Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M....

75
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP TAINÃ MARIA PINHEIRO DOS SANTOS OS TRABALHOS MANUAIS NO ANUÁRIO DO ENSINO DO ESTADO DE SÃO PAULO E NA REVISTA DE ENSINO DA ASSOCIAÇÃO BENEFICENTE DO PROFESSORADO PÚBLICO DE SÃO PAULO (1902-1920) MESTRADO EM EDUCAÇÃO: HISTÓRIA, POLÍTICA, SOCIEDADE São Paulo 2012

Transcript of Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M....

Page 1: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

TAINÃ MARIA PINHEIRO DOS SANTOS

OS TRABALHOS MANUAIS NO ANUÁRIO DO ENSINO DO ESTADO DE SÃO

PAULO E NA REVISTA DE ENSINO DA ASSOCIAÇÃO BENEFICENTE DO

PROFESSORADO PÚBLICO DE SÃO PAULO

(1902-1920)

MESTRADO EM EDUCAÇÃO: HISTÓRIA, POLÍTICA, SOCIEDADE

São Paulo

2012

Page 2: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

TAINÃ MARIA PINHEIRO DOS SANTOS

OS TRABALHOS MANUAIS NO ANNUARIO DO ENSINO DO ESTADO DE

SÃO PAULO E NA REVISTA DE ENSINO DA ASSOCIAÇÃO BENEFICENTE

DO PROFESSORADO PÚBLICO DE SÃO PAULO

(1902-1920)

MESTRADO EM EDUCAÇÃO: HISTÓRIA, POLÍTICA, SOCIEDADE

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, como exigência

parcial para obtenção do título de Mestre

em Educação, no Programa de Educação:

História, Política, Sociedade, sob a

orientação do Prof. Dr. Kazumi Munakata

São Paulo

2012

Page 3: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

Banca Examinadora ‘____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________

Page 4: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

Para Maria e Evilásio (In Memoriam)

Para Cauê

Para Dinameres

Amor. Vida. Essência.

Para Aisha, o ser que esteve ao meu lado do começo ao

final deste trabalho. Pelo afeto da mais fidelíssima

companhia canina.

Page 5: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

Agradecimentos

Ao meu orientador Professor Dr. Kazumi Munakata, pela parceria desde a

iniciação científica em 2007, pelo incentivo à pesquisa e saberes transmitidos com

competência e generosidade. Por toda a compreensão e paciência até o último momento

desse trabalho. Para além dos academicismos, o privilégio de sua amizade ímpar. Muito

Obrigada!

À Prof Dra. Circe M. F. Bittencourt, pelas aulas magistrais, por personificar

erudição e simpatia e pelos ricos apontamentos na qualificação. À Prof Dra. Vera Jardim

pelas valiosas argüições desde o Seminário de Educação dos Sentidos, e pelo privilégio

de sua atenta leitura e contribuições no exame de qualificação. Ao professor Dr. José

Geraldo Silveira Bueno, pelo estímulo à pesquisa, e especialmente pela oportunidade de

conviver na organização do IV Seminário com alguém de extrema generosidade, ética e

humor.

Aos queridos amigos de graduação: Marina Mello, Hilton Cassiano, Rosana Leite,

Gael Oliveira, Viliane Pinheiro, Thales Martins, Filipi Mendonça, Natália Leonardo,

Talita Grotti, Rafael Andrade. Em especial, à Joana B. de Faria, pela amizade tão fraterna

de todos os dias, desde o início da graduação até a empreitada da pós, compartilhando

todas as felicidades, angústias, dramas e alegrias plenas. Pelo acolhimento em todos os

sentidos sempre.

À Bianca Zucchi pelo carinho, compreensão, incentivo, ajuda. Pelos momentos

tão divertidos e pela amizade necessária em minha vida. Ao André Pirola, meu

agradecimento pleno pelo estímulo à pesquisa que se traduziu na maior ajuda nos estudos

que eu poderia ter tido para o ingresso no mestrado. Pela paciência, generosidade,

amizade tão terna e alegrias compartilhadas.

Às pessoas tão queridas que tive o privilégio de conhecer no Masp e com elas

aprender tanto: Ivani Di Grazia Costa, Eunice Sophia, Bárbara Bernardes, Erick Santos

de Jesus, Lucas Lyra, Miriam Lustosa, Romeu, Bruno, Zil, Dri, Renata, Inês Tari, Rita. A

todos, meu muito obrigada pelo carinho e apoio!

Ao Thiago Boim, amigo-irmão desde a adolescência e para toda a vida, a minha

gratidão sem tamanho por me guiar em seus passos na escolha pela história, por ter me

Page 6: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

apresentado à iniciação científica, sem cujas direções indicadas, essa empreitada não

seria possível. À sua esposa Renata Boim e a João Boim ( a caminho!)

A Dalva, Diva , Paulo Andretta (e família Andretta), Viviane e Gerson, Alexandre

e Fabiana, Paulinho e Felipe.

À Dina, por ser a melhor mãe que eu poderia desejar. Pelo apoio suporte,

incentivo, dedicação e amor. Ao Cauê, irmão amado, divertido e corajoso para com seus

desejos. A quem sou extremamente grata pela convivência. Por ser ele.

Ao Clóvis Pereira, pelo amor, companheirismo, incentivo e apoio, tão essenciais.

Pela coragem, história, por ser quem é. Pelas experiências compartilhadas que fizeram e

fazem a vida valer, mais do que já pude sequer imaginar.

A Cecília, Camila, João, Damaris, Íris, por me acolherem com tanto carinho e

generosidade. Igualmente à Tereza, Otavio, Thais e Ivan.

À Betinha, pelo carinho, atenção e paciência com minhas trapalhadas!

A Rodolfo Calil, Priscila Ferrer, Claudia Malluhy, Marcia Takeuchi, Márcia Guerra

Álvaro Zago, Cida Cabral, Priscila Escanfella, Moacir Ribeiro, Paula M. Assis, Ellen

Rosante, Flavia Liba e à Katya Z. Braghini, pelo incentivo à pesquisa. À Cassi Ane

Pinheiro, Maíra Zanutto e Ana Carolina, irmãs que escolhi! Pela amizade tão doce e

fraterna, sem as quais eu não me imagino.

A Claudia, Eva, Carlos e Claudinei pelo carinho e incentivo. Às três meninas mais

lindas que tanto quero bem: Brenda Gaia, Samara e Yasmin pela companhia, amizade,

pelas risadas que tornam a vida tão boa!

Ao amado Leopoldo Dias Jr, pelo apoio, generosidade, amizade, viagens, e

diálogos impagáveis.

Ao meu pai, Benedito, pelo amor, por estar presente nas minhas melhores

lembranças de infância, pelos diálogos, por ter me transmitido tamanho gosto pela música!

À Bete e Sarinha.

Aos queridos amigos Iwao, Alice Neto, Eduardo Cabral, Arnaldo Thunder,

Carolina Clemente, Vanderlei Suita, Martin L. K. Oliveira, José Roberto Garcia, Antônio

de Pádua Pacheco, Robinson Bucci, Marcio Martins, Douglas Rocha, Inaê Luz, Leon e

Lucas Zoccarato, Marielen Luiz, Marina Azevedo; aos Bury’s:Ricardo, Sônia, Alexandre

Page 7: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

e Marcela, Paula Togneri, Camila Oliveira, Vinicius e Larissa Tossi Paes, Bianca Cestari,

Nathália Lena, Alexandre Baquero Lima e Igor Suga.

Aos funcionários da Biblioteca da FE-USP, pelo atendimento tão zeloso e por

disponibilizarem o que me foi essencial nessa pesquisa: as fontes.

Ao CNPq, pela bolsa concedida.

Page 8: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do

Ensino do Estado de São Paulo, e na Revista de Ensino da Associação Beneficente do

Professorado Paulista.(1902-1920) Dissertação (Mestrado em Educação). São Paulo:

Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade -

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Orientação Professor Dr. Kazumi

Munakata.

Resumo

A proclamação da República no Brasil, em 1889, veio acompanhada de promessas de

nova era, de progresso, razão, ciência e civilização. A Educação, no discurso de muitos

republicanos, passou a ser considerada o principal promotor dessa nova era, pela

formação do “homem novo”. Em contraposição à Educação do período monárquico,

considerada “tradicional”, propuseram-se novos conhecimentos, novos métodos, novas

práticas escolares, inclusive as que valorizavam o trabalho e as atividades manuais.

Trabalhos manuais foram propostas para o desenvolvimento integral - físico moral e

intelectual. Essa pesquisa busca compreender essas propostas referentes ao ensino

primário, nos impressos: Revista de Ensino Beneficente do Professorado Público do

Estado de São Paulo , e, Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, no período de 1902

até 1920, buscando compreender o discurso e as práticas sobre essas proposições

pedagógicas; as contradições enfrentadas, rupturas e permanências, até seu declínio.

Palavras-chaves: trabalhos manuais, impressos educacionais, Disciplinas escolares, Sloyd

educacional.

Page 9: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

Abstract

The establishment of the Republic in Brazil in 1889 was accompanied by promises of a

new era of progress, reason, science and civilization. Education in the discourse of many

Republicans, has been considered the main promoter of this new era, the formation of the

“new man”. In contrast to the Education of the monarchic period, considered “traditional”,

set out new knowledge, new methods, new school practices, including those who valued

the work and manual training, which were proposed for the full development - physical

intellectual and moral. This research aims to understand the proposals relating to

elementary education, printed in: Revista de Ensino Beneficente do Professorado Público

do Estado de São Paulo, and Annuario do Ensino do Estado de São Paulo, from 1902

until 1920, seeking to understand the discourse and the practices on these education

proposals, the contradictions faced, ruptures and continuities, until its decline.

Keywords: manual training, educational press, disciplines, educational Sloyd.

Page 10: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

Sumário

Introdução ....................................................................................................................... 1

Justificativa do tema ................................................................................................ 4

Algumas considerações acerca do Ensino Profissional........................................... 7

A formação integral................................................................................................. 9

Arts and Crafts – O Romantismo como antecedente............................................. 13

Kerschensteiner: a escola do trabalho ................................................................... 14

Capítulo 1

A educação republicana: a instrução pública no Brasil e em São Paulo ................. 16

Circulação e apropriações do americanismo ......................................................... 19

Método intuitivo e educação dos sentidos............................................................. 22

Capítulo 2

Trabalhos manuais como disciplina escolar ............................................................... 26

Sloyd educacional.................................................................................................. 26

Os conteúdos das disciplinas de trabalhos manuais e de desenho......................... 29

Capítulo 3

Trabalhos manuais, segundo os periódicos ................................................................ 33

A Revista de Ensino .............................................................................................. 33

O Annuario do Ensino do Estado de São Paulo ................................................... 34

“Para desenvolver uma habilidade múltipla, a destreza geral desejada”............... 37

Formação do caráter, forças da intelligencia e qualidades moraes ....................... 40

Separação de gêneros ............................................................................................ 43

Em busca da utilidade e da simplicidade............................................................... 47

Professores: especialistas ou generalistas?............................................................ 51

Formação integral ou técnico-profissional? .......................................................... 54

Page 11: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

Considerações finais

Desventuras e declínio dos trabalhos manuais ........................................................... 57

Referências bibliográficas ............................................................................................ 63

Fontes .................................................................................................................... 65

Page 12: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

Introdução

O trabalho manual como forma de educação presente na escola, visando a

formação integral do homem, física e intelectual e moral, fez parte de projetos

formulados no cenário internacional e, posteriormente, nacional. A formação integral

pelo trabalho provém de uma série de ideais e movimentos que circularam nos séculos

XIX e XX, como movimento estético social intitulado Arts and Crafts, e mais

precisamente o chamado sloyd educacional.

Sendo este um movimento denominado como estético e social, da segunda metade

do século XIX com bases na Inglaterra vitoriana. Este movimento defende o artesanato

criativo como alternativa à mecanização e à produção em massa.

Esse movimento reuniu teóricos e artistas que buscavam revalorizar o trabalho

manual e recuperar a dimensão estética dos objetos produzidos industrialmente para uso

cotidiano. A expressão que leva o nome do movimento "artes e ofícios", deriva da

Sociedade para Exposições de Artes e Ofícios, onde nasce o movimento em 1888.

As ideias do crítico de arte John Ruskin, do medievalista Augustus W. Northmore

Pugin e do poeta William Morris são fundamentais para a consolidação da base teórica do

movimento. Na vasta produção desses que são expoentes do movimento, observa-se uma

tentativa de combinar esteticismo e reforma social, relacionando arte à vida diária do

povo.

As ideias nostálgicas sobre o passado medieval diante das criações modernas têm

impacto sobre esses homens, que fazem elogios aos padrões artesanais e a um modo de

vida quase medieval. William Morris, que além de poeta e escritor militava a favor do

socialismo, tenta combinar as teses de Ruskin às de Marx, na defesa de uma arte "feita

pelo povo e para o povo"; a ideia é que o operário se torne artista e possa conferir valor

estético ao trabalho desqualificado da indústria. Com Morris, o conceito de belas-artes é

Page 13: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

2

rechaçado em nome do ideal que privilegia as artes e os ofícios que vêm do povo e serve

a ele.

A apropriação desse pensamento pela educação pode ser vista na Escola

Profissional Masculina da Capital, estudada por Sandra Machado Lunardi Marques (2003)

no recorte temporal de 1911 a 1934. Aprígio Gonzaga, diretor e professor da referida

escola, trabalha com as ideias do movimento estético e social e isso se evidencia também

no currículo escolar, em que o desenho ocupa o lugar de disciplina fundamental para a

educação e desenvolvimento das habilidades manuais e visuais. Assim, com as aptidões

necessárias, o aluno é capaz de produzir um objeto bem trabalhado, o que nesse sentido

significa trabalho consciente, com as devidas implicações dos sentidos que não se

dissocia do intelecto.

Para Gonzaga o trabalho manual das escolas deveria se libertar do caráter

subalterno e integrar-se às demais disciplinas como parte do desenvolvimento físico,

moral e intelectual do aluno. Para ele era preciso dar ao aluno uma interpretação simples

de confecção dos modelos que necessitasse do mínimo emprego de ferramentas, o que

obriga o aluno a pensar, a descobrir, a tirar conseqüências e a resolver por si mesmo as

dificuldades imprevistas, o que custosamente é obtido com aqueles sistemas em que se

empregam ferramentas bem dispensáveis, que só trazem embaraços ao espírito

(MARQUES, 2003).

Segundo a tese de Marques (2003), Gonzaga conferiu grande importância ao

ensino de desenho, uma vez que, segundo ele, era o tipo de disciplina educativa que

poderia falar diretamente ao espírito por meio dos olhos e da mão. Preparando assim o

aprendiz para trabalhar com ferramentas, máquinas, e executar o que foi idealizado,

cumprindo rigorosamente as medidas métricas já trabalhadas em sua escala real no

desenho. Esse processo educacional ocorrido em diversos países e em São Paulo aplicado

escola Profissional Masculina dirigida por Gonzaga é denominado sloyd (ou slojd)

Aos trabalhos manuais como valor formativo se associam idéias sobre formação

integral, com bases na obra de Rousseau, Pestalozzi, Claparède assim como em ideais do

Page 14: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

3

movimento arts and crafts. A formação integral diz respeito à forma de educar

estimulando os recursos dos sentidos. Cabe aqui esclarecer que os sentidos não possuem

apenas uma conotação biológica, são eles também produtos da história, uma vez que são

constituídos historicamente (JÜTTE, 2005). Tal que, a palavra visão é carregada de

significado biológico, conquanto a palavra olhar marca o traço histórico e cultural de seu

tempo. A educação integral, sobre a qual falamos adiante, não dissocia a educação do

corpo e sentidos da intelectual e moral.

Justificativa do tema

A pesquisa sobre propostas de trabalhos manuais que tem como finalidade a

formação do sujeito é escassa, pois está na contramão de projetos que de certa forma

ganharam mais espaço nas sociedades ao longo do tempo, possuindo também assim,

maior espaço, interesse e até mesmo, maior incentivo para sua pesquisa. Nesse sentido:

Não deveríamos ter como único critério de julgamento o fato de as ações

de um homem se justificarem, ou não, à luz da evolução posterior.

Afinal de contas, nós mesmos não estamos no final da evolução social.

Podemos descobrir, em algumas das causas perdidas do povo da

Revolução Industrial, percepções de males sociais que ainda estão por

curar. (THOMPSON, 1987, p. 13.)

