PONTIFÍCIA UNIVESIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO de Azeve… · 2.2 Estado de Exceção –...
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
WILSON DE AZEVEDO MARQUES
DEMOCRACIA NA ERA DA BIOPOLÍTICA E DO BIOPODER:
QUESTÃO EM ANÁLISE
DOUTORADO EM DIREITO
SÃO PAULO
2016
1
WILSON DE AZEVEDO MARQUES
DEMOCRACIA NA ERA DA BIOPOLÍTICA E DO BIOPODER:
QUESTÃO EM ANÁLISE
DOUTORADO EM DIREITO
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título
de Doutor em Direito, área de concentração:
Filosofia do Direito e do Estado, sob a
orientação do Prof. Dr. Gabriel Benedito
Issaac Chalita.
SÃO PAULO
2016
2
FOLHA DE APROVAÇÃO
Tese defendida e aprovada em ____/____/____, pela comissão julgadora:
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A Deus, e aos meus pais, sempre, Rubens de
Azevedo Marques e Rita de Favari Azevedo Marques.
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AGRADECIMENTOS
O desenvolvimento de um trabalho acadêmico leva formalmente quatro anos para encontrar
seu amadurecimento. Acredito na ação de um tempo muito maior, pois a estrada do
conhecimento vem antes e continua para outros aprendizados. Durante todo esse período são
muitas as pessoas que colaboram com orientações importantes que ajudam a alargar o
entendimento almejado. Deixo registrada a minha gratidão a todas essas pessoas por todo o
apoio nesse espaço de tempo.
Em primeiro lugar, ao Professor Doutor Gabriel Chalita, pela atenção, paciência, sabedoria e
ética, e porque soube tão bem ministrar as aulas de filosofia grega em profícuas manhãs na
PUC-SP. Possibilitou uma intimidade com a Ética a Nicômaco, de Aristóteles, ao mesmo
tempo que descortinou a importância da educação.
À Professora Doutora Márcia Cristina de Souza Alvim, pelas instruções e apresentação de
tantas obras do programa de Pós-Graduação, ao nos acolher e pontuar sabiamente cada
pensador que ali estudávamos. Agradeço em particular a disposição com que sempre atendeu
a todos nas questões do curso.
Ao Professor Doutor Willis Santiago Guerra Filho, que me possibilitou conhecer importantes
recessos da Filosofia do Direito e principalmente por suas propostas de aprendermos pensar
sob a perspectiva da diversidade.
Ao Professor Doutor Márcio Pugliesi, pelas orientações no mestrado, apontando caminhos
seguros ao pensar sobre Filosofia.
Ao Professor Doutor José Renato Nalini e Professor Doutor Guilherme Amorim Campos, por
aceitarem o convite para a Banca de Doutorado.
Aos Professores Doutores Sérgio Seiji Shimura e Margareth Anne Leister.
Aos amigos Solange de Oliveira, Elizabete Garcia, Anna Claudia Svoboda, Alexandre Castro,
Andréia Martin e Elizabeth Nantes Cavalcante, Alexandre Zagnoli, José Rubens de Azevedo
Marques, Ângela Pan, Henrique Carnio Garbellini, e Lívia Giorgio, professores e colegas
acadêmicos do curso da Pós, pelo envio de materiais que contribuíram para a elaboração do
meu trabalho.
5
Ao profissional André Luís Jaschke, pela normalização e diagramação deste trabalho e pelo
acolhimento em momento tão importante.
À Professora Maria Celeste Arantes Corrêa, pela cuidadosa leitura e revisão gramatical.
A todos os funcionários da biblioteca da PUC-SP, pela paciência no atendimento.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes, pela concessão da
bolsa de estudos, e ao Rui, da secretaria da Pós, pelos constantes auxílios, paciência e
amabilidade com que me acolheu.
6
MARQUES, Wilson de Azevedo. Democracia na era da biopolítica e do biopoder:
Questão em análise. 2016. 136 f. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2016.
RESUMO
O objetivo da pesquisa que deu origem a este trabalho é tratar o impasse da Democracia na
era do biopoder e da biopolítica e questões sobre o fazer viver. É abordada no trabalho a
questão de condutas totalitárias no processo democrático, na forma de governar. O método de
investigação utilizado toma por base os textos teóricos dos filósofos Hannah Arendt, Michel
Foucault e Giorgio Agamben. Recorro a outros pensadores e outras proposições que reforçam
a importância da ética e da justiça no seio político público, fortalecendo a ideia de uma
política humanista como contribuinte de uma sociedade ordenada. Nos tempos atuais, o poder
e seus efeitos sobrepõem-se a todo e qualquer valor, quando populações deslocam-se de seus
países em busca de segurança jurídica e política, no que chamamos de biopolítica. Resgatam-
se análises que nos alertam quanto a essas questões, com o intuito de impedir a banalização do
mal e do poder, evitando que as dimensões do poder estatal dentro de uma comunidade
acabem por frustrar direcionamentos sociais satisfatórios, quando deveriam estar a serviço da
ordem e da proteção, possibilitando a efetividade constitucional. Uma mudança no paradigma
da linguagem existente entre as relações de poder e política do fazer viver e deixar morrer é
ponto essencial junto às esferas sociais, facultando a efetividade da justiça e da biopolítica.
Palavras-chaves: Biopolítica. Biopoder. Política. Sociedade. Ética. Direito e totalitarismo.
7
MARQUES, Wilson de Azevedo. Democracy in the age of biopolitics and of biopower:
issue in review. 2016. 136 f. Thesis and Doctorate in Law – Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, São Paulo, 2016.
ABSTRACT
The objective of the research, giving rise to this effort, seeks to address the problem of
democracy in the age of biopower and of biopolitics and questions about making a living.
There are at work, the issue of totalitarian behavior in the democratic process as a way to
govern. The research method used by research takes the theoretical writings of the
philosophers Hannah Arendt, Michel Foucault and Giorgio Agamben. I turn to other thinkers
and other propositions that contribute to the importance of ethics and justice in public policy
within, strengthening the idea of a humanistic policy as contributing to an orderly society. In
current times, the power and its effect supersedes any and all interest when people move from
their countries in search of legal and political security in the pursuit of biopolitics. Analyzes
are rescues who warn us about this issues, aiming to avoid the trivialization of evil and power,
preventing the dimensions of state power within a community, ends up preventing satisfactory
social directions when it should be at the service of the order and protection, allowing the
constitutional effectiveness. A change in the paradigm of language between the existing
power relations and policy make live and let die is essential point along the social spheres,
enabling the effectiveness of justice and biopolitics.
Keywords: Biopolitics. Biopower. Politics. Society. Ethics. Law and totalitarianism.
8
MARQUES, Wilson de Azevedo. Democrazia nell'era della biopolitica e di biopotere:
questione in rassegna. 2016. 136 f. Tesi di Laurea in Diritto – Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2016.
RIASSUNTO
L'obiettivo della ricerca, dando vita a questo sforzo, cerca di affrontare il problema della
democrazia nell'era del biopotere e di biopolitica e domande su come effettuare una vita. Ci
sono al lavoro, la questione del comportamento totalitario nel processo democratico come un
modo per governare. Il metodo di ricerca utilizzato dalla ricerca prende le scritti teorici dei
filosofi Hannah Arendt, Michel Foucault e Giorgio Agamben. Mi volto verso altri pensatori e
altre proposizioni che contribuiscono alla importanza dell'etica e della giustizia nella politica
pubblica all'interno, rafforzando l'idea di una politica umanistica come contribuire a una
società ordinata. Nei tempi attuali, il potere e il suo effetto sostituisce ogni e qualsiasi
interesse quando le persone si spostano dai loro paesi in cerca di sicurezza giuridica e politica
nel perseguimento della biopolitica. Analisi sono salvataggi che ci mettono in guardia su
questo problema, al fine di evitare la banalizzazione del male e potere, impedendo le
dimensioni del potere statale all'interno di una comunità, finisce per prevenire indicazioni
sociali soddisfacenti quando dovrebbe essere al servizio dell'ordine e protezione, consentendo
l'efficacia costituzionale. Un cambiamento nel paradigma del linguaggio tra i rapporti di
potere esistenti e della politica rendono vivi e lascia morire è il punto essenziale lungo le sfere
sociali, permettendo l'efficacia della giustizia e della biopolitica.
Parole chiave: Biopolitica. Biopotere. La politica. La società. L'etica. Il diritto e il
totalitarismo.
9
A honestidade se percebe nesses momentos, quando não há
testemunhas. Fazer o que é correto por medo das consequências é
a forma mais frágil de ser correto.
Gabriel Chalita
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 12
1 CAMINHOS DE SOCIEDADES BEM-ORDENADAS – UM
PROGRAMA A SER REFLETIDO 20
1.1 Algumas considerações sobre tais sociedades 20
1.2 Na República de Platão 22
1.3 A Política em Aristóteles 25
1.3.1 O legislador e o processo educacional 27
1.4 Sociedade bem-ordenada e a posição original em John Rawls 30
1.4.1 A necessidade do Estado e os grupos divorciados 35
1.4.2 Inversão de modelo: sociedades primitivas sem Estado e contra o Estado 38
1.4.3 Sobre a liberdade e as guerras nas sociedades primitivas 40
2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O PODER NA POLÍTICA E NA
SOCIEDADE – AUTORIDADE E LIBERDADE – PODER EM
MICHEL FOUCAULT E SEUS EFEITOS – SOCIEDADE DE
RISCO E CONSUMO 43
2.1 Algumas considerações sobre o poder 43
2.1.1 Sobre Poder, Autoridade e Liberdade 46
2.1.2 Sobre a Liberdade 48
2.1.3 Um Poder contrário que enfraquece o Biopoder e a Biopolítica 53
2.2 Estado de Exceção – Política e atualidade 56
2.2.1 Outras formas do direito à resistência 59
2.2.2 Sobre a inclusão e a dignidade humana 61
2.2.2.1 Inclusão das diferenças 61
2.2.2.2 Estado de Exceção e a Teoria da Corrupção 62
2.3 Biopolítica e Estado 68
2.3.1 Poder e Direito: Violência e política e a biopolítica 70
2.4 Nova cultura política e política diferencial 81
3 CAMINHOS DA BIOPOLÍTICA E DO BIOPODER –
REFLETINDO A QUESTÃO NA SOCIEDADE E NO ESTADO 84
3.1 Tempo da biopolítica e do biopoder 84
3.1.1 Sobre política e sistema de governo 93
11
3.1.2 Biopolítica e Estado de Exceção 97
3.1.3 Vida nua 103
3.2 Capitalismo e biopolítica 105
3.2.1 Capitalismo e humanismo 108
3.2.2 Humanismo e educação 111
3.3 Uma proposta a ser refletida em Jürgen Habermas 115
CONSIDERAÇÕES FINAIS 118
REFERÊNCIAS 131
12
INTRODUÇÃO
Em face do cenário em que vivemos e com a preocupação em trazer uma reflexão
sobre o papel da biopolítica e do biopoder junto às políticas públicas e a dinâmica social,
procurei declinar considerações sobre biopolítica e biopoder a partir de uma análise história
com o amparo de pensadores da envergadura de Michel Foucault, Giorgio Agamben e
Hannah Arendt, que possibilitaram entendimentos seguros e amplos, viabilizando uma
aproximação satisfatória da noção da bio-(política e poder) com a arte de bem governar.
Muitos outros pensadores e considerações caberiam neste trabalho, mas procurei
declinar aqueles que mais instigaram e ainda instigam de certa forma a busca de novos rumos
políticos e sociais. Confesso ter ficado fiel a tais obras, declinadas, traduzindo o pensamento
de poucos pensadores, para focar melhor no tema em minhas considerações. O primeiro
capítulo deste trabalho lança bases para a biopolítica e o biopoder, tema desta tese, e defende
que não haverá uma política satisfatória para a vida humana em geral, enquanto a política
pública e a sociedade não se voltarem para o verdadeiro interesse da política vida, permitindo
que o “fazer viver e o deixar morrer”1 sejam algo distante da normalidade. O resgate da obra
A República, de Platão, mesmo com seu modelo de utopia social, nos apresenta os traços de
biopolítica e biopoder. Firmes nos diálogos, os personagens gregos tramam por essa política
de cidade ideal.
As tensões que venham ocorrer, próprias de qualquer sistema social, se não
ponderadas, engessam a democracia, inviabilizando todo consenso que possa existir. Nesse
sentido, o convite ao cenário da obra platônica é o ponto elevado, pois remete aos dias atuais,
às tratativas para encontrar a maneira mais harmoniosa de administrar a política e a cidade.
É impressionante como muito do que se encontra na obra platônica permite refletir o
presente, assim como A Política2, de Aristóteles, pois ambas estabelecem bases seguras senão
definitivas para que o homem, em toda sua trajetória enquanto político, público ou anônimo,
possa saber usar, em seus atos, critérios sábios firmados inicialmente aos moldes aristotélicos,
com perspectivas de viabilizar uma sociedade bem-ordenada que contemple justiça e
igualdade social para todos.
1 Expressão utilizada por Michel Foucault em sua obra. FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. Aula
de 14 de janeiro de 1976 – Collège de France. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes,
2008a. p. 304-312 e em FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I – A vontade de saber. Tradução de
Maria Thereza da Costa Albuquerque e outros. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015. p. 145-174. 2 ARISTÓTELES. A Política. Tradução de Nestor Silveira Chaves. 2. ed. Bauru, SP: Edipro, 2009.
13
A ciência política e a filosofia do direito têm se dedicado a este tema, para alinhar
estudos às condutas da administração pública e social, contribuindo com análises para que o
poder em toda sua estrutura não esqueça que em sua organização deve existir o princípio da
justiça, igualdade e liberdade. A ciência política apresenta seus fundamentos sociológicos por
meio da sociologia jurídica. No contexto social, o homem depara-se com inúmeros conflitos,
pois faz parte de uma sociedade altamente complexa. A sociologia jurídica contribui para
atenuar a demanda de soluções e responder a anseios que o indivíduo tem na esfera social.
A modernidade não consegue oferecer respostas a tantas demandas que possam
solucionar crises e conflitos existentes, como demonstra a busca incessante do amparo do
judiciário. No pensamento sociológico de Jürgen Habermas a elaboração da teoria
comunicativa propõe o consenso, pela ação comunicativa dos sujeitos interessados, sob um
“ideal regulativo”3, possibilitando abertura para um direito mais consensual do que litigioso.
Pensar sobre política humanista e Poder parece um tema distante de nossa realidade e
que ao mesmo tempo se faz necessário. Distante porque assistimos hoje a políticas sendo
desenvolvidas para atender interesses nem sempre em busca de soluções condizentes com a
realidade social dos respectivos países que as promovem.
Considerando os tempos complexos e sombrios que vivemos, enquanto assistimos a
avanços e retrocessos no cenário público político e no cenário social, repensar a forma de
fazer política, com uma concepção humanista possibilitará que a biopolítica seja uma nova
arte de governar e não apenas uma promessa na esfera da democracia.
Considerando o cenário mundial, a questão do uso de armas potentes e dos interesses
por regiões de outros países e suas riquezas, fortalece ainda mais a tendência de que os meios
de violência sejam instrumentos do poder. A possibilidade de uma guerra nuclear é discutida
como se populações não existissem no cenário.
John Rawls nos apresenta de forma hipotética um contrato social entre pessoas livres e
racionais que assumem entre si um compromisso de justiça. Mesmo que pareça impossível,
cabe-nos ver nessa teoria uma preocupação com a igualdade, as questões sociais e a
solidariedade. Parece, ao mesmo tempo, que a teoria busca resgatar uma pureza entre os
3 Pelo “ideal regulativo”, seria obtido um consenso a partir do reconhecimento intersubjetivo de pretensões de
validade criticável. Com isso, chega-se ao ápice da crítica. Teoria de Jürgen Habermas com o conceito de
“ação comunicativa”. Cf. VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas e o direito brasileiro. São
Paulo: Saraiva, 2009. p. 27-39. A Teoria da Ação comunicativa é uma das propostas finais deste trabalho.
Habermas vai pensar a vinculação entre a “teoria dos atos de fala” e o conceito de “mundo vivido”. Ainda, “o
mundo vivido emerge, então, como condição de possibilidade do processo comunicativo: ele é reservatório de
evidências e de convicções inabaladas, que constitui o sentido intersubjetivamente partilhado a partir do qual
as pessoas podem comunicar-se”. Cf. ARAÚJO DE OLIVEIRA, Manfredo. Reviravolta Linguístico-
Pragmática na Filosofia Contemporânea. São Paulo: Loyola, 2006. p. 334.
14
participantes. Como cogitar de um contrato dessa magnitude em uma sociedade complexa
como a nossa? Seria necessário partirmos igualmente da visão de que todos poderiam
comportar-se no sentido de ações justas.
O objetivo que norteia John Rawls é elaborar uma teoria da justiça que se afigure uma
alternativa, apresentando a justiça como a primeira virtude das instituições sociais, a
possibilitar que entre indivíduos com objetivos e propósitos dispares uma concepção
partilhada de justiça estabeleça vínculos de convivência cívica. O papel da justiça como
descrito nos capítulos iniciais de sua obra tem o papel de cooperação social, a ideia de justiça
como equidade elevando ao nível mais alto o sentido das relações quando destinadas ao bem.4
John Rawls esclarece ainda que na ausência de uma certa medida do que é justo e
injusto fica claramente mais difícil para os indivíduos coordenar seus planos com eficiência, a
fim de garantir que os acordos, mutuamente benéficos, a todos sejam garantidos. Embora a
justiça deva ter prioridade na sociedade para construção de uma sociedade bem-ordenada,
considerando ser ela uma das virtudes mais importantes das instituições, é necessário
observar, para que isso aconteça, a disposição interna de cada membro e a valorização do
processo educativo que colabora com todo esse processo.
Apresento a propósito uma inversão no modelo ideal de sociedade, com as obras A
sociedade contra o Estado e Arqueologia da Violência5 de Pierre Clastres. Nestas obras
podemos verificar como as comunidades primitivas comportam-se sem o Estado. Procurei
fazer um paralelo entre certos grupos de nossa sociedade que não desejam a presença do
Estado e aquelas comunidades primitivas analisadas por Pierre Clastres.
No capítulo segundo, inicio com algumas considerações sobre o poder. Escorei-me em
reflexões de Hannah Arendt, considerando seu rico conhecimento e exemplos sobre as
questões totalitárias que ainda hoje afligem à humanidade: guerras, bombardeios, invasões de
terras e países e políticas voltadas ao particularismo, quando os governantes deveriam estar a
serviço da humanidade ou de seus próprios países.
É neste aspecto que a política humanista sofre abandono por partes dos governantes,
permitindo que haja o rompimento de uma política destinada às obrigações humanitárias,
destacando aqui a importância da cidadania, nos moldes de Hannah Arendt, e em favor de
uma política interessada num totalitarismo autoritário, excludente e ideológico.
4 RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenira Maria Rimoli Esteves. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2002. 5 CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política. Tradução de Theo
Santiago. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. E do mesmo autor CLASTRES, Pierre. Arqueologia da
Violência: Pesquisas de antropologia política. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify, 2011.
15
Sobre sermos uma comunidade política interessada em movimentos divergentes de
reconstrução dos direitos humanos, Celso Lafer, em A Reconstrução do Direitos humanos,
nutre uma preocupação em relação à biopolítica deixada apenas a planos de estudo, em
benefício de um único interesse que se destina aos particularismos econômicos, que afastam
políticas humanitárias em prol das comunidades mais necessitadas de políticas públicas.
A noção de Estado, como esclarece Celso Lafer, elaborada pela teoria jurídica,
necessita de elementos como governo, população, território e soberania. Quanto à atenção
recebida pela comunidade política em relação a esses quatro elementos, nem sempre há o
reconhecimento deles: é quando o governo de dada nação despreza políticas que favorecem
sua própria comunidade (interna de um país), ou desconhece a de outros países, em caso de
ataques e guerras, desrespeitando cidadania, nacionalidade e a organização política. Ficam
assim realçados pontos de divergência em relação aos direitos humanos.
Já em A Condição Humana,6 Hannah Arendt lança críticas em relação ao homem,
pontuando que a nova esfera social transformou as comunidades modernas em sociedades de
operários, concentrando-se em torno do labor. Passou a existir um aumento de produtividade
do trabalho.
Anthony Giddens, em Modernidade e identidade,7 defende uma política emancipatória
que busca libertar os indivíduos e grupos de limitações que afetam de forma negativa suas
vidas. Essa política implicaria igualmente valores morais a serem reconhecidos e adotados,
tornando importante a igualdade, justiça e participação.
O estímulo a ideias de emancipação humana percorre um processo de libertação das
desigualdades e opressões existentes nas divisões de classes, como esclarece Giddens:
“opressão é diretamente uma questão de poder diferencial, aplicado por um grupo para limitar
as oportunidades de vida de outro”.8
6 ARENDT, Hannah A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2009. 7 GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. 8 Giddens em sua obra trata de “política emancipatória” no importante sentido de participação na luta contra
desnível das igualdades como proposta de diminuir exploração. “A política emancipatória opera com uma
noção hierárquica do poder, ele é entendido como a capacidade de um indivíduo ou grupo exercer sua vontade
sobre os outros. A política emancipatória se ocupa de reduzir ou eliminar a exploração, a desigualdade e a
opressão. Giddens esclarece que “a exploração significa que um grupo, digamos, as classes superiores em
relação às classes trabalhadoras, os brancos em relação aos negros, ou os homens em relação ás mulheres,
monopoliza de maneira ilegítima recursos ou bens desejados, negando ao grupo explorado acesso a eles. As
desigualdades podem referir-se a quaisquer variações nos recursos escassos, mas o acesso diferencial a
recompensas materiais recebeu em geral a maior importância. A opressão é diretamente uma questão de poder
diferencial, aplicado por um grupo para limitar as oportunidades de vida de outro. Como outros aspectos da
política emancipatória, o objetivo de libertar as pessoas de situações de opressão implica a adoção de valores
morais. A política emancipatória torna imperativos os valores de justiça, igualdade e participação”. Outra
questão abordada por Giddens esclarece “a emancipação significa que a vida coletiva é organizada de tal
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Com a crise mundial atual, comandada pela ordem econômica e política, visualizamos
um desespero generalizado em que os direitos humanos parecem ser tratados como alheios ao
universo humano, à espera de resoluções mundiais e legislativas para apresentação de
propostas que emancipem o homem dessa política desinteressada. Mesmo sob o clima de
proteção de países europeus e críticos em torno do assunto, a crise mundial dos imigrantes
sírios é exemplo de que vivemos uma era do totalitarismo, e a reconstrução dos direitos
humanos muitas vezes se torna mais difícil quando se perde o direito de ter direitos.
A estrutura política pode ser entendida como o conjunto de pessoas organizadas dentro
de plenários e assembleias legislativas, não apenas defendendo suas particularidades
religiosas, financeiras e políticas, mas trazendo contribuições satisfatórias na esfera do Estado
para fortalecer a organização jurídico-política. Caminhos para resoluções políticas tratadas
por Estados-Nação têm contrariado comunidades sociais e políticas de outros países, que
terminam por denunciar a presença do totalitarismo revestido do nome de proteção
internacional, sendo exemplos atuais disso bombardeios indiscriminados a comunidades civis.
O indivíduo é a parte mais importante do cenário. Zygmunt Bauman trabalha a
identidade do indivíduo como uma identidade fragilizada, não alcançada pelo Estado de bem-
estar social9, e vítima da sensação de insegurança e daquilo que chama “corrosão de caráter”
10, provocada por injustiças e falta de liberdade presentes na modernidade.
maneira que o indivíduo seja capaz, num ou noutro sentido, de ação livre e independente nos ambientes de sua
vida social. A liberdade e responsabilidade permanecem em uma espécie de equilíbrio. O indivíduo é libertado
de limitações impostas a seu comportamento como resultado de condições exploradoras, desiguais ou
opressivas; mas ele não é libertado em termos absolutos. A teoria de justiça de Rawls constitui um importante
exemplo de uma versão da política emancipatória” Cf. GIDDENS, 2002, p. 195-196. 9 O Estado de bem-estar social, um Estado inclinado a fazer apenas isso, estava por essa razão genuinamente além
da esquerda e da direita: um apoio sem o capital nem o trabalho não poderiam sobreviver, muito menos mover-se
e atuar. Ainda, “Não por acaso o Estado de bem-estar social não é bem visto pela imprensa. Dificilmente lemos
ou ouvimos, hoje em dia, sobre as centenas de milhares de seres humanos salvos do extremo desespero ou do
colapso por zelosos trabalhadores sociais; ou daqueles milhões para os quais as provisões do bem-estar fazem
toda a diferença entre a terrível pobreza e uma vida decente; ou para as dezenas de milhões para os quais a
consciência de que a ajuda viria quando necessária significava que podiam enfrentar os riscos da vida com a
coragem e a determinação sem as quais a vida bem-sucedida, ou pelo menos digna, é impensável. Mas lemos e
ouvimos falar muito sobre as centenas de milhares que trapaceiam, abusam da paciência e da benevolência e que
vivem à custa das autoridades públicas; ou de centenas de milhares, ou talvez milhões, cuja “vida de pensão
governamental” as transformou em desocupados ineptos e preguiçosos, incapazes e sem vontade de pegar um
trabalho quando este aparece no caminho deles, preferindo viver às expensas do contribuinte que trabalha duro”.
