Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa...

191
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica Doutorado As metáforas do corpomídia em cena: repensando as ações físicas no trabalho do ator. Sandra Meyer Nunes Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica - área de concentração Signo e Significação nas Mídias, sob a orientação da Professora Doutora Christine Greiner.

Transcript of Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa...

Page 1: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica

Doutorado

As metáforas do corpomídia em cena:

repensando as ações físicas no trabalho do ator.

Sandra Meyer Nunes

Tese apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para obtenção do título

de Doutor em Comunicação e Semiótica - área

de concentração Signo e Significação nas

Mídias, sob a orientação da Professora Doutora

Christine Greiner.

Page 2: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

2

__________________________________________

___________________________________________

___________________________________________

___________________________________________

___________________________________________

Page 3: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

3

Agradecimentos

Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi

essencial durante o longo processo deste trabalho. Pelas conversas provocativas e por me

fazeres acreditar que era possível. Agradeço por existires...

e Iaell, pelas doces e entusiásticas palavras de incentivo.

Christine, que me conduziu delicada e sabiamente durante todo o processo e me

proporcionou tantos insigths, ajudando-me a entender o sentido da palavra theoría: ação de

olhar.

Helena, continuas a representar o singular e feliz encontro que descrevi nos

agradecimentos de minha dissertação de mestrado, há dez anos atrás. Foste mesmo um divisor

de águas...

PICDT/CAPES, pela bolsa de estudos que me permitiu realizar este trabalho de

pesquisa, incluindo estágio na Universidade Paris 8, França.

UDESC. O interesse pelo assunto abordado nesta tese vem de minha prática como

professora de Expressão Corporal e Técnica de Teatro e Dança no Curso de Licenciatura em

Artes Cênicas no Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina. As experiências

compartilhadas com colegas do Departamento e com os alunos foram fundamentais neste

percurso.

Persona Cia de Teatro. Algumas experiências foram incorporadas a este estudo como

atividades de pesquisa complementar e informal. O trabalho como atriz iniciado juntamente

com o período da tese no espetáculo E.V.A., com a Persona Cia de Teatro, de Florianópolis,

propiciou a vivência de muitas das questões apontadas no transcorrer da pesquisa. As

observações silenciosas e as conversas com Jefferson, Gláucia, Higor, Malcon e Melissa foram

preciosas para cercar o problema de outras formas possíveis, ainda mais dinâmicas e

processuais, como bem convinha ao campo de estudos escolhido.

Page 4: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

4

RESUMO

Esta tese propõe uma revisão das metáforas que orientam o conceito de ação física no

trabalho do ator à luz das ciências cognitivas e da teoria do corpomídia desenvolvida pelas

professoras Helena Katz e Christine Greiner no Programa de Estudos Pós-graduados em

Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Presente na gênese

das teorias de representação e no conceito moderno de atuação, a noção de ação é fundamental

para os estudos acerca da comunicação do ator.

A pedagogia proposta por Constantin Stanislavski (1863-1938) por meio do método das

ações físicas, e posteriormente desenvolvida por Jerzy Grotowski (1933-1999), alterou os

processos de pesquisa e formação do ator. O trabalho parte da hipótese de que a abordagem da

ação física, proposta por ambos, realiza uma revisão do dualismo corpo-mente no trabalho do

ator, apontando para questões presentes, hoje, nas teorias das ciências cognitivas. Ao relacionar

o sistema de ações físicas do ator com os estudos do corpo na contemporaneidade, este estudo

aborda a ação, considerada um sistema processual e dinâmico, na perspectiva de uma teoria do

corpomente.

As pesquisas dos filósofos-cientistas António Damásio, Daniel Wegner, George Lakoff,

Mark Johnson e Alain Berthoz fundamentam as hipóteses apresentadas a respeito das metáforas

que dão ignição à ação do corpo e fortalecem a articulação teórica-prática necessária para a

abordagem do problema da ação cênica.

Palavras chave: Comunicação. Teatro. Representação. Ação física. Ciências Cognitivas.

Page 5: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

5

ABSTRACT

This thesis analyzes metaphors that guide the concept of physical action in the work of

an actor through the perspective of the cognitive sciences and the theory of body-media

elaborated by professors Helena Katz and Christine Greiner in the graduate program of

Communications and Semiotics at the Catholic University of São Paulo. The notion of action is

essential to studies about the communication of the actor and is present in the genesis of

theories of representation and in the modern concept of action.

The pedagogy proposed by Constantin Stanislavski (1863-1938) by means of a method of

physical actions, and later developed by Jerzy Grotowski (1933-1999), altered the processes of

research and education for the actor. This study is based on the hypothesis that the approach to

physical actions, proposed by both authors, revises the body-mind dualism in the work of the

actor and points to issues now present in the cognitive sciences. By relating the system of

physical actions of the actor with he studies of the body in the contemporary world, this study

considers action as a procedural and dynamic system, from the perspective of a body-mind

theory. The studies of philosophers and scientists António Damásio, Daniel Wegner, George

Lakoff, Mark Johnson and Alain Berthoz are the foundations for the hypotheses presented about

the metaphors that spark the action of the body and strengthen the theoretical-practical

articulation needed to approach the problem of scenic action.

Key words: Communication. Theater. Representation. Physical action. Cognitive sciences.

Page 6: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

6

ILUSTRAÇÕES

1 Anatomia humana 1 e 2 - Andreas Vesalius 35

2 Retrato de David Garrick 36

3 Desenhos de Charles Le Brun 38

4 Os autômatos de Vaucanson 39

5 O sistema nervoso mecânico 41

6 As experiências de Galvani 43

7 Duchenne de Boulogne 44

8 Biomecânica de Meyerhold 51

9 Ryszard Cieslak 64

10 As paixões: o terror. 67

11 O golpe do punhal 73

12 O gesto: Hacks 75

13 A fisionomia de Lavater 77

14 O Pavor: Le Brun 78

15 Os captadores sensoriais 87

16 A cólera: Le Brun 143

17 Mecanismos dos espíritos cartesianos 145

18 A atuação de Garrick 146

19 Estudo das emoções 152

20 O caminho das emoções 159

21 Os córtices somatossensoriais 164

22 A arvore dos sentimentos 165

23 O Sorriso falso e o verdadeiro 168

24 Gráfico das emoções 170

25 Os agentes mímicos 172

26 Stanislavski 177

27 Grotowski 177

Page 7: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

7

SUMÁRIO

Introdução 09

1 AS METÁFORAS DO CORPO EM AÇÃO 17

1.1 O método das ações físicas.– a práxis proposta por Stanislavski e as

contribuições de Grotowski 17

1.2 Genealogia da metáfora 27

1.3 A metáfora do corpo como instrumento 30

1.4 O corpo cênico como máquina 33

1.5 O gesto do ator: entre uma estátua animada e uma pintura transitória 36

1.6 O organismo: um mecanismo metafórico vital 42

1.7 A marionete como metáfora do corpo 47

1.8 A organicidade: da fisiologia à psicologia 51

1.9 Uma outra idéia de organicidade 55

1.10 A linha orgânica e a linha artificial 58

2 AS METÁFORAS E A ORGANICIDADE DA AÇÃO FÍSICA 65

2.1 O trânsito entre o dentro e o fora 65

2.2 Do centro do corpo à periferia 73

2.3 Repensando as metáforas de demarcação 79

2.4 O fluxo das imagens 85

3 PENSAR EM AÇÃO. FINALIDADE, INTENCIONALIDADE E

CONSCIÊNCIA 92

3.1 A finalidade na ação e sua dimensão prática 92

3.2 Ação e intencionalidade 101

3.3 A intencionalidade prática 106

3.4 Intenção prévia e intenção na ação 110

3.5 A ilusão da vontade consciente 114

3.6 Sobre o estado de consciência 121

3.7 O modelo interno 125

3.8 Na sacola do inconsciente 128

Page 8: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

8

4 NA REDE DAS AÇÕES FÍSICAS: DAS PAIXÕES ÀS EMOÇÕES E

SENTIMENTOS. 142

4.1 A mecânica das paixões 142

4.2 A teoria da sensibilidade 147

4.3 A psicologia do ator e a memória das emoções 153

4.4 A biologia das emoções 158

4.5 O sentimento de uma emoção 166

4.6 A botânica das paixões 170

Considerações Finais. 178

Referências Bibliográficas 182

Page 9: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

9

Introdução

Uma das grandes revoluções do teatro do século XX foi desencadeada pelo viés

pedagógico do diretor e encenador russo Constantin Sergueevich Stanislavski (1863-1938).

Trata-se do reconhecimento de que o ofício do ator não visa somente o entretenimento, mas é

uma forma de conhecimento. Em meio ao processo, eminentemente empírico do trabalho de

ator, Stanislavski estabeleceu marcos teóricos que o faz ser reconhecido como o fundador da

moderna pedagogia teatral ocidental (SERRANO, 2004). O sistema global, concebido por

Stanislavski durante toda a sua trajetória artística, permanece como referência inconteste para os

estudos teatrais e, especialmente, para a formação do ator, no Brasil e no mundo. Sua

metodologia, constantemente auto-avaliada, continua como um sistema aberto e vivo, capaz de

gerar questões fundamentais para a investigação do trabalho do ator, na atualidade.

Stanislavski teria formulado os principais problemas ontológicos e metodológicos da

atividade do ator, tendo o diretor polonês Jerzy Grotowski (1933-1999) buscado, a seu modo,

suas próprias respostas para tais problemas. Ninguém mais, desde Stanislavski, como lembra o

diretor inglês Peter Brook (GROTOWSKI, 1992, p. 9), investigou o fenômeno da representação

teatral no Ocidente, a natureza e a ciência de seus processos “mental-fisico-emocionais” tão

profunda e amplamente quanto Grotowski. Stanislavski apontou para a necessidade do

“trabalho do ator sobre si mesmo”, o que Grotowski reiterou como uma experiência que só

poderia advir de um conhecimento prático (DE MARINIS, 2004). Stanislavski e Grotowski

propuseram novos entendimentos acerca de como o ator conhece e elabora seus processos

cognitivos, com questões referentes às relações entre corpo e alma, ou corpo e mente,

enunciadas por eles como aspectos físicos e psíquicos.

A busca de integração das dimensões “interior e exterior” ou “física e espiritual” do ator

foi constante na trajetória artística de Stanislavski e configurou procedimentos de ignição dos

aspectos mentais e corporais, numa unidade psicofísica que justificaram a sua ação. A noção de

ação física teve um papel central na nova configuração pedagógica, ressaltada como chave para

que a criação e a emoção surgissem, já que não poderiam ser despertadas inteiramente pela

vontade ou consciência do ator. Ao invés de evocar um estado mental ou emocional inicial,

Stanislavski entendeu que o ator deveria acionar a materialidade do seu corpo. É quando

concebe o método das ações físicas. Neste sentido, a estratégia de conhecimento foi alterada,

pois é a partir das ações do corpo que o ator articularia os demais elementos da representação e

se aproximaria da “natureza criadora”.

A presente tese traz uma colaboração no sentido de relacionar o sistema das ações

Page 10: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

10

físicas do ator, concebido por Stanislavski, com os estudos do corpo na contemporaneidade e,

conseqüentemente, de seus novos entendimentos na construção do conhecimento. Proponho

uma investigação do conceito de ação física no trabalho do ator, à luz de teorias das ciências

cognitivas e da teoria do corpomídia, formulada por Katz e Greiner (2005), levantando algumas

hipóteses para uma revisão das metáforas que delineiam o conceito de ação na

contemporaneidade. Parto da hipótese de que, através do método das ações físicas, Stanislavski

propôs uma determinada relação entre cognição e ação, a que denomino como uma cognição na

ação, e que conformaria uma teoria do corpo.

As questões referentes à pesquisa das ações do ator, por ele formuladas, permitem

estabelecer diálogos com teorias contemporâneas do conhecimento. Stanislavski estabeleceu, no

início do século XX, procedimentos que apontavam para novos entendimentos acerca dos

processos de conhecimento e aprendizagem nas relações entre corpo e mente, e que foram

desenvolvidos por Grotowski na segunda metade do mesmo século. Este direcionamento

implicava num conhecimento operativo e numa experiência de transformação, eminentemente

prática, das conexões entre os estados físicos e os não físicos, enunciados pelos encenadores

como estados espirituais. Na escuta da materialidade do corpo, outras conexões se

estabeleceram. Uma das questões ontológicas mais insistentes e debatidas na filosofia,– a

natureza dos processos mentais e suas relações com mundo físico – é nomeada como o

“problema corpo-mente” (CHURCHLAND, 2004).

Para ressaltar que o corpo, ao qual me refiro, não está separado da mente, os termos

corpo e mente serão acoplados, gerando a terminologia corpomente, numa licença lingüística

que se justifica, na ausência de uma terminologia que abranja o entendimento encarnado da

mente e a perspectiva de um corpo que pensa.

Ao diferenciar a ação física do gesto e do movimento, Stanislavski e Grotowski

circunscreveram um campo de inferências próprio a cada um. Mais do que discutir as diferenças

entre estes termos, que não é o alvo específico deste trabalho, importa entender como

pensamentos, idéias e conceituações se materializam no corpo e na mente, a tal ponto de

formatarem tais categorizações e produzirem conhecimento. Neste estudo, o método das ações

físicas será abordado por meio das metáforas que o norteiam, com enfoque na revisão do

dualismo corpo-mente no desempenho do ator.

A visão da metáfora enquanto processo cognitivo e acional desenvolvida por Lakoff e

Jonhson (1999, 2002) é a estratégia escolhida para a análise destas práticas e discursos sobre o

corpo-mente. As metáforas não só propõem visões alegóricas de mundo e revelam padrões de

pensamento, mas dizem respeito à própria atividade cognitiva, proporcionando ignição aos atos

Page 11: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

11

do corpo. O trânsito de metáforas como o interior e o exterior, o dentro e o fora, o centro e a

periferia e as partes e o todo fundamentam o conceito de ação física e os níveis de

expressividade e comunicabilidade do corpo. É por meio destas metáforas que Stanislavski e

Grotowski explicitaram o seu entendimento acerca das relações entre o corpo e a alma (ou

mente) e o ambiente.

Não obstante, há problemas ontológicos relacionados às categorizações metafóricas

utilizadas para descrever a noção de corpo, mente e ação. Os complexos processos que

envolvem a ação humana têm estado à mercê, por muito tempo, de metáforas provenientes de

uma visão mecanicista e dualista do corpo e da mente e de uma leitura de causa e efeito entre

corpo e ambiente. O entendimento do corpo como um instrumento da alma ou da mente

configura o paradigma mecanicista, relacionado à idéia do corpo como máquina e,

posteriormente, o vitalista, com suas analogias acerca do organismo e da organicidade e energia

vital do corpo. O termo oitocentista vitalismo designou as teorias que consideram os fenômenos

vitais como irredutíveis aos fenômenos físico-químicos, ou seja, não podem ser explicados por

causas mecânicas (ABBAGNANO, 2000, p.1005). O vitalismo foi defendido por filósofos e

cientistas entre meados do século XVIII e meados do século XIX, mas podem ser chamados de

vitalistas os conceitos clássicos que entendem o organismo como regido por forças vitais,

identificando a essência da vida com a alma.

As metáforas subjacentes à noção de corpo, de mente e de ação derivam de contextos

históricos, culturais e sociais e a relação entre o saber artístico e outros saberes. O enfoque deste

estudo tratará especificamente da ressonância destas metáforas mecanicistas e vitalistas na

construção da ação física do ator idealizado por Stanislavski e, posteriormente, por Grotowski.

Entre o corpo observado e manipulado enquanto instrumento e o corpo vivido enquanto

organismo há modos distintos de se perceber as relações entre o corpo, a mente, o cérebro e o

ambiente.

Se as soluções cênicas que o ator encontra depende dos circuitos que desencadeiam os

processos de conhecimento e aprendizagem, quais seriam, então, as metáforas mais apropriadas

para descrever a ação do corpo em vida e o trabalho do ator sobre suas ações na

contemporaneidade? Ao invés das metáforas do corpo-máquina e corpo-organismo, moldadas a

partir do entendimento mecanicista e vitalista, o corpo do ator passa a ser abordado como um

sistema dinâmico e auto-organizativo. A metáfora que se torna mais apropriada, neste caso, é a

dinamicista. Neste sentido, o problema da ação é aqui abordado a partir de uma perspectiva

sistêmica e processual, por meio de novos entendimentos das relações entre o corpo e a mente

provenientes de teorias cognitivas.

Page 12: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

12

Stanislavski e Grotowski sistematizaram um pensamento sobre o corpo, não se

resumindo, inclusive, ao corpo do ator, sob um contexto metafórico vitalista. A crítica à atuação

mecânica e ao artifício conduziu suas pesquisas em direção a organicidade da ação cênica. As

reflexões de Stanislavski relativas à natureza dos processos físicos e psíquicos, contudo, já

apontavam para uma perspectiva dinâmica e auto-organizativa, com conexões significativas

com as mais recentes abordagens cognitivas. Na pedagogia das ações físicas o conhecimento se

dá no corpo em ação, e a ação, neste sentido, não seria a resultante de intenções psicológicas ou

intelectuais motivadoras somente, e sob o controle do agente, tampouco se organiza de forma

linear e causal em sua interação com o meio.

A atuação do ator já pressupunha, para Stanislavski, um ponto de vista da experiência

humana, do corpo do ator em ação no mundo. Como demonstra o método das ações físicas, o

entendimento destes processos, por parte do mestre russo, estava conectado ao contexto

epistemológico de sua época. Um olhar mais acurado para as teorias teatrais, que tratam do

trabalho do ator, demonstra que a insistência em determinado entendimento do corpo e da ação

cênica tem ocorrido, em algum nível, em consonância com as idéias sobre a relação corpo e

mente, na filosofia e na ciência. Estas consonâncias se constituem enquanto respostas para

questões ontológicas semelhantes e compartilhadas evolutivamente por estes campos de

conhecimento – arte, filosofia e ciência. Nem sempre estas conexões estão claramente

enunciadas pelos teóricos, encenadores ou atores, mas a sua ocorrência é perceptível através das

metáforas presentes nos discursos teóricos e nas práticas cênicas.

No tipo de atividade do ator, os processos cognitivos e os processos artísticos se

entrecruzam de sobremaneira que não há como separá-los. Ao recriar a conduta humana para

colocá-la em situação cênica, o ator utiliza, necessariamente, seu próprio organismo, estando a

mercê da natureza de ser e dos estados deste. A escassa revisão e atualização dos processos

cognitivos que envolvem a encenação do ator, tais como as relações entre corpo, mente,

emoção, razão, consciência, vontade, intencionalidade e controle, vem contribuindo para o

entendimento pouco preciso a respeito destes procedimentos, provocando uma espécie de

lacuna epistemológica.

É possível uma conexão das questões próprias ao desempenho do ator com aquelas

discutidas no âmbito das ciências e da filosofia, como já aparece, por exemplo, nas teorias sobre

a expressividade do corpo e suas relações com a alma atreladas à evolução da fisiologia, no

século XVII, à biologia, no século XVIII e XIX e, mais tarde, à psicologia, no século XX. Na

medida em que tinham no estudo das paixões e, posteriormente, das emoções e sentimentos, um

foco de interesse comum, eram estes campos teóricos que respondiam às questões sobre o corpo

Page 13: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

13

e o gesto do ator, e a efetividade das teorias teatrais estava garantida pela sua coerência com o

entendimento de como o corpo e a alma se conectavam.

Portanto, no primeiro capítulo, apresento o conceito de ação física desenvolvido por

Stanislavski e Grotowski e as hipóteses estabelecidas por eles para o problema corpo-mente do

ator em suas conexões com o pensamento filosófico e as teorias científicas. Do amplo espectro

das teorias do conhecimento, serão ressaltadas aquelas que se estruturam por meio das

metáforas do corpo-máquina e do corpo-organismo sobre os quais as teorias do ator de

Stanislavski e Grotowski se edificaram.

A visão mecanicista e a visão vitalista, em conformidade, primeiramente, com as teorias

sobre a fisiologia das paixões, adquirem uma leitura proveniente dos estudos sobre a emoção e

o sentimento a partir do século XVIII. A noção cartesiana de um automatismo mecânico é

transformada, paulatinamente, com a noção de sensibilidade e reflexibilidade, evidenciando-se,

cada vez mais, o processo orgânico e as teorias psicofísicas. Iluminadas pelo materialismo

vitalista, estas conexões se encontram de forma precursora no pensamento do filósofo e teórico

teatral francês Denis Diderot (1713-1784), cujas idéias sintetizaram o mecanicismo e vitalismo

na descrição do corpo do ator, e na teoria dos condicionamentos reflexos do fisiologista e

dramaturgo inglês George Henry Lewes (1817-1878). A análise destas conexões segue a

abordagem do teórico teatral Joseph Roach (1985).

A psicofisiologia de Stanislavski dialoga com os problemas enunciados por Diderot e

sistematizados por Lewes: os aspectos objetivos e subjetivos da ação do ator. Nestes aspectos,

estão enunciadas as relações entre corpo e espírito (alma, mente) e corpo e ambiente. Ainda

fortemente presentes nas teorias do ator, na atualidade, estas correntes teóricas, em sua busca

pela atualização das metáforas da ação do corpo em conformidade com os pressupostos

científicos e filosóficos de sua época, anteciparam avant la lettre abordagens hoje melhor

elucidadas pelas ciências cognitivas.

No segundo capítulo, discuto os princípios do conceito de ação física por meio das

metáforas que dão ignição à construção do corpomente do ator. Tais metáforas são chamadas

por Lakoff e Johnson (1999, 2002) como ontológicas e orientacionais, e determinam

entendimentos concernentes aos aspectos psicofísicos envolvidos na conduta do ator apontados

por Stanislavski e Grotowski, como o trânsito entre o dentro e o fora, o interior e exterior, as

partes e o todo e o centro e periferia. Neste estudo interessa investigar como o conceito de ação

física e suas metáforas ontológicas e orientacionais sobrevivem com as atuais hipóteses acerca

do problema corpo-mente.

A relação corpo (entendido como não separado da mente) e conhecimento, e a

Page 14: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

14

perspectiva do corpo que pensa sua ação em ação será discutida no terceiro capítulo. É neste

contexto que a metáfora dinamicista se torna a mais indicada para dialogar com os modos de

organização da práxis vislumbrada por Stanislavski e posta em evolução por Grotowski. O tipo

de práxis a que o ator está sujeito especifica uma estratégia de conhecimento onde o

pensamento se dá no processo acional, ou seja, como salientou Grotowski (1992), num pensar

em ação ou num pensar em movimento. O processo vivido pelo ator ultrapassa o nível literário

ou imagético, na descrição de personagens e do contexto envolvido – havendo ou não texto

teatral referente – e envolve a complexidade da ação humana e a imprevisibilidade das relações

espaços-temporais momentâneas (SERRANO, 1996). A idéia de um pensar em movimento

difere do entendimento cartesiano, onde a mente pensa e corpo executa. Pensar e mover não são

acontecimentos separados, mas aspectos de um mesmo processo cognitivo dinâmico,

possibilitando ao ator situações cênicas constantemente reconstruídas. Similar ao que ocorre no

método das ações físicas, nos estudos das ciências cognitivas na atualidade o corpo aparece

como desencadeador dos processos cognitivos, o que não significa apenas uma troca de

supremacias, pois o corpo enunciado nestas teorias não se separa da mente quando age no

mundo.

Para a discussão das questões que envolvem a práxis especifica do ator, bem como do

aspecto voluntário e teleológico da ação, recorro à noção aristotélica de razão prática. O termo

grego se apresenta no pensamento acional de Aristóteles (384 a.C-322 a.C) e subtende um saber

de ordem prática e processual, que é inerente ao fazer artístico. Tanto no teatro como na

filosofia, o discurso sobre a ação tende a uma origem voluntária e consciente e a objetivos

teleológicos. O conceito de ação física se edificou a partir de um entendimento que o

movimento do corpo deve se justificar, intencional e conscientemente, em relação a um dado

contexto, mas as próprias reflexões de Stanislavski provenientes de suas investigações junto a

atores já demonstravam que a prerrogativa de que o ato voluntário ou intencional é,

necessariamente, dotado de consciência não se sustentava.

A revisão do conceito de ação envolve igualmente a forma com que intenção e

consciência vêm sendo discutidas na conformação da ação cênica, e serão abordadas ainda no

terceiro capítulo. As reflexões de Stanislavski à cerca do trabalho do ator sobre suas ações

envolve questionamentos em torno da vontade, das emoções e da possibilidade ou não de

controle do ator sobre os processos cognitivos que propiciam a ação, discutidas em torno da

relação consciente e inconsciente. Já Grotowski, reacende a questão da intencionalidade.

As hipóteses do lingüista cognitivo George Lakoff e do filósofo Mark Johnson (1999,

2002), do filósofo Daniel Wegner (2002), do lingüista John Searle (2002) e do neurofisiologista

Page 15: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

15

Alain Berthoz (2003), apontam para as investigações sobre ações intencionais e suas conexões

com a consciência e dialogam com as questões formuladas neste estudo a cerca da natureza

processual e dinâmica das ações, antevistas por Stanislavski e Grotowski. Da mesma forma, as

pesquisas do neurologista António Damásio (1996, 2000, 2004) a cerca da consciência, do self,

da emoção e do sentimento apresentam pistas para a melhor compreensão destes processos

envolvidos na ação.

O enfoque sobre as paixões e, posteriormente, sobre as emoções e sentimentos, será

desenvolvido no quarto capítulo. A constatação da instabilidade dos estados emocionais foi uma

das questões mais apontadas por Stanislavski como justificativa para a sua revisão

metodológica. As ações físicas seriam a chave para a articulação destes estados, e envolveriam

aspectos referentes à fisiologia, biologia e memória das emoções.

O conceito de ação não é objeto de reflexão somente das teorias teatrais, mas campo de

investigação nascido da filosofia da ação e matéria de interesse das ciências que tratam de

entender como o homem se conhece e as operações envolvidas nos processos cognitivos. A

obra Dynamics in Action, Intentional Behavior as a Complex System (2002), de Alicia Juarrero,

traz uma importante contribuição para o entendimento da ação. Com o objetivo de compreender

como o ser humano percebe, pensa, fala, age e compreende, as ciências cognitivas vem se

afirmando uma nova ciência dos processos psicobiológicos, envolvendo os comportamentos

humanos e suas formas simbólicas, tais como a linguagem e a cultura. Ciências essas que

podem ser compreendidas como uma nova ciência do “espírito”, pois une a experimentação

científica às interrogações da filosofia, a partir da tentativa de compreensão das relações entre

cérebro, corpo e mente. As abordagens dos “filósofos-cientistas” cognitivos aqui apresentados,

ao abrigarem diversos campos de conhecimento, fortalecem uma articulação teórico-prática,

fundamental para a abordagem do problema da ação do ator, na atualidade. As disciplinas mais

diretamente ligadas às ciências cognitivas são as neurociências, a inteligência artificial, a

psicologia cognitiva, a lingüística cognitiva e a filosofia. A interação destes campos de saberes

vem provocando uma ruptura onto-epistemológica, incidindo numa profunda mudança na

compreensão que o ser humano tem de si mesmo, de sua natureza e comportamento.

O quadro epistemológico que Stanislavski e Grotowski nos delegaram, permite perceber

o estado natural de “indisciplina” que os estudos sobre o corpo-mente requisitam. As conexões

das questões próprias ao trabalho do ator àquelas discutidas no âmbito das ciências cognitivas

são inerentes ao campo epistemológico gerado pelas investigações de Stanislavski e Grotowski

acerca da ação, considerando que processos artísticos são, inextricavelmente, processos

cognitivos. A noção de disciplina não seria, como salientam Greiner e Katz (2005), capaz de

Page 16: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

16

abarcar um campo de conhecimento tão complexo, e para tratar do corpomente, não basta juntar

conhecimentos disciplinares, o que comumente chamamos de trans ou interdisciplinaridade. A

condição do organismo vivo pede pela substituição da noção de disciplina pela de indisciplina,

na tentativa de nos aproximarmos do caráter dinâmico e processual da ação. Ao ressaltar as

ações orgânicas enquanto processos de comunicação, a teoria do corpomídia atua no sentido de

estabelecer diálogos entre áreas da comunicação e da cultura e suas alianças indissociáveis com

a natureza. Katz e Greiner (2005) destacam as ressonâncias entre a teoria do corpomídia e a

proposta de Muniz Sodré em Antropológica do espelho (2002) no que se refere à noção de

indisciplina. Quando as redes transdisciplinares são requisitadas como estratégias de pesquisa,

acabam virando indisciplinares, ou seja, um campo de desestabilização e subversão dos objetos

de pesquisa que se assemelham a “atratores ou buracos negros”, mas que, neste caso, são

capazes de nos aproximar do dinamismo necessário aos estudos do corpomente.

Page 17: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

17

1 AS METÁFORAS DO CORPO EM AÇÃO

1.1 O método das ações físicas – a práxis proposta por Stanislavski e as contribuições de

Grotowski

Eis como abordo um novo papel. Sem qualquer leitura, sem

qualquer conferência sobre a peça, os atores são convocados

para ensaiá-la1. (STANISLAVSKI, 1995, p. 225).

Em meio à reação perplexa frente a sua proposição, o diretor Tórtsov, porta-voz de

Constantin Stanislavski para suas narrativas, insiste para que os atores executem pequenos

objetivos físicos por meio de ações, pesquisando sua lógica e consecutividade com sinceridade

e verdade mesmo sem terem analisado detalhadamente a personagem, como comumente

faziam.

Esta proposta contrapunha-se aos métodos de atuação já estabelecidos por tradições

teatrais anteriores e pelo próprio Stanislavski, e representa toda uma mudança de entendimento

das estratégias possíveis de conhecimento do ator no início do século XX. O diretor e pedagogo

argentino Raúl Serrano (2004), em sua obra Nuevas tesis sobre Stanislavski salienta que os

textos escritos por volta de 1934 (dentre eles o descrito na citação acima), e os quatro anos que

se seguem até sua morte reúnem um material inquestionável para a formulação de uma

pedagogia teatral de caráter mais científico, no sentido de sua sistematização. É quando

Stanislavski formaliza o método das ações físicas, um marco epistemológico indiscutível para

as teorias do ator contemporâneo.

As teorias de atuação de Stanislavski formam um sistema que pode ser analisado a partir

dos aspectos nomeados por ele como físicos e psíquicos, e a sua célebre trilogia os apresenta em

evolução. A preparação do ator aborda os aspectos mais subjetivos do processo do ator,

incluindo as investigações sobre a memória e o subconsciente. A construção da personagem,

como a metáfora arquitetural indica, define mais objetiva e tecnicamente alguns procedimentos,

onde a questão do corpo já ganha maior status, como a caracterização física, a forma de tornar

expressivo o corpo, o tempo-ritmo e plasticidade no movimento, a dicção e o canto, títulos estes

que abrem os capítulos do livro. Em A Criação de um papel os aspectos ditos subjetivos e

objetivos, físicos e psíquicos são mais claramente enunciados por Stanislavski como

1 Reflexões geradas nos ensaios de “O Inspetor Geral”, de Gogol.

Page 18: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

18

indissociados. Esta busca de unidade entre corpo e espírito é estabelecida por meio dos estados

conscientes e inconscientes, e é a ação física a estratégia para a ignição do trabalho do ator.

Stanislavski aborda, acima de tudo, a complexidade do organismo humano e seu sistema

de atuação não pode ser compreendido, plenamente, sem as conexões com as teorias

psicofísicas de sua época. Enfatizo que não é uma relação de causa e efeito, ou de filiação ou

influência de procedimentos da ciência na arte, ou vice-versa, mas do compartilhamento de

processos de conhecimento e hipóteses investigativas num determinado contexto. O diretor

russo elaborou questões ontológicas, filosóficas e epistemológicas sobre o trabalho do ator a

partir de procedimentos extremamente experienciais, e constantemente auto-avaliados,

provenientes da própria arte teatral, e que não se restringiam a uma abordagem teórica, no

sentido do estabelecimento de categorias gerais ou a priori2. “Arte não é ciência”, reconhece

Stanislavski (1995, p. 80), embora, para ele, o artista devesse buscar, constantemente, materiais

e conhecimentos na vida e na ciência.

As investigações junto a seus atores culminariam em novas diretrizes para os estudos a

respeito da interpretação do ator e, mais do que isso, para uma teoria do corpo. O seu sistema

apresenta uma consistente contribuição para os estudos do corpo e da ação, por meio de

questões sobre a relação corpo e mente e corpo e ambiente. As questões que Stanislavski (1989)

propôs possibilitam ao ator “trabalhar sobre si mesmo” e sobre a personagem3, apontando para

procedimentos a respeito de como o ator conhece e se conecta com o seu ambiente, se relaciona

com sua memória, imaginação, consciência, inconsciente e vontade, e altera seus estados

corporais e mentais.

O sistema de Stanislavski enfatizou a dimensão prática do trabalho do ator por meio do

problema mente-corpo, sendo as reflexões quanto ao método das ações físicas o ápice desta

dimensão.

Em outras palavras, não analisamos nossas ações com a razão,

friamente, teoricamente, mas as atacamos pela prática, do ponto

de vista da vida, da experiência humana [...] trata-se de um

processo de análise interior e exterior de nós mesmos, como

seres humanos nas circunstâncias da vida de nosso papel.

(STANISLAVSKI, 1995, p. 249).

2 Por a priori entende-se o enunciado tautológico ou analítico e por a posteriori a verdade empírica. De acordo com a noção kantiana, o conhecimento a priori é obtido pela razão pura, pelo raciocínio, anterior e independente da experiência (ABBAGNANO, 2000, p. 76). 3 Em Minha vida na arte, Stanislavski (1989) define seu método como dividido em duas partes: o trabalho do ator sobre si mesmo e sobre o papel.

Page 19: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

19

O método das ações físicas é enunciado por Stanislavski como o resultado das

investigações de toda a sua vida, após um período inicial de pesquisas relacionadas aos

processos emocionais. Porque ele utilizou o termo ação “física” ao invés de “psicofísica”? Esta

questão apontada por Richards (2001) importa na medida em que a busca de Stanislavski é

permeada, todo o tempo, pela união entre corpo e espírito, nas dimensões físicas e psíquicas do

ator. O termo ação física, no entanto, não pode ser entendido como exclusão ao que é

comumente descrito como não físico, mas a partir da premissa de que a entidade física carrega a

dimensão psíquica ou espiritual em sua própria operacionalidade, sendo possível ser

vislumbrada do exterior, ou seja, na ação do corpo.

Ao requisitar o comprometimento do corpo do ator na experiência, Stanislavski não

excluiu a necessidade do pensar ou do analisar, mas instaurou uma espécie de deslocamento da

atividade cognitiva. Ao invés da exclusiva análise por meio das operações eminentemente

cerebrais (o “frio” cérebro) ou mentais, ele propôs ao ator pensar com suas ações, ou seja,

pensar com todo o seu corpo. Esta formulação permite estabelecer conexões com as mais

recentes abordagens das ciências cognitivas, como veremos no decorrer deste estudo. O

conhecimento do que o corpo em ação experimenta e desencadeia favorece a construção de um

outro tipo de entendimento para os processos cognitivos, secularmente creditados a incidência e

hegemonia de uma mente (enquanto uma entidade imaterial) sobre um corpo que se faz

instrumento.

Não é sem motivo que a palavra drama é derivada de ação4, e o ator, visto como aquele

que age, posto que “a vida é ação”, enfatiza Stanislavski (1995, p. 63). Quando formula o

método das ações físicas o mestre russo admite que o corpo em ação fornece um caminho mais

natural e seguro para que o ator atinja uma postura cênica. Esta descoberta estava relacionada à

constatação de que não há controle sobre os sentimentos, sob o entendimento de que os

fenômenos do espírito são imateriais e evanescentes. Esta é, segundo Grotowski (1990), a

grande revelação do último período de investigação daquele que ele considerava como seu

mestre. Nos primeiros anos de pesquisa Stanislavski intensifica o enfoque sobre os processos

interiores, nomeando como “linha das forças motivas” da vida psíquica o trabalho sobre a

emoção e o sentimento. Isolados das suas causas naturais, as emoções e sentimentos deveriam

ser revividos através de um processo introspectivo e a mente e a vontade seriam as responsáveis

4 O drama pode ser definido etimologicamente como em ação, do original grego Spãua. Stanislavski (1995, p. 62) salienta que no sentido grego, a ação refere-se à literatura, à dramaturgia, à poesia, e não ao ator e sua arte. Ainda assim, o ator tem direito de apropriar-se da palavra.

Page 20: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

20

por desencadeá-los5. As emoções do ator estavam, para o diretor, ligadas a evocação de resíduos

da memória de suas experiências, passíveis de serem relacionadas as da personagem e em

circunstâncias dadas. Estas circunstâncias diziam respeito aos elementos, geralmente ditados

pelo texto teatral, referentes ao contexto existencial e histórico da personagem e aos demais

aspectos da encenação.

Com o método das ações físicas, o universo afetivo guardado na memória do ator e,

anteriormente, despertado por meio de processos mentais, passa a ser atualizado pelo corpo. O

ator é motivado a responder a questão do “reviver” experiências “organicamente”, através da

improvisação de ações físicas. Ainda assim, adverte Isaacsson (2004), não significa que

Stanislavski tenha afirmado, categoricamente, que a ação gera a emoção, mas que os afetos

podem ser estimulados pelo corpo. Não por um movimento qualquer, mas pela compreensão

das razões e impulsos que motivam as ações. Stanislavski afirma que a ação física é a chave

para as emoções e a esfera criativa do ator, na medida em que percebe que os aspectos físicos e

espirituais possuem elos indissociados. Vinculada ao corpo, a noção de memória das emoções é

estendida, posteriormente, para a memória das sensações, fruto da experiência dos sentidos.

A afirmação da opção metodológica via ações não parece ter sido de fácil aceitação

inicial, em sua época. A idéia de que “uma série simples de ações físicas, realísticas, tem a

capacidade de engendrar e criar a vida mais elevada de um espírito humano em um papel”

causava estranhamento até entre os seus atores, já que o próprio diretor, anteriormente,

orientava-os a penetrar nas vias do sentimento através da memória afetiva (STANISLAVSKI,

1995, p. 250). É conhecida a consonância inicial de Stanislavski com as teorias do psicólogo

francês Théodule Ribot (1839-1916) a respeito das emoções e da memória, cuja nova

abordagem aproxima-se das ciências biológicas, tema este que será abordado com mais

profundidade no capítulo 4.

A análise das ações físicas era realizada nas circunstâncias determinadas da personagem

e pressupunha não a participação exclusiva do cérebro, mas o comprometimento de todo o

organismo, via ação: “Vocês estarão em movimento e não parados num só lugar, ou pensando

nas coisas com o seu intelecto. Vocês estarão em ação”, argumenta o mestre russo ao salientar a

importância de criar a vida física do papel (STANISLAVSKI, 1995, p. 245). O conhecimento

adquirido pelos atores nos primeiros anos de investigação, através da análise via intelecto e

emoção, e realizados nos exaustivos trabalhos de leitura de mesa parecia afastá-los, de alguma

5 O período da Linha das Forças Motivas corresponde ao do Teatro de Arte de Moscou, fundado juntamente com Dântchesko, em 1898, quando Stanislavski toma contato com autores contemporâneos como Tchékhov, ao da experiência com o Estúdio de Ópera. Fundado em 1918, este Estúdio propiciou a experimentação com elementos que culminariam no método das ações físicas.

Page 21: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

21

forma, da possibilidade de um conhecimento encarnado, só possível através do corpo em ação.

O que não quer dizer que Stanislavski teria negado totalmente a etapa do trabalho de mesa, ao

propor o método das ações físicas. O que houve foi um desmanche dos limites e da seqüência

entre estes dois processos, o de, primeiramente, “sentir e analisar o papel” e a posterior

“corporificação” da lógica e consecutividade do personagem na ação6.

Para o diretor russo, a mais simples ação física obrigaria o ator a criar “toda sorte de

ficções imaginarias, circunstâncias propostas e ‘ses’”, demonstrando que a nova abordagem

metodológica absorvia as suas descobertas anteriores (STANISLAVSKI, 1995, p. 250). O

“como se” faria o ator se aproximar do universo da personagem, perguntando-se o que e como

faria se estivesse nas circunstâncias deste. O acesso físico ao papel agiria como uma espécie de

“isca” para fisgar o sentimento criativo, este mais difícil de manejar, mais “esquivo, efêmero e

caprichoso” (STANISLAVSKI, 1995, p. 162). A iniciação física dos papéis atenderia às ordens,

aos hábitos e à disciplina. Sendo mais “material”, o corpo é “convocável”, admite o mestre

russo, ao contrário dos processos mentais e do sentimento, que para ele pertenciam a uma esfera

mais imaterial. Se as ações elaboradas pelo corpo fossem vividas sinceramente, com sentimento

de fé e verdade, a “vida espiritual” do papel emergiria (STANISLAVSKI,1995, p. 169).

Na concepção de Stanislavski, as ações são elementos do comportamento, ações

elementares verdadeiramente físicas, mas ligadas ao fato de acionar outras ações. Grotowski

(apud JIMENEZ, 1990, p. 493) exemplifica por meio de uma cena hipotética, que demonstra

um jogo de forças contraditórias: “Olho nos olhos do outro, trato de dominar. Observo que está

contra. Não olho, porque não encontro em mim os argumentos”. Todas as forças elementares do

corpo se orientam em direção a si mesmo e a alguém, como escutar, olhar, atuar com um objeto,

encontrar os pontos de apoio etc. A questão do ritmo também contribui para a consolidação da

ação física, na medida em que Stanislavski (1989, p. 81) percebia que era um elemento

unificador da palavra e do gesto, o que chamou de um tempo-ritmo interno e espiritual, mais do

que um tempo-ritmo físico externo.

Muitos fatores determinaram o direcionamento de Stanislavski para uma pedagogia do

corpo. Serrano (1996) aponta para as prováveis implicações políticas, pois a afirmação da

materialidade do corpo estava próxima da formulação marxista, que sustentava a necessidade de

começar o trabalho a partir das questões materiais e visíveis, para, só então, criar as condições

para a aparição da vida espiritual e, mais especificamente, para o mestre russo, da vida

subconsciente. Importa salientar o ambiente no qual ele estava inserido, dado que a União 6 “Não estou contra as discussões em si, nem tampouco contra o trabalho de mesa, mas contra realizá-lo no tempo indevido. Tudo tem que ter um tempo”. (STANISLAVSKI apud JIMENEZ, 1990, p. 242).

Page 22: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

22

Soviética, neste período, tinha o marxismo como filosofia oficial. O método das ações físicas

pode, de certa forma, ter respondido a estas demandas materialistas, associado aos estudos do

fisiologista russo Ivan-Petrovitch Pavlov (1849-1936), cuja concepção biológica do

comportamento teria fornecido argumentos para a leitura russa do materialismo dialético.

A concepção do método das ações físicas (com a convicção de que os elementos

espirituais e físicos dos processos de criação estavam irremediavelmente ligados) se devia tanto

às reflexões sobre a própria prática artística de Stanislavski e o contexto estético da produção

teatral russa dos anos 20 e 30 do século XX (incluída aí a sua iniciativa em direção às idéias de

Vsevolod Meyerhold (1874-1940), um de seus alunos mais brilhantes) quanto à contaminação

por uma visão materialista de mundo e pela doutrina dos fisiologistas russos. Pidoux (1986,

p.114) chega a afirmar que a concepção stanislavskiana de que o gesto pode suscitar o

sentimento é baseada numa ontologia científica – numa espécie de “determinismo behaviorista”

- e não sobre uma reflexão estética, e que seria menos flexível, processual e sutil que a de seus

alunos (Meyerhold e Vakhtangov), que estariam mais avançados nesta pesquisa.7 O

behaviorismo define os estados mentais em termos de suas conexões com circunstâncias e

comportamentos publicamente observáveis. O “behaviorismo filosófico” afirma que “falar

sobre emoções, sensações, crenças e desejos não é falar sobre episódios espirituais interiores,

mas um modo abreviado de falar sobre padrões de comportamento, potenciais ou reais”.

(CHURCHLAND, 2004, p. 49) Neste sentido, os estados mentais poderiam ser “parafrazeados”

a partir de uma sentença sobre que comportamento iria resultar se a pessoa estivesse numa

circunstância observável qualquer. Em detrimento da critica behaviorista e suas implicações,

que aprisionaram o comportamento e as ações a uma moldura mais determinista, e as possíveis

pressões políticas provenientes do materialismo soviético, uma leitura mais contemporânea

acerca das relações entre os fenômenos físicos e psíquicos por meio das ciências cognitivas

revela que as hipóteses de Stanislavski eram legítimas, como buscaremos salientar neste estudo.

Ele não negou a introspecção, o que foi alterada foi a estratégia de acesso a ela.

Tais relações políticas, bem como outras implicações culturais e sociais mereceriam um

estudo à parte. O surgimento de um teatro tendendo aos aspectos da “materialidade” do corpo

do ator não se apresentava como fato isolado, e se manifestava nos inúmeros procedimentos e

técnicas corporais que transformavam a moda, as artes, as ciências e os desportos nas primeiras

décadas do século XX (NUNES, 1996). O foco deste estudo direciona-se, especificamente, para

as questões formuladas por Stanislavski e as práticas cognitivas decorrentes de sua incansável 7 O “parentesco” entre o método das ações físicas e a biomecânica concebida por Meyerhold se fortaleceu a partir do compartilhamento das idéias provenientes das teorias dos reflexos condicionados, como salientaremos ainda neste capítulo.

Page 23: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

23

busca em relacionar os aspectos psicológicos (ou espirituais) e os físicos do trabalho do ator,

especialmente àqueles que geraram o método das ações físicas, e suas implicações na pedagogia

do ator. Tais formulações seriam retomadas e repensadas por Grotowski.

Há um processo complexo que envolve vários níveis do aparato cognitivo na ação de

um corpo no mundo. Stanislavski percebeu que o conhecimento do ator envolveria um ponto de

vista da experiência, um modo especial de práxis8. O que o ator conhece não se resume a

conceitos e idéias separadas de uma prática, pois é o corpo como um todo que aprende enquanto

age. O entendimento do conceito de ação e, mais do que isso, a sua “encarnação”9 enquanto

conhecimento no corpo é apontado como um dos desafios mais instigantes na prática do ator.

Os momentos de desamparo e dúvidas na geração de ações justas e orgânicas para as

personagens sempre ocorrerão, já advertia Stanislavski (1995), não importa quantos papéis o

ator já tenha construído.

Embora ciente da dificuldade de retirar do ator seu modo de pensar analítico ou

dedutivo, Grotowski (1992) também requisitou um ator que pensa com o corpo, ou melhor, com

suas ações. Um pensar-em-ação, ou pensar-em-movimento mais próximo de uma organicidade

proveniente do corpo em ação em tempo presente. A mente discursiva, para Grotowski,

classificaria demasiado e prenderia o fluxo das ações no mundo. O conceito de pensamento

passa a ser entendido enquanto uma ação experienciada no mundo e não somente processo que

requisita uma mente ou razão separada, a “razão pura ou nobre” enfatizada historicamente pela

filosofia ocidental. Este tipo de entendimento de corpo e pensamento aproxima o fazer teatral

das teorias das ciências cognitivas aqui apresentadas.

Não seria possível conhecer senão partindo do que se faz, a partir deste operar recursivo

entre o sujeito e o meio. O corpo e sua ação, portanto, significam a condição para o processo

cognitivo. Grotowski, por sua vez, deixou claro que o essencial é que tudo deve vir do corpo.

Primeiramente, o ator deve reagir fisicamente a tudo que o afeta. Antes de reagir com a voz,

deve-se reagir com o corpo. E o pensamento não se encontra separado, mas se funde na ação do

corpo.

8 Relevamos neste contexto a práxis no seu sentido arcaico grego, que significa ação, prática, o que o homem faz (BURNS, 1990), e menos como a terminologia marxista a designou, enquanto o conjunto de relações de produção e trabalho que constituem a estrutura social. Na filosofia marxista, a práxis permite ao homem, pelo seu trabalho, transformar a natureza, transformando-se também a si mesmo, numa relação dialética. (ABBAGNANO, 2000). 9 O sentido de encarnação empregado não se refere a algo imaterial que adentra o corpo, mas a corporificação, ou no termo inglês embodied das idéias, no sentido de algo que se torna conhecimento no corpo a partir da ação deste no mundo envolvendo o sistema sensório-motor.

Page 24: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

24

Se se pensa, deve-se pensar com o corpo. No entanto, é melhor

não pensar, e sim agir, assumir riscos. Quando falo em não

pensar, quero dizer não pensar com a cabeça. Claro que se deve

pensar, mas com o corpo, logicamente, com precisão e

responsabilidade. Deve-se pensar com o corpo inteiro, através de

ações. (GROTOWSKI, 1992, p. 174).

Considerando que é a ação do ator que conecta os elementos da atuação e a sua

constituição é um processo de conhecimento, o tipo de práxis a que o ator está sujeito pede por

uma estratégia de conhecimento onde o pensamento se dá no processo acional, ou seja, como

salienta Grotowski (1992), num pensar em ação. Hoje quase todas as teorias cognitivas que

pesquisam estas questões não duvidam das implicações sensório-motoras e da fisiologia dos

estados mentais e da correlação dos processos do corpo e da mente, mas ainda é possível

detectar discursos e práticas artísticas que tratam o corpo como um instrumento de uma

entidade imaterial e desencarnada (mente, alma ou espírito) e o pensamento separado do corpo.

A extrema oposição entre matéria e mente, a algum tempo, foi abandonada pelas ciências da

mente e um novo entendimento da relação corpo e mente requer o abandono da decantada idéia

cartesiana de distinção abissal entre a mente e o corpo, da nítida divisão entre percepção,

cognição e ação e da separação entre pensamento e ação.

O ator do início do século XX precisou se convencer de que tinha todo um corpo

expressivo, além das mãos e do rosto para “espelhar sua alma”, e desenvolveu técnicas para

poder “instrumentalizá-lo” devidamente. O movimento recuperou a importância frente aos

outros elementos teatrais e, a partir de então, o ator direcionou o seu ofício para as ações do

corpo através de inúmeras técnicas que se desenvolveram para este fim. Estava o ator, estava o

seu corpo, evidentemente. Mas, ainda, um corpo comandado por um “piloto fantasma”, mesmo

que dedicado. Já detectada por encenadores como Eugênio Barba, a metáfora mecanicista não

deveria se sustentar mais: “[...] o corpo não é um instrumento, não é algo que alguém possa

forçar a se expressar” (BARBA, 1994, p. 92). O corpo não pode ser plenamente manipulado ou

controlado por um comando central mental a priori, posto ser um “ente-em-vida”, em constante

estado de instabilidade e auto-organização, segundo uma complexa rede de conexões

distribuídas por todo o organismo. O ator não tem um corpo. Ele é o seu corpo, e para entendê-

lo, há que contemplá-lo em ação, em vida.

Quando valorizou os impulsos internos e o fluxo das ações, Stanislavski buscou romper

com a visão mecanicista, aproximando-se da visão vitalista. A noção de organicidade da ação

Page 25: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

25

física ganha implicações ainda maiores com as investigações efetuadas por Grotowski (1990). A

vitalidade e seu circuito interno de sensações, impulsos e afecções, próprios aos sistemas

orgânicos, tornaram-se a chave para o contraponto aos resquícios de uma atuação mecânica, no

sentido de uma previsibilidade e literalidade, observada na repetição de gestos e padrões mais

fixos de representação. A noção de organismo e de organicidade, contudo, não pode ser

entendida longe de sua oposição à noção de máquina e de mecanismo, pois ambas são figuras

de organização e harmonia do universo e do homem. (SCHLANGER,1971, p. 59).

Até mesmo Vsevolod Meyerhold (1874-1940), o genial “discípulo” que se oporia às

idéias introspectivas iniciais do mestre Stanislavski reconheceu as armadilhas decorrentes da

analogia à precisão e organização da máquina. O “defeito do mecanicismo”, de acordo com

Meyerhold (apud HORMIGÓN,1992, p. 291), “[...] consiste em haver estudado com a maior

seriedade a personagem, mas privá-lo de sua alma, de modo que o ator começa a tomar uma

espécie de estado definitivo e a recorrer a procedimentos acrobáticos. O ator se transforma,

assim, em um fantoche”. Uma interpretação mecanicista estaria ligada ao fato de o “cérebro

humano estar adormecido, então os reflexos normais atuam por si sós”. (MEYERHOLD apud

HORMIGÓN,1992, p. 291).

As propostas do sistema biomecânico, enunciadas por Meyerhold em 1922, foram

apresentadas, de acordo com ele, muitas vezes como uma “falsa luz”, e reduzidas a uma função

estética. O ator biomecânico deveria conhecer as leis rítmicas e espaciais do corpo,

desenvolvendo capacidade de reação a estímulos externos, mas os exercícios deveriam ser

propostos com uma clara função pedagógica. Tampouco a agilidade e a precisão do movimento

deveriam se eximir de motivações relacionadas a personagem, sua psicologia e a idéia geral do

espetáculo.

[...] não treinamos somente a fisiologia, mas também o cérebro, e

não se trata de um simples treinamento, mas de uma visão

dialética do treinamento [...] Não fazemos uma distinção entre a

matéria espiritual e física, como os vitalistas e os mecanicistas

[...], o ator para nós não é somente um corpo, o ator para nós é

um tribuno, um filósofo. (MEYERHOLD apud CHAVES, 1999,

p. 130).

Na abordagem das ações físicas, Stanislavski (apud JIMENEZ, 1990, p. 253) chamava a

atenção para os clichês e a atuação “mecânica”: “[...] evitem ‘atuar’ simplesmente, recorram ao

Page 26: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

26

‘o que faria?’. Isto produzirá em vocês a necessidade interna da ação”. A resposta viria pelo

comprometimento do corpo em ação ao fisgar os conteúdos internos. Stanislavski afirmou a

natureza extensa e material do corpo, posto que é, incomparavelmente, mais “sólido” e pode ser

“convocado”, opondo-o a natureza intangível de estados internos como os sentimentos. Não

obstante a esta atribuição dualista, sua busca pela unidade corpo-alma, quando concebeu o

método das ações físicas, atribuiu ao corpo em ação uma possibilidade de desencadeamento de

processos antes creditados, exclusivamente, aos processos mentais. A concepção dos primeiros

anos de pesquisa de Stanislavski estava impregnada de aportes espiritualistas, contaminada,

inclusive, pelas filosofias orientais. A “comunicação teatral”, termo que ele utilizava no

período, dos atores de sua época era visto como algo fundamentalmente espiritual e a cargo das

emoções e sensações, sendo os planos imateriais e os corporais definidos e separados. Serrano

(1996) enfatiza que esta concepção cartesiana de corpo foi sendo modificada na medida em que

o diretor russo avançava no método das ações físicas.

As observações de Stanislavski apontavam para o fato de que a repetição das ações

engendrava, cada vez mais, um fio contínuo e ininterrupto das ações, o que ele chamou de

“linha do ser vivo”. O ser físico do papel, contudo, já criava a entidade espiritual, por sua conta

e independente da vontade e consciência. Quanto mais os atos físicos eram realizados, mais

definida ia se tornando a linha espiritual. Stanislavski (apud JIMENEZ, 1990, p. 253) utilizava a

metáfora da fertilidade das sementes para explicitar esta relação, uma vez que, “[...] quanto mais

idéias imaginativas o ator criar, mais elas cobrarão vida e se fundirão com a entidade física, ao

mesmo tempo em que evocarão novas ações”. Afirma, ainda, Stanislavski (1995, p. 239) que

“em toda ação física, a não ser quando é puramente mecânica, acha-se oculta alguma ação

interior, alguns sentimentos”. Assim se formariam os dois planos da vida de um papel – o

interior e o exterior. O interior suscita a metáfora da organicidade e o exterior a da

mecanicidade. A atuação justificada se oporia à atuação mecânica.

As idéias de Stanislavski aparentam, a princípio, uma dualidade nas relações entre corpo

e espírito, interior e exterior, mas um olhar mais acurado revela a sua incansável investigação

das conexões entre aos fenômenos materiais e imateriais da conduta humana. A conclusão a que

ele chega é que, apesar de serem substâncias distintas, há um elo entre o corpo e alma que é

indissolúvel. E que os aspectos materiais e extensos do corpo também dão ignição e legitimam

os processos criativos próprios à entidade espiritual.

A abordagem dualista do problema mente-corpo sustenta que a natureza da mente e da

inteligência consciente, ou da alma ou espírito, está em algo não físico, e que não pode ser

compreendido ou reduzido em termos dos conceitos das ciências físicas. Esta qualidade não

Page 27: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

27

física, é independente mais se conecta aos corpos físicos. O filósofo René Descartes (1596-

1650), mais do que Platão, formatou o chamado dualismo da sustância. A teoria cartesiana

instituiu uma importância não somente para a substância pensante, por meio do célebre “penso,

logo existo”, mas para a substância material, que ocupa extensão no espaço. Porém a substância

mental restou ainda ausente de atributos físicos. Descartes foi um dos filósofos e fisiologistas

mais entusiásticos e criativos de sua época, defensor de uma filosofia “mecânica”.

(CHURCHLAND, 2004, p. 27).

Para Descartes, o “eu” não é o corpo material, mas a substância pensante, que ele

considerava como imaterial e não espacial, localizada dentro da cabeça. Mas um problema já se

impunha a Descartes: se a substância mente é diferente da substância corpo, como se daria a

influência causal da substância incorpórea sobre a matéria? Descartes acomodou o problema

sugerindo que eram os “espíritos animais”, uma substância material muito sutil, que transmitia a

influência da mente sobre o corpo. A máquina do corpo seria movida pela alteração dos

movimentos dos espíritos, cabendo a estes abrir espaços no cérebro. O contato direto entre as

duas substâncias se daria por meio da glândula pineal, a única parte do cérebro capaz de unificar

as imagens dos sentidos, por não possuir a conformação dupla comum à estrutura cerebral e aos

órgãos do sentido (olhos, mãos, orelhas).

Atualmente, não seria mais possível afirmar a ausência de extensão da mente, tampouco

a extensão da matéria. Se, por um lado, a mente tem sido entendida pelas ciências como

encarnada, as partículas da matéria, como os elétrons, por outro, têm sido descritas, há algumas

décadas, após o advento da física quântica, como partículas pontuais sem extensão nem posição

definida no espaço. A separação entre mente e corpo por meio da categorização de substâncias

tornou-se tênue, mas a teoria do “fantasma na máquina”10, cujo corpo é visto como um

mecanismo comandado por uma substância misteriosa de constituição totalmente diferente,

ainda assombraria as teorias teatrais. A idéia do corpo como instrumento conforma as metáforas

corpo-máquina e corpo-organismo, dando suporte para as noções de mecanicidade e

organicidade nas ações físicas do ator.

1.2 Genealogia da metáfora

Antes de analisar as implicações das metáforas mecanicistas e vitalistas na construção

da ação física do ator, desenvolvida por Stanislavski, saliento o diferencial do conceito de

10 Gilbert Ryle (1949), em O conceito de mente, faz uma crítica ao dualismo fazendo alusão à metáfora do fantasma na máquina.

Page 28: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

28

metáfora aqui empregado, pois rompe com o consolidado enfoque ditado pela tradição retórica

ocidental. A década de 1970 marcou o início do deslocamento dos estudos sobre a metáfora do

campo da linguagem para a sua inserção no campo da epistemologia e da psicologia cognitiva.

