade foram mortas e outras desapareceram.

Para além dessas arbitrariedades, governadores e deputados eleitos e

muitas outras personalidades do mundo político, como João Goulart, Miguel Arraes,

Leonel Brizola e Carlos Prestes, somadas a outras importantes figuras do meio

artístico, perderam seus mandatos e outras foram expulsas do país. Outro duro

golpe na já combalida democracia foi a extinção dos partidos até então existentes e

a imposição do bipartidarismo; gestado pela cúpula militar com vistas a conter o

crescimento das oposições que, nas eleições de 1966, venceram as disputas dos

governos de Minas Gerais e da Guanabara, dois dos mais importantes estados do

país.

Em todos os estados brasileiros foram registradas arbitrariedades e toda

sorte de violência. E no Piauí não foi diferente; logo se fizeram sentir em todos os

níveis da sociedade, inclusive e principalmente nos setores que revelassem

qualquer arremedo de organização e contrariedade com o novo regime. No estado,

de pronto, foram cassados vários mandatos de deputados estaduais, efetivadas

prisões de lideranças estudantis e sindicais além de integrantes das ligas

camponesas. Na Casa do Estudante Pobre, houve um verdadeiro arrastão de jovens

que se contrapunham ao regime militar.

Petrônio Portella potencial candidato a governador do Piauí, para o

quadriênio de 1963 a 1967, representava o “fim de um caso” PTB/UDN, o retorno ao

centralismo administrativo e principalmente o retrocesso em relação às politicas

publicas voltadas para a classe trabalhadora e particularmente para o campo e,

antes mesmo da convenção para confirmar seu nome e aliança partidária, deu

210

indícios de que o direcionamento de sua administração teria um único comando, que

seria o seu, ou seja, o da legenda por ele comandada de forma soberana, a UDN.

Isso trouxe naturalmente mal-estar e descontentamento às lideranças que já lhe

acenavam apoio e aliança. Tanto que, ainda não sendo do conhecimento público;

mas, na realidade dos bastidores, já se comentava que o ele havia rompido

politicamente com Chagas Rodrigues.

As lideranças do PSD também viam na reaproximação com Petrônio,

assim como o próprio, o caminho mais seguro para chegar ao Palácio de Karnak e

de "quebra” derrotar a candidatura de Chagas ao Senado, implacando os nomes de

Sigefredo Pacheco e José Cândido Ferraz para as duas vagas em disputa. Vitorioso o

esquema Portella, como veremos mais adiante, começava a se consolidar no estado.

A condição de líder da oposição e de fervoroso combatente do

“castelismo” instalado a partir do golpe civil-militar de 1964 teria rendido aos

apossados do poder argumentação suficiente para cassar o mandato de alguns

parlamentares, dentre estes o de Chagas Rodrigues em 29 de abril de 1969. Sobre

tal acontecimento, o escritor Kenard Kruel tem a seguinte explicação:

“No dia 15 de abril de 1964, o marechal Castelo Branco, num processo conduzido pelo general Costa e Silva, que se designou ministro da Guerra, foi submetido aos votos do Congresso Nacional, como forma de legitimá-lo. Chagas Rodrigues foi um dos poucos parlamentares a não votar em Castelo Branco. Desde, então, passou a ter os passos vigiados pelos militares.]”( Kruel 2015,p 324)

Posição divergente e tão importante difundida quanto a anterior e

igualmente considerável, tem o jornalista, ex-deputado, vice–prefeito de Teresina (

1999-9999) e integrante da Academia Piauiense de Letras, Deoclécio Dantas, para

quem:

“No ano de 1962, quatro dias antes de renunciar ao cargo de governador para disputar vaga ao Senado Federal e à Câmara Federal, o governador Chagas Rodrigues contrariando os interesses dos 32 parlamentares estaduais e de dezenas de suplentes, vetou o projeto de Lei que elevava para 42 o número de deputados à Assembleia Legislativa do Piauí.” (DANTAS, 2008)

Para o jornalista, grande conhecedor dos “bastidores da política” local,

seus adversários de então com grande influência no comando da ditadura teriam

solicitado com muita obstinação a cassação de seu mandato.

211

Sem mandato parlamentar, com os diretos políticos suspensos e

impossibilitado de voltar à terra natal, permaneceu na capital federal onde exerceu,

além da advocacia, o magistério superior que ministrava no Centro Unificado de

Ensino de Brasília (CEUB) a disciplina de Direito Comercial. Ainda como

desdobramento de sua cassação, ficou impedido de comparecer ao sepultamento do

pai e de visitar a mãe, gravemente enferma. Essas e outras penalidades impostas

ao ex-governador fizeram com que se sentisse exilado na própria terra pátria.

Além desse sofrimento, num esforço da apagar seu nome da memória

dos piauienses, a própria imprensa local dominada ainda pelos adversários não

pronunciava intencionalmente seu nome, identificando-o quando necessário apenas

pela alcunha de ex-governador Caldas ou Rodrigues, nomes completamente

desconhecidos do grande público, da massa, do povo. Esse comportamento agredia

profundamente Chagas Rodrigues.

Espirituoso não se abate e escreve sob a inspiração de novos ventos, - o

poema “Estrangeiro na própria pátria” - que o trariam, com de fato aconteceu, de

volta à terra mãe, pela vontade popular, conquistando, agora pelo PMDB,

retumbante vitória política na eleição de 1982, a vaga de senador da República com

mais de 217 mil votos.

“Ouve, amiga, deve ser triste viver em terra alheia. Longe da pátria, longe da família, longe dos amigos. Porém, ainda mais triste é viver como estrangeiro na própria pátria, Com o mandato eletivo cassado, com direitos políticos suspensos, E proibido de rever a cidade natal, o estado querido e o povo amado.” Brasília, novembro de 1976.

Entre o contexto e o

pretexto: trajetória e representações

de Petrônio Portela no Piauí dos

anos 60.

Fonte: Govenador Petrônio Portella

212

3.6 A travessia de Petrônio pelo conveniente caminho do meio.

Muito já foi dito sobre Petrônio Portela. Sua notável e brevíssima vida

pública foi e tem sido objeto de acalorados debates dentro e fora da arena política.

“O Brasil não vai esquecer a contribuição desse grande homem para nossa história.

Eu o estimava muito” (D. Paulo Evaristo Arns); “Era uma figura excepcional de

homem público” (Teotônio Vilela); “Petrônio Portela era um homem talhado para o

desempenho político, acessível, de diálogo fácil, de espírito público, de grande

vocação política” (Tancredo Neves); “Tal foi sua proeminência na transição que seu

trabalho se confundiu com seu próprio nome. A expressão ‘Missão Portella’ virou

sinônimo de abertura política, de redemocratização”. (Marco Maciel)

Algumas dessas frases, todas proferidas por importantes nomes da

cena política, social e religiosa brasileira, foram cunhadas pelo jornalista, escritor e

membro da Academia Piauiense de Letras, Zózimo Tavares, e perfila a mais recente

obra do autor lançada em 2012, intitulada Petrônio Portella: uma biografia.

Nessa obra, são trazidos ao contexto, com inclinação e leveza sutis,

importante ressaltar, momentos da atuação pública desse valenciano que ocupou os

mais variados postos da vida política brasileira e piauiense em particular. Ele que

faleceu aos 54 anos de idade, no dia 6 de janeiro do ano 1980.

Ainda muito novo com apenas vinte e poucos anos exerceu, embora não

tenha sido eleito, pois ficou na suplência, a primeira experiência parlamentar, como

deputado estadual pela UDN. Depois, agora eleito, exerceu o cargo de prefeito de

Teresina, em seguida de governador de estado e senador da república por duas

vezes. Também foi presidente do Senado e Ministro da Justiça.

Para (Tavares, 2012, p. 15), Petrônio Portela teve uma vida pública “tão

curta e tão prodigiosamente densa em experiência humana e vivência dos

problemas essenciais, com as graves aflições da condição humana” que muito bem

lhe caíra a representação “o gênio da raça”. Tal juízo parece também ter sido

recepcionado por outras figuras proeminentes da “república de botas”. Tanto assim,

que o presidente João Figueiredo afirmou: “foi meu ministro da Justiça e tinha

chances de ser candidato à Presidência da República”.

Petrônio que ocupa a centralidade deste tópico é protagonista de alguns

eventos e situações no mínimo inusitadas. Também, embora em menor proporção

213

se comparado ao governador Chagas Rodrigues, tem sido objeto de variadas

análises e pesquisas.

Situação que tem merecido destaque entre as muitas nas quais teria se

envolvido, e que ganhou destaque nas rodas de conversas, nas ruas e até nos

noticiários de rádio e jornal do Piauí, foi, para muitos, a astúcia de ser um

“combatente deputado estadual durante o dia, proferindo duras e pesadas críticas ao

governador de quem era opositor e à noite, despido do uniforme político partidário,

da condição de parlamentar adentrar a casa do governador e cortejar sua filha,

Iracema de Almendra Freitas, com que mais tarde se casaria”.

Para o amigo e confidente Alfredo Nunes, Petrônio teria dito: “faço

oposição ao governo de Pedro Freitas (1951-1955) e não ao pai da mulher que

cortejo e que será a mãe de meus filhos”.

Embora não pareça algo pomposo, digno de ser relembrado aos olhos

dos menos atentos, outra peripécia de Petrônio, muito difundida no meio político, foi

juntar, embora com baixas, a sua UDN ao adversário mais ferrenho, o PSD, para as

eleições de 1963.

Outra atitude representativa de ousadia e habilidade política, postura

incomum para os padrões da época e que naquela conjuntura revelaria, segundo

Tavares, uma faceta humana do agora prefeito da capital, foi a decisão, ao assumir

a prefeitura contrariando todas as orientações dos que o cercavam, de autorizar a

construção de um ginásio-modelo em um bairro popular da capital densamente

povoado e sem escola, o Marquês, na zona Norte.

A ousadia está em eleger um bairro onde tivera baixa votação para

Prefeito, comportamento incomum nos gestores de então. Esta obra representava

desenvolvimento para a região e revelava um gestor moderno, sem rancor e

consciente de que deveria governar para toda a cidade, independente de sua

aprovação eleitoral.

Essa determinação e prática administrativas não costumeiras como

resposta política em relação ao eleitorado revelava, segundo Tavares, a vontade de

enfrentar o desafio da realidade educacional do estado, problema grave, mas

desconsiderado por muitos até ali e empreender, a partir de então uma nova política

no estado.

214

Como se sabe, Petrônio Portela é ainda uma figura sobre a qual muito se

fala e pouco se sabe. Principal articulador do processo de abertura para muitos e

grande apoiador e executor de missões militares que exterminavam a liberdade e a

própria democracia. Assim, sem qualquer consenso, a história desse piauiense

ilustre tem nessa pesquisa mais um capítulo que, sem qualquer pré-julgamento

apenas pretende ser mais uma fonte de informações e debates que possa na

medida do possível iluminar ainda mais essa triste página da história do Brasil e do

Piauí, em particular.

A alternativa mais plausível pensada pelo pesquisador para desenvolver

esse tópico que focaliza a postura hibrida de Petrônio Portella quando se colocou

contra o Golpe civil-militar de 1964 e, logo depois, além de apoiar, tornar-se seu

maior representante no Estado, foi lançar mão de alguns questionamentos? A busca

é entender a partir dos acontecimentos que envolveram a efetiva participação de

Portella como governador, senador e depois ministro da justiça, nos processos de

“combate”, adesão e atuação, agora na condição de mentor ideológico e articulador

político nos diferentes momentos de instalação, consolidação e abertura da ditadura

civil-militar que se abateu sobre o Brasil.

Com isso, entender como o curto período de vivência democrática

iniciado em 1946, aliado à própria fragilidade da democracia e as recorrentes

tentativas golpistas com instituições de regimes políticos ditatoriais por meio práticas

e estratégias de mudar para que tudo permaneça igual, contou com a habilidosa

participação desse piauiense do “século”, a partir de sua adesão e logo depois

apoio declarado ao novo regime.

Alguns questionamentos: Qual teria sido a principal motivação do

governador Petrônio Portela, um udenista convicto, para manifestar “apoio” ainda

que por pouquíssimas horas e, apenas com retórica intrapalaciana para deleite de

meia dúzia de entusiasmados apoiadores, à tese da legalidade, que manteria o

então Presidente João Goulart no poder? Porque o governador, mesmo sabendo da

irreversibilidade do Golpe, mobilizou alguns apoiadores e escreveu uma mensagem

especial ao Governador de Pernambuco Miguel Arraes, manifestando solidariedade

e apoio ao presidente, afirmando que não iria permitir que as forças reacionárias

assumissem o governo do país? O que explicaria a imediata mudança de posição de

215

Petrônio Portela que, depois de haver acertado com o deputado Celso Barros e a

professora Iracema do Santo Rocha de ocuparem uma radio local e falar aos

piauienses do golpe, o mesmo não compareceu e, ao contrario, declarou apoio aos

militares? Como explicar por que outros governadores, inclusive da própria UDN e

políticos de menor expressão, como deputados estaduais, perderam seus mandatos

e o mesmo não acontecendo com Petrônio Portela ? Além dessas, outras voltadas

especialmente para o entendimento da postura conservadora de Petrônio em

relação ao campo e as entidades organizativas dos trabalhadores, serão formuladas

ao longo desse estudo.

Segundo Tavares (2012): “guardadas as proporções, Petrônio Portela

optou por viver como Aquiles, filho da deusa Tétis, da mitologia grega. ‘Pouco,

intensa e perigosamente’ [...] Desde a infância pobre, no interior do Piauí, sua vida é

uma história de riscos, lutas e superações”.

Assim, também como o escritor citado anteriormente, guardadas devida e

respeitosamente as proporções, o autor se apropria de uma opinião apaixonada de

Jean Jacques Rousseau, sobre Maquiavel, numa passagem e nota do cap. VI do

livro lll d’ O Contrato Social, onde proclama: “[o] Príncipe de Maquiavel é o livro dos

republicanos”, pois “fingindo dar lições aos reis, ele as deu aos montes ao povo”,

posição justificada da maneira que se vê: “Maquiavel era um homem honesto e um

bom cidadão; porém, estando ligado à casa dos Médices, era obrigado, em meio à

opressão de sua pátria, a disfarçar seu amor pela liberdade. Só a escolha de

execrável herói é suficiente para mostrar sua intenção secreta; e a oposição das

máximas de seu livro sobre o Príncipe àqueles de seus discursos sobre Tito Lívio e

de sua História de Florença demonstra que este profundo político só teve até aqui

leitores superficiais ou corrompidos.”

Evidentemente que outras interpretações poderiam se citar, mas

optou-se por não fazê-las, pois seriam desnecessárias e por demais custosas; é

provável, pois que, assim como existam sobre Maquiavel tantas interpretações

quanto se ocupem a escrever sobre aquele florentino sobre o qual escreveu

Rousseau, também haja calculada a importância de um para com o outro, se

considerada a história universal e piauiense em particular, muitas interpretações

sobre Portella.

216

Também sobre Petrônio, como dito, coexistem múltiplas leituras

envolvendo sua atuação, de modo particular em relação ao golpe, seu governo e

sobre a trajetória política desse valenciano, que muito serviu ao regime de então.

Para o ex-deputado do PDC, Celso Barros Coelho (2014, p. 86), cassado

pelo golpe civil-militar de 1964, Petrônio agiu com profundo “discernimento e

oportunismo de ocasião”, mirando todo tempo seu futuro político, com mais

possibilidades de sucesso junto aos militares que viam na UDN, da qual ele Petrônio

era o principal nome no estado, uma base civil do golpe.

Para Jesualdo Cavalcanti (2006, p. 184), Petrônio já conhecedor das

prisões de Miguel Arraes, de Pernambuco, e Seixas Dória, de Sergipe, entendia ser

a hora de cuidar de “resgatar o incômodo manifesto e editar nova manifestação de

solidariedade, desta feita em favor dos novos donos do poder, em nome dos

interesses maiores do Piauí”, segundo afirmaria mais tarde o senador Helvídio Nunes.

Posição divergente adota o jornalista Zózimo Tavares (2012, p. 205)

quando afirma em relação ao posicionamento do então governador Petrônio Portela,

diante da crise política instalada no país, que: “relutava em adotar uma postura

pusilânime diante de fatos políticos e institucionais tão graves. [...] Tratou, então, de

se manifestar logo, comprometendo, inclusive, o próprio futuro e o da família. Sua

formação jurídica e sua consciência falavam mais alto.”

O jornalista atribui a um “golpe de sorte” a salvação de seu mandato,

sorte essa não facultada aos governadores Miguel Arraes e Seixas Dória (PR) e

outras personalidades políticas com as quais, horas antes, o Governador Petrônio

gravara um pronunciamento afirmando: “não quero saber qual é a posição dos

senhores, quero dar a minha: de defesa da legalidade, e ela só se faz íntegra

mantendo o mandato do Presidente da República (palmas!)... De maneira que julgo

injuriosa a pergunta dos senhores porque nunca fui homem de oportunismo. [...] A

minha ideia hoje expressada é a ideia de hoje, e será a de sempre na defesa

intransigente do povo, contra privilégios abusivos e caducos e que hão definitivamente

de ser destruídos pela vontade soberana do povo brasileiro (palmas!)”

Como se percebe a retórica legalista do então governador que arrancou

aplausos e palmas de seus correligionários e, quase que ato contínuo, mudou de

217

posição, passando não somente a defender, mas principalmente a pensar, articular

e executar missões dentro da nova ordem civil-militar imposta evidencia bem seu

perfil de contínua metamorfose.

Para Tavares, sobreviver a isso tudo, foi um golpe de sorte. Sorte

proveniente da “virtu”, aqui entendida como extraordinária capacidade de entender o

tempo e saber para onde o vento sopra em termos de política, antes da maioria dos

não virtuosos e afortunados.

Posição frontalmente oposta apresenta o jornalista Deoclécio Dantas,

certamente por ser um profundo conhecedor da política local e do próprio Petrônio

Portella. Também pode justificar sua análise o fato de ser jornalista e crítico

dedicado à causa. Certamente também pesou nessa análise a leitura, antes da

maioria, da obra de autoria do general Justino Alves Bastos, intitulada Encontro com

o Tempo, e isso foi dito a este pesquisador pelo próprio Deoclécio Dantas. Essa

primeira edição data de setembro de 1965, na qual o autor afirma:

“Na 10 Região: Maranhão, Ceará e Piauí, achava-se em comando o Cel. Aluizio Brígido Borba, visto como o Gen. Almério de Castro Neves estava em férias, no Rio de Janeiro, os Governadores do primeiro e terceiro destes Estados estavam franca e declaradamente com o comando militar. Quanto ao do Ceará, o ilustre Gen. R1 Virgilio Távora, também o estava, como depois se viu. Manteve algumas horas de expectativa, porém, na dependência de contatos políticos que achou indispensáveis a sua decisão.”(BASTOS, 1965, p, 355)

Como se configura, o autor faz referência ao primeiro e terceiro estados.

O terceiro estado é o Piauí, governado pela UDN de Petrônio, a UDN que em plano

nacional foi um dos principais partidos que planejou, articulou e auxiliou na execução

do golpe.

Importante ressaltar que, embora os partidos tivessem um caráter

nacional, a efetividade de sua força e atuação política estava diretamente ligada à

capacidade e ao peso do grupo político local que estivesse no comando, tanto assim

que a própria UDN agora no poder teve no pleito de 1958 sua sobrevivência política

atrelada ao PTB, partido que agora era seu principal oponente.

Petrônio, portanto, já tinha conhecimento do golpe em curso e se

comportara como adversário apenas e tão somente em retórica intramuros do

218

palácio, porque até mesmo o suposto manifesto de apoio a João Goulart nunca

chegou ao seu “imaginário” destino. Por isso e por outras razões afirma-se que o

governador Petrônio, em verdade, já estava do lado contrarrevolucionário e a

declaração de apoio ao presidente João Goulart tinha mais a função de fortalecer

sua imagem de legalista e utilizar a nova situação a seu favor, tendo em vista que,

para a quase totalidade de seus apoiadores, resistir era um ato de loucura.

Para (Coelho, 2014) e (Cavalcanti, 2006), o que Petrônio fez e com muita

maestria foi “jogo de cena” para se colocar em “compasso de espera”, pois como

integrante da UDN e conhecedor dos bastidores do processo, acreditava que o

caminho mais conveniente, para fazer a travessia, era o do meio, numa

metamorfose comportamental, e com isso, salvar o seu mandato e carreira politica.