Bauman esclarece ainda em sua obra que a sociedade de risco em que vivemos coloca o indivíduo em situações
de angústia e ansiedade pelas razões que expõe. Esclarece ainda que o Estado de bem-estar social encontra-se
num processo defensivo. Um exemplo que o autor nos coloca em relação a todo este processo que vivenciamos
em relação à sociedade é: “Estamos de volta à estaca zero. Depois de um século de feliz coabitação marital da
ética com a razão racional-instrumental, o segundo parceiro optou por deixar o matrimônio e a ética permaneceu
sozinha para cuidar do lar, antes compartilhado. E quando está sozinha, a ética é vulnerável e não acha fácil
manter sua posição. A pergunta “Sou por acaso o guardião do meu irmão? ”, que há pouco tempo se pensava ter
sido respondida de uma vez por todas, e assim raramente era escutada, volta a ser feita, e de maneira cada vez
mais vociferada e beligerante. E as pessoas que desejam uma resposta afirmativa tentam desesperadamente, mas
sem nenhum sucesso claro, fazê-la soar convincente na fria e comercial linguagem dos interesses. O que
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Identidade é condição fundamental para que possamos conhecer comunidades e seu
desenvolvimento numa sociedade. Uma comunidade de “indivíduos que acreditam” faz parte
de um programa que permite que se conheçam os caminhos que percorrem, suas ideias e
ideais, bem como a maneira como agem. Não ser aceito ou obrigar comunidades a retirarem-
se de seus territórios, ou países, contribui profundamente no processo de anulação de uma
identidade social de um povo e permite que a construção social de uma realidade fique
prejudicada.
Mesmo que a chamada globalização tenha ampliado possibilidades em todas
instâncias, Bauman relata que milhares de refugiados e migrantes sofrem com a questão da
identidade e da nacionalidade.
Há uma reflexão sobre o texto de Jacques Derrida, intitulado Força de Lei,11 que nos
aponta o direito em estado de tensão, por violências intrínsecas ao próprio direito.
No terceiro e último capítulo, a reflexão debruça-se sobre questões do biopoder e da
biopolítica. O texto tenta demonstrar como inumeráveis ações e regimes de governo poderiam
contribuir melhor com a atuação de uma política em favor da vida, e como, ao contrário,
inviabiliza-se a atuação da política em favor da vida com a adoção de posturas totalitárias
deveriam fazer em vez disso é reafirmar, de maneira audaz e explicita, a razão ética para o Estado de bem-estar
social, a única razão necessária para que ele justifique sua presença numa sociedade humana e civilizada. Não
existe nenhuma garantia de que o argumento ético fará muita diferença numa sociedade em que a competividade,
os cálculos de custo-benefício, a lucratividade e outros mandamentos do livre mercado reinam supremos e unem
forças no que, de acordo com Pierre Bourdieu, vem rapidamente se tornando nosso pensée unique, a crença além
de qualquer questionamento; mas a questão da garantia não está aqui nem ali, já que o argumento ético é a única
linha de defesa que resta ao Estado de Bem-estar social. ” Cf BAUMAN, Zygmunt. A sociedade
individualizada: Vidas contadas e histórias vividas. Tradução de Jose Gradel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
p. 33, 101-105. “A questão da identidade também está ligada ao colapso do Estado de bem-estar social e ao
posterior crescimento da sensação de insegurança, com a corrosão do caráter, que a insegurança e a
flexibilidade no local de trabalho têm provocado na sociedade. Estão criadas as condições para o esvaziamento
das instituições democráticas e para a privatização da esfera pública, que parece cada vez mais um talk-show
em que todo mundo vocifera suas próprias justificativas sem jamais produzir efeito sobre a injustiça e a falta
de liberdade existentes no mundo moderno. ” Nesta questão a tese tratará sobre os marginalizados pela política
pública, sejam os que sofrem pela corrupção ou abandonados de seus interesses como cidadãos. Bauman nos
fala sobre como a globalização conseguiu criar contrastes e poderia ser mais eficaz em sua capacidade.
BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
p. 11. 10 Ainda sob a questão de identidade do indivíduo e identidade social Bauman relatou que perdeu o direito de
ensinar por ter sido privado de sua cidadania polonesa o pensador declarou “minha exclusão foi oficial,
promovida e confirmada pelo poder habilitado a separar quem está “dentro” de quem está “fora”, quem faz parte
de quem não faz e assim eu não tinha mais direito ao hino nacional polonês…” Bauman declara ainda que lhe
tiraram a identidade, “o tipo de identidade que me foi negado e tornado inacessível.” Bauman cita este episódio
porque reúne, resumidamente, “a maioria dos dilemas inquietantes e das escolhas obsedantes que tendem a fazer
da “identidade” um tema de graves preocupações e agitadas controvérsias. As pessoas em busca de identidade se
veem invariavelmente diante da tarefa intimidadora de “alcançar o impossível [...]” Cf. BAUMAN, Zygmunt.
Identidade. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005 2005, p. 15-18. 11 DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés.
2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
18
quase sempre desfavoráveis. Percorrem-se algumas das principais obras de Michel Foucault,
entre elas o Nascimento da Biopolítica.12
O conceito de poder abordado nas linhas deste trabalho também ampara-se em Michel
Foucault, para quem o poder se oculta na estrutura da linguagem, podendo ser considerado
uma representação social na forma que se apresenta. Para o pensador, o poder hoje apresenta-
se como uma rede descentrada de confrontações corporais face a face13.
Dentre os cuidados para com o corpo social, na política do biopoder, em Foucault, há
um controle que não se encontra centrado e localizável, mas descentralizado e produzindo
efeitos de controle social e individual. O termo biopolítica, aparece com mais claridade
quando visualiza-se uma forma de relacionar-se dentro de uma política que busca trabalhar o
sentido da vida em sociedade e em prol dessa vida.
A preocupação foucaultiana é o modo de operação do biopoder e os critérios utilizados
na condução do corpo social e político, já que há um elemento político na biopolítica que não
atua em favor da vida.
Ainda neste sentido, Giorgio Agamben14 nos lembra qual o sentido da vida no
chamado “estado de exceção”, durante a segunda guerra mundial, quando, na
indissociabilidade da política e do direito, a vida era capturada pelo ordenamento vigente,
desrespeitados e invalidados quaisquer processos de direitos humanos e reconhecimento do
cidadão de ter direitos. Alerta-nos ainda contra a decadência da democracia moderna e o olhar
cego que se nutre para uma política mais humanizada.
A substituição da ação pela fabricação deixou o indivíduo moderno vulnerável e
totalmente ancorado na ideia de consumo, e o fez abandonar critérios importantes de análise
de sua existência como político. É assim que em sua obra A Condição Humana, Hannah
Arendt enuncia que o homo faber fará com que tudo tenha ausência de significados.
Na parte final do trabalho, o humanismo é enaltecido como forma de possibilitar luz a
humanidade, através do próprio humano, que nos parece encontrar-se distante de sua essência.
12 FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 2008b. 13 No texto intitulado “Desmascaramento das ciências humanas pela crítica da razão: Foucault”, Jürgen Habermas
esclarece: “o importante em nosso contexto é como Foucault funde esses significados tangíveis do poder e o
sentido transcendental das operações sintéticas que Kant havia atribuído a um sujeito e que o estruturalismo
compreende como um acontecer anônimo, isto é, como uma operação descentrada pura, regida por regras, com
elementos ordenados de um sistema construído de maneira supra-subjetiva.” (Habermas apud Fink-Eitel,H. em
Analítica do poder de Foucault). Na genealogia do Foucault o “poder” é, antes de tudo, um sinônimo dessa pura
atividade estruturalista [...]” Cf. HABERMAS, Jürgen. O Discurso filosófico da modernidade. Tradução de
Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2002b. p. 358. 14 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.
19
Acredito que no processo educacional, como pontuam Hannah Arendt e Gabriel Chalita15, há
uma saída. O caminho percorrido iniciou-se com a possibilidade de uma sociedade bem-
ordenada, e muitas coisas interferem e favorecem para isso acontecer.
Por fim, buscando Jürgen Habermas em sua Teoria da Ação Comunicativa, na obra
Pensamento pós-metafisico,16 vislumbramos possibilidades de equilíbrio e diálogo entre os
participantes, em face também da proposta efetuada por Theodor Adorno, em Palavras e
Sinais,17 pela perspectiva de coordenar ações por meio do entendimento e da apresentação do
caráter intencional dos agentes.
15 CHALITA, Gabriel. Educação: a solução está no afeto. São Paulo: Gente, 2004. 16 HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichcheler. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002c. 17 ADORNO, Theodor Wiesengrund. Palavras e Sinais. Modelos críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995.
20
1 CAMINHOS DE SOCIEDADES BEM-ORDENADAS – UM PROGRAMA A SER
REFLETIDO
1.1 Algumas considerações sobre tais sociedades
Na atual configuração da modernidade, em que a sociedade e o Estado necessitam
voltar-se à cooperação mútua para a construção e manutenção de uma sociedade bem-
ordenada, levando em consideração a alta complexidade do sistema social e as expectativas
dos agentes sociais em terem seus direitos correspondidos pela efetividade da política Estatal,
declinarei neste capítulo linhas para buscar um modelo de sociedade nos moldes daquela
apresentada por John Rawls, em Uma Teoria da Justiça,18 e por Platão, em A República19,
bem assim outros pensadores.
John Rawls parte da proposta de que, uma vez acordados os princípios fundamentais, é
possível resgatar dos participantes desse acordo uma postura satisfatória que venha favorecer
aqueles que dele participam. Há a ideia de contrato, pois os agentes, em posição de iguais,
livres e racionais, possuem interesses nos princípios de justiça, e buscam no compromisso
acordado estabelecer propostas de equilíbrio ético e moral.
O interesse é buscar, na teoria de John Rawls, situações que trazem contribuições
voltada à justiça social em todo seu conjunto, impedindo, desta forma, que no regime
democrático tenhamos posturas distantes dessa ordem, para que o cidadão, que poderia
usufruir de uma política mais centrada em seus anseios, não encontre propostas distorcidas e
pouco satisfatórias.
Em John Rawls20 temos o conceito de sociedade bem-organizada como aquela
estruturada, segundo o pensador, para promover o bem de seus membros, e regulada por uma
concepção comum de justiça. Trata-se de uma sociedade em que todos aceitam e sabem que
os outros aceitam os mesmos princípios da justiça. Desta forma, quando se diz todos, devem-
se incluir governantes e governados, nessa proposta, pois há uma concepção pública de justiça
e seus agentes têm o desejo de agir em conformidade com tal concepção.
No segundo capítulo apresentaremos posturas e políticas que quando não aplicadas
com o propósito de formar uma sociedade bem-ordenada, terminam por favorecer um Estado
de Exceção constante, vigendo dentro da democracia e impedindo que a biopolítica e o
biopoder atuem em benefício de todos.
18 RAWLS, 2002. 19 PLATÃO. A República. São Paulo: Spienza, 2005. 20 RAWLS, op. cit., p. 504.
21
O divórcio entre sociedade e Estado surge, na modernidade, quando os laços que
possibilitam integração social e um ordenamento político estável sofrem fratura, colocando
em questão o caráter contratual de uma das partes.
O viés burocrático faz parte da organização Estatal, o que de certa forma desequilibra
as forças entre a esfera pública de conteúdo estatal e a sociedade civil, tornando confusa a
relação de ambas, que em meio às complexidades que a burocracia provoca. Atuam inclusive
os particularismos políticos que, distantes dos propósitos sociais, tornam a relação frágil e
parcial, numa constante competitividade entre o reino das necessidades, pertencente à
sociedade, e o Estado, que não revê seus aspectos e posturas burocráticas.
Outra situação é a integração entre moralidade e poder, que traz a questão da
interiorização de valores, seja pela sociedade, seja pela esfera política pública.
A reprodução do comportamento numa sociedade, por partes dos cidadãos e
governantes, como o respeito às normas e seu cumprimento, revela o estágio de
comprometimento existente em seus agentes.
Jessé Souza, em A construção Social da Subcidadania,21 esclarece que obedecer uma
certa regra poderá ser antes de tudo algo aprendido e não um conhecimento. O modo de ser de
indivíduos ou determinados grupos que compõem a esfera social explica desta maneira a
composição atual de nossa sociedade.
Aponta Jessé Souza que a vida quotidiana é atendida por atividades práticas, que vão
além de nossas representações conscientes. Alerta ele sobre “a necessidade de reconstruir a
prática não articulada, que comanda nossa vida cotidiana, e articular a hierarquia de valores
escondida e opaca que preside nosso comportamento[...]”22. Considerando que práticas sociais
cristalizadas e reproduzidas numa esfera social que não condizem com aspectos morais, há a
necessidade de se introduzir um ambiente de maturidade para que este campo opaco e
intransparente não seja a regra dos comportamentos.
Combate-se nesse sentido a redução de atos considerados “naturais” e que violam
posturas que impedem o equilíbrio. Jessé Souza trabalha com o pensamento de Charles
Taylor, que não é objeto de nosso estudo, mas contribui para a construção de propósitos para
uma sociedade bem-ordenada. Assim, as linhas centrais, segundo Jessé Souza, da
reconstrução tayloriana da hierarquia valorativa estarão implícitas na formação do indivíduo:
Controle da razão sobre as emoções e pulsões irracionais, interiorização progressiva
de todas as fontes de moralidade e significado e entronização concomitante das
21 SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade
periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003. p. 64. 22 Ibid., p. 65.
22
virtudes do autocontrole, auto-responsabilidade, vontade livre e descontextualizada e
liberdade concebida como auto-remodelação em relação aos fins heterônomos.23
Esse conjunto de virtudes constitui a dignidade.
Há uma crise ética sendo discutida no interior dessas questões, quando reconhecemos
problemas que inviabilizam a cidadania, impossibilitando de reconhecermos o espaço público
em que vivemos, bem como a ausência de processos básicos na esfera social e na esfera
política pública, necessários ao equilíbrio social.
O início da estrutura de cidade bem-ordenada encontra-se na obra platônica e
aristotélica, como proposta e traço inicial para a formação dos direitos fundamentais, onde se
alicerça e começa a se firmar nossa estrutura e tradição.
1.2 Na República de Platão
Antes de abordarmos Uma Teoria da Justiça, de John Rawls, reproduzo a experiência
e as condições políticas e sociais de nossa tradição, que encontra-se alicerçada em A
República, de Platão. Nessa obra, Platão descreve situações comuns a todos que vivem numa
sociedade, na busca de uma fórmula ou garantia da cidade ideal, política e socialmente livre
de situações anárquicas e com administradores interessados no bem geral. Há interesse na
existência de harmonia e crença em uma política que não fracassaria em seus propósitos.
No livro I, o conceito de justiça é discutido, em um dos diálogos de Trasímaco, que
assim interpela:
[...] acreditas que os governantes das cidades, os que são realmente governantes,
olham para os seus súditos como se olha para carneiros e que objetivam, dia e noite,
tirar deles um lucro pessoal. Foste tão longe no conhecimento do justo e da justiça,
do injusto e da injustiça, que ignoras que a justiça é, na realidade, um bem alheio, o
interesse do mais forte e daquele que governa e a desvantagem daquele que obedece
e serve; que a justiça é o oposto e comanda os simples de espírito e os justos; que os
indivíduos trabalham para o interesse do mais forte e fazem a sua felicidade
servindo-o, mas de nenhuma maneira a deles mesmos. Aqui tens, muito simples
Sócrates, como é necessário encarar o caso do homem justo é em todos os lugares
inferior ao injusto”, e ainda “[...] a justiça significa o interesse do mais forte e a
injustiça é em si mesma vantagem e lucro. 24
Em resposta, no diálogo entre Trasímaco e Sócrates, este responde:
[...] se queres saber o que penso, não estou convencido e não creio que a injustiça
seja mais vantajosa do que a justiça, mesmo quanto a liberdade de praticá-la e não se
23 SOUZA, 2003, p. 72-73. 24 PLATÃO, 2005, p. 31.
23
é impedido de fazer o que se quer. Mesmo que um homem, meu caro, seja injusto e
tenha o poder de praticar a injustiça por fraude ou à força: nem por isso estou
convencido de que tire daí mais proveito que da justiça.25
Ainda, no livro I e na sequência do livro II,26 Sócrates faz o diálogo com os
personagens Glauco e Adimanto, definindo o sentido do ato de governar e os interesses que
devem ser afastados, como visar o próprio bem. O ato de governar deve direcionar-se ao
governado, e no intento de aplicar a justiça junto à comunidade. Os governantes devem visar
o bem dos governados, buscando estar a serviço da comunidade.
Em outro diálogo entre Trasímaco e Sócrates, o primeiro defende a justiça como sendo
o interesse do mais forte, apontando que a parte mais forte em cada cidade é o governo:
Cada governo faz as leis para seu próprio proveito: a democracia, as leis
democráticas; a tirania, leis tirânicas, e as outras a mesma coisa,
estabelecidas estas leis, declaram justo, para os governados, o seu próprio
interesse, e castigam quem o transgride como violador da lei, culpando-o de
injustiça. Aqui tens, homem excelente, o que afirmo: em todas as cidades o
justo é a mesma coisa, isto é, o que é vantajoso para o governo constituído;
ora, este é o mais forte, de onde se segue, para um homem de bom
raciocínio, que em todos os lugares o justo é a mesma coisa: o interesse do
mais forte.27
A natureza da justiça não fica restrita apenas a um único indivíduo, mas a toda a
cidade. Será necessário buscar a natureza da justiça nas cidades e em seguida buscar no
indivíduo para descobrir a semelhança da grande justiça da pequena.28
Em diálogo na mesma obra, Sócrates esclarece:
Nenhum governante seja qual a natureza de sua autoridade, quando se coloca na
proposta de governante, na medida em que é um governante, não terá por objetivo e
não ordena sua própria vantagem, mas a do indivíduo que governa e para quem
exerce sua arte; é com vista ao que é vantajoso e conveniente para esse indivíduo
que diz tudo o que diz e faz tudo o que faz.29
Nos livros II ao V d’A República, os diálogos mostram uma evolução para as questões
dos princípios de justiça e para uma justiça que consiga atender aos propósitos da organização
social. Um dos primeiros princípios de justiça a ser contemplado é a solidariedade, ou seja,
25 PLATÃO, 2005, p. 32. 26 Ibid. 27 Ibid., p. 25. 28 Ibid., p. 64. 29 Ibid., p. 30.
24
todos contribuem para o bem da coletividade em que vivem; outra questão é a organização
das pessoas dispostas a realizar o bem comum. Como pondera o diálogo de Sócrates:
Então, cada um deverá desempenhar a sua função para toda a comunidade.
O lavrador, por exemplo, garantirá sozinho a alimentação de quatro, gastando quatro
vezes mais tempo e trabalho em fazer a provisão de trigo que terá de repartir com os
outros. Mas não seria preferível que, trabalhando apenas para sí, só produzisse a
quarta parte dessa alimentação na quarta parte do tempo, destinando as outras três
quartas partes a procurar moradia, vestimentas e calçados, tratando ele mesmo das
suas coisas, sem se importar com a comunidade?30
Nos livros VI e VII a interpretação da Alegoria da Caverna permite ao cidadão atentar
para os aspectos do conhecimento e da liberdade, pois lança possibilidades de se vislumbrar
novos caminhos, vencer o medo, as sombras, buscar zonas diferenciadas de atuação.
A conquista da liberdade percorre os caminhos da educação, sem a qual é impossível
deter crises que desestabilizem o progresso de uma sociedade e a organização da política
pública. Platão discute sobre educação, na Alegoria da Caverna, e propõe um Estado ideal.
Logo que a nossa cidade se tenha desenvolvido, irá aumentando como um círculo.
Um bom sistema de educação e instrução, quando preservados de toda e qualquer
alteração, cria bons caracteres e, por outro lado, os caracteres honestos que
receberam essa educação tornam-se melhores do que aqueles que os precederam,
sob diversos aspectos e, entre outros, sob o da procriação, como se verifica com os
outros animais. 31
Os livros VIII e IX da obra A República tratam do declínio e empobrecimento da
cidade, decorrentes da concentração do poder existente nas oligarquias e tiranias. Descrevem
posturas que governantes podem adotar de forma totalitária, ocupando-se da política com
interesses particulares e não para a comunidade, impondo o tipo de governo pela intimidação.
Assim, visualiza-se, nesta passagem da obra, o uso do poder pelos governantes, quando
direcionado e fundamentado na própria vaidade.
Esta questão cria laços com nosso próximo capítulo, que trata do poder, da liberdade e
de regimes totalitários na atualidade, em contribuição ou não com a biopolítica.
Quando um Estado democrático, sedento de liberdade, passa a ser dominado por
maus chefes, que fazem com que ele se embriague com esse vinho puro para além
de toda decência, então, se os seus magistrados não se mostram inteiramente dóceis
e não lhe concedem um alto grau de liberdade, ele castiga-os, acusando-os de serem
criminosos e oligarcas.32
30 PLATÃO, 2005, p. 65. 31 Ibid., p. 138. 32 PLATÃO, 2005, p. 324.
25
O diálogo político da obra A República declina a melhor forma de governo.
Juntamente com a melhor forma de governar, e em meio a esse intento, encontramos traços da
biopolítica e do biopoder sendo trabalhados a partir dos diálogos dos personagens. Os
assuntos referentes à esfera humana foram tratados, para que a política e suas articulações
obtivessem praticidade. A preocupação com a ideia do bem, e questões sobre o poder de
governar visando o interesse comum, vemos no capítulo VII. No capítulo VI, os diálogos
denunciam a corrupção como comportamento contribuinte dos males à cidade e aos cidadãos,
destaque importante que contraria a proposta do bem.33
1.3 A Política em Aristóteles
Na obra A Política, composta por VIII livros, abordarei os livros VII e VIII, onde
Aristóteles idealiza a forma de vida mais agradável para os indivíduos e as qualidades civis
necessárias à felicidade da cidade, finalizando no livro VIII, onde expõe sobre a educação.
Em A Política Aristóteles esclarece que a polis, sendo uma comunidade de iguais,
compondo-se de várias qualidades e condições de vida, deve visar uma vida que seja sempre
potencialmente boa e melhor. Apontam-se, nesta obra, traços de biopolítica e biopoder, já
apontados na obra A República. Dois trechos particularmente indicam essa forma de governar,
voltada ao bem comum, pois compete à esfera da gestão da vida pública dar ao cidadão uma
vida condizente com as necessidades existentes:
Pois que se deve garantir a saúde dos habitantes e aquilo que para ela mais contribui
é a situação da cidade em lugar determinado, e a uma exposição prevista, pois que é
preciso, em segundo lugar, servir-se apenas de águas salubres; lutar-se-á por esses
dois pontos sem o menor desfalecimento; porque o que mais frequente e comumente
serve à necessidade do corpo é justamente o que mais contribui para a saúde. Tal é a
influência natural da água e do ar. Também, nos Estados sabiamente administrados,
observar-se-á se as águas naturais não são todos iguais, e se não são abundantes,
separar-se-á as que servem para a alimentação e as que se usam para outros fins.34
Em outro trecho, referido à forma adequada e ideal para a convivência humana,
podemos vislumbrar traços do aparecimento da cidadania política, no entendimento de se
preservar o direito natural, como também a presença da biopolítica. Aristóteles esclarece:
33 Ibid., p. 235. 34 ARISTÓTELES, 2009, p. 249.
26
Sob os outros aspectos, a cidade deve ter uma situação favorável às ocupações dos
cidadãos e dos guerreiros. Assim, é preciso que os guerreiros dela possam
facilmente sair, e que, ao contrário, seja difícil ao inimigo nela penetrar e fazer-lhe o
bloqueio. É preciso também que tenha água e recursos naturais em abundância. E se
ficar privada dessa vantagem, pode-se obtê-la cavando grandes reservatórios para
águas pluviais, a fim de que não falte água, se as comunicações com o resto do país
forem interrompidas pela guerra.35
O cidadão em particular e o Estado em geral devem buscar o melhor, inclinando-se
para o melhor objetivo. Resta examinar, segundo Aristóteles, se a felicidade do indivíduo é ou
não a mesma que a do Estado. O pensador levanta questões para serem refletidas nesse
sentido:
[...] será mais proveitoso ocupar-se dos negócios públicos e deles participar, ou
libertar-se de todo político e viver como estranho no Estado? Depois, qual a melhor
constituição e o modo de administração perfeita que quase todos tomem parte no
governo ou dele se excluam certas pessoas, admitindo a maioria? [A resposta:] é
preciso, pois, que o melhor governo seja aquele que possua uma constituição tal que
todo cidadão possa ser virtuoso e viver feliz; isto é evidente.36
Assim, as constituições boas visam o bem comum, a felicidade, não isolada e restrita a
apenas certos setores da cidade ou Estado.