A metáfora passa a ser entendida não somente como padrão de pensamento e organização da

linguagem, mas como estruturadora da própria atividade cognitiva, proporcionando ignição aos

atos do corpo. O sentido de metáfora que está na etimologia grega – transporte ou transferência

de significado com base numa analogia, ou seja, atribuir a uma coisa um sentido que pertence à

outra coisa – não ocorreria somente no emprego sedutor e eloqüente da palavra, mas na forma

de pensarmos e agirmos como um todo11. No caso da metáfora mecanicista, o corpo é visto

como instrumento da alma, ou o corpo é uma máquina, sendo que as propriedades e

procedimentos próprios ao funcionamento das máquinas e a noção de instrumento são

transportados para o ambiente orgânico.

O lingüista George Lakoff e o filósofo Mark Johnson instauraram de vez o novo

entendimento demonstrando que a metáfora faz parte da vida cotidiana e que é essencial para a

conceitualização do mundo. Desde a Antiguidade a aplicação figurada da palavra e as regras de

eloqüência da retórica colocaram a metáfora no campo da emoção e imaginação, vista como

algo “subjetivo” e longe, portanto, da explicação “objetiva” das coisas. O novo entendimento de

metáfora une razão e imaginação, oferecendo uma alternativa à oposição entre concepção

objetiva e subjetiva. Ela é, neste sentido, uma racionalidade imaginativa, ou seja, uma forma

imaginativa da racionalidade imprescindível a nossa conceituação do mundo (LAKOFF;

JOHNSON, 2002, p. 304). Os conceitos estruturam nossa percepção e comportamento no

mundo, e estes processos de organização do pensamento são, em grande parte, metafóricos.

Johnson estabeleceu na década de 1980 uma relação entre corpo, movimento e

conhecimento tendo as metáforas como desencadeadoras dos processos cognitivos. Partindo dos

estudos da lingüística os dois pesquisadores iniciaram uma investigação do que Johnson

chamou de “corpo na mente” (the body in the mind) (Greiner, 2003, p. 142). A origem motora

das metáforas diferenciaria estas relações. De acordo com Lakoff e Johnson (1999) para evocar

quaisquer questões usualmente creditadas ao ato de volição, usamos uma razão formatada pelo

corpo, por uma cognição inconsciente que não temos acesso direto e pensamentos metafóricos,

ou seja, conexões neurais associadas à experiência sensória motora, o qual nós pouco

11 Até mesmo os mais recentes estudos críticos sobre a Retórica já sinalizam que as chamadas figuras ou artifícios de elocução não são apenas manipulações verbais enumeradas a maneira de um catálogo, mas surgem em relação a procedimentos de pensamento e a um contexto de todo o enunciado (BARTHES, 2001).

Page 29: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

29

percebemos. Para compreender as coisas e agir no mundo categorizamos experiências, objetos e

pessoas e estas categorias, antes de serem conceitos estabelecidos, emergem diretamente de

nossa experiência na interação de nossos corpos com o ambiente. A estruturação de nossa

experiência por meio da metáfora se manifesta nas ações cotidianas e nas ações ficcionais da

arte, evidentemente, e se dá de forma consciente e inconsciente. Mesmo subterraneamente é

possível vislumbrarmos campos metafóricos reincidentes na relação do corpo com o ambiente.

Do amplo estudo sobre a metáfora, interessa para este estudo captar as maneiras com

que certas metáforas nortearam o conceito de corpo e a formulação da ação física no

pensamento de Stanislavski e Grotowski. As metáforas enunciadas no discurso de ambos

provinham de uma práxis intensa e sistemática junto aos atores. Stanislavski (1995, p. 245), ao

expor sua nova metodologia através do método das ações físicas, se valeu de metáforas tais

como as coisas do espírito “são evanescentes” para falar da não confiabilidade dos sentimentos

no trabalho do ator e da imagem de “trilhos sólidos” para falar da concretude e materialidade

das ações físicas. Desta forma, a “vida espiritual” deveria ser acessada por intermédio da

“entidade física”. Mas há outros princípios metafóricos reincidentes que estruturam a visão de

corpo e a noção de ação física, como veremos mais adiante.

O que é mais importante, de acordo com Lakoff e Johnson (2002), não é somente que

temos corpo e que nosso pensar é, de alguma forma, incorporado, mas sim que a natureza

peculiar de nossos corpos molda nossas possibilidades de conceituar e categorizar. Um conceito

incorporado é uma estrutura neural que faz parte ou usa o sistema sensório-motor do nosso

cérebro12 e, neste entendimento, a categorização que efetuamos a fim de compreendermos e

agirmos no mundo não seria uma atividade mental “pura” e desencarnada que se aplica a priori,

condicionando o conhecimento intelectual e a própria experiência. A categorização, este

instrumento conceitual de investigação e expressão lingüística e comportamental, não é produto

de uma consciência separada, mas da participação do aparelho sensório-motor. A formação de

conceitos e categorias é experiencial. O pensar-em-ação proposto por Stanislavski e Grotowski

não implica somente em caminhar ao pensar, ou mover o corpo enquanto se racionaliza sobre

algo, mas significa que o processo que nos permite pensar e criar categorias e metáforas

requisita o aparelho sensório motor representado em regiões localizadas no cérebro. O que

implica, por exemplo, que ao realizar uma ação física – que envolve necessariamente o sistema

motor, o ator aciona, simultaneamente, circuitos responsáveis pelos processos emocionais e

racionais.

12 Traduzimos o termo em inglês embodied como incorporado. (LAKOFF ; JOHNSON, 1999, p. 20).

Page 30: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

30

Outro aspecto a considerar é que somente uma pequena porcentagem de nossas

categorias é formada conscientemente, pois é impossível termos controle sobre todo o processo.

Mesmo quando pensamos que estamos controlando deliberadamente a categorização e

conceituação do mundo, nosso inconsciente está agindo metaforicamente. Nem sempre

percebemos que expressões e ações são metafóricas, e elas certamente agem sobre nossa

concepção de mundo. Metáfora tais como corpo é instrumento, atuação mecânica, mente como

computador, linha espiritual, presença orgânica ou corpo como máquina se naturalizam nos

discursos teatrais, mesmo naqueles mais atentos às armadilhas dualistas, pois muitas destas

formulações estão impregnadas de conceitos questionáveis, na atualidade, no que se refere ao

problema corpo-mente.

A nossa experiência, de acordo com Johnson (1987), é estruturada através do

embodiment de certos esquemas de imagens sinestésicas. Um deles é o esquema do recipiente

ou contêiner, que consiste na distinção de fronteiras entre o dentro e o fora. Aparentemente

separados do mundo por meio da superfície de nossa pele, vemos o mundo como fora de nós.

Conceitualizamos uma infinidade de atividades em termos desta imagem e, mais do que isto,

entendemos e experienciamos nosso próprio corpo como contêiner. Dos comportamentos da

vida cotidiana aos cênicos, toda coisa inicia ou está sempre dentro ou fora de um determinado

contexto, no interior ou no exterior ou no máximo, na fronteira entre ambos. Experienciamos a

nós mesmos como entidades separadas do mundo e, mesmo que não haja fronteiras definidas,

quando o tato e a visão não dão conta de averiguar, temos a propensão de projetar contornos e

limites.

Das tantas metáforas que surgem no processo de formação do ator e que interferem no

“trabalho sobre si mesmo” e na materialização das ações, está a mais antiga e difundida

concepção de corpo: a que o considera o instrumento da alma. Desta visão instrumentalista se

originam as metáforas do corpo-máquina e do corpo-organismo, e que conformariam o conceito

de ação física. O próprio conceito de mente separada do corpo é um conceito metafórico

baseado no princípio do corpo como recipiente de uma alma ou mente desencarnada.

1.3 A metáfora do corpo como instrumento

As descrições de caráter mecanicista e organicista do corpo se mostram no discurso

artístico de maneira, muitas vezes, explícita, com referências incontestes à visão do corpo como

máquina, marionete ou instrumento, outras vezes, de forma sutil ou, até mesmo, involuntária.

Mais do que presentes no discurso verbal ou escrito, as metáforas estão incrustadas nas formas

Page 31: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

31

de ação e sustentam o comportamento humano em geral. A metáfora do instrumento conforma a

idéia de que alguém ou algo de fora manipula e coordena as atividades de dentro. A do corpo

como máquina, embora reivindique o entendimento de uma estrutura autônoma que se mantém,

ainda requisita algo de fora que lhe legitime. Já o termo organismo submete sua estrutura

biológica às leis mecânicas, com as noções de harmonia e organização das partes, em função de

um todo.

O conceito de alma descrito no Phaedrus de Platão (428-348 a.C) introduz as primeiras

concepções ocidentais sobre controle e coordenação, localizando na alma o princípio gerador do

movimento. Platão afirma que o que faz mover o corpo, a alma, é imortal. Ou seja, a distinção

entre a natureza material do corpo e imaterial da alma se encontra na gênese do conceito de

movimento e de ação. Platão define a alma como independente de sua ligação ao corpo. Mas,

contrariamente a perspectiva separatista de Platão, Aristóteles considera a alma ligada

fundamentalmente à atividade do corpo, ainda que não misturada a ele. Segundo uma

perspectiva biológica e metafísica e admitindo a união entre coisas sensíveis e formas, afirma

que é a alma que forma o corpo (QUILLIOT, 2003). Interessado em observar e descrever o

comportamento físico dos vivos, do animal ao homem, Aristóteles estuda as funções do

organismo segundo a perspectiva da união existencial da alma e do corpo.

Aristóteles (apud ABBAGNANO, 2000, p. 21) mantém a visão do corpo como “certo

instrumento natural” da alma; sendo a alma o princípio primeiro do movimento. O machado é o

instrumento de cortar; mas não se assemelha totalmente ao organismo, visto que o corpo “tem

em si mesmo o principio do movimento e do repouso”. Embora diferencie o corpo dos

instrumentos não vivos, o princípio aristotélico não reconhece que este possa se mover, causar

ou mudar a si mesmo, condenando o corpo a instrumento de algo fora dele, ao invés de agente

de seu próprio processo. Os movimentos ocorreriam pelo atrito dos átomos a partir de uma

força causal externa, e não a partir de uma causa interna ou própria ao corpo. O estado do

organismo dependeria de algo fora dele, pois nem o corpo, tampouco a alma poderiam causar a

si mesmos. O princípio ativo do movimento do animal e do homem necessita de algo externo;

um animal feroz necessita da imagem externa de uma gazela para que sua alma, até então

passiva, cause o movimento interno do corpo, igualmente passivo (JUARRERO, 2002, p. 18).

Na antiguidade clássica, a metáfora sobre o movimento humano era a do ser vivo. A

idéia de uma natureza inanimada surgiria somente no século XVI, possibilitando a noção de

corpo como máquina. Aristóteles diferenciou o movimento vivo do movimento de uma

marionete, pois a manipulação de cordas do inanimado provocaria um movimento determinado.

Já o movimento do ser vivo apresentava variações, conforme a natureza. Todo ser se move por

Page 32: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

32

algo, e este movimento é sempre algo distinto do movido.

O termo organismo deriva etimologicamente do radical grego organon, e designa o

corpo vivo naquilo que o distingue do corpo não vivo. A idéia de totalidade é a principal

característica na noção de organismo, e se determina pela sua estrutura finalista. Formulado

primeira vez por Aristóteles, o conceito de organismo associa-se igualmente à noção de

ferramenta, pois “o corpo, que é um instrumento como o machado – visto que cada uma de suas

partes, assim como sua totalidade, tem uma finalidade própria, da mesma forma que o

machado” (ARISTÓTELES apud ABBAGNANO, 2000, p. 732). Nesta noção, a estrutura do

organismo subordina-se à sua função, isto é, sua finalidade de sobreviver como organismo.

Cada parte do corpo tem um fim próprio, uma ação específica, e se subordinam ao todo.

A partir de Aristóteles, o conceito de fim fundamenta a noção de organismo, e

permanece quando Descartes considera o organismo como uma máquina. Um relógio ou

qualquer outra máquina também tem seus fins, e o organismo, ao ser comparado a ela, reafirma

sua finalidade. Contudo, para Descartes, a estrutura finalista do organismo não depende de uma

força exterior a ele, a alma, como pensavam Aristóteles e Platão, mas da coordenação de suas

partes, ou seja, da organização, tal qual um autônomo. O corpo cartesiano é uma configuração

articulada de órgãos, mas que dispensa a alma para impulsionar o seu movimento.

As relações de causa e efeito e a explicação de qualquer coisa, incluso o comportamento

humano, desde Aristóteles, requer a identificação do papel que cada causa desempenha. O

desenvolvimento de potencialidade em atualidade é um dos aspectos centrais na filosofia de

Aristóteles, e é explicada em termos das quatro causas que fazem gerar as coisas no mundo:

a) a causa material (elementos e substância segundo os quais algo é criado);

b) a causa eficiente (as forças e os meios pelos quais o objeto é criado);

c) a causa formal (a expressão e totalidade do que o objeto é);

d) a causa final (a finalidade para a qual foi criada a coisa, para a qual tende).

Tomemos o clássico exemplo de uma escultura em mármore. A causa material é o

elemento mármore, que conteria a potencialidade da estátua em sua massa amorfa. A causa

eficiente é a ação do escultor, que transforma o mármore em forma. A causa formal é a idéia da

escultura completa e que existe como plano na mente do escultor. A causa final é o propósito

para o qual a escultura aponta ou se dirige.

O entendimento aristotélico de que o organismo não causa a si mesmo e depende de

fatores externos, associados à concepção mecânica newtoniana (e da filosofia moderna) de que

a causalidade é o impacto de forças externas na matéria inerte teve reflexos incalculáveis nas

teorias sobre ação e movimento. O conceito tradicional de ação na filosofia, assim como em

Page 33: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

33

determinadas teorias teatrais do ator, carrega ainda a noção clássica de causalidade e efeito.

Gerada no âmbito da filosofia, a teoria da ação busca marcar limites entre a ação e a não ação, o

comportamento voluntário e o não, e a relação entre consciência e comportamento, já

sinalizadas por Aristóteles na Ética a Nicômaco.

Salienta Juarrero (2002), que muitos enganos persistirão até a teoria da ação abandonar a

visão mecânica da causalidade. Em detrimento das mudanças de pensamento sobre o corpo e

suas aptidões cognitivas, a herança de Platão e Aristóteles, aliada à visão iluminista e ao

dualismo cartesiano corroborarão para a permanência da idéia de que o corpo é um instrumento

de algo fora dele mesmo, seja nos seus procedimentos naturais como em suas habilidades

culturais. Este pensamento gerou a metáfora do “fantasma na máquina”, que advoga que somos

habitados por uma alma imaterial, e que não pode ser reduzida a funções cerebrais. A

neurociência nos mostra, hoje, que todos os aspectos da vida mental, como emoção, sentimento,

pensamento e memória podem ser vinculados a atividades fisiológicas e biológicas, como

Stanislavski e Meyerhold já intuíam de certa maneira, e a estruturas do cérebro. Não obstante, a

metáfora mecanicista e seu fantasma terão uma sobrevida extraordinária na arte.

1.4 O Corpo cênico como máquina

A noção de corpo como máquina remete para algo que pode ser manipulado (ligado e

desligado), com níveis de operacionalidade e eficiência, e um tipo de mecanismo interno e fonte

de energia própria. A filosofia de Descartes consolidou o entendimento de corpo separado de

seu pensamento e sua alma. O corpo seria uma “estátua movente ou máquina”, tendo no seu

interior todas as peças necessárias para o seu funcionamento, apenas pela disposição dos órgãos.

Os meios que o filósofo dispunha para observar o funcionamento interno do corpo eram

provenientes das experiências de dissecação anatômica, procedendo do visível para o invisível.

Descartes eleva o status do corpo na ciência, tendo a máquina como metáfora onipresente, em

sintonia com as leis mecânicas vigentes na época, presentes nos demais fenômenos do

Universo.

O uso do termo mecanicismo, segundo Meijer (2001, p. 47), expandiu-se em várias

áreas do conhecimento e no senso comum e explicita a idéia de que a mecânica “é a teoria para

tudo”, uma extensão da organização da máquina para a explicação do universo e do vivo. As

metáforas mecanicistas enraizaram-se no Renascimento, em meio a recorrente discussão entre

realidade física e realidade mental. A relação causal entre as operações do corpo e do espírito

era a questão mais debatida na filosofia do século XVII e conduziria as discussões mais

Page 34: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

34

importantes sobre a arte do ator, desde então.

Como concepção filosófica de mundo, o mecanicismo apresenta-se, desde a

Antiguidade, como atomismo, ou seja, a concepção do mundo como sistemas de corpos em

movimento, como uma grande engrenagem. O século XVII retomou este conceito com a ciência

moderna, através da infiltração do conceito de causalidade em todos os fenômenos. Na física

newtoniana, consiste na hipótese de que os fenômenos da natureza devem ser explicados pelas

leis da mecânica. Na visão mecanicista do universo, de acordo com Prade (2004, p. 24), se

encontrava a transformação econômica da época, o uso crescente da máquina e as analogias

mecânicas utilizadas por Galileu Galilei (1564-1642). Este buscou demonstrar, em seus

métodos científicos, que era possível a existência de uma teoria mecânica que abrangeria todos

os corpos que ocupassem espaço no mundo, fundando a moderna ciência do movimento e os

fundamentos da dinâmica. A partir do século XVIII, a concepção mecânica se transformaria em

princípio diretivo de todas as outras ciências naturais, como a biologia, a psicologia e a

sociologia (ABBAGNANO, 2000, p. 654-655).

A metáfora renascentista do homem como máquina criou analogias do corpo como

engrenagem de um relógio, instrumento musical, autômato ou estátua reforçada pela crescente

mecanização da fisiologia humana. Do grego phýsis (natureza) e lógos (tratado), esta se

constitui como ciência do estudo das funções dos órgãos nos seres vivos, animais ou vegetais.

O mecanicismo renascentista atrelava-se a uma visão tanto teleológica quanto teológica da

natureza. As leis mecânicas organizavam-se segundo uma finalidade e com a figura de Deus, “o

grande relojoeiro”, velando para assegurar a ordem do universo. O pressuposto mecanicista

afirmava a governabilidade do universo por forças mecânicas, cuja tarefa do cientista e do

artista era de sistematizar as relações entre as várias peças desta maquinaria, incluindo o corpo

humano.

No final da Idade Média, ainda persistiam os antigos conceitos de medicina de Claudius

Galeno (129-201 A.C.), cujo conhecimento do corpo era incontestável. Andreas Vesalius

(1514-1564) provocou uma revolução no pensamento científico da época e transformou a

imagem do corpo na ciência e na arte. Até então, a anatomia era simbólica, sem a visibilidade

que adquire com a obra De Humani Corporis Fabrica (1543). Descartes considerará as

investigações do anatomista em sua filosofia. Vesalius descreveu o músculo como instrumento

do movimento voluntário e, ao explicar a função dos ligamentos e músculos que movimentam

os dedos em direção ao rosto, o fez através da ilustração de um homem sentado com cordas

amarradas nos dedos maiores dos pés e a outra ponta da corda manipulada pelas próprias mãos.

O movimento humano é representado por forças externas e se assemelha ao da marionete,

Page 35: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

35

compactuando com a popularidade do autômato no século XVI. Este, juntamente com o relógio,

se converte na metáfora maior do mecanicismo renascentista (MEIJER, 2001, p. 18).

Figura 1: Pintura da anatomia masculina do livro Humani Corporis Fabrica (Da estrutura do Corpo Humano), de

Andreas Vesalius. Cientific American Brasil, São Paulo, 2005

Analogia eficaz para a descrição do corpo humano, o relógio, a mais autônoma e

refinada das máquinas, se tornou, para a filosofia clássica, um modelo por excelência da

autonomia racional e da lógica mecanicista. A primeira e mais importante metáfora do

renascimento surgiu durante o reinado de Charles V (1500-1558)13. Sua obsessão por relógios,

de acordo com Meijer (2001), perpassava o gosto estético e constituia-se como exemplo do

problema da coordenação e controle num mundo que aparentava ser regido por leis mecânicas e

como importante analogia para o estudo da ciência do movimento.

Sendo o modelo lógico mais emblemático a serviço das concepções mecanicistas do

universo e da sociedade, a analogia do relógio é um conceito puramente metafísico, como

chama a atenção Schlanger (1971, p. 52). Entendimento, hoje, considerado redutor para

descrever a complexidade dos sistemas vivos, ele designava no século XVII a noção de um todo

que é soma de suas partes, estas não modificadas umas pelas outras. Não há interação ou

13 A obsessão de Charles V por relógios levou-o a tentar uma sincronização entre os exemplares de sua vasta coleção, na tentativa de controlar e coordenar seu funcionamento. Os relógios mecânicos surgiram na Itália no inicio do século XIV, mas o autômato antigo se deslocava no espaço, já o autômato moderno se deslocava no tempo.

Page 36: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

36

interdependência, pois cada parte se responsabilizaria por sua função: “O relógio é a máquina

que funciona sozinha, um sistema fechado e animado, e dotado de regulação interna [...] um

mecanismo que dura, que precisamente controla e mede o tempo”, ao invés de ser susceptível a

ele (SCHLANGER, 1971, p. 52).

1.5 O gesto do ator: entre uma estátua animada e uma pintura transitória

A recorrente metáfora iluminista – de que o corpo humano era mecanicamente animado

– se atualizava no teatro, em sintonia com a descrição cartesiana do corpo humano como uma

“estátua movente”. A comparação entre as artes era determinante nos manuais e teorias de

dança e teatro do século XVII e XVIII. O estudo da escultura e da pintura por parte de atores,

bailarinos e cantores proporcionava uma série de imagens, as quais poderiam acionar padrões

de movimentos precisos para expressão das paixões14. À medida que estas artes convergiam na

expressão da natureza humana e na possibilidade de falar à alma da audiência, corroboravam

com a metáfora da mecanização do corpo. Sendo a pintura, escultura e gravura modelos de

representação pictóricos e referência para o estudo das paixões, a interioridade destas só poderia

ser julgada pelos signos externos traduzidos pelo corpo, na imitação das figuras ilustradas do

gesto.

Figura 2: Garrick como Hamlet, gravura de J. MacArdell (1754).

Roach (1985). The Players’ Passion. Studies in the Science of

Acting.

14 Grandes cantores de ópera, também considerados grandes atores, costumavam, como Cavaliere Nicolini Grimaldi (1673-1732) representar as paixões com uma seqüência de ações meticulosamente calculadas a partir da observação da arte estatuária (ROACH, 1985, p. 69).

Page 37: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

37

A virtuose das performances dos atores elevava-os a “pinturas vivas”, e não à toa que o

inglês David Garrick15, por seu estilo interpretativo, foi o mais retratado ator de sua época.

Congelados em poses como se aguardassem os aplausos do público, os retratos pintados destes

artistas contribuíam para reafirmar a figura do ator moderno, verdadeiro agente de seu papel.

Um ator, importante ressaltar, que já reivindicava um controle absoluto sobre seu corpo e sua

alma pela expressão das paixões.

A contribuição de Garrick (1744), em seu Essay on Acting foi no sentido de considerar

os pressupostos científicos para auxiliar o ator a descobrir o trabalho do espírito nas

transformações da matéria. Aliverti (1998) afirma que o grande ator shakespeariano se referia

ao corpo como uma estátua que se movia, e buscava entender a ação dos diferentes membros do

corpo. O trabalho do ator deveria perpassar a eficiente declamação do texto para almejar um

nível de expressão autônoma, entre a arte da pintura e da poesia, mas buscando sua

especialidade. A arte do ator e do bailarino16 se colocava como ponto de intersecção entre as

artes veiculadas no tempo (poesia e música) e no espaço (pintura e escultura). Entre as

metáforas de “estátua animada” e de “pintura transitória”, cabia ao ator manejar as transições

entre poses fixas emblemáticas 17.

A arte do ator era pensada a partir da estatização das referências pictóricas, e ainda

carecia de uma teoria própria para dar conta da especificidade do movimento contínuo e

inestancável do corpo em ação e do gesto. Roach (1985, p. 72) defende a hipótese de que o

cartesianismo já descrevia as paixões enquanto seqüências de funções do corpo, como um

processo e não como uma pintura estática. Mas a lógica mecanicista da época encontrou uma

ressonância maior, a exemplo, na iconografia das paixões desenhadas pelo pintor e desenhista

francês Charles Le Brun (1619-1690), devido a sua tentativa bem sucedida de fixar e classificar

as ações mais caras à representação do ator na época: as das paixões. A obra de Le Brun

envolveria representações gráficas de caracteres idealizados, inaugurando um corpo moderno na

literatura visual: a representação das paixões pelas pinturas (ROACH, 1985, p. 67).

15 David Garrick (1717-1779), grande intérprete de Shakespeare, era o ator mais respeitado pelos filósofos e traduzia as idéias de Diderot com precisão. A imagem iconográfica do ator foi construída através de mais de 250 retratos, representando um modelo de ator liberal. Foi o primeiro ator moderno a falar de sua vocação e profissão no meio social burguês (ALIVERTI, 1998). 16 Os balés também eram vistos como quadros ou poemas vivos. Menestrier, Cahusac e Noverre salientaram que a dança ultrapassaria as possibilidades de imitação, se comparada às outras artes. Sendo a dança o espelho da alma em movimento, sua expressão seria maior que a palavra do poema e a imagem estática da pintura. A dança teria todos os momentos sucessivos, um movimento real que desenha as paixões de quadro a quadro. 17 Em Hamburg Dramaturgy (1767) Gotthld Ephreim Lessing coloca estas questões: “A arte do ator se encontra entre a pintura e a poesia. Como uma bela pintura deve ser da mais alta qualidade, mas como uma pintura em movimento é necessário também que possua a postura de dignidade que faz das esculturas antigas serem tão imponentes (LESSING apud ROACH, 1985, p. 73).

Page 38: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

38

O manual Método para aprender a desenhar as paixões e a pintura das paixões de Le

Brun passam a ser também referências a serem seguidas pelos atores.

Figura 3: Desenhos de Charles Le Brun: o desespero. Tratado das Paixões.

Paris. Museu do Louvre. Catálogo da exposição “Da alma ao corpo”.

Paris:Gallimard/Electra, 1993/1994

Graças à classificação de sua fisiologia, as criaturas vivas eram passíveis de serem

entendidas. Assim como o Traité de l’homme (Tratado do Homem) e Les Paissons de l’âme (As

Paixões da Alma), ambos escritos por Descartes (1633, 1649), a obra do médico Julien Offray

de La Mettrie (1709-1751), L’homme-machine (O Homem-máquina) (LA METTRIE, 1748), e

os autônomos célebres do engenheiro mecânico francês Jacques de Vaucanson (1709-1782)

endossaram a perspectiva mecanicista, vendo neste modelo a chave universal do vivo. A relação

entre mente e corpo – que animaria as teorias teatrais nos próximos séculos, inclui a hipótese de

La Mettrie: o homem é uma máquina. A proposta de Descartes é referenciada, e o corpo

humano é visto como uma máquina que dá cordas em sua própria engrenagem, numa alusão ao

movimento perpétuo. A visão fisiologista de La Mettrie compreendia os mecanismos do corpo

por meio de uma atividade vital, cuja origem estava na estrutura física e na organização

funcional da matéria, e não em alguma substância não material. Porém, ele sugeria que a

atividade mental, ao contrário de Descartes, resultava também da matéria física

(CHURCHLAND, 2004).

A figura do autômato assume um papel nas experiências de Vaucanson na simbolização

desta metáfora. Sua mais famosa “criação” consistia num pato mecânico que reproduzia as

ações do vivo, cujos mecanismos internos mecânicos e pneumáticos produziam

comportamentos simples como comer, beber e espanar na água. Vaucanson não se ateve ao

funcionamento mecânico do corpo de animais, e sonhou com a criação de um homem artificial

dotado de fala.

Page 39: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

39

Figura 4: O mecanismo da Tocadora de viola (esquerda) e do pato mecânico (direita), dois dos autômatos de

Vaucanson. Coppélia. Paris, Ballet Danse L’Avant Scène. Nov./jan. 1981.

A analogia mecânica aristotélica se aplicava ao movimento animal, associando-o ao

funcionamento de uma máquina, mais exatamente de uma máquina de guerra. A imagem

metafórica assemelha-se às estratégias de guerra da época, como o braço de uma catapulta no

lançamento de projéteis. Descartes manterá a associação do movimento a uma máquina, mas

por meio da metáfora do mecanismo dos autômatos hidráulicos, referências naturais à

tecnologia dos moinhos movidos a água, dos relógios, fontes artificiais, autômatos e demais

máquinas de sua época.

O mecanismo se torna analogia para o mundo natural, onde o comportamento global, a

exemplo das máquinas, é dado pela soma das partes individuais. A metáfora maquímica é o

cerne da cosmovisão clássica e newtoniana, fortalecida pelas propostas de Galileu e Descartes.

A natureza adquire caráter determinista pela identificação dos fenômenos naturais, a partir da

separação das partes, como propunha Descartes em seu método de análise. Identificados os

atributos das partes, se reconstituiria as características de um sistema como um todo. Contudo, a

variedade e imprevisibilidade do organismo se impunham. A recusa da redução dos organismos

vivos a meros sistemas mecânicos, segundo Oliveira (2003, p. 142), reacenderia uma versão da

antiga doutrina vitalista. O vitalismo acrescentou à matéria uma substância vital, uma espécie de

sopro ou força que vivificaria a entidade física mecânica.

As contundentes metáforas mecanicistas ainda ecoavam fortemente nos discursos sobre

Page 40: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

40

a atuação, mas outras conjunções ligadas ao conceito de organismo se insinuariam no

entendimento de corpo e que determinariam novas leituras teóricas sobre o trabalho do ator a

partir do século XVIII. Aliado ao mecanicismo, o caráter orgânico tornaria o entendimento de

corpo mais complexo. Salienta Schlanger (1971, p. 55), que as máquinas seriam dotadas de

disposição, de figura e de movimento. Quanto ao organismo, possuiria uma disposição

mecânica, como todo sujeito corporal, mas um mecanismo organizado que se torna instrumento.

O relógio seria um instrumento organizado, um organismo, portanto, na função de sua

finalidade, que é marcar precisamente as horas. E o corpo seria um organismo não somente

porque agrega órgãos, mas porque ele é instrumento da alma racional e executa as finalidades

desta. O organismo é o “lugar em que o mecanismo está em harmonia com um fim”

diferenciando-se de outras máquinas, digamos, menos complexas (STAHL apud

SCHLANGER, 1971, p. 55).

A harmonia e a organização convergiam mundos aparentemente divergentes, o das

máquinas naturais e o das artificiais. Em detrimento do tratamento mecânico dado pelo

dualismo cartesiano, a ênfase sobre o organismo e o processo interior e imaginativo do ator não

é descartada. A oposição entre a visão interna e externa das paixões se acirrava, forjando

brechas no rígido conceito mecanicista. A excelência dos artistas estava atrelada ao

desenvolvimento da ciência e a questões filosóficas, e o estudo das paixões suscitava algumas

ambivalências e contradições, que se estenderiam à prática cênica: a emoção do ator iniciaria

mentalmente para, então, criar seus efeitos sobre o corpo ou a simples performance das ações

associadas às emoções adequadas produziria o sentimento? O ator deve experimentar a emoção,

senti-la, enquanto atua?

Não havia a noção de causa interior como deflagradora da emoção, no sentido moderno

de inconsciente ou subconsciente, mas a constatação de que o homem não era uma máquina

como outra qualquer, já estava presente. Uma máquina sim, porém, vivente, dirigida por forças

auto-suficientes. A mecanização da fisiologia já não respondia a todas as questões e mostrava os

limites do mecanicismo também na definição da arte cênica, e os estudos sobre a biologia

deflagraram um novo entorno para a noção de paixão.

Roach (1985) aproxima o pensamento de Stanislavski ao de Denis Diderot (1713-1784)

a partir da noção de um modelo interno na mente – e que será discutido nos capítulos 3 e 4, pois

ambos teriam formulado suas técnicas “psicofísicas” entendendo que a emoção pode ser

processada em arte através da memória, imaginação e ação. Diderot, enquanto filósofo, faz seu

o discurso de La Mattrie presente em O homem máquina, mas com ressalvas ao reducionismo

materialista, que atribui ao funcionamento do vivo um mecanicismo de caráter hidráulico. Os

Page 41: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

41

cientistas da época tentavam explicar a vida recorrendo a fluidos vitais e Descartes acreditava

que estes fluídos moviam o corpo hidraulicamente. Ao colocar a mão sobre uma chama, o calor

provocaria o estímulo de um canal (nervo) que iria até a glândula pineal, localizada no cérebro.

Com isto, se abriria uma válvula que liberaria fluídos vitais por um tubo que, por sua vez,

inflaria os músculos para afastar a mão da chama. Hoje, estes processos são vistos através de

nervos, neurônios e receptores, mas a metáfora dos fluidos ou energia vital se mantém.

Figura 5: O sistema nervoso do homem máquina

em ação – a glândula pineal, tubos e espíritos

animais, descritos por Descartes (1666) em

Tratado do homem. Roach (1985).

Ao falar da ação da alma sobre o corpo, Diderot (1979) já chamava a atenção para a

organização complexa do cérebro respectivo de cada ser. Tendo como preocupação dominante a

biologia, Diderot se dedica ao conhecimento das faculdades cerebrais, atribuindo à alma uma

qualidade fisiológica. Toda a carreira científica do filósofo se dirigiu ao estudo psicofísico do

homem, com um projeto particularmente ambicioso e pioneiro, e que teria ressonâncias na sua

visão de um novo comportamento do ator, bem como contaminaria as teorias do século XX.

Pela síntese do conhecimento fisiológico e anatômico de sua época, ele se propôs a

redefinir o lugar do homem na natureza, afirmando que a psicologia do cérebro era inseparável

de sua fisiologia (CHANGEUX, 2002). A abordagem de Diderot (1986) não deixa dúvidas

sobre sua preocupação em rediscutir a relação corpo e mente sob bases biológicas, o que o leva

a ser, de certa forma, um pioneiro na discussão do corpo nas teorias teatrais em sintonia com as

teorias científicas que tratam destas questões. Diderot anteviu a complexidade do vivo, através

da visão da transformação das espécies, idéia que viria a ser, posteriormente, desenvolvida por

Darwin e seus discípulos (DIDIER, 2001, p. 171).

O filósofo proclamava um tipo de disposição orgânica em resposta ao “enfadonho jogo

de cena” que proibiria o ator de levantar a mão a uma certa altura ou que determinaria o ângulo

de inclinação do corpo:

Page 42: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

42

Então, decidistes ser manequim para sempre? A pintura, a boa

pintura, os grandes quadros, eis vossos modelos; o interesse e a

paixão vossos amos e guias. Deixai-os falar e agir com toda a

força. 18 [...] As regras vos tornaram de madeira e, à medida que

se multiplicam, automatizai-vos. É como se Vaucanson

acrescentasse outra mola ao seu Tocador de flauta.19

(DIDEROUX, 1986, p. 161).

Ele critica as convenções do teatro clássico francês e a extrema mecanização do ator.

Reconhecendo as limitações da visão mecânica de corpo e as imitações servis, o grande

pensador Jean-Georges Noverre (1727-1810), em suas Cartas sobre Dança n. 15 (NOVERRE,

1760) requisitará uma espécie de sensibilidade análoga à idealizada por Diderot (e um novo

entendimento da natureza humana para a dança através do balé de ação):

Os grandes comediantes estarão com o sr. Diderot, os medíocres

serão os únicos que se levantarão contra o gênero indicado por

ele. Por que? É por que esse gênero, sendo tomado da natureza,

exige homens e não autômatos para representá-lo. Exige

perfeições que não se adquirem sem que já se possua o germe em

si mesmo. Trata-se de sentir, de ter alma e não somente de atuar.

(MONTEIRO, 1998, p. 384).

1.6 O organismo: um mecanismo metafórico vital

A falência do modelo de transmissão hidráulica e mecânica das emoções já se anunciava

desde a experiência de Francis Glisson, em 1662, do London College of Physicians, quando este

eliminou a infusão de espíritos animais cartesianos como a possível causa das contrações

musculares. No mesmo ano, o naturalista Jan Swammerdan demonstrou por meio da vivisseção

de pequenos animais que o coração e outros músculos mantinham seu poder de contração e

reação depois de removidos do corpo e completamente desconectados dos pequenos filetes dos

nervos que se acreditava indispensáveis para a atuação dos espíritos animadores das paixões e

18 Diderot descreve no Discurso sobre a Poesia Dramática uma conversa entre amigos, em que o ator Garrick teria fundamentado a importância da pantomima para incrédulos através de uma cena improvisada, porém contundente, onde o ator inglês não teria se restrito as regras de atuação na cena. 19 Em 1738, Vaucanson constrói um primeiro autômato andróide, Le Joueur de Flûte (O tocador de flauta).

Page 43: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

43

ações (ROACH, 1985, p. 94). Ao demonstrarem, por volta de 1800, que estímulos elétricos

podiam induzir os músculos de animais ao movimento, o anatomista Luigi Galvani e o físico

Alessandro Volta modificaram definitivamente o entendimento da fisiologia humana, antes sob

a lógica mecânica somente20. A eletricidade se torna a nova chave para a explicação do

princípio da vida. E, também, para a emoção do ator.

Figura 6: Luigi Galvani. “De virubus

electricitatis in motu musculari (1791). Catálogo

da exposição: “Da alma ao corpo”. Paris,

Gallimard/Electra. 1993/1994.

A descoberta de Guillaume-Benjamin Duchenne de Boulogne (1806-1875) a cerca da

possibilidade de excitar nervos e músculos através da pele contribuiu para o nascimento da

neurologia, constituindo o que seria posteriormente o eletrodiagnóstico. O seu livro O

mecanismo da fisionomia humana e a análise eletrofisiológica da expressão das paixões

(BOULOGNE, 1862) obteve grande êxito entre artistas plásticos e atores da segunda metade do

século XIX, sendo convidado a realizar conferências nas Escolas de Belas Artes e nos

Conservatórios em cenas organizadas por artistas. O livro mostra ilustrações fotográficas que

exemplificavam a manipulação elétrica dos músculos, estimulando a mímica facial de maneira

artificial. A aplicação mostrava a correlação entre a contração e relaxamento dos músculos e a

expressão da paixão correspondente, possibilitando a criação de personagens “à maneira de

Shakespeare” (PÉREZ-RINCÓN, 1998, p. 39). A estimulação dos nervos traria, finalmente, o

invisível à sua visibilidade. O mundo interno emergia ao exterior, literalmente, por meio da

estimulação artificial e elétrica da periferia do corpo em direção ao interior.

20 O grande invento de Volta foi a primeira bateria elétrica, dando continuidade a alguns experimentos de seu parceiro Luigi Galvani. Galvani era anatomista e ao dissecar uma rã, percebeu que o tecido muscular úmido da rã conduzia uma corrente entre dois tipos diferentes de metal. Volta modificou este efeito para produzir o primeiro fluxo contínuo de corrente elétrica. Por volta do ano de 1800 inventou uma bateria umidificada que chamou de "Pilha" voltaica (http://en.wikipedia.org.).

Page 44: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

44

Figura 7: Guillaume-Benjamin Duchenne estimula

eletricamente a musculatura de uma atriz da Comédia

Francesa com a finalidade de modificar a expressividade

facial das emoções. Pérez-Rincón, (1998). El Teatro de las

Histéricas. México, Fundo de Cultura Econômico.

As metáforas baseadas nos autômatos hidráulicos com seus tubos e espíritos dariam

lugar a modelos de investigação a partir do comportamento elétrico e acústico da natureza. Da

estática para a dinâmica, as novas analogias associavam ao mecanicismo uma vitalização e

sensibilização dos procedimentos relacionados ao comportamento do corpo, cérebro e mente. A

descoberta da eletricidade fornecerá à ciência um candidato aceitável para o principio da vida e

do pensamento. A “alma elétrica” dominará o universo cientifico e literário até o final do século

XIX, mantendo até nossos dias uma vitalidade extraordinária (BOSSI, 2002).

O vocabulário utilizado por teóricos e atores vai mudando substancialmente e novos

termos entram na descrição de fenômenos ligados ao surgimento das paixões no corpo e suas

formas de atuação cênica. A terminologia mecanicista permanecia simultânea à nova

enunciação referendando as forças vitais do corpo, com analogias tais como o fogo elétrico e as

vibrações da corda de um instrumento. A visão orgânica, aliada à mecânica, se reforça a partir

das novas teorias vitalistas. Ou seja, os fenômenos do organismo não poderiam ser inteiramente

explicados com causas mecânicas nem a força que constitui a vida estaria tão facilmente a

mercê da investigação científica, pelo menos a de visão mecanicista. Segundo o vitalismo, as

coisas vivas contêm algum tipo de substância física, um élan vital, mas que é igualmente

misteriosa como a substância mental não física do postulado dualista21.

Pouco a pouco o termo mente vai se incorporando à atuação. Não era mais possível falar

da noção de alma enunciada no mecanicismo num corpo agora tomado pelas questões da

eletricidade e sensibilidade, termo este que passa a constituir o processo criativo do ator. A

21 O élan vital é recuperado no século XX como um elemento importante da ação física. Sua tradução remete para a noção de impulso, arremesso, e figurativamente como ardor, entusiasmo ou ímpeto. Burnier (2001) destaca seu sentido no trabalho do ator como algo que remete ao vivo, sem reduzir-se à técnica. Uma espécie de consciência que atravessa a matéria orgânica e a organiza. O élan de uma ação pode ser entendido como seu “sopro de vida”, ou “impulso vital” ou movimento orgânico criador.

Page 45: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

45

descoberta pela ciência da natureza elétrica da impulsão nervosa colocaria o órgão da alma, o

cérebro, no alvo das pesquisas científicas. O cérebro como gerador da eletricidade animal já

havia sido apontado pelo galvanismo, mas o entendimento da alma como um fenômeno da vida,

intimamente ligado ao sistema nervoso, virá posteriormente com a descoberta da unidade do

neurônio.

Às idéias mecanicistas, que se expandiram em todos os ramos da ciência, opunham-se

cada vez mais às teorias que justificavam o funcionamento do corpo por princípios orgânicos. O

filósofo alemão Emmanuel Kant (1724-1804) estabelece a distinção entre a finalidade da

máquina e do organismo, desestabilizando a perspectiva mecanicista de causalidade e a idéia de

um corpo-objeto. As peças de um relógio existem em função das outras peças, mas não por

meio delas. No organismo, ao contrário, “[...] cada parte é concebida como existente somente

por meio das outras, para as outras e para o todo, [...] como um instrumento que produz as

outras partes e é reciprocamente produzido por elas” (ROACH, 1985, p. 733). Os princípios da

metáfora parte-todo se modificam.

Neste sentido, o organismo não possuiria uma força motriz simples como a máquina,

mas uma força formadora organizativa, que não poderia ser explicada somente pelas leis

mecânicas do movimento e seus princípios de causalidade. O organismo teria uma espécie de

finalidade intrínseca, que não é mera soma de suas partes, como na máquina. O organismo não

resulta da causalidade eficiente exterior, mas contém nele mesmo sua própria causalidade e

finalidade. Em aparente contradição à mecânica de Newton, no qual todas as forças causais são

externas ao sistema, Kant (1996) salienta que os organismos exibem uma força formativa

construída, não são meros mecanismos, ou seja, exibem uma espécie de lógica auto-

organizativa22.

A visão mecanicista de causa persistiu até o século XIX, quando os conceitos de

entropia postulados pela 2a lei da termodinâmica, o desenvolvimento da biologia e as teorias

evolucionistas re-introduzem a noção de tempo, irreversibilidade e seleção natural. No século

XX as teorias sobre complexidade, sistemas adaptativos e sistemas fora do equilíbrio chamaram

a atenção para o fato dos organismos trocarem matéria e energia com seus ambientes. Novas

leis estabeleceram evidências sobre a auto-organização dos organismos, desta forma,

enfraquecendo os argumentos das metáforas mecanicistas da natureza e da instrumentalidade do

corpo em relação ao movimento da alma. 22 Na Critica da Faculdade de Julgar, Kant (1996) repreende o paradigma cartesiano demonstrando a irredutibilidade do organismo ao mecanismo, visto que um ser organizado não é simplesmente uma máquina, pois a máquina procede unicamente de uma força motriz, mas o ser organizado possui uma força formatriz que se auto-reproduz. A distinção da máquina e do organismo se daria a partir de três critérios: a auto-produção, auto-construção e auto-regulação/auto-reparação.

Page 46: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

46

A inspiração vitalista servirá como contraponto ao ambiente desencadeado pelos modos

de produção industriais do fim do século XIX, cujas linhas de produção configuram uma

fragmentação e modulação do gesto. Poetas românticos descreviam modelos de organismo e a

definição de espontaneidade como algo livre que surge sem premeditação ou esforço se tornava

a mais apropriada para descrever a arte. O acesso às forças criativas da natureza se daria pelos

processos orgânicos mais sensíveis, e menos pelas metáforas mecânicas da fisiologia cartesiana.

A negação da mecanização da natureza transformaria as teorias sobre criatividade e emoção.

O desenvolvimento da biologia determinou novos conceitos sobre o organismo, e este se

tornou, no século XIX, uma chave racional para interpretação da natureza, da vida ou do destino

da sociedade. A organicidade da arte na visão romântica está atrelada à expressão da harmonia e

perfeição do todo. Um modelo fundador que não se restringe a simples descrição classificatória

de órgãos ou organismos biológicos e botânicos: “[...] esta figura racional é essencialmente um

suporte de noções.” (SCHLANGER, 1971, p. 114).

Como figura de racionalidade universal, o organismo do século XIX ainda é entendido

por meio de uma unidade global, onde as partes podem agir simpaticamente umas sobre as

outras sem estar em relação ou em contato direto, garantindo a convivência harmônica e a

racionalidade do vivo, do universo ao individuo.

No século XX, a imagem do mundo natural se reconfigura e a metáfora maquímica

clássica é substituída pela imagem da complexidade. O entendimento dos fenômenos físicos e

mentais se renova num mundo em que o invisível passa a ser acessado pelas investigações da

ciência, especialmente pela física quântica. “Quando o invisível foi avistado, a natureza deixou

de ser monótona.” (OLIVEIRA, 2003, p. 148). O mecanicismo mantinha o mesmo parâmetro

de análise do todo à parte, estendendo-o a todos os fenômenos da natureza, do micro ao

macrocosmo, do grão de areia às estrelas. Com a ciência contemporânea, a natureza deixou de

ser percebida como uniforme e determinista, diluindo antigas distinções e fronteiras entre

natureza e cultura, sujeito e objeto e indivíduo e meio. Segundo Barba (2002, p. 355), no século

XX se produz a revolução do invisível, e a importância das estruturas ocultas se impõem em

vários campos, como na ciência, especialmente na física, na psicologia e nas artes. Ainda de

acordo com Barba (2002), tal fenômeno se deu também no teatro, com o desdobramento de

processos interiores do ator e da cena, incluídas as noções estabelecidas por Stanislavski a cerca

da memória emotiva e do sub-texto, a última relacionada às questões que envolvem a

interpretação subterrânea da trama complexa do texto teatral, estabelecendo pontos de apoio

para a vida interior das ações físicas.

Mesmo com a ciência apontando na direção da negação da mecanização da natureza, a

Page 47: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

47

metáfora do corpo como máquina sobrevive nas artes e, especificamente, no teatro, chegando ao

século XX com diferentes atualizações. A metáfora mecanicista adquire um papel determinante

nas vanguardas artísticas do século XX, depois das experiências cênicas inspiradas nos escritos

de Heinrich Von Kleist (1777-1811) e Gordon Edward Craig (1872-1966). É quando o

organismo é considerado inadequado como mídia teatral e a figura da marionete evoca um

modelo de representação ideal do corpo, então livre das fragilidades humanas.

1.7 A marionete como metáfora do corpo

A imagem da marionete evocada por Kleist é um exemplo contundente da permanência

da metáfora mecanicista nas teorias teatrais, com desdobramentos no XX. Em seu célebre artigo

Teatro de Marionetes (KLEIST apud GUINSBURG, 2001, p. 45) imagina o encontro entre o

narrador e um bailarino da Ópera de Paris frente a um espetáculo de marionetes23. O

“transporte” da figura da marionete para a figura humana propõe um conceito mais abstrato de

corpo, com linhas puramente ideais que permitam visualizar o movimento e gesto, sem o

maneirismo expressivo da época. Ao contrário do homem, que hesita frente a suas paixões, a

marionete simboliza a possibilidade de um corpo ajustado a leis mais universais. O ideal

romântico de recuperação da originalidade perdida é invocado na figura da marionete, o grau

sígnico mais puro da estrutura corporal. Mais do que a evocação de um novo modo de

representação para o ator ou bailarino, a metáfora evoca um ideal de natureza humana original,

tão caro a pensadores como Rousseau (GUINSBURG, 1978, p. 49).

Poeta e homem do teatro do romantismo alemão, Kleist foi o primeiro a sugerir a

substituição do ator por uma marionete. O teatro, assim, obteria o estado de conhecimento da

realidade, diretamente, sem passar pela fragilidade humana, pois o organismo humano,

submisso às leis da natureza, constitui uma ingerência estrangeira. O movimento mecânico não

contaminado pelos acidentes de uma atuação psicológica e realista poderia restituir o ideal de

graça e justeza. O gesto da marionete nunca seria afetado, pois a afetação aparece “quando a

alma se acha em algum outro ponto que não o centro da gravidade do movimento” (KLEIST

apud GUINSBURG, 1978, p. 49). Os afetos tenderiam a criar uma distância entre o centro

motor e centro de gravidade.

A marionete e sua obediência à lei da gravidade propõem uma limpeza formal ao gesto

cênico, raramente evocada no Ocidente. A coluna vertebral é para o homem, assim como para a 23 Escrito em 1810 para um diário berlinense – Berliner Abendblatter, fundado pelo próprio Von Kleist, o texto só teve repercussão no século XX, quando teóricos da modernidade encontraram eco nas suas reflexões sobre a natureza do movimento e a expressão do corpo humano perdida.

Page 48: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

48

marionete, o centro do corpo cênico que, suspensa sob fios, não se submete a seu próprio peso e

arbitrariedades, mas somente às leis mecânicas. A ausência de consciência da marionete a dota

de uma graça divina, original, visto que resta ao homem “não ter consciência nenhuma ou a

consciência infinita”, ou seja, aproximar-se “do manequim ou de Deus” (KLEIST apud

GUINSBURG,1978, p. 51).

Craig (apud ROOD, 1977) afirmava que, para criar uma obra de arte, seria preciso

servir-se de materiais que apresentem certezas. A arte não admitiria acidentes e a natureza

orgânica do homem tenderia à instabilidade, com sua escravidão à emoção e espontaneidade das

sensações do corpo. Craig (apud ROOD, 1977, p. xvi) idealizava um ator que unisse uma

natureza generosa a uma alta inteligência, onde esta governaria a natureza das paixões e o

pensamento, o movimento do corpo. O corpo, como previu, “tende à independência” e não a

ordem e certezas. Não seria mesmo o corpo, inevitavelmente, esta matéria instável, tão temida

pelo encenador? Não seria esta a condição própria humana e a razão de ser do teatro conectar-

se com os paradoxos, ambigüidades e vicissitudes deste corpomente? Não para Craig, pois o

controle sobre o corpo importava à medida que subvertia a matéria a certezas.

O transporte metafórico da figura da marionete para a figura humana propõe mais do um

conceito abstrato de corpo, com linhas ideais que permitam visualizar o movimento e do ator

sem um maneirismo expressivo. A graça atingida pela marionete idealizada por Kleist, esta

espécie de animação natural do corpo, “momento incontrolável, efêmero e singular”, sugere a

existência de uma alma, excluída, porém, de uma consciência de si mesma (ENAUDEAU,

2001, p. 37). O mecanismo harmonioso da marionete é privado de consciência, visto que o

movimento gracioso poderia destruir-se frente à conduta consciente. Esta levaria o homem à

afetação, ao oposto da graça. A ausência de consciência da marionete, ao contrário, permite

inocência e originalidade aos movimentos. É a perfeita adequação a si mesma, em sua

simplicidade, que propicia a verdade de seu gesto.

No texto Ator e a Supermarionete (1908) Craig afirma veemente que o corpo humano

falhou como instrumento da arte teatral. O que não significa o abandono da antiga metáfora do

corpo como marionete, nem a negação da idéia de corpo como instrumento. O ideal do

autômato prevalecia. Suas idéias encontram ressonância no imaginário do século XX, referente

à abstração e automatização do movimento e da mecanização humana. A fascinação por estes

“reflexos incertos do homem” estava nas criaturas mecânicas idealizadas pelo cinema, poesia,

pintura e fotografia 24 (PLASSARD, 1992).

24 Dos manequins de De Chiricco, as bonecas de Bellmer e ao andróide de Metropolis, as figuras automatizadas se multiplicavam, inscritas nas mutações sociais e progressos tecnológicos.

Page 49: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

49

As reflexões geradas no centro da polêmica entre biólogos vitalistas e mecanicistas, e

enunciadas no teatro por Diderot, permaneciam em Craig através de uma questão central

abordada por Roach (1985, p.161):

O corpo do ator, enquanto instrumento, seria interpretado como

um organismo vital espontâneo cujos poderes inatos de

sentimento poderiam de alguma maneira predominar

naturalmente ou o corpo seria uma máquina biológica,

estruturada e redutível a processos físicos e químicos, cuja

receptividade a reflexos condicionados determina o seu

comportamento?

As idéias mecanicistas e organicistas do final do século XIX oscilavam entre a noção

introspectiva da emoção e do inconsciente e as teorias sobre os reflexos e, entre a

espontaneidade e o automatismo do corpo. A noção de espontaneidade, para Diderot (apud

ROACH, 1985), estava identificada com um tipo de automatismo, uma canalização para o

hábito; não é a livre expressão natural, como entendem os românticos. Seria uma segunda

natureza, onde o corpo executa, de forma automática, ações repetidas o suficiente, a ponto de a

mente agir estando a consciência ausente.

A versão de Craig (apud ROOD, 1977) para a segunda natureza levava a ver a

ambigüidade da metáfora da marionete, se atualização do mero autômato ou a concretização de

um novo tipo de movimento do corpo humano, dotado de uma técnica que respondesse às

demandas de representação do início do século XX. Craig não negava a figura humana em si

mesma, mas, acima de tudo, a visão imprecisa de sua época em relação à atuação cênica e as

vicissitudes do organismo. O status que o corpo adquire não poderia estar mais à mercê de um

“espontaneísmo”, da “exacerbação” emotiva dos atores que não levaram a sério os conselhos de

Diderot. A arte do ator seria resultante de uma ação voluntária e consciente, eliminando, desta

forma, os acidentes da arte (e do corpo).

A busca pela precisão, organização, técnica e abstração aproxima algumas vanguardas

artísticas do início do século XX da idéia de mecanização, não somente pelas metáforas dos

manequins e marionetes, mas por meio da própria máquina e suas tecnologias, sobretudo os

futuristas e dadaístas. Menezes (1994) salienta que, no futurismo italiano, a influência das

inovações tecnológicas e as conquistas científicas do período se dão mais no campo imaginário

e simbólico do que na realização técnica. Já no dadaísmo, a máquina é vista como um elemento

Page 50: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

50

de ironia que se põe como metáfora do próprio homem e da desordenação e caoticidade da vida

moderna. É um elemento de crise e se coloca como metáfora mediadora da relação arte-vida.

Diferentemente dos europeus, o movimento de vanguarda russo de vertente

construtivista instaura a máquina como elemento técnico na elaboração das obras. Incorporadas

no processo de criação, e não como “fetiche tecnológico”, as metáforas se inserem como

método de organização de técnicas e linguagens artísticas. Desta forma, a mecânica se sobrepõe

à própria máquina (MENEZES, 1994, p. 108).

O ator biomecânico concebido por Meyerhold (apud PICOLIN-VALLIN, 1990) utilizou

o princípio do corpo máquina para facilitar a execução de tarefas, como economia de energia,

conquista de ritmo, equilíbrio e precisão. É quando a metáfora mecanicista ganha novos

contornos através da contaminação pelas teorias da psicologia comportamental, tais como o

condicionamento reflexo, onde toda ação é uma resposta a uma excitação de nervos. Sem

separar os atos psicológicos dos fisiológicos, a biomecânica de Meyerhold, crítica ao sistema

inicial de introspecção proposto por Stanislavski, destacaria as idéias de Ivan Pavlov, na atenção

aos reflexos do ator. A decomposição do movimento em fragmentos e o controle de cada parte

do corpo teriam a eficiência da máquina, segundo as novas leis do trabalho, bem como uma

“espacialização do conceito de emoção” (PICOLIN-VALLIN, 1990, p. 122). O ator deveria

treinar sua máquina, o corpo, a fim de que respondesse, mais rápida e eficientemente, às

consignas estéticas propostas pela encenação.

Para que o corpo fosse objeto de estudo, teria que ser comparado à idéia de mecanismo,

pois a noção de organismo parecia demasiado imprecisa para ser objetivamente estudada. No

“Programa de Biomecânica”, direcionado à realização de oficinas com atores, Meyerhold (apud

ROACH,1985, p. 203) listou os tópicos essenciais para o desenvolvimento do trabalho do ator,

que se dava a partir de um esquema de encadeamento para as ações de caráter reflexionista:

“preparação – ação – reação” :

O organismo humano, como um mecanismo automativo;

Complexo de movimentos de todo organismo ou cadeias de movimentos;

Atos de inibição (não fazer);

Estudo dos mecanismos de reação no sistema nervoso;

Reações físicas como objeto de estudo científico;

Fenômeno físico, simples reações químico-fisicas...puramente reflexos

fisiológicos;

Reflexo instintivo;

Page 51: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

51

Reflexos, suas conexões, seqüência, dependência mutua;

Mecanização, atos habituais subconscientes.

Figura 8: Seqüência de exercícios do Programa de Biomecânica. Desenhos de Lutse (1922). Guinsburg, J.

Stanislavski, Meierhold & Cia. SP, Perspectiva, 2001.

1.8 A organicidade: da fisiologia à psicologia

A noção cartesiana de um automatismo mecânico é transformada com a noção de

sensibilidade e reflexibilidade, evidenciando-se, cada vez mais, o processo orgânico vitalista e

as teorias psicofísicas (ROACH, 1985, p. 183). Tendo, nas experiências com animais em

laboratório, o reforço para este novo entendimento, a teoria dos condicionamentos reflexos do

fisiologista, crítico e dramaturgo inglês George Henry Lewes (1817-1878) deram uma

fundamental contribuição ao pensamento psicológico que se formava. Tais entendimentos

norteariam as teorias da psicologia objetiva do início do século XX, e o pensamento formulado

por Stanislavski e Meyerhold. Com sua visão, ao mesmo tempo objetiva e subjetiva do

problema corpo e mente, Lewes (apud ROACH, 1985) abre o terreno para a teoria da emoção

de William James (1842-1910). Théodule Ribot trabalharia com as idéias dele, todos

influenciados pelo pensamento do crítico inglês. O estudo de Lewes sobre as bases físicas da

mente repercute igualmente na Rússia, a partir da publicação de suas obras, em 1861. Ivan

Michailovich Séchenov (1829-1905), considerado o pai da fisiologia russa, publica em 1863 um

ensaio sobre as bases do processo fisiológico, em sintonia com as teorias dos reflexos de Lewes.

Pavlov, por sua vez, acessa as obras de Séchenov. Lewes, Séchenov, James e, posteriormente,

Pavlov configuram um campo de conhecimento para o desenvolvimento das teorias russas

acerca do comportamento dos anos 20 e 30 do século XX. Contrapondo-se a visão introspectiva

da psicologia mais tradicional e rejeitando a noção de alma e de um inconsciente inatingível, os

“objetivistas” procuravam outras formas de explicar o comportamento, tendo a teoria dos

Page 52: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

52

reflexos como hipótese. O organismo vivo seria um tipo de máquina “auto-atuante”

respondendo ao estímulo de acordo com as leis naturais e o cérebro, uma espécie de

coordenador deste sistema reflexo integrado. Novamente a metáfora da máquina e do autômato

subsiste em acordo com a visão de organismo.