Essa posição dúbia foi, por alguns, identificada como uma espécie de

“quarentena politica” necessária, para com isso salvar seu mandato de governador e

defender os interesses maiores do Piauí naquela conjuntura de “desordem,

incertezas e crise política instalada”. Crise essa institucionalizada desde a renúncia

de Jânio Quadros, posse de João Goulart, adoção do Parlamentarismo, votação do

plebiscito que lhe restituiu poderes de presidente e o lançamento das Reformas de

Base.

Por confiar na capacidade dos novos dirigentes de reestabelecerem a

ordem e o desenvolvimento do país, Petrônio, acreditava ser sua postura politica, a

mais acertada, pois somente num ambiente de estabilidade, o Brasil e o Piauí

voltariam a se crescer.

Para Portella, a criação daquele ambiente de ordem era tarefa de todos e,

ele considerava estar fazendo a sua parte, quando assumiu aquela posição, para

alguns, dúbia, porem necessária, oportuna e conveniente, naquela situação de

profunda instabilidade. Dessa forma, era sim o caminho do meio o mais

recomendado e profícuo para o Brasil.

Petrônio tinha convicção que a sua ausência no Comício das Reformas,

realizado na Praça Central do Brasil, em 13 de março de 1964, certamente atenuaria

sua situação junto aos militares e reforçaria sua posição em relação aos que não

desejavam sua participação naquele evento político. Para Petrônio, a “Revolução”

era inevitável.

219

Outro fato que favoreceu o governador Petrônio Portela foi a decisão

“calculada” de colocar seu cargo, mesmo tendo sido eleito, à disposição do

presidente, pois, segundo ele, “sentia que o Piauí estava sofrendo retaliações,

inclusive com corte de verbas” e obras e, se o estado tivesse que ser discriminado

por sua presença no governo, era preferível que ele se afastasse do comando.

Assim, o fato de não ter comparecido ao Comício das Reformas, a

disposição destemida de renunciar o cargo de governador, revelando grandeza em

defesa dos interesses do Piauí e ainda a ótima relação que tinha desde os tempos

escolares com o presidente Castelo, ter-lhes-iam poupado o mandato de governador

e aberto caminho para a rápida ascensão politica nos governos militares que se

seguiriam.

3.7 Um Governo conservador e reformista, mas nem tanto!

A transição da administração trabalhista de Chagas para o governo

conservador reformista de Petrônio Portela (UDN) teve início mesmo antes do final

do governo de Chagas marcado para 31 de janeiro de 1963 quando findaria sua

administração. Ocorre que Chagas Rodrigues pretendia disputar uma vaga para o

Senado Federal ou Câmara dos Deputados e por força da legislação eleitoral

vigente tinha que renunciar ao mandato de governador. Em razão disso, tornou-se o

primeiro governador do Estado desde a República Velha a renunciar ao governo e a

se candidatar simultaneamente às duas vagas.

Em cumprimento à legislação, Chagas Rodrigues entregou uma carta

com pedido de renúncia à Assembleia Legislativa e transferiu administração ao vice-

governador Tibério Nunes da UDN, partido já rompido com o ex-governador e em

franca campanha para eleger o principal nome do partido, Petrônio Portela, lançado

também de última hora na disputa, a prefeito de Teresina naquele momento

exercendo o mandato de deputado estadual.

A aliança política estruturada entre Chagas Rodrigues, ex-deputado

Federal pela UDN, agora candidato a governador pelo PTB, e Petrônio Portela,

principal nome da UDN e candidato a prefeito da capital, com vistas a vencer as

eleições no pleito de 1958 foi vitoriosa, entretanto, logo se revelou circunstancial e

chegou ao fim muito precocemente.

220

Nas palavras do advogado e ex-deputado estadual pelo PDC cassado em

1964, Celso Barros Coelho, quando infere que o governo de Petrônio Portela teve

início antes do fim da gestão de Chagas Rodrigues, pode parecer aos olhos de um

leitor menos atento que o ex-deputado estaria se reportando à redução por alguns

meses do mandato do agora ex-governador que havia renunciado para disputar

simultaneamente uma vaga no Senado e na Câmara Federal.

Na verdade, também foi essa a impressão primeira que o advogado

militante Celso Barros deixou passar quando dos momentos iniciais da primeira

entrevista de uma série de duas que possibilitou realizar. Qual nada, com o

andamento dos diálogos o experiente advogado afirma que:

“Chagas nos últimos meses de sua gestão, principalmente depois que voltou de Cuba, somente contava com o apoio de admiradores e alguns poucos aliados fiéis, aqueles já marcados pela imagem do governador que dificilmente largariam a trincheira, como era o caso do Deusdeth, do Honorato e outros poucos “gatos pingados” de fim de mandato.”

Leitura semelhante fez o Wilson Nunes Brandão, na obra Mitos e

Legenda da Política Piauiense (2015, p. 69) quando infere que:

“O objetivo a ser alcançado era a organização do “Esquema Petrônio.” Inteligente e sagaz com carreira meteórica na política piauiense, esse valenciano, de inigualável capacidade de articulação, vislumbrara que o momento seria ideal para sua candidatura ao governo do estado. O esquema vitorioso de 1958, que elegeu Chagas Rodrigues governador estava completamente dividido e arruinado. Petrônio, da UDN, e prefeito de Teresina, já havia rompido com Chagas a algum tempo. Somente lhe restava uma saída – unir os partidos tradicionalmente antagônicos”. No entanto, Petrônio buscou outros aliados e dissidentes para concorrer nas próximas eleições, pois queria se acercar do máximo de apoios para vencer o pleito que se avizinhava. Para o jornalista Zózimo Tavares (2012, p189/93), “a maior proeza de Petrônio na política piauiense ainda estava por vir. [...] Já rompido com Chagas, só restava a Petrônio, como líder da UDN, tentar unir os partidos tradicionalmente antagônicos, buscando apoio no maior e mais ferrenho adversário, o PSD, para formar um bloco que viabilizasse a sua candidatura ao governo”.

Para o jornalista, Petrônio deveria juntar “água e óleo”, porque esses dois

partidos eram representativos de setores e interesses totalmente opostos, sendo a

221

UDN mais presente nos espaços urbanos, principalmente em Teresina, a capital e o

PSD, um partido de maior atuação junto ao setor rural, defensor dos grandes

proprietários de terra.

Esses pontos de divergências, entretanto, eram menores do que a

necessidade de voltar ao comando do estado. Os principais nomes do PSD e da

UDN sabiam que Petrônio era o caminho mais curto e mais seguro para pavimentar

o retorno ao Palácio de Karnak.

Ainda em relação ao enfraquecimento e isolamento de Chagas

Rodrigues, atribuídos pelo autor à sua inabilidade política, Wilson Brandão (2015,

p.71) postula que:

“Foi um administrador que procurou inovar, mas, politicamente, encerrou seu mandato de governador praticamente isolado, pois conseguiu indispor-se com grande parte daqueles que lhe deram apoio na eleição de 1958.”

Outra ilustre personalidade da cultura piauiense, o professor Manoel

Paulo Nunes, em entrevista concedida a este pesquisador (maio 2015), afirma que o

governador Petrônio Portela possuía um excepcional “senso de oportunidade”. O

escritor, imortal da Academia Piauiense de Letras, utiliza dessa expressão para

explicar a mudança repentina de posição quando em pouco tempo passou de

legalista defensor da manutenção do presidente João Goulart no poder para artífice

do governo civil-militar que se apossou do comando do país com um golpe em 31 de

março de 1964.

Tal ambiguidade pode ser percebida nos trechos que se seguem e que

simbolizam o comportamento do então governador Petrônio:

No momento em que a Nação se encontra a braços com ameaças de sedição; no instante em do sul do País chegam notícias inquietantes, demonstrativas da possibilidade de vir nosso País a ser engolfado pela subversão ameaçadora das instituições democráticas. Cumpro o inarredável dever de levar ao conhecimento dos piauienses que o governo do Piauí permanece hoje, como ontem, no firme propósito de defender, sem medir sacrifícios e indo às últimas consequências, a ordem democrática, os poderes constituídos, em suma, o império da Constituição. Confio em que o povo colaborará com o Poder Público na preservação da ordem constitucional.

Teresina-PI, 31/04/1964, Petrônio Portela, Governador do Estado.

222

Para o advogado Celso Barros Coelho, a posição adotada pelo

governador Petrônio Portela pode ser vista como um misto de oportunismo e

discernimento. Em relação ao momento em que ele, Celso Barros, na companhia de

outras personalidades, estavam se preparando para ir a uma rádio local falar do

episódio do golpe, oportunidade em que o governador Petrônio, de modo planejado,

não compareceu, Coelho (Política, Tempo e Memória 2014, p 83/84) faz a seguinte

ponderação:

Ocorreu, porém, que Petrônio, de volta ao Karnak, à frente do governo se bandeara para o lado vencedor, dando apoio imediato à Revolução. Abandonara aqueles que se colocaram ao seu lado e ao lado de João Goulart. Ficara assentado, num primeiro momento, quando se tratou da redação do manifesto, no Palácio do Governo, naquela manhã, que, às cinco horas da tarde, Petrônio, a professora Iracema dos Santos Rocha da Silva e eu ocuparíamos a rádio local, para falarmos aos piauienses sobre o episódio. À hora marcada, eu e Iracema comparecemos, na suposição de que o movimento não vingaria. Petrônio já estava dando apoio ao regime instalado e, por isso, não compareceu.

Para o deputado estadual do PSD, Afrânio Nunes, a postura de Petrônio

Portela era esperada pelo menos para quem verdadeiramente o conhecia. Para

Alfredo Nunes (março de 2015), Petrônio se mostrava da seguinte maneira:

Ele, o Petrônio, era o animal político mais inteligente que já conheci na minha vida. Ele escutava e já calculava o que ia dizer sobre o que ouvia, era um gênio político, não tomava decisão de modo abufelado. Tinha uma carreia política toda pela frente, era muito bem informado, já tinha ideia clara que o Goulart não duraria, fez um jogo de cena forjando apoio ao presidente porque era um advogado notável, tinha muitas facetas e utilizava a mais apropriada. Naquele momento em que a constituição estava sendo rasgada, ele falou com jurista defensor da ordem legal e quando notou que o fato político da Revolução era consumado se comportou como político.

O deputado Alfredo Nunes, mesmo tendo sido cassado pelo Golpe

tempos depois, e não sentindo nenhum esforço do governador de quem foi líder

para defendê-lo da cassação, continua a reafirmar a conduta, para ele oportuna,

sábia e correta do governador Petrônio ao dizer:

223

“O Petrônio já era governador, tinha sido prefeito sonhava em ser senador, como é que ele iria se colocar contra a Revolução que já era vitoriosa em todo o País? O que ele fez qualquer homem inteligente e com futuro político faria. O ex-presidente Juscelino que, agora a algum tempo foi escolhido o homem do século também não apoiou o golpe? Isso é conversa, o que o Petrônio fez foi pensar no Piauí e fez certíssimo!”.

Para Cavalcanti (2006, p.184):

“O cerco se fechava. As pessoas mudavam de posição e tomavam outro rumo ao sabor dos últimos acontecimentos. [...] àquela altura, tanto Arraes quanto Seixas Dória já havia sido depostos e recolhidos à prisão no arquipélago de Fernando de Noronha. Agora era cuidar de resgatar o incômodo manifesto e editar nova manifestação de solidariedade, desta feita em favor dos novos donos do poder, ‘em nome dos interesses do Piauí’ segundo sustentaria mais tarde o senador Helvídio Nunes de Barros”.

Embora esse acontecimento tenha entrado para a história com um dos

mais inusitados e discutidos quando o assunto é o governo, a figura de Petrônio ou

mesmo as repercussões do golpe no estado, pauta-se agora por cautela, pois o

período que compreende o governo de Petrônio Portela Nunes (1963/1967) foi

marcado em esfera nacional e estadual por muita efervescência, particularmente na

esfera política.

Dessa forma, reservaria ainda muitos outros importantes acontecimentos

com reflexo direto nas unidades da federação, inclusive no Piauí, os quais se

passam a narrar mais detidamente a partir de agora.

Para o jornalista Carlos Castelo Branco, Petrônio era ligado à corrente

udenista conhecida como “bossa nova” e antilacerdista por tradição, estava entre os

governadores reformistas eleitos em fins de 1962, representava uma linha dissidente

do udenismo tradicional e do populismo de Vargas e, no caso do Piauí, de Chagas

Rodrigues fiel representante, guardadas as proporções, da ideologia varguista.

Convém ressaltar, porém, que a verdadeira “bossa” de Petrônio, foi

saber ser um renovado antigo político da UDN que, com muita inteligência, enorme

capacidade de articulação e muita habilidade para negociar, soube manter a ordem,

modificar sem alterar, usar o poder sem lançar mão da violência mais comum aos

olhos da maioria e, dessa forma, capitalizar simpatizantes.

224

A retórica reformista e de vanguarda do governador Petrônio segue a

lógica juscelinista, que se propunha “mudar dentro da ordem para garantir a ordem”,

de certa forma corrobora com o pensamento de Carlo Castelo Branco, e, pode ser

percebida quando, depois de empossado governador, ele assim se expressa:

“A palavra do Governador do Estado ontem empossado nesta Casa do Povo corresponde aos objetivos que temos em vista. Haveremos de ser vigilantes no cumprimento das promessas corajosas que fez na visualização de problemas piauienses e das suas necessidades mais urgentes. Esses problemas são inúmeros, bem o sabemos, e é bem difícil remover os alicerces da pesada estrutura em que estamos vivendo, retrógada nos seus métodos, reacionária nas suas ideias e impotente para a empresa renovadora que desejamos ver iniciada.” (BARROS, 2014, p. 75).

A bem da verdade, a crise política brasileira que já se arrastava por algum

tempo, com reflexos diretos no Piauí, agravou-se profundamente em nível nacional

em 1961, quando João Goulart assumiu a presidência do país com a renúncia de

Jânio Quadros. Este que havia tomado posse em janeiro daquele mesmo ano e

herdou de Juscelino altíssimas taxas de inflação, dívida externa crescente,

concentração de renda e uma organização administrativa marcada pela corrupção e,

em esfera estadual, quando Chagas Rodrigues aprofundou suas ações no sentido

de governar mais proximamente ao povo, única saída política possível, pois já havia

perdido o apoio da UDN.

Com um mandato de apenas sete meses, seu governo foi o mais curto de

nossa história recente. Psicodélico, populista e demagogo, Jânio era um político

teatral que marcou sua administração por posições ambíguas, contraditórias e

autoritárias, desconsiderou a orientação ideológica dos países com os quais

mantinha relações comerciais. Isso acarretou ampliar por um lado o número de

parceiros comerciais e por outro a criação de sérios embaraços diplomáticos,

naquela conjuntura de Guerra Fria.

Condecorar o líder revolucionário cubano Ernesto Che Guevara, com a

medalha da Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, reatar relações

diplomáticas com a União Soviética e combater o colonialismo português na África e

Ásia, revelando com isso, independência em relação aos Estados Unidos. Estas são

225

algumas das principais posições as quais figuram como decisões políticas que

minaram e comprometeram a governabilidade, enfraquecendo-o politicamente,

precipitando sua renúncia e aprofundando a crise política já instalada no país.

Fazendo coro, mas indo além do entendimento de Carlos Castelo Branco,

para quem Petrônio era um “homem zeloso com a coisa pública”,(Tavares,

2012),que o nominou de “gênio da raça”, (Brandão 2015),que o distinguiu como

homem de “sabedoria e habilidade” (Coelho, 2014),para quem Portella agia com

“discernimento e oportunismo” e, (Cavalcanti 2006),que o identificou com o homem

“dos manifestos” e outros mais que, por curiosidade, simpatia ou qualquer outra

motivação, detiveram-se sobre sua obra administrativa atravessada por importantes

postos e sua meteórica carreira politica, onde foi de deputado estadual a presidente

do senado.

Para além desses aspectos, esta pesquisa buscou investigar outras

nuances de Petrônio Portela, justamente aquelas que revelam e se coadunam bem

com um Petrônio que sabia, na exata medida, o que pretendia para si naquele

momento em que era governador e calculava o que seria para sua carreira política,

mais acertado e profícuo, se ficar a favor ou contra a “Revolução”. Esta pesquisa

está à procura do Petrônio que afirmou certa vez que “só não muda quem se demite

do direito de pensar”, e não do Petrônio que salvou seu mandato e sua vida politica

por um “golpe de sorte”.

O talento e a capacidade incomuns de Petrônio, esse valenciano que

iniciou sou vida profissional e obteve notoriedade como advogado quando se

habilitou no processo de acusação contra o fazendeiro José de Arêa Leão, vulgo

Zezé Leão, da família Arêa Leão, região de São Pedro, um dos principais e mais

temidos coronéis do estado. Zezé Leão que ficou conhecido pela prática corriqueira

de atos de violência contra pobres e ricos do Piauí, daqueles tempos quando a

disputa entre famílias latifundiárias era a regra básica de convivência, marca o ponto

de partida para a tessitura desse tópico nominado A Politica como meio desde o

começo até o fim.

O envolvimento do “latifundiário - cangaceiro”, como era conhecido Zezé

Leão, numa contenda em um bar da capital, onde assassinou o capitão da Polícia

Militar Wanderley, oficial que já havia detido o valente Zezé Leão por haver

226

assassinado um soldado da polícia, acabou por projetar o jovem advogado Petrônio

Portela para todo o Piauí. Naquela época, o julgamento foi transmitido por uma

emissora de rádio local e logo depois ganhou as páginas dos principais jornais do

estado, ajudando a promover ainda mais o nome de Petrônio.

Com um discurso bem elaborado e marcado por muita objetividade,

resultado de sua larga experiência nos tribunais e principalmente devido aos

incontáveis pronunciamentos na Assembleia Legislativa, Petrônio Portela lançou-se

candidato e venceu depois de exercer um mandato de Deputado Estadual a eleição

para a Prefeitura de Teresina. Era mais um passo na trajetória daquele que ocuparia

as mais variadas e importantes funções e cargos políticos, especialmente como

ideólogo, articulador e, finalmente, como condutor de importantes processos

políticos na vigência da ditadura civil-militar instalada em 1964.

Como prefeito, Petrônio fez uma administração reconhecida por muitos

como sensível e eficiente, justamente por focar em muitas áreas, até então

esquecidas pelas gestões anteriores. O professor Alcides Nascimento (2007), no

artigo, faz a seguinte ponderação sobre a cidade que Portela governaria a partir do

final dos anos 50:

“Até o final da década de 50, a cidade se expandiu para o norte e para o sul, mas eis que atravessou o rio Poti, com a construção do primeiro vão da ponte de concreto armado entre a principal avenida da cidade, a Frei Serafim, e a BR-343, rodovia que liga Teresina a Parnaíba. Antes disso, aquela área ocupada principalmente por chácaras, utilizadas por seus proprietários nos finais de semana”. (2007 e 02)

Esta foi, pois a cidade que o ex-deputado estadual pela UDN, agora eleito

prefeito Petrônio Portela, passou a administrar a partir de 1959. Com uma

administração fundada no planejamento, o novo gestor logo se revelou preocupado

com a falta de urbanização, com a grande quantidade de ruas esburacadas e sem

cobertura de esgoto, além da completa ausência de iluminação na maior parte da

cidade, requisitos mínimos para uma capital daqueles tempos.

Essas características somadas à grande desigualdade entre as famílias, a

maioria inclusive habitando em casas com cobertura de palha, sem qualquer higiene

e segurança, localizada na periferia onde o que mais se desenvolvia era a

227

prostituição, incomodava a administração que logo procurou solucionar essa

questão social.

Para enfrentar a falta e a precariedade das moradias, a prefeitura adquiriu

junto à Policia Militar uma grande área, onde construiu casas, escolas e iniciou um

considerável programa de pavimentação, levando água e energia para muitas outras

partes da cidade, garantindo àquela parcela da população, até então desassistida,

um mínimo de dignidade.

A marca de um gestor que combinava planejamento, ousadia, austeridade

administrativa e forte crença no potencial da cidade fizeram a UDN e o próprio

prefeito, já rompidos com o governador Chagas Rodrigues, acreditarem que era

possível conquistar o poder no estado e implementar seu projeto de governo que

entre outros interesses visava conter e redimensionar as politicas para o campo.