Sobre essa citação aristotélica, Hannah Arendt constata, em A Condição Humana, que
“[...] certamente só a fundação da cidade-estado tenha possibilitado aos homens passar toda a
sua vida na esfera pública, em ação e em discurso, na convicção de que essas duas
capacidades humanas são afins uma da outra, além de ser a mais alta de todas [...]”37. Neste
sentido, vemos a necessidade do entrosamento do homem entre a vida privada e pública,
considerando que cada cidadão pertence às duas ordens de existência. 38
A efetividade dos direitos fundamentais e do bem-estar estabelecidos na sociedade; a
liberdade; assim como a distribuição racional do pode; o ato de governar sintonizada com as
necessidades e gestão da saúde, transporte, educação, bem como de outros setores, quando se
tornam preocupação de políticas públicas, é o biopoder atuando com políticas favoráveis à
vida. Esses traços aparecem em Aristóteles igualmente no trecho abaixo, apresentando bases
para a modernidade:
Trata-se agora de fazer sobre o assunto o próprio governo, quais são aqueles que
devem compor a cidade, e que qualidades devem possuir para que seja feliz e bem
administrada. Duas condições são necessárias para alcançar o bem geral:
35 ARISTÓTELES, 2009, p. 248. 36 Ibid., p. 232. 37 ARENDT, 2009, p. 34. 38 Ibid., p. 33.
27
primeiramente, que haja um ideal e que o fim que se propõe seja louvável; depois,
que se encontrem quais são os atos que podem conduzir a esse fim. Essas duas
condições podem ou não se concordar. Ora, o fim é excelente, mas erra-se no meio
de atingi-lo. Umas vezes tem-se todas as possibilidades de alcançá-lo, mas o fim
proposto é mau. Outras vezes erra-se ao mesmo tempo no fim e nos meios, como
acontece com a medicina, quando julga mal do estado de saúde do corpo, e não
encontra os meios de atingir o fim que se propõe. Ora, nas artes e nas ciências, é
preciso apontar magistralmente ao alvo e aos meios que a ele conduzem.39
Ainda destaco:
É claro que todos os homens aspiram à vida boa e à felicidade; mas uns podem
atingi-las, outros não. A vida boa necessita de uma certa quantidade de meios, que
deve ser pequena para aqueles que são melhor dispostos e maior para os que têm
disposições menos favoráveis. Outros, finalmente, extraviam-se desde os primeiros
passos na procura da felicidade, embora possuam todas as faculdades exigidas. Já
que o objeto que nós nos propomos é a procura da melhor constituição, já que a
melhor constituição é aquela que dá melhor administração da cidade, é a que lhe
proporciona a maior soma de felicidade, segue-se que é preciso antes saber o que é a
felicidade.40
1.3.1 O legislador e o processo educacional
Destaco, ainda, como um dos pontos importantes da construção de cidade feliz e bem
ordenada, sob a ótica política de Platão e Aristóteles, o livro VIII da obra A Política, que
enaltece o processo educacional, ligando-o a uma das importantes preocupações que o
legislador deva ter. “O legislador deve garantir às crianças que se educam uma constituição
robusta e mais possível [...]”.41 Ainda, “Ninguém contestará, pois, que a educação dos jovens
deve ser um dos principais objetos de cuidado por parte do legislador; porque todos os
Estados que a desprezam prejudicaram-se grandemente por isso”.42
Aristóteles ressalta que não se pode deixar os cidadãos na ignorância sobre o que é a
educação, e como é preciso dirigi-la. Nota que o sistema da época dificulta o exame sobre o
que ensinar, pois já não mais se entendiam os que ensinavam quanto às matérias que os
alunos deviam aprender para chegar à virtude e à vida perfeita. Mister seria ocupar-se da
inteligência ou das qualidades morais do homem?43 Neste sentido, o pensador preocupa-se
com a honra, pois deve ser a primeira instrução existente, e não a ferocidade. Os lobos e os
animais, segundo o pensador, não arrostariam um perigo em nome da honra, mas os homens
39 ARISTÓTELES, 2009, p. 252. 40 Ibid., p. 252. 41 Ibid., p. 260. 42 Ibid., p. 267. 43 ARISTÓTELES, 2009, p. 268.
28
de bem disto seria capaz. As crianças não podem ficar na ignorância absoluta das coisas que
necessitam saber, ou seja, podem às vezes ser educadas demasiadamente para outras coisas,
quando deveriam tomar conhecimento daquelas que as preparariam para ser um homem de
bem. 44
Aristóteles ainda sublinha que os lacedemônios empregam o máximo de atenção na
educação dos filhos, mas já não havia acordo e entendimento quanto à matéria que a criança
deveria aprender para chegar à virtude ou adquirir qualidades morais:
O sistema atual de educação dificulta esse exame; não se sabe ao certo se se devem
ensinar as artes úteis à vida, ou os preceitos de virtude, ou a ciência de pura
recreação. Todos esses têm os seus partidários, e nada está bem determinado sobre a
virtude; os princípios variam sobre a própria essência da virtude, de tal forma que as
opiniões divergem sobre os meios de exercê-la.45
Nesse tema, ainda, Aristóteles destina ensinamentos para o seu filho, Nicômaco,
preocupado com sua educação e felicidade. Trata sobre a importância da ética, abordando
várias situações da vida. Percebe-se o porquê das considerações em A Política, quando
considera a educação como um dos principais objetos de cuidado por parte do Estado, mas
declina considerações sobre o papel da família na educação dos filhos, em Ética a Nicômaco.
Tratando-se de ética e política, parece contraditório em face de alguns hábitos
desenvolvidos por pessoas públicas quando na administração dos afazeres públicos estatais.
Aristóteles, em Ética a Nicômaco, livro II, ensina que a virtude se estabelece de duas formas:
intelectual e moral. Intelectual porque pode ser produzida ou ampliada pela instrução recebida
pela experiência e o tempo, ao passo que a virtude moral ou ética é o produto do hábito. “As
virtudes, portanto, não são geradas em nós nem através da natureza nem contra a natureza. A
natureza nos confere a capacidade de recebê-las, e essa capacidade é aprimorada e
amadurecida pelo hábito”.46
Se o hábito faz parte do processo educacional, pois o adquirimos com a vivência
familiar e social, aquele que for se dedicar às coisas da política pública terá bons exemplos se
adquiriu bons hábitos. Considerando a posição aristotélica pela qual a virtude não é gerada em
nós, mas aprendida, os hábitos precisam ser contraídos, e o mesmo deve acontecer com as
ações virtuosas.
44 Ibid., p. 271-272. 45 Ibid., p. 268, item 1337b. 46 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Edson Bini. 3. ed. São Paulo: Edipro, 2013. p. 67.
29
Num posicionamento sobre educação e política, Hannah Arendt esclarece que sempre
que em questões políticas o juízo humano fracassa ou renuncia à tentativa de fornecer
respostas, podemos estar diante de uma crise; pois este juízo anunciado é o senso comum em
virtude. Toda crise destrói uma parte do mundo, alguma coisa comum a todos nós, na falência
do bom senso, bom senso na vida política.47
Como existe um único objetivo para a cidade, segue-se que a educação igualmente
deve ser única para todos, administrada em comum -- e não entregue a particular, como se faz
hoje --, dirigindo cada qual a educação de seus filhos, e dando o gênero de instrução que
melhor lhe parecer, pontua Aristóteles em A Política. O pensador grego destaca ainda que
aquilo que é comum a todos deve também ser aprendido em comum. Ao mesmo tempo, é
preciso não imaginar que cada cidadão pertença a si próprio, e sim, que todos os cidadãos
pertencem à cidade, “porque todo indivíduo é membro da cidade, e o cuidado que se põe em
cada parte deve, naturalmente, harmonizar-se com o cuidado que cabe a tudo”48
Percebe-se que o pensamento de Aristóteles privilegia o ensino comum a todos,
buscando assim a integração da comunidade, a uniformização dos pensamentos em relação ao
bem comum e das intenções de cada membro em relação aos compromissos que o cidadão
teria, evitando que cada um viesse apresentar formas diversas e até opostas aos preceitos da
virtude.
Na proposta aristotélica vemos este processo em todos os capítulos de Ética a
Nicômaco. Há preocupação com o desenvolvimento de virtudes que devem estar no adulto,
em especial a justiça, quando este ocupar-se de cargos de relevância na carreira pública, ou,
nas atividades habituais do quotidiano.
Um governo justo parece não tirar qualquer proveito de seu cargo, pois não dirige a
si próprio uma porção maior das coisas geralmente boas, a não ser que isto seja
proporcional aos seus méritos; pelo contrário, ele se empenha pelos outros, o que
concorda com o dito mencionado anteriormente, de que a justiça é o bem do outro.
E, por conseguinte, alguma recompensa deve lhe ser dada sob a forma de honra e
dignidade. São aqueles que não se satisfazem com tais recompensas que se tornam
tiranos.49
47 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva,
2014. p. 227. 48 ARISTÓTELES, 2009, p. 267. 49 Id., 2013, p. 162.
30
1.4 Sociedade bem-ordenada e a posição original em John Rawls
A relação de textos envolvendo as ideias de Platão, Aristóteles e Hannah Arendt visa
demonstrar a importância e preocupação de se conquistar e formar uma sociedade mais feliz e
ordenada. O Estado Ideal e as instruções políticas de Platão e Aristóteles, mesmo dentro das
dificuldades modernas em alcançar tais propostas, são modelo de reflexão para a
modernidade. Lidar com a estrutura social e Estatal, na qual todos buscam justas vantagens, já
que nem sempre são compatíveis com o melhor do ponto de vista social e político público, é
propor defender uma política humanista, mesmo hipoteticamente, na alternativa de posição
original em John Rawls.
Na proposta de uma sociedade bem-ordenada, trabalhada em Uma Teoria da Justiça,
equidade e justiça (primeira virtude das instituições sociais)50 são capazes de atuar no sistema
social conjuntamente. John Rawls defende que uma sociedade mais justa tem de ofertar
igualdade de oportunidades a todos. Existe na teoria de John Rawls uma preocupação social,
de tal ordem que o que violaria a justiça de outro não poderia ser aceito, havendo o cuidado de
se estender à sociedade a cooperação. John Rawls contempla ainda a questão da
desobediência civil como instrumento da liberdade do indivíduo, caso a liberdade do cidadão
não encontre sintonia na legislação vigente com os atos de governo.
A colaboração mútua preconizada e compartilhada em sociedade, como declinado, no
mesmo sentido manifesta-se em São Tomás de Aquino:
Alguns sustentaram que a prudência não se estende ao bem comum, mas se refere
somente ao bem próprio, pois pensam que o homem não deve buscar senão seu
próprio bem. Mas esta posição é contrária à caridade, que não busca seu próprio
interesse, como afirma o Apostolo (1 Cor 13,5). Daí que também o Apóstolo diga de
si mesmo: Não buscando o que é útil para mim, mas o que é de interesse geral, para
que se salvem (1 Cor 10,33).51
São Tomás de Aquino ainda trata sobre aquilo que é contrário a reta razão, que busca
julgar o bem comum melhor que o bem particular, na Questão 47, artigo 12 – A prudência
não é só para os governantes, mas também para os súditos.52 Neste sentido, convém àquele
que governe ou participe da direção a necessidade de exercer a prudência e a razão. A
prudência não pertence aos títulos que a representam, mas ao homem racional, segundo o
juízo de sua razão.
50 AQUINO, DE TOMÁS. A Prudência: A virtude da decisão certa. Tradução de Jean Lauand. São Paulo:
Martins Fontes, 2005. p. 15-16. 51 Ibid., p. 15-16. 52 Ibid., p. 18.
31
Uma sociedade considera-se bem-ordenada não apenas quando encontra-se planejada
para promover o bem de seus membros, mas quando está regulada por uma concepção pública
de justiça: 1) todos aceitam e sabem que os outros aceitam os mesmos princípios de justiça, e
2) as instituições sociais básicas geralmente satisfazem, e geralmente se sabe que satisfazem,
esses princípios.53
John Rawls esclarece que em sociedades concretas, raramente estabelecem-se como
bem-ordenadas nesse sentido, pois o que é justo e injusto encontra-se sob disputa e discussão,
visto que há uma discordância sobre estes princípios. Melhor explicando, cada qual possui
uma concepção de justiça, distanciando-se dos termos que os associam entre si. Cada qual
defende seus interesses e se utiliza dos meios legais existentes para atribuir direitos e
deveres.54
Quando fica aberto à interpretação de cada indivíduo o entendimento do conceito de
justiça, produz-se uma divisão inadmissível nas vantagens apropriáveis a cada um. É nessa
direção que John Rawls esclarece:
Um certo consenso nas concepções da justiça não é, todavia, o único pré-requisito
para uma comunidade humana viável. Há outros problemas sociais fundamentais,
em particular os de coordenação, eficiência e estabilidade. Assim, os planos dos
indivíduos precisam se encaixar uns nos outros para que as várias atividades sejam
compatíveis entre si e possam ser todas executadas sem que as expectativas
legítimas de cada um sofram frustrações graves. Mais ainda, a execução desses
planos deveria levar à consecução de fins sociais de formas eficientes e coerentes
com a justiça.55
Nessa proposição de John Rawls vê-se a necessidade do empenho de cada indivíduo,
embora a concepção de justiça de cada um seja compatível com o grau de entendimento em
querer buscar a justiça dentro de conceitos que tendem a trazer vantagens; assim não haveria
como estabelecer regras de flexibilidade sem entendimento no campo da cooperação e
estabilidade.56
John Rawls trata a escolha dos dois princípios citados acima na hipótese de uma
posição original, ou seja, as partes sociais encontram-se numa situação inicial de igualdade e
de desinteresse mútuo. Devem acordar que os dois princípios são a solução para os conflitos
vivenciados. O caminho para cada indivíduo é que todos o acompanhem na promoção,
segundo o pensador, do bem, independente do venha a ser tal concepção.
53 RAWLS, 2002, p. 5. 54 Ibid., p. 6. 55 Ibid., p. 6. 56 Ibid., p. 7.
32
A essência dessa posição, uma teoria social, é que os indivíduos cedam em seus
interesses, tendo o equilíbrio como resultado de acordos racionalmente pactuados. Um
exemplo dado por John Rawls, hoje raramente praticado, é a teoria dos preços, à medida que
ela considera que o equilíbrio entre os mercados competitivos surge quando muitos
indivíduos, cada qual promovendo seus interesses, cedem uns aos outros aquilo a que podem
renunciar com maior facilidade em troca de outros benefícios. 57
Tércio Sampaio Ferraz Júnior58 observa que há nas teses de John Rawls um evidente
apelo à razoabilidade do bom senso, pois supõe que, para haver justiça enquanto equidade, os
membros da sociedade sejam pessoas racionais, capazes de ajustar sua concepção do bem à
sua situação. Tal noção de razoabilidade, contudo, esclarece Tércio Ferraz Sampaio Jr., exige
um princípio de diferença como pressuposto, pois as desigualdades sociais e econômicas
devem existir, mas pessoas interessadas em estabelecer seus interesses aceitariam uma
posição inicial de igualdade para firmar os termos dessa associação.
Quanto às circunstâncias de justiça, nessa proposta, pode ser definido que a
cooperação é tão possível quanto necessária, visto que “embora a sociedade seja um
empreendimento cooperativo de vantagem mútua, está tipicamente marcada por um conflito
bem como por uma identidade de interesses”. 59
Quando o autor traz a noção de “véu de ignorância”, nos ajuda entender o que deseja
ao estabelecer uma hipotética posição original, para a partir disto, fazer sua construção de
ideia de justiça. Tércio Sampaio Ferraz Júnior preconiza que a instauração de uma perspectiva
razoável é essencial ser adotada por todos.60 John Rawls dispõe nesse sentido:
“[...] admito que as partes não conhecem as circunstâncias particulares de sua
própria sociedade. Ou seja, elas não conhecem a posição econômica e política desta
sociedade, ou o nível de civilização e cultura que ela foi capaz de atingir. As pessoas
na posição original não têm informação sobre a qual geração pertencem. Essas
restrições mais amplas impostas ao conhecimento são apropriadas, em parte porque
as questões de justiça social surgem entre gerações e também dentro delas, por
exemplo, a questão da taxa apropriada de poupança de capital e da conservação de
recursos naturais e ambientais [...].” Ainda, “Elas devem escolher princípios cujas
consequências estão preparadas para aceitar, não importando a qual geração
pertençam. ” 61
57 RAWLS, 2002, 128-129. 58 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Sobre John Rawls. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 09 out. 1983. Sobre o
autor: é Jurista e Professor de Filosofia do Direito da Pós-Graduação de Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo. Livre Docente da Faculdade de Direito de São Paulo. 59 RAWLS, op. cit., p. 136. 60 FERRAZ JR., op. cit. 61 RAWLS, op. cit., p. 40.
33
Vê-se, até o presente, que a teoria de justiça assim formulada conta com a
racionalidade das partes, na proposta hipotética de posição original e a noção de “véu de
ignorância”, o qual, se removido, poderá ocorrer que por motivos de crenças particulares a
pessoa não queira mais uma quantidade destes bens. Guiadas pela teoria do bem e fatos
genéricos da psicologia moral, as partes podem tomar decisões em sentido comum. John
Rawls acredita na suposição mutuamente desinteressada: “as pessoas na posição original
tentam reconhecer princípios que promovem seus sistemas de objetivos da melhor forma
possível”.62
Nesse sentido, John Rawls expõe em sua obra Uma Teoria da Justiça: o bem como
racionalidade, o senso de justiça e o bem da justiça. Estas três relevantes premissas apontam a
necessidade de uma teoria do bem, como intrínseca a uma sociedade bem-organizada e a
moralidade que envolve tal sociedade.
A primeira premissa, o bem como racionalidade, clama a necessidade de uma teoria do
bem, tratando de trabalhar a hipótese da existência da posição original, que supõe que as
partes sociais encontram-se numa situação inicial racional e de desinteresse mútuo; e a noção
de “véu de ignorância”, uma condição de possibilidade a partir da situação hipotética original,
buscando consenso entre os associados. A teoria do bem aproxima-se do estado social
perfeito, pois ao aceitarem o acordo original as partes supõem que suas concepções do bem
têm condições suficientes para acolher os princípios de justiça de modo racional.63
John Rawls pontua que o princípio aristotélico afirma que, em circunstâncias iguais,
os seres humanos sentem prazer ao pôr em prática as suas capacidades. A ética do pensador
grego Aristóteles possibilita que a teoria do bem ocupe um lugar adequado e satisfatório na
sociedade.
O senso de justiça, coerente com nosso próprio bem, aborda a sociedade bem
organizada regulada por sua concepção pública de justiça. A estabilidade depende de que o
senso de justiça seja mais forte que as injustiças existentes. Agir de forma justa faz parte do
bem de todos, e princípios da psicologia moral são conhecidos pelas pessoas na posição
original, tratada anteriormente, e que se baseiam neles para tomar a decisão.64
A conduta correta é aquela que beneficia os outros, com atitude capaz de alcançar a
sociedade e não apenas a si próprio; e, noutro sentido, toda conduta errada visa prejudicar o
62 RAWLS, 2002, p. 154-155. 63 Ibid., p. 438-439. 64 Ibid., p. 506.
34
outro. A sociedade, já em sua origem, deve sanar defeitos existentes quando a finalidade não é
benéfica, e isto se consegue pela aprovação e desaprovação dos pais e ou outra pessoa em
posição de autoridade. Processos estes que vão modelar nossa natureza original.65
John Rawls esclarece que nossos sentimentos morais são passíveis de treinamento,
apresentando marcas que são consequências de processos vividos. A teoria de Sigmund Freud
é umas das mais importantes neste sentido, pois processos que crianças vivenciam por ocasião
da fase edipiana, bem como conflitos vividos naquela etapa, se transmitem e definem o
indivíduo, pois refletem aquela fase de édipo. Sustentar essa teoria é declinar no amparo da
estrutura do psiquismo estabelecido como ego, superego e id, ilustração que fará parte de
inúmeras explicações de comportamento, mas que chama atenção para os cuidados
necessários à infância.66
A autoridade ocupa um espaço importante, pois representa a presença dos pais e
outros personagens na vida da criança, estabelecendo aspectos morais significativos, uma vez
que correções que foram feitas pela autoridade de quem governava aquelas vidas nos
primeiros momentos de existência, demonstrando a conduta correta que é aquela que
geralmente beneficia os outros e a sociedade, viabilizam desenvolvimento moral e cognitivo
na criança. Isso se dá pelo processo da educação, pelo qual a autoridade permitirá uma
aprendizagem moral e a ampliação da capacidade de discernimento.67
Há uma crise de autoridade na modernidade. Os adultos recusam-se a adotar tal
postura. Isto significa que os adultos se recusam a assumir responsabilidades no mundo ao
qual trouxeram as crianças. A perda geral de autoridade encontra seu fortalecimento em
posturas familiares e escolares, como se os novos existentes do planeta dominassem a
autoridade educacional. Diante desse impasse resgatam-se os princípios morais trabalhados
anteriormente, como o sentido da autoridade na criança, vislumbrando a formação da
personalidade.68
Educação é um processo de sobrevivência social, expressando nosso mais profundo
desejo: continuar, prosseguir, persistir perante o tempo. Michael Walzer considera o verbo
ser, no sentido do que o processo educativo é, ou seja: “a justiça não se relaciona só com os
resultados, mas também com a vivência da educação”.69
65 RAWLS, 2002, p. 509. 66 Ibid., p. 509. 67 Ibid., p. 509-510. 68 ARENDT, 2014, p. 249-250. 69 WALZER, Michael. Esferas da Justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade. Tradução de Jussara
Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 269-271.
35
John Rawls ampara-se na posição original, que definirá perspectivas e posturas do
bem da justiça, impedindo que nossa visão se modele por situações contrárias do acordo,
fazendo prevalecer particularismos, interesses de viés pessoal. Os cidadãos são capazes de
promover e reconhecer a boa-fé e o desejo de justiça uns dos outros, mesmo que venham a
romper de forma ocasional sobre questões políticas. É necessário sempre que a teoria da
justiça esteja presente e buscando adequação junto aos seus princípios. Há nesta proposta de
John Rawls uma natureza contratualista, vinculando sempre os outros na proposta firmada.70
As pessoas que detêm a autoridade são responsáveis pelas políticas que promovem e
pelas instruções que proclamam. E os que aceitam cumprir ordens injustas ou
estimular desígnios maléficos não podem em geral alegar que não sabiam o que
estavam fazendo, ou que a culpa recai apenas sobre aqueles que ocupam posições
mais elevadas. O essencial aqui é que os próprios princípios que mais se adaptam a
nossa natureza de seres racionais livres e iguais também estabelecem a nossa
responsabilidade.71
Numa sociedade totalmente diferente da proposta de John Rawls, e para fazer um
contraponto em relação àquilo que foi exposto no que diz respeito a uma sociedade bem-
ordenada, com participação do poder público estatal e da esfera social, como seria concebida
uma sociedade contra o Estado e ou uma sociedade sem Estado, dentro de um sistema
relativamente autônomo?
1.4.1 A necessidade do Estado e os grupos divorciados
Antes de adentrarmos ao texto sobre sociedade sem Estado, e buscarmos apresentar
um contraste em relação a uma sociedade bem-ordenada, aquela próxima do ideal para o bem
viver, pontuo que a existência de grupos paralelos demonstra o desejo de afastar a presença do
Estado do comando da sociedade.
A formação de grupos ou ideologias que buscam nutrir seus ideais em conquistas
distantes da proposta apresentada neste capítulo possui muitas vezes uma lógica marginal que
termina por desejar formar um poder paralelo na busca de comando e domínio.
70 RAWLS, 2002, p. 571-577. Sobre a posição original Tércio Sampaio Ferraz Junior esclarece que a relação
entre igualdade originária hipotética e diferença originária factual é importante, a nosso ver, para entender a
teoria proposta. Apelando para a intuição, Rawls afirma que os primeiros princípios da justiça são objeto de
um acordo original, a partir de uma situação inicial definida convenientemente. Assim, estes princípios seriam
aqueles que pessoas racionais, interessadas em estabelecer seus interesses, aceitariam numa posição inicial de
igualdade para firmar os termos básicos de sua associação. FERRAZ JR., 1983. 71 RAWLS, op. cit., p. 578.
36
Nesta linha de pensamento, isto se daria por conta de suposto “divórcio”72 entre
grupos existentes em sociedade e Estado. Neste sentido, Adrián Guzza Lavalle, em Vida
Pública e Identidade Nacional, tratará a relação sociedade e Estado esclarecendo que
contrastes aparecem na configuração do espaço público, quando se leva em conta a
consolidação política da nação, e a já desarmonia histórica na convivência de ambos os lados.
