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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Cíntia Regina de Fátima Da formação em ballet à atuação em dança: a práxis criadora como caminho de superação MESTRADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO SÃO PAULO 2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Cíntia Regina de Fátima

Da formação em ballet à atuação em dança: a práxis criadora como caminho de

superação

MESTRADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO

SÃO PAULO

2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Cíntia Regina de Fátima

Da formação em ballet à atuação em dança: a práxis criadora como caminho de

superação

MESTRADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial

para obtenção do título de MESTRE em Educação: Psicologia

da Educação, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Mitsuko Aparecida

Makino Antunes.

SÃO PAULO

2015

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Banca Examinadora

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AGRADECIMENTOS

À minha querida e amada mãe, pelo amor e dedicação de cada dia;

À Mimi, pelo desafio de me orientar, pelos conselhos e, especialmente, pela confiança;

À Flávia e ao Sandro que me conduziram nessa trajetória e proporcionaram todo suporte

necessário;

Aos meus professores da PUC, especialmente à Ia, Melania e Laurinda, pelo incentivo

intelectual e carinho recíproco;

Ao meu irmão, cunhada e sobrinho, que se fizeram sempre presentes e entenderam minhas

ausências;

Aos meus tios (Geraldo e Esther), por me acolherem e incentivarem;

Ao apoio dos meus queridos amigos, Prof.ª Sandra e Prof.º Rafael;

Às minhas amizades de Diamantina, pelos momentos de alegria e descontração que me

revigoravam a cada reencontro;

À Karin, pelas sugestões, otimismo e amizade, essenciais no processo de finalização do

trabalho;

Ao carinho das minhas "Estrelas", Ju e Re;

Às amigas Rafa, Mari e Fabi, pela paciência e companheirismo, durante esses dois anos na

PUC;

Aos "Desorientandos", pelas trocas de saberes e prazerosas confraternizações;

Aos professores e alunos da Academia Transforma e do Studio Clayds Zwing, pelos

conhecimentos que adquiri no ballet antes e durante a realização da pesquisa;

Aos entrevistados, por compartilharem experiências reveladoras que transformaram minhas

concepções sobre o ensino do ballet;

À banca examinadora, pelas contribuições teóricas;

Ao CNPq, pelo apoio financeiro que possibilitou a concretização desse trabalho;

A todos vocês e àqueles que não foram citados, mas que de alguma forma contribuíram nesse

processo, deixo aqui os meus sinceros agradecimentos!

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RESUMO

Esse estudo teve como objetivo apreender os sentidos e significados que o professor de ballet

atribui ao seu processo de formação e atuação (tanto como bailarino quanto educador). Para

tanto, selecionou-se um bailarino (Rodolfo), professor de dança (que lecionou ballet por

determinado período) em instituição privada e projeto social. Foi realizada uma entrevista, em

um ambiente público, que buscou apreender a história de vida do participante. A entrevista foi

gravada e audiotranscrita de acordo com a autorização do entrevistado. Para analisar os dados

foram feitas várias leituras da entrevista em busca da apreensão de seu conteúdo em sua

totalidade e, ao mesmo tempo, indicou-se temas (formação e atuação) e subtemas que

respondessem aos objetivos do trabalho. Os dados foram interpretados por meio do

materialismo histórico-dialético. A partir da análise pode-se inferir que Rodolfo teve um

processo de formação e atuação permeado por contradições: do interesse pelo ballet ao

conflito entre os pais, no qual recebia apoio do pai e oposição da mãe; da ausência de escola

de ballet, às dificuldades inerentes de fazer aulas em outra cidade; do seu envolvimento ao

preconceito dos colegas; de uma atividade "cosmopolita" aos preconceitos da população de

uma cidade pequena; da renúncia de estudar fora para um curso disponível em sua região; da

mãe que se opôs a sua formação no ballet à mãe que lhe dá condições para a atuação

profissional; da rigidez do ballet à descoberta da liberdade na dança moderna e

contemporânea; da mudança de uma cidade pequena para a metrópole; da crise provocada

pela tragédia familiar ao contato com as desigualdades sociais; da depressão aos novos

sentidos a sua vida por meio da atividade de ensino. São momentos críticos que produzem

novos sentidos e significados para a vida de Rodolfo, para a dança e o ensino. Contradições

que levam à superação, às vezes percebida como "acaso", outras criticamente conscientes. É

possível concluir que a dança (ou até mesmo o ballet) pode vir a ser um meio efetivo de

superação das determinações sociais, não no sentido de alienar, mas como possibilidade

catártica, ou seja, de transformação do sentimento.

Palavras-chave: Ensino. Ballet. Dança. Psicologia histórico-cultural. Materialismo histórico-

dialético.

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ABSTRACT

This study aimed to apprehend the senses and meanings that a ballet teacher assign to his

formation and action process (as a ballet dancer as a teacher). Therefore, a ballet dancer

(Rodolfo) was selected, dance teacher (that taught ballet by a period) in a private institution

and in a social project. An interview was done, in a public place, which searched to apprehend

the participant´s history life. The interview was recorded and the audio was transcript

accordingly with participant's authorization. To analyze data various interviews readings were

done searching its content in its totality and, in the same time, it was indicated themes

(formation and action) and subthemes that answered to the study objectives. Data were taken

through historic-dialectic materialism. From analyzes it is possible to infer that Rodolfo had a

formation and action process permeated by contradictions: from ballet interest to the conflict

among parents, he was supported by his father opposing his mother; from the absence of a

ballet school, to the difficulties to attend classes in other city; from his evolvement to the

prejudice of his mates; from an activity “cosmopolitan” to the prejudices of a small city

inhabitants; from the renunciation of study out to a course available in his region; from the

mother that was opposite to his ballet formation to the mother that gives him conditions for

professional acting; from ballet rigidity to the liberty discovery of modern and

contemporaneous dance; from moving from a small city to the metropolis; from the crisis

provoked by a familiar tragedy to the contact with social inequality; from depression to the

new senses to his life through teaching activity. They are critical moments that produce new

senses and meanings to Rodolfo´s life, to dance and to teaching. Contradictions that take to

overcoming, sometimes perceived as “luck”, sometimes critically conscious. It is possible to

conclude that dance (or ballet itself) can be an effective way of overcoming social

determinations, not in sense of alienation, but as a cathartic possibility, it means felling

transformation.

Keywords: Teaching. Ballet. Dance. Historical-Cultural Psychology. Historic-dialetic

Materialism.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO....................................................................................................................8

1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................15

2 A DANÇA E O BALLET: uma perspectiva histórica.......................................................20

2.1 A origem e o desenvolvimento da dança.........................................................................21

2.1.1 O ballet romântico.........................................................................................................26

2.1.2 O ballet clássico............................................................................................................27

2.1.3 O ballet moderno...........................................................................................................29

2.1.4 A dança moderna...........................................................................................................30

2.1.5 A dança contemporânea................................................................................................31

2.2 O ballet e a dança no Brasil..............................................................................................31

2.3 Considerações....................................................................................................................32

3 UMA LEITURA DO BALLET A PARTIR DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-

CULTURAL: arte, atividade e práxis................................................................................34

3.1 O ballet como arte.............................................................................................................34

3.2 O ballet como possível atividade humana consciente e criadora..................................38

3.3 O ballet como práxis..........................................................................................................44

4 MÉTODO..........................................................................................................................50

4.1 O referencial teórico-metodológico.................................................................................50

4.2 Procedimentos metodológicos..........................................................................................59

4.3 Procedimentos de análise..................................................................................................61

5 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS..........................................................63

5.1 O sujeito da pesquisa........................................................................................................63

5.2 O processo de formação: a constituição de si no mundo...............................................64

5.3 O processo de atuação profissional: a constituição de si e do outro no mundo...........75

5.3.1 As condições da atuação profissional............................................................................75

5.3.2 As formas de atuação de Rodolfo e sua percepção sobre a didática e os procedimentos

adotados em suas atividades de ensino.........................................................................81

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5.3.3 As relações estabelecidas profissionalmente.................................................................95

5.3.4 Os sentidos e significados do processo de atuação.......................................................99

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................104

REFERÊNCIAS....................................................................................................................108

APÊNDICE............................................................................................................................111

Apêndice A - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.................................................111

Apêndice B - A formação e atuação de Rodolfo de acordo com os períodos de

realização................................................................................................................................113

Apêndice C - Temas e subtemas da análise...........................................................................116

NOTAS DE REFERÊNCIA.................................................................................................142

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APRESENTAÇÃO

O propósito desta apresentação é trazer ao leitor alguns momentos da minha

história que determinaram a origem deste trabalho e, ao mesmo tempo, expor os

questionamentos que surgiram ao longo desse processo, que possibilitaram a delimitação do

problema de pesquisa.

O ballet1 2 já fazia parte de minha história antes mesmo de conhecer ou praticá-lo.

Tudo começou pelo encanto e desejo de minha mãe de ser bailarina, que foi interrompido por

seu pai. Em sua concepção, a dança era instrumento de pecado e prostituição, por isso ele

considerava o ballet uma atividade inadequada para moças de família; então, ela foi proibida

de dançar.

Devido à admiração da minha mãe pelo ballet, ela costumava me levar para

assistir festivais de dança. As academias apresentavam-se gratuitamente em festas típicas da

cidade e cada espetáculo criava em mim o desejo de ser bailarina. Por motivos financeiros não

era possível pagar nenhuma das duas academias de ballet disponíveis na cidade. Assim, em

casa, eu reproduzia e criava alguns movimentos característicos do ballet, particularmente

aqueles ligados à flexibilidade, pois além de ser a habilidade que eu mais valorizava nas

práticas artísticas e esportivas, também era a que eu realizava com mais facilidade.

Aos 10 anos fui morar na grande São Paulo. A Ginástica Artística (GA) era

muito conhecida e valorizada na cidade. A maioria de minhas colegas de escola praticava a

GA e, sempre que oportuno, na hora do lanche ou nas aulas de educação física, ensinava

movimentos gímnicos. Por meio delas conheci o universo da ginástica e no mesmo ano fui

convidada a participar do processo seletivo em um dos ginásios locais. Porém, não foi

possível, pois minha mãe e eu voltamos para Curvelo, em Minas Gerais, cidade onde morava

antes de ir para São Paulo.

Ainda com 11 anos voltei a estudar na mesma escola que estudava antes de ir

para São Paulo. Logo no início do ano, ao final de uma das aulas, o professor entregou para os

interessados um convite para realizar um teste na academia Transforma. A seleção

contemplava bolsas (25, 50, 75 e 100%) para várias modalidades, dentre elas, o ballet. Essa

era a oportunidade que eu precisava para ingressar em uma academia de dança; assim, resolvi

participar do processo seletivo.

1 A grafia foi padronizada neste trabalho, inclusive nas citações dos autores, exceto das citações de dicionário. 2 As notas de rodapé são enumeradas em algarismos arábicos. Já as notas de tradução são indicadas por números

em algarismos romanos e se encontram no fim do texto.

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O teste avaliava basicamente a flexibilidade e algumas posições de centro do

ballet, que eram demonstradas pela professora. Como alguns movimentos me eram familiares,

por praticá-los em casa, o teste foi relativamente tranquilo. Eu consegui a bolsa integral e na

semana seguinte iniciei as aulas.

Apesar das dificuldades e a dependência de outras pessoas para eu ir e voltar da

escola de dança, não desisti. Comecei na turma de principiantes e faixa etária semelhante.

Esse era o grupo preparatório para a ponta3. Pouco tempo depois fui convidada para participar

do Corpo de Baile da academia. Nessa época eu participava dos dois grupos; então,

frequentava a academia quatro vezes por semana, sendo, aproximadamente, quatro horas por

dia.

Tudo no ballet era encantador, desde me arrumar para as aulas (fazer o coque,

vestir o collant, a meia-calça, a saia e colocar a sapatilha de ponta), até a dor do alongamento,

realizar os exercícios de barra e centro, ensaiar as coreografias e apresentá-las. A sensação era

de que naquele momento (das aulas, das apresentações) eu me transformava em outra pessoa,

porque sempre fui uma criança muito tímida e retraída, mas, quando eu dançava, me libertava.

No palco eu descobria a melhor parte de mim, porque na dança eu transformava os meus

sentimentos em movimentos artísticos; eu dominava meu corpo e realizava com ele

habilidades que não eram comuns, o que me tornava alguém reconhecida e admirada. Ao

mesmo tempo dançar me distanciava da realidade que delimitava meus sonhos e anseios. Eu

enfrentava problemas familiares e, muitas vezes, as pessoas premeditavam um futuro e

determinavam4 a minha vida a partir disso, mas o ballet trouxe oportunidades de ser e pensar

o mundo de um modo diferente, assim como de ser percebida sob outra dimensão, para além

das outras que me constituíam.

No grupo adulto as exigências aumentaram. As dores provocadas pelos treinos

intensos de flexibilidade, força e equilíbrio eram constantes. Os pés, ainda que machucados,

deveriam manter-se firmes na sapatilha, com postura elegante, delicadeza nos gestos e sorriso.

Ainda assim, paradoxalmente, o sofrimento era prazeroso. Aquelas sapatilhas me davam

qualidades e permitiam a sensação do melhor que eu podia ser. No palco eu recebia o

prestígio do público e isso era muito importante para mim.

Era difícil continuar no ballet sem a bolsa, já que eram muitos outros gastos além

da mensalidade (fantasia, roupa, acessórios). Diante da situação, a professora estendeu a bolsa

3 No ballet existe a sapatilha de meia ponta e a sapatilha de ponta (feita de cetim e gesso na extremidade), que

permite à bailarina equilibrar-se sob a ponta dos pés. Há o momento mais favorável para a bailarina iniciar as

aulas na sapatilha de ponta, no sentido de respeitar o desenvolvimento físico, motor, afetivo e cognitivo. 4 No sentido mecânico do termo. O mesmo que causa e efeito, reflexo.

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por mais 2 anos, que até então seria por um ano. Ao finalizar o período da bolsa, havia

completado 14 anos recentemente e fui convidada a lecionar com outra professora para a

turma de ballet “baby class” e também para ser aluna do jazz. Dessa forma, passei a ir todos

os dias para a academia, dedicando-me por mais tempo a essas atividades.

O jazz apresentava características bastante distintas do ballet. As alunas se

comportavam de modo diferente, inclusive aquelas que integravam ambos os grupos. No jazz,

as regras e a disciplina não eram tão rígidas quanto no ballet. Se neste era obrigatório o uso do

uniforme, a pontualidade e era inadmissível interromper a aula, naquele isso não se aplicava.

Sendo assim, estranhei os primeiros contatos.

No jazz aprendi a brincar com as expressões e gestos que variavam entre a

sedução, a fúria e a comicidade. Era necessário ter ousadia. A técnica não era tão precisa e

intensa quanto no ballet. Os movimentos e expressões que eram contidos no ballet, devido às

exigências técnicas e estéticas, se libertavam no jazz. O sorriso e a leveza, encontrados no

ballet, ocultavam toda dor e disciplina a que nos submetíamos. Apesar da liberdade que o jazz

proporcionava, o encantamento pelo ballet me aprisionava. Os desafios e conflitos, ao mesmo

tempo em que eram frustrantes pela dificuldade, também eram gratificantes a cada conquista.

Essa emoção contraditória, nesse caso o amor pela dança apesar da austeridade e dores

provocadas, é referida por Vigotski5 quando aponta a catarse como processo constituinte da

reação estética, que será explicado ao longo do trabalho.

Simultaneamente à minha entrada no jazz, comecei a lecionar aulas de ballet no

“baby class”. As aulas das crianças apresentavam o mesmo modelo das aulas dos adultos,

porém, sem tantas exigências. No início da aula, as atividades, que geralmente trabalhavam a

flexibilidade, eram realizadas sempre em rodas de conversas ou cantigas. Em um segundo

momento os exercícios eram realizados na barra e no centro e, ao final da aula, ensaiava a

coreografia a ser apresentada no festival de dança. As professoras permaneciam sempre

atentas às correções e ao direcionamento da atenção das crianças.

As crianças apresentavam características distintas. Algumas quietinhas e

disciplinadas (de acordo com as regras do ballet), outras, em geral, eram mais ativas e

gostavam de correr e brincar durante a aula e, ainda, aquelas muito pequeninas que não

gostavam, choravam e sempre acabavam indo embora antes de finalizar a aula. O fator

motivador era sempre a surpresinha (balas e doces) para quem se comportasse adequadamente

durante a aula. Todas essas observações me provocavam curiosidade e inquietações, ainda

5 Por encontrarmos na literatura diversas grafias do nome do autor, adotaremos nesse trabalho o sobrenome

Vigotski, tanto nas citações como nas referências.

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que pouco elaboradas, sobre esse modelo conservador e tradicional das aulas de ballet,

especialmente aquelas direcionadas ao público infantil. Embora eu não tivesse um

conhecimento científico que norteasse o meu olhar em tais situações, me incomodava obrigar

as crianças a fazer aula e puni-las por querer brincar.

Ministrei aulas durante um ano e meio, mas tive que parar, pois mudei de

Curvelo para Diamantina. O rompimento com a dança provocou muita tristeza, especialmente

por representar um momento de grandes descobertas (das minhas potencialidades e,

sobretudo, das oportunidades que suscitaram novos sentidos à minha vida), aprendizagens e,

sobretudo, dedicação. Diante dessa situação, resolvi buscar na nova cidade uma professora de

ballet.

Ele (o ballet) era oferecido como atividade extra no Conservatório Estadual de

Música Lobo de Mesquita. As aulas ocorriam uma vez por semana durante 50 minutos. O

propósito dessas aulas era extremamente diferente da academia em que eu dançava,

direcionada ao espetáculo, técnica e perfeição do movimento. Na escola de música

valorizava-se o divertimento, o prazer e a descontração. Se na academia o tempo de dedicação

era de trinta horas semanais, no Conservatório era de 50 minutos. A mudança na estrutura,

funcionamento e finalidade das aulas foram os fatores que determinaram minha renúncia às

aulas.

Aproximadamente um ano depois de sair do ballet formei-me no ensino médio e

prestei vestibular para o curso de educação física. Quando decidi prestar o vestibular estava

com 17 anos e como havia a oportunidade de ingressar em uma universidade federal local,

optei por um dos cursos oferecidos na própria instituição. Escolhi educação física tendo em

vista minha experiência com a dança, já que eu a entendia como um aspecto importante para a

formação do professor dessa área. A grande expectativa era a disciplina de dança; entretanto,

ela constava na grade curricular do curso somente no 6º período. Dessa forma, comecei a me

envolver em outras atividades, dentre elas a iniciação científica e dois projetos de extensão de

ginástica geral. Refiro-me a estas duas, pois considero-as determinantes para a decisão de

fazer o mestrado em psicologia da educação.

O trabalho de iniciação científica objetivou investigar as concepções de atividades

lúdicas na psicologia histórico-cultural (Vigotski, Leontiev, Elkonin e Mukhina), relacioná-las

com os processos de desenvolvimento e aprendizagem, assim como tecer possíveis

contribuições para a educação física escolar.

Quando cursei a disciplina de Ginástica II fizemos um trabalho de composição

coreográfica com crianças. Esse foi o primeiro momento que me fez perceber, na prática, o

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quanto o ensino na infância precisava de certos cuidados. Não era qualquer atividade que

produzia o interesse e o envolvimento dos alunos na aula. Pouco tempo depois criamos o

Grupo de Estudos e Práticas das Ginásticas (GEPG) que coordenava também dois projetos de

extensão: GGD (Grupo de Ginástica de Diamantina) e Ginasticando. O primeiro era voltado

para a prática da ginástica de adultos e o segundo para crianças, que tinha a ludicidade6 como

princípio norteador.

Desses dois trabalhos, complementares, emergiram algumas inferências, dentre

elas, que a educação física pode contribuir para o desenvolvimento, mas é necessário

conhecê-lo e, sobretudo, determinar quais as concepções de homem e mundo vão nortear o

processo educativo. Nas atividades esportivas e artísticas é comum a supervalorização dos

mais habilidosos, referidos como possuidores de talento nato. Os pressupostos teórico-

metodológicos que orientaram minhas pesquisas provocaram inúmeras reflexões que muitas

vezes colidiam com minha prática. Foi então que surgiu a necessidade de propor novas

estratégias de ensino na educação física infantil que considerasse a criança de modo integral.

Realizamos essa proposta no grupo de ginástica com crianças e percebemos um salto

qualitativo na participação e aprendizagem dos alunos.

Desde então me envolvi intensamente com a psicologia histórico-cultural e me

debrucei em suas produções para pensar uma educação física de qualidade, que contribuísse

para a formação dos alunos. Nesse sentido, resolvi fazer o mestrado, a fim de aprofundar-me

nessas pesquisas. No princípio, a intenção era dar continuidade aos trabalhos iniciados na

graduação, mas no mestrado encontrei novas possibilidades e outros caminhos a seguir. Em

conversa com minha orientadora, decidimos estudar algo relacionado ao ensino do ballet. Ao

refletir sobre a importância que a dança teve em minha vida e em minhas escolhas

profissionais e, ao mesmo tempo, o quanto elas não foram satisfeitas, pois a disciplina de

dança foi completamente diferente do que eu esperava7, entendemos que essa era uma

oportunidade para aprofundar o conhecimento da área, sem abandonar os fundamentos

teórico-metodológicos que eu estudava.

Nesse período emergiram novos questionamentos, pois apesar das críticas

direcionadas ao ballet por sua exigência e rigidez, eu sempre amei fazê-lo. Embora existisse

certo sofrimento, eu não sabia viver sem ele. Eu me acostumei a conviver com as dores, a

6 A ludicidade foi apreendida a partir da psicologia histórico-cultural. Como este projeto foi simultâneo ao de

iniciação científica, aproveitamos as concepções de atividades lúdicas e a periodização do desenvolvimento para

nortear as aulas de ginástica. 7 Eu esperava ter, na disciplina de dança, aulas teórico-práticas sobre as diferentes manifestações. Porém, como o

tempo era insuficiente e se tratava de um curso de educação física, as aulas estavam mais voltadas para a

expressão corporal.

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submeter-me a toda aquela exigência e aceitar que todo esforço era insuficiente, pois sempre

poderia ser melhor. Por muitas vezes eu desrespeitei os limites do meu corpo em busca da

perfeição. Então, já na faculdade e em contato com essa abordagem teórica, eu comecei a

perceber o quão contraditório era a minha relação com a dança. Será que é assim com todos

que se envolvem com o ballet? Todos se submetem a tais condições? Em que medida esse

olhar cuidadoso estava vinculado ao meu êxito e como seria com aqueles que não se

enquadravam nessas determinações?

Diante dessas novas possibilidades, sem desconsiderar os trabalhos até então

desenvolvidos, a pesquisa, inicialmente, objetivava apreender os sentidos e significados do

ensino do ballet para as crianças, pais e professores, de diferentes instituições (escola regular,

escola de dança etc.) e ao mesmo tempo identificar o quanto os interesses da criança são

atendidos em aula, de forma a contribuir ou não para o desenvolvimento infantil.

Decidimos, então, realizar algumas entrevistas-piloto, com a finalidade de

explorar o campo de estudo. A primeira delas foi com uma professora de dança e bailarina.

Obtivemos informações que não esperávamos, mas muito importantes, e que não poderiam

ser negligenciadas, como a diferença entre as aulas de ballet numa escola particular e num

projeto social. Percebemos, pela fala da entrevistada, que existem diferenças no ensino, dentre

elas: na escola particular ele é mais voltado para a técnica e a profissionalização e no projeto

social ele tende ao assistencialismo e transmissão de valores. Esses dados nos fizeram

repensar os rumos da pesquisa e ao mesmo tempo instigou o questionamento sobre os

sentidos e significados do ensino do ballet. Este é o tema que elegemos neste trabalho.

Antes de buscar os sentidos e significados atribuídos ao ballet para o outro, fui ao

encontro dos meus, àqueles que foram construídos durante esse processo. Hoje (fundamentada

no materialismo histórico-dialético) eu posso dizer que o ballet me constitui. Ele é uma

totalidade que determina outras totalidades em mim. Dentre as diversas atividades que eu

realizava, foi esta que durante muito tempo reestruturou minha consciência e determinou meu

modo de pensar e ser no mundo. Como a totalidade se constitui de contradições e mediações,

o ballet também foi e é, para mim, a rigidez, a disciplina, a submissão às regras, a busca pela

perfeição incessante e os estereótipos. Mas essa mesma atividade (o ballet) - que adquiriu

novos sentidos por meio deste trabalho acadêmico e pelas concepções teórico-metodológicas

adotadas - fundamenta minhas críticas e as possibilidades de superação dessas características

mencionadas. Naquele momento o ballet foi um instrumento que me deu as condições

necessárias para transformar e questionar as determinações sociais que limitavam as minhas

possibilidades de ser no mundo. Embora hoje eu negue (em busca de superá-las) essas

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características, entendo que elas foram importantes para criar necessidades, assim como

também foram meios para satisfazê-las. Nesse sentido, o ballet representa ponto de partida e

de chegada. Ponto de partida porque ele foi uma atividade principal8 que constituiu minha

consciência sobre/no mundo e, hoje, como ponto de chegada, é a referência da realidade que

eu busco transformar (minha consciência). Os sentidos e significados transformaram-se. O

ballet de "ontem" não é o ballet de hoje. O desejo de me reencontrar na dança e de obter

respostas aos questionamentos silenciados pelo tempo são os responsáveis pela busca

incessante desse universo. Entretanto, agora sob uma nova perspectiva, para além da prática, o

conhecimento de sua história, sua origem e seu desenvolvimento em diversas culturas.

8 Expressão utilizada a partir da concepção de Leontiev.

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1 INTRODUÇÃO

A formação, de acordo com o dicionário brasileiro da língua portuguesa, é o "ato

ou efeito de formar ou formar-se", ou ainda, é o "modo por que uma coisa se forma"

(FORMAÇÃO, 1990, p. 820). Na concepção materialista histórico-dialética, Saviani e Duarte

(2010), ao analisarem a produção de Marx, apontam que:

[...] a formação humana é analisada na relação entre o processo histórico de

objetivação do gênero humano e a vida do indivíduo como um ser social. O

que faz do indivíduo um ser genérico, isto é, um representante do gênero

humano, é a atividade vital, a qual é definida por Marx como aquela que

assegura a vida de uma espécie. No caso dos seres humanos, sua atividade

vital, que é o trabalho, distingue-se daquelas de outras espécies vivas por ser

uma atividade consciente que se objetiva em produtos que passam a ter

funções definidas pela prática social. Por meio do trabalho o ser humano

incorpora, de forma historicamente universalizadora, a natureza ao campo

dos fenômenos sociais (p. 426).

Ainda para Saviani e Duarte (2010), "a formação humana coincide, nessa acepção,

com o processo de promoção humana levado a efeito pela educação" (p. 423). A educação,

nesse sentido, é garantida ao possibilitar o desenvolvimento ontológico do ser, isto é, ao ser

permitido o acesso à cultura historicamente acumulada, os homens se apropriam e

internalizam as funções psicológicas cristalizadas no objeto (material e não material). Por

meio desse processo de internalização, o indivíduo reelabora o modo de lidar com o mundo e

essa relação dialética é que possibilita a formação humana (LEONTIEV, 1978). Nas palavras

de Saviani e Duarte (2010),

Ocorre que não há outra maneira de o indivíduo humano se formar e se

desenvolver como ser genérico senão pela dialética entre a apropriação da

atividade humana objetivada no mundo da cultura (aqui entendida como

tudo aquilo que o ser humano produz em termos materiais e não materiais) e

a objetivação da individualidade por meio da atividade vital, isto é, do

trabalho (p. 426).

A dança e o ballet são entendidos como manifestações da cultura historicamente

elaboradas; são produtos artísticos. A arte, para Schühli (2011),

[...] se desenvolve como esfera específica da consciência social e da

atividade humana a partir do trabalho, atividade fundante da esfera

ontológica social e que levou ao desenvolvimento também dos sentimentos e

necessidades estéticas do homem (p. 55).

Dessa forma, é possível afirmar que a arte, nesse caso, o ballet e a dança, são (ou

deveriam ser) fundamentais para o desenvolvimento humano. Eles (ballet e a dança) não

apenas materializam a potencialidade humana, como tornam possíveis a sua efetivação (da

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potencialidade), tendo em vista que é na relação com o mundo que o homem se forma e se

desenvolve.

Mas como é a formação no ballet ou, ainda, qual a formação é propiciada pelo

ballet?

O ballet, em geral, é oferecido em escolas privadas, academias e/ou

conservatórios. O acesso é restrito, devido a poucas famílias poderem custeá-lo. É uma arte

seletiva e elitizada9, pois o custo (seja da mensalidade, uniforme e apresentações) é

considerável, de tal forma que impossibilita seu acesso para determinadas camadas sociais.

Existem alguns projetos que o oferecem para crianças e adolescentes em situação de

vulnerabilidade e risco social; contudo é uma possibilidade ainda restrita.

É comum os pais buscarem o ballet como uma possibilidade de educar seus filhos,

seja por ser um interesse particular que acaba se realizando pelos filhos, ou por ser "modinha"

entre as crianças com determinado poder aquisitivo. A bailarina é representada, atualmente,

como uma figura idealizada, perfeita, que reproduz uma imagem dócil, educada, delicada e

disciplinada; entretanto, inatingível. A ciranda da bailarina, composta por Chico Buarque e

Edu Lobo, explicitam essa concepção e retratam, poeticamente, a suposta perfeição da

bailarina. Eles apontam as condições humanas como imperfeições que "só a bailarina que não

tem" (LOBO, BUARQUE, 1982). Nesse sentido, é possível questionar: a bailarina existe?

Este é o modelo de menina-mulher almejado pela sociedade, logo, muitas famílias

buscam-no para dotá-las (as crianças) das características referidas. Porém, a rigidez e os

padrões técnicos e estéticos, ao mesmo tempo que são fatores motivadores para os pais

matricularem seus filhos em aulas de ballet, com a finalidade de discipliná-los, também são

alvos de muitas críticas, especialmente por aqueles que não se encaixam em tais padrões ou

negam submeter-se a eles.

A forma de ensino10, em muitas escolas, é suscetível a questionamento e reflexão,

pois conserva a tradição, ainda que sua conjuntura histórica, desde o seu surgimento, tenha se

modificado. Por outras palavras, o modelo de aula retrata uma linguagem corpórea rígida e

autoritária, incapaz de interpretar os novos interesses sociais11. A aula, geralmente, é

padronizada, ou seja, permanecem os exercícios de barra e centro12 para desenvolver a técnica

e precisão dos movimentos. O ensino é fundamentado na transmissão de movimentos

9 Apontado nos estudos de Assumpção (2003). 10 No ballet existem quatro métodos de ensino mundialmente reconhecido, ele são: Método Cecchetti (Escola

Italiana); Método Francês (Escola Francesa); Método Vaganova (Escola Russa) e o Método Royal Academy of

Dancing (Escola Inglesa). 11 Ver mais nos estudos de Assumpção (2003). 12 Ver mais nos estudos de Simas e Guimarães (2002).

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cristalizados, sem a possibilidade de criação. É importante salientar que esse modelo de aula,

contraditoriamente, é aceito pelos pais que o criticam. Eles exigem o ensino do ballet

tradicional, de modo que escolas que não se enquadram nesse padrão são mal vistas. Por

outras palavras, eles reforçam esse modelo de ensino.

A relação professor-aluno permanece austera e autoritária. Em geral, as escolas de

ballet valorizam uma postura assimétrica, na qual o aluno deve ser submisso ao professor e

passivo ao sistema de ensino. A severidade ao lecionar é aliada à concepção de que o respeito

é conquistado pelo medo e pouco se dialoga em aula13. Homans (2012) relata:

Mas tudo aquilo era também muito estranho: nunca nada nos era realmente

explicado, e o ensino parecia ofensivamente autoritário. De nós esperava-se

que imitássemos e absorvêssemos, e sobretudo que obedecêssemos: “Faz

favor fazer” era a única coisa que as russas compreendiam, e “porquê” era

recebido com perplexidade ou simplesmente ignorado [...]. Por fim, após

anos de estudo e observação, percebi que as nossas professoras não estavam

apenas a ensinar passos ou a transmitir conhecimentos técnicos, estavam a

dar-nos a sua cultura e tradição. “Porquê” não era importante, e os passos

não eram apenas passos; eram a prova viva de um passado perdido (para

nós) – de como eram suas danças, as também daquilo em que elas, como

artistas e pessoas, acreditavam (p.17).

Determinadas crianças e adolescentes se submetem a esse modelo, entretanto,

aquelas que resistem são criticadas e, algumas vezes, banidas do grupo. É possível que ao

experenciar tais situações no ballet, o sujeito construa uma relação negativa com todas as

formas de dança, o que provoca não somente o abandono da prática, mas a frustração e o

desprezo pela arte de dançar.

O aprimoramento técnico é importante para qualquer atividade que tem como

instrumento o corpo e o movimento, uma vez que a conscientização dos processos de

elaboração e reprodução do gesto é condição imprescindível para o artista. Contudo, o

problema está no modo de ensino desses movimentos.

Mesmo diante desses apontamentos críticos, existe no ballet a possibilidade de

humanização a partir e por meio dele: pode ser um meio efetivo de satisfação das

necessidades sociais; elaboram-se movimentos que são aperfeiçoados técnica e esteticamente;

transforma a estrutura corporal do dançarino, seja na dimensão física (considerando a estética

do corpo) ou psíquica; a realidade ou a criação do homem é expressa com movimentos,

dispensando as palavras; os valores da sociedade podem ser e são ressignificados14 como, por

exemplo, quando a dança passou a ser vivenciada e apreciada independentemente do vínculo

13 Os estudos de Carvalho (2005) confirmam tais apontamentos. 14 O termo é utilizado para a atribuição de novos sentidos ou, ainda, os sentidos transformados pela prática

social.

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religioso ou quando a mulher começa ser admirada ao dançar e não mais banalizada; quando a

arte se torna mais acessível e não apenas privilégio de determinada classe social. Enfim, é

uma arte que produz e expressa humanidade; portanto, ela pode contribuir para o

desenvolvimento humano.

Diante desse cenário, tendo em vista suas contradições, emergiram

questionamentos tais como: qual é a concepção de ballet e dança de bailarinos-educadores

que tiveram formação no ballet? Quais os sentidos e significados que eles atribuem ao ensino

do ballet ao longo de suas histórias de vida? Como o ballet constitui aqueles que o praticam?

Considerando as críticas que ele sofre (o ballet), como ele pode contribuir (ou não) para a

formação humana? Como se dá o ballet em escolas particulares e projetos sociais e como

esses bailarinos-educadores percebem o ensino nessas instituições?

Ao considerar a concepção de formação, inicialmente exposta, é possível afirmar

que esse processo se dá durante toda a vida do homem. O trabalho também constitui o

homem, porém sob uma forma diferente, isto é, não apenas como uma formação de si e para

si, mas também do e para o outro. Nesse sentido, nesta pesquisa será distinguido o período de

formação do período de atuação, sendo que esse último se refere ao trabalho propriamente

dito. Não há intenção de fragmentar esses processos, pois eles são intrínsecos. Contudo, eles

serão identificados como dois momentos distintos, para fins didáticos, tendo em vista que na

atuação, além de se formar, ele também é considerado como um formador. Conforme expõe

Lukács (1974):

O isolamento – por abstracção dos elementos – tanto de um domínio de

pesquisa como de grupos particulares de problemas ou de conceitos no

interior de um domínio de pesquisa, é seguramente inevitável. O que

continua, no entanto, a ser decisivo, é saber se este isolamento é apenas um

meio para o conhecimento do todo, quer dizer, se se integra sempre num

justo contexto de conjunto que pressupõe e exige, ou se o conhecimento –

abstracto – do domínio parcial isolado conserva a sua “autonomia”,

permanece uma finalidade para si (p. 42).

Nessa perspectiva, este estudo teve como objetivo apreender os sentidos e

significados que o professor de ballet atribui ao seu processo de formação e atuação (tanto

como bailarino quanto educador). Dessa forma, selecionou-se um bailarino, professor de

dança (que lecionou ballet por determinado período) em instituição privada e projeto social.

Conforme esclarecem Aguiar e Davis (2011), aproximar-se dos sentidos e significados do

sujeito “é um caminho para apreendermos as contradições, movimentos, enfim, as

especificidades que aí ocorrem, de modo a produzir conhecimento importante para

intervenções calcadas na realidade concreta” (p. 229).

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Esta pesquisa se inicia mostrando, por meio de uma perspectiva histórica, a

constituição da dança e do ballet. Posteriormente, é apresentada a compreensão do ballet

como arte, atividade e práxis15 a partir do materialismo histórico-dialético. O capítulo ulterior

trata do método, no qual são apresentados seus principais pressupostos e, em seguida, quem

foi o participante do estudo e os procedimentos empregados na produção e análise dos dados.