Outra variável que concorreu para estimular Petrônio Portela a postular no

próximo pleito a eleição para governador foi a condição de coordenador da

campanha presidencial em 1960, do então candidato pela UDN, Jânio Quadros.

Essa missão, além de levá-lo a todo interior do Piauí, capacitou-o ainda mais como

negociador político, credenciando-o, em razão principalmente dos inúmeros

“acordos” para ser o próximo governador do estado. Tal possibilidade já havia caído

no domínio público e os jornais estampavam em suas primeiras páginas o que os

partidos insistiam em negar.

Jornal do Comércio de 07/05/1961 anuncia: “A sucessão está na rua”,

lançamento da candidatura udenista de Petrônio e Josípio. Em outra matéria, o

mesmo periódico, com circulação de 30/05/1961, proclama: “Rompimento Tácito”.

Uma terceira matéria, no dia seguinte, afirma “Petrônio define posição”. Finalmente

uma quarta que circula em outro periódico, datado de 01/06/1961, pergunta:

Romperia a UDN com o PTB?

Assim, entre uma matéria e outra, os mais diferentes periódicos, cada um

defendendo suas causas, tratam de informar, influenciar e, principalmente, defender

seus interesses e projetos por intermédio de uma ou outra candidatura, conforme

melhor atendesse à conveniência do momento.

Embora as condições políticas estivessem lançadas, Petrônio, um novato

na política, já se apresentava talhado para os embates que deveria travar em esfera

estadual e até nacional. Sabia como observador atento aos ventos da política que as

228

causas de uma mudança social nem sempre dependiam diretamente do poder

político instalado.

Como reformista ancorado na ideia de progresso, de mudança positiva,

acreditava, em primeiro lugar, na mudança de costumes produzida pelo impulso das

condições econômicas, de regras de comportamento social e moral e, em segundo

lugar, naquelas oriundas do progresso técnico.

Petrônio era conservador, moralista e também reformista, principalmente,

naquela conjuntura populista em que o desenvolvimentismo de Juscelino com sua

política industrializante favorecia a produção de bens de consumo duráveis

destinados a uma camada restrita da população. Essa politica contribuía para o

aprofundamento das desigualdades sociais e regionais que caracterizava o país.

O Piauí por obra e graça da natureza havia sofrido em 1958 e 1959 com

duas secas terríveis, cujos desdobramentos o estado pobre e genuinamente agrícola

ainda padecia com os resultados.

Outro problema silencioso que aos poucos se apresentava era o aumento

progressivo de retirantes que saiam de todas as cidades afetadas pela seca e pela

falte de perspectivas, cujas famílias não conseguiam trabalho, nas frentes de serviço

abertas pela SUDENE ou DNCS, vinham para Teresina. Cidade esta ainda sem

energia elétrica, com um sistema de transporte precário e sem qualquer

infraestrutura, mesmo depois dos muitos esforços de seu governo.

Toda essa conjuntura associada à crença que Petrônio e a UDN tinham

da incapacidade de Chagas, de seu candidato Constantino e do próprio PTB de

continuarem à frente do estado reforçavam sua disposição no sentido de

empreender uma política reformista. A campanha, como se esperava, foi marcada

pela polarização ideológica. Polarização que contou com o apoio declarado da

imprensa.

“Petrônio oferece cultural e socialmente maior índice de valor que seu adversário; Constantino é homem do interior sem luzes... fantasiado de esquerdista e pregador de reformas, tenta enganar, como é de seu feitio, os trabalhadores rurais com um apoio falso às ligas camponesas”, afirma o (JCO: 07.01.62.p03). “Não dei cargos para parentes, não fui testa de ferro, não subverti consciências, não faltei com a palavra dada”. Quero julgamento do povo! – declara Petrônio (FMA: 31.01.62p04) e continua em tom salvacionista “Ainda este mês daremos início à luta cívica que resultará na salvação moral e administrativa do Piauí.”

229

Ressalta-se, porém, que o projeto reformista da UDN e do próprio

Petrônio apontava no sentido de antecipar e até evitar qualquer processo

revolucionário. Sobre os diferentes tipos de reformismo, Bobbio, no artigo (1986),

afirma: “Há reformismos e reformismos. Onde todos são reformistas, ninguém é

reformista. E então o problema se coloca para uma pergunta verdadeiramente

crucial: Que reformas? Estamos certos de saber as reformas que queremos e quais

as que não queremos. [...] Estamos certos de saber exatamente o que se entende

por reformas? [...] E, dado que existem reformas e reformas, estamos certos de

possuir um critério que nos oriente na diferenciação de uma reforma de “esquerda”

ou de “direita”? Partindo da realidade político-partidária brasileira e piauiense em

particular, quais eram os defensores da mudança? Que partido melhor incorporava o

projeto mudancista?

3.8 Pelo Piauí, com a “Revolução” até o fim

Segundo o amigo, admirador e líder político do governo Petrônio, também

cassado, durante sua gestão (1963-66), Alfredo Nunes repete o que afirma serem

palavras de Petrônio quando falava sem reservas das diferentes posições tomadas

diante do golpe de 1964. Segundo ele, “O que sou devo ao Piauí, o que faço é pelo

Piauí e a vida que tenho, essa é para o Piauí”.

No Brasil nunca houve, de fato, uma revolução, e, no entanto, a propósito

de quase tudo se fala dela, como se a simples invocação viesse a emprestar

animação a processos que, de modo corriqueiro, seriam mais bem designados por

outras formas semânticas. A propósito, o escritor Laurentino Gomes (26/03/2014)

afirma que: “A maneira como nós olhamos o passado depende de valores,

convicções e necessidades do presente, o que se reflete na forma semântica com

que batizamos os eventos históricos”.

Para os militares, em 1964 ocorreu uma “Revolução” no Brasil, cujos

principais objetivos seriam restaurar a ordem, recuperar a economia afundada na

inflação, controlar a indisciplina nos quartéis e impedir a tomada do poder pelos

comunistas.

Por esse viés, tratou-se, portanto, mais de uma “contra revolução”.

Construção profundamente oposta pode ser observada atualmente em muitos livros

230

didáticos, textos jornalísticos, redes sociais, nos discursos civis que em geral

identificam 1964 como um “golpe civil-militar”, que implantou uma “ditadura” também

civil-militar no Brasil.

Para o historiador Gáspari (2002, p 129):

“Foram duas décadas de avanços e recuos, ou ,como se dizia na época, aberturas e endurecimentos. De 1964 a 1967 o presidente Castelo Branco procurou exercer uma ditadura temporária. De 1967 a 1968 o Marechal Costa e Silva tentou governar dentro de um Sistema Constitucional, e de 1968 a 1974 o país esteve sob um regime escandalosamente ditatorial [...]. Em todas essas fases o melhor termômetro da situação do país foi a medida das torturas praticadas pelo Estado.Como no primeiro dia da criação,quando se tratava de separar a luz das trevas, podia-se aferir a profundidade da ditadura pela sistemática com que torturava seus dissidentes.”

Governador do Piauí até o ano de 1966, Portella chegou ao Senado pela

ARENA, herdeira direta da UDN partido pelo qual Petrônio foi eleito deputado

estadual e prefeito de Teresina. Passado pelo crivo das principais experienciais

estaduais o jovem senador tinha em mente que o novo palco, “Senado Federal” lhe

reservaria as mais relevantes missões que somente seriam possíveis naquele

ambiente onde a politica serve como alimento e pano de fundo para se pensar o

país em todas as suas dimensões.

Sendo um politico conservador e antirrevolucionário, Portela sabia que

ainda pairavam sobre ele algumas desconfianças em relação a vestir totalmente a

camisa do novo time pelo qual ele agora jogava. No empenho de desconstruir

aquela imagem e forjar uma nova, de alguém inteiramente aliado com a

“Revolução”, ele assumiu com entusiasmo a tarefa de presidir e transformar a

ARENA no Estado. Tarefa cumprida em todos os sentidos, pois já no primeiro pleito

a proporção de deputados eleitos pela ARENA e MDB, que fora grande em boa

parte do país no Piauí, foi ainda mais significativa.

Estava assim superada a desconfiança dos militares com Petrônio que a

partir de então aumentou seu capital politico junto ao comando militar que soube, na

exata medida de seus interesses, prestigiar o senador piauiense e alimentar seus

sonhos projetando-o nacionalmente.

231

3.9 Vitória da derrota: O autoritarismo como método.

“Do mal será queimada a semente” (Nelson Cavaquinho)

Pela coligação UDN/PSD, o candidato a senador José Candido Ferraz

apresenta o discurso mais lúcido e faz inclusive um apelo no sentido da união pelo

Piauí. Entre suas preocupações, figuram o Porto de Luis Correia, a navegabilidade

do rio Parnaíba e o apoio à classe dos latifundiários pecuaristas, representados pela

FAREPI.

A inovação fica por conta da questão camponesa que agora parece

preocupar os candidatos das duas coligações, embora, por razões diferentes. Sobre

essa questão, o candidato declara: “Apoio o sindicalismo rural promovido por Dom

Avelar; os mais esclarecidos proprietários de terra devem colaborar” (FMA: 08.04.62

p. 05) e diz mais:

“Dentro do Nordeste subdesenvolvido, somos uma espécie de sub-

nordeste marginalizado pela penúria... Não se estuda nem se enceta um plano

capaz de alterar o regime de terra, esterilizada pelo latifúndio... Não se cuida da

sindicalização dos trabalhadores dispersos e esquecidos no seu labor humilde e

pertinaz” (FMA:19.05.62 p.03).

Nesse tom, a campanha se desenvolveu e como era de se esperar, a

chapa udenista liderada por Petrônio venceu e quase alijou, embora,

momentaneamente, o ex-governador Chagas que somente conquistou e, a duras

penas, a vaga para Câmara Federal. Petrônio eleito com a maioria de votos toma

posse e, no governo, terá desde cedo que mostrar sua tão propalada habilidade

politica, vez que o cenário nacional é muito instável e complexo.

Apesar de nas primeiras horas, após o Golpe Militar, o jovem governador

Petrônio Portela ter se pronunciado claramente em favor da legalidade democrática

e por via de consequência da manutenção no cargo do presidente do João Goulart,

o que assistiu logo depois, foi uma notável aproximação e aproveitamento de

Petrônio Portela em relação à nova velha ordem implantada, na qual muito

sabiamente ocupou importantes e variados campos do poder.

Pode-se dizer também que o regime, como organismo vivo e muito

atento, buscou da mesma forma apropriar-se da sua condição civil e de sua

232

considerável capacidade de articular, conciliar e negociar, assim como de muitos

outros igualmente dispostos, para chegar ao seio da grande sociedade sem grandes

perturbações.

Tais competências foram desde muito cedo colocadas à prova, conforme

se pode depreender das palavras do deputado Alfredo Nunes, do PSD e líder do

governo Petrônio Portela na Assembleia e principal confidente nas dificuldades,

principalmente as financeiras do governo.

Sobre a falta de recursos para financiar a estrutura operacional do estado

que não dispunha de veículos para o deslocamento do governador e de outros

auxiliares diretos da administração, como secretários, diretores e chefias

departamentais, o governador teria dito:

“Alfredo, não sei exatamente como você vai fazer, sei que terás que fazer. Convoque todos os secretários e diga-lhes que precisamos disciplinar o uso dos carros do governo. Como vamos pagar o combustível dos carros a serviço da administração pública tão deficitária. Diga-lhes logo que o governador vai andar no seu próprio automóvel, pagando o seu combustível e que deseja saber se alguém tem sugestão melhor. Caso alguém tenha que a apresente por escrito e assinada.”

Para o deputado, o governador estaria testando o espírito de homens

públicos de seu secretariado. Ele afirma ainda que na reunião o próprio governador

disse que a medida deveria durar inicialmente 90 dias, tempo segundo ele suficiente

para conhecer a realidade financeira do Estado do Piauí, mas que cada secretário

tinha autonomia para aumentar o prazo se julgasse conveniente.

Com essa medida, o governador estaria enviando a todos os demais

setores da administração pública, alguns com salários atrasados, um recado: que o

esforço primeiro do governo seria reduzir o máximo de despesas, atualizar os

salários, para somente depois de equilibrar as contas, tratar sobre aumento dos

vencimentos dos servidores públicos e de todas as demais categorias, iniciando

pelas que ganhavam menos.

No entendimento do líder do governo, Petrônio também deseja fazer

chegar à imprensa bem como a toda sociedade suas intenções e assim reduzir a

233

força dos boatos que já circulavam sobre os graves problemas financeiros do

governo.

Embora o foco principal seja descrever alguns dos principais fatos

que marcaram o governo de Petrônio Portela à frente da administração do estado,

notadamente naquilo que se refere às politicas para o campo, o autor retoma o

episódio do golpe e da destituição de João Goulart para evidenciar como o então

governador se comportou logo na formação dos rumores sobre a ação militar.

Confirmada a derrubada de Jango e de seu projeto popular pela via das armas e da

mais sórdida trama envolvendo militares, civis e o capital internacional, o golpe e a

consequente instalação do novo regime político de governo, Petrônio Portella declarou:

Querem ensanguentar a Nação. Esta é a minha palavra. Não é a palavra que, perante os senhores, já foi a palavra solenemente empenhada perante o Chefe da Guarnição Federal, a quem as 3 horas da madrugada de hoje me dirigia no seguinte teor: “Não quero saber qual é a posição dos senhores, quero dar a minha: de defesa da legalidade, e ela só se faz íntegra mantendo o mandato do Presidente da República (palmas)... De maneira que julgo injuriosa a pergunta dos senhores porque nunca fui homem de oportunismo”. [...] Quero, nesta oportunidade, então, pedir-lhes que me façam encaminhar ainda agora para que eu transmita ao Governador Miguel Arraes a mensagem dos trabalhadores do Piauí, e através dele o Senhor Presidente da República (palmas)... (Jornal o Estado do Piauí, 16.06.64 p?)

Em entrevista concedida a este pesquisador, mas também constante na

obra Política –Tempo e Memória, (Coelho 2014 p 82/83) afirma que:

“Saí às pressas, para localizar os Deputados do PTB, aliados de João Goulart. Foi fácil localizar o Deusdeth Mendes Ribeiro e, em companhia ainda de José de Araújo Mesquita, Secretário Geral da Assembleia, nos dirigimos à Casa do Trabalhador, onde estavam outros companheiros. Aí começamos a redigir o manifesto. Pouco mais de meia hora, dirigimo-nos ao Karnak e ao chegarmos, com o texto manifesto do apoio, Petrônio foi logo dizendo, com certa irritação: “Meu manifesto enviei agora mesmo ao mensageiro que o aguardava. Vão imediatamente ao aeroporto entregar o de vocês”. Para lá me dirigi com dois outros companheiros de cujos os nomes não me lembro.[...] O avião já tomava a direção da pista para nova decolagem quando percebemos, à distância, um jeep que vinha em desabalada carreira, dirigindo-se ao local onde estávamos e de onde se afastara o avião. Era Petrônio, com um dos seus auxiliares mais diretos, que, esbaforido, nos dizia: João Goulart foi deposto e os militares tomaram conta do poder. E acenava para o avião, que começa o seu voo de volta, para receber o manifesto. Não foi possível detê-lo.”

234

Esse auxiliar mais direto de quem o advogado Celso Barros fala na sua

obra era exatamente, embora só se confirmasse isso tempos depois, o deputado

Alfredo Nunes, que numa das entrevistas que concedeu a este pesquisador, ao falar

do episódio, assim se expressou:

“Existia uma dúvida se o Presidente tinha caído ou não. Pouco tempo depois foi confirmada a tomada do governo e então o Petrônio que já tinha enviado a carta dele pelo Celso confiou a mim a missão de recuperar a tal carta manifesto, mas disse que iria me acompanhar até o aeroporto para se certificar que ninguém mais além de nós tinha conhecimento da carta. Não fiquei sabendo que fim exatamente levou, pois não deu tempo de recuperar a bendita carta pois o avião tava saindo quando chegamos no aeroporto. Soube que ela caiu nas mãos do general Justino Alves Bastos e que por causa disso o Petrônio respondeu um inquérito que ele mesmo, como brilhante advogado que era, fez questão de defender. Digo isso porque vez por outra chegava alguém por lá com uns documentos que ele assinava e depois devolvia.”

O jornalista Zózimo Tavares afirma em entrevista a este pesquisador

(abril 2016) que o governador Petrônio Portela era uma figura

realmente diferenciada e que respondia às demandas que lhe caíam sobre os

ombros, combinando legalidade, fruto da formação jurídica, com oportunidade,

resultante da enorme capacidade de interpretar os movimentos da política local e

nacional. Foi assim quando resolveu acusar nas barras do Tribunal o “valente

Zezé Leão”; promovendo-se muito a partir de então. Depois também numa

situação inesperada tornou-se candidato a prefeito de Teresina, vencendo a

disputa.

Outra oportunidade veio com a missão de coordenar a campanha

presidencial no estado de Jânio Quadros e, finalmente, sabia que seu futuro político

estava em bem aproveitar mais aquela situação, não desejada, mas efetivamente

inevitável, e assim o fez. Apoiou a revolução, do começo até o fim, segundo ele “em

nome do Piauí”.

Depois de haver apoiado a “revolução” e desejoso de marcar seu governo

à frente do estado como austero, transparente e fiel aos militares agora no

comando, Petrônio Portela passou progressivamente de “opositor” da nova ordem

estabelecida a uma espécie de porta-voz, a responsável pelas demandas do regime

no território piauiense.

235

Já identificado com o regime, Petrônio retomou sua rotina administrativa e

de início teve que enfrentar o levante da Policia Militar, que, como de hábito

reivindicava reposição salarial por intermédio de meio formal: um memorial

contendo todas as reivindicações. Embora a pauta apresentasse outros pontos de

reivindicação, a principal luta se dava mesmo em torno de reajuste salarial

conforme se pode depreender da nota enviada pelos oficias. Nota esta registrada

pelo jornal O Dia de 15 /agosto/1963 com o título “Militares irredutíveis”, a nota

dizia que:

“Os oficiais, subtenentes, sargentos, cabos e soldados da Polícia Militar do Estado, reunidos em Assembleia Geral das suas entidades de classe: Clube dos Oficiais, Clube Tiradentes – dos sub tenentes e sargentos, Clube Conselheiro Saraiva – dos inativos e Centro Social dos Cabos e Soldados, resolvemos, através do presente, reiterar a V Exa. A reivindicação feita em 29 de junho próximo findo no sentido de serem reajustados os nossos vencimentos de há muito deficitários”.

A nota segue justificando a cobrança principalmente pelo fato de os lares

dos policiais se encontrarem vazios, sem alimentos com alguns passando fome. Em

outro trecho os oficias sugerem ao governador que:

“Deliberamos, como base de nossa reivindicação, propor a fixação de uma nova tabela de vencimentos equivalente à do pessoal da Polícia Militar do Ceará, excetuando-se as consideráveis vantagens aos mesmos atribuídas, tendo-se em vista ser este o mínimo indispensável à nossa manutenção.”

Sabedor de que a sublevação dos Oficiais da Polícia Militar poderia trazer

grandes prejuízos políticos e administrativos, tratou de colocar a questão para a

opinião pública. Em nota Oficial datada de 17 de agosto de 1963, o governador

afirma que:

“Cumpre o dever de levar ao conhecimento da população civil que, parte da Polícia Militar, após reuniões sucessivas e em termos passionais e desrespeitosos à autoridade constituída, pretendeu impor ao Governo aumento de vencimento da corporação”.

236

A nota segue o governador

informando que a reivindicação é justa, mas

que naquele momento os cofres do Estado

não suportam conceder o aumento e que tão

logo seja possível, depois de atualizar os

vencimentos atrasados concederá não

somente para a Polícia, mas para todas as

categorias civis.

Com esse posicionamento, o

governador almejou tornar o movimento

como sendo apenas de uma parte da

corporação e não de sua totalidade, que a

paralisação deixaria a população mais

insegura e, com isso, colocar a sociedade

contra a sublevação dos oficiais.

Com o apoio de parte da

sociedade civil, especialmente da classe

media e alta da cidade, Petrônio solicitou reforço externo, no que foi prontamente

atendido. O general Humberto de Alencar Castelo Branco, então comandante do IV

Exército, enviou-lhe soldados e armas da 10a Região Militar para contornar o

conflito, prender as lideranças e estabelecer a ordem na corporação e na cidade.