Em especial o desajuste político-social, que tem como causa uma tardia edificação do Estado
e o vigor dos poderes regionais a obstarem o processo de centralização política, o que termina
por levantar dificuldades para se pensar na origem do espaço público no país, podendo o
processo apontar para conflitos entre tarefas de integração social e ordenamento político do
Estado.73
A efetivação do jogo de reconhecimento político e uma atuação mais eficiente junto
aos setores da cidadania e direitos fundamentais não conseguiu, como esclarece Adrián Guzza
Lavalle, transpor o umbral de questões de cidadania, criando déficits na vida política. Outra
questão levantada pelo pensador é que a cisão entre a sociedade e o Estado não teria como
causa a falta de centralidade da vida pública no pensamento político, mas a própria sociedade
também se demonstra incapaz de engendrar uma vida social vigorosa. 74
Outro aspecto relevante que possibilita este divórcio entre sociedade e Estado é a
moralidade claudicante da vida social, bem como o descrédito das ideologias, e também a
burocracia, que inviabiliza acessos mais eficientes às necessidades fundamentais. Tudo isso
acaba por figurar em conjunto no cenário social e político, provocando um acanhamento no
espaço público do país.75
Adrián Guzza Lavalle esclarece que estes descompassos também são decorrentes da
história, mas lança possibilidades de reconstrução num caminho ainda a ser desbravado,
citando os efeitos deletérios da “ausência do povo” e da “artificialidade das ideias”.76
O pensador traz a reflexão sobre a existência do divórcio entre sociedade e Estado, que
hoje se traduz pelo cenário político-social existente no Brasil, e todas dificuldades ainda
presentes obstando à integração. Mas, em especial, na colocação dos termos “ausência do
povo” e “artificialidade das ideias”, o autor faz crítica à postura inibida da sociedade frente ao
cenário nacional existente. Deve-se considerar que a manifestação de grupos que venham a
72GUZZA LAVALLE, Adrián.Vida Pública e identidade nacional: leituras brasileiras. São Paulo: Globo,
2004. p. 40. O autor do livro intitula o texto que deu origem aos comentários deste trabalho como O divórcio
entre Sociedade e Estado. 73 GUZZA LAVALLE, 2004, p.46-47. 74 Ibid., p. 49. 75 Ibid., p. 59. 76 Ibid., p. 61.
37
insurgir-se, combatendo ou discordando do sistema social, promovendo violência e destruição
para defender ideologias particularistas de guerrilha, havida também em outros países com
grupos radicais, divorcia-se da ordem e do contexto social, ao desejar criar estruturas
ideológicas dentro da estrutura existente.
Hannah Arendt, em Origens do Totalitarismo, defende no texto denominado Uma
sociedade sem Classes, que movimentos totalitários são organizações maciças de indivíduos
atomizados e isolados. Distinguem-se dos outros partidos e movimentos por apresentarem
características de total lealdade, obediência aos líderes, que fazem que sejam obedecidos pela
persuasão e ideologia apresentada. “Não se pode esperar essa lealdade a não ser de seres
humanos completamente isolados que, desprovidos de outros laços sociais de família,
amizade, camaradagem, só adquirem o sentido de terem lugar neste mundo quando participam
de um movimento”.77
Hannah Arendt esclarece ainda que o totalitarismo não se contenta em governar
através do Estado graças à ideologia própria, pois descobriu um meio de subjugar e aterrorizar
os seres humanos.
A tomada do poder através dos instrumentos de violência nunca é um fim em si, mas
apenas um meio para um fim, e a tomada do poder em qualquer país é apenas uma
etapa transitória e nunca o fim do movimento. O fim prático do movimento é
amoldar à sua estrutura o maior número possível de pessoas, acioná-las e mantê-las
em ação; um objetivo político que constitua a finalidade do movimento totalitário
simplesmente não existe. ”78
A formação de grupos à margem do contexto social distancia-se das normas
estabelecidas que gravitam entre direitos e obrigações. Os códigos formais de conduta, como
aqueles estabelecidos em lei, não são compartilhados por estes grupos, que procuram romper
com a estrutura social nos moldes e organização que temos. Os grupos divorciados da
sociedade apresentam uma forma distorcida de interpretar a linguagem que a estrutura social
apresenta, pois aqueles desejam impor respostas ao sistema que contestam por meios de
condutas contrárias às sanções normativas do ordenamento político estatal. A questão do
poder e da dominação é tema central na ideologia destes grupos.79
77 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989. p. 373. 78 Ibid., p. 375-376. 79 Ibid., p. 373.
38
Neste caso, poderá existir uma linguagem saturada entre a esfera social organizada e
politicamente administrada pelo Estado, e as esferas destes grupos que buscam formar outro
comando a partir de suas próprias ideologias. 80
Ainda, Anthony Giddens, em A Constituição da Sociedade, esclarece que “as sanções
normativas expressam assimetrias estruturais de dominação, e as relações daqueles que lhe
estão sujeitos nominalmente podem ser de várias espécies diferentes de expressões dos
compromissos que essas normas supostamente engendram”.81
Na teoria de Thomas Hobbes,82 o contrato realizado entre todos os cidadãos e o Estado
faz com que aqueles abdiquem do direito de se defender e fazer justiça com as próprias mãos,
o que até então poderia ser uma liberdade de cada um ao exercer esse papel no propósito de
autodefesa. A partir do contrato, a justiça e a defesa de cada cidadão passariam a ser de
competência exclusiva da estrutura Estatal. Há uma aliança entre os homens a favor da paz
garantida pelo Estado.
A preservação da paz civil na sociedade é uma das prioridades do Estado, na visão de
Thomas Hobbes, para quem um Estado forte e centralizado evitaria que a sociedade fosse
ameaçada por guerras, e desse modo encontrasse a paz; e o convívio humano com a
participação do Estado possibilitaria que o homem não fosse o algoz do próprio homem, daí a
frase de Thomas Hobbes “o verdadeiro lobo do homem era o próprio homem”.
A ideia de Estado Soberano possibilitaria o convívio harmônico numa sociedade. O
Estado, regido por um príncipe soberano, conteria o estado natural dos homens, pois Thomas
Hobbes considerava que a sociabilidade do homem é construída por mera convenção e não
por sua própria natureza.
1.4.2 Inversão de modelo: sociedades primitivas sem Estado e contra o Estado
Na obra A sociedade Contra o Estado – Pesquisas de antropologia política, Pierre
Clastres esclarece que as sociedades primitivas são sociedades sem a presença do Estado.
Busquei isolar o modelo que vinha trabalhando para comparar tipos de sociedades existentes e
modos de condutas. Assim, as sociedades primitivas estão privadas de algo, no caso o Estado,
80 GIDDENS, Anthony. A Constituição da Sociedade. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes,
2009. p. 37 81 GIDDENS, 2009. p. 36 82 HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Tradução de
Rosina D’Angina. 2. ed. São Paulo: Martins Claret, 2012, e GUERRA FILHO, Willis Santiago. Filosofia:
Uma Introdução. Teresópolis: Daimon, 2009. p.101-130, e NASCIMENTO, Luiz C. Thomas Hobbes e o
Leviatã. Revista de Filosofia: Grandes Temas de Filosofia, São Paulo, n. 19. p. 41-45, 2011.
39
e o pensador considera que são sociedades só aparentemente incompletas, porque não
constituem verdadeiras sociedades, não sofrem policiamento e apenas subsistem, numa forma
de sobrevivência talvez dolorosa, sem a presença do Estado. 83
Na sociedade primitiva, sociedade essencialmente igualitária, os homens são senhores
de sua atividade de caça e coleta, senhores da circulação dos produtos dessa atividade: eles só
agem para si próprios. O aparecimento do Estado realizou a grande divisão tipológica entre
selvagens e civilizados, traçando uma indelével linha de separação que foi se modificando,
pois o Tempo se torna História.84
Pierre Clastres explica que, nas sociedades primitivas, a presença do Estado seria
impossível pela estrutura de organização que se cristalizou, não havendo divisão de mais ricos
ou pobres. O espaço do chefe não é o lugar do poder, e a figura do chefe não configura a
figura do déspota. “O chefe está a serviço da sociedade, é a sociedade em si mesma,
verdadeiro lugar do poder que exerce sobre tal sua autoridade como chefe”.85 E ainda
“O poder político isolado é impossível na sociedade primitiva; nela não há lugar, não há vazio
que o Estado pudesse preencher”.86
Pierre Clastres acrescenta que a ausência do Estado nas sociedades primitivas não é
uma falta, e a ausência da estrutura do Estado não significa que tais sociedades se encontram
na infância da humanidade ou são incompletas, ou não são suficientemente grandes, mas se
explica porque elas recusam o Estado em sentido amplo.87
O texto de Pierre Clastres traz uma visão de como os povos primitivos comportavam-
se dentro dessas comunidades não grandes, sem o controle de forças maiores de comando nem
tampouco protegidas por leis que pudessem impor direitos e deveres quando alguém
reclamasse sua propriedade. “As sociedades arcaicas, sociedades da marca, são sociedades
sem Estado, sociedades contra o Estado. A marca sobre o corpo, igual sobre todos os corpos,
enuncia: “Tu não terás o desejo do poder, nem desejarás ser submisso”.88
Em Arqueologia da Violência, do mesmo pensador, o chefe selvagem de povos
primitivos não detém o poder de mandar, o que não significa que ele não sirva para nada, mas
que é investido pela sociedade de tarefas, e seria possível ver nele uma espécie de funcionário,
83 CLASTRES, 2003, p. 207. 84 CLASTRES, 2003, p. 215. 85 Ibid., p. 224. 86 Ibid., p. 227. 87 Ibid., p. 236. 88 Ibid., p. 62.
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não remunerado, da sociedade. Esse chefe assume a vontade da sociedade como se fossem
todos uma única pessoa, e falaria em nome da sociedade junto às outras comunidades.89
As decisões de amizade e de guerra seguem a vontade da tribo, a guerra só acontece se
a tribo assim o desejar. Desta forma, “[...] a atenção particular que é dada (aliás nem sempre)
à palavra do chefe nunca chega ao ponto de deixá-la transformar-se em voz de comando, em
discurso de poder: o ponto de vista do líder só será escutado enquanto exprimir o ponto de
vista da sociedade como totalidade una”.90
Fica claro que o chefe na sociedade primitiva é o próprio corpo social, que detém o
comando e o exerce como unidade indivisa. Pierre Clastres destaca ainda que esse poder não
separado da sociedade se exerce num sentido bem claro e único, com um propósito, ou seja,
manter na indivisão o ser da sociedade, “impedir que a desigualdade entre os homens instale a
divisão na sociedade”.91
1.4.3 Sobre a liberdade e as guerras nas sociedades primitivas
Ainda na mesma obra, Arqueologia da Violência, Pierre Clastres aborda a questão da
liberdade. Esclarece que o Estado, como divisão instituída da sociedade, é o estabelecimento
efetivo da relação de poder. Deter o poder é exercê-lo: um poder que não se exerce não é
poder, é uma aparência. O Estado é apenas a extensão da relação de poder, destarte o
aprofundamento sempre mais marcado da desigualdade entre os que mandam e os que
obedecem. Para Clastres será determinada como sociedade primitiva toda esfera ou máquina
social que funcione segundo a ausência da relação de poder.92 “Consequentemente, será
considerada como Estado toda sociedade cujo funcionamento implica, por mínimo que possa
nos parecer, o exercício do poder”.93
O autor trata, ainda, do tópico “desejo de submissão, recusa de obediência: sociedade
com Estado, sociedade sem Estado”94. As sociedades primitivas recusam a relação de poder,
impedindo que o desejo de submissão se realize. “Aos seus filhos, a tribo proclama: sois todos
iguais, nenhum de vós vale mais que o outro, nenhum vale menos que o outro, a desigualdade
é proibida pois ela é inscrita, em marcas iguais, dolorosamente recebidas, no corpo dos jovens
89 Id., 2011, p.139-140. 90 Ibid., p. 140. 91 CLASTRES, 2011, p. 142. 92 Ibid., p. 151. 93 Ibid., p. 151-152. 94 Ibid., p. 155.
41
iniciados a saber dessa lei”95. Como nas sociedades primitivas conservadoras -- pois desejam
conservar seu ser-para-a-liberdade --, as sociedades divididas, ou seja, sociedades com
Estado, não se cansam de mudar, o desejo de poder e a vontade de servidão nunca acabam de
se realizar. 96
Pierre Clastres questiona: “Como pensar o sistema de guerra nas sociedades
primitivas?”97Ou: “Seria a guerra uma condição de possibilidade do ser primitivo?”.98
O autor elucida que a possibilidade de guerra está inscrita no ser da sociedade
primitiva. O equilíbrio se torna frágil caso haja a violação de território, agressões supostas ao
xamã dos vizinhos, o que pode ocasionar um conflito imediato.99 Neste sentido, voltando às
considerações de Thomas Hobbes, podemos refletir sobre a necessidade do Estado, que
estabelece a ordem devido a impossibilidade de diálogos entre as comunidades; tanto no caso
das sociedades primitivas, como no caso de sociedades com Estado podemos dar exemplos do
que ocorre na ausência de policiamento: no caso de greves de policiais ou outras forças de
proteção estatal, ou ainda na ausência de lei que normalize uma situação, observamos a
ocorrência de altos índices de assaltos, agressões, roubos e homicídios nas ruas das cidades.
Ainda sob esse prisma, pode-se invocar a existência de uma sociedade com Estado, e
ao mesmo tempo uma sociedade sem Estado, já que neutralizados os seus efeitos como poder
de Estado (Sociedade sem Estado). Em outro patamar encontram-se governos totalitários ou
movimentos totalitários adotados por governantes, e ainda por governos tirânicos, que passam
a exercer suas ações desrespeitando os termos fundamentais da democracia.
Na sequência, questões abordadas permitirão uma reflexão sobre possibilidades e
fatores inviabilizadores da biopolítica, e sobre o quanto o biopoder poderá contribuir para que
uma política possa estar mais voltada a procedimentos adequados e condizentes com o ato de
governar, dentro daquilo que foi exposto neste capítulo. Um pensamento político, exposto aos
critérios da saúde, educação e planejamento da esfera social, possibilitará uma riqueza social
para toda a comunidade; mas será necessário a quem governa pensar o biopoder e a
biopolítica em benefício social, ponto que liga o “político ao ético.”100 A população é um
conjunto de seres vivos e coexistentes que apresentam traços biológicos e patológicos
particulares e cuja própria vida é suscetível de ser controlada a fim de assegurar uma melhor
95 Ibid., p. 156. 96 Ibid., p. 156-157. 97 Ibid., p. 237. 98 Ibid., p. 237. 99 CLASTRES, 2011, p. 237. 100 REVEL, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais. Tradução de Maria do Rosário, Nilton Milanez e
Carlos Piovesani. São Carlos: Claraluz, 2005. p. 28-29.
42
gestão da força de trabalho. Enquanto a disciplina se dá como anátomo-política dos corpos e
se aplica essencialmente aos indivíduos, a biopolítica representa uma “grande medicina
social” que se aplica à população a fim de governar a vida: a vida faz, portanto, parte do
campo do poder. Algumas considerações a seguir ilustrarão o que envolve o viver, como ser
político e ser privado. Há dois lados nessa questão: a função vida privada e vida pública, a
primeira ligada à família e à vida individual, e a outra ligada às coisas políticas envolvendo o
ambiente social.101
Podemos encerrar o capítulo com a assertiva de Hannah Arendt, que releva a
importância do domínio das necessidades pelos indivíduos. “O domínio sobre a necessidade
tem então como alvo controlar as necessidades da vida, que coagem os homens e os mantêm
sob seu poder. O homem livre, o cidadão da polis, não é coagido pelas necessidades físicas da
vida nem tampouco sujeito à dominação artificial de outros”102 Hannah Arendt invoca a
liberdade no âmbito da política, que se inicia com o domínio das coisas da esfera privada.
101 Ibid. 102 ARENDT, 2014, p. 158-159.
43
2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O PODER NA POLÍTICA E NA SOCIEDADE –
AUTORIDADE E LIBERDADE – PODER EM MICHEL FOUCAULT E SEUS
EFEITOS – SOCIEDADE DE RISCO E CONSUMO
2.1 Algumas considerações sobre o poder
Temas do poder têm sido tratados por muitos pensadores, e podemos apresentar
algumas considerações que possibilitarão alcançar sua importância quando o poder estiver
direcionado para organizar e estar a serviço da vida. Nem sempre é utilizado para esse fim,
visto que seus detentores, por vaidade e orgulho, submetem outros a seu jugo de forma a obter
obediência e submissão. A ocorrência de tal situação na política pública logra tornar a
condição humana mais precária e complexa, caracterizando países em constantes guerras
internas e externas, cujos governantes utilizam-se do poder econômico e político para
conquistar mais poder e vangloriar-se diante do mundo do seu poderio, exercido muitas vezes
a serviço dos seus interesses e benefícios pessoais.
As considerações a seguir têm o propósito de demonstrar como a Autoridade e a
Liberdade podem contribuir e, ao mesmo tempo, inviabilizar a biopolítica em favor de uma
sociedade bem-ordenada. Presenciamos de forma frequente atos de autoridades
governamentais, bem como dos governados, que contribuem de forma tímida e com pouca
eficácia e efetividade para este cenário ambivalente, utilizando-se da plataforma de (bio)
poder, para atingir, no entanto, outras vantagens nem sempre em favor do todo.
Governar nos dá o sentido e necessidade de poder. Seria frágil um governo ou uma
sociedade desprovida de poder, vale citar as observações realizadas por Pierre Clastres
quando apresenta diferenças entre sociedade primitiva dita sociedade sem Estado e sociedade
com Estado. Mas o poder tratado neste item relaciona-se com a obrigação de tornar sua força
uma dinâmica funcional a serviço da ordem social, pressupondo a necessidade de
conhecermos a autoridade que administra o poder e suas funções, dentro de uma sociedade
com Estado e a caminho de uma sociedade bem-ordenada, nos moldes já declinados no
primeiro capítulo.
Aristóteles, em A Política, nos coloca três tipos de exercício do poder, distribuídos
entre os livros que compõem a obra: o poder e ou autoridade do pai sobre o filho, do senhor
sobre o escravo e dos governantes sobre os governados, cada qual com suas condutas
específicas, considerando o tipo de poder que cada um irá exercer sobre o outro.103
103 ARISTÓTELES, 2009, p. 254.
44
Em Thomas Hobbes, o poder é transferido em nome da paz. Há uma troca a ser
realizada visando à paz social, a liberdade e a guerra submetidas ao pacto que o homem fará
com o soberano. A condição é o homem submeter-se ao Estado para construir a paz no campo
social, considerando que há um ganho e uma perda. A perda da liberdade que se tinha para
lutar e conquistar objetivos em razão das paixões, em troca da segurança ofertada pela ação
do Estado.
Nesse sentido, a presença do Estado é a garantia da paz, à medida que apresenta as
condições para o homem viver a vida na esfera social com segurança, como aponta Thomas
Hobbes sobre o poder absoluto do povo sendo entregue ao Estado por meio de um contrato. O
estado de natureza sofre uma conversão pela entrega que se faz ao poder do Estado, na
passagem do estado de natureza para o estado civil. Aqui assistimos o poder do ordenamento
jurídico definido pelo Estado, atuando com as normas para estabilizar as relações:
Um Estado é considerado instituído quando uma multidão de homens concorda e
pactua que a um homem qualquer ou a uma assembleia de homens seja atribuído,
pela maioria, o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu
representante), todos sem exceção, tanto os que votaram a favor desse homem ou
dessa assembleia de homens como os que votaram contra, devendo autorizar todos
os atos e decisões desse homem ou dessa assembleia de homens, como se fossem
seus próprios atos e decisões, a fim de poderem conviver pacificamente e serem
protegidos dos restantes homens.104
Em A República, de Platão, o poder nas mãos de um Estado bem governado
possibilitará uma riqueza de que o homem tem necessidade para ser feliz, ou seja, uma vida
virtuosa e sábia. “As pessoas guerreiam para obter o poder, e esta guerra doméstica e interna
perde não só os que a travam como também o restante da cidade”.105
Em Massa e Poder, Elias Canetti concebe o poder nas mãos da massa, os homens
descobrindo que unidos podem conquistar o desconhecido, e conclui que os elementos do
poder aparecem em uma assembleia aberta ou fechada, feito uma comunhão de interesses.
Elias Canetti observa que o poder basta a si mesmo; quer apenas a si mesmo, ele não
existe em função de coisa ou pessoa alguma e sempre exerceu sobre os homens seu maior
fascínio.
A massa é um fenômeno enigmático, que repentinamente se forma onde antes não
havia. Poucas pessoas se juntam e a reunião, de dezenas ou mais, toma corpo, mediante um
anúncio, ou sem que nada tenha sido anunciado. É a massa espontânea que pode dividir-se
104 HOBBES, 2012, p. 141. 105 PLATÃO, 2005, p. 269.
45
em massa aberta ou fechada. A massa aberta é entendida aqui em todos os sentidos: ocorre em
toda parte e em todas as direções, existe enquanto cresce e sua desintegração inicia-se quando
para de crescer. Ao passo que quando a massa fechada se fixa, se limita, significa que o
espaço que irá preencher foi-lhe destinado.106 Elias Canetti aponta que o próprio indivíduo
tem a sensação de que, na massa aberta, ele vai muito além das fronteiras de sua pessoa. O
indivíduo toma corpo de forma que as fronteiras são rompidas e ele ganha uma liberdade, com
o movimento da massa, que não teria se ficasse isolado.107
A massa precisa de uma direção. Assim pontua Elias Canetti, no texto intitulado As
propriedades da Massa. Uma meta exterior aos indivíduos e idêntica para todos soterra metas
particulares e desiguais que poderiam significar o desfazimento da massa. Enquanto houver
meta, a massa persiste.108
Também nesse caminho Hannah Arendt desvela em sua obra Origens do
Totalitarismo o termo “massa” e o trata em seus escritos como aquilo que realmente é
dominado, as massas deixam-se enganar muitas vezes pela ausência de bom senso; é então
que entendemos como o poder no totalitarismo utiliza seus recursos para dialogar com a
massa:
O que as massas se recusam a compreender é a fortuidade de que a realidade é feita.
Predispõem-se a todas as ideologias porque estas explicam os fatos como simples
exemplos de lei e ignoram as coincidências, inventando uma onipotência que a tudo
atinge e que supostamente está na origem de todo acaso. A propaganda totalitária
prospera nesse clima de fuga da realidade para a ficção, da coincidência para a
coerência.109
Em O Poder, Gabriel Chalita defende que uma das características do poder é a
bilateralidade, exercendo-se na correlação entre duas ou mais vontades. Para o poder existir,
necessita de vontades reciprocamente submetidas. O poder não é um objeto, e sim uma
relação; não existe senão na medida em que há dominação e influência. Não se pode afirmar
que alguém “tem poder”, sem referência a uma situação, sem confrontá-lo a uma
conjuntura.110
106 CANETTI, Elias. Massa e Poder. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
p. 15. 107 Ibid., p. 18-19. 108 Ibid., p. 28. 109 ARENDT, 1989, p. 401. 110 CHALITA, Gabriel. O Poder: Reflexões sobre Maquiavel e Etienne de La Boétie. 3. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2005. p. 23.
46
2.1.1 Sobre Poder, Autoridade e Liberdade
Como dissemos antes, Hannah Arendt denuncia, em sua obra Entre o Passado e o
Futuro, que a autoridade desapareceu do mundo moderno. A pensadora constata que a
autoridade do governo sofreu uma falta de reconhecimento por conta de posturas autoritárias
de governantes, movimentos e ou regimes totalitários, que passaram a fazer parte da
atmosfera política governante.
O conceito que Hannah Arendt utiliza de autoridade é de origem platônica, quando
Platão começa a considerar a introdução da autoridade no trato dos assuntos públicos na polis.
Desta forma, o sentido e postura de autoridade exclui qualquer utilização de meios de
coerção: “onde a força é usada, a autoridade em si mesma fracassou”.111 A perda da segurança
ocasionada por essa crise de autoridade não acarreta a perda da capacidade humana de
construir, preservar e cuidar de um mundo que pode sobreviver e estar mais adequado à
vida.112
A restrição de liberdade existente em regimes de ordem autoritária e ainda a perda da
liberdade política que passa a existir em regimes tirânicos exercem um comprometimento da
autonomia, pois ao se verificar as posturas destes dirigentes nota-se que as ações de liberdades
são restritas e encontram-se engessadas. “As diferenças entre tirania e ditadura, de um lado, e
de outro lado, dominação totalitária, não são tão diferentes que as existentes entre
autoritarismo e totalitarismo, salienta Hannah Arendt”. 113
Aristóteles, em A Política, nos remete às arbitrariedades das tiranias ligadas à
monarquia, algumas fundadas em leis e na vontade dos súditos; mas eram tirânicas, pelo fato
de ser o poder absoluto e totalmente arbitrário. Esclarece existir uma terceira espécie de
tirania, ou seja, uma tirania que jamais se importa com os interesses particulares dos súditos.
No entanto, ela existe, apesar de não existir um homem livre que a suporte voluntariamente.114
Em A República, de Platão, “o tirano, evitando a razão e a lei, transpõe o limite dos
prazeres ilegítimos e vive no meio de uma escolta de prazeres servis”.115
Os países totalitários, em que governantes detêm o poder absoluto, acabam por
substituir a propaganda pela doutrinação e empregam a violência não mais para aterrorizar o
povo, mas para dar realidade a suas doutrinas ideológicas. Existe o uso de propaganda voltada
111 ARENDT, 2014, p. 129. 112 Ibid., p. 132. 113 Ibid., p. 135. 114 ARISTÓTELES, 2009, p. 138-141. 115 PLATÃO, 2005, p. 363.
47
à mentira dirigida a um público considerado ainda não subjugado dentro do mesmo país, a
segmentos da própria população e a outros países.116
O uso de insinuações indiretas caracteriza a propaganda totalitária, melhor ainda que
as ameaças diretas e demais crimes contra pessoas. Assim, aqueles que não deram atenção às
suas orientações e ou ensinamentos sofrem esse tipo de propaganda.117 O totalitarismo
aperfeiçoou o seu cientificismo ideológico e a técnica de afirmações proféticas, pois sob o
ponto de vista demagógico, a melhor forma de evitar discussão é tornar o argumento isento de
verificação no presente, como ao convencer os indivíduos, ou a população, de que o futuro irá
revelar os méritos daquele governo.118
Lembremos que Hannah Arendt destaca ainda que o que as massas recusam a
compreender é a fortuidade de que a realidade é feita.