A inovadora teoria da consciência de Lewes sugeria que a sensação e consciência não

estavam limitadas ao cérebro25. Enquanto um monista, Lewes defendia a visão da mente e do

corpo formando uma só entidade. O monismo diz respeito mais especificamente à escola

filosófica iniciada no século XVIII, e que defendia a idéia que todos os fenômenos podem ser

explicados por um princípio unificador, ou como uma manifestação de uma única substância (a

mente ou um outro tipo de energia), mas o termo continua a ser utilizado por muitos cientistas

cognitivos, na atualidade, em oposição ao dualismo de substância. Acreditando em um contínuo

cérebro-mente, de acordo com Lewes, o comportamento, a mente e suas propriedades e

manifestações seriam a expressão de um complexo sistema biológico a partir do sistema

nervoso, desencadeando o conceito de reflexo. O corpo era o aspecto objetivo do processo

subjetivo da mente, sendo que toda alteração mental teria uma correspondência física e todo ato

era fruto do organismo como um todo. Stanislavski considerará esta hipótese em seu sistema e

afirmará que todo o físico está relacionado a um estado psíquico.

Os estudos sobre o corpo animal traziam à tona questões inadiáveis sobre a relação do

corpo com o cérebro e os estados de consciência. Fisiologistas já haviam descoberto que a

coluna vertebral poderia responder mesmo na ausência da função cerebral e as hipóteses de

Lewes (1853) partiam destas evidências empíricas26. Em suas pesquisas por meio de

experiências com animais, Lewes traz, definitivamente, para o corpo as discussões sobre a

sensibilidade e o pensamento, concluindo que todo corpo pensa. “É o homem e não o cérebro

que pensa; é o organismo como um todo e não um órgão que sente ou age” (ROACH, 1985, p.

183). Suas hipóteses partiam de duas premissas:

a) toda a ação é baseada num “arco reflexo” no qual o cérebro e a espinha formam

um eixo de reflexão;

b) toda ação, como uma ação reflexa, conforma um complexo mecanismo

fisiológico.

O cérebro seria o centro da coordenação dos altos reflexos, mas não seria o único lugar

das sensações. Quando o cérebro é removido, a coordenação reflexa garante ao corpo a

25 Lewes escreveu, dentre outras obras: Physiology of Common Life (1859-60) e History of Philosophy (1845-46). 26 Na obra Bases Físicas da Mente, Lewes relata as experiências de Freidrich Goltz (1834-1902) e Eduard F.W. Pfluger (1829-1910) com animais, repetindo a experiência realizada por estes em 1853.

Page 53: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

53

aparência de um mero mecanismo, mas com a diferença de que o organismo se mantém

sensível. Embora, para Lewes, todas as ações são ações de um mecanismo reflexo, elas não

seriam meramente mecânicas. Por serem atividades sensíveis, as ações são sempre orgânicas,

mesmo quando inconscientes. O mecanismo vital permanece como contraponto ao mero

sistema de forças do mecanicismo.

Quando o cientista Lewes escreve sobre o teatro, refuta a inspiração ou sentimento

como caminho para representação do ator. “Não é suficiente o ator sentir, ele deve

representar”27. (ROACH, 1985, p. 184). Reforçando a opinião de Diderot através das teorias

reflexas, advoga o treinamento e estudo consciente por parte do ator. Atento aos clichês

provenientes das fórmulas pantomímicas, Lewes introduz a analogia entre uma atuação fraca,

cujo corpo e mente não respondem satisfatoriamente, e a mutilação de animais em laboratório,

cujos centros de reflexos foram cortados. Os animais em estado normal respondem com níveis

de flexibilidade e variedade enquanto seres orgânicos, já os animais alterados em laboratório

reagem com uniformidade e previsibilidade, ou seja, “mecanicamente” (ROACH, 1985, p. 185).

A oposição à atuação mecânica se dará pela atuação orgânica. Outro aspecto dos estudos de

Lewes acerca da relação entre o corpo biológico e o corpo cultural do ator refere-se à idéia de

descarga e controle da tensão nervosa, entendendo que o ator deveria lidar, conscientemente,

com as transições orgânicas da emoção desencadeada pela excitação nervosa.

Desdobra-se um novo paradigma fundado sobre a rentabilização das forças e energias e

sobre a dinâmica dos corpos. Na busca pelo equilíbrio psicossomático, o corpo começa a ser

percebido, de fato, em movimento e visto como agente transformador, através de experiências

de exercícios e de uma ideologia de liberação de todas as suas potencialidades produtivas. Na

nova ordem social que se instala, médicos e pedagogos assumem a responsabilidade de

trabalhar sobre as potencialidades do corpo. Vale lembrar que a partir do século XIX surgia

uma efervescência experimental por conta da descoberta de que o movimento não produz

somente modificações na disposição espacial dos corpos, mas no valor de sua energia potencial.

A concepção do homem capaz de transformar energia teve uma ressonância não só científica,

mas, também, cultural, no início do século XIX, com o surgimento da Termodinâmica

(PRIGOGINE,1991, p. 87). A utilização do calor transformando a matéria e as mudanças de

estados e propriedade desta matéria determinaram, também, a idéia do corpo humano que

armazena e gasta energia, do corpo como energia em potencial.

O corpo encontrava em si próprio as condições indispensáveis para sua transformação.

A nova visão de que eram as fibras nervosas que proporcionavam a elasticidade e firmeza aos

27 Roach refere-se à obra escrita por Lewes (1875): On Actors and the Art of Acting.

Page 54: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

54

órgãos e totalidade do corpo evidenciou uma finalidade interna, nunca antes destacada. Esta

visão possibilitou um novo olhar para organismo e o decorrente desenvolvimento dos exercícios

físicos na manutenção da vida (CRESPO, 1950, p. 562). As pedagogias ocidentais instituíam

um papel cada vez maior ao aspecto físico e a suas implicações mecânicas, rítmicas e espaciais.

A unidade entre corpo e natureza se restabelecia, como bem convinha ao pensamento naturalista

herdado do século XIX. O corpo saudável passa a ser o que transforma energia a seu favor28. O

teatro do início do século XX também estava inserido neste contexto e contamina-se pelos

princípios pedagógicos de educação do corpo. Emerge, neste contexto, a tradição dos “diretores

pedagogos”, segundo expressão cunhada por Meyerhold (apud DE MARINIS, 2004), cujo

enfoque é o trabalho sobre o ator. Uma herança fundamental iniciada por Stanislavski e que

teria continuidade nas teorias de Grotowski, Meyerhold, Peter Brook e Eugênio Barba, dentre

outros importantes reformadores da pedagogia do ator.

O surgimento dos pioneiros estúdios para formação do ator evolui para o conceito de

laboratório e de treinamento, e outros tantos procedimentos coletivos surgidos no século XX,

tendo o corpo, e com ele as relações com a mente, como agente transformador das técnicas e

linguagens artísticas. Foi Stanislavski (1989) que formulou a necessidade do trabalho de

laboratório e ensaios, como processos criativos sem o vínculo direto com a cena e sem

espectadores, desenvolvendo um procedimento continuado junto aos atores.

No desenvolvimento de sistemas de treinamento para o ator, na primeira metade do

século XX, as técnicas e procedimentos de busca, tanto de uma disciplina e de um rigor técnico

quanto uma espontaneidade e organicidade do corpo, adquirem importância vital. Com

resoluções teóricas e práticas distintas, as metáforas do mecanicismo e organicismo ainda

permaneciam como fontes para a abordagem do problema mente-corpo, com ênfase importante

nas relações entre os mecanismos de controle e a espontaneidade orgânica da emoção e da ação

cênica. Coube às teorias do ator da segunda metade do século XX o desafio de lidar com a

persistente herança mecanicista e buscar a conexão com aspectos cada vez mais presentes da

complexidade do organismo vivo.

Ainda que entendendo que a arte do ator não é uma “disciplina científica” Grotowski

(1992, p. 102-103) apontou para o que deve ser objeto de estudo de uma pesquisa metódica, e

que possa definir leis objetivas e processos pessoais e individuais. Sendo uma arte imperativa,

que ocorre em um determinado tempo e num momento preciso, o ator deve criar métodos para 28 Em 1880 a educação física é oficialmente incorporada ao sistema de ensino nas escolas dos Estados Unidos e Inglaterra, após a sua implantação na França e Suécia. A ginástica sueca será largamente difundida, tendo Stanislavski a incluído em seu treinamento com atores, com vistas a um corpo saudável, flexível, expressivo e decidido (STANISLAVSKI, 1994, p 60-64).

Page 55: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

55

não se tornar refém da inspiração, do talento e de outros fatores imprevisíveis do próprio

organismo e de sua relação com o meio:

a) estimular um processo de auto-revelação, recuando até o subconsciente e

canalizando este estímulo para obter a reação necessária;

b) poder articular este processo, discipliná-lo e convertê-los em gestos [...]

compondo uma partitura cujas notas sejam minúsculos pontos de contato,

reações ao estímulo do mundo exterior;

c) eliminar do processo criativo as resistências e os obstáculos causados pelo

organismo, tanto físico, quanto psíquico (os dois formando um todo).

Esta superação de limites é, para Grotowski (1992, p. 105), um processo de

conhecimento, “desde a fonte instintivo-biológica através do canal da consciência e do

pensamento, até aquele ápice difícil de definir onde tudo se transforma em unidade”.

1.9 Uma outra idéia de organicidade

A organicidade no trabalho do ator ganha ênfase no século XX. As metáforas

decorrentes da noção de organicidade são fundamentais na nova abordagem proposta por

Stanislavski e, posteriormente, desenvolvida por Grotowski. Meyerhold também se dedica à

pesquisa da organicidade do ator, traçando um novo território para o papel desta por meio de

uma ciência pragmática e objetiva. Ele chamará de “essência do movimento cênico” e

Stanislavski de “organicidade do corpo-mente”, com vistas a especificar igualmente a via cênica

do bios (BARBA, 1988, p. 88).

O sistema de Stanislavski tratava de procedimentos psico-fisiológicos, definidos por

Ruffini (apud BARBA, 1988), como “corpo-mente orgânico”, no sentido de que as exigências

da mente são respondidas pelo corpo de forma precisa. Stanislavski percebia que, ao entrar em

cena, o corpo do ator tendia a tornar-se redundante e incoerente, se recusando a reagir

naturalmente. A organicidade e a vida que possuía antes de entrar em cena se perdia. Neste

sentido, o corpo do ator deveria responder a todo mínimo impulso da mente, e a antiga analogia

do corpo, como um precioso instrumento musical, foi utilizada repetidas vezes por Stanislavski.

Ruffini (apud BARBA, 1988) reafirma que o corpo-mente orgânico é, para Stanislavski, o

fundamento e o sentido do papel e a personagem seria o corpo-mente orgânico do ator, nas

condições dadas pelo texto dramatúrgico. Se não há organicidade, a personagem perde o sentido

e as ações não respondem às exigências do papel, tornando-se execuções mecânicas exteriores.

Insatisfeito com o seu próprio desempenho em cena, Stanislavski passou a questionar o

Page 56: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

56

ator que se direciona para a maneira de representar esse ou aquele papel e não para a forma com

que é organicamente criado. Inicialmente, a sua representação, de acordo com o próprio

Stanislavski, era de certa forma superficial, e imitava as aparências externas da ação e a própria

experiência, repetindo, ainda, as fórmulas do convencionalismo teatral, ao qual questionava

quando iniciou o movimento do Teatro de Artes de Moscou. A cópia de modelos aliada à

ausência de informações, pesquisas e exercícios práticos relativos à natureza criadora

manteriam este tipo de postura “mecânica”. O oficio do ator ensina-o como entrar em cena e

representar, mas a arte verdadeira, de acordo com Stanislavski (1989, p. 536), “deveria ensinar

como o ator deve despertar conscientemente em si mesmo a natureza criadora inconsciente para

a criação orgânica supra-consciente”.

Thomas Richards (2001), o discípulo mais próximo a Grotowski e que se tornaria um

parceiro nos métodos de investigação do diretor polonês, define a organicidade no pensamento

de Stanislavski como as leis naturais da vida cotidiana que, por intermédio de estruturas

significativas de composição, se transformam em arte, desta forma, trazendo à cena a

naturalidade ou naturalismo da vida. Enquanto que, para Grotowski, organicidade indicaria algo

como a potencialidade, uma corrente de impulsos, um “fluxo de vida quase biológica que vem

do interior do organismo e vai a busca da realização de uma ação precisa” não se atendo,

especificamente, à criação de um papel. (RICHARDS, 2001, p. 93).

Tanto Stanislavski quanto Grotowski situaram o trabalho sobre as ações e o

comprometimento do corpo como chave para o contato com a memória, as emoções, os

sentimentos e demais estados considerados anímicos. As ações permitiriam o acesso a um

potencial criativo e orgânico, evitando a hegemonia do pensamento analítico e racional, visto

como empecilho e amarra para a livre associação de idéias e imagens e a organicidade final do

ato. O sentido de organicidade, para Thomas Richards (2001) seguindo a linha de investigação

de Grotowski, opõe-se ao pensamento discursivo da mente, e refere-se à dinamização nas ações

de um fluxo de vida originário, quase primitivo, não filtrado pela razão. O movimento do

animal torna-se metáfora para este encontro com as forças corporais naturais e não mediadas:

Se observo um gato, noto que cada um de seus movimentos está

no seu devido lugar, pois o seu corpo pensa por si. No gato não

há uma mente discursiva a bloquear a reação orgânica imediata, a

fazer obstáculos. A organicidade poderia encontra-se também no

homem, mas está quase sempre bloqueada por uma mente que

esta fazendo o próprio trabalho, uma mente que tenta conduzir o

Page 57: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

57

corpo, pensar velozmente e dizer ao corpo o que fazer e como.

Disso deriva um modo de se mover quebrado e desconexo.[...]

Para que o homem possa chegar a tal organicidade, a sua mente

deve prender o modo justo de ser passiva, ou aprender a ocupar-

se só de sua própria tarefa, retirando-se do meio, de maneira que

o corpo possa pensar por si. (RICHARDS, 2001, p. 93).

O sentido de organicidade, além dos aspectos ligados ao vivo e ao natural, também se

refere aos níveis de organização de um sistema qualquer, com a precisão e fluidez de suas

conexões. Neste contexto, as ações codificadas do ator pedem por um sentido de organicidade e

podem ser consideradas como orgânicas, a exemplo da artificialidade das ações construídas

pelas técnicas de danças clássicas ocidentais e orientais ou, mesmo, pelo mimo corporal criado

por Étienne Decroux (1898-1991). Grotowski percebe o paradoxo entre o que chama de linha

orgânica e linha artificial29. Em tradições orientais como a Ópera de Pekin, há uma linha e

tonalidade artificial na composição e elementos acrobáticos que veiculam uma imagem visual

para o espectador, já a linha orgânica passa por outros canais perceptivos, requisitando certos

processos interiores, tanto do ator quanto do espectador. O tipo de imagem se diferencia. Neste

sentido, de acordo ainda com Grotowski, a representação dos atores na Ópera de Pekin não se

baseia em um processo psicológico de identificação, mas de execução precisa e perfeita de uma

partitura de ações, e que porta níveis de organicidade.

Entendendo que o ator é, essencialmente, corpo, presença em cena, a forma de se chegar

a uma arte do ator, para Decroux (apud PEZIN, 2003), se daria, igualmente, por meio de um

trabalho técnico consistente e sistematizado. O mimo corporal por ele elaborado se constitui em

um novo gênero teatral e, em sua extrema codificação, um caso quase único no teatro ocidental.

O ator deveria ter controle pleno de seus materiais expressivos e, assim como Craig, Decroux

entendia o trabalho do ator como ação voluntária, consciente e disciplinada, eliminando os

acidentes da arte (e do corpo). De acordo com De Marinis30, Decroux ressaltava que a ausência

do conhecimento e consciência corporal, aliada a ausência de tradições voltadas para a

codificação e transmissão técnica corroboravam para as deficiências do ator ocidental

(INFORMAÇÃO VERBAL). O fato de o ocidente manter uma fragilidade quanto à presença de

técnicas codificadas para o ator dever-se-ia a certas desvantagens, ainda de acordo com

Decroux, tais como o corpo ser antropomorfo, ou seja, já ter uma forma pré-concebida

29 Palestra gravada em 1997. Coleção “Le livre qui parle”. Paris, Collège de France. 30 Palestra ministrada pelo teórico italiano Marco de Marinis no Seminário “Artaud, Decroux e Grotowski”, Florianópolis, Universidade do Estado de Santa Catarina. 10 a 12 ago. 2005.

Page 58: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

58

(diferindo de outras artes, como a escultura, cujo mármore apresenta-se de forma mais bruta) e

pela condição da arte do ator, cuja matéria a ser trabalhada é ele mesmo31 (INFORMAÇÃO

VERBAL).

A noção de organicidade e de corpo vivido, em contrapartida à noção cartesiana de

corpo objeto ou instrumento da mente ou alma, foi disseminada no século XX especialmente

pelo pensamento fenomenológico, ressaltado na filosofia de Merleau-Ponty. Este nos lembrou

que não temos um corpo, mas somos um corpo, num entendimento de corpo como relação, e

não como instrumentalização. Reafirmando que a forma com que agimos no mundo depende do

esquema sensório-motor, Merleau-Ponty (1980) reorganiza o lugar do corpo e do sensível,

trazendo noções como a de um corpo que, simultaneamente, toca e é tocado. Um corpo que se

vê vendo e que se toca tocando. A opção pela terminologia carne (chair), ao invés de corpo,

tenta resolver um problema semântico, que é falar de corpo, sempre visto em oposição ao

espírito, sem usar a palavra corpo. O filósofo francês Bernard (2001) utilizará a noção de

corporeidade (corporeité), numa tentativa de pensar o corpo e o organismo afastado do modelo

mecanicista de explicação, ou seja, do sistema institucional que não leva em conta a circulação

e o fluxo de intensidades e de transformação do corpo.

1.10 A linha orgânica e a linha artificial

A relação entre mecanismo e organismo no trabalho do ator caminha para uma ênfase

menos oponente e contraditória, na segunda metade do século XX. Contribuíram para isto as

reflexões sobre o rito e sua relação com o teatro exposto pelo pensamento de Antonin Artaud

(1896-1948), atualizadas na tentativa de fusão destes conceitos por Grotowski. No início de sua

carreira, no final dos anos 50 do século XX, Grotowski acreditava na possibilidade de renascer

o ritual, vindo de seu interesse antropológico e religioso. Foi na força coletiva viva e originária

dos ritos de diferentes tradições que o encenador buscou as fontes para re-instaurar a

organicidade necessária a relação ator e espectador. Os procedimentos eram baseados em um

compromisso físico, tanto do ator quanto do espectador, procedimentos estes já evocados por

Artaud em sua crítica a discursividade do teatro. A oposição de Artaud à hegemonia do

pensamento racional, em especial à sua própria cultura racional francesa, é reafirmada por

Grotowski (1992).

A idéia inicial de que a dimensão orgânica era privativa das performances rituais e ao

31 Seminário “Artaud, Decroux e Grotowski”, ministrado pelo teórico italiano Marco de Marinis. Florianópolis, Universidade do Estado de Santa Catarina. 10 a 12 de ago. 2005.

Page 59: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

59

teatro restaria a dimensão demasiado mecânica ou artificial é ampliada, mais tarde, por

Grotowski. Este percebe não uma dimensão oposta entre o artificial e o orgânico, mas que

ambos, teatro e rito, possuem uma dimensão orgânica, pertencente ao fluxo vital, e uma

dimensão artificial, relacionada com a forma, a estrutura, a codificação e a convenção (DE

MARINIS, 2004). Cada vez mais interessado pelo trabalho do ator sobre si mesmo, Grotowski

encontra no rito um equivalente para esta finalidade. As buscas se encaminham para um “rito

sem ritual” baseado no ato total do individuo em direção ao conhecimento de si, pela

possibilidade não de reviver o ritual, mas de extrair certos elementos desta prática coletiva para

o desenvolvimento de técnicas pessoais. Em sua obstinada busca pela precisão técnica e pela

disciplina através do corpo, Grotowski atualiza os ritos de maneira estruturada e pragmática,

valorizando a função do ritual como conhecimento orgânico, vivificado e “fisicalizado” na voz,

no corpo, no movimento, no ritmo, no espaço.

Pelos procedimentos rituais e performáticos das sociedades mais arcaicas, Grotowski

pretendia alcançar algo que não estivesse contaminado pela lógica cartesiana e que portasse

uma organicidade mais originária. O historiador francês Georges Banu associa o trabalho de

Grotowski à memória, mas não à emocional, como seu mestre Stanislavski proporia, mas à

“memória da origem, do ser”.32 A noção stanislavskiana do trabalho do ator sobre si mesmo tem

sua continuidade em Grotowski através do que De Marines (2004) nomeou como “yoga do

ator”, uma investigação para aproximação de um estado de organicidade. Esta noção de yoga,

num sentido mais amplo e direcionado ao trabalho do ator, é definida por Taviani (apud DE

MARINES, 2004) como uma prática que conjuga aspectos mentais e físicos, baseada em

estruturas técnicas e exercícios que permitissem ao ator sair de sua mecanicidade e da repetição

da vida cotidiana para reencontrar um fluxo vital na vivência do momento presente. A idéia de

se opor à mecanicidade se associa à negação da repetição da vida cotidiana e de suas respostas

condicionadas e à busca da organicidade na experiência do momento presente, por meio de um

fluxo vital e espontâneo.

Grotowski aprofundou o seu procedimento técnico para o ator ainda com vistas para a

construção cênica no transcorrer da década de 1960, o que é nomeada por De Marinis (1988)

como a “fase dos espetáculos”, como montáveis memoráveis como Fausto, Akrópolis e O

Príncipe Constante. A fase “Para” teatral, no decênio 1970-1980, foi marcada por encontros,

com uma vivência coletiva e pesquisas intensas em diferentes culturas. Entre 1979-1982, o

trabalho sobre o individuo se intensifica, mas sem finalidade espetacular. É quando retorna ao

32 Palestra ministrada por Georges Banu no Simpósio Internacional Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, 1996, no SESC (SP).

Page 60: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

60

“trabalho sobre si mesmo”, naquilo que o ator pode fazer por si só. Nesta fase, chamada de

“Teatro das fontes”, Grotowski (1992) se interessa pelos rituais e pela antropologia, buscando

aspectos essenciais e originais. A fase em que busca um sentido mais objetivo, uma

formalização no próprio corpo e na voz, o “Drama objetivo”, antecede a sua última fase, a “Arte

como veículo”, onde as formulações a respeito do trabalho do ator sobre si mesmo se

intensificam. Desde 1983, Grotowski (apud DE MARINIS, 1988, p. 96), pesquisou mais

precisamente os aspectos técnicos da interação ritualizada. Buscou descobrir quais são “os

efeitos ‘objetivos’ das técnicas ritualísticas (religiosas, artísticas) independente dos significados

intencionais que transmitem”. O drama objetivo foca a descoberta de elementos performativos,

como movimento, voz, ritmo e uso do espaço, que produzem certos resultados energéticos em

quem pratica, e em quem os testemunha. Estas técnicas envolvem ações físicas extremamente

precisas e as fontes de pesquisa incluíam, numa determinada época, expedições a lugares onde

os ritos arcaicos ainda estavam vivos.

Grotowski pesquisou, durante 25 anos, antigos textos, rituais e cantos sagrados, atento,

mais precisamente, a sua qualidade vibratória e ao poder de comunicação do homem consigo

mesmo e com o outro. Sua pesquisa compreendeu cânticos de berço ocidental, como os gregos,

egípcios, sírios, israelenses e africanos, aos de berço oriental, tais como os indianos e chineses.

Estudou, por exemplo, o fenômeno dos mantras indianos, percebendo um “encantamento

preciso” e uma técnica “altamente desenvolvida que age diretamente sobre o homem”. Nos anos

de 1970, Grotowski e seus atores voltaram-se às pesquisas em florestas, onde julgavam haver

locais de “potencial de poder”. Buscavam descobrir certas maneiras de caminhar de tribos mais

primitivas para desbloquear as forças vitais e atingir uma organicidade: “atrás da maneira de

andar das tribos, que não é fácil, existe uma espécie de yoga que não para só no desbloqueio dos

sentidos e da tensão, mas porta algo de verticalidade”33 (INFORMAÇÃO VERBAL).

Apesar de utilizar-se da arte como veículo para pesquisar os “antigos mistérios”,

Grotowski advertiu que não é um processo puramente imitativo ou dogmático. Existe uma

metodologia de pesquisa na tentativa de religação entre o corpo e o canto, onde “o corpo ajuda o

canto, e o canto ajuda a transformar a energia biológica, orgânica, mais densa em mais leve,

luminosa, sutil” Grotowski, (INFORMAÇÃO VERBAL)34. Algumas técnicas, entretanto,

segundo Grotowski, tendem a bloquear o corpo, a exemplo dos mantras. Como o imprescindível

para o diretor era o envolvimento do corpo do ator, estes não funcionaram dentro do seu 33 Nunes (1996). Monografia (não publicada), com reflexões acerca das colocações de Grotowski e Richards durante o Simpósio Internacional Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, de 07 e 16 de out. 1996 em São Paulo, organizado pelo SESC. 34 Palestra de Gotowski ocorrida no transcorrer do Simpósio Internacional Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, de 07 e 16 de out. 1996 em São Paulo, organizado pelo SESC.

Page 61: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

61

processo de trabalho. Após anos de busca, encontrou nos cantos africanos a organicidade

desejada. A vivacidade e os impulsos das manifestações vocais e corporais da cultura africana

apresentou, para Grotowski, o material de pesquisa necessário para um envolvimento maior

entre corpo e voz.

O que Grotowski pretendeu com o trabalho vocal foi muito além da dicção eficiente

exigida para ator. Um dos fundamentos de Grotowski para explicar a utilização dos cantos no

seu trabalho vem da sua potencialidade de transformação no que se refere à energia do ator.

Para ele, a ressonância da voz no corpo e o que pode emanar, a partir desta relação, é o que

parece importar realmente: “o corpo é o primeiro vibrador, a primeira caixa de ressonância”. O

ator deve falar com o corpo num todo, reagir com ele. Para tanto, se valeu, inicialmente, de

exercícios de respiração adaptados da Hatha Yoga e do teatro clássico chinês, onde a respiração

ideal seria o que chamou de “respiração total”, envolvendo a região superior do peito e a região

abdominal. Já os cantos propiciariam um refinamento das energias do ator:

O canto entra cortando o corpo, ressonando, e junta a qualidade

de força no ponto de nascimento do impulso - próximo do plexo

solar. Esta força abre um canal de passagem de energia que corre

ao longo do corpo, trabalha sobre o eixo interno, e a energia

começa a transformar-se para um estado mais sutil, mais coração

(INFORMAÇÃO VERBAL) 35.

O que Grotowski chamou de ato total do ator em busca da autenticidade e intensidade

assemelha-se ao que o homem experimentava nas cerimônias rituais. A noção de organicidade é

relacionada à vida intima do corpo humano, mas, também, do comportamento animal. Ao

comparar o corpo humano ao do animal, Grotowski aproxima a noção de organicidade a um

estado, de acordo com as leis naturais, que não visa ilustrar ou representar algo, mas que se

sucede como fenômenos latentes, tais como o movimento dos ventos ou o fluxo e refluxo das

marés (MAGNAT, 2000, p. 11). A metáfora do comportamento animal é evocada para

descrever um processo vivo autêntico que caracteriza uma ação não elaborada anteriormente, ou

seja, um processo fundado sobre o menor espaço entre percepção e ação, ação e reação. Um tipo

de impulsividade natural necessária ao ato criador, que não se abstém, contudo, de seus aspectos

estruturais.

Através de um processo orgânico, a interação entre a espontaneidade e a disciplina, 35 Palestra de Thomas Richards ocorrida no transcorrer do Simpósio Internacional Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, de 07 e 16 de out. 1996 em São Paulo, organizado pelo SESC.

Page 62: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

62

precisão e organicidade, aparentemente tidas como noções opostas, proporcionaria a gênese do

ato total, aniquilando os conflitos produzidos pelo aparente antagonismo entre matéria e

espírito, mecanismo e organismo. Este problema, fundamental do teatro contemporâneo, de

aliar espontaneidade e estrutura, para Meyerhold (apud, JIMENEZ, 1990, p. 89), demandaria

preservar a capacidade de improvisação sem transgredir a forma precisa que o diretor confira ao

espetáculo:

Se a improvisação está ausente das atuações, o ator está parado

em seu desenvolvimento. As duas condições principais do

trabalho do ator são: a improvisação e o poder de restringir-se.

Quanto mais completa é a combinação destes dons, maior é a

arte do ator.

Grotowski, ao enfocar a relação espontaneidade e disciplina, se propunha a atingir uma

dimensão humana que perpassava o caráter espetacular. No vídeo-documentário A arte como

veículo36, com demonstrações de exercícios individuais e coletivos praticados por atores e sob

coordenação de Grotowski e Richards, é perceptível a existência de um trabalho estruturado.

Por detrás da aparente conotação mística dos corpos, que entoam cantos com uma intensa

vibração corporal e vocal, precisa e repetitiva, há um intrigante trabalho dirigido e intencional,

excluído de vôos de liberação ou improvisação ou cenas de caráter meditativo ou

transcendental.

Nos primeiros anos de trabalho em seu laboratório teatral, Grotowski confessou que tinha

muitas idéias metafísicas, mas abandonou-as e seguiu as leis de trabalho tangíveis, precisas,

imprimindo um trabalho rigoroso de organização de uma estrutura para permitir o fluxo

criativo37. Somente através de uma estrutura técnica coerente e precisa seria possível empreender

um vôo criativo maior. Contrariando o senso comum na arte de que é a liberdade de improvisar

que conduz a uma condição criativa, o diretor admitia somente a possibilidade de evolução

pessoal, tendo como base uma confiável estrutura. Grotowski, ironicamente, comparou um certo

tipo de improvisação ao “vôo da galinha”, que não vai muito longe em seu intento, expondo o

seu temor ao caos e sua preferência, a certas leis estruturais. Dentro de um processo regido por

leis, um sistema qualquer tem mais possibilidades de estocar informação, permanecer e se 36 O Vídeo foi apresentado no transcorrer do Simpósio Internacional Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, de 07 e 16 de outubro de 1996 em São Paulo, organizado pelo SESC. 37 Palestra de Gotowski ocorrida no transcorrer do Simpósio Internacional Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, de 07 e 16 de outubro de 1996 em São Paulo, organizado pelo SESC.

Page 63: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

63

reconhecer. O caos, a que Grotowski se refere, pode levar ao descontrole ou a perdas

irreversíveis e representar ausência de memória que, para o diretor, parece representar ausência

de conhecimento, reminiscências prováveis do mau entendimento, por parte de inúmeros grupos

de pesquisa teatral, a partir da década de 1960, de suas idéias e de seus procedimentos

metafísicos.

Ao mesmo tempo em que Grotowski descreveu a necessidade de uma estrutura precisa

para ser absorvida plenamente, colocou a idéia da improvisação a ser realizada pela “alma”,

onde criatividade e espontaneidade, sendo atributos desta, tal qual pensava Stanislavski,

aflorariam como produto de uma aperfeiçoada preparação técnica. “No processo interior há a

liberdade, a improvisação é na alma. No lado de fora, a forma, onde tudo é determinado”38

(INFORMAÇÃO VERBAL). A valorização do conteúdo ante a forma só não é maior porque

Grotowski pressupôs a eclosão deste conteúdo mediante e somente a manifestação e

estruturação da forma, de certa maneira buscando não dissociá-las.

A organicidade era, para Grotowski, como uma corrente biológica de impulsos que vêm

do interior de cada um, algo que deve ser buscado ou reencontrado. Uma reação primária e

primitiva, não filtrada pela razão, e que parece estar preservada interiormente, esperando

somente pela experiência técnica para revelar-se. A noção do algo esquecido é, antes de tudo,

corpórea. Corpo enquanto instância que busca o conhecimento. O Performer, na visão de

Grotowski, pode ser um “homem do conhecimento”, como o Dom Juan nos livros de

Castanheda ou o Dom Juan de Nietzsche. A figura do Performer, estabelecida por Grotowski,

estimula uma ação e recepção muito mais “cognitivo-sensória” do que predominantemente

“racional”. “Performer, com a letra ‘P’ maiúscula é uma pessoa de ação, não alguém que

representa outro, não é um ator”39. Este se afasta do conceito estabelecido a partir da década de

1970 de performance enquanto acontecimento ou representação estética e investe no Performer

enquanto ser humano ao encontro do conhecimento. A idéia da arte como veiculo confirma, de

certa maneira, a idéia do corpomente do ator grotowskiano como uma mídia num sentido

dinâmico e processual, cujo mote é a transformação constante de si mesmo. Esta experiência de

transformação tem a ver com a noção do Performer, numa formulação extrema da idéia

stanislavskiana do trabalho do ator sobre si mesmo, tendo o enfoque maior do indivíduo sobre si

38 Declaração de Gotowski na palestra ocorrida no transcorrer do Simpósio Internacional Workcenter of Jerzy Grotowski and

Thomas Richards, de 07 e 16 de outubro de 1996 em São Paulo, organizado pelo SESC. 39 Palestra de Gotowski ocorrida no transcorrer do Simpósio Internacional Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards,

de 07 e 16 de outubro de 1996 em São Paulo, organizado pelo SESC.

Page 64: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

64

mesmo. De Marinis (INFORMAÇÃO VERBAL)40 ressalta que Grotowski se apropriou do

conceito de arte como veículo criado por Peter Brook.

Grotowski ampliou a idéia de treinamento para formação cênica como método

dedutivo e mera soma de habilidades técnicas, para um processo interligado de amadurecimento

do ser humano que busca conhecer-se, relacionar-se, comunicar-se e atuar criativamente no

mundo. Grotowski optou por um procedimento de despojamento e de eliminação de bloqueios e

resistências mentais-corporais por parte do ator, introduzindo o conceito de “via negativa” em

contraposição à “via positiva” de acúmulo de um repertório técnico. O corpo então se coloca

como “veículo” para despertar as energias que impulsionariam o ator para a ação frente a si

mesmo e ao outro. Tendo sido este “outro”, nos últimos anos, os cerca de 150 grupos de teatro

que freqüentaram o espaço de pesquisa teatral dirigido por Grotowski em Pontedera, Itália, a

convite do diretor, desde que ele decidiu, no início da década de 1970, por um trabalho junto

aos seus atores, longe do alcance do público e do circuito teatral. Grotowski abandonou a noção

de espetáculo, mas não o teatro. Tampouco o enfoque que herdou de Stanislavski: o trabalho do

ator sobre si mesmo.

Figura 9: Ryszard Cieslak em “O Príncipe Constante”. Foto

Teatro-Laboratório. (Grotowski, 1992).

40 Seminário “Artaud, Decroux e Grotowski”, ministrado pelo teórico italiano Marco de Marinis. Florianópolis, Universidade do

Estado de Santa Catarina. 10 a 12 de ago. 2005

Page 65: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

65

2 AS METÁFORAS E A ORGANICIDADE DA AÇÃO FÍSICA

2.1 O trânsito entre o dentro e o fora

Uma questão importante que esteve presente durante todas essas discussões sobre o

corpo-máquina e o corpo-organismo, envolvendo a mecanicidade, a artificialidade, a vitalidade

e a organicidade das ações está relacionada ao fluxo de informações entre o dentro e o fora do

corpo. O trânsito entre metáforas relativas ao interior e ao exterior, bem como ao centro e à

periferia e às partes e ao todo fundamentam a noção de ação física, contrapondo-a às noções de

gesto e de movimento. Lakoff e Johnson (2002) nomeiam estas metáforas como ontológicas e

orientacionais. Uma vez que as metáforas formatam o pensamento e dão ignição aos atos do

corpo, conforme a analogia adotada, conforma-se um tipo de tratamento dado ao corpomente e

uma determinada abordagem pedagógica e estética.

O entendimento de metáforas mais simples, como a idéia de que “o futuro será melhor”

às mais complexas, como “ela está deprimida” estaria associada, por exemplo, à noção de alto e

baixo por nós experimentadas fisicamente na infância. Estas metáforas, chamadas

orientacionais, reafirmam que o que é bom é “para cima” e o que é ruim, “para baixo”

respectivamente, e não são arbitrárias, elas tem base em nossa experiência física e cultural.

Conceitos tais como “para cima” ou “mais perto” não são puramente compreendidos em seus

próprios termos, mas emergem de um conjunto de funções motoras, constantemente realizadas,

resultantes da posição ereta em relação ao campo gravitacional e de nossa constante experiência

espacial, isto é, de nossa interação com o ambiente (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 128).

A ontologia diz respeito a caracteres fundamentais e necessários do ser, o que todo o ser

tem e não pode deixar de ter (ABBAGNANO, 2000, p. 662). As metáforas chamadas

ontológicas incidem sobre a identificação de nossas experiências, a partir de entidades e

substâncias. Uma vez identificadas, é possível categorizá-las, agrupá-las e quantificá-las e, desta

forma, raciocinar sobre elas e tomar decisões. A nossa experiência com substâncias e objetos

físicos propicia uma base para a compreensão das coisas, e que vai além da orientação. Estas

metáforas são necessárias para lidarmos racionalmente com nossas experiências e agirmos no

mundo. Segundo Lakoff e Johnson, (2002), os nossos conceitos de objetos, pessoas ou

atividades envolvem muitas dimensões e interações no que diz respeito à sua função, atividade

motora, objetivo, substância etc, que formam não um conjunto (entendido como soma de

partes), mas uma gestalt com proporções que emergem de nossa experiência. Dentre tantas

metáforas, há as de:

Page 66: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

66

a) quantificação (se transpostas para o trabalho do ator, diríamos que ele é muito

técnico);

b) identificação de causas (o ator não consegue imprimir um ritmo à cena ou traçar

objetivos);

c) ações (o ator encontrou o tom certo da personagem).

Da mesma forma que as experiências básicas das orientações

espaciais humanas dão origem a metáforas orientacionais, as

nossas experiências com objetos físicos (especialmente com

nossos corpos) fornecem a base para uma variedade

extremamente ampla de metáforas ontológicas, isto é, formas de

se conceber eventos, atividades, emoções, idéias etc. como

entidades e substâncias. (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 76).

A mais contundente das metáforas ontológicas relacionadas ao trabalho do ator opõe o

dentro e o fora (ou interior e exterior), e diz respeito à idéia de que a verdade ou a organicidade

deve vir do interior do corpo ou de um ponto central deste. Portanto, um movimento intencional

para ser orgânico (consciente ou não) deve originar-se do centro do corpo e se expandir para as

extremidades, em direção a sua periferia. Os movimentos que nascem de uma espécie de

impulso vital se conformam como ação física; se nascerem das extremidades (mãos e rosto),

tendem a ser classificados como gestos. Nesta tradição se inclui, principalmente, a derivada do

sistema de Stanislavski, seguida por Grotowski. Salientando os aspectos espirituais da ação e

não os materiais ou externos, Stanislavski enfatizou que a ação cênica não significa “mover-se

para todos os lados, gesticular em cena”. “Não é algo que ao ator finge representar, não é uma

coisa exterior; é antes, uma coisa interna, não física, uma atividade espiritual”.

(STANISLAVSKI, 1995, p. 63).

A ação cênica é o movimento da alma para o corpo, do centro para

a periferia, do interno para o externo, da coisa que o ator sente para

a sua forma física. A ação exterior em cena, quando não é

inspirada, justificada, convocada pela atividade interior, só poderá

entreter os olhos e os ouvidos. Não penetrará no coração, não terá

importância para a vida de um espírito humano em um papel

(STANISLAVSKI, 1995, p. 63).

Page 67: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

67

A ênfase sobre a expressividade do gesto se valendo da metáfora dentro-fora, contudo,

não é recente. As teorias do ator do século XVII descrevem a imitação das afeições interiores da

alma fundada sobre as impressões que estas imprimem naturalmente no corpo e sobre o

“julgamento efetuado do comportamento e inclinação das pessoas a partir de seus movimentos

exteriores” (MENESTRIER, 1972, p. 160). A própria noção de expressão é vista comumente

como exteriorização de um impulso interno do sujeito, por meio das extremidades de seu corpo.

A discussão sobre a interioridade, o poder deste mundo de dentro e sua relação com o de fora

legitima os níveis de dramaticidade e expressividade do corpo.

Johann Jacob Engel (1741-?), em Idéias sobre o gesto e a ação teatral (1795) defendeu

a autonomia do oficio do ator e a possibilidade de formar uma arte do gesto por meio do estudo

e classificação do gesto e da ação, sendo a noção de ação (actio) vinculada, ainda, aos estudos

da retórica. “Há muitos escritos sobre esta matéria, em muitas línguas, mas não se conhece

nenhuma que nos traga regras particulares, exatas e precisas do jogo do ator. Há que se criar

uma teoria inteiramente nova.” (ENGEL, 1979, p. 6-9). O teórico alemão reconheceu a

existência da arte do ator dramático, debate aberto por Sainte-Albine com a obra O Comediante

em 1747, cujo Paradoxo do Comediante, de 1773, de Diderot, é um outro reflexo. Engel

chamou a atenção para a diferença da emissão de “estados da alma pelos signos exteriores

arbitrários” que seriam próprios às situações cotidianas e os que devem ser emitidos sobre a

cena. As modificações exteriores do corpo seriam o efeito natural das flutuações interiores da

alma, que se manifestam mesmo sem nenhum esforço. Mas ao ator, “não há outra forma de

alcançar a perfeição do que estudar todas as nuances particulares e que os signos exteriores das

paixões e dos sentimentos oferecem, efeitos da variedade de caracteres e temperamentos, e de

formar um método geral.” (ENGEL, 1979, p. 6-9).

Figura 10: A classificação das paixões: terror, da obra de Engel (1785)

Idéias sobre o gesto e ação teatral. (ROACH, 1985, p. 76).

Page 68: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

68

Ao abordar a motivação de cada gesto e suas especificidades na cena, Engel antecipa

algumas questões propostas pelo sistema stanislavskiano, cem anos depois. A força das

reflexões presentes na obra Idéias sobre o gesto e a ação teatral reside na imbricação entre

teoria e a prática, constituindo-se, assim, em um dos primeiros sistemas históricos relativos à

atuação do ator. Nesta obra, Engel aborda a noção de dentro e fora da ação enfocando a

observação dos signos exteriores do corpo com vistas a formação de uma teoria do gesto:

Nós não conhecemos a natureza da alma se não pelas suas

operações; e nós encontraremos certamente a solução de um

número de dificuldades, se observarmos com mais atenção o

modo destas operações, assim que as expressões variadas de suas

paixões e os movimentos que estas paixões produzem no corpo.

Não podemos ver de uma maneira imediata, mas podemos ser

mais atentivos para examinar seu espelho, ou melhor, seu véu,

que é bastante diáfano e bastante móvel, para, através de suas

dobras leves, nós podermos perceber o vir a ser da forma.

(ENGEL, 1979, p. 20).

Ao descrever as maneiras de expressar um gesto de amizade, Engel acentuou o aperto

de mão como menos intenso, pois reúne somente as duas extremidades do corpo, e o beijo e o

abraço, como mais intensos, pois aproximam inteiramente os dois indivíduos e reúnem as duas

partes superiores do corpo. Já o habitante do campo, cuja “corrupção da cidade ainda não

degradou o coração”, reserva o abraço para momentos de entusiasmo. A amizade não é apenas

um aperto de mão, mas a “expressão interior do coração”, é pleno de força, energia e calor

(ENGEL, 1979, p. 30).

Utilizando-se de exemplo similar, Grotowski (apud RICHARDS, 1995, p. 75) chamou a

atenção para os camponeses, que, ligados à vida tradicional, iniciam um aperto de mão com um

movimento que começa de dentro do corpo, ao inverso do homem urbano, cujo enfoque é

periférico, ou seja, gestual. Já as ações, nascem do interior do corpo. Como movimentos das

extremidades do corpo, os gestos não envolveriam nem transferência nem suporte do peso,

tampouco a participação do eixo corporal central.

Numa breve, porém decisiva passagem em A criação de um papel, Stanislavski aponta

para a importância do trabalho sobre os impulsos, que não foi desenvolvido plenamente, em

decorrência de sua morte. Para ele, as ações orgânicas nascem efetivamente a partir do estímulo

Page 69: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

69

dos impulsos internos do corpo: “[...] o essencial não está nessas pequenas ações realísticas, e

sim em toda a seqüência criativa que é efetivada graças ao impulso dado por essas ações

físicas”. Ao invés da análise “fria” das ações com a razão, é pelos impulsos interiores para a

ação, pela prática, do ponto de vista da experiência humana e de seu subconsciente, que o ator

toma contato com sua própria “natureza”. (STANISLAVSKI, 1995, p. 238- 249).

Por meio da “participação direta de todos os elementos interiores humanos, com o seu

impulso natural para a ação física” nas condições determinadas pelo papel, e não por meio de

uma análise puramente intelectual, Stanislavski (1995, p. 236) determina que o foco não está na

ação propriamente dita, mas na evocação natural dos impulsos para agir. Uma vez estabelecidos

os impulsos interiores, as ações se desenvolveriam espontaneamente. Atento aos clichês,

“procurando não fazer qualquer movimento”, o impulso, no entendimento do mestre russo, é, de

certa forma, comunicado pela periferia do corpo, mais precisamente pela expressão facial, pelos

olhos e pelas pontas dos dedos (STANISLAVSKI, 1995, p. 238).

A idéia de que é o impulso interno que dá origem ao movimento está presente também

no sistema de Rudolf Laban (1879-1958). Ele denomina por meio do termo esforço a ação

resultante que ocorre em qualquer movimento corporal, com seu ponto de origem interior e

determinante das atitudes, em grande parte inconscientes e involuntárias (LABAN, 1978, p. 51).

O domínio do movimento, por parte do artista cênico, viria com a ação corporal externa e

concreta de estágios de preparação interior – Atenção, Intenção e Decisão, envolvendo aspectos

relativos as possíveis combinações entre dinâmicas de movimento e aos fatores peso, tempo e

espaço41.

É Grotowski (1993), contudo, quem retoma os impulsos como a chave para a

composição de ações físicas orgânicas. Para ele, os impulsos provêm de uma tensão muscular

que porta uma intenção, não no sentido estritamente psicológico, mas algo que se opera no

corpo. Os impulsos sempre precedem às ações, vindos do interior do corpo para a sua periferia.

A reação autêntica começa no interior do corpo. Se não trabalhada conscientemente, o que

poderia ser uma ação se restringe a um gesto que, para Grotowski, é periférico. Ele localiza o

impulso da ação vindo de uma região denominada cruz, na parte inferior da coluna vertebral,

com toda a base do corpo até a base do abdômen – e se expandindo ao resto do corpo. O que é

exterior, o detalhe ou o gesto, seria somente a conclusão deste processo interior. Se o

movimento não nasce desta região, torna-se artificial, falso e sem vida. A noção de interioridade

da ação, neste caso, é associada à de organicidade. Grotowski adverte que esta localização não 41 De acordo com Laban (1978, p. 131), “O individuo que aprendeu a relacionar-se com o Espaço, dominando-o fisicamente, tem Atenção. Aquele que detém o domínio de sua relação com o fator Esforço-peso tem Intenção; e quando a pessoa se ajustou no tempo, tem Decisão”.

Page 70: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

70

pode ser aplicada como uma receita. Só se pode ser relativamente consciente para desbloquear

esta região, mas não para manipulá-la durante os exercícios e, jamais, durante a ação, pois não é

uma verdade absoluta. Todo o corpo é memória, haveria muitos outros pontos de partida. Ele

salienta que existem pequenos impulsos no corpo que são sintomas, tais como quando se

enrubesce, e que não são ações, visto que não dependem da vontade, pelo menos da vontade

consciente.

O diretor e teórico teatral Eugênio Barba define a ação física iniciando, igualmente, pela

necessidade de distinção do simples movimento ou do simples gesto. A ação física seria aquela

que, por menor e menos perceptível que fosse, mesmo numa tensão imperceptível da mão, por

exemplo, modificasse a tonicidade do corpo por inteiro. Neste caso, a parte modifica o todo,

análogo ao que Meyerhold (apud HORMIGON, 1992) estabeleceu como princípio de

agrupamento corporal ao sinalizar que, se a ponta do nariz se mexe, todo o corpo responde, pois

nada poderá estar fora da ação. Uma verdadeira ação teria este poder de modificar o corpo como

um todo e, por conseqüência, causar uma alteração na percepção do espectador. Barba (2002, p.

356) mantém a localização no tronco, apontada por Grotowski como local originário da ação:

“Não é pelo cotovelo que a mão se movimenta, não é o ombro que movimenta o braço, mas é

no torso que se localizam as origens de todo impulso dinâmico. É uma das condições que

propicia a ação orgânica.” Neste sentido, o exercício, conforme afirma Barba, funcionaria como

uma “ficção pedagógica”, capaz de ensinar o ator a pensar organicamente com a globalidade do

corpo-espírito. Ao trabalhar com o visível, através de formas susceptíveis de serem repetidas –

as partituras, o ator estabelece um diálogo entre o visível e o invisível, o que pode ser entendido

como interioridade.

O invisível dá vida àquilo que o espectador vê e à sub-partitura

do ator. Com o termo sub-partitura não me refiro a um andaime

escondido, mas a um processo pessoal freqüentemente

impossível de verbalizar. Sua origem pode residir em uma

ressonância, em um movimento, imagem ou constelação de

palavras. Esta sub-partitura pertence ao nível de organização

básico sobre o qual se apóiam os ulteriores níveis de organização

do espetáculo, da eficácia da presença individual dos atores ao

entrelaçamento da relação deles, da organização do espaço às

escolhas dramatúrgicas. A interação dos diversos níveis de

organização provoca o sentido que o espetáculo assume para o

espectador. (BARBA, 2002, p. 355).

Page 71: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

71

As diferenças entre Stanislavski e Grotowski estariam, salienta Richards (2001), no fato

de o primeiro valorizar, ainda, o impulso pela periferia do corpo (rosto, olhos, mãos), ao passo

que o segundo define o impulso como uma reação que começa dentro do corpo, partindo,

especificamente, da coluna, e não se exterioriza, tão explicitamente, na periferia. Contudo,

Stanislavski (1995, p. 63) já sinalizava que a questão não está no movimento dos braços, das

pernas ou do corpo, mas nos movimentos e impulsos interiores. Eis como Grotowski (apud

RICHARDS, 1995, p. 94) exemplifica: ao invés do ator olhar diretamente para quem está

sentado ao lado, ou seja, olhar exteriormente para esta pessoa, ele realiza somente o impulso de

olhar. Da mesma forma, realiza um impulso para, quase imperceptivelmente, tocá-la. O que

implica em não deixar a ação se exteriorizar facilmente, somente desencadear o seu início e, de

certa forma, suspendê-la no tempo e no espaço. Realizar o impulso de caminhar sem se levantar

de uma cadeira é outra forma apontada por Grotowski para treinar as ações físicas, ao invés de o

ator enfatizar o treinamento do movimento de caminhar em si mesmo.

Subsiste a noção de que o que “vem de dentro” é sinônimo de maior organicidade e

verdade do que o que “vem de fora”; a ação que nasce do interior do corpo, portanto, tende a ser

mais qualitativamente considerada. Os aspectos subjetivos são primeiramente apontados por

Stanislavski por meio das técnicas de resgate dos estados emocionais, para, mais tarde,

requisitar meios objetivos do corpo, pelo método das ações físicas. É quando a sua proposta

metodológica abre maior espaço para o trânsito entre o dentro e o fora. O foco é ora direcionado

para os conteúdos interiores, ora para os estímulos exteriores, numa relação de alternância entre

corpo e meio. O interesse quase obsessivo de Stanislavski pelo processo psicológico interno se

mantém com o método das ações físicas, mas a ignição não seria atributo somente dos

processos mentais, ou do modelo interno concebido por Diderot (1986) com a memória e

imaginação. A ação do corpo é que funcionaria como isca, ou seja, entendida enquanto um

estímulo vindo “de fora” para fazer emergir o mundo “de dentro”, do subconsciente. O trabalho

sobre o corpo é visto ainda como algo externo, garantindo a sobrevivência da metáfora do

corpo-máquina.

Em Minha vida na arte, Stanislavski (1989, p. 539) descreve seu sistema em duas partes

principais, dividindo o trabalho do artista sobre si mesmo e no papel, em interno e externo:

O trabalho interno consigo mesmo consiste na elaboração de uma

técnica psíquica que permite ao artista desencadear em si mesmo

o estado criador, no qual a inspiração lhe vem de modo cada vez

Page 72: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

72

mais fácil. O trabalho externo consigo mesmo consiste em

preparar a máquina do corpo para personificar o papel e

transmitir com precisão a vida interna deste. O trabalho sobre o

papel consiste em estudar a essência espiritual da obra dramática.

Em sua metodologia de confrontação e erradicação de bloqueios físicos e psíquicos do

ator, Grotowski (1992, p. 14) priorizou a eliminação do lapso de tempo dentre impulso interior

e ação exterior, de “modo que o impulso se torna já uma reação exterior”. Mas é Meyerhold

quem romperá mais enfaticamente com a atitude introspectiva e a hegemonia do dentro, ao

propor um movimento que reaja por meio de um estímulo proveniente do exterior. Neste

sentido, não há a supressão da emoção e outros estados ditos interiores, mas estes surgiriam

desencadeados pelo estado físico reativo. Uma expulsão, mais do que uma impulsão da ação. A

hierarquia e supremacia dos aspectos interiores e subjetivos do ator são questionadas através

dos argumentos das teorias reflexionistas. Toda ação física passa a ser entendida como um

mecanismo desencadeado por um processo orgânico e ocorrente a partir de uma resposta à

excitação. O estado psicológico é determinado pela precisão do processo físico, requisitando um

ator vivo e “nervoso”, não no sentido patológico, mas com o sistema nervoso com boa saúde e

respondendo aos estímulos externos com eficiência (PICON-VALLIN, 1990). O efeito do

comportamento na prática do ator se daria através de um processo de condicionamento de

reflexos resultante da experiência a partir do binômio estímulo-resposta ao meio. A ação do ator

passa a ser uma reação, uma resposta a uma demanda de fora, sob princípios de execução

precisos e rápidos, decompostos em três fases – intenção, execução e reação, seguindo o modelo

do reflexo (excitação – resposta – reação) (PICON-VALLIN, 1990, p. 109).

Meyerhold (apud PICON-VALLIN, 1990, p. 111) coloca em jogo a materialidade do

corpo do ator em movimento, considerando a arte como produtora de uma realidade pela ação

direta sobre a própria matéria, o corpo do ator, e identificada com a sua construção técnica. Um

dos exercícios da biomecânica, direcionados a desenvolver a reação instantânea a um estímulo

vindo do exterior, envolve marchas, lançamento de objetos imaginários e caminhadas com

recipiente de água na mão ou cabeça, buscando a estabilidade e o equilíbrio. Outros exercícios

mais complexos, em torno de 22, intitulados de estudos, trabalhavam sob princípios tais como o

da oposição e da fixação do ponto inicial e final do movimento, com finalidade de trabalhar

uma “resposta elétrica”, ou seja, instantânea, a uma demanda proveniente do exterior.

Page 73: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

73

Figura 11: exercício de biomecânica. Golpe de punhal. Picon-Vallin (1990,

p.108)

2.2 Do centro do corpo à periferia

A idéia de um centro que se estende para a periferia é outro parâmetro para descrever a

ação do ator, e revela e valida um determinado entendimento da relação entre corpo e alma ou

corpo e meio. Experimentamos nossos corpos como tendo centro (órgãos internos, esqueleto) e

periferia (dedos, cabelo). O centro é visto como mais importante que a periferia em dois

sentidos: o centro define a identidade do individuo, ao contrário da periferia ou parte, e a

periferia é vista como dependente do centro, mas não o contrário. Da mesma forma, o interior

carrega a idéia de profundidade e verdade, em oposição à noção de exterioridade e superfície.

Inúmeras metáforas reforçam estas afirmações, onde o que é mais importante é entender o

significado central, ou definir o centro de uma questão, ou partir do centro ou interior do corpo.

Os parâmetros que ditam o que é central e o que é periférico, contudo, não são

absolutos. O rosto e as mãos nem sempre foram entendidos como efeitos periféricos no trabalho

gestual do ator como Stanislavski e Grotowski descreviam. Por muito tempo, mantiveram-se

como bases expressivas e “resumos da humanidade”, portanto, centrais para expressão do

corpo. Hacks (1990), na obra O Gesto, um dos primeiros livros a discutir a noção de gesto

especificamente, sem se restringir ao enfoque dado pelos tratados de retórica, classifica os

gestos das mãos em sua extraordinária capacidade de exprimir idéias sem que o homem tenha a

necessidade de se mover muito.

A face “palmária” teria seis posições principais que, somadas à posição indicativa do

dedo index, traduziriam todos os gestos humanos, que serviriam tanto para analisar o gesto

cotidiano quanto o do orador e o do ator. A face da palma da mão voltada para a terra, a

exemplo, veicula a idéia de base, apoio, solidez e autoridade. Para cima, pode denotar súplica.

Page 74: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

74

Mãos trêmulas indicariam hesitação.

Observando atentamente os movimentos e posições múltiplas das

mãos, podemos estabelecer, em geral, que todos os gestos têm

um centro comum que os produz, o interior da mão, a face

palmaria, pois qualquer que seja o gesto realizado, a exceção do

gesto indicativo, o interior da mão é sempre o princípio do gesto.

A palma da mão faz todos os gestos, exprime todas as idéias. É

ela quem concede, que recebe, que repousa ou atira, que explica,

que faz, suplica, que acompanha de seu gesto todo ato ou todo

pensamento, que resume a humanidade. Podemos afirmar que a

humanidade é a palma da mão. (HACHS, 1900, p. 45).

A noção de centro e interior persiste quando Hacks afirma que o interior da mão é o

princípio do gesto. Inserido, igualmente, no problema da expressão, ou seja, a idéia do gesto

como comunicação de um significado interior, François Delsarte (1811-1871) apontará para um

novo pensamento sobre o corpo e a expressividade. O pensador francês deslocará, de forma

contundente, a fonte motora da extremidade (rosto, mãos) para o centro (torso), inaugurando

uma outra relação para o trânsito das metáforas do dentro e fora. Quando traz a expressão para o

centro do corpo Delsarte (apud PORTE, 1992) coloca em cheque a tradição retórica da

expressividade em sua valoração das extremidades do corpo e a relação do gesto com a

linguagem verbal. O torso não possui a visibilidade do rosto e das mãos, mas será considerado

por Delsarte como fonte e meio essencial de uma verdadeira expressão emocional, e que

Grotowski (1993) enfatizará como região dos impulsos internos da ação, com ênfase na base da

coluna vertebral. Encerrando as vísceras e órgãos vitais, o tronco fará circular o movimento das

emoções, em oposição à visão mecanicista em que as paixões se fazem ver no rosto, olhos e

mãos, os tais espelhos da alma que Descartes e os teóricos teatrais iluministas ressaltaram. O

termo gesto, utilizado por Delsarte de forma mais ampla, indicaria o movimento expressivo de

qualquer parte do corpo ou rosto.

Page 75: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

75

Figura 12: Gesto que indica a idéia de

afastamento. “O gesto”. Charles Hacks. Paris,

Librairie Marpon 8 Flammarion, 1900.