Nesta pesquisa utilizamos os impressos: Revista de Ensino da Associação

Beneficente do Professorado Público de São Paulo, e no Annuario do Ensino do Estado

de São Paulo, para compreender historicamente como se deu a circulação e apropriação

das idéias sobre os trabalhos manuais; como eram representados, quais tipos de

atividades eram compreendidas e qual o significado dado a estes. Assim também,

procuramos compreender o que representou como disciplina, os (des)caminhos de um

projeto educacional que não obteve o alcance desejado por idealizadores em escolas

paulistas, e que todavia, angariou adeptos pensadores da cultura, alguns avessos à

industrialização e à padronização, que por sua vez buscaram alternativas às dificuldades

impostas por aquele fin-de-siècle (SCHORSKE, 1988), muitas vezes recorrendo ao novo

Page 15: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

4

mundo da América, que por sua vez, encontrava-se bastante receptivo às novas

proposições.

Para isso, o período compreendido entre 1902 (fundação da Revista de Ensino) e

1920 (momento em que a Reforma Sampaio Dória reformula o ensino primário). Trata-se

de um período no qual os ideais republicanos abriam portas às idéias de outros lugares, e

especialmente no âmbito da educação, estavam concorrência e circulação.

É necessário lembrar que quando estudamos um objeto de pesquisa integrante de

um projeto tido como derrotado, estamos automaticamente comparando-o a um

determinado caso e o contraste muitas vezes se faz necessário. No entanto, também se faz

necessário destituirmos nosso objeto (no caso trabalhos manuais no ensino) dessa posição

e do mais comum referencial de comparação (no caso, escolas profissionais), mesmo que

apenas por algum instante, para assim, podermos lançar um outro olhar e outras

percepções em relação a ele. Nesse sentido, com apoio teórico em Roger Chartier,

interessa-nos compreender algumas das formas de circulação e apropriação das ideias

sobre o movimento arts and crafts em impressos no Brasil, em São Paulo.

A apropriação tal como a entendemos visa uma história social dos usos e

das interpretações, relacionados às suas determinações fundamentais e

inscritos nas práticas específicas que os produzem. (CHARTIER, 2002,

p. 68.)

Assim, ao tomarmos o impresso não apenas pelo alcance do conteúdo visado, mas

ele próprio como um sistema de percepção, temos a possibilidade de melhor compreender

o lugar conferido aos trabalhos manuais e todo o pensamento que lhe foi suporte,

podendo assim verificar como se produziu o conhecimento sobre trabalhos manuais e

suas associações, na condição de projeto educacional.

Para Aprígio Gonzaga, possivelmente o principal expoente do movimento Arts

and Crafts e do Slodj em São Paulo, adotar o trabalho manual como forma de educação

não estava propriamente ligado à uma demanda de educação popular, mas sim ao projeto

de possibilitar a formação do homem integral para oriundos de qualquer classe social. No

Page 16: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

5

entanto, não podemos perder de vista que este foi apenas dos lugares conferidos aos

trabalhos manuais, e que outras finalidades lhe foram atribuídas.

No que se refere aos trabalhos manuais no ensino primário, sabemos que os

conteúdos da escola primária foram redefinidos nas primeiras décadas republicanas em

função de novas finalidades atribuídas à educação popular. Entre esses conteúdos

estavam: ciências físicas e naturais, história, geografia, música, geometria, instrução

moral, educação física, desenho, instrução cívica, e trabalhos manuais. Em relação à

situação desses conteúdos na escola, Rosa Fátima Souza faz a seguinte consideração:

(...) A ampliação e modernização dos programas acompanharam a

renovação didático-pedagógica e administrativa do ensino primário, a

expansão gradativa e contínua desse nível escolar levada a cabo pelos

republicanos em vários estados brasileiros e mantiveram essa relativa

estabilidade até meados do século XX. (SOUZA, 2008, p.20)

Assim sendo, desenho, trabalhos manuais eram, entre outros conteúdos,

considerados úteis à vida moderna e a instrução popular acompanhando um movimento

internacional e ao mesmo tempo, adquirindo em cada lugar conotações próprias,

moldadas pelas diferentes realidades. Dessa maneira, é possível localizar o ensino do

Desenho subsidiado pelos princípios do método intuitivo, uma vez que tal prática visa

educar os olhos e as mãos, possuindo um caráter prático vinculado às artes e à indústria e

ofícios, defendido por Buisson da seguinte maneira:

(...) ele serve ao pedreiro e ao carpinteiro antes de servir ao arquiteto;

serve ao marceneiro e ao forjador, ao serralheiro, ao aplanador, ao

fabricante de carroças, à bordadeira e à rendeira, ao tapeceiro, ao

jornaleiro, ao jardineiro, a todos os operários de profissão antes de servir

ao escultor e ao pintor; e o conde de Laborde já dizia na Exposição

Universal de Londres, em 1851, que todo o homem deveria aprender o

desenho juntamente com a escrita, sendo ela mesma uma espécie de

exercício de desenho. (BUISSON, 1875, apud SOUZA, 2008, p.30).

Page 17: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

6

Esse excerto de Buisson escolhido por Souza é bastante emblemático a respeito de

um posicionamento que atribui grande importância às possibilidades utilitárias das

atividades manuais (nesse caso o desenho), uma vez que para o autor os eles servem antes

aos ofícios e depois às artes.

Há ainda a questão dos trabalhos manuais frente às disciplinas escolares e

currículo. Tomando como base André Chervel (1990), é fundamental compreender as

disciplinas escolares a partir de uma perspectiva histórica, e nesse caso, se apresenta

como demanda decifrar a trama do que se escrevia e do que se lia sobre a integração dos

trabalhos manuais no currículo, seus conteúdos explícitos e implícitos, métodos e

finalidades, sejam elas de ordem, econômica, social, política ou outros.

Partimos também da premissa de que segundo Ivor Goodson (1990), a seleção de

conteúdos, classificação, transmissão e avaliação refletem o poder e sua distribuição, bem

como as formas de controle social, ao selecionar o que deve e o que não deve ser

conhecimento de uma sociedade. Nesse ponto, a teoria do currículo nos é um importante

apoio, pois como já vimos, não basta apenas dizer que trabalhos manuais integravam a

educação, é necessário buscar nas entrelinhas das fontes documentais qual o tipo de

trabalho manual referido, com quais finalidades.

Algumas considerações acerca do Ensino Profissional

A segunda metade do século XIX foi marcada pelo progresso econômico

decorrente da cafeicultura, gerando o excedente empregado em diversos setores, ao

mesmo tempo, foi um período marcado por problemas decorrentes deste crescimento. A

organização do trabalho livre, a modernização da sociedade e a construção de uma

identidade nacional (SOUZA, 1998, p. 27) foram determinantes para compreender alguns

dos rumos dados ao país, em São Paulo, especialmente relacionados ao ensino

profissional no período republicano.

O fornecimento da mão-de-obra de imigrantes europeus, politicamente previsto

para o trabalho manufatureiro, apresentou ameaças de cunho ideológico para o operariado

Page 18: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

7

brasileiro, posto que traziam consigo idéias anarquistas e socialistas. As conseqüências

foram, segundo Marques (2003), as greves que ocorreram em diversas categorias de

trabalho; uma média de seis greves por ano, em treze anos – de 1901 a 1914.

De acordo com Cunha (2000a, 2000b, 2000c), as iniciativas de criação e expansão

de escolas profissionais no final do século XIX e inicio do XX, seriam respostas ao

movimento operário e às greves por eles organizadas, assim como forma de constituir

mercado de trabalho no país. Tais iniciativas também são vistas como tentativas de

controlar a vadiagem, a mendicância, além, de ser a maneira de ensinar ao trabalhador

nacional o manuseio de determinadas máquinas, invertendo assim, a idéia inicial de que

trabalhar com o imigrante seria melhor do que com brasileiros.

Estes seriam alguns dos fatores importantes para se pensar o inicio do ensino

profissional, no entanto, segundo Zucchi (2007, p. 18) seria delicado apontar

precisamente uma relação de causa e efeito tão diretamente, entre o movimento operário

e a criação das escolas profissionais; principalmente pelo fato de que greves, seriam antes

um problema a ser resolvido pela polícia e não pela escola. 1

Em uma outra finalidade com meios assistencialistas desse ensino, Cunha aponta

as instituições criadas para oferecer o ensino profissional aos órfãos e desvalidos, que

deveriam acolher essas crianças, instruí-las em algum ofício, gerando mão-de-obra

especializada. Essa seria a causa do estigma atribuído ao ensino profissional, como

ensino para os “desvalidos”, além, claro, das atividades manuais estarem historicamente

ligadas a imagem do escravo, pelos serviços trabalhos braçais e manuais por eles

desempenhados.

Nesse ponto temos algum contraste com os trabalhos manuais, ao passo que,

segundo a documentação analisada, as atividades manuais baseadas em proposições

internacionais pedagógicas, dirige-se a todas as classes sociais em função de seu valor

1 “Vargas (2004), ao analisar as greves e movimentos operários nas duas primeiras décadas do século XX no estado de São Paulo e Rio de Janeiro, explicita a relação entre patrões e forças policias com o intuito de conter os movimentos operários. Assim, a diretriz repressiva proveniente do Estado era reforçada pelas trocas de favores e trocas monetárias entre patrões e policiais; portanto, quanto mais capitalizado o setor, maior a força opressiva contra seus operários.” (ZUCCHI, 2007, pp. 18-19.)

Page 19: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

8

formativo. No entanto, como veremos adiante, há documentos em que se comenta a

possibilidade de que, caso um aluno venha a ser “desvalido da fortuna” por desventura da

vida, o trabalho manual que teria inicialmente apenas valor formativo, poderia trazer

algum sustento.

Entendemos que o ensino profissional possui uma grande complexidade por ser

um projeto que congrega os mais diversos interesses e finalidades conforme suas

modalidades. A Escola Profissional Masculina da Capital (São Paulo), dirigida por

Aprígio Gonzaga, é um caso um pouco diferente de ensino profissional, muito por conta

das influências e apropriações de Gonzaga, como veremos adiante.

A formação integral

A formação integral concebida através do trabalho é contrária a uma tradição

segundo a qual o ofício manual é uma atividade menor, desvalorizada em relação à

intelectual, e, no caso deste, intimamente ligada às elites. Essa tradição das humanidades,

segundo Chervel e Compère (1999), também visava a formação integral, mas com base

no estudo dos textos clássicos, em especial em latim. Na educação francesa, ainda

segundo Chervel e Compère (1999), as humanidades predominaram por quatro séculos

constituindo o alicerce sólido da cultura francesa, estabelecendo padrões do bom gosto,

do senso crítico, do refinamento do espírito, da arte de se exprimir oralmente e por escrito

num estilo elegante. O ideal visado por essa formação, pode ser visto em diferentes

momentos da história, sob diferentes denominações – seria o cristão, do colégio de

jesuítas; o cidadão, no período das Luzes; o republicano, nos dos liceus. Esse ideal de

formação que além da educação retórica e estética valoriza igualmente a educação moral

e cívica.

Segundo Chervel e Compère (1999), as humanidades se apresentam como uma

educação do indivíduo, do espírito, da inteligência, da alma, e como educação liberal,

mantém distância da especialização uma vez que não possui preocupações imediatistas e

utilitárias, o que significa, uma marca da elite. Essa educação liberal visa, portanto,

Page 20: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

9

preparar homens livres – de um trabalho especializado - para que possam com os

conhecimentos das humanidades, desde jovens, ascender ao nível mais alto da criação do

pensamento humano.

No caso de projetos educacionais como sloyd ou arts and crafts, a finalidade é a

mesma das humanidades tradicionais, ou seja, formar o ser humano integralmente, no

entanto, as vias para essa formação diferenciam-se de outras justamente por acreditar que

ao aliar as habilidades manuais às demais habilidades sensoriais e intelectuais, consegue-

se uma formação integral. Nessa formação não se dissocia o pensar do fazer, o intelecto e

as destrezas manuais estão unidos e, ao contrário da tradição das humanidades, este

projeto educacional destina-se a todos, independentemente de sua condição social.

Numa outra vertente, a crítica das humanidades é feita em nome da modernidade

e do progresso econômico e industrial, na qual também não se admite a associação do

trabalho intelectual ao manual. Para essa vertente, representada por Roberto Mange e

Roberto Simonsen, a formação integral realizada por Aprígio Gonzaga não interessava;

seria inútil gastar o tempo escolar com um trabalho de formação a longo prazo, uma vez

que entre as finalidades das instituições geridas por Mange e Simonsen (SENAI e SESI)

era a formação tornar mão de obra industrial.

Mesmo com as diferentes finalidades, os contrastastes são pertinentes para melhor

compreender as complexidades envolvidas nessas finalidades. Como analisa Weinstein

(2000,p.55), Mange, ao contrário de Aprígio Gonzaga:

(...) acreditava que os processos técnicos característicos da indústria

moderna estavam muito além do alcance do trabalhador médio, mesmo

dos que foram submetidos a um treinamento profissional intensivo. (...)

A capacitação profissional, argumentava Mange, deveria ser adequada

às necessidades da indústria e deveria desenvolver-se continuamente

para atender a essas necessidades sempre novas, segundo as

determinações de engenheiros e técnicos altamente qualificados. (...)

Apesar da importância que atribuía à capacitação profissional, Mange

Page 21: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

10

atribuía um papel limitado e subordinado ao operário especializado na

produção. (WEINSTEIN, 2000, p. 55.)

Mesmo que sendo o terceiro capítulo destinado à apresentação e análise

documental, consideramos que seria oportuno fazer uma pequena quebra de protocolo e

trazer à discussão da formação integral alguns excertos de um artigo da Revista de

Ensino2, do ano de 1905.

Os que se oppõem ainda hoje a pratica da instrucção integral e, por

conseguinte, ainda não conseguiram libertar-se de um velho prejuízo,

entendem que o ensino público deve ser assim distribuído: para o povo, a

instrucção primária consistindo em ler, escrever e contar; para os

candidatos as profissões liberaes, algumas noções sobre sciências e línguas,

as quaes denominam estudo de preparatório; para os que se destinam

áquellas profissões, estudos especiaes sobre este ou aquelle ramo de

conhecimentos, com a falsa denominação de instrucção superior.

Quando se objeta que o ensino deste modo proporcionando ao povo já não

corresponde as necessidades sociaes, tendo produzido um desequilíbrio

econômico que cada vez se accentua mais, pensa-se geralmente que em tal

conceito predomina a prevenção ou o espírito de rivalidade contra essa ou

aquela classe. (Revista de Ensino, 1906, n. 5, pp. 799-800.)

É interessante observar que o trecho acima, por se tratar de uma publicação feita

por e, para professores, além possuir como traço característico, um discurso inflamado e a

escrita algo livre de grandes formalidades, traz para a proposta de formação integral

impasses muito particulares do momento histórico do qual fala; o descontentamento com

os diferentes projetos para diferentes segmentos sociais que fazem acentuar rivalidades

sociais, está longe da proposta de educação integral, na qual como já vimos, todos os

alunos receberiam um mesmo ensino, e que ao contrário do que se poderia pensar, nessa

2 A Revista de Ensino é a publicação da Associação Beneficente do Professorado do Estado de São Paulo na qual reunia-se artigos sobre questões pedagógicas, discussão dos problemas referentes às condições docentes e sua possíveis soluções. A discussão desse impresso é feita no Capítulo 3.

Page 22: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

11

concepção, isso seria justamente nivelar por cima, uma vez que aquele que não

trabalhasse as mãos, o olhar, o tato, perderia os grandes benefícios trazidos pela prática3.

Em continuidade, o texto continua questionando as conseqüências sociais ao

privilegiar o ensino superior e criar uma aristocracia intelectual completamente separada

das profissões manuais:

Nós, porém, os que encaramos esta questão do ensino público sob o ponto

de vista exclusivamente scientífico, desde há muito não nos preoccupamos

senão com as suas conseqüências sociaes (...) a custa de se consolidarem

certos conhecimentos profissionaes como superiores, consistiu-se uma

aristocracia intellectual a que todos querem pertencer, não recuando

mesmo ante inauditos sacrifícios e concorrendo, por outro lado, para que

sejam desconceituadas as profissões dos que se consagram aos trabalhos

agrícolas e manufactureiros. Conseqüência política: estando a direção do

paiz entregue a essa aristocracia, onde na mór parte dos casos se nos

depararam mediocridades formadas em sciencia superior, os mais

elevados interesses do povo- administrativos financeiros, constitucionaes,

commerciaes, agrícolas, etc. ficam á mercê da incompetência enfatuada e

da ignorância presumpçosa (...) a intolerável aristocracia do saber, que na

phrase de Stuart Mill degenerou em pedantocracia, há de ceder como de

facto já tem acontecido, o logar ao ensino integarl, que considera todos os

homens iguaes perante a sciencia e o desenvolvimento methodico das

faculdades do espírito, da intelligencia humana. O ensino integral é, além

disso, o correlativo do suffragio universal. Sem elle, a Republica só terá

poderes públicos constituídos por votos de funcionalismo ou apenas

tolerados por um povo que não vota. A verdadeira democracia consiste em

tornar a isntrucção popular compatível com o trabalho manual, que

dignifica e não colloca em plano inferior o trabalho intellectual. Ante a

equivalência das funções sociaes todas as profissões são egualmente

nobres; os privilégios não tem razão de ser. (Revista de Ensino,, 1906, n 5,

p. 800.)