Predispõem-se a todas as ideologias porque estas explicam os fatos como simples
exemplos de leis e ignoram as coincidências, inventando uma onipotência que a tudo
atinge e que supostamente está na origem de todo acaso. A propaganda totalitária
prospera nesse clima de fuga de realidade para a ficção, da coincidência para a
coerência.119
Nesse entendimento, Hannah Arendt explica que mesmo considerando que as massas
nutrem desejo de fugir da realidade porque privadas de um lugar no mundo, já não suportam
os aspectos acidentais e incompreensíveis dessa situação, e buscam por esse modo um
afastamento da realidade e do bom senso; nesse caso o processo de conhecimento do social
não produz mais efeitos nos indivíduos.
A preocupação em resgatar os pensadores trabalhando tais questões, é perceber o
quanto países democráticos estão sofrendo com movimentos totalitários, ou, no mínimo, um
certo autoritarismo, sem a atuação de uma autoridade que se preocupe com os interesses do
Estado, nos moldes já apresentados. Hannah Arendt aponta ainda que “tem sido
frequentemente apontado que os movimentos totalitários usam e abusam das liberdades
democráticas com o objetivo de suprimi-las”.120
Posturas totalitárias, tirânicas ou autoritárias sempre apresentam interesses diversos
daqueles pretendidos pela democracia, pois se apresentam também na forma de
representações sociais. Serge Moscovici, em Representações Sociais – Investigações em
116 ARENDT, 1989, p. 390-391. 117 ARENDT, 1989, p. 394. 118 Ibid., p. 395. 119 Ibid., p. 401. 120 Ibid., p. 362.
48
Psicologia Social, aponta que os elementos da psicologia individual são primários e se
referem apenas a fenômenos extremamente limitados de um determinado indivíduo. Algumas
expressões linguísticas que são reproduzidas no quotidiano nem sempre fazem parte do
mundo do interlocutor, mas das contribuições no campo da linguagem e que nos são
atribuídas, e das quais o boato seria um exemplo.
Assim sendo, devemos ir além da experiência imediata da cada pessoa. Operações
mentais e linguísticas de indivíduos nos mostram que a psicologia das representações sociais
coletivas esclarece algumas experiências individuais. “O holismo de uma representação
significa que o conteúdo semântico de cada ideia e cada crença depende de suas conexões
com outras crenças e ideias”.121
Vale enfatizar na linha de pensamento de Serge Moscovici, que discursos e padrões de
linguagem podem estar ligados a ideologias que divergem daquilo que a situação política e
social de um país apresenta, assim um discurso poderá estar recheado de crenças e instruções
que divergem do cenário social, o que impossibilita a quem discursa o agir favoravelmente
naquele momento.
O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as
palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para
velar intenções mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir,
mas para criar relações e novas realidades. Conforme Hannah Arendt, é o poder que mantém a
existência da esfera pública, e possui um caráter de potencialidade.122
Na esfera pública o poder alcança todos os setores e é o que se mantém pela ação
social e política. Pode encontrar-se na figura do representante do povo e no próprio povo que
é soberano. A efetivação e os efeitos do poder se dão a todo instante, seguindo a linha de
pensamento de Michel Foucault. Uma forma desvirtuada na esfera da política pública é
quando poder e violência compartilham a mesma sala. No caso da forma tirânica de governar
se utilizar da violência e do poder para fragilizar seus súditos, usa-se da mesma força e poder
para no poder manter-se, conforme nos aponta Hannah Arendt em Origens do Totalitarismo.
2.1.2 Sobre a liberdade
121 MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: Investigações em Psicologia Social. Tradução de Pedrinho A.
Guareschi. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 183. 122 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2009. p. 212.
49
O termo liberdade nos traz vários sentidos, e no texto a seguir iremos nos defrontar
com uma conotação política, no sentido de podermos ser livres em agir, pensar, falar,
escolher, porque uma Constituição permite que o façamos. Podemos nos sentir livres
interiormente mesmo participando de situações que nos atormentam. A coerção externa não
abalaria a situação interna de cada pessoa se assim ela o desejasse ou conseguisse, devido à
liberdade interior que cada um tem.
Se buscarmos em Platão o sentido de liberdade, este estaria ligado à busca de sua
essência, a sua conversão das sombras para as figuras artificiais e a luz que as projeta, a sua
ascensão para o Sol: busca no interior do homem as forças e a mudança, a liberdade que
possui para realizar isto; neste momento alcança o bem e a liberdade.
Anthony Giddens, em sua obra Modernidade e Identidade, ressalta que a política
emancipatória, de que trata, se ocupa de reduzir ou eliminar a exploração, a desigualdade e a
opressão. A exploração significa que as classes superiores em relação às classes
trabalhadoras, os brancos em relação aos negros, ou os homens em relação às mulheres,
acabam por monopolizar de forma ilegítima recursos ou bens desejados, negando ao grupo
explorado acesso a eles.
A emancipação significa que a vida coletiva é organizada de tal maneira que o
indivíduo seja capaz, num ou outro sentido, de ação livre e independente nos ambientes da
vida social. Desta maneira, liberdade e responsabilidade permanecem em uma espécie de
equilíbrio. O indivíduo não é libertado de maneira absoluta, haverá sempre responsabilidade
em relação aos outros, mas as condições exploradoras e desiguais deixam de ser
vivenciadas.123
A força exercida pela pressão democrática sobre um sistema político, e o sucesso ou
fracasso do seu caminhar em direção ao ideal de uma sociedade autônoma, dependem do
equilíbrio entre liberdade e segurança. A participação do sistema político e da cidadania de
forma responsável quando há a escassez da liberdade, e a busca por um equilíbrio político
mais sintonizado, ainda permanecem inacabados, mas prosseguem, pois liberdade e segurança
são dois aspectos da condição humana.
Zygmunt Bauman lembra que temos boas razões para desconfiar que um possível
enlace de bem-estar, reconciliação e coexistência pacífica completa e livre de conflitos entre a
liberdade e a segurança é um objetivo que não conseguiremos alcançar, mas o principal
perigo, tanto para a liberdade como para a segurança, encontra-se em abandonar a busca pela
coexistência da liberdade e segurança. “Uma sociedade autônoma é inconcebível sem
123 GIDDENS, 2002, p. 196.
50
cidadãos autônomos, e a autonomia dos cidadãos é impensável em qualquer lugar fora de uma
sociedade autônoma e os esforços necessitam ao mesmo tempo dos níveis macro e micro”.124
Nesse momento, Bauman pontua a necessidade de todas as esferas da sociedade, pública e
privada, comungarem o mesmo ideal, sem o qual será mais complexo alcançar níveis de
satisfação para todo o conjunto.
Na obra Em busca da política, Zygmunt Bauman observa que ser um indivíduo não
significa necessariamente ser livre. “A forma de individualidade disponível no estágio final da
sociedade moderna e na sociedade pós-moderna, aliás comuníssima nesta última, é a da
individualidade privatizada, que significa essencialmente uma antiliberdade”.125
Ainda, Zygmunt Bauman reitera, na mesma obra, que a influência de tendências
totalitárias tem por objetivo a total aniquilação da esfera privada, inviabilizando o
desenvolvimento e o relacionamento do indivíduo com as esferas sociais a que pertence,
engessando a autodeterminação individual. O objetivo não é impedir os indivíduos de pensar,
pois seria impossível, mas tornar o seu pensamento impotente, irrelevante, sem ação e sem
influência para o sucesso ou o fracasso do poder.
Sobre liberdade, Hannah Arendt aponta, na obra Entre o Passado e o Futuro, que o
campo em que a liberdade sempre foi conhecida, não como um problema, mas como fato da
vida quotidiana, é o âmbito da política. Hoje é necessário refletir sobre o problema da
liberdade, as questões políticas e o fato de o homem ser dotado com o dom da ação, pois na
124 BAUMAN, 2008, p. 75. 125 BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2000. p. 71. Nesse mesmo texto Bauman denomina seus escritos com a pergunta: Até que ponto o Homem é
livre? Procura demonstrar como estamos comprometidos com os excessos do quotidiano. Vale estabelecer
um olhar para o que Hannah Arendt trata na obra A condição Humana e igualmente na obra “Origens do
Totalitarismo”; aquestão do homo faber e sua atuação nas esferas públicas e privadas. Nesse sentido Hannah
Arendt pontua: “O que chamamos de isolamento na esfera política é chamado de solidão na esfera dos
contatos sociais. Isolamento e solidão não são as mesmas coisas. Posso estar isolado, isto é, numa situação
em que não posso agir porque não há ninguém para agir comigo, sem que esteja solitário; e posso estar
solitário, isto é, numa situação em que, como pessoa, me sinto completamente abandonado por toda
companhia humana, sem estar isolado. O isolamento é aquele impasse no qual os homens se veem quando a
esfera pública de suas vidas, onde agem em conjunto na realização de um interesse comum, é destruída. E, no
entanto, o isolamento, embora destrua o poder e a capacidade de agir, não apenas deixa intactas todas as
chamadas atividades produtivas do homem, mas lhe é necessário. O homem como homo faber tende a se
isolar com o seu trabalho, isto é, a deixar temporariamente o terreno da política. A fabricação (poesis, o ato
de fazer coisas), que se distingue por um lado, da ação (práxis) e, por outro, do mero trabalho, sempre é
levada a efeito quando o homem, de certa forma, se isola dos interesses comuns, não importa que o seu
resultado seja um objeto de artesanato ou de arte.[...]. O homem isolado que perdeu o seu lugar no terreno
político da ação é também abandonado pelo mundo das coisas, quando já não é reconhecido como homo
faber, mas tratado como animal laborans, cujo necessário “metabolismo com a natureza” não é do interesse
de ninguém. É aí que o isolamento se torna solidão. A tirania baseada no isolamento geralmente deixa
intactas as capacidades produtivas do homem; mas uma tirania que governasse “trabalhadores”, como por
exemplo o domínio sobre os escravos na Antiguidade, seria automaticamente um domínio de homens
solitários, não apenas isolados, e tenderia a ser totalitária”. Cf. ARENDT, 1989. p. 527.
51
ação e na política residem as únicas coisas em que não poderíamos admitir a ausência de
liberdade. É complexo tocar em um problema político sem tocar em um problema de
liberdade humana. Além da liberdade ser um problema da esfera política, temos ainda a
justiça, igualdade e o poder.
Falamos aqui da liberdade que se admite como aquela instaurada em toda a teoria
política e mesmo os que veneram a tirania precisam levar em conta que esta liberdade é
oposta à “liberdade interior”, que é o espaço estabelecido dentro de cada um, na intimidade do
qual todos os indivíduos podem afastar-se da coerção externa e sentir-se livres.
A consciência da liberdade é refletida em nossos relacionamentos, naquilo que
sentimos quando estamos próximos ou distantes, mas raramente a notamos dentro de nós. Em
toda espécie de inter-relacionamento humano, entre pessoas ou numa dada comunidade, a
liberdade é necessária e aclamada. Já na esfera pública, a liberdade não possui realidade
concreta. Sem espaço público politicamente assegurado, falta à liberdade o espaço onde deva
aparecer.126
Hannah Arendt assinala que somos levados a acreditar que a liberdade começa onde a
política termina, por termos visto a liberdade desaparecer sempre que as chamadas
considerações políticas terminam por prevalecer sobre todo o resto. Aponta ainda para o credo
liberal, com um questionamento, ou seja, “quanto menos política mais liberdade”?127
Em o Espírito das Leis, Montesquieu apresenta suas considerações demonstrando que
a constituição deve ter uma relação com o cidadão. Pode acontecer que a constituição seja
livre, mas o cidadão não o seja, e pode acontecer que o cidadão seja livre e a constituição não
será. “Nestes casos, a constituição será livre de direito e não de fato; o cidadão será livre de
fato, e não de direito”.128
Montesquieu ainda nos assevera que somente a disposição das leis, e mesmo das leis
fundamentais, forma a liberdade em sua relação com a Constituição. Na relação com os
cidadãos, costumes, maneiras, exemplos recebidos podem fazê-la nascer.
Talvez por essas considerações, a política, quando decide, termina por oprimir com
excessos de leis, e muitas vezes com a ausência delas, o que impede que satisfaçam o bem
social. Excessos de tributos a serem pagos limitam a vida das pessoas, que se oprimem em
busca de mais trabalho ou redução nos gastos particulares em função de decisões advindas da
política pública. Outro exemplo de opressão: países em guerras constantes atacam e são
126 ARENDT, 2014, p. 195. 127 Ibid., p. 196-197. 128 MONTESQUIEU, Charles de Secondat Baron de. O Espírito das leis. Tradução de Cristina Murachco.
3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 197.
52
atacados, com isto a liberdade externa e interna de um território depende de vigilâncias
permanentes visando proteger-se do inimigo.
Aristóteles fundamenta que o princípio fundamental do governo democrático é a
liberdade; a liberdade, segundo o pensador, é o objeto de toda democracia. Uma das
características essenciais da liberdade é que os cidadãos obedeçam e mandem
alternativamente, porque o direito ou a justiça, em um Estado popular, consiste em observar a
igualdade, e não a que se regula ao mérito.129 Desta forma: “Segundo essa ideia de justo, é
preciso forçosamente que a soberania resida na massa do povo, e que aquilo que ele tenha
decretado seja definitivamente firmado como o direito ou o justo por excelência, pois que se
pretende que todos os cidadãos tenham direitos iguais”.130
Em termos de soberania e liberdade, Hannah Arendt pontua que “a famosa soberania
dos organismos políticos sempre foi uma ilusão, a qual, além do mais, só pode ser mantida
pelos instrumentos de violência, isto é, com meios essencialmente não-políticos”.131
Liberdade e soberania conservam pouca identidade entre si, deixando de haver o
entrosamento necessário. “Onde os homens aspiram ser soberanos, como indivíduos ou como
grupos organizados, devem se submeter a opressão da vontade individual com a qual me
obrigo a mim mesmo, ou da vontade geral de um grupo organizado”.132
Bruno Bettelheim, em O Coração Informado – Autonomia na era da massificação,
expõe que se pode argumentar que as liberdades específicas de ação e decisão que
necessitamos ter para não nos sentirmos submetidos à tirania informam-nos quais as questões
decisivas para uma sociedade ou grupo de pessoas dentro dela. Enuncia ainda que há níveis de
consciência, e em qualquer época ou lugar da história existem áreas de ação humana em que a
consciência de liberdade é intensa, e outras em que encontra-se adormecida.133
Em outra proposição de Bruno Bettelheim, o que preocupa são os perigos que possam
ameaçar a autonomia em nossa sociedade, pois considerando sua alta complexidade, maior a
necessidade de autonomia individual, já que se exigirão estágios mais adiantados de
consciência de liberdade. A tecnologia moderna, a produção em massa e a sociedade de massa
129 ARISTÓTELES, 2009, p. 210-211. 130 ARISTÓTELES, 2009, p. 211. 131 ARENDT, 2014, p. 213. 132 Ibid., p. 213. Neste sentido ainda, Hannah Arendt destaca na mesma obra: “Todos os negócios políticos são e
sempre foram transacionados dentre de um minucioso arcabouço de laços e obrigações para o futuro como
leis e constituições, tratados e alianças, derivando todos, em última instância, da faculdade de prometer e de
manter a promessa face às incertezas intrínsecas do futuro. Além disso, um Estado em que cada homem
pensa apenas seus próprios pensamentos é, por definição, uma tirania”. Cf. ARENDT, 2014, p. 212. 133 BETTELHEIM, Bruno. O coração informado: Autonomia na era da massificação. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1985. p. 59.
53
trouxeram ao homem muitos benefícios concretos, mas, de outro lado, como ele obteve
muitas vantagens ao confiar amplas áreas de sua vida aos especialistas, tornou-se-lhe
altamente tentador deixar que estes cada vez mais tomassem conta de áreas que na realidade
deveriam continuar cuidando como sendo de liberdade pessoal. 134
2.1.3 Um Poder contrário que enfraquece135 o Biopoder e a Biopolítica
Há sempre uma violência quando não identificamos ou lutamos pela biopolítica. Este
campo encontra-se aberto a todos e nem sempre é reconhecido pelos motivos já declinados,
mas mesmo assim, devemos admitir que ainda há o mau uso da autoridade, da liberdade e do
poder. Em A Condição Humana Hannah Arendt busca o sentido da vida. A política penetra na
vida e solicita que descubramos isto pela participação que todos podem ofertar para a
conquista e preservação de um cenário melhor.
Ainda sobre a obra de Hannah Arendt Crises da República,135 ao se refletir sobre as
violências existentes nos atos humanos, há um fator na situação atual que, embora não
previsto por ninguém, é de igual importância. Hannah Arendt raciocina que o
desenvolvimento técnico dos implementos da violência chegou a tal ponto que nenhum
objetivo político concebível poderia corresponder ao seu potencial destrutivo, ou justificar seu
uso efetivo num conflito armado.
Verifica-se que a ação humana utiliza-se de meios para realizar conquistas,
principalmente no campo político, como se pode verificar na modernidade. Há uma revolução
nos campos tecnológicos, como o emprego de armas poderosas, com o intuito da utilização de
violência e arbitrariedades contra a humanidade.
Ela registra ainda que na arte da guerra, o apocalíptico jogo entre as superpotências,
entre os que manobram no plano mais alto de nossa civilização, está sendo jogado segundo a
regra “se qualquer um ganhar é o fim de ambos”.137 Há uma forte crítica de Hannah Arendt
em relação a essas posturas e posicionamentos das superpotências, quando ela estabelece que
nessas circunstâncias há poucas coisas mais assustadoras do que o incrível crescimento do
prestígio dos estrategistas com mentalidade científica nos Conselhos governamentais: “O
134 Ibid., p. 61. 135 Título inspirado na obra Leviatã de Thomas Hobbes a partir do texto denominado: “Das coisas que
enfraquecem um Estado ou levam a sua Dissolução”. HOBBES, 2012. p. 255. 135 ARENDT, Hannah. Crises da República. Tradução de José Volkmann. São Paulo: Perspectiva, 2010. p. 93. 137 Ibid., p. 94.
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problema não é que eles tenham sangue frio suficiente para pensar o impensável, mas
justamente é que eles não pensam”.138
Ainda nesse aspecto, em relação às superpotências, e suas posturas de guerras, Hannah
Arendt analisa cuidadosamente e de forma específica em seus estudos os estados totalitários e
o declínio do Estado-nação, buscando na figura dos apátridas-displaced person139, pessoas
desnacionalizadas, sem quaisquer qualidades e valor, que acabavam sendo repatriadas para
seus países de origem, perdendo todos os seus direitos, marginalizadas até onde o biopoder e a
biopolítica jamais os alcançariam.
Nessa linha de pensamento Hannah Arendt nos traz a discussão sobre liberdade,
emancipação e soberania popular, pois estas só poderiam ser alcançadas através da completa
emancipação nacional, e os povos privados de seu próprio governo nacional ficariam sem a
possibilidade de usufruir dos seus direitos. Mais uma situação que isolava aqueles que
abandonaram seus países em busca de uma condição melhor, pois onde se encontravam eram-
lhes impostas condições que oprimiam o seu modo de vida de apátridas.
Expressa em sua obra as perplexidades com os abusos contra os Direitos Humanos,
qualificados por ela em três momentos como inalienáveis, irredutíveis e indeduzíveis. O
homem surgia como único soberano em questões de lei, da mesma forma como o povo era
proclamado o único soberano em questões de governo. A soberania do povo era proclamada
em nome do Homem, parecendo normal que o Homem encontrasse sua garantia no direito do
povo a um autogoverno soberano e se tornasse importante e inalienável esse direito.
Os direitos do Homem, afinal, haviam sido definidos como “inalienáveis” porque se
supunha serem independentes de todos os governos; mas sucedia que, no momento
em que seres humanos deixavam de ter um governo próprio, não restava nenhuma
autoridade para protegê-los e nenhuma instituição disposta a garanti-los.140
As pessoas consideradas apátridas não tinham direito à residência, ao trabalho, tinham
de viver em constante transgressão à lei. Sujeitos a ir para cadeia sem nunca ter cometido um
crime, pois estavam desprovidas de um estatuto político que pudesse definir sua condição.
Sem a proteção das comunidades jurídico-políticas nacionais, e privados dos direitos
138 Ibid., p. 96. 139 Segundo Hannah Arendt “A expressão displaced person (pessoas deslocadas) foi inventada durante a segunda
guerra mundial com a finalidade única de liquidar o problema dos apátridas de uma vez por todas, por meio do
simplório expediente de ignorar a sua existência. O não reconhecimento de que uma pessoa pudesse ser “sem
Estado” levava as autoridades, quaisquer que fossem, à tentativa de repatria-la, isto é, deportá-la para o seu país
de origem, mesmo que este se recusasse a reconhecer o repatriado em perspectiva como cidadão, ou, pelo
contrário, desejasse o seu retorno apenas para puni-lo”. Cf. HANNAH, 1989, p. 313. 140 Ibid., p. 325.
55
universais do Homem, os apátridas eram vítimas de um sério desequilíbrio na efetividade e
atuação da política de direitos humanos.
Uma situação que impressiona é o caso de um apátrida que cometesse determinado
crime, ou infração: um pequeno furto poderia melhorar a situação do apátrida para legal, pois
o crime passa a ser a melhor maneira de recuperação de certa igualdade humana, já que a lei
prevê esta exceção nestes casos; assim o apátrida ficaria a salvo das arbitrariedades policiais
quando cometesse um delito. “Só como transgressor da lei pode o apátrida ser protegido pela
lei”.141 Na condição de criminoso o apátrida teria sua situação favorecida.
O mesmo homem que ontem estava na prisão devido à sua mera presença no mundo,
que não tinha quaisquer direitos e vivia sob ameaça de deportação, ou era enviado
sem sentença e sem julgamento para algum tipo de internação por haver tentado
trabalhar e ganhar a vida, pode tornar-se quase um cidadão completo graças a um
pequeno roubo. Mesmo que não tenha um vintém, pode agora conseguir advogado,
queixar-se contra os carcereiros e ser ouvido com respeito. Já não é o refugo da
terra: é suficientemente importante para ser informado de todos os detalhes da lei
sob a qual será julgado. Ele torna-se pessoa respeitável.142
A situação tornou-se grave, pois o Estado-nação, incapaz de prover uma lei para
aqueles que haviam perdido a proteção de um governo nacional, acaba transferindo o
problema dos apátridas para a polícia. Assim a polícia da Europa recebeu autoridade para agir
por conta própria, para administrar e governar diretamente as pessoas, nesta esfera da vida
pública. Nos regimes totalitários, antes e durante a Segunda Guerra mundial, a polícia havia
conquistado o auge do poder, ficando a situação mais complexa ainda.143
Durante o século XIX, o consenso da opinião era de que os direitos humanos tinham
de ser invocados sempre que um indivíduo precisasse de proteção contra a nova soberania do
Estado e arbitrariedade da sociedade contra este indivíduo.144 Hannah Arendt sublinha que o
conceito de direitos humanos foi tratado de modo marginal pelo pensamento político do
século XIX, e nenhum partido político do século XX o incluiu em seu programa, mesmo
quando era urgente fazê-lo.
Os apátridas, ou povos sem Estado, têm sido uma constante em nosso mundo. De
alguma forma, a ausência dos direitos humanos em situações críticas da humanidade, revela a
extensão de políticas tirânicas e totalitárias existentes, à medida que há um desprezo em
relação àquele estatuto e ao ser humano em toda a sua potencialidade. Há Estados que por
141 ARENDT, 1989a, p. 320. 142 Ibid., p. 320. 143 Ibid., p. 321. 144 Ibid., p. 324.
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políticas externas e questões de segurança interna divulgam informações dentro do próprio
território, com o fim de aterrorizar e criar expectativas em relação a outros povos. Ou seja,
como se outros povos representassem um perigo ou ameaça para a Nação em que buscam
acolhimento.
Na linha de estudo e pesquisa de Hannah Arendt, Giorgio Agamben declinou sua tese
voltada à biopolítica e ao biopoder. O texto a seguir trabalha a política e os exemplos por ela
deixados, o mais grave dos quais nos permitirá perceber o quanto o Estado afasta-se das
propostas de uma política mais humana e daquilo que podemos declinar como o sentido desta
política vida.
2.2 Estado de Exceção – Política e atualidade
O estado nazista é exemplo relevante para o entendimento do estado de exceção, pois
logo que tomou o poder foi promulgado o Decreto para a proteção do povo e do Estado, que
suspendia os artigos da Constituição de Weimar145 relativos às liberdades individuais.
O decreto nunca foi revogado, de modo que o estado de exceção durou 12 anos. Giorgio
Agamben146 afirma que o totalitarismo moderno pode ser definido nesse sentido, como a
instauração por meio do estado de exceção de uma guerra civil legal, que permite a
eliminação física não somente dos inimigos políticos, mas igualmente categorias de cidadãos
que, por qualquer motivo pareçam perigosos ou perseguidos do sistema político.