O comando da operação foi entregue ao oficial Francisco Batista Torres

de Melo. Poucas horas depois, o Quartel da Polícia Militar foi tomado dos

amotinados, alguns homens transferidos para municípios distantes, outros presos,

entre eles o tenente Geraldo Câncio e o capitão Elesbão Soares, e as chaves do

prédio-sede foram entregues ao governador que as repassou a um oficial de sua

confiança. Estava a situação resolvida e o governador manteve sua posição de

comandante maior do estado, inclusive da Polícia Militar.

Petrônio, em início de mandato e tendo ainda principalmente por parte da

sociedade teresinense, certa desconfiança em razão da postura “vacilante” de apoiar

Jango e logo em seguida se aliar à “revolução”, sabia que tinha de tomar uma

Fonte: Militares em protesto por aumento de salário.

237

posição firme que o reposicionasse diante da população e em particular da classe

política, que como afirmou Celso Barros “não sabia em qual dos Petrônios confiaria”.

Assim, o governador manteve-se firme, não autorizou o aumento,

aumentou a simpatia de parcela da sociedade civil, especialmente a classe média

conservadora e partiu para a execução de seu planejamento governamental, que

incluía entre outras metas, desorganizar o movimento camponês e fragilizar suas

respectivas entidades representativas e por fim retroceder o projeto de reforma

agraria iniciado por Chagas Rodrigues.

Importante ressaltar que a maneira exagerada e truculenta com que o

governador tratou o movimento militar provocou graves tensões com a Igreja

orientada por Dom Avelar que fez severas críticas pelas ondas da Rádio Pioneira ao

governador. Em razão disso, o governador Petrônio chegou a enviar uma carta a

Dom Avelar, na qual se queixava da posição do religioso. Na carta, Petrônio dizia:

“Devo declarar que a palavra mágoa fielmente expressa o sentimento intimo que guardo da atuação de V.Excia nos episódios em que se envolveram oficiais e praças da Polícia Militar do Estado [...] Quando intervém V.Excia. já os fatos ganhavam feição de indisfarçável gravidade [...] O governo não esperava de V.Excia. um ato de hostilidade, nem eu, pessoalmente, [...] quando transformaram o quartel em albergue, com senhoras e crianças, abastecendo-se com ração fornecida por políticos de oposição e por um caminhão de víveres mandados oferecer pelo Sr. Arcebispo, confesso, Dom Avelar que esse gesto de V.Excia. me causou choque bem maior do que tudo quanto pude sentir ao longo dos lamentáveis acontecimentos [...] Não era um movimento popular investido contra estruturas iníquas sustentadas por forças anacrônicas. Era uma sedição em marcha.[...]Surpreende que a Rádio da Arquidiocese se pusesse no ar para a convocação de sindicatos rurais, concitando-os a uma tomada de posição que poderia resultar, e resultou, em aliança com a sedição insólita [...] Suas atitudes impuseram-me a crença de ter ficado V.Excia. ao lado de meus inimigos, dando-lhes o estímulo de um apoio expresso”(Portela:1963).

No mesmo dia, Dom Avelar respondeu ao governador. O chefe religioso

reafirmou seu compromisso com os valores cristãos e disse não ter ficado, como

afirmou o governador, ao lado dos inimigos, mas que apenas agiu como pastor ao

lado dos humilhados e, em relação à atuação da Rádio Pioneira, ela, como um

instrumento de justiça, lutava pela paz.

238

Como se percebe, a postura extremada do governador não somente

durante o movimento, mas também depois numa verdadeira caçada aos revoltosos,

ainda provocaria conflito entre as duas autoridades.

Diga-se de antemão que Petrônio Portela arquitetou um ousado programa

de descentralização, levando a administração do estado para os municípios numa

aproximação clara com as bases políticas do interior do Piauí, onde ele precisava

consolidar seu nome e enfrentar “in loco” possíveis reações sociais ao seu governo.

Com essa estratégia, Petrônio tanto fortaleceu seu nome, como a própria

UDN, seu partido no qual pretendia fazer carreira política.

Assim como tratou com dureza a sublevação da Policia Militar, Petrônio

Portela foi aos poucos reduzindo o espaço de atuação dos movimentos sociais. A

casa dos sindicatos que recebia uma espécie de “ajuda financeira” para fazer frente

à realização de atividades políticas, a exemplo de curso de formação de lideranças,

ou mesmo curso de “manejo agrícola”, de convivência com a seca, foi

progressivamente esvaziada e perdendo força junto aos trabalhadores que

sistematicamente visitavam a casa.

Para o agricultor Antonio Damião, do Sindicato de Campo Maior, a casa:

“representava um espaço de sociabilidade política, lá se ficava sabendo de tudo que

acontecia nas cidades do interior e da vida dos sindicatos. Lá se sabia das

novidades, dos cursos, agente pegava jornal para se informar. Tudo isso foi aos

poucos minguando, minguando.”

Também o movimento estudantil, especialmente aquele do qual

participavam estudantes que moravam na casa do estudante pobre de Teresina,

sofreu reversos na gestão do governador Petrônio.

Para os advogados, e à época líderes estudantis Átila Lira, Carlos Lobo e

José Luiz Martins Maia, era muito difícil fazer movimento na prática e muitos deles

passavam, principalmente, na gestão do Petrônio, o tempo entre ações mais

pontuais nas suas entidades (Grêmios estudantis) e debatendo assuntos nacionais

que interessavam diretamente ao Piauí.

Para o advogado, jornalista e professor Carlos Lobo, estudante do Liceu

Piauiense em 1958, aquela foi uma época muito propícia ao debate sobre os

grandes temas nacionais. Ao falar sobre sua atuação como líder estudantil, ele

assim se posiciona:

239

“Eu graças a Deus convivi com uma fornada muito boa de estudantes. Fazia parte da minha turma no Liceu o Jesualdo Cavalcanti, Camilo Filho, Wall, Átila e muitos outros. As reuniões para transformar o Brasil eram feitas no arquivo público. Nós criamos o Centro de Estudos da Mocidade Idealista do Piauí (CEMIPI). A nossa meta era ler de dois a três livros e debater. Era uma espécie de ISEB local. Todo o sábado a gente discutia os problemas do Piauí. O CEMIPI (Centro de Estudos da Juventude Idealista Piauiense.) foi acusado de ser um centro formador de comunista. Isso porque a gente recebia aquele jornal Novos Rumos e o Semanário. Nós éramos muito mais ligados ao trabalhismo por causa do governador Chagas do que a qualquer outro ideário. Depois já mais adultos tivemos problemas com o Petrônio e os militares que não queria nem saber de rodas de debate, de estudos conspiratórios.”

Para o historiador Wilson Carvalho Gonçalves, a gestão de Petrônio Portela

foi marcada por traços inovadores, mas também por certo reformismo conservador

principalmente se comparado ao modelo de gestão operacionalizado anteriormente

pelo governador Chagas. Sobre o aspecto da gestão, ele postula que:

“A elaboração do l Plano de Desenvolvimento Econômico e Social do Piauí, que estruturou e planejou toda a ação governamental, com técnicas modernas e racionais, colocando a gestão administrativa mais eficaz e contributiva para o desenvolvimento do Piauí. Deslocou a sede do governo para os municípios do interior, cuja descentralização visava sentir, “in loco”, os problemas das comunidades. Promoveu esforços e estudos que deram origem à criação da Universidade Federal do Piauí. Imprimiu, com muita austeridade, a aplicação dos dinheiros públicos. Ampliou as redes de ensino e saúde.” (GONÇALVES 1996, p. 181)

E segue dizendo:

“Já em relação ao contato direto com o povo e outras lideranças políticas o que se assistiu foi uma mudança brusca, enquanto Chagas falava ao povo e ainda recebia populares aos sábados no Palácio de Karnak, Petrônio somente atendia aos chefes políticos e ainda assim acompanhado dos grandes nomes da política de cada município”.

Sobre uma dessas visitas ao Karnak, o senhor Gentil Alves, um dos

maiores proprietários da região de Campo Maior, assim se expressa:

240

“Estive uma vez no palácio para falar com o governador. Cheguei umas 9 horas conforme ele mesmo tinha marcado. Deu 10 horas e nada, então chamei uma dona que tava numa mesa e perguntei: O governador Petrônio já tá ai falando com alguém? Ela respondeu: Já o senhor tem hora marcada? Eu disse, tenho e foi ele mesmo que marcou. A senhora faça o obséquio de dizer pra ele que o velho Gentil de Campo Maior tá aqui e se ele ainda quiser meu apoio que me atenda logo.”

Como se percebe, o governador inaugurou um novo estilo de fazer

política. Trocou o contato direto com o povo pela representatividade dos grandes

chefes políticos, encurtando o espaço dos setores populares.

Outra mudança brusca percebida foi a ausência do governador nas

Rádios da Capital. Petrônio não fazia tanto uso do Rádio como fazia seu antecessor,

embora tivesse todos os dias manchetes e matérias assinadas por outros em defesa

dele e do próprio governo. O próprio jornal O Dia, que até então adotava uma

postura não tão partidarizada, agora passou a desenvolver intensa campanha contra

o comunismo.

O governo de Petrônio foi totalmente atravessado pela instabilidade

política reinante nos primeiros anos de chumbo. Ainda assim, e contando com o

apoio, mesmo que moderado do alto comando, posto que ainda restavam

desconfianças sobre sua real adesão ao regime, o governador

empreendeu importantes ações administrativas. Dentre essas ações, realizou a

primeira ampliação do Hospital Getúlio Vargas, no qual foi instalado o Centro

Cirúrgico com a aquisição de outros importantes aparelhos e equipamentos para

atender a situações de emergência oriundas do interior do Piauí e do vizinho Estado

do Maranhão.

Em relação à educação, o quadro também não era nada animador.

Quando assumiu o governo, a taxa de analfabetismo era de quase 50%. Seu

planejamento previa uma redução para 20%. Hoje, 50 anos depois, essa meta ainda

não foi alcançada, mesmo com muitos esforços.

241

Fonte: Governador Petrônio Portella na Companhia do Presidente Castelo Branco

Para cumprir a meta planejada, o governador e sua equipe estabeleceram

um cronograma que, ao final do ano de 1965, teriam alocados nas áreas urbanas,

municípios do interior e aglomerados com mais de 500 habitantes, pelo menos 1000

novas salas de aula.

A gestão de Petrônio foi se desenvolvendo na perspectiva de dotar o

estado de infraestrutura que causasse a impressão de progresso material e, no

campo político, reduzisse progressivamente os espaços de liberdade com o

fortalecimento do executivo estadual. Isso se daria mesmo numa conjuntura

nacional adversa ao poder dos governos estaduais que sofriam com o fortalecimento

do executivo federal a partir da Constituição de 1967. Essa constituição limitou ainda

mais a autonomia dos estados - com a concentração do poder de decisão na mão

do governador, que também controlava toda a Assembleia Legislativa.

Além disso, em esfera nacional, foram promulgadas novas leis

e assinados novos decretos executivos, dentre eles, um que submetia o

Executivo a um planejamento de feitio militar. Por fim, foram uma severa Lei

de Imprensa e a Lei de Segurança Nacional destinada a facilitar a atuação

242

dos órgãos de Segurança do Estado contra os denominados “inimigos interno do

novo regime”. O terror do estado se prestava a manter siliente e obediente a

sociedade.

Nessa nova ordem é que se realizaram as eleições de 1966. As primeiras

submetidas ao bipartidarismo formado pela ARENA e MDB, esses dois partidos

substituíam a UDN, PSD, PTB, PR, PDC e outros partidos ainda vivos e bem

presentes na cabeça e até no coração de muitos brasileiros e piauienses, de modo

particular.

Na realidade, os “novos” partidos eram os mesmos, pois as pessoas em

sua maioria, pelo menos no Piauí, identificavam os Partidos pelos seus representantes.

Comum aqui era se dizer “a UDN do doutor Petrônio ou o PTB do doutor Chagas”.

Agora o que se esperava ouvir ou se dizer era “a ARENA do doutor Petrônio, mais

poderoso do que nunca e o MDB, do doutor Chagas mais fraco do que antes”.

Outra importante ação administrativa foi a criação do primeiro plano de

habitação popular, autorizado pela Lei Estadual no 2.545 de 9 de dezembro de 1963,

a ser executado pelo próprio governo do estado através de recém-criada HABIPOPI

– com recursos do próprio tesouro. A meta era construir 2.500 moradias urbanas,

sendo 1000 no primeiro ano e o restante 1.500 no ano seguinte, segundo semestre

de 1965.

Embora o nome de Petrônio

esteja ligado às duas principais obras

estruturantes do estado como a Usina de

Boa Esperança e a Universidade Federal

do Piauí, pois foi durante sua gestão que

estes equipamentos públicos efetivamente

entraram em funcionamento, é necessário

e oportuno reconhecer que essas duas

importantes conquistas remetem a

decisões do governador Chagas

Rodrigues, que ainda na Conferência

dos Governadores realizada em São Luís,

solicitou e obteve do então presidente

Jânio Quadros autorização para

realização do empreendimento.

Fonte: Conferência de São Luiz / liberação de recurso.

243

Os professores Manuel Paulo Nunes e Celso Barros Coelho afirmam que

Petrônio jamais seria figura central do regime, como se tornaria mais tarde, se

continuasse como governador. Isso porque o Piauí era um estado sem expressão,

longe de tudo, até dele mesmo.

Nesse sentido e muito consciente dessa realidade, Petrônio planejou desde

cedo sua ida para o Senado da República, onde se elegeria pela ARENA, partido

criado a partir da implantação do sistema bipartidário, instituído pelo Ato Institucional

nº II. Surgiam, assim, a Aliança Nacional Renovadora (ARENA) e o Movimento

Democrático Brasileiro (MDB), a oposição liberada, como se dizia na ocasião.

No estado, Petrônio tomou posse da ARENA, condição “Sine qua non”

para chegar ao sonhado e planejado centro do poder. Assim comandando o maior

partido do Piauí, passou o governo para o deputado e vice-presidente da

Assembleia Legislativa, em exercício, Doutor José Odon Maia Alencar.

A Arena, partido do Regime Militar, dominou totalmente a cena política

brasileira, pelo menos nos primeiros anos. Tancredo Neves, na oportunidade pelo

MDB mineiro, afirmava “a Revolução era a ditadura da UDN”, pois conquistou

naquele pleito 90% das vagas nas Assembleias e nos governos dos estados.

No Piauí, essa situação se revelou ainda mais favorável à ARENA, pois

das 8 vagas na Câmara Federal, a “oposição”, o MDB, só elegeu uma, ficando a

ARENA com as 7 restantes. Elegeu ainda 34 deputados estaduais contra 8 do MDB.

Finalmente, elegeu o governador e o senador. Petrônio venceu a disputa com quase

65% dos votos. Estava consolidada sua carreira política e preparada sua chegada

ao “centro” do poder central.

Como se percebe, a instabilidade nacional tão evidente e principal fator

de prisões, torturas e paralisia da governança nos estados, no Piauí, carecem

melhor ser “apurada”. Apurada no sentido de se purificar, de separar a aparência da

essência. Muito desse processo ainda se encontra em estado de latência,

adormecido e precisa ser mais bem iluminado.

3.10 Petrônio, o hidridismo em movimento

“Onde há vida há inacabamento” (Paulo Freire)

Eleito em 1966 para a única vaga de senador em disputa com quase o

dobro de votos de seu principal adversário, Petrônio Portela se empenhou para

244

realizar o que ele acreditava ser o seu destino: um nome de expressão nacional na

política. Em fevereiro de 1967, assumiu o mandato de senador e logo conquistou a

presidência da Comissão de Legislação Social.

Já como um arenista declarado, Petrônio tratou de se aproximar do

General Costa e Silva, que recebeu em março o governo das mãos de Humberto de

Alencar Castelo, de quem Petrônio já se tornara próximo e recebera sua maior obra

de infraestrutura: a usina hidrelétrica de Boa Esperança, no município de

Guadalupe.

Com trânsito em todos os poderes e profundo estudioso dos temas

jurídicos voltados à legalidade ou ilegalidade, Petrônio participava de muitas reuniões

e assim foi aos poucos conquistando cada vez mais espaço, no partido e no próprio

governo militar. Ressalta-se que Costa e Silva (1967-69) integrava a chamada Linha

Dura e seu governo foi marcado por fortes reações da sociedade civil.

Os operários de Contagem (MG) e Osasco (SP) fizeram greves. Também

os estudantes protestaram nas ruas de todo o país, inclusive em Teresina e

Parnaíba, as duas principais cidades do Estado, exigindo o retorno da democracia

plena, a criação de mais vagas nas universidades e repudiando o acordo MEC-

Usaid, que representava uma tentativa de introduzir o pagamento de mensalidades

nas universidades públicas.

O ano de 1968 marcou também a morte, em março, do estudante

secundarista Edson Luís Souto, abatido pela polícia no Rio de Janeiro. Em junho de

1968, foi organizada contra o regime a Passeata dos Cem Mil. No mês de agosto,

ocorreu a invasão da Universidade de Brasília por policiais. Em relação à morte do

estudante Edson, o escritor piauiense Francisco Alves Catarino, aposentado da

antiga Varig, lançou, em 2007, uma obra de memórias, sob o título “Em busca da

felicidade”. Colega que foi do estudante assassinado, na busca de recuperar aquele

violento episódio, assim se expressa:

“Nesse dia eu vinha correndo do trabalho para jantar e logo em seguida assistir aula, pois não estava disposto a fazer qualquer contestação. Só que antes de entrar na área do restaurante, um amigo meu, de nome José Arteiro, me chamou para me mostrar onde ele estava trabalhando. Mesmo sem querer, aceitei o convite e fui. Nesse exato momento, eu já devia estar chegando na sala de aula. Esse convite a que eu resisti a princípio e reclamei foi o suficiente para evitar que chegasse antes da polícia. (CATARINO, 2007, p.114)

245

Nesse momento, Petrônio era vice-líder do governo e da Arena, e proferiu

na tribuna do senado um emocionado discurso em que condenou os excessos da

polícia e afirmou que os implicados seriam punidos com o rigor da lei. Em dezembro

desse mesmo ano, justificado pelo o cenário de tensão e muita agitação, o governo

militar editou a maior arbitrariedade do regime: o Ato Institucional n 5.

Vale acrescentar que, no Piauí em sintonia com o Ato Institucional nº 5 foi

editada a resolução nº 64/64 que determinava a realização num único dia de três

sessões para cassação de mandatos, tiveram suas funções parlamentares retiradas

os deputados Celso Barros Coelho (PDC), Severo Maria Eulálio (PTB), Solon

Correia de Araújo (PTB), dentre outros.

Agora em razão do famigerado Ato

número 5º, foram determinadas novas

cassações, entre elas: Alfredo Leal

Nunes (ARENA) por ter sido presidente da

SUPRA e ser pelos militares identificado

como subversivo. Também perdeu o mandato

de deputado federal Chagas Caldas

Rodrigues, ex-governador.

Para muitos políticos, especialmente os do sudeste o governo que tinha

um nordestino e especialmente um piauiense como protagonista, não poderia se

apresentar bem. Contrário a essa análise, Elio Gáspari, em sua obra A Ditadura

Encurralada (2004), ao se reportar ao bom capital relacional de Petrônio Portela,

assim se posiciona:

Tinha uma ampla rede de contatos dentro e fora do governo, dentro e fora do Congresso e segue [...] Tinha boas relações na oposição e um amigo no secretário Geraldo MDB, deputado Thales Ramalho. [...] Eram antigos conhecidos, do tempo em que, no Rio de Janeiro, militavam no movimento estudantil. Na noite da edição do AI5, Petrônio o procurara em casa, certo de que seria cassado. (GÁSPARI, 2004, p. 314).

Fonte: Revista Veja.

246

Contrário ao movimento que pretendia impedir a posse do Presidente

Juscelino Kubistchek em 1956, Petrônio, agora em 1964, coloca-se novamente em

defesa do Estado Democrático de Direito, postulando pela legalidade e manutenção

do mandato do Presidente João Goulart e, finalmente, em 1968, depois de defender

na tribuna do senado punição aos militares que invadiram a Universidade de

Brasília, quase se tornou um dos cassados pelos terríveis alcances do Ato

Institucional número 5º.