3 Os benefícios e finalidades do trabalho manual, ver Capítulo 3.

Page 23: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

12

Este artigo da Revista de Ensino é emblemático sobre a convivência de novas

idéias que remetem à construção do “homem novo”. Em termos gerais, a concepção de

formação integral em voga no final do século XIX concebia a formação completa do

indivíduo, que atingisse intelecto, corpo e alma. Desejando levar esse projeto à escola

para ministrar essa nova formação, e os trabalhos manuais como parte dessa formação,

quais seriam os conteúdos dentro dessa disciplina? Quais os trabalhos manuais

contemplariam essa finalidade e por quê? Essa é uma das questões que o presente estudo

procura responder.

Arts and Crafts – O Romantismo como antecedente

Foi fundada na Inglaterra em 1888, mais precisamente em Londres, a Arts and

Crafts Exhibition Society. Essa iniciativa ocorreu por parte de jovens membros da Royal

Academy que sentiam-se frustrados pela definição institucional de Artes, apenas no

sentido de belas artes, legando assim a arte decorativa a uma categoria desqualificada.

Willian Morris foi certamente o grande expoente do movimento Arts and Crafts.

Nascido em 1834, Morris viveu sob o contexto de perturbação do espírito, um legado da

revolta romântica protagonizada por poetas como Byron, Shelley e Keat. (THOMPSON,

1988, p. 11). A poesia era a maneira de protesto dos românticos, de se opor a uma difícil

realidade social vitoriana. Essa geração de românticos ingleses sentia-se fortemente

ameaçada com os valores do capitalismo industrial, por eles denominados, perniciosos e

desprezíveis. Segundo Thompson em seu livro sobre Willian Morris:

Pero durante sus años de desesperación, entre 1858 y 1878, el fuego de

la primera revuelta de Morris siguió crepitando em su interior. La vida

de la Inglaterra victoriana era intolerable y no podia ser soportada por

seres humanos. Los valores del capitalismo industrial eran perniciosos y

despreciables; eram um escárnio del pasado de la humanidad.

(THOMPSON, 1988)

Page 24: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

13

Por volta de 1882, Morris torna-se próximo daqueles que eram considerados

pioneiros do socialismo na Inglaterra e percebe que não apenas compartilhavam o ódio da

civilização moderna, mas esses possuíam uma teoria histórica para explicar o crescimento

dessa. Morris desejava a mudança social com bases, de certa forma, nostálgicas no

medievalismo.

Na biografia de Morris escrita por E. P Thompson, o autor afirma que o

imaginário medieval fez parte da infância de Morris por meio de brincadeiras de

cavaleiros, da arquitetura de igrejas antigas, por meio do que remetesse à Idade Média.

O medievalismo foi uma das inspirações que contribuíram para o florecimento

tardio do movimento romântico na Inglaterra, que constituiu em uma revolta contra o

mundo da era ferroviária e os valores de Gradgrind.4

Thomas Carlyle já alertava para os perigos da Revolução Industrial e seus

possíveis efeitos no ser humano (CLARK, 1992, p.XII). A divisão do trabalho privava o

trabalhador do prazer de produzir o objeto da concepção até o trabalho final, o que para a

geração de românticos significava subestimar tanto o trabalhador, quanto o produto. De

Carlyle, passando por John Ruskin até Willian Morris, o legado foi uma grande

desconfiança e estranhamento da idade moderna. Justamente em oposição aos tempos

modernos é que militavam com nostalgia medieval.

Mesmo que não haja – até onde investigamos - menção direta desse movimento

em proposições pedagógicas aqui estudadas, as idéias e concepções sobre a formação

integral são próprias de ambos as correntes de pensamento em circulação,

compartilhadas em um mesmo momento histórico.

Kerschensteiner: a escola do trabalho

Um dos grandes defensores do trabalho manual foi Georg Kerschensteiner. Ele

teve na instrução pública alemã, em diversas atividades e cargos, tais como professor,

diretor e professor universitário aliados a intensa participação política. A trajetória

4 Sr. Thomas Gradgrind, no romance de Dickens, Hard Times, era um dedicado diretor em busca de tornar sua empresa a mais rentável. O nome do personagem de Dickens passou a ser usado genericamente no final do século XIX para se referir a pessoas demasiadamente calculistas.

Page 25: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

14

marcada por iniciativas que levavam às práticas seus idéias teóricos, conferiu a

Kerschensteiner o reconhecimento como educador que trabalhava de maneira pragmática

os problemas apresentados pela instrução alemã.

Em seus escritos, Kerschensteiner sistematizou os princípios que guiavam as

reformas e iniciativas por ele empreendidas, que geralmente apontavam soluções para as

questões de organização da escola pública na Alemanha.

Durante os anos de 1895 até 1919, quando ocupou o cargo de diretor de escolas

públicas em Munique, Kerschensteiner desenvolveu a proposta educacional que divulgou

como Arbeitsschule, posteriormente traduzida como escola do trabalho.

Segundo Luis Sanches Sarto em Lá Educación Cívica, as preocupações de

Kerschensteiner sempre estiveram marcadas pela aversão aos tradicionais métodos de

ensino, às lembranças ruins do ensino mecanizado que recebeu quando aluno, o que

contribui para que o educador não acreditasse numa influencia favorável da cultura

livresca.

Page 26: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

15

Capítulo 1

A educação republicana: a instrução pública no Brasil e em São Paulo

Segundo Rosa Fátima de Souza (1998), a escola primária tornou-se uma das

principais divulgadoras dos valores republicanos. Prova disso são os grupos escolares;

fazia-se necessária sua exibição e solenização. Souza lembra que na criação dessa

modalidade de escola primária, no início de 1890, esta representava uma organização

pedagógica e administrativa complexa, concebida nos princípios da divisão do trabalho e

da racionalidade científica, resultando em um ensino mais uniforme, padronizado e

homogêneo. Sobre os grupos escolares:

Considerados o tipo de escola que melhor atendia às necessidades de

difusão do ensino primário, portanto o meio mais eficaz para a promoção

da educação popular, especialmente nos núcleos urbanos, os grupos

escolares consistiram em escolas modelares onde era ministrado o ensino

primário completo com um programa de ensino enriquecido e

enciclopédico utilizando os mais modernos métodos e processos

pedagógicos existentes na época. (SOUZA, 1998, p.16.)

Como conseqüência desse novo processo pedagógico, fazia-se necessária a

produção de um novo profissional, isto é, professores que dominassem as novos métodos

de ensino. A imposição de novos modelos educacionais se configurou em um saber fazer

docente e na fragmentação do trabalho pedagógico, de forma que cada professor ocupava

uma classe própria, e a cada horário, uma matéria.

A modalidade da escola primária implicou ainda uma nova concepção

arquitetônica. O grupo escolar como projeto da República que se pretendia, somado ao

método intuitivo e até mesmo ao tipo de arquitetura do edifício da escola normal,

traduzem o signo do progresso pretendido. Surge então a escola como lugar; o edifício-

escola como identidade do funcionamento do ensino. As exigências da pedagogia

moderna também culminaram na especialização dos espaços que passavam a exigir da

Page 27: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

16

escola: separação de sexos, organização das salas de aula em classes, bibliotecas, museus,

laboratórios, oficinas, ginásios, pátio para recreio, auditórios. Assim como uso de novos

materiais escolares, mobílias e materiais didáticos.

Tal modelo de organização do ensino primário foi adotado, segundo Souza, em

todos os estados do país, construindo o modelo preponderante de escola primária no

Brasil; consolidando assim uma concepção de ensino primário, de identidade pedagógica

e social, assim como a formação de um corpo docente especial: o magistério primário,

sobre o qual falaremos adiante.

O novo paradigma do ensino moderno demandava novos saberes, que

conseqüentemente implicavam em transformações curriculares. De acordo com o artigo

3º da Reforma Benjamim Constant (decreto de n. 981 de 8/11/1890), foram incorporadas

no ensino das escolas primárias do Distrito Federal matérias como: Lição de Cousas e

noções concretas de sciencias physicas e história natural; Instrucção moral e civica;

Desenho; Elementos de musica; Gymnastica e exercicios militares; Trabalhos manuaes

(para os meninos); Trabalhos de agulha (para as meninas); Noções praticas de agronomia.

Mesmo sendo válida apenas para a Capital Federal (Rio de Janeiro), a Reforma

Benjamim Constant é bastante emblemática de como estavam em circulação essas novas

concepções pedagógicas que marcam a instrução pública republicana.

Segundo Marta Carvalho (2000), a Reforma Caetano de Campos (1890) ditou o

modelo da escolar paulista, de forma que a montagem do sistema público de ensino

dependia dos novos métodos e processos do ensino intuitivo e, nesse sentido, a questão

da observação entre os professores e de suas práticas era fundamental.

Em um sistema pedagógico que valorizava o saber fazer, o ensino público paulista

se organizou com práticas de observação e dispositivos de visibilidade das atividades

escolares, por exemplo, através da inspeção escolar que compreendia anuários de ensino,

como registro das práticas escolares.

No início de 1920, uma crise no ensino paulista (assim também como nas

políticas sociais e na economia) fez com que o ensino primário fosse remodelado. Marta

Carvalho aponta em “Reformas da Instrução Pública” (2000) que, após isso, o modelo

escolar paulista se aliou fortemente à questão da erradicação do analfabetismo.

Page 28: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

17

O projeto de erradicar o analfabetismo tornou-se uma questão nacional e, com

isso, a abertura da escola às populações. Esses foram os objetivos da reforma Sampaio

Dória, que reduziu a escolarização de quatro para dois anos. Nessa fórmula, a escola

primária deveria ser:

1º - Instrumento de aquisição científica, como aprender a ler e a escrever;

2º - educação inicial dos sentidos, no desenho, no canto e nos jogos ; 3º-

Educação inicial da inteligência no estudo da análise, do calculo e nos

exercícios de logicidade; 4º - educação moral e cívica, no escotismo, ,

adaptado à nossa terra e no conhecimento de tradições e grandezas do

Brasil; 5º - Educação física inicial, pela ginástica, pelo escotismo e pelos

jogos. (ANTUNHA, 1976, apud CARVALHO, 2000, p. 228.)

O ensino intuitivo era para Sampaio Dória uma fórmula de sucesso na educação,

aliada aos objetivos de moralização e fortalecimento da raça, como propunha a Liga

Nacionalista de São Paulo, da qual era membro fundador e militante. O método de

intuição analítica defendido por Sampaio Dória invertia o programa criado por Caetano

de Campos, também baseado em concepções do ensino intuitivo, para o qual a formação

do cidadão republicano deveria estar baseada no ensino enciclopédico, fazendo assim

com que o aluno reproduzisse no percurso de sua aprendizagem o processo de evolução

do conhecimento humano.

No programa formulado por Sampaio Dória, a redefinição dava-se por meio da

extensão da escola popular, além do método de intuição analítica, ao qual creditava-se a

capacidade inesgotável de fazer conhecer, através do contato da inteligência com a

natureza e pelo exercício das faculdades perceptivas.

A fórmula política de um ensino básico condensado em dois anos era, por

isso, aposta pedagógica na eficácia do ‘método de intuição analítica’.

Segundo essa aposta dois anos de formação básica pareciam ser

suficientes para que o aluno exercitasse suas faculdades perceptivas,

Page 29: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

18

desenvolvendo a sua capacidade de conhecer. (CARVALHO, 2000, p.

299.)

O curso da Reforma foi alterada em função da exoneração de Sampaio Dória, em

1921. Estabelecida pelo decreto 1.750 de 8 de dezembro de 1920 e revogada em 1925, a

Reforma tinha em sua proposta original a unificação das instituições de formação de

professores pelo padrão das Escolas Normais Secundárias, de formação acentuadamente

pedagógica. O caráter de controle e a padronização dos procedimentos eram acentuados

com o reforço da inspeção escolar e a criação das Delegacias Regionais de Ensino, que

produziam informes técnicos.

Segundo Hilsdorf (1998), a Reforma Sampaio Dória foi marcada pela decisão de

manter na zona rural a escola primária de dois anos, como forma de garantir

minimamente sua extensão a todas as crianças; objetivando também nacionalizar o

imigrante. Por outro lado, o embasamento da pedagogia em critérios científicos, presentes

na nova Reforma, denotavam a associação da Pedagogia à Psicologia e sua dissociação

da moral e civismo.

Assim, apesar de abrangente, a Reforma Sampaio Dória implantou uma escola de

caráter controverso em função da alfabetização em dois anos. A política da escolarização

primária republicana correspondeu assim aos princípios progressistas, ideários de

correntes nacionalistas, defendidas por Sampaio Dória.

Circulação e apropriações do americanismo

A disputa entre diferentes padrões culturais em meados do Século XIX e início do

XX por meio das práticas, tecnologias e discursos, construíram a hegemonia cultural

americanista, criando assim, o imaginário de que os Estados Unidos ofertavam o mais

interessante modelo para a modernidade no Brasil. Partindo desse paradigma, segundo

CARVALHO, WARDE, MUNAKATA (2001), estruturava-se a esperança do “homem

novo”, aquele que seria, subjetivamente, necessário à modernidade.

Ao contrário de assertivas sobre o americanismo, nas quais o processo de

hegemonia dissolveu os múltiplos padrões culturais/educacionais concorrentes, o referido

Page 30: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

19

estudo, que tomamos aqui como base, adota a perspectiva de que esta hegemonia se

constrói abrangendo diferentes grupos sociais, sendo assim, necessário voltar a atenção

para os processos e suas complexidades, tais como os elementos incorporados por esses

grupos e suas constituições de padrões culturais.

Antes mesmo de se configurar como um projeto político, tomando proporções

geopolíticas a partir da Segunda Guerra Mundial, entram na construção do americanismo

estratégias, processos, práticas, sendo portanto, terreno fértil para essa perspectiva

investigativa, o campo da cultura. Com embasamento gramsciano em relação ao

americanismo nos padrões de cultura, explica-se que:

Gramsci viu no americanismo um acontecimento de mudança radical de

toda uma cultura cujo peso não poderia ser minimizado, posto que exercia

a função de cimentar as reformas econômicas em curso (diria ele, o nome

da reforma econômica é reforma intelectual e moral); de outro lado,

Gramsci viu nessa cultura a operação de recriação do sujeito; nos termos

da época, o americanismo estava produzindo um “homem novo”. A

eficácia do americanismo era devida, e muito, às condições históricas

diferençadas dos Estados Unidos que não precisavam carregar, como

camadas de chumbo, as velhas tradições européias (culturais,

demográficas, políticas, estatais etc.); devia-se, antes de mais nada, ao fato

de que o americanismo era a filosofia que se afirmava na ação; tão

poderosamente afirmada na ação que estava conseguindo produzir um

homem com uma nova conformação psicofísica; estava, assim, inventando

um “homem novo”. (CARVALHO, WARDE, MUNAKATA, 2001, pp.

176-177.)

O pragmatismo, filosofia que se vincula ao americanismo, conquistava, como

sugere a pesquisa, não pela palavra, mas na ação. Diante disso, seria ingenuidade relegar

o pragmatismo a uma posição menor, ligando-o ao senso comum quando comparado à

filosofia tradicional européia. Para Gramsci, o pragmatismo seria antes a única filosofia

cuja eficácia se media pelo grau de adesão que conquistava; no caso, o pragmatismo do

Page 31: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

20

americanismo produziu mudanças na cultura/modo de viver. Esse conjunto de novos

olhares, novas percepções, essa nova conformação psicofísica, são elementos que

contribuíram para a construção do “homem novo”.

Um dos elementos fundamentais para se pensar o americanismo como fenômeno

cultural analisado por CARVALHO, WARDE, MUNAKATA (2001), é “o americanismo

como processo educacional, ao mesmo tempo em que faz da educação o seu apanágio”.