No estado nazista o estado de exceção passa a garantir a existência da norma, ao
mesmo tempo que suspendia outra norma, a Constituição de Weimar. O decreto que vigorou
representava o estado de exceção em relação à liberdade individual. “É o momento em que a
aplicação da lei é suspensa, mas ela mesma se mantém em vigor”.147 O autor observa, ainda,
que “o estado de exceção apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de
indeterminação entre democracia e absolutismo”.148
Responsáveis por fatos que colocam em risco a ordem de um país, pessoas que foram
detidas por serem suspeitas de colocarem em risco a segurança pública, são classificadas
como seres juridicamente inomináveis ou inclassificáveis, sendo apenas comparáveis com a
145 No entendimento da leitura do texto significa Constituição Alemã (Tradução e entendimento livre). 146 AGAMBEN, 2004, p. 13. 147 TESHAINER, Marcus Cesar Ricci. Política e desumanização – Aproximação entre Agamben e a
psicanálise. São Paulo: Educ/Fapesp, 2013. p. 66. 148 AGAMBEN, op. cit., p. 13.
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situação jurídica dos judeus, ou seja, haviam perdido toda a identidade jurídica, conservando
apenas a sua identidade judia.149
Giorgio Agamben nos aponta que hoje há uma progressiva erosão dos poderes
legislativos, a ratificar decisões promulgadas pelo poder executivo sob a forma de decretos
com força de lei, como no caso o Brasil: Medidas Provisórias tornam-se uma prática rotineira,
possibilitando que o Executivo legisle numa constância, fazendo desta forma a casa legislativa
afastar-se de assuntos importantes de ordem nacional.
Uma das características essenciais do estado de exceção, a abolição provisória da
distinção entre poder legislativo, executivo e judiciário, mostra, aqui, sua tendência a
transformar-se em prática duradoura de governo.150
Nessa ordem, a questão mostra quanto o problema do estado de exceção apresenta
semelhanças com o direito de resistência. Segundo Giorgio Agamben, discutiu-se muito, em
especial nas assembleias constituintes, sobre a oportunidade de se inserir o direito à
resistência no texto da Constituição. É assim que o projeto da atual Constituição italiana
introduziu um artigo que estabelecia: “Quando os poderes públicos violam as liberdades
fundamentais e os direitos garantidos pela Constituição, a resistência à opressão é um direito e
um dever do cidadão”.151
Segundo Giorgio Agamben houve rejeição à sua implementação, mas na Constituição
Alemã figura um artigo que legaliza, sem restrições, o direito de resistência, afirmando que
“contra quem tentar abolir esta ordem (a Constituição democrática), todos os alemães têm o
direito de resistência, se outros remédios não forem possíveis”.15
Tanto no direito de resistência quanto no estado de exceção, o que realmente está em
jogo é o problema do significado jurídico de uma esfera de ação em si extrajurídica.
Aqui se opõem duas teses: a que o direito deve coincidir com a norma e aquela que,
ao contrário, defende que o âmbito do direito excede a norma. Mas em última
análise, as duas posições são solidárias no excluir a existência de uma esfera humana
que escape totalmente do direito.153
Quanto à introdução de artigo na Constituição Alemã, ao direito de resistência à
opressão, Giorgio Agamben pontua que ocorrendo violação às liberdades fundamentais e dos
direitos garantidos pela Constituição, o Estado estaria numa situação de estado de exceção,
149 Ibid., p. 12. 150 AGAMBEN, 2004, p. 19. 151 Ibid., p. 23. 152 Ibid., p. 23-24. 153 Ibid., p. 24.
58
pois violaria estes direitos garantidos constitucionalmente. Ele estaria regulamentando o
direito à resistência.
O indivíduo exposto a todo esse processo não escapa às relações de poder, e deve
acreditar nas leis e no ordenamento jurídico – político, com atenção às questões das
necessidades pautadas na vida:
O direito à resistência produz-se por uma causa interna, essencial, própria da
afirmação da vida contra as subjugações, o “direito à vida” depende de uma causa
externa, da concessão transcendente de valores por parte das forças dominantes. Na
biopolítica, quando os dispositivos de poder visam atribuir de fora o valor ao
homem, valor chamado dignidade da pessoa humana, eles prescindem de que a
própria vida produza os seus valores.154
Em atenção a nosso estudo, pensar os direitos humanos é fundamental como
construção de igualdade e ainda considerar a atuação da biopolítica e do biopoder em tais
situações. Celso Lafer aproxima-se das ideias da filósofa alemã, na obra A Reconstrução dos
Direitos Humanos – Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt,155 abordando também
a questão dos apátridas, para ele não se resumindo na situação de terem perdido somente suas
casas, mas o tecido social em que nasceram e no qual estabeleceram um lugar no mundo.
O apátrida não acha um lugar na família das nações, ele perde em primeiro lugar o
elemento de conexão com o Direito Internacional Público, que é a nacionalidade, pois a
ligação tradicional entre o indivíduo e o Direito das Gentes estabelece-se através da
nacionalidade, que permite a proteção diplomática, resultante da competência pessoal do
Estado em relação aos seus nacionais.156
Em fatos mais recentes, que todos têm acompanhado pela grande imprensa, e que
colocam muitos países em estado de atenção, considerando o mundo extremamente
organizado politicamente, verificamos os fenômenos de imigração em que refugiados lotam
barcos na tentativa de chegarem a outros países que possam acolhê-los. Muitos não logram a
felicidade de chegarem vivos, considerando a extrema dificuldade em atravessar, em barcos
frágeis, águas dos mares que vizinham ou não outros continentes.157
154 CAVA, Bruno; MENDES, Alexandre. A vida dos direitos – Violência e Modernidade em Foucault e
Agamben. Rio de Janeiro: NPL/Agon Grupo de Estudos, 2008. v. 2. (Revista de Filosofia Política do Direito
Agon). p. 87. 155 LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos: Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt.
São Paulo: Cia das Letras, 1988. 156 Ibid., p. 146. 157 FLECK, Isabel. Menino morto aviva comoção por refugiados. Folha de S. Paulo, São Paulo, 03 set. 2015,
n. 31, Caderno A – Notícias do Mundo. p. 12.
59
São refugiados de vários países, sem a presença do biopoder, da biopolítica e do
biodireito. A imagem do pequeno menino morto na praia correu o mundo pelas redes sociais
conforme informações da imprensa. O irmão e a mãe não resistiram também. Nas estradas,
caminhões com mais refugiados (vivos e mortos) foram encontrados, todos em busca de uma
nova pátria.
Com o início da guerra em seus países de origem, sofrendo perseguições e se tornando
vítimas de guerras civis, indivíduos ou populações acorrem em peregrinações para outros
países. São crises que se agravam a cada dia, e países da Europa já colocam limites para a
entrada de estrangeiros.
O autoritarismo e o totalitarismo de governos provocam um processo de desagregação
social, inviabilizando ao cidadão habitar sua própria nação, obrigando-o à perda de sua
identidade. O problema colocado por Hannah Arendt, conforme pode-se verificar, atinge todo
processo do biopoder, ausente numa política de alcance com relação a esses fatos; melhor
dizendo, existe um Estatuto dos Direitos Humanos, mas este se vê praticamente enfraquecido
diante do totalitarismo. A existência de seres humanos pode ser vista como supérflua:
As declarações dos direitos devem então ser vistas como o local em que se efetua a
passagem da soberania régia de origem divina à soberania nacional. Elas asseguram
exceptio da vida na nova ordem estatal que deverá suceder à derrocada do ancien
régime. Que, através delas, o “súdito” se transforme, como foi observado, em
“cidadão”, significa tornar-se aqui pela primeira vez (como uma transformação cujas
consequências biopolíticas somente hoje podemos começar a mensurar) o portador
imediato da soberania. O princípio de natividade e o princípio de soberania,
separados no antigo regime (onde o nascimento dava lugar somente ao sujet, ao
súdito) unem-se agora irrevogavelmente no corpo do sujeito soberano para constituir
o fundamento do novo Estado-nação. Não é possível compreender o
desenvolvimento e a vocação nacional e biopolítica do Estado moderno nos séculos
XIX e XX, se esquecemos que em seu fundamento não está o homem como sujeito
político livre e consciente, mas, antes de tudo, a sua vida nua, o simples nascimento
que, na passagem do súdito ao cidadão, é investido como tal pelo princípio de
soberania. A ficção aqui implícita é a de que o nascimento torne-se imediatamente
nação, de modo que entre os dois termos não possa haver resíduo algum. Os direitos
são atribuídos ao homem (ou brotam dele), somente na medida em que ele é o
fundamento, imediatamente dissipante (e que, aliás, não deve nunca vir a luz como
tal), do cidadão.158
2.2.1 Outras formas do direito à resistência
Busquei, dentro daquilo que estamos trazendo como reflexão, os aspectos totalitários
na forma de governar, lembrando que mesmo dentro de regimes democráticos podemos
158 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 135.
60
encontrar movimentos nesse sentido; ao lado deles, uma forma de oposição contra injustiças
existentes, que impedem a vida política na esfera social e em que o biopoder termina agindo
contrariamente à proposta de atuar favoravelmente para todos.
O que desejo esclarecer resgato da obra de John Rawls, Uma Teoria da Justiça,
quando abordo o caso da desobediência civil como atitude favorável ao cidadão. Quando
assistimos situações em que governantes desconhecem para quem e por que estão
governando, desconhecem a cidadania e por consequência os direitos humanos e
fundamentais.
Algumas consequências biopolíticas “negativas” começam a ficar aparentes, devido às
dificuldades com que as sociedades vêm se defrontando, como a ausência desses direitos
importantes na esfera social; ao mesmo tempo, recursos de grandeza última são empregados
em guerras, corrupções e políticas com fins particulares sem nenhum proveito para o cidadão.
Posso errar, mas aqui é o fazer morrer e não deixar viver.
John Rawls define desobediência civil como um ato público, não violento, consciente:
um ato político, geralmente para provocar mudanças na lei e nas políticas de governo. Agindo
por desobediência, alguém se dirige ao senso de justiça da maioria da sociedade. Há uma
ponderação e na opinião da maioria conclui-se que os importantes princípios não estão sendo
respeitados. Sem dúvida, num regime constitucional, os tribunais podem no fim posicionar-se
ao lado dos opositores e declarar que a lei ou a política em questão é inconstitucional ou
injusta.160
A desobediência civil é um ato político, não somente no sentido de que se dirige à
maioria que detém o poder político, mas também porque é um ato que se orienta e justifica
por princípios políticos, ou seja, pelos princípios de justiça que regulam a Constituição e as
instituições sociais de forma geral.161
É resposta a uma constante violação, de forma contínua e deliberada, de princípios
básicos, por um período largo e sem que nenhum governante tome consciência de sua
gravidade, especialmente quando trata de infração a liberdade básica, incitando ou à
submissão ou à resistência.
John Rawls define em seu texto ser a desobediência civil um ato público, com
comunicação franca com todos; não é encoberta e não representa ser ato secreto, do qual não
se saiba o verdadeiro interesse, tampouco é voltado a gestos de violência contra patrimônio ou
pessoas por parte daquilo e daquele que se posiciona. A conscientização pública é necessária
160 RAWLS, 2002, p. 404. 161 Ibid., p. 405.
61
para que aconteçam as propostas das reformas que devem ser feitas. O sentimento de justiça
será visto como uma força política vital, assim que se reconhecerem as formas sutis de
influência e particularmente o seu papel de tornar certas posições sociais indefensáveis.162
2.2.2 Sobre a inclusão e a dignidade humana
Jürgen Habermas, em A Inclusão do Outro,163 traz reflexões sobre o caso dos
imigrantes. Nos casos de imigrantes, sob o ponto de vista humanitário, há uma busca pelo
bem-estar social daqueles refugiados – imigrantes que tencionam escapar de uma existência
de miséria em sua terra natal, quando não de eternas guerras que destroem comunidades
inteiras.
Há boas razões morais para uma reivindicação de direito individual a asilo político,
invocando a defesa da dignidade humana. Habermas nos aponta que segundo a Convenção
sobre Refugiados, de Genebra, tem direito a asilo todo aquele que foge de países “em que sua
vida ou sua liberdade pudesse estar ameaçada por causa de sua raça, religião, nacionalidade,
por pertencer a determinado grupo social ou por causa de sua convicção política”.164
Em favor da postulação moral, Jürgen Habermas pontua que é possível apresentar
boas razões que justifiquem um processo imigratório. Normalmente as pessoas não
abandonam a terra natal a não ser em meio a grandes dificuldades; para documentar sua
necessidade de auxílio basta o fato de terem fugido, mas ainda estas e outras razões não
bastam para justificar a garantia de um direito individual à imigração que seja legítimo e que
possa ser cobrado por ação judicial; mas o comprometimento moral poderá colaborar no
comprometimento com uma política liberal de imigração, buscando equilibrar a justificativa
dada “o barco está lotado”.165
2.2.2.1 Inclusão das diferenças
Jürgen Habermas igualmente trabalha em seu texto, intitulado “Lutas por
reconhecimento – os fenômenos e os planos de sua análise”,166 o que igualmente Hannah
Arendt pontua em Origens do Totalitarismo, ou seja, as questões de inclusão das diferenças
162 Ibid., p. 429. 163 HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. Tradução de George Sperber e outros. 3. ed. São Paulo:
Loyola, 2002a. 164 HABERMAS, 2002a, p. 267-268. 165 Ibid., p. 269. 166 Ibid., p. 246-269.
62
surgem também nas sociedades democráticas, quando uma cultura majoritária, no exercício
do poder político, imprime às minorias a sua forma de vida, negando aos cidadãos de origem
cultural diversa uma efetiva igualdade de direitos. A coexistência com igualdade de direitos
de diferentes comunidades étnicas, grupos linguísticos, confissões religiosas e formas de vida,
não poderá ser obtida ao preço da fragmentação da sociedade. A cultura majoritária deve
envolver e permitir que haja integração com a minoritária, se não quiser prejudicar o processo
democrático em determinadas questões existenciais, que são relevantes para as minorias.
É assim que podemos observar as relações preconceituosas existentes não apenas em
relação aos imigrantes estrangeiros e apátridas, como já foi anteriormente declinado nos
textos de Hannah Arendt, mas buscamos encontrar também nas abordagens de Jürgen
Habermas, os ataques efetuados em prol da exclusão de pessoas de raça, credo e orientação
sexual diferentes, que se encontram nas mesmas condições de direitos e deveres de grupos
que se dizem majoritários. Todos terão que adquirir uma linguagem comum, uma ação
comunicativa que funcione em interesse de todos.
Jürgen Habermas esclarece que autodeterminação democrática significa participação
homogênea de cidadãos livres e iguais no processo de tomada de decisões. O que está em jogo
na ordem do dia são estratégias que possam evitar, na medida do possível, o uso da violência,
e que estas estratégias venham influenciar a situação interna de Estados formalmente
soberanos com o objetivo de incentivar uma economia auto-sustentada e condições sociais
suportáveis, uma participação democrática uniforme, a vigência do Estado de direito e uma
cultura de tolerância.167
Celso Lafer pontua que na esfera do público, que diz respeito ao mundo que
compartilhamos com as outras pessoas e que, portanto, não é propriedade privada de
indivíduos e ou de poder estatal, deve prevalecer, para se alcançar a democracia, o princípio
da igualdade. Este não é dado, pois as pessoas não nascem iguais e não são iguais nas suas
vidas. A igualdade resulta da organização humana. Afirma ainda que “é a polis, que torna os
homens iguais por meio da lei, assim perder o acesso à esfera do público significa perder
acesso a igualdade”.168
2.2.2.2 Estado de Exceção e a Teoria da Corrupção
167 HABERMAS, 2002a, p. 178. 168 LAFER, 1988. p. 153.
63
Outro item que proponho incluir no assunto sobre estado de exceção, é a questão sobre
a corrupção existente em vários setores sociais e políticos. Um artigo publicado no Jornal O
Estado de São Paulo, publicado em 24/02/1980, escrito por J. Patrick Dobel, denominado
Teoria da Corrupção, traz luz a um tema discutido e apontado como problema sério no
cenário social e político. O articulista pontua que a corrupção possibilita uma crise moral
política e privada, pois problemas desta ordem criam situações desestruturadoras em uma
sociedade.
O artigo relata igualmente que a corrupção pode ser considerada uma forma
desordenada de vida, pela utilização de meios que se encontram para burlar uma situação pelo
oferecimento a uma pessoa de oportunidades de ganho em troca de outro ganho. Não é um
problema apenas do cenário privado, mas do político também.
Como e por que o Estado e as pessoas se corrompem? transformei em questão uma
justificativa levantada por J. Patrick Dobel.169 São questões difíceis de serem respondidas,
pelo menos nesta tese, mas o fator corrupção colabora e contribui negativamente com a
biopolítica e o biopoder, inviabilizando suas propostas de vida, justiça e igualdade junto a
sociedade. Convém lembrar que nossa tese central se assenta no esforço em construir uma
sociedade bem-ordenada, sem as amarras de governos totalitários ou tirânicos, mas
experimentados em processos democráticos, com a biopolítica e biopoder, e as questões de
fazer viver e deixar morrer.
Patrick Dobel esclarece que uma proposta de igualdade econômica e política, dentro
de um equilíbrio que possa satisfazer os direitos fundamentais, é proposta essencial para a
efetividade desses direitos. A virtude cívica é alimentada pela educação do indivíduo que
contribui para que um Estado Social e de Direito vislumbre posições mais seguras de justiça
social.170
O artigo esclarece que indivíduos que são altruístas e com disciplina moral são fortes
colaboradores que podem impedir o trânsito de propostas que circulam junto a instituições
públicas ou junto aos vários departamentos do setor privado, evitando desta maneira fraturas
no corpo das instituições públicas e privadas, que são patrimônio de todos.171
O texto do artigo revela que a interpretação econômica argumenta que as distribuições
desiguais da economia e do poder levaram a rupturas sociais graves, criando um abismo entre
as possibilidades e necessidades; assim a teoria da corrupção pode ser uma alternativa da 169 DOBEL, J. Patrick. Como e por que um Estado se corrompe. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 24 fev.
1980. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19800224-32192-nac-0119-999-119-not>.
Acesso em: 02 jan. 2016. Professor da Universidade de Washington de Ética Pública e Gestão Pública. 170 Ibid. 171 Ibid.
64
decadência de confiança e a ausência do fator reciprocidade entre governantes e governados
nas propostas que cabem a ambos.172
Embora na contemporaneidade a corrupção geralmente signifique a traição da
confiança pública para o lucro de indivíduos ou grupos, como a teoria política faz saber, já
declinou-se dessa questão em favor da filosofia política, que passo a expor:
Assim é, meu grande amigo, em toda a sua extensão, a corrupção que perverte as
melhores naturezas, aliás bem raras, como observamos. É de homens assim que
saem não apenas os que causam os maiores males às cidades e aos cidadãos, mas
também os que lhes proporcionam o maior bem quando seguem o caminho certo;
mas um temperamento medíocre nunca faz nada de grande a favor ou em detrimento
de alguém, mero cidadão ou cidade.173
Em certo momento da obra A República, Platão aponta como alguns homens agem na
cidade e na vida pública como tiranos, pois nutrem o mesmo tipo de comportamento na vida
particular como na vida pública:
[...] na vida particular, e antes de chegarem ao poder, esses homens não se
comportam da mesma maneira? Em primeiro lugar, vivem com pessoas que são para
eles aduladores prontos a obedecer-lhes em tudo ou, se têm necessidades de alguém,
cometem baixezas, atrevem-se a desempenhar todas as funções para lhe
demonstrarem a sua dedicação, como o inconveniente de se recusarem a conhecê-lo,
uma vez alcançados os seus fins. 174
Aristóteles realça que a primeira espécie de democracia é a que tem a igualdade por
fundamento. Nos termos da lei que regula essa democracia, a igualdade significa que os ricos
e os pobres não têm privilégios políticos, assim tanto uns como os outros são soberanos de um
modo exclusivo, e todos o são exatamente na mesma proporção.175 Aristóteles acrescenta
ainda:
De resto a questão que aqui tratamos aplica-se em geral a todos os governos, mesmo
os bons governos. Assim operam os que são corrompidos e só visam ao interesse
particular, e do mesmo modo se conduzem os que têm em vista o interesse geral.
“[...] vê-se, pois, que nos governos corrompidos ele só serve o interesse particular, e
só é justo sob este aspecto; talvez se compreenda com a mesma clareza que ele não é
absolutamente a expressão da justiça”. 176
172 Ibid. 173 PLATÃO, 2005, p. 235. 174 PLATÃO, 2005, p. 345. 175 ARISTÓTELES, 2009. p. 106 176 Ibid., p. 106.
65
Patrick Dobel destaca a mudança da qualidade moral da vida do cidadão, que
combinada com a desigualdade, gera facções. Facções às vezes podem estar em todos os
níveis, podendo corromper agências públicas e a lei. Ser membro de uma facção muda o
caráter moral das pessoas, estimula o egoísmo radical.178
O artigo aprofunda-se na vida privada do indivíduo, rumo à alienação, à violência e à
anarquia institucional cada vez maior. Uma outra situação abordada é a vida moral individual
tornar-se progressivamente privatizada e o interesse próprio passar a ser motivo normal da
maioria das ações. A privatização das preocupações morais muda o cálculo moral da
sociedade. O contrato interesseiro passa a ser a relação social normal.
Dobel179 destaca ainda que a virtude cívica requer não apenas lealdade, mas também
desinteresse e adesão pessoal ao bem comum. Em consequência, quem é totalmente egoísta é
também totalmente corrupto, no sentido de que não possui lealdade, não possui desinteresse
nem compromisso com o bem comum. A lealdade é uma condição prévia, pois sem ela não
será possível ter desinteresse, tampouco compromisso com a comunidade.
O hábitos, os costumes e a empatia espontânea com os outros cidadãos dão conteúdo
diário à lealdade ativa. Essa lealdade cívica não é simplesmente patriotismo dominado por
emoções. A verdadeira lealdade exige reflexão racional do cidadão, um compromisso
desinteressado com a família e a comunidade. Nesse aspecto o sistema de educação social
pode estar comprometido, conforme alerta o articulista:
O sistema de educação cívica da sociedade é corrompido por meio de vários
assaltos. À medida que a corrupção dos valores do governo e da sociedade em geral
vai ficando mais evidente, torna-se mais difícil encontrar professores que ensinem a
sério tais valores. O ensino, em si, transforma-se numa ocupação desvalorizada, num
mundo de grandes disparidades econômicas e sociais, e cada vez menos as pessoas
de talento dedicam-se a ele. Ao mesmo tempo, professores e escolas veem-se sob o
ataque constante de várias facções porque ensinam um conjunto de valores que
poderia levar um estudante a questionar o lugar ocupado na sociedade por uma
determinada facção, ou prejudicar o recrutamento futuro de uma facção. As escolas
também se confrontam com estudantes e pais que acham contraproducente a
“antiga” preocupação com lealdades e costumes racionais e humanos num mundo de
egoísmo atomizado e competição faccional. As escolas são lentamente
transformadas em mero treinamento ocupacional para as facções e ficam destituídas
de quaisquer valores independentes, ligados à lealdade, ao bem comum e aos outros
cidadãos.180
178 DOBEL, 1980. 179 Ibid. 180 DOBEL, 1980.
66
No livro Oitavo da obra O Espírito das Leis,181 Montesquieu demonstra que a
corrupção de cada governo começa quase sempre pela corrupção de seus princípios. As
situações levantadas por Montesquieu parecem a ordem do dia, de tão atuais que são. O
pensador explica que o princípio da democracia se corrompe não somente quando se perde o
espírito de igualdade, mas também quando se adquire o espírito de igualdade extremo e assim,
cada um quer ser igual àqueles que escolheu para comandá-lo.
Montesquieu observa que o povo cai nesta desgraça quando aqueles a quem confia seu
destino, querendo esconder sua corrupção, tentam corrompê-lo. Para que o povo não perceba
sua ambição, só lhe falam de sua grandeza; para que não perceba sua avareza, elogiam sempre
a do povo. Montesquieu reitera essa proposição:
A corrupção aumentará entre os corruptores e entre aqueles que já estão
corrompidos. O povo distribuirá entre si todos os dinheiros públicos e, como terá
junto à sua preguiça a gestão de negócios, irá igualmente desejar juntar à sua
pobreza os divertimentos do luxo. Com sua preguiça e seu luxo, somente o dinheiro
público poderá ser para ele um objetivo.182
Montesquieu segue em seus apontamentos: “Assim, a democracia deve evitar dois
excessos: o espírito de desigualdade, que a leva à aristocracia, ou ao governo de um só; o
espírito de igualdade extrema, que a leva ao despotismo de um só, assim como o despotismo
de um só termina com a conquista”.183
Dobel184 lembra ainda que, num Estado desigual e corrupto, a maioria não tem por que
defender algo que lhe dá tão pouco. As elites preocupam-se muito consigo mesmas e possuem
meios próprios de proteção.
O estado de exceção estabelecido por conta da corrupção, volto a insistir que não se
resume unicamente em transações financeiras de pessoas interessadas em troca de favores e
serviços, quando deveriam respeitar a lei, dirigida a todos, pois esta é que torna os homens
iguais; mas a corrupção permeia todos os ambientes da vida social. Uma espécie de poder,
que se utiliza de mecanismos contrários à ordem estabelecida pela Constituição.