Entre as especuladas, previstas e até desejadas mortes políticas, o que

se assistiu foram sucessivos renascimentos. Dai surgia sempre um novo e

revigorado politico que se forjou um Petrônio que entre mortos e feridos, salvou-se

ileso e que fizera da luta pela revogação do AI5, a chamada Missão Portela, mais

uma etapa do seu processo de metamorfose. Fato é que Petrônio Portella deixou

como legado, dentre muitos, o resfriamento profundo da participação dos

trabalhadores, especialmente os do campo, na cena politica piauiense.

247

CAPÍTULO IV

4 O FAZER-SE DA NARRATIVA ACADEMICA LOCAL SOBRE AS

LIGAS NO PIAUI, uma crítica epistemológica ao discurso

colonizado que nega a experiência peculiar de Matinhos.

Basilar para a produção textual deste quarto e último capítulo, que se

ocupa em identificar, conhecer e analisar a produção historiográfica local em torno

do movimento social das Ligas Camponesas, – a partir da memória de alguns de

seus principais ativistas, mas principalmente do que se achou produzido no âmbito

da academia ( UFPI e UESPI) – com foco no processo de constituição da Liga de

Matinhos no Território dos Carnaubais, Campo Maior e outras experiências

organizativas constituídas no estado – foram as recomendações deixadas pelo prof.

Antônio Torres Montenegro. Tais recomendações se encontram na conclusão do

artigo “Travessia e desafios” (2012,p.61). Nesse escrito, o autor desenvolve uma

série de reflexões historiográficas revelando seus próprios impasses na vida

acadêmica desde o mestrado até aqueles dias.

Soma-se de modo bem apropriado a essas recomendações e

ensinamentos o alerta de Thompson (2001, p. 156) quando afirma que: “É um perigo

examinar a história apenas por certos fenômenos, pelas conformidades, ao passo

que é possível que fontes descartadas escondam novos significados”. Igualmente

importante foi a recomendação proposta por Certeau (2000, p. 67) quando se

referindo a processos de análise, afirma que: “toda interpretação histórica depende

de sistema de referências [...] que se infiltrando no trabalho de análise, organizando-

o à sua revelia, remete à ‘subjetividade’ do autor".

Outra importante contribuição vem de Cardoso (1979. p ) quando se

referindo ao método comparativo na história, alternativa que ele reconhece não se

tratar de um caminho fácil, comum e nem muito usual nesse campo, aduz que:

“comparar significa fazer uma escolha em meios sociais diferentes, de dois ou mais

248

fenômenos que apresentam, à primeira vista, certas analogias. Possibilitando, logo

depois, constatar e explicar as semelhanças e diferenças”.

Contribuição adicional vem de José Murilo de Carvalho que acredita ser

de “importância crucial o estudo comparado, pois só por meio dele é possível criar

teoria. Só desenvolveremos teoria própria quando saímos do paroquialismo e

começamos a estudar os outros. Não existe teoria de um só caso.” (CARVALHO,

1989. p. 14).

Também na perspectiva de um viés comparativo, Hobsbawn (1978, p.

20) reafirma a importância de “demarcar a existência de diferenças básicas entre um

movimento social revolucionário e um reformista. Estes últimos aceitariam a

estrutura geral de uma instituição ou de um sistema social, já os primeiros insistiriam

que a estrutura social deve ser transformada fundamentalmente ou, então,

substituída”.

Como bem se sabe, na América Latina e no Brasil, de modo particular,

ainda persiste uma dura realidade econômica e social, onde o problema de ordem

material e a luta pela democracia política estão longe de serem superados. Essa

conjuntura favorece a formação de uma diversidade de movimentos sociais, com

hegemonia de movimentos populares por terra, casa, comida, equipamentos

coletivos básicos, como também a questão de direitos humanos, demandas já

superadas, pelo menos, relativamente na Europa e Estados Unidos. Mas afinal, o

que a historiografia tem entendido por movimento social? Como a historiografia tem

interpretado esses movimentos? Com quais perspectivas? Quais suas primeiras

referências? Como eles se organizam? Quais suas variações? Por que efetivamente

eles ocorrem?

Sabe-se que as classes trabalhadoras da cidade e do campo vivenciam a

exploração capitalista de forma diferenciada e também possuem expectativas e

aspirações próprias e, por isso, distintas. Sendo assim, suas experiências de vida,

suas práticas, suas formas de resistência e suas aspirações, por consequência, são

particulares. Portanto, no caso dos trabalhadores rurais, por exemplo, trata-se de

uma cultura específica. A cultura camponesa.

Por que, então, a quase totalidade das pesquisas a que se teve acesso,

com raras exceções, quando tratam das Ligas Camponesas, enveredam pelo

caminho da uniformização, do discurso colonizado, tanto das causas, contexto,

249

demandas, processos de mobilização, organização e táticas de resistência,

conferindo aos movimentos de Pernambuco (Galileia), Paraíba (Sappe), Piauí

(Matinhos), aspectos de homogeneidade, numa leitura opaca que nega aspectos

particulares e específicos, que seriam realçados a partir de uma leitura minimamente

crítica e atenta sobre esses movimentos? Porque não reconhecem as experiências?

Em sua importante obra “Rebeldes e Primitivos”, publicada originalmente

no ano de 1959, o historiador Eric Hobsbawn defende que os movimentos sociais

podem ser vistos como iniciativas levadas a efeito por trabalhadores industriais

urbanos, assim como as diferentes formas de protesto da “vontade popular”, em

diferentes momentos e por diversos grupos socioprofissionais, cuja importância tinha

origem no seu caráter radical de massa. Também se enquadram nessa

caracterização eventos marcados pela presença da multidão nas ruas não

importando se eram de “esquerda” ou de “direita”.

Em outra publicação datada de 1972, intitulada “Da história social à

historia da sociedade”, Hobsbawn lança mão de movimentos sociais como sinônimo

de estudo dos conflitos sociais, dos tumultos e das revoluções – numa volta ao

marxismo da primeira metade do século XX – como representação de uma

transformação radical e profunda da sociedade. O pesquisador aponta ainda como

inconveniente a apropriação das revoluções como acontecimentos isolados dos

contextos em que aconteciam.

Ainda nessa perspectiva da imprecisão e da dificuldade para a história lhe

dar com esse conceito mais comum nas Ciências Sociais, Hobsbawn postula que os

maiores desafios para o historiador continuam sendo o estudo dos comportamentos

de classe e, sobretudo, as manifestações da consciência de classe. Esse era,

segundo seu entendimento, um terreno em que todos se viam tentados a analisar

pelo teor ideológico dos movimentos sociais.

Tal inclinação trazia riscos para quem empreendesse tal leitura. Isolar

certos fenômenos de seus contextos mais amplos, priorizar eventos que só

aconteciam em momentos de transformação revolucionária e ignorar movimentos

cujos integrantes não se manifestem na linguagem dos documentos escritos, dentre

outros, são alguns dos riscos apontados pelo pesquisador.

250

Tratando especificamente sobre movimentos sociais rurais no Brasil,

Clifford Welch (2006, p. 61) afirma “ser necessário examinar melhor como o

movimento camponês avançou em todas as regiões do país para bem compreender

o potencial, as particularidades e os problemas do movimento”.

Sabe-se que, a partir de 1950, as pesquisas em todo país e Piauí seguiu

essa tendência, focaram especialmente a participação popular. O foco no social

exalta a experiência das pessoas comuns, dos silenciados, invisíveis e anônimos da

História. Essa preocupação com o pobre, com as pessoas comuns de há muito já

povoava o imaginário e as preocupações de Monsenhor Chaves. Inquietação

equivalente aparece com bastante evidência no tópico “Vaqueiros e Roceiros”, Obra

Completa (2013, p. 634), quando o autor assim se expressa:

“precisamos reescrever a história do Piauí a partir do povo, a partir

do pobre. A que temos é a história do dominante, a classe que

produz os documentos e organiza os arquivos. Dela são os heróis, os

grandes, os libertadores, que de fato a ninguém libertaram, mas

mantiveram o povo na sujeição aos seus ‘modelos’ que garantem a

perpetuidade de seu status. Chama-se isto, erroneamente história.

De fato não é história, é tradição”.

Atento ao convite para examinar como a história do Piauí tem sido

contada e reforçar a tendência revisionista que deixa de lado a ideia de uma história

linear, que glorifica ou contesta os protagonistas históricos, valorizam os grandes

acontecimentos e, principalmente que se apoia em modelos que priorizam a

estrutura, o pesquisador toma por empréstimo a noção de experiência proposta por

Thompson, que traz a noção de sujeito e de processo. Também lança mão de

recomendações propostas pelo professor Montenegro quando chama atenção para

alguns cuidados e comportamentos que devem ter aqueles que se lançam ao ofício

de pesquisar. São eles:

1- “Para alguém se constituir um historiador profissional, deve entre

outras práticas, desfazer ou desconstruir o historiador natural que traz e que foi se

tornando, muitas vezes involuntariamente, ao longo da vida. Ele é desenvolvido em

nós desde [...], por meio de discursos e práticas aprendidas na família, nas religiões

e nas mais diversas redes sociais. Afinal é próprio da cultura, do senso comum,

251

estabelecer uma relação processual entre o passado, o presente e o futuro. Esta

relação apreendida acerca de diversas temporalidades e acontecimentos se

apresenta bastante casual, determinista, cronológica, maniqueísta, entre outras

marcas que se poderia apontar.”

2- O alerta feito quando afirma a partir da frase de René Magri utilizada

por Michel Foucault: “Isto não é um cachimbo”. Montenegro (2011) postula quando

diz: “somos nós, por meio de nossas redes sociais que construímos e significamos o

mundo [...] vivemos nos discursos que construímos e acreditamos, ou aprendemos a

acreditar como verdades por meio de nossas redes sociais e culturais. O real é o

como aprendemos a significar o mundo ao nosso redor, deve-se atentar para a

pluralidade de saberes e, a partir de então esmerar-se no sentido de não reforçar

posicionamentos preconceituosos, generalizantes ou reducionistas que, na sua

cegueira, não destacam a riqueza e o pluralismo, únicos em cada experiência social

vivida”.

Para (Prudêncio, 2000), fator importante no fortalecimento e na

compreensão dos movimentos sociais da América latina foi a presença da Igreja

Católica, por meio da ala progressista engajada na Teologia da Libertação que

mobilizou através das Comunidades Eclesiais de Base e das pastorais, até o início

do processo de abertura política, as camadas pobres da população em favor da

justiça social, baseada no princípio de solidariedade e esperança. Esse setor da

Igreja literalmente “entrou em campo” e engajou muito de sua militância na redução

das contradições sociais.

Na análise de Rubem César Fernandes (1994, p. 49), os novos

movimentos sociais suspenderam promessas e expectativas globais para afirmar-se

no plano local, o que provocou mudanças na forma das ações coletivas e nos

discursos dos atores. Assim, o “povo” dá lugar ao “popular”, para dar conta de uma

multiplicidade de sujeitos sociais singulares em luta pela afirmação de seus

significados. “A afirmação de uma identidade ‘contrastiva’ acarreta o reconhecimento

de uma experiência singular [...] cujo sentido não é apreensível no formalismo

abstrato e genérico das leis e dos estudos.”

E, portanto, alicerçado em todas essas recomendações e orientações que

se pretende lançar luz sobre algumas pesquisas realizadas no âmbito acadêmico

252

local, produzidas por estudantes das universidades estadual e federal do Piauí,

aferindo “encontros e desencontros” a respeito das experiências organizativas das

ligas camponesas no estado, pretende-se, dessa forma, fazer a crítica

epistemológica necessária e levantar conclusões sobre o posicionamento dos

autores que se dedicaram a escrever sobre essa importante experiência organizativa

no contexto social da federação.

Estado caracterizadamente provinciano, mas em vias de transformação, o

Piauí que se afigura, também, como espaço de acontecimentos direta ou

indiretamente relacionados com a dinâmica nacional.

Ressalta-se que esta preocupação, embora já existisse, somente ganhou

corpo e dimensão inquietante, a partir da pesquisa empreendida sobre a Liga de

Matinhos, em Campo Maior – Piauí, pois foi somente a partir desse estudo que o

autor pôde constatar o quanto a produção historiográfica local é atravessada e

emoldurada por análises cristalizadas e canonizadas que reforçam os modelos

prontos e negam as experiências. Tais análises conferem a esse movimento uma

visão uniformizante que denota um viés preconceituoso com inclinação generalista

ou reducionista, revelando um esforço de acomodar a realidade específica local ao

quadro explicativo teórico.

Foi, portanto, a partir dessa percepção, que o pesquisador submergiu-se

em reflexões, problematizando a questão camponesa, não acreditando no óbvio, na

aparente igualdade e no silêncio sobre o tema. A partir de então, procedeu-se a uma

(re) leitura dos marcos explicativos do fenômeno social das Ligas Camponesas,

nessa perspectiva valiosa também foi a orientação dada por Boris Fausto, para

quem “situar-se no terreno da história [...] significa apoiar-se nas fontes” (FAUSTO,

2009, p. 9).

Partiu-se ainda da elementar constatação que a classe trabalhadora rural

brasileira tem suas especificidades, modificando-se de acordo com cada contexto,

constituído de processos históricos próprios, portanto, não pode ser homogênea,

embora possa ter aqui e ali algumas semelhanças pontuais em todos os tempos e

espaços onde quer que se organize.

A tese que se defende neste estudo é a de que a movimentação com

diferentes estratégias e táticas, da classe trabalhadora do pré e pós 64, possibilitou

um real crescimento da consciência política de classe que se constituía no fazer-se

253

e enquanto se fazia se transformava em sujeito ativo e não apenas em simples

massa de mobilização orientada por objetivos alienígenas à sua perspectiva de

classe ou de movimento social reivindicativo – no caso de Matinhos – como

defendem algumas vertentes teóricas.

Percebeu-se, portanto, na problematização que se faz sobre o período,

tema, fontes e objeto em questão, principalmente nas leituras produzidas no pós 64

– uma visão a partir da qual o golpe civil-militar teria apenas reforçado, ao fim de um

cabo, a derrota total e inexorável de um processo fomentador de distintas

experiências de resistência camponesa no Brasil. Isso porque, no entender dessas

correntes, as experiências em cursos já apresentavam evidentes sinais de

contradições internas, fragilidades, dependência exterior e debilidades que

comprometiam, ainda nas origens, seu sucesso enquanto movimento social.

Um dos aspectos específicos do qual se discorda no tocante a essas

análises, além dos anteriores já elencados, como se verá logo a seguir – postulado

particularmente por certas vertentes da historiografia sobre as ligas – é a defesa,

que o perfil político revolucionário marcante, deve necessariamente figurar, nessas

lutas de resistência camponesa organizadas, especialmente no Nordeste, como

elementos imprescindíveis para caracterizar o fenômeno das ligas.

Na análise procedida por essas correntes, a luta por reconhecimento

político, contra o rebaixamento social e a proeminência de um perfil reivindicativo

presentes em outros movimentos, como de Matinhos no Piauí, descaracterizam o

movimento social das Ligas Camponesas e, ainda que representem uma ação

coletiva, uma luta organizada, são incapazes de formar uma nova identidade, como

as ligas de Pernambuco, por exemplo, conseguiram. Isso porque a grande maioria

desses estudos sobre os trabalhadores rurais como dito, apenas os focalizam como

figurantes, sendo subordinados à determinação estrutural das condições de

desenvolvimento da economia e da dinâmica vida política. Nessas análises a

realidade casa perfeitamente dentro dos modelos teóricos preconizados.

Finalmente, concordando com De Decca (1992) que, por sua vez,

corrobora com Hobsbawn, poucos temas historiográficos são tão controversos e

sujeitos à debate quanto o dos movimentos sociais.

Habermas (1981), Marson (1992), Touraine (2003), Melucci (1988) e

Luhmann (1996) são também autores que, embora com o olhar da sociologia,

254

confirmam a dificuldade que é traçar uma definição l suficiente e plausível para

“movimentos sociais”, que dê conta das múltiplas variações e amplitude de critérios

suficientes para abarcar essas experiências tão únicas e particulares.

Todavia, embora tenham todos eles teorias particulares sobre a questão

dos movimentos sociais, confluem para o mesmo postulado central nas distinções

entre o público e o privado, na afirmação da ideia de identidade, na politização da

vida privada e na luta por direitos, na medida em que, para esses estudiosos, os

movimentos sociais são a própria sociedade civil, que se coloca como agente de

pressão lutando dentro da legalidade de estado.

O levantamento das pesquisas existentes no estado permitiu constatar, a

partir de leituras mais aprofundadas, que mesmo em se tratando de estudos que se

ocupam da mesma temática e objeto, existem elementos suficientes que

particularizam e diferenciam essas pesquisas entre si. Tais especificidades

permitiram, ao autor da pesquisa em curso, proceder tanto uma critica ideológica

quanto epistemológica dos trabalhos produzidos bem como agrupá-los em três eixos

distintos.

O primeiro eixo contempla os estudos que caracterizam as ligas como

sendo resultado exclusivo do protagonismo dos camponeses, os únicos

responsáveis pela luta dos trabalhadores, que nessa visão é uma experiência

vitoriosa, mas sem qualquer poder de transformação politica e social.

Para este grupo de pesquisas, embora os camponeses sejam, conforme

aponta Moura (1986, p. 10) “sempre o polo mais oprimido da sociedade”, ainda

assim, são desprovidos de consciência política capaz de estabelecer uma relação de

nexo entre a miséria e o sofrimento por eles vividos com a estrutura de concentração

de terras dominante no Brasil e no Piauí de modo particular.

A atuação das ligas tem importância no sentido de solucionar algumas

demandas que surgem no cotidiano. Demandas, às vezes, mais complexas e outras

nem tanto. Também, na interpretação dessas pesquisas, os camponeses não são

auxiliados por nenhuma força política externa na organização de suas entidades e

se limitam a analisar o movimento em Campo Maior, não fazendo referência mais

profunda a nenhuma outra experiência ocorrida no estado.

255

Nesse grupo, enquadram-se as pesquisas: 1- “Ligas Camponesas no

Piauí: Município de Campo Maior. Uma História de Vida.” (1991), de Libonato de

Carvalho Rocha, Lurdes Carvalho e Joaquim Ângelo; 2- “Ligas Camponesas no

Piauí”. (2002) de Ana Cristina F. Muniz e Antônio Soares Farias; 3 – “Mobilizações

Camponesas: ruralização e enfrentamento na prática das primeiras organizações

sindicais agrárias campo-maiorenses (1950-1964)”, (2010), de Rômulo Oliveira Paz.

Para esses pesquisadores, a experiência camponesa de Matinhos, apesar do

desfecho final, é vitoriosa.

O segundo eixo de análise contempla um conjunto de duas pesquisas. A

mais substancial delas vem do campo da sociologia, trata-se de uma pesquisa de

mestrado. 1- “Sindicalização rural e mobilização camponesa na crise do populismo:

o caso do Piauí” (1994), de autoria de Antônio José Medeiros; 2- “Uma Liga

Camponesa na região dos Carnaubais: momentos emblemáticos na formação da

liga de Campo Maior (1950-1980)”, (2011) de Ricardo Reinaldo da Silva Calaça.

Nessa linha de análise, os camponeses são considerados incapazes de

arregimentarem, por si só, forças para fazer frente à exploração dos latifundiários,

necessitando de agentes mobilizadores externos, como a Igreja Católica e o Partido

Comunista.

Para uma dessas pesquisas, a primeira de autoria do sociólogo, o

movimento camponês nem mesmo deve ser configurado como Liga Camponesa e,

para ambas, trata-se de uma experiência derrotada. Esses pesquisadores também

defendem a ideia de que a Igreja Católica, sobre o argumento de “proteger o povo

de Deus”, empreendeu grande esforço no sentido de apoiar o sindicalismo rural

numa clara oposição ao movimento das ligas, considerado ponto de instabilidade no

meio rural piauiense. Ainda em relação à pesquisa de Antônio Medeiros, ressalta-se

a importância dada à prática populista pelos governos de então, entendidos pelo

autor como um dos elos explicativos para a mobilização camponesa.

Constituindo o terceiro eixo, estão as pesquisas que tributam ao

movimento social das Ligas no Piauí uma visão de luta vencedora. Nesse grupo, as

pesquisas já se apresentam emolduradas por uma leitura interpretativa que combina

e articula traços de uma tendência revisionista, na qual o foco principal não se

localiza na existência dos agentes mobilizadores externos, mesmo sendo

256

reconhecida sua presença, mas na ação organizada e articulada dos camponeses a

outras forças, a exemplo de algumas organizações partidárias.