(p. 177, grifos dos autores). Esse fenômeno é facilmente verificado nos mecanismos

discursivos dos impressos que aqui utilizamos como fontes, os quais abordaremos adiante

no Capítulo 3.

Com raízes na educação e essa como grande bandeira americana, desde o século

XIX:

(...) o americanismo instalou-se no Brasil, constituindo-se em cultura,

moldando formas de pensar, sentir e viver; tornando-se parâmetro de

progresso, felicidade, bem-estar, democracia, civilização; moldando as

esperanças em torno da cidade e da indústria. Redimensionando espaços e

acelerando os tempos. Plantando nos corações e nas mentes a silhueta do

“homem novo” – racional, administrado e industrioso. (CARVALHO,

WARDE, MUNAKATA, 2001, p. 177.)

Como pólo aglutinador e difusor de idéias e proposições de diversos âmbitos,

inclusive pedagógico, os Estados Unidos atraíram muitos profissionais da educação como,

por exemplo, Omer Buyse, um engenheiro belga dedicado aos estudos sobre trabalhos

manuais e problemáticas do ensino técnico-profissional. Ele havia participado da criação

da Universidade do Trabalho de Charleroi (Bélgica) em 1902, transformando-se em um

dos grandes difusores dos trabalhos manuais. Buyse escreveu a obra Méthodes

Américaines d’Éducation – générale et technique (1913), que obteve circulação mundial

entre os profissionais da educação, inclusive Anísio Teixeira, do Brail. Os estudos de

Buyse sobre diversas proposições pedagógicas foram largamente difundidos e

experimentados nos Estados Unidos, como veremos adiante ao falarmos do Sloyd

educacional.

Page 32: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

21

Método intuitivo e educação dos sentidos

No Brasil, intensificaram-se as discussões sobre a renovação dos programas do

ensino primário já no final do século XIX, momento em que segundo SOUZA (2008) a

educação popular ganhou um grande espaço nos debates políticos uma vez que, na

concepção republicana, a educação seria de fundamental importância para as

transformações de ordem política, econômica e social. A formação do cidadão precisaria

estar afinada com as mudanças da sociedade, que portanto, demandava um currículo com

conteúdos modernos.

No parecer elaborado por Rui Barbosa, em 1882, sobre a reforma no ensino

primário, ficam evidentes as apropriações de modelos internacionais de educação em

circulação. Fazendo grandes defesas do método intuitivo por se tratar de um método

moderno, composto por matérias cientificas, necessário à instrução primária. Assim, Rui

Barbosa propôs um programa de estudos que compreendia educação física, música e

canto, língua materna, desenho, rudimentos das ciências físicas e naturais, matemática,

geografia, história, rudimentos da economia política e cultura moral e cívica.

Com apropriações que efetuou do positivismo pedagógico e do evolucionismo

spenceriano, Rui enfatizou:

O que, portanto cumpre, é repudiar absolutamente o que existe, e

reorganizar inteiramente de novo o programa escolar, tendo por norma

esta lei suprema: conformá-lo com as exigências da evolução, observar a

ordem natural, que os atuais programas invertem. (BARBOSA, 1947, p.

61, apud SOUZA, 2008, p. 33.)

Nesse sentido, a instrução deveria seguir o processo de recapitulação do progresso

feito pela humanidade, comunicando a experiência acumulada pelas gerações anteriores.

Os conteúdos selecionados por Rui Barbosa eram aqueles que expressavam o caminho

percorrido pela sociedade, e deveriam ser ensinados seguindo as leis naturais, pois assim,

possibilitariam o desenvolvimento intelectuais, físico e moral dos alunos.

Page 33: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

22

O princípio positivo, que pretende estender à escola a instrução

enciclopédica, ampliá-la, como base, como estofo comum à educação da

inteligência humana, a todas as camadas sociais, é incomparavelmente

mais exequível do que os programas escolares praticados entre nós.

Insinuar pelos métodos objetivos (grifos do autor), no espírito da criança

as noções rudimentares da ciência da realidade, inocular-lhe na

inteligência o hábito de observar e experimentar, é infinitamente menos

árduo que martelar-lhe na cabeça por meio de noções abstratas e verbais, o

catecismo, a gramática e a tabuada. Num caso, trata-se apenas de

encaminhar suavemente a natureza; no outro, de contrariá-la sistemática e

brutalmente. (BARBOSA, 1947, p.59, apud SOUZA, 2008, p. 33).

Na reorganização escolar proposta por Rui Barbosa, métodos e conteúdos

estavam intrinsecamente ligados. Cada uma das matérias indicadas ao ensino primário

possuía uma razão de ser, de acordo com o desejo de modernização do ensino. A

educação do corpo, a difusão das noções científicas e dos saberes instrumentais

juntamente à educação moral e cívica compunham um amplo projeto civilizador que

pretendia a modernização do país.

Como apontado por SOUZA (2008), houve aceitação disseminada do método

intuitivo como um aspecto notável da modernização educacional. A circulação e

apropriação desse método, fizeram dele um verdadeiro signo da modernização do ensino.

A obra de Buyse sobre a qual nos referimos anteriormente, Méthodes Américaines

d’Éducation – générale et technique (1913), fez circular propostas como o ensino

intuitivo e educação dos sentidos, como o de Froebel:

Sabe-se que o princípio fundamental do sistema educativo de Froebel é a

formação integral da criança pela ação, seguindo um método progressivo,

que tende a conduzir os impulsos de sua atividade espontânea sob o

controle da vontade; e forma as faculdades orientando os sentidos. Essa

atividade se une aos dons;5 os dons servem para classificar as observações

5 Em Froebel, os brinquedos mentais eram os chamados dons e ocupações, materiais dos quais se servia a jardineira para educar a criança. O primeiro dom era uma caixinha, com seis bolas – três de cores primárias

Page 34: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

23

das crianças que se reportam à forma e à aparência das coisas; eles

permitem aos alunos construir, aplicar os conhecimentos para a realização

de um fim preciso e os colocam desde sua tenra idade em contato com a

vida exterior. (BUYSE, 1913, p. 49.)6

Buyse descreve em sua obra a ordem e os elementos usados em cada etapa no

método froebeliano para educar os sentidos. Cada uma das etapas, assim como a ordem

dos itens em cada uma delas, possuem fundamentos em Pestalozzi e Froebel:

A. Os sólidos:

1. contrução com blocos

2. modelagem em argila

3. cartonagem

B. As superfícies

1.dobradura em papel, decupagem e colagem

2. montagem de prateleira

3. as cores e suas aplicações

C. As linhas

1. colocação de palitos

2. trançado de papel

4. bordado

5. desenho

e três de cores secundárias –, que servia para dar à criança “idéias de forma, posição, movimento, direção, cor, peso, densidade e volume”. O segundo dom era formado por uma coleção de sólidos geométricos – uma esfera, um cubo, um cilindro e um cone – que introduziam a “análise e comparação das formas”. Os terceiro, o quarto, o quinto e o sexto dom eram cubos de madeira divididos gradualmente e de diversos modos, “destinadosa satisfazer o desejo natural da criança de conhecer o interior das coisas, de ver o que está dentro” (CHAMON, 2005, p. 261 ). 6 On sait que le príncipe fondamental du système éducatif de Froebel est la formation intégrale du jeune enfant par l’action, reglée suivant une méthode progressive, qui tend à ramener les impusions de son activité spontanée sous le contrôle de la volonté; il forme les facultés em dirigeant la vie de sens. Cette activité se rattache à des dons; les dons servent à classer les observations des enfants qui se rapporttent à la forme et à l’apparence des choses; ils permettent à l’élève de construire, d’appliquer ses connaisances à la réalisation d’un but précis et le mettent, dès sa tendre jeunesse, en contact avec la vie extérieure.

Page 35: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

24

D. O ponto

1. jogo de pedras/pérolas [jeu de perles]

2. arranjos

3. perfuragem de papel (BUYSE, 1913, p. 50).

Seguindo a doutrina froebeliana, cada grupo de trabalho de alunos teria um papel

definido. Os blocos e a cartonagem são responsáveis pelos talentos construtivos e a

imaginação. A dobradura e o recorte de papel estimulam as faculdades da invenção e

preparam o aluno para traçar com pincel ou lápis o produto da memória e da imaginação.

E a tendência artística assim como formação do gosto aparecem nos arranjos, no desenho

e nos jogos.

Page 36: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

25

Capítulo 2

Trabalhos manuais como disciplina escolar

Os trabalhos manuais foram apropriados como disciplina escolar, segundo consta

na bibliografia consultada e nos documentos, em países como Alemanha, Suécia,

Argentina, Estados Unidos, Bélgica, França e Brasil. Na Alemanha, Kerschensteiner

introduziu, em 1906, o ensino do trabalho como disciplina no ensino primário, como

meio de ministrar a formação cívica (SANTOS, 2009, p. 22).

Nos Estados Unidos, o desenho e outras atividades manuais foram introduzidas no

currículo das escolas elementares no final do século XIX, seguindo duas vias opostas; a

via froebeliana, e a via técnica, de origem russa, ou “sistema Della Vos”. A primeira, a

via froebeliana, se inicia no jardim da infância, prossegue na escola primária e termina

com o sloyd (ou slöjd) nas classes superiores das escolas primárias. Este método de

trabalho manual é também conhecido como “sistema pedagógico”. Já no caso do sistema

Della Vos, partia da escola técnica superior para a escola secundaria e para as classes

superiores das escolas primárias, e aí então, disputando terreno com o sloyd.

(MARQUES, 2003).

Victor Della Vos introduziu no programa da Escola Técnica Imperial de Moscou,

em 1868, instruções e métodos para o emprego de ferramentas em trabalhos com ferro e

madeira. Em 1876, foram expostos na Filadélfia (EUA) alguns trabalhos de seus alunos

voltados exclusivamente para a formação profissional; o método que preconizou foi

introduzido e aplicado nos institutos técnicos superiores e nas escolas secundárias norte-

americanas (MARQUES, 2003).

Sloyd educacional

O chamado Slyod educacional foi implantado em 1885 por uma educadora norte-

americana, Pauline Agassiz Shaw, em North Bennet Street School, situada em Boston,

em uma região de imigrantes pobres. A direção dessa escola foi atribuída ao sueco Gustaf

Larson, ex-aluno da Escola Normal de Naäs (Suécia), criada por Otto Salomon; escola

Page 37: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

26

essa fundamentada nos princípios de Froebel e de Coegnus. (NORTH BENNET ST.

SCHOOL, 2011). De acordo com Marques (2003), esta e outras escolas americanas

destinavam-se, inicialmente, a preparar crianças e trabalhadores manuais para que se

tornassem economicamente auto-suficientes ao saírem da escola primária. Também era

finalidade dessas escolas promover o ensino moral às classes indigentes, o que era feito

com base na “teoria psicológica da educação pelos trabalhos manuais”, compreensão

segundo a qual:

(...) todo movimento consciente tem sua origem numa excitação das

células motoras do cérebro. O pensamento sem ação pode desenvolver a

imaginação, mas deixa inculta a força de vontade. Esta não pode se

desenvolver senão pela ação. Todo movimento muscular repercute nas

células do cérebro pelas sensações. (...) Daí resulta que, para desenvolver a

região motriz total do cérebro, faz-se necessário multiplicar os exercícios

amplos e variados , e regulá-los de forma a possibilitar o pensamento e a

fortalecer a vontade. Resulta também que se o movimento se torna

habitual, ele se faz sem reflexão cessando o desenvolvimento das células

motrizes; desde então, ele não tem valor educativo. É somente no primeiro

período de excitação que a ação dos trabalhos manuais é eficaz. Exercícios

além do estado educativo podem se tornar meios de preparo para trabalhos

mais avançados de ordem profissional, mas eles não estão incluídos entre

os tipos que contribuem à formação geral. (BUYSE, 1909, apud

MARQUES, 2003, pp. 74-75.)

Essa assertiva de cunho científico (no caso, fisiológico) que justificava pelas

reações mentais e pela progressão a ser provocada, estimulou em alguns educadores dos

Estados Unidos a promoção de diversos trabalhos manuais – costura, trabalho em

madeira, modelagem, recorte em papel, entre outros – tanto para meninas quanto para

meninos, nas escolas primária e secundárias.

Nos Estados Unidos, o sistema pedagógico representado pelo sloyd foi colocado

em confronto contra o sistema técnico Della Vos, de origem russa, sendo que o primeiro

Page 38: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

27

foi considerado uma disciplina, tal como matemática, ciências, desenho, etc, e o segundo

limitava-se ao emprego de ferramentas para a confecção de um objeto. Os fins podem ser

parecidos, as finalidades, não. Trabalhos manuais implicam técnicas, no entanto nem

todas as técnicas implicam finalidades educativas.

Segundo Gustav Larsson – ex-aluno da Escola Normal Sueca criada por Salomon

e diretor da North Bennet Street School, de Boston – a palavra sloyd se origina da raiz

teotônica “slah”, da qual nasce a expressão “slay” (em inglês, matar com um sopro’)’,

“Schchlag” (sopro, em alemão) e “sla” (derrubar em sueco), o adjetivo sueco “slog”

significa “habilidoso”, “destro” daí seu substantivo “slöjd” ou “sloyd” (MARQUES,

2003, p. 76.) De acordo com MARQUES (2003), os princípios de sloyd são os seguintes:

1) Os professores do sloyd deveriam ser homens do ensino e não artesãos.

2) O ensino deveria ser sistematicamente progressivo, e executando

certas demonstrações em classe, tanto quanto possível, individual.

3) O trabalho deveria ser escolhido para possibilitar o desenvolvimento

físico através de movimentos livres e vigorosos .

4) Os resultados deveriam representar o esforço pessoal do aluno, sem

introduzir, de início, nenhuma divisão de trabalho, assim como

nenhum emprego de máquinas-ferramentas.

5) Os excercícios deveriam ser organizados na progressão do fácil ao

difícil, escolhendo-se os objetos atraentes e úteis aos alunos

6) Os trabalhos não deveriam se limitar somente a execução de objetos

construídos com a ajuda de instrumentos de medida; devendo ser feitos

à mão livre, para exercitar particularmente o senso de formas e

proporções, pela vista e pelo toque.

7) Atribuía-se uma importância especial ao asseio, à precisão e ao

acabamento, com a finalidade de inspirar maior amor ao belo trabalho

e desenvolver o espírito de apreciação independente. (p. 76.)

A escolha dos modelos a serem trabalhados era extremamente importante no

sloyd educacional, uma vez que eles deveriam cumprir requisitos como: inspirar os

Page 39: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

28

interesses dos alunos para que mobilizassem o esforço pessoal e todas as faculdades

durante a execução da atividade. Para isso, os modelos deveriam ser adaptáveis às

variáveis da capacidade de maneira favorável à manutenção dos princípios do sloyd , tais

como a dificuldade crescente e progressiva. O desenho era uma etapa de grande

importância para o sloyd educacional por expressar o pensamento e intenções do aluno.

“(...) Apesar de não representar senão um esboço, ele fala claramente ao

espírito e ensina, por experiência, que o valor do trabalho depende da

exatidão e do cuidado em se determinar suas formas e dimensões. Este

controle permanece e a responsabilidade resultante para a criança, tem

grande influencia sobre sua formação e habilitam incontestavelmente a

reflexão e o esforço pessoal.” (BUYSE, 1909, apud MARQUES, 2003, P.

78.)

Segundo Marques (2003), a plasticidade do sloyd permitiu a existência de

muitos tipos de apropriação desse modelo educativo, assim como muitos foram seus

divulgadores. Em contrapartida, muitos eram também os críticos do sloyd, para o quais

seus modelos produzidos pela cultura sueca eram pouco variados e não apresentavam

problemas originais.

Os conteúdos das disciplinas de trabalhos manuais e de desenho

No Brasil, embora o ensino de desenho já existisse nos programas do ensino

primário desde a década de 1850, essa disciplina vinha sofrendo um processo de reforma

por parte das idéias de modernização pedagógica em circulação. Em 1905, pelo Decreto n.

1281, de 24 de abril, o governo de São Paulo aprovou e mandou “observar o programma

de ensino para as escholas modelo e para os grupos escholares”, estabelecendo os

conteúdos das disciplinas Leitura; Linguagem; Calligraphia; Arithmetica; Geographia (e

Cosmographia); Historia do Brasil; Sciencias Physicas e Naturaes – Hygiene; Instruccção

Cívica e Moral; Gymnastica e Exercicios Militares; Musica; Desenho; Geometria;

Trabalho Manual; Modelagem (Revista de Ensino, Anno IV, n. 2, 1905, pp. 634-644).