Tendo sido cantor e vivido sérios problemas relacionados à aprendizagem do canto em

conservatórios, ocasionando, inclusive, a perda de sua voz, Delsarte, em seu percurso como

pesquisador, estabeleceu um tipo de respiração diafragmática. Esta seria adotada por cantores e

atores, envolvendo o trânsito entre o dentro e o fora com a noção de inspiração, suspensão e

expiração, bem como o estudo da sua relação com os sentimentos. Chamada Lei da

Correspondência, cada função do corpo corresponderia a uma ação do espírito. A lei de

sucessão (juntamente com a oposição e paralelismo) pensada por Delsarte (apud PORTE, 1992)

dará uma espécie de liberdade para a coluna vertebral e o torso e permitirá a abertura à

passagem incessante do fluxo vital do centro para a periferia42. Alfred Giraudet, ator francês,

aluno de Delsarte, e professor do Conservatório Nacional da Música e Declamação, em sua obra

Mimique. Physionomie et gestes, méthode pratique d’aprés le systhéme de F. del Sarte pour

servir à l’expression des sentiments (1895), salienta que o gesto, até então, não havia tido um

estudo especializado. Os estudos científicos de Delsarte acerca da fisiologia do movimento

teriam coberto esta lacuna, contribuindo para que “a expressão não se acomode em imitação

mecânica.” (GIRAUDET, 1895, p. 10). O fantasma da mecanicidade persiste. As leis em que

Delsarte se baseou, de acordo com Giraudet (1895), seriam fruto da observação e estudo de

regras concernentes às leis naturais, e estas leis seriam confirmadas pelos trabalhos científicos

42 O bailarino e coreógrafo norte-americano Ted Shawn, em sua obra “Every Little Movement, a book about Delsarte” (1954) chama a atenção para a utilização das sucessões na dança moderna americana do inicio do século XX, partindo do torso, e propagada ao exterior e ao interior do corpo. (PORTE, 1992).

Page 76: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

76

da época, a exemplo de Darwin e Duchenne de Boulogne.

Grotowski (1992, p. 120) adverte que este tipo de análise do corpo e suas reações devem

ser reinterpretados, por estarem condicionados às convenções teatrais do século XIX. Ele

utilizou alguns exercícios baseados no sistema Delsarte, particularmente a divisão em impulsos

introvertidos e extrovertidos relacionados a reações faciais. Os movimentos extrovertidos

criariam um contato com o exterior, os introvertidos chamariam a atenção para os aspectos mais

interiores do ator, com estágios intermediários e neutros. Um dos sistemas de formação do ator

no século XX, que reforçam igualmente a relação centro-periferia, é o mimo corporal criado por

Decroux (apud PAVIS, 2003). Toda ação parte do centro antes de se propagar para o resto do

corpo, por meio de uma execução técnica precisa do tronco, ao invés da periferia de expressões

faciais ou manuais. O gesto seria o resultado do trabalho de todo o corpo. De acordo com Pavis

(2003, p. 296), após a desmaterialização provocada pela metáfora da marionete (Kleist e Craig),

Decroux propôs uma re-materialização ou uma re-corporalização do corpo humano: “A

centralização do corpo impõe uma solidariedade inter-orgânica que religa as diversas partes do

organismo e coloca a importância da sintonia das articulações, dos músculos e de todo elemento

mobilizante do corpo”.

A lógica de correspondência entre o visível (corpo) e o invisível (alma, espírito,

sentimento), sustentada pelos fisionomistas, será mantida por Delsarte, ou seja, trazer o invisível

à sua visibilidade. Ele valorizará o aspecto interno das paixões por meio do estudo e da

classificação de movimentos manifestados no corpo visível. O ombro, por exemplo, seria um

termômetro do sentimento e sua elevação ou caimento determinaria o grau do calor da

expressão, do abandono à exaltação. O estudo das posturas do corpo e das feições do rosto

(fisionomia) tem sido fonte inesgotável para o artista (GIRAUDET, 1895).

Vale lembrar que, já no século XVII, a fisionomia encontra eco entre pintores e atores.

Esta “pseudociência” – que teve suas origens na Grécia43, sob impulsão do teólogo Johann

Casper Lavater (1741-1801)44 – é renovada, apropriando-se do entendimento das paixões

cartesianas e reforçando a tese de que a expressão das paixões poderia ser sistematizada. A

variedade das expressões humanas e animais deveria obedecer a uma regra, pois a natureza

apresentaria certas coincidências.

43 Etmologia do termo physiognomie: physis, “natureza” e gnômôn, “que sabe” (BARIDOU, 1999). 44 Obras referências de Lavater: La physiognomie ou l’art de connaître les homes e Essays on Physiognomy (1775-1778), onde o autor acreditava ter descoberto uma ciência de correspondência entre o interior e exterior do homem.

Page 77: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

77

Figura13: desenho fisiológico de Johann Casper Lavater.

Catálogo exposição “Da alma ao corpo”. Paris, Gallimard,

2002

A fisionomia buscava o conhecimento da parte invisível do caráter do homem, pela

observação do conjunto de traços físicos e do aspecto geral do rosto, fazendo do corpo o

espelho da alma. A partir de cada parte do corpo e determinada expressão, entendia-se que o

caráter como um todo poderia ser decifrado. Também eram considerados os movimentos das

mãos, as atitudes e a voz como representação das inclinações da alma. A fisionomia seria uma

ciência da correspondência entre o homem exterior e o interior, entre a superfície visível e o

conteúdo invisível. Entre o dentro e o fora. Um bom fisionomista poderia fazer o percurso

inverso. Ao olhar a fisionomia, perceberia os traços interiores da alma.

A fisionomia do rosto seria a parte mais útil à expressão, por onde os movimentos da

alma se manifestam com maior contundência. “Como sabeis, é no rosto dos homens que as

paixões se imprimem, que os movimentos e os afetos da alma se manifestam, que a calma, a

agitação, o prazer, a dor e temor e a esperança desenha-se sucessivamente.”45 (NOVERRE,

apud MONTEIRO, 1998, p. 271). Sobre os sinais exteriores das paixões, Descartes (1996, p.

190) salienta que “não há nenhuma paixão que alguma ação particular dos olhos não declare

[...] pode-se dizer quase o mesmo das ações do rosto que também acompanham as paixões”.

O rosto e os olhos tinham, igualmente, para Engel (1979), a vantagem incontestável de

45 Em Cartas sobre Dança, Jean-Georges Noverre (1727-1810), o grande reformador da dança, compactua com as idéias de Diderot acerca da conversão da dança em arte de imitação, em ação dramática. Através da expressão gestual da pantomima a dança poderia tornar-se menos “mecânica” e veicular significados e emocionar. “Todos os movimentos do corpo são meramente automáticos e não significam nada se o rosto se mantém mudo, se de alguma forma não os anima ou vivifica”. (NOVERRE, apud MONTEIRO, 1998, p. 271).

Page 78: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

78

expressar o que se passa na alma. Ele entendia a fisionomia como uma arte semelhante à

pantomima, porque as duas se ocupariam de fazer ver as expressões da alma nas modificações

externas do corpo. Mas as diferenciava a partir de sua contingência, chamando a atenção, desta

forma, para a dinâmica do movimento do ator. A primeira dirigiria a pesquisa sobre os “traços

fixos e permanentes, sobre o qual podemos julgar o caráter do homem em geral” e a segunda

sobre “os movimentos momentâneos do corpo, que indicam esta ou aquela situação particular

da alma.” (ENGEL, 1997, p. 5). Através de seus comentários, Engel examina a questão da

expressividade do corpo, por meio da teoria das paixões e de acordo com a mimese clássica e

seus mecanismos imitativos. Descartes e Le Brun são suas referências ao tratar das paixões da

alma e das regras de expressão gestual. É sobre os traços essenciais, gerais e naturais do gesto

que Engel estabeleceu uma teoria da arte do ator. O gesto é estudado enquanto suporte

mimético de uma referência já estruturada das “situações” da alma, tais como a ira, o desejo, o

orgulho, o desespero.

Figura 14 : O pavor, uma das paixões da alma, por Le Brun. Catálogo

exposição “Da alma ao corpo”. Paris, Gallimard, 2002

As reflexões de Engel e Delsarte se aproximam em seu esforço de transformar a arte do

gesto e do movimento em uma espécie de ciência universal, elevando-a a uma condição

autônoma e relevante, frente a outras artes. Embora a dinâmica das emoções seja natural e

culturalmente moldada de forma diferenciada em cada indivíduo, há indícios, como salienta

Damásio (2000), (o que Darwin já comprovou em sua catalogação) de que a maioria das

reações emocionais resulta de uma história compartilhada pelas espécies, por meio de ajustes

evolutivos. Vistas “do alto”, são as semelhanças que saltam aos olhos.

Page 79: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

79

O método de análise delsartiano propunha-se a ser um instrumento de exame do corpo, a

partir das semelhanças das reações emocionais. A relação entre o dentro e o fora se revelaria por

meio da classificação das diferentes modificações do corpo ao expressar a condição humana,

numa tentativa de unir corpo e alma. O complexo sistema elaborado por Delsarte já apontava

para os aspectos rítmicos, dinâmicos e espaciais, relacionando o movimento, mais

enfaticamente, a determinados sentimentos e emoções46. Cada emoção engendrava sobre o

corpo modificações específicas que poderiam ser classificadas e ensinadas, como salientava

Engel (1979), sob a crença em uma expressão essencial e universal fundada sobre cada paixão.

Em posse destes mecanismos, e formado um conjunto de regras, o ator poderia não só imitar

todos os signos e modificações do corpo, como melhor compreendê-los.

Mecanismos de classificação de expressões não estão imunes ao estancamento do

movimento das emoções em determinados signos. Os gráficos dos estudos de Delsarte, em

especial os publicados nos Estados Unidos, por exemplo, foram transformados em manuais que

reduziam as relações, de certa forma dinâmicas, entre gesto e emoção por ele estabelecidas.

Avesso aos clichês gestuais, agora de atores já consagrados, uma vez que se exigia que alunos

seguissem seus mestres, Stanislavski (1994, p. 20) chamaria a atenção para a “atuação

mecânica”, enquanto “imitação artificial da periferia dos sentimentos físicos”, que diferia do

processo pessoal vivente e interno que ele proporia em seu sistema, por meio da memória

emotiva.

2.3 Repensando as metáforas de demarcação

A busca de integração dos aspectos interiores e exteriores, físicos e espirituais (ou

psicológicos) vem norteando as investigações acerca do trabalho do ator, e esta herança se

manterá em Stanislavski que instaurará procedimentos que serão seguidos por Grotowski. A

relação entre o dentro e o fora, o interior e o exterior, o centro e a periferia, o todo e a parte, a

profundidade e a superfície tornaram-se parâmetros de qualificação da conduta cênica do ator e

de elaboração de procedimentos pedagógicos. São metáforas que denotam oposição e

demarcação de fronteiras e que persistem naturalmente nos discursos para falar dos fenômenos

do corpomente, mas que requisitam uma atenção para que não se transformem em imagem

redutora das complexas operações do organismo em seu meio. Enquanto metáforas de ignição

46 Rudolf Laban, no século XX, estabelecerá relações de identificação do movimento a leis universais contextualizadas no tempo e espaço, desvinculando de certa forma a correspondência mais causal e taxionômica entre movimento e emoção atribuída por Delsarte.

Page 80: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

80

poética e de atos do corpo, estas imagens do dentro e do fora, do centro e da periferia, da parte e

do todo têm sua eficácia. Todavia, talvez não reflitam, de fato, os complexos processos

cognitivos e as relações entre os aspectos ditos físicos e mentais do organismo.

As metáforas presentes nas teorias sobre o corpo do ator estão demasiadamente sob o

efeito de uma lógica centralizadora e interiorizada, se considerarmos que o conhecimento sobre

a relação corpo e mente, na atualidade, aponta para um sistema dinâmico disposto em rede, com

exímia plasticidade e menos centralidade. Há um papel cooperativo e interativo do corpo, nos

processos cognitivos, de forma que a idéia de um ponto centralizador e irradiador, enquanto

emissor e receptor de informações que vêm do cérebro e da mente, tende a se esvaziar. Da

mesma forma, perde adeptos a idéia de interior resguardado e desvinculado do meio no qual

está inserido.

Uma das questões mais debatidas entre cientistas da área cognitiva (Damásio, 2004;

Dennett 1997; Lakoff ; Johnson, 1999; Varela, s/d) é relativa ao entendimento de como algo que

estava fora, passa a pertencer ao organismo. Ou seja, como algo que apreendemos se “encarna”,

se transforma em corpo. A metáfora do recipiente ou contêiner se fragiliza, se pensarmos que o

corpo não é um lugar onde as informações se acondicionam, mas um fluxo inestancável que faz

com que corpo e ambiente formem uma rede de conexões em vários níveis, envolvendo

aspectos sensório-motores, emocionais, racionais, dentre outros. Estas operações entre o dentro

e o fora têm particularidades, pois a cada vez que o corpo percebe algo de si mesmo ou do

ambiente, consciente ou inconscientemente, ele se re-organiza. O corpo não é um meio onde

uma informação entra impunemente, sem estabelecer quaisquer relações com as demais

informações que lá já estão. É neste sentido, que Katz e Greiner (2005) afirmam que o corpo é

um selecionador que vai se autoconstituindo de forma co-evolutiva como o seu ambiente, uma

mídia de si mesmo, ou um corpomídia. O conceito de mídia, bem como a idéia de veículo

comunicador, como um mero transmissor de informações, é alargado para contemplar os

processos de comunicação do vivo e a noção de processo. Neste sentido, o corpo não é um

instrumental de mediação, tal qual um aparelho de rádio que re-codifica e transmite as

informações ao mundo, mas um auto-organizador e transformador de processos que ocorrem

em seu próprio meio e nas relações que estabelece com o seu ambiente. A noção de

comunicação do corpo não pode ser restrita a significados, “pois não se trata de uma série

estática de representações”:

Afinal, nem tudo o que se comunica opera em torno de

mensagens já codificadas. Há taxas diferentes de coerência,

Page 81: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

81

incluindo, por exemplo, a comunicação de estados e nexos de

sentido que modificam o corpo. Esses processos têm lugar no

tempo real de mudanças que ainda estão por vir, no ambiente, no

sistema sensório motor e nervoso. Quem dá início é o sentido do

movimento. É o movimento que faz do corpo um corpomídia.

(KATZ;GREINER, 2005, p. 133)

A relação entre o dentro e o fora é própria tanto dos organismos vivos, quanto de

máquinas. O diferencial fica por conta da dinâmica e dos níveis de organicidade e plasticidade

presentes no vivo, borrando as fronteiras limítrofes entre o interior e o exterior. Se comparada à

central de processamentos de um computador – a metáfora de máquina mais contundente de

nossos tempos – a função dos neurônios parece ser a transformação de conjuntos de freqüências

de pulsos em outras freqüências de pulsos. Enquanto as propriedades funcionais de uma porta

lógica de um computador são fixas, as do cérebro são dotadas de exímia plasticidade, dado que

o desenvolvimento de novas conexões sinópticas e a ruptura e degeneração das antigas podem

modificar a função da entrada/saída da célula (CHURCHLAND, 2004). Os neurônios, nossos

dispositivos de processamento de informação, diferem da lógica de um computador, o que não

significa que, devidamente programada, estas máquinas não possam simular, de certa forma, as

atividades dos neurônios. É a partir de experiências do gênero, por parte das neurociências, que

tem havido um considerável avanço de pesquisas relativas aos processos cognitivos.

A relação dinâmica entre as informações do dentro e fora envolve, também, a noção do

todo e da parte. Na metáfora mecanicista, o todo se configura de partes que, como um relógio,

não se alteraram pelas outras partes, apenas cumprem sua função em relação à eficácia de

funcionamento do todo. O mecanicismo mantém o mesmo parâmetro de análise do todo à parte,

estendendo-o a todos os fenômenos da natureza. Mas o organismo não é mais entendido

somente como um todo que se compõe de uma soma das partes, mas um sistema integrado onde

quaisquer modificações das partes podem alterar outras partes e o todo. Possuímos inúmeros

processos de auto-organização, como os de “auto-afecção” que mudam constantemente nossa

própria estrutura em relação ao meio interno e externo. Os sistemas mecânicos “respondem”

mais linearmente a demandas do dentro e fora, já os sistemas complexos e auto-organizativos,

“adaptam-se” a elas (OLIVEIRA, 2003, p. 149).

Há uma necessidade, cada vez maior, de compreender os sistemas cognitivos,

relacionando-os com processos emergentes e auto-organizativos, e menos com relações causais

de entrada e saída de informações na mente do sujeito. Como afirma Varela (s/d), até a década

Page 82: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

82

de 1970, as hipóteses cognitivas haviam se afastado demais das estratégias biológicas de

flexibilidade e plasticidade, preferindo um processamento embasado em regras mecânicas mais

seqüenciais e lineares, a exemplo do cognitivismo, quando a metáfora da máquina é atualizada,

pela presença do computador.

Como primeira alternativa ao modelo cognitivista clássico, surgiu o conexionismo.

Neste novo entendimento, o processo cognitivo partiria de componentes que se conectam

dinamicamente entre si, onde cada componente opera num âmbito local. Como estes

componentes estão conectados em rede, há uma cooperação global que emerge

espontaneamente quando os estados de todos os neurônios participantes alcançam um estado

satisfatório. Salienta Varela, que este tipo de sistema não requer uma unidade processadora

central que guie a operação: “este trânsito das regras locais à coerência global é o coração

daquilo que em cibernética se chamava de auto-organização.” (MATURANA; VARELA, 1994,

p. 115). A rede pode ser considerada como uma metáfora possível para a organização do

corpomente, e do corpomídia, em seu trânsito de informações entre os processos internos e

externos, e entre as partes e o todo.

Aliada a metáfora da rede, a noção de sistema alarga as fronteiras limítrofes entre o

dentro (corpo) e o fora (ambiente). A noção de sistema difere da noção de agregado. Num

sistema as propriedades dos componentes dependem do contexto do sistema o qual fazem parte,

e a sua correlação e coordenação conferem um tipo de unidade. Já a idéia de agregado remete a

partes que não se alteram em relação ao conjunto geral. A raiz da idéia de sistema, de acordo

com Nicholas Rescher (Apud JUARRERO, 2002, p.109) remonta a de uma integração dentro

de um todo ordenado que funciona como uma “unidade orgânica”. Quando organismos vivos se

relacionam em determinado contexto, emergem propriedades que não ocorreriam em sistemas

agregados, a exemplo das máquinas.

A estrutura interna de um sistema consiste em componentes específicos e as relações

entre eles. Juarrero (2002) chama de estrutura externa ou “condições de fronteira e limite” a

interação entre os componentes e o ambiente que afeta ou é afetado pelo sistema em questão (e

não o ambiente como um todo). Juntas, a estrutura interna e externa constitui a estrutura total de

um sistema, atenuando as fronteiras entre o dentro e o fora. O sistema externo pode afetar a

estrutura interna, mas não no sentido de causa eficiente aristotélica ou clássica, tal qual uma

tacada numa bola de bilhar (uma força externa na matéria inerte), mas permite à estrutura

interna a possibilidade de auto-gerir-se e auto-organizar-se. Como a organização das máquinas é

realizada “de fora”, máquinas são alopoiéticas. Organismos vivos são exemplos de sistemas

autopoiéticos, ou seja, sistemas auto-organizados que alteram seus próprios parâmetros de

Page 83: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

83

controle (JUARRERO, 2002, p. 112). É neste sentido que a teoria de sistemas dinâmicos

renovaram o estudo da ação.

Outro dado a salientar é que sistemas orgânicos, tais como o digestivo, são “estruturas

em processos” (Joseph Early apud JUARRERO, 2002, p.112) e os sistemas cognitivos e as

ações são vistos igualmente como estruturas dinâmicas em processos. Em sistemas processuais

as conexões, sendo dinâmicas, são nomeadas como fluxos. Se um fluxo físico ocorre para

transportar informação, a conexão é chamada de informacional e o sistema como um todo de

sistema informacional. Pessoas, intenções e ações são também sistemas de informação, assim

como o é sistema genético. São corposmídias.

Trazendo o ator novamente ao foco, e tratando-se de suas ações, verifica-se que elas se

estruturam por meio das impressões que este capta do meio e daquelas que se organizam em seu

próprio organismo e, à medida que é modificado, pela percepção de si mesmo e do meio, as

suas ações se reorganizam. Geradas num espaço de fronteira, não há como precisar onde e como

se inicia a percepção e a ação gerada. Há uma coordenação por parte da atividade cerebral que

regula os processos de vida do organismo, tanto da coordenação das operações internas do

corpo, como pelas interações do organismo como um todo e os aspectos físicos e sociais do

ambiente (DAMÁSIO, 2004).

Ao explicitar as diferenças entre ação física, atividade, movimento e gesto Grotowski

(apud RICHARDS, 1993), ao mesmo tempo em que valoriza o impulso interno como motor da

ação, revela o processo dinâmico que envolve o que chama de ciclo de ações:

O que é preciso compreender logo, é o que não são ações físicas.

As atividades no sentido de limpar o chão, lavar os pratos, fumar

cachimbo não são ações, são atividades. Pessoas que pensam

trabalhar sobre o método das ações físicas fazem sempre esta

confusão. Muito freqüentemente o diretor que diz trabalhar

segundo as ações físicas manda lavar pratos e o chão. Mas a

atividade pode se transformar em ação física. Por exemplo, se

vocês me colocarem uma pergunta muito embaraçosa, que é

quase sempre a regra, eu tenho que ganhar tempo. Começo então

a preparar meu cachimbo de maneira mais ‘sólida’. Neste

momento vira ação, porque isto me serve neste momento. Estou

realmente muito ocupado em preparar o cachimbo, acender o

fogo e depois posso responder a pergunta. (GROTOWSKI apud

RICHARDS, 2001, p. 74).

Page 84: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

84

Os atores “gesticulariam” muito, acreditando que este é o caminho da ação. O caminhar

ou o ato de fumar um cachimbo, por exemplo, que por si só, são atividades cotidianas banais,

podem vir a ser uma ação física em que o ator, em contato com seu entorno, estabelece um jogo

de intenções numa dinâmica de ações, atento as suas próprias reações e as de todo o ambiente:

É fácil confundir ação física com movimento. Se eu caminho em

direção a porta, não é uma ação, mas um movimento. Mas se

caminho contestando as perguntas estúpidas a mim dirigidas,

ameaçando que irei terminar a conferência, haverá um ciclo de

ações e não somente o movimento. Este ciclo de ações envolve o

contato com o outro, a forma com que percebo suas reações;

enquanto caminho para a porta, manterei um controle em direção

a ele, percebendo se minha ameaça está funcionando. Não será

somente um andar enquanto movimento, mas algo mais

complexo em torno do fato de caminhar. O engano de muitos

diretores e atores é fixar o movimento em vez de um ciclo todo

de ações (ações, reações, pontos de contato) o qual aparece

simplesmente na situação do movimento (STANISLAVSKI

apud JIMENEZ, 1990, p. 76).

Os processos cognitivos se organizam na esfera menos visível, ao menos a olho nu,

localizados no corpo. O que não quer dizer que estejam centralizados ou descolados do exterior.

O trânsito cognitivo entre as informações do corpo e do mundo se organiza num fluxo constante

e incessante, dificultando a demarcação de fronteiras entre o que pertence a cada campo (interno

e externo), criando um sistema de complexidade em torno de uma ação, tal qual descreveu

Grotowski (apud JIMENEZ, 1990, p. 76), ao diferenciá-la do movimento e do gesto. Percepção,

pensamento e ação não se estruturam com separação abissal entre o que está dentro do corpo do

sujeito, aparentemente centralizado ou preservado, e o que está fora dele, no mundo dos outros

sujeitos e dos objetos. Os processos cognitivos se dão na zona permeável do “entre” corpo e

mundo, na impossibilidade de se rastrear o ponto inicial de uma informação processada como

conhecimento e a ação gerada por um corpo. As ações físicas se organizam nesta zona

indeterminada, nas relações entre o corpo do ator e o corpo do mundo (no momento em que

atua, envolve o público e demais os atores com quem contracena). Entra em jogo um

entendimento não dualista entre corpo e mente, numa perspectiva de pensar o pensamento e a

cognição, enquanto processos encarnados. Considerar conceitos como incorporados ou

Page 85: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

85

encarnados significa abdicar da separação ou hierarquia entre habilidades mentais e o sistema

sensório-motor, ou seja, da separação abissal entre razão, percepção e ação.

Os níveis de controle na geração de ações é outro dado a se considerar. A idéia de uma

ação que se organiza sem um agente controlador central e por meio de processos auto-

organizativos, não inviabiliza a existência de graus de intenção ou vontade consciente, por parte

do sujeito. Mas o que faz emergir os processos de auto-organização e escolha não é,

exclusivamente, a vontade ou intenção do sujeito, este não controla toda a emergência dos

padrões de ações, visto que o controle é feito, sistematicamente, e em parceria, com conteúdos

inconscientes. Assim como nos processos evolutivos mais amplos da natureza, as formas e

padrões de ações que surgem não são ideais nem permanentes, mas soluções aproximadas e

competentes para resolver problemas pontuais do momento, na relação corpo-ambiente. Assim

como o corpo não é um produto, mas está sempre em processo, assim o é o ambiente em seu

entorno. Considerando que o ambiente não é só um espaço geográfico ou um lugar, mas uma

rede viva de informações.

É possível falarmos, então, dos processos de conhecimento a partir da lógica de nítida

demarcação ou oposição entre o dentro e o fora? É possível valorar o que é “verdadeiro e

orgânico” como o que vem de dentro? Afinal, o que vem de dentro? O que vem de fora? Se

considerarmos que o homem nunca está separado de seu ambiente e os processos cognitivos são

processos emergentes e auto-organizativos, como se dá esta conexão e a relação entre a

paisagem do organismo e a do mundo?

2.4 O fluxo das imagens

A criação de uma vida que não é do ator, mas da personagem, exige um exercício de

imaginação, e o artista, para Stanislavski (1994), deveria desenvolver uma “corrente” constante

de imagens de seu mundo interior em conexão com o exterior, incluindo, especificamente, a

relação em cena com outros atores. Estas imagens mentais, vistas por Stanislavski como

imagens sonoras e visuais interiores, aliavam-se às da memória de experiências passadas, para

que pudessem ser matérias a trabalhar para a vida do papel. Esta “película”, considerada “uma

série ininterrupta de imagens”, para Stanislavski (1994, p. 82), estava projetada como visão

interior, fazendo vivas as circunstâncias nas quais o ator se move, reavivando o “modelo

interno” diderotiano. Ainda que os objetos e idéias fossem sugeridos pela vida exterior,

primeiro tomavam forma, de acordo com ele, “dentro” do ator, em sua imaginação e em sua

memória.

Page 86: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

86

E quanto a estas imagens internas, é correto dizer que as

sentimos em nosso interior? Possuímos a capacidade de ver

coisas que não estão presentes concretamente, formando uma

imagem mental delas. Esta corrente interna de imagens [...] é

uma grande ajuda para o ator, ao fixar sua atenção na vida

interior de seu papel. Este mesmo processo ocorre com os sons.

Ouvimos ruídos imaginários com um ouvido interior.

(STANISLAVSKI, 1994, p. 82).

A formação de imagens não diz respeito somente à atividade imaginativa do ator, com

vistas à construção da personagem, como Stanislavski ressaltou, mas é condição para a

emergência do pensamento e da consciência. É por meio de imagens que percebemos a nós e ao

mundo. Quer seja para a percepção de situações no interior do organismo ou no seu exterior, as

operações do cérebro dependem da criação e manipulação de imagens mentais. Ou seja, as

imagens mentais formam o processo que chamamos de pensamento, e que permitem forma um

“modelo interno”. Estas imagens perceptivas não são somente visuais e sonoras, como

descreveu Stanislavski, mas padrões neurais de cada uma das modalidades sensoriais – visuais,

táteis, auditivas, gustativas, olfativas e somato-sensitivas. Segundo Berthoz (1997), não

teríamos cinco sentidos, como na concepção clássica, mas cerca de nove, incluindo várias

outras formas de percepção, como a dor, por meio dos sistemas muscular, visceral e vestibular.

Temos os captadores sensoriais que são localizados nos músculos, tendões e articulações, num

conjunto denominado de muscular e articular. Há, ainda, os localizados nas duas orelhas

internas, que formam o sistema vestibular. Estes permitem medir a rotação e a horizontalidade

da cabeça em relação à gravidade, o sentido de equilíbrio e as inclinações do corpo no espaço.

Berthoz (1997) chama de “sentido do movimento” o trabalho efetuado por estes captadores

sensoriais47.

47 Alain Berthoz é engenheiro, psicólogo e neurofisiologista. Suas hipóteses provêm de seus estudos no Laboratório de Fisiologia da Percepção e da Ação do Collège de France, Paris, onde atua como professor e pesquisador.

Page 87: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

87

Figura 15: Os captores sensoriais (visuais, vestibulares,

musculares, cutâneos e músculo-articulares) que

participam do sentido do movimento. Ilustração de

Fréderic Lacloche em Le Sens du mouvement. Alain

Berthoz. Edição Odile Jacob, Paris, 1997.

É a combinação de imagens em movimento que nos permite perceber a nós mesmos e

ao meio. As imagens descrevem o próprio organismo e o seu entorno, de estados viscerais ao

movimento dos corpos no mundo. Evocadas a partir do passado, da percepção do presente e da

predição do futuro, as imagens se formam num conjunto de áreas cerebrais. A construção destas

imagens possibilita os processos incessantes entre o dentro e fora, porém não se trata de um

centro, mas de uma intricada interconexão neural. As imagens constituem narrativas que são

incorporadas ao fluxo de pensamentos e, neste processo, não assistimos a uma “película” no

interior do cérebro. Não há um expectador externo dentro de nós mesmos, pois somos o filme,

somos, simultaneamente, personagens e criadores desta narrativa imagética não verbal

(DAMÁSIO, 2004). E temos ciência deste fato, graças aos processos de consciência.

Berthoz (2001) alerta para a reversão do que entendemos como função cerebral, a

exemplo do senso comum que vê a separação entre percepção e ação. Como não há,

praticamente, nenhum dispositivo sensorial que não se encontre conectado a sinais motores, a

ação seria, também, organizadora da percepção, e não somente a sua resultante. Há um

movimento continuo entre percepção e ação nas operações entre o dentro e o fora, o centro e a

periferia, a parte e o todo. Segue-se o tempo todo da ação à percepção e da percepção à ação,

considerando que não são processos separados temporal e hierarquicamente. Perceber já é,

afirma Berthoz (2003), de alguma forma, agir, pois a percepção já é uma ação simulada. A

percepção é guiada para a ação e a intenção da ação modifica a percepção (BERTHOZ apud

CORIN, 2001, p. 92). No exemplo do ciclo de ações geradas pela caminhada em direção à

Page 88: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

88

porta, descrito anteriormente, Grotowski permite visualizar a ação física como uma via de mão

dupla dos processos perceptivos e acionais, pois, à medida que se constroem imagens de si

mesmo em contato com o outro, as ações vão se reorganizando.

Se o corpo não é instrumento ou objeto, mas a própria condição de ser e estar no mundo,

quanto olhamos algo, somos, simultaneamente, olhados, quando tocamos algo ou alguém,

somos, simultaneamente, tocados, no sentido em que a percepção altera a ação e vice-versa,

reorganizando constantemente os estados orgânicos. Desfaz-se a nítida separação entre sujeito e

objeto, corpo e mundo. Como apontou Merleau-Ponty (2004), o corpo se vê, vendo e se toca,

tocando, numa operação simultânea. A disseminação pelo pensamento fenomenológico do

entendimento do corpo, como estrutura física e vivida ao mesmo tempo, ampliou o

reconhecimento do fluxo de informações entre o interior e exterior (GREINER, 2005, p. 23). É

na observação dos processos biológicos acerca de como conhecemos, que o reconhecimento

deste fluxo ganha maior clareza.

As estruturas cognitivas emergem dos modelos sensórios-motores, numa relação estreita

entre percepção e ação. Este entendimento de percepção (que não é atividade “puramente”

mental) não entende o mundo como pré-dado e independente do receptor, mas implicado,

diretamente, na sua estrutura sensório-motora. Fica mais claro o carater sensório-motor

atribuído às metáforas por Lakoff e Johnson (2002). O domínio cognitivo não seria pré-dado,

mas emergiria na experiência imediata no mundo. Isto implica em uma não separação entre o

ser e o mundo. A operacionalidade do sistema nervoso, para cientistas como Maturana (1994),

não funcionaria nem num extremo representacional, totalmente dependente do meio, nem

solipsista, bastando a si mesmo, mas na interação destes.

A riqueza plástica do sistema nervoso não está no fato de guardar

representações do mundo externo, senão em sua contínua

transformação, que permanece congruente com as

transformações do meio como resultado de cada interação que o

afeta. (MATURANA, 1994, p. 113).

Mas como o cérebro cria imagens na nossa mente? Como as imagens adquirem a

propriedade da subjetividade, que faz com que sejam percebidas como nossas? De acordo com

Damásio (2004), o cérebro e os processos a que chamamos de mente produzem duas espécies

de imagens do corpo. As “imagens da carne”, que são constituídas por imagens do interior do

corpo, baseadas na representação da estrutura e do estado das vísceras e do meio interior. O que

Page 89: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

89

nos possibilita sentir dor ou perceber um mal estar súbito. E a segunda espécie, que diz respeito

a imagens que ocorrem quando os órgãos sensitivos periféricos são modificados por objetos

exteriores ao corpo. São componentes tais como a retina, no fundo do globo ocular e a cóclea,

situada no ouvido interno, que nos possibilitam ver ou sentir a presença de alguém ou o

restabelecimento do equilíbrio numa queda ocasional, sendo os captadores do sentido do

movimento (fig.15), apontado por Berthoz (1997). Em quaisquer destes processos, a gama de

alterações corporais que o cérebro mapeia é muito vasta, desde as microscópicas, no nível

químico-físico, ou as visíveis a olho nu, quando um corpo se move em nossa direção

(DAMÁSIO, 2004, p. 206-207).

Em ambas as imagens, seja proveniente da carne ou de ondas sensitivas, o mecanismo

de produção é similar. Na perspectiva de Damásio (2004, p. 208), as imagens que constituem a

base da “corrente mental”, metáfora que Stanislavski utiliza também, quando se refere a estes

processos, são imagens de acontecimentos corporais, seja de acontecimentos que tem lugar na

profundidade do corpo ou numa onda especializada, “próxima da superfície do corpo”. Estas

imagens formam mapas neurais que representam a estrutura e os estados do nosso corpo, a cada

momento. E pouco importa que alguns dos mapas descrevam o mundo no interior do organismo

e que outros descrevam o mundo que nos rodeia, ou se estão na profundidade (coluna vertebral,

vísceras) ou periferia (ouvido, olhos). A lógica cognitiva parece não corresponder fielmente à

hierarquia de metáforas articulada pelas teorias teatrais, quando priorizam somente o interior ou

centro do corpo, ou somente as mãos ou rosto. O que acaba por ser mapeado nas regiões

sensitivas do cérebro e que emerge na nossa mente sob a forma de uma idéia e, posteriormente,

de uma ação, tem a sua origem em estruturas gerais do corpo que se encontram “num

determinado estado e em determinadas circunstâncias.” (DAMÁSIO, 2004, p. 209).

A noção de estado torna-se chave para um novo entendimento do corpo e dos processos

cognitivos. Não se trata de apreender os gestos e ações, limitando-se as imagens construídas em

taxionomias e categorizações pré-fixadas e localizadas (tal emoção, em tal parte do corpo), mas

de perceber os estados possíveis do corpo em seu fluxo de imagens que, a cada nova

circunstância, adentra ou afora o organismo. Soluções cênicas emergirão destas conexões. O

estado que resulta no corpo é fruto do trânsito simultâneo entre as imagens que se produzem na

carne e as que provêm de situações percebidas do exterior, no movimento inestancável entre

percepção e ação.

Contudo, as imagens que o ator tem de si mesmo e do mundo, ao mesmo tempo em que

são constantemente reconstruídas, tendem a se formalizar num padrão metafórico. A mente do

ator cria imagens que constroem metáforas, que, por sua vez, estruturam a sua ação e as

Page 90: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

90

soluções cognitivas pré-determinadas e mais estáveis tenderão a se manifestar como hábito. Se

uma metáfora entra no sistema conceitual em que baseamos nossas ações, ela tenderá a alterar

este sistema e as percepções e ações a que este sistema deu origem. Às vezes, são tão

onipresentes em nosso pensamento, como lembram Lakoff e Johnson (2002), que as metáforas

se tornam evidentes por si mesmas e descrições diretas dos fenômenos. Tornam-se modelos

mentais que orientam ações no mundo e que, por sua vez, “corporizadas” em ações, tendem a

permanecer até que surjam outras metáforas que reorientem para outras relações com o mundo.

As metáforas têm o poder de definir realidades por meio de uma rede de implicações, que

ilumina determinados aspectos e oculta outros, podendo ser profecias auto-suficientes

(LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 257). Definimos nossa relação com o mundo e conosco

mesmos pelas metáforas e agimos com base nelas, da mesma forma que elas agem sobre nós,

considerando que a estruturação metafórica se dá de forma também inconsciente.

Se metáforas são, primordialmente, uma questão de imagem (pensamento) e ação e,

apenas secundariamente, de linguagem, cabe, inicialmente, ao ator perceber, investigar e

reestruturar os campos metafóricos (ontológicos e orientacionais) nos quais está inserido e suas

noções instituídas. Aí entra o trabalho “sobre si mesmo” e os modos de investigação, tais como

a improvisação, o exercício técnico e a atenção constante, para que os atores ampliem a

percepção e construção imagética. A vida imaginária ou a fantasia criativa que Stanislavski

destacou como fundamental para o exercício do ator. Como lembra Greiner (2005), a chave está

na transgressão do que Lakoff e Johnson chamam de metáforas ontológicas e orientacionais e

suas noções de borda, começo, fim, centro, periferia, dentro, fora, interior, exterior,

continuidade e assim por diante, com vistas e ampliar o campo imagético.

Assim, ao construir metáforas, o homem age (aciona o sistema

sensório-motor) e ao agir, abre a possibilidade de fazer ou

desfazer o que foi conceituado antes, instaurando novas

possibilidades de pensar e mover: corpo, idéias e mundo.

(Greiner, 2003, p.143).

O que Damásio considera como o “conceito de si mesmo” seria a corrente de imagens

que representam aspectos do próprio organismo e de suas interações com outros seres e o meio

a qual está inserido, o que significa a organização de modo simultâneo e em tempo real da

imagem do objeto percebido, da imagem da resposta orgânica a este objeto percebido pela

dinâmica instável das modificações e a imagem da descrição do organismo, ele mesmo, durante

Page 91: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

91

o processo de mudança (GREINER, 2005). A atitude de exploração de novas possibilidades

acionais pode ser exercitada a cada momento, pois a mente transmite ininterruptamente imagens

metafóricas que orientam escolhas, e que se “fisicalizam” em ações. O controle, que temos

sobre uma imagem que gostaríamos que fosse indutora, ou que permaneça ou desapareça de

nossos pensamentos e ações, é limitado, mas pode-se ter algum êxito por meio de processos

conscientes.

As metáforas ontológicas e orientacionais se estendem a outros princípios norteadores

do conceito de ação física. Além da idéia de que a ação física nasce do interior ou do centro do

corpo, como já foi abordado, há referências a outros princípios:

a) a ação consciente estimula o inconsciente;

b) a ação é intencional;

c) a ação deve ter finalidade e objetivo.

No próximo capítulo, serão discutidas as questões que envolvem a finalidade e a

intencionalidade na ação, bem como a relação consciente-inconsciente. Estas questões

estruturam os processos de conhecimento do ator e se articulam sob determinado entendimento

na concepção de Stanislavski e Grotowski, configurando o que nomeei como uma cognição na

ação, ou um pensamento em ação.

Page 92: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

92

3 PENSAR EM AÇÃO. FINALIDADE, INTENCIONALIDADE E

CONSCIÊNCIA

3.1 A finalidade na ação e sua dimensão prática

Ator, este é seu nome e não por causalidade, é ele quem

age. Não quem fala, ou quem emociona ou quem mostra,

senão quem aciona porque, desta forma, pode englobar

todo o restante. (SERRANO, 1996, p. 47).

Ao acentuar o aspecto da repetição na construção da ação, nas dedicadas análises das

experiências dos atores, Stanislavski (apud JIMENEZ, 1990, p. 261) chama a atenção para a sua

finalidade. Por meio do discurso do diretor fictício Tórtsov, relata que as ações “verdadeiras,

efetivas e ajustadas ao fim” tanto no aspecto físico quanto psíquico, nasciam no ator por si

mesmas, sem a participação da sua vontade. As ações apareciam “externamente na mímica, nos

olhos, na entonação da voz e nos movimentos expressivos de seus dedos, em todo o corpo”. Em

cada repetição, as ações se tornavam mais convincentes, ainda que o ator não se desse conta do

que fazia. Os pequenos impulsos internos, prévios à ação, se delineavam à medida que

apareciam os movimentos involuntários. Ainda que tentasse estabelecer com que finalidade

realizava suas ações, seguisse uma lista de tarefas físicas baseadas na obra dramática,

provocasse os impulsos prévios à ação fixando-os através da repetição, as ações “reais, efetivas

e com fim determinado”, nasciam por si mesmas. “Para isto se preocupará a natureza, que faz

milagres.” (STANISLAVSKI, 1995, p. 250). A lógica e a conseqüência das ações vivas

ajudariam a fixar a verdade e a vida da “alma”. A sensação experimentada não somente pela

alma, mas pelo corpo, se converteria na mais real sensação e análise da personagem e da obra.

Stanislavski reflete acerca da ingenuidade de se pensar que se poderia administrar totalmente as

ações.

No relato acima descrito, a finalidade nascia do movimento, do trato com a matéria e de

seu devir, gerando uma ação que construía sua tendência teleológica48 em seu próprio percurso.

Ou seja, uma finalidade vista como contigüidade e não somente como traço anteriormente

concebido. À medida que iam sendo executadas, as ações provocavam uma demanda própria de

justificação, funcionando como “iscas” para os processos introspectivos, pois, no entendimento 48 O termo teleologia indica a parte da filosofia natural que explica os fins das coisas. O mesmo que finalismo, que admite a causalidade do fim, no sentido que a finalidade é a causa da organização das coisas. O mundo está organizado com vistas a um fim e a explicação dos eventos consiste em determinar um fim para qual o evento se dirige. (ABBAGNANO, 2000, p. 457-943).

Page 93: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

93

de Stanislavski (1995), o elo entre corpo e alma é indissolúvel. O método das ações físicas

induziria as forças criativas da natureza a agirem por si só. Sendo autocriação e

autotransformação, a ação voluntária e teleológica do ator parece atuar muito mais como

atividade desencadeadora do que conclusiva. Deve-se ao próprio processo de constituição da

ação humana, com os estados do corpomente em permanente transformação, a abertura para a

imprevisibilidade. O que Stanislavski acreditava como a fonte das forças criativas, a natureza ou

subconsciente, já estava presente na própria operacionalidade do corpomente.

De acordo com o entendimento de Stanislavski (1995) e Grotowski (1992) para que o

ato seja constituído de consciência, a vontade e a intencionalidade ganham relevância, bem

como os objetivos apontados para uma finalidade cênica específica e transformadora. No

método das ações físicas, as ações devem estar associadas a algum desejo, esforço ou objetivo

direcionado, e vinculados a um sentimento interior que os justifique, do contrário são meros

movimentos ou atividades funcionais. Stanislavski e Grotowski salientavam que a ação do ator

deveria ter uma razão que a motivasse e um objetivo, ou seja, um porque e uma finalidade, mas,

ao mesmo tempo, reconheciam a emergência de processos não controláveis e não conscientes

na ação.

A cada ação efetuada, de acordo com Stanislavski (apud JIMENEZ, 1990, p. 261), a

atuação se torna mais precisa e convincente, embora o ator não tenha controle pleno sobre todo

o processo de conhecimento que se instaura. Stanislavski encontra na conduta voluntária das

ações físicas uma certa garantia para a solução da atuação, visto que os estados emocionais

seriam mais imprevisíveis. Acreditando que o corpo é convocável, converte a ação num fator

desencadeador da criação. Contudo, nem mesmo as ações do corpo e sua materialidade

pareciam de todo previsíveis e convocáveis. Nem sempre o que é objetivado e planejado será o

que converterá a ação em algo justo e orgânico a seus fins, cabendo, até mesmo, às ações

involuntárias, como salientou Stanislavski, um papel participativo no processo acional. Ainda

que o ator prepare seu papel cercando-se de certa objetividade e intencionalidade, os estados do

seu corpomente e as informações do meio no momento da criação e da representação em cena,

em especial, influenciam para que este se converta em um momento singular a cada vez que se

atualiza. Em cada momento, a cada informação que adentra o organismo, há um estado de

imprevisibilidade e reorganização sistêmica que não permite o controle sobre todo o processo

de uma ação nem, tampouco, a possibilidade de repeti-la integralmente da mesma forma. Ou

seja, o saber que se engendra na ação ocorre no próprio processo de sua feitura e seu

aperfeiçoamento se dá no exercício da atividade.

Cabe, aqui, ressaltar que a questão da causalidade e finalidade já se enunciava na arte,

Page 94: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

94

em Aristóteles, por meio do conceito de razão prática, possibilitando desdobramentos para as

discussões contemporâneas relacionadas ao caráter processual e dinâmico da ação e as relações

entre pensamento e ação no trabalho do ator. Desde Aristóteles, o gênero dramático é entendido

como aquele em que o ator imita as ações humanas pela presença em cena, a cada representação

e, neste sentido, as personagens “não agem para imitar caracteres, mas adquirem os caracteres

graças às ações.” (ARISTÓTELES, 1996, p. 36). Ao imitar a condição humana, o ator não imita

caracteres, mas mostra-os, agindo. Embora restrito a tragédia, o conceito aristotélico de gênero

dramático49 orientou os estudos subseqüentes relativos à ação no teatro. Este gênero se

diferenciaria de outros tipos de mimeses uma vez que representa o homem “agindo” e

“fazendo”, ou seja, um conhecimento prático que é próprio da atividade artística. A finalidade

na arte teatral está na representação ou mimeses do humano. “As ações e a fábula constituem a

finalidade da tragédia e, em tudo, a finalidade é o que importa.” (ARISTÓTELES, 1996, p. 36).

A razão prática, intitulada de téchne, é um dos cinco modos de conhecer e chegar à

verdade, para Aristóteles, e se constitui como um conhecimento diferente de outras formas de

intelecto50. Aristóteles vê a racionalidade de forma plural e a razão prática implica no

conhecimento do que se faz. O raciocínio não é dedutivo, como na ciência, onde importa a

verdade e a prova, mas procede por categorias inventivas e poéticas por meio da mimeses,

próprio às formas artísticas (ARMELLA, 1993). A téchne admite uma intenção e uma causa

final que governa todo o processo produtivo: “Admite-se que toda arte e toda investigação,

assim como toda ação e toda escolha, têm em mira um bem qualquer; e por isso foi dito, com

muito acerto, que o bem é aquilo a que todas as coisas tendem.” (ARISTÓTELES,1991, p. 9).

Mas a finalidade na arte é diferenciada. De acordo com Aristóteles, a arte, sendo um

conhecimento de ordem prática e processual, é adquirida pelo exercício próprio da atividade.

No terreno artístico, o fim não será plenamente conhecido até a consecução da forma. A

finalidade emergirá conjuntamente com a matéria, por obra de uma intenção que não é causa

final absoluta, mas probabilidade, pois só fazendo a coisa, se poderá compreender plenamente o

que se busca. Armella (1993), na obra El concepto de técnica, arte y producción em la filosofia

49 Os três Gêneros, as formas literárias de imitar a natureza, tem raízes na República de Platão e Poética de Aristóteles. O lírico, o mais subjetivo, exprime um estado de alma traduzido por meio de orações. Manifestação verbal imediata e intensiva de uma emoção ou sentimento. O gênero épico imita por uma narrativa as ações do passado ou ocorridas fora do palco. Geralmente não exprime os próprios estados da alma, mas narra os de outros seres, os descreve objetivamente. Há uma certa distância e desdobramento entre o sujeito (narrador) e o mundo narrado. No gênero dramático vê-se não apenas a narração sobre uma ação (como na épica), mas presenciamos a ação atualizada através da expressão imediata dos atores (como na lírica), via personagens. A imitação é executada “por personagens em ação diante de nós”.(ARISTÓTELES, 1996).

50 Na ordem especulativa aristotélica a razão tem três modos para abordar o ser necessário: a episteme, que vai as causas próximas do ser, sophia, que investiga as causas primeiras do ser, e nous, que se atém aos primeiros princípios do ser. Na ordem prática, a téchne tende ao bem particular do ser contingente e a phrónesis busca o bem absoluto do ser. (ARMELLA, 1993, p. 32).

Page 95: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

95

de Aristóteles, potencializa o pensamento de Aristóteles enquanto instrumento capaz de

iluminar a dimensão prática da arte na contemporaneidade. A lógica do modo de razão prática

considera que, para conhecer as coisas que queremos fazer, há que se agir: “as coisas que temos

de aprender antes de poder fazê-las, aprendemo-los fazendo.” (ARISTÓTELES, 1991, p. 27).

Neste sentido, o método das ações físicas e a noção de um pensamento que se dá em ação

podem ser entendidos como uma espécie de sabedoria prática. O conceito de téchne não pode

ser entendido como técnica somente, principalmente em sua redução mecanicista de execução

física, mas num sentido mais amplo, como um modo de saber dos princípios produtivos. Esta

compreensão do saber, como salienta Icle (2002), pode ser entendida como compreensão do

saber fazer. O trabalho do ator une investigação e construção de um material cênico ainda não

existente, ou seja, um conhecer construindo (SERRANO, 1996, p. 22).

Em sua revisão crítica das metodologias stanislavskianas o pedagogo argentino Raúl

Serrano (1996), reconhece a conexão entre teorias teatrais e teorias cognitivas, chamando a

atenção para o modo singular de conhecimento empreendido pelo ator em seu trabalho cênico.

Sendo práxis, no trabalho com suas ações, o ator conhece, fundamentalmente, no nível

empírico, implicando num comprometimento sinestésico e corporal na aprendizagem. O ator

deve fazer (agir) para compreender e não tão somente compreender para então fazer

(SERRANO,1996, p. 181). Para este autor, o método das ações físicas, concebido por

Stanislavski, é um modo de conhecer que requisita um corpo em ação, em situação real,

diferente da metodologia proposta pelo diretor russo em seus primórdios, onde o ator só atuava

depois de exauridos o estudo analítico da personagem e seu entorno, o conhecido “trabalho de

mesa”.

A ação não seria somente a resultante de intenções psicológicas ou intelectuais

motivadoras. O ator pensa com suas ações, pensa com seu corpo e atua com ele em tempo

presente, pois, como vimos, os processos de percepção e ação, descritos por Berthoz (1997),

não estão separados e são ininterruptos e inestancáveis. O ator “pensa fazendo e faz pensando”,

numa operação cognitiva simultânea (SERRANO,1996, p. 190). A ação dramática tem uma

espécie de lógica momentânea, que se dá enquanto está sendo executada. O ator nunca sabe

inteiramente o que seu corpo sabe. O corpo registra e libera uma consciência e uma memória

sinestésica para o monitoramento do aqui e agora sem que o ator tenha controle integral. Ou

seja, ainda que nutrida por condições anteriores, é em tempo presente que a investigação da

ação ocorre de fato.

Ao propor uma estética da produção, e não da expressão e da contemplação, o filósofo

Luigi Pareyson (2001) salienta a ordem prática e inventiva aristotélica da arte, pois enquanto é

Page 96: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

96

feita, inventa um modo próprio de fazer. E como nenhum processo é da mesma ordem que seu

respectivo fim, o artista não sabe inteiramente o que fazer, e quais os seus fins, até que o faça. A

lei da obra artística é singular, é um fazer que, enquanto se faz, inventa o por fazer e o modo de

fazer. A “verdade” da obra é a liberdade do artista no processo de formação de sua obra. No ato

da imitação, na livre atividade do artista, age a vontade autônoma da obra. O artista não inventa

somente um objeto artístico, mas a legalidade interna deste, a qual ele mesmo se submete.

As noções de ação e de razão prática aristotélica, sendo pilares para a noção de ação no

teatro e na filosofia, permitem reflexões sobre a ação física e o problema do controle e da

finalidade. A natureza de todas as coisas no mundo, para Aristóteles, seria inextricável a seu

telos, ou seja, a seu fim ou meta e só quando há movimento tendendo ao fim, há atividade. Ele

incluiu nesta lógica a atividade poética, ressaltando, contudo, que, na arte, a finalidade só é

conhecida no processo de feitura da obra. A dimensão prática da arte e da conduta do ator

pressupõe a revisão das relações causais na ação, sobretudo a questão da finalidade.

Na lógica aristotélica, a ação do escultor é que libera a potencialidade da estátua. Já os

objetos naturais deteriam essa possibilidade de ação em si mesmo, a exemplo de sementes que

viram plantas. No caso do trabalho do ator, ele não realiza um objeto totalmente exterior a ele,

como uma escultura. Tampouco as suas ações corporais são “objetos” artísticos descolados dele

mesmo, posto que o corpo do ator, seguindo a lógica causal aristotélica, é, simultaneamente:

a) causa material (é no corpo que ocorre a ação cênica);

b) causa eficiente (é o corpo o agente da ação);

c) causa final (que não é conhecida até o término do processo artístico).

Stanislavski descreveu o ator como, ao mesmo tempo, artista e modelo, e o que busca

não é uma pose estática, como um pintor ou escultor que desenha ou esculpe um objeto, senão

um personagem vivo, “organicamente dinâmico em todas as poses imaginárias” (TOPORKOV

apud JIMENEZ, 1990, p. 301). O corpo é, simultaneamente, agente e agido. Tampouco o ator

constrói suas ações com uma mente separada que comanda um corpo objeto ou corpo

instrumento. A nítida separação entre sujeito e objeto e corpo e mente se fragiliza, bem como

suas relações causais, pois, segundo Greiner (2005), o “corpo-artista” se constitui enquanto um

sistema constantemente reconstruído. Sistemas auto-organizativos não possuem uma rigidez em

sua finalidade.

A “verdade” da arte, em Aristóteles, compete ao campo das possibilidades, peculiar aos

seres contingentes e não necessários. Para Aristóteles, os atos da mente podem ser

especulativos, onde a razão atua no campo da necessidade, onde cabe a certeza da ciência, e

inventivos. A razão que leva a parte inventiva da alma não oferece certezas e o silogismo é de

Page 97: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

97

cunho prático. Nela se situa a arte. (ARMELLA, 1993, p. 58). Tendo a racionalidade, vista por

Aristóteles, um sentido plural, a possibilidade de conhecer e chegar à verdade envolveria,

igualmente, um saber de cunho prático.

O âmbito prático da razão, em Aristóteles, difere do especulativo, pois não versa sobre a

essência das coisas, mas sobre o como encontrar o essencial das ações. Sendo um processo, de

nada serve “fazer teoria sobre as ações humanas, se não buscar o melhor modo de exercitá-las.”

(ARMELLA,1993, p. 43). A razão prática consiste no exercício da ação. O fim não é

possessão, porque o fim, na razão prática, parece ser distinto em cada atividade e em cada arte.

Mas a práxis do homem não é destituída de uma reflexão e, neste sentido, ela é produzida no

movimento, similar à noção de um pensamento que se dá em ação.

O agir sem um fim determinado – no sentido moderno de intenção ou objetivo, não

significa ausência de lógica, reflexão ou certa consecutividade, sob pena de se agir em geral 51,

como advertia Stanislavski (1995, p. 229), mas o reconhecimento de que a ação humana é

forma de conhecimento processual e dinâmica. Mais do que uma atuação de forma a repetir

padrões estabelecidos e suas finalidades, o método das ações físicas solicita a ação em tempo

presente e o campo aberto de suas possibilidades. O que envolve a investigação da lógica e

sucessão das ações, num trabalho que envolve o comprometimento do já traçado anteriormente,

simultâneo ao que emerge no aqui e agora. Stanislavski enfatizava a necessidade de se pensar

no que fazer, e não nas emoções propriamente ditas, deixando a ver a dimensão prática do

método das ações físicas:

[...] Uma vez que preparamos uma linha de ações físicas, lógica e

coerente [...] descobrimos que, paralela a ela, correrá uma linha

de emoções lógica e coerente [...]. Chegue à parte trágica do

papel em forma gradual e coerente, levando corretamente sua

seqüência de ações físicas externas e crendo nelas[...].Não pense

em suas emoções. Pense no que tem que fazer. Se não se adere

de forma estrita a um padrão absoluto de lógica e continuidade,

estará em perigo de comunicar paixões, imagens e ações em uma

forma generalizada. (STANISLAVSKI apud JIMENEZ, 1990,

p. 262).

51 Stanislavski descreve a ação generalizada como aquela que ocorre sem objetivos específicos, lógica ou consecutividade, e sem atenção a detalhes e estímulos que possam dar vida orgânica e dimensão humana ao papel.

Page 98: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

98

O aperfeiçoamento da razão prática está no exercício da atividade, portanto, não está

dado. Para se adquirir o conhecimento é preciso exercer a atividade correspondente, ou seja, só

aprendemos fazendo. Este parece ser o ponto central da razão prática, onde se insere o modo

operante da ação do ator. “No conhecimento pela arte, a única lei que pode governar o processo

é a lei da obra em particular, posto que se desconhece o fim e este só pode encontrar-se ao

término da ação.” (ARMELLA, 1993, p. 48). Neste sentido, o caráter eminentemente

teleológico pode ser redimensionado, se o conceito de ação for revisto como uma rede dinâmica

de relações que envolve a resposta imediata ao meio, através da experiência, e não como algo

eminentemente a priori. Com este entendimento, considera-se que os níveis de controle sobre

nossas ações não são facilmente detectáveis e manipuláveis, ainda que tentemos programar os

seus fins. O ser humano e seu comportamento são fenômenos adaptativos complexos e não é

possível estabelecer prognósticos para o caminho que as ações tomam (JUARRERO, 2002).

Serrano (2004) enfatiza que o objetivo da ação, o “para que” tão caro a Stanislavski, não pode

seguir um modelo mecânico de causa e efeito nem estar despregado do aqui e agora, sob pena

de perder seu caráter transformador imediato na relação percepção-ação do ator.

O corpo deve resolver a situação conflituosa organicamente, sem

rupturas entre a decisão e a ação propriamente dita. O corpo deve

começar a “pensar” de um modo próprio […] o ator deveria se

colocar em uma situação mais próxima ao do jogador de futebol,

que enfrenta a um defensor e ainda leva a bola. Pensa e atua, faz

e decide sem que haja uma ruptura entre ambos os territórios.

(SERRANO, 1996, p. 190).

Os objetivos propostos pelo ator para a criação de suas ações desempenham um papel

determinante como “motores voluntários” para que as demais relações que se estabelecem em

tempo presente possam emergir a partir de uma disponibilização à improvisação. Como salienta

Serrano (1996, p. 224), “se olharmos as ações tão somente como condutas teleológicas

conscientes, isto permitirá construí-las de antemão e longe da situação dramática real, com

longas listas de ações a respeitar..”

O ato criativo emerge em cena, muitas vezes, por ações aparentemente involuntárias,

mas que são orquestradas em uma rede neuronal rica em referências, memórias e ações

imediatas sem o controle intencional do ator. O corpo em ação, em situação de representação,

rompe com a escala temporal entre percepção e ação, decisão e ação, pensamento e ação e pede

Page 99: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

99

por uma resposta em tempo presente. O corpo precisa pensar enquanto age, agir em estado de

reflexão, como se conhecesse de um modo próprio. A ação é um conhecimento processual e a

práxis (o que o homem faz, no seu sentido arcaico grego) do ator se organiza em conexão com o

ambiente em tempo real.