A seguir é realizada a análise e discussão dos dados e, para finalizar, nas considerações finais

são expostos aspectos que se mostraram relevantes na pesquisa e que podem contribuir para a

compreensão do fenômeno estudado.

15 A grafia foi padronizada neste trabalho, inclusive nas citações dos autores.

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2 A DANÇA E O BALLET: uma perspectiva histórica

Para conhecer um fenômeno é necessário apreender sua essência, revelada em sua

historicidade. Neste sentido, para compreender a dança é preciso considerar suas origens, seu

processo de desenvolvimento e os modos de sua disseminação pelo mundo. A história não é

uma sucessão de acontecimentos lineares e tratá-la dessa maneira seria negar sua

concreticidade, isto é, as contradições, rupturas e crises. Será apresentada a história da dança

ocidental16 a fim de compreender seu processo de constituição e desenvolvimento.

O que é dança? O que é ballet? São sinônimos?

Segundo Cunha (2007), dançar é um verbo que surgiu no século XIV e significa

“oscilar, saltar, girar mover-se com cadência” (p. 239). Sua origem é do antigo francês

dencier (atualmente danser), derivado do frâncico dintjan, que denota mover-se de cá para lá.

O balé é um substantivo masculino que denomina a “representação dramática em que se

combinam a dança, a música e a pantomina” (p. 94). A expressão surgiu no século XX, do

francês ballet, derivado do italiano balléto, que significa dança.

A expressão balé, de acordo com Houaiss e Villar (2009), foi registrada (na língua

portuguesa) pela primeira vez em 1974 e significa

(1) dança executada por um conjunto de bailarinos, em que, juntamente com

o cenário, vestimentas e recursos de pantomima, se expressa uma história,

um tema ou uma atmosfera; bailado. (2) peça musical para execução de balé;

(3) conjunto de bailarinos que interpretam umbalé; (4) p. ext. companhia

debalé; (p. 248).

A dança é “(1) arte e/ou técnica de dançar; (2) conjunto organizado de

movimentos ritmados do corpo, acompanhados por música; bailado; (3) estilo, gênero ou

modo particular de se dançar; (4) música que acompanha a dança [...]” (HOUAISS, VILLAR,

2009, p. 594).

Essas definições elucidam a diferença entre os termos. O ballet é dança, mas a

dança não é necessariamente ballet. Entretanto, o predomínio do ballet sobre as demais

manifestações (precisamente no ocidente) foi de tal forma que as expressões – dança e ballet

– se fundiram por determinado período. Elas distinguiram-se pela divergência de interesses

históricos, sociais e culturais em relação àqueles preponderantes na época. Assim como a

dança, o ballet sofreu alterações ao longo de sua história e manifestou-se de diferentes

formas, dentre elas, ballet romântico, ballet clássico e ballet moderno.

16 Devido à abrangência da história da dança, optamos por limitar a apresentação à civilização ocidental, que

determinou a nossa cultura e ao mesmo tempo corresponde aos interesses desta pesquisa.

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Não existe um consenso na literatura sobre a diferença precisa entre o ballet e a

dança assim como entre as divisões que surgiram ao longo de seu desenvolvimento. Nesse

trabalho adotamos a estrutura apresentada especialmente por Faro, no sentido de clarificar tais

concepções para o leitor. Inicialmente vamos apresentar a origem e o desenvolvimento da

dança e, ao mesmo tempo, como e quando surgem o ballet e suas subdivisões (ballet

romântico, clássico e moderno), entendido como uma das formas de manifestação da dança;

finalizamos com a dança no ápice do seu desenvolvimento, caracterizado pela dança moderna

e contemporânea.

2.1 A origem e o desenvolvimento da dança

Segundo Mendes (1985), a dança é a combinação do movimento corporal

ritmado17. Nesse sentido, ela não pode ser entendida como qualquer forma de expressão

corporal ou gesto, pois apresenta, sobretudo, organização no tempo e no espaço. Alguns

autores criticam a concepção de dança como forma de manifestação dos sentimentos,

emoções e/ou crenças, entendendo-a como a realização pura do movimento (MENDES,

1985). Contudo, a autora menciona que se a dança não surgiu com a finalidade de expressão

(dos sentimentos e emoções), elas foram adquiridas ao longo de sua história.

A origem da dança não apresenta concordância entre os autores. Alguns acreditam

que os homens de períodos remotos utilizavam gestos e expressões para, sob o efeito da

magia, atrair a caça e, então, satisfazer suas necessidades fisiológicas. A dança era uma

atividade que possibilitava a obtenção do alimento e vestimenta. Somente quando o homem

começou a viver em sociedade e estabeleceu a divisão do trabalho (inicialmente agrícola) é

que a dança passou a constituir-se como rituais e tornou-se símbolo de comunicação entre o

homem e as divindades e a natureza (MENDES, 1985; BOURCIER, 2001).

Faro (1986) afirma que, assim como toda atividade humana, a dança surge a partir

das necessidades do homem, particularmente em aproximar-se das divindades, pedir e

agradecer por aquilo que lhe é concedido. Nas palavras do autor, “por isso os deuses eram

lembrados por ocasião de nascimentos, casamentos, mortes, guerras e colheitas, ou seja, em

todas as ocasiões que o homem sentisse necessidade de um apoio propício da divindade que

era objeto de sua adoração” (FARO, 2011, p. 15).

17 Ritmo nesse sentido refere-se à ordenação e configuração do tempo, que pode ser externa ou interna.

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Segundo Faro (1986), a dança expandiu-se paulatinamente e, orientada pelos

interesses culturais, adquiriu diferentes formas de manifestação, entre elas a étnica ou

religiosa, a folclórica e a teatral. Existe um vínculo genético18 entre elas, na qual uma

determinou a origem da outra, transformadas com o intuito de satisfazer interesses

particulares. Por outras palavras, a dança religiosa, ao ser negada aos e pelos povos, tornou-se

meio de criação da dança folclórica que, pelo processo de negação da negação, foi modificada

pelos nobres e superada, dando origem à dança teatral. A superação não extingue as demais

manifestações, mas algumas foram modificadas e outras mantiveram-se. A transposição da

dança das cerimônias religiosas para a arte dos povos está ligada a fatores socioeconômicos.

Se antes ela estava vinculada aos deuses, na arte ela se torna um meio de satisfazer as

necessidades de expressar sentimentos, emoções e desejos e, ao mesmo tempo, forma de

entretenimento.

A dança religiosa possuía espaço, tempo e pessoas específicas, isto é, realizava-se

nos templos, em determinadas cerimônias (nascimento, morte, casamento, colheitas, guerra),

nas quais necessitava-se invocar os deuses, sob privilégio dos sacerdotes (FARO, 1986).

Aos poucos a dança começou a ser praticada pelos povos nas cerimônias e

também em praças públicas, embora admitissem a realização somente das danças de natureza

religiosa. As manifestações populares permitiram que a dança, até então privatizada pelos

sacerdotes, fossem dominadas pelo povo; logo, a relação direta entre a dança e a religião foi

sendo rompida, dando origem à dança folclórica (no Brasil é representada pela congada, o

maracatu, os caboclinhos, entre outros). Nesse momento, em que se desvinculou da religião, a

dança, como recreação popular, sofreu severas críticas da igreja, que detinha o poder sobre a

sociedade. Dessa forma, a dança folclórica foi proibida e os dançarinos sofreram ameaças.

Segundo Faro (2011) “é possível até que as manifestações folclóricas tenham sido submetidas

a perseguições nas cidades em que o clero exercia maior poder” (p. 34). Contudo, continuou a

ser exibida em determinados locais, sob a influência em especial das culturas orientais

(MENDES, 1985): “Assim, as manifestações folclóricas nasceram dentro desse ciclo de

progresso como forma de expressão popular que avançou no tempo e no espaço, devido a uma

soma de circunstâncias de cunho sociológico” (FARO, 2011, p. 24).

Entre a dança folclórica e a teatral surge a dança de salão. Ela tem origem na

Idade Média, com o propósito de entreter a nobreza. As transformações econômicas, políticas

e sociais também determinaram o modo de conceber a arte, assim como o acesso a ela. A

18 Genético, nesse contexto, diz respeito à origem, raiz.

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dança de salão, entendida como a evolução da dança popular, foi transferida da aldeia para os

salões e da população “menos favorecida” para a nobreza (FARO, 1986).

E com essa transferência veio a diferença entre o que pertence à população

menos favorecida e o que pertence ao grupo mandatário e minoritário que,

abrigado em suas poderosas fortalezas, podia permitir-se o uso da dança, não

mais como manifestação ligada a um evento, mas como pura diversão

(FARO, 2011, p. 34).

Desde então, apreciada pelos nobres, começou a ser praticada nos salões da corte

com finalidades sociais, políticas e econômicas. Em busca de diferenciar-se da dança popular,

a nobreza contratou maítres de danse19, que acrescentaram movimentos específicos e

sofisticados, tornando-a cada vez mais coreografada e condizente com o espaço, as roupas

típicas da época e suas intenções (MENDES, 1985). Essas características atribuíram-lhe o

status de ballet da corte. Na corte considerava-se vital saber dançar, tocar instrumentos e

cantar. Os rapazes eram qualificados por tais habilidades, sendo inadmissível não receber essa

educação. As damas aprendiam a dançar, obrigatoriamente, para nos bailes serem cortejadas

por seus pretendentes.

O ballet da corte se desenvolveu consideravelmente no Renascimento, período

que representa a transição da Idade Média à Idade Moderna, fundamentado em novas

concepções de homem e sociedade. A dança, que transita das praças para os salões dos

castelos, transforma-se estruturalmente. Desde então, tornou-se uma manifestação mais

disciplinada, com regras de tempo e espaço, sendo que as criações foram codificadas e a

passaram a orientar o coreógrafo (MENDES, 1985).

A dança teatral teve início em 1661 quando Luís XIV fundou a Academia

Nacional da Dança. Foi então no século XVII que a dança, precisamente o ballet, foi

reconhecida como arte. O ballet20 foi importado da Itália para a França no século XVI pela

rainha Catarina de Medicis, que contratou mestres de dança para distrair a corte e seus filhos.

Nesse século, destacou-se um espetáculo criado por Beaujoyeux, composto de dança, mímica,

declamação, canto, cenografia, cenotécnica, denominado “Ballet comique de la reine”,

considerado por muitos autores como o primeiro ballet propriamente dito, que esteve sob a

custódia da rainha (FARO, 1986). Nas palavras de Garaudy (1980), “tinha nascido o ballet

clássico” (p. 30).

19 Expressão de origem francesa que denominava o técnico que ensaiava os dançarinos e se responsabilizava pela

realização de obras dançadas pelo corpo de baile (ROSAY, 1980). 20 Nesse período o ballet ainda era praticado aos pares, pouco codificado e com técnica ainda elementar,

comparado ao que viria a ser. Ainda se caracterizava como um misto de música, canto, mimo e elementos

dançantes na composição.

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Naquela época, financiar espetáculos e companhias de dança era moda, levando

muitos nobres a competirem entre si. Para Faro (1986), “a dança teatral nasceu, assim, como

privilégio de uma nobreza vazia e fútil, que encontrava nos faustosos espetáculos uma forma

de preencher o vácuo de sua existência” (p. 32).

O espetáculo foi transferido para os teatros no século XVII, o que caracterizou a

evolução técnica e estética do ballet, assim como sua profissionalização. No ballet da corte

valorizavam-se os passos, geometricamente esboçados no chão, realizados pelos casais. Nos

palcos, a dança acadêmica passou a ser apreciada frontalmente pelo público e, por

conseguinte, adquiriu uma nova configuração. Desde então foram criadas as “cinco posições

dos pés e as regras do port de bras”21, que permitiam realizar diversos movimentos com mais

estabilidade e agilidade. Essas regras foram complexificadas e tornaram o ballet uma

atividade seletiva, sendo necessário um aprimoramento técnico para dançar. Mendes (1985)

afirma que o ballet “[...] exigia, por sua extrema dificuldade de execução, não príncipes e

cortesãos como intérpretes, mas dançarinos profissionais, já acostumados com o

desenvolvimento que a dança acadêmica alcançara [...]” (p. 29). Assim surgiu a dança

elitizada com a finalidade de satisfazer as necessidades sociais, intelectuais e econômicas da

corte, que abdicou da prática para, exclusivamente, contemplá-la.

O espetáculo era uma combinação de dança, canto e textos falados, e seu

objetivo era claramente social e político: um passatempo elegante para o

monarca e sua corte. Também propiciava ocasiões para o esbanjamento de

fortunas e, principalmente, possibilitava a indecente adulação que a corte

fazia ao rei. Os temas escolhidos eram geralmente mitológicos, e o rei

sempre desempenhava o papel da divindade vencedora, adorada pela corte

circundante. [...] Cenários, roteiros, músicas e roupas luxuosas eram pagos

com o dinheiro que, sem dúvida, vinha dos escorchantes impostos a que o

povo estava sujeito (FARO, 2011, p. 37).

No século XVIII houve transformações estruturais na dança, que possibilitaram

seu avanço tal como se apresenta hoje. Dentre elas, Faro (2011, p. 43) assinala:

a) a liberação nos trajes;

b) a liberação nos temas;

c) a popularização da dança;

d) seu progresso técnico através da codificação do seu ensino;

e) o aparecimento de figuras como Noverre, que dariam enorme impulso

a essa arte; e

f) o progresso técnico, social e cultural da humanidade no período que

assistiu ao nascimento da dança como arte (p. 43).

21 A expressão significa transporte dos braços. É a transferência de uma posição para outra (ROSAY, 1980).

Pierre Beauchamp foi o responsável pela codificação das cinco posições dos pés e pelas regras do port de bras.

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No teatro, a dança era praticada por homens que representavam ambos os papéis

sociais, sendo que somente entre os séculos XVII e XVIII é que a mulher passou a dançar,

pela primeira vez, em um teatro público e alguns anos depois Lá Sallé se apresentou no palco

com cabelos soltos e vestida com uma túnica, reivindicando roupas mais leves e curtas. Nesse

período buscava-se na dança o desenvolvimento vertical e a liberdade de movimento. Surge,

então, durante a revolução Francesa, a malha criada por Maillot, modista da Ópera Francesa.

Assim, as vestimentas, que eram extremamente pesadas e compridas, foram substituídas por

outras mais leves e curtas, permitindo o aperfeiçoamento da técnica, assim como o

virtuosismo.

Embora o ballet ainda se referisse a uma arte de elite, “[...] o povo, a plebe, neste

terreno bem mais revolucionário que seus líderes, mostrava-se muito mais interessado nas

formas do teatro popular e nas suas próprias danças” (MENDES, 1985). O ballet tornou-se

mais acessível às demais classes sociais e os temas aproximaram-se da realidade, em que

reproduzindo histórias populares e não mais expressando as figuras de deuses mitológicos ou

heróis.

Para Noverre “[...] a dança, tal como a pintura, deve inspirar-se na natureza, pois o

coreógrafo se parece com o pintor e deve obedecer às leis naturais da composição” (FARO,

2011, p. 44). Se antes os temas eram inspirados em deuses mitológicos, Noverre, em sua

publicação “Cartas sobre a Dança”, de 1760, vai ao encontro da sua essência, isto é, a

natureza. O ballet que até então era narrado adquire a qualidade de expressão dramática e sem

palavras. Suas ideias foram inicialmente rejeitadas na Itália e França, mas aceito na Alemanha

(MENDES, 1985).

O desenvolvimento da dança como arte se constituiu em uma relação dialética

com a sociedade, pois ao mesmo tempo em que contribuiu para o processo de humanização

do homem, também complexificou sua estrutura. A arte se constituiu tanto pela técnica, que

se submeteu a constantes transformações e aperfeiçoamento, quanto pelas significações

sociais que foram construídas ou ressignificadas a partir dela. Por isso, a arte é também

práxis, pois se desenvolveu em um processo reflexivo e transformador; pode-se dizer que

“[...] a história da dança caminha lado a lado com os progressos técnicos, sociais e culturais

do ser humano” (FARO, 2011, p. 42).

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2.1.1 O ballet romântico

Após as contribuições de Noverre, o ballet entra no período do Romantismo, entre

1820 e 1847 (GUEST, apud FARO, 2011)22. Faro (2011) considera que o espírito do

Romantismo representa um movimento revolucionário contra as imposições sobre a arte até

então. Nas palavras de Bourcier (2001),

A ênfase sobre o indivíduo, mais do que sobre um arquétipo social, acarreta

a rejeição das regras impostas pela sociedade no século XVII: a sensibilidade

tem primazia sobre a razão; o coração e a imaginação assumem o poder; sem

o controle de uma autocensura. O resultado é uma inflação dos sentimentos e

de sua expressão (p. 199).

O ballet romântico (ou ballet branco)23 ficou conhecido por sua liberdade de

inspiração e de expressão, em que

Por meio do exotismo e do sobrenatural, o artista romântico, respondendo

emocionalmente a esses fatores liberadores de sua imaginação, dava vazão

ao seu talento, marcado pela obsessão com a cor local, com a evocação de

paisagens estranhas, com os costumes e o modo de vida de povos longínquos

e, eventualmente, com um sempre renovado interesse pelo passado (FARO,

2011, p. 63).

O ideal romântico expressava-se especialmente nas coreografias dramáticas, na

supervalorização do papel feminino, no cenário, na musicalidade e no figurino, que se

desenvolveram significativamente nesse período. O propósito dos espetáculos era banir a

realidade e se aventurar em um mundo encantado, sobrenatural, “[...] proporcionando, em

cena, a realização visual dos sonhos de cada um, sonhos que ajudavam a escapar de um

mundo sinistro, cheio de preocupações e ansiedades” (FARO, 1986, p. 55). O culto à mulher,

consequentemente, subestimou o papel do homem, que se apresentava somente como suporte

para o virtuosismo feminino. A sua elevação por meio das sapatilhas de ponta e do tutu

contribuiu para a determinação de rótulos e para a idealização24 da mulher. Segundo Faro

(2011),

Com o progresso do desenho dos cenários e da sua iluminação, foi possível

criar lugares misteriosos, bailarinas em voo, personagens que apareciam ou

desapareciam, provocando na plateia todo um frisson bem de acordo com o

momento vivido. [...] Era o inesperado, o misterioso e o desconhecido

22 Para Bourcier (2001) o ballet entra no Romantismo em 1832. 23 Foi chamado também de ballet branco, caracterizado pelo tutu longo de musselina branca e pela utilização da

ponta a partir de 1832. 24 Idealização porque atribuíam à mulher características irreais, isto é, a figura de uma mulher dócil, frágil,

delicada, franzina como uma sílfide. A partir disso constrói-se a bailarina ideal e ao mesmo tempo os

preconceitos àquelas que não correspondessem a tais características.

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agindo frontalmente sobre a imaginação já exacerbada de uma plateia em

busca de um meio de fuga ao seu dia a dia (p. 69).

Apesar da importância desse período para seu desenvolvimento, o ballet

romântico não perdurou. Segundo Faro (1986), na metade do século XIX ele foi perdendo seu

encanto artístico e tornou-se um monopólio para os nobres, aos quais os bailarinos eram

submissos. O ballet foi desvalorizado e os compositores musicais não mais se interessavam

por ele, inclusive as próprias composições foram desqualificadas. Nas palavras de Faro

(2011),

O público acabou se cansando de cenários complicados e histórias

arrebatadoras. E a esse cansaço se juntou a decadência do bailarino. O

endeusamento das grandes bailarinas pela imprensa e pela literatura

contribuiu para que o homem fosse relegado a um segundo plano, nada

favorável ao ballet (p. 84).

A crise enfrentada no ballet foi superada devido à transferência do eixo da dança

para outros países e foi por meio de Marius Petipa, em São Petersburgo, que o ballet ressurgiu

como um clássico que dominou por mais de 50 anos (FARO, 2011).

2.1.2 O ballet clássico

Embora Faro (2011) considere o ballet russo como a referência do ballet clássico

devido ao desenvolvimento (técnico e estético) que ele adquiriu nesse contexto, entende-se,

fundamentado em Mendes (1985) e Garaudy (1980), que o ballet clássico teve origem na

Itália e se desenvolveu na França, sendo futuramente superado pelos russos.

As criações europeias foram codificadas e cristalizadas no ballet; algumas se

complexificaram ao longo dos anos e outras se mantiveram. Na Rússia, o ballet não foi

apenas importado, mas se desenvolveu de modo singular. Segundo Mendes (1985), a

organização cultural da Rússia favoreceu essa evolução, pois existiam muitas propriedades

nobres isoladas devido a sua amplitude territorial e então eles (os nobres) criavam seus

próprios meios de entretenimento; o ballet era muito admirado pelas czarinas e por isso os

nobres contratavam mestres para ensinar e capacitar os servos, de tal forma que eles não só

executavam a arte em si como também participavam das criações. Nesse sentido, a dança não

estava somente a serviço do czar e da corte, mas era considerada uma arte teatral que

pertencia ao povo. Essa característica do ballet russo também diferenciava seu conteúdo; em

outras palavras, "o camponês é naturalmente realista; assim, o ballet russo, que tinha uma

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base campesina, mesmo nas suas fases mais românticas, reteve sempre, comparativamente

falando, um forte toque de realismo" (MENDES, 1985, p. 50).

Assim como mencionado, o principal responsável pela estruturação do ballet

russo foi Petipa. Ele era filho de artistas e iniciou na dança desde muito pequeno. Segundo

Faro (2011),

Petipa possuía um senso arquitetônico inigualável, o que fazia dele um

inspirado construtor de danças para corpo de baile. [...] Na Construção do

arcabouço de seus ballets, usava menos mímica que no passado, só

empregando esse recurso quando isso se fazia estritamente necessário (p.

90).

Dentre as suas contribuições para o desenvolvimento do ballet, destacaram-se a

evolução técnica e a revalorização do bailarino, compondo solos e pas de deux25 (MENDES,

1985; FARO, 2011). Petipa também modificou o conteúdo do ballet, no qual manteve a trama

dramática, mas incorporou-lhe contos infantis. No que diz respeito ao conteúdo e estética do

ballet nesse momento histórico, Bourcier (2001), em síntese, aponta que

A escola clássica francesa buscava uma beleza medida, uma expressão

simultânea de elegância e sensibilidade. Na escola acadêmica, acrescentou-

lhe um elemento antinômico, a contribuição italiana, toda velocidade,

virtuosidade de execução, de exteriorização. A transmutação destes dois

contrários num elemento novo e distinto foi realizada pelo academismo

russo, graças à famosa "alma eslava", tão apta a nela fundir todas as

contradições (p. 222).

Porém, o desenvolvimento industrial e a aproximação entre a Rússia e os países

europeus, no final do século XIX, transformou os interesses dessa sociedade, instaurando

novas ideias e tendências da arte (MENDES, 1985). Nas palavras de Faro (2011),

Não precisamos ir mais longe para verificarmos os fatores e as razões, ao

mesmo tempo do crescimento e da queda desse tipo de ballet. Bailarinos de

técnica cada vez mais primorosa, um coreógrafo de gênio que não soube

parar quando devia, e uma nova fórmula, acabou deixando de agradar àquela

parcela de público que tem noção de que a arte morre se não evolui (p. 94).

A revolução de Diaghilev permitiu que emergisse uma nova era para a dança. As

suas criações deram origem ao ballet moderno.

25 Entrada tradicional no ballet clássico executada pelo casal de dançarinos-estrelas, compreendendo quatro

partes (MENDES, 1985, p. 77)

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2.1.3 O ballet moderno

Em 1909 surge o ballet moderno de Diaghilev, influenciado por Isadora Duncan e

Michel Fokine. Duncan fez muito sucesso na Europa no início do século XX. Com o intento

de superar a austeridade e o romantismo dos ballets até então existentes, ela retoma as origens

da dança, valorizando movimentos orgânicos, que se encontravam em sintonia com a

natureza. A proposta inovadora de Duncan ficou conhecida por dança livre e revolucionou

esse universo. Foi a primeira bailarina a dançar com os pés descalços e sem malhas.

Precursora da dança moderna, influenciou importantes bailarinos e coreógrafos, que

disseminaram seus princípios pela Europa, onde alguns deles se mantiveram e outros foram

modificados. Michel Fokine, considerado o pai do ballet moderno, após assistir sua

apresentação na Rússia, buscou a inspiração da natureza para a criação de seu ballet, porém

manteve a técnica clássica (FARO, 1986).

Diaghilev foi um empresário e administrador que possibilitou a objetivação de um

ballet até então reprimido. Sua contribuição não foi apenas financeira, mas em cada detalhe

do espetáculo como, por exemplo, na criação da coreografia, na escolha da música e na

disposição do cenário. Diaghilev e sua companhia disseminaram o ballet moderno russo pela

Europa Ocidental, Estados Unidos e América do Sul. Com a morte de Diaghilev, em 1929,

sua companhia, que já estava sofrendo crises econômicas, cessou as atividades por

determinado período e seus bailarinos se dispersaram pelo mundo, muito deles lecionando e

levando a arte para outros países.

Em 1932 renasce a companhia com o nome de Ballet Russe de Monte Carlo, que

mais tarde se subdivide em Ballet Russe de Monte Carlo em Nova York e Original Ballet

Russe em Londres, devido ao desentendimento dos diretores Renée Blum e Vasili de Basil.

Essas companhias eram apenas referenciadas como russas, pois a instabilidade, em virtude

dos espetáculos apresentados mundialmente, internacionalizou-as e permitiu o

desenvolvimento do ballet em diversas regiões, inclusive no Brasil. Segundo Faro (2011),

A importância de Diaghilev e de seus Ballets russos jamais poderá ser

subestimada, uma vez que ela se estende até nossos dias, e seu impacto

deverá continuar a se fazer sentir enquanto existir a dança. A razão é

simples: ele derrubou para sempre diversos tabus que até então cercavam a

existência do ballet como arte. (p. 104).

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2.1.4 A dança moderna

A dança moderna surgiu nos primeiros anos do século XX, impulsionada pelo

ballet moderno e representada pelas ideias de Isadora Duncan e St. Denis. Durante um longo

período a dança moderna expressou aversão ao ballet, o que impediu uma relação harmônica

entre eles devido a conflitos entre seus representantes e adeptos. Nas palavras de Faro (2011),

[...] falaremos de dança moderna no sentido contrário ao termo dança

acadêmica, ou seja, sobre os conceitos de dança esposados por uma série de

outros criadores, que vão encontrar sua frente renovadora em Isadora

Duncan e no empresário russo (p. 141).

A dança moderna é primitiva, pois retoma as suas origens e vai de encontro a

todas as criações do período romântico e clássico no ballet, ou seja, abandona as posições

básicas, os tutus, as sapatilhas de pontas e temas fantásticos. O princípio da criação, pelo

menos para Duncan, é a liberdade e a intuição. Ela “[...] foi buscar suas raízes na Grécia

Antiga e St. Denis, nas danças rituais do Oriente, mas ambas foram primitivas em sua

tentativa ansiosa de voltar ao que julgavam ser a fonte natural da arte através do movimento”

(FARO, 2011, p. 144).

À medida que a dança foi se desenvolvendo e adquirindo novos representantes,

como Mary Wigman, Rudolph van Laban, Ted Shawn, Martha Graham, ela assumiu novas

direções, passando a ser apresentada em teatros e lecionada em academias de dança. Faro

(2011) aponta que,

Em geral, todos aderem ao princípio de que cada ideia, cada emoção, cada

impulso devem encontrar sua própria realização nos movimentos. Na dança

moderna, nada deve ser supérfluo ou passageiro, cada sequência de passes

ou gestos deve contribuir para uma completa expressão da ideia ou tema que

se quer demonstrar (p. 145).

A dança moderna é uma arte voltada à realidade que se preocupa em ampliar as

experiências e comunicação do intérprete e da plateia (FARO, 1986). Em síntese,

[...] é a expressão do homem interior-intérprete e sua comunicação direta

com o homem interior-assistente. Por isso os criadores da dança moderna

foram buscar sua temática nos impulsos sexuais, nos problemas raciais, no

relacionamento do homem com Deus, nos problemas domésticos, nas

questões relativas à democracia, em suas próprias autobiografias, seja de

forma trágica, cômica, satírica ou abstrata (p. 146).

Segundo Faro (1986), “hoje a batalha chegou a um final feliz, pois há lugar para

todos os estilos, todos são igualmente válidos e vitoriosos, já que enriquecem toda uma arte e,

consequentemente, a criatividade humana, onde existem numerosas estradas abertas tanto

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para o público quanto para os intérpretes” (p. 117). O autor ainda afirma que embora ainda

exista contraposição entre elas, muitas escolas utilizam exercícios codificados da dança

acadêmica como forma de preparação para a dança moderna.

2.1.5 A dança contemporânea

A chamada dança contemporânea é a manifestação da arte tal como ela se

apresenta na atualidade. É aquela em que bailarinos e coreógrafos se apoiam nas criações

passadas, mas é livre para construí-la, reconstruí-la e atualizá-la (FARO, 1986). O

contemporâneo implica a reelaboração, mas não necessariamente o novo, jamais visto ou

imaginado. Faro (2011) aponta como contemporâneos

[...] os coreógrafos que usam a técnica clássica, como Balanchine, Ashton,

Robbins e Béjart, aqueles que se apoiam num modernismo que, na verdade,

já atingiu os 60 anos, como Graham e Taylor, ou os pesquisadores atuais,

como Carolyn Carlson, Lucinda Childs ou Twyla Tharp. (p. 153).

Dentre eles, alguns têm como base o classicismo, mas introduzem o novo; outros

priorizam o modernismo, porém incorporam elementos acadêmicos. Segundo Faro (2011),

existem coreógrafos que são considerados contemporâneos, mas na verdade se opõem ao

ballet e por isso propõem um modernismo sem fundamento, ridicularizando a arte.

2.2 O ballet e dança no Brasil

Segundo Faro (2011), “a dança no Brasil se espalhou muito, principalmente a

dança moderna, e companhias profissionais de valor existem hoje em vários pontos de nosso

território” (p. 134). A primeira companhia profissional brasileira foi o Corpo de Baile do

Theatro Municipal do Rio de Janeiro, que teve como pioneira Maria Olenewa. Outras

companhias também foram criadas e desenvolvidas em diferentes estados, dentre elas, a do

Teatro Guaíra em Curitiba, Fundação Palácio das Artes em Belo Horizonte, Grupo Corpo

também de Belo Horizonte, Ballet do Teatro Castro Alves na Bahia, o Ballet da Cidade de

São Paulo (antigo Corpo de Baile do Teatro Municipal de São Paulo) e o ballet Stagium,

ambos em São Paulo. As três primeiras direcionaram-se à dança acadêmica e os quatro

últimos à moderna. O Brasil, desde 2000, é sede de um projeto cultural da Escola do Teatro

Bolshoi, de origem russa, e tem sua unidade em Joinville (SC), conhecida como Escola

Bolshoi Brasil. Faro (2011) afirma que “no Brasil, os modernos e contemporâneos se

encontram em maior número que os clássicos” (p. 158).

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O autor também menciona a dificuldade dessas companhias de se desenvolverem,

pois a falta de apoio financeiro faz com que muitos trabalhos sejam interrompidos. Os valores

arrecadados nas bilheterias não são suficientes para sustentar os gastos de um espetáculo e no

Brasil praticamente não se tem apoio governamental (FARO, 2011). Algumas poucas escolas

conseguem ou tem seus espetáculos financiados por empresários, mas isso não garante a elas

um futuro promissor.

2.3 Considerações

A dança, seja clássica ou moderna, é produto cultural da humanidade, portanto,

reflete a história do homem, suas contradições, desejos e expressões. Por muito tempo a dança

foi inerente ao ballet e na concepção de muitas pessoas ainda permanecem como sinônimos.

Pensar este remetia àquela e vice-versa. Atualmente, no que se refere à arte, o ballet é

considerado apenas uma expressão desse universo encantador que é a dança.

Para Faro (2011), dança é tudo aquilo que tem “[...] a intenção de aprimorar a arte,

e não apenas como expressão pessoal de um modismo passageiro” (p. 161). A dança, neste

contexto, adquiriu um sentido lato, no qual o ballet passou a constituí-la dentre suas várias

formas de manifestação. A dança no ocidente, particularmente a moderna e a contemporânea,

resgatou suas origens em busca de expressar pelo/no movimento significações que

transcendessem qualquer outra forma de linguagem. Assim, o ballet sofreu severas críticas

por seu rigor e virtuosismo; contudo, ele permanece arraigado em diversas culturas,

especialmente as ocidentais.

Apesar da credibilidade que a dança, seja moderna ou contemporânea, conquistou

no mundo, o ballet continua sendo referência para essa arte, sobretudo aquela direcionada à

dimensão profissional de alta performance. É indispensável ponderar a importância do ballet,

especialmente no que diz respeito à sua contribuição para a descoberta de novas

possibilidades e, ao mesmo tempo, meio para atingi-las. Para concluir,

[...] é dança o que de bom se fez no passado, o que de bom se faz agora e o

que de bom se fará no futuro, e será dança aquilo que contribuir

efetivamente, aquilo que se somar positivamente às experiências vividas por

gerações de artistas que dedicaram suas existências ao plantio e cultivo de

uma arte cujos frutos surgem agora, não apenas nos nossos palcos, mas nas

telas dos nossos cinemas e dos nossos televisores, deixando de ser algo

cultivado por uma pequena elite para se transformar num meio de

entretenimento dos mais populares nas últimas décadas (FARO, 2011, p.

161).

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A historiografia da dança e do ballet ainda pode ser considerada incipiente, tendo

em vista que há poucos cursos de dança no Brasil e a maioria das escolas de formação de

bailarinos não oferece no currículo uma disciplina sobre sua história. Este texto, considerando

a limitação da bibliografia utilizada (somente obras traduzidas para o português), teve o

propósito de sintetizar os principais acontecimentos da história da dança e organizá-los de

modo a facilitar a compreensão do leitor.

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3 Uma leitura do ballet a partir da psicologia histórico-cultural: arte, atividade e

práxis

3.1 O ballet como arte

Em busca de coerência entre o método que orienta esta pesquisa e a forma de sua

exposição, iniciar-se-á este capítulo discorrendo sobre a arte. Entende-se que ela é síntese da

relação entre homem e mundo; portanto, ela revela o processo de humanização. Em outras

palavras, a arte é considerada como uma totalidade que se constitui de outras totalidades, bem

como atividade (e dentro dela como atividade criadora e/ou práxis) e linguagem. Assim, a

proposta é apreender o todo do qual a arte é parte, ou melhor, partir em busca de um todo

estruturado. Nessa perspectiva pode-se dizer que a arte, como um todo articulado, é uma das

formas humanas mais complexas de atividade e linguagem; logo, por meio daquela (arte) é

possível entender estas (atividade e linguagem) e vice-versa. Neste trabalho, a arte

(especificadamente o ballet e a dança) será apreendida a partir da categoria atividade.

Vigotski não produziu conhecimentos sobre o ballet e nem qualquer outro gênero

da dança, mas além de seus pressupostos teórico-metodológicos nortearem este trabalho, a

análise crítica que realiza sobre arte, prioritariamente literária, e sua articulação com a

psicologia, nos permite fazer uma leitura do ballet a partir seus apontamentos. Este capítulo

não se propõe a analisar esta arte tal como Vigotski o faz em suas obras, mas compreendê-la

sob sua perspectiva, o que se constitui como grande desafio. As obras que versam sobre a arte

referem-se às suas primeiras sistematizações; nesse sentido, as proposições de uma psicologia

histórico-cultural ainda estavam em construção (BARROCO, 2007).

Vigotski (1999) criticava as concepções de arte que se centravam ora no sujeito,

ora no objeto. Para tanto, propôs um método objetivo-análitico pelo qual pôde compreender o

comportamento, no que diz respeito às reações estéticas26, por meio da análise das condições

objetivas, isto é, da obra de arte, que também é constituída pela dimensão subjetiva de quem a

cria. Para Barroco e Superti (2014),

[...] o autor destaca a necessidade de uma íntima relação entre psicologia e

arte, pois considera que esta exprime a sociedade que lhe dá origem e

objetiva na obra, objeto cultural, características psicológicas complexas. Ao

mesmo tempo, possibilita a apropriação de tais características humanas pelos

26 Para Vigotski, as reações estéticas são "[...] organização consciente de sistemas de estímulos referentes a

fatores socioculturais [...]" (BARROCO, 2007, p.4); ou ainda "[...] forma específica de conhecimento,

relacionada aos sentimentos humanos, que são parte constituinte da composição do conteúdo da obra"

(BARROCO, 2003, apud BARROCO, 2007, p. 4).

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indivíduos. Podemos entender que a natureza social da arte traz em si a

relação com a psicologia, uma vez que a sociedade e toda realidade humana

é forjada pelos homens nas relações sociais, por meio do trabalho e, neste

mesmo movimento, as funções psicológicas superiores são elaboradas e

objetivadas, isto é, deixam de ser funções meramente biológicas. Assim, ao

se produzir arte e ao dela se apropriar, funções psicológicas dos sujeitos

também são formadas e desenvolvidas (p. 23).