Page 40: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

29

Em relação ao que aqui interessa, isto é, Desenho e Trabalho Manual, os conteúdos são

os seguintes:

Primeiro Anno

Desenho

Desenhar objectos faceis no quadro-negro e nas ardósias.

Desenho de objectos simples, plantas e animaes sobre papel, a lápis de

diversas côres.

Desenho e dictado e original.

(...)

Trabalho manual

Para ambos os sexos.

Dobradura de papel. Fazer com o auxilio de papel objectos usuaes, como:

chapéus, caixinhas, etc.

Tecidos de papel. Alinhavos em cartão, á vista de modelos apropriados e

graduados.

Modelagem: construcção da esphera, do cubo e do cylindro, etc.

Acrescce para o sexo feminino: posição das mãos e modo de segurar a

agulha. Crochet simples.

Segundo Anno

Desenho

Desenhar, a lapis, grupos de objectos. Desenho de animaes e plantas,

copiado do natural. Desenhos decorativos, dictados e originaes.

(...)

Trabalho Manual

Para ambos os sexos.

Alinhavos em carta executados a côres sobre modelos diversos,

representando figuras de animaes, flôres, etc.

Modelagem

Figuras geometricas e figuras usuaes: folhas, fructos, etc.

Page 41: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

30

Acresce para o sexo feminino: – Crochet. Pontos, alinhavos, pospontos,

pospontos no claro, pontos fechados e abertos, pontos de remate.

Preparação e modo de franzir. Franzidos duplos.

Terceiro Anno

Desenho

Desenho a lapis: Paizagens simples. Reprodução de modelos geométricos

em diversas posições. Desenho ditado e original.

(...)

Trabalho Manual

Para o sexo masculino

Modelagem – Figuras geométricas e objectos usuaes como: tinteiros,

garrafas, etc.

Cartonagem – Construcção de sólidos geométricos, caixinhas, etc.

Para o sexo feminino;

Crochet, pontos, franzidos, serziduras, prégas, bainhas, casear e pregar

botões, colchetes, etc.

Remendos diversos. Pontos russos e de ornamento. Pontos de marca,

lettras e nomes.

Quarto Anno

Desenho

Os mesmos exercicios dos annos precedentes. Desenho de animaes,

plantas, folhas, flores, paizagens, etc. Reproducção de grupos de sólidos

geométricos.

(...)

Trabalho manual

Para o sexo masculino.

Modelagem: Figuras geométricas e objetos usuaes. Cópia de modelos

faceis, como: casas, paizagens, mappas geographicos parciaes em relevo.

Page 42: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

31

Carpintaria: Objectos usuaes como: corta-papel, cunhas, esquadros, reguas,

cantoneiras, estantes simples, etc.

Para o sexo feminino:

Pontos russos e de ornamentos. Pontos de marca, letras e nomes. Camisas,

aventaes, lenços, toalhas, babadouros, etc., para applicação de estudos

anteriores; sergidos, remendos, etc. (Revista de Ensino, Anno IV, n. 2,

1905, pp. 636-644.)

Em artigo na Revista de Ensino, de 1907, sobre o ensino de Desenho,

encontramos um trecho que trata não propriamente das finalidades teóricas da disciplina

desenho, mas sim daquilo que é sugerido em sua prática; como uma atividade menos

pesarosa que outras, ligada a idéia de “recompensa”, de “desejo”. Ao mesmo tempo,

adverte que para isso, se faz necessária a tutoria de um profissional que não apenas saiba

sobre o “belo”, mas sim, que o faça, podendo despertar no aluno o gosto pelas artes.

A iniciação nas bellezas da Natureza e da Arte, será sempre apresentada ás

creanças como uma recompensa ao trabalho, como um repouso depois de

tarefas severas ou depois das demasias do espírito; deve o professor agir

de modo que ella seja desejada e reclamada por ellas. (...)

– Não é pela contemplação do medíocre que o gosto se desenvolve; mas,

sim, pela contemplação do que ha de mais perfeito.

Tal diz Goethe [a] Eckermann. (Revista de Ensino, Anno VI, n. 3. 1907, p.

27.)

Page 43: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

32

Capítulo 3

Trabalhos manuais, segundo os periódicos

Uma das primeiras revistas pedagógicas editadas em São Paulo foi,

segundo Catani (2003), foi A Eschola Publica, criado em 1893, num momento em que se

verificavam transformações no panorama educacional do estado, das quais o periódico

pretendia ser um porta-voz. Pode-se dizer que essa revista foi uma espécie de antecessora

de Revista de Ensino, que apareceria em 1902, contando com a participação muitos dos

colaboradores do antigo periódico.

A Revista de Ensino

A Revista de Ensino resultou da iniciativa de um grupo de professores e

profissionais da educação que haviam também criado a entidade chamada “Associação

Beneficente do Professorado Público de São Paulo”, fundada em 27 de janeiro de 1901.

O intuito da entidade era organizar membros do magistério público do Estado. À frente

da Associação, em seu primeiro momento, estiveram: Fernando M. Bonilha Júnior como

presidente, Joaquim Luiz de Brito, como tesoureiro, e Gabriel Ortiz como primeiro

secretário. Como definiram os estatutos da agremiação,

A Associação Beneficente do Professorado Publico de S. Paulo é a reunião

de todos os professores publicos, de um e de outro sexo, que adherirem

aos presentes estatutos, e terá por fim, não só proporcionar beneficios a

cada um de seus membros, mas tambem promover a elevação moral e

intelectual do professorado publico do Estado, com a adopção de todas as

medidas tendentes a melhorar a condição da classe, tendo sua sede na

capital de S. Paulo. (Estatutos da Associação Beneficente do Professorado

Publico do Estado de São Paulo, Cap. I, Art. 1º. Revista de Ensino, n. 1,

1902, p. 117.)

Page 44: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

33

Sobre os professores integrantes da Associação e responsáveis pela Revista,

verifica-se o aparecimento constante dos mesmos nomes durante grande parte da

existência dessa publicação, como João Lourenço e Oscar Thompsom sempre

encabeçando. São personalidades que também vieram a ocupar cargos na Directoria

Geral de Ensino e, não por acaso, a Revista de Ensino, desde o primeiro número, ostentou

como subtítulo os dizeres “Publicação Bi-mensal, subsidiada pelo governo do estado”. A

Revista encerraria suas atividades em 1918.

O Annuario do Ensino do Estado de São Paulo

O Annuario do Ensino do Estado de São Paulo consistiu em uma publicação

organizada pela Inspectoria Geral do Ensino por ordem do Governo do Estado. A

publicação começou em 1907 e foi até 1937. Na primeira parte do Annuario de 1907,

intitulada Retrospecto histórico, apresenta-se um retrospecto da legislação escolar de

1835 até 1906, bastante criticada, e a estrutura e o funcionamento, à época, da Inspectoria

Geral do Ensino Publico.7

Com mais de 400 páginas, nesse primeiro volume do Annuario encontram-se

descrições breves sobre a Escola Normal, os grupos escolares, escolas reunidas da Capital

e do Interior, lista das escolas isoladas, escolas municipais, dados estatísticos,

obrigatoriedade do ensino, ensino privado, escolas estrangeiras, Consolidação das leis do

Ensino, Exposições escolares e festas escolares, etc., além de uma relação com os nomes

dos professores que atuam nessas instituições. O Annuario de 1907 dividiu-se em três

partes:

7 Criada pela lei n. 520, em 26 de agosto de 1897, a Inspectoria Geral do Ensino Publico suprimiu o Conselho Superior de Instrucção Publica e as Inspectorias Districtaes. A Inspectoria Geral do Ensino Publico era constituída por um inspector geral e dez inspectores auxiliares, com sede na Capital, tendo como principal incumbência a organização do ensino em todo o Estado. (Relatório apresentado ao Exmo. Snr. Secretario dos Negócios do Interior pelo professor João Lourenço Rodrigues, Inspector Geral do Ensino, 1907-1908, Brasil- S. Paulo. Annuario do Ensino do Estado de São Paulo, 1907-1908, pp. 5-7.)

Page 45: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

34

I Parte – Resenha histórica – Relatório do Inspector Geral

II Parte – Estabelecimentos do Estado.

III Parte – Estabelecimentos equiparados e subvencionados. – Ensino

privado. – Livros didacticos. – Relatório da Commissão Revisora. –

Mobília escolar. – Edificações escolares. – Despesa com a instrucção

publica. – Horários. – Conclusão. – Índice.

Uma das finalidades apontadas é que esta publicação consistiu em ser uma

resposta ou, até mesmo, uma satisfação aos estrangeiros, como pode ser elucidado nesse

trecho:

São freqüentes em S. Paulo as visitas de extrangeiros illustres. Entre as

primeiras cousas que se lhes mostram estão os estabelecimentos de

ensino publico, os quaes têm merecido de muitos delles largos encômios.

(Annuario do Ensino do Estado de São Paulo, 1907-1908, p. V.)

Nesse primeiro volume, as propostas dos Annurios foram explicitadas em três

tópicos:

a) O Annuario abre grande espaço á estatística escolar do Estado. (...)

b) [Secção] destinada aos professores, trata da methodologia e

processos didacticos. (...)

c) comprehende trabalhos de natureza diversa, e assumptos de

colaboração, de interesse para a educação popular. (Annuario do

Ensino do Estado de São Paulo, 1907-1908, pp. V-VI.)

Assim, segundo consta no Annuario, a sua finalidade era divulgar as atividades

escolares, sua necessidades de provimento. Também almejava ser uma fonte segura para

que o Congresso estabeleça uma melhor comunicação com a Secretaria do Interior e com

a Inspectoria Geral do Ensino. Além disso, a demanda por dados oficiais se justificava

pelas demandas internacionais, como por exemplo:

Page 46: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

35

Em recente publicação feita em Montevidéo pelo Dr. Sebastião B.

Rodriguez e intitulada Contribuicion al desenvolvimento de la hygiene

escolar, deparou-se-nos o seguinte trecho que proclama de modo

decisivo a necessidade de uma obra de divulgação como esta: ‘lamento

no poder disponer en este momento de los dados oficiales que solicité en

tiempo oportuno al pais vecino, (Brasil) para agregarlos a esta memoria.

(Annuario do Ensino do Estado de São Paulo, 1907-1908, p. VI.)

Segundo a comissão de redação8, a divulgação dos progressos em matéria de

educação significava o cumprimento do dever cívico e, também, de acompanhar o fluxo

que de publicações desta ordem em vigência na América do Sul. Em relatório que integra

o Annuario, João Lourenço afirmou que ao reunir-se com diretores de escolas em 1907,

já ressaltava a pertinência da edição de uma publicação dessa natureza, que auxiliaria na

uniformização do ensino, com informações sobre técnicas e medos de ensino. (Relatório

apresentado ao Exmo. Snr. Secretario dos Negocios do Interior pelo professor João

Lourenço Rodrigues, Inspector Geral do Ensino. Annuario do Ensino do Estado de São

Paulo. 1907-1908.)

No referido relatório do inspetor, assim como nos textos da Revista de Ensino,

estão sendo discutidas de maneira semelhante as questões relativas aos problemas

encontrados nas escolas assim como soluções e novas proposições em voga na época, o

que compreensivelmente acontecia devido ao fato de que muitos dos envolvidos no

Annuario eram também profissionais que haviam atuado na Revista de Ensino. Esses

profissionais foram gradativamente incorporando-se às atividades da Inspetoria de Ensino

especialmente após a perda de subvenção destinada à Revista, em 1905, quando a

Associação precisou concentrar esforços para sua sobrevivência. Tempos depois, como

anuncia o Annuario de 1911-1912, a Revista, passou a se considerado “um complemento

do Annuario”, para dar “notícia dos trabalhos pedagógicos que mais se recomendam,

oferecendo, em resumo ou tradução, as noções mais aproveitáveis, as lições mais dignas

8 A Comissão de Redação do Annuario de Ensino do Estado de São Paulo 1907-1908 era composta por: João Lourenço Rodrigues; Ramon Roca Dordal; René Barreto; José Carneiro da Silva.

Page 47: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

36

de imitar da didática européia ou americana.” (Annuario do Ensino do Estado de São

Paulo, 1911-1912, p. 6.)

A ligação, ou subordinação, da Associação Beneficente do Professorado Público à

Diretoria Geral, e suas conseqüências se refletindo no mesmo movimento para com a

Revista de Ensino ao Annuario, é uma trama com maior complexidade do que foi aqui

exposto, porém, suficiente para a compreensão das publicações escolhidas como fontes

dessa pesquisa.

“Para desenvolver uma habilidade múltipla, a destreza geral desejada”

Apesar das informações sobre os trabalhos manuais não serem tão vastas, nos

Annuarios e na Revista de Ensino, se comparadas as outras disciplinas e assuntos

pedagógicos abordados, ainda assim, é possível por meio desse documentos compreender

melhor suas motivações, o porque e como se deu essa disciplina, e claro, o fato de ser

menos mencionada e discutida que outras disciplinas – o que é também um indicador a

ser pensado.

No Annuario de 1910-1911 o inspetor escolar Maurício de Camargo escreve

algumas considerações sobre os trabalhos manuais fazendo diversas menções ao modelo

de organização escolar norte-americana:

Proseguindo em nossas reflexões, não podemos deixar de consignar a

necessidade de remodelar o ensino desse ramo de nosso programma

escolar, mais ou menos de accôrdo com o que se faz nos Estados Unidos,

fonte fecunda de orientação e de ensinamentos para nossa organisação

escolar. (Annuario do Ensino do Estado de São Paulo, 1910-1911, p.140)

Como já vimos anteriormente, o modelo norte-americano era um grande

motivador dos profissionais da educação em função das novas idéias que representavam

um ideal de progresso a ser alcançado. Nesse sentido, fica claro, com o seguinte documento,

Page 48: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

37

o desejo de conduzir a organização dos trabalhos manuais em São Paulo, com base em tais

moldes:

Também ali [Estados Unidos], há vinte annos passados, não existia nas

escolas bem definida forma de trabalhos manuaes; é natural que entre

nos ainda se dê o mesmo. (...)

Hoje, porém, que as escolas americanas offerecem modelos tão perfeitos

para uma boa organisação, sob o ponto de vista de que nos occupamos,

embora os exercícios ali adoptados variem de cidade a cidade, por não

haver para ellas uma regulamentação central, é tempo de procurarmos

melhorar este ensino, trasladando para nosso meio quanto houver de

aproveitável, nos differentes planos de organisação. (Annuario do

Ensino do Estado de São Paulo, 1910-1911, p. 140.)

Este é um trecho bastante emblemático da aspiração que representava o modelo

norte-americano de ensino de trabalhos manuais desejado em São Paulo. A menção ao

curto tempo em que houve um grande progresso educacional em outros paises, em

especial, Estados Unidos, denota o signo de progresso que urgia naquele início de século

XX.

A possibilidade de aliar ao ensino uma atividade de caráter prático e que ao

mesmo tempo educaria o corpo, sentidos, atenção, interesse se apresentou especialmente

nos Annuarios nos anos de 1910, 1911 e 1913. Eram escritos extensos artigos sobre os

benefícios dos trabalhos manuais: “Si o trabalho manual (...) é um dos pontos que une a

escola à vida pratica, por que motivo desprezar-se a opportunidade que offerece este

exercício (...)?” (Annuario do Ensino do Estado de São Paulo, 1910-1911, p. 138.)

Na edição de 1913, o Annuario menciona os progressos trazidos pelos trabalhos

manuais e cita Salomon, um dos promotores do trabalho manual na Suécia, pólo

divulgador do sloyd:

Nos paizes em que se comprehende instrucção como educação são

enormes os progressos realisados pelos trabalhos manuaes.

Page 49: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

38

O exemplo desses paizes estimula-nos a aperfeiçoar continuamente

nossa organisação escolar.

Salomon, o intrépido promotor do trabalho manual pedagógico slojd na

Suécia diz, a respeito da marcenaria escolar:

“A marcenaria é o gênero de occupação que atinge de modo mais

completo o fim pedagógico a que se propõe; presta-se á disposição do

fácil ao difícil, do simples ao composto. (...)” (Annuario do Ensino do

Estado de São Paulo, 1913, pp. XLVII-XLVIII.)

Em defesa dos trabalhos manuais, o Annuario de 1913 evoca experiências

estrangeiras mencionando Estados Unidos e Suécia. Entre as virtudes pedagógicas do

trabalho manual são ressaltados os benefícios do ensino da marcenaria. A vantagem desse

ensino estaria na sua capacidade de atingir suas finalidades pedagógicas da maneira mais

completa, proporcionando a compreensão do simples ao complexo em uma única

atividade manual. Segue a citação de Salomon:

“A experiencia tem provado que o uso deste trabalho fornece, no ponto

de vista educativo, resultados que outros generos de trabalho nunca

poderão produzir na mesma relação.