Nessas pesquisas, as ligas são uma experiência vitoriosa, mas foram

articuladas a partir de investimentos dos comunistas e da influência do julianismo

dominante em Pernambuco e do trabalhismo incipiente que nascia no Piauí.

O principal trabalho nesse grupo é intitulado “Tempo de Esperança:

camponês e comunista na constituição das ligas camponesa no Piauí nas décadas

de 1950-1960”. (2015), de autoria de Ramsés de Sousa.

O segundo estudo que compõe esse grupo é intitulado: “Da Exploração à

Militância: entre memória e páginas; a liga camponesa em Campo Maior (1962-

1964)”. (2015). Trata-se de outra pesquisa que também tributa à luta camponesa no

estado um viés de resistência vitoriosa, mas que não reconhece em suas lideranças

suficiente capacidade política de agir, sem a influência de agentes mobilizadores

externos e nisso adota a mesma linha argumentativa já consagrada pela

historiografia dominante.

Nessa pesquisa, a liga de Matinhos em Campo Maior nasce da

tenacidade dos irmãos Lopes contra a exploração levada a efeitos pelos

latifundiários. Esse estudo também discute a cisão entre os camponeses que são

representados tanto pela liga quanto pelo sindicato que atua a partir da orientação

da Igreja Católica local. Trata-se de uma monografia de conclusão de curso de

autoria do historiador Ramiro Ibiapina.

A terceira pesquisa que compõe esse grupo é intitulada: “Na lei ou na

marra: contexto, trajetória e repressão no caso das ligas camponesas nordestinas

(1955-1964)”, de Gilmar Ferreira Viegas Júnior. Trata-se também de uma

monografia de conclusão de curso e, assim como a pesquisa de Ramiro Ibiapina,

explica a luta em Campo Maior a partir do avanço do capitalismo, da influência direta

do Partido Comunista e tem relação de causa com a miséria provocada

pelos desdobramentos de duas grandes secas no período. Nessa pesquisa, o

autor interpreta o fenômeno das ligas como sendo provocado principalmente pela

política de expulsão dos camponeses, levada a efeito pelos latifundiários em todo o

país.

Os primeiros estudos “LIGAS CAMPONESAS NO PIAUÍ: Município de

Campo Maior. Uma História de Vida” e “Ligas Camponesas no Piauí” foram

257

produzidos respectivamente em 1991 e 2002. Trata-se de dois artigos, sendo o

primeiro resultante de um trabalho apresentado em seminário de conclusão da

disciplina de História do Brasil, do Curso de Licenciatura em História (UFPI) e o

segundo apresentado no primeiro Encontro de Geografia Urbana do Piauí. São,

portanto, pesquisas produzidas por duas áreas diferentes, mais afins.

No artigo produzido por Libonato Rocha, Lurdes Carvalho e Joaquim

Ângelo, os autores não realizam um estudo aprofundado sobre o fenômeno das

Ligas Camponesas, pelo contrário, durante quase toda extensão da pesquisa,

limitam-se a narrar fatos e acontecimentos em torno das condições que deram

origem e permitiram a atuação da liga de Matinhos.

No trecho que se segue, é possível dimensionar as motivações e os

objetivos dos camponeses quando decidiram criar a Associação, sobre essa tomada

de decisão os autores assim se expressam:

“Foi aí que na localidade Matinhos, distante 18 km da sede do município de Campo Maior, área onde predominava um grande número de trabalhadores rurais sem terra e pequenos proprietários, que cultivavam lavouras de subsistência – arroz, milho, feijão e mandioca – e criavam pequenos animais, como: porco, cabra e ovelhas, lideradas pelo agricultor e vaqueiro Luiz Edwiges, sentiram a necessidade de serem reconhecidos como uma categoria profissional, como as demais já existentes na época [...]. Surgindo assim a Associação dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas de Campo Maior - ALTACAM” (ROCHA, CARVALHO e ANGELO, 1991, p .209)

Como se percebe, a liga passou a ser uma espécie de porta-voz dos

agricultores, especialmente os que a ela recorriam. O objetivo dos autores fixou-se

em “resgatar a história das Ligas Camponesas no Piauí”. O texto se mostra

claramente descritivo, apresentando baixo caráter analítico sobre o tema.

Para os autores, as ligas camponesas surgiram na região como uma

reação às precárias condições de vida nas quais viviam os trabalhadores. A

Associação nesse sentido é resultado da própria atuação dos lavradores, cuja

liderança coube à família Osório Lopes, especialmente dos irmãos José Ribamar e

Luiz Edwiges.

258

Os autores aludem, ainda, em certa altura do artigo, que a liga passou a interferir diretamente na vida dos agricultores prestando assistência. Nesse esforço, afirmam que: “A liga se preocupou também em resolver os problemas mais imediatos dos seus associados que por ventura viessem a se encontrar em dificuldades, como a preocupação de encontrar áreas de terra para implantação de lavouras, onde mesmo havendo resistência por parte dos proprietários, assessorados e apoiados pela diretoria da liga, faziam suas roças e pagavam a renda estabelecida em acordo” (ROCHA, CARVALHO e ANGELO, p. 218).

Outros fatos são narrados pelos autores, reforçando o caráter descritivo

do artigo. Ao analisar o conjunto de atividades desenvolvidas pela liga de Matinhos

em parceria com trabalhadores da Construção Civil, forjando, no entender dos

autores, uma aliança entre camponeses e operários, campo e cidade, na região de

Campo Maior, os autores afirmam que:

“A partir dessa unidade, com a participação do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil de Campo Maior, trabalhadores rurais e urbanos passaram a desenvolver atividades conjuntas, tendo como finalidade denunciar para toda a sociedade o nível de exploração da burguesia sobre a classe trabalhadora, surgindo daí a ideia de desenvolver concentrações populares nos centros urbanos. [...] Foi grande o Ato Público realizado em 1de maio de 1963.”

O artigo segue narrando os principais passos desenvolvidos pela liga,

bem como do conflito com a Igreja, das divergências com o sindicato de orientação

católica e se encerra com o desmonte da liga a partir da prisão dos líderes pelos

militares que tomam o poder em 1964.

Este trabalho tem o mérito de ser a primeira pesquisa realizada no estado

sobre as ligas. Entretanto, ao se desenvolver essencialmente a partir de depoimento

dos líderes, silencia a participação dos camponeses como classe social em

processo de organização.

Passados dez anos, outra pesquisa, agora emergida dos estímulos

advindos do debate em torno das abordagens teóricas sobre o mundo rural-urbano

produzido nos anos 2000, pela Geografia, os autores Ana C. F. Muniz e Antônio S.

Farias, concordando, assim afirmam na introdução de seu estudo, com os

postulados de Marques (2000), para quem:

259

“a forte presença dos movimentos sociais no campo tem tornado cada vez mais evidente a necessidade de elaborar uma estratégia de desenvolvimento para o campo que priorize as oportunidades de desenvolvimento social e não se restrinja a uma perspectiva estritamente econômica”.

Também os autores se beneficiam da argumentação de Carlos (2002),

quando afirma que:

“a reorganização do processo produtivo aponta para novas estratégias de sobrevivência no campo e na cidade, bem como para a presença dos movimentos sociais, os quais questionam a existência da propriedade que marca e delimita as possibilidades de apropriação e domínio tanto no campo quanto na cidade”.

O artigo dos autores fornece pistas consistentes sobre suas preferências

no sentido de explicar em território piauiense a presença do movimento social das

ligas camponesas. Para Muniz e Farias (2002, p. 05), não existem dúvidas quanto

ao principal fator que justifique a criação das ligas. Sobre elas, aduzem que:

“o processo de formação das ligas camponesas tem que ser entendido como uma manifestação de um estado de tensão e injustiças a que eram submetidos os trabalhadores rurais e as profundas desigualdades nas condições gerais de desenvolvimento capitalista no país. Esse processo foi marcado por duas grandes tendências, de acordo com as características das várias áreas do Nordeste. Portanto, onde havia predominância da monocultura, principalmente a canavieira, desenvolveu-se uma intensa política de expropriação dos camponeses, numa tentativa de transformá-los em assalariados, onde não permaneceram pagando o cambão e outros impostos.”

Para os pesquisadores, a justificativa para o surgimento desse tipo de

movimento está ancorada essencialmente na expansão do capitalismo para o

campo. A luta pelo lucro desmedido dos capitalistas, a condição de estado mais

pobre e os piores índices de qualidade de vida faziam com que essa expansão

capitalista, comum a todo Brasil, encontrasse aqui na região Nordeste e de modo

muito particular no Piauí as condições ideais para a ocorrência desses movimentos,

vistos pelos autores como políticos.

260

Embora essa pesquisa tenha centralidade no movimento social das ligas

camponesas, percebe-se sem muita dificuldade o viés explicativo do campo da

Geografia. O texto é muito atravessado por informações sobre meio, população,

vegetação, seca, etc.

Faz sentido, então, pelo menos sob a perspectiva da Geografia praticada

à época da elaboração do estudo sobre as ligas em Campo Maior, seu caráter

descritivo.

Essa marca, entretanto, não desqualifica a pesquisa e, em que pese ser

produzida, segundo um dos autores, para atender principalmente a demanda de um

Encontro de Geografia Urbana, configura-se como um importante estudo sobre uma

das principais formas de resistência do camponês piauiense aos avanços do

capitalismo selvagem.

Depois de praticamente duas décadas, surge nova pesquisa.

Trata-se de uma monografia de conclusão de curso. Intitulada “MOBILIZAÇÕES

CAMPONESAS: ruralização e enfrentamento na prática das primeiras

organizações sindicais agrárias campo-maiorenses” (1950-1964), de autoria do

historiador Rômulo Oliveira Paz. O autor apresenta sua pesquisa aos leitores da

seguinte maneira:

“As ligas camponesas foram associações de trabalhadores rurais criadas inicialmente no Estado de Pernambuco, posteriormente na Paraíba, no Estado do Rio de Janeiro, Goiás e em outras regiões do Brasil.[...] Foi um dos movimentos mais expressivos contra as relações de trabalho no campo e de luta pela reforma agrária. [...] no Nordeste brasileiro, onde as condições de vida da população camponesa eram de extrema pobreza e o avanço da monocultura da cana-de-açúcar e outras imposições capitalistas provocavam a expulsão do homem do campo.” (p. 9).

A maneira com o autor introduz sua pesquisa já fornece pistas da

orientação teórica que deverá perseguir no desenvolvimento de seu estudo. Ao

“uniformizar,” numa perspectiva de contextualização as ligas em Pernambuco, Goiás

e Piauí, por exemplo, o autor deixa transparecer que todos esses movimentos são

iguais em causa de existir, objetivos a alcançar e, em determinado momento, até na

composição social.

261

Com o desenvolvimento da pesquisa, porém, o autor anuncia que “o fato

de nossa historiografia tratar de forma tímida o assunto falou mais alto e por isso ele

se dispôs a pesquisar” (p. 10). Dito isso, o autor então apresenta a pesquisa, que é

constituída de três capítulos. O primeiro descreve o “surgimento e a trajetória das

ligas no Brasil”; o segundo intitulado “fragmentos da mobilização camponesa em

solo piauiense” trata da ocorrência das ligas no estado e o terceiro e último é

nomeado “as ligas camponesas em Campo Maior e seus desdobramentos na visão

de Luiz Edwirges”.

O desenvolvimento da pesquisa se faz a parir de um rápido debate teórico

sobre a origem e definição do termo “camponês”. Nesse empenho, o autor lança

mão de dois estudiosos da matéria. Primeiramente se apoia na definição

apresentada por SILVEIRA (2007) para quem:

“O termo ‘campesinato’ é de origem recente em português, e vem sendo

empregado principalmente no domínio das Ciências Sociais para significar o

conjunto de camponeses; é um substantivo coletivo [...].Deriva do adjetivo

“campesino”, que é sinônimo de campestre, de rústico. Os substantivos correlatos

são: camponês e campônio, isto é, habitante do campo, aldeão, indivíduo rústico”

(QUEIROZ, 1973, apud, SILVEIRA, 2007, p. 15).

Em outro momento da pesquisa, o autor faz uma crítica ao que ele

nomeia de “modernidade capitalista”. Nessa perspectiva: “a identidade social

camponesa tem se tornado ‘inoperante’, em face desse agente social transformado

agricultores no caldo da modernidade capitalista.[...], então o que estamos assistindo

é a morte do camponês, enquanto identidade social com poder explicativo no

universo agrário.” (p.15).

Dessa forma, busca identificar o camponês com alguém em extinção ou,

conforme o próprio autor afirma em certa altura do estudo, em “transformação”,

sendo caracterizado como agricultor familiar, assentado, lavrador ou simplesmente

trabalhador rural.

Sem apresentar muito nexo entre o debate teórico sobre o termo

camponês e a formação do movimento social das ligas, o autor quase que

instantaneamente adentra no período do governo Vargas, em que cita a criação do

262

Ministério do Trabalho e sua política de sindicalização rural. Nesse sentido, o autor

se apropria de análise proposta pelo historiador Marcos Villar (2006), para quem:

“em matéria de legislação trabalhista a fase da redemocratização representou duas importantes vitórias: a) em primeiro lugar, foram ampliados – através de um quadro de normas programáticas – outros direitos como o reconhecimento do direito de greve, repouso remunerado. [...] direito à indenização por antiguidade e à estabilidade do trabalhador rural; b) em segundo lugar, inclui a Justiça do Trabalho entre os órgãos do Poder Judiciário.”

Fazendo uma espécie de síntese do processo político brasileiro, o autor

tencionando estabelecer uma ponte entre a criação de vários partidos na fase da

redemocratização e o fenômeno das ligas camponesas, especialmente em

Pernambuco, onde foi, segundo ele, o nascedouro do primeiro núcleo das ligas

camponesas no país - símbolo da reforma agrária que os camponeses almejavam.

Ainda sobre a criação do primeiro núcleo e o acelerado processo de expansão das

ligas o autor assevera:

“A partir de 1959, as Ligas Camponesas se expandiram também rapidamente em outros estados, como a Paraíba, Rio de Janeiro (Campos) e Paraná, aumentando o impacto político do movimento. [...] Entre 1960-1961, as Ligas organizaram comitês regionais em cerca de dez estados da Federação. Em 1962 criou o Jornal A Liga, porta-voz do movimento em nível nacional.” (p. 24).

Para o autor, as Ligas constituíam-se num movimento único, porém com

variações e ligações orgânicas nos limites do Estado de Pernambuco, considerado o

berço do movimento na sua modalidade revolucionária.

Embora o autor considere que a experiência das ligas foi vitoriosa em

Pernambuco, onde se consolidou como força política, auxiliando inclusive

eleitoralmente os candidatos do PSB, admite também que a forte concorrência da

Igreja Católica através de um intenso movimento de criação de Sindicatos Cristãos

foi decisiva para enfraquecimento das ligas, que, embora vitoriosas, foram também

efêmeras.

No segundo capítulo, quando discute a ação das Ligas em solo piauiense,

o autor inicia fazendo uma breve biografia do líder camponês Luiz José de Ribamar

Osório Lopes, “Luiz Edwirges”. Nesse empenho, reporta-se a origem humilde de

263

filho de lavrador, pertencente a uma família de nove irmãos e um homem de poucas

letras.

A narrativa segue tratando de sua entrega em favor das causas sócias de

sua gente. Finalmente apresenta o Edwirges, líder camponês que, “sendo homem

de muita sensibilidade”, defende os trabalhadores e por isso se torna aos olhos dos

latifundiários da região e logo depois de atuar como presidente da liga de Matinhos,

entidade por ele criada para defender o camponês, torna-se também subversivo

para as autoridades governamentais de então.

Ao tratar de modo particular sobre a fundação da Liga de Matinhos –

ALTACAM - como ficou conhecida a entidade, o autor introduz o leitor da seguinte

forma:

“Depois da divulgação do edital de convocação, como era obrigado se fazer, todos ficaram sabendo do que iria acontecer, inclusive os proprietários de terra. [...]. Começou então verdadeira propaganda de ameaça aos trabalhadores agregados nas terras dos latifundiários. [...] Ameaçados de expulsão e de prisão pela polícia, o número esperado de 3000 mil trabalhadores, somente 620 aproximadamente compareceram”. (p. 35)

A partir do ato de fundação da liga, o texto segue narrando outros eventos

desenvolvidos pela liga. O mais importante teria sido realizado em 12 de maio de

1963. Sobre o episódio, o autor assim se posiciona:

“Diferente dos outros, que eram comemorados com festas, missas e solenidades cívicas, esse Ato Público foi iniciado com uma passeata saindo da localidade Riacho das Pintadas em direção a Campo Maior e fizeram várias concentrações. Uma parada foi feita em frente à Igreja Matriz e as outras duas em frente ao Mercado Público e a cadeia, respectivamente.” (p. 36).

Assim a trama que fundamenta a pesquisa é essencialmente

desenvolvida a partir de relatos do líder camponês Luiz Edwirges. Quase nenhum

debate teórico que complemente a fundamentação da pesquisa é apresentado.

Finalizando o estudo, o autor aduz que a Liga de Matinhos foi influenciada pela ação

política democrática do governador Chagas Rodrigues, que inclusive tinha por

conduta “abrir o palácio para o povo”. Desse modo, o autor conclui dizendo:

264

“a história das Ligas Camponesas de Campo Maior se confunde com a própria história das ligas no Piauí, assim também como foi a liga do Engenho Galileia, em Pernambuco, na sua relação com outras no interior daquele Estado”. (p. 39).

Como se percebe, a pesquisa que atribui a organização dos camponeses

de Campo Maior em particular, e do Piauí como um todo, inicia-se afirmando que as

ligas são um fenômeno social nacional com maior incidência no Nordeste, de onde

teria se espalhado pelos vários estados da região.

Outro aspecto revelador de certa fragilidade da pesquisa, em que pese se

tratar de um estudo introdutório e, talvez por isso superficial, é o fato de o autor

silenciar profundamente sobre a atuação dos trabalhadores rurais de Campo Maior e

das demais regiões vizinhas, onde a ALTACAM teria atuado em defesa dos

trabalhadores, defendendo-os dos latifundiários e, ao mesmo tempo, integrando-os à

sociedade, promovendo justiça social e democracia política, conforme afirma o autor

em sua conclusão.

Essa pesquisa, como já se afirmou, apesar de considerar a luta

camponesa vitoriosa, atribuindo aos agricultores o protagonismo exclusivo da luta,

pauta-se, ao final, pelo mesmo viés explicativo já canonizado na maioria das

interpretações. Nesse caso, os camponeses do Piauí não tinham consciência de seu

papel político e nem se percebiam como atores capazes de transformar de modo

consciente e determinado suas histórias, sendo a luta e as principais conquista

resultantes da atuação destemida e consciente dos irmãos Lopes, figura sem a qual

as ligas não teriam prosperado.

Nesse intuito, silenciam, assim como outros estudos da mesma

magnitude, a luta camponesa como um todo. Também para o autor deste estudo

uma das fragilidades da Liga de Matinhos foi não ter se consolidado e se convertido

num movimento revolucionário como ocorreu em Pernambuco

No conjunto de pesquisas que compõem a segunda linha de análise se

agrupam os estudos de Antônio José Medeiros e Ricardo Reinaldo da S. Calaça.

O primeiro trabalho tem suas origens emergidas das preocupações do

autor que, como sociólogo, ocupa-se principalmente em conduzir sua interpretação

da sociedade por meio de cortes conjunturais, bem como por tentar definir teorias

explicativas dos fenômenos sociais sem se preocupar profundamente com a

265

historicidade dos fenômenos sociais e suas respectivas causas de fundo,

interpretando-as a partir dos variados contextos sociais.

A pesquisa de Medeiros aborda o tema a partir da mobilização

camponesa como parte do processo de mobilização social, política e ideológica que

caracterizou a crise do populismo. O autor desenvolve toda sua argumentação a

partir de uma perspectiva que concebe a priori o papel, o lugar e a importância de

alguns sujeitos sociais, como por exemplo, do camponês. Para Medeiros vivia-se

“um momento quente” da história brasileira.