Desta forma, o ator pode resolver situações sem rupturas entre a decisão e a ação,

propriamente dita, e a ação se converte em algo menos teleológico. Este entendimento de ação

implica numa revisão da idéia de finalidade como algo passível de ser plenamente engendrado

antes que a ação de fato principie, bem como de intelecto e reflexão como algo anterior ou

despregado da ação. Considerando que a ação só pode ser realizada no presente do indicativo,

pressupõe-se uma presença cênica especifica do ator, um modo de estar no aqui e no agora.

De acordo com Aristóteles (1991, p. 102), a coisa produzida “não é um fim no sentido

absoluto, mas apenas um fim dentro de uma relação particular, e o fim de uma operação

particular”, portanto, cabe à ação em processo determinar sua própria finalidade. A razão prática

é fundamentalmente eletiva, requer razão e comparação reflexiva, mas não há certezas do

desenlace, pois é indeterminação. O conhecimento, neste caso, é pura probabilidade, posto que

deliberar sobre os meios – sobre o que se pode fazer e as formas de lográ-lo – implica,

precisamente, desconhecer o fim da atividade. Deliberamos somente sobre o que podemos fazer

e, na medida em que o objeto é mais impreciso e obedece às leis do acaso, menos temos

controle sobre suas finalidades. As ações humanas tendem a esta incerteza, visto que o corpo

opera numa orquestração constante entre os conteúdos já inatos e os adquiridos na experiência.

O que leva a crer que não temos controle total sobre as finalidades, tampouco sobre todo o

processo acional. Imerso processualmente na linha do tempo, o saber prático aponta para um

devir. Sendo do campo das possibilidades, a ação do ator, neste sentido, também não pode ter

um fim absoluto, em se tratando do corpomente, este é, em si mesmo, movimento e

indeterminação.

Atribuir um caráter prático à arte requer alguns cuidados, a fim de não aproximá-la do

argumento redutor da mecanicidade, a velha armadilha dualista. A definição de arte como um

modo de exprimir delegou ao individuo a exposição de sua visão de realidade sensível. A

dimensão epistemológica que provém do pós-renascimento e da arquitetura de pensamento

proposta por Emmanuel Kant (1724-1804) e pelos românticos inseriu a arte na esfera da

sensibilidade e do gosto, e não nos aspectos da inteligência do intelecto e, nem tampouco, do

conhecimento prático. Ao se criar uma íntima coerência entre as figuras artísticas e o

sentimento que as anima, o aspecto formativo foi esquecido. É, segundo Pareyson (1989), o

chamado espiritualismo estético, acentuando o aspecto interior e a metafísica da arte. Em Kant,

Page 100: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

100

o juízo do gosto é estético, não gera conhecimento nem tem caráter objetivo ou prático, pois é

baseado no sentimento do sujeito. A arte não se proporia ao conhecimento, mas ao gosto. A

idéia do teatro como expressão e exteriorização de um conflito já existente no interior do sujeito

e o gesto como veiculação desta interioridade relegaram os aspectos materiais da criação a um

plano secundário.

As obras de arte possuem todas um estatuto material e concreto

(estheticos) que torna o processo de realização parte inseparável

do objeto. O teatro, que participa também deste caráter estético,

com o diferencial de ser objeto em ato desenvolvido na cena, é o

resultado de um processo em que intervém múltiplas

determinações que dificilmente podem ser pensadas, concebidas

em ausência de sua presença real, de sua existência como objeto

nascente. (SERRANO, 1996, p. 38).

Assim como Pareyson (2001), Serrano (2004) entende o produzir e o inventar como

algo formativo e enfatiza o aspecto prático da aprendizagem do ator. Não se trata de achar o

caminho da expressão, mas, sobretudo, da construção das ações geradoras dos afetos. Não

pensar em suas emoções, mas no que se tem que fazer, como aconselhava Stanislavski aos

atores. A pedagogia do ator seria, em última instância, o ensinamento de um “saber fazer”,

advertindo para as posturas idealistas que super valorizam as instâncias expressivas e emotivas

em detrimento do nível material e técnico. (SERRANO, 2004). O que o ator deve saber não se

resume a idéias ou conceitos descolados de uma atividade, nem condenados a uma finalidade

condicionante. Os conhecimentos que o ator adquire são de índole prática e processual52. É o

seu corpo que aprende, e sua memória corporal a que recorda, como enfatizou Grotowski

(1992).

Há que se diferenciar a ação como principio poético em Aristóteles e a ação como

principio da personagem e do ator moderno. O entendimento de finalidade no pensamento

aristotélico tem conotação política no ambiente do coletivo, não é destino do indivíduo. Sendo o

homem um ser político, exerce sua busca no seio da polis. O julgamento público realizado nas

52 Neste sentido, para Stanislavski, os exercícios técnicos, tais como a acrobacia, deveriam servir para desenvolver no ator a qualidade da decisão em ação. Seria desastroso para um acrobata devanear antes de executar um salto mortal. O ator também não poderia “parar para pensar, duvidar, pesar considerações para então se pôr à prova. Tem que agir” [...] “Quando tiverem desenvolvido força de vontade em seus movimentos e ações corpóreas acharão mais fácil transferi-las para a vivência do papel e aprenderão a se entregar, sem refletir, instantânea e totalmente, ao poder de intuição e inspiração.” (STANISLAVSKI, 1994, p. 63).

Page 101: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

101

apresentações das tragédias gregas tinha a ver com o bem ou o mal que o agente causaria à

cidade, deliberando sua bem-aventurança ou desgraça perante a coletividade (BURNS, 1990). A

noção de finalidade em Aristóteles visa à tendência para um bem maior, que é a felicidade

(eudaimonia) ou infelicidade (kakodaimonia) da polis, e que é alcançada através da ação, e não

a finalidade das ações específicas do indivíduo53. A noção de finalidade no século XX ganha

outros contornos, e tende a se assemelhar à idéia de objetividade, propósito, motivo ou

justificativa, agora a serviço da ação da personagem e ação do ator. É certo que a arte hoje está

ligada mais à experiência do individuo e não a socialização e celebração da polis, como na

Grécia antiga. A finalidade em Aristóteles é a realização interna da coisa nela mesma, no caso

dos objetos, e a busca por um bem maior, na ação humana, e não algo que o individuo

subjetivamente impõe (ARMELLA, 1993). O que difere da noção moderna de finalidade

passível de manipulação dos objetivos e propósitos pelo sujeito.

3.2 Ação e intencionalidade

Ao reforçar a importância das ações, Stanislavski solicitava aos atores que não

iniciassem a abordagem da personagem por ações complexas, mas por pequenas ações físicas

que pudessem ser sustentadas com sinceridade, e cujo objetivo estivesse claro:

Não peço que se sinta de imediato a personagem, mas que

encontre seu objetivo principal e corrente central, que entenda as

circunstâncias propostas. Sei que isto é muito difícil e, inclusive,

no começo, impossível. Por isto, proponho algo de mais simples,

fácil e acessível: as ações físicas. (STANISLAVSKI apud

JIMENEZ, 1990, p. 245).

Os atores deveriam buscar o porque e o como de cada uma das ações construídas,

mantida a advertência acerca dos movimentos que se encerram em si mesmo. Se fossem meras

atividades, desprovidas de sentido, lógica e conectividade num quadro de relações com a peça e

personagem, não seriam ações físicas (STANISLAVSKI, 1995, p. 229). Para ele, a ação

envolveria vontade e intencionalidade consciente, aliada a uma finalidade. Mas é a ação (cênica

53 O bem do indivíduo não está ausente da filosofia aristotélica, mas o princípio de liberdade na práxis humana ganha sentido inserido nas instituições éticas da cidade. “Embora valha bem a pena atingir este fim para o indivíduo só, é mais belo e divino alcançá-lo para uma nação ou para cidades-Estados (ARISTOTELES, 1991, p. 10).

Page 102: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

102

ou não) sempre ato da vontade intencional?

O teatro apresenta modos de representação que não vêm explicitamente do ato da

escolha e vontade. A dramaturgia teatral revela homens na condição subumana, sem livre

escolha e vontade consciente, sofrendo ações mais do que agindo deliberadamente, como em

“Esperando Godot”, de Samuel Beckett (1906-1989). A palavra ator vem do latim e significa

aquele que age, mas o teatro de Tadeusz Kantor (1915-1990), em certos períodos, apresentou

um ator pouco ativo. A sua principal forma de ser era, ao contrário, a passividade. A ação é

colocada no nível zero (SKIBA-LICKEL, 1991, p. 6). O ator de Kantor seria uma espécie de

antiator do sistema de Stanislavski, e que responde à realidade do pós-guerra. No teatro de

Kantor, o ator não é protagonista nem desempenha papel, ele está no mesmo nível que os outros

elementos da cena, como objetos e bonecos.

A ação prevista para a personagem pode esquivar-se ou eximir-se do ato de vontade

consciente e da intencionalidade, em conformidade aos princípios de dramaturgia a qual se

vincule, mas quanto à ação do ator? Toda a ação pode ter uma causa, um motivo, mas que pode

não ser, exclusivamente, um ato de vontade do agente, podendo até ser algo acidental. Tudo que

existe age de alguma forma em seu entorno, de acordo com sua natureza, e de alguma forma

modifica a condição anterior dos objetos e fenômenos. O que caracterizaria a ação humana

então? De acordo com a tradição aristotélica e a teoria da ação na filosofia, trata-se da

consciência que se tem do ato (JUARRERO, 2002). Para ser qualificado como ação, o princípio

do movimento ou causa é do alcance do agente, consciente do que está fazendo. Na ação teatral,

em geral, a afirmativa permanece, pelo ato da vontade e da escolha. O que parece dar

sustentabilidade dramática à função acional? O que vem “de dentro”? É o ato de vontade? Os

objetivos traçados? A consciência ou intencionalidade do ato?

O artista cênico, ao esboçar uma ação, não o faz somente com sua intencionalidade e

vontade consciente, nem tampouco com as do dramaturgo, autor ou diretor. Nada lhe dá

garantias da efetividade e fidelidade de seus propósitos. Outras informações atravessam o corpo

proveniente dele mesmo, das relações com o ambiente, e das conexões que o ator buscou

estabelecer “conscientemente” a partir de dados e objetivos traçados a priori. Das relações entre

estas variáveis emerge em tempo real a ação do ator. Ação esta que tem um modo próprio de

acontecer, segundo uma abordagem fundamentalmente prática.

Para Aristóteles, portanto, a arte não é algo espontâneo, é um saber causal. Embora não

se conheça de antemão o término de sua produção, e por conseqüência, sua finalidade, ainda

assim supõe uma intenção. Teóricos da ação, em geral, concordam que para ser qualificado

como ação, o comportamento deve ser intencional, mantendo uma separação espaço-temporal

Page 103: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

103

entre intenção e ação. No teatro de Stanislavski, o entremeio intenção e ação é descrito como

processos internos que se exteriorizam enquanto ação física.

A relação entre intenção e ato e entre pensamento e ação sofreu dos mesmos problemas

atribuídos à leitura de causalidade decorrente de uma conjunção de heranças da filosofia e da

ciência clássica, e que se estenderam à ação humana; a aristotélica, com a idéia de que nada

move ou muda a si mesmo, a newtoniana, com a crença na possibilidade de controle da natureza

por leis fixas externas e a laplaciana, com a ilusão de se prever o futuro de algo pelas condições

iniciais. (JUARRERO, 2002). A filosofia moderna, no século XVII, restringiu o entendimento

dos fenômenos à causalidade eficiente aristotélica, aquela que determina as forças e meios pelo

qual algo é criado. Seguindo os princípios da ciência newtoniana, a causalidade eficiente passa a

ser entendida como impacto do empurrar e puxar de forças externas numa matéria que é vista

como inerte, tal qual um taco que aciona bolas de bilhar. Este entendimento mecânico de causa,

de acordo com Juarrero (2002), provocou sérias conseqüências para a teoria da ação,

particularmente quando combinada com a tese aristotélica que nega que algo possa se mover

por si mesmo. A captura da lei da gravidade por Newton impôs uma descrição eminentemente

física também ao movimento da matéria orgânica, e o conseqüente descredenciamento das

condições biológicas da ação humana. O que permitiu que o corpo fosse entendido por muito

tempo por meio da metáfora do corpo-máquina, bem como a leitura mecanicista do organismo.

Na atualidade, a ação humana, vista como sistema aberto em constante auto-

organização, está longe de ser considerada próxima à causalidade clássica das leis físicas,

afastando, cada vez mais, o entendimento mecânico de causalidade. Este novo entendimento se

estendeu à relação intenção-ação. Em detrimento de acreditarmos que nossos atos foram

gerados por intenções, idéias ou pensamentos que tivemos antes deles ocorrerem, a relação

causa-efeito não é tão óbvia, tampouco atende a lógica mecanicista. Se ampliado o seu espectro,

a ação, seja no espaço ficcional do teatro e ou na esfera cotidiana, não provém da

intencionalidade e vontade consciente exclusivamente, nem tampouco vontade, consciência e

intencionalidade são de todo controladas pelo agente.

Estudos na área cognitiva têm salientado a dificuldade de determinar quando um ato

inicia e quando termina, bem como os níveis de controle do agente. Não se sabe onde começa

uma intenção e onde ela termina, e quais as suas implicações causais, a ponto de podermos nos

perguntar, em dado momento, “se nos movemos ou o movimento nos move”. Nem, tampouco,

nos é dado estabelecer, como vimos, fronteiras nítidas entre as imagens (no sentido atribuído

por Damásio) que provém do interior do corpo e do seu entorno. Ou seja, do dentro ou do fora.

Juarrero (2002) adverte sobre a inabilidade da filosofia moderna em explicar como as causas (a

Page 104: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

104

partir da vontade e intenção) dão continuidade, monitoramento e direção a seus efeitos (ações) e

questiona se há, de fato, controle, intenção ou consciência do agente no curso de uma ação, bem

como em seu momento inaugural.

A explicação de Aristóteles acerca do comportamento voluntário e involuntário orienta

as hipóteses adotadas, subseqüentemente, pelas teorias da ação. É ação do agente, segundo

Aristóteles, se o princípio do movimento é conhecido por este. A origem ou princípio do

movimento, como algo conhecido ou não pelo agente, determina a diferença entre

comportamento voluntário ou involuntário. “O voluntário parece ser aquilo cujo princípio motor

se encontra no próprio agente que tenha conhecimento das circunstâncias particulares do ato.”

(ARISTÓTELES, 1991, p. 43). O homem age voluntariamente quando nele se encontra o

princípio que move as partes apropriadas do corpo, visto que este princípio motor também pode

se encontrar fora do agente, no exterior. E é considerado involuntário o que ocorre

[...] sob compulsão ou por ignorância; e é compulsório ou

forçado aquilo cujo princípio motor se encontra fora de nós e

para o qual em nada contribui a pessoa que age e que sente

paixão – por exemplo, se tal pessoa fosse levada a alguma parte

pelo vento ou por homens que dela se houvessem apoderado.

(ARISTÓTELES, 1991, p. 41).

O comportamento é ação do agente, de acordo com Aristóteles, se o princípio do

movimento é, além de conhecido do agente, interno ao corpo. As ações vêm de estados internos

do organismo, mas dependem de algo fora dele para que aconteçam. O princípio interno do

movimento (orexis), seria um campo de ação física, ou anímico, que se estende a um objeto do

mundo externo, percebido pelo homem ou animal como algo significativo. Nem o corpo nem a

alma causariam a si mesmos, é preciso que haja um objeto externo que sirva como causa final

ou objeto de desejo. Aristóteles explica o movimento do animal dividindo o organismo em dois:

a alma (o que move o corpo, embora não mova a si mesmo) e o corpo (o que é movido). Um

leão necessita da gazela para fazer valer seu instinto natural de caça. A psique do leão é uma

entidade não móvel nela mesma, mas que move o seu corpo em direção a sua presa. O dentro se

potencializa em ato pelo estímulo do fora. Ou seja, ao colocar algo fora do organismo como

causa final ou objeto do desejo do comportamento voluntário, Aristóteles já envolve o

organismo no ambiente, embora não aponte para qualquer indício de um movimento auto-

organizativo do corpo ou da alma (JUARRERO, 2002, p. 18). O trânsito entre o dentro e fora

Page 105: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

105

seria a chave que proporciona a ação do agente no mundo.

Seguindo este entendimento, a ação seria um comportamento apropriado cujo princípio

do movimento ou causa é conhecido do agente, consciente do que está fazendo, mas que

emerge por meio de estímulos do meio. Quando a causa é ignorada, o comportamento não pode

ser classificado como voluntário, portanto, não é uma ação, visto que “a ignorância das

circunstancias da ação faz do comportamento que é emitido, uma não ação.” (ARISTÓTELES,

1991, p. 41).

Embora sejam consideradas ações, e não somente movimento, somente aquelas que são

o resultado de uma deliberação, nem todo comportamento voluntário é explicitamente escolhido

ou conhecido, salienta Juarrero (2002). Há gradações entre os extremos de uma ação com

intenção voluntária e os comportamentos involuntários, reforçados pela natureza dos processos

cognitivos envolvidos na relação consciente e inconsciente. O mesmo corpo e o mesmo sistema

neuronal envolvem o voluntário e o não voluntário, e suas diferenciações e gradações são

extremamente sutis. Questionar até que ponto exercemos controle sobre nossos desejos,

intenções ou ações é cada vez mais pertinente. Para Juarrero (2002, p. 7) o comportamento se

constitui ação quando a dinâmica auto-organizativa do cérebro, caracterizada pela consciência e

processos de significação, “origina, regula e constrange o processo esqueleto-muscular, o qual

resulta num comportamento que satisfaz o contexto significativo.”

Aristóteles já advertia que nem tudo que é voluntário parece ser objeto de nossa escolha,

pois foge ao nosso poder. O ato voluntário seria um conceito mais extenso. A escolha envolve

um princípio racional, com “as coisas que estão em nosso poder” e se relaciona com os meios e

os esforços de se conseguir algo, já os fins cabem aos desejos, estes fora do alcance da escolha.

Desejamos ser felizes, mas não podemos dizer com acerto, conforme afirma Juarrero (1999, p.

44), que “escolhemos ser felizes, pois, de um modo geral, a escolha parece relacionar-se com as

coisas que estão ao nosso alcance” ou seja, sobre os meios e não sobre os fins. Aristóteles

(1991) inicia a discussão sobre a ação na Ética a Nicômaco ressaltando que o agente não

controla as finalidades de sua ação, pois muitas são as ações e muitos, também, serão os seus

fins.

Para ser qualificada como ação, teóricos da ação insistem que o agente deve tê-la

causado intencionalmente. Teóricos e diretores de teatro, especificamente Stanislavski e

Grotowski, advertem que a causa intencional da ação tem que vir não somente de motivações

psicológicas, mas do impulso interno do corpo daquele que age. Não obstante, mesmo na

ignorância das causas e das intenções precedentes (não conscientes), algo pode ser causado.

Tanto na ação teatral quanto na cotidiana, não há como ter certeza sobre o que causou tal

Page 106: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

106

comportamento, movimento ou ação. Vimos por meio das questões formuladas por Stanislavski

e Grotowski que a falta da atividade plenamente consciente e voluntária do ator pode

desencadear uma ação, no sentido de algo que apresente uma lógica e um sentido e que se ajuste

num dado contexto teatral, pois é dado à “natureza criadora” ou ao “subconsciente” efetuar este

trabalho. Neste sentido, estas questões configuram-se como um campo extremamente fértil para

o problema da intencionalidade. É a ação do ator eminentemente intencional? Que noção de

intenção se adequaria à ação do ator? São formulações que cercam o problema da ação, e não se

exclui daquela que ocorre no fazer teatral.

3.3 A intencionalidade prática

A idéia de intenção foi empregada, originalmente, em relação à atividade prática,

enquanto referência de qualquer ato humano a um objeto diferente dele (ABBAGNANO, 2000,

p. 576). O termo intencionalidade teria sido cunhado pelos filósofos medievais, ao notarem a

similaridade entre os fenômenos e o ato de dirigir uma flecha a um determinado alvo (intendere

arcum in). Foi Franz Brentano, no século XIX, que tornou a intenção um fenômeno psíquico.

Os estados mentais, como a percepção e a memória, se referenciariam a um conteúdo, ou em

direção a um objeto. Esta direção ou intencionalidade, para Brentano, é a característica que

define a mente. Edmund Husserl (1859-1938) inspirou-se nas idéias de Brentano para ampliar a

intenção como uma relação própria entre sujeito e objeto, definindo a consciência pela

intencionalidade. Situa-a como característica essencial da esfera das vivências, uma vez que

todas as experiências, de alguma forma, teriam intencionalidade (HUSSERL,1996).

A intencionalidade foi assumida no âmbito da fenomenologia como característica

fundamental para a existência da consciência. Intencionalidade significaria dirigir-se para, visar

alguma coisa, o que implicaria que toda consciência é “consciência de”. A consciência não seria

uma substância nela mesma, enquanto alma, mas uma atividade construída em atos que visam

algo. Husserl (1996) amplificou a noção de intencionalidade distinguindo-a em intencionalidade

de ato e intencionalidade operante. A primeira refere-se a nossos juízos e tomadas de posição

voluntárias e ao momento do conhecimento mais objetivo e a segunda aparece mais claramente

nos desejos e pulsões e fornece o “texto” para a intencionalidade de ato. Esta ampliação do

conceito de intenção abriu precedentes para o conhecer como algo não restrito a representações

ou idéias já concebidas e a uma leitura mais encarnada da intencionalidade.

Considerando que, em sua maioria, os encenadores concordam que toda ação do ator

deva ter uma intenção conectada com algum objetivo traçado, algo que a “justifica”

Page 107: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

107

(STANISLAVSKI, 2000) ou a “alimenta” (BURNIER, 2001), é notório, entretanto, o caráter

corpóreo atribuído. O termo intenção vem do latim intentione, ou ação de tencionar; tensão;

vontade determinada; desejo; propósito; pensamento reservado (PÂNDU, 1981). Normalmente,

quando se pensa nas intenções, a vemos como produto de um esforço de operações mentais ou

emocionais. Grotowski (apud RICHARDS, 2001), contudo, acentuou o aspecto físico-muscular

em detrimento de uma leitura mais psicológica. Ele buscou, em sua pesquisa com atores, o

menor espaço entre intenção e ato, por meio de uma conceituação mais física e orgânica da

intenção, no sentido de objetivação dos impulsos internos do corpo. Ao aproximar intenção e

ato, atribuiu ao corpo do ator a possibilidade de desencadear o conhecimento, ampliando, a seu

modo, o conceito de intenção enquanto procedimento exclusivamente mental.

In - tenção – intenção. Não há intenção se não há uma

mobilização muscular própria. Isto também faz parte da intenção.

As intenções existem igualmente no nível muscular do corpo, e

ligadas a um objetivo fora de individuo. [...]. Normalmente,

quando o ator pensa em intenções, ele pensa em fazer vibrar os

estados emocionais. Não é isto. Intenções são ligadas a

lembranças do corpo, a associações, desejos, contato com outros,

mas também a tensões musculares. (GROTOWSKI apud

RICHARDS, 2001, p. 96).

No sentido comumente atribuído ao termo, a intencionalidade determina se o agente tem

ou não controle ou ciência de seu ato, e envolve, normalmente, questões morais. Alguém que

não tenha tido a intenção de matar um outrem pode ser até mesmo absolvido, por o crime ser

acidental ou porque o mesmo não estaria em seu juízo “perfeito”. Aristóteles (1991) discute a

excelência moral e as relações entre as emoções e ações, salientando que somente as ações e

emoções voluntárias são louvadas ou censuradas, enquanto as involuntárias são perdoadas,

inspirando, às vezes, piedade, sendo útil àqueles que legislam ou estudam a natureza humana.

Historicamente, a noção de intencionalidade pressupõe uma relação de causa e efeito em

relação à ação, sendo uma das categorias mais insistentes da filosofia, informando-nos sobre os

existentes captados ou não por nossos sentidos e consciência. Ainda que somente prevendo a

relação seqüencial entre uma causa e um efeito, já a assumimos como possível. Sempre que

algo acontecer, haverá um efeito posterior correspondente. Entretanto, David Hume (1711-

1776) fez ver que a ligação necessária entre causa e efeito e a conexão causal e linear entre o

Page 108: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

108

que existe e o que não existe pode ser questionada pela filosofia. A constante da ocorrência de

uma dada causa e seu efeito nos leva a pensar em sua necessária conectividade, mas

deveríamos, adverte Hume (apud JUARRERO, 2002), pensar que as leis da natureza são apenas

as mais prováveis de acontecer. A causalidade não é objetiva, pois nem sempre as mesmas

causas produzem os mesmos efeitos. A expectativa de que um evento ocorra é muito mais

humana do que da coisa ou evento em si. A certeza deve ser substituída pela probabilidade.

Inúmeras teorias filosóficas foram construídas em torno do conceito de intencionalidade.

Contudo, elegi tópicos presentes no pensamento do lingüista John Searle (2002), do filósofo

Daniel Dennett (1997), e dos neuro-cientistas Michel Simon (2001) e Daniel Wegner (2002) por

apresentarem uma revisão da relação causal entre intenção e ação que se aproxima de questões

concernentes à conduta do ator.

A intencionalidade, para Searle (2002, p. 1), pode ser formulada, preliminarmente, como

aquela propriedade de muitos estados e eventos mentais dirigida para objetos e estados de coisas

no mundo. Sendo a intencionalidade sempre direcional, ter a intenção consciente de fazer algo

seria apenas uma forma de intencionalidade, equivalendo, simplesmente, às condições de

satisfação de uma intenção. O sentido inerente de direcionalidade, apontado por Searle, é

ampliado para o entendimento da intencionalidade enquanto “relacionalidade”. Dennett (1997),

um dos grandes pesquisadores sobre a intencionalidade (ao que chamará de postura

intencional), afirma que a competência da intencionalidade é, de algum modo, sobre alguma

coisa. A ação humana germinou, evolutivamente, a partir dos primeiros sistemas intencionais

simples como moléculas e termostatos. Estes “corporificam” informações sobre o meio

ambiente e “agem” respondendo a ele, embora não tenham ciência disto. Por outro lado, mesmo

sendo creditados aos sistemas intencionais mais complexos como o dos seres humanos, os

estados de percepção, memória e emoção exibem relacionalidade sem, necessariamente, serem

“intencionais”, pois podem responder involuntariamente.

Através do microscópio da biologia molecular, é possível testemunhar o nascimento da

ação, ao observar as primeiras macromoléculas que tem complexidade para realizar ações ao

invés de somente permanecer passivas e sofrer ações. Embora eficientes, elas não sabem o que

fazem, ao contrário de nós. Estas pequenas “partes impessoais, irracionais, aparentemente

robóticas”, constituem a base fundamental para toda a ação e consciência humana (DENNETT,

1997). Mesmos destituídos de mente, moléculas, neurônios e anticorpos realizam cegamente

sua tarefa em nosso organismo sem que tenhamos ciência. É curioso pensar, conclui Dennett,

que somos constituídos de inúmeras destas pequenas unidades “inconscientes”, mas que

contribuem para a formação de um conjunto de relações que propiciam a emergência da

Page 109: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

109

consciência em nós.

Esta organização auto-reguladora e autoprotetora de todas as coisas vivas é entendida,

em Aristóteles, como um princípio de organização chamado de alma nutritiva. Estes sistemas

simples e ancestrais são como órgãos sensoriais primitivos e os efeitos produzidos são, para

Dennett, como ações intencionais, pois são produzidos por sistemas que modulam informação e

se direcionam objetivamente. O filósofo americano nomeia todos estes sistemas, do mais

simples ao mais complexo, de sistemas intencionais e de postura intencional à perspectiva que

propicia visibilidade a suas ações, contrário ao senso habitual que atribui à intenção uma

natureza eminentemente humana psíquica ou mental (DENNETT,1997, p. 31).

A filosofia “causalista” explica a ação pela intenção do agente, e a intenção como uma

causa mental que produz a sua conduta. A intenção é o canal que produziria os movimentos e os

gestos. Conhecer as intenções do agente é conhecer as causas que o fizeram agir, já que são os

antecedentes que garantem a explicação das ações. Já os “intencionalistas” não vêem a intenção

como a causa da ação, nem tampouco, como um evento mental antecedente e distinto da

conduta do agente. Executamos gestos e movimentos intencionalmente sem ser precedido por

um cálculo anterior à programação destes movimentos, mas, nem por isso, eles são menos

intencionais. A intenção, para os intencionalistas, seria uma espécie de “tendência para”, no

sentido etimológico da palavra, “uma maneira de dispor os atos, de decidir, uma conduta em

função de um objetivo” e não um ato mental puro (SIMON, 2001, p. 152).

A ação, de acordo com Simon (2001, p. 153), seria uma manifestação de uma

capacidade: “a ação intencional não é um efeito do pensamento que agiria como uma causa,

mas uma expressão do próprio pensamento.” Esta noção levaria a uma utilização prática do

termo intenção, salienta Michel Simon (2001), diferente da visão de intenção como

representação mental somente. Ou seja, uma intenção que pode ser engendrada no momento em

que a ação se dá, sem estabelecer uma relação de causalidade ou objetividade previsível, nem

ser dependente de uma vontade consciente. Intencionalistas entendem que a ação humana é

incompreensível sem o conceito de ação intencional, mas através de uma lógica de inferência

prática e não teleológica. A “intenção prática” não seria outra coisa que não a própria ação, não

é o efeito exterior de uma causa mental interior. “Ela é a ação nela mesma, atrelado a seu

aspecto mental, numa finalidade própria.” (SIMON, 2001, p. 154). O movimento e o agir foram

excluídos dos processos mentais pela filosofia clássica e os intencionalistas não somente

definiram o mental pela intencionalidade, como incluíram neste mental o agir, ao invés de

atribuir à ação o papel de conseqüência ou um efeito dos processos mentais, como o

cartesianismo instituiu.

Page 110: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

110

O fato é que realizamos muitas ações intencionais sem a consciência de fazê-las. Nosso

pensamento e nossa ação podem ser causados por algo que não é observável, levando a idéias

falsas sobre a relação causa e efeito no espaço entre a intenção e a ação. A prerrogativa de que o

ato voluntário ou intencional é, necessariamente, dotado de consciência, não se sustenta na

atualidade. A análise causal de qualquer coisa sofre de uma incerteza fundamental, lembra

Wegner (2002). Nada pode garantir que haja uma linha comum num processo causal, nem que

ele se repita da mesma forma numa ação.

3.4 Intenção prévia e intenção na ação

Ao abordar a intencionalidade e sua relação com as ações, John Searle o faz segundo

uma abordagem dos estados, processos e eventos orgânicos. Searle (2002) admite que não há

ações sem intenções correspondentes e que ação e intenção são inseparáveis, mas apresenta uma

distinção que também dialoga com as questões da relação intenção e ação no trabalho do ator,

propostas por Grotowski. No momento em que se institui, na prática do ator, a noção de um

pensamento em ação, a relação entre a intenção e ato se rearma seguindo outra lógica.

Antes de tudo, Searle distingue as intenções que são formadas antes das ações e as que o

são no transcorrer da ação. Todas as ações intencionais teriam intenção na ação, mas nem todas

com intenção prévia. Utilizaremos o mesmo exemplo de Searle (2002, p. 118): você tem a

intenção prévia de dirigir até determinado local, mas enquanto está dirigindo, levando a cabo

sua intenção, muda de marcha várias vezes, além de outras tantas ações que ocorrem. Quando a

intenção prévia foi formulada, você não pensou nestas mudanças de marcha do carro, ainda que

estas ações sejam intencionais. Em tal situação, você teve uma intenção na ação ao mudar a

marcha, mas nenhuma intenção prévia. Ter uma intenção na ação difere de ter uma intenção

prévia.

A intenção prévia ocorre quando o agente tem a intenção de realizar a ação antes da

realização da mesma. Mas muitas das ações que realizamos são formadas espontaneamente.

Simplesmente agimos, sem que formemos uma intenção prévia, seja consciente ou não. Uma

outra forma de perceber a distinção é observar a quantidade de ações “subsidiárias”, não

representadas na intenção prévia, mas que, sustenta Searle (2002, p. 118), ainda assim, são

intencionais.

Todas as ações intencionais têm intenções na ação, mas nem

todas têm intenções prévias. Posso fazer algo intencionalmente

Page 111: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

111

sem ter formado uma intenção prévia de o fazer e posso ter uma

intenção prévia de fazer algo e, todavia, não fazer nada no

sentido dessa intenção. (SEARLE, 2001, p. 119).

O ato de erguer um braço, a exemplo, envolve dois componentes: um componente

intencional, que é a experiência de agir ao se erguer o braço, e as condições de satisfação desse

comportamento, ou seja, o movimento físico do braço, mas ambos não são independentes.

Searle (2001, p. 128) considera que a experiência do agir já é a intenção em ação, o conteúdo

intencional. A experiência de agir é a causa de o braço se erguer. A intenção em ação já é o

componente intencional, esteja o agente da ação consciente ou não.

Além das ações que teriam, a princípio, uma intencionalidade conhecida do agente, há

as que gravitam em torno destas. São similares ao que Rudolf Laban (1879-1958) chama de

movimentos de sombra, que “precedem, acompanham ou são a sombra das ações planejadas.”

(LABAN, 1978, p. 169). Estes movimentos de sombra relatam o andamento dos processos

interiores que levam à ação, ou seja, às fases de esforço mental54 que se tornam visíveis em

pequenos movimentos corporais, e são realizados inconscientemente. Grande parte dos

movimentos mais característicos de uma pessoa seria realizada de forma inconsciente. A

compreensão da ação, para Laban (1978), viria por intermédio da descoberta, em uma dada

seqüência de movimentos, das atitudes que prevalecem em relação aos fatores do movimento –

Tempo, Peso, Espaço e Fluência – e da relação da ação com suas sombras. Neste sentido, o

estado de humor do ator em cada situação afetaria estes fatores do movimento, imprimindo

texturas psicofísicas diferenciadas às ações.

No curso de uma ação cênica, algumas intenções prévias serão naturalmente igníforas,

outras surgirão no exercício do ato. Similar ao que Searle chama de ações subsidiárias, ou os

movimentos de sombra labanianos, outras ações podem surgir de “improviso” e que

intensificam ou modificam o conjunto de uma ação maior, esta já conhecida e pré-determinada

pelo ator. No teatro, este conjunto de ações é, comumente, nomeado como partitura de ações. A

utilização do termo partitura ganha significância por meio de Stanislavski com o

desenvolvimento do método de ações físicas. Ele observava que quando o ator está em cena e

não sabe o que fazer, e está sendo observado, pensa continuadamente e pouco age. A idéia de

preparação anterior de uma linha de ação contínua o livraria deste problema.

Grotowski retoma, nos anos de 1960, a noção de partitura para designar a estrutura

54Todas as ações práticas, para Laban (1978, p. 168) passariam por quatro fases de esforço mental e que se tornam visíveis em pequenos movimentos corporais expressivos: a atenção, a intenção, a decisão e a precisão .

Page 112: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

112

“externa” e precisa que permita a repetição e a motivação ou impulsos “internos” do ator, que

moveria tal estrutura. Stanislavski já apontava para o conceito de partitura como “linha de

ações” e estratégia de atração da vida interior, mas Grotowski imprime um dinamismo ainda

maior: “Pessoalmente, prefiro uma partitura baseada, por uma parte, sobre o fluir dos impulsos,

e por outra, sobre o princípio de organização. Isto significa que deveria existir algo como um

leito de um rio.” O trabalho do ator não estaria fixado de forma estática, mas estaria num espaço

entre uma cena dada, em um momento dado, sempre imprevisível; “o rio, no qual se entra, é

sempre novo.” (GROTOWSKI apud JIMENEZ, 1990, p. 499). Grotowski adverte que é preciso

definir os pontos da partitura para que os espaços “entre” possam emergir sem que o ator esteja

condenado a pensar continuadamente o que deve fazer. Desta forma, estaria mais disponível

para o imprevisível.

O corpo, como lembra Katz (2005, p. 10), é uma das mais extraordinárias

“acomodações entre Heráclito (tudo flui) e Parmênides (o que é, é) que a natureza promoveu”.

O célebre aforismo de Heráclito por meio da metáfora do rio – não entramos duas vezes no

mesmo rio, pois águas frescas fluem constantemente sobre nós – demonstra a natureza

processual das coisas e eventos. Pertencente ao mundo das dinâmicas, o corpo, e o que parece

ser nele afixado, é sempre um estado temporário que escorre de forma inestancável no tempo e

no espaço. Grotowski trabalhou no sentido de transformar em simultaneidade a dualidade e

aparente oposição Parmênides-Heráclito. O que é designado e repetido como ação-partitura (o

que é) convive simultaneamente com a ação-estado do que não é, e que pode vir a ser. Ryszard

Cieslak, ator emblemático do Teatro-Laboratório de Grotowski nos anos de 1960 utiliza a

metáfora da chama acesa para descrever o caráter dinâmico da partitura:

A partitura é como um vaso de vidro dentro do qual uma vela

queima. O vidro é sólido, está ali, podemos confiar nele. Retém e

guia a chama. A chama é meu processo interno de todas as

noites. A chama é o que ilumina a partitura, o que o espectador

vê através da partitura. A chama é viva. Assim como a chama no

vidro, a partitura se move, palpita, cresce, diminui, está quase por

apagar-se e imprevistamente readquire esplendor, responde a

cada hálito de vento, assim a minha vida interna varia a cada

noite, de momento a momento. (CIESLAK apud RICHARDS,

2001, p. 97).

Page 113: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

113

Stanislavski (1995) falava das ações como elementos do comportamento, quando todas

as forças elementares no corpo estão orientadas em direção a alguém, a algo ou a si mesmo. Ele

exigia do ator uma linha de ação ininterrupta para que, quando este estivesse em cena, não

perdesse sua presença e credibilidade. Para o diretor russo, só as ações físicas poderiam

proporcionar um percurso mais seguro para a interpretação, visto que a evocação das emoções e

sentimentos não eram confiáveis, já que independentes da vontade do ator.

Grotowski perfura esta linha ininterrupta e propõe uma partitura vazada, onde seja

possível um princípio de organização mediado pelo ato da vontade, mas com espaços para o

fluir de novos impulsos. Nos espaços que se abrem, no “entre” dos elementos estruturados é

possível, então, emergir novas ações que vitalizem as já previamente arquitetadas. Stanislavski

(1995) já salientava que quando somos atraídos para as ações físicas, deixamos o inconsciente

livre para agir, e o induzimos a trabalhar criativamente. Esta ação da natureza e de seu

inconsciente é tão sutil e profunda, que a pessoa que está efetuando a ação, não percebe. O ator

não tem consciência nem controle do que se processa com ele, “[...] não está no âmbito da

consciência humana a execução deste trabalho oculto e, assim sendo, o que está além de nossos

poderes é realizado pela própria natureza em lugar de nós.” (STANISLAVSKI, 1995, p. 251).

As intenções que surgem no decorrer da própria ação refinam a atenção e propiciam a

emergência de novos conteúdos, micro-sensações e, até mesmo, ações involuntárias. São ajustes

que ocorrem pela própria natureza dos processos cognitivos, que negociam, permanentemente,

as relações do corpo consigo mesmo e com o ambiente, considerando que uma ação nunca se

repete de forma idêntica. Um estímulo vindo da platéia ou um insight momentâneo são

fenômenos que o ator não experimenta como sendo atos voluntários ou intencionais, mas que

engendram novas conexões com a ação, em tempo presente. A noção de partitura abriga ambas

as conceituações de intenção propostas por Searle, a prévia e a surgida em “tempo real”. A

composição de uma partitura fecha o campo de ação, temporariamente, e dá uma

sustentabilidade para que o ator possa buscar certas minúcias, singulares, detalhes,

probabilidades, enfim, o que é daquele instante. A pré-definição de uma partitura pode propiciar

ao ator tocar em certos estados do corpomente, mantido um comprometimento com o momento

presente. Trata-se de corpos que pensam ou de mentes encarnadas em corpos comprometidos

(SERRANO,1996).

Ao enfatizar a importância de uma estrutura técnica coerente e precisa, impondo uma

partitura preliminar de atos, rigorosamente encadeada, Grotowski revê o sentido mais comum

de improvisação: o de ampla liberdade formal de refazer algo a cada instante como uma

condição criativa. “Trabalhar sobre si mesmo só é possível no que pode ser estruturado e

Page 114: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

114

repetido.”55 (INFORMAÇÃO VERBAL). Mesmo buscando um teatro do “instante”, Grotowski

não apelava para um espontaneísmo, e cada detalhe era mantido, a cada encenação. O tipo de

improvisação solicitada, antes de tudo, requer disciplina e uma certa disponibilidade para a ação

imediata, mais no sentido de atuar sem “pensar discursivamente”, do que meramente

desencadear um fluxo de novas ações a todo instante. Uma improvisação efetiva, para

Grotowski, dispensaria o circuito intelectual e discursivo e se realizaria pela ação imediata. A

busca de um método que contemplasse a fusão de espontaneidade (criatividade, organicidade)

com estrutura técnica (precisão, rigor, repetição, disciplina) permeou a busca de Grotowski. A

espontaneidade seria a resultante de uma perfeita preparação técnica e da definição de leis

objetivas de atuação, já apontados neste estudo nas investigações de Grotowski (1990, 1992)

nas tradições e ritos. Neste sentido, o processo de conhecimento do ator residiria num “aprender

fazendo”, a exemplo da lógica da razão prática aristotélica, e não somente através da

memorização e aplicação de idéias e teorias. Estas seriam utilizadas para ajudar a sanar

problemas práticos da ação do ator.

“O que importa é a ação precisa, quente e presente. O que você quer com o seu corpo?

com o do seu parceiro? ele tem que estar presente, engajado”, interroga Richards (1996).

Segundo o ator, o trabalho que realizavam junto a Grotowski tinha, nas ações físicas de

Stanislavski, sua fonte, mas não como no teatro realista. O que é buscado é o início da ação, o

impulso, o engajamento, o que faz a ação do ator ser eficaz. A eficácia nasceria, então, de

dentro do corpo, onde o impulso é o centro vital, e o que liga os parceiros no jogo teatral. “Você

não sai com a ação, você entra com ela.”56 (INFORMAÇÃO VERBAL).

3.5 A ilusão da vontade consciente

Tórtsov (1995), em A criação do papel, discorre sobre a ingenuidade do ator em pensar

que estava criando as ações físicas, “que as estava administrando”, quando declara que não

tinha noção do que se estava processando dentro dele. As ações eram somente reflexos externos

do trabalho criativo longe do controle consciente, do que ia sendo executado pelas forças

subconscientes. O método das ações físicas trazia uma nova qualidade, ressaltada

veementemente por Stanislavski (1995, p. 251): “O meu método induz a agir, por meios

55 Declarações de Grotowski durante o Simpósio Internacional Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, 14 a 16 out. 1996, no SESC, São Paulo.

56 Declarações de Richards durante o Simpósio Internacional Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, 14 e 16 out. 1996, no SESC, São Paulo.

Page 115: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

115

normais e naturais, as mais sutis forças criativas da natureza, que não estão sujeitas ao cálculo.”

O método das ações físicas induzia a preparar uma linha simples e acessível para a entidade

física do papel, e o resultado é que, “de súbito”, o ator sentiria dentro de si a vitalidade

espiritual.

Como salienta Wegner (2002), há uma ironia no fato de que, o que parece ser mais

habilidoso em nós como ação, muitas vezes não são experiências que entendemos como

intencionais ou temos um senso vago do a que causou. Há muitos pensamentos que ocorrem

antes da ação voluntária final emergir, de forma que uma idéia ou uma ação criativa pode ser a

ocorrência de algo que temos procurado consciente ou inconscientemente, ainda que não

precedidas por um pensamento intencional claro. Achamos que não causamos intencionalmente

algo, quando não percebemos pensamentos anteriores consistentes em relação à ação executada.

Também na ação do ator, a idéia de uma objetividade e finalidade conclusivas, bem

como a de uma vontade e intencionalidade consciente pode ser revista. A interrogação de

Wegner (2002) é pertinente: Nós causamos conscientemente nossas ações, ou elas

simplesmente acontecem? O autor pondera que, ao mesmo tempo em que sentimos que

causamos conscientemente nossas ações, elas também acontecem sem que tenhamos controle

sobre elas. Embora nosso pensamento tenha importantes conexões causais relacionadas a nossas

ações – conscientes e inconscientes –, a experiência da vontade consciente resulta de um

processo que interpreta estas conexões, não das conexões nelas mesmas (WEGNER, 2002). A

vontade consciente, para Wegner, é uma espécie de ilusão, nunca podemos garantir que nossos

pensamentos causam nossas ações, mas ela é imprescindível como um guia para

compreendermos melhor nossas ações e desenvolvermos um sentido de responsabilidade e de

moralidade.

As intenções podem ou não ser causas de ações, mas nós, quando interpretamos nosso

próprio pensamento, as percebemos como motivadoras de nossa ação, ou seja, quando

experimentada a sensação da vontade ou a intenção consciente. Trata-se da teoria da causa

mental aparente ou a “ilusão da vontade consciente” proposta por Wegner (2002), que reavalia

o link determinista entre pensamento e ação. Para o autor, a intenção consciente não é uma

causa, mas uma experiência e, naturalmente, um processo. O que significa que os pensamentos

que ligamos as nossas ações não são, necessariamente, as verdadeiras causas das ações, sua

relação causal é algo que lhe atribuímos. Como salientou Hume (apud JUARRERO, 2002), o

que nos é dado observar são as regularidades e hábitos. Percebemos os eventos seguirem uns

aos outros, mas não um evento causar outro. A própria existência na natureza de “mecanismos”

de causa e feito é questionada. Hume modifica o entendimento mecânico de causa. Segundo o

Page 116: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

116

filósofo, passamos a acreditar que A causa B depois de vivenciar inúmeras experiências que

leva a nossa mente a associar suas possíveis relações, por uma antecipação psicológica de uma

experiência prévia. Quando se trata do corpo e cérebro humanos, as relações causais são de

outra natureza, o que não garante, efetivamente, as relações entre determinada causa e seu

subseqüente efeito, como impunha a lógica anterior.

Acreditamos na idéia de um pensamento ser a causa da ação, porque é freqüente

aparecer uma série de idéias precedendo cada ação, especialmente se ocorrem num intervalo

particular de tempo, nem muito tarde, nem muito cedo. Pensamentos que ocorrem menos de 3

segundos antes da ação podem ficar na mente e serem conectados à ação de forma a

sustentarem uma possível relação causal e serem sentidas como intencionais. Ainda assim, a

experiência de controle e consciência da ação não garante a causalidade, já que mecanismos

inconscientes criam, também, pensamentos conscientes sobre ações. De acordo com Wegner

(2002), nossos pensamentos têm profundas e importantes conexões inconscientes para nossas

ações. Como salientam Lakoff e Johnson (1999), os mecanismos que nos fazem agir são os

mesmos que nos permitem pensar e conceitualizar, e grande parte deste acionamento racional

não é consciente, mas inconsciente.

Se a ação é um comportamento intencional, os novos estudos sobre a área indicam que

não parte somente de um processo racional fundado por instrumentos lógicos. Nosso campo de

visão é demasiado vasto e, muitas vezes, o cérebro decide por conta própria o que considerará,

independente de nossa vontade. Ainda que interajamos com o mundo, sustentados por uma

intenção, este não é um fenômeno exclusivamente consciente, dotado de finalidade e sob

controle do sujeito. Igualmente para Berthoz (2003, p. 9), a ação é sempre a busca de um

objetivo, sustentada por uma intenção, que não é, necessariamente, consciente. A razão é

sempre tomada sobre a ação, ela ganha ao longo da evolução uma maior capacidade de

abstração lógica, mas permanece ancorada no espaço, isto é, “sobre o corpo atuante.”

(BERTHOZ, 2003, p. 169).

No entendimento de Berthoz (2003), o cérebro não é um mero processador de estímulos

em respostas mecânicas, motoras ou emotivas. O cérebro não se contentaria em capturar

passivamente o mundo físico, os sentidos por ele gerados são já organizados em função de

comportamentos possíveis. Sua atividade é, inextricavelmente, ligada a um projeto de ação.

Como já abordei anteriormente, perceber, para o pesquisador francês, já é classificar um

repertório de ações possíveis, o que significa que, quando percebemos algo, já estamos

selecionando, dentre uma quantidade de informações disponíveis, aquelas que parecem ser

pertinentes para a ação projetada. Ou seja, já estamos, de alguma forma, decidindo. Este

Page 117: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

117

processo de decisão não é, necessariamente, auspiciado pelo sujeito. A seleção envolve atos da

vontade e de involuntariedade que nem são, plenamente, controlados.

Vamos, o tempo todo, da ação à percepção e da percepção à ação, considerando que não

são fenômenos separados temporalmente. Não há mecanismos de percepção separados da ação,

pois a percepção já é ação simulada. Berthoz (apud CORIN, 2001, p. 92) defende a idéia de que

não existe dispositivo sensorial perceptivo que não esteja conectado a sinais motores. Na área

cerebral que trata das informações vestibulares e visuais do movimento, por exemplo, os

neurônios que codificam as informações captadas pelo olhar são influenciados pela direção do

movimento do olho.

O que Grotowski (1995) buscou, incessantemente, – encurtar os caminhos entre a

percepção e ação e entre intenção e ação – é matéria investigativa desenvolvida por Berthoz no

Laboratório de Fisiologia da Percepção e da Ação do Collège de France, em Paris, onde atua

como professor e pesquisador. Cacá Carvalho, ator brasileiro, que esteve durante dez anos junto

ao Pontedera Teatro, na Itália, laboratório de teatro sob direção de Grotowski57, sustenta que a

ação na realidade não existe. Uma ação é sempre uma reação, pois não nasce do nada. Uma

ação se transforma em outras, e a transição dinâmica entre elas e o devir importa mais do que

cada ação propriamente feita.

Não há um ponto zero, mas um processo inestancável e vezes

inominável. É um reagir, pois tem algo em você que já está vivo

ao qual você reage agindo. Você não percebe o que provocou

aquela reação porque há uma série de ingredientes que se

acionam. A intenção já é uma ação, que se organiza na práxis.58

(INFORMAÇÃO VERBAL).

O relato de Toporkov acerca da metodologia empregada nos ensaios de Tartufo –

realizados com finalidades essencialmente didáticas, e pouco antes da morte de Stanislavski, em

1938, – permite reflexões sobre a questão da percepção. É quando o mestre russo transmite, aos

atores e diretores envolvidos, questões pedagógicas inerentes ao método das ações físicas,

chamando a atenção para a relação entre percepção interior e visualização exterior. A segurança

e justeza das ações surgiriam organicamente somente com uma “percepção visual interior, 57 Surgido na década de 1970 na pequena cidade de Pontedera (Itália) e inicialmente intitulado como Centro de Pesquisa e Experimentação Teatral, a atual Fundação Pontedera Teatro passou a abrigar em 1986 o Workcenter of Jerzy Grotowski, que desde 1996 passou a se chamar Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards.(www1.sp.senac.br). 58 Entrevista concedida à autora em abril de 2004, no Teatro da Universidade de São Paulo, na ocasião da apresentação do espetáculo solo La Poltrona Scura, com direção de Roberto Bacci.

Page 118: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

118

concreta e minuciosa”, que deveria considerar a observação de si mesmo e do ator com quem

interage. Trabalhar num papel e desenvolver uma personagem exigia, primordialmente, um

estado de atenção e o desenvolvimento da percepção do ator, sempre em parceria com os outros,

com os quais atua. O ator deveria observar a expressão dos olhos do outro ator com quem

contracena, suas mudanças, e transmitir a sua percepção visual, para poder ver as coisas com os

olhos do outro.

O jogo entre atores é um jogo de xadrez, você não conhece os

movimentos das peças, mas segue atentamente as coisas que

importam: a voz, o tom, o olhar, o movimento de cada músculo

de seu adversário. É nas reações deste que se deve orientar-se

para saber como seguir atuando. Assim se consegue uma ação

autêntica. (TOPORKOV apud JIMENEZ, 1990, p. 323).

Enquanto o ator age, outras informações, em tempo presente, atravessam o corpo

proveniente dele mesmo, das relações com o seu partner, o ambiente, e das conexões que o

agente (ou ator) busca estabelecer a partir de dados e objetivos traçados a priori. Das relações

entre estas variáveis emerge a percepção e a ação, que passam a ser entendidas como processos

vivos em constante elaboração e não o resultado causal final destes acordos. Os processos de

conhecimento em suas redes de interconexões neurais se alteram, conforme a experiência,

segundo propriedades emergentes e auto-organizativas. O processo cognitivo pressupõe

estabilidades, mas, a cada informação que adentra o organismo, o estado corporal se modifica.

Devido a sua natureza co-evolutiva, corpo e ambiente articulam o pré-existente e o adquirido

em tempo presente.

O conceito de ação parece envolver mais do que é exteriorizada e visível a olho nu. No

nível macroscópico há uma síntese, mas, subterraneamente, há várias ações ocorrendo

simultaneamente. Esta síntese, de acordo com a hipótese de Eugene Goldfield (1995), é um

padrão auto-organizativo que se estabiliza e que se dá a ver. São soluções, não definitivas, que o

corpo encontra num determinado momento. No trabalho do ator, a ação nunca é absoluta. Muita

coisa acontece numa ação. Cabe ao ator permitir a emersão de outras micro-ações que se

agreguem à ação dita voluntária:

Na ação, por ser uma estrutura complexa, convivem forças e

componentes opostos, que se manifestam um uma série de inter-

reações na dimensão externa da ação [...]. Deste modo, o que

Page 119: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

119

termina sendo a ação manifesta é a resultante da luta com todos

aqueles componentes internos e físicos, que resistem até que o

ato seja cometido. É neste jogo de tensões que o ator executa sua

ação, neste jogo de oposições e permanente desequilíbrio59.

(INFORMAÇÃO VERBAL)

A ação do ator, em detrimento de sua pulsão por significado, objetividade e

intencionalidade não consegue domesticar o corpo e o sentido. A ação intencional e consciente

(incluindo a do ator) emerge, muitas vezes, de movimentos aparentemente involuntários,

orquestrados em uma rede neuronal rica em referências, memórias e percepção do momento

presente sem, necessariamente, o controle intencional anterior do agente. Entra em jogo uma

“intencionalidade prática” ou, mais do que uma “intenção na ação” proposta por Searle, uma

“intenção em ação”. Há um terreno desconhecido que não depende, plenamente, da intenção

prévia do ator, mas que pode ser acionado pela parte cabível ao exercício de sua vontade. A

busca de um detalhamento preciso das ações e a conexão com o momento presente contribuem

para que se desencadeiem espaços de imprevisibilidade e organicidade para o aparecimento do

estado criativo. O que Grotowski chama de simultaneidade entre estrutura e espontaneidade e

Stanislavski de paralelismo entre a atividade consciente e inconsciente, ou da entidade física e

espiritual. A fusão destas linhas paralelas traria uma veracidade psicofísica ao papel.

Tórtsov começou a representar e ao mesmo tempo explicar seus

sentimentos: -Enquanto atuo, vou-me escutando e sinto que,

paralelamente à linha ininterrupta de minhas ações físicas, corre

outra linha, a da vida espiritual de meu papel. É engendrado pela

linha física e corresponde a ela. (STANISLAVSKI, 1995, p.

239).

A objetividade e intencionalidade da ação dependem do trânsito das informações do

próprio corpo e do ambiente, requisitando, a todo o momento, resoluções cujos processos não

controlamos de todo, ou temos oportunidade de estabelecer uma relação plenamente consciente.

A perspectiva dinâmica oferece um entendimento do tipo do controle auto-organizativo e dos

acordos com o meio que ocorrem numa ação intencional. Em meio a estes acordos, a noção de 59 Apontamentos da palestra ministrada por Cazabat efetuada durante o workshop “O ator na construção orgânica de sua ação”. Itajaí, SC, 05 fev. 2003. Diego Cazabat é ator e diretor. Preside o Centro de Investigación Teatral e casa de Studios “El Astrolábio”, em Buenos Aires (AR), onde desenvolve, junto a Périplo Compañia Teatral, trabalhos na área pedagógica e investigação artística partindo essencialmente das ações físicas.

Page 120: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

120

sujeito também se altera. As teorias cognitivas na atualidade, em sua maioria, defendem a idéia

de que não há espaço para apenas um eu com existência fixa, unitária, centralizando e

controlando tudo, mas estados (redes) emergentes que respondem a uma auto-organização, a

estados biológicos constantemente reconstruídos. Negam a existência de um “homúnculo”

dentro do cérebro que, como num teatro cartesiano, comandaria o organismo (DAMÁSIO,

1996). A solução do homúnculo para o problema da subjetividade consiste na definição de uma

espécie de criatura interna no cérebro que interpreta e referenda as operações mentais. Negada a

idéia do homúnculo, e mesmo que não exista um comando central na operacionalidade

biológica, algo ainda nos permite ter a sensação e a coerência de um eu, pois continuamos

pensando, sentindo e atuando como se tivéssemos esse eu. E mais, procurando defendê-lo e

realçá-lo ferreamente. Buscamos uma essência real e imutável que nos dê a sensação de uma

identidade no contínuo de acontecimentos e formações mentais e corporais.

Há, de fato, dificuldades de se falar do eu na experiência. Quando vamos investigá-lo, o

colocamos em categorias e conceitos abstratos que não dão conta do estado de mudança (de si

mesmo, em si mesmo) que ele apresenta. Aparentemente, ele revela uma unidade, mas uma

unidade em movimento, numa experimentação mutante. Como ele é um conceito em

movimento, está encarnado, corporificado. O eu que confere subjetividade à nossa experiência

não é um inspetor de tudo o que acontece em nossas mentes, haveria propriedades emergentes

em redes auto-organizativas com estados sucessivos do organismo ancorando o eu que existe a

cada momento.

Neste sentido, não é exclusivamente a vontade e a intenção de um “eu” que controlam a

emergência de padrões de ações, estes se dão através de processos com alta taxa de

complexidade e baixa taxa de acessibilidade. Se o comportamento humano é um fenômeno

adaptativo complexo, o caminho preciso que as ações vão tomar é imprevisível (JUARRERO,

2002). Quanto mais complexo o sistema, mais estados e propriedades ele pode manifestar.

Novas características e leis emergem. Mesmo que desencadeada por uma causa “ignorada”,

algo acontece, e pode emergir carregado de sentido.

Segundo o entendimento proposto até então, a intenção não seria uma atividade mental

que causa uma atividade física, mas a própria operacionalidade da ação. No aqui e agora da

atuação, o contato com o outro e com todo o ambiente redimensiona a estrutura conquistada

durante o processo de ensaio de um trabalho cênico, propiciando ao ator o surgimento de ações,

até mesmo, inesperadas e com uma certa autenticidade e espontaneidade. Intenções

momentâneas se desenham sem uma combinação prévia, fruto da rede de intenções

engendradas no processo de composição da atuação ou da personagem e do momento presente

Page 121: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

121

vivido.

A objetividade e intencionalidade da ação do ator depende do trânsito das informações

do próprio corpo e do ambiente, requisitando, a todo o momento, resoluções cujos processos ele

não controla de todo ou estabelece uma relação plenamente consciente, tampouco consegue

repetir as ações da mesma maneira. Independente de o ator preparar suas ações com

objetividade e “intencionalidade prévia”, os estados do seu corpo e as informações do meio no

momento da representação corroboram para a ocorrência de singularidades. O que faz com que

as “intenções em ação” contribuam, sobretudo, para o que Peter Brook (1994) elege como a

razão de ser do teatro: as ações em momento presente.

3.6 Sobre o estado de consciência

Pode um sistema conhecer sua dinâmica cognitiva, se esta

dinâmica (que é o que deseja conhecer) é seu próprio

instrumento de conhecer? (Maturana,1994, p. XIX).