Só a marcenaria dá essa destreza geral que deve ser adquirida na escola

primaria. O grande número de instrumentos empregados, a immensa

variedade de movimentos a executar, servem mais em qualquer outra

ocupação, para desenvolver uma habilidade múltipla, a destreza geral

desejada”. (Annuario do Ensino do Estado de São Paulo, 1913, p.

XLVIII.)

No documento acima há muitos elementos que possuem suas raízes no ensino

intuitivo. Sobre a questão da destreza manual e o gosto pelas ocupações, lembramos que

Froebel estabeleceu regras a se seguido na educação da primeira infância, observando

que o sistema escolar deve exercitar-se em manifestações externas e materiais, o que se

aplicava aos trabalhos manuais. As concepções de Froebel sobre os trabalhos manuais

são citadas no Annuario de 1913 como exemplo a ser seguido pelas escolas:

Page 50: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

39

O gênio pedagógico Froebel preconisa os trabalhos manuaes em papel,

cartão, madeira, etc., enunciando este principio:“O que a creança percebe

intuitivamente deve também poder fazel-o manualmente”. (Annuario do

Ensino do Estado de São Paulo, 1913, p. XLVIII.)

Formação do caráter, forças da intelligencia e qualidades moraes

Fala-se nos Annuarios da importância do trabalho manual como forma de

introdução à vida prática e da sua possível importância por ministrar um ofício ao qual,

futuramente, o aluno precise recorrer.

Si o trabalho manual (...) é um dos pontos que une a escola à vida pratica,

por que motivo desprezar-se a opportunidade que offerece este exercício,

para se incutir no menino o gosto pelas profissões manuaes, a que elle,

talvez um dia tenha que recorrer, na lucta pela vida? (Annuario do

Ensino do Estado de São Paulo, 1910-1911, p.138)

Na assertiva acima notamos que ensino do trabalho manual pode ser útil em caso

de necessidade, mas, acima disso, reforça-se a importância de incutir no indivíduo a

moral do gosto pelo trabalho:

O alto valor educativo dos trabalhos manuaes, nas escolas, resulta, pois,

do seu poderoso concurso à formação de caráter, estimulando as forças

da intelligencia e iniciando as qualidades moraes. (Annuario do Ensino

do Estado de São Paulo, 1913, p. XLIX.)

Segundo o texto publicado no Annuario de 1910-1911, as atividades manuais

deveriam ser praticadas por todas as crianças, com algumas diferenças entre as atividades

direcionadas às meninas e aos meninos (sobre as quais falaremos adiante), transmitindo

gosto pelo trabalho para crianças de todas as classes sociais:

Page 51: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

40

(...) o trabalho manual deve ser estabelecido de forma a ser útil ás

creanças, quer sejam pobres ou ricas. Aquellas levarão da escola para o

lar os rudimentos necessários ao inicio de uma profissão que, talvez um

dia, tenham de adoptar, conforme as exigências de uma posição precária;

estas, as favorecidas da sorte, encontrarão – quem sabe? – nos prestimos

com que as dotou a humilde professora publica, momentos de felicidade

no trabalho, que lhes servirá de entretenimento, após os gozos que lhes

facilita a fortuna, enquanto propicia. (Annuario do Ensino do Estado de

São Paulo, 1910-1911, p. 140.)

Quando se fala que o trabalho manual deve ser executado tanto pelas crianças

pobres quanto pelas ricas, justifica-se dizendo que as crianças pobres precisarão de tais

rudimentos “conforme as exigências de uma posição precária”, conquanto as

“favorecidas de sorte (...) encontrarão momentos de felicidade no trabalho”. Segundo

esse excerto, o trabalho manual justifica-se por proporcionar desde sobrevivência até

lazer, respeito e satisfação pelo trabalho.

Em outro argumento no Annuario de 1910-1911, o autor do documento em

questão diz que os trabalhos manuais devem ser executados tanto por meninos quanto por

meninas, fossem pobres ou ricos, pois estas atividades ajudariam a tornar concretas as

teorias. Na concepção pedagógica dos trabalhos manuais, a interdisciplinaridade

pretendida por esta atividade, é – como já vimos ao falarmos do sloyd – um dos

argumentos mais utilizados por seus defensores. Ou seja, em suas finalidades, a atividade

manual aparece também como auxiliar de outras disciplinas. Como afirma o texto

seguinte:

Entendo que os trabalhos manuaes, para meninos ou meninas, devem ser

dirigidos, orientados por professores que bem conheçam esse mister;

assim poderão elles fazer a creança concretisar quanto aprender em suas

lições theoricas – de geometria, pelo emprego de linhas, superfícies e

volumes; de história, pela reprodução de artefactos que com ella se

ralacionem; de linguagem, pela manifestação do pensamento; de botânica,

Page 52: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

41

zoologia etc., modelando ou desenhando animaes, fructas, folhas etc.

(Annuario do Ensino do Estado de São Paulo, 1910-1911, p. 139.)

Finalidades como o desenvolvimento da destreza manual, treino para uma visão

precisa e apurada são, como se pode notar nos documentos, argumentos apresentados no

início dos textos, assim como possivelmente um dos mais fortes argumentos seja a gama

de disciplinas que tais finalidades – da atividade manual – contemplam; adiante, os

argumentos assumem um tom moralizante ao apontar também para a finalidade edificante

e virtuosa dos trabalhos manuais, que cultiva

(...) o amor ao trabalho, o espírito de iniciativa e o sentimento de

responsabilidade individual. O que se vae fazer é tornar o ensino, quanto

possível, prático, e em harmonia com as necessidades da vida actual, tendo

por alvo a actividade da creança: habilidade manual e persistência no

trabalho. (...) (Annuario do Ensino do Estado de São Paulo, 1913, p.

XLIX.)

Na Revista de Ensino de 1909, em um artigo assinado por Bruno Zwarg, além de

uma defesa dos trabalhos manuais tendo como justificativa os muitos adeptos cientistas e

sua maior difusão no Estado, mas, principalmente, pelos benefícios ao intelecto,

justificativa extremamente presente na defesa desse tipo de ensino:

É, pois, sabido hoje, que o trabalho technico é um dos factôres

fundamentaes para o desenvolvimento intellectual, como o é o ensino

histórico da cultura; elle faz parte das Artes e o estudo destas deve

caminhar a par do grande desenvolvimento das Sciencias e Letras.

Devemos pois tractar de elevar nas escolas, mais alto ainda, o estudo dos

trabalhos manuaes. (Revista de Ensino, 1909, p. 22.)

De acordo com tal artigo, o êxito na cultura intelectual seria dependente da

consolidação do ensino de trabalhos manuais, reforçando também a idéia não só do

desenvolvimento mental, mas também o melhoramento, a vitalidade dos músculos, o

Page 53: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

42

adestramento das mãos, a educação da vista, a obrigação do pensamento conforme as

práticas demandadas; práticas que apenas nessa disciplina seriam proporcionadas.

Como se pode notar em outras fontes, esse artigo também ressalta a questão moral

da atividade manual, que pretende despertar no aluno o gosto pelo trabalho, afastando-o

das “idéias pueris, e vae lhe educando o espírito ainda infantil” (Revista de Ensino, 1909,

p. 22), sendo indicado para crianças de temperamento engenhoso. Além disso, a

insistência na questão do gosto pelo trabalho é, como já vimos anteriormente, uma

característica de um país recém-saído de uma monarquia escravocrata e de incipiente

projeto republicano, no qual não é bem vinda a presença dos ditos malandros, vadios e

desocupados, sendo os projetos escolares considerados responsáveis, de certa forma, pela

difusão da cultura do amor ao trabalho.

Separação de gêneros

Sobre a distinção de trabalhos manuais para meninos e meninas referente ao

período pesquisado, podemos observar que nos relatórios dos Annuarios a maioria das

atividades separava-se em femininas e masculinas.

Em uma das primeiras propostas de Kerschensteiner constava a iniciação de

ensino culinário para as meninas e trabalhos manuais em metal e madeira para os

meninos. Já no caso americano a “teoria psicológica da educação pelos trabalhos

manuais” – segundo a qual imaginação e vontade podem apenas ser desenvolvidas pelos

movimentos musculares – ganhou considerável espaço e fez com que alguns educadores

indicassem os mesmo tipos de trabalhos manuais tanto para meninos, quanto para

meninas.

Na Revista de Ensino de 1905, há apenas uma nota sobre trabalhos manuais,

dizendo serem estes para ambos os sexos, sendo as atividades: dobraduras de papel,

alinhavos em cartão, modelagem (construção de esferas, cubos, etc.), acrescentando para

meninas posição das mãos e modo de segurar a agulha e crochet simples ( p. 636).

De acordo com o Annuario referente a 1907-1908, algumas atividades manuais

são divididas entre femininas e masculinas, sendo específicas de acordo com o que cada

grupo deveria aprender, como por exemplo, modelagem e trabalhos em madeira para os

Page 54: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

43

meninos e bordados e remendos para as meninas. Já o desenho, como é indicado no

documento, parece ser a atividade manual comum aos meninos e às meninas.

A disciplina desenho não é exatamente um trabalho manual, como os que

discutimos até agora (trabalhos com agulha, madeira, etc), no entanto há que se fazer

algumas considerações uma vez que possuem algumas finalidades semelhantes:

• Em particular, o trabalho em madeira usa o desenho em sua etapa inicial

para projetar as formas e proporções do objeto desejado;

• Ambos têm como finalidade educar a vista e adestrar as mãos;

• A educação do senso estético é outra finalidade em comum às duas

atividades.

Em um relatório do Annuario de 1911-1912 podemos melhor compreender as finalidades

do desenho:

Desenho. O méthodo preconizado em grupos escolares é o do natural. Não

se pretende ahi formar artista; o fim principal do desenho é educar a vista,

adestrar as mãos. Será de alta conveniência que no desenho, assim como

nos demais trabalhos as crianças se sirvam de ambas as mãos. O desenho

se faz por cópia de objectos e não de modelos; o professor guia, indica e

por fim em largos traços no quadro negro, dá idea do desenho, mas deverá

limpar immediatamente o quadro negro, afim de que os alumnos não vão

copiar os trabalhos naturalmente imperfeitos, pela rapidez com que são

executados. Após muitas copias do natural, muito desenho de memória ou

de imaginação, um perfeito modelo de desenho poderá até com vantagem

ser dado a copiar. Não devemos nos esquecer, porém, de que o desenho é

uma outra forma de linguagem escrípta. Sendo assim, podemos preparar

uma fácil descripção que o alumno concretizará em um desenho. Esse

trabalho muito contribuirá para o desenvolvimento regular da imaginação

infantil, assim como a inspeção de bellos quadros lhe educará o gosto

Page 55: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

44

artístico. (Annuario do Ensino do Estado de São Paulo, 1911-1912, pp.

25-26.)

Como dito no início do referido documento, “o fim principal do desenho é educar

a vista, adestrar as mãos”. Ao contrário do que se possa imaginar sobre favorecimentos

da mão direita, consta no documento o desejo de que as crianças, assim como nos outros

trabalhos, utilizem as duas mãos. Fazia-se forte a ideia do aprendizado tanto na

observação, mas mais ainda nos trabalhos com as mãos, em que se aprende a criar e

executar. Lições de desenho e de geometria aparecem como responsáveis pelo exercício

envolvendo criatividade, sendo o desenho freqüentemente aliado às outras disciplinas.

Nesse caso, defende-se o ensino do desenho que não utiliza modelos para cópia,

mas sim objetos, largos traçados que devem ser apagados para que sirvam apenas de idéia

para o desenho, mas não para cópia.

Enfatiza-se que o desenho é uma outra forma de linguagem e que a descrição de

uma imagem com o objetivo de que o aluno desenhe essa descrição pode ser de grande

contribuição para a imaginação infantil. Ou seja, trata-se de educar percepções

imaginativas, dar repertório; assim como as aulas em que se apresentavam os chamados

“bellos quadros” a fim educar o gosto artístico, transmitido assim a estética do que se

deve considerar belo.

Segundo princípios do método intuitivo, o ensino do desenho deveria começar

pela educação simultânea dos olhos e das mãos e a familiarização do aluno com as

formas elementares e na seqüência, articular o ensino do desenho com o ensino da leitura

e da escrita.

Essas proposições recolhem as contribuições de Kerschensteiner. Por volta de

1895, quando se tornou diretor de ensino em Munique, Kerschensteiner intensificou suas

investigações sobre desenhos infantis, de maneira a conceber o desenho como

manifestação da atividade mental ligada à criação. Como resultado dessa análise que

durou seis anos, Kerschensteiner definiu o curso da atividade criadora infantil em dois

períodos: na primeira infância, quando as primeiras manifestações são representadas por

Page 56: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

45

jogos e ocupações inocentes, conquanto posteriormente, o desenvolvimento das

faculdades mentais regula continuamente a atividade criadora. Para Kerschensteiner, a

criança divide seus esforços entre a conquista e a resolução de pequenos problemas

considerados enigmas que os impulsionam à dúvida; num primeiro momento, a ocupação

manual trata de vencer as dificuldades previstas; no segundo período, a atividade manual

serve de transição para alcançar uma etapa referente ao trabalho moral, cujos limites são

determinados pelos interesses e atitudes de cada criança nas atividades manuais

(SANTOS, 2009).

Sobre a educação estética, na qual o Desenho se inclui, há na Revista de Ensino

(1907, p.27), um exemplo de como essa formação deve se dar, especificamente sobre

estética de belezas naturais; a começar mostrando ao aluno as variadas tintas que

correspondem às cores das flores, as formas regulares das folhas, para mais tarde, então,

atrair a atenção para conjuntos mais complexos, como paisagens, até a contemplação das

obras de arte; momento em que se propicia visitas a museus, a educação estética de

maneira graduada, que se adapta ao desenvolvimento progressivo das faculdades infantis.

Sugeria-se para o alcance de tal êxito nas aulas de Arte e de Desenho, que essa

cultura da sensibilidade estética se fizesse desde as primeiras classes escolares, de

preferência, seguindo os preceitos de Rousseau:

– Que a creança meça com os olhos; que tenha sempre diante dos olhos o

próprio original e não o papel que o representa; que nada trace de memória,

na ausência dos objetos; mais tarde então, a vista será justa e a mão

flexível e alcançarão, por fim, a elegância dos contornos e o traço leve. (...)

São os objetos bellos e sublimes do mundo exterior, ou objetivo, que

provocam no indivíduo as emoções esthéticas. (Revista de Ensino, 1907, p.

27.)

Por fim, o texto em questão afirma que além desses fatores objetivos, há outros de

ordem subjetiva que incontestavelmente influem na produção de estéticas individuais, e

sem essas condições dificilmente pode haver a produção de concepções estéticas.

Page 57: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

46

Em busca da utilidade e da simplicidade

Os resultados da atividade de trabalhos manuais podem ser exemplificados por

objetos apresentados numa exposição organizada em 1907, na Escola Normal, relatada no

Annuario de 1907-1908. Na ocasião, o Secretario do Interior convocou todos os Grupos

Escolares e Escolas Complementares do Estado a selecionarem os melhores trabalhos

escolares e remeterem-nos à Escola Normal, “como preparação para a secção pedagogica

com que o Estado de S. Paulo vae figurar na Exposição Nacional, do Rio” (Annuario do

Ensino do Estado de São Paulo, 1907-1908, p. 49). Na descrição apresentada pelo

Annuario, fica evidente a discriminação entre os trabalhos masculinos e os femininos:

Trabalhos manuaes.

Secção masculina –

a) trabalhos em madeira;

b) trabalhos em modelagem.

Secção feminina –

a) panninhos com diversos pontos, inclusive pontos russos e os de

ornamento;

b) remendos diversos, pontos de marca, letras e nomes

c) crochet;

d) camisas, aventaes, toucas, toalhas, babadouros, etc. (Annuario do

Ensino do Estado de São Paulo, 1907-1098, pp. 51 e 52).

As atividades femininas por anos de escolarização foram divididas da

seguinte maneira:

– Trabalhos do 1º ano: crochet de linha e lan aplicado em toalinhas,

guarnições de lavatório, porta-toalhas, paletots, capinhas, etc.

– Trabalhos do 2º ano: costura feita em paninhos com pontos diferentes,

tais como desfiados; aplicação desse trabalho em aventais”.