A tese do sociólogo se desenvolve a partir da compreensão de que a

Revolução/Golpe de 1930 resultou no deslocamento da tradicional oligarquia

paulista do centro do poder. A partir de então nenhum dos setores sociais a ele

articulados e vitoriosos teve condições, isoladamente, de legitimar o novo regime ou

oferecer uma solução para a crise econômica instalada. Essa conjuntura gerou na

interpretação do sociólogo um vazio de poder que forjou um “Estado de

Compromisso”. Estado este que inicialmente suportou as demandas e pressões,

mas que no extremo da tensão social, exigiria transformações mais profundas,

estruturais inclusive, que o levaria ao seu desmonte.

No arcabouço teórico montado pelo pesquisador, o conceito de populismo

e o processo de sindicalização rural são tomados como base para explicar todo o

processo de “incorporação das massas rurais”, que acabaram por criar um ambiente

formalmente democrático, o que pressionou ainda mais as elites e os militares

ensejando as condições para o golpe civil-militar instituído em 1964.

Embora o período de 1946-1964 tenha sido marcado pela ampliação da

participação de membros do mundo do trabalho na política institucional, por meio da

extensão dos direitos políticos às mulheres, por exemplo, tal “avanço” é

‘compensado’ de diversas formas. Destaca-se a conservação da exclusão dos

analfabetos do processo político formal, o controle das entidades sindicais e sua

redução à condição de células do estado e a política ideológica de massas,

amplamente viabilizada por meio dos novos e disseminados veículos de

comunicação de massa.

A tese defendida pelo sociólogo é estruturada a partir do binômio agente

mobilizador de um lado e massa rural mobilizada do outro. Em sua argumentação,

266

fica evidente a capacidade política, a consciência social e ideológica do agente

mobilizador e a completa ausência desses atributos aos trabalhadores rurais.

Nessa perspectiva, os agentes mobilizadores são principalmente o

Estado, o Partido Comunista, a Igreja Católica e, em menor grau de importância, o

Partido Trabalhista Brasileiro. Os trabalhadores são nessa lógica explicativa

destituídos de sua condição histórica de sujeito pensante. São meramente uma

“massa rural sem percepção de si, sem consciência social e política”. O sociólogo

tem para essa leitura a seguinte explicação:

“O processo de constituição dos camponeses em sujeitos sociais e políticos era embrionário no pré-64. As condições de dominação social e marginalização cultural em que representavam obstáculos a esta constituição. A sua situação de ‘comunidade tutelada’ favorecia o localismo e outros tipos de lealdade que a de classe. Por isso considerado da perspectiva do dinamismo político-nacional, a multiplicidade de comunidades ganhava o caráter de massa rural. Talvez por isso, a transformação das massas rurais em sujeitos ganhava a forma de mobilização (parceiros fantasmas de que fala Weffort) mais do que de movimentos sociais (parceiros efetivos).”

As organizações sociais instituídas no estado, como a Associação dos

Trabalhadores de Campo Maior-ALTACAM, a Associação de Trabalhadores de

Teresina- ALTATE e os vários sindicatos fundados no mesmo período são

compreendidos pelo sociólogo como resultante de forças mobilizadoras externas e

jamais seriam, na visão do sociólogo, resultante originalmente da maturidade social

e organicidade política dos trabalhadores. Todas elas, no seu entendimento, foram

resultantes de um longo e bem elaborado processo de atuação de setores da Igreja

Católica e relação a alguns sindicatos, posto que em muitos outros casos o estímulo

veio do governo através da Superintendência da Reforma Agrária - SUPRA e do

Conselho Nacional de Sindicalização - CONSIR.

Em relação às associações, tem-se que algumas lideranças ligadas ao

Partido Comunista tiveram reconhecida participação na organização e atuação da

entidade que representava os trabalhadores de Teresina – ALTATE. Essa

participação, no entanto, não se deu em relação à associação de Campo Maior -

ALTACAM, - liga Camponesa de maior expressão no Piauí e nem em outras que se

formaram, por exemplo, em Parnaíba e Regeneração.

267

Conforme dito, o autor fundamenta seu discurso argumentativo a partir do

conceito de populismo que se converte, então, em uma das chaves explicativas para

caracterizar a política, mostrando sua interação crescente com a conjuntura

nacional. O populismo nesse sentido se apresenta como “Estado de compromisso”

que, com a urbanização e democratização, torna-se um “Estado de Massa”. E,

portanto, “o apelo às massas que se torna fonte de legitimação do novo poder

político” (Weffort:1978, p. 70).

Ainda em relação ao populismo, o autor se apoiando no mais das vezes

em Weffort apresenta sua interpretação sobre essa política aferindo, inclusive sua

etapa, que culmina com o reformismo nacionalista de João Goulart. Para o

sociólogo, tomando por empréstimo os dizeres de Weffort (1978, p. 37) para quem o

reformismo assistencialista-nacionalista pagou seu tributo à época, pois “entre o

populismo dos demagogos e o reformismo nacionalista de 1964 sempre existiram

afinidades profundas de conteúdo”.

A outra ferramenta explicativa utilizada pelo autor para consolidar sua

tese que imputa aos trabalhadores do estado “incapacidade política” para agir sem a

efetiva presença dos agentes mobilizadores é a política de mobilização. Assim, a

experiência organizativa dos trabalhadores, principalmente rurais, no Piauí, que é

descrita como derrota, somente foi possível pela conjugação desses dois fatores.

A pesquisa levada a efeito pelo sociólogo se constitui, a despeito da

leitura preconceituosa e reducionista que apresenta sobre o papel da classe

trabalhadora, no mais substancioso estudo sobre o tema, campo e objeto,

sindicalização rural. O autor inclusive não adota a nomenclatura Liga Camponesa,

que no seu entender não se aplica à experiência desenvolvida no estado.

Consolidando o grupo de pesquisas que compõe a segunda linha de

análise – que tributa aos camponeses “incapacidade política” de agir e por isso

necessitam de agentes mobilizadores externos e ainda se apresenta como uma

“experiência derrotada” tem-se o estudo de autoria do historiador Ricardo Reinaldo

“Um LIGA CAMPONESA NA REGIÃO DOS CARNAUBAIS: momentos

emblemáticos na formação da liga de Campo Maior (1950-1980)”. Trata-se de um

trabalho apresentado como requisito para conclusão da graduação em História da

Universidade Estadual do Piauí, campus Heróis do Jenipapo em Campo Maior, PI.

268

Composto por dois capítulos, a análise se propõe a estudar a “Formação

da liga de Matinhos” a partir do contexto histórico local e nacional, que permitiu a

organização dessas experiências organizativas, passando pelas primeiras

conquistas e principais dilemas. No segundo capítulo, o autor postula discutir “O

modo de atuação da Igreja Católica” no meio rural em oposição às ligas, criando

para isso o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Campo Maior, identificado como

sindicato católico.

Logo na introdução de sua pesquisa, o autor revela sua linha de análise

quando afirma que:

“em alguns momentos do corpo do trabalho se perceberá a relação entre a Liga de Matinhos e do engenho Galileia, no município de Vitória do Santo Antão, fundada em 1º de janeiro de 1955, denominada (SAPPP) – Sociedade Agrícola e Pecuária de Plantadores de Pernambuco [...] daí surgiram outras ligas em diversos municípios e outros Estados” (CALAÇA, 2011).

Para o autor, a experiência organizativa no Território dos Carnaubais não

teve, apesar de apontar alguns pontos de convergência e particularidades, as

mesmas causas de fundo que fizeram emergir as ligas na Paraíba, Pernambuco e

em outros estados. Nesse empenho, aduz que: “O movimento camponês dos

‘Matinhos’ em Campo Maior tem algumas particularidades que a liga de Galileia não

tem; a ausência da penetração capitalista no campo e a falta de apoio político”.Para

o autor, esses dois aspectos são suficientes para conferir ao movimento emergido

de Matinhos um perfil que o torna diferente das demais experiências ocorridas

dentro e fora do estado.

Embora se trate de um estudo que não exige muito aprofundamento, até

pelo fato de se tratar de trabalho em nível de graduação, cujo objeto central são as

ligas, recomenda-se maior cuidado no processo de apresentação dos argumentos

que servem de sustentáculo à pesquisa.

Nessa perspectiva, a partir de uma leitura mais atenta, identificaram-se

algumas contradições que sugerem algumas reflexões; se não vejamos: O que o

pesquisador estaria aludindo em relação à “ausência de penetração do capitalismo

no campo? Ou ainda à falta de apoio político. O seria para o autor “apoio politico”?.

269

Ao desenvolver sua pesquisa que é ambientada principalmente no

período de administração do então governador Chagas Rodrigues, o autor afirma

que: “Chagas Rodrigues, governador do Estado nesse período, por se envolver com

a questão da reforma agrária e ter apoiado a instalação das ligas no Piauí, não foi

poupado da acusação de ser comunista”. (CALAÇA, p. 5).

Observa-se que o pesquisador infere que a acusação de ser comunista,

que foi imputada ao governador Chagas pelos latifundiários e também pela imprensa

local, tem origem no seu apoio à questão da reforma agrária e no apoio às ligas.

Ocorre que na introdução de seu estudo, o autor afirma que um dos

traços que distingue a liga de Campo Maior das demais, inclusive em relação à de

Pernambuco, foi o fato de não ter a Liga de Matinhos recebido apoio político externo.

Percebe-se nesse postulado uma contrariedade.

Em outro momento de seu trabalho, o autor aduz que os partidos políticos

nunca tomaram os problemas sociais que afetavam os trabalhadores rurais como

bandeira de luta porque possuíam em seus quadros latifundiários ou eram esses

partidos controlados por setores ligados ao campo e pela classe dominante. Essa

condição provocaria um fosso entre esses partidos e classe camponesa.

Novamente o autor se posiciona de modo dúbio em relação ao apoio

político que as ligas não teriam recebido, segundo ele, de nenhum partido político.

Essa contradição fica patente quanto afirma que:

“O Partido Comunista Brasileiro (PBC) se tornou o único partido político a dar apoio aos problemas dos camponeses, colocando em seus manifestos ser necessário um movimento operário-camponês, mas caberia ao operariado urbano o comando da revolução comunista ficando o camponês em segundo plano.” (CALAÇA, p.7).

Esse é seguramente mais um aspecto a ser problematizado na pesquisa,

isso porque o autor não deixa claro em sua argumentação quando se refere ao

apoio político dos comunistas aos movimentos sociais, se se reporta ao apoio dos

comunistas à experiência das ligas no Piauí ou em outras unidades federativas.

Por analogia, postula-se que o autor está se referindo ao apoio dos

comunistas na Paraíba ou em Pernambuco, posto que no Piauí o autor sugere não

ter havido apoio externo de nenhuma força política. A pesquisa segue indicando a

270

presença de outras forças políticas, como o PDC, que teria apoiado em todo o país o

processo de legalização de muitas entidades junto ao Ministério do Trabalho,

especialmente durante o governo de João Goulart.

No segundo capítulo da pesquisa, o autor aborda a atuação da Igreja

Católica no sentido de fazer frente à Liga de Matinhos, que no entendimento da

instituição recebia orientação de forças políticas subversivas. Nesse empenho, o

autor cita a utilização do semanário “O Dominical”, mais importante instrumento da

Igreja que, associado a outras práticas, ajudava a enfraquecer a força política da

Liga de Matinhos no meio rural de Campo Maior, assim como de outras entidades no

interior do estado.

Em outro momento da pesquisa, o autor aduz que as lideranças de

Matinhos, Luiz José Osório Lopes, conhecido com Luiz Edwiges, e seu irmão José

Ribamar na época estudante de Direito no Ceará, mantinham contatos com outros

estudantes na capital Teresina para solicitar orientação jurídica para melhor se

defenderem contra as investidas dos latifundiários e da própria Igreja que já se

movimentava para criar um sindicato católico. Sobre o posicionamento da Igreja, o

autor assim se posiciona:

“A Igreja almejando barrar a atuação do movimento camponês a partir das ligas cria o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campo Maior, sendo este reconhecido pelo Ministério do Trabalho, através de Carta Sindical número 193816/93 de 1963”. (CALAÇA, p. 13).

Ao tratar das lutas e conquistas levadas a efeito pela Liga de Matinhos, o

autor, embora tribute ao movimento uma leitura derrotista, assevera que antes de

sofrer o golpe final desferido pela ditadura civil-militar instituída em 1964, os

trabalhadores tiveram algumas conquistas, ainda que parcial e somente em algumas

regiões do estado. Remetendo a tais conquistas, o autor postula que:

“As primeiras vitórias de Matinhos foram sobre essas duas formas de renda. A renda do trabalho é extinta do meio rural campo-maiorense e a renda em produto não poderia ser superior a uma quarta (35 kg) por linha cultivada e segue sustentando a ideia de derrota porque como os acordos eram na maioria verbais os proprietários nem sempre cumpriam“. (CALAÇA, p. 18)

271

Na conclusão da pesquisa, o autor afirma que a luta dos camponeses foi

importante no sentido de conquistar direitos, mas foi mais importante ainda na

perspectiva de organizar a classe trabalhadora e promover maior nível de

conscientização e respeito por parte dos principais oponentes das ligas. Ainda nessa

perspectiva o autor infere que:

“Assim, fica evidente que se não fosse a atuação dos jovens advogados no serviço de orientação das demandas junto aos poderes constituídos, como a Assembleia e os Tribunais, o papel político jogado por alguns partidos políticos e a atuação destemida da família Osório Lopes, a derrota da liga seria ainda humilhante”( p. 36).

Levantados todos esses aspectos da pesquisa, fica patente no entender

deste pesquisador que o estudo aqui examinado apresenta outras limitações.

Apesar de autoproclamar um trabalhado inovador baseado em fontes orais e na

história vista de baixo, o autor somente faz referência a dois estudiosos dessa

corrente de pesquisa e três depoimentos.

O baixo teor analítico com predomínio de aspectos descritivos também

revela outra fragilidade da pesquisa. Entretanto, em que pese essas observações, o

trabalho tem o mérito de tentar se converter em um estudo que cumpra, dentre

outras a função de colaborar com o fortalecimento dos movimentos sociais hoje.

Os dois últimos estudos levantados por esta análise sobre as Ligas

Camponesas representam também as mais novas pesquisas produzidas no estado.

Ambos são produzidos por historiadores que militam em movimentos sociais, sendo

um deles advogado militante do Partido Comunista e assume publicamente sua

posição ideológica quando da produção do trabalho agora em análise.

Trata-se de uma dissertação de mestrado, muito bem fundamentada, cujo

título é: “Tempo de Esperança: Camponeses e Comunistas na constituição das ligas

no Piauí”, de autoria de Ramsés Pinheiro. A segunda pesquisa é uma monografia de

conclusão de curso, intitulada “da Exploração à Militância: entre memórias e

páginas”, de autoria do historiador Ramiro Ibiapina.

Ambas são pesquisas que se fundamentam principalmente na história

vista de baixo e na metodologia da história oral. Também dialogam com outras

disciplinas e representam estudos numa linha da história social.

272

Esses estudos atribuem à luta dos camponeses um viés de experiência

vitoriosa e tentam explicar a articulação entre os camponeses e outras forças

políticas como comunistas e trabalhistas numa perspectiva de troca de experiências,

sem atribuir a nenhum dos lados maior ou menor valoração ou importância política

no processo. A primeira obra, em que pese sua defesa afirmativa acerca da

presença de lideranças comunistas na organização da Liga de Matinhos, é

seguramente o estudo mais substancioso sobre o objeto ligas camponesas no

estado.

O pesquisador introduz sua pesquisa reconhecendo que o tema das Ligas

Camponesas ainda é pouco estudado no estado. Em seguida, formula sua hipótese,

segundo a qual “a formação das ligas camponesas ocorreu a partir da confluência

de empreendimentos cotidianos de comunistas e camponeses piauienses” (SOUSA,

2015, p. 16).

A pesquisa é dividida em seis capítulos, nos quais o autor afirma a partir

da leitura de autores internacionais (E. P Thompson, E. Hobsbawn e Raymond

Williams,) entre outros autores nacionais (José de S. Martins, Sidney Shalhoub,

Socorro Rangel, etc) e autores locais (Antônio J. Medeiros, Damião Rocha,), que

não partirá de uma ideia fechada sobre o conceito de ligas camponesas e, muito

menos, sobre o perfil de cada movimento organizativo ocorrido no interior do Brasil e

principalmente no Nordeste.

Com essa promessa, o autor desenvolve sua argumentação

demonstrando muita leveza e sabedoria na feitura de cada um dos capítulos que

compõe sua pesquisa. No primeiro capítulo, o pesquisador cita a pesquisa da

professora Socorro Rangel para, concordando com sua tese, criticar as leituras de

caráter sociológico produzidas na década de 80 que interpretam a experiência das

ligas como “experiência derrotada”.

Ainda no primeiro capítulo, o autor se apropriando da obra de Raymond

Williams – “O Campo e a Cidade na História e na Literatura”, para criticar a partir da

percepção desse autor as visões distorcidas e preconceituosas que a cidade elabora

sobre o campo. Para o autor é preciso fazer um exercício de desconstrução desse

caminho e reconstruir outros, a partir das próprias impressões.

273

Nessa perspectiva, o autor infere a partir da leitura de Hobsbawn e

Thompson a necessidade que tem o pesquisador de formular novos

questionamentos e eleger novos objetos e fontes para fugir dos modelos

estereotipados que circulam e podem conduzir o pesquisador menos atento a

deslizes que retiram do objeto e da pesquisa a transparência necessária para uma

análise coerente, lúcida e minimamente eivada de vícios e preconceitos

interpretativos.

Em relação ao conjunto de fontes e metodologias utilizadas para conferir

a este estudo um grau satisfatório e seguro no sentido dos resultados propostos, o

autor afirma que:

“este trabalho é atravessado pelas contribuições do campo de estudos conhecidos como “História vista de baixo”. [...] ao assumir essa perspectiva, ressalta não apenas a importância que atribui às pessoas comuns, principalmente aos camponeses piauienses, mas também a sua preocupação com algumas questões norteadoras elaboradas nesse campo de estudos, sobretudo no tocante à abordagem do social como processo forjado a partir das contradições e da luta de classe.”(SOUSA, 2015, p. 25).

Na produção do segundo capítulo, centrado principalmente no processo

eleitoral que elegeu o governador Chagas Rodrigues, o autor pondera sobre a

utilização de jornais locais, tanto os comerciais quanto os de temática específica.

Nesse empenho, assim se posiciona:

“as escolhas metodológicas utilizadas, a exemplo da minha abordagem sobre a História Oral e História Política ou sobre a metodologia empregada na análise de determinadas fontes, como as impressas – jornais, processos judiciais, ou orais, como depoimentos, serão melhor discutidos ao longo de cada capitulo.” (2015, p. 27).

Assim o autor desenvolve toda sua pesquisa estabelecendo um diálogo

entre as fontes e os referenciais teóricos selecionados sempre com vistas a revelar a

“multiplicidade de experiências” e “a pretensão de manter e ampliar os valores de

solidariedade, resistência e esperança, cada vez mais necessários em nosso

presente onde a concentração da propriedade ainda alcança níveis exorbitantes”.

(2015, p. 75).

274

O terceiro e o quarto capítulos são destinados principalmente para a

análise de eventos desenvolvidos pelos camponeses. Dentre os quais, I Congresso

Sindical de Trabalhadores e Camponeses do Piauí e a participação de lideranças

comunistas nesses e noutros acontecimentos que mostram a organização e a troca

de investimentos, na visão do autor, fundamentais para o desenvolvimento das ligas

no Piauí. Neste capítulo ainda, o autor faz referencia às experiências de Teresina,

Parnaíba e Campo Maior.

Os dois últimos capítulos, em especial o quinto, no qual o autor faz um

estudo mais detalhado da experiência organizativa desenvolvida nos carnaubais e

reconstitui a saga da família Osório Lopes na luta por acesso à terra, revelam-se

fundamentais para a análise em curso.

Na visão desse autor, foram determinantes para a construção de um

importante capítulo na história politica do Piauí: a atuação da Arquidiocese de

Teresina, especialmente por meio de Dom Avelar e suas múltiplas investidas no

sentido de combater as ligas, o governo populista de Chagas Rodrigues e seu apoio

declarado aos camponeses, o ativismo das oposições e a capacidade política dos

camponeses de arregimentarem forças a partir da aliança com os comunistas.