Stanislavski deixa mostras de que, no início do século XX, o teatro discutia os limites da

consciência humana face à criatividade. Sob influência do ambiente psicanalítico de sua época,

Stanislavski (1995, p. 95) declarava que só o reino do inconsciente, “do não acessível ao

cérebro e ao pensamento”, poderia alcançar as “profundezas de um papel, de um ator ou de uma

platéia”. As chaves estão entregues à “natureza do ator” como ser humano, e a natureza é, desde

sempre, o “único criador que tem a capacidade de promover a vida”. Para o diretor russo,

quanto mais sutil fosse o sentimento, mais se aproximaria do superconsciente e da natureza

humana, e mais se distanciaria do consciente: “O Superconsciente começa onde a realidade, ou

melhor, o ultranatural, acaba, onde a natureza se liberta da tutela do cérebro, fica livre das

convenções, dos preconceitos, da força.” (STANISLAVSKI, 1995, p. 95).

Herança esculpida pelos anos novecentos, a partir das mãos hábeis de Stanislavski, o

interesse pelo trabalho “sobre si mesmo”, condição esta, para ele, imprescindível no trabalho do

ator sobre a personagem, tende a permanecer na atualidade como atividade investigativa do

ator. Neste sentido, o conhecimento dos processos, que cercam a consciência e suas implicações

na ação cênica, alcança um papel cada vez mais significativo. O problema da consciência

configura-se como um dos maiores desafios das ciências da mente e parece estar longe de ser

elucidado. Contudo, não há como desconsiderar o importante percurso conquistado até então.

As perspectivas advindas das ciências cognitivas vêm propiciando, na atualidade,

Page 122: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

122

“trilhos sólidos” para o entendimento dos processos que cercam a consciência. Indagações antes

ambientadas no campo da psicologia e da filosofia encontram, cada vez mais, abrigo no campo

da experiência científica. Até o século XX, o problema corpo-mente, central para o

entendimento de quem somos, era próprio da filosofia, fora do campo da ciência empírica60. A

última década do século XX marca a introdução definitiva dos estudos sobre a relação mente-

corpo na agenda científica, como parte especialmente da investigação sobre a consciência, sem,

contudo, se abster das questões ontológicas. Neste sentido, filósofos-cientistas como António

Damásio recorrem às questões tradicionais do pensamento filosófico para relacionar as suas

descobertas na área da neurologia. Suas obras mais marcantes provêm de grandes questões,

como O Erro de Descartes. Emoção, razão e cérebro humano de 1996 e Em busca de Espinosa.

Prazer e dor na ciência dos sentimentos de 2004. As ciências cognitivas vêm reorganizando

saberes que se conectam com questões extremamente relevantes para o entendimento do

trabalho do ator sobre suas ações.

Como salienta Damásio (2004), à medida que os estudos relativos à introspecção foram

confrontados com os fatos da neurologia moderna, a perspectiva do dualismo de substância se

fragilizou, afastando, cada vez mais, a metáfora do “fantasma na máquina”. Muitos fenômenos

mentais são mais concretamente problematizados e observados, quando revelados por meio de

protocolos neurológicos de casos concretos de anomalias relacionadas ao cérebro, o que nos

leva a conhecer mais sobre como o corpo, o cérebro e a mente funcionam. A comprovação

científica da relação causal entre mente e cérebro, contudo, não basta para que o problema

mente-corpo se elucide, há que se mudar o ponto de vista por onde olhar o problema, visto que

permanecem velhos entendimentos acerca da relação corpomente. Damásio (2004) reafirma a

necessidade de partirmos da perspectiva de que a mente emerge num cérebro situado dentro do

“corpo-propriamente-dito”, de seu tecido biológico e que tem ali seus alicerces, partilhando as

mesmas características dos outros tecidos vivos. O uso dos termos “mente” e “corpo” por

Damásio não implicaria numa continuidade da perspectiva do dualismo de substância cartesiano

(pois ele entende os fenômenos físicos e mentais como emergindo de uma só substância

biológica), mas de uma estratégia necessária que permita às pesquisas avançarem em direção ao

conjunto integrado que mente e corpo constituem.

Ao abordar o problema mente-corpo, Searle (2002) coloca uma importante questão: é 60 Importa lembrar que os primeiros fatos de afirmação cientifica do inconsciente foram frutos de investigação médica. Foram os estudos a partir da segunda metade do século XIX sobre histeria (uma doença nervosa) que inauguram esta prática médica, acompanhados da publicação de importantes obras sobre a natureza psicológica das doenças, tais como os estudos de Pierre Janet, Alfred Binet, Charcot e Theódule Ribot. Os sintomas de algumas doenças, como a distração, idéias fixas e fobias, a amnésia e convulsões observados em ação, ofereciam subsídios suficientes para a comprovação experimental da atividade consciente e inconsciente.

Page 123: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

123

provável que haja, futuramente, outros princípios diferentes dos que empregamos até agora para

a descrição da relação entre os níveis físicos e mentais, tão diversos quanto foram os

provenientes da física newtoniana e da quântica. Mas é certo que a descrição biológica não

poderá mais ser descartada, como o foi até então, nem tampouco a noção de causa será

newtoniana. O modelo mecanicista de controle e coordenação teve sobrevida espantosa no que

se refere à ontogenia dos sistemas de ação. Um dos problemas herdados do dualismo é o não

reconhecimento de que a causa e a realização de algo estão na mesma estrutura, e no caso das

experiências humanas, que estas possam ocorrer pelo funcionamento do cérebro em respostas a

estímulos a ele direcionados e realizados na sua própria estrutura, que é biológica. Por outro

lado, o conceito de máquina e de controle e coordenação não são mais os mesmos, com as

novas pesquisas e suas decorrentes tecnologias. Os autômatos hoje possuem sensores e outros

artefatos em sistema de rede que diferem da mecânica newtoniana. A metáfora da máquina deve

persistir no sentido de averiguação dos mecanismos de organização dos sistemas, mas, cada vez

mais, sob bases biológicas.

A crença de que as causas das ações deveriam ser externas aos efeitos que elas

desencadeiam, impossibilitaria ao organismo “causar a si mesmo”, ou seja, se autogerir ou se

auto-organizar. A visão de causa exterior à própria estrutura, segundo as leis físicas

newtonianas, favoreceu a permanência da separação entre fenômenos mentais e físicos e a visão

mecanicista de causa. A flexibilidade característica da ação humana foi igualmente reduzida a

padrões mecânicos de estímulo e resposta por algumas teorias do conhecimento, a exemplo das

lógicas reflexionista e behaviorista, movidas pelo mesmo desejo de fazer o comportamento

humano explicável cientificamente.

Hoje, não há como manter uma visão mecanicista do fenômeno da ação. Ao contrário da

mecânica clássica, cujo tempo é visto como reversível, a segunda lei da termodinâmica trouxe a

noção de entropia, do tempo irreversível onde tudo se move entre ordem e desordem. A teoria

da evolução de Darwin chamou a atenção para a complexidade e seletividade. Ambas as teorias

trouxeram o tempo e o contexto novamente ao seio das ciências. No século XX, as teorias sobre

sistemas complexos, sistemas adaptativos e sistemas fora do equilíbrio modificaram

potencialmente o entendimento mecanicista de ação vigente. Estruturas dissipativas não são

processos mecânicos, pois nenhuma molécula “empurra a outra”, como Newton supunha. Os

neurônios no cérebro não respondem à moda da força newtoniana, ativando os outros pelo

choque. Como estruturas em processo, são padrões relacionais, distribuídos em conexões

dinâmicas (Juarrero, 2002, p. 130). A “nova aliança”, proposta por cientistas como Ilya

Prigogine (1991), revê o homem não mais como espectador externo à natureza e buscando

Page 124: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

124

dominá-la, mas ele, o homem, sendo a própria natureza, indissolúvel nela. O saber científico

contemporâneo tratou de buscar escutar a natureza de forma mais “poética” – utilizando um

termo “prigoginiano” –, mais inventiva e menos dogmática, respeitando suas taxas de

complexidade.

Enquanto teorias comportamentais, como o behaviorismo, explicavam a ação dentro de

um conjunto de padrões fixos e deterministas – desconsiderando a grande variedade de

respostas possíveis a partir do mesmo estímulo – o cérebro impunha sua plasticidade. Sendo

autoprodutor, o cérebro aciona mudanças nele mesmo, num fluxo em rede em vários sentidos, e

não somente recebe a informação (input) e, mecânica e seqüencialmente, a devolve ao meio

(output). O cérebro não possui uma lógica mecânica de controle das entradas e saídas de

informações, mas exibe plasticidade, dificultando a precisão do que é informação e do que já é

comportamento, ação gerada. Estruturas cognitivas emergem de modelos sensório-motores,

numa relação estreita entre percepção e ação, intenção e ação. A evidência, cada vez maior, de

que a mente humana é auto-organizativa vem desembaraçando o velho entendimento

mecanicista de causa, enquanto impacto de forças externas sobre a matéria inerte e que ainda

persiste no corpo das teorias sobre ação (JUARRERO, 2002). Da mesma forma, o

desenvolvimento motor parece ser o resultado de um processo de auto-organização dinâmica

que ocorre como resultado de interações entre a própria dinâmica espontânea dos organismos e

o seu ambiente.

Reitero, uma vez mais, a validade do ator em conhecer (e o modo como conhece), a si

mesmo e ao mundo, por meio de ferramentas disponibilizadas pelas neurociências. Como

sentenciou Stanislavski, em sua busca pela compreensão da interação dos aspectos físicos e

psíquicos, com alguma coisa mais material, pensada a partir do corpo, é possível ao ator

percorrer trilhos mais sólidos. A exposição dos fundamentos e da evolução da noção de

consciente não são alvos desta pesquisa, mas importa ressaltar o contexto epistemológico, no

qual as teorias do ator do século XX têm oscilado, no que se refere às noções de consciente e

inconsciente, para que se avance no tipo de abordagem proposta pelas ciências cognitivas.

A discussão empreendida por Stanislavski (1995) sobre dos meios conscientes e

inconscientes do ator surge, já no século XVIII, através do paradigma psicológico recém

instaurado. É quando aparecem os primeiros indícios a respeito dos conteúdos inconscientes e o

controle da mente consciente na atuação do ator. Das reflexões filosóficas e fisiológicas de

Diderot (1986), às experiências fisiológicas e psicológicas de Lewes (apud ROACH, 1985)

surge uma rede de conexões sobre a relação corpo e mente que ecoaria nas teorias do ator do

século XX, e que ainda orientam o entendimento destes processos, na atualidade. Grotowski

Page 125: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

125

(1990) apontou o dilema de Stanislavski: ter consciência do que se faz não seria tudo, pois não

envolveria a integridade dos processos criativos. O diretor russo buscou, a seu modo, tocar

indiretamente o que era inconsciente.

O abandono progressivo, a partir do século XVIII, da mecânica das paixões orientadas

pelos espíritos animais cartesianos conformou, de acordo com Roach (1985), uma nova

semiótica dos afetos. Esta se orienta por meio da noção de um modelo interno da atuação da

mente consciente e da valorização dos conteúdos inconscientes. O interesse pelas paixões e pela

sua presença nas teorias sobre a atuação do ator foi renovado à luz da moderna ciência e do viés

psicológico que se engendra. Na medida em que as tensões nervosas foram vistas cada vez mais

como processos de natureza menos mecânica e mais orgânica, a solução para a espontaneidade

ou controle das emoções, com seus tremores e descargas, viria através da atuação da mente

consciente. A tentativa de entender as relações entre corpo e alma, ou corpo e mente, se

constitui como o desafio maior do trabalho do ator sobre si mesmo, como apontou Stanislavski

(1995), em suas considerações acerca da vida física e psíquica do ator.

3.7 O modelo interno

A mente e o corpo são coisas distintas ou feitas da mesma substância? Se alimentadas

pelo dualismo cartesiano e consideradas como substâncias diferentes, quem viria primeiro? “É a

substância da mente que causa a existência e ação do corpo e do cérebro, ou será que é a

substância do corpo que vem primeiro e que o cérebro, que dela faz parte, causa a mente”?

Estas indagações expostas por Damásio (2004, p. 193), também estão no cerne das questões

apontadas por Stanislavski nas suas reflexões acerca da vida espiritual e física do papel.

O ator deve agir para suscitar estados mentais e, com eles, os emocionais, ou a evocação

dos conteúdos mentais reacende a ação do corpo? Moeda corrente tanto no senso comum

quanto na agenda científica e filosófica, a perspectiva dualista é uma das questões mais

debatidas pela filosofia da mente. As respostas das ciências cognitivas às questões acima

levantadas ainda não dão conta do problema corpomente nem, tampouco, encontram

ressonância no senso comum. Embora a ciência tenha avançado, consideravelmente, nos

estudos acerca do funcionamento dos circuitos neurais, ainda paira a dúvida sobre as relações

entre estes e os processos mentais que vivenciamos. Por mais que as teorias do teatro busquem a

fisicalidade dos processos de conhecimento, persiste uma resistência quando as operações

mentais e o campo da emoção são aproximados de uma explicação proveniente dos processos

biológicos. Aceitar que o mistério infindável e “imaterial” dos conteúdos mentais, emoções e

Page 126: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

126

sensações do ator se explicaria por sua dependência dos circuitos cerebrais e corporais, sem que,

com isto, se destrua a grandeza e a complexidade da condição humana, tão dimensionada

ficcionalmente no teatro, pressupõe uma importante mudança de perspectiva para o

entendimento das relações entre corpo e mente.

A psicofisiologia de Stanislavski e a biomecânica de Meyerhold podem ser consideradas

como soluções para o problema mente-corpo, já enunciados por Diderot e sistematizados por

Lewes, como os aspectos objetivos e subjetivos da ação do ator. A incursão de Lewes ao

subconsciente formata o “aspecto subjetivo” do problema da unidade corpo e mente, levando ao

entendimento de que os impulsos movem do interior do corpo para o exterior, onde o tremor

físico desencadeia o ato. No “aspecto objetivo” o processo se inverte, é quando o ato excita o

tremor físico, gerando, conseqüentemente, as emoções. Lewes (apud ROACH, 1985) explicava

a consciência dividindo-a em duas regiões: a “sensação especial”, cabendo a atuação dos cinco

sentidos (visão, audição, tato, olfato, paladar) e a “sensação sistêmica”, um mundo submerso de

sensações involuntárias, ou seja, um subconsciente, pronto a emergir à consciência por meio de

impulsos ou tremores que se moveriam do interior para o exterior e, ao mesmo tempo, do

exterior ao interior do corpo, excitado pelo ato físico.

As questões referentes aos conteúdos inconscientes já eram matéria de interesse de

Diderot. No estudo sobre a memória, ressaltava que o cérebro “receberia resíduos de

impressões caóticas de tudo o que percebemos do mundo sem que tenhamos conhecimento

delas.” (ROACH, 1985, p. 146). Para Diderot, a memória teria duas implicações na atuação: em

termos de performance, nas suas relações com padrões de movimentos faciais e corporais, e em

termos de criação de um modelo interno, desencadeando uma discussão que é categorizada no

século XX como memória afetiva61. O contato com pintores e escultores refinou as reflexões de

Diderot sobre o papel dos processos técnicos e mecânicos na formatação das energias criativas.

A questão da imitação da natureza, passa a ser mais uma ilusão da realidade na mente do artista,

do que a cópia fiel desta. A noção de “modelo interno” ou a criação de “uma coleção de

imagens que formam uma pintura na mente do artista”, salienta Roach (1985, p. 127), é

empregada de forma pioneira por Diderot, e demonstra que a questão da imagem já se impunha

como estratégia de conhecimento para o ator. A investigação dos fenômenos da natureza, seja

na arte ou na ciência, passaria por métodos subjetivos e objetivos, com a cabeça a controlar os

processos. A premissa fisiológica de Diderot descreve o corpo ainda como uma máquina, de

acordo com o pensamento filosófico de sua época, mas dotada com propriedades pulsantes 61 Seguindo a herança do pensamento de Diderot, são os estudos sobre memória afetiva de Théodule Ribot as referências para a construção do conceito de memória emotiva desenvolvido Stanislavski.

Page 127: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

127

vitais de movimento e consciência.

Com referências a não regularidade da máquina corporal humana, Diderot aponta para a

importância da formação de imagens bem construídas na mente acerca do papel a ser

representado para a efetivação da performance no corpo. A criação artística estaria na formação

do modelo interno na mente, uma espécie de modelo ideal, e o corpo seria uma máquina

sensível à fabricação e demonstração destes modelos.

A fisiologia das operações mentais é descrita através da metáfora da vibração sensitiva

dos nervos e, com ela, explica-se a base física da memória e da imaginação. A memória

também suscita, para Diderot (1979), metáforas como a do cérebro enquanto uma massa de cera

que recebe novas impressões ao mesmo tempo em que revive as antigas. Numa analogia

poética, Diderot define a consciência, na obra O sonho de Alembert, comparando a mente e o

corpo a uma aranha e sua teia, que, a cada vibração sensitiva, converte os impulsos ao longo dos

nervos e a memória seria

a propriedade do centro, o sentido específico da origem da rede

tecida. [Os fios estão em toda parte, como uma rede, formada

pelo corpo e a aranha está animada] em uma parte da cabeça, [...]

as meninges, à qual não se poderia tocar sem amortecer toda

máquina. [...] se um átomo faz oscilar um dos fios da teia da

aranha, ela recebe o alarme [...]. No centro, é instruída de tudo o

que se passa em qualquer ponto que seja do imenso apartamento

que atapetou. (DIDEROT, 1979, p. 101-103).

A aparente contradição das metáforas orgânicas e mecânicas se sucede no discurso de

Diderot em sua descrição das funções do organismo e comprova que modelos de pensamento

não são tão excludentes e nem facilmente cambiáveis. Substitui, em sua teoria, a noção de

tubos e espíritos animais em favor de uma terminologia mais moderna, que opera em torno de

uma rede de fibras nervosas, tal qual uma aranha (mente) no centro de sua rede (corpo), por

meio, contudo, de uma matriz mecanicista e centralizadora.

O subconsciente era interpretado por Diderot como depositário de memórias e

imaginação, no sentido psicológico pré-freudiano, mas que já denotava que o homem não

poderia ser explicado inteiramente por sua consciência. As filosofias do inconsciente anteriores

Page 128: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

128

a Freud colocavam em jogo outras forças irracionais e ativas. Carl-Gustav Carus62, descreve o

diálogo incessante entre consciente e inconsciente como responsável pelo surgimento das

energias criadoras da natureza: “O inconsciente é a expressão subjetiva que designa o que

objetivamente conhecemos sob o nome de natureza.” (CARUS, apud FILLOUX, 1988, p. 45).

O sentimento, segundo Carus, também não pode ser compreendido sem a recorrência ao

inconsciente, pois

[...] tudo o que trabalha, sofre, cria, age, fermenta na noite de

nossa alma inconsciente [...] tudo isso sobe como um acento

muito particular, da noite inconsciente para a luz da vida

consciente, e a esse acento, a essa maravilhosa confidência do

inconsciente ao consciente, chamamos de sentimento. (CARUS

apud FILLOUX, 1988, p. 48).

Segundo este entendimento, o conhecimento da vida psíquica consciente e criativa tem

na região do inconsciente sua chave, como Stanislavski supunha.

Stanislavski, cuja descrição guarda similitudes com a de Carus, descreve o

subconsciente como inspiração e como criação, não acessível ao intelecto, e a forma de buscá-

lo, sobretudo, seria por meio do sentimento e de um “objetivo emocionante e em sua linha

direta de ação”. Quando o ator está completamente direcionado a um “objetivo comovente, num

estado de inspiração, quase tudo o que ele faz é subconsciente, e ele não tem noção consciente

de como efetua seu propósito.” (STANISLAVSKI, 2000, p. 363). A busca pela unidade dos

aspectos físicos e psíquicos permeia toda a evolução da pesquisa de Stanislavski, considerando

que a relação entre corpo e alma é indivisível, e em todo ato físico há um elemento psíquico e

todo ato psíquico é um ato físico. No desenvolvimento de sua teoria, inicialmente enfoca o

trabalho do ator sobre si mesmo nos aspectos subjetivos, incluindo a doutrina da memória

afetiva como acesso aos conteúdos subconscientes. É no final de sua vida, contudo, quando

concebe o método das ações físicas, que a premissa psicofísica se torna mais pragmática.

O sistema de Stanislavski é, acima de tudo, um meio de manipular níveis de consciência 62 Carl-Gustav Carus (1789-1869), pintor, desenhista, filósofo, médico e psicólogo. Um dos importantes teóricos da pintura romântica, publicou Nove Cartas sobre a pintura de paisagem (1831), e discutiu a questão do inconsciente em Curso de Psicologia (1831) e Psique (1846).

Page 129: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

129

para proporcionar ao ator um expressivo controle sobre seu corpo e suas energias criativas

inconscientes, de forma a alcançar certos efeitos específicos, especialmente a ilusão da

espontaneidade. “Permitam-me recordar o nosso princípio cardeal: por meios conscientes

alcançamos o subconsciente.” (STANISLAVSKI, 2000, p. 215).

Em sua prática com os atores, Stanislavski já percebia que a visão de que o ator controla

e coordena seu processo cognitivo era questionável, bem como a hegemonia da mente

consciente frente aos estados inconscientes. A certeza de que o ser humano possui

possibilidades expressivas, e que não é dado a conhecer tão facilmente, o fez inserir as questões

do subconsciente como matérias de interesse do ator em seu processo criativo, bem como as

possibilidades de controle e acesso a este universo.

As reflexões de Stanislavski acerca do trabalho do ator e suas ações, vontade,

sentimentos e sobre a possibilidade ou não de controle sobre os processos cognitivos que

propiciam a ação criativa surgem em torno da relação consciente-inconsciente: “não está no

âmbito da consciência humana a execução deste trabalho oculto e, assim sendo, o que está além

de nossos poderes é realizado pela própria natureza em lugar de nós.” (STANISLAVSKI,1995,

p. 251). Para ele, o ator não convoca o estado criativo por seu ato volitivo, apenas pode permitir

que ocorra mediante o trabalho sobre suas ações físicas, se conectando com o que chama de

expressão da natureza. O trabalho sobre as ações pressupunha, para Stanislavski, um ponto de

vista da experiência humana, do corpo do ator em ação no mundo, e não o que o diretor

chamava de análise fria e racional. O que Stanislavski (1995, p. 250) chamou de nova e feliz

qualidade de “auto-análise induzida naturalmente”, em contraponto ao que denominava de

análise cerebral: “Absolvidos nas ações físicas, não pensamos nem temos consciência do

complexo processo interior de análise que, naturalmente e imperceptivelmente, vai ocorrendo

dentro de nós.”

O ator pode estabelecer um conjunto de ações, tais como os “yogis da Índia”, como

meios preparatórios conscientes com seu corpo, mas não tem como controlar o que emerge de

seu subconsciente, afirmava Stanislavski (1995). O ator tem que convocar seu corpo, via ações,

para estabelecer algum tipo de comunhão com seu inconsciente – já que, para o diretor, este não

é acessível ao cérebro ou pensamento, mas sim aos sentimentos e às emoções criadoras. O ator

precisa saber como “pegar uns punhados de pensamentos e jogá-los na sacola de seu

subconsciente”, deixando-os agir por si mesmo (STANISLAVSKI, 1995, p. 96). Resta ao ator,

complementa Stanislavski, estabelecer uma constante conexão de informações, conhecimentos

e experiências e manter-se em contato com seu ambiente, abastecendo a memória com estudo,

leitura e observação. E achar a justeza de suas ações, evitando os clichês e qualquer espécie de

Page 130: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

130

atuação convencional. Como o teatro carece de causas naturais, o desafio do ator consistiria em

manter este fluxo de estímulos de forma espontânea.

Interessado em um método que abrisse os mais profundos níveis do subconsciente,

Stanislavski experimentou vários estímulos criadores que poderiam exercitar as respostas

reflexivas apropriadas para a formulação de sua técnica psíquica. Ele invocou, inicialmente, os

processos de memória e imaginação, para, finalmente, ater-se a concretude das ações físicas,

que poderiam ser mais conscientemente manipuláveis, sempre com a finalidade de desencadear

as emoções criativas e outros conteúdos inconscientes. O diretor chama a atenção para o estudo

do subconsciente como uma importante região que é parte fundamental do seu sistema:

Nossa mente arranja, impondo-lhe um pouco de ordem, os

fenômenos do mundo exterior que nos cerca. Não existe uma

linha demarcatória nítida entre a experiência consciente e a

subconsciente. Nosso consciente muitas vezes, aponta a direção

em que o subconsciente continuará a tarefa. Portanto, o objetivo

fundamental de nossa psicotécnica é colocar-nos em um estado

criativo no qual o nosso subconsciente funcione naturalmente.

(STANISLAVSKI, 1995, p. 335).

Stanislavski reconhece a impossibilidade de se adquirir controle sobre a esfera do

subconsciente, cabendo apenas o desenvolvimento de um método de abordá-lo e se render ao

seu “poder natural” e, ao mesmo tempo, não estar à mercê da ação das emoções. Para tanto,

buscou desenvolver uma psicotécnica consciente para despertar a criatividade subconsciente da

natureza, esta “terra prometida.” (STANISLAVSKI, 1995, p. 349). E este método não diz

respeito somente à imersão nos conteúdos interiores não conscientes, por meio da convocação

da memória ou de sua emergência natural, ou de atitudes voluntárias, via ação física, mas,

também, nas simples ocorrências do exterior e nos pequenos acasos. São aquelas situações que

não são, necessariamente, ligadas ao personagem ou as circunstâncias do ator, mas que devem

ser consideradas, pois injetam “um pouco de vida real no teatro e que instantaneamente nos

arrebata para um estado de criatividade subconsciente.” (STANISLAVSKI, 1995, p. 339).

Quaisquer ocorrências espontâneas, tais como uma cadeira que cai em cena ou uma reação da

platéia, e que, devidamente aproveitadas, poderiam ser excelentes meios para aproximar o ator

do seu subconsciente.

Stanislavski acreditava num fluxo de consciência sustentado, e constantemente

Page 131: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

131

redirecionado, por impulsos subconscientes e estímulos sensórios. Demonstra, através de seus

escritos, estar ciente, de certa forma, de toda a complexidade inerente a um organismo vivo, em

seus ajustamentos constantes com o ambiente e entre os níveis conscientes e inconscientes, bem

como nas operações do acaso. Ajustamentos estes que caracterizam a busca de um pensamento

menos cartesiano e mais sistêmico acerca do corpo em ação, visivelmente presente nas teorias

cognitivas da atualidade.

A visão de mente, proposta por inúmeros filósofos cognitivistas na atualidade,

redimensiona o conceito de razão, a faculdade que define e guia o ser humano em sua conduta e

ações, e cujo controle visto, até então, como “consciente” diferencia-nos dos outros animais.

Lakoff e Johnson (1999) advertem que a maior parte de nossos pensamentos são inconscientes,

abaixo do nível consciente da cognição em sua operacionalidade, ou seja, pouco acessível à

consciência pela extrema rapidez e complexidade de conexões, impossíveis, ainda, de serem

aferidas e observadas conscientemente, mais do que pelo caráter repressor, no sentido dado pela

psicologia freudiana. O que os levou ao conceito de inconsciente cognitivo.

Nas ciências cognitivas, o termo “cognitivo” é usado para qualquer tipo de operação

mental ou estrutura envolvida em aspectos como a linguagem, percepção, sistemas conceituais e

racionalização. Lakoff e Johnson nomeiam de inconsciente cognitivo toda operação mental

concernente a sistemas conceituais, significados, inferência e linguagem. Muitas destas

operações mentais são inconscientes, no sentido de que não é possível termos consciência sobre

todo o processo que as envolve, por sua complexidade. Os padrões mentais-corporais que

possuímos advém destes processos e no ato de volição63, usamos uma razão formatada pelo

corpo, por uma cognição inconsciente a que não temos acesso direto e por pensamentos

metafóricos o qual nós pouco percebemos. Lakoff e Johnson (1999, p. 13) reafirmam que a

razão não é puramente literal, mas largamente metafórica e imaginativa, nem é puramente

racional, mas emocionalmente engajada. Lembrando que, como vimos, a razão metafórica

citada em Lakoff e Johnson refere-se a associações conceituais que permeiam o ato cognitivo,

como um todo, e que ganham complexidade com a experiência. São conexões neurais

associadas à experiência sensória motora. O ato pensante e o ato consciente passam a ser

entendidos como implementados no corpo em ação no mundo, não mais como atributo de uma

razão descolada, ou anterior, à experiência. A mente, pela lente de grande parte das teorias das

ciências cognitivas, é encarnada, corporificada, e não responde exclusivamente a uma condição

a priori.

63 Considerado pelo senso comum como o processo pelo qual a pessoa adota uma linha de ação; atividade consciente que visa um determinado fim manifestado por intenção e decisão.

Page 132: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

132

O inconsciente freudiano faz alusão a conteúdos de uma “psicologia da

profundidade”, vistos os processos psíquicos inconscientes mais abissais e estranhos, e não

como automatismos psicológicos, até então descritos pelos estudos anteriores a Freud. O

conceito de inconsciente, em Freud, está relacionado ao de repressão de desejos, espécie

particular de defesa psíquica frente à perda de unidade do sujeito. Com bases em evidências

obtidas a partir das neurociências e da psicologia cognitiva, o conceito de inconsciente vem

ganhando cada vez mais um status científico, considerando que o inconsciente é anterior a toda

a repressão freudiana e abarca um campo de fenômenos mais amplo. Os processamentos

inconscientes deixaram de ser vistos como versões débeis, irracionais ou ilusórias dos processos

conscientes, já que ambos, consciente e inconsciente, cumprem um papel ativo, construtivo e

controlador das ações. A história tem dado razão a Freud acerca do poder da vida inconsciente e

suas relações com estados afetivos, ações e pensamentos conscientes. Ainda que o tipo de

descrição freudiana do processamento do psiquismo inconsciente venha sendo revista, foi

precisa em sua época.

Afinal, de que tratamos quando falamos de uma ação consciente, hoje? E dos conteúdos

inconscientes? A consciência, sob o ponto de vista das ciências cognitivas, seguindo ainda a

metáfora criada por Freud, parece ser só a “ponta do iceberg”. Lakoff e Johnson (1999, p. 13)

defendem a hipótese de que o pensamento inconsciente representaria 95% de todo o processo

mental e o pensamento consciente seria igualmente o topo de um imenso iceberg. Entretanto,

esta alta porcentagem abaixo da superfície da consciência é que formata e estrutura todo o

pensamento consciente. Todo ser vivo categoriza, e a forma com que efetua esta categorização

depende do aparelho sensitivo e motor, ou seja, a categorização não é produto exclusivo de uma

consciência separada. São nossos corpos que moldam nossas possibilidades de conceitualização

e categorização e somente uma pequena porcentagem de categorias é formada conscientemente.

O homem e sua possibilidade de conhecer é estudado por toda a filosofia, mas é a visão

consolidada por René Descartes (1596-1650), em que a mente é a garantia das faculdades de

pensar e conhecer, bem como o fato de existirmos a partir dela, a que referencia mais

contundentemente a noção ocidental de consciência e o ponto de partida para a revisão do

dualismo. Em relação à emergência da consciência, há uma idéia que persiste, fortemente

impregnada no pensamento ocidental moderno e oficializada pela filosofia dualista de

Descartes, – a de que os “simples” impulsos nervosos não poderiam ser a substância que

poderia nos dar consciência (DENNETT, 1997, p. 69). Eles precisariam, de alguma forma,

serem traduzidos e enviados para algum outro meio maior, uma espécie de comando central que

recebesse toda a informação e dirigisse o corpo. A idéia de que a rede neuronal em si mesma

Page 133: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

133

poderia dar conta do corpo e dos processos de cognição e consciência, seria por demais

reducionista para a sua época. Descartes pensava que a glândula pineal era quem fazia a

tradução do meio físico para o não físico, para uma “misteriosa mente”. O acionamento entre

corpo e alma se daria pelo cogito, através dos processos biológicos da glândula pineal que, em

sua época, eram vistos mais como processos mecânicos. A biologia, contudo, já estaria presente

nas preocupações de Descartes, que se interessava pelo seu estudo enquanto manifestação do

ser vivo, e não sobre a dissecação do animal morto.

Para a teórica francesa Annie Bitbol-Hespériès (1990), o cartesianismo não privilegia

totalmente o espírito ou a mente sobre o corpo, como coloca o senso comum, inclusive

científico. Descartes teria construído uma teoria do conhecimento que, mesmo amparada no

cogito, que é o que possibilita pensarmos, duvidarmos e, consequentemente, conhecermos, se

concretiza no corpo. Ainda que estudos revisores chamem a atenção para a possibilidade de um

outro tratamento para o ato de pensar e o papel do corpo nas questões do conhecimento, já em

Descartes, o filósofo não se salvou de ser considerado, ainda hoje, mais do que Platão, como o

grande vilão do dualismo corpo e mente. Hoje em dia, sentencia Dennett (1997), quase ninguém

que trabalha com a mente acredita que haja um meio não físico como este, nem tampouco

crêem em seu poder centralizador. Mas, mesmo entre os que buscam combater a visão de

Descartes, ainda há uma tendência de tratar a mente ou o cérebro como “o chefe do corpo, ou o

piloto do navio” (DENNETT, 1997, p.73). Independente das especificidades dos estudos sobre

a relação mente e corpo nas ciências cognitivas, a noção de uma mente encarnada, ou de um

corpo não separado da mente é consenso.

A consciência seria a parte da mente relacionada ao sentido manifesto do eu e do

conhecimento, sendo que a mente não é apenas a consciência. De acordo com Damásio (2000),

ter consciência é ter um sentido de si mesmo no ato de conhecer, sob a perspectiva de que os

níveis de percepção e consciência que delineiam os estados de presença do corpo em ação no

mundo são constantemente reconstruídos e não temos controle de todos os processos que

envolvem este ato. A consciência ocorreria em pulsos, sendo cada pulso individualmente

desencadeado pelos objetos com que interagimos ou que evocamos. A sensação de si mesmo e

os processos de consciência provém destes pulsos e a continuidade da consciência seria gerada

pela constância e abundância do fluxo de narrativas não verbais, denominadas por Damásio

(2000) como imagens.

Os padrões neurais que se tornam imagens constituem as narrativas mentais e são

incorporadas ao fluxo de pensamento. A analogia a um filme que ocorre no cérebro só pode ser

absorvida, como lembra Damásio, se entendermos que não somos espectadores externos, como

Page 134: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

134

num teatro cartesiano, mas estamos no filme. Ou melhor, somos o filme.

Somos conscientes de algo, quando temos um sentido do eu manifesto na interação com

algo percebido (real) ou evocado (memória), e dos aspectos de dentro e fora do organismo.

Temos consciência quando nosso organismo constrói um tipo de “conhecimento sem palavras”,

uma forma de sentimento por relatos imagéticos. A mente existe por que há um corpo que lhe

fornece os seus conteúdos básicos, por outro lado, salienta Damásio (2004, p. 218), a mente

executa tarefas que são cruciais para o corpo, como o controle da execução de respostas

imediatas e automáticas e a antevisão e planejamento do futuro em novas soluções de ações. As

imagens que sentimos fluir em nossas mentes são reflexos da interação entre corpo e meio.

A perspectiva neurobiológica acerca da consciência prevê não só o estudo de como o

cérebro cria imagens na mente, mas, sobretudo, de como estas imagens são percebidas como

sendo de cada indivíduo, formatando o sentido do eu. Lembrando que a noção de imagem

abrange qualquer modalidade sensória, como as sonoras e de movimentos no espaço, e não só

as visuais, como nos descreve Berthoz (1997) acerca dos nove sentidos que possuímos. Estas

imagens dizem respeito ao mundo dito externo e ao interno, como os estados viscerais, a

estrutura esqueleto-muscular e movimentos do corpo e, também, aos processos de memória.

Estas imagens são formadas substancialmente, de acordo com Damásio (2004), na região

cortical mais primitiva. A noção de consciência carrega, inevitavelmente, a noção de

subjetividade, e se assumimos que nosso cérebro-mente é capaz de gerar subjetividade, parece

razoável deduzir que haveria um agente deste processo. Mas o que Damásio chama de self, ou

eu, num sentido cognitivo, é a estrutura neural e estado neurobiológico que nos ajuda a

presumir, sem a inferência baseada na linguagem, que a imagem que percebemos é nossa e de

ninguém mais.

O cérebro que os cientistas cognitivos estão investigando em nada lembra a concepção

de um painel de controle efetuado por um usuário. O self, a alma ou o eu, como queiramos

chamar, para as neurociências, seria uma rede dos sistemas cerebrais (PINKER, 2004, p. 69). O

que não impede que sintamos que existe um eu que, aparentemente, é único e que sente emoção

e que responde por nossas percepções e ações. A mente consciente, contudo não é o chofer

onipresente que controla e direciona o modo como agimos, mas “simplesmente conta uma

história sobre nossas ações”, conforme afirma Pinker (2004, p. 71). Esta noção do eu não se

propõe a explicar todo o processo de emergência da consciência, tampouco implica num

entendimento de que as imagens são manipuladas e controladas por uma central única

localizada no cérebro. A idéia não é ancorada nos pronomes, “eu ou meu”, especialmente na

usual descrição de um “homúnculo” dentro do cérebro, capaz de interpretar as imagens, como

Page 135: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

135

num teatro cartesiano.

Quando fala de imagens que geram o modelo interno, é natural que Diderot as

associasse às imagens visuais da pintura, já que era essa área artística a que mais norteava os

estudos estéticos da época e a visão tida como o órgão sensorial privilegiado do cérebro. Já

Stanislavski, alia às imagens visuais as auditivas. A criação e manipulação de imagens mentais

(idéias e pensamentos) não só direcionam procedimentos estéticos eficientes, como bem

apontaram Diderot e Stanislavski, mas são operações essenciais para que os processos mentais

existam. Em organismos complexos como os nossos, como afirma Damásio (2004, p. 205), a

capacidade do organismo de responder a estímulos, de forma deliberada ou automática, depende

da geração destas imagens, tanto as externas, como as auditivas, táteis, olfativas e gustativas,

como aquelas imagens do interior do corpo, como a dor e o mal-estar.

Os padrões de luz e de som são captados por ondas sensitivas no olho e no ouvido, e o

contato com a pele ativa terminações nervosas, processos estes que formatam as imagens (as

chamadas “imagens da carne” e as provenientes de “sondas sensitivas”). A gama de imagens

das alterações corporais mapeadas no cérebro vão dos fenômenos químico-elétricos

microscópicos a suas manifestações macroscópicas, como o mover de um membro do corpo.

Damásio salienta que as imagens não são guardadas intactas num lugar, armazenadas sob a

forma de fotografias ou fac-símiles de coisas, acontecimentos, palavras, pessoas, prontas para

serem desengavetadas, mas são momentaneamente construídas e reconstruídas num conjunto de

áreas, sendo que cada uma das áreas possui uma complexidade e a rede de interconexões é

ainda mais intrincada. Não se trata de um centro de comando, mas de uma rede interada de

áreas no cérebro.

Teríamos dois processos de conhecimento consciente irrigados pelas imagens,

nomeados por Damásio (2000) como a consciência central e a consciência ampliada. A

consciência central refere-se ao aqui e agora, e ocorre por meio de narrativas imagéticas que

emergem em tempo real e que não permanecem estáveis ou preservadas em sua essência. Estas

interagem com o fluxo de narrativas provenientes da consciência ampliada, que constitui as

memórias do passado e a antevisão do futuro, e que, por sua vez, também se modificam a partir

da experiência vivida no momento presente (DAMÁSIO, 2000, p. 228). A consciência

ampliada tem a competência de aprender, e com isso, registrar as infinitas experiências,

conhecidas graças à consciência central, e de reativar estes mesmos registros, “de modo que eles

possam gerar um sentido do eu (self) no ato de conhecer, e assim, ser conhecidos.”

(DAMÁSIO, 2000, p. 253). Sendo que, a cada momento, o cérebro reconstrói o sentido do eu.

Como salienta Damásio, nosso eu não é esculpido em pedra, resistente a transformações, mas

Page 136: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

136

um estado do organismo, um padrão vulnerável de operações integradas que tem como

finalidade a sua própria sobrevivência. Os níveis de percepção e consciência delineiam os

estados de presença do corpo em ação no mundo, e são constantemente reconstruídos. A

continuidade da consciência provém do abundante fluxo de narrativas não verbais (imagens) da

consciência central (o aqui e agora) e estas narrativas não permanecem estáveis, preservadas em

sua essência, mas interagem com o fluxo de narrativas provenientes da consciência ampliada

(memórias do passado e a antevisão do futuro), que, por sua vez, também se modificam a partir

da experiência vivida no momento presente (DAMÁSIO,2000, p. 228). O que Damásio

considera como o estudo da base neural do eu poderá auxiliar a esclarecer o processo de

subjetividade, a característica chave para a consciência.

A memória das imagens não seria uma estratégia para lembrarmos do passado somente,

mas uma ferramenta de predição do futuro. É baseada nelas, em conjunção com as imagens

geradas em tempo presente, que selecionamos as informações e agimos no mundo. Desta forma,

a ação consciente do ator emerge de movimentos orquestrados em uma rede de memórias,

percepção do momento presente e antevisão do futuro sem o controle intencional deste,

necessariamente. Há um terreno desconhecido e criativo, como se refere Stanislavski (1995),

que não depende plenamente da intenção do ator, e que pode ser acionado, em parte, pelo

exercício de sua vontade, no que é comumente entendido como processo consciente. Ainda que

haja um detalhamento anterior preciso de suas ações, a conexão do ator com o momento

presente contribui para que se desencadeiem espaços de imprevisibilidade. A cada informação

que adentra o organismo, a interação entre a consciência central e a ampliada tratará de

conformar um estado particular a cada ação, singularizando-as. Se o ator trabalha sobre si

mesmo, no sentido de estar em estado atentivo ao momento presente, poderá perceber o espaço

de estados de seu organismo e do meio.

A condição de ascender à ação justa, para Stanislavski e Grotowski, contudo, é o

afastamento de um tipo de consciência analítica. Descrentes das habilidades discursivas da

mente e do cérebro em desencadear um ato “total” do ator, estes diretores propuseram um ator

que pensa com o seu corpo, com suas ações, manifestando-se contra o controle do corpo por

uma espécie de “discursividade” da mente, ou do que denominam de racionalidade do cérebro,

sob o argumento de que tais propriedades não dariam conta do pleno exercício das

potencialidades inventivas do ator. Para eles, o corpo sabe mais e pode mais que sua

compreensão admite, e possui inteligência. Em sua relação com o mundo, há uma faculdade de

invenção e adaptação que é própria do corpo em ação no mundo, e que ludibria a consciência e

o intelecto, ao mesmo tempo em que pode ser bloqueado por estas. Da mesma forma, o cérebro

Page 137: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

137

conhece mais do que a mente consciente revela (DAMÁSIO, 2000, p. 63). Fazer calar a mente

discursiva implica em criar condições de “silêncio”, em que não há que se pensar para agir.

Pode-se pensar não na ausência de consciência, mas num tipo de consciência “pré-reflexiva”,

mais imediata e menos mediada por verbalizações internas, e distribuída no organismo como

um todo. O corpo, neste sentido, não é um objeto técnico, mas um estar no mundo. Grotowski

adverte que o estado de consciência não significa formar um “observador interno”, pois a auto-

observação excessiva pode bloquear as reações “naturais”. Richards (1996) descreve o processo

que envolve o corpo, a mente e a emoção, no entendimento de Grotowski. O corpo age, a mente

evoca as imagens precisas e a emoção emerge de acordo com o que a mente e o corpo estão

fazendo. Devidamente ativado, o corpo encontra o caminho natural da organicidade. E a mente,

por sua vez, aprende o momento de ser passiva, de não bloquear o corpo. A mente não seria a

única soberana, o corpo teria seu próprio modo de pensar.

Vivendo em épocas e circunstâncias diferentes, Stanislavski e Grotowski mantiveram a

idéia de teatro como campo de investigação prática da experiência humana. Nesta premissa, a

palavra russa “perezivanie”, utilizada muitas vezes por Stanislavski em seus escritos, representa

um conceito chave para descrever o processo do ator. O termo foi traduzido para o inglês

associado à palavra “feeling” (emoção), já a tradução nas línguas escandinavas estaria mais

próxima de uma “escuta ou consciência afetiva, atentiva”, e de uma “experiência consciente.”

(MAGNAT, 2000, p. 6). Este sentido seria o germe da pesquisa empreendida por Grotowski,

com sua noção de que o processo performativo do ator seria simultaneamente “passivo na ação

e ativo no olhar”, implicando num tipo de percepção e consciência. O estar passivo significa

estar receptivo, e o ativo, estar presente. Para Grotowski, a idéia de consciência não estaria

ligada à linguagem ou pensamento racional, mas à idéia de presença, por sua vez, ligada a

percepção e consciência do momento presente. O ator é desafiado a fazer de fato, no aqui e

agora, no tempo presente, no sentido de uma experiência consciente vivida “sempre como a

primeira vez”, e não “como se fosse a primeira vez”, afirma Magnat (2000, p. 9). O aparente

paradoxo do método de ações físicas elaborado por Stanislavski e aprofundado por Grotowski

reside na reprodução de uma partitura física precisa, que possa ser repetida, mas com a

vivacidade de uma primeira vez. O ator, neste sentido, deverá estar atento para não engessar as

suas ações previamente compostas, introduzindo pequenos elementos que, naturalmente,

emergem no tempo presente ou deixando-os acontecer. Considerando que o organismo re-

organiza constantemente e as ações não se repetem sempre da mesma forma e se singularizam a

cada momento, a consciência central e a ampliada permitem a repetição aliada à invenção.

Grotowski (1992, p. 15) fala dos processos mentais como um “esforço sem esforço”, por

Page 138: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

138

meio de uma via negativa. Não no sentido de dominar positivamente o corpo, considerado

instrumento, e dotá-lo de habilidades virtuosas estabelecidas, mas de afiná-lo com o meio,

aberto para a experiência do jogo teatral e as situações menos pré-dadas. Em sua metodologia

de trabalho com os atores, Grotowski (1992, p. 15) descreve o estado necessário da mente:

“uma disposição passiva a realizar um trabalho ativo, não um estado pelo qual ‘queremos fazer

aquilo’, mas ‘desistimos de não fazê-lo’”, contrariando o que se entende comumente por ação –

aquele ato voluntário e escolhido. O diretor polonês indica que é necessário bloquear a mente

discursiva e deixar o corpo manifestar-se com sua inteligência própria, propiciar espaços para a

manifestação do corpomente, fontes estas presentes no processo investigativo acerca das

tradições e seus rituais64.

O pensamento em ação, ou o pensamento não dissociado do movimento implica num

tipo de processo cognitivo engajado no tempo presente, e sem os aspectos creditados a uma

mente discursiva, pronta a se fazer valer de seus julgamentos analíticos. Não que a mente pare

de pensar, o que seria, a principio, humanamente impossível, mas que ela se funda em tempo

presente nas ações. É quando o pensamento se faz corpo, se faz ação. Fazer difere de agir,

entendida a ação como ignição, e não o produto do pensamento. Ao criticar a herança filosófica

cartesiana, Merleau-Ponty (2004), em O olho e o espírito se vale da meditação sobre a pintura,

em especial a de Cézanne, para estabelecer uma crítica ao pensamento reflexivo e requisitar

uma nova filosofia. Filosofia esta feita não pela expressão de opiniões sobre o mundo através de

um pensamento “puro”, mas com um tipo de pensamento que anima a pintura no instante em

que a visão do artista se faz gesto, quando, por exemplo, Cézanne “pensa pintando”. Neste

sentido, a visão do pintor não é um simples olhar sobre um objeto fora dele, mas uma relação,

uma lógica de pensamento contida no ato.

O apresentar as ações em ação pressupõe um tipo de comprometimento do ator, uma

atenção que requisita um dado estado do eu. A ação se coloca como processo de estados e não

como o resultado final exterior da expressão de um estado interior anterior, processo

comumente atribuído à emissão do gesto, no entendimento da estética clássica. Na tentativa de

encontrar um signo corporal mais icônico, um signo “orgânico” cuja forma possua sua própria

lógica, Grotowski (1992, p. 98) buscou ultrapassar a concepção expressiva do gesto

reivindicando uma produção gestual que seja fundadora, e não ilustradora dos tais estados de

64 Aproximando estes conceitos da filosofia taoísta, mais precisamente ao princípio wu-wei, encontraremos similaridades com o procedimento de Grotowski, já que este princípio versa sobre a não ação. Na aparente não ação, há um mundo de movimentação, planejamento, expectativa e elaboração. O wu-wei inspira-se na ação do tigre que, antes de se lançar à presa, se posta numa aparente imobilidade, embora esteja em estado de plena atenção, concentração, força e objetividade para atingir seu alvo (AMARAL,1984, p. 11).

Page 139: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

139

alma: “O ator não deve utilizar seu organismo para ilustrar um movimento da alma, deve

realizar este movimento com todo o seu organismo”.

O corpo, ora meramente visto como comandado por um cérebro “inteligente”, começou

a ser percebido, cada vez mais, como possível entidade “pensante”. A consciência não estaria

localizada somente no cérebro, mas presente em todo o organismo, produzindo uma visão de

corpo menos segmentada e dualizada. A relação corpo (entendido como não separado da mente)

e conhecimento sugere a perspectiva do corpo que pensa sua ação em ação, ou seja, um

pensamento em ação, ou um corpo que pensa. Fruto das reflexões nos ensaios de Tartufo,

Stanislavski salientaria que a ação seria a “transmissão de um pensamento próprio”, onde todas

as idéias, palavras, percepções visuais e energias do ator deveriam ser dirigidas sem que o

“objetivo cerebral” se interponha e prive a intuição (TOPORKOV apud JIMENEZ, 1990, p.

322). Laban (1978, p. 42) discorre sobre o pensamento motor, de um pensar em movimento que

se opõe a um pensar em palavras, pois não necessita da formalização da linguagem para surgir.

O pensamento motor estaria, para ele, liberado dos circuitos da consciência requisitados pelo

pensamento em palavras. Para que o ator alcance uma organicidade maior, Grotowski (1992)

diferenciou o pensar em movimento e o pensar em conceitos, sob uma lógica semelhante à de

Laban.

Importa saber se, de fato, o corpo pensa, ou é somente uma metáfora eficiente para dar

ignição à práxis do ator. A idéia de que o pensamento se estrutura por meio do sistema sensório-

motor e de que há uma inteligência própria do corpo foi discutida por Piaget e tantos outros

teóricos do conhecimento e da aprendizagem no século XX. As neurociências, por sua vez, têm

contribuído neste sentido quando apontam para os processos de representação neural ocorrendo

no corpo como um todo, e não somente numa mente ou cérebro geograficamente localizados

(Damásio,1996). A frenologia, idéia de que um centro cerebral produz as grandes funções

mentais tais como memória, emoção, sentimento, consciência e movimento, já foi

exaustivamente revista. Ainda que certas regiões do cérebro sejam altamente especializadas, os

processos da mente e do comportamento resultam da função coordenada de muitas regiões e

sistemas integrados do corpo como um todo.

Ainda não há uma idéia clara de como funciona o cérebro. As teorias tendem a cair em

dois campos antagônicos, o da modularidade e do holismo. A primeira sustenta que diferentes

partes do cérebro são altamente especializadas em determinadas capacidades mentais,

responsáveis pela linguagem, memória, reconhecimento de fisionomia etc. Estas regiões seriam

autônomas, cada uma executa sua tarefa e passa o “bastão” para a região seguinte sem muita

“conversa”. A vertente holista é conhecida hoje como conexionismo, que entende as áreas

Page 140: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

140

cerebrais como conectadas, funcionando como um todo, e podendo muitas áreas ser recrutadas

para múltiplas tarefas (RAMACHANDRAN, 2002, p. 34). O cérebro, para este autor, parece ser

uma estrutura dinâmica que emprega os dois modos de forma recíproca e extremamente

complexa. Neste sentido, a localização seria uma forma legítima de se entender como funciona

o cérebro, desde que estejamos cientes de que esta visão não detém todas as respostas. A

interação diz mais do que o entendimento solitário da estrutura e função de cada módulo.

A noção de um pensamento em ação não trata somente de um corpo que pensa enquanto

se move no espaço, mas de uma estratégia cognitiva que se faz em ação, um pensamento e um

modo de reflexão que se organiza a partir dos circuitos sensórios-motores, trazendo o cérebro de

sua posição “fria” e separada de uma práxis, como salientou Stanislavski, para a aventura da

experiência em tempo presente. Aventura esta que parece ser própria do pensamento em seu

processo evolutivo. A nossa habilidade de pensar e a organização e função de nossos cérebros

são baseados no desenvolvimento da motricidade e foram se desenvolvendo através da evolução

(LLINÁS, 2002). Para pensar a realidade, o cérebro necessita de imagens e a externalização de

qualquer imagem interna é efetivada através do movimento (desenhar, falar, gesticular). O

pensamento é movimento, não somente porque acaba por envolver partes do corpo ou objetos

no mundo externo, mas porque o primeiro passo para a cognição é o próprio acionamento

sensório-motor. Quando o ator age, deixa a ver o processo físico do seu pensamento. E quando

pensa, o movimento já se instaura de alguma forma.

É justamente a interação cérebro-corpo que dá suporte para a idéia de que a mente

emerge do organismo em ação como um todo e de um corpo que pensa. As teorias cognitivas,

em sua maioria, defendem a idéia de que não há espaço para apenas um eu com existência fixa,

unitária, centralizando e controlando tudo, mas estados (redes) emergentes que respondem a

uma auto-organização, a estados biológicos constantemente reconstruídos. A existência de um

eu, entretanto, não é descartada. Mas o que confere subjetividade à nossa experiência não é um

inspetor central de tudo o que acontece em nossas mentes, mas um estado biológico específico

que só ocorre com a participação inteirada e plena de diversos sistemas tanto cerebrais quanto

corporais.

Para Ramachandran (2002) e Damásio (1996) é o corpo que, ao modificar-se e

incessantemente criar representações de si e do meio, fornece à mente o material necessário

para que surjam imagens, pensamentos e estímulos para novas ações. Foi a partir da constatação

de que as emoções e sentimentos não eram controláveis e, tampouco, garantiam trilhos sólidos

para o trabalho do ator, que Stanislavski atribuiu um papel vital às ações físicas, colocando o

corpo na experiência, como saída para este impasse. O mestre russo buscou a unidade corpo-

Page 141: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

141

espírito enfatizando a materialidade do corpo e a imaterialidade dos sentimentos:

Parece, a princípio, que o melhor material para se usar seriam os

sentimentos genuínos, vivos. Que eles nos conduzem. Mas as

coisas do espírito são evanescentes, é difícil fixá-las com

firmeza. Com elas, não podemos fazer trilhos sólidos, precisamos

de alguma coisa mais ‘material’. O mais adequado, para este fim,

são os objetivos físicos, pois são executados pelo corpo, que é

incomparavelmente mais sólido que nossos sentimentos.

(STANISLAVSKI, 1995, p. 245).

Vistas, nas teorias do ator, como fenômenos pouco controláveis e que aumentam a

instabilidade do organismo, as emoções, evolutivamente, têm proporcionado ao seres a

capacidade imediata de responder a circunstâncias que promovem ou ameaçam a vida. Já os

sentimentos, sendo estratégias aliadas às emoções, introduziram a possibilidade de se trabalhar

sobre os estados emocionais e de criar novas soluções para problemas. A relação entre emoção,

sentimento e ação está no cerne das teorias do ator, e a sua abordagem, desde o século XVII,

demonstra a ancestralidade deste interesse por meio de uma fisiologia das paixões e que, no

século XIX e XX, se conformaria como uma biologia das emoções. Compreender a emergência

das emoções e dos sentimentos oportuniza um maior conhecimento acerca do caráter dinâmico

das ações humanas.

Page 142: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

142

4 NA REDE DAS AÇÕES FÍSICAS: DAS PAIXÕES ÀS EMOÇÕES E

SENTIMENTOS

4.1 A mecânica das paixões

De fato, a grande proliferação de imagens das paixões

universais nos textos sobre a atuação do ator no século XVIII

reflete uma visão mecânica da natureza .(ROACH, 1985, p.71.)

A teoria retórica do século XVII, na qual a discussão sobre a atuação teatral ainda se

apoiava, não se atrelava à dramaturgia, mas ao entendimento de como as paixões operavam no

corpo humano65. Questões como a expressão das paixões no plano físico e a encarnação no

corpo do movimento interno da alma eram pauta de interesse das teorias artísticas, retóricas,

fisiológicas e medicinais. A paixão, palavra derivada do latim passio66, se torna a questão

central nas teorias do ator. As teorias iluministas já sinalizavam que a emoção não teria

existência real longe de suas manifestações físicas. Na medida em que tinham as paixões como

seu foco de interesse, eram as teorias fisiológicas que respondiam às questões sobre a

expressividade do ator e do bailarino, e a efetividade das teorias teatrais estava garantida pela

sua coerência com o entendimento contemporâneo de como o corpo funcionava.

Engendrando uma mecanicidade na fisiologia da expressão, as hipóteses defendidas por

Descartes referenciavam, sobremaneira, as teorias teatrais, com desdobramentos na atualidade.

A concepção cartesiana de como agem alma e corpo se evidenciava na descrição dos

movimentos corporais observados em cada paixão. Estas não se restringiriam ao aspecto visível

exterior, como a palidez de um rosto ou um olhar assustado, mas a alterações relacionadas aos

órgãos internos, como no ódio, cujo “pulso é desigual e mais fraco, e amiúde mais rápido; que

se sentem frialdades entremescladas de certo calor áspero e picante no peito.” (DESCARTES,

1996, p. 184).

As reflexões acerca do gesto e ação do ator nutriam-se da fisiologia de paixões como o

ódio, o espanto e a cólera presente na filosofia cartesiana, visíveis, por exemplo, na iconografia

fisionomista de Le Brun e na teoria do gesto de Engel. Ao contrário dos desenhos de Le Brun,

65 A retórica das paixões derivada do trabalho de Quintilano e seus sucessores dominou a discussão sobre atuação até a época de Diderot e Garrick (ROACH, 1985, p. 111). 66 Designa todo estado, condição ou qualidade que consiste em sofrer uma ação ou em ser influenciado ou modificado por ela. As palavras afeto e paixão dizem respeito a situações humanas, que apresentam certo grau de passividade por serem estimuladas ou ocasionadas por fatores externos (ABBAGNANO.2000, p. 19).

Page 143: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

143

que transformavam em imagens estáticas os processos fisiológicos descritos por Descartes, as

teorias de Engel, presentes em Idéias sobre o gesto e a ação teatral, ofereciam aos atores uma

leitura mais dinâmica e interna das paixões. No caso da cólera, esta daria forma a todas as partes

exteriores do corpo,

[...] infladas pelo sangue e pelos humores elas se agitam num

movimento compulsivo, os olhos inflamados rolando entre as

pálpebras e lançando olhares faiscantes, as mãos por contrações

violentas e os dentes, sobretudo por rangidos descontrolados,

manifestam uma espécie de tumulto e desordem interior.

(ENGEL, 1979, p. 179).

De acordo com Descartes (1996), o sangue que corre na manifestação da cólera é

bilioso, vindo do baço e das pequenas veias do fígado, e fornecem ao coração um calor mais

áspero, mais ardente e nocivo.

Figura 16: Desenhos de Charles Le Brun: o choro, o riso e a cólera. Tratado das Paixões. Paris. Museu do Louvre.

Catálogo da exposição “Da alma ao corpo”. Paris, Gallimard/Electra. 1993/1994.

Engel (1979, p. 87) nomeia como fisiológicos os gestos involuntários provenientes de

certas paixões, relacionando-os a órgãos e a reações físicas do corpo, signos visíveis dos

movimentos interiores da natureza humana:

Porque as idéias tristes agem sobre as glândulas lacrimais, e as

idéias alegres sobre o diafragma; porque a angústia e ansiedade

alteram a cor da face ou o pudor ou a humilhação desencadeia

um rubor súbito. Eu reunirei todos estes gestos sobre a

denominação comum de gestos fisiológicos.