A intenção é demonstrar que a corrupção inviabiliza uma legislação, colocando-a em
segundo plano, por conta de outras regras que são estabelecidas pelos interessados para
promover seus próprios interesses e “direitos”. Criou-se um estado de exceção perigoso, pois
contraria o ordenamento jurídico de um Estado. O modelo adotado por algumas pessoas, ou
181 MONTESQUIEU, 2005, p. 120. 182 MONTESQUIEU, 2005. p. 122. 183 Ibid., p. 123. 184 DOBEL, 1980.
67
sociedade ou agentes públicos, engessa qualquer via de acesso a igualdade de direitos. Como
nota Willis Santiago Guerra Filho num artigo intitulado “(Anti-)Direito e força de lei/lei”
publicado na Revista Panóptica: “o estado de exceção, concluíra Agamben, com apoio em
Carl Schmitt, é um espaço anômico, onde o que está em jogo é uma força de lei sem lei”. 185
Guerra Filho esclarece ainda que “Jacques Derrida, em sua obra Força de Lei, passa a
escrever a partir de dado momento de sua exposição força de lei, riscando a palavra ‘lei’, para
assim demonstrar, graficamente, como a forças sem a lei é mera força, violência disfarçada de
lei”.186
A corrupção se transformou numa força violenta, não apenas por burlar o ordenamento
jurídico, criando um “anti-direito’ (palavra de Willis Santiago Guerra), mas por desenvolver
no setor público e privado posturas contrárias aos critérios de justiça. De fato, adverte
Montesquieu: “Mas quando num governo popular as leis tiverem cessado de ser executadas,
como isto só pode vir da corrupção da república, o Estado já estaria perdido”.187
“O Estado de exceção, certamente não por acaso, tende cada vez mais a se apresentar
em todo o lado, com intensidade variada, como o paradigma de governo dominante na política
contemporânea”.188 Poderia ajustar esta colocação de Willis Guerra, dentro do assunto que
tratamos neste item, ou seja, que instaurou-se um estado de exceção dentro do Estado
Democrático. Este estado de exceção é a teoria da corrupção vigorando como “lei”. Tudo isso
devido ao envolvimento que instituições públicas e privadas podem buscar em favor próprio.
Na acepção de Jacques Derrida, poder-se-ia entender, “ela interrompe o direito estabelecido
para fundar outro”.189
“No estado de exceção, considerando que a ordem normativa continue formalmente
válida, é-lhe subtraída a eficácia, aplicando-se as medidas excepcionais”.190 Há uma exceção
do poder público que deveria estar seguindo a lei, com mínimo de validade para lei formal,
com o máximo de eficácia para uma dada decisão que adquire força de lei.
Thomas Hobbes, em seu Leviatã, alerta sobre as coisas que enfraquecem o estado e
causam a sua dissolução. Atitudes contrárias à essência do Estado acontecem quando o poder
do estado é dividido. Thomas Hobbes formula uma questão: “Em que consiste dividir o poder
185 GUERRA FILHO, Willis Santiago. (Anti-)Direito e força de lei/lei. Panóptica, São Paulo, ano 1, n. 4, p. 65-81,
2010. p. 77. Giorgio Agamben define em sua obra Estado de Exceção: “O estado de exceção é um espaço
anômico onde o que está em jogo é uma força-de-lei sem lei (que deveria, portanto, ser escrita: força-de-lei). Tal
força-de-lei, em que potência e ato estão separados de modo radical. Cf. AGAMBEN, 2004, p. 61. 186 Ibid, p. 71. 187 MONTESQUIEU, 2005, p. 32. 188 GUERRA FILHO, 2010, p. 79. 189 DERRIDA, 2010. p. 84. 190 AGAMBEN, 2004, p. 73.
68
de um Estado, senão em dissolvê-lo, uma vez que os poderes divididos destroem-se uns aos
outros?”.191 E responde: “Por essas doutrinas, os homens apoiam-se, principalmente, naqueles
que, fazendo das leis sua profissão, tentam torná-las dependentes de seu próprio saber e não
do poder legislativo”.192
Outra situação é o uso exagerado de Medidas Provisórias pelo Poder Executivo:
Essa confusão entre os atos do Poder Executivo e os do Legislativo é uma das
características essenciais do estado de exceção (o caso-limite é o regime nazista, no
qual, como Eichmann não cessava de repetir, “as palavras do Führer têm força de
lei”). O estado de exceção define um regime de lei no qual a norma vale, mas não se
aplica (porque não tem força), e atos que não possuem o valor de lei adquirem sua
força.193
Guerra Filho ressalta ainda que no caso-limite, a força de lei flutua como um elemento
indeterminado que pode ser reivindicado ora pela autoridade do Estado, ora pela autoridade
de uma organização revolucionária.
O poder político possui dispositivos de poder para cumprir as tarefas da biopolítica,
assim buscar campo para favorecer uma política mais humanizada e menos envolvida com
políticas destinadas a processos econômicos sem compromissos com a humanidade. “Assim,
o poder biopolítico não se apresentará como uma decisão da indignidade, mas da
humanidade”.194
2.3 Biopolítica e Estado
Com os fatos descritos anteriormente, relativos à imigração e à corrupção, apurados
em matérias jornalísticas e de conhecimento de todos, quisemos contribuir para ampliar o
entendimento da extensão e importância da biopolítica como uma nova forma de lidar com a
política do mundo.
Todos, sem exceção, devemos nos debruçar sobre estes assuntos e estudos, pois é a
permanência num mundo mais organizado política e juridicamente, que possibilitará cada vez
menos casos de imigração, que é o resultado do descuido de políticas públicas voltadas ao
bem-estar social e nacional por parte dos governantes.
191 HOBBES, 2012, p. 259. 192 Ibid., p. 259. 193 GUERRA FILHO, op.cit., p. 76. 194 CAVA; MENDES, 2008, p. 63.
69
A proposta tem uma discussão no centro da biopolítica, envolvendo biopoder e
biodireito, pois impossível descentralizar ambos da política moderna. Há um conflito entre
política e direito na administração da biopolítica. “Nesse sentido, Giorgio Agamben diz ser
necessário reconstruir a filosofia política, não mais nas figuras tradicionais, como cidadão,
povo soberano, ou trabalhadores, mas na figura do refugiado, aquele que é vítima da violência
e tem sua vida reduzida à vida nua”.195
A questão imigratória, não se isola dentro de acontecimentos que representam o
enfraquecimento ou esquecimento da biopolítica na política dos países; também atos de
guerra exercidos na atualidade por países potencialmente desenvolvidos, ou a simples
execução de testes atômicos no planeta, demonstram que “há a dominação de uma soberania
popular cada vez mais vazia de sentido pelo governo e pela economia”.196
Desta forma, a exposição do indivíduo aos conflitos da modernidade provocados por
articulações fora do propósito da bíos – e voltadas à violência, torna a vida do sujeito político
inviável, de modo que o termo “matar, aqui, não se refere ao ato em si de tirar a vida, mas
defende a existência de formas indiretas de matar, tais como expor pessoas à morte, aumentar
o risco de morte ou providenciar a morte política, por meio da expulsão ou rejeição”.197
Hannah Arendt traz em seu texto a questão sobre ideologia e terror como uma nova
forma de governar. Sobre essa questão observou muitas vezes que o terror reina sobre homens
que se isolam ou afastam-se do propósito da esfera pública. Há a necessidade de restauração
do espaço político como garantia de liberdade. A liberdade tratada por Arendt refere-se ao
sentido político”.198
[...] o isolamento e a impotência, isto é, a incapacidade básica de agir, sempre foram
típicos das tiranias. Os contatos políticos entre os homens são cortados no governo
tirânico, e as capacidades humanas de ação e poder são frustradas. Mas nem todos os
contatos entre os homens são interrompidos, e nem todas as capacidades humanas
destruídas.199
A intimidade da biopolítica com a lei traz a reflexão sobre a atuação efetiva dos
direitos humanos em relação a casos como esses, ou seja, países que abandonam, por qualquer
motivo, seus cidadãos às situações de maus tratos, sujeição à morte, e situações que fere a
cidadania.
195 TESHAINER, 2013, p. 50. 196 Ibid., p. 51. 197 TESHAINER, 2013, p. 55. 198 ARENDT, 1989, p. 526. 199 Ibid., p. 526.
70
Num mundo único a cidadania, como base para o direito a ter direitos e como
condição para um indivíduo beneficiar-se do princípio da legalidade, evitando-se
dessa maneira o surgimento de um novo “estado totalitário de natureza”, não pode
ser examinada apenas no âmbito interno de uma comunidade política.200
A estabilidade das leis e seu alcance aos casos da esfera pública garantirão liberdade e
segurança, como ressalta Celso Lafer, utilizando-se da leitura de Hannah Arendt:
Política e Direito são, portanto, para Hannah Arendt, complementares: a primeira
favorece a diversificação da ação e o segundo protege e preserva a sua especificidade.
A legalidade impõe uma duração às vicissitudes da ação e a constituição cumpre o
papel de delimitar o espaço público igualitário que torna possível a criatividade da
ação, pois sem a proteção estabilizadora da lei o espaço público não sobreviveria ao
próprio instante da ação.201
2.3.1 Poder e Direito: Violência e política e a biopolítica
Sobre o poder e Direito, violência e biopolítica, faço algumas considerações para
refletir como o Direito pode atuar para amparar o espaço púbico em seus anseios por uma
política mais voltada à efetividade dos direitos fundamentais, sendo instrumento de justiça e
não somente de violência e poder. Sua atuação é parte essencial muitas vezes para que
reconheçamos que a Constituição Federal autônoma tem força normativa para a concretização
desses direitos.
Existem desafios atuais importantes e urgentes a serem enfrentados, como aqueles já
declinados anteriormente em relação aos apátridas em situação de buscar amparo dos direitos
humanos, bem como situações internas de países em relação aos direitos fundamentais,
considerando os vários casos das crises políticas, sociais e econômicas por conta dos colapsos
administrativos governamentais e sociais, que fazem com que a finalidade estatal e o bem
social não se efetivem.
Há um ideal de justiça que nos parece que não se realiza e ao mesmo tempo um ato de
violência, não somente no sentido de agressão ou ataque a outras pessoas e instituições, mas
da violência contra a biopolítica. Uma violência amparada pelo poder que cria uma tensão
social e individual. Vale lembrar que a liberdade é fator que possibilita escolhas sociais.
O direito se apresenta como um estado de tensão permanente entre o ideal de justiça,
jamais realizado ao menos abstratamente, com a verdade, que é uma forma da justiça, sendo
assim também ela um ideal de regulação, para aqueles que a buscam, seja pela ciência, seja
200 LAFER, 1988, p. 154. 201 Ibid., p. 217.
71
pela filosofia; e a realidade da violência traduz a forma cujo conteúdo é o sofrimento causado
a um sujeito, passivo, por um outro sujeito, ativo, para assujeitá-lo à simples violência de uma
vontade de poder.202
O direito poder ser extraído e traído pela força, negativa, malévola, desse meio e
instrumento por excelência do poder que é a violência, materializada em corpos legislativos e
de funcionários a serviço de uma legislação; desde os mais altos, agindo ou omitindo-se de
maneira que autorize a violência, até aqueles que praticam concretamente os atos de violência,
como as corporações policiais.203
É desta negatividade do direito que o biopoder e a biopolítica desejam afastar-se e
buscar o direito como instrumento de justiça e concretização do bem social e individual.
Segundo Walter Benjamin, no ensaio Para uma crítica da violência,204 a tarefa de uma crítica
da violência pode se circunscrever à apresentação de suas relações com o direito e com a
justiça. Assim, qualquer que seja, segundo Walter Benjamin, o modo como atua uma causa,
ela só se transforma em violência, no sentido ruim da palavra, quando interfere em relações
éticas.
No texto205 Walter Benjamin enuncia que a possibilidade de um direito de guerra
repousa nas mesmas contradições objetivas na situação de direito que a possibilidade do
direito de greve, ou seja, na medida em que os sujeitos de direito sancionam violências cujos
fins permanecem, para aqueles que sancionam, fins naturais, e por isso podem, em casos
graves, entrar em conflito com seus próprios fins de direito ou naturais.
O militarismo por exemplo é a imposição do emprego universal da violência como
meio para fins do Estado. Esta imposição do emprego da violência aparece realmente como
ameaçadora, e ainda suscita a antipatia da multidão perante o direito.206
A violência da guerra procura, antes de tudo, chegar a seus fins de maneira totalmente
imediata, e enquanto violência predatória, no entanto, chama a atenção o fato de que mesmo
em condições primitivas que mal conhecem primórdios de relações de direito de Estado, e
mesmo nos casos em que o vencedor entrou na posse de algo, exige celebrar uma cerimônia
de paz, independente das relações com o direito. Essa sanção consiste em reconhecer as novas
202 GUERRA FILHO, Willis Santiago; CARNIO, Henrique Garbellini. Teoria Política do Direito: A expansão
política do direito. 2. ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2013. p. 115. 203 Ibid., p. 115. 204 BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. Tradução de Susana Kampff Lages e Ernani
Chaves. São Paulo: 34, 1995. p. 121. 205 Ibid., p. 130. 206 Ibid., p. 130.
72
relações como um novo “direito”, isso de maneira independente saber se essas novas relações
darão certo. 207
Neste sentido ainda, o Estado, entretanto, teme essa violência, pela instauração do
direito e, ao mesmo tempo, é obrigado a reconhecê-la como instauradora do direito quando
potências estrangeiras o forçam a conceder o direito de guerra.
Jacques Derrida, em Força de Lei,208 sugere que tal situação é, de fato, a única que nos
permite pensar a homogeneidade do direito e da violência, a violência como exercício do
direito e o direito como exercício da violência. A violência não é exterior à ordem do direito.
Ela ameaça o direito no interior do direito, e não consiste, essencialmente, em exercer sua
potência ou uma força brutal para obter resultados, mas ameaçar ou destruir determinada
ordem de direito estatal que teve de conceder o direito à violência, por exemplo, o direito de
greve.
Sobre o direito de greve209, exemplo dado em Força de Lei, amparado no texto de
Walter Benjamin, e muito bem esclarecido em Derrida, temos que os grevistas impõem
condições para a retomada do trabalho e só encerram a greve se algumas das condições forem
aceitas. O trabalhador nesse caso está dentro de seu direito em relação ao direito de greve,
exercendo-o. No entanto, o Estado suporta mal essa passagem e julga abusiva a greve,
ocorrendo um mal-entendido entre ter e não ter direito à greve. O Estado pode fazer que a
greve seja considerada ilegal e, se ela persistir, teremos uma situação revolucionária. Tal
situação, que pode ocorrer, caracteriza uma violência como exercício do direito e o direito
como exercício da violência.
Este mal-estar entre violência e direito se entrelaça, pois, há o direito de greve por
parte dos trabalhadores e o direito de suspender a greve dependendo das considerações do
Estado em relação aos trabalhadores. A luz da questão será tentar evitar que a violência
interfira no sentimento de justiça.
Aquilo que ameaça o direito pertence já ao direito, ao direito ao direito, à origem do
direito. A greve geral fornece, assim, um fio condutor precioso, já que ela exerce o
direito concedido para contestar a ordem do direito existente e criar uma situação
revolucionária na qual se tratará de fundar um novo direito[...]210
207 Ibid., p. 130. 208 DERRIDA, 2010, p. 84. 209 DERRIDA, 2010, p.80-81. 210 Ibid., p. 82-83.
73
Walter Benjamin considera que talvez se devesse levar em conta a possibilidade
surpreendente de que o interesse do direito em monopolizar a violência com relação aos
indivíduos não se explicaria pela intenção de garantir os fins de direito -- o caso de guerra e
da greve acima --, mas, garantir o próprio direito; que a violência, quando não se encontra nas
mãos do direito estabelecido, qualquer que seja, o ameaça perigosamente, não em razão dos
fins que a violência deseja alcançar, mas por sua existência fora do direito.211
Uma outra situação pode ser sugerida e de forma mais drástica, na argumentação de
Walter Benjamin. É quando a figura de um “grande” criminoso tantas vezes suscita a secreta
admiração do povo, por mais repugnantes que tenham sido seus fins. Isto se deve não a seu
ato criminoso, mas sim à violência que o direito atual procura retirar das mãos dos indivíduos
em todos os domínios de ação, em que aparece como realmente ameaçadora; e mesmo
vencida, também neste caso suscita a simpatia da multidão contra a ordem do direito.
Jacques Derrida, em Força de Lei, comenta este exemplo acima, dado por Walter
Benjamin. Pode-se explicar da mesma maneira o fascínio que exerce, na França, um
advogado que defende as causas mais insustentáveis, praticando o que ele chama de
“estratégia de ruptura”, ou seja, contestação radical da ordem dada pela lei, da autoridade
judicial, e da legitimidade da autoridade do Estado, que faz seus clientes comparecerem diante
da lei. Oposição à lei que o faz comparecer e contestar a ordem do direito, e por vezes as
vítimas.212
Ainda sobre a questão do “estado de exceção” tratado por Giorgio Agamben, o espaço
político da soberania, representa para a política pública que se preocupa com a forma da lei,
quando legisla, assim como os poderes constituídos, encarregados de dirigir uma comunidade
politicamente organizada, não seriam eficazes se contassem somente com a força para se fazer
obedecer. É essencial, para o exercício do poder, que sua legitimidade seja reconhecida, e que
ele possa usufruir de uma autoridade que busque o consentimento geral dos que estão sujeitos
a esse poder legítimo.
Referimo-nos aqui à violência como uma força utilizada no esforço de impor uma
vontade, sendo que a violência utilizada no “estado de exceção” não conserva tampouco
exerce o direito, mas suspende e o põe excetuando-se. 213
A violência na instauração do direito tem uma função dupla, no sentido de que a
instauração do direito almeja como seu fim, usando a violência como meio, aquilo que é
211 BENJAMIN, 1995, p. 127. 212 DERRIDA, 2010, p. 78-79. 213 AGAMBEN, 2004, p. 72.
74
instaurado como direito, sendo que no momento da instauração não abdica da violência; mais
do que isso, a instauração constitui a violência em violência instauradora do direito, num
sentido rigoroso, isto é, de maneira imediata, porque estabelece não um fim livre e
independente da violência, mas um fim necessário e intimamente vinculado a ela, e o instaura
enquanto direito sob o nome de poder. Assim, a instauração de poder é, enquanto tal, um ato
de manifestação imediata da violência.214
Nesse sentido Michel Foucault discorre sobre a atuação do direito e poder em todos os
campos. Segundo ele, convém não tentarmos questionar quem tem o poder, e o que pretende,
ou o que procura. Pois o poder está investido em práticas reais e efetivas, não é um fenômeno
de dominação maciço e homogêneo de um indivíduo sobre os outros, ou de grupos sobre
outros grupos. Deve ser analisado como algo que circula, e funciona em cadeia. O indivíduo é
um dos efeitos do poder.215
O sistema do direito, o campo judiciário são canais permanentes de relações de
dominação e técnicas de sujeição. O direito deve ser visto como um procedimento de
sujeição, que ele desencadeia, e não com uma legitimidade a ser estabelecida. Michel
Foucault apresenta algumas linhas de análises, e algumas precauções metodológicas para
desenvolvê-las. 216
Tratar-se-ia de captar o poder em suas extremidades, em suas últimas ramificações,
em suas formas e instituições mais regionais e locais, principalmente no ponto em que,
ultrapassando as regras de direito que o organizam e delimitam, ele se prolonga, penetra em
instituições, corporifica-se em técnicas e se mune de instrumentos, de intervenção material,
eventualmente violentos. 217
Michel Foucault exemplifica com a atuação do poder e do direito, dizendo que, em
vez de tentar saber onde e como o direito de punir se fundamenta na soberania tal como
apresentada pela teoria do direito monárquico ou do direito democrático, o pensador relata
que procurou examinar como a punição e o poder de punir materializavam-se em instituições
locais, regionais e materiais, quer ser trate do suplício ou do encarceramento, no âmbito ao
mesmo tempo institucional, físico, regulamentar e violento dos aparelhos de punição. Em
outras palavras, seria captar o poder na extremidade cada vez menos jurídica de seu exercício.
214 BENJAMIN, 1995, p. 148. 215 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2007.
p. 182-183. 216 FOUCAULT, 2007, p. 182. 217 Ibid., p. 182.
75
Foucault ainda nos apresenta mais efeitos do poder por meio de técnicas
disciplinadoras e de normalização. Técnicas de vigilância e observação, em locais sociais, têm
como objetivo mecanismos de controle, que ficam reféns deste mecanismo do poder e do
saber. Podemos observar hoje como o mundo virtual detém controle e conhecimento dos
assuntos pertinentes ao mais íntimo do homem. Não há o que não se conhece, pois tudo está
controlado pelos mecanismos do poder.
No mundo virtual todo relacionamento perde a sua privacidade, a violência em forma
de invasão dos assuntos particulares ocorre quando o controle dos corpos, expressão utilizada
por Michel Foucault que visa corrigir e vigiar os corpos, ocorre sem prévia autorização
daqueles que participam das relações sociais virtuais. A gestão da vida passa a ser sugerida
por esses mecanismos de vigilância dos corpos.
O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e
o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também uma mecânica do poder, está
nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não
simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer,
com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina
fabrica assim os corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina
aumenta as formas do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas
mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o
poder do corpo; faz dele por um lado uma aptidão, uma capacidade que ela procura
aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e
faz dela uma relação de sujeição estrita.218
A formação da sociedade disciplinar pode ser caracterizada no final do século XVIII e
início do século XIX, conforme apurado nas obras de Michel Foucault. Mas procurar os
efeitos do poder em seus escritos não se resume em um trabalho de única obra. Qual a
intenção do governo em relação a população? questiona Michel Foucault. Não certamente
governar, mas melhorar a sorte da população, aumentar sua riqueza, sua duração de vida, sua
saúde, bem como outras coisas. E quais são os instrumentos que o governo utilizará para
alcançar esses fins que são imanentes à população? questiona novamente o filosofo francês.
Parece que temos aqui uma preocupação com a biopolítica, uma gestão política da vida e ao
mesmo tempo, um interesse por parte do Estado em controlar sua população.218
Esse controle se faz por campanhas, através das quais se age diretamente sobre a
população, e técnicas que agem indiretamente sobre ela, permitindo elevar, sem que as
pessoas se deem conta, a taxa de natalidade, ou dirigir para uma determinada região ou para
218 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 36. ed.
Petrópolis: Vozes, 2009. p. 133-134. 218 Id., 2007, p. 289.
76
uma determinada atividade os fluxos de população. Assim, a população aparece mais como
fim e instrumento do governo que como força do soberano; ela aparece como sujeito de
necessidades e aspirações, e ao mesmo tempo, aparece como objeto nas mãos do governo;
como consciente, frente ao governo, daquilo que ela quer, e inconsciente em relação àquilo
que se quer que ela faça.219
Temos ainda outra questão de dominação relacionada ao funcionamento do discurso,
seja político, médico científico, religioso, ou do jurista. A prática discursiva é constituída pela
prática de poder. Os mecanismos de poder aproximam-se dessas práticas e ocorre uma
apropriação social dos discursos.
Em A Ordem do Discurso, Michel Foucault deslinda as práticas discursivas. Nessa
obra acabamos por analisar como as ciências não são independentes das práticas do poder e
seus efeitos, e como a ciência apropria-se de discursos, como procedimentos de controle que
colocam em jogo o poder e o desejo, conforme a obra vai demonstrando. O autor ainda
ressalva que o papel da disciplina nestas ciências muitas vezes “não é a soma de tudo que
pode ser dito de verdadeiro sobre alguma coisa”.220
Sobre a importância do discurso e atos da fala, em A linguagem e a morte,221 Giorgio
Agamben elucida que a voz não quer nenhuma proposição e nenhum evento; ela quer que a
linguagem seja, quer o evento originário, que contém a possibilidade de todo e qualquer
evento. A Voz é a dimensão ética originária, na qual o homem pronuncia o seu sim à
linguagem e consente que ela tenha lugar. Na Política de Aristóteles há o problema ético-
político da linguagem na seguinte passagem:
Claramente se compreende a razão de ser o homem um animal sociável em grau
mais elevado que as abelhas e todos os outros animais que vivem reunidos. A
natureza, dizemos, nada faz em vão. O homem só, entre todos os animais, tem o
dom da palavra; a voz é o sinal da dor e do prazer, e é por isso que ela foi concedida
aos outros animais. Estes chegam a experimentar sensações de dor e de prazer, e a se
fazer compreender uns aos outros. A palavra, porém, tem por fim fazer compreender
o que é útil ou prejudicial, e, em consequência, o que é justo ou injusto. O que
distingue o homem de um modo especifico é que ele sabe discernir o bem do mal, o
justo do injusto, e assim todos os sentimentos da mesma ordem cuja comunicação
constitui precisamente a família do Estado.221
219 Ibid., p. 289. 220 FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de
fevereiro de 1979. 20. ed. São Paulo: Loyola, 1996. p. 31. 221 AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte. Tradução de Rodrigo Burigo. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2006. p. 119. 221 ARISTÓTELES, 2009, p. 16.
77
Em relação ainda a vigilância e violência em Michel Foucault, podemos encontrar em
A verdade e as Formas Jurídicas mais considerações.222 Foucault observa que o panoptismo é
um dos traços característicos da nossa sociedade. É uma forma de poder que se exerce sobre
os indivíduos por meio de constante e contínua vigilância, como instrumento de controle, de
punição, recompensa e correção, isto é, de formação e transformação dos indivíduos em
função de certas normas. Vigilância, controle e correção – parecem características de relações
de poder que existem em nossa sociedade.