Finalizando, projeta um elenco de considerações sobre o lugar dos

camponeses e das ligas nesse processo de luta pela terra. Também convoca o leitor

para, em julgando pertinente refletir com ele sobre o papel do golpe militar e dos

fatos que marcaram a vida da sociedade brasileira nos anos que se seguiram sob o

tacão da ditadura.

A última pesquisa dentro dessa abordagem que analisa a luta camponesa

sobre o símbolo de uma caminhada vitoriosa, e que também considera esse

segmento social como capaz de entender a conjuntura política e de construir seus

próprios projetos, é de autoria de Ramiro Ibiapina. Trata-se de um estudo que

também se declara tributário de uma visão considerada dentro da História Social.

Estruturada em dois capítulos, é também uma pesquisa produzida dentro

da perspectiva da chamada história vista de baixo com adoção principalmente de

fontes orais. Focada essencialmente na Liga de Matinhos em Campo Maior, esse

estudo, segundo o próprio autor, visa principalmente: “entender que a experiência

275

das ligas no Piauí não pode ser atribuída às influências da Liga Camponesa de

Pernambuco” (IBIAPINA, 2014, p.12).

No primeiro capítulo, o autor discute a origem das ligas e, nesse

empenho, apoia-se nas análises já consagradas nacionalmente. Entretanto, ao

desenvolver sua argumentação, busca elementos próprios e, a partir das muitas

matérias jornalísticas, das referências teóricas e das fontes, construir sua versão

sobre o processo de formação e atuação das ligas no Piauí.

A hipótese do autor é que a Liga de Matinhos foi uma experiência

vitoriosa, que recebeu investimentos de atores políticos externos à realidade dos

camponeses, mas que tais investimentos somente aconteceram porque os

camponeses já eram percebidos, graças ao ambiente político criado pelo governo de

Chagas Rodrigues, como uma importante no sentido de acelerar o processo de

reforma agrária defendido pelas forças progressistas do Estado e do Brasil como um

todo.

A pesquisa também é atravessada por um forte viés descritivo. A narrativa

de fatos como a fundação da entidade, a comemoração do primeiro aniversário, a

fundação de alguns núcleos nos arredores de Campo Maior e a grande passeata

comemorativa do primeiro de maio de 1962, data comemorada pela primeira vez

com os trabalhadores, discutindo politicamente sua exploração e as possíveis

estratégias de luta para superação daquelas precárias condições de vida.

Também tem o mérito de fugir, pelo menos parcialmente, das visões

generalizantes e que tributam à experiência das ligas uma visão uniformizante,

sempre ligada ao Partido Comunista, sendo ainda os estados de Pernambuco e

Paraíba os ambientes históricos, na visão do autor, ideais para forjar esse tipo

resistência política e de classe. Ainda no seu entendimento, as ligas originárias do

Piauí, Ceará e Maranhão têm outros traços igualmente marcantes e particulares,

conferindo as mesmas singularidades e originalidade.

Subjacente à analise que se procurou desenvolver sobre as ligas a partir

das pesquisas selecionadas, está colocada a questão do desenvolvimento do

sistema capitalista no campo, desenvolvimento esse que, no Brasil e de modo muito

particular no Nordeste, tem se processado sem qualquer arranhão na estrutura

agrária.

276

Esse processo foi historicamente possível em razão, principalmente, da

aliança dos muitos interesses dominantes, fossem eles agrários ou não. Interesses

esses que têm se expressado politicamente através de grupos industriais

,agropecuários ou simplesmente de latifundiários.

Nesse processo de desenvolvimento, um dos marcos principal é a

progressiva subordinação da terra ao capital, o que estimula diversos fenômenos

sociais, que são ao mesmo tempo representativos de um mesmo processo. São

exemplos: expulsão dos agregados, cujas terras deverão ser ocupadas com outros

fins, submissão da produção do pequeno agricultor, destituição do “morador” das

condições que lhe permite a produção de seus meios de sobrevivência,

rebaixamento social do agricultor e de toda sua família, etc.

É nesse contexto que surgem as diferentes experiências das ligas

camponesas, que como movimento social rural, expressam as contradições de

classe e do desenvolvimento do capitalismo no campo seguindo condições e

circunstâncias próprias que levaram a um fazer-se particular, não alcançado pelas

leituras generalistas que buscam iluminar a experiência de Matinhos e muitas outras

a partir da experiência de Pernambuco, forçando uma padronização impossível.

Buscou-se, portanto, uma análise tanto do fazer-se da narrativa

acadêmica local, quanto do modo como essas narrativas tem apresentado na quase

totalidade dos estudos selecionados. Constatou-se a partir da crítica empreendida,

que as pesquisas não contemplam a particularidade da experiência local, pelo

contrário, negam enquanto conceituação, o fazer-se da experiência organizativa de

Matinhos que é, à sua maneira, distinto e particular dentro das condições

circunstanciais e específicas do território dos carnaubais.

277

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Aumenta o número de assentamentos em Sigefredo

Pacheco” (Portal 180graus, 09/02/2012).

“Será inaugurado brevemente o Assentamento São Raimundo. O

assentamento abriga 29 famílias. Este assentamento é o décimo sexto em Sigefredo

Pacheco, município que tem o segundo maior assentamento do Piauí. “Santo

Antônio dos Campos Verdes”, que tem 357 famílias com capacidade para pelo

menos mais 200. Com uma área de 10 mil hectares a fazenda que pertencia ao

deputado Januário Feitosa foi considerada improdutiva e desde então vem sendo

objeto de luta. Em 1995 lideranças do movimento sindical rural de Campo Maior e

Sigefredo Pacheco iniciaram a luta pela desapropriação da fazenda. Finalmente em

1996 o INCRA sancionou o decreto de desapropriação”

O leitor pode estar se perguntando, Porque inferir nas considerações

finais uma noticia sobre o aumento no numero de assentamentos no Piauí? Primeiro

para consolidar o ponto de partida do autor quando iniciou este estudo evidenciando

a posição da Liga de Matinhos que lutava pela conquista e manutenção de terra;

segundo porque o aumento no numero de assentamentos na cidade de Sigefredo é

bastante emblemático e significativo, já que foi justamente nessa região que surgiu a

principal experiência organizativa de trabalhadores rurais no Estado.

Finalmente, por que sendo o Piauí um dos Estados onde a concentração

fundiária é ainda muito intensa e exclui, por isso mesmo, do direito de exercer sua

cidadania o camponês e suas organizações, sujeitos principais dessa pesquisa, é

profundamente animador e alimenta de esperança a todos quantos possam se

envolver nessa causa, noticias como esta, que no limite revelam, ainda que em grau

de insuficiência, que propriedades estão sendo repartidas, distribuídas e mais gente

está conquistando não só o direito de ter um pedaço de terra, tá obtendo vida e

dignidade.

E, portanto, por acreditar que essa luta é de todos e que ela é constante

que se aceitou o apelo desafiador de Monsenhor Chaves para reescrever, a história

do Piauí conforme ele conclama:

278

“Compreender a nossa história a partir do povo, a partir do pobre, é dar um instrumento de interpretação às forças de libertação e conscientização atualmente vivas no Brasil, e ao povo uma consciência histórica. A tarefa é complexa, difícil, mas não impossível.”( Autor)

Foi, então, a partir de muitos questionamentos, problematizações sobre

os consensos, não acreditando no óbvio e no silêncio sobre o tema que se andou

muito no fio da navalha, tentando elaborar uma pesquisa de fôlego que se colocasse

de modo decidido e em certa medida radical na contramão da historiografia, que

concebe a experiência das Ligas Camponesas como um processo pré-determinado,

aprofundando o acirramento político que conduziu ao golpe de 1964.

Procurou-se, portanto, abordar neste estudo que, naquele contexto de

lutas, tensões e também de vitórias e derrotas, as possibilidades vivenciadas pelos

camponeses no Piauí eram ilimitadas. Talvez por isso existam diferentes leituras

sobre o que foram como se estruturaram e evoluíram as diferentes experiências

organizativas das Ligas Camponesas no Piauí.

Como esse movimento social se relacionou com o Estado, especialmente

na gestão dos então governadores Chagas Rodrigues e Petrônio Portella e, a partir

desse relacionamento, quais as respostas que as instituições vinculadas ao aparelho

estatal deram às reivindicações levadas a efeito por esses movimentos sociais. Isso

porque seu desenvolvimento é muito condicionado pela forma como o estado

responde, atendendo ou não às suas primeiras reivindicações.

O que se fez neste estudo foi pesquisar em detalhes as condições de vida

das diversas formações sociais, particularmente as de Campo Maior, postulando

alargar os horizontes conceituais e as possibilidades de pesquisa – movimentos

específicos, processos de trabalho, a vida no campo – evidenciando que os

camponeses não precisavam de uma vanguarda revolucionária para percorrer seu

próprio caminho como atestam muitas pesquisas já superadas pelo seu caráter

abstrato e ausência de engajamento empírico.

Partiu-se da premissa que o movimento poderia começar com uma

configuração meramente reivindicativa e imediata e, dependendo da maneira como

o estado respondesse às suas demandas, ele poderia parar, refrear, caso fossem

positivas as respostas às suas demandas ou evoluir e se transformar, se

279

reconfigurar, caso a resposta do estado fosse negativa. Nesse caso, os movimentos

podem se transformar em políticos ou de classe e, assim, construir sua fortuna

política.

Dentre as conclusões possíveis deste estudo sobre as Ligas Camponesas

no Território dos Carnaubais, cita-se que os camponeses organizaram-se da forma

que podiam e sabiam pela defesa da posse e manutenção das terras, assim como

pelo reconhecimento político contra o poderio e as constantes e cada vez mais

violentas investidas dos latifundiários. Também se percebeu que os trabalhadores

rurais do Piauí conseguiram forjar formas de organização e resistência capazes de

se contrapor aos ditames unilaterais dos latifundiários e do estado, como agentes

históricos protagonistas de experiências únicas

Em termos culturais, no caso dos sertões de dentro, não é recomendável

pensar em um campesinato que conserve traços feudais sem vínculos com a

exploração capitalista. As relações que os camponeses de Campo Maior tinham com

o estado são muito evidentes: rádio, associações, sindicatos, partidos, relações

econômicas (mercado) e políticas (eleitorais) entre outros elementos “modernos” e

de consumo estão presentes cotidianamente em suas vidas.

As ações e resistências dos camponeses foram inventadas por ocasião

da luta, e não remetiam às estratégias e táticas utilizadas pelos antepassados. Por

fim, os resultados históricos foram distintos porque, efetivamente, os camponeses do

Piauí de modo geral desenvolveram uma experiência exitosa e bastante particular,

distinguindo-se das muitas outras levadas a efeito interior do Brasil.

Nossos sujeitos históricos são os camponeses que, por conta da miséria,

do sofrimento, da humilhação que lhes eram impostos, lutaram por uma vida digna,

numa experiência única. A classe a que pertence esses trabalhadores tem suas

especificidades de acordo com cada contexto, constituído de processo histórico

próprio, logo não pode ser homogênea nos variados tempos e espaços. Em cada

recanto do país, tem-se um camponês de carne, osso e dente, um camponês

diferente.

Este estudo revela, portanto, que não podemos ignorar o

desenvolvimento sócio-político do interior e mais ainda, que as ligas falaram em

280

nome de um amplo e diversificado conjunto de trabalhadores que iam desde

pequenos proprietários, arrendatários, foreiros, meeiros, todos associados à

produção de subsistência e para o próprio mercado interno local.

Outra conclusão possível levantada por esta pesquisa é que a politização

dos trabalhadores rurais se transformou em algo de muito valor para todas as forças

políticas, dos comunistas, passando pela Igreja até os coronéis. A sindicalização, a

reforma agrária e outras iniciativas entraram a contrapelo na agenda nacional,

criando uma dinâmica sócio-política que trouxe novas oportunidades para os

trabalhadores rurais.

Entre os “amigos” da sindicalização, a luta foi duríssima e rendeu frutos. A

Igreja, o Estado, as Ligas e os Partidos Populistas se colocaram como

representantes “legítimos” dos trabalhadores rurais. Nesse empenho, teve-se uma

variação muito grande de entidades e organizações, que em razão da crise política,

econômica e social instalada, abraçaram a causa como se dela fossem “donos”. O

peso do estado como ator político no campo, nesse contexto, cresceu muito.

Em 1962, foi criada a Superintendência da Reforma Agrária (SUPRA) e,

em 1963, o estado aprovou a criação da Confederação Nacional dos Trabalhadores

na Agricultura (CONTAG), que passa a agrupar camponeses e assalariados do

campo em sindicatos de base municipal reunidos em Federação em nível estadual,

com o objetivo de manter o movimento sindical sob sua tutela.

Nessa nova conjuntura criada pelo golpe, o sindicalismo se reestruturou

sob o planejamento da CONTAG. O clima de medo, insegurança e repressão

reinante somado à desmobilização do período levou essa entidade a optar pela luta

no sentido do cumprimento dos direitos já assegurados na legislação.

A lei e o direito foram reconfigurados em uma arena de disputa obrigando

os sindicatos a montarem assessorias jurídicas, ficando aquelas entidades, que não

conseguiram se estruturar, fora dessa luta e com isso definharam e algumas até

acabaram.

Ainda que com o golpe civil-militar, os movimentos sociais, especialmente

os populares em geral, tenham sofrido mais perseguições e também maior

repressão do Estado, o que foi agravado no campo pelo aumento da truculência

praticada pelos latifundiários, recusou-se nesta pesquisa a aceitar o golpe e seus

281

muitos desdobramentos, como o fim da linha dessa história de luta e ao mesmo

tempo reafirmar que “NAS FRANJAS DA HISTÓRIA” é possível dizer o indizível e

enxergar o invisível. Essa pesquisa é mais uma porta aberta que permite outra

leitura acerca da experiência camponesa fora dos eixos, centros e narrativas já

consagradas.

Nesse sentido, reitera-se aqui a certeza de que os avanços verificados

nesses movimentos sociais deixam sinais na memória dos seus participantes e que

isso, futuramente, alimentará novas mobilizações, pois o camponês brasileiro é um

migrante e sua expropriação não tem representado uma ruptura total de seus

vínculos com a terra.

A maioria tem preservado algum vínculo com a terra, seja ela mais

próxima ou mais distante – relação direta de trabalho, vínculos familiares, relações

de origem, etc. O que explica, em parte, a permanência entre eles de um conjunto

de símbolos e valores que remetem a uma ordem moral ou lógica tradicional.

É por isso que o acesso à terra se apresenta como alternativa para

assegurar a pobres e desempregados do campo e da cidade que buscam garantir a

sua sobrevivência mantendo a dignidade de trabalhador. Porém, o problema da

“recampezinação” que se verifica a partir do retorno à terra é marcado por conflitos e

contradições, que traduzem a difícil passagem do discurso ideológico à vida

prática.

Finalmente, postula-se com esta pesquisa – “NAS FRANJAS DA

HISTÓRIA: Singularidade e Distinção na Constituição da Liga Camponesa de

Matinhos no Território dos Carnaubais” - que os debates em torno da organização

camponesa respeitem, entre outras coisas, o caráter horizontal do movimento social

das ligas, aspecto que lhe confere uma pluralidade de manifestações, estratégias,

táticas, razões, ideias e manifestações.

Todos esses reafirmam a flexibilidade de recepcionar uma diversidade de

sujeitos, projetos, sonhos e formas sociais baseadas na relação de trabalho familiar

a partir das distintas formas de acesso à terra. Pois como afirma Paul Auster (1992)

“nada é possível dizer sem ressalvas”. Nada, sabe-se, é completo em si mesmo.

Cabe dizer, por fim, que é imperativo para o desenvolvimento do Brasil e

para a democracia que o campo tenha suas relações redemocratizadas e esta

282

pesquisa se propõe a romper, na medida em que ilumina um pouco do que foi a

repressão política sobre o piauiense, com as formas de esquecimento, seja pelo

silêncio ou pela invisibilidade de homens e mulheres que deram suas vidas na

perspectiva de realizar sonhos e projetos coletivos.

Homens como Luiz Ribamar Osório Lopes ou simplesmente Luiz

Edwirges, que deu a vida pelos camponeses do Piauí na luta por reconhecimento

político, contra a experiência do rebaixamento social e pelo direito de continuar

lutando por direitos, colocando sempre o coletivo acima dos interesses próprios e

individuais.

283

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Áudio-visual

30 ANOS de Anistia. Direção:Ângela Serrano: Brasília: Ministério da Justiça, 2009. Documentário (17min).

Filme

Cabra Marcado para Morrer. Longa-metragem (1962), ambientado em Sapê, na Paraíba. sobre a reforma agrária, dirigido por Eduardo Coutinho.

Depoimentos orais

Alfredo Leal Nunes – delegado da SUPRA até 1964, deputado estadual (PSD) cassado em 1969.

Antônio Damião de Souza – presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campo Maior, Piauí.

Antônio de Souza Rodrigues – o Mestre Zumba, professor leigo

Antônio José Medeiros – professor aposentado da Universidade Federal do Piauí, sociólogo, pesquisador e ativista social.

Antônio Pereira da Silva – Agricultor, Vaqueiro e Procurador da Fazenda Periquito

Celso Barros Nogueira – advogado e deputado estadual (PDC) cassado em 1964.

Deoclécio Dantas – funcionário público estadual, jornalista e radialista; falecido em 2015.

Felipe Mendes de Oliveira -- Economista, professor da UFPI, Ex--Deputado Federal e ex- presidente da Codevasf.

290

Francisca Edwiges de Souza – Dona Santinha, esposa de Luiz Edwirges.

Francisco Edwirges – líder sindical. Irmão de Luiz Edwirges, tesoureiro da ALTACAM.

Humberto Pereira de Abreu – agricultor da Fazenda Matinhos.

Jesualdo Cavalcante de Barros – líder estudantil, vereador (PTB), cassado em 1964, deputado estadual (PFL) na década de 80 e conselheiro aposentado TCE – PI.

Joaquim Luiz Cantuária – professor de história aposentado, técnico prestador de serviço do IBGE.

José Luiz Martins Maia – Líder Estudantil Advogado, Militante do PTB em 1963 , Ex- Dep. Federal.

Jose Reis Pereira – líder estudantil , professor da Universidade Federal do Piauí e Ex- Dep. Estadual.

Luiz Ozório Lopes – Luiz Edwirges, líder sindical e presidente da Liga Camponesa de Matinhos, em Campo Maior – Piauí.

Manoel Emílio Burlamaqui de Oliveira – advogado, coordenador da equipe de sindicalização da Arquidiocese de Teresina.

Manoel Paulo Nunes – Escritor e membro da Academia Piauiense de Letras,

Maria de Lurdes Araújo Silva – professora aposentada e responsável pelas atividades religiosas na comunidade de Matinhos.

Maria Regina Sousa – Professora, Presidente Estadual do PT-Pi e Senadora da Republica.

Pe Tony Batista – Vigário Geral da Arquidiocese e Pároco da Paroquia de Nossa Senhora de Fatima.

Raimundo Edwiges – irmão de Luiz Edwirges, agricultor de Matinhos.

Reginaldo Furtado – Advogado e secretario particular do gov. Chagas Rodrigues.

Wilson Nunes Brandão – escritor e deputado estadual.

Zózimo Tavares – Jornalista e membro da Academia Piauiense de Letras.

291

ANEXOS

292

O Território Carnaubais - PI abrange uma área de 19.636,40 Km² e é composto por 16

municípios: Assunção do Piauí, Novo Santo Antônio, São João da Serra, São Miguel do

Tapuio, Sigefredo Pacheco, Boa Hora, Boqueirão do Piauí, Buriti dos Montes, Cabeceiras do

Piauí, Campo Maior, Capitão de Campos, Castelo do Piauí, Cocal de Telha, Jatobá do Piauí,

Juazeiro do Piauí e Nossa Senhora de Nazaré.

A população total do território é de 168.037 habitantes, dos quais 84.421 vivem na área rural,

o que corresponde a 50,24% do total. Possui 17.313 agricultores familiares, 2.684 famílias

assentadas e 2 comunidades quilombolas. Seu IDH médio é 0,60.

Comemoração do dia do trabalhador 1º de maio de 1963 (ALTACAM)

293

Sede da Fazenda Matinhos

Exemplar do Jornal Santuário de São Francisco (Ano 50 – 15 de Janeiro de 1965)

294

Identidade da Associação dos Lavradores (ALTACAM)

295

Senhor Luis Edwiges