Page 144: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

144

Descartes defendia a hipótese de que a relação entre corpo e alma se dava pela ação

da glândula pineal, localizada no cérebro, onde o órgão pensante, a alma racional, comandaria

as ações do corpo por intermédio dos espíritos, estes incidindo sobre os nervos e o sangue. Ao

perceber um objeto externo, a impressão que um pensamento efetuaria no cérebro conduziria os

espíritos animais pelos nervos e músculos através de tubos (nervos). Os espíritos animais teriam

a incumbência de moldar no corpo a manifestação de paixões como o amor e o ódio. Vejamos

como Descartes explica a questão, a partir da metáfora do corpo-máquina:

Lembramo-nos do que já foi dito sobre a máquina de nosso

corpo, a saber, que os pequenos filetes de nossos nervos acham-

se de tal modo distribuídos em todas as partes que, por ocasião

dos diversos movimentos aí provocados pelos objetos sensíveis,

abrem diversamente os poros do cérebro, o que faz com que os

espíritos animais contidos nessas cavidades entrem diversamente

nos músculos, por meio do que podem mover os membros de

todas as diversas maneiras que estas são capazes de ser movidos

[...]. (DESCARTES, 1996, p. 151).

O clássico exemplo cartesiano de que o medo, posto na alma, se reflete numa fuga

eminente, se explica pelo fato de os espíritos animais, que se encontram nas cavidades do

cérebro, irem ao mesmo tempo para os nervos do coração e para os que mexem as pernas. A

paixão seria uma emoção da alma, mas estaria ligada a um automatismo de natureza circular

capaz de múltiplos condicionamentos, ou seja, uma engrenagem corporal a serviço da alma e

sob a tutela dos espíritos. Isto, de acordo com Roach (1985, p. 80), é a confirmação da idéia

cartesiana de que o corpo funciona por uma necessidade mecânica. Os espíritos animais teriam

um princípio corporal, o que os faz agir, uma espécie de fogo mantido pelo sangue das veias e

circulando por meio dos nervos. Descartes defendia o papel crucial da imaginação para o

estabelecimento do poder da mente sobre o corpo, o fato das paixões proporcionarem

impressões características na fisionomia e o poder dos espíritos animais inflarem os músculos e

nervos em seqüências meticulosas com a finalidade de mover o corpo hidráulica ou

pneumaticamente. O diafragma era visto como barômetro das paixões, associado à respiração,

pensamento e circulação do sangue. (ROACH, 1985, p. 80).

Page 145: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

145

Figura 17: mecanismo esquemático que demonstra como os

espíritos incidem sobre o coração, o cérebro e as partes do corpo.

(DESCARTES, 1996, p.153).

A raiva é descrita a partir da disposição interna dos órgãos e músculos e o espanto como

súbita evacuação dos espíritos animais. Esta retirada súbita dos espíritos causaria no corpo um

congelamento momentâneo, como um autômato hidráulico, no qual o fluído foi drenado.

Descartes classifica como paixões primitivas a admiração, o ódio, o desejo, o amor, a alegria e

a tristeza, e as demais como “espécies” que se constituiriam a partir delas. Na descrição das

paixões por meio de suas reações físicas, o filósofo deduz que “há tal ligação entre nossa alma e

nosso corpo que, uma vez unida uma ação corporal a um pensamento, nenhum dos dois pode

apresentar-se-nos em seguida sem que o outro também não se apresente.” (DESCARTES,1986,

p. 189).

No artigo 73 de As Paixões da Alma, ele descreve o espanto:

E essa surpresa tem tanto poder para levar os espíritos

localizados na cavidade do cérebro ao lugar onde está a

impressão do objeto admirado que, por vezes, impele todos para

lá e os deixa de tal modo ocupados em conservar essa impressão

que nenhum deles passa ao cérebro, nem mesmo se desvia de

alguma forma das primeiras pegadas que seguiu no cérebro: o

que faz com que o corpo permaneça imóvel como uma estátua e

que só percebamos do objeto a primeira face que se apresentou,

e, por conseguinte não possamos adquirir dele um conhecimento

mais particular. (DESCARTES, 1986, p. 172).

Page 146: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

146

Figura 18: gravura de Benjamin Wilson, retratando a atuação de Garrick.

(ROACH, 1985, p. 88).

Tanto a imobilidade estatuária do espanto como o movimento dos sucos nocivos do

ódio· sustentava a iconografia da época e originavam a concepção imitativa do gesto na pintura,

na escultura e no teatro. O entendimento da retirada dos estímulos dos espíritos do corpo

ressoava nas opções estéticas freqüentes, como pausas e olhares suspensos dos atores em cenas,

imponentes estátuas a imortalizar as paixões. As imagens das expressões poderiam ser

adquiridas pela observação de modelos de representação pictóricos e a interioridade das paixões

julgada pelos signos externos traduzidos pelo corpo, na imitação das figuras ilustradas do gesto.

A fisiologia de Descartes está exposta em vários sistemas de atuação, como na teoria

desenvolvida pelo autor inglês Aaron Hill (1685-1750) em seus artigos, poemas e ensaios. Hill

divide a atuação em quatro passos: primeiramente a imaginação provoca uma idéia, após, marca

impressões características que aparecem primeiro no rosto, porque este é mais próximo da

imaginação. Como terceiro passo, impelido pelo desejo, o espírito animal desprende-se e ativa

os poderes elásticos dos músculos numa posição apta a executar ou expressar o calor da idéia.

“Então o olhar, ar, voz e ação, próprios à paixão, preconcebida na imaginação, se torna uma

mera e mecânica necessidade, sem perplexidade, estudo ou dificuldade.” (ROACH, 1985, p.

81).

A divisão cartesiana da máquina em movimento e alma imaterial forjou o dogma do

fantasma na máquina, o chamado dualismo. Sendo o movimento concebido como algo externo

que atinge a matéria orgânica, cada paixão, como causa, poderia ser identificada por seus

efeitos, uma série de posturas e manifestações físicas que os artistas, por sua vez, tratavam de

fixar e classificar. Não obstante, a incompatibilidade entre a emoção verdadeira e a artística

Page 147: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

147

conformava uma crise nas teorias teatrais que seria pautada por novos conhecimentos

científicos que alteravam a crença na ordenação mecânica do corpo. A oposição entre a visão

interna e externa das paixões se acirrava, forçando brechas no rígido conceito mecanicista por

meio de um tipo de comportamento emotivo diferenciado, que extrapolava a imitação mecânica.

Um novo pensamento se instaura no final do século VIII e se baseia na “doutrina da

sensibilidade”. (ROACH, 1985, p. 94).

4.2 A teoria da sensibilidade

Afinal, como o ator poderia comunicar a força física de suas paixões e fazer vibrar com

sentimentos à platéia? A descoberta da eletricidade pela ciência não estava descolada da idéia

descrita por Garrick de um “fogo elétrico” do ator incendiando a platéia (ROACH,1985, p.

105). Novamente é a atuação reputada do ator inglês que intensifica a discussão sobre o

sentimento do ator, graças ao seu poder de mudar de um sentimento para outro, alvo de

aplausos entusiásticos da audiência. A metáfora do espírito cartesiano e seus tubos é substituída

gradualmente pela de eletricidade, com a vibração dos nervos como método de transmissão das

paixões no corpo e sua comunicação para a audiência. Enquanto os autores do Século XVII

favoreciam a imagem da eloqüência do corpo e da voz como instrumentos de sopro e metal, no

século XVIII havia a preferência por metáforas referentes aos instrumentos de corda, como

violinos ou cravos. (ROACH, 1985, p. 105). Na metáfora da vibração acústica, os nervos são

entendidos como cordas de um instrumento musical e parecem descrever melhor a fisiologia

das paixões na atuação do ator do que a condução mecânica hidráulica ou pneumática.

Diderot questionou se o ator poderia sentir ou não emoções, assim como o fizera autores

anteriores, radicalizando, porém, sua posição, argumentando que o excesso de sentimento

transformaria o ator em um artista medíocre. De acordo com Roach (1985) e Didier (2001),

Diderot construiu uma teoria do ator iluminada pelo materialismo vitalista, sintetizando o

mecanicismo e o vitalismo na descrição do corpo. Ele utilizava metáforas derivadas de

maquinarias e organismos, acreditando, entretanto, que o caráter emergia diretamente do

sistema nervoso do ator. No Paradoxo sobre o Comediante, Diderot (1979) constrói uma

textura psicológica, tendo a fisiologia como suporte. As reflexões que o filósofo propõe ao

problema corpo e mente, e a sua expressão via sentimento, seriam aprofundadas por

Stanislavski um século e meio depois.

Page 148: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

148

Inúmeros teóricos anteriores utilizaram modelos fisiológicos para

ilustrar a capacidade expressiva do ator; Diderot é o primeiro a

explicar, à luz da ciência de sua época, como a natureza

apresentava certas limitações através da estrutura interna do

próprio corpo (ROACH, 1985, p. 118).

A natureza, para Diderot, não era um sistema puramente físico, como supunham os

materialistas de sua época, mas um sistema orgânico e biológico sob a hipótese da sensibilidade

da matéria. Ao postular o movimento e a sensibilidade inerente a toda matéria como a chave

para o orgânico, integrou ao seu pensamento os primeiros resultados dos estudos que

fundamentariam as teorias evolucionistas do século seguinte.

O materialismo organicista de Diderot (1979, p. XI) entendia o movimento dos corpos

causados não por forças externas, como propunha a herança aristotélica e newtoniana, mas

surgidos internamente, pelo movimento dos próprios átomos: “O movimento seria a própria

essência da matéria, uma espécie de energia cinética, ou potencial, própria e não algo que lhe é

agregado.” O contato com a atuação e reflexões teóricas de Garrick e as inquietações filosóficas

da sua época, em relação à leitura mecanicista da fisiologia, podem ser descritas como

motivações deflagradoras da mudança radical proposta por Diderot, por volta de 1760

(ROACH, 1985). Em sua teoria da sensibilidade, Diderot (1979, p. 192) propõe que os atores

impressionem não quando estão furiosos, mas quando interpretam bem o furor, quando a paixão

não é sentida, mas bem representada.

O filósofo chama de sensibilidade a facilidade de traduzir todas as naturezas, mesmo as

mais ferozes. Conforme a sua acepção fisiológica, a sensibilidade seria:

[...] Esta disposição companheira da fraqueza dos órgãos,

conseqüência da mobilidade do diafragma, da vivacidade da

imaginação, da delicadeza dos nervos, que inclina alguém a

compadecer, a fremir, a admirar, a temer, a perturba-se, a chorar,

a desmaiar, a socorrer, a fugir, a perder a razão, a exagerar, a

desprezar, a desdenhar, a não ter qualquer idéia precisa do

verdadeiro, do bom e do belo, a ser injusto, a ser louco.

Multiplicai as almas sensíveis e multiplicareis na mesma

proporção as boas e más ações de todo gênero, os elogios e as

censuras exageradas. (DIDEROT, 1979, p. 178).

Page 149: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

149

O ator não deveria experimentar a emoção enquanto atua, sob pena de oferecer à

audiência uma representação menor. Como as paixões surgiam num contexto não ordenado da

mente, uma espécie de “rebelião dos nervos” fora do controle da alma racional, poriam em risco

a atuação cênica. Diderot compactua com a teoria do diafragma67 como sede da sensibilidade,

local onde convergiria a rebelião nervosa, mas reforça o papel do cérebro na operação de

controle das paixões no corpo68.

O trabalho do ator não seria sentir, mas expressar os sinais externos do sentimento. Os

gestos e suas decorrentes expressões são preparados e estudados de antemão frente ao espelho e

o ator, após a sua atuação, não permanece com sua alma estremecida ou abatida. É o público

que o assistiu que levará as fortes impressões:

O ator está cansado e vós, tristes; é que ele se agitou sem nada

sentir, e vós sentistes sem vos agitar. Se fosse de outro modo, a

condição do comediante seria a mais desgraçada das condições;

mas ele não é a personagem, ele a representa e a representa tão

bem que vós a tomais como tal; a ilusão só existe para vós, ele

sabe muito bem que ele não a é. (DIDEROT, 1979, p. 165).

O ator, “discípulo atento da natureza, copista rigoroso de si próprio ou de seus estudos, e

observador continuo de nossas sensações”, terá sua interpretação fortalecida a cada

representação, e estará longe da “desigualdade dos atores que representam com alma.”

(DIDEROT,1979, p. 163). O comediante que representasse com reflexão, não se entregando aos

ímpetos de sua sensibilidade, pois esta nunca se apresenta sem fraqueza de organização, de

acordo com Diderot, não falharia num dia e triunfaria noutro, mas seria sempre “igualmente

perfeito”. Para tanto, deveria estudar a natureza humana e imitá-la segundo um modelo ideal,

utilizando seus recursos de imaginação e memória. É a conformidade das ações, dos discursos,

da voz, do movimento, do gesto, ajustados a um modelo ideal imaginado, que conformaria o

que Diderot chama de teatro verdadeiro.

É na maturidade que o ator colherá seus melhores frutos em cena, quando diminui o seu

67 Teoria desenvolvida por Albrecht Von Haller (1708-1777) que afirma a importância do diafragma como plexo da sensibilidade, centro de dores e prazeres. A contração violenta do diafragma frente à dor contrastaria com a sua expansão na alegria. Sua teoria da irritabilidade buscava explicar os movimentos musculares pela condução elétrica.

68 O homem sensível fica demais à mercê de seu diafragma para que seja grande rei, grande político, grande magistrado, homem justo, profundo observador e, conseqüentemente, sublime imitador na natureza, a menos que possa esquecer-se e distrair-se de si mesmo, e que, com a ajuda de uma imaginação forte, saiba criar e, de uma memória tenaz, manter a atenção fixada em fantasmas que lhe servem de modelos; mas então não é mais ele quem age, é o espírito de um outro que o domina. (DIDEROT, 1979, p. 185).

Page 150: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

150

ímpeto passional e quando sua cabeça está calma e a alma é dominada. Diderot requisita um

ator de “sangue-frio” e de “cabeça-fria”, em oposição ao ator “sensível”, opondo

substancialmente razão e emoção. A extrema oposição entre razão e emoção tem sido revista

não somente no campo das teorias teatrais, mas em sua dimensão neurológica por parte das

ciências cognitivas e neurociências. Damásio, metaforicamente, afirma que a razão e a emoção

“se cruzam” em zonas cerebrais (tais como os córtices pré-frontais ventromedianos e as

amídalas). Em suma, suas pesquisas apontam para a relevância das emoções nos processos de

raciocínio e ao fato de existir um conjunto de sistemas no cérebro, dedicados igualmente aos

processos de pensamento e das emoções e sentimentos, bem como a questão de estarem

interligados com os que regulam o corpo. Podemos concordar com Diderot que um ator tomado

pela emoção sofrerá interferências em sua performance e, por outro lado, como enfatiza

Grotowski, um excesso de ênfase racional – a tal mente discursiva – o impedirá de desfrutar de

certos estados de sentimento. A impossibilidade de averiguação mais precisa no campo da

fisiologia de sua época permitiu a Diderot estabelecer a dicotomia razão-emoção. Contudo, o

estudo dos processos biológicos relacionados à razão e à emoção tem apresentado aos cientistas,

na atualidade, fortes indícios de que não há como raciocinar sem a presença do componente

emocional, nem vice-versa, dado que a emoção possui uma espécie de racionalidade intrínseca.

Fartamente descritas por Damásio (1996), na obra O Erro de Descartes, as correlações

sistemáticas de estudos com pessoas portadoras de danos em determinados locais do cérebro

responsáveis pelas operações de raciocínio e que tiveram comprometimento em seu

comportamento emocional têm oferecido comprovações neste sentido.

Noutro momento do Paradoxo sobre o comediante, Diderot (1979, p. 175) não nega ao

homem a sensibilidade, mas chama a atenção para a observação, a moderação e o domínio deste

fenômeno, encontrando por meio da reflexão “o que cumpre adicionar ou subtrair para melhor.”

Os termos sensibilidade e sentimento, no significado atribuído pelo século XVIII, entram na

pauta das teorias teatrais pela primeira vez com a obra Le Comédien, de Pierre Rémond de

Sainte-Albine (1747). A diferença entre sentimento e sensibilidade importava na medida em que

se acirrava uma recorrente discussão: o ator deveria sentir uma emoção para a ação ser

convincente? A sensibilidade seria a palavra-chave, pois descreveria a capacidade ou disposição

de responder à sensação, enquanto o sentimento seria a sensação nela mesma (ROACH, 1985,

p. 99). Diferente da concepção atribuída por Diderot, a sensibilidade poderia ser traduzida hoje

pelo que Damásio (2004, p. 87) chama de sentimento e o sentimento teria o sentido dado por ele

à emoção. Se as emoções são mecanismos mais imediatos e pouco controláveis, os sentimentos

envolvem os esforços conscientes e deliberados, e abrem a porta para uma nova possibilidade,

Page 151: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

151

permitindo o controle voluntário daquilo que até então era automático. Todos os seres vivos têm

uma aptidão para preservar a si mesmos sem que tenham consciência deste empreendimento.

Diferente da emoção, que brota inadvertidamente, os sentimentos orientam os esforços

conscientes e nos ajudam a tomar decisões. Voltarei ao assunto mais adiante.

De acordo com Roach (1985), a teoria da sensibilidade de Diderot antecipou três

questões centrais da pesquisa biológica no século XIX. Estas questões floresceram num

contexto científico contaminado pela idéia de organismo e vitalismo e, desde então, adquiriram

relevância nas teorias do ator: a teoria evolucionista, o monismo e a teoria do inconsciente. O

monismo, filosofia que admite um único gênero de substância, fazia crescer a convicção de que

corpo e alma são um continuo, e não duas substâncias radicalmente separadas, como sustentava

o dualismo. Esta convicção, já demonstrada no pensamento de Lewes, foi assumida por

Stanislavski e se apresenta, como vimos, no seu percurso metodológico quando justifica a

entidade física do papel por meio da existência de um elo com a vida espiritual. Já a visão

proporcionada pelos estudos sobre etologia impunha uma nova particularidade sobre a

manifestação das emoções, emergindo uma doutrina que via o movimento expressivo como

algo inerente, a exemplo de outras espécies animais. De algo conduzido pelos espíritos animais

cartesianos, a emoção passa a ser entendida como uma manifestação vinculada, de fato, à

natureza animal. Esta perspectiva, de acordo com Roach (1985), convidou os teóricos teatrais a

examinarem a emoção à luz das teorias evolucionistas, a mais importante revolução científica

do século XIX, e que iriam se desenvolver principalmente a partir das hipóteses de Charles

Darwin.

O vasto estudo que Darwin empreendeu sobre a natureza das emoções na obra

“Expressões das emoções em homens e animais”, de 1872, as referendou como fenômenos

involuntários, presentes tanto nos homens como nos animais, influenciando diferenciadas

teorias da época. Antes dele, Charles Bell havia publicado, em 1806, a obra “Anatomia e

Filosofia das expressões conectadas com as Artes”, já propondo um método comparativo para

demonstração das continuidades das expressões emocionais entre animais e o homem. Darwin,

contudo, ao relacionar as expressões às espécies por meio da seleção natural e de forma

evolutiva, estabelece uma crítica a Bell, cujos argumentos ainda mantinham o entendimento,

segundo a tradição teológica, de que a face humana conteria músculos criados por Deus com o

propósito de expressar as emoções. A idéia de que o comportamento expressivo é inerente e as

paixões tendem a ser a manifestação de nossa natureza animal fortalece a perspectiva biológica

da máquina humana. Em sua obra Darwin indica que as emoções traduzem-se em movimentos

faciais que remontam às características dos primatas dos quais descendemos. Ao analisar a

Page 152: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

152

manifestação dos sentimentos e a linguagem dos gestos, o cientista inglês comprova que

também as expressões das emoções, tanto humanas como as dos animais, obedecem às leis da

hereditariedade.

Figura 19: Estudo das sobrancelhas em A expressão das emoções, de

Charles Darwin. Catálogo exposição “Da alma ao corpo”. Paris,

Gallimard, 2002.

O conceito de seleção natural darwiniano proporciona uma visão mais sistêmica e

dinâmica à ação, envolvendo mais concretamente o organismo e seu entorno. Darwin revelou as

falhas da ciência em não considerar o tempo e o contexto na explicação dos sistemas biológicos.

A seleção natural, considerada um processo regulador, afina os padrões de atividades

envolvendo o corpo e o ambiente. Durante muito tempo, as explicações sobre a ação se

alternavam entre o dentro e o fora, ou o corpo, ou o ambiente. A teoria darwiniana tornou

evidente a idéia de uma ação continua e co-evolutiva entre organismos e meio.

O reconhecimento do jogo de forças inconscientes obscuras, por sua vez, proporcionou

uma fissura na consciência humana. O homem não deixou somente de ser o centro do universo

e da criação, como Copérnico e Darwin comprovaram. Freud fez ver ao homem que ele não é o

centro de si mesmo. Na medida em que deslocou o universo teatral em suas dimensões

metodológica, estética e ética, a revolução que Stanislavski realizou poderia ser considerada

como copernicana, como salienta Guinsburg (2001), mas também no sentido próximo à marca

deixada pela psicologia freudiana. A noção de inconsciente está exposta, visivelmente, no

sistema de Stanislavski, em sua relação com a consciência e as forças criativas, como foi

apontado no capítulo 3, com desdobramentos referentes à imaginação, memória e emoção do

ator.

Page 153: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

153

4.3 A psicologia do ator e a memória das emoções.

Antes de elaborar o método das ações físicas, Stanislavski se apoiou na psicologia para

trabalhar com as emoções do ator. Ele acreditava que o ator poderia reviver as emoções

registradas na sua memória e aplicá-las ao personagem e em circunstâncias dadas. Isoladas das

suas causas naturais, as emoções deveriam ser revividas através de um processo mental

introspectivo de reconstituição. A estratégia adotada era o “como se”, rememorando, de forma

imaginativa e hipotética, um passado vivido. Ou seja, do contato com o mundo interior

mnemônico viria a matéria expressiva. Mais tarde, com o enfoque específico sobre o corpo e as

ações físicas, o procedimento introspectivo sofrerá modificações.

O enfoque sobre a memória – iniciado por Diderot e desenvolvida por Lewes e, mais

tarde, por Ribot – formata o que é considerado como o aspecto subjetivo do método de

Stanislavski, denominado Psicotécnica. Lewes já defendia a introspecção como estratégia para o

ator criar a familiaridade e decorrente controle da natureza de suas próprias emoções a fim de

interpretar emoções análogas. A mente do ator e sua capacidade de criar um modelo interno,

como já salientava Diderot, ganham importância cada vez maior no processo de atuação, seja

como observadora dos estados de consciência ou dilapidadora das emoções brutas. Para buscar

o material para a sua arte, o ator recorreria à faculdade da memória, considerada uma espécie de

contêiner ou armazém no qual a introspecção atua e a emoção pode ser processada. Lewes junta

o termo neurofisiológico tremor e o termo psicológico imagem para discutir o processo interno

no qual o artista seleciona as memórias emocionais do passado para desenhar imagens a serem

interpretadas (ROACH, 1985, p. 190).

Stanislavski acessa as obras de Ribot traduzidas em russo e encontra uma ressonância

científica para suas intuições acerca das experiências emotivas69. O fundador da psicologia

científica francesa chamou a atenção para os fenômenos psicológicos inconscientes, questionou

o estudo da memória como uma faculdade exclusiva da alma e elaborou uma definição

biológica para esta. Ao definir o termo emoção dentro da psicologia de sua época, Ribot

chamou a atenção para a utilização deste em substituição aos termos paixões e afecções da

alma, empregados no século XVII, e a relevância ao elemento motor intrínseco a toda emoção

(motus). A própria etimologia da palavra carrega a noção de movimento. Do latim emovere

69 Obras traduzidas em russo que foram, de acordo com Bogdam (1999), consultadas por Stanislavski: Les maladies de la memoire (1881), Les maladies de la volonté (1883), La psycologie de l’attention (1889), la psychologie des sentiments (1896) e L’essai sur l’imagination (1900).

Page 154: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

154

(mover para fora), a noção de emoção conduzia ao entendimento de uma força motriz constante.

As emoções, de acordo com Ribot (1999, p. 93), já se constituem como ações e não se

apresentariam com características vagas ou difusas, mas como estados psico-fisiológicos

complexos. Como manifestações materiais organizadas da vida afetiva, compreendem um

estado de consciência particular, modificações da vida orgânica e tendências de movimentos.

Ribot concorda com James sobre os fatores fisiológicos das emoções e compartilha da mesma

empreitada de tratar a emoção cientificamente, através de suas marcas físicas objetivas, como a

inervação muscular e as modificações vaso motoras.

Stanislavski parte, basicamente, das duas noções que Ribot elaborou para discutir o

problema da memória e dos afetos: a vontade é essencial para o processo de cura psiquiátrica e

a memória das experiências afetivas é conservada no sistema nervoso e pode ser reativada por

estímulos sensoriais simples. Entendendo a vontade como um componente psíquico

indispensável ao ator, Stanislavski associa-a ao ato criador e substitui a noção de vontade para a

cura, estabelecida por Ribot, pela de vontade relacionada à criação. Quanto à memória afetiva, a

nomeará como emotiva, relacionando-a a outras memórias sensórias, como a visual, acústica,

táctil e motora (BOGDAM, 1999, p. 122).

Bogdam (1999), referindo-se igualmente a tradução dos termos russos utilizados por

Stanislavski – o verbo “perezivat” e o substantivo “perezivanie” – alerta para o fato de que, pela

sua difícil tradução, foi aproximado das noções de viver com intensidade ou reviver uma

situação. A tradução inglesa e americana do mesmo termo como a arte da emoção e do

sentimento conduziu a erros de interpretação e a conhecida ênfase das teorias americanas para a

vivência emocional. Mas segundo palavras de Stanislavski (apud BOGDAM, 1999, p. 128), “o

ator vive, ri e chora sobre a cena; mas enquanto ele ri e chora, ele observa seu riso e suas

lágrimas. É nesta vida dupla, neste equilíbrio entre vida e jogo que a arte surge.” Não se trata de

uma entrega à vivência das emoções reais, mas uma espécie de equivalência dos afetos, sem

perder de vista a observação consciente destes processos. O que Magnat (2000) descreveu como

a tradução mais correta para a o termo russo “perezivanie”, foi experiência, porém, consciente e

atentiva.

Questionando se há uma memória afetiva real e se acessamos o estado afetivo nele

mesmo ao recordá-los, Ribot (1939, p. 160) responde, a partir de uma distinção entre dois tipos

de memória. Define a memória afetiva verdadeira (ou concreta) como uma reprodução atual de

um estado afetivo anterior, com todas as suas características, e a memória falsa (ou abstrata)

como a “representação de um acontecimento, mais do que uma marca afetiva real”. Nos

processos de cura, a marca afetiva rememorada é reconhecida, mais do que é sentida ou

Page 155: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

155

experimentada.

Assim como ocorrem nos estados intelectuais, Ribot reconhece nos estados afetivos a

possibilidade de abstração e de generalização, admitindo uma espécie de materialidade nelas.

As imagens de cólera, dor, ódio ou amor se formaria por imagens genéricas, representações

esquemáticas destes estados, assim como a mente forma imagens genéricas de objetos ou

pessoas. Os estados emocionais são abstrações que podem ser evocadas, uma vez que os estados

afetivos “são uma matéria que pode se submeter a todos os degraus de abstração, como a

matéria sensorial.” (RIBOT, 1939, p. 161).

A memória falsa ou abstrata é a mais freqüente, como a imagem de uma pessoa, uma

paisagem, uma lembrança do passado que não é sentida, mas atua como reconhecimento. É uma

variação da memória intelectual. Já a memória verdadeira ou concreta é o reviver do estado

afetivo nele mesmo, e é acompanhada de estados orgânicos e fisiológicos que formam a emoção

real. Seria impossível para Ribot (1939, p. 161) o reviver do estado afetivo real sem as

respectivas condições orgânicas: “porque uma emoção sem sua ressonância em todo o corpo

não é mais do que um estado intelectual.”

As modificações corporais que seguem imediatamente uma

percepção e nossa consciência destas modificações são o que

James chama de emoção. ‘É porque que choramos que ficamos

tristes [...] porque trememos é que sentimos medo, se suprimido

os batimentos do coração, a respiração ofegante, o tremor, o

estado particular das vísceras, o que restará?’ [...] Um estado

intelectual pálido, incolor, frio. Uma emoção des-corporalizada é

um não ser. (RIBOT, 1939, p. 96).

Seguindo o esquema de metáforas, apontado por Lakoff (1987), entendemos e

experenciamos nosso próprio corpo como contêiner e, a partir desta lógica, a mente é entendida

no senso comum como um contêiner de imagens, emoções, pensamentos e outros conteúdos

prontos a serem evocados. Stanislavski (2000, p. 213) contava com este arcabouço quando

reivindicava o trabalho sobre a memória afetiva. Ele utilizou a idéia de arquivo de memória por

meio da metáfora da uma casa, com muitos compartimentos, armários e gavetas a serem

descobertos. A memória, de acordo com Damásio (2000, p. 209), é armazenada sob a forma

dispositiva, e não sob a forma de fotografias num álbum ou arquivo de recordações afixadas no

Page 156: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

156

cérebro. Não haveriam imagens permanentemente retidas. São registros dormentes e implícitos

de objetos e eventos não presentes que se engendram com as imagens dos objetos “reais”

percebidos, que são ativos e explícitos. Quando evocamos a memória, recuperamos os dados

sensoriais característicos, bem como os motores emocionais associados, com as reações que

tivemos no passado. Por isso, podemos ser conscientes do que recordamos tanto quanto do que

vivemos em tempo presente.

Embora não sejam as vivências do afeto nele mesmo, os resíduos destas experiências

passadas retornam como elementos impressos no corpo e contribuem para a percepção e tomada

de decisões no futuro. Damásio denominará a memória corporal que está impregnada de

sensações positivas e negativas, lembranças de prazer e dor, ligadas aos fatos vividos como

marcadores somáticos. Estes marcadores são adquiridos por meio da experiência e são

sensações viscerais agradáveis e desagradáveis. Como são corporais, Damásio (1996, p. 205)

atribuiu o termo soma, do grego corpo, e marcador, porque marca uma imagem no corpo e atua

como um mecanismo preciso, mesmo para a tomada racional de decisões, normalmente

atribuída à mecanismos mentais. Além da razão no sentido tradicional, que nos permite

raciocinar e decidir, seguindo toda uma tradição filosófica ocidental que vem de Platão e se

reforça em Descartes, teríamos a hipótese do marcador somático apontada por Damásio. Neste

caso, as emoções não são descartadas como fenômenos pouco confiáveis para que a razão

soberana possa operar, nem tampouco o sangue e a cabeça se mantêm frios, como aconselhava

Diderot. Os marcadores somáticos são estratégias que aumentam, provavelmente, a precisão e a

eficiência do processo de decisão. São sistemas de qualificação automática de previsões que

atuam como avaliador de situações e são um caso especial do uso dos sentimentos. Somos

aculturados através de inúmeras experiências que conformam marcadores somáticos e que

representam nossa imagem do mundo. Esta sensação no corpo pode surgir tanto na evocação de

uma memória passada quanto numa situação vivida no momento.

A fim de garantir a sobrevivência e o equilíbrio do organismo e trabalhar com as

experiências de dor e prazer que poderiam desestabilizá-lo, o corpo produz uma rápida sensação

visceral que pode ser desagradável ou não, antes que possamos raciocinar acerca de alguma

situação ou problema. É no corpo que se dá este sinal de alarme, ligado a sentimentos e

emoções adquiridos no processo de educação e socialização. Segundo Damásio (1996, p. 202-

205), o marcador somático pode ser encarado como um “sistema de qualificação automático de

previsões”. O que nos propõe Damásio é a “descida do Olimpo” de conceitos antes vistos como

manifestações imensuráveis e fora da matéria do corpo, para bem mais perto de nosso

Page 157: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

157

entendimento. “O que se passa é que a alma e o espírito, com toda a sua dignidade e dimensão

humana, são os estados complexos e únicos de um organismo.” (DAMÁSIO,1996, p. 282).

Perto do final de sua vida, Stanislavski percebeu que, mais do que uma memória

emotiva, o ator teria uma memória corporal, e que deveria ser acionada pelas ações físicas. É o

ato voluntário e consciente que funda a ação do corpo no mundo, e a emoção ou sentimento,

mais do que causa da conduta do ator, passa a ser o resultado. Convencido de que as emoções

não poderiam ser convocadas facilmente, passam a ser entendidas como conseqüências naturais

do processo orgânico do ator e fundadas sobre os impulsos internos da ação.

Anos depois, Grotowski afirmaria que não é que o corpo tenha memória, ele é memória.

Desta forma, inverte a noção de contêiner, de uma memória mental guardada e separada do

corpo pronta a ser evocada, para afirmar a idéia de circuitos vitais espalhados por todo o corpo.

Os atos do corpo seriam portadores de uma memória e uma vida que não é informada, de todo,

ao ator. Grotowski reivindicou um corpo-memória, enquanto experiência de vida revelada nos

atos físicos. Certos detalhes dos movimentos das mãos do ator podem se transformar no

regresso ao passado, na experiência de ter tocado alguém: “O corpo pode ditar diferentes ritmos,

intenções, que não são provenientes necessariamente do pensamento, mas tem relação com a

vida. Não se sabe como, mas foi o corpo-memória; o corpo-vida.” (GROTOWSKI, 1993, p.

37). Isto perpassa a noção clássica de memória armazenada no cérebro, mas, também, a de um

corpo que se relaciona com as experiências da vida, de uma memória corporificada. Grotowski

buscou evocar a memória orgânica do ator, capaz de ser reativada por processos que recuperem

um tipo de sabedoria própria do corpo. Nas palavras do diretor:

Já falei muito sobre associações pessoais, mas estas associações

não são pensamentos. Não podem ser calculadas. Eu faço um

movimento com a mão e, depois, procuro as associações. Que

associações? Talvez a associação de que estou tocando alguém,

mas isto é apenas um pensamento. Que é uma associação na

nossa profissão? É algo que emerge não só da mente, mas de

todo o corpo. É um retorno a uma recordação exata. Não

analisem isso intelectualmente. As recordações são sempre

reações físicas. Foi a nossa pele que não esqueceu, nossos olhos

que não esqueceram. O que escutamos pode ainda ressoar dentro

de nós. (GROTOWSKI, 1992, p. 187).

Page 158: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

158

Um conceito similar é encontrado nas ciências cognitivas. Quando Dennett (1997, p.

75) afirma que “a evolução corporifica informação em todas as partes de todos os corpos”,

credita ao corpo um modo de articulação própria. Dennett apresenta-nos exemplos em todos os

níveis da natureza. Evolutivamente, a barbatana das baleias corporifica informações sobre seu

alimento e o seu meio, bem como a asa de pássaro corporifica informação sobre o meio em que

tem que atuar. Os órgãos de nosso corpo carregam informações de nossos ancestrais. Estas

informações que estão impregnadas no corpo, segundo Dennett (1997, p. 75), não precisam

estar copiadas no cérebro. “Não precisa estar ‘representada’ em estruturas de ‘dados’ pelo

sistema nervoso”, este pode utilizar-se destes antigos sistemas corporais como uma espécie de

“caixa de ressonância” para sua atuação. Neste sentido, o sistema nervoso também se submete à

sabedoria acumulada pelo corpo.

Utilizando antigos sistemas corporais como uma espécie de caixa

de ressonância, ou audiência reativa, ou crítica, o sistema

nervoso central pode ser dirigido – algumas vezes empurrado,

algumas vezes convencido – na direção de políticas mais sábias.

Na verdade, submeter-se ao voto do corpo [...]. Meu corpo

contém tanto de mim –os valores e talentos, memórias e

disposições de espírito que fazem de mim o que sou – como o

meu sistema nervoso. (DENNETT,1997, p. 75).

4.4 A biologia das emoções

Um homem percebe um animal ameaçador. Imediatamente, manifestações físicas

ocorrem em seu corpo. Como conseqüência destas reações somáticas e viscerais, ocorre a

expressão emocional desprazerosa e, então, ele sente a experiência emocional do medo. A

percepção segue a expressão, e não o oposto, ou seja, porque trememos é que sentimos medo.

Em seu movimento de “biologização” das emoções William James defendeu a idéia que a

manifestação fisiológica é a própria emoção, invertendo o senso comum de que a emoção é um

fenômeno imaterial, separado do corpo ou que precede a ação. Esta última argumentação se

apresenta, por exemplo, na teoria de Walter Cannon. Em 1929, Cannon refutou a teoria de

James, propondo que o estímulo ameaçador conduz, primeiro, ao sentimento de medo, que

causa, então, a reação física.

Page 159: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

159

Figura 20: o caminho do estímulo sensório à percepção,

experiência e expressão emocional, segundo James e a

teoria de Cannon. Site http://www.cerebromente.org.br

Esta conexão de estados de emoção a condições biológicas interessaria a Stanislavski e

Meyerhold e determina modos distintos de se entender o comportamento mecânico e o orgânico

do ator. Partindo de motivações opostas, os dois encenadores russos reafirmaram,

respectivamente, os aspectos subjetivos (vivificação) e objetivos (ação reflexa) da emoção já

apontados por Lewes, sobre as quais as teorias sobre o ator o século XX se edificariam. Com o

passar dos anos, a abordagem de ambos aumentaria em graus de parentesco.

Meyerhold materializa, em sua abordagem do trabalho do ator, a teoria “periférica” das

emoções de James em sua clássica reversão da experiência emocional. É a resposta somática

que produziria a emoção, e não o contrário e, neste sentido, o sentimento não seria o causador

da reação física, mas a sua conseqüência. Na abordagem do medo, James afirma: vejo um urso,

corro e, então, sinto o medo. Desta forma, não haveria a necessidade de apelar para faculdades

internas e não observáveis da mente para explicar comportamentos dos homens e animais, tais

como a psicologia mais ortodoxa pregava. A concepção do comportamento do ator como uma

série de reflexos naturais e condicionados se fundamenta no entendimento da época de como

funcionavam o cérebro e sistema nervoso. A idéia de que cada reação física tem seu

componente emocional correspondente e de que o corpo reage ao estímulo exterior antes

mesmo que o cérebro perceba e identifique a emoção é assimilada tanto por Stanislavki quanto

Meyerhold, e sustentaria grande parte das teorias de atuação do século XX.

Meyerhold (apud HORMIGON, 1992, p. 297) alertava sobre as características do

sistema nervoso: “de um reflexo nasce outro [...] se me ponho em uma atitude de um homem

triste, posso ficar verdadeiramente triste.” Crítico aos excessos iniciais do sistema

stanislavskiano, cuja ativação dos nervos levava o ator a atingir um estado psicológico interior,

Meyerhold cita um exemplo a partir da lógica de James:

Um homem começou a correr fingindo que estava aterrorizado

por um cachorro que o perseguia. Não havia nenhum cachorro,

Page 160: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

160

mas enquanto corria, nasceu a sensação de medo. Esta é a

natureza do reflexo. De um reflexo, nasce outro. Trata-se de uma

característica do sistema nervoso [...]. Se temos que representar

um espetáculo triste, é inútil procedermos como no Teatro de

Moscou (Stanislavski), e nos pormos a vagabundear por ruas

escuras e acumular e concentrar estados de ânimos. Nós dizemos

simplesmente: [...] daremos uma situação em cena em que

sugerirão os estados de ânimo correspondentes a situações físicas

necessárias. (MEYERHOLD apud HORMIGON, 1992, p. 296).

Nos três últimos anos de sua vida, em uma de suas últimas conversações durante os

ensaios de Hamlet, após ordenar uma série de exercícios para eliminar tensões e assegurar o

livre jogo dos músculos, Stanislavski fala a um de seus atores sobre a relação emoção e ação:

Você se prepara para representar o sentimento, uma emoção. Isso

é inútil. Só lhe peço que expresse uma ação, e verá como a exata

compreensão do sentido dessa ação lhe fará experimentar o

sentimento requerido. Pelo contrário, se preocupar-se em

interpretar uma emoção, esta lhe escapará (Apud TOPORKOV,

s/d, p. 115).

Ao buscar uma saída corporal para a alma, Stanislavski pressente o que, quase

cinco décadas depois, Damásio comprovaria através de pesquisas com seus pacientes: a emoção

possui efetivamente bases orgânicas que podem ser inferidas70. Ainda que entendendo os

sentimentos como estados mais do espírito do que do corpo, ao rever o seu próprio método,

Stanislavski inicia experimentos com seus atores partindo da ação concreta do corpo, para

então, atingir determinado estado emocional. O diretor chama a atenção para a importância do

ator encontrar uma correspondência material e corpórea para os seus aspectos interiores, seus

sentimentos e emoções.

70 Sem a pretensão de reduzir a importância de Antonin Artaud a uma nota explicativa, é preciso salientar que ele foi um dos pensadores do teatro do século XX que mais veementemente pensou a emoção e as qualidades físicas dos afetos no trabalho do ator, ao invés do enfoque psicológico. “É preciso admitir, no ator, uma espécie de musculatura afetiva que corresponde a localizações físicas dos sentimentos (...) o ator é como um atleta do coração (Artaud,1993, p.129). Na perspectiva de Artaud, toda emoção teria bases orgânicas, e é cultivando sua emoção em seu corpo que o ator “recarrega sua densidade voltaica” (Artaud,1993, p.136). “Saber que uma paixão é matéria, que ela está sujeita às flutuações plásticas da matéria, dá sobre as paixões um domínio que amplia nossa soberania. Alcançar as paixões através de suas forças em vez de considerá-las como puras abstrações confere ao ator um domínio que o iguala a um verdadeiro curandeiro” (Artaud,1993, p.131).

Page 161: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

161

A convincente abordagem de James relacionou a emoção irremediavelmente aos

fenômenos físicos como aceleração cardíaca, respiração suspensa, o aperto no estômago e as

pernas enfraquecidas (Damásio 1996, p. 158). O que ocorre realmente quando experienciamos

uma emoção? O percurso biológico das emoções indica que, ao vivenciá-las, imagens mentais

formam-se, bem como uma mudança no estado do corpo em diversas regiões. Dentre outras

manifestações corporais, o coração acelera, a pele cora ou empalidece, há um aumento de

tensão nos músculos e um brilho diferente nos olhos. Muitas partes do corpo se alteram

significativamente, por vezes perceptíveis só para quem as sente, e em outras vezes,

perceptíveis para um observador externo. A palavra emoção, em sua etimologia, já sugere uma

direção externa a partir do corpo, pois significa, literalmente, movimento para fora. Emoção

implica em ação, movimento, manifestação corpórea. Damásio vê a essência da emoção como

“a coleção de mudanças no estado do corpo que são induzidas numa infinidade de órgãos por

meio de terminações das células nervosas sob o controle de um sistema cerebral dedicado, o

qual responde ao conteúdo dos pensamentos relativos a uma determinada entidade ou

acontecimento” (Damásio,1996, p.168).

O problema colocado por James ultrapassa o fato de que ele teria reduzido os

fenômenos da emoção à perceptiva imediata do corpo, o que levou a diversas críticas, mas, de

acordo com Damásio, pelo fato de ter atribuído pouca ou nenhuma importância ao processo de

avaliação mental da situação que provoca a emoção. A sua hipótese se enquadra num certo

nível de ocorrência das emoções, mas não fazem justiça, como relevou Damásio, ao que se

passa na mente de Otelo antes de extravasar o ciúme e a raiva ou aos motivos que levaram Lady

Macbeth ao êxtase quando arrasta o marido para uma violência assassina (Damásio, 1996:159).

Como a experiência mental da alegria ou tristeza é posterior a modificação dos estados

do corpo, a hipótese de James foi atacada e, de certa forma, ignorada e abandonada durante

quase um século, visto que haveria uma perda de tempo e de eficácia no processo. Contudo, os

mecanismos de reação do corpo nas emoções são mais imediatos do que os processos mentais

do sentimento, adverte Damásio, pois estes levam alguns segundos após as alterações corporais

emocionais ocorrerem. Para avançar na questão, Damásio (2004, p. 122) relata sua alternativa

ao sistema pensado por James, argumentando que os sentimentos não teriam origem,

necessariamente, no “estado real do corpo”, mas no “estado real dos mapas cerebrais” que as

regiões somato-sensitivas constroem a cada momento, quando o corpo é modificado pela

emoção. O sistema somato-sensitivo, ou seja, a percepção sensitiva do corpo, é muito amplo,

formado por vários sistemas que transmitem os estados do corpo a todo e qualquer momento.

Sem a participação destas regiões, não seriamos capazes de sentir as nossas emoções, assim

Page 162: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

162

como não enxergaríamos sem as regiões visuais do cérebro. O mapeamento cerebral resultante

provoca uma espécie de estado reflexivo, aliado a um dado estado corporal, que nos permite

sentir que estamos tristes.

Emoções e sentimentos se constituem problemas para o trabalho do ator à medida que

são evanescentes e não controláveis, afirmava Stanislavski. O tratamento dado às paixões,

emoções e sentimentos sempre nos levou a entendê-las como condições além da extensão do

corpo, ou ligadas a manifestações de nossa natureza animal ou às manifestações imateriais

anímicas. Graças a pesquisas que repousam sobre métodos de descrição, comparação e

experimentação, no final do século XIX a psicologia se fortaleceu e captou para si o que, até

então, era exclusivo da filosofia. É quando a noção metafísica de alma cede a uma nova

percepção do universo interior do homem, agora mais susceptível de abordagem científica,

através da análise das funções cerebrais e mentais. Na segunda metade do século XX, seria a

vez das ciências cognitivas.

A emoção foi negligenciada pela ciência por muito tempo em virtude da atribuição

subjetiva adotada e dos vagos apontamentos das questões cerebrais envolvidas. Os estudos de

Darwin, ao veicular a expressão das emoções à evolução das espécies, de Freud, ao indicar os

transtornos emocionais do individuo e sua dimensão psíquica, e de James, com seu enfoque

biológico da emoção, contribuíram, irremediavelmente, para a inclusão da emoção na agenda

científica. Nas últimas duas décadas do século XX, este quadro será irremediavelmente

alterado. Na atualidade, na visão da neurociência e das ciências cognitivas, as emoções e os

sentimentos são, precisamente, tão cognitivos como qualquer outra percepção. São os resultados

de uma curiosa organização fisiológica que transformou o cérebro no público cativo das

atividades teatrais do corpo (DAMÁSIO, 1996, p. 15).

Sentimentos e emoções são percepções diretas de nossos estados corporais e constituem

um elo essencial entre o corpo e a consciência. São processos neurais que ocorrem dentro do

cérebro, desde que, adverte Damásio (1996), esse cérebro interaja com o seu corpo

correspondente. Os termos emoção e sentimento são comumente vistos como sinônimos, mas

encerram suas diferenças. Damásio (2004) propõe uma diferenciação que me parece pertinente

para pensar o comportamento do ator, aliado ao entendimento de que a emoção já é uma ação e

que não está separada abissalmente da razão. O contínuo que conjuga emoção, sentimento e

consciência pode ser entendido a partir de seus estágios: um estado de emoção, desencadeado

inconscientemente, um estado de sentimento, que pode ser representado conscientemente, e um

estado de sentimento tornado consciente, ou seja, que é conhecido por quem está vivendo as

emoções e sentimentos (DAMÁSIO, 2000, p. 57). O que permite a percepção consciente, para

Page 163: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

163

Damásio (1996), não são mesmo as emoções, mas os sentimentos e seu caráter reflexivo.

Embora sentimentos e emoções façam parte dos mecanismos básicos de regulação da

vida e ocorram num contínuo, o que nos leva a não distinguí-los tão facilmente, os sentimentos

exibem um outro tipo de complexidade, pois se trata da reflexão sobre os estados emocionais.

Utilizando-se de uma metáfora, aparentemente dualista, mas que pretende clarear os processos,

Damásio (2004, p. 37) propõe a idéia de que as emoções ocorreriam no teatro do corpo, sendo

mais explícitas e de domínio público, e os sentimentos no teatro da mente, num âmbito mais

privado. Neste sentido, os sentimentos são construídos não somente a partir da percepção dos

estados do corpo, as tais emoções, mas, de uma certa forma, do pensar que acompanha estes

estados. O sentimento envolve um tipo de consciência e envolve, também, mapas cerebrais

somatossensitivos capazes de representar estados do corpo. Casos de pacientes com certos

danos cerebrais e alterações de comportamento ressaltaram a idéia, para Damásio, de que a

emoção da tristeza, com seus estados corporais, por exemplo, vem antes do sentimento de

tristeza e de pensamentos consoantes com esta, como a inutilidade da vida e o desejo de morrer.

Desencadeada, involuntariamente, a emoção, seguem-se os sentimentos a respeito dela.

O sentimento seria uma “idéia do corpo”, a um certo aspecto do corpo quando reage a

um objeto ou situação, e um sentimento de emoção seria uma “idéia do corpo quando este é

perturbado por uma emoção.” (DAMÁSIO, 2004, p. 95). Damásio mantém uma linha

semelhante à proposta por James, ao atribuir um sentido corpóreo à manifestação da emoção,

acentuando, contudo, que a origem das percepções que constituem os sentimentos de emoção se

dá pelo mapeamento do corpo em estruturas cerebrais. Um sentimento ocorreria a partir da

“percepção de um certo estado do corpo, acompanhando pela percepção de pensamentos com

certos temas e pela percepção de um certo modo de pensar.” (DAMÁSIO, 2004, p. 77). A

sensação do estado emocional é acompanhada pela consciência de senti-lo.

Sentimentos de emoções seriam estados mais reflexivos, distinguindo das emoções

propriamente ditas, que são involuntárias e não conscientes, como Diderot e Stanislavski

perceberam. Mas o sentimento de uma emoção não é um pensamento reflexivo qualquer, pois

sua essência corporal e sua conexão com o fenômeno da emoção o distinguem de outras formas

de pensamento. Tanto que verbalizamos este estado reflexivo como “sinto-me feliz”, e não

“penso-me feliz”, como salienta Damásio (2004, p. 93). De repente, o ator está disperso, ou

ansioso, ou tranqüilo, ou “presente”, mas a situação de emoção que o levou a estes estados não é

consciente para ele. A emoção, induzida sem que ele saiba, se exterioriza e, para que ele

perceba seu próprio estado, é preciso uma condição de sentimento tornada consciente.

Em sua argumentação sobre as diferenças entre emoção e sentimento, Damásio (2004,

Page 164: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

164

p. 77) enfatiza, novamente, a capacidade dos atores em produzir sentimento sem causas

pessoais envolvidas, desta vez, por meio de uma fala de Hamlet, na cena em que faz um elogio

aos comediantes: “forçando sua alma a obedecer a um certo conceito”, fazendo com que a sua

fisionomia e seu corpo por inteiro “se acomode a este conceito.” No caso do ator, ele constrói

pensamentos ou ações que lhe permitam trabalhar com e sobre as emoções e sentimentos, com

estratégias que vão da vivificação à simulação delas.

As emoções precederiam os sentimentos por questões evolutivas. Emoções são reações

biológicas que exibem uma certa simplicidade em relação aos sentimentos, mas que têm

garantido, a mais tempo, a sobrevivência das espécies. Da ameba ao ser humano, há

dispositivos com certa autonomia que solucionam, imediatamente, os problemas básicos da

vida, desde o nível microscópico, com o equilíbrio homeostático dos órgãos internos aos macros

e visíveis a olho nu, como a fuga rápida, na eminência do perigo. Ao invés do termo autômato,

o termo autonômico descreve melhor estes processos de controle que independem de nossa

vontade. Ao contrário do automatismo, que está mais associado à metáfora de um maquinismo

acionado por meios mecânicos, tal qual os autômatos renascentistas de Vaucanson, o sentido de

autonomia abriga a noção de organismo e de seus processos biológicos e de auto-organização.

Os testes experimentais realizados por Damásio com o uso da tomografia por emissão

de pósitrons (PET) indicam que há um recrutamento de áreas diversas de cérebro que realizam o

mapeamento dos estados do organismo por meio do recebimento de sinais de várias partes do

corpo. A estratégia das investigações adotada foi análoga ao “reviver” emoções passadas da

memória emotiva, só que sem finalidades cênicas. Os voluntários pensavam em um episódio

emocional de suas vidas e os parâmetros fisiológicos eram medidos. As áreas somatossensitivas

(córtex do cíngulo, córtex da insula, e os núcleos do tronco central) variavam segundo cada

emoção e a “[...] atividade sísmica da emoção aparecia sempre antes de cada participante

indicar com o movimento de um dedo que o sentimento da emoção estava começando.”

(DAMÁSIO, 2004, p. 109). O resultado da experiência comprovava que a emoção precederia o

sentimento e que este se constitui um processo passível de consciência.

Figura 21: Córtices somatossensoriais.

Damásio (1996).

Page 165: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

165

O nosso comportamento é uma polifonia contínua de emoções seguidas de sentimentos,

e que pontuam pensamentos e ações. O organismo acomoda os circuitos de controle pela

vontade (córtex cerebral) e os não controláveis (tronco cerebral, hipotálamo, núcleos límbicos),

por onde transitam as emoções. Em As Paixões da Alma, Descartes descreve movimentos do

corpo que acompanham as paixões e não dependem do controle da alma e as emoções que

podem ser excitadas pelo corpo pela disposição dos órgãos. A alma conserva, sempre, algum

poder sobre os músculos, mas ela não tem nenhum poder sobre o sangue, afirma Descartes

(1996) e, por esta razão, certas ações, como o enrubescer e a palidez súbita dependem pouco ou

quase nada de nossa vontade, enfatiza Engel (1979, p. 56-57). É, novamente, Descartes quem

sustenta a argumentação de Engel, atento a questões acerca da fisiologia das paixões, na atuação

do ator.

As emoções independem da vontade, como pensava Stanislavski, e Damásio (2004, p.

56-57) se vale do exemplo de uma árvore para descrever estes dispositivos autonômicos. Na

raiz e base da árvore, estão as reações que exibem respostas aos processos de metabolismo,

reflexos básicos e os relativos ao sistema imunológico. No caule e ramos médios da árvore,

estariam as pulsões, motivações e comportamentos de prazer e dor. É neste nível que o

organismo reage com uma série de ações, algumas sutis e outras óbvias, para que o seu

equilíbrio biológico se recupere de forma autonômica. Aí estariam as reações de retraimento do

corpo e a proteção de partes afetadas, bem como as expressões faciais de alarme ao sofrimento.

Da mesma forma, se o corpo funciona bem, o conjunto de reações e sinais químicos associados

resultam na experiência de prazer, sendo possível visualizar uma abertura do corpo e expressões

faciais de bem-,estar. As emoções, propriamente ditas – da alegria à mágoa e do medo ao

orgulho – estariam para Damásio (2004) próximas ao cume. Na parte mais alta da árvore, nas

pontas de seus diversos ramos estariam, finalmente, os sentimentos. Falarei, antes, das emoções.

Figura 22: A árvore proposta por Damásio.

O sentimento seria a expressão mental de

todos os outros níveis de regulação

homeostática, incluindo as emoções.

Damásio (2004, p. 44).

Page 166: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

166

4.5 O sentimento de uma emoção.

Tudo o que em mim sente, está pensando.

(Fernando Pessoa)

Damásio (2004) classifica as emoções como primárias, sociais e de fundo, ainda que

estejam imbricadas. A visualização das emoções de fundo dependem de manifestações sutis,

como o perfil dos movimentos do corpo e sua freqüência, amplitude, precisão, o que nos

propicia perceber o entusiasmo, a energia ou mal-estar de alguém. São os resultados de

combinações imprevisíveis de possessos reguladores dentro do organismo e reações a situações

exteriores. As emoções primárias ou básicas são, tradicionalmente, mais definíveis e mais

facilmente detectáveis, tanto pelo senso comum, quanto pelos inúmeros estudos científicos, a

exemplo da neurobiologia. O medo, a raiva, o nojo, a surpresa, a tristeza e a felicidade são

considerados como emoções primárias. As emoções sociais incluem a simpatia, a compaixão, a

culpa, o ciúme, a inveja, a admiração e o espanto, dentre outras manifestações, que se aliam às

emoções primárias. O encaixe destes tipos de emoções se dá quando o desprezo utiliza as

expressões faciais de nojo, por exemplo (DAMÁSIO, 2004, p. 51-55).

Sob a afirmação de que “as áreas somatosensitivas constituem uma espécie de teatro

onde podem ter lugar representações de estado do corpo, reais ou falsos”, estão reunidos

estudos, por exemplo, em indivíduos normais cuja tarefa consistia em observar fotografias com

expressões emocionais. A observação ativava, de forma sutil, os respectivos grupos musculares

das emoções retratadas, como se fosse um espelho, embora os participantes da experiência não

se dessem conta do fato, alterações eletromiográficas eram registradas nos músculos do rosto

(DIMBERG; THUNBERG; ELMEHED, 2000, p. 86-89 apud DAMÁSIO 2004, p. 128). Tais

experiências estão relacionadas a estudos onde o cérebro simula certos estados emocionais do

corpo sem que este esteja envolvido, tais como ocorre quando a simpatia se transforma em

empatia. Neste tipo de estado, é possível sentirmos a dor ou náusea de outrem, fenômeno que

Damásio (2004, p. 159) nomeou como uso de um sistema de simulação “como-se-fosse-o-

corpo”.

Algumas pesquisas das neurociências afirmam, de fato, que os estados do corpo

provocam sentimentos. Tais pesquisas partem não só de estudos neuropsicológicos que

correlacionam a perda de sentimentos com regiões cerebrais necessárias à representação dos

estados do corpo. Instruções a indivíduos sem tais lesões sobre o modo de mover seus músculos

Page 167: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

167

faciais, conforme os estudos de Paul Ekman (apud DAMÁSIO 1996, p. 179)71 sugerem que

“um fragmento do padrão corporal característico de um estado emocional é suficiente para

produzir um sentimento do mesmo sinal, ou que o fragmento desencadeia subseqüentemente o

resto do estado do corpo e induz ao sentimento”. Sem que qualquer situação real que pudesse

desencadear uma emoção fosse estimulada, uma expressão facial feliz fazia os indivíduos

sentirem felicidade e, da mesma forma, uma expressão facial zangada causava raiva.

As experiências de Ekman puderam comprovar que um fragmento de um estímulo do

padrão corporal característico de um estado emocional é suficiente para provocar um

sentimento. O estudo das emoções, com intuito de auxiliar o artista cênico, já era investigado,

como vimos, por Duchenne de Boulogne, precursor da neurologia, por meio da eletricidade

localizada. Ele acreditava que, através do controle da corrente elétrica e do conhecimento das

causas físicas pelo excitamento de nervos e músculos do rosto se poderia, “como a natureza,

pintar sobre o rosto do homem as linhas expressivas das emoções da alma.” (BOULOGNE apud

DEBORD, 2002, p. 416).

Hoje, as novas tecnologias comprovam que as emoções e pensamentos emitem sinais

físicos e a forma de detectá-los é tão precisa que se pode, praticamente, “ler a mente”,

especificando se a pessoa está imaginando um rosto ou lugar. Mas, adverte Damásio, nem todas

as partes do cérebro se deixam “enganar” por movimentos que não são desencadeados por

formas habituais, tais como as experiências de Duchenne de Boulogne ou Ekman. Novas

pesquisas provenientes de registros eletrofisiológicos demonstram que os sorrisos simulados

originam padrões cerebrais diferentes dos padrões criados pelos sorrisos verdadeiros. Tanto a

primeira quanto a segunda pesquisa, para Damásio, apenas reforçam o que a experiência

cotidiana nos apresenta. Não conseguimos enganar a nós próprios e nem aos outros quando só

sorrimos por cortesia. Deve ser também por isso, conclui Damásio (1996, p. 179): “que os

grandes atores que conseguem sobreviver à simulação das emoções exaltadas a que se

submetem com regularidade, não perdem o controle”.