Segundo Vigotski (1999), a estrutura da obra de arte é determinada pela relação

entre conteúdo (ou material) e forma. Pelo primeiro entende-se que é "[...] tudo o que o poeta

usou como já pronto - relações do dia-a-dia, histórias, casos, o ambiente, os caracteres [...]"; e

o segundo, isto é, a forma, é "[...] a disposição desse material segundo as leis da construção

artística no sentido exato do termo" (p. 177). Assim, a arte nada mais é do que a realidade

reelaborada, pelos processos psíquicos do homem, os quais emergem em criação. A forma

reconfigura o conteúdo, que até então é disposto como uma sucessão de acontecimentos

lineares e atribui-lhe nova propriedade.

O ballet e/ou a dança é uma das manifestações da arte mais complexas para

análise, pois além de reunir outras formas artísticas - como, por exemplo, a música e a

literatura - é também a única que possui o corpo como instrumento de construção e

materialização da obra de arte, tendo em vista que é por meio do movimento corporal que ela

se realiza. Contudo, entende-se que nesse gênero (no caso da dança como um todo), o

conteúdo é o que da realidade foi utilizado para construir a história ou tema da apresentação e

a forma é como e sob quais movimentos corporais essa história será representada. Um

exemplo de conteúdo seriam os amores impossíveis relatados no ballet romântico, no qual a

moça rica se apaixona pelo rapaz pobre e, por isso, são impedidos de se casar. Há elementos

da realidade, mas também há reelaboração e criação a partir deles. Um exemplo de forma é a

representação, para o público, dessa história sob a técnica e virtuosismo, típicos do ballet.

A síntese desses elementos constitutivos da obra de arte (conteúdo e forma)

provoca reações estéticas que Vigotski (1999) nomeou de catarse. Em outras palavras, a

forma incita um sentimento diferente daquele suscitado pelo conteúdo, de modo que a

articulação desses sentimentos se transforma em algo novo, que não pode ser encontrado em

nenhum dos elementos estruturais separadamente. Para o autor "[...] toda obra de arte implica

uma divergência interior entre conteúdo e forma, e que é precisamente através da forma que o

artista consegue o efeito de destruir ou apagar o conteúdo" (p. 272). É esse movimento que

explica a catarse e o autor ainda completa que esse termo (catarse) traduz de forma plena e

clara

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[...] o fato, central para a reação estética, de que as emoções angustiantes e

desagradáveis são submetidas a certa descarga, à sua destruição e

transformação em contrários, e de que a reação estética como tal se reduz, no

fundo, a essa catarse, ou seja, à complexa transformação dos sentimentos (p.

270).

Essa contradição existente entre a emoção provocada pelo conteúdo e pela forma

é superada na/pela catarse; logo, a emoção é, para Vigotski (1999), a base da reação estética.

Nesse sentido, infere-se que a arte suscita combinações e conflitos de emoções que são

catárticos, assim como a arte também contém em si a catarse cristalizada, pois ela é expressão

(catártica) de quem a produz. Por exemplo, quando a bailarina apresenta uma coreografia, ela

experencia tanto os sentimentos do personagem que representa, como no caso do papel de

Odette e Odille27, na história do Cisne Negro, quanto os sentimentos que são suscitados pela

apresentação como um todo (o medo de errar, a ansiedade, satisfação, a preocupação com a

perfeição técnica, entre outros).

Observem o quão contraditório são os sentimentos entre o conteúdo e a forma. No

conteúdo é preciso transmitir a paixão de Odette pelo príncipe (dentre os vários sentimentos a

ser transmitidos na história), já a forma provoca insegurança e medo (de falhar na técnica -

pirueta, fouette etc. - do ballet e na expressão na qual é preciso transmitir). O produto da arte

provoca um sentimento, tanto no artista quando no espectador, que supera aquele da forma e

do conteúdo. No espectador, além do sentimento suscitado pela história do Cisne Negro

(conteúdo), há também aquele revelado na beleza do ballet (forma). Esses sentimentos e

emoções são contraditórios e produzem algo novo, a síntese, que passa a ser a referência de

sentimento da apresentação como um todo e não das partes; logo, a arte também possui essa

peculiaridade, isto é, de ampliar os sentimentos tanto do artista quanto do espectador

(VIGOTSKI, 1999). Nas palavras de Vigotski (1999)

[...] ao tecido de relações perfeitamente reais e cotidianas, entrelaça-se

algum motivo irreal, que começamos a interpretar também como motivo real

em termos absolutamente psicológicos, e a luta entre esses dois motivos

incompatíveis é o que produz a contradição, que deve necessariamente ser

resolvida na catarse e sem a qual não existe arte (p. 298).

Embora Vigotski tenha se dedicado à análise da reação estética e reconhecido a

importância dos sentimentos e emoções suscitados pela arte, o autor enfatiza o equívoco em

atribuir-lhe, como fim, apenas o contágio. Nas suas palavras "a arte está para a vida como o

vinho para a uva - disse um pensador, e estava coberto de razão, ao indicar assim que a arte

recolhe da vida o seu material mas produz acima desse material algo que ainda não está nas

27 As personagens principais da história do Cisne Negro que lutam para se casar com o príncipe.

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propriedades desse material" (VIGOTSKI, 1999, p. 307-308). Nesse sentido "[...] a arte

parece completar a vida e ampliar suas possibilidades" (VIGOTSKI, 1999, p. 313).

O autor refere-se à arte como um ato criador e ainda menciona que o sentimento

vivo e intenso não é suficiente para produzi-la. Ela é síntese (do sentimento e da realidade)

justamente porque se constitui a partir deles, mas supera-os apresentando elementos novos;

logo, se não há um processo criativo, não pode ser considerado um produto artístico.

Eis por que a percepção da arte também exige criação, porque para essa

percepção não basta simplesmente vivenciar com sinceridade o sentimento

que dominou o autor, não basta entender da estrutura da própria obra: é

necessário ainda superar criativamente o seu próprio sentimento, encontrar a

sua catarse, e só então o efeito da arte se manifestará em sua plenitude

(VIGOTSKI, 1999, p. 314).

O ballet não pode ser entendido como produto unicamente do sentimento (seja do

bailarino ou dos criadores da obra), assim como também não é arte devido à técnica, música,

coreografia e/ou pela história que transmite. São esses elementos de forma articulada que a

produzem e permitem que tanto a sua vivência (como no caso do bailarino) quanto a sua

apreciação (no caso do espectador) seja uma experiência catártica.

A arte é também para Vigotski (1999) o social em nós. O fato de ser produzida ou

contemplada por um indivíduo, não a torna individual. Tendo em vista que o homem é

determinado pelas relações sociais e sua consciência se constitui pela/na apropriação do

mundo, qualquer produção humana é, necessariamente, histórica e social. Ele escreve: "[...] a

arte é uma técnica social do sentimento, um instrumento da sociedade através do qual

incorpora ao ciclo da vida social os aspectos mais íntimos e pessoais do nosso ser" (p. 315). E

então conclui: "seria mais correto dizer que o sentimento não se torna social mas, ao

contrário, torna-se pessoal, quando cada um de nós vivencia uma obra de arte, converte-se em

pessoal sem com isto deixar de continuar social" (p. 315).

O social está explícito na dança e/ou ballet, pois ela é síntese da criação de vários

homens e gerações (e consequentemente de sentimentos diferentes); é produto das relações

humanas históricas e é destas que nos apropriamos. É social porque é construído na relação

com o mundo e com as pessoas; o próprio criador é o social internalizado, logo, o que ele cria

é também social. Consequentemente, experienciar a arte (como espectador ou bailarino)

permite a vivência de sentimentos e emoções, assim como da apropriação de conhecimentos

produzidos pela sociedade; portanto, o ballet e a dança são também o social em nós.

A riqueza da arte é, então, revelada por Vigotski. Dessa forma, pode-se inferir que

ela é ao mesmo tempo ponto de chegada e de partida para o desenvolvimento humano: ponto

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de chegada porque ela atingiu a forma mais complexa de uma atividade tipicamente humana,

tendo em vista os processos psíquicos que permitem sua realização; e partida porque ela pode

ser um meio efetivo de aprendizagem e desenvolvimento, já que uma vez cristalizada se torna

produto da cultura e esta é que possibilita a humanização. Segundo o mesmo autor, a "arte é

antes uma organização do nosso comportamento visando ao futuro, uma orientação para o

futuro, uma exigência que talvez nunca venha a concretizar-se, mas que nos leva a aspirar

acima da nossa vida o que está por trás dela" (VIGOTSKI, 1999, p. 320).

3.2 O ballet como possível atividade humana consciente e criadora

Embora Vigotski já nas suas primeiras reflexões sobre a arte, precisamente no

livro Psicologia da Arte, aponte a importância do ato criador, ele centraliza as discussões na

importância dos sentimentos e emoções suscitados pela obra de arte. Posteriormente ele

desenvolveu proposições sobre a atividade criadora, que é essencial para compreender como a

arte ou o artista se constituem como tal. Porém, antes de apresentá-las (as proposições sobre

atividade criadora), é preciso que o leitor entenda, sobretudo, a arte como uma atividade

humana, ou ainda, o que caracteriza e distingue essa atividade.

Luria (1979) diferencia a atividade humana referenciando-a como uma atividade

consciente28 e, para tanto, aponta três características que evidenciam sua particularidade. A

primeira revela-a como um complexo de necessidades socioculturais, isto é, necessidades

cognitivas, de comunicação, de ser útil à sociedade e de nela ocupar determinada posição;

nesse sentido, o autor considera-a como uma atividade que é desvinculada de interesses

puramente biológicos e explicita o quanto estes (motivos biológicos) são geralmente

superados naquela (atividade), por exemplo, quando o homem faz jejum devido a uma crença.

A segunda é devido a seu caráter de atividade mediada. Ela não se realiza apenas

na aparência ou na experiência individual, mas implica determinados conhecimentos que

permitem abstrair o imediatamente perceptível e conhecer as leis que regem o fenômeno. O

autor exemplifica essa afirmação quando aponta que o homem não sai sem guarda-chuva

somente porque o dia está ensolarado, bebe água de um poço envenenado porque está com

muita sede ou ainda, ele não pula de um precipício porque nunca experimentou e não sabe o

que vai acontecer. Esses exemplos ilustram a complexidade do comportamento humano e

28 É importante dizer que também pode ser uma consciência alienada, mas nesse trabalho não cabe tal discussão

tendo em vista nossos objetivos.

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evidenciam as mediações que constituem o fenômeno, determinando o modo como ele age

sobre/no mundo.

A terceira característica da atividade humana é que, para além da hereditariedade

e da experiência individual, o comportamento do homem possui outra fonte, assinalada pela

assimilação da experiência social por meio do processo de aprendizagem. Esta é a responsável

pelos conhecimentos e habilidades mais significativos que o homem adquire ao longo de sua

vida.

Segundo Luria (1979), o que possibilitou ao homem uma atividade consciente -

isto é, agir no mundo em prol da satisfação de necessidades sociais e não apenas biológicas, ir

além do imediatamente perceptível, assim como se apropriar do conhecimento historicamente

acumulado pelo processo educacional, superando a hereditariedade e a experiência individual

- foi o trabalho e a linguagem. Em suas palavras: "por isto as raízes do surgimento da

atividade consciente do homem não devem ser procuradas nas peculiaridades da 'alma' nem

no íntimo do organismo humano mas nas condições sociais de vida historicamente formadas"

(p. 75, grifos do autor).

A partir de tais concepções, pode-se entender que o ballet (assim como a dança no

sentido mais amplo) é uma atividade consciente. Primeiro, porque nela não se encontra

interesses biológicos imediatos; é uma atividade social, seja por interesses estéticos,

cognitivos, para expressar sentimentos, para pertencer a um grupo, para ter uma posição na

sociedade, entre outros. Um exemplo de que o ballet nega e supera as necessidades

biológicas, do ponto de vista de quem o pratica, é o prazer, apesar da dor - devido ao

treinamento de flexibilidade e força ou para se manter sobre a ponta dos pés - frequentemente

relatada por bailarinos. Se a atividade obedecesse aos interesses biológicos, as pessoas jamais

o praticariam, tendo em vista que a dor é abominável por qualquer ser. Não apenas a prática

atual ilustra a superação das necessidades biológicas, mas também a própria origem do ballet

e os motivos pelos quais ele se desenvolveu, isto é, para entreter a nobreza.

O segundo motivo que justifica o ballet como uma atividade consciente é que a

aparência não corresponde à realidade concreta, mas é síntese dela, de tal forma que comporta

mediações e contradições; no ballet, por exemplo, é comum ver o espectador dizer que a

bailarina dança de forma tão sutil e delicada, que parece fácil ao ver uma apresentação. Mas,

geralmente, sabe-se que o ballet envolve um treinamento técnico, disciplinado e doloroso.

Existem mediações que o constituem e que não estão explícitas na imagem que ele representa,

mas que se pode saber sem precisar necessariamente experenciar. Outro aspecto que

diferencia aparência e essência é a capacidade do espectador de abstrair a técnica (contida no

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movimento) e a estética e, então, apreender o conteúdo da apresentação, assim como a do

artista ser capaz de transmitir uma história dançando, ainda que ela não exista como reflexo

da realidade ou que ele (o artista) nunca tenha vivenciado o papel que representa.

Terceiro, porque o ballet é um produto da ação do homem no mundo e para

apropriar-se dele é necessário um processo ensino-aprendizagem. Algumas capacidades

físicas (flexibilidade, força, estrutura corporal etc.) são adquiridas pela hereditariedade e

muitas habilidades podem ser experenciadas individualmente, mas, fundamentalmente, tudo

no ballet é adquirido pelo processo educativo, inclusive as capacidades físicas.

O trabalho social e o emprego de instrumentos foram considerados os primeiros

(ou juntamente com a linguagem) responsáveis pelo surgimento da consciência e,

consequentemente, pelo desenvolvimento psíquico do homem. Eles sinalizam a transição de

uma vida natural para uma vida socialmente determinada. Os homens passam a produzir sua

vida, criar novas necessidades e dar significados ao mundo. Ele planeja suas ações e cria

condições para tal, ou seja, para obter o alimento não é necessário mais uma relação direta e

imediata; é possível dividir tarefas ainda que a finalidade não coincida com o sentido da

atividade. A função dos instrumentos é cristalizada no objeto e na sua designação, tornando-

os cada vez mais elaborados. Essa complexificação do comportamento do homem o diferencia

das demais espécies e caracteriza o processo de humanização. Em outras palavras, "torna-se

claro que a atividade consciente do homem não é produto do desenvolvimento natural de

propriedades jacentes no organismo mas o resultado de novas formas histórico-sociais de

atividade-trabalho" (LURIA, 1979, p. 77, grifos do autor).

Esse processo caracteriza o homem como um ser necessariamente criador, pois é

pela/na atividade que ele cria sua subsistência cada vez mais desenvolvida e humanizada

(BARROCO, 2007). Segundo Barroco (2007), "é esse movimento de contínua criação e

apropriação que o leva a sair da condição de espécie biológica e o credencia a ser gênero

humano e, além disso, um genérico particular" (p. 13). O que caracteriza então uma atividade

criadora? Como surge e a partir de quais elementos eu posso considerá-la como criadora?

Toda atividade criadora é arte?

Buscou-se responder (ou uma tentativa de explicar) a esses questionamentos a

partir das concepções de Vigotski. O autor entende por “atividade criadora do homem, aquela

em que se cria algo novo” (VIGOTSKI, 2009, p. 11). Assim, o autor menciona duas formas

de atividade. A primeira, denominada atividade reconstituidora ou reprodutiva, está

relacionada à capacidade psíquica de armazenar as experiências e reproduzi-las, sem um ato

criador propriamente dito. Segundo Barroco (2007), seu caráter conservador permite adequar-

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se às condições da realidade; por isso são mais evidentes as atividades cotidianas. O outro tipo

de atividade, combinatória ou criadora, se refere à capacidade do cérebro de combinar e

reelaborar experiências anteriores, suscitando novas circunstâncias e condutas, sejam elas

novas imagens ou ações. Essa forma de criação que é possível devido à capacidade psíquica

do homem, de combinar e reelaborar, é denominada pela psicologia de imaginação ou

fantasia. Essa característica peculiar confere ao homem a capacidade de projetar e lidar com

situações inesperadas. A imaginação é a base da atividade criadora, seja ela científica, técnica

ou artística. A realidade, produzida historicamente, de modo geral, é a imaginação

cristalizada, isto é, fruto de uma atividade criadora.

Nesse sentido, nem toda atividade criadora pode ser considerada como arte. O

ballet pode ser entendido tanto como atividade reprodutiva, quando o bailarino, por exemplo,

apresenta as coreografias clássicas ou românticas que foram criadas há anos e a mantém tal

como em sua origem; ou ainda pode ser considerado como atividade criadora quando, a partir

das produções ao longo dos anos, ele recria e reelabora o conteúdo e a forma, suscitando um

novo produto artístico.

No que diz respeito à filogenia, o homem é considerado potencialmente criador;

entretanto, é pela/na ontogênese, ou seja, na relação com o mundo, que ele se desenvolve.

Nesse sentido, a criação está ligada ao acúmulo de experiência, logo, não herdado

biologicamente. Assim, Vigotski (2009) afirma que para compreender a construção desse

processo é necessário explicar a relação entre imaginação e realidade no comportamento

humano, que se apresenta sob quatro formas principais.

A primeira sugere que a atividade criadora é determinada pelas vivências e

apropriações do indivíduo, de tal forma que o material do qual o psiquismo dispõe para

construir a imaginação procede da sua experiência. Portanto, o grau da criação é proporcional

à qualidade desse material; em outras palavras, o acesso à cultura elaborada e a um

conhecimento rico e diversificado tende a propiciar mais elementos para o indivíduo

combinar e reelaborar; logo, o produto dessa atividade será mais criativo.

A segunda se refere à relação recíproca entre o produto final da imaginação e um

fenômeno complexo da realidade. Se, na primeira forma de relação entre a atividade e a

realidade, a experiência sustenta a imaginação, nesta (segunda forma) a imaginação sustenta a

experiência. Algumas situações, lugares e pessoas não precisam ser vivenciados diretamente

para serem conhecidos, pois é possível adquirir tal experiência por meio de mediações. Um

exemplo que ilustra essa afirmação é quando uma criança conta sua experiência de viagem

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para outra; ainda que a colega não conheça o lugar, a sua capacidade de criação e imaginação

é possível compreender o que foi narrado pela outra.

A terceira forma de relação entre imaginação e realidade está vinculada à emoção

e tem dois momentos distintos. Um deles se refere à capacidade da emoção determinar a

fantasia, ou seja, o estado "interno" seleciona imagens, situações e impressões que condizem

com os sentimentos daquele momento e muitas vezes fantasiam-nas29 (imagens, situações e

impressões) a partir destes (sentimentos). Existe uma tendência de agrupar as imagens,

situações e impressões de acordo com o sentimento que estas proporcionam à pessoa. Por

isso, é comum ouvir "que fase ruim" ou "que dia ruim", pois o estado interno também

constitui o "como" ela apreende e olha para a realidade. Se o estado interno da pessoa nesse

dia é ruim, ela tende a agrupar tudo que exerce sobre ela uma influência ruim, ainda que não

possua relações diretas entre si.

No segundo momento, a imaginação determina o sentimento. Ao fantasiar

intencionalmente somos afetados e criamos estados internos e sentimentos sobre a criação,

assim como imaginar uma situação aparentemente real, mas que não corresponde à realidade,

também provoca emoções. São exemplos das respectivas situações: ao fantasiar um futuro

desejável, uma pessoa pode ficar mais animada ou infeliz; ou quando entra no quarto escuro e

imagina que a toalha é uma pessoa, isso pode provocar medo. As situações não são reais, mas

a pessoa vive efetivamente o sentimento; ele é real.

A quarta e última forma de relação diz respeito a uma construção da imaginação

que nunca foi vivenciada e não corresponde a nenhum objeto existente, ou seja, algo

completamente novo que poderá adquirir materialidade sob a forma de um objeto, a partir da

imaginação cristalizada, que influenciará o mundo. Um exemplo é quando o homem produziu

pela primeira vez um objeto ou instrumento novo, como uma máquina (de lavar louças, de

produzir café etc.) ou instrumento, para satisfazer seus interesses cotidianos e ele passou a ser

útil à sociedade como um todo. Contudo, Vigotski (2009) também ressalta a importância da

arte, que não apresenta um produto técnico e utilidade imediata, mas que "[...] podem exercer

essa influência sobre a consciência social das pessoas apenas porque possuem sua própria

lógica interna [...] lógica essa que se condiciona à relação que a obra estabelece entre o seu

próprio mundo e o mundo externo" (p. 33).

29 Lembrando que fantasiar para Vigotski não é algo extraordinário, como se fosse um mundo irreal. Ao

contrário, é a capacidade de combinar e reelaborar a realidade, criando novas situações. Nessa terceira forma de

relação (entre fantasia e realidade) que se apresenta, ele mostra o quanto o estado interno ou sentimento da

pessoa pode determinar o modo como ela apreende a realidade, inclusive fantasiando-a.

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As quatro formas que Vigotski utiliza para explicar a relação entre realidade e

imaginação são importantes para mostrar como o ballet pode se constituir como atividade

criadora. Assim, a criação no ballet depende do quanto o bailarino/coreógrafo conhece a

realidade (para criar o conteúdo), assim como do ballet, no que diz respeito à técnica e à

estética do movimento (para criar a forma). A criação não é inata, mas construída por meio

das condições objetivas, que são internalizadas e depois retornam para a realidade

transformadas em forma de produto artístico. Logo, quanto mais vivência do mundo e da

dança ele tiver, mais criativa poderá ser a coreografia (e claro, a história a ser representada).

Assim também ocorre com o espectador; quanto mais histórias e apresentações sobre o ballet

ele experienciar, mais propriedade ele disporá para apreciar (e imaginar) um espetáculo de

dança.

A imaginação auxilia, por exemplo, uma apresentação de ballet e/ou de dança. Em

geral, a história (ou conteúdo) a ser apresentada não corresponde diretamente às disposições

da realidade. Então, é a imaginação que garante que aquela história, lugar e acontecimentos

sejam apreendidos tal como se deseja transmitir. Por exemplo, se o bailarino não se imaginar

naquele papel ele não conseguirá representá-lo adequadamente e, ao mesmo tempo, se o

espectador não abstrair determinadas condições (por exemplo físicas e/ou materiais) e

imaginar a história, ele também não vai compreender o conteúdo do espetáculo.

A terceira forma subdivide-se em duas e ambas mostram o quanto as emoções

podem determinar a criação no ballet ou, ainda, o modo como a apresentação de um bailarino

será percebida. No primeiro momento (emoção determina a imaginação), o estado emotivo do

bailarino durante a criação artística influi, por exemplo, nos sentimentos que ele vai transmitir

com o espetáculo/apresentação a ser criado. Nesse sentido, se ele estiver triste, a coreografia

será mais dramática; se estiver animado, será cômica. Assim, as emoções dele

(coreógrafo/bailarino) no momento vão constituir suas criações. O sentimento do espectador,

naquele dia, também vai determinar o modo como ele apreende a coreografia ou espetáculo.

Isso revela a totalidade do ser humano. Em outras palavras, assim como a arte é a

materialização da criatividade e sentimentos do artista (aspectos inseparáveis), o espectador,

ao se apropriar deles, não isola seu estado interno; as suas emoções e sentimentos determinam

a interpretação da arte e o inverso também é verdadeiro. Eles se constituem mutuamente. O

segundo momento (o quanto a imaginação determina a emoção) revela o quanto os

sentimentos suscitados pela imaginação ao assistir ou vivenciar um espetáculo de ballet

podem provocar sentimentos e despertar outros que estão ocultos naquele momento.

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A quarta e última forma de relação refere-se ao quanto uma produção artística do

ballet, por exemplo, pode interferir na consciência social. O tema ou conteúdo representado,

ainda que seja fruto da imaginação, pode também ser meio de reflexão para a sociedade e/ou

bailarinos. Nesse sentido, também o caracteriza como importante mediador entre o indivíduo

e o mundo, inclusive em processos educativos. A proposição da dança moderna de Martha

Graham já apontava tais preocupações "[...] quero falar sobre os problemas de nosso século,

onde a máquina perturba os ritmos do gesto humano e onde a guerra fustigou as emoções e

desencadeou os instintos" (GARAUDY, 1980, p. 89). As relações entre realidade e

imaginação apresentadas permitem compreender o homem como síntese histórica e social.

Suas criações são fundamentadas na realidade e ela constitui a base psicológica. Para Vigotski

(2009), "qualquer inventor, mesmo um gênio, é sempre um fruto de seu tempo e de seu meio.

Sua criação surge de necessidades que foram criadas antes dele e, igualmente, apoia-se em

possibilidades que existem além dele" (p. 42). Complementa, ainda, que "as classes

privilegiadas detêm um percentual incomensuravelmente maior de inventores na área da

ciência, da técnica e das artes porque é nessas classes que estão presentes todas as condições

necessárias para a criação" (p. 42). Nesse sentido, o quanto uma pessoa é ou não criativa

depende dos acessos à realidade que ela possui e qual posição social ela ocupa.

3.3 O ballet como práxis

A atividade pode ser também, em um nível mais complexo, práxis. Segundo

Vázquez (1977), essa atividade, essencialmente prática, na qual o homem age sobre e a partir

da matéria, transformando-a em uma realidade humanizada é denominada práxis. A práxis

pode ser considerada a partir de dois níveis, quais sejam: (1) práxis criadora e práxis

reiterativa (ou imitativa) e/ou (2) práxis reflexiva e espontânea. Os critérios que determinam

seu nível está diretamente ligado ao grau de consciência do sujeito sobre o processo prático e

o grau de criação revelado no produto. Embora estejam didaticamente separados, esses

critérios estabelecem uma relação dialética na qual um determina o outro, isto é, o ideal

(sujeito) e real (objeto cristalizado) não se separam, mas se constituem mutuamente. De

acordo com Vázquez (1977), "o grau de consciência que o sujeito revela no processo prático

não deixa de se refletir na criatividade do objeto e vive-versa. Mas essas influências mútuas,

em virtude do contexto social em que a práxis se verifica, não se dão de maneira estática e

absoluta" (p. 246).

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Levando em consideração que a práxis criadora se assemelha à práxis reflexiva e a

reiterativa à espontânea, esse trabalho se direciona à práxis criadora e reiterativa (ou

imitativa), especialmente porque o foco é discorrer sobre quando e como a atividade é

efetivamente criativa e transformadora. Não existe uma práxis genuinamente criadora e nem

puramente reiterativa, mas existe o que é predominante em cada atividade prática tendo em

vista os critérios supracitados.

Assim como toda atividade essencialmente humana, a práxis criadora também

surge para satisfazer uma necessidade. Nesse sentido, a criação não é um produto ideológico,

mas possui raízes históricas e sociais. Vázquez (1977) aponta que "o homem não vive num

constante estado criador" e "[...] criar é para ele a primeira e mais vital necessidade humana,

porque só criando, transformando o mundo, o homem [...] faz um mundo humano e se faz a si

mesmo" (p. 248).

O autor assinala três traços que caracterizam a atividade criadora. Eles são:

(1)"unidade indissolúvel, no processo prático, do interior e exterior, do subjetivo e o

objetivo"; (2) "indeterminação e imprevisibilidade do processo e do resultado"; e (3)

"unicidade e irrepetibilidade do produto". Em outras palavras, (1) a criação não existe como

uma ideia materializada mecanicamente. Nesse processo existe um movimento dialético que

se oculta no produto e por isso ele (o produto criativo) não pode ser entendido como

duplicação ou transposição à matéria da forma pré-existente na consciência. Assim, pode-se

dizer que (2) as transformações que ocorrem entre a ideia inicial e seu produto caracterizam a

atividade criadora como imprevisível e incerta, pois depende do quanto as condições objetivas

serão ou não favoráveis para concretizá-la (a ideia); logo, ela não se realiza imediatamente,

mas possui um conjunto de mediações que determinam sua efetivação e que está em constante

reconstrução na consciência. Ao se tornar um produto cristalizado, (3) pode-se inferir leis que

regem o processo de sua criação que até então era desconhecido, tornando-o único e

irrepetível. Segundo Vasquéz (1977), se existe uma lei determinada a priori e que não se

modifica durante o processo, ou seja, se o produto final é previsível, não podemos considerá-

lo como fruto de uma práxis criadora.

Essa sujeição da totalidade do processo criador a uma lei que só a posteriori

pode ser descoberta, dá à lei em questão, ao processo prático por ela regido

e, finalmente, a seu produto um caráter único, imprevisível e irrepetível, que

é exatamente a característica de tôda verdadeira criação (VÁZQUEZ, 1977,

p. 250).

A obra de arte reúne em si (ou pelo menos deveria) essas três características

imprescindíveis à práxis criadora. Se arte é dar forma a um conteúdo e, ao mesmo tempo,

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transformar a matéria, pode-se dizer que o conteúdo, como produto psicológico, só se realiza

na relação recíproca com a matéria, de tal forma que a matéria não é inerte diante do ideal,

pois é necessário dialogar com suas propriedades físicas, assim como as ideias não se

submetem, unilateralmente, à matéria; eles se constituem, em um processo ativo e mútuo, para

produzir a arte. Nas palavras de Vázquez (1977)

Como processo prático, a criação artística tem princípio e fim. No começo, é

apenas uma forma, ou projeto inicial, e uma matéria disposta a ser operada.

No final, encontramos: a) a forma original já materializada depois de ter

perdido sua forma anterior; b) o conteúdo já formado; e c) a matéria que,

vencida sua resistência, se apresenta já formada. Mas encontramos tudo isso

em unidade indissolúvel, nesse produto já acabado que é a obra de arte (p.

255).

Ainda sobre as três características da práxis criadora, pode-se dizer que elas se

expressam, sobretudo, na criação artística, tendo em vista que (1) o processo interno e externo

são inseparáveis, pois "[...] a própria execução já é a unidade entre interior e exterior, entre

subjetivo e objetivo" (p. 256); (2) diz-se que é um processo incerto e imprevisível devido à

possibilidade de sua existência dar-se no processo e não como algo pré-determinado. Em

outras palavras "a obra de arte não existe como possibilidade à margem de sua realização; daí

a aventura, o risco, a incerteza que atormenta o artista" (p. 256). Tais características também

atribuem a arte um (3) caráter único e irrepetível, pois não existe uma lei fixa imutável, mas

uma construção durante sua realização. Nesse sentido "o objeto não é mera expressão do

sujeito; é uma nova realidade que o transcende" (VÁZQUEZ, 1977, p. 255).

[...] na práxis artística, se evidencia, pelo que acabamos de expor, que a

verdadeira criação supõe uma elevação da atividade da consciência e que sua

materialização requer a íntima relação do interior com o exterior, do

subjetivo com objetivo (VÁZQUEZ, 1977, p. 257).

Diferente da práxis criadora, a práxis reiterativa (ou imitativa) vai de encontro a

essas (três) características mencionadas, o que para Vázquez (1977) torna-a inferior àquela.

Nesse sentido, a práxis reiterativa (1) apresenta um modelo de referência (subjetivo) que será

reproduzido (objetivo), ou seja, quem pensa e/ou cria, não é exatamente quem executa. Essa

separação atribui-lhe o caráter de cópia ou duplicação, na qual existe uma lei que orienta a

ação do executor; logo, ela (a práxis reiterativa) é (2) previsível e se mantém tal como na ideia

originária porque já se conhece o resultado. Nesse sentido a atividade prática também (3)

perde a qualidade de única, pois ao ser determinada por uma lei a priori, é passível de

reprodução e imitação sempre que desejável.

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Vemos, por conseguinte, que a práxis imitativa ou reiterativa tem por base

uma práxis criadora já existente, da qual toma a lei que a rege. É uma práxis

de segunda mão que não produz uma nova realidade; não produz uma

mudança qualitativa na realidade presente, não transforma criadoramente,

ainda que contribua para ampliar a área do já criado e, portanto, para

multiplicar quantitativamente uma mudança qualitativa já produzida. Não

cria; não faz emergir uma nova realidade humana, e nisso reside sua

limitação e sua inferioridade em relação à práxis criadora (VÁZQUEZ,

1977, p. 258).

A práxis imitativa também se revela na arte, precisamente por meio do

academicismo30 (VÁZQUEZ, 1977). A arte acadêmica31 é então uma atividade dicotômica

(no que diz respeito ao subjetivo e objetivo), previsível e repetível, logo, não é criadora e não

transformadora. Para Vázquez (1977) "[...] na práxis total humana, inovação e tradição,

criação e repetição se alternam e às vezes se entrelaçam e condicionam mutuamente. Mas a

práxis determinante é a práxis criadora" (p. 279).

O ballet, para ser considerado práxis, necessariamente deve provocar uma

transformação (material, física ou na consciência social) no mundo ou no indivíduo (naquele

que o constrói, que o realiza ou que o aprecia). Pode-se dizer que na criação coreográfica

propriamente dita, ou apenas na reprodução dela, haverá transformação, seja psicológica ou

das capacidades físicas, pois a arte não é neutra; devido à particularidade da dança como um

todo, na qual o corpo é ao mesmo tempo meio de construção e cristalização da obra de arte, é

impossível uma reprodução puramente mecânica e automatizada. A sua perfeita realização

requer o uso das funções psíquicas de modo ativo e intencional, logo, sem a consciência dos

movimentos e do corpo - que implica também a expressão dos sentimentos - ela não se

realiza; ao mesmo tempo, as capacidades físicas (força, flexibilidade, agilidade etc.) se

modificam para adequar-se às exigências de cada movimento.

Assim como Vigotski diz que a atividade pode ser criadora ou reprodutiva,

Vázquez também identifica-as no que diz respeito à práxis, porém como criadora ou

reiterativa. Nesse sentido, entende-se que o ballet é uma práxis reiterativa quando o bailarino,

por exemplo, reproduz um repertório; pois ele não participa do processo de criação e a

coreografia é idêntica ao produzido na sua origem, sendo basicamente uma duplicação da

mesma. O próprio processo de aprendizagem do ballet também descaracteriza-o como

criador, devido à decomposição dos movimentos em busca de automatizá-los para garantir

30 É o mesmo que [...] criação artística de acordo com princípios ou leis que se apresentam com caráter

normativo (VÁZQUEZ, 1977, p. 277). 31 Considerando que o ballet é uma arte acadêmica, ele também se encaixa nas críticas feitas por Vázquez

(1977).

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uma reprodução mais virtuosística32. Os movimentos repetitivos, realizados na barra e centro,

constituem a base necessária para a aprendizagem do ballet, entretanto, é importante refletir

sobre esse processo e transformá-lo, em prol de uma prática que não se limite à reprodução.

É comum a separação, tanto no ballet quanto na dança (moderna ou

contemporânea), entre aquele que cria e aquele que executa. Nesse sentido, parece haver, a

princípio, uma separação entre subjetivo e objetivo, entre o ideal e o real, o que a

descaracteriza como uma práxis genuinamente criadora. Porém, não significa que quem

realiza o movimento em si não utiliza e assimila processos psíquicos, ao contrário, para ele (o

bailarino, por exemplo) ser capaz de realizá-la (a criação artística) é necessário apropriar-se

dos processos psicológicos nela cristalizados e ao mesmo tempo desenvolver outros que

possibilitem o domínio de seu corpo e de seus movimentos; assim como os sentimentos e

emoções vivenciados significam a sua leitura de mundo. Entretanto, a transformação que

provocará no executor será diferente do criador. Neste, será qualitativamente mais elaborado e

complexo, devido à natureza social e unicamente humana da criação. Mas nada impede o vir-

a-ser do bailarino/executor. A reprodução ou imitação pode ser apenas um meio de

apropriação na qual ele reúne material psíquico para posteriormente ser um criador efetivo.

O ballet não é totalmente previsível; ainda que o bailarino tenha memorizado e até

executado algumas vezes, o produto pode ser diferente do planejado, tendo em vista a

complexidade da técnica e seu caráter instável. Além do mais, cada apresentação é a síntese

que cada artista expressa; logo, ele jamais poderá transmitir o mesmo sentimento ao

espectador e este jamais terá a mesma reação, ainda que seja o mesmo espetáculo. Porém, é

previsível no sentido de que ele (o bailarino) já sabe previamente a sequência dos movimentos

e como deve ser realizado, ainda que durante o processo de execução seja necessário

modificar a coreografia. Pode-se dizer, também, que não é um produto único e irrepetível, já

que no ballet é possível reapresentar coreografias e espetáculos (mas nunca será idêntico) e

além disso é tradição dançar os repertórios, criados há milhares de anos, com algumas poucas

variações, buscando, na verdade ser o mais fiel possível à sua origem.