– Trabalhos do 3º ano: paninhos com ponto russo, preguinhas, desfiados,

remendos, camisas, aventais, etc; ponto de marca em talagarça, étamine, etc;

trabalhos simples com aplicação dos mesmos pontos.

Page 58: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

47

Segundo o Annuario de 1907-1908, esses trabalhos encontravam-se colecionados

em cadernos ou aplicados em objetos feitos de papel cartão, apresentando formas

variadas como: cestas, casinhas, navios, etc. Na exposição dos trabalhos manuais, estes

estavam distribuídos conforme os anos sucessivos de cada curso, de modo a dar a idéia de

evolução dessa disciplina: no começo eram apresentados os trabalhos mais rudimentares,

sua transição, e ao fim, os trabalhos mais desenvolvidos.

A respeito dessa exposição, Lourenço Rodrigues, o inspector e autor de relatórios

sobre o evento, ressaltou aspectos considerados bons sobre os trabalhos expostos, como

por exemplo:

– Trabalhos em agulha e linha: assim como nos trabalhos de dobradura em papel, os em

agulha e linha também eram abundantes e ao mesmo tempo diversificados, o que ressalta

a idéia de que os trabalhos que utilizam poucos utensílios ocorriam constantemente e que

no entanto, diversificava-se o tipo do ponto, das cores e dos desenhos.

– Trabalhos modelagem: não se encontravam expostos no salão com os outros trabalhos,

mas em galerias específicas, sobre as quais há relatos. Os trabalhos de modelagem eram

feitos em argila, sem auxílio de instrumento algum.

Principiam os alumnos sempre pela execução da esphera, cuja forma dão

apenas com os dedos e alisam em seguida com a palma da mão. Depois

seguem uma serie completa de sólidos geométricos, applicando

imediatamente cada forma apprendida na feitura de fructos communs,

objectos usuaes, folhas e flores. (Annuario do Ensino do Estado de São

Paulo, 1907-1908, p. 60.)

Notamos na modelagem a preferência pela simplicidade, que dispensa o uso de

instrumentos e prima justamente pela utilização das mãos e dos dedos nas diversas etapas

da modelagem, fazendo com que em cada uma dessas etapas fossem exercitados

diferentes movimentos manuais.

Encontra-se aqui também, algo bastante característico dos trabalhos manuais: a

feitura dos trabalhos mais como processos do que como etapas, uma vez que a

Page 59: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

48

modelagem, nesse caso, sugere que pelo manuseio se reconheça a textura, o peso e as

proporções da massa que deve ser transformada em formas geométricas e, só então, a

modelagem do objeto é imaginado.

– Trabalhos de fantasia: segundo os relatos, tratava-se de trabalhos de decoração e

adornos, como almofadas, roupas de festas escolares, feitos com matérias mais caros,

como cetim, veludos, bordados a seda. O inspetor reconhece que são trabalhos que

enfeitam uma exposição, mas não faz nenhuma objeção ao fato de haver em menor

quantidade, ao contrário, acena com a possibilidade de esses trabalhos desaparecerem das

próximas exposições em função de seu gasto financeiro e de tempo para serem realizados.

Assim, pode-se dizer que os trabalhos que recebia maior incentivo eram os que

utilizavam poucos, simples e práticos utensílios, o que podemos comprovar quando o

inspetor escreve:

A nosso vêr, o Director daquelle estabelecimento de ensino esforça-se

incançavelmente para que os trabalhos manuaes e graphicos satisfaçam a

duas condições essências aos filhos do povo: – que sejam, ao mesmo

tempo, os mais úteis e os menos caros possíveis. (Annuario do Ensino

do Estado de São Paulo, 1907-1908, p. 53.)

– Trabalhos de marcenaria: Os instrumentos usados para o trabalho em madeira são:

tornos, canetas, réguas. Os objetos que podem ser confeccionados são: descansos de bule,

batedores de pão-de-lot, cabos de machado, ancinhos, cabides, tira-sapatos, cantoneiras,

cabides, porta-cartões, molduras, porta-toalhas, cômodas, porta-retratos, porta-jarras,

mobília de sala (mobília pequena), licoreiro, lavatório pequenino, mesinhas, cadeiras, etc.

Os trabalhos manuais em madeira dessa exposição eram fabricados com madeira

nacional, como pau-marfim, pinho do Paraná, arriba, entre outras. Em alguns trabalhos a

madeira era descoberta, outros eram encerados e alguns envernizados – alguns desses

últimos estavam enfeitados com frisos talhados na madeira, assim como havia também

alguns guarnecidos de vidros pintados e dourados.

Page 60: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

49

Esse modo de expor os objetos feitos em madeira nos diz a respeito da

valorização dos processos, algo bastante característico do sloyd em madeira; importam os

instrumentos de trabalho, como as canetas, as réguas e outros utensílios expostos, assim

como os tipos de madeiras utilizadas e as várias etapas em que se encontram os trabalhos,

estejam eles com a madeira descoberta, com a madeira envernizada ou trabalhada com

detalhes em frisos, etc. Ressalta-se a importância de que para maior proveito dos

trabalhos manuais eles devem obedecer a plano uniforme e metódico, como já vimos,

(...) que regule o desdobramento de suas difficuldades crescentes. Taes

estabelecimentos, constituídos de classes graduadas, acham-se

apparelhados para evitar as soluções de continuidade, permittindo que a

criança, através de seu curso, realise uma aprendizagem manual

verdadeiramente educativa. (Annuario do Ensino do Estado de São Paulo,

1907-1908, p. 62.)

Ao final deste relatório sobre trabalhos manuais (1907-1908), é mais uma vez

recomendado, principalmente nos trabalhos da secção feminina, que se acabe com os

trabalhos demasiadamente vistosos – ou de fantasia – para que se dê espaço a um

trabalho de caráter simples e prático. É justamente esse caráter simples e prático que

defende a Revista de Ensino (1909), em um artigo sobre o assunto; mesmo porque, seria

uma maneira de exercer essa atividade sem altos custos:

As despezas são poucas, pois começaremos apenas com argila,

abundantemente espalhada por todos os cantos, uma thesoura, uma faca,

um martello, poucos pregos, um pedaço de papel cartão ou um fragmento

de lenho, tudo de fácil conquista e nada mais precisa! (Revista de Ensino,

1909, n. 3, p. 22.)

O texto prossegue fazendo uma advertência ao pouco conhecimento sobre as

atividades cotidianas consideradas simples, o que se pretende mudar com o ensino dessas

atividades:

Page 61: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

50

É incrível que neste século pleno de luz, haja, em maioria, gente que não

sabe siquer pregar um prego, ou pegar em ferramentas desde as mais

simples e usuaes, para operar um serviço insignificante, de alguns minutos

e então é preciso chamar um official que lhe ganha alguns mil réis. (...)

Devemos ensinal-o à nossa infância que então será feliz, porque ao em vez

de perambular pelas de diversões, muitas vezes prejudiciaes, se entreterá

em casa com esses pequenos serviços engenhosos. (Revista de Ensino,

1909, n. 3, p. 22.)

As finalidades do ensino das atividades manuais abarcam todos os lados; no

aspecto físico, proporcionam desde precisão do olhar, firmeza e até a destreza dos

músculos da mão. No aspecto mental, proporciona uma maior atenção, interesse, além de

transmitir o senso da cultura estética. O aprendizado das atividades é outra justificativa;

podendo ter utilidade, caso futuramente, o aluno precise exercer um ofício. Por outro lado,

caso não precise, não seria o aprendizado vão, uma vez que esse ensino não compartilha

exatamente das mesmas finalidades de um ensino profissionalizante, ficando portanto, o

gosto pelo trabalho, o que em termos morais, ajudaria a manter o cidadão longe das

diversões pouco aceitas socialmente ou mesmo da possibilidade de vir a ser um problema

para o Estado.

Professores: especialistas ou generalistas?

Para Omer Buyse, o sucesso do sloyd estava ligado à formação pedagógica na

ciência, na arte de ensinar e na habilidade técnica do professor. Para tanto, em alguns

lugares dos Estados Unidos, eram oferecidos cursos específicos, de um ano, nas escolas

normais. Um dos argumentos que mais impulsionou o a difusão de cursos normais de

trabalhos manuais era que, de fato, o sloyd representava um dos mais promissores

esforços educativos, no qual se propunha educar os sentidos, os movimentos, que por sua

vez, estavam ligados ao desenvolvimento da capacidade intelectual.

Page 62: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

51

Documento abaixo, também do Annuario de 1910-1911, fala da possível

contratação de professores que dominem os ensinamentos das atividades manuais, o que

pode ser interpretado como um indício da relevância que se pretendeu conferir a essa

atividade, reforçando-a como disciplina quando se reconhece que seria conveniente

alguém para ensinar exclusivamente a atividade .

(...) Desde que não temos ainda, em número sufficiente, professores que

bem conheçam as normas a que deve este ensino obedecer, não vejo

inconveniente em que se contratassem hábeis profissionaes para tal fim,

ou então que se permitisse aos nossos professores praticarem nas aulas

manuaes da E. Normal, até que devidamente habilitados, pudessem tomar

a seu cargo o ensino desses trabalhos nos Grupos e escolas, mediante a

remuneração que lhes concedesse o governo. (Annuario do Ensino do

Estado de São Paulo, 1910-1911, pp. 136-146.)

Entretanto, o que fica dúbio em tal assertiva é seu caráter hipotético e até mesmo

meramente especulativo que propõe algo muito vagamente, mas que enfatiza o

descontentamento com o trabalho do professores atuais em relação às atividades manuais

da secção masculina.

(...) é nosso dever informar-vos que ao contrário do que foi observado

nas classes da secção masculina dos Grupos, as da secção feminina

seguem em geral boa orientação. Quase todos os seus trabalhos ao

menos (ao menos nos Grupos que visitei) são úteis e de caráter simples e

pratico (...). (Annuario do Ensino do Estado de São Paulo, 1910-1911, p.

141.)

No Annuario de 1913, o Inspetor Aristides de Macedo escreveu um relatório

sobre trabalhos manuais, mais especificamente sobre o sloyd em madeira. Ali foi de

opinião contrária ao que foi dito no Annuario de 1910-1911 sobre uma possível

necessidade de contratação de profissionais próprios para lecionar trabalhos manuais:

Page 63: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

52

O slojd em madeira, perfeitamente praticável em nossos grupos escolares

e ensinado pelo mesmo professor que ensina outras disciplinas, é o único

que preenche todos os predicados exigidos para realizar-se a obra

educativa do trabalho manual. (Annuario do Ensino do Estado de São

Paulo, 1913, p. XLVIII.)

Em relação à disciplina de desenho, um artigo da Revista de Ensino (1907)

discute seu ensino na escola, fazendo uma crítica a um possível descaso com a disciplina

no que se refere aos professores escolhidos para lecioná-la. Alega-se que o desenho é

uma das disciplinas que nem sempre se pode ensinar com sucesso e proveito nas escolas

pelo fato nem todos os professores nascerem com a aptidão artística necessária para

ensiná-la; sem vocação artística, sem jeito para o desenho, o professor não saberia iniciar

seus alunos nas “belezas da arte”.

Eis porque, nos grupos escolares e na escola modelo, sempre se devia

confiar a um especialista, contractado ou não, o ensino do Desenho:

imitar-se-ia o que se faz com as aulas de Gymnastica e de Musica. O

director de um estabelecimento de instucção, em que trabalham

diariamente muitas classes e cada qual com o seu professor – deve ser um

pouco condescendente com os seus auxiliares, principalmente para com

aquelles aos quais a natureza não foi prodiga em privilégios e aos quaes

negou perícia manual. (Revista de Ensino, 1907, p. 26.)

No documento acima fica evidente o diferente tratamento dado à disciplina de

desenho em relação às outras, como ginástica e música, que possuem um professor

próprio com o conhecimento e habilidades necessárias para ensiná-las. Nota-se aqui

também, a cobrança do “saber fazer”, exigência demandada ao professor na pedagogia

moderna. Para além das exigências feitas pela pedagogia moderna, o artigo sobre

Desenho da Revista de Ensino propõe a impossibilidade de empreender a educação

estética do aluno com sucesso sem que o professor tenha antes feito a sua, e apenas

Page 64: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

53

considerado estar em condições de transmitir uma boa cultura estética o professor que

tiver alma de artista.

Formação integral ou técnico-profissional?

A partir de 1911, ano da criação da Escola Profissional masculina da Capital,

percebemos uma queda na quantidade de notícias sobre os trabalhos manuais, tanto nos

Annuarios, quanto em artigos da Revista de Ensino, no entanto, há que se considerar que

nesse período quando os encontramos, em ambos os impressos aqui estudados, esses

artigos são em geral, quase tratados sobre o trabalho manual. São textos grandes,

caracterizados por empreender uma grande defesa à essa atividade que vem se mostrando

decadente; a tentativa de salvar a prática dos trabalhos manuais é feita com argumentos

que mostram as vantagens dessa atividade como salvação para os problemas do ensino.

Enquanto isso a ascensão do ensino profissional se evidencia no Annuario e na Revista :

A tendência cada vez mais accentuada de substituir, tanto quanto possível,

a mão de obra pelo trabalho das machinas, vae tomando um extraordinário

incremento em todos os paizes civilizados. As fabricas, as usinas, vão, dia

a dia, trocando os utensílios singulares do artista ou do operário por

machinismos poderosos e aperfeiçados, os quaes formam, em conjuncto,

um só instrumento, um utensílio complexo, enfim. As indústrias, as

manufacturas, em toda a parte, procuram desse modo salvaguardar seus

interesses econômicos. Esta idéia, fundamente arraigada no espírito dos

americanos do norte, já lhes creou o ‘labor saving`– principio que hoje

lhes constitue uma verdadeira lei economica. (...) (Annuario do Ensino do

Estado de São Paulo, 1913, p. XXV)

Os institutos profissionais são comentados com certo entusiasmo, como símbolo

de progresso existente em países ditos civilizados; como citado no documento, os Estados

Page 65: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

54

Unidos, que continuava portanto exportando suas idéias, assim como fizera sobre os

trabalhos manuais.

A demanda por escolas que oferecem formação profissional aumenta nesse

período (1900-1920), como já vimos anteriormente, em função das indústrias se

instalando cada vez mais no país, além, da necessidade de habilitar trabalhadores

brasileiros, posto que a experiência com operários imigrantes (politizados), acarretou em

diversas greves.

Apesar do entusiasmo, percebe-se no documento um tom de cautela, uma vez que

esses institutos profissionais eram recentes, e considerados investimento em médio prazo.

Dessa forma sugere-se a experiência dessas escolas antes na Capital, para melhor

entender seu funcionamento, sem que acarrete em prejuízos.

Entre nos, é bem recente a instituição de escolas dessa natureza e, por esse

facto, ellas ainda não puderam atingir o grau de desenvolvimento

desejável, que só o tempo, a experiência, e a prática, poderão determinar.

Por isso mesmo, acho que ao em vez de disseminal-las pelo interior do

Estado, convinha primeiramente dar maior desenvolvimento às da Capital,

introduzindo-lhes novos melhoramentos, aperfeiçoando-as cada vez mais,

até que ellas possam constituir bons padrões, verdadeiros modelos para

outras se crearem. Será este um meio pratico e seguro para que taes

estabelecimentos de ensino correspondam ao fim a que se propõe , e

prestem os benefícios que deles se esperam. Enquanto tal não se fizer,

julgo inopportuna a creação desses institutos no interior, mormente em

localidades , cuja ausência de estabelecimentos fabris ou industriaes não

reclama o ensino educativo peculiar as escolas profissionaes. Todo e

qualquer movimento no sentido de espalhar estabelecimentos dessa

espécie pelo interior, é, por emquanto, preciptado; só pode desvirtuar a

natureza dos mesmos, tranformando-os em pesados aleijões para o Estado.

(Annuario do Ensino do Estado de São Paulo, 1913, p. XXVI)

Page 66: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

55

Colocar como concorrentes formação integral e a formação técnico-profissional

nos parece ser o mesmo que escolher um ponto de vista simplista sobre a questão. Como

poderiam ser concorrentes de forma tão direta, sendo que possuíam finalidades distintas?

Parece ficar ainda mais complexo quando pensamos que essa concorrência tão direta

implicaria no ensino profissional suprimindo as atividades manuais na escola primária.

Seria um equívoco fazer esse movimento, no entanto precisamos lembrar que as idéias

sobre um ensino primário reduzido em todos os sentidos, começaram a circular e ganhar

força mesmo antes da reforma Sampaio Dória, que viria concretizar essas novas

finalidades do ensino primário.