71 Damásio cita, como introdução à vasta investigação sobre o assunto, as obras de Paul Ekman: “Facial expression of emotion: new findings, new questions”, Psicological Science, n. 3, p. 34-38, 1992 e “Voluntary smiling changes regional brain activity”, Psychological Science, n. 4, p. 342-345, 1993.

Page 168: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

168

Figura 23: Em uma situação emocional o mecanismo neural

para o controle da musculatura facial no sorriso “verdadeiro”

(painel superior) difere do mecanismo de controle voluntário

(não emocional) da mesma musculatura (painel inferior). O

sorriso verdadeiro é controlado a partir dos córtices límbicos

e utiliza provavelmente os gânglios basais na sua expressão

(DAMÁSIO,1996, p. 171).

A partir de estudos sobre lesões cerebrais específicas, Damásio (1996) e

Ramaschandran (2002) descrevem os graus de especificidade dos sistemas neurais dedicados à

emoção. Tais como nos casos em que um acidente vascular cerebral destrói o córtex motor no

hemisfério esquerdo do cérebro, acarretando uma paralisia facial direita. Nestes casos, os

músculos passam a não funcionar, a boca tende a ser puxada para o lado que se move.

Experiências comprovam que, quando um doente desta anomalia é solicitado a abrir a boca e

mostrar os dentes, a assimetria só aumentará. Mas quando o doente ri espontaneamente, em

uma situação não premeditada, o sorriso é normal e natural, as anomalias da paralisia

desaparecem. Isso mostra que o controle motor de uma seqüência de movimentos relacionados

com a emoção não se situa no mesmo local que o controle de um ato voluntário (não

emocional). Os movimentos relacionados com a emoção e com o ato voluntário são

desencadeados por diferentes redes do cérebro, “ainda que o palco do movimento, o rosto e sua

musculatura, seja o mesmo.” (DAMÁSIO,1996, p. 170).

Já nos danos no cíngulo anterior, no hemisfério esquerdo, provocados por acidente

vascular, ocorre precisamente o contrário. Em repouso ou em movimentos relacionados com a

emoção, o rosto é assimétrico. Se o doente quiser contrair, voluntariamente, os músculos faciais,

os movimentos são simétricos e normais. O movimento relacionado com a emoção é controlado

a partir da região do cíngulo anterior, de outros córtices límbicos (na face interna do lóbulo

temporal) e dos gânglios basais. Quando este circuito é ativado, numa fração de segundo, toda

uma cascata de eventos acontece para desencadear um sorriso sincero, sem que as partes

pensantes do córtex sejam jamais envolvidas (RAMASCHANDRAN, 2002, p. 37). Isto valer

dizer que não possuímos nenhuma via anatômica que exerça, facilmente, um controle volitivo

Page 169: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

169

sobre o cíngulo anterior e os sistemas límbicos, responsáveis pela “naturalidade” de certas

emoções. Para sorrir naturalmente, teríamos duas opções: “aprender a representar ou pedir que

nos contem uma boa anedota.” (DAMÁSIO, 1996, p. 170).

Este “arranjo” natural da neurofisiologia, lembra Damásio, tem demandado dos atores

(ainda que desconheçam estes dados fisiológicos) o desenvolvimento de diferentes técnicas de

representação das emoções humanas, sempre na busca de sua verossimilhança. Stanislavski

criou seu método buscando, inicialmente, a verdade das emoções, a princípio, pelo que Damásio

(1996, p. 171) chama de “criação habilidosa, sob controle volitivo, de um conjunto de

movimentos que sugerem emoção de forma verossímil”. E é o córtex motor na frente do cérebro

o especializado em produzir movimentos voluntários treinados, como tocar piano e dançar.

As experiências laboratoriais relacionadas à fisiologia e biologia das emoções não se

restringem ao campo de conhecimento de cientistas. No artigo Padrões de efeito de emoções

básicas, um método psicofisiológico para treinamento de atores, Susana Bloch, Pedro Orthous

e Guy Santibañez-H propõem uma pesquisa interdisciplinar entre as neurociências e a arte

dramática. A pesquisa relata a observação de padrões de expressão de emoções simuladas e

expressas espontaneamente por atores e não atores. Entendendo que a atuação requer um

processo de aprendizado destes fenômenos e que as emoções básicas e mistas do ator podem ser

representadas, os autores propõem um método de representação que relaciona respiração, tensão

e relaxamento de componentes faciais e posturais. Os procedimentos aliam a experiência

interpretativa direta com atores às experiências laboratoriais para testar algumas hipóteses. O

método científico descrito no artigo, desenvolvido com atores da Universidade do Chile com

direção artística de Orthous, junto a cientistas, revela que a correta performance de efeitos de

padrões de emoções é suficiente para evocar a emoção correspondente nos espectadores. Da

mesma forma, o relato dos atores mostra que a execução destes padrões pode desencadear neles

mesmos o sentimento correspondente. O que difere esta experiência daquelas propostas por

Ekman, realizadas também com atores, de acordo com Bloch, Orthous e Santibañez-H é que

Ekman trabalha a partir do protótipo fácil de uma emoção básica, com a contração muscular

para produzir uma máscara, enquanto eles propõem padrões de ativação respiratória – postural –

facial das emoções que evocam a ativação subjetiva de sentimentos no ator e no observador.

Page 170: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

170

Figura 24: Gráfico que sinaliza experiências de Bloch, Orthous e Santibañez-H

a) na simulação das emoções de raiva, tristeza e erotismo

b) e a sua manifestação natural .

Na foto à esquerda, a face de um ator em sua performance e, à direita, a expressão de um não ator a partir de uma

sugestão hipotética em que segura um bebê em seus braços.

Conhecendo os pormenores de como a emoção se expressa por observação externa ou

invocação de seus próprios estados emocionais, o ator as simula. O fato de poucos grandes

atores conseguirem “triunfar” nesta verossimilhança emocional, para Damásio (1996) é um

sinal dos obstáculos que a própria fisiologia do cérebro lhes coloca. Não é fácil estabelecer um

controle racional sobre certos circuitos dotados de espontaneidade, como as emoções.

Em outras técnicas teatrais, lembra Damásio (2004), a criação das emoções por parte

dos atores pode dar origem a uma situação onde a simulação é substituída pela emoção real,

como o método de representação de Lee Strasberg e Elia Kazan, “versão americana” do sistema

de Stanislavski. Para Damásio, estes processos podem ser cativantes e convincentes, mas

demandam dos atores controle e maturidade para refrear os processos automatizados

desencadeados pela emoção “verdadeira”. Tal preocupação remonta ao próprio Stanislavski,

que aconselhava seus atores a não se entregaram a seus devaneios ou emoções pessoais, mas

sim agirem como artistas.

4.6 A botânica das paixões

Por um bom tempo, acreditou-se na aprendizagem e repetição de gestos específicos para

denotar estados emocionais distintos, com ênfase nas mãos ou rosto, para, posteriormente,

abarcar todo o corpo. A classificação das emoções e seus gestos correspondentes foram e

continuam sendo uma estratégia para a representação das emoções em cena. A idéia de que os

gestos podem ser classificados a partir de seus aspectos universais, gerais, essenciais, principais

ou básicos vem iluminando várias teorias e sistemas de atuação, diferenciando-se em seus

métodos. Segundo Engel (1979), as características da natureza moral e as propriedades da

Page 171: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

171

estrutura e da organização dos corpos, bem como seus sentimentos e suas expressões variam,

sem, no entanto, alterar sua essência. A possibilidade de se formar um método geral para a arte

do gesto do ator seria fundada sobre regras invariáveis. O teórico alemão propunha uma

“ciência” do gesto expressivo a semelhança do modelo de classificação botânica de Linnaean72.

A aproximação dos traços naturais, universais, gerais e essenciais forneceria uma espécie de

conhecimento:

É pela abstração que se estabelece os princípios gerais, que

encontramos uma forma sistemática para classificar seguindo um

método claro e fácil; separar o essencial do acidental, o geral do

particular e a natureza do arbitrário. (ENGEL, 1979, p. 151).

Em sua argumentação a favor do sistema de François Delsarte e ao nascimento do que

vislumbrava como uma “nova arte”, o ator Giraudet comparou os procedimentos de

classificação dos gestos aos da história natural. Ao questionar se é possível aprender um gesto, e

sendo a arte do gesto, dentre as artes, a que mais se aproxima da natureza (com suas próprias

leis e regras), a arte mímica poderia ter leis fixas com possibilidade de serem classificadas

metodicamente. Giraudet responde aos críticos da época, que entendiam a arte como submissa à

liberdade do espírito, sendo as regras um entrave à criatividade e personalidade do artista:

Porque uma coleção de gestos expressivos não seriam possíveis e

mais úteis que uma coleção de desenhos, de conchas, de plantas e

insetos? E, se esta maneira fosse um dia objeto de estudo sério,

porque não buscar as palavras técnicas e os termos próprios para

esta ciência, que nos é permitido alcançar por meio da história

natural? (GIRAUDET, 1895, p. 8)

O trabalho de pesquisa do movimento desenvolvido por Delsarte coloca em evolução

algumas idéias esboçadas por Engel – como a probabilidade de classificação e ensino do gesto –

e ecoa, anos mais tarde, em pensadores como o músico e pedagogo suíço Émile Jaques-

Dalcroze (1865-1950), em sua abordagem, a rítmica, uma educação psicomotora onde a música

suscita o movimento, e Rudolf Laban, ambos disseminadores de novos entendimentos do

72 Carolus Linnaeus (1707-1778) fundamentou a moderna classificação das espécies durante a grande explosão dos estudos sobre história natural no século XVIII, criando uma taxionomia hierárquica na natureza.

Page 172: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

172

movimento e de mecanismos de busca da expressividade do corpo. As emoções primárias (ou

primitivas, segundo Descartes), foram o alvo principal, até o século XX, dos sistemas de

atuação e estudo do gesto e do movimento, visível nas reflexões de Engel e Delsarte. As

semelhanças das emoções, em detrimento das diferenças culturais, permitiram a taxionomia

destas, segundo signos exteriores visíveis, com repertórios amplos de expressão corporal e

facial.

Delsarte mantém em sua semiologia do gesto o histórico interesse pela fisionomia como

forma de compreensão do comportamento humano e estende a classificação dos estados

anímicos e sua exteriorização para todo o corpo, além do rosto e das mãos, por meio de uma

metodologia análoga a do campo biológico. Do amplo sistema delsartiano, vale ressaltar a

classificação dos gestos através da noção de agente mímico, por meio de 13 unidades corporais

que produzem os movimentos expressivos (olho, olhar, sobrancelha, boca, nariz, cabeça,

ombro, torço, braço, mão, dedo polegar, dedo indicador, perna). O seu trabalho assemelha-se ao

de um botânico, que, para definir seu objeto, integra-os por meio de uma catalogação que segue

a lógica de classificação sucessiva em família, gênero e espécie. Para classificar a atitude de um

agente mímico, por exemplo, o olho, o método consiste em caracterizar o gênero, pela posição

da pálpebra superior e a espécie, pela posição da sobrancelha. Um olho meio fechado e uma

sobrancelha elevada determinam uma atitude excêntrico-concêntrica que significa desprezo. Em

seu sistema, o corpo funciona e se exprime através de uma lógica trinitária, formado por

espírito, alma e vida, que representam respectivamente os aspectos mental, moral e vital.

Segundo o sistema trinitário de classificação, o número de atitudes que os agentes mímicos tem

a possibilidade de produzir podem ser multiplicados por 3, 9, 27 e, sucessivamente,

deflagrando, a partir de nove espécies, 27 variedades, 81 subvariedades, 243 tipos, 729

fenômenos corporais e, assim por diante (GIRAUDET, 1895, p. 18). A taxionomia de gestos é

baseada na segmentação do corpo, sob a lógica de correspondência entre alma e corpo. O estado

mental do ser corresponde à ação do corpo, e vice-versa.

Figura 25: Desenho de Gaston Le Doux sobre as posições da cabeça

analisadas por Delsarte, presentes na obra Physionomie et gestes, méthode

pratique d’après de F. Del Sartre pour servir à l’axpression des sentiments . Alfred

Giraudet (1895).

Page 173: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

173

As poses fixas dos estados emocionais por meio de ilustrações contribuíram,

inevitavelmente, para a utilização pragmática dos estudos de Delsarte em manuais,

transformando, muitas vezes, em receituário e clichês a sua complexa investigação. Uma vez

que o pesquisador priorizou o ensinamento oral, seu sistema foi exposto por seus discípulos

mais próximos, como os atores Alfred Giraudet, na França, e Steele Mackay, nos Estados

Unidos73, e Geneviève Stebbins. Contudo, as regras definidas por Delsarte constituem em uma

das mais sérias tentativas de estudo do corpo, no cotidiano e na prática cênica, e responderam às

demandas epistemológicas de sua época. Sua taxionomia dos gestos, relacionada aos aspectos

afetivos e espirituais e a segmentação do corpo em agentes mímicos auxiliaram na concepção

da dança moderna no início do século XX74 e foram matéria de interesse de encenadores, em

seu treinamento de atores, a exemplo de Grotowski. A metáfora da mecanização das paixões

foi, paulatinamente, se fragilizando e, aos poucos, o núcleo mais íntimo da vida foi se impondo

com a noção de interioridade e organicidade, conformando outros sistemas capazes de dialogar

com o problema da emoção e do sentimento no trabalho do ator, tais como a memória emotiva e

o método das ações físicas.

A tentativa de fixar as emoções dentro de um cerco psicológico ou defini-las numa

forma fisionômica preestabelecida pode incidir nos riscos apontados por Ferracini (2001) no

trabalho do ator sobre si, como a estagnação do movimento dinâmico e orgânico das emoções.

A interpretação de emoções como a raiva ou o medo sem a equivalência “orgânica” pode levar

à alegoria e ao estereótipo, preocupação esta que já se enunciava nos discursos de Lewes e

Diderot, em sua crítica ao automatismo e mecanicidade da interpretação do ator, bem como na

análise das ações por parte de Stanislavski. Ao invés de evocar ou fixar as emoções, Ferracini

(2001, p. 118) chama a atenção para o “sentir a emoção na musculatura”, no sentido de o ator

descobrir, por meio da ação, maneiras de colocar o sistema “psicofísico” apto e despojado de

todos os bloqueios, permitindo o fluir das emoções75.

Michael Chekhov (1891-1955), considerado por Stanislavski como um de seus mais

brilhantes alunos, não chega a elaborar uma taxionomia fixa para cada emoção, mas, por meio

do conceito de “espécie de movimento”, aponta as qualidades e as sensações como a chave para

os sentimentos. Se o ator define o caráter como agressivo, por exemplo, é aconselhável que 73 Mackay desenvolveu nos Estados Unidos uma aplicação corporal, a harmonic gymnastics, cuja expansão atingiu a moda e a publicidade, contribuindo para a visão reducionista dos estudos de Delsarte. 74 As idéias de Delsarte repercutem na gênese da dança moderna no inicio do século XX. Isadora Duncan (1878-1927) é uma das artistas que considerou a região do tronco, precisamente no plexo solar, como motor expressivo para sua dança, além das conexões entre o gesto e expressões da alma. 75 O ator Renato Ferracini é ator-pesquisador integrante do Grupo LUME – Núcleo de Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais (UNICAMP), um dos grupos de teatro brasileiro que mais enfática e consistentemente pesquisa a organicidade das ações do ator. Ferracini (2001) é autor de “A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator”.

Page 174: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

174

sinta os pés com firmeza no chão, pois o vigor do movimento instiga o sentimento

correspondente. O gesto psicológico de Chekhov (1996, p. 89) é um gesto arquetípico, “aquele

que serve como modelo original para todos os gestos possíveis da mesma espécie”. As

qualidades de cada músculo, as inclinações da cabeça, a posição dos braços, a posição final de

todo corpo podem evocar, inevitavelmente, sentimentos. O diretor estabelece uma espécie de

transição entre o enfoque fisionomista e o reflexionista, requisitando, por meio de posições e

partes do corpo, a emergência das sensações e sentimentos.

Tente fazer um gesto forte, bem delineado, mas simples. Repita-

os várias vezes e você verá que, após um certo tempo, a força de

vontade tornar-se-á cada vez mais forte sob influência desse

gesto. A espécie de movimento que fizer, dará a sua força de

vontade certa direção e/ou inclinação [...] assim podemos dizer

que o vigor do movimento instiga a nossa força de vontade em

geral; que a espécie de movimento desperta em nós um definido

desejo correspondente e que a qualidade desse mesmo

movimento evoca nossos sentimentos. (CHEKHOV, 1996, p.

76).

Ribot (1939) argumentou que, se a teoria de James for verdadeira, e se as manifestações

de uma emoção podem ser produzidas voluntariamente pelos movimentos físicos, então seria

possível suscitá-las. Ao mesmo tempo em que Ribot defendeu a hipótese que é possível acessar

o estado afetivo nele mesmo através do reviver da emoção, reconheceu que, na grande maioria

dos casos, o critério de James é inaplicável, pois os fenômenos orgânicos que se manifestam nas

emoções não podem ser produzidos pela vontade facilmente, como concluiu Stanislavski.

Embora sentir vivamente as emoções e as reviver sejam duas operações mentais diferentes, o

que as investigações de Damásio e Ekman confirmariam neurologicamente, Ribot (1939)

argumenta que, se nos mantivermos durante muito tempo sentados numa atitude melancólica, a

tristeza virá76. Como vimos, tais questionamentos são compartilhados primeiramente por

Meyerhold e, posteriormente por Stanislavski. Se a forma é trabalhada com precisão e justeza,

a emoção o seria também, afirmava Meyerhold, pois se trata de, primeiramente, atuar

76 O exemplo da representação do ator é suscitada por Ribot (1939, p. 97): “Muitos atores aparentam uma emoção sem senti-las”. James descreve o resultado de uma curiosa enquête feita na América sobre este ponto: “as respostas variam, uns dizem que atuam com o cérebro, outros com o coração, uns sentem a emoção, outros não”.

Page 175: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

175

fisicamente, principio este que também regerá o método das ações físicas. Restaria ao ator saber

se necessitaria criar, inicialmente, em sua mente os pensamentos que permitissem desencadear a

emoção ou, ao executar ações precisas com o corpo, poderia provocar a emoção

correspondente.

É fato que o ator carece de causas naturais e deve trabalhar com a emoção ou sentimento

cenicamente, sem que tenha tido, necessariamente, uma relação causal pessoal com os fatos.

Mas ele não necessita de causas naturais, ou seja, exibir uma emoção real, para que exiba em

cena comportamentos tais como os apontados por Chekhov. A experiência de dor e prazer não é

a causa dos comportamentos de dor e prazer, salienta Damásio (2004), nem necessária para que

esses comportamentos aconteçam. O circuito das emoções “verdadeiras” tem seus

inconvenientes e incertezas por sua inconstância, apontados, exaustivamente, por Stanislavski e

Grotowski, e as neurociências já comprovaram as diferenças neurobiológicas entre as emoções

espontâneas e as deliberadamente provocadas. Ao invés da expressão de certas categorias

afetivas pré-determinadas, a idéia de construção de estados por meio das ações e do “sentimento

das emoções”, num sentido de pensar-sentir atribuído por Damásio, pode se tornar um caminho

mais concreto, quem sabe um “trilho mais sólido”, para o trabalho do ator.

A emoção se exterioriza sem que o ator saiba ou tenha controle e, para que ele perceba

seu próprio estado e possa trabalhar sobre si mesmo, é preciso uma condição de sentimento

tornada consciente. O pensar em ação requisitado por Grotowski, implicando numa consciência

menos discursiva, mais orgânica e menos mediada por “verbalizações internas” (mas não isenta

de estados sensíveis) pode ser aproximada da noção damasiana do pensar sentindo (ou do sentir

pensando).

Damásio, não à toa, ao discutir emoção, sentimento, razão e consciência sempre utiliza a

metáfora do teatro e a atividade do ator. Podemos controlar, de alguma forma, a expressão de

algumas emoções em nosso cotidiano – disfarçar a raiva, controlar o medo – mas não com êxito

total. Talvez esteja aí, como aponta Damásio, o motivo que nos leva a ir ao teatro e ver atores

trabalhando suas emoções. Atores são mesmo exímios desafiadores da natureza “espontânea”

das emoções, tentando trazê-las à cena e à consciência.

Diderot (1979) requisitou um ator que representasse com reflexão, sem se entregar aos

ímpetos de sua sensibilidade. O estudo da natureza humana e a possibilidade de imitá-la

utilizando os seus recursos de imaginação e memória (segundo um modelo imagético interno)

conformaria o que entendeu como postura ideal do ator. Stanislavski (1995) investiu nas ações

físicas como meios conscientes para cooptar as evanescentes emoções criativas. Salientando

que o que permite a percepção consciente, não é, de fato, as emoções, mas o sentimento de

Page 176: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

176

emoções, Damásio (1996) rompe com a dicotomia razão-emoção e une reflexão e sentimento. O

sentimento de uma emoção seria um estado mais reflexivo, distinguindo-se das emoções

propriamente ditas, que são involuntárias e não conscientes, como Diderot e Stanislavski

descreveram.

De Diderot até Stanislavski, a descrição do trabalho do ator contava com explicações

próximas ao campo da introspecção, e que norteava abordagens teóricas com enfoque nas

paixões, emoções e sentimentos. O problema fundamental da emoção no trabalho do ator

apontado por Stanislavski é a não confiabilidade em sua aparição ou espontaneidade no

momento requerido. A inconfiabilidade e a imaterialidade atribuídas às emoções dificultavam

uma abordagem mais precisa e passível de análise da atuação e, até mais recentemente, como

Damásio (2004) ressaltou, também não era matéria de objetividade científica. A dificuldade de

“objetivar” o comportamento humano é um dado a se considerar, uma vez que os campos de

conhecimento que tratam mais concretamente destas questões são recentes, acirrados a partir na

segunda metade do século XIX.

A vertente psicológica do estudo do ator no século XX se fragilizou frente não somente

as novas teorias do comportamento humano, mas a partir do contato de diretores e encenadores

com tradições estéticas não ocidentais, a exemplo de Grotowski, em sua incursão aos rituais de

diferentes tradições. Sem esquecer, obviamente, das referências apontadas por Artaud em

relação ao teatro asiático. Pavis (2003, p.49) discute uma provável teoria do ator admitindo que

uma teoria das emoções por si só não é suficiente para descrever o trabalho do ator ou do

bailarino. Seria preciso um quadro teórico diverso, que ultrapassaria, em muito, o campo da

psicologia. A cena contemporânea pede por outras teorias que não se restrinjam à representação

mimética das emoções, sendo esta um aspecto entre vários.

Tendo a discussão sobre o corpo tomado a cena teatral, para a compreensão do

complexo fenômeno da ação do ator, não só é preciso uma revisão da teoria das emoções, como

louvável a proposição de uma teoria das ações, que englobaria outros estados do ator, inclusive

os emocionais. Uma teoria da ação que levasse também em conta o campo da cognição,

considerando o papel do corpomente nestes processos. O caráter cognitivo, e não somente

psicológico, concede aos estados emocionais uma explicação mais ampla e menos dualista,

considerado a não separação abissal dos aspectos biológicos e culturais, físicos e mentais e

racionais e emocionais. Não se trata de uma importação de teorias para a adequação do

problema da ação a um contexto cognitivo, tampouco uma estratégia que reduz o

comportamento cultural do artista cênico às questões biológicas, mas a necessária atualização e

Page 177: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

177

reflexão de questões que já estavam na gênese da nova pedagogia teatral inaugurada por

Stanislavski: o método das ações físicas.

Figura 26: Stanislavski no papel de Satin na peça de

M. Górki, No Fundo, 1902. (Guinsburg,2001).

Figura 27: Jerzy Grotowski, 1997.

(Magnat, 2000).

Page 178: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

178

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ator deve trabalhar a vida inteira, cultivar seu espírito, treinar

sistematicamente os seus dons, desenvolver seu caráter; jamais

deverá desesperar e nunca renunciar a este objetivo primordial:

amar sua arte com todas as forças e amá-la sem egoísmo.

(STANISLAVSKI, 1994).

A leitura da obra de Stanislavski é uma empreitada fascinante que atravessa, certamente,

as questões que cercavam as tendências teatrais de sua época, envolvendo, principalmente, o

naturalismo e o realismo. Ao abordar o trabalho do ator por meio de questões ontológicas e

filosóficas, – na busca pela união entre corpo e espírito; epistemológicas, – relativas a como o

ator conhece, cria memória e imaginação; e pedagógicas, – quando desenvolve metodologias

como a memória emotiva e o método das ações físicas, o mestre russo propôs determinadas

conexões com as teorias do conhecimento e instaurou procedimentos que orientariam a

pedagogia do ator no século XX. Na descrição da atividade do ator, não por acaso, o ator e

diretor russo utilizava termos subjacentes ao ato cognitivo e a conduta humana em geral, como

intenção, finalidade, desejo, vontade, memória, emoção, consciência e inconsciente, e não uma

terminologia eminentemente teatral.

Ao requisitar o comprometimento do corpo na experiência, por meio das ações físicas,

Stanislavski não excluiu a necessidade do pensar ou do analisar, mas instaurou uma espécie de

deslocamento da atividade cognitiva, como busquei enfatizar neste estudo. Ao invés de uma

análise anterior por operações eminentemente mentais, pelo que denominou como o “frio”

cérebro, ele propôs ao ator pensar através de suas ações. Neste sentido, a estratégia de

conhecimento foi alterada, pois é a partir das ações do corpo que o ator articularia os demais

elementos da representação e se aproximaria do que Stanislavski denominou de a natureza

criadora.

Estas formulações nos permitiram estabelecer conexões com as teorias do conhecimento

em torno do problema corpo-mente. Não somente as conexões com as mais recentes abordagens

das ciências cognitivas, mas com as teorias filosóficas e científicas que, a partir do século XVII,

ressoariam na arte interpretativa, ecoando nas teorias de Stanislavski e Grotowski. Na

perspectiva de um pensar em ação e de um tipo de conhecimento do ator que denomino um

saber prático, pensamento e movimento foram abordados nesta tese não como acontecimentos

Page 179: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

179

separados em seus territórios categoriais, mas como aspectos de um mesmo processo cognitivo

dinâmico. O que Stanislavski chamou de o trabalho do ator sobre si mesmo pressupôs, também,

um alargamento de fronteiras entre o próprio organismo e as suas interações com o ambiente,

numa revisão da relação de causa e efeito no fenômeno da ação humana.

Stanislavski percebeu a complexidade que envolve o comportamento humano nas

relações entre matéria e espírito e incorporou os conhecimentos científicos e as questões

filosóficas de sua época, para confrontar as suas hipóteses. O diretor russo foi um dualista no

discurso, mas um monista na sua prática. Ele não se desvinculou totalmente do dualismo de

substância ao enunciar os aspectos materiais do corpo e imateriais das emoções e sentimentos

na procura por um “elo indissolúvel” entre os planos interiores e exteriores, físicos e espirituais,

mas demonstrou, na investigação prática junto aos atores, a sua incessante busca pela não

dissociação destes planos, admitindo um único gênero de substância. A estratégia de busca da

unidade psicofísica ganhou consistência por meio do método das ações físicas, com o corpo

inserido mais diretamente na experiência. Neste sentido, o ato físico conteria em si mesmo a

vida espiritual ou serviria de “isca” para o seu surgimento. Se as emoções são pouco confiáveis

e controláveis, restaria ao ator trabalhar sobre suas ações. Neste sentido, o método das ações

físicas constitui-se uma estratégia de conhecimento em que o estado reflexivo não se separa da

emoção e da ação. Este método foi a tentativa mais aprofundada de Stanislavski para resolver a

dicotomia entre emoção e ação, pensamento e ação, espírito e corpo, razão e emoção, propondo,

como afirmei no decorrer deste estudo, um deslocamento da atividade cognitiva do ator. De

uma cognição “separada” para uma cognição “na ação”.

O espírito investigativo incansável de Stanislavski e sua honestidade científica nas

questões referentes a seus próprios métodos, reavaliando-os sistematicamente, situaram-no

como o grande reformador da pedagogia teatral ocidental do século XX. Não é a aplicação

direta dos ensinamentos de Stanislavski, mas os fundamentos na observação e investigação

contínua do trabalho do ator que orientou a pesquisa de Grotowski e sustentou,

fundamentalmente, o parentesco entre ambos. Em conformidade com Stanislavski, que

propunha ao ator trabalhar a vida inteira e treinar sistematicamente os seus dons, para a

sobrevivência de um sistema metodológico é necessário a sua atualização constante, dialogando

com as necessidades do individuo e do meio. Olhar para as perguntas formuladas por

Stanislavski e Grotowski e as conexões aqui estabelecidas por meio das hipóteses provenientes

das ciências cognitivas e da teoria do corpomídia é perceber que as questões ontológicas,

epistemológicas e metodológicas referentes à ação estão em aberto e que as respostas estão

constantemente em processo. É fato que muitas das questões referentes à nova teoria do corpo-

Page 180: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

180

mente proposta Stanislavski, desenvolvida mais enfaticamente nos últimos quatro anos de sua

vida (de 1934 a 1938), ficaram sem continuidade em vista de sua morte, em 1938.

O caráter processual e dinâmico da ação faz do trabalho do ator sobre si mesmo um

desafio constante e continuado. A atividade do ator pressupõe o entendimento da noção de si

mesmo, dos aspectos do próprio organismo e de suas interações com outros seres e o ambiente.

Reconhecer o corpo, na atualidade, como um sistema processual e dinâmico requer o

entendimento de que o cérebro reconstrói o sentido do eu, a cada momento, provocando estados

do organismo constantemente reconstruídos e que delineiam a presença do corpo em ação no

mundo. O que não permite, no caso do ator, controlar todo o processo acional nem, tampouco,

repeti-lo da mesma forma. Há uma imprevisibilidade que depende de inúmeros fatores. Ainda

que o ator prepare obstinadamente suas ações de forma objetiva e intencional, os estados do seu

corpomente e as informações do meio influenciam o processo dos ensaios ou o momento da

apresentação para que se convertam em momentos singulares. O que não significa a ausência de

um processo de estruturação das ações por parte do ator, mas a composição de uma partitura

cênica capaz de absorver qualidades que possam ser engendradas no instante.

Na possibilidade de se pensar o ator como um sujeito não cartesiano, novas relações

devem se estabelecer entre corpo e mente, se constituindo como tópicos essenciais para

discussão do problema da ação. O ato pensante e o ato consciente passam a ser entendidos como

implementados no corpo em ação no mundo, não mais como atributo de uma razão descolada

ou anterior à experiência. A mente, pela lente das teorias das ciências cognitivas aqui

abordadas, é encarnada, corporificada, e não responde exclusivamente a uma condição a priori.

Hoje, as teorias cognitivas que pesquisam estas questões não duvidam da fisiologia dos estados

mentais e do correlacionamento dos processos do corpo e da mente. Surge, a partir daí, a

perspectiva de uma abordagem do corpomente. Se o século XX redescobriu o corpo e o elegeu

como “instrumento” de conhecimento, inclusive para a formação de um novo ator, o enfoque

dos estudos sobre a mente e suas conexões com o corpo tem sido um dos campos

epistemológicos mais férteis na atualidade. Acredito que os novos entendimentos sobre a

intencionalidade, a consciência e os estados emocionais podem auxiliar o ator a trabalhar “sobre

si mesmo” e sobre suas ações, incidindo numa possível transformação de sua prática cênica. A

constituição das ações é um processo de conhecimento, e o problema epistemológico do

trabalho do ator consiste em averiguar os procedimentos que cercam o próprio ato de conhecer.

Ao perceber a rede complexa de conexões que consiste em seus atos, o ator poderá

compreender mais amplamente seus processos de conhecimento de si mesmo e do mundo.

Atento a si, ao meio e ao instante presente, o ator abre-se simultaneamente à experiência

Page 181: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

181

imediata e a situações pré-estabelecidas, como convém ao jogo teatral.

O objetivo desta tese não foi o de realizar um estudo exaustivo sobre a trajetória artística

de Stanislavski e Grotowski, mas, fundamentalmente, partir das reflexões em torno do método

das ações físicas por eles desencadeadas, especialmente no que se refere ao problema corpo-

mente. Reflexões estas que se mantém presentes no trabalho do ator na atualidade. Propus neste

trabalho apontar elementos para se pensar uma pedagogia do ator mais atenta a questões

referentes aos processos cognitivos por meio das metáforas, na medida em que proporcionam

ignição às ações do corpomente. A possibilidade de investigar as estruturas que formatam o

pensamento e a ação do ator como procedimentos metafóricos emergentes de processos

sensório-motores implica numa aproximação mais dinâmica entre pensamento e ação, mente e

corpo. As metáforas do corpo-máquina, decorrentes de uma visão mecanicista, e do corpo-

organismo, de uma pulsão vitalista, permanecem ainda como propulsoras de ações nas teorias

do ator. As metáforas dinamicistas (corpo-auto-organizado), não obstante, já se insinuavam nas

experiências formalizadas por Stanislavski e Grotowski como condição da ação do corpomídia

no mundo.

O trabalho do ator sobre si mesmo implica num certo tipo de conhecimento, que não é

só a construção de um modelo teórico sobre as relações corpo e mente, mas um conhecimento

mais operativo sobre estas referências em direção a uma prática transformadora. A arte do ator

tende a permanecer ainda no século XXI como a arte do vivo, da experiência da presença,

requisitando constantemente a revisão ontológica, epistemológica e pedagógica do corpomente

em ação.

Page 182: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

182

Referências Bibliográficas

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

ALIVERTI, Maria Inês. La naissance de la’acteur moderne, L’acteur et son portrait au XVIII

siècle. Paris: Éditons Gallimard, 1998.

AMARAL, Sônia. Chi-kun. A respiração taoísta: exercícios para mente e corpo. São Paulo:

Summus Editorial, 1984.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1991

______. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

ARMELLA, Virginia A. El concepto de técnica, arte y producción en la filosofía de Aristóteles.

México: Fondo de Cultura Economica,1993.

ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

ASLAN, Odette. O ator no século XX. São Paulo: Editora Perspectiva, 1994.

BARBA, Eugênio. A Canoa de Papel: Tratado de Antropologia Teatral. São Paulo: Hucitec,

1994.

______. Une amulette faite de mémoire. La signification des exercices dans la dramaturgie de

l’acteur. In : PEZIN, Patrick. Le livre des exercices à l’usage des acteurs. Saussan:

L’Entretemps, 2002, p. 355-361.

______. La fiction de la dualité. In: Théâtre qui Danse. Bouffonneries, 1989, n. 22/23.

BARBA, Eugênio; SAVARESE, Nicola. Anatomia del actor. Diccionario de Antropologia

Teatral. México: Editorial Gaceta, 1988. (Colección Escenologia).

BARIDOU, Laurent ; GUÉDROU, Martial. Corps et Arts. Physiognomies et physiologie dans

les arts visuals. Paris: L’Atarmattan, 1999.

BARTHES, Roland. A aventura semiológica. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

BERNARD, Michel. De la création choréographique. Paris: Centre National de la danse, 2001.

BERTHOZ, Alain. Le sens du mouvement. Paris: Éditions Odile Jacob, 1997.

_______. La Décision. Paris: Éditions Odile Jacob, 2003.

BITBOL-HESPÉRIÈS, Annie. Le principe de vie chez Descartes. Paris : Librairie

Philosophique J.Vrin, 1990.

BLOCH, Susana; ORTHOUS, Pedro; SANTIBAÑEZ-H, Guy. Effector patterns of basic

emotions. A psychophysiological method for training actors. In: ZARRILI, Phillip. Acted (Re)

Considered. London: Routledge, 1995.

BRAGA, Ruben. A Apercepção Originária de Kant na Física do Século XX. Brasília: Editora

Universidade de Brasília, 1991

Page 183: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

183

BOGDAM, Lew. Stanislavski, le Roman Théâtral du siécle. Saussan: L’EntreTemps Éditions,

1999.

BONFITTO, Matteo. O ator compositor. As ações físicas como eixo: de Stanislavski a Barba.

São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.

BOSSI, Laura. L’âme életrique. In: CLAIR Jean (dir.), L’âme au corps. Arts et Sciences. 1793-

1993. Paris: Éditions Galimard/Electra, 2002.

BROOK, Peter. O Ponto de Mudança. Quarenta anos de experiências teatrais: 1946-1987. Rio

de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.

BURNS, Edward. Ancient Theories of Character in Character: Acting and Being on the Pre-

modern Stage. New York: St Martin Press, 1990.

BURNIER, Luís Otávio. A arte do ator. Da técnica à representação. Campinas: Editora da

UNICAMP, 2001.

CALVINO, Ítalo (org.).Contos fantásticos do século XIX: O fantástico visionário e o fantástico

cotidiano. São Paulo: Cia das Letras, 2004.

CAHUSAC, Louis de. La danse ancienne et moderne ou Traité Historique de la danse (1754) .

Paris: Centre National de la danse – CND, 2004.

CARAKER, Cathie. Le Body-Mind Centering, entant qu’approche de l’apprentissage de la

danse. Incorporer. Bruxelles, Contredanse, 2001.( Nouvelles de danse, n. 46/47)

CARVALHO, Cacá. Depoimento [abr. 2004].Entrevistadora Sandra Meyer Nunes. São Paulo:

Teatro da USP - Universidade de São Paulo, 2004. Entrevista concedida por ocasião da

apresentação do espetáculo solo La Poltrona Scura, com atuação de Cacá Carvalho e direção de

Roberto Bacci.

CHANGEUX, Jean-Pierre. De la science vers l’art. In: CLAIR Jean (dir.). L’âme au corps.

Arts et Sciences. 1793-1993. Paris: Éditions Galimard/Electra, 2002.

CHAVES, Yedda Carvalho. A Biomecânica como aspecto constituinte da arte do ator. In:

I° CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES

CÊNICAS. 1999, São Paulo. Anais. São Paulo: ABRACE, 1999. p.125-127.

CHEKHOV, Michael. Para o Ator. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1996.

CHURCHLAND, Paul. Matéria e consciência. Uma introdução contemporânea à filosofia da

mente. São Paulo: Editora UNESP, 2004.

CHURCHLAND, Patricia (org.). The Mind-Brain Continuum. Sensory Processes. London: A

Bradford Book/The MIT Press, 1996.

COHEN, Bonnie Bainbridge. L’échauffement des danseurs à l’aide du Body-mind Centering.

Incorporer. Bruxelles: Contredanse, 2001. ( Nouvelles de danse., n. 46/47).

Page 184: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

184

CORIN, Florence. Les sens du mouvement. Interview D’Alain Berthoz. Vu du corps. Bruxelles:

Contredanse, 2001. (Nouvelles de danse, n. 48/49).

CRESPO, Jorge. A História do corpo. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1990.

CURSO “O ATOR NA CONSTRUÇÃO ORGÂNICA DE SUA AÇÃO”, 2003, Itajaí,

(ministrado pelo ator e diretor Diego Cazabat, do Centro de Investigación Teatral e Casa de

Studios “El Astrolábio”, Buenos Aires - AR). Itajaí, Téspis Cia de Teatro, 03 a 11 fev. 2003

DEBORD, Jean-François. Le mécanisme de la physionomie humaine. La vie et l’oeuvre de

Duchenne de Boulogne. In: CLAIR Jean (dir.), L’âme au corps. Arts et Sciences. 1793-1993.

Paris: Éditions Galimard/Electra, 2002.

DAMÁSIO, António. O mistério da consciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

______. O erro de Descartes. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

______. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo:

Companhia das Letras, 2004.

DAVIDSON, Donald. Actions et événements. Paris : Press Universitaires de France, 1993.

DECROUX, Étienne. Paroles sur le mime. Paris : Editions Librarie Théâtrale, 1994.

DESCARTES. Os pensadores. Discurso do Método. As paixões da Alma. Meditações.

Objeções e Respostas. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

DENNETT, Daniel. Tipos de Mente. Rumo a uma compreensão da consciência. Rio de Janeiro:

Rocco, 1997.

DE MARINIS, Marco. El nuevo teatro, 1947-1970. Barcelona: Ediciones Paidós, 1988.

______. La parábola de Grotowski: el secreto del “novecento” teatral. 1. ed. Buenos Aires:

Editorial Galerna, 2004. (Breviários de Teatro XXI).

DIDEROT, Denis. Discurso sobre a poesia dramática. Tradução e notas L.F. Franklin Matos.

São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.

DIDEROT, Denis. Textos Escolhidos. Tradução e notas de Marilena Chauí e J.Guinsburg. São

Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção Os Pensadores).

DIDIER, Béatrice. Diderot, dramaturge du vivant. Paris: Press Universitaire de France, 2001.

DOLEZER, Lubonir. A Poética Ocidental. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1990.

EDELMAN, Gerald; TONONI, Giulio. A Universe of Consciousnss. How matter becomes

imaginations. New York: Basic Books, 2000.

ENAUDEAU, Corine. Le corps de l’absense. In: FARCY, Gérard-Denis; PRÉDAL, René

(org.). Brûler les planches, crever l’écran. La présence de l’acteur. Paris: L’Entretemps

Éditions, 2001.

ENGEL, Johann Jacob. Idées sur le geste et l’action théâtrale (1795). Tradução do alemão.

Page 185: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

185

Reimpressão do formato original da edição de Paris, 1795. Apresentação de Martine de

Rougemont. Geneve: 1979 (Collection Ressources v.I, v. II)

FÉRAL, Josette (org.). Mise em scène et Jeu del’acteur. Entretiens/Le corps en scène. Quebéc:

Éditions Jeu/Éditions Lansman, 2001

FERRACINI, Renato. A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator.

Campinas:Editora UNICAMP:Imprensa Oficial, 2001

FILLOUX, Jean-Claude. O inconsciente. São Paulo: Editora Martins, 1988.

FONDAZIONE PONTEDERA TEATRO. Programação da 2a Mostra de Artes Cênicas do

SENAC de São Paulo. Julho de 2005. Disponível em: <http://www1.sp.senac.br.> Acesso em:

28 dez 2005.

GEORGIADES, Thrasybulos. Greek music, verse and dance. NewYork: Merlin Press, s/d.

GIL, José. Movimento Total. O corpo e a dança. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2001.

GIRAUDET, A. Physionomie et gestes. Méthode pratique d’après le systhéme de F. Del Sarte

pour servir à l’axpression des sentiments. Paris: Ancienne Maison Quantin, 1895.

GODARD, Hupert. Gesto e percepção. In: PEREIRA, Roberto (org.) Lições de Dança 3. Rio de

Janeiro: UniverCidade Editora, s/d.

GOLDFIELD, Eugene. Emergent Forms. Origins and Early Development of Human Action and

Perception. New York: Oxford University Press, 1995.

GORDON, Mel. Meyerhold’s Biomechanics. In: ZARRILI, Phillip. Acted (Re) Considered.

London: Routledge, 1995, p.85-107.

GRASSI, E. Arte e Anti Arte. São Paulo: Editora Duas Cidades, 1975.

GREINER, Christine. A dança butô no ocidente, um pensamento em evolução. São Paulo:

Escrituras, 1998.

______. O corpo. Pistas para estudos indisciplinares. São Paulo, Anna Blume, 2005.

______. A desfronteirização das metáforas ontológicas no corpo artista. Territórios e fronteiras

da cena. Revista eletrônica de artes cênicas, cultura e humanidades. São Paulo, Ano, 01, ed. 01,

dez. 2004. Disponível em: < http://www.eca.usp.br/tfc >. Acesso em: 10 jan. 2005.

______. A cozinha de Deus às membranas virtuais do homem. In: GREINER, Christine;

AMORIM, Claudia. Leituras do Corpo. São Paulo: Anna Blume, 2003. p.139-146.

GROTOWSKI, Jerzy. Sobre o método das ações físicas. Palestra proferida por Grotowski no

Festival de Teatro de Santo Arcangelo (Itália), Jun. de 1988. Disponível em:

http://www.grupotempo.com.br. Acesso em: 30 jul. 2002.

______. Em busca de um teatro pobre. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992.

______. Respuesta a Stanislavski. In: JIMENEZ, Sérgio. El evangelio de Stanislavski segun sus

Page 186: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

186

apostoles, los apócrifos, la reforma, los falsos profetas y Judas Iscariote. México: Editorial

Gaceta, 1990. p.487-504 (Coleción Escenologia).

______. Los ejercicios. Máscara, México, ano 3, n. 11-12, p. 27-38, jul.,1993. Editado por

Coleción Escenología.

_______. Exercices. Action Culturelle du Sud-Est, Marseille, n. 6, p. 1-3,1970.

GROTOWSKI, Jerzy. La lignée organique au théatre et dans le rituel . Palestra proferida em

LE LIVRE QUE PARLE. Théatre de L’Odéon, Sessão de 2 horas, Paris, jun. 1997. Collection

Collège de France.

GUINSBURG, J. Stanislávski, Meierhold & Cia. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001,

HACKS, Charles. Le geste. Paris: Librarie Marpon & Flammarion, 1900.

HEGEL, Georg W. Estética: a idéia e o ideal. Estética: o belo artístico ou o ideal. São Paulo:

Nova Cultural, 1991.

HORMIGON, Juan Antônio. Meyerhold: textos teóricos. Madrid: Imprensa de la Comunidad de

Madrid, 1992. (Série teoria y prática del teatro).

HOUDÉ, Olivier. (org.). Vocabulaire de sciences cognitives. Paris: Press Universitaire de

France, 2003.

HOURCADE, Philippe. Mascarades & Ballets augrande siécle (1643-1715). Paris: Éditions

Desjouquéres/CND, 2002.

HUSSERL, Edmund. Os Pensadores. Investigações lógicas. Sexta Investigação (Elementos de

uma Elucidação Fenomenológica do Conhecimento). São Paulo: Nova Cultural, 1996.

ICLE, Gilberto. Teatro e construção de conhecimento. Porto Alegre: Fundarte: Mercado

Aberto, 2002.

ISAACSSON, Marta. O passado, origem da autenticidade do presente, nas pesquisas de

Stanislávski e Grotowski. Urdimento. Teatro e memória, Revista de Estudos Pós-graduados em

Artes Cênicas. Programa de Pós-graduação em Teatro da UDESC, Florianópolis, n. 6, p.9-19,

dez. 2004. Universidade do Estado de Santa Catarina.

JAMES, William. The principles of psychology. New York: Dover, 1950.

JIMENEZ, Sergio. El evangelio de Stanislavski segun sus apostoles, los apócrifos, la reforma,

los falsos profetas y Judas Iscariote. México: Editorial Gaceta, 1990. (Coleción Escenologia).

JUARRERO, Alicia. Dynamics in action, intentional Behavior as a complex system.

Massachusetts: A Bradford Book: The Mit Pess, 2002.

KANT, Emmanuel. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

Katz, Helena. Um, dois, três. A dança é o pensamento do corpo. Belo Horizonte: FID Editorial,

2005.

Page 187: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

187

KATZ, Helena; GREINER, Christine. A natureza cultural do corpo. Rio de Janeiro:

UniverCidade Editora, s/d. (Lições de Dança 3).

KUMIEGA, Jennifer. The Theatre of Grotowski. London: Ed. Methuen London Ltda, 1985.

LABAN, Rudolf. Domínio do movimento. São Paulo: Summus Editorial, 1978.

______. Dança educativa moderna. São Paulo: Ícone Editora, 1990.

LAKOFF, George. Women, fire, and dangerous things. What categories reveal about mind.

Chicago: University of Chicago Press, 1987.

_______. Metáforas da vida cotidiana. Campinas: Mercado das Letras. São Paulo: EDUC,

2002.

LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Philosophy in the Flesh, the embodied mind and its

challenge to western thought. New York: Basic Books, 1999.

LEMAHIEU, Daniel. La danse de Kleist et la marionnette. Objet-Danse. Alternatives

théâtrales, n. 80, p. 9-12, 2001. Institut Internatinal de la Marionnette. Éditions Lansman.

LLINÁS, Rodolfo. I of the Vortex. From Neurons to Self. Massachusetts: A Bradford Book,

2002.

LORELLE, Yves. Le corps, les rites et la scène. Des origins au XXe siécle. Paris: Le Éditions

L’Amandier – Théâtre, 2003.

LOUPPE, Laurence. Poetique de la danse contemporaine. Paris: Librairie de la Danse.

Contredanse, 2004.

MAGNAT, Virginie. Cette vie n’est pas suffisante. De l’acteur selon Stanislavski au performer

selon Grotowski. Théâtre/Public. Jerzy Grotowski. Konstantin Stanislavski. Théâtres de ville et

compagnies théâtrales. Paris, n. 153, p. 4-19, maio - jun., 2000. Théâtre de Gennevilliers.

MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. El árbol del conocimiento. Chile: Editorial

Universitária, 1994.

MEIJER, Onno G. Making things happen: an introduction to the history of movement science.

In: LATASH, Mark L; ZATSIORSKY, Vladimir M. (ed.). Classics in movement science.

Champaign: Human Kinects, 2001.p. 2- 57.

MENESTRIER, Claude-François. Des ballets anciens et modernes selon les règles du téâtre.

Reimpressão da edição de Paris (1682). Geneve: Minkoff Reprint, 1972.

MENEZES, Philadelpho. A crise do passado. Modernidade, vanguarda e experimentação. São

Paulo: Experimento, 1994.

MERLEAU-PONTY, Maurice. L’oeil et l’esprit. Paris: Galimard, 2004.

______. Os pensadores. São Paulo: Editora Abril, 1980.

MEYERHOLD, Vsevolod. Écrits sur le théâtre.1917-1929. Tradução de Béatrice Picon-Valin.

Page 188: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

188

Paris: L’Age D’Homme, 1975.

MONTEIRO, Marianna. Noverre. Cartas sobre a dança. São Paulo: EDUSP: FAPES, 1998.

MÜLLER, Carol. Le training de l’acteur. Paris: Actes Sud- Papiers/CNSAD, 2000.

NUNES, Sandra Meyer. O corpo do ator em ação. In: GREINER, Christine; AMORIM,

Claudia. Leituras do Corpo. São Paulo: Anna Blume, 2003.

______. A nova corporalidade das primeiras décadas do século XX e o surgimento do conceito

de treinamento corporal do ator.1996. Monografia. (Trabalho de Conclusão de Curso) Curso de

Especialização em Teatro-educação da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC.

Florianópolis, 1996.

NUNES, Sandra Meyer. O corpo que pensa. O treinamento corporal na formação do ator.

(Stanislavski, Artaud, Grotowski, Barba, Antunes Filho). 1998. Dissertação (Mestrado).

Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica. Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo - PUC/SP. São Paulo, 1998.

______. O aspecto físico e metafísico do corpo do ator grotowskiano. Monografia efetuada

durante curso de Mestrado no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e

Semiótica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. São Paulo, 1996.

(Trabalho não publicado).

______. Corpo, processos e ação física: o problema da intencionalidade. In: do IIIO

CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS.

2003, Florianópolis, Anais. Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes

Cênicas - ABRACE. (Memória ABRACE). 2003. (ISSN-1517-7831), p. 92-94.

OLIVEIRA, Luiz Alberto. Biontes, bióides e borgues. In: NOVAES, Adalto (org). O Homem

máquina – a ciência manipula o corpo. São Paulo: Cia da Letras, 2003.

OSINSKI, Zbigniew (1991). Grotowski Blazes the Trails. From Objective Drama to Ritual

Arts. Drama Review, New York, v. 35, n. 1, p.35- 48, 1991.

PÂNDU, Pandiá . Dicionário Global da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Renovada,1981.

PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes: 2001.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.

______. Voix et images de la scène. Pour une semiologie de la reception. Lille: Presses

Universitaires de Lille, 1985.

______. Decroux et la Tradition du Théâtre Gestuel de Meyerhold au Théâtre du Mouvement.

In : PEZIN, Patrick. (org.). Étienne Decroux, mime corporel. Textes, études et témoignages.

Paris: L’Entretemps Éditions, 2003.

______. A análise dos espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2003.

Page 189: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

189

PÉREZ-RINCÓN, Héctor. El teatro de las histéricas: De como Charcot descobrió, entre otras

cosas, que también había histéricos. México: Fondo de Cultura Econômica,1998.

PETIT, Jean-Luc (org.). Les neurosciences et la philosophie de l’action. Paris: Librairie

Philosophique J. Vrin, 1997.

PEZIN, Patrick. Le livre des exercices à l’usage des acteurs. Saussan: L’Entretemps, 2002.

PICON-VALLIN, Béatrice. Meyerhold., Paris: Éditions du Centre National de la Recherche

Scientifique - CNRC. 1990. ( Les voies de la création théâtrale n. 17).

PINKER, Steve. Tábula rasa. A negação contemporânea da natureza humana. São Paulo:

Companhia das Letras, 2004.

PIDOUX, Jean-Yves. Acteurs et personnages: L’interpretation dans les esthétiques théâtrales

du XXé siécle. Suisse: L’Aire Théâtrale, 1986.

PLASSARD, Didier. L’acteur en effigie: Figures del’homme artificiel dans le théâtre des avent-

gardes historiques. Allemagne, Frande et Italie. Lausanne: Éditions L’Age d’homme / L’Institut

International de la marionnette, 1992.

PRADE, Péricles. Revoluções Culturais. Filosofia, Ciência, Tradições e Letras.São Paulo:

Escrituras Editoras, 2004. (Coleção Transversais).

PRIGOGINE, Ilya; STENGERS, Isabelle. A Nova Aliança. Brasília: Editora Universidade de

Brasília –UNB, 1991.

PRUDHOMMEAU, Germanine. La danse grecque antique. Paris: Éditions Centre National

Scientifique, 1965.

PORTE, Alain. François Delsarte. Une Anthologie. Paris: Éditions IPMC, 1992.

QUILLIOT, Roland (org.). Le corps et l’esprit. Paris: Ellipses Éditions, 2003.

RAMACHANDRAN, V. S.; BLAKESLEE, Sandra. Fantasmas no cérebro. Uma investigação

dos mistérios da mente humana. Rio de Janeiro: Record, 2002.

RIBOT, Théodule. La Psychologie des Sentiments. 16. ed. Paris: Alcan-Press Universitaires de

Paris, 1939.

______. Les Logiques des Sentiments. Paris: L’Harmattan, 1998.

REY, Alain. (Redaction dirigida por) LE ROBERT Micro. Dictionnaire de la langue française.

Paris, 1998.

RICHARDS, Thomas. At work with Grotowski on physical actions. London: New York:

Routledge, 2001.

ROACH, Joseph R. The Player’s Passion: Studies in the Science of Acting. London: Toronto:

Associated University Presses, 1985.

ROOD, Arnald (org.). Gordon Craig, on movement and danse. New York: Dance Horizons,

Page 190: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

190

1977.

RUFFINI, Franco. El sistema de Stanislavski. In: BARBA, Eugênio; SAVARESE, Nicola.

Anatomia del actor. Diccionario de Antropologia Teatral. México: Editorial Gaceta, 1988.

(Colección Escenologia)

SCHLANGER, Judith. Les metaphors de l’organisme. Paris: Éditions L’Harmattan, 1971.

SCHLEMMER, Oskar. Théâtre et abstration (L’Espace du Bauhaus). Tradução, prefácio e

notas do alemão para o francês por Éric Michaud. Lausanne: Éditions L’Age d’homme, 1978.

SEARLE, John R. Intencionalidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

SELLAMI-VIÑAS, Anne Marie. L’Écriture du corps en scène. Une poetique du

mouvement.1999. Thèse (Doctorat d’État et Lettres et Sciences Humaines). Université Paris I,

Panthéon, Sorbonne, 1999.

SELLES-YOUNG, Barbara. Technique and the Embodied Actor. Theatre Research

International. New York, v. 24, n. 1, p. 89-97, jul, 1995.

SERRANO, Raúl. Tesis sobre Stanislavski en la educación del actor. Cidade do México:

Escenologia, A.C, 1996

______. Nuevas Tesis de Stanislavski: Fundamentos para una teoría pedagógica. Buenos Aires:

Atuel, 2004.

SIMON, Michel. Penser et croire au temps des sciences cognitives. Paris: Éditions des

Archives Contemporaines, 2001.

SKIBA-LICKEL, Aldona. L’acteur dans le Theatre de Tadeusz Kantor. Bouffonneries, Paris, n.

26-27, 1991.p. 4-10

SODRÉ, Muniz. Atropológica do Espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede. Rio de

Janeiro: Vozes, 2002.

STANISLAVSKI, Constantin. A construção da Personagem. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 1965.

______. A criação de um papel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.

______. A preparação do ator. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

______. Minha vida na arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.

______. Ma vie dans l’art. Lausanne: L’Age D’Homme, 1980.

______. Manual del actor. Cidade do México: Editorial Diana, 1994.

______. El metodo de acciones físicas In: JIMENEZ, Sergio. El evangelio de Stanislavski segun

sus apostoles, los apócrifos, la reforma, los falsos profetas y Judas Iscariote. México: Editorial

Gaceta, 1990. (Coleción Escenologia).

TREMBLAY, Lerry. Le crâne des Théâtres: Essais sur les corps de l’acteur. Montreal: Leméac,

Page 191: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo · 3 Agradecimentos Pedro Alípio, a medida certa de tua atenta, amorosa e respeitosa presença/ausência foi essencial durante o

191

1993.

TODD, Mabel. Les mécanismes de réactions. Incorporer. Nouvelles de Danse, Bruxelles, n.

46/47, 2001, Contedanse.

TOPORKOV, V.O. Stanislavski in rehearsal: the final years. Nova York: Theatre Arts Books,

s.d.

______. Las acciones fisicas como metodologia. In: JIMENEZ, Sergio. El evangelio de

Stanislavski segun sus apostoles, los apócrifos, la reforma, los falsos profetas y Judas Iscariote.

México: Editorial Gaceta, 1990. (Coleción Escenologia).

SEMINÁRIO “ARTAUD, DECROUX E GROTOWSKI”, 2005, Florianópolis, (com o

professor e teórico teatral Marco de Marinis, da Universidade de Bologna). Auditório da

Reitoria da UDESC, Florianópolis: Programa de Mestrado em Teatro da Universidade do

Estado de Santa Catarina - UDESC, 10 a 12 ago. 2005.

SIMPÓSIO INTERNACIONAL WORKCENTER OF JERZY GROTOWSKI AND THOMAS

RICHARDS, 1996, São Paulo, (presença de Grotowski e do ator e diretor inglês Thomas

Richards, e de teóricos de diversos países). Teatro do SESC Anchieta, São Paulo: SESC; Centro

de Pesquisa Teatral-CPT, 13 a 16 out. 1996.

THE FREE ENCYCLOPEDIA.Disponível em:< http://en.wikipedia.org >. Acesso em: 27 jun

2005.

WEGNER, Daniel M. The Illusion of Conscious Will. London: Bradford Books/Mit Press,

2002.

WHITLAM, John; DAVIES, Vitória. Collins Dicionário Inglês-Português. Harper Collins

Publishers. São Paulo: Edições Siciliano, 1991.

WINTERBOTTOM JR, Philip (1991) Two Years before the Master. Drama Review, New

York, v. 35, n.11991.

VACCARINO, Elisa Guzzo. La marionnette qui danse. Objet-Danse. Alternatives théâtrales,

Bruxelles, n. 80, p. 4-8, 2001. Institut Internatinal de la Marionnette. Éditions Lansman.

VARELA, Francisco; THOMPSON, Evan; ROSCH, Eleanor. De Cuerpo Presente, Barcelona:

Gedisa Editorial. s/d.

ZARRILLI, Phillip (ed.). Acting (Re) Considdered. London: Routhledge, 1995.