Embora não se possa negar a importância do ballet como produto cultural da

humanidade, que pode vir a ser um meio efetivo de aprendizagem e desenvolvimento -

considerando que por meio dele o homem se apropria das relações humanas construídas

historicamente e ao mesmo tempo assimila as funções psíquicas superiores (tais como

imaginação, generalização, abstração, memória, pensamento) cristalizadas na arte - é preciso

32 Faz-se referência às aulas que possuem movimentos básicos repetitivos necessários para realizar os

movimentos mais complexos na coreografia.

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refletir sobre o modelo proposto de ensino e o modo como é representado, pois, em suma, no

ballet não se pode determinar o quanto ele se realiza como práxis; a criação não é um

princípio no ballet, mas pode vir a ser. É importante ressaltar que o período de formação

acadêmica, ainda que no modelo mais tradicional e rígido, pode não ser uma atividade em si

criadora, mas propicia condições para tal, já que é na relação com o mundo que nos tornamos

seres criativos. Portanto, faz-se necessário repensar como as aulas de ballet podem

transformar o homem em direção a um agir crítico e criativo, assim como ampliar suas

experiências e socializá-las.

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4 MÉTODO

4.1 O referencial teórico-metodológico

Esta pesquisa adota o materialismo histórico-dialético como método. Iniciamos a

exposição com uma breve apresentação desse pensamento que provocou profundas

transformações no modo de conceber a realidade e ao mesmo tempo na pesquisa das ciências

humanas. Marx (1818-1883) nasceu em Trier, na Renânia, doutorou-se em filosofia na

Universidade de Jena, em 1841, período que marca o início de sua trajetória teórica. O

diálogo com intelectuais que “dominavam” o pensamento ocidental e ao mesmo tempo a

participação em associações e partidos políticos operários foram determinantes para sua obra,

comprometida com a crítica teórica radical e sua militância política. A produção de Marx, de

base materialista, é fundamentada no estudo da filosofia alemã, da economia política inglesa e

do socialismo francês (NETTO, 2009). Esses foram os três pilares sobre os quais ele construiu

seus pressupostos teórico-metodológicos e que possibilitou a análise da sociedade burguesa

concreta. É importante ressaltar que, em princípio, a finalidade de Marx não era produzir uma

teoria e/ou método, mas apreender o movimento da realidade e, sobretudo, transformá-la.

A compreensão marxista de teoria e método como unidade impede a leitura

fragmentada desses elementos em suas obras. Segundo Netto (2009, p. 5), a teoria “[...] é o

real reproduzido e interpretado no plano ideal (pensamento)”. O método é o que permite

apreender a essência da realidade, ou seja, as múltiplas determinações que a constituem. Não

há teoria sem método, assim como a teoria (como expressão ideal do real), em um processo

dialético, norteia o método. Nas palavras de Lênin (1989, apud NETTO, 2009, p. 7), o

interesse de Marx era “como conhecer um objeto real e determinado” e não “como conhecer”.

O método torna possível o conhecimento (teórico) do objeto. Em outras palavras, não se faz

teorização sem método; são ambos faces da mesma moeda.

Embora Marx não separe método e teoria, há concordância entre alguns autores de

que determinadas obras apresentam mais explicitamente suas formulações metodológicas. São

elas: Manuscritos de Kreuznach; A Ideologia Alemã; A Miséria da Filosofia e na Introdução,

particularmente, n’O Método da Economia Política. Neste texto serão trabalhadas as três

últimas obras mencionadas.

Para compreender os postulados teórico-metodológicos de Marx é necessário,

sobretudo, conhecer suas concepções de homem e de mundo, assim como as relações que se

estabelecem entre elas. Marx nega as concepções idealistas (precisamente em Hegel) e

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mecanicistas (Feuerbach), não no sentido puro da negação, mas para superá-las. Nessa

perspectiva, para apreender a realidade em sua concentricidade não poderia ser adotado

qualquer método. Marx e Engels (2012) compreendem a realidade como produto da atividade

humana construída historicamente, ou seja, são as condições de existência, criadas pelo

homem por meio de suas relações com a natureza e com outros homens que engendram o real.

Dessa forma, a realidade “[...] não é uma coisa dada imediatamente por toda a eternidade e

sempre igual a si mesma [...]”, mas “[...] um produto histórico, o resultado da atividade

humana de toda uma série de gerações [...]” (p. 136).

A história não é fruto das ideias, assim como o materialismo também não o é (no

sentido de existir) sem a história. Em outras palavras, a história é materialista e o

materialismo é histórico, assim, estabelecem uma relação dialética, tornando-os inseparáveis.

Para ilustrar esse pressuposto, Marx e Engels (2012) mencionam quatro momentos que

elucidam as relações históricas originárias e que caracterizam o desenvolvimento humano. O

primeiro ato histórico do homem é a produção dos meios para satisfazer suas necessidades

básicas (comer, beber, vestir, morar etc.). O segundo é a criação de novas necessidades, mais

complexas, que surgem a partir das primeiras (básicas). O terceiro ato é a procriação, em que

ao satisfazer a necessidade de se relacionar, são criadas novas relações (constituição da

família, outras relações sociais). E o quarto ato histórico é a produção coletiva, criando um

“estado social” ou a sociabilidade. Esses momentos não ocorrem separadamente, mas um

determina o outro de forma a complexificá-los.

Dessa forma, Marx compreende a história como produto da existência humana;

logo, é resultado da atividade social do homem, direcionada à satisfação de suas necessidades.

Nas palavras dos autores,

Mostra-se, portanto, desde o princípio, uma conexão materialista dos

homens entre si, conexão que depende das necessidades e do modo de

produção e que é tão antiga quanto os próprios homens – uma conexão que

assume sempre novas formas e que apresenta, assim, uma “história” [...].

(MARX, ENGELS, 2012, p. 141).

Na concepção de homem e de mundo de Marx, o mundo é construído pelo homem

que, ao construí-lo, também se transforma. O homem se humaniza pelo/no mundo, ou seja, ele

se torna um ser essencialmente social na medida em que se relaciona com a natureza que ele,

pelo trabalho, transforma. Marx e Engels expressam tais concepções, em suas obras,

notadamente quando apresentam a consciência e a linguagem como uma conquista histórica,

fruto da atividade humana. Para Marx e Engels (2012),

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A linguagem é tão antiga quanto a consciência – a linguagem é a consciência

real, prática, que existe para os outros homens e que, portanto, também

existe para mim mesmo; e a linguagem nasce, tal como a consciência, do

carecimento, da necessidade de intercâmbio com os outros homens. Desde o

início, portanto, a consciência já é um produto social e continuará sendo

enquanto existirem os homens (p. 141).

Em contraste, as ideias anteriores a Marx concebiam a consciência como

expressão pura do pensamento, que se autodetermina, ou o reflexo da realidade transposta

idealmente, na qual o sujeito é passivo. O indivíduo chega em um mundo historicamente

construído e ao mesmo tempo em que se apropria dele também o ressignifica. Essa é a lei que

rege a humanidade, a história. Ela é, para Marx e Engels (2012), a

[...] relação que cada geração recebe da geração passada, uma massa de

forças produtivas, capitais e circunstâncias que, embora seja, por um lado,

modificada pela nova geração, por outro lado prescreve a esta última suas

próprias condições de vida e lhe confere um desenvolvimento determinado,

um caráter especial - que, portanto, as circunstâncias fazendo os homens

assim como os homens fazem as circunstâncias (p. 151).

A consciência é para Leontiev (1978) um processo psíquico que caracteriza o

desenvolvimento humano. Nas palavras do autor, “[...] é o reflexo psíquico da realidade,

refratada através do prisma das significações e dos conceitos linguísticos, elaborados

socialmente” (LEONTIEV, 1978, p. 88, grifos do autor). Nesse sentido,

A consciência é capaz de discriminar, sem dissociar, as relações objetivas

daquelas subjetivas, relações estas que são estabelecidas entre o homem e a

realidade. O que permite tal distinção é o reflexo psíquico consciente,

considerado como o produto das relações estabelecidas entre o homem e a

realidade, de modo que o indivíduo é capaz de compreender o mundo para

além da percepção imediata e se apropriar deste efetivamente. Todo esse

processo é possível pelas construções socialmente elaboradas ao longo da

história da humanidade e que propiciou no homem o surgimento dos

processos psíquicos [...] (FÁTIMA; SILVA, 2013).

Assim, a consciência e a linguagem, são unidades que se constituem

reciprocamente e surgem a partir da atividade do homem no mundo, precisamente, do

trabalho. Para o autor, os elementos constitutivos da consciência são o conteúdo sensível, o

significado e o sentido pessoal. O conteúdo sensível é as sensações, imagens perceptivas e

representações; em outras palavras, é a base material da consciência que possibilita à

realidade ser transposta idealmente, ou ainda, que lhe permite existir na dimensão subjetiva.

Entretanto, ao abstrair o conteúdo sensível, ele se torna um reflexo mecânico. Para tanto, há

outros elementos da consciência que traduzem a sua base material e que revelam a

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dialeticidade entre o sujeito e a realidade, eles são o significado e sentido. Segundo Leontiev

(1978),

A significação é a generalização da realidade que é cristalizada e fixada num

vetor sensível, ordinariamente a palavra ou a locução. É a forma ideal,

espiritual da cristalização da experiência e das práticas sociais da

humanidade. A sua esfera das representações de uma sociedade, a sua

ciência, a sua língua, existem enquanto sistemas de significações

correspondentes. A significação pertence, portanto, antes de mais, ao mundo

dos fenômenos objectivamente históricos (p. 94).

A significação, nesse aspecto, são os conceitos, regras e valores estabelecidos

socialmente e que foram cristalizados na linguagem; logo, é ela que possibilita a transmissão

de significados para as gerações posteriores e o avanço no conhecimento da realidade, já que

o homem, nas relações sociais, se apropria do que foi construído anteriormente.

O sentido pessoal é o mais amplo, pois é a síntese do conteúdo sensível e

significação articulado com as emoções, afetos e sentimentos. É o modo como o indivíduo

percebe o objeto determinado pelas suas relações no mundo.

[...] o sentido é sempre uma formação dinâmica, fluida, complexa, que tem

várias zonas de estabilidade variada. O significado é apenas uma dessas

zonas do sentido que a palavra adquire no contexto de algum discurso e,

ademais, uma zona mais estável, uniforme e exata. Como se sabe, em

contextos diferentes, a palavras muda facilmente de sentido. O significado,

ao contrário, é um ponto imóvel e imutável que permanece estável em todas

as mudanças de sentido da palavra em diferentes contextos. Foi essa

mudança de sentido que conseguimos estabelecer como fato fundamental na

análise semântica da linguagem. O sentido real de uma palavra é inconstante

(VIGOTSKI, 2001, p. 465).

Tal como aponta Fátima e Silva (2013)

o conteúdo sensível, significação e sentido pessoal estabelecem relações

indissociáveis. As imagens perceptivas que constituem o conteúdo sensível

são “traduzidas” pela significação, em que simultaneamente, essa imagem

vai ocasionar algo particular para o indivíduo (sentido pessoal) (p. 131).

A arte (ao se pensar na dança), por exemplo, constitui-se de uma imagem

perceptiva vinculada a ela (conteúdo sensível), que é significada como um meio de trabalho,

hobby ou contemplação e, ao mesmo tempo, possui regras e conceitos para se apropriar dela;

de tal forma que emite, por meio da zona dos sentidos, sentimentos bons ou ruins dependendo

das experiências ligadas a ela.

Diante dessas concepções, como apreender a realidade (e no caso de Marx, a

sociedade burguesa) se esta não é para ele expressão do pensamento, assim como o

pensamento não é puramente a realidade? Qual seria o método capaz de apreender esse

homem e esse mundo que se constituem mutuamente em um processo dialético? Como

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apropriar-se desse homem que constrói suas condições de vida, que constitui sua consciência

em um processo ativo e recíproco? Como conhecer esse homem real e determinado,

constituído histórica e socialmente?

Essas repostas não foram dadas imediatamente, mas por meio de uma construção,

ao longo de sua trajetória de pesquisador. As formulações que respondem a essas perguntas

constituem seus pressupostos teórico-metodológicos, cuja finalidade é elevar-se do abstrato ao

concreto.

A realidade se manifesta no pensamento e nas relações cotidianas em forma de

aparência, isto é, como resultado das determinações e não em seu processo constitutivo. A

aparência não dá o conhecimento do objeto (em estudo), mas é o ponto de partida para ele.

O concreto é concreto, porque é síntese de muitas determinações, isto é,

unidade do diverso. Por isso, o concreto aparece no pensamento como o

processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, embora seja

o verdadeiro ponto de partida e, portanto, o ponto de partida também da

intuição e da representação (MARX, 2012a, p. 255).

Ao negar as ideais até então vigentes, Marx supera-as, apresentando suas

concepções de homem e de mundo fundamentadas no materialismo histórico-dialético33. A

concreticidade do real só pode ser conhecida em suas múltiplas determinações34, isto é, por

meio de seu processo constitutivo, que não se dá naturalmente. Por exemplo, a burguesia

propunha uma sociedade fundamentada na igualdade, liberdade e fraternidade. Para conhecê-

la (a sociedade burguesa), era necessário apreender a estrutura e a dinâmica em que se

constituíram essas concepções. Não basta concebê-la no plano das ideias, mas ir além da

aparência, do que é possível ver imediatamente. Marx e Engels (2012) afirmam

[...] se portanto, desconsiderarmos os indivíduos e as condições mundiais

que constituem o fundamento dessas ideias, então poderemos dizer, por

exemplo, que durante o tempo em que a aristocracia dominou dominaram os

conceitos de honra, fidelidade etc. enquanto durante o domínio da burguesia

dominaram os conceitos de liberdade, igualdade etc (p. 157).

Esses pressupostos permitiram a Marx concluir que seu objeto de estudo

(sociedade burguesa) só poderia ser compreendido pela análise das condições materiais, isto

é, a partir das leis que regem o modo de produção. Ele considera que, assim como o homem

produz o alimento, ele também cria as relações sociais e estas são determinadas pelos meios

de produção. Ao se reorganizar as forças produtivas, as relações sociais também se

modificam. Engels (2008) ainda afirma que

33 O materialismo histórico-dialético foi apresentado sem o “e” intencionalmente. No sentido de não separá-los,

já que só podem ser compreendidos de modo articulado, como unidade. 34 Determinada no sentido ontológico, que constitui o ser; portanto, é dialético.

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[...] todas as relações sociais e estatais, todos os sistemas religiosos e

jurídicos, todas as ideias teóricas que brotam na história somente podem ser

compreendidas quando forem compreendidas as condições materiais de vida

da época em questão e quando se conseguir explicar tudo aquilo por essas

condições materiais [...] (p. 276).

Para Marx, “Os homens, ao estabelecerem as relações sociais de acordo com o

desenvolvimento de sua produção material, criam também os princípios, as ideias e as

categorias, em conformidade com suas relações sociais” (1976, p. 105). Então, em princípio,

Marx propõe a apreensão da realidade a partir das categorias. Para ele, estudar o

desenvolvimento da sociedade burguesa é estudar as categorias, pois elas são expressão

teórica das relações de produção, por isso são consideradas por ele como categorias

ontológicas, isto é, diz respeito ao ser no mundo. Essas concepções são apresentadas como

críticas a Proudhon, que trata as categorias como princípios espontâneos, que independem do

real e, ao mesmo tempo, ao método da Economia Política, que se apropria de tais princípios

como dogmas e organiza-os baseados em uma sucessão lógica. Afirma Marx: “As categorias

econômicas não são mais que expressões teóricas, abstrações das relações sociais de produção

[...]. Portanto, essas ideias, essas categorias, são tão pouco eternas como as relações às quais

servem de expressão. São produtos históricos e transitórios” (1976, pp. 104-105).

Dentre as categorias ontológicas apresentadas por Marx na análise da sociedade

burguesa, algumas são consideradas nucleares e essenciais na apreensão da realidade qualquer

que seja o objeto de estudo. Elas são: totalidade, mediação e contradição. A totalidade não é

para Marx a soma das partes, mas um todo “estruturado e articulado” que comporta outras

totalidades de menor grau de complexidade (NETTO, 2009). Este (grau de complexidade) não

representa a importância (no sentido hierárquico) das totalidades, mas indica o quão (macro

ou micro) são determinadas por outras. O todo só pode ser compreendido pelo movimento

revelado nas contradições e pela mediação expressa nas relações que são constituintes da

totalidade. A contradição não é para Marx o lado bom e mal de um todo, mas representa a

unidade dos contrários. A totalidade comporta sempre uma negação em busca da superação:

“A natureza dessas contradições, seus ritmos, as condições de seus limites, controles e

soluções dependem da estrutura de cada totalidade [...]” e “também cabe à pesquisa descobri-

las” (NETTO, 2009, p. 17). A mediação pode ser entendida como a dinâmica entre as

totalidades. Nenhuma totalidade é constituída diretamente ou imediatamente; não é um

reflexo ou uma relação mecânica, mas a determinação entre diferentes totalidades. A

mediação também não provém do meio, ao contrário, ela é constituinte do fenômeno. O real

só é conhecido quando são reveladas as mediações que o constitui. Ao conhecer as

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contradições e as mediações da realidade é possível apreendê-la como uma totalidade

concreta e, então, ascender, do abstrato ao concreto, isto é, atingir a essência do fenômeno.

Marx não produziu conhecimento em psicologia, mas deu condições para que os

processos psicológicos fossem compreendidos e analisados a partir do materialismo histórico-

dialético. Vigotski apropriou-se dos pressupostos marxistas para construir uma nova

psicologia. Em seus estudos, buscou superar as concepções idealistas e mecanicistas,

fundamentando sua produção nas proposições teóricas de Marx e Engels.

Lev Semionovich Vigotski, de origem judaica, nasceu em 1896, em Orsha, Bielo-

Rússia, e cresceu em Gomel. Estudou direito na Universidade de Moscou e, simultaneamente,

filosofia e história na Universidade Popular de Chaniavski. Anos depois ingressou no curso de

Medicina em Moscou. Lecionou disciplinas tais como literatura, psicologia e pedagogia.

Integrou o Instituto de Psicologia Experimental de Moscou e produziu importantes estudos

relacionados à então denominada defectologia. É precursor da psicologia histórico-cultural e,

apesar das obras interrompidas devido a sua morte prematura, em 1934, apresenta

significativas contribuições para a compreensão do psiquismo humano (PRESTES; TUNES,

2011).

A psicologia histórico-cultural, também conhecida por Escola de Vigotski, tem

suas origens na URSS, no início do século XX. Em busca de produzir conhecimentos que

explicassem o psiquismo do homem concreto, necessário para a construção de um novo

homem para a nova sociedade (pós-revolução russa), Vigotski adotou como base filosófica e

teórico-metodológica o materialismo histórico-dialético a fim de compreender a estrutura e a

dinâmica do psiquismo.

A psicologia histórico-cultural opõe-se às ideias que caracterizam o homem como

dotado de aptidões inatas nas quais o meio é apenas uma fonte de aprimoramento. Segundo

Bock (2011), “[...] já não podemos mais pensar a realidade social, econômica e cultural como

algo exterior ao Homem, estranho ao mundo psicológico, que aparece como algo que o

impede, o anula ou o desvirtua” (p.25). Sobre a relação entre indivíduo e meio, Vigotski

(1991) menciona que “a abordagem dialética, admitindo a influência da natureza sobre o

homem, afirma que o homem, por sua vez, age sobre a natureza e cria, através das mudanças

provocadas por ele na natureza, novas condições naturais para sua existência” (pp. 69-70).

O homem é entendido como um ser histórico e sociocultural; por conseguinte, são

as condições de vida e educação que possibilitam sua humanização. Em outras palavras, é a

apropriação da cultura historicamente acumulada, pelo processo de aprendizagem, que

garante ao homem as características tipicamente humanas (VIGOTSKI, 2000).

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Para Vigotski (2000), as características tipicamente humanas - atenção voluntária,

fala, memória semântica, ação voluntária e consciente, percepção significante e pensamento

verbal-lógico - são designadas funções psicológicas superiores. Essas funções têm origem e se

desenvolvem nas relações do indivíduo com o mundo e, ao mesmo tempo, em que o

psiquismo se complexifica, suas ações também se tornam qualitativamente mais elaboradas.

Vigotski (2000) aponta, em seus estudos, a necessidade de superação dos métodos

de pesquisa vigentes em sua época, uma vez que eles não conseguiam apreender de maneira

concreta a conduta tipicamente humana. O autor revela sua preocupação em apreender o

indivíduo em sua totalidade e não como a soma ou integração de elementos, sobretudo quando

menciona que “[...] não é decompor o todo psicológico em partes e inclusive em fragmentos,

mas destacar do conjunto psicológico integral determinadas características e momentos que

conservem a primazia do todo (VIGOTSKI, 2000, pp. 99-100, tradução nossa)i.

As teorias psicológicas que se preocupavam em não fragmentar os processos

psíquicos, acabavam por não transcender a pura descrição dos fenômenos. Dessa forma,

Vigotski (2000) assinalou três princípios fundamentais para analisar o fenômeno psíquico: (1)

distinguir a análise do processo e do produto final, em busca de apreender o objeto no seu

processo de constituição, isto é, em movimento. Por outras palavras, “a análise do objeto deve

contrapor-se à análise do processo, o qual, de fato, se reduz à explicação dinâmica dos

momentos importantes que constituem a tendência histórica de dado processo” (p. 101,

tradução nossa)ii. Nesse sentido conhecer o objeto em estudo é ir ao encontro da sua história;

só existem as partes porque elas correspondem a um todo, ou seja, é o todo quem confere às

partes a sua coerência interna e o movimento próprio; logo, deve-se partir do processo para

seus momentos isolados e não o contrário; (2) explicar, em vez de descrever, uma vez que

somente a descrição não revela a essência dos fenômenos estudados, apenas sua aparência.

Para Vigotski (2000),

[...] a verdadeira missão da análise em qualquer ciência é justamente a de

revelar ou pôr em evidência as relações e nexos dinâmico-causais que

constituem a base de todo fenômeno. Nesta proporção, a análise se converte

de fato em explicação científica do fenômeno que se estuda e não somente

sua descrição a partir do ponto de vista fenomênico (p.101, tradução nossa)iii.

O objeto não é tal qual se manifesta. Ele é a síntese, portanto, que incorpora um

processo que não está dado imediatamente. Ao buscar as contradições e mediações que a

constituem (a síntese), o objeto é ressignificado, logo será percebido de um modo diferente.

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Para tanto o autor propõe uma análise genética35 e fenotípica36, ou seja, que o fenômeno seja

apreendido por sua origem e desenvolvimento, dessa forma a aparência é explicada a partir

das suas determinações, revelando sua essência e, por último, (3) desvelar os comportamentos

fossilizados, caracterizados por aqueles processos psíquicos que, devido a repetição, em

determinada fase do desenvolvimento se automatizam, tornando-se fixos e mecânicos. Sobre

esses comportamentos fossilizados Vigotski pontua:

A fossilização do comportamento se manifesta sobretudo nos chamados

processos psíquicos automatizados ou mecânicos. São processos que pelo

seu longo funcionamento se tem repetido milhões de vezes e, devido a ele, se

automatizam, perdem seu aspecto primitivo e sua aparência externa não

revela sua natureza interior; diz-se que perdeu todos os indícios de sua

origem. Graças a essa automatização sua análise psicológica é muito difícil

(VIGOTSKI, 2000, p.105, tradução nossa)iv.

Esses comportamentos "produzem um grau superior de relações complexas que

obscurecem, à primeira vista, as ligações e relações genéticas fundamentais que regem o

desenvolvimento de algum processo psíquico" (VIGOTSKI, 2000, p. 105, tradução nossa)v.

Nesse sentido, para desvelar o comportamento fossilizado é necessário uma análise dinâmica,

de modo que a automatização seja transformada em processo, para conhecer, de fato, seu

processo de constituição (VIGOTSKI, 2000).

Os três princípios postulados por Vigotski se relacionam de tal forma que

constituem uma unidade de análise, pois ir ao encontro do processo permite compreender a

origem do comportamento e as condições que possibilitaram seu desenvolvimento, isto é,

desvelar a fossilização; logo, é possível explicá-lo. Assim, entende-se que o estudo histórico

do comportamento é a base da pesquisa, tendo em vista que a história revela o movimento do

real e a gênese da conduta humana. Por isso, tais estudos devem se pautar num método que

compreenda historicamente a realidade, de uma maneira não linear.

As proposições teóricas e metodológicas expostas ao longo do texto modificam a

visão tanto do pesquisador quanto do profissional que atua na área da psicologia e/ou no

campo da educação. A partir delas a realidade é compreendida historicamente, situada e

multideterminada. Portanto, não basta analisar ou descrever a facticidade e concebê-la em sua

aparência. É necessário, seja como pesquisador ou educador, apreender os sujeitos históricos

em seu processo de desenvolvimento e não como indivíduos passivos, abstratos, que

reproduzem construções sociais desprovidas de significação.

35 Relativo à origem. 36 Relativo a aparência; o que pode ser percebido imediatamente.

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4.2 Procedimentos metodológicos

Diante das concepções teórico-metodológicas supracitadas, entende-se que a

narrativa da história de vida, por meio da conversação37, é o procedimento que atende à

proposta desta pesquisa, tendo em vista que os sentidos e significados são apreendidos por

meio da apropriação do seu processo constitutivo, que é dado pela história. Através dela

podemos compreender a origem desses sentidos, como eles se desenvolveram e se

transformaram ao longo da vida do sujeito. Essa narrativa (da história de vida) permite

explicar as mediações e contradições que constituem os sentidos e, dessa forma, podemos nos

aproximar de sua totalidade. Ao propor a conversação como um instrumento de apreensão dos

sentidos em detrimento a entrevista, González Rey (2005) aponta:

A conversação enquanto instrumento define o caráter processual da relação

com o outro como um momento permanente da pesquisa e se orienta a

superar o caráter instrumental que caracteriza o uso da entrevista pela

psicologia em detrimento de seu valor como processo de relação. A partir de

uma perspectiva instrumental, a entrevista caracteriza-se por esgotar-se em

um ato, em um momento; frequentemente, vemos que ela é considerada, na

parte metodológica de um trabalho, um instrumento a mais que se aplica em

um momento concreto que é assumida pelas resposta diretas do sujeito

diante de uma sequência de perguntas estabelecidas a priori, o que coloca a

pessoa na mesma posição de respostas que assume diante dos instrumentos

usados numa perspectiva instrumental (p. 49).

Para o desenvolvimento da pesquisa selecionou-se um participante com as

seguintes características: bailarino(a), professor(a) de dança (que tenha necessariamente

lecionado ballet por determinado período) em instituição privada e projeto social, sendo este

vinculado ou não a ela (instituição privada). González Rey (2005) afirma que os sujeitos

individuais "são aqueles sujeitos capazes de prover informações relevantes que, em

determinadas ocasiões, são altamente singulares em relação ao problema estudado" (p. 111).

Nesse sentido, após o contato com algumas instituições, a escolha do participante se deu de

acordo com os objetivos da pesquisa, disponibilidade e aceitação do mesmo.

O projeto de pesquisa foi encaminhado ao Comitê de Ética da PUC, de acordo

com as normas institucionais. O sujeito da pesquisa assinou o Termo de Consentimento Livre

e Esclarecido (TCLE) (Apêndice A), o qual garante sigilo e anonimato ao entrevistado; para

tanto foram utilizados, ao longo do trabalho, nomes fictícios para pessoas, locais e

instituições.

37 Ver mais em González Rey (2005).

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A entrevista38 ocorreu em um espaço público, indicado pelo sujeito da pesquisa.

Ela foi iniciada com a questão norteadora: “Conte-me sua história de vida. Apesar de você já

estar ciente de que minha pesquisa está vinculada à dança, tenho interesse sobre tudo aquilo

que considera importante me dizer sobre você”.

A propósito, esse procedimento não se constitui de um monólogo, mas é

imprescindível a liberdade de expressão do entrevistado e o saber ouvir (atitude de escuta) do

pesquisador. Contudo, em alguns momentos da entrevista foi necessário intervir, seja porque

a informação não ficou clara o bastante para o pesquisador ou quando o sujeito, em algum

momento, não sabia o que dizer e perguntava o que mais deveria falar. A função do

interlocutor em nenhum momento foi de constranger ou induzir a fala do entrevistado, mas

incitá-lo e estabelecer uma relação de confiança para que pudesse sentir-se à vontade em

discorrer sobre sua vida, numa postura dialógica. Ao ponderar o papel do pesquisador no

processo de pesquisa, González Rey (2005) afirma:

O pesquisador é um facilitador da dinâmica que favorece o diálogo, embora,

por ocupar essa posição, precise ter consciência de que o valor da

informação será dado pelo envolvimento do sujeito estudado na

conversação, na qual transcendem, constantemente, os limites de sua

intencionalidade consciente, sendo a evidência mais sólida disso a densidade

e a riqueza dos trechos de sua expressão, os quais são a unidade

interpretativa essencial na construção teórica da dinâmica conversacional (p.

127).

Não foi determinado um tempo de duração da entrevista. O entrevistado estava,

aparentemente, tranquilo e contou fluidamente sua história. Em nenhum momento se opôs em

contar sobre sua vida e demonstrou muita satisfação ao final do diálogo. Ele se emocionou em

vários momentos.

O entrevistado demonstrou preocupação em auxiliar na pesquisa e uma angústia

de não conseguir selecionar as informações adequadas. O pesquisador orientava-o a dizer o

que ele sentisse vontade e aquilo que de alguma maneira marcou sua história, sem se

preocupar com a forma de exposição.

A entrevista foi gravada e transcrita de acordo com a autorização do entrevistado.

38 O termo entrevista será apresentado, nesse trabalho, como sinônimo de dinâmica conversacional, tal como na

perspectiva de González Rey (2005).

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4.3 Procedimentos de Análise

Para analisar os dados foram realizados os seguintes procedimentos:

1. Várias leituras da entrevista em busca da apreensão do conteúdo em sua totalidade e, ao

mesmo tempo, indicar possíveis temas e subtemas que respondessem aos objetivos do

trabalho;

2. Releitura da entrevista destacando dois grandes temas: formação (em ballet e outras áreas)

e/ou atuação (como bailarino, professor e arte-educador). As falas foram recortadas e

agrupadas de acordo com cada tema. Primeiro foram identificadas, ao longo da entrevista,

todas as falas que se referiam à formação e depois aquelas que correspondessem à atuação.

3. Após a organização dos dados correspondentes ao período de formação e/ou de atuação do

entrevistado, possíveis subtemas foram identificados para cada um dos temas. Os recortes do

discurso foram reagrupados de acordo com a semelhança dos dados, que passaram a compor

um mesmo subtema. A reorganização do discurso de cada tema em subtemas foi realizada

individualmente, ou seja, fixava-se em um subtema e, após selecionar todas as falas que se

referiam a ele na entrevista, outro era introduzido na análise, e assim sucessivamente. São

destacados, nas tabelas abaixo, os temas e subtemas39 citados:

TEMA SUBTEMAS

FO

RM

ÃO

Formação no ballet

A formação em ballet: onde tudo começou e as

determinações familiares

A formação em ballet: as condições objetivas

(cidade, escola etc.)

A formação em ballet: as relações sociais

Formação acadêmica

A formação no ensino superior

A formação continuada

Os sentidos constituídos durante e após a formação no ballet

39 No apêndice C são apresentados os recortes das falas da entrevista, de acordo com os temas e subtemas da

análise.

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TEMA SUBTEMAS A

TU

ÃO

PR

OF

ISS

ION

AL

A relação entre a atuação e as condições de vida pessoal

A atuação como professor na própria escola de dança

A atuação como professor em instituições sociais

A atuação como professor: didática e procedimentos pedagógicos

A atuação como bailarino Profissional

A atuação como coreógrafo e diretor artístico em escolas de samba

A atuação como professor: as relações construídas profissionalmente

O sentido atribuído à dança/ballet a partir da atuação

4. A exposição dos dados em temas e subtemas tem como propósito facilitar a compreensão

do leitor em relação à entrevista analisada. Entretanto, pretende-se organizar as informações

de modo a superar sua linearidade e, ao mesmo tempo, revelar o movimento do real.

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5 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

5.1 O sujeito da pesquisa

Rodolfo, solteiro, 36 anos, o segundo filho, nasceu em uma cidade do interior de São Paulo e

atualmente mora em um bairro da zona leste da capital. Os pais eram professores de ensino

superior; a mãe ligada à educação especial e o pai à educação física. Tem um irmão, professor

de educação física. Rodolfo é um professor que possui formação em ballet clássico; no ensino

superior graduou-se em comunicação social e em dança; especializou-se em estéticas

contemporâneas e dança educativa moderna. Ele iniciou as aulas de formação no ballet aos

cinco anos de idade e concluiu, aproximadamente, com 16 anos. No princípio era um hobby,

mas, segundo ele, durante sua trajetória, as oportunidades que surgiam estavam sempre

vinculadas a essa arte. Rodolfo discorre sobre o quanto sofreu preconceito na infância,

especialmente da mãe e colegas, por ser o único bailarino de sua cidade. Contudo, ele também

relata a dança como um meio de superação dos traumas sofridos na infância e juventude,

dentre eles, a perda dos pais aos 22 anos de idade. Rodolfo foi aluno de muitos professores

importantes, em escolas renomadas e dançou profissionalmente em diversos países. Teve sua

própria escola de dança. Lecionou em escolas particulares, projetos sociais e ONG’s ligados

ao governo de São Paulo, com diferentes públicos-alvo (criança, adolescente, jovem e idoso),

em situações de vulnerabilidade e risco social, assim como obesos e pessoas com deficiência.

Atua como professor de dança há, aproximadamente, 19 anos e, atualmente, é coreógrafo em

diferentes escolas de samba e artista-orientador e educador em programas sociais e culturais40.

Rodolfo demonstra paixão pela dança contemporânea e diz não mais se satisfazer somente

com o ballet clássico.

40 No apêndice B é apresentado um panorama da formação e atuação de Rodolfo de acordo com os períodos de

realização.

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5.2 O processo de formação: a constituição de si no mundo

Para se conhecer a origem e desenvolvimento da formação de Rodolfo,

apresentar-se-á a análise em três momentos: (1) a formação no ballet, que compreende como

surgiu a dança na sua vida, o papel da família nesse processo, o cenário (cidade e escola de

formação) em que se passou essa história e como as relações pessoais foram estabelecidas

nesse período; (2) a formação acadêmica, marcada pela formação no ensino superior e

formação continuada; e, por último, (3) os sentidos atribuídos à dança/ballet e as

transformações destes durante o processo.

Rodolfo deixa subentendido que provém de uma família tradicional do interior de

São Paulo e com razoável poder aquisitivo, considerando as condições de vida e educação que

lhe foram oferecidas. Seus pais foram professores universitários. O pai e o irmão de Rodolfo

se graduaram em educação física, o que, segundo ele, determinou seu interesse pela dança.

Ele sempre enfatiza a participação do pai nesse processo, tal como no trecho:

[...] como meu pai era da educação física, foi uma época também que

começou a aparecer a aeróbica. Então, meu pai comprou uns discos,

que era como se fosse uma aula cantada e falada e ilustrada, porque

na capa tinha as figuras e eu achava um máximo aquilo. Eu gostava

muito e o meu pai foi secretário de esportes da cidade, então, no

interior existia um campeonato de dança chamado Gymnaestrada41,

e uma vez ele me levou, eu devia ter de quatro para cinco anos e eu

fiquei encantado com aquilo. Ele já tinha percebido [...] o meu

talento, o meu dom, que eu tinha jeito para isso e foi quando eu

pedi ele para fazer ballet.

O nível de complexidade técnica que o ballet adquiriu ao longo de seu

desenvolvimento tornou o público praticante mais seletivo. Desde então começou a se

estabelecer o corpo ideal, necessário para realizar os movimentos específicos do ballet. O

41 É o maior evento, reconhecido mundialmente, de Ginástica não competitiva.

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próprio Luis XIV, que levou essa arte para a França e instaurou L'Académie Royale de la

Musique et de Danse, parou de dançar por estar fora dos padrões (FARO, 2011). Tanto esses

fenômenos sócio-históricos quanto a própria especificidade do ballet (tecnicismo e

virtuosismo) contribuíram para determinar não apenas um estereótipo, mas também para a

naturalização de tais habilidades. Não se pode negar que as características físicas (força,

flexibilidade, resistência etc.) são de ordem biológica, entretanto, elas só serão desenvolvidas

a partir das condições objetivas, isto é, na relação com a dança. Pode-se dizer que, nesse

relato, Rodolfo apresenta, aparentemente, uma concepção inatista sobre suas habilidades,

quando ele se refere a elas como dom e talento. Vigotski (2006) esclarece esse ponto ao

enfatizar: “[...] a realidade social é a verdadeira fonte de desenvolvimento, a possibilidade de

que o social se transforme em individualvi” (p. 264). Em outras palavras, alguns biotipos

podem ser mais favoráveis que outros, mas o social é que vai determinar a direção desse

desenvolvimento. Embora Rodolfo revele essa concepção inatista de desenvolvimento, ele

também reconhece o quanto a formação da família, no ensino superior, foi determinante nesse

processo, especialmente por mediar sua relação com a dança.