Page 67: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

56

Considerações finais

Desventuras e declínio dos trabalhos manuais

No mesmo ano da criação das Escolas Profissionais feminina e masculina (1911),

é possível observar no Annuario referente a este ano, um aumento de advertências sobre a

prática dos trabalhos manuais cada vez mais escassa entre os meninos, apenas sendo entre

as meninas praticado ainda com certa regularidade.

Ao mesmo tempo em que no Annuario referente a 1910-1911 adverte sobre uma

baixa na prática das atividades manuais ao dizer que entre os alunos do sexo masculino

essa disciplina quase desapareceu, e que “entretanto, bem merecia ser reanimado esse

ensino” (Annuario do Ensino do Estado de São Paulo, 1910-1911, p.110). Adiante

encontramos em outro relatório uma informação mais precisa:

(...) Si bem que o ensino de trabalhos manuaes deva ser limitado, de modo

que não prejudique os estudos de outras disciplinas, forçoso é confessar

que, na seção masculina de todos os Grupos, acha-se elle hoje não só

reduzido nas classes do 1º e do 2º , mas até banido das classes de 3 e 4

annos, apezar das exigencias do programma. Nem sequer, para estas

últimas classes, os horários adoptados lhe consignam tempo (...)

(Annuario do Ensino do Estado de São Paulo, 1910-1911, p. 136.)

Apesar do lamento em relação à decadência da disciplina, o relato não deixa de

sugerir que o ensino desta deve limitar-se para que não atrapalhe o andamento das outras,

o que parece bastante paradoxal, posto que o ensino desta ficou reduzido no 1º e 2º ano, e

inexistente no 3º e 4º. A causa desse abandono da disciplina é apontada como sendo uma

certa falta de paciência por parte dos professores:

A causa do abandono destes exercícios achará talves sua explicativa neste

fato: certos professores, vendo que as creanças desde logo não podem

Page 68: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

57

apresentar trabalhos perfeitos, julgam-se obrigados a corrigi-los e

aperfeiçoá-los; mas não podendo fazer, por faltar lhes a paciência e

algumas vezes também a pratica precisa para a execução de tais serviços,

preferem desprezá-los completamente. (Annuario do Ensino do Estado de

São Paulo, 1910-1911, p. 138.)

Ao encontro dessa assertiva está a informação de que geralmente saem bons

trabalhos das classes onde a disciplina de trabalhos manuais é ministrada por professores

especialistas (em desenho, cartonagem, tecidos, dobraduras bordados, etc,), e mesmo o

inspetor considerando o possível retoque em alguns detalhes, feito pelo professor, – o que

não é aceito por nenhum defensor desse ensino, por tirar do aluno a possibilidade da

experiência da disciplina - ao menos, nesse caso, seu ensino não deixa de acontecer por

falta de paciência ou de habilidade própria.

Sendo assim, a questão dos retoques, além de interferir no processo pedagógico,

sendo uma das maneiras como se apresenta a decadência dessa disciplina, segundo o

Annuario (1910-1911), acusa como culpado disso o professor que não possui esse tipo de

formação ou habilidade nessa atividade e portanto, impaciência de ensiná-la. Assim

sendo, a solução encontrada para esse problema seria a contratação de professores

especialistas na disciplina:

(...) Desde que não temos ainda, em número sufficiente, professores que

bem conheçam as normas a que deve este ensino obedecer, não vejo

inconveniente em que se contratassem hábeis profissionaes para tal fim,

ou então que se permitisse aos nossos professores praticarem nas aulas

manuaes da E. Normal, até que devidamente habilitados, pudessem tomar

a seu cargo o ensino desses trabalhos nos Grupos e escolas, mediante a

remuneração que lhes concedesse o governo”.(Annuario do Ensino do

Estado de São Paulo, 1910-1911, pp. 136-146.)

Page 69: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

58

Um dos grandes pontos de insistência dos defensores dos trabalhos manuais é a

possibilidade do baixo custo dessa atividade. Porém, essa possibilidade perece ter se

perdido, desde o momento em que também se perdeu a validade de suas finalidades

essenciais. Não é possível precisar qual fator teria desencadeado um maior custo da

disciplina, mas é certo que o encarecimento ocorreria nas contratações ou especializações

de professores, e no fato de alguns dos materiais usados para trabalhos manuais não

poderiam ser reutilizados por outros alunos; feitos nos trabalhos (especialmente por

meninas), o que além de anular a proposta da disciplina, encarecia a atividade. De forma

que:

Não desapparecem ainda das exposições os trabalhos de fantasia e luxo,

cujos os preparos importam em dispêndios superfulos. Disto são culpados

muitos paes que, com suas exigências, querem arrogar-se direitos que não

lhes assistem, na escolha dos trabalhos que devem ser executados por suas

filhas, nullificando assim os esforços dos dirigentes do ensino. (Annuario

do Ensino do Estado de São Paulo, 1910-1911, p. 143)

Em outro documento no Annuario de 1915, o inspetctor Guilherme Kuhlmann

também critica o abandono das atividades manuais, atribuindo a esse fenômeno o

desconhecimento dos professores acerca das teorias sobre essa disciplina. No entanto,

dessa vez a crítica excede os professores chegando de certa maneira na direção da Escola

Normal, que por sua vez, deixaria que esse ensino fosse ministrado por um operário.

A escola primaria não pode ser verdadeiramente educativa sem a pratica

constante e methodica do trabalho manual. Não obstante a evidencia deste

asserto, esta importante disciplina tem sido relegada para último plano.

Não nos surpreende o desconhecerem muitos professores o alto valor

educativo dos trabalhos manuaes. Nas Escolas Normaes, o seu ensino está

quase que geralmente entregue a um operário qualquer, que embora perito

na arte, lhe desconhece, porem, o seu lado pedagógico, educativo. Dahi, o

desastre do seu ensino , e a falta de interesse que os professores ligam a

sua adopção. (...). Si, de um modo completo, não é possível empregar

Page 70: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

59

unicamente o slojd de carpintaria, isso não justifica o não emprego de

outras variedades de trabalho que, em conjuncto, poderão produzir as

vantagens que aquelle, por si só, produz. (Annuario do Ensino do Estado

de São Paulo, 191, p. XXV.)

Kuhlmann continua o texto, fazendo a defesa dos trabalhos manuais ao ressaltar

os benefícios que só se dão através da prática metódica e freqüente, como o

desenvolvimento físico, mental e intelectual, sendo essa tríade responsável pela formação

da individualidade. O inspetor defende, teoricamente, que para se atingir a atenção plena,

a criança passa pelos graus intermediários, como interesse, reflexão, aplicação, contenção

e contemplação; os quais são exercitados pelos os trabalhos manuais.

O inspetor mais uma vez lamenta por não haver um melhor desenvolvimento

dessa disciplina nas Escolas Normais, onde deveriam servir de modelo para o ensino. O

texto se encerra com Kuhlmann pedindo que, perante a impossibilidade de prática do

sloyd de carpintaria, por conta da falta de profissionais e salas equipadas, que, aqueles

que dominem o conhecimento técnico e teórico da atividade –não deixem de praticar

algum tipo de trabalho manual, que não exija necessariamente os utensílios específicos

do sloyd, justamente por sua falta.

Eis ahi, succintamente, a importância do trabalho manual, no seu tríplice

aspecto educativo: intellectual, physico e moral. (...) Sendo assim, é

profundamente lamentável que não tenha elle mais segura orientação e

mais amplo desenvolvimento nas nossas Escolas Normaes, como

lamentável é também não possuírem não possuírem os nossos edifícios de

grupos escolares salas especiaes destinadas ao seu verdadeiro ensino. Mas

si por essas circunstancias não se pode applicar às crianças paulistas o

ensino do slojd de carpintaria, - ao menos que aquelles professores que

conhecem o valor educativo dos trabalhos manuaes, que dêeem mais

methodo, intensidade e continuidade a modelagem em argila, a tecelagem,

ao trançado, ao recorte, a cartonagem, a qualquer trabalho manual, enfim,

Page 71: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

60

que possa influir com vantagem na educação da nossa infância. (Annuario

do Ensino do Estado de São Paulo, 1915, pp. XXXVII e XXXIX.)

Nada consta sobre trabalhos manuais nos Annuarios de 1916 e 1917. No

Annuario de 1918, se intensificam os discursos sobre a importância da erradicação do

analfabetismo. São mostrados dados estatísticos de crianças que freqüentam e que não

freqüentam a escola, assim também como a pressa em solucionar essa questão, uma vez

que ultrapassando a idade escolar, esses alunos se somariam aos cidadãos analfabetos já

existentes. A falta de vagas para brasileiros e estrangeiros em algumas regiões junto ao

mau planejamento, que tinha como conseqüência o fechamento de algumas escolas por

falta de alunos, eram alguns dos fatores vistos como contrários ao progresso e portanto,

urgentes.

No mesmo Annuario (1918) encontra-se um resumo do plano da Reforma de

Sampaio Doria, do qual destacamos a seguinte medida:

Simplificar o programma da escola primaria de modo que, no primeiro

período, domine o ensinar a ler, escrever e contar, e seja o segundo um

aperfeiçoamento do primeiro.” (Annuario do Ensino do Estado de São

Paulo, 1918, p.20)

O Annuario de 1919 dá continuidade aos destaques feitos na publicação de 1918

sobre o projeto de acabar com o analfabetismo, citando a lei de número 1.709, de 27 de

dezembro de 1919, que “Cria diversas escolas profissionaes nesta Capital e Interior do

Estado” (Annuario do Ensino do Estado de São Paulo, 1919, p.182). A referida lei

decretou a criação de duas escolas profissionais na Capital, uma masculina e outra

feminina, preferencialmente instaladas em bairros operários. Também foi decretada a

criação de mais cinco escolas masculinas a serem instaladas em diversas zonas do Estado.

Ao fazer um balanço geral, percebemos que havia sempre uma inconstância na

prática dos trabalhos manuais da instrução primária, com altos e baixos nas atividades, no

entanto, obtendo uma maior constância nas atividades consideradas femininas para as

meninas, e no desenho, modelagem, cartonagem e recorte para ambos os sexos.

Page 72: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

61

Entre os fatores que acarretaram a decadência dessa disciplina constam: o custo

do fornecimento constante dos materiais necessários; a ausência de lugar próprio para a

prática de atividades que exigiam salas equipadas, como o caso do sloyd; a falta de

formação apropriada para os professores e a conseqüentemente inabilidade destes com o

ensino.

Em artigo na Revista de Ensino de 1909 (pp. 22 e 23), Bruno Zwarg fala sobre o

ensino do trabalho manual já ter encontrado muitos adeptos em grandes e altos círculos,

entre eles, cientistas que explicam seus benefícios, começando assim a ser difundido no

Estado. O artigo que defende o ensino dos trabalhos manuais, precisa, para tanto,

justificá-lo com aval científico, mencionando o pertencimento deste aos grandes e altos

círculos da pedagogia, assim como mencionar as experiências internacionais com este

ensino.

É inegável a grande circulação sobre as proposições desse ensino em diversos

países e o intercâmbio sobre os vários tipos de trabalhos manuais. No entanto, com base

nos documentos analisados, mesmo constando nos programas curriculares, as atividades

manuais não tiveram o suporte de uma sólida formação de professores ou de condições

materiais, e mesmo em atividades de materiais simples, a parte as atividades com agulhas,

esse ensino ficou, por volta de 1911, cada vez mais decadente até chegar até a

inexistência de algumas atividades no ensino primário, havendo portanto, uma maior

circulação do que de fato uma apropriação da proposta de trabalhos manuais no ensino.

Page 73: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

62

Referências bibliográficas

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. 1990. Pátria, civilização e trabalho. O Ensino

de História nas escolas paulistas (1917-1939). SP: Loyola.

BUYSE, Omer. 1913. Méthodes Américaines d’Éducation – générale et technique. Paris:

H. Dunod & E. Pinat.

CARVALHO, Marta Maria Chagas de. 2000. Reformas da Instrução Pública. In LOPES,

Eliane Marta Teixeira; FARIA Filho, Luciano Mendes; VEIGA, Cynthia Greive

(org.). 500 anos de Educação no Brasil. 2ª edição. Belo Horizonte: Autêntica, pp.

225-251.

CARVALHO, Marta Maria Chagas de; WARDE, Mirian Jorge; MUNAKATA, Kazumi.

2001. Três projetos em torno da escola, cultura e cultura escolar. Educação em

Revista (UFMG) Belo Horizonte, n.34, pp. 167-182.

CATANI, Denice Bárbara. 2003. Educadores à meia-luz: um estudo sobre a Revista de

Ensino da Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo (l902-

l9l8). Bragança Paulista: EDUSF.

CHAMON, Carla Simone. 2005. Maria Guilhermina Loureiro de Andrade: a trajetória

profisisonal de uma educadora – 1869/1914. Tese de doutorado. Belo Horizonte:

UFMG.

CHARTIER, Roger. 2002. À beira da falésia: a história entre as incertezas e inquietude.

Porto Alegre: Editora Universidade/UFRGS.

CHERVEL, André. 1990. História das disciplinas escolares: Reflexões sobre um campo

de pesquisa. Teoria & Educação, n. 2, pp. 177-229.

CHERVEL, André; COMPÈRE, Marie-Madelaine. 1999. As humanidades no Ensino.

Educação e Pesquisa. v. 25, n. 2, pp. 149-170.

Page 74: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

63

CLARK, Robert Judson (ed.).1992. The Arts and Crafts Moviment in America.1876-1916.

Distributed by Princeton University

CUNHA, Luiz Antonio. 2000a. O ensino de ofícios artesanais e manufatureiros no

Brasil escravocrata. São Paulo: UNESP.

CUNHA, Luiz Antonio. 2000b. O ensino de ofícios nos primórdios da industrialização.

São Paulo: UNESP.

CUNHA, Luiz Antonio. 2000c. O ensino profissional na irradiação do industrialismo.

São Paulo: UNESP.

GINZBURG, Carlo. 1989. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia das Letras.

GOODSON, Ivor. 1990. Tornando-se uma matéria acadêmica: Padrões de explicação e

evolução. Teoria & Educação, n. 2, pp. 230-254.

JÜTTE, Robert. 2005. A history of the senses. From Antiquity to Cyberspace. Cambridge:

Polity.

MARQUES, Sandra Machado Lunardi. 2003. Escola profissional masculina da Capital

(São Paulo): um estudo sobre o sloyd educacional (1911-1934). Tese de doutorado.

PUC-SP

NORTH BENNET ST. SCHOOL. 2011. North Bennet St. School. History. Disponível

em http://www.nbss.edu/about/history/index.aspx. Acesso em janeiro de 2012.

SANTOS, R. Alessandra. 2009. Escola do trabalho: expansão do escolanovismo nos

debates educacionais paulistas sobre a reorganização do ensino primário (1926-

1933) Dissertação de mestrado. PUC-SP.

SCHORSKE, Carl E. 1988. Viena Fin-de-Siècle. Política e Cultura. Campinas / São

Paulo: Unicamp / Companhia das Letras.

Page 75: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 2017. 2. 22. · PINHEIRO dos SANTOS, Tainã M. 2012. Os Trabalhos manuais no Annuário do Ensino do Estado de São Paulo, e na

64

SOUZA, Rosa Fátima de. 1998. Templos de civilização: a implantação da escola primária

graduada no Estado de São Paulo: 1890-1910. São Paulo: UNESP.

SOUZA, Rosa Fátima de. 2008. História da organização do trabalho escolar e do

currículo no século XX (ensino primário e secundário no Brasil). São Paulo: Cortez.

THOMPSON, Edward Paul. 1987. A formação da classe operária inglesa. A árvore da

liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

THOMPSON, Edward Paul. 1988. Willian Morris de romántico a revolucionario.

Edicions Alfons El Magnànim. Instituició Valenciana D’Estudis I Investigació.

Valencia.

VEYNE, Paul. 1998. Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história.

Brasília: UnB.

WEBER, Eugen. 1988. França Fin-de-siècle. São Paulo: Companhia das Letras,

WEINSTEIN, Barbara. 2000. (Re)Formação da Classe Trabalhadora no Brasil (1920-

1964).São Paulo: Cortez.

ZUCCHI, B. Bianca. 2007. O Programa e os métodos de treinamento profissional do

curso de ferroviários da Companhia Sorocabana (São Paulo, Década de 1930)

Dissertação de mestrado PUC-SP.

Fontes

Annuario do Ensino do Estado de São Paulo (1907-1920).

Revista de Ensino da Associação Beneficente do Professorado Publico de São Paulo

(1902-1918).