Rodolfo começou a fazer ballet por incentivo do pai. Foi ele quem o matriculou

na escola de dança e o levava para fazer as aulas. A mãe não apenas se opôs, como revelou

preconceito pela ideia e, por isso, inicialmente Rodolfo fazia ballet escondido, apoiado

somente pelo pai. Ele se mostra muito afetado pelo momento em que a mãe descobriu e diz:

Foi muito traumático porque minha mãe ficou louca. A minha mãe

me levou para a sala dela, me bateu muito, apanhei muito.

E ainda complementou:

Ela não aceitava. Era uma briga, era sempre um conflito entre

minha mãe, meu pai e eu por essa questão [...].

Rodolfo também relata o quanto a dança foi um meio de coerção, aparentemente

utilizado pela mãe, durante a infância e a adolescência:

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Então eu também me senti em vários momentos chantageado, porque,

às vezes, eu queria alguma coisa, pedia e não tinha, exatamente

porque eu estava dançando. Foi bem difícil.

É possível identificar algumas contradições nessa relação (familiar); uma delas é o

preconceito da mãe e o incentivo do pai. Em geral é o pai (ou a figura masculina) que,

comumente, reprime e discrimina os homens42 que fazem ballet. Esse não foi o caso de

Rodolfo, que sofreu preconceito por parte da mãe. Ainda que a formação do pai fosse em

educação física, considerando que sua especificidade são as manifestações da cultura corporal

e a dança é uma delas, pode-se dizer que existe uma tendência da educação física ao esporte e

não à arte, logo, esse fato, particularmente, não explica, por si só, o apoio do pai. Entretanto,

pode ter sido um dos meios que contribuíram para a ressignificação e superação dessas

concepções cristalizadas.

O preconceito com a figura masculina no ballet possivelmente provém do século

XIX, quando, no ballet romântico, o papel feminino passa a ser idealizado e os homens

perdem o prestígio. Se antes eles representavam, na dança, ambos os papéis sociais (de

homem e mulher), nesse período eles se tornam, no máximo, um suporte para o virtuosismo

feminino (FARO, 2011). A ascensão da mulher torna o ballet uma manifestação tipicamente

feminina, o que contribuiu para a marginalização dos homens que dançavam. O homem não

perdeu seu papel na dança, mas há um período em que aqueles que dançam tornam-se vítimas

de estereótipos e preconceitos. Possivelmente, a mãe de Rodolfo também pensava o quanto

ele poderia sofrer preconceitos por ser um bailarino e reproduzia esse discurso também como

uma forma de proteção.

O que possibilitou que Rodolfo continuasse dançando e, ao mesmo tempo,

amenizasse os desentendimentos em casa, foram as regras criadas pelo pai, tal como revela

sua fala

O meu pai, por ter vindo, por estar na área do esporte, então a gente

começou a negociar algumas regrinhas, tipo eu gostava de nadar...

“Então você vai fazer natação, vai competir e vai continuar

42 Homens, nesse sentido, se refere ao sexo masculino.

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dançando” ou “você vai jogar vôlei, que você gosta e vai continuar

dançando”, estando ali a par e atrelado a algum tipo de esporte. E eu

sou muito grato a tudo isso.

Ele não apenas aceitou as regras, como entendeu positivamente as decisões do pai.

Pode-se dizer que seu apoio e incentivo tornou-o a figura idealizada em casa, especialmente

por ter possibilitado a realização daquilo que Rodolfo denomina de sonho. Nas suas palavras:

Porém (apesar das dificuldades que ele encontrou), eu continuei dançando. Meu

pai sempre me orientando que caminho seguir porque ele achava

que não tinha o direito de cortar o meu sonho, de romper o meu

sonho, de não deixar eu fazer aquilo que eu gostava, com tanto

carinho, sabe, com tanta leveza. E ele foi então me orientando, me

mostrando [...].

Outra contradição explícita nas determinações familiares é a persistência de

Rodolfo, mesmo sob as condições impostas, para continuar dançando. Essa contradição pode

ser explicada pela catarse, isto é, a "complexa transformação dos sentimentos" (VIGOTSKI,

1999, p. 270). Ele relata o amor pela dança e o quanto ela representava um desafio para ele.

Porém, além de suportar o preconceito, ele também precisava renunciar a alguns desejos de

criança, devido às chantagens sofridas em casa. Esses sentimentos se unem e formam outro,

que não pode ser explicado por nenhum dos anteriores separadamente (isto é, os sentimentos

envolvidos na paixão pela dança, no preconceito, nas renúncias etc.), porque são a síntese de

todos eles. É esse sentimento síntese que o impulsiona a continuar. Tal como Vigotski (1999)

afirma:

Ainda sabemos muito pouco de fidedigno sobre o próprio processo da

catarse, mas mesmo assim conhecemos o essencial, isto é, sabemos que a

descarga de energia nervosa, que constitui a essência de todo sentimento,

realiza-se nesse processo em sentido oposto ao habitual, e que a arte assim se

transforma em um poderosíssimo meio para atingir as descargas de energia

nervosa mais úteis e importantes. Achamos que a base desse processo é a

natureza contraditória que subjaz à estrutura de toda obra de arte (p. 270).

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Até aqui foram apresentadas as condições (neste caso, familiares) que

caracterizam o início da dança na vida de Rodolfo. Porém, quais foram as condições objetivas

(ou seja, a cidade, a escola, as aulas e as relações sociais) que constituíram a formação de

Rodolfo no ballet? Ele começou o ballet aos seis anos em uma cidade próxima a que ele

morava, pois nesta não havia escola de formação. Segundo ele:

Minha cidade é muito pequena, não tinha escola formadora,

qualificada, uma escola especializada de ballet. Tinha academia de

dança de jazz, essas coisas assim. E aí eu fui para a cidade de

[nome] e comecei a fazer ballet.

Pelo seu discurso, nota-se que fazer ballet foi algo planejado. Ele, com a ajuda do

pai, foi ao encontro de uma escola de ensino específico e reconhecida, que demandava certa

logística, tal como ele aponta:

[...] eu ia duas vezes na semana para a cidade de [nome de onde fazia

ballet] e a aula era de 1 hora, 1hora e 30 minutos. Exceto quando

ela estava coreografando para os espetáculos, que estendia um

pouquinho mais. Era uma aula super pontual, com aquecimento,

alongamento, barra, diagonais, centro.

Nessa mesma fala, ele revela a tradição e o conservadorismo das aulas de ballet e

ainda finaliza a frase dizendo:

[...] tudo que uma aula de ballet tem mesmo;

ou seja, há uma padronização a ser respeitada nas aulas em geral.

Embora a conduta rígida dos professores nas aulas seja frequentemente relatada,

inclusive como um dos motivos responsáveis do abandono do ballet (CARVALHO, 2005),

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Rodolfo explicita o quão harmoniosa foi sua relação com a professora de ballet e ao mesmo

tempo expressa admiração e carinho pela mesma, ao longo da entrevista:

A minha relação foi incrível. A minha professora foi Catarina, uma

grande bailarina, de uma sensibilidade, tecnicamente tudo assim

que eu pude aprender e sugar [...].

Ele também deixa subentendido o quanto um menino fazer ballet, na cidade do

interior e naquele momento histórico, era considerado um escândalo:

Então, assim, eu sou de 1978, então imagina nos anos de 1980, em

uma cidade que na época deveria ter uns 20, 25 mil habitantes;

(menino) dançando ballet.

Essas condições também determinavam como se estabeleciam as suas relações,

dentre elas o preconceito dos colegas da escola. Ele relata:

Eu me lembro de uma apresentação que era abertura de jogos, que foi

no ginásio, e os meus amigos começaram a me jogar pedra e caco de

vidro porque eu estava dançando.

Segundo Rodolfo, ele:

[...] não era o único menino, na cidade de [nome da cidade que fazia

ballet], fazendo ballet. Tinham outros e aí nem todos seguiram,

continuaram, se formaram. Alguns foram parando no caminho, mas

eu fui até o final.

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Após se formar no ballet, entre os 16 e 17 anos, Rodolfo também concluiu o

ensino médio e prestou vestibular para ingressar no ensino superior. Ele graduou-se em

comunicação social, em uma cidade do interior próximo à sua cidade natal e, muitos anos

depois, já morando em São Paulo, fez faculdade de dança. Ele menciona o papel da mãe na

escolha profissional quando diz que:

[...] e aí, antes um pouquinho, quando eu fui prestar vestibular,

minha mãe fez uma outra chantagem, porque eu prestei [nome da

instituição] em [nome da cidade], não ia fazer dança, ia fazer

comunicação ou artes cênicas no Rio. E aí minha mãe resolveu

montar uma escola, porque eu tinha acabado de formar em ballet...

“eu monto uma escola aqui na cidade para você ficar na cidade” e

aí foi o que aconteceu. Ela montou uma escola.

Diferente do período de formação no ballet, a mãe o apoiou e o incentivou nas

escolhas profissionais. Pode-se supor que ela aceitou as escolhas do filho e, aparentemente,

superou suas concepções preconceituosas; ou então, foi o meio que ela encontrou para mantê-

lo na cidade e próximo à família. Talvez ambos.

A formação acadêmica de Rodolfo não encerrou após a graduação. Segundo ele

[...] sempre fui de fazer muitos cursos, investir, especializar [...].

Ele frequentou cursos ligados à dança contemporânea, eutonia, musicais e,

também, especializações em dança educativa moderna e em estéticas contemporâneas.

Chega-se a esse momento da história de Rodolfo com o seguinte questionamento:

Qual o sentido da dança para uma criança, do sexo masculino, natural de uma cidade do

interior de São Paulo, que aos seis anos começa a fazer ballet em uma outra cidade, enfrenta o

preconceito da mãe e dos colegas e se forma sob todas essas condições? Como ele concebia a

dança durante esse processo? Buscou-se apreender, em seu discurso, alguns sentidos

atribuídos a esse período.

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Para Rodolfo, quando criança, a formação no ballet era um hobby e não uma

aspiração profissional. Ele dançava pelo sentimento, mas sem a intenção de tornar a dança sua

profissão. Nas suas palavras:

[...] eu enfrentei e assim, não sabia, não almejava ser um bailarino

profissional. Eu só não queria parar de dançar.

E ainda diz que:

[...] cada aula para mim era um desafio [...] era um sonho em

executar e fazer, era sempre um desafio mesmo, sem a pretensão de

me tornar um bailarino profissional.

Ele assinala a importância dessas aulas de formação tanto pela base técnica que

lhe foi propiciada quanto pela disciplina, característica do ballet, que passou a constituí-lo.

Rodolfo diz

[...] a minha formação me deu uma base incrível, técnica, e para eu

entender o mecanismo do meu corpo, para eu entender de sustentar,

de me sustentar, de me apoiar e de executar a dança técnica.

Também diz que:

[...] O que me marcou mesmo com relação a isso, você pode achar

clichê, mas me deu tanta seriedade para eu me respeitar mesmo,

sabe, e disciplina. São duas palavras que... Se você falar: Rodolfo,

duas palavras para aquela faixa etária, como que você resume a sua

relação fazendo aulas de ballet nessa escola, é isso. Acho que foi

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seriedade, porque eu nunca levei uma coisa tão a sério, embora eu

não pensava em virar bailarino, mas eu levava aquilo com todo meu

respeito mesmo, todo meu carinho; e disciplina".

Após fazer essa leitura sobre o período de formação no ballet, Rodolfo

complementa:

Só que Cíntia, nesse caminho eu descobri um outro caminho de se

mover no tempo, corpo, tempo e espaço.

E ele revela em seu discurso o quanto a formação acadêmica reelaborou os

significados que ele atribuía à dança e ao ballet, inclusive no que se refere à atuação

profissional. Inicialmente (na infância), a dança não era um desejo profissional, mas se tornou

um meio pelo acordo estabelecido com a mãe. Apesar disso, ele investiu no trabalho e ao

mesmo tempo percebeu a necessidade de ter uma formação continuada, considerando a

realidade objetiva da cidade em que morava, tal como ele diz:

Eu sempre fui de fazer muitos cursos, investir, especializar e como

interior também não tem profissional, por esse motivo eu acabava

fazendo tudo, mas eu também trazia algumas pessoas da região para

dar aula na escola.

Ele enfatizou uma determinada especialização que transformou sua concepção

sobre o ensino da dança, e afirma:

Eu fiz a pós. Morando ainda no interior, eu fiz a dança educativa

moderna, em [nome]. E foi essa pós que abriu o meu olhar de

possibilidades de trabalhar com a dança. Porque, até então, a minha

dança era uma dança acadêmica, uma dança técnica, né? Eu vi

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aquilo, existia o meu lado artista-criador, ok. Mas eu não sabia

dessas possibilidades. E foi com essa técnica, do Laban, que eu falei:

“uau, acho que eu quero trabalhar com arte-educação, sabe. Vamos,

eu quero chegar mais perto disso".

É possível perceber, nesse relato, a elaboração de novos sentidos a partir do

acesso a outros conhecimentos relacionados à dança. O que antes era apenas uma atividade

passiva diante do acordado com a mãe, transforma-se em um querer trabalhar com a arte. Ao

conhecer as novas possibilidades de atuar na dança, cria-se um novo sentido.

Sobre o movimento de escolha profissional e se de fato esta escolha ocorre, Bock

(2008) expõe que:

O sujeito escolhe, e essa escolha é um momento de seu processo pessoal de

construção de sentidos. Mas essa construção utiliza como recurso ou matéria

prima não só a irredutível existência singular dos sujeitos, suas experiências

e os afetos que dedica a cada momento vivido, mas o conjunto de

significações e de formas de relacionamento e produção social em que

acontecem e que circunscrevem as experiências por ele vividas. A vida

social, na qual estão os determinantes importantes das escolhas profissionais,

como a ideologia dominante, as formas de trabalho, o funcionamento do

mercado, o papel da educação, os valores, os grupos de pertencimento, não é

algo externo ao indivíduo. Ao construir sentidos subjetivos sobre a escolha

ou sobre o futuro profissional, o sujeito estará também, e ao mesmo tempo,

internalizando a vida social e contribuindo para a construção da

subjetividade, que é coletiva. Sujeito e sociedade são âmbitos de um mesmo

processo. O sujeito escolhe e, para compreender o seu processo de escolha, é

preciso estudar seu movimento pessoal (seus sentidos) e o conjunto de

significações e condições objetivas e sociais onde está inserido (p.145).

Por meio da formação continuada, ele atribuiu um novo sentido ao trabalho e a

sua relação com a arte de dançar. O relato a seguir explicita essa transição nas significações e

a reelaboração na percepção da dança e do ballet:

Então eu comecei a fazer muito curso de dança contemporânea,

dança moderna e os professores... fiz curso do [nome do professor

formado pela Escola da Cidade de São Paulo] também, vários cursos

[...] que é uma pessoa [esse professor] que quando me olha fala “tira

esse bailarino do seu corpo, senta diferente, apoia os pés diferente no

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chão, pisa diferente, olha para sua coluna de uma outra forma”,

porque eu ainda sou engessado. Por isso que quando eu falo de

desconstrução cotidiana, não é que eu quero desconstruir. Eu adoro

minha postura, acho incrível e eu acho que o Rodolfo é assim, foi o

corpo que eu construí durante muitos anos. O desconstruir não é

ficar largado, é olhar para o meu corpo descobrindo sempre esse

movimento, de descobrir possibilidades, de que eu não preciso mais

sabe... e que eu posso fazer de uma outra forma [...]. É um caminho

de várias incertezas, várias descobertas, de se encontrar, de se

alimentar. E aí quando eu disse de se mover... é o meu corpo

descobrindo possibilidades de se mover nesse espaço meu, que é a

vida, que eu estou nesse movimento constante assim.

O discurso de Rodolfo, no que diz respeito a sua formação, é feito sempre sob

uma avaliação positiva. Ele destaca o que a rigidez, a tradição e o conservadorismo no ballet

lhe foram benéficos e, sobretudo, como esse modelo de formação o constituiu. Mas ele

também aponta a superação do mesmo ao longo da sua trajetória acadêmica. Tal como Faro

(2011) menciona, muitos bailarinos buscam a dança moderna ou a contemporânea, porque

não se submetem às exigências do ballet e por isso o negam, mas não o superam. Eles

permanecem na crítica aparente e não a transcendem. Rodolfo não apenas reconhece a

importância da técnica como também obteve sucesso na mesma43, porém sentiu necessidade

de algo além, que permitisse a criação e a reconstrução da sua visão de homem e de mundo.

Assim, segundo a concepção de Vázquez (1977), é possível ponderar o processo de formação

de Rodolfo como uma práxis criadora que se constituiu pela práxis reiterativa (quando dançou

ballet), mas foi superada pelo/no contemporâneo. Ele relata que essa liberdade de construção

do movimento corporal e de si, ele não encontrou no ballet, mas a partir dele é que surgiu essa

necessidade. Nesse sentido, a aprendizagem do ballet não deve ser entendida como um fim,

mas como um meio para se atingir novas possibilidades.

43 Considerando que ele foi bailarino de uma companhia de dança referência no Brasil.

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É importante ressaltar que durante a entrevista, Rodolfo não dicotomiza seu

processo de formação. Por outras palavras, ele se reconhece na dança e reconhece como a

dança o constitui.Pode-se dizer que a formação do eu e a formação no ballet são processos tão

imbricados que constituem faces da mesma moeda; são inerentes.

Rodolfo, diferente da visão cartesiana apresentada no ballet, não dicotomiza corpo

e mente. Ele expressa uma visão de totalidade sobre o movimento, que transformou à sua

leitura do mundo, de si e dos outros. As possibilidades de se mover não se restringem a seu

corpo, mas a esse corpo que se relaciona, que vive e que se comporta. Na dança que ele

construiu e reconstruiu o conhecimento e se tornou um bailarino pesquisador, que valoriza a

necessidade de formação continuada.

5.3 O processo de atuação profissional: a constituição de si e do outro no mundo

O processo de atuação de Rodolfo será analisado sob os mesmos princípios que

nortearam a análise do processo de formação. Neste sentido, para compreender a sua origem e

desenvolvimento, buscar-se-á apreender as (1) condições que estruturam esse processo, isto é,

em qual conjuntura o processo de atuação foi constituído; (2) quais as formas de atuação de

Rodolfo (professor, bailarino, coreógrafo e diretor artístico de escolas de samba44 etc.), em

quais instituições atuou e qual a sua percepção sobre a didática e procedimentos adotados

durante o processo de atuação como professor; (3) como foram estabelecidas as relações

profissionais e (4) quais os sentidos que ele construiu nesse processo.

5.3.1 As condições da atuação profissional

Rodolfo começou a atuar profissionalmente em uma escola de dança própria. Ele

tinha aproximadamente 17 anos. Segundo ele,

[...] minha mãe resolveu montar uma escola, porque eu tinha

acabado de formar em ballet: “eu monto uma escola aqui na cidade

44 Rodolfo atuou e atua como coreógrafo e diretor artístico em várias escolas de samba. Ele relata quais trabalhos

já realizou e as experiências que adquiriu atuando, particularmente, nesse ramo da profissão. Porém, tendo em

vista o foco deste trabalho, o ensino, não vamos ampliar as discussões sobre esse tópico.

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para você ficar na cidade” e aí foi o que aconteceu. Ela montou uma

escola.

Nota-se que Rodolfo, ao expor as condições estabelecidas por sua mãe, mostra

que sua atuação se deu, no início, na cidade onde morava. Seus pais, aparentemente, possuíam

bens para abrir um negócio próprio e entregá-lo ao filho. A sua formação como bailarino, na

mesma época em que se formou no ensino médio, possibilitou também boas condições para

esse início profissional, uma vez que tinha técnica e tempo para ministrar aulas e dedicar-se à

administração de seu estabelecimento. Contudo, não fica claro se ele se vê, diante de seu

processo inicial de atuação profissional, como um sujeito ativo.

Segundo Vigotski (2000), quanto maior a intensidade com que se manifesta a

complexidade dos motivos e a dificuldade da escolha, maior será a probabilidade do indivíduo

utilizar o acaso (ou seja, a "sorte") como referência para sua decisão. A ação é determinada

pela resposta a condições externas e não pela própria decisão em querer ou não realizá-la.

Embora a "sorte" não seja uma escolha totalmente livre, essas condições externas não

obrigam o indivíduo a cumpri-la, nesse sentido, o sujeito é ativo nas decisões, ainda que

sejam determinadas socialmente.

Para Vigotski (2000), a essência do livre arbítrio consiste no indivíduo ter

consciência e domínio sobre suas escolhas e principalmente sobre a necessidade de escolher.

Contudo, o motivo – considerado como complexo sistema de estímulos – é quem vai

determinar tal necessidade e a liberdade da escolha. O domínio da conduta não anula as leis

que regem a escolha, mas é sua participação ativa sobre essas leis, de modo a ter controle

sobre sua conduta e não apenas se submeter a elas. Em outras palavras:

[...] a lei fundamental do comportamento diz que nossa conduta está

determinada por situações, que são os estímulos os que produzem a reação e

que portanto a chave para dominar a conduta reside no domínio dos

estímulos. Somente através dos estímulos correspondentes podemos dominar

nosso comportamentovii (VIGOTSKI, 2000, p. 289).

O domínio sobre a ação que se realiza é denominado de vontade. Assim, a

vontade nunca é imediata, pois o homem se apropria dos meios auxiliares para alcançar

determinada ação. Nessa perspectiva e baseado na concepção de Engels, Vigotski (2000)

aponta que o homem só é capaz de dominar seu próprio comportamento, conhecendo a si

mesmo. Isto significa que, necessariamente, o indivíduo precisa compreender e se apropriar

do mundo, pois, só assim, ele será livre e capaz de tomar decisões conscientes; afinal, o livre

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arbítrio nada mais é do que a capacidade de fazer determinadas escolhas sobre aquilo que se

tem conhecimento.

A partir de tal compreensão, é possível inferir que o desenvolvimento humano é

intrínseco às condições histórico-sociais nas quais os indivíduos vivem e que, quanto maior o

domínio da realidade circundante, maior será sua capacidade de fazer escolhas conscientes e

relevantes para seu desenvolvimento.

A carreira profissional de Rodolfo foi iniciada na própria cidade e por

determinações familiares. O motivo, inicialmente, foi a proposta da mãe (de montar uma

escola de dança) que determinou a sua escolha. Naquele momento ele tinha a possibilidade de

ir estudar em outro estado ou trabalhar e estudar na sua cidade. Ele diz

Desde cedo sempre trabalhei muito, sempre esse corre-corre assim,

por uma escolha minha mesmo sabe, porque eu estava fazendo o que

eu gostava, né?

Embora a dança representasse, na infância, apenas um hobby e a decisão de

trabalhar na área foi proposta pela mãe e não uma iniciativa própria, Rodolfo se

responsabiliza pela escolha e revela prazer pelo trabalho.

Durante esse período de atuação profissional de Rodolfo, por volta dos seus 22

anos de idade, aconteceu um acidente com os pais e o irmão. O pai e a mãe faleceram e o

irmão foi gravemente lesionado. Ele conta:

Em julho de 2000, o meu pai fazia mestrado na [nome da

faculdade], meu pai e meu irmão na [repete o nome da faculdade].

Meu irmão era em fisiologia do movimento, eu não lembro o nome

específico. O meu pai em educação física escolar, porque meu pai

também era professor do Estado e minha mãe, por ser professora

universitária e trabalhar na APAE45, então ela estava fazendo na

[nome da universidade federal], em [local], em Educação especial. E

45 Associação de Pais Amigos dos Excepcionais.

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aí, em julho de 2000, eles foram para uma última.... dia

07/07/2000, eles foram para uma última orientação do semestre e

aí aconteceu uma tragédia, porque meus pais faleceram. O meu

irmão, que estava dirigindo, ele foi fazer uma ultrapassagem e

chegando, já era distrito de [nome], entrando na cidade e aí ele foi

fazer uma ultrapassagem e não deu tempo de voltar para a pista e

aquela região é de cortadores de cana e aí ele entrou... o carro entrou

debaixo do ônibus. E aí foi fato, foi trágico. Meus pais faleceram na

hora, o meu irmão sobreviveu, ficou quase 3 anos em coma e perdeu

as duas vistas. [...] Quando aconteceu o acidente eu fechei a academia

por 20 dias e retomei meu trabalho, porque eu acho que isso me

ajudou muito e continuei trabalhando.

Desde então, a vida de Rodolfo não apenas se transformou, mas foi reconstruída

por esse acontecimento. Se antes a presença da família auxiliou na estruturação de sua carreira

profissional, após o acidente e diante da falta dos pais, Rodolfo replanejou seu futuro,

sobretudo o profissional. Suas condições familiares haviam mudado, porém a cidade onde

ainda morava e trabalhava era a mesma, e isso o incomodava.

E foi aí que, então, como a minha cidade é muito pequena [...] e eu

venho de uma família muito conhecida, as pessoas não me olhavam

mais pelo meu talento, pelo meu dom, pelo meu profissionalismo. As

pessoas me conheciam como o Rodolfo, filho do [nome do pai] e da

[nome da mãe]. "Tadinho, os pais morreram no acidente". Isso me

incomodava profundamente. Então eu esperei um tempo para o meu

irmão aceitar, vê como as coisas iam acontecer e um dia eu cheguei

na minha família [...] e conversei, inclusive o meu irmão, na

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possibilidade de eu vir embora para São Paulo, porque eu queria

coisas novas, porque eu queria novos desafios, porque eu queria

mudar, mudar minha vida.

Esse trecho do discurso reafirma o quanto as escolhas de Rodolfo foram feitas, no

começo de sua atuação, mediante as condições dadas e que constituem o motivo de suas

escolhas. A morte dos pais, a condição de saúde de seu irmão, a visão das pessoas sobre ele e

a cidade onde morava o fizeram perceber a necessidade do novo e de mudança em sua vida.

Assim, veio a morar e trabalhar em São Paulo.

Apesar de ter voltado a trabalhar e recomeçado sua vida em uma nova cidade, ele

conta a dificuldade para lidar com os sentimentos provocados pela perda dos pais e

debilidade do irmão.

[...] Eu tive um problema de depressão. Na verdade já era um processo

e eu não sabia o que era, porque eu achava que eu era o super-

homem. “Imagina, vou adoecer, que coisa esquisita.” Era um processo

e um dia não quis mais olhar, não mais levantar e não quis olhar a

claridade. Isso eu fiquei 20 dias trancado no apartamento, sem tomar

banho, sem comer, sem nada. Enfim, foi um processo muito difícil.

Ele relata ainda:

Isso foi quase um ano. Me levaram no psiquiatra, tal e

acompanhamento com psicólogo, mas eles me deram muito remédio e

eu fiquei pior. Um dia eu falei “não”. Joguei tudo, dei descarga,

joguei no vaso sanitário e fui fazendo terapia, tal e fui querendo

viver.

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Pode-se dizer que Rodolfo, diante das dificuldades pelo falecimento de seus pais

vivenciou uma situação que parece não ter sido devidamente considerada, análoga a uma

atitude de fuga. Da mesma maneira, em seu relato, parece acreditar que o reestabelecimento

de sua saúde se deu de forma espontânea.. Tal concepção fica mais clara quando diz:

Assim, eu sou uma pessoa muito otimista, eu tenho muita fé e foi por

mim assim, sabe?!

Nota-se uma concepção que separa interno e externo e, ao mesmo tempo, atribui a

superação desses momentos a uma característica própria e a uma força sobrenatural.

Quando Marx e Engels (1984) fazem uma crítica ao materialismo contemplativo e

inconsequente de Feuerbach, afirmam que o filósofo:

[...] não vê que o mundo sensível que o rodeia não é uma coisa dada

diretamente da eternidade, sempre igual a si mesma, mas antes um produto

da indústria e do estado em que se encontra a sociedade, e precisamente no

sentido de que ele é um produto histórico, o resultado da atividade de toda

uma série de gerações, cada uma das quais aos ombros da anterior e

desenvolvendo a sua indústria e o seu intercâmbio e modificando a sua

ordem social de acordo com necessidades já diferentes. Mesmo os objetos da

mais simples “certeza sensível” são-lhes apenas dados por meio do

desenvolvimento social, da indústria e do intercambio comercial (p. 27).

Articulando a fala de Rodolfo com a concepção materialista histórico-dialética,

percebe-se o quanto o entrevistado, em alguns momentos, desconsidera a materialidade de sua

história e sobrepõe a ela concepções especulativas e abstratas.

É possível inferir que Rodolfo vivenciou um período crítico, caracterizado, por

Vigotski (2006), pelas transformações e rupturas na personalidade do indivíduo, que vão

reestruturar a vivência interior e criar novos interesses, necessidades e atitudes em relação a

sua atividade no mundo. A atividade, então, não apenas permite a transformação dos sentidos

por meio da crise, mas também possibilita a reorganização dos processos psicológicos, que

vai reelaborar a concepção de mundo do indivíduo. Para Vigotski (1996),

A investigação na realidade demonstra que o conteúdo negativo do

desenvolvimento nos períodos críticos são somente a face inversa ou oculta

das mudanças positivas da personalidade que configura o sentido principal e

básico de toda idade crítica (p. 259)viii.

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Portanto, é necessário apropriar-se dos sentidos e significados que Rodolfo atribui

a sua atividade inicial para entender as necessidades que determinaram suas ações, assim

como o processo que permitiu a superação desse período.

5.3.2 As formas de atuação de Rodolfo e sua percepção sobre a didática e os

procedimentos adotados em suas atividades de ensino

Atuação como professor na própria escola

Rodolfo foi proprietário de uma escola de dança, na qual também atuou como

professor. Segundo ele,

Tinha ballet, jazz, dança de salão [...] e aí, todo final de ano, eu

fazia os festivais de dança, os espetáculos da escola.

O entrevistado, nessa fala, menciona que além de proprietário da escola, foi

professor. Afirma que exercia várias funções no mesmo espaço, sendo uma delas era uma

atividade (os espetáculos) que, em sua essência, é criativa.

É comum as escolas de ballet elaborarem apresentações no final do ano. É

definido um tema e as coreografias são construídas a partir dele. As instituições, geralmente,

têm o intuito de promover, por meio desses espetáculos, as relações entre os próprios alunos e

ao mesmo tempo entre alunos e professor; outra finalidade é mediar a relação entre artista e

espectador por meio da arte, ou seja, permitir que o aluno experencie a atuação em público e

ao espectador, o acesso à cultura artística.

As aulas ministradas por Rodolfo, os espetáculos realizados pela escola onde era

proprietário, os objetivos e diretrizes dessa instituição poderiam divergir com a formação

cultural do aluno. Ele poderia direcionar-se apenas ao ensino dos conteúdos técnicos da arte.

Entretanto, ao ser questionado sobre como eram suas aulas, ele conta:

E aí, quando eu fui dar aula, houve uma mudança. É bem bacana

sua pergunta... porque a aula que eu dava já não era a mesma aula

que eu fazia. Eu tentei implantar e seguir uma linha, um padrão.

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[...] Então essa aula que eu vivenciei e fui fazer na minha escola não

funcionou. Era uma aula muito rígida né, muito... de muita

disciplina, muita engessada assim, de pouco se falar. Vamos

trabalhar o corpo e fazer e preparar pirueta e em [nome da sua

cidade natal] isso não... Muito louco isso! Nunca parei para pensar,

você me... Era diferente. Era uma aula séria, mas tinha uma leveza,

uma coisa diferente. Era isso. Era diferente. Não era a mesma aula".

Rodolfo, durante a entrevista, revela as transformações que ocorreram entre sua

formação e suas atividades de ensino, devido às características da turma e da cidade. Ele se

preocupa em não reproduzir mecanicamente o conhecimento que adquiriu em suas aulas de

formação, procurando, sobretudo, dialogar com seus alunos. Fontana (2000) aponta que:

[...] somente em relação a outros indivíduos tornamo-nos capazes de

perceber nossas características, de delinear nossas peculiaridades pessoais,

de diferenciar nossos interesses das metas alheias e de formular julgamentos

sobre nós próprios e sobre o nosso fazer (p.222).

O entrevistado complementa:

Mas de fato, assim, é muito louco isso, porque era um outro corpo de

criança, um outro corpo de adolescente e de adulto que frequentava

a minha escola. Era um corpo diferente, talvez um corpo [nome da

sua cidade natal]. Sei lá... Pode ter uma relação cultural, social,

uma explicação para isso. Isso não é uma impressão minha. Isso é

fato, assim. Eu nunca parei para pensar sobre isso.

Nessa perspectiva, pode-se dizer que embora Rodolfo estivesse iniciando a

carreira profissional como professor (da sua escola), ele revela uma prática autocrítica, pois

reelabora suas aulas (já que ele deixa claro que elas foram se modificando, que no início se

pareciam com as suas aulas de formação como aluno) e também apresenta uma concepção

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que vai ao encontro dos conceitos da abordagem histórico-cultural, ao considerar que se

constituiu como professor não de uma maneira estática, mas articulada com o seu passado e

presente, sempre de maneira dinâmica. Delari Jr (2000), nesta perspectiva, aponta:

O devir humano [...] só pode ser encarado como movimento dialético, como

gênese histórica, como processo e acontecimento, e não lhe cabe nenhuma

essência definitiva (mecânica, biológica e/ou transcendental) enquanto pura

identidade do ser consigo mesmo, pois sua própria identidade só se define na

medida em que se contradiz constantemente consigo mesmo. Não há

essência anterior ou superior ao humano que o defina enquanto tal, porque

ele só se define como tal quando vai se tornando historicamente aquilo que

é. Mas aquilo que o homem é não é o que se define num ponto de chegada, e

sim o próprio movimento pelo qual se torna humano constantemente

(DELARI Jr., 2000, p. 58).

Como já foi dito, quando Rodolfo ainda trabalhava em sua própria escola, houve o

falecimento dos pais. Relata a importância do trabalho naquele momento:

Quando aconteceu o acidente eu fechei a academia por 20 dias e

retomei meu trabalho, porque eu acho que isso me ajudou muito e

continuei trabalhando.

O trabalho, para Rodolfo, foi um meio de superar ou lidar com a perda, mas pode-

se dizer que a importância dele vai além. O trabalho possibilita o desenvolvimento psiquismo.

Segundo Leontiev (1978), a origem do trabalho permitiu o desenvolvimento ontológico do

ser, de modo que, ao transformar a natureza, o homem não apenas cristalizava no produto do

trabalho as funções psicológicas, como também a assimilação delas ao apropriar-se da cultura

historicamente acumulada. Nesse sentido, o trabalho ampliou as possibilidades do homem de

ser e agir no mundo, ou seja, o desenvolvimento do psiquismo e sua humanização.

Ele conta que um ano antes dos pais falecerem, eles foram assistir, pela primeira

vez, o espetáculo da sua escola de dança e, no ano da perda,

[...] em dezembro de 2000, o festival foi todo melancólico, né? Eu

coreografei, eu traduzi aquilo que eu vivi aquele ano, que eu

vivenciei. Então falava sobre alma gêmea, essas coisas. Eu estava

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muito sensibilizado. Acho que nem luto eu tinha vivido ainda. E fiz

e foi muito emocionante, tal.

Nesse sentido, a arte como trabalho na vida de Rodolfo, foi também uma forma de

viver e expressar seus sentimentos. Segundo Barroco e Superti (2014),

[...] podemos entender que a arte é a objetivação dos sentimentos humanos,

uma técnica elaborada pelos homens que permite aos indivíduos socializar

determinado sentimento, como também, ao mesmo tempo, torná-lo pessoal,

parte do psiquismo. O autor explica ainda que na obra de arte são utilizados

signos, compondo uma estrutura, criada com a intenção de suscitar emoção

estética. Estes aspectos explicitam que a arte contém e opera por meio de

conteúdos e processos psicológicos (p. 26).

A atuação como bailarino profissional

Sobre o período em que atuou como bailarino profissional em companhia,

Rodolfo diz que

Então aquele sonho de vir para São Paulo, entrar em uma

companhia e dançar, eu vivi, foram incríveis.

Diferente do que ele diz sobre o período da infância, aqui ele apresenta o dançar

profissionalmente como a realização de um sonho.

Ele foi bailarino em uma companhia nacionalmente reconhecida e nesse período

conheceu diversos países e teve acesso a diferentes culturas

Viajei bastante, para muitos países, muito.

A fala do entrevistado não revela o quanto o contato com diversas culturas afetou sua atuação

como bailarino e professor, porém pode-se inferir que essa vivência determinou, de alguma

forma, o modo como exerceu suas atividades posteriormente.

Rodolfo revela que, mesmo vivendo momentos interessantes como bailarino,

decidiu parar com a profissão:

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[...] dancei durante quase 5 anos como bailarino profissional e

também fazia aula, aquela coisa toda de companhia, muito bom. E

aí, nesse último ano, eu estava fisicamente estressado e o [nome da

companhia] faz um espetáculo todo final de ano no Teatro [nome do

teatro] que é o [nome do tema do espetáculo] e nesse espetáculo eu me

arrebentei. Eu fui saltar e quando eu aterrissei eu tive uma, não foi

uma fratura exposta, mas foi bem sério no meu tornozelo.

Exatamente pelo estresse físico mesmo.

É sabido que a profissão em companhias renomadas exige dedicação exclusiva e

alto-rendimento. Os bailarinos, que dançam pela companhia, costumam se apresentar em

diferentes regiões e com frequência exacerbada, sem o descanso físico necessário. É

exatamente o que esse trecho da entrevista revela: a exaustão. Não se pode responsabilizá-la

pelo abandono da profissão, afinal, muitos fatores determinam uma decisão, porém, é possível

considerar a hipótese, tendo em vista o nível de exigência técnica e estética, confirmado pelos

estudos de Carvalho (2005). Rodolfo relata que, após se lesionar e ficar afastado para

recuperação, decidiu romper com a carreira de bailarino profissional. Segundo ele

[...] chegou uma hora que eu falei “Bom, não é mais isso. Eu estou

precisando de uma coisa nova.

Além da fadiga, deve-se destacar que as outras atividades de Rodolfo eram

praticamente incompatíveis com as exigências da companhia de dança, que exige dedicação

exclusiva. Ele apresenta uma intensa necessidade de trabalhar e estar vinculado a uma

atividade prática reflexiva, o que também pode ter colocado em risco a sua continuidade na

carreira de bailarino, já que vai de encontro às exigências da profissão.

A necessidade do novo, tal como ele menciona, não parte do nada, mas são

criadas no social. Nesse sentido, é possível questionar quais foram as condições objetivas (ou

os motivos) que o fizeram encerrar a carreira de bailarino ainda jovem e ao mesmo tempo

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refletir sobre o que o fez escolher outra área de atuação, isto é, entender as suas múltiplas

determinações.

A atuação como professor

Rodolfo, ainda morando no interior, trabalhou como professor na APAE, em

escolas de dança particulares, em projetos com a terceira idade vinculados à Secretaria da

Cultura e em sua própria escola de dança.

Quando se mudou para São Paulo, ele atuou (e ainda atua) pela Secretaria do

Estado da Cultura como arte-educador ou artista-orientador46, em diferentes programas e

projetos sociais, nos quais realizava oficinas culturais com o público de crianças,

adolescentes, terceira idade, que apresentavam vulnerabilidade e risco social47, e também

pessoas com deficiência. Cada um desses projetos ou programas apresenta uma determinada

finalidade relacionada às condições sociais do público alvo. Alguns objetivam a formação

artística, outros direcionam-se ao assistencialismo.

No que diz respeito às características e interesses dos participantes, Rodolfo relata

que:

É uma outra realidade e essas pessoas, eu vou ser bem honesto, essas

pessoas se inscrevem para fazer aula de ballet no projeto social, 80%

dessas pessoas que estão ali fazendo aula no projeto social, não estão

ali para fazer aula de ballet. Elas estão ali para ter um momento,

para ter afeto, para ter relação com outras pessoas, relação, relação

da vida mesmo. Elas usam o viés da dança para se relacionarem. Mas

elas estão ali por outras questões, porque elas querem ser ouvidas,

entende?

Esse trecho revela a importância, seja do ballet ou da dança, para além do

aprendizado técnico ou estético da arte. Luria (1979), ao distinguir a atividade humana como

46 Expressões utilizadas pelo próprio entrevistado. 47 Ele assinala esse público como, particularmente, moradores de favela, mulheres mutiladas, jovens em

liberdade assistida, crianças portadoras de HIV, entre outros.

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essencialmente social e consciente, aponta, como sua primeira característica, a necessidade de

comunicação, de adquirir conhecimento e ser útil à sociedade. As relações estabelecidas na

atividade são tão importantes quanto o conhecimento a ser transmitido. Rodolfo demonstra

reconhecer essa necessidade nos participantes do projeto e, ao mesmo tempo, parece levar em

consideração tais interesses em aula.

Ele enfatiza três trabalhos que realizou pela Secretaria da Cultura: em 2010, no

Esperança (pelo programa PIA48); em 2011, no Dourados (pelo programa CEU49) e, em 2012,

na cidade de Tietê. Esses trabalhos representaram, para ele, respectivamente, três grandes

temas: água, fogo e dor.

Rodolfo explica que água, fogo e dor são temas que se referem à realidade e às

condições de trabalho nesses locais. Então ele discorre:

[...] em 2010 eu cheguei na enchente, com água no joelho para

trabalhar com crianças e trabalhar com arte, no PIA.

Já em 2011,

Eu cheguei, começando o projeto, na desapropriação da favela,

porque o CEU foi construído dentro de uma favela. Então eles

estavam desapropriando para construir condomínios e praças para a

copa [...]. E eu cheguei no Dourados no meio de uma guerra, porque

essa desapropriação era com policiais, soldados a cavalo e botando

fogo nas favelas e eu fui fazer um trabalho de pesquisa

contemporânea no meio da favela.

E em Tietê que

É um bairro próximo ao [nome], mas era um lugar muito especial,

porque era um grupo de terceira idade de mulheres mutiladas, um

48 Programa de Iniciação Artística. 49 Centro Educacional Unificado.

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grupo de senhoras mutiladas. [...] A ideia, o norte e a pesquisa era

contemporânea [...].

A partir desses trabalhos ele construiu três projetos de pesquisa50, sendo que os

dois últimos foram desdobramentos do primeiro: (1) Tudo aquilo que me habita, que, segundo

ele, "[...] tem um caminho, um norte, uma orientação pela dança

contemporânea", (2) Corpo: a casa da memória, "onde eu trabalho o corpo

humano numa relação de afeto com a sua casa, moradia [...]. Essa

casa é o teu corpo material e eu trabalho cada parte do seu corpo

como se fosse um cômodo". E, por último, (3) o RE+, que "é você olhar para

tudo isso que você tem, que você fez e você reorganizar tudo isso,

transformar tudo isso, desdobrar tudo isso."

Essa capacidade de Rodolfo de compreender as condições da realidade e a partir

dela produzir um conhecimento para transformar sua prática caracteriza-a não apenas como

atividade criadora, mas, sobretudo, práxis. Schühli (2011), parafraseando Sánchez, aponta

que:

Para a filosofia materialista, a práxis é a ação consciente dos sujeitos que une

a teoria (compreensão da realidade) à prática (transformação do mundo,

trabalho criativo). E essa ação consciente acaba tendo por condição a

transformação desses mesmos sujeitos (p. 60).

Rodolfo enfatiza o quanto essas pesquisas foram eficazes para trabalhar com o

público participante desses programas e projetos sociais, assim como relata a importância de

ser um pesquisador, ter uma atividade efetivamente criadora e não apenas reprodutora de

procedimentos pedagógicos.

Diferente de eu ter um projeto em mãos e eu falar “agora

vou seguir isso aqui”. Vira uma cartilha. Não. Foram

50 Para prestar o processo seletivo dos programas e projetos sociais realizados pela Secretaria do Estado da

Cultura, era obrigatório elaborar projetos (a fim de refletir e pensar sobre a dança para um determinado público).

No seu relato, Rodolfo disse que não fazia sentido inventar projetos e temas se ele tinha tantas experiências

interessantes. Desde que ele escreveu sobre esses três trabalhos (realizados no Esperança, Dourados e Tietê), os

transformou em pesquisas: Tudo aquilo que me habita, Corpo: a casa da memória e RE+.

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caminhos que eu fui tomando, descobrindo, que virou

então projeto e eu escrevi sobre isso.

Esses produtos criativos (denominados por pesquisa) de Rodolfo revelam na sua

essência a relação entre imaginação e realidade, que constituem toda atividade criadora

(VIGOTSKI, 2009). A primeira relação (entre imaginação e realidade) que podemos inferir é

devido a sua base sócio-histórica, isto é, o conteúdo provém da experiência e não unicamente

das ideias. O conteúdo, apropriado na relação com a realidade, foi reelaborado e combinado

para produzir o novo. A segunda relação que é possível inferir é a determinação da emoção ao

selecionar as informações da realidade. Rodolfo menciona que, por meio dessas criações,

viveu o luto da morte dos pais, ou seja, possivelmente sua vivência determinou a leitura que

fez sobre aquela realidade (ou seja, os locais que ele menciona), logo, pode-se dizer que

determinadas situações foram mais evidentes para ele devido à semelhança ao sentimento que

ele vivenciava (isto é, a dor e sofrimento) do que outras.

Pode-se dizer também que, assim como os sentimentos e emoções determinaram

seu olhar sobre o fenômeno, este também transformou seu estado interno, seus sentimentos e

emoções. Em outras palavras, a relação com esses locais (especialmente o Esperança,

Dourados e Tietê) e com a dança contemporânea possibilitou a reorganização e

ressignificação de seus sentimentos e emoções. Ele relata:

[...] foram três temas de muita intensidade, né? Água, fogo e dor.

Muito forte. Isso marcou muito a minha vida. Eu fiquei muito

mexido com tudo isso, muito transformado.

Ele narra a importância das pesquisas também como uma possibilidade de

vivenciar seus sentimentos, que até então estavam reprimidos. Segundo ele:

[...] tudo isso foi a ponte, o caminho, foi o porto seguro que eu achei

para então viver o luto da morte dos meus pais. O meu luto veio

muito tempo depois e eu fui transformando as minhas dores, as

minhas perdas e todo esse processo em trabalho artístico também, mas

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com uma pesquisa minha. Então a morte dos meus pais virou um

trabalho solo.

Por meio da articulação entre trabalho e arte, Rodolfo produziu não apenas um

produto criativo, mas incorporou nele sentimentos vivenciados tanto na vida pessoal quanto

no trabalho. A síntese de ambas as vivências possibilitou uma reorganização psíquica, de tal

forma que transformou sua percepção sobre a realidade. Barroco e Superti (2014), ao

discutirem a função da arte para Vigotski, ilustram essa afirmação:

[...] a função da arte vai além do simples contágio: a arte não altera apenas o

humor imediato dos indivíduos, mas objetiva sentimentos e outras

potencialidades humanas. Ela é capaz de provocar alterações no psiquismo

dos sujeitos. Ela propicia-lhes nova organização psíquica, o que possibilita a

cada um a elevação à condição de indivíduo particular, organismo até certo

ponto simplista e fruto da evolução natural, à de gênero humano universal.

Neste caso, a arte encontra-se em condição de síntese entre o biológico e o

cultural, contendo em si o conjunto das características humanas mais

complexas, construindo ao longo da história por meio do trabalho e da

atividade (p.23).

Rodolfo também expõe, ao longo da entrevista, as suas inquietações no que diz

respeito à finalidade das aulas, especialmente em relação aos procedimentos pedagógicos. Ele

aponta a importância de ensinar o conteúdo da dança, mas enfatiza a necessidade de dialogar

com os interesses e motivos dos participantes, os quais, segundo ele, não é possível atender

por meio do ballet.

Ele aponta as críticas ao modelo de ensino do ballet e relata as transformações que

ocorreram na aula como professor em relação àquilo que vivenciou como aluno:

Então houve uma mudança muito grande, houve uma

transformação; porque eu fui educado numa aula rígida, de

disciplina, que não se falava. Chegava, fazia, cumpria, dançava e ia

embora [...].

Segundo ele, a experiência com a dança contemporânea nos programas e projetos

sociais (especialmente aqueles ligados às suas pesquisas) foram processos mediadores que

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transformaram o modo de conceber e atuar no ensino do ballet. A partir de então, ele se

questionou:

Espera aí, essa criança está aqui por quê? Qual é o sonho dessa

criança? Eu quero ouvir da criança...” porque muitos você chega e a

criança não quer fazer ballet. A mãe é que não foi bailarina e que

colocou a filha para fazer ballet. Essa criança está ali para brincar,

para se relacionar com o mundo, para se relacionar com outras

crianças e o canal, nesse caso, o caminho é o ballet clássico.

A partir da concepção de desenvolvimento e aprendizagem de Vigotski é possível

inferir que Rodolfo contribui para a aprendizagem e o desenvolvimento dos participantes,

atuando na zona de desenvolvimento proximal (ZDP) dos mesmos. Ao considerar a condição

social, a etapa de desenvolvimento, assim como os interesses e motivos dos alunos (ou

participantes do projeto), ele diagnostica a zona de desenvolvimento real e a partir dela ele

propõe sua aula. Não se pode determinar o quanto ele atinge a ZDP, mas se ele supera a etapa

em que o aluno está inserido e propõe algo que ele ainda não atingiu, levando em

consideração suas necessidades e motivos (tal como ele relata), é possível dizer que ele

contribui para o desenvolvimento dos alunos.

Nas palavras de Vigotski (2006), “está claro que o conhecimento dos resultados

do desenvolvimento anterior é um momento imprescindível para processar como é o

desenvolvimento no presente e como será no futuro. Contudo, não é suficiente, nem mesmo

perto de ser" (p. 266)ix. E ainda aponta que "a segunda tarefa do diagnóstico do

desenvolvimento consiste em determinar os processos não maduros, mas que se encontram no

período de maturação. Essa tarefa é resolvida com a descoberta da zona de desenvolvimento

proximal" (p. 267)x. Alerta, no entanto, que para compreender a dinâmica da pessoa que se

quer atingir, é preciso entender – sendo esta a condição esencial – a sua condição social: “A

situação social do desenvolvimento é o ponto de partida para todos as mudanças dinâmicas

que se produzem no desenvolvimento durante o período de cada etapa” (p. 264)xi.

Para Rodolfo não basta transferir ou reproduzir seus conhecimentos. Eles são

reelaborados e construídos com o aluno. Ele não apenas considera, mas dá voz e autonomia

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aos alunos para a construção coletiva e nega uma repetição mecânica, atitudes que vão ao

encontro da necessidade do outro. Ele conta:

E é uma troca muito grande assim... porque, por exemplo, você está

fazendo uma aula de dança com um adolescente e tal, e ele propõe

coisas também porque eu dou esse espaço. Então ele: “professor, e se a

gente fizesse assim”... às vezes nem fala, quando você vê já está

rolando. E eu acho que é um mérito... é exatamente por essa troca,

que tem essa escuta, para que essas coisas aconteçam porque senão é

bom dia, boa tarde, boa noite, agora vocês vão fazer isso, isso, eles

repetem 5, 6, 7, 8 e acabou.

O discurso de Rodolfo revela as dificuldades de se trabalhar sob essa perspectiva

criadora por meio do ballet, possivelmente devido às características historicamente

construídas e nele cristalizadas, já mencionadas algo longo do trabalho. Ele diz:

[...] e aí hoje eu olho realmente com muita diferença para chegar

numa academia, para dar aula de ballet, barra. Eu olho com muita

diferença, presta atenção no que eu estou te falando! Eu não disse

que é mais ou menos importante, mas tem algumas coisas que hoje

me alimenta e me deixa mais feliz. É muito diferente você chegar

hoje em uma escola de dança, formadora, tal... por ter passado por

essas experiências eu tive, trabalhando com o social, com dança, com

arte, coisas incríveis assim, que eu não tive esse ganho numa escola

de ballet, porque é um contato, uma relação cotidiana da vida, né?!

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Rodolfo evidencia sua simpatia pela dança contemporânea, sem necessariamente

fazer juízo de valor entre ela e o ballet clássico. Entretanto, explicita que a proposta nesses

projetos sociais e programas da secretaria da cultura é trabalhar com a dança contemporânea,

tendo em vista a amplitude de possibilidades e a liberdade de se trabalhar a linguagem

corporal. Segundo ele

[...] A gente procura transformar as coisas, né? É mostrar para a

criança outras possibilidades da música, de criar som, de descobrir o

corpo.

Embora ele não trabalhe o ballet com a mesma frequência que a dança

contemporânea, ele explicita uma forma de superação desse ensino rígido, tradicional e

conservador, tendo em vista que ele considera a relevância dos conhecimentos e da técnica do

ballet para dançar e, ao mesmo tempo, se conhecer. Então ele apresenta alguns recursos

pedagógicos utilizados nas suas aulas tanto de ballet clássico quanto de dança contemporânea.

Dentre eles estão: (1) o caderno de protocolo, em que a

[...] cada encontro você escreve sobre aquilo, exatamente para você

falar, extravasar e colocar aquilo para fora [...],

(2) momento de apreciação, isto é, refletir e ao mesmo tempo

[...] falar sobre aquilo, de como você entrou, de como você está saindo,

do que mudou, de perceber e entender o corpo por dentro,

e também a (3) ludicidade, na qual

[...] começo fazendo umas brincadeiras de autoconhecimento, de

integração, de socialização, porque isso que encanta e que vai

alimentar essas pessoas em dar continuidade nesse processo [...]

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É possível perceber que, ao lecionar, ele não reproduz as aulas que teve durante a

sua formação, mas supera-as. O ballet de formação é a base, mas o contemporâneo

incorporado às pesquisas são as estruturas que sustentam sua prática pedagógica. Seu discurso

confirma:

Eu acho que hoje, as minhas aulas de ballet clássico estão bem

atreladas com a minha pesquisa como artista-orientador e educador,

dessas coisas que habitam no corpo, de como eu sou por dentro, de eu

entender um pouco isso e de eu estar provocando sempre isso, porque

eu acho que fica mais interessante. É lindo ver uma criança que vai

lá fazer aula de ballet com a roupinha rosa, de coque e de redinha,

mas é lindo quando ela pode fazer tudo isso e quando termina dela

falar sobre as sensações, das coisas que ela gostou ou não e dessas

impressões, entendeu? É isso que me encanta em continuar nesse

caminho. Então, o que eu fiz, eu fui buscar um pouquinho dessas

outras experiências e trazer um pouco para o ballet de formação,

porque eu acho que fica mais interessante.

As preocupações de Rodolfo sobre o ensino da dança ou do ballet não devem ser

naturalizadas, pois são determinadas socialmente. Além da importância da atuação nos

projetos e programas, ele também elucida, ao longo da entrevista, uma das teorias que

fundamentam a prática pedagógica:

[...] eu gosto muito do Merleau Ponty, que é um escritor que trabalha

com sonhos [...]. Então é um caminho que eu descobri, que você

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começa a trabalhar com sonhos; é um caminho que tem tudo para

dar super certo.

Assim como aponta seu interesse pela pesquisa e leitura vinculadas à dança:

E aí eu fui pesquisar outras referências né?! O corpo fala51, livros e

livros.

Ele também menciona, por último, as determinações familiares:

E o meu pai me deu também, trouxe muita referência de

brincadeiras, jogos da educação física, para trabalhar corpo e dança.

Isso foi muito potente assim para mim.

Assim, pode-se dizer que foram as determinações sociais que o constituíram como

artista, educador e pesquisador, e ao mesmo tempo possibilitaram-lhe, por meio da relação

dialética, uma atividade prática transformadora. Nas palavras de Marx e Engels (1984),

[...] são os homens que desenvolvem a sua produção material e o seu

intercambio material que, ao mudarem esta sua realidade, mudam também o

seu pensamento e os produtos do seu pensamento. Não é a consciência que

determina a vida, é a vida que determina a consciência. No primeiro modo

de consideração, parte-se da consciência como indivíduo vivo; no segundo,

que corresponde à vida real, parte-se dos próprios indivíduos vivos reais e

considera-se a consciência apenas como a sua consciência (p.24).

5.3.3 As relações estabelecidas profissionalmente

Durante a entrevista, Rodolfo menciona algumas formas de relações muito

importantes - no que diz respeito à especificidade do ballet e também na sua constituição -

que determinaram seu processo de atuação profissional, dentre elas, o preconceito e a relação

estabelecida entre professor-aluno, explicadas com mais detalhes a seguir.

51 Livro de Pierre Weil e Roland Tompakow.

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É sabido (e também já foi mencionado) que no ballet os homens sofrem muito

preconceito. Ele relatou, anteriormente, as agressões que sofreu na infância. Já sobre o

período de atuação ele diz:

[...] ainda nos tempos de hoje, principalmente com os meninos, os

homens tem preconceito quando a gente fala... hoje é muito menos do

que há 12 anos que eu cheguei em São Paulo. Hoje eu chego, vamos

lá... diretora fala “esse é o Rodolfo, professor de dança”, sabe?! A

gente já tem uma outra relação. As pessoas não ficam rindo e tirando

sarro da sua cara não. Existe preconceito, mas é diferente.

É possível notar no discurso de Rodolfo a transformação da infância para a fase

adulta. Ele mostra que o preconceito ainda existe, mas hoje é possível ser valorizado e

reconhecido pela profissão. Ele diz

Eu tive inúmeras experiências bem diferentes. Nenhuma traumática,

embora eu já fui, apanhei e fui assaltado na saída de uma ONG que

eu trabalhei.

Embora pareça que ele associe a violência sofrida ao preconceito, não se pode

garantir tal relação. O que é destacável, de fato, em suas considerações sobre o preconceito, é

o aparente avanço da sociedade em relação ao tema. São múltiplos os fatores responsáveis por

essa transformação na forma de se conceber um homem-bailarino e todos eles de natureza

histórica e cultural. Tal como Marx e Engels (2010) apontam:

Mas a nossa concepção de história é, sobretudo, um guia de estudo [...]. É

necessário voltar a estudar toda a história, devem examinar-se em todos os

detalhes as condições de existência das diversas formações sociais antes de

procurar deduzir delas as ideais políticas, jurídicas, estéticas, filosóficas,

religiosas etc. que lhes correspondem (p.107).

Na relação estabelecida entre dança e gênero, Assis (2012) relata que:

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Na dança, fala-se muito sobre o corpo e pouco sobre o gênero, sendo que

eles estão intrincados. O gênero encarnado no corpo e o corpo pertencente à

dança compõem uma trilogia importante, que resulta em espetáculos

enquanto configurações estéticas, nos quais muitas representações sobre o

feminino e o masculino podem ser expressas e comunicadas (p.39).

Sob esta perspectiva, os bailarinos, ao se apresentarem, expressam “o gênero

encarnado no corpo”, contudo, podem também permitir uma leitura que transcenda essa

perspectiva, de tal forma que, por meio da arte, o próprio espectador possa ressignificar as

determinações sociais estabelecidas historicamente. A arte possibilita a reconfiguração de

novos signos, isto é, uma nova leitura do que foi previamente estabelecido pela sociedade

diante de seus corpos. Como enfatiza a autora:

É preciso que, ao sairmos de uma apresentação que tenha nos tocado, que

nos voltemos sobre a problemática que mexeu com nosso íntimo, e que esta

seja encarada ao nível de nossa existência, numa dança que não seja alheia

ao que vivenciamos, pois se o que vivemos é movimento [...] (ASSIS, 2012,

p. 120).

No que diz respeito à relação aluno-professor, Rodolfo supera a austeridade e a

hierarquia nas relações cristalizadas no ballet. Segundo ele,

[...] exatamente por trabalhar nesses projetos sociais e com esses temas,

eu não consigo desenvolver um trabalho, fazer algo se eu não

estabelecer uma relação de afeto com você. Amizade vai se

construindo, mas esse carisma, eu acho que eu sou bastante

carismático sim e eu acho que isso é preciso para a gente lidar com

as pessoas e acima de tudo respeitar todas essas pessoas.

Ele valoriza a relação dialógica, mediada pela afetividade. Ele se coloca como

professor, mas que tem como base uma relação amigável. Em sua fala, esses sentimentos

eram recíprocos, pois os alunos também demonstravam cuidado e carinho por ele

Quantas vezes esses meninos foram me levar e ficavam esperando eu

pegar o ônibus ou a condução, me esperando, porque era um lugar

de risco e para eu não ser assaltado, para não haver nenhum

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problema, eles me protegiam. E faziam a aula de dança, muitos se

identificavam com aquilo né, com a dança, com todo processo, com a

técnica. Muitos estavam ali, porque queriam estar perto do Rodolfo,

queriam estar próximos dos amigos.

Nota-se que Rodolfo adota uma concepção que vê o homem como um sujeito que

sente e pensa de maneira indissociável, algo que para a teoria adotada neste estudo é

essencial. Vigotski considera a unidade formada pelo cognitivo e afetivo no processo de

constituição humana. Sobre esta relação, escreve:

[...] a separação entre a parte intelectual de nossa consciência e a sua parte

afetiva e volitiva é um dos defeitos radicais de toda a psicologia tradicional.

Neste caso, o pensamento se transforma inevitavelmente em uma corrente

autônoma de pensamentos que pensam a si mesmos, dissocia-se de toda a

plenitude da vida dinâmica, das motivações vivas, dos interesses, dos

envolvimentos do homem pensante e, assim, se torna ou um epifenômeno

totalmente inútil, que nada pode modificar na vida e no comportamento do

homem, ou uma força antiga original e autônoma que, ao interferir na vida

da consciência e na vida do indivíduo, acaba por influenciá-las de modo

incompreensível (VIGOTSKI, 2001, p. 16).

Rodolfo ressalta que não obriga os alunos a fazerem as aulas, mas dá liberdade

para que seja uma escolha individual. Porém, ele naturaliza um processo que é social. A

necessidade não surge de dentro para fora, mas a partir condições históricas e sociais. Nas

suas palavras:

[...] quantas vezes, quantas aulas eu fui dar que a aula era de dança

e os meninos, muitos ficavam só assistindo, não queriam fazer. Eu

nunca obriguei. Eu acho que tinha que ser espontâneo, tinha que ser

do coração. Passava duas ou três semanas e eu estava com todos os

meninos dançando também. Uma relação brother, uma relação

camarada assim, de muito respeito.

Outro aspecto importante que Rodolfo apresenta no discurso é o papel desse outro

(e ele se refere aos alunos em liberdade assistida) na sua constituição. Na entrevista ele diz:

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Porque de tudo isso eu acho que eu sou o que eu sou e quem eu sou

devido a esses contatos, essas trocas que eu tive com essas pessoas.

Ele compreende a função do outro nesse processo do vir a ser, ideia postulada por

Marx (2012b) quando afirma que a essência humana não pode ser compreendida de maneira

isolada e abstrata. Na realidade, é o conjunto das relações sociais, produto social, pertencente

a uma determinada forma de sociedade.

5.3.4 A significação do processo de atuação

Ao longo de sua trajetória de Rodolfo, os sentidos que atribuía ao ballet e à dança

se transformaram. A formação no ballet, que era um hobby, não apenas foi uma possibilidade,

mas se tornou, de fato, sua profissão. Ele relata que na infância

Eu perdi horas de estar com meus amigos, com os meus amigos

brincando. Mas para mim não era importante eu estar com os meus

amigos brincando, era estar ali, fazendo aula.

Embora ele enfatize a importância do ballet em sua formação e atuação, também o

expõe como uma escolha que implicou renúncias, dentre elas uma atividade determinante para

o desenvolvimento, o brincar. Para Leontiev (1978), a brincadeira é atividade principal na

infância. Ela reestrutura a consciência e provoca um salto qualitativo no desenvolvimento.

Segundo Vigotski (1991),

a ação na esfera imaginativa, numa situação imaginária, a criação das

intenções voluntárias e a formação dos planos da vida real e motivações

volitivas – tudo aparece no brinquedo, que se constitui, assim, no mais alto

nível de desenvolvimento pré-escolar (p. 117).

Para Vigotski (1991) é por meio da atividade lúdica que a criança se apropria do

mundo e desenvolve seu psiquismo. É possível que a atividade principal de Rodolfo na

infância, a partir dos relatos na entrevista, foi o ballet. Ele se apropriou e se constituiu sob

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uma atividade fundamentada na rigidez e disciplina, diferente da estrutura do brincar. Isso

deve, no entanto, ser uma escolha? Elas não podem ser atividades dialógicas, de modo a

atender o interesse e motivações da criança e também do adulto?

Então eu falo que eu não escolhi, que eu fui escolhido, porque as

coisas sempre foram acontecendo para mim e acontecendo pela

dança. Eu vim para São Paulo, eu fui fazer uma faculdade... talvez

eu fizesse arquitetura, eu fui fazer dança, entendeu? Então, as coisas

para mim foram vindo assim para mim, para o meu caminho

sempre ligado a dança. E eu nunca questionei, sempre aceitei e é isso.

É isso.

Rodolfo atribui a atuação na dança não como uma escolha, mas a condições

"mágicas". Nessa fala ele se mostra passivo diante da realidade profissional; no entanto,,

explicita as transformações do eu, a partir dela.

[...] o que eu tenho para te dizer hoje dessas impressões de tudo, assim

da minha visão é o quanto eu cresci profissionalmente e como pessoa

fazendo parte, vivenciando essa memória social e individual dessas

pessoas nesses projetos sociais. O quanto a dança contemporânea me

mostrou e abriu possibilidades de relação e de processo artístico

assim, sabe. Coisas que quando eu estava dentro de uma sala,

fazendo aula de dança, de ballet, de formação, eu não tive essa

experiência, entendeu? Então hoje eu olho isso com outros olhos.

É possível perceber que ele supera o ensino do ballet a partir da dança

contemporânea e das experiências como professor das instituições públicas nas quais atuou.

Elas (a dança contemporânea e a experiência como professor) transformaram sua concepção e

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atribuíram um novo sentido para sua atuação. A técnica é importante, mas não essencial, nem

única. A necessidade do homem pelo novo, pela criação e expressão dos sentimentos,

apresentada por Vigotski (1999), também é revelada nas falas de Rodolfo, logo, seus

interesses vão ao encontro da dança contemporânea e não mais do ballet. Ele afirma,

E o ballet hoje, o ballet eu falo é de uma escola de formação, talvez

não me alimentaria, talvez, não me alimentaria, como o contato que

eu tenho com essas comunidades, com o entorno desses lugares, com

as coisas que eles me alimentam.

O trabalho constitui o sujeito e o outro sobre quem esse trabalho se destina. É

refletir e, ao mesmo tempo, dar condições para a reflexão do aluno.

Eu mudei muito quando eu cheguei em SP e comecei a entender

tudo isso. Porque uma coisa é você chegar, dar aula, ganhar o seu

dinheiro, mas é entender isso e o quanto isso se reverbera na sua

vida, o quanto isso transforma a sua vida, como tudo isso te

acrescenta e muda em você. É muita coisa.

Mellouki e Gauthier (2004), assim como Rodolfo deixa subtendido, também

apontam a importância de uma formação que não seja unidirecionada, mas que considere a

especificidade de cada linguagem (neste caso, a dança) e a realidade da qual é parte,

contribuindo para o agir no mundo, cada vez mais humanizado.

[...] o papel do mestre é tornar o aluno [...] consciente de sua herança,

colocando-o em contato com a obra humana passada e com as culturas de

outros lugares, com o desenvolvimento das letras, das artes, da história, das

ciências e das tecnologias. Mas seu papel não para aí, pois a cultura não se

reduz nem a uma soma de conhecimentos nem a objetos que precisamos

conhecer: pintura, arquitetura, modos de vida etc. Os conhecimentos, objetos

e modos de vida foram produzidos ou adotados em contextos determinados e

a fim de satisfazerem as necessidades determinadas. É auxiliando o aluno a

situar os conhecimentos, objetos culturais e modos de vida em seu contexto

social e histórico que o mestre contribui para a formação cultural do aluno

e para ajudá-lo a tomar consciência dos pontos de junção e de ruptura que

marcam a história humana (MELLOUKI; GAUTHIER, 2004, p. 557).

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E, para finalizar, a dança, como processo artístico e atividade criadora, também

foi o meio de superação e ressignificação do preconceito e das perdas:

[...] teve esses momentos mais tristes né, mas que também faz parte da

vida, mas eu fui transformando tudo isso [...] porque a dor eu tenho,

a marca eu tenho, a cicatriz está em mim. Está tudo aqui. É só como

lidar com isso [...]. O que realmente me ajudou com tudo isso, desde a

minha infância, dos meus traumas, das vezes que minha mãe me

bateu, das vezes que eu apanhei dos meus amigos, das palavras que

ouvia, mas que para mim era como se fosse uma surra, das coisas que

eu ganhei, das coisas que eu tive, dessa perda, foi realmente [...]

transformando isso em processo artístico.

Nesse trecho percebe-se o quanto os sentidos atribuídos à dança (como meio de

atuação) se transformaram e, ao mesmo tempo, o quanto esses novos sentidos estão

vinculados à superação (por meio da própria atividade de ensino) do modelo de ensino do

ballet, no qual utiliza muito mais a reprodução e a repetição do que a arte como criação.

Barroco e Superti (2004) apontam, parafraseando Vigotski, que

Com o que foi dito, temos que a percepção da obra de arte exige

humanização dos sentidos, ao mesmo tempo em que a própria arte tem

impacto sobre eles. Ao perceber, ao entrar em contato com a obra, as demais

funções psicológicas superiores são colocadas em movimento. A estrutura da

obra objetiva e suscita emoções, as quais são transformadas, pelo processo

de catarse, em sentimentos e são reorganizadas, em vínculo semântico mais

complexo, valendo-se da imaginação. Essas transformações impactam

também na consciência. (p. 28)

Para sintetizar, Rodolfo teve um processo de formação e atuação permeado por

contradições, ou seja, do interesse pelo ballet ao conflito entre os pais, no qual recebia apoio

do pai e oposição da mãe; da ausência de escola de ballet, às dificuldades inerentes de fazer

aulas em outra cidade; do seu envolvimento ao preconceito dos colegas; de uma atividade

"cosmopolita" aos preconceitos da população de uma cidade pequena; da renúncia de estudar

fora para um curso disponível em sua região; da mãe que se opôs a sua formação no ballet à

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mãe que lhe dá condições para a atuação profissional; da rigidez do ballet à descoberta da

liberdade na dança moderna e contemporânea; da mudança de uma cidade pequena para a

metrópole; da crise provocada pela tragédia familiar ao contato com as desigualdades sociais;

da depressão aos novos sentidos à sua vida por meio da atividade de ensino. São momentos

críticos que produzem novos sentidos e significados para a vida de Rodolfo, para a dança e o

ensino. Contradições que levam à superação, às vezes percebida como "acaso", outras

criticamente conscientes.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao aproximar-se dos sentidos e significados que um professor de ballet atribui ao

seu processo de formação e atuação (tanto como bailarino quanto educador), houve a

necessidade de compreender a história desse sujeito e as condições de vida e educação que o

levaram a fazer determinadas escolhas, em especial aquelas que foram decisivas para esse

processo (de formação e atuação). Para entender esses momentos, no entanto, foi necessário

articulá-los com a constituição da dança e, especificamente, do ballet, tendo em vista que

essas manifestações materializaram as significações do momento histórico em que foram

construídas. Tal como Marx (1997, p. 21) aponta, “Os homens fazem sua própria história,

mas não a fazem como querem, não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e, sim, sob

aquelas com as quais se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”.

Rodolfo, ao apontar os preconceitos que sofreu da mãe e dos colegas, revela o

quanto ainda há uma marginalização da figura masculina no ballet. Nessa perspectiva, o

entrevistado denuncia a necessidade de transformar e superar os significados constituídos e

reproduzidos acriticamente pela e na sociedade, sobretudo aqueles que envolvem preconceito

e desrespeito humano.

Quando ele ressalta que durante a sua formação no ballet não tinha a intenção de

se profissionalizar, mas o tinha como um hobby de infância, é possível inferir o quanto essa

fala, aparentemente desinteressada, estava vinculada ao preconceito e à repressão da mãe.

Ambos dificultavam a possibilidade de ser um professor de dança ou bailarino profissional.

Contudo, isso se transformou quando a própria mãe lhe deu uma escola de dança e se

consolidou, após a perda dos pais, na sua independência afetiva.

Assim como é revelado na história de Rodolfo, é possível concluir que a família

tem um papel determinante na constituição do sujeito. Suas necessidades e interesse pelo

ballet, assim como sua preocupação em fazer uma faculdade e continuar os estudos têm a

família como uma das condições objetivas estimuladoras. Seus pais tiveram formação no

ensino superior e também foram professores universitários, o que certamente contribuiu para

as escolhas de Rodolfo. É importante ressaltar o quanto o apoio do pai possibilitou a

superação das adversidades (preconceito, distância da escola, renúncia de desejos etc.)

naquele momento e propiciou as condições necessárias para ele continuar dançando.

Rodolfo teve duas formações no ensino superior, várias especializações e cursos

de curta duração. Ele mostra uma necessidade de estar em constante atividade de conhecer e

transformar seus conhecimentos e suas práticas. A princípio, as escolhas profissionais foram

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condicionadas pela mãe, mas ele foi adquirindo autonomia, especialmente depois do

falecimento dos pais.

Ao mesmo tempo em que iniciou um curso de graduação, Rodolfo começou a

atuar profissionalmente no ensino da dança, na sua própria escola. Não é possível afirmar que

essas decisões, aliadas à renúncia de ir embora da cidade, ocorreram unicamente pela proposta

da mãe ou a um desejo particular de atuar na área. Entretanto, quando os pais faleceram, ele

se mudou de cidade e começou a atuar no ensino da dança. Nesse aspecto, é possível fazer

duas considerações: ele queria sair de casa, mas a proposta de trabalho foi mais atrativa

naquele momento de incertezas e, embora o início da atuação seja atribuído a uma condição

puramente externa (à proposta da mãe), se não fosse também uma vontade própria ele teria

abandonado a dança quando os pais faleceram ou quando se mudou para São Paulo.

Apesar da ênfase nas determinações familiares, existem, no entanto, outras

condições que constituem o entrevistado e que vão determinar seu modo de apreender e agir

no mundo. Por exemplo, por meio da atividade de estudo e trabalho, Rodolfo atribuiu novos

sentidos à sua vida e à sua atividade de ensino e isso lhe possibilitou um salto qualitativo de

sua consciência.

Ao considerar seu papel de formador é possível apontar a importância do

conhecimento - adquirido tanto na formação quanto na atuação - como forma de constituição

e transformação desse indivíduo. Em outras palavras, o processo de formação de Rodolfo - no

ensino superior e continuada - produziu novos significados e sentidos às concepções

construídas durante a formação de ballet e, ao atuar, esta foi novamente significada. Esse

processo, sem dúvida, foi fundamental também para o desenvolvimento de sua consciência.É

possível supor que ele revela uma concepção de totalidade e apresenta uma forma de superar a

dicotomia entre corpo e mente, quando percebe na arte (seja pela dança ou ballet) uma forma

de conhecer as possibilidades do seu corpo, de expressar seus sentimentos, de superar a

depressão e como dimensão constitutiva da sua personalidade (quando ele diz que o ballet lhe

ensinou seriedade, respeito e disciplina). Embora ele apresente esses momentos de forma

isolada, quando ele percebe que o movimento corporal possibilita todos esses conhecimentos

e transformações, ele revela a dialeticidade e totalidade na relação entre indivíduo e arte.

Rodolfo também revela a importância de se considerar, no processo pedagógico,

as condições sociais que fundamentam o interesse do aluno. A aula não deve ser padronizada,

assim como os modelos ou métodos de aula não devem ser reproduzidos mecanicamente, mas

utilizados como um recurso pedagógico para o educador. É possível dizer que a atuação de

Rodolfo atinge a práxis, na medida em que ele dialoga com a realidade e busca transformá-la.

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Dessa forma, é preciso superar a tradição e o conservadorismo cristalizados na aula de ballet.

E ele o fez.

Apesar de ser frequentemente relatado, tanto em estudos científicos quanto por

bailarinos, a austeridade e rigidez do professor de ballet, Rodolfo aponta ter estabelecido uma

boa relação com sua professora de formação inicial no ballet. É possível inferir que ocorreu

uma variação nesse processo (relação professor-aluno), ainda que em pequenas instâncias da

sociedade (no caso de Rodolfo, que é de uma cidade pequena e do interior) e que isso pode

também ter contribuído para sua continuidade no ballet. A relação com essa professora e sua

maneira de ensinar mostram que é possível fazer da formação em ballet algo diferente do que

tem sido tomado como algo necessário e imutável. Portanto, para ser um formador é preciso

considerar que indivíduo se quer formar, pois este também será um futuro profissional e o seu

processo de constituição também vai determinar sua atuação; logo, para romper com tais

significados atribuídos ao ballet, é necessário superar esse modelo de ensino tradicional.

A relação com diferentes públicos, nos projetos e programas sociais, ampliou a

leitura de mundo de Rodolfo, permitindo não apenas levar conhecimento e arte a uma camada

da sociedade cujo acesso à formação e à prática dessa arte é restrita, como também apreender

a estrutura e a dinâmica da realidade.

Durante os cursos, especializações e atuação em programas sociais ele enfatiza a

transformação na concepção do ensino do ballet e da dança. Se até então o seu princípio era a

técnica, mais tarde passou a ser a criação. Para ele, o primeiro (técnica) é importante, mas o

segundo é essencial (criação). São dois elementos que constituem uma unidade e ao serem

articulados atingem a superação no ensino tanto da dança quanto do ballet. Por outras

palavras, a dança (contemporânea ou moderna) também necessita da técnica para se constituir

como arte e o ballet da criação para ser uma atividade criadora que formem indivíduos

artistas-criadores.

O ballet é importante para a formação técnica e estética do bailarino, mas o

modelo tradicional e conservador, aderido estritamente, impossibilita seu desenvolvimento

criativo. Ele desenvolve processos psicológicos, tais como atenção e memória, fornecendo a

base para a imaginação; porém, na aula em si, a atividade criadora não tem sido trabalhada,

propiciada e estimulada. Em contraste, a dança moderna e a contemporânea, tanto na

literatura quanto no discurso de Rodolfo, é apresentada como uma superação dos limites do

ballet. Limites estes encontrados tanto no método de ensino quanto na didática e na relação

professor-aluno.

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A dança (ou até mesmo o ballet) pode vir a ser um meio efetivo de superação das

determinações sociais, não no sentido de alienar, mas como possibilidade catártica, ou seja, de

transformação do sentimento. Essa constatação nos leva a afirmar que as elaborações teóricas

de Vigotski, em sua obra em geral e na Psicologia da Arte em especial, constituem-se em

referencial importante para se pensar a formação e a arte do ballet e da dança, devendo ser

mais aprofundada em novas pesquisas.

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APÊNDICES

APÊNDICE A - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

Eu, ______________________________, natural de ______________________, residente na

_____________________________________, fui convidado para participar de um estudo

denominado “O processo ensino-aprendizagem do ballet: o olhar do educador-bailarino”, que

objetiva apreender os sentidos e significados do ensino do ballet. Este trabalho tem como

propósito compreender os fatores objetivos e subjetivos envolvidos no processo ensino-

aprendizagem da dança, precisamente, do ballet. Dessa forma a pesquisa visa contribuir para

a área de forma a ampliar as discussões sobre o tema e ao mesmo tempo suscitar reflexões

acerca do ensino e aprendizagem da dança, apontando as limitações e possibilidades.

A minha participação no referido estudo será voluntária por meio de uma entrevista, que será

realizada em um ambiente tranquilo sem ruidos intensos na qual estarão presentes somente o

entrevistado e a entrevistadora (bolsista). Durante a entrevista (desde o início até o final) não

poderão entrar ou sair do local nenhuma pessoa ou apenas se houver um motivo urgente. As

entrevistas serão gravadas. O audio será totalmente destruído após a análise das informações

obtidas.

Fui esclarecido sobre os possíveis desconfortos e riscos decorrentes do estudo. Assim, os

riscos relacionados à minha participação referem-se a (1) eventuais constrangimentos em

responder as perguntas das entrevistas, mas tenho o direito de não respondê-las, podendo a

qualquer momento pedir para mudar de pergunta; e (2) eventuais constrangimentos devido a

gravação, no entanto, tudo que for registrado será apresentado e discutido entre entrevistado e

entrevistador. Após as discussões e esclarecimentos de ambas as partes se o sujeito da

entrevista continuar constrangido, o que ocasionou tal sentimento será retirado da pesquisa.

Os resultados desta pesquisa poderão ser apresentados em seminários, congressos e similares,

entretanto, os dados/informações obtidos por meio da minha participação serão confidenciais

e sigilosos, dessa forma não haverá identificação. Estou ciente de que minha privacidade será

respeitada, ou seja, meu nome ou qualquer outro dado ou elemento que possa, de qualquer

forma, me identificar, será mantido em sigilo.

Também fui informado de que posso me recusar a participar do estudo ou retirar meu

consentimento a qualquer momento, sem precisar justificar. Se eu desejar sair da pesquisa,

não sofrerei qualquer prejuízo pessoal e profissional.

Os pesquisadores envolvidos com o referido projeto são Cíntia Regina de Fátima, mestranda

em Educação: Psicologia da Educação e Mitsuko Aparecida Makino Antunes, docente da

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mesma instituição; e com elas poderei manter contato pelos telefones (11) 9 56305556 ou (11)

9 99847070.

É assegurada a assistência durante toda pesquisa, assim como é garantido o livre acesso a

todas as informações e esclarecimentos adicionais sobre o estudo e suas consequências.

Após ser orientado e compreender o objetivo desta pesquisa, manifesto meu livre

consentimento em participar, ciente de que não há nenhum valor econômico, a receber ou a

pagar, por minha participação. No entanto, caso eu tenha qualquer despesa decorrente da

participação na pesquisa, serei ressarcida mediante a depósito em conta corrente. Assim

como, caso ocorra algum dano decorrente da minha participação no estudo, serei devidamente

indenizado, conforme determina a lei.

Você receberá uma cópia deste termo onde constam os dados do pesquisador principal,

podendo tirar suas dúvidas sobre a pesquisa e sua participação, agora ou em qualquer

momento.

Em caso de reclamação ou qualquer tipo de denúncia sobre este estudo devo ligar para o CEP

PUCSP (11) 3670-8466 ou mandar um email para [email protected];

São Paulo, ___ de ____________ 2015.

_____________________________________________

Participante da Pesquisa - RG

_____________________________________________

Cíntia Regina de Fátima

Pesquisadora Responsável

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APÊNDICE B – A formação e atuação de Rodolfo de acordo com os períodos de realização

84

-

92 93 94 95 96 97 98 99 00 01 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11 12 13 14 15

Form

ação

Formação profissional em

ballet clássico X X X X

Bacharel em

Comunicação Social -

publicidade e propaganda X X X X

Latu sensu Dança

Educativa Moderna X X

Licenciatura em Dança X X X X

Inicio da pós graduação

em técnica de Klauss

Vianna X

II Curso de tango

moderno e workshop na

academia nacional do

tango na Argentina X

Capacitação sobre

gerontologia para o

profissional que trabalha

com idoso X

Capacitação cuidando do

cuidador e resiliência, a

arte de ser flexível X

Curso para julgadores de

carnaval quesito dança X X

Curso de dança,

coreologia e composição

coreográfica para grandes

eventos e musicais no

Chile X

Curso de Formação no

Método Ivaldo Bertazzo -

Educação do Movimento X

Workshop de integração e

motivação em centro

especializado em

cirurgias minimamente

invasivas X

Latu sensu em Estéticas

Contemporâneas X X

Atu

ação

com

o b

aila

rino e

pro

fiss

ional

de

dan

ça

Experiência profissional

em academia X X X

Experiência profissional

em academia de dança

própria X X X X X X

Experiência profissional

em conservatório de

música e dança X X X

Bailarino profissional X X X X X X

Bailarino e assistente de

coreografia de companhia

de dança X X X

Diretor coreográfico de

grupo municipal de dança X

Estágio em companhia de

dança X X X X X

Coreógrafo e organizador

de eventos em clube X X X

Coreógrafo, bailarino e

figurinista de dupla

sertaneja X X X

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Professor em escola de

ensino fundamental e

médio X X

Professor, diretor,

coreógrafo e bailarino

atuante em companhia de

dança X X

Professor de ritmos em

academia X X X X X X

Coreógrafo e diretor geral

de grupo de dança X

Atu

ação

com

o a

rtis

ta e

du

cador

em p

roje

tos

Soci

ais

Artista educador de dança

coreográfica em centro

comunitário para terceira

idade X X X X X X X

Artista orientador do

programa dança

vocacional X X X X X

Artista educador com

jovens em liberdade

assistida X X

Artista educador do

Programa Re + X

Artista educador do

Programa de Iniciação

Artística (PIA) na

linguagem de dança X X X X X X

Artista orientador do

projeto VAI X

Trabalhos corporais e

coreográficos com grupos

de crianças, deficientes,

adolescentes e terceira

idade X

Artista educador de dança

de salão, dança educativa

e coreográfica em centro

de referência da cidadania

do idoso X X

Oficinas de danças de

salão, expressão corporal,

dança contato e

improvisação para

terceira idade X

Desenvolvimento de

trabalho artístico e

corporal com danças num

grupo de lavadeiras de

uma comunidade X

Educador Corporal em

ONG para terceira idade -

dança contemporânea

X X

Ofi

cinas

e c

urs

os

min

istr

ados

Ministrou curso de dança

de férias

X

Ministrou curso de dança

de salão X

Ministrou curso de

hidrocoreografia e

hidroaxé X

Ministrou curso de

história da arte e a cultura

escolar X

Professor e oficineiro da

IV e V conferência lúdica

regional dos direitos da

criança e do adolescente X X

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Oficina de composição

coreográfica X X

Oficina de dança

educativa moderna X

Oficinas de dança

contemporânea, canto,

dança e teatro (para

musicais) para crianças de

7 a 12 anos X

Oficinas de dança criativa

contemporânea para

deficientes X

Participou das formações

das 29° e 30° bienal de

arte contemporânea de SP X X

Oficinas de dança, jazz X

Trabalhos de integração,

sensibilização corporal e

dinâmicas motivacionais

com comunidades na I

Feira Internacional de

Educação em Fortaleza X

Atu

ação

em

esc

ola

s d

e sa

mba

Artista orientador e

coordenador artístico

pedagógico em projeto

social de escola de samba X X X X X X

Coreógrafo de escola de

samba X X X X X

Consultor internacional

de dança para carnaval de

rua X X

Shows internacionais com

o carnaval X X

Colunista e Produtor

Artístico para um Portal

sobre carnaval X X X

Diretor artístico de escola

de samba X X

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APÊNDICE C – Temas e subtemas da análise

A FORMAÇÃO

EM BALLET:

onde tudo

começou e as

determinações

familiares

"Comecei a dançar desde muito cedo. Eu me lembro quando eu ficava... a minha

referência de dança, como homem, foi o Michael Jackson, porque eu era muito criança

e ficava assistindo aquilo. Os meu pais iam para a faculdade dar aula e eu ficava

ensaiando, criando coisas para mostrar. E como meu pai era da educação física, foi uma

época também que começou a aparecer o aeróbica. Então meu pai comprou uns discos,

que era como se fosse uma aula cantada e falada e ilustrada, porque na capa tinha as

figuras e eu achava um máximo aquilo. Eu gostava muito. E... o meu pai foi secretário

de esportes da cidade, então, no interior existia um campeonato de dança chamado

Ginastrada e uma vez ele me levou, eu devia ter de 4 para 5 anos e eu fiquei encantado

com aquilo. Ele já tinha percebido e já... o meu talento, o meu dom, que eu tinha jeito

para isso e foi quando eu pedi ele para fazer ballet."

"A minha história é muito engraçado porque o meu pai me levou para fazer ballet

escondido da minha mãe. Eu fui fazer ballet escondido."

"Então foi aí que a minha mãe me viu, foi aí que minha mãe me descobriu dançando e

foi muito traumático porque minha mãe ficou louca. A minha mãe me levou para a sala

dela, me bateu muito, apanhei muito. Porém eu continuei dançando, meu pai sempre

me orientando que caminho seguir porque ele achava que não tinha o direito de cortar o

meu sonho, de romper o meu sonho, de não deixar eu fazer aquilo que eu gostava, com

tanto carinho, sabe, com tanta leveza. E ele foi então me orientando, me mostrando."

"O meu pai por ter vindo, por estar na área do esporte, então a gente começou a

negociar algumas regrinhas, tipo eu gostava de nadar... “Então você vai fazer natação,

vai competir e vai continuar dançando” ou “você vai jogar vôlei, que você gosta e vai

continuar dançando”, estando ali a par e atrelado a algum tipo de esporte. E eu sou

muito grato a tudo isso."

"Então, a minha mãe já sabia, já tinha descoberto. Ela não aceitava. Era uma briga, era

sempre um conflito entre minha mãe, meu pai e eu por essa questão, mas ela parou de

dar talvez tanta atenção assim, sabe?!"

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"Então eu também me senti em vários momentos chantageado, porque às vezes eu

queria alguma coisa, pedia e não tinha exatamente porque eu estava dançando. Foi bem

difícil. Isso só foi mudar em dezembro de 99, que eu vou chegar lá..."

"Eu de criança ganhei do meu pai aquele filme do “Billy Elliot”, então passou a ser

mais uma referência e eu me encantei por tudo aquilo assim."

"Também fiz muito ENAF. Era muito bom porque a gente fechava a porta de casa e ia

a família toda, cada um na sua linguagem, na sua especificidade, mas todo mundo ia

fazer curso e desde cedo meu pai me mandava aqui para São Paulo, no grupo [nome do

grupo], eu vinha e ficava alojado aqui na companhia e desde cedo eu investi muito na

dança."

A FORMAÇÃO

EM BALLET: as

condições

objetivas (cidade,

escola etc.)

"Eu fui fazer ballet em uma outra cidade. Minha cidade é muito pequena, não tinha

escola formadora, qualificada, uma escola especializada de ballet. Tinha academia de

dança de jazz, essas coisas assim. E aí eu fui para a cidade de [nome da cidade] e

comecei a fazer ballet."

"Eu tinha... Eu estava com quase 6 anos (quando ele começou a fazer aulas de ballet). E

aí mudou para minha cidade um juiz que a filha dele também, uma grande amiga minha

até hoje, ela já fazia ballet com a minha idade. Ela é aqui de [nome da cidade]. Então a

mãe dela começou a me levar também junto para a cidade de [nome da cidade] para

fazer aula."

"[Então assim, eu sou de 78, então imagina nos anos 80 em uma cidade que na época

deveria ter uns 20 mil habitantes, 25... (menino) dançando ballet.]"

"formação. Escola qualificada e reconhecida pelo MEC. Era uma escola de dança.

Escola de dança [nome da escola], que hoje não tem mais."

"Então, quando eu fazia ballet eu ia duas vezes na semana para a cidade de Jales e a

aula era de 1 hora, 1:30 minuntos (uma hora e meia). A não ser quando ela estava

coreografando para os espetáculos que estendia um pouquinho mais. Era uma aula

super pontual, com aquecimento, alongamento, barra, diagonais, centro.., tudo que uma

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aula de ballet tem mesmo."

A FORMAÇÃO

EM BALLET: as

relações sociais

"Isso ainda pequeno assim... com 5,6,7 anos. Eu me lembro de uma apresentação que

era abertura de jogos, que foi no ginásio e os meus amigos começaram a me jogar

pedra e caco de vidro porque eu estava dançando."

"e foi muito legal porque eu não era o único menino, na cidade de [nome da cidade],

fazendo ballet, tinham outros. E aí nem todos seguiram, continuam, se formaram.

Alguns foram parando no caminho, mas eu fui até o final."

"A minha relação foi incrível. A minha professora foi [nome da professora], uma

grande bailarina, de uma sensibilidade, tecnicamente tudo assim que eu pude aprender

e sugar [...]",

Os sentidos

constituídos

durante e após a

formação no

ballet

"Mas eu enfrentei e assim, não sabia, não almejava ser um bailarino profissional. Eu só

não queria parar de dançar."

"É... sobre as aulas, cada aula pra mim era um desafio.[...] Era um sonho em executar e

fazer, era sempre um desafio mesmo, sem a pretensão de me tornar um bailarino

profissional."

"Então, a minha referência, a minha formação me deu uma base incrível, técnica e para

eu entender o mecanismo do meu corpo, para eu entender de sustentar, de me sustentar,

de me apoiar e de executar a dança técnica. Só que Cíntia, nesse caminho eu descobri

um outro caminho de se mover no tempo, corpo, tempo e espaço."

"É. Como assim? Então eu comecei a fazer muito curso de dança contemporânea,

dança moderna e os professores... fiz curso do [nome do professor] também, vários

cursos, [nome do mesmo professor], que é uma pessoa que quando me olha fala “tira

esse bailarino do seu corpo, senta diferente, apoia os pés diferente no chão, pisa

diferente, olha para sua coluna de uma outra forma”, porque eu ainda sou engessado.

Por isso que quando eu falo de desconstrução cotidiana, não é que eu quero

desconstruir. Eu adoro minha postura, acho incrível e eu acho que o Rodolfo é assim,

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foi o corpo que eu construí durante muitos anos. O desconstruir não é ficar largado, é

olhar para o meu corpo descobrindo sempre esse movimento, de descobrir

possibilidades, de que eu não preciso mais sabe... e que eu posso fazer de uma outra

forma. Não sei... É um caminho... eu vou te responder com várias dúvidas também. É

um caminho de várias incertezas, várias descobertas, de se encontrar, de se alimentar. E

aí quando eu disse de se mover... é o meu corpo descobrindo possibilidades de se

mover nesse espaço meu, que é a vida, que eu estou nesse movimento constante

assim... Eu acho que eu fui mais poético do que racional respondendo isso ou eu te

deixei muito mais confusa."

"O que me marcou mesmo com relação a isso, você pode achar clichê, mas me deu

tanta seriedade para eu me respeitar mesmo, sabe, e disciplina. São duas palavras que...

Se você falar “Rodolfo, duas palavras para aquela faixa etária, como que você resume a

sua relação fazendo aulas de ballet nessa escola”, é isso. Acho que foi seriedade porque

eu nunca levei uma coisa tão a sério, embora eu não pensava em virar bailarino, mas eu

levava aquilo com todo meu respeito mesmo, todo meu carinho; e disciplina."

"Não é que eu não queria. Eu adorava desenhar roupas, adorava desenhar casas e mexia

com o meu coração. Então na minha cabeça ou eu seria estilista ou arquiteto. Então a

dança estava ali super presente, mas era um hobby né, assim... Era um sonho, mas era

um hobby. Não escolhi..."

A formação no

ensino superior

"Então eu fui fazendo o ballet, terminei o colegial praticamente junto com a dança,

nessa escola e fui fazer comunicação social na cidade de [nome da cidade]."

"Ah, eu comecei com seis anos, eu devia estar com 16 para 17 talvez, porque eu formei

no ballet e entrei na faculdade. Acho que é isso, achei que eu entrei com 17 ou alguma

coisa assim, na faculdade."

"Terminei a faculdade em 99 e aí eu viajava todos os dias para [nome da cidade], uma

hora e meia para ir, uma hora e meia para voltar, para fazer a faculdade de

comunicação."

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"E aí eu falei, eu vou fazer uma faculdade. E aí eu fiz faculdade de dança. Fiz no [nome

da universidade] [...]"

"Minha primeira faculdade foi em comunicação social e aí antes um pouquinho quando

eu fui prestar vestibular minha mãe fez uma outra chantagem, porque eu prestei [nome

da universidade], em [nome da cidade], não ia fazer dança, ia fazer comunicação ou

artes cênicas no [nome da cidade]. E aí minha mãe resolveu montar uma escola porque

eu tinha acabado de formar em ballet... “eu monto uma escola aqui na cidade para você

ficar na cidade”e aí foi o que aconteceu. Ela montou uma escola..."

A formação

continuada

"É, uma escola de dança. Tinha ballet, jazz, dança de salão, enfim... Eu sempre fui de

fazer muitos cursos, investir, especializar e como interior também não tem profissional,

por esse motivo eu acabava fazendo tudo, mas eu também trazia algumas pessoas da

região para dar aula na escola."

"Eu tenho uma especialização que eu fiz no Chile em musicais."

"Contemporâneo também eu comecei a fazer aula na escola que eu fazia ballet. E aí

quando eu cheguei em [nome da cidade] eu fui procurar uns cursos de Eutonia, de

algumas coisas e eu fiz curso com a [nome da professora], que foi bailarina do

municipal, com o [nome do professor], que também foi bailarino do ballet[nome da

companhia], fiz curso com a [nome da professora], e fui procurando cursos aqui com

[nome do professor], que é do [nome da companhia], foi do [nome da companhia], que

também tem uma companhia. Fui buscando, fazendo cursos e fiz a audição."

"Eu fiz a pós. Morando ainda no interior eu fiz a dança educativa moderna, em [nome

da cidade]. E foi essa pós que abriu o meu olhar de possibilidades de trabalhar com a

dança. Porque até então a minha dança, era uma dança acadêmica, uma dança, técnica

né? Eu vi aquilo, existia o meu lado artista-criador, ok. Mas eu não sabia dessas

possibilidades. E foi com essa técnica, do Laban, que eu falei, uau, acho que eu quero

trabalhar com arte-educação, sabe, vamos, eu quero chegar mais perto disso."

"Eu fui fazer pós em Estéticas Contemporâneas no [nome da universidade]."

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"Comecei assistir como aluno ouvinte na [nome da universidade] para fazer mestrado

em comunicação, dança e semiótica, e comecei uma especialização esse ano em Klauss

Vianna. Mas não consegui conciliar exatamente, porque eu trabalho para um portal."

A relação entre a

atuação e as

condições de vida

pessoal

"E aí minha mãe resolveu montar uma escola, porque eu tinha acabado de formar em

ballet... “eu monto uma escola aqui na cidade para você ficar na cidade” e aí foi o que

aconteceu. Ela montou uma escola..."

"Desde cedo sempre trabalhei muito, sempre esse corre assim, por uma escolha minha

mesmo sabe, porque eu estava fazendo o que eu gostava né? E conciliando com a

natação, porque era uma coisa que eu treinava sério mesmo e eu competia em

campeonatos estaduais, tal... e a minha modalidade era nado peito."

"Em dezembro de 99 eu fiz o espetáculo de dança com o tema de “O fim do mundo”.

Foi a primeira vez então que a minha família, minha mãe, meu pai, meu irmão, todos,

assistiram do começo ao fim esse trabalho. [...] E os meus pais foram me assistir."

"Em julho de 2000 o meu pai fazia mestrado na [nome da universidade], meu pai e

meu irmão na [nome da universidade]. Meu irmão era em fisiologia do movimento,

eu não lembro o nome específico. O meu pai em educação física escolar, porque meu

pai também era professor do estado e minha mãe, por ser professora universitária e

trabalhar na APAE, então ela estava fazendo na [nome da universidade], em [nome da

cidade], em Educação especial. E aí, em julho de 2000, eles foram para uma última....

dia 07/07/2000, eles foram para uma última orientação do semestre e ai aconteceu

uma tragédia porque meus pais faleceram. O meu irmão que estava dirigindo, ele foi

fazer uma ultrapassagem e chegando, já era distrito de [nome da cidade], entrando na

cidade e aí ele foi fazer uma ultrapassagem e não deu tempo de voltar para a pista e

aquela região é de cortadores de cana e ai ele entrou... o carro entrou debaixo do

ônibus. E aí foi fato, foi trágico. Meus pais faleceram na hora, o meu irmão

sobreviveu, ficou quase 3 anos em coma e perdeu as duas vistas. [...] Quando

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aconteceu o acidente eu fechei a academia por 20 dias e retomei meu trabalho porque

eu acho que isso me ajudou muito e continuei trabalhando."

E foi aí que então, como a minha cidade é muito pequena, é... e eu venho de uma

família muito conhecida, as pessoas não me olhavam mais pelo meu talento, pelo meu

dom, pelo meu profissionalismo. As pessoas me conheciam como o Rodolfo, filho do

[nome do pai] e da [nome da mãe], tadinho, os pais morreram no acidente. Isso me

incomodava profundamente. Então eu esperei um tempo para o meu irmão aceitar, vê

como as coisas iam acontecer e um dia eu cheguei na minha família, nos meus tios... a

irmã do meu pai acabou assumindo eu e meu irmão como filhos e aí foi quando eu

chamei minha família e conversei, inclusive o meu irmão, na possibilidade de eu vir

embora para [nome da cidade], porque eu queria coisas novas, porque eu queria novos

desafios, porque eu queria mudar, mudar minha vida.

"É... e eu fui descobrindo coisas e eu vi que era isso que eu queria, e isso... tudo isso

foi a ponte, o caminho, foi o porto seguro que eu achei para então viver o luto da

morte dos meus pais. O meu luto veio muito tempo depois e eu fui transformando as

minhas dores, as minhas perdas e todo esse processo em trabalho artístico também,

mas com uma pesquisa minha. Então a morte dos meus pais virou um trabalho solo...

Então foi... e nesse tempo todo eu tive um problema de depressão. Na verdade já era

um processo e eu não sabia o que era, porque eu achava que eu era o super-homem.

“Imagina, vou adoecer, que coisa esquisita.” Era um processo e um dia não quis mais

olhar, não mais levantar e não quis olhar a claridade. Isso eu fiquei 20 dias trancado

no apartamento, sem tomar banho, sem comer, sem nada. Enfim, foi um processo

muito difícil."

"Isso foi quase um ano. Me levaram no psiquiatra, tal e acompanhamento com

psicólogo, mas eles me deram muito remédio e eu fiquei pior. Um dia eu falei “não”.

Joguei tudo, dei descarga, joguei no vaso sanitário e fui fazendo teraPIA, tal e fui

querendo viver."

"Só que eu fiquei quase um ano andando de cabeça baixa e não olhava nos olhos das

pessoas. Eu não conseguia olhar para frente, embora eu estava recomeçando, não sei

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se a palavra é essa, recomeçando, reconstruindo, re... me reeducando, transformando.

Isso eu sabia, eu tinha consciência disso, mas eu não conseguia olhar para frente. Eu

andava para frente olhando para baixo. Foi muito difícil. E foi quando..."

"Ainda hoje, tudo isso está muito vivo em mim. Então o meu dia-a-dia nessa relação

com a criança a gente aborda sim, o tema da morte, claro, tudo com leveza,

transformando de uma forma... mas essas questões que para mim foram tão

profundas, todas elas estão nas minhas pesquisas de trabalho com arte e educação,

seja lá qual for a relação, todas."

"Assim, eu sou uma pessoa muito otimista, eu tenho muita fé e foi por mim assim,

sabe?! A perda dos meus pais, a forma como a notícia chegou, foi eu quem atendi o

telefonema, isso tudo foi um choque, mas a minha ficha para cair com tudo isso,

inclusive em relação ao meu irmão porque durante muito tempo, no fundo do meu

coração, eu culpava ele, sim, até porque um dia o IML mandou umas fotos, chegou

um processo na minha casa indiciando ele como um homicídio culposo e eu tinha

certeza no meu coração que ele não matou os meus pais, mas no meu subconsciente

isso se reverberou de uma forma que... e nesse processo da volta dele, ele queria só

que eu tivesse perto, só que eu desse banho e eu não conseguia pôr a mão dele. Foi

muito difícil assim, eu consegui perdoar tudo isso, aceitar tudo isso e entender tudo

isso de uma outra forma. Muito barra."

"Eu sou o primeiro e senão ainda o único bailarino da minha cidade. Tive alunos,

queridos, que a gente acabou criando amizade, que a gente mantém contato, mas que

não formaram. Fizeram por hobby, participavam, mas não... um foi fazer medicina,

outro virou cabelereiro. Não levaram isso adiante. Então é isso. Eu tenho certeza que

eu fui o primeiro e o único bailarino da minha cidade. Hoje minha cidade tem 35 mil

habitantes. As pessoas me reconhecem, pelo Rodolfo, pelos trabalhos, pelas coisas

que eu ainda venho desenvolvendo e fazendo... e sou respeitado, assim. Quando eu

vou para lá as pessoas perguntam que trabalho eu venho fazendo “ah te vi na TV, te

vi na escola de samba, te vi não sei o que”. Aquelas pessoas que jogaram pedra, que

eu não esqueço, também me olham, me respeitam, me perguntam coisas sobre. Mas

enfim..."

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"Eu sou uma pessoa muito afetiva e aí quando aconteceu de eu entrar numa

depressão, tudo isso também está vinculado ao fim de um relacionamento de 3 anos,

com uma pessoa que é da educação física. Acho que toda separação é dolosa assim

né. Não foi por isso que eu entrei né? Eu descobri que isso estava muito mais ligado

ao luto, à morte dos meus pais. Mas como tudo isso reverberou e mexeu comigo nessa

fase. Mas passou. Amores né... amores que vem, amores que vão. Eu falo que amor é

como a dança, é como a vida, está sempre em movimento, sempre em renovação. E

eu acredito em ciclos. Eu não pensava sobre isso, eu achava que amor era eterno,

assim... e é. É. Mas ele se transforma né?"

Atuação como

professor na

própria escola de

dança

"E aí todo final de ano eu fazia os festivais de dança, os espetáculos da escola."

"Em dezembro de 99 eu fiz o espetáculo de dança com o tema de “O fim do mundo”.

[...] E, porque estava muito polêmico essa coisa de que o mundo ia acabar ou não,

então foi bem polêmico mesmo. A gente foi para uma pedreira para fazer o material

de divulgação do festival, foi bem especial. [...]"

"[Quando aconteceu o acidente eu fechei a academia por 20 dias e retomei meu

trabalho porque eu acho que isso me ajudou muito e continuei trabalhando.]"

"Então em dezembro de 2000 o festival foi todo melancólico né? Eu coreografei, eu

traduzi aquilo que eu vivi aquele ano, que eu vivenciei. Então falava sobre alma

gêmea, essas coisas. Eu estava muito sensibilizado. Acho que nem luto eu tinha

vivido ainda. E fiz e foi muito emocionante, tal..."

"E aí quando eu fui dar aula ouve uma mudança. É bem bacana sua pergunta... porque

a aula que eu dava já não era a mesma aula que eu fazia. Eu tentei implantar e seguir

uma linha, um padrão. Era diferente... [nome da cidade] também é uma cidade

pequena de interior, mas as pessoas ali eram... parece que adiantadas, tinham um

outro olhar, uma outra visão, tanto que na minha turma de dança tinha vários

meninos. Então essa aula que eu vivenciei e fui fazer na minha escola não funcionou.

Era uma aula muito rígida né, muito... de muita disciplina, muita engessada assim, de

pouco se falar. Vamos trabalhar o corpo e fazer e preparar pirueta... e em [nome da

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cidade] isso não... Muito louco isso, nunca parei para pensar, você me... Era diferente.

Era uma aula séria, mas tinha uma leveza, uma coisa diferente. Era isso. Era diferente.

Não era a mesma aula. E parece também... eu tinha crianças, babyclass, baby não sei

o que, tinha tudo isso e tinha aquelas meninas bailarinas né? Mas de fato assim, é

muito louco isso porque era um outro corpo de criança, um outro corpo de

adolescente e de adulto que frequentava a minha escola. Era um corpo diferente,

talvez um corpo [nome da cidade]. Sei lá... Pode ter uma relação cultural, social, uma

explicação para isso. Isso não é uma impressão minha. Isso é fato assim. Eu nunca

parei para pensar sobre isso. Tanto que quando as pessoas me viam dançando em

[nome da cidade] e que por muito tempo depois que ainda tinha uma companhia do

ballet municipal de Jales, a gente foi dançar em [nome da cidade] várias vezes e as

pessoas falavam “vocês são tão diferentes, dançam tão diferente, tem um corpo tão

diferente” e é verdade. E isso então, nem se fale o quando isso se mudou e evolui... eu

não gosto da palavra evolução, porque parece que evoluir é só melhorar, eu gosto da

palavra transformação."

É, uma escola de dança. Tinha ballet, jazz, dança de salão, enfim... Eu sempre fui de

fazer muitos cursos, investir, especializar e como interior também não tem

profissional, por esse motivo eu acabava fazendo tudo, mas eu também trazia algumas

pessoas da região para dar aula na escola.

Atuação como

professor em

instituições

sociais

"Eu estudava, fazia faculdade, trabalhava no objetivo na cidade de [nome da cidade],

que é[nome do estado], eu trabalhava na APAE também de [nome da cidade],

também dava aula numa outra escola em [nome da cidade] e tinha a minha escola de

dança em [nome da cidade]."

"Porque na cidade de [nome da cidade], eu já trabalhava com um projeto da terceira

idade, pela secretaria do estado da cultura."

"Eu peguei oficinas pela secretaria do estado da cultura, [...]"

"E aí, é... até então eu estava com algumas oficinas que é o Arquimedes, hoje ela não

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funciona mais, que é da Poieses, que é da secretaria do estado da cultura. Eu trabalhei

no projeto “Talentos especiais”, porque eu já trabalhava na APAE, então eu já tinha

contato com deficientes, com alguns tipos de mobilidade reduzida. Talentos especiais,

Arquimedes, o da secretaria da terceira idade."

"Eram oficinas culturais de, duração de... algumas de 4 meses, algumas de 8 meses,

com crianças, adolescentes, em ONG’s, em orfanatos, em lugares... Essas oficinas

atendiam lugares de risco mesmo, sabe, lugares de grande vulnerabilidade mesmo."

"E aí eu falei, eu vou fazer uma faculdade. E aí eu fiz faculdade de dança. Fiz no

[nome da universidade] e fui fazendo trabalhos... trabalhando com essas oficinas

culturais. Aqui em [nome da cidade] eu trabalhei, Cíntia, em várias ONG’s... zona

sul, zona leste, zona oeste... o que você imaginar..,[nome da cidade]... tem uma

instituição muito grande que chama [nome da instituição] que é ali em [nome do

bairro] próxima ao metrô, trabalhei ali com deficientes, trabalhei com terceira idade.

A minha vida sempre foi muito intensa."

"Um pouquinho antes eu trabalhei no “Fábricas de Cultura” também aqui em [nome

da cidade]. Na primeira montagem do Petruska, que é aquela obra adaptada do ballet,

que era o Pedrinho. Então cada região tinha um elenco, um artista, lá eles chamam

arte-educador, uma equipe diferente. Trabalhei por dois anos, fui bastante feliz, foi

muito bacana e aí foi quando eu fiquei sabendo do projeto vocacional. É um programa

da secretaria da cultura. Que também... hoje ele tem o vocacional apresenta, tem o

vocacional aldeias, tem o multidisciplinar, que são as quatro linguagens. Mas então eu

passei como artista-orientador em pesquisa contemporânea para trabalhar CEU’s,

Bibliotecas públicas... é um projeto público. É gratuito. Eu fiquei de 2008 a 2012, no

vocacional."

"No ano seguinte... foi meu primeiro ano no vocacional. No ano seguinte eu escrevi

um VAI porque a turma acabou virando um grupo. Eu fiquei lá mais um ano, eles me

contratam pelo VAI e eu fui fazer o Vocacional, no CEU, na zona leste."

"Aí lançaram um edital que existe na EMIA, que é a escola municipal de iniciação

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artística de [nome da cidade], um programa que é o PIA, estendendo isso para os

CEU’s, para as Bibliotecas e centro culturais de [nome da cidade]. Eu me inscrevi e

passei também."

"Então eu tinha o grupo de orientação do VAI, eu tinha o Vocacional, eu tinha o PIA,

eu estava fazendo pós em estéticas contemporâneas e no mesmo ano a secretaria do

estado da cultura me chamou para começar um projeto em escola de samba para

trabalhar com a comunidade, um trabalho artístico e não carnavalesco. E a primeira

oficina que eu fui fazer era uma de jazz e uma de dança contemporânea. Isso foi em

2009. Eu estou indo e voltando porque eu estou me lembrando das coisas."

"Continuo trabalhando no PIA como coordenador de equipe, porque nós somos um

quarteto. Nós somos em quatro artísticas educadores, cada um numa linguagem,

dança, teatro, música e artes visuais. Então eu coordeno essa equipe e sou educador

artístico da linguagem de dança no centro cultural da [nome do bairro]."

"Então, é um programa multidisciplinar, com pesquisa contemporânea também,

porque não é um programa de formação. A gente trabalhar com a iniciação artística e

essa relação... o PIA é um lugar de experimentação."

"É um programa, não um projeto social. Diferente de outros lugares que eu trabalhei,

que eu vou contar um pouquinho, que é projeto social. Porque aí tem um outro olhar,

uma outra relação. O PIA não. [...] Ele não tem um olhar assistencialista, como por

exemplo um outro projeto que eu trabalhei em SP de uma ONG que chama Gotas de

Flor com Amor. Ele está em [nome do bairro], na zona sul. [...] Então esse lugar

trabalha com florais, mas é um projeto social e lá sim eu trabalhei com jazz, lá não

trabalhei com sapateado... trabalhei com jazz e ballet clássico. Uma extensão desse

projeto era um abrigo, que eu fiquei muitos anos também no abrigo chamado Anália

Franco, na zona sul, trabalhando com dança dentro do abrigo."

"E aí eu cheguei noEsperançanadando, porque o PIA começou com muita enchente

em 2010. Se você pesquisar um pouquinho a história... E aí para mim foi incrível,

2010, 2011, 2012... foram três anos que marcaram muito a minha vida. Porque em

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2010 eu cheguei na enchente, com água no joelho para trabalhar com crianças e

trabalhar com arte, no PIA. Em 2011 eu entrei... [...]"

"Em 2012 então me mandaram pelo vocacional eu cheguei noPIA, no Esperança, e no

vocacional no CEU Dourados e eu cheguei, começando o projeto, na desapropriação

da favela, porque o CEU foi construído dentro de uma favela. Então eles estavam

desapropriando para construir condomínios e praças para a copa que aconteceu esse

ano, isso em 2011. E eu cheguei no Dourados no meio de uma guerra, porque essa

desapropriação era com policiais, soldados a cavalo e botando foto nas favelas e eu

fui fazer um trabalho de pesquisa contemporânea no meio da favela e minha pesquisa

foi “Tudo aquilo que me habita”. Foi incrível. Eu me emociono assim de falar porque

a ale... (nesse momento se emocionou)."

"Então eu tinha que fazer uma escolha, ou vocacional ou PIA. E aí então em 2013 eu

fiquei só no PIA.

"Então 2010 eu cheguei nadando, em 2011 eu cheguei no fogo..."

"E aí em 2012 eu aceitei um desafio que era “longe pra dedeu”, para trabalhar com

dança contemporânea em Tietê. Que que isso? Nem eu sabia (risos). É um bairro

próximo ao [nome do bairro], mas era um lugar muito especial, porque era um grupo

de terceira idade de mulheres mutiladas, um grupo de senhoras mutiladas. E aí

também eu... [...] É. A ideia, o norte e a pesquisa era contemporânea e tudo isso,

Cíntia, eu fui fazendo um ligamento, desdobrando em cima dessa pesquisa “Tudo

aquilo que me habita” exatamente porque eu fiquei..."

"Hoje eu estou atuando em um grupo que é [nome do bairro], que é de uma ONG

conhecidíssima em [nome da cidade] que chama Velho Amigo, esse lugar era uma

lavanderia comunitária que essa ONG pegou para cuidar e administrar e eu trabalho

com mulheres de terceira idade, só mulheres que são mães de marginais, de bandidos.

A verdade é essa. Todas elas tem filhos, um, dois ou três que perdeu, que morreram

ou que eles estão presos e eu trabalho..."

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"Hoje eu não trabalho, especificamente, não estou dando aulas de ballet. Tem uma

ONG que terminou agora, sexta-feira, o trabalho, eu estava trabalhando com ballet,

com crianças, meninas e meninos. Hoje não estou fazendo aula. Está aí uma coisa que

é um dos meus projetos para o próximo ano, é voltar a fazer aula. Fazer aula de

clássico e contemporâneo mesmo. O PIA encerrou. E aí a gente passa por um

processo de edital, entrevista. Todo ano a mesma coisa. O meu foco agora é escolas

de samba. Eu já estou nesse processo né e agora eu dou um gás maior, dezembro e

janeiro. Carnaval é começo de fevereiro. Depois a gente já tem algumas viagens

marcadas com as consultorias internacionais, tem Grécia, tem Alemanha, tem Notting

Hill, Seicheles e Zimbábue, já confirmado para a gente fazer carnaval. É assim, a

gente vai, faz a consultoria e já fica para o festival. Ou é festival ou é campeonato de

carnaval internacional de rua. É bem legal. Eu tenho muita foto, muito material tá?"

"Total. Porque tem lugar Cíntia, que eu vou dar aula hoje, em pleno século XXI, que

não tem aparelho de som. Tem um rádio relógio, despertador, toca-fitas. Isso é real,

isso existe. Então você chega em uma escola... na escola que eu fiz aula tinha tablado,

tinha linóleo, tinha barra, tinha espelho, tinha cortina para fechar o espelho. Linda,

uma escola linda, um Studio. E tem lugar que eu chego para dar aula, como que

chama essas caixas de gordura, no chão... Enfim, tem lugar que não tem piso, que é

um contra piso, não tem linóleo, não tem um colchonete, não tem barra, mal mal tem

aparelho de som."

"É uma outra realidade e essas pessoas, eu vou ser bem honesto, essas pessoas se

inscrevem para fazer aula de ballet no projeto social... 80% dessas pessoas que estão

ali fazendo aula no projeto social, não estão ali para fazer aula de ballet. Elas estão ali

para ter um momento para ter afeto, para ter relação com outras pessoas, relação,

relação da vida mesmo. Elas usam o viés da dança para se relacionarem. Mas elas

estão ali por outras questões, porque elas querem ser ouvidas, entende?"

"E também trabalhei muito com LA, que são jovens de liberdade assistida. Não tem

idade para ir para a FEBEM e eles colocam esses adolescentes para frequentar um

lugar. Eles estão ali porque cometeram algum crime aí como não tem idade para ficar

preso, então eles mandam para algum projeto social e eu trabalhei muito com jovens

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de liberdade assistida. Trabalhei com jazz, com danças de rua, trabalhei com aula de

expressão corporal e sempre tive ganhos assim, sabe."

“Eu trabalhei em muitos lugares especiais, em abrigos com crianças, crianças

portadoras de HIV, muita coisa. Teve uma época que eu tive 10 grupos em [nome da

cidade] de terceira idade. Tenho umas experiências incríveis, eu tenho muita foto

desses workshops na África, porque ali eu estava fazendo um trabalho de consultoria

de carnaval, mas eu estava ali fazendo uma pesquisa de corpo, que corpo era aquele,

quem são essas pessoas... mulheres, senhoras, obesas dançando, trabalhando o

quadril, a anca como eu nunca vi."

"Mas eu acho que tudo foi muito especial, tudo foi muito intenso na minha vida...

nunca veio assim sabe, uma coisa de cada vez, vinha tudo. Mas eu acho que esses três

trabalhos que eu desenvolvi, que foi no Esperança, no Dourados e no Tietê, foram três

temas de muita intensidade né? Água, fogo e dor. Muito forte. Isso marcou muito a

minha vida. Eu fiquei muito mexido com tudo isso, muito transformado."

"Essas oficinas culturais da secretaria do estado e da prefeitura quando sai os editais,

com exceção do PIA que você não precisa ter um projeto pronto, o programa já é um

projeto, é um programa, você todo ano tinha que estar escrevendo novos projetos,

pensando sobre a dança, pensando, refletindo sobre tudo isso. Aí eu falei “gente, eu

vou ficar inventando projeto, inventando, sabe, ah...o RE+, que é aquele, como você

desdobrar suas práticas cotidianas, as coisas da vida e transformar tudo isso em

processo."

Atuação como

bailarino

profissional

"Só para não ficar parado, tal. Porque eu acho que o bailarino quando ele está

executando, ele tem que estar fazendo aula."

"Para o [nome da companhia]. Entrei no [nome da companhia]. Dancei durante quase

5 anos, como bailarino profissional e também fazia aula, aquela coisa toda de

companhia, muito bom. E aí, nesse último ano, eu estava fisicamente estressado e o

[nome da companhia] faz um espetáculo todo final de ano no [nome do teatro] que é o

“Quebra Nozes” e nesse espetáculo eu me arrebentei. Eu fui saltar e quando eu

aterrissei eu tive uma, não foi uma fratura exposta, mas foi bem sério no meu

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tornozelo. Exatamente pelo estresse físico mesmo. Enfim, foi no segundo dia, um dia

depois da estreia da temporada. Aí tinham pessoas que puderam entrar, me cobrir, tal.

Bom, nesse tempo eu fui fazer fisioterapia, tal."

"Então aquele sonho de vir para [nome da cidade], entrar em uma companhia e

dançar, eu vivi, foram incríveis. Eu viajei para o mundo. Mas chegou uma hora que..."

"Viajei bastante, para muitos países, muito. E aí chegou uma hora que eu falei “Bom,

não é mais isso. Eu estou precisando de uma coisa nova.”"

Atuação como

professor:

didática e

procedimentos

pedagógicos

"Alguns ballets clássico, outros contemporâneos, outros jazz. Eu tenho uma

especialização que eu fiz no Chile em musicais. Então algumas oficinas também eu

trabalhava com musicais."

"O vocacional, eu fiz vários trabalhos com adolescentes em pesquisa contemporânea,

mas como a minha formação era clássica, no primeiro lugar que eu fui trabalhar foi o

centro cultural da juventude, na [nome do bairro] e lá só tinha homens da dança de

rua. Então foi um trabalho muito legal, porque a gente fez uma pesquisa, um trabalho

de fusão mesmo da linguagem tanto estética quanto técnica do ballet clássico com a

dança de rua."

"A gente tem muita tensão e muito cuidado para com a criança exatamente pelas

coisas que vão emergindo e a gente só vai potencializando e criando brincadeiras,

jogos corporais e isso vai se transformando num processo artístico."

"Não. Nesse não. Não se tem ballet. A gente procura transformar as coisas né. É

mostrar para a criança outras possibilidades da música, de criar som, de descobrir o

corpo."

"elas [ONG das mulheres mutiladas] acham um máximo quando eu falo sobre

contemporaneidade. É um trabalho que eu venho também desdobrando, fazendo em

cima dessa pesquisa “Tudo aquilo que me habita” e tem um caminho, um norte, uma

orientação pela dança contemporânea. E a gente tem feito ainda pelo viés bem

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especial assim... cada encontro é uma surpresa. São mulheres que se dilataram,

assim... se permitem a se mostrar por dentro assim, sabe?! E o mais linda é que elas

não tinham referência de movimento, referência de nada e essas são as melhores né,

para trabalhar, porque você não tem que desconstruir nada."

"porque a aula que eu dava já não era a mesma aula que eu fazia. Eu tentei implantar

e seguir uma linha, um padrão. [...] Então essa aula que eu vivenciei e fui fazer na

minha escola não funcionou. Era uma aula muito rígida né, muito... de muita

disciplina, muita engessada assim, de pouco se falar. Vamos trabalhar o corpo e fazer

e preparar pirueta... e em [nome da cidade] não... Muito louco isso, nunca parei para

pensar, você me... Era diferente. Era uma aula séria, mas tinha uma leveza, uma coisa

diferente. Era isso. Era diferente. Não era a mesma aula."

"Esse trabalho que era “Tudo aquilo que me habita”, eu fiz um desdobramento que

era um outro que era “Corpo, a casa da memória”, onde eu trabalho o corpo humano

numa relação de afeto com a sua casa, moradia. Mas o corpo tempo é o corpo material

mesmo né, essa casa é o teu corpo material e eu trabalho cada parte do seu corpo

como se fosse um cômodo. E isso foi de uma potência incrível para trabalhar com

crianças e adolescentes nesses projetos sociais porque ainda hoje, [...]"

"E um terceiro projeto é... ele chama “RE+”. Então o que é RE+? Eu fiz um trabalho

com um dos coreógrafos, que foi bailarino do [nome da companhia], [nome do

bailarino]. É você olhar para tudo isso que você tem, que você fez e você reorganizar

tudo isso, transformar tudo isso, desdobrar tudo isso. Ah isso é legal, foi incrível, mas

e aí? Parou por aí? Sabe, é um olhar que sempre vem desdobramento, assim, porque

eu acredito que onde eu chegar para trabalhar com arte, com dança, nesses projetos

sociais, a potência está ali, a potência existe, ela só precisa de uma pessoa para

organizar, para dar voz, para pôr luz e para orientar o caminho."

"Falando em dança contemporânea, em difusão de linguagens, em velocidade de

informações, é essa contemporaneidade mesmo. Isso já existe e aí hoje eu olho

realmente com muita diferença para chegar numa academia, para dar aula de ballet,

barra... Eu olho com muita diferença, presta atenção no que eu estou te falando... Eu

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não disse que é mais ou menos importante, mas tem algumas coisas que hoje me

alimenta e me deixa mais feliz. É muito diferente você chegar hoje em uma escola de

dança, formadora, tal... por ter passado por essas experiências eu tive, trabalhando

com o social, com dança, com arte, coisas incríveis assim, que eu não tive esse ganho

numa escola de ballet, porque é um contato, uma relação cotidiana da vida né?!"

"Então, por trabalhar nesses projetos artísticos a gente tem... eu tenho duas práticas

bem fortes que eu carrego comigo que é um caderno de protocolo, de cada encontro

você escrever sobre aquilo, exatamente para você falar, extravasar e colocar aquilo

para fora e um outro é sempre a gente fazer uma apreciação. No meu momento,

quando eu era aluno de ballet clássico não tinha momento de apreciação, de fazer

roda de conversa. [nome do professor] já me deu várias bengaladas em aula porque eu

queria conversar sobre aquilo, entender e questionar sobre aquilo... “não, aqui você

não vai falar, aqui você não vai se colocar” e levei bengaladas na perna do [nome do

professor]."

"Foi aqui em [nome da cidade]. E eu tenho essa prática de quando termina uma aula,

mesmo de ballet clássico, de ser técnico... de falar sobre aquilo, de como você entrou,

de como você está saindo, do que mudou, de perceber e entender o corpo por dentro.

Eu acho que hoje, as minhas aulas de ballet clássico estão bem atreladas com a minha

pesquisa como artista-orientador e educador, dessas coisas que habitam no corpo, de

como eu sou por dentro, de eu entender um pouco isso e de eu estar provocando

sempre isso, porque eu acho que fica mais interessante. É lindo ver uma criança que

vai lá fazer aula de ballet, com a roupinha rosa, de coque e de redinha, mas é lindo

quando ela pode fazer tudo isso e quando termina dela falar sobre as sensações, das

coisas que ela gostou ou não e dessas impressões, entendeu? É isso que me encanta

em continuar nesse caminho. Então o que eu fiz, eu fui buscar um pouquinho dessas

outras experiências e trazer um pouco para o ballet de formação, porque eu acho que

fica mais interessante."

"Então houve uma mudança muito grande, houve uma transformação... porque eu fui

educado numa aula rígida, de disciplina que não se falava. Chegava, fazia, cumpria,

dançava e ia embora... e com esses encontros que eu tive nesses lugares, com esses

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pensamentos de prática contemporânea, foi aonde eu comecei “perai, essa criança está

aqui, por quê? Qual é o sonho dessa criança? Eu quero ouvir da criança...” porque

muitos você chega e a criança não quer fazer ballet. A mãe é que não foi bailarina e

que colocou a filha para fazer ballet. Essa criança está ali para brincar, para se

relacionar com o mundo, para se relacionar com outras crianças e o canal, nesse caso,

o caminho é o ballet clássico. Mas se você colocar, der espaço de criação, elas vão

para um outro caminho, vai chegar um funk, vai chegar outras coisas que não é do

ballet. Então 80% ou mais não está ali por causa do ballet, para ser bailarino, nada

disso. Isso é real. Isso acontece."

"Então, nesse sentido se a oficina, eu fui contratado para fazer um trabalho de ballet

clássico, eu preciso... e existe uma coisa que chama produto final né, você precisa

fazer a oficina. É tudo muito rápido. É tudo meio superficial. Não dá para aprofundar

muito porque são oficinas de meses. Na maioria das vezes não tem estrutura para tudo

isso. Então fica uma coisa meio superficial. Não tem uma sapatilha, não tem nada

disso. O que muda é esse cuidado, é essa tensão que eu tenho e complementando essa

aula. Porque se você também... as pessoas vão para fazer ballet clássico e você

começa a trabalhar ballet clássico somente, muitos não voltam. Por isso que eu falo

para você que muitos não estão ali para isso ou por causa só disso. Eu uso muito a

ludicidade sabe, eu brinco muito, nesse sentido de deixar a aula mais alegre, de deixar

essas pessoas mais felizes. Eu começo fazendo umas brincadeiras de

autoconhecimento, de integração, de socialização, porque isso que encanta e que vai

alimentar essas pessoas em dar continuidade nesse processo, entendeu? Então tem a

aula específica do ballet, mas tem muita coisa que eu carrego ali, que eu estou

provocando, que eu vou sentindo a turma, que não é da aula do ballet clássico. É mais

de uma aula de artes. Isso mudou muito."

"Quando eu chego em lugar desses, que a gente vai chegar, falar o nome, a idade, eu

gosto muito do MerleauPonty... que é um escritor que trabalha com sonhos, com o

sonho de casa um, com essa memória individual e o sonho de cada um. Então é um

caminho que eu descobri, que você começar a trabalhar com sonhos é um caminho

que tem tudo para dar super certo e aí quando eu disse para você que não dá para

desenvolver nenhum trabalho artístico, seja lá o que for, se não tiver uma relação de

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afeto, de amizade, de cumplicidade... eles acabam te conquistando e você

conquistando eles porque existe uma troca, uma reciprocidade."

"Porque assim Cíntia, devido a minha formação, a minha educação, eu era ousado

para minha idade, para minha cidade, para minha época... mas eu não pensava nessas

possibilidades entendeu? E é uma troca muito grande assim... porque, por exemplo,

você está fazendo uma aula de dança com um adolescente e tal, e ele propõe coisas

também, porque eu dou esse espaço. Então ele “professor, e se a gente fizesse

assim”... as vezes nem fala, quando você vê já está rolando. E eu acho que é um

mérito... é exatamente por essa troca, que tem essa escuta, para que essas coisas

aconteçam porque senão é bom dia, boa tarde, boa noite, agora vocês vão fazer isso,

isso, eles repetem 5, 6, 7, 8 e acabou. Entendeu? Então é por isso que hoje eu falo que

para mim é muito mais interessante quando eu consigo, se for uma aula extremamente

técnica, mas que tenha então um começo, uma roda, que tenha um protocolo

artístico... vamos pintar agora, vamos trabalhar com guache, sei lá, com outro

material. A gente vai ilustrar o encontro de hoje. Eu faço isso. E hoje eu tenho uma

necessidade muito grande de criar registros e protocolos artísticos e visuais."

"Ah eu dei uma aula para terceira idade super corporal. No final a gente vai fazer uma

roda de apreciação, que seja com palavras, mas vamos criar um protocolo para

materializar o encontro de hoje. Mas por que tudo isso? Porque eu também cai nesses

programas artísticos e eu comecei a trabalhar com outros artistas, aulas em duplas,

trios ou mesmo em quarteto e aí é um trabalho super multidisciplinar. É o

atravessamento das linguagens todo o tempo. Hoje, Cíntia não sei se eu consigo

trabalhar sozinho, mesmo no carnaval eu não trabalho mais sozinho só com a dança.

É porque eu me tornei um artista-criador que eu busco muito me apropriar de outras

linguagens também."

"Mas eu não sei se eu consigo desenvolver um trabalho de ballet ou de dança que

fique só no ballet ou só na dança. Eu sinto uma necessidade de outras coisas para

complementar tudo isso. Acredito, então, que é muito mais potente, muito mais legal,

muito mais interessante para a criança, o adolescente ou a terceira idade se eu estiver

somando, fazendo alguma coisa junto com você. É o que tem."

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"Então, outras possibilidades quando eu comecei a falar sobre isso era de você

descobrir seu corpo e de descobrir outras formas de dançar, outras formas de se

mover no espaço, outras formas de caminhar. Isso é uma coisa. Outra coisa de criar

outras possibilidades é que a pessoa acha que está ali fazendo aula de dança

contemporânea porque ela é dançarina, dançarino e tem que seguir aquilo. E não...

tem tanta gente que trabalha no escritório, que é advogado e que vai se buscar isso

não para se profissionalizar, mas para ser uma extensão da sua vida, para você se

colocar na vida, para você dar voz, dar vazão, oportunidade de colocar de dentro para

fora. E é isso que eu acho que é lindo assim, que é genuíno demais. Quando a pessoa

está ali fazendo aula de dança contemporânea, mas não é para se apresentar, não é

para nada disso. É para ela. É para ela experimentar, é para ela vivenciar, é para ela

compartilhar. Entendeu? É muito louco tudo isso, mas é incrível."

"Foram trabalhos que virou, devido a pesquisa, o caminho que eu fui direcionando

acabou virando projeto. Diferente de eu ter um projeto em mãos e eu falar “agora vou

seguir isso aqui”. Vira uma cartilha. Não. Foram caminhos que eu fui tomando,

descobrindo, que virou então projeto e eu escrevi sobre isso."

"Eu sou apaixonado com esse corpo a casa da memória. É porque, a gente faz, qual é

o seu templo. O meu templo sagrado é o meu corpo e aonde é, vamos chamar de meu

segundo tempo, aonde é que eu vou, onde eu tenho as minhas coisas, é a minha casa,

casa matéria. Então eu faço uma analogia mesmo né, de cada parte do seu corpo ser

um cômodo da sua casa e de como você olhar para isso, ter esse cuidado, ter a escuta

de tudo isso."

"E aí eu fui pesquisar outras referências né, “O corpo fala”, livros e livros. Tem um

livro, que se eu não me engano, acho que chama... do Samuel Sampaio, não, o

sobrenome dele é Sampaio... “Ballet essencial”. Conhece? Bem legal também. E o

meu pai também me deu também, trouxe muita referência de brincadeiras, jogos da

educação física, para trabalhar corpo e dança. Isso foi muito potente assim para mim."

Atuação como

coreógrafo e

"E aí em 2009 então eu cheguei no [nome da escola de samba]. Era uma oficina de 6

meses. Fiz e o carnavalesco [nome] me viu ensaiando as crianças na quadra e ele se

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diretor artístico

em escolas de

samba

encantou com o meu trabalho. Já estava acabando as oficinas e foi quando ele me

chamou para trabalhar com o carnaval e a escola, então, me contratou para trabalhar

como coreógrafo, coisas pequenas até, porque eu não tinha essa experiência, eu nunca

tinha pisado numa avenida."

"O meu último carnaval lá foi em 2013. Eu desfilei, mas eu queria crescer, queria

novos desafios. Eu queria outras coisas. E foi em 2013 então que em 2013 eu comecei

a preparar nove escolas de samba, que em 2014 eu fiz nove escolas de samba, muito

mais de nove trabalhos, porque tinha escola que eu fiz dois carros, uma ala outra eu

fiz comissão. E foi então que eu me encantei e me apaixonei pelo carnaval. Foi assim

a minha história."

"Hoje eu faço comissão de frente em uma escola, direção artística em outra, faço

carros e alas em outra, faço escolas de [nome da cidade], [nome da cidade] e o mais

interessante é que eu faço escolas do especial, o acesso, do grupo 1, do grupo 2 e do

grupo 3, com o mesmo carinho, claro, não é a mesma possibilidade porque a escola

não tem verba, não tem recurso. Mas com o mesmo empenho e dedicação, pode ter

certeza."

“Eu trabalho para um portal. Eu sou colunistas e escrevo sobre danças para o

carnaval, comissão de frente, casal de mestre-sala e porta-bandeira e evolução, que

são alas coreografadas. Faço um trabalho de produção artísticas, com shows, com

ensaios fotográficos para o portal."

"Hoje eu faço a [nome da escola de samba], a direção artística. Fiz o ano passado

também. Estou fazendo a [nome da escola de samba]. Faço [nome da escola de

samba], que é uma escola que caiu para o acesso. Estou fazendo a [nome da escola de

samba], a comissão de frente, que é uma escola que foi do especial foi caindo, caindo,

caindo e ela está em ascensão, ela tem voltado. Ela voltou para o 1. Ela é conhecida

como a faculdade do samba. É uma escola de muita tradição. Faço uma escola que

chama [nome da escola de samba] de [nome da cidade]. Faço a [nome da escola de

samba] de [nome da cidade] e faço a comissão de uma escola também que chama

[nome da escola de samba] e ela foi para o grupo 2, ela subiu esse ano."

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Atuação como

professor: as

relações

estabelecidas

profissionalmente

"[...] ainda nos tempos de hoje, principalmente com os meninos, os homens tem

preconceito quando a gente fala... hoje é muito menos do que há 12 anos que eu

cheguei em [nome da cidade]. Hoje eu chego, vamos lá... diretora fala “esse é o

Rodolfo, professor de dança”, sabe?! A gente já tem uma outra relação. As pessoas

não ficam rindo e tirando da sua cara não. Existe preconceito, mas é diferente."

"Eu já apanhei, aqui em [nome da cidade], na saída de um dos lugares que eu

trabalhava e fui roubado. As pessoas me despiram. E sabiam... Não eram os meus

alunos, pode ser conhecido deles. Sabiam que eu trabalhava naquela ONG, sabiam

que eu estava lá de tal a tal dia, naquele horário. Me largaram de cueca e bolsa. Eu

tive uma experiência assim aqui também."

"Mas sabe o que acontece, Cíntia... Eu sou uma pessoa, exatamente por trabalhar

nesses projetos sociais e com esses temas, eu não consigo desenvolver um trabalho,

fazer algo se eu não estabelecer uma relação de afeto com você. Amizade vai se

construindo, mas esse carisma, eu acho que eu sou bastante carismático sim e eu acho

que isso é preciso para a gente lidar com as pessoas e acima de tudo respeitar todas

essas pessoas."

"Eu tive inúmeras experiências bem diferentes. Nenhuma traumática, embora eu já

fui... apanhei e fui assaltado na saída de uma ONG que eu trabalhei."

"Porque de tudo isso eu acho que eu sou o que eu sou e quem eu sou devido a esses

contatos, essas trocas que eu tive com essas pessoas."

"E aí, quantas vezes, quantas aulas eu fui dar que a aula era de dança e os meninos,

muitos ficavam só assistindo, não queriam fazer. Eu nunca obriguei. Eu acho que

tinha que ser espontâneo, tinha que ser do coração. Passava duas ou três semanas e eu

estava com todos os meninos dançando também. Uma relação brother, uma relação

camarada assim, de muito respeito."

"Quantas vezes esses meninos foram me levar e ficavam me esperando, eu pegar o

ônibus ou a condução, me esperando porque era um lugar de risco e para eu não ser

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assaltado. Para não haver nenhum problema eles me protegiam. E faziam a aula de

dança, muitos se identificavam com aquilo né, com a dança, com todo processo, com

a técnica. Muitos estavam ali porque queria estar perto do Rodolfo, queria estar

próximos dos amigos."

O sentido

atribuído à

dança/ballet a

partir da atuação

"Então, eu vou tentar explicar de uma outra forma. Com a dança, na academia, na

escola de dança, eu ganhei muitas coisas, mas eu perdi outras. São escolhas né, foi um

caminho. Por quê? Você perdeu o que Rodolfo? Eu perdi horas de estar com meus

amigos com os meus amigos brincando. Mas para mim não era importante eu estar

com os meus amigos brincando, era estar ali fazendo aula. O que eu quero dizer que

com essas experiências que eu tive de trabalhar nesses projetos, de desenvolver esses

projetos artísticos nesses lugares tão... que tem evasão, que tem não sei o que, que

tem assalto, que tem morte, que tem mil problemas... eu ganhei muita coisa que eu

trouxe para a minha vida particular. E o ballet hoje, o ballet eu falo é de uma escola

de formação, talvez não me alimentaria, talvez, não me alimentaria, como o contato

que eu tenho com essas comunidades, com o entorno desses lugares, com as coisas

que eles me alimentam."

"É, na verdade o que eu quis dizer, o que eu tenho para te dizer hoje dessas

impressões de tudo, assim da minha visão é o quanto eu cresci profissionalmente e

como pessoa fazendo parte, vivenciando essa memorial social e individual dessas

pessoas nesses projetos sociais. O quanto a dança contemporânea me mostrou e abriu

possibilidades de relação e de processo artístico assim, sabe. Coisas que quando eu

estava dentro de uma sala, fazendo aula de dança, de ballet, de formação, eu não tive

essa experiência, entendeu? Então hoje eu olho isso com outros olhos."

"Era um outro contexto. Eu acho que o que mais me marcou nessa fase de tanta

descoberta, de tanta experiência assim... o que mais me encantou foi saber de... vou

tentar definir assim como... foi uma descoberta do meu corpo e do corpo dessas

pessoas num mar de possibilidades, assim."

"Eu mudei muito quando eu cheguei em [nome da cidade] e comecei a entender tudo

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isso. Porque uma coisa é você chegar, dar aula, ganhar o seu dinheiro... mas é

entender isso e o quanto isso se reverbera na sua vida, o quanto isso transforma a sua

vida, como tudo isso te acrescenta e muda em você. É muita coisa. Porque quando eu

começo a falar tipo para as pessoas, tem gente que me acha muito louco assim. Já tem

gente que fala “caramba, você tem uma experiência”, sabe? E isso está atrelado sim à

minha sensibilidade, ao meu desejo de fazer, de continuar, de descobrir coisas."

"Eu fui fazer ballet, mas eu era criança, não sabia nem o que... E aí eu gostava de

desenhar, tal... Mas as coisas foram acontecendo. Quando eu vim embora para [nome

da cidade] eu mandei muito currículo para agências de propaganda e eu fui chamado.

Fui chamado para fazer entrevista, mas não desenrolava isso. Então eu falo que eu

não escolhi, que eu fui escolhido porque as coisas sempre foram acontecendo para

mim e acontecendo pela dança. Eu vim para [nome da cidade], eu fui fazer uma

faculdade... talvez eu fizesse arquitetura, eu fui fazer dança, entendeu? Então as

coisas para mim foram vindo assim para mim, para o meu caminho sempre ligado a

dança. E eu nunca questionei, sempre aceitei e é isso. É isso."

"Mas isso não me levou... teve esses momentos mais triste né, mas que também faz

parte da vida, mas eu fui transformando tudo isso. Eu fui buscando coisas novas,

novos desafios, de conhecer pessoas, de querer estudar, de querer buscar, de me

expressar, de transformar isso em algo diferente né, alguma coisa para fazer diferente,

porque a dor eu tenho, a marca eu tenho, a cicatriz está em mim. Está tudo aqui. É só

como lidar com isso e com esse tempo transformar e o que realmente, assim, eu falo

isso com toda verdade do meu coração... o que realmente me ajudou com tudo isso,

desde a minha infância, dos meus traumas, das vezes que minha mãe me bateu, das

vezes que eu apanhei dos meus amigos, das palavras que ouvia, mas que para mim era

como se fosse uma surra, das coisas que eu ganhei, das coisas que eu tive, dessa

perda... foi realmente transformando isso em... trabalhando com arte e transformando

isso em processo artístico."

"Eu sou o primeiro e senão ainda o único bailarino da minha cidade. Tive alunos,

queridos, que a gente acabou criando amizade, que a gente mantém contato, mas que

não formaram. Fizeram por hobby, participavam, mas não... um foi fazer medicina,

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outro virou cabelereiro. Não levaram isso adiante. Então é isso. Eu tenho certeza que

eu fui o primeiro e o único bailarino da minha cidade. Hoje minha cidade tem 35 mil

habitantes. As pessoas me reconhecem, pelo Rodolfo, pelos trabalhos, pelas coisas

que eu ainda venho desenvolvendo e fazendo... e sou respeitado, assim. Quando eu

vou para lá as pessoas perguntam que trabalho eu venho fazendo “ah te vi na TV, te

vi na escola de samba, te vi não sei o que”. Aquelas pessoas que jogaram pedra, que

eu não esqueço, também me olham, me respeitam, me perguntam coisas sobre. Mas

enfim..."

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NOTAS DE REFERÊNCIA

i [...] no es descomponer el todo psicológico en partes e incluso en fragmentos, sino destacar del

conjunto psicológico integral determinados rasgos y momentos que conserven la primacía del todo.

ii El análisis del objeto debe contraponerse al análisis del proceso el cual, de hecho, se reduce al

despliegue dinámico de los momentos importantes que constituyen la tendencia histórica del proceso

dado.

iii Sin embargo, la verdadera misión del análisis en cualquier ciencia es justamente la de revelar o

poner de manifiesto las relaciones y nexos dinámico-causales que constituyen la base de todo

fenómeno. En esta proporción, el análisis se convierte de hecho en la explicación científica del

fenómeno que se estudia y no sólo su descripción desde el punto de vista fenomênico.

iv La fosilización de la conducta se manifiesta sobre todo en los llamados procesos psíquicos

automatizados o mecanizados. Son procesos que por su largo funcionamiento se han repetido millones

de veces y, debido a ello, se automatizan, pierden su aspecto primitivo y su apariencia externa no

revela su naturaleza interior; diríase que pierden todos los indicios de su origen. Gracias a esa

automatización su análisis psicológico resulta muy difícil.

v [...] se produce un grado superior de relaciones complejas que oscurece, a primera vista, los nexos y

las relaciones genéticas fundamentales que rigen el desarrollo de algún proceso psíquico.

vi La realidad social es la verdadera fuente del desarrollo, la posibilidad de que lo social se transforme

en individual. vii La ley fundamental del comportamiento dice que nuestra conducta está determinada por las

situaciones, que son los estímulos los que producen la reacción y que por tanto la clave para dominar

la conducta radica em el domínio de los estímulos. Sólo a través de los estímulos correspondientes

podemos dominar nuestro comportamiento.

viii La investigación en realidad demuestra que el contenido negativo del desarrollo en los períodos

críticos es tan sólo la faceta inversa o velada de los câmbios positivos de la personalidad que

configuran el sentido principal y básico de toda edad crítica.

ix Claro está que el conocimiento de los resultados del desarrollo anterior es un momento

imprescindible para enjuiciar cómo es el desarrollo en el presente y cómo será en el futuro. Sin

embargo, no es suficiente, ni mucho menos.

x La segunda tarea del diagnóstico del desarrollo consiste en determinar los procesos no maduros

todavía, pero que se encuentran en el período de maduración. Esta tarea se resuelve con el hallazgo de

la zona de desarrollo próximo.

xi La situación social del desarrollo es el punto de partida para todos los cambios dinámicos que se

producen en el desarrollo durante el período de cada edad.