Constatamos que temos hoje constantes controles efetuados por câmeras de segurança,
monitorando o fluxo e inclusive a privacidade dos indivíduos, sempre com a justificava de
garantir a segurança ou outro argumento similar. Os corpos encontram-se seguros pelos
olhares atentos do olhar oculto das câmeras de controle.
Foucault explicita que na atual época todas as instituições, sejam elas fábricas, escolas,
hospitais psiquiátricos, hospitais em geral ou prisões, têm por finalidade não excluir, mas, ao
contrário, fixar os indivíduos. Desse modo, as fábricas não excluem os indivíduos e sim
ligam-nos aos aparelhos de produção ininterrupta para abastecer o mercado de vendas num
ciclo constante de produção e consumo. O mesmo acontece com os hospitais psiquiátricos:
uma rede liga-os a um aparelho de correção e medicamentos, controlando-os dentro de uma
normatização da medicina. Todos encontram-se dentro de um processo de regras e normas.223
Podemos fazer um paralelo quanto ao sintagma estabelecido por Michel Foucault em
relação às relações de poder: Vigilância, controle e correção, com o texto de Jacques Derrida
em Força de Lei, quanto este enuncia:
Mesmo reconhecendo que o corpo fantasmal da polícia, por mais invasor que seja,
permanece sempre igual a ele mesmo, Benjamin admite que seu espírito (Geist), o
espírito da polícia, faz menos estragos na monarquia absoluta do que nas
democracias modernas, nas quais sua violência degenera. Seria apenas, como
estaríamos hoje inclinados a pensar, porque as tecnologias modernas da
comunicação, da vigilância e da interceptação garantem à polícia uma ubiquidade
absoluta, saturando o espaço público e privado? Seria porque as democracias não
podem proteger o cidadão contra a violência policial, a não ser entrando nesta lógica
da coextensividade político-policial? Isto é, confirmando a essência policial da coisa
pública (polícia das polícias, instituições do tipo “informativa e liberdade”,
monopolização pelo Estado das técnicas de proteção do segredo da vida privada,
como é atualmente proposto aos cidadãos americanos pelo governo federal e por
suas polícias, que, em troca, produziriam os meios técnicos necessários e decidiram
o momento em que a segurança do Estado exige a interceptação da conversa
privada, por exemplo a instalação de microfones invisíveis, a utilização de
222 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e
Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau, 1999. p. 103. 223 FOUCAULT, 1999, p. 114.
78
microfones direcionados, a intrusão nas redes informatizadas ou, simplesmente, a
prática tão comum entre nós da velha e boa “escuta telefônica”)?[...]224
Teríamos então uma operação de controle e vigilância por parte do Estado, como no
caso norte-americano, que, amparada por lei de segurança nacional, invadiu a privacidade de
cidadãos e países; e em outro momento temos a lei que protege a privacidade. Jacques
Derrida observa que o direito é inseparável da violência, imediata e mediata, presente ou
representada.
Na obra A reconstrução dos direitos humanos,225 Celso Lafer, no texto intitulado O
direito à intimidade e do direito à informação – conflito e complementaridade, deixa claro
que o direito à intimidade é parte integrante do direito à personalidade. Tutela o direito do
indivíduo de estar só e a possibilidade que deve ter toda pessoa de excluir do conhecimento de
terceiros aquilo que só a ela se refere, e que diz respeito ao seu modo de ser no âmbito da vida
privada.
Celso Lafer pontua que há uma interferência crescente na esfera da vida privada por
parte do poder público, tanto no exercício quotidiano do poder de polícia quanto no campo da
atividade judiciária; além disso há maior possibilidade de terceiros intrometerem-se na
intimidade das pessoas, por meio do uso de tecnologias com todas as inovações existentes,
para uma maior aproximação e invasão da intimidade.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 é uma resposta à ruptura
totalitária, pois contempla o direito à intimidade: “Artigo 12 – Ninguém sofrerá intromissões
arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência,
nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda pessoa tem
direito à proteção da lei”.
Quanto ao direito à informação, Celso Lafer acrescenta ainda que uma das
características do totalitarismo é a ausência de transparência na esfera pública, seja através da
estrutura burocrática, seja pela manipulação por meio do emprego da mentira, que impede a
circulação de informações honestas e exatas.226
Hannah Arendt, em A Condição Humana, também nos traz o sentido do termo
público, que acredito ser importante declinar neste texto, pois ainda estamos em busca da
biopolítica e do biopoder como forma de gerir a política em vários níveis em favor da vida e
da vida junto à esfera pública.
224 DERRIDA, 2010, p. 112. 225 LAFER, 1988, p. 239. 226 LAFER, 1988, p. 242.
79
O processo de alienação do indivíduo ocorre quando ele se desloca do espaço da
esfera pública e passa a viver em função de seu próprio interesse, fixando-se excessivamente
no mundo privado. É a condição em que o indivíduo se colocou, substituindo o sentido da
ação pela fabricação e consumo, denominado por Hannah Arendt de homo faber. A tentativa
de substituir a ação pela fabricação é visível em todos os argumentos contra a democracia,
impossibilitando o homem de aproximar-se do espaço público e realizar ações.
Tudo o que acontece na esfera pública é resultado das ações do indivíduo, e a tentativa
de eliminar essa pluralidade das ações equivale à supressão da própria esfera pública. O
banimento do cidadão da esfera política é para neutralizá-lo em suas relações com os assuntos
da realidade social política. Promover uma política que visa inviabilizar a ação do homem faz
parte de uma tentativa de privar o cidadão de participar nas questões comuns a todos.227
Assim, ao discutir a esfera pública,228 Hannah Arendt defende que o público é tudo o
que vem a público e pode ser visto e ouvido por todos, tendo a maior divulgação possível. Em
segundo lugar, o termo público significa o próprio mundo, na medida em que é comum a
todos. Esse espaço tem a ver com as coisas humanas, produzidas pelos homens e que junto
com eles habitam o mesmo mundo.
Sob o título A Promoção Social, inserido na obra A Condição Humana, Hannah
Arendt sublinha como a esfera social transformou as sociedades modernas em sociedades de
operários:
A mais clara indicação de que a sociedade constitui a organização pública do próprio
processo vital talvez seja encontrada no fato de que, em tempo relativamente curto, a
nova esfera social transformou todas as comunidades modernas em sociedades de
operários e de assalariados; em outras palavras, essas comunidades concentram-se
imediatamente em torno da única atividade necessária para manter a vida, o labor.
(Naturalmente, para que se tenha uma sociedade de operários não é necessário que
cada um dos seus membros seja realmente um operário ou trabalhador, e nem
mesmo a emancipação da classe operária e a enorme força potencial que o governo
da maioria lhe atribui são decisivas neste particular; basta que todos os seus
membros considerem o que fazem primordialmente como modo de garantir a
própria subsistência e a vida de suas famílias.) A sociedade é a forma na qual o fato
da dependência mútua em prol da subsistência, e de nada mais, adquire importância
pública, e na qual as atividades que dizem respeito à mera sobrevivência são
admitidas em praça pública.229
227 ARENDT, 2009, p. 233-235. 228 Ibid., p. 59. 229 ARENDT, 2009, p. 56.
80
Márcio Pugliesi, em Teoria do Direito,230 lembra que o mundo, lugar da práxis,
engloba o tempo e é um construto compartilhado, conforme a capacidade e o interesse de cada
ator, pela sociedade que se atém, pois a construção da realidade social surge cotidianamente
nas comunicações interpessoais e na busca de controle do ambiente sociofísico (situação
presente); ou, quando possível, na busca de configurações que satisfaçam aspirações presentes
no campo da cultura, algo como o buscar sentido para a existência e tornar-se autor de seus
próprios atos.
Em Sociedade de Risco,231 Ulrich Beck, no ensaio intitulado A perda de função do
sistema político, destaca que a discussão política na esfera pública ao longo das últimas duas
ou três décadas pode ser na verdade representada como uma intensificação dessa oposição. A
descoberta de condições restritivas da ação política, que foi empregada precocemente e
ganhou novo impulso nos últimos anos com o discurso da ingovernabilidade e da democracia
volúvel, jamais é confrontada com a pergunta sobre se a outra sociedade surgirá talvez sem
planejamento, escrutínio, ou se viria com oficinas de avanço técnico-econômico.
Assim, as regras da democracia restringem-se à escolha dos representantes políticos e
à participação na elaboração de programas políticos.
Uma vez assumidos o posto e as honras, o representante com prazo fixo não apenas
desenvolve qualidades ditatoriais de comando, impondo suas decisões
autoritariamente de cima para baixo, como também as instâncias, grupos de
interesses e de cidadãos afetados pelas decisões esquecem seus direitos e convertem-
se em “súditos democráticos”, que aceitam sem questionamento a pretensão de
dominação do Estado.232
De outro lado, Ulrich Beck afirma que essa concepção autoritária de altos escalões
políticos e liderança política torna-se sistematicamente esvaziada e irreal justamente com a
implementação e o gozo de direitos democráticos. Assim,
[...] sempre que direitos são garantidos, que ônus sociais são redistribuídos, que a
participação é viabilizada, que cidadãos se tornam ativos, a política avança um
pouco, mas na dissolução de suas fronteiras e em sua generalização; paralelamente,
a ideia de um centramento do poder decisório hierárquico na cúpula do sistema
político converte-se na lembrança de um passado pré-semi-ou formalmente
democrático.233
230 PUGLIESI, Márcio. Teoria do Direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 75-75. 231 BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento.
São Paulo: 34, 2001. p. 281. 232 Ibid., p. 286. 233 BECK, 2001, p. 288.
81
Ulrich Beck234 conclui que o algo mais na democracia usufruída gera escalas e
demandas sempre novas, nas quais os cidadãos são conscientes de seus direitos e lhes dão
vida, o que exige uma compreensão da política e instituições políticas diferente daquelas da
sociedade que ainda caminha nesta direção.
2.4 Nova cultura política e política diferencial
Ulrich Beck nos mostra que para vislumbrar uma nova política e uma política
diferencial teríamos como ponto de partida a dissolução das fronteiras da política. Existe uma
política executiva no centro da política, que necessita buscar mudanças, para não criar
distâncias e modificar o aqui e agora nas relações de conveniência sem ter que recorrer a
projetos de lei. O autor remete a uma ampla ativação política dos cidadãos,235 podendo ser
usada com efetividade, e a exemplos dados (proteção do meio ambiente, movimento contra a
energia atômica, e na proteção da privacidade).
A necessidade de uma postura inicial é a compreensão da existência de uma
autolimitação em que se encontra. Nas eleições e campanhas eleitorais, não se trata de
escolher um comandante da nação, que iria dispor de rédeas de decisões e controle social, e
responsável por tudo de bom e ruim que aconteça durante seu mandato. Caso fosse,
poderíamos pensar numa ditadura, mas em termos democráticos temos de pensar no grau de
democracia existente na sociedade. 236
Em Sociedade do Espetáculo,237 Guy Debord nos apresenta a mercadoria como
espetáculo, a raiz do espetáculo estando no terreno da economia que se tornou abundante, daí
advindo os frutos que tendem a dominar o mercado, tornando-o o cenário principal; pois a
economia domina a sociedade moderna com suas altas ofertas a serem adquiridas, e suas
tecnologias que controlam as escolhas.
Guy Debord afirma que a questão do desenvolvimento da economia mais avançada
tem como objetivo certas prioridades. Há um movimento de banalização que domina
mundialmente a sociedade moderna, e se apropria também em cada ponto em que o consumo
desenvolvido das mercadorias multiplicou e melhorou a aparência de cada um, e os objetos de
escolha tornaram-se variados, por conta da indústria do consumo.
234 Ibid., p. 289. 235 Ibid., p. 290. 236 Ibid., p. 338-339. 237 DEBORD, Guy. A sociedade do Espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1997. p. 37-47.
82
Oposições arcaicas parecem sempre renascer e a contradição oficial se apresenta como
a luta de poderes que se constituíram para a gestão do mesmo sistema sócio-econômico,238
acentua Guy Debord; e na verdade fazem parte do mesmo processo, tanto mundialmente
como em cada nação.
Assim sendo, o espetacular concentrado pertence essencialmente ao capitalismo
burocrático, de modo que a ditadura da economia burocrática não pode deixar nenhuma
margem significativa de escolha, pois ela teve de escolher tudo, a economia que propõe o que
ela quer e quanto custará.
A sociedade portadora do espetáculo não domina as regiões subdesenvolvidas
apenas pela hegemonia. Domina-as como sociedade do espetáculo. Nos lugares onde
a base material está ausente, em cada continente, a sociedade moderna já invadiu
espetacularmente a superfície social. Ela define o programa de uma classe dirigente
e preside sua formação. Assim como ela apresenta os pseudobens a desejar, também
oferece aos revolucionários locais os falsos modelos de revolução. O espetáculo
específico do poder burocrático, que comanda alguns países industriais, faz parte do
espetáculo total, como sua pseudonegação geral, e seu sustentáculo. Visto em suas
diversas localizações, o espetáculo mostra com clareza especializações totalitárias
do discurso e da administração social, mas estas acabam se fundindo, no nível do
funcionamento global do sistema, em sua divisão mundial das tarefas
espetaculares.239
Em referência a sociedade do espetáculo e economia, com atenção à banalização da
função do homem político, no próximo capítulo, onde tratarei de biopolítica e biopoder,
comentarei sobre capitalismo e humanismo, fazendo uma reflexão em relação ao modelo
imposto pela economia, buscando equilibrar o ciclo de consumo a um processo de
conscientização humana e equilibrada de investimento, empreendedorismo e gastos, levando
em consideração as contribuições de Hannah Arendt, em A Condição Humana, em especial
quando pontua que a nova esfera social transformou todas as comunidades modernas em
sociedades de operários e de assalariados239. Arendt observa igualmente uma defasagem entre
nossas capacidades e nosso humanístico em geral, referindo-se a uma mudança de
comportamento e na psicologia dos seres humanos; revela preocupação com o rumo que a
esfera pública tomou, pontuando que “nenhuma atividade pode tornar-se excelente se o
mundo não proporciona espaço para o seu exercício”.240
Para terminar este segundo capítulo, construído para visualizarmos quais as situações
contribuintes positivamente e negativamente para a biopolítica e o biopoder, e seguir para o
238 Ibid., p. 37. 239 Ibid., p. 38. 239 ARENDT, 2009. p. 56. 240 Ibid., p. 59.
83
terceiro e último item deste trabalho, que trata da vida sob os cuidados da política pública e da
esfera política social, antes vale destacar uma passagem do texto de Sigmund Freud, intitulado
O Mal-estar na Civilização, que vem contribuir para o raciocínio de todos estes pensadores, já
que buscam esclarecer e alertar sobre a importância de retomarmos o cenário político para
melhor vivermos.
No processo civilizatório tratado por Sigmund Freud, no texto O Mal-estar na
Civilização,241 ele deixa claro que existe um esforço pela busca da felicidade, por isto existe
uma ausência de sofrimento e uma fuga do desprazer e a busca de intensos sentimentos de
prazer; assim a palavra felicidade relaciona-se a este sentido, subestimando tudo aquilo que
realmente tem sentido na vida. Colocar o gozo antes da cautela faz parte da satisfação
irrestrita de todas as necessidades. Sigmund Freud nos aponta no texto o desejo pela riqueza,
poder e sucesso. Alerta que nossos relacionamentos com outras pessoas são os mais difíceis
de darmos conta em relação a outros problemas que por ventura tenhamos. Com o sofrimento
que pode vir dos relacionamentos humanos, a defesa imediata é o processo de isolamento
voluntário, ou seja, contra o temível mundo externo, uma das formas de defesa é o
afastamento. Contra isso Sigmund Freud nos dá opções, ou seja, buscarmos na solidariedade e
na caridade a minimização deste mal-estar.
241 FREUD, Sigmund. Cinco lições de psicanálise: A história do movimento psicanalítico; O futuro de uma
ilusão; O mal-estar na civilização; Esboço de psicanálise. Tradução de Durval Marcondes. São Paulo: Abril
Cultural, 1978. (Os pensadores). p. 131-194.
84
3 CAMINHOS DA BIOPOLÍTICA E DO BIOPODER – REFLETINDO A QUESTÃO
NA SOCIEDADE E NO ESTADO
3.1 Tempo da biopolítica e do biopoder
As propostas de investigação da Biopolítica e do Biopoder tiveram início nas
primeiras linhas deste trabalho com a invocação da ideia de bem e justiça apresentadas de
forma que pudéssemos vislumbrar nossa posição na sociedade, por pensadores já anunciados
naquele capítulo. Com mais ênfase no último capítulo, pois para estudar este tema e propósito
precisei percorrer caminhos que envolveram os direitos fundamentais e os direitos humanos,
amparado nos exemplos dos apátridas, bem como outras várias situações que envolvem o
tema e impedem ou dificultam o aparecimento desta forma de gestar a vida em sua plenitude.
O exercício de governar, e do cidadão em saber e buscar posicionar-se diante da
realidade em que se encontra, necessita achar espaço nas respectivas maneiras de atuar, cada
qual em sua posição, para melhor se tornar a condição humana.
A condição humana relaciona-se com todos os aspectos de bem-estar social e
individual. O mais importante nesta etapa é o social, pois deve desenvolver-se com projetos
governamentais, e estes com os projetos sociais. Não se vislumbra somente a ausência em sua
plenitude de saúde adequada, educação, transporte, que são problemas a serem ainda
trabalhados e desenvolvidos no Brasil e em outras partes do mundo, mas refiro-me às
questões políticas governamentais necessárias para conduzir ou reconduzir àquele ideal.
O cenário descrito foi inclusive o mundial, no qual tratamos de imigrantes e questões
de totalitarismo em democracias, ou ainda de movimentos totalitários. Alguns governos
programam-se para etapas de guerra, invasão e políticas econômicas externas, visando
vantagens para si, de modo que o desenvolvimento desse quadro, sendo a atual forma de fazer
política, isola-se cada vez mais de políticas voltadas à vida, aproximando-se de critérios de
governança egoísta, partidária, totalitária e sem função para a biopolítica, que aguarda novos
rumos.
A violência se faz presente em vários atos no quotidiano, como apontamos
anteriormente, pois é a forma que se encontra de conduzir certas situações; e ao mesmo tempo
isso se torna confuso quando a violência atua com o direito, uma vez que sempre o ligamos à
ideia de justiça e à forma que temos de buscar nossos direitos e efetivá-los.
Quando declinamos de repensar a biopolítica e o biopoder, é necessária uma reflexão.
Os interesses daqueles que vivem em sociedade no fundo são os mesmos, pois todos querem
85
adentrar por uma porta menos estreita e na certeza de não sofrer opressão e descaso. O
conjunto social deseja sempre a harmonia, mas não temos como conhecê-la neste momento
sem repensar a esfera social e política.
Hannah Arendt, em A Condição Humana, alerta que somente a existência de uma
esfera pública e a subsequente transformação do mundo em uma comunidade de coisas que
reúne os homens e estabelece uma relação entre eles irá depender de como o compromisso do
indivíduo será junto a esta esfera pública. “Se o mundo deve conter um espaço público, não
pode ser construído apenas para uma geração e planejado somente para os que estão vivos,
mas deve transcender a duração da vida de homens mortais”.242
Sem esta visão de continuidade e vislumbrar o futuro, nenhuma política, ou mundo de
forma geral serão possíveis. Cuidar da ordem e buscar avanços garantindo que o espaço que
pertence ao homem tenha um processo de continuidade representa passos firmes para o que
Hannah Arendt chama de imortalidade. “De fato, nas condições modernas, é tão pouco
improvável que alguém aspire sinceramente à imortalidade terrena que possivelmente temos
razão de ver nela simples vaidade”.243
Nessa obra Hannah Arendt tem uma preocupação com a vida. Certas situações busca
combater, pois são alienantes, quando se diz de possibilitar a presença do indivíduo mais
próxima da esfera pública, pois que necessita ter constante participação nos negócios da
ordem social. As questões da biopolítica e do poder são constantes neste conjunto,
considerando se tratar de situações que todos que vivem em uma cidade precisam, por uma
necessidade básica, no entanto Arendt avança e convoca o homem para refletir sobre sua
condição humana.
Para ampliar o alcance do conceito da palavra Biopolítica, trago uma análise de Judith
Revel:
O termo biopolítica designa a maneira pela qual o poder tende a se transformar,
entre o fim do século XVIII e o começo do século XIX, a fim de governar não
somente os indivíduos por meio de um certo número de procedimentos disciplinares,
mas o conjunto dos viventes constituídos em população: a biopolítica, por meio dos
biopoderes locais, se ocupará, portanto, da gestão da saúde, da higiene, da
alimentação, da sexualidade, da natalidade etc., na medida em que elas se tornaram
preocupações políticas.244
242 ARENDT, 2009, p. 64. 243 Ibid., p. 65. 244 REVEL, 2005, p. 26.
86
Outra questão analisada em Michel Foucault que também se refere à biopolítica e ao
biopoder é a forma como o Estado e instituições governamentais ou não governamentais estão
investidos na mecânica do poder compondo essa relação: em alguns textos do autor aparecem
os termos procedimentos disciplinares, vigilância e controle, marcando os conceitos
foucaultianos de biopolítica e biopoder.
Essas expressões têm o sentido que demonstra a atuação e o controle da sociedade por
parte do Estado. Assim, em relação ao tema, biopolítica e biopoder, o Estado fiscaliza a vida
politicamente, assumindo um controle, que marca nossa atualidade, sobre os corpos e as vidas
dos indivíduos
Em Vigiar e Punir245 Michel Foucault fala em micro-poderes que se exercem em
nosso quotidiano, o poder movimentando-se em vários níveis, deslocando-se; mesmo com
toda a atuação do Estado, este não é o órgão central do poder, embora tenhamos que analisar a
extensão dos efeitos da atuação do Estado.
Em Poder e Saber246 Foucault explica que as relações de poder existem entre mulher e
homem, entre pais e filhos, e na família. Na sociedade há milhares de relações de poder. Se é
verdade que essas pequenas relações de poder são com frequência comandadas e induzidas
pelo Estado e pelas grandes dominações de classe, é preciso esclarecer que, uma dominação
de classe ou uma estrutura do Estado só poderá acontecer se houver essas pequenas relações
de poder.
O poder do Estado, segundo Michel Foucault, é aquele que impõe, por exemplo, o
serviço militar obrigatório, e outras situações. A estrutura do Estado, no que tem de geral, de
abstrato, e mesmo de violento, não chegaria a manter assim, contínua e cautelosamente, todos
os indivíduos, se ela não se enraizasse, não utilizasse, como uma espécie de grande estratégia,
pequenas táticas locais e individuais que encontram-se junto a cada um de nós.247
Quando em visita ao Rio de Janeiro no ano de 1974, para entrevistas e palestras,
Michel Foucault escreve um artigo ao Jornal do Brasil, intitulado “Controle Social - Loucura
uma Questão de Poder”. É interessante no artigo o destaque que o autor confere à disciplina,
vigilância e ao controle com que o Estado e suas estratégias atuam para com todos. Desta
maneira a biopolítica e o biopoder encontram-se nesta linha de discussão, ligados à
245 FOUCAULT, 2009. 246 FOUCAULT, Michel. Estratégia, poder-saber. Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2003. 247 Ibid., p. 232.
87
manutenção da ordem, o controle das pessoas e a disciplina. É a forma com que o biopoder e
a biopolítica manifestam-se, ou seja, com a preocupação de controle:
[...] o que me parece característico da forma de controle atual é o fato de que ele é
exercido sobre cada indivíduo: um controle que nos fabrica, impondo-nos uma
individualidade, uma identidade. Cada um de nós tem uma biografia, um passado
sempre documentado em algum lugar, desde um dossiê escolar a uma carteira de
identidade, um passaporte. Há sempre um organismo administrado capaz de dizer a
qualquer momento quem é cada um de nós, e o Estado pode, quando quiser, trilhar
todo nosso passado. Creio que hoje a individualidade está completamente controlada
pelo poder, e que nós somos individualizados, no fundo, pelo próprio poder.248
Em Microfísica do Poder 249Michel Foucault discorre sobre o privilégio da higiene e o
funcionamento da medicina como instrumento de controle social. A velha noção de regime
que era entendida como regra de vida e como forma de medicina preventiva alarga-se a se
tornar o regime coletivo de uma população. É a busca da prevenção de surtos, epidemias, com
vistas ao aumento de duração média de vida do cidadão. Foucault analisa a higiene como
regime de saúde das populações, implicando em intervenções autoritárias e de medidas de
controle.
Ainda nesse sentido Foucault amplia suas considerações e acrescenta que as
intervenções do Estado como medida de controle e disciplina junto à sociedade assumem um
lugar cada vez mais intenso acerca da saúde, das doenças, da condição de vida, de habitação,
hábitos, e começa a se formar um saber-médico administrativo que servirá de núcleo à
economia social, isso já no século XIX. Essa política-médica sobre a população ocasionará
um saber sobre a existência e comportamento que envolve o vestir, o beber, a sexualidade e a
fecundidade, e a disposição de cada um em seu espaço.249
Em Os Corpos Dóceis,250 um dos ensaios da obra Vigiar e Punir, Michel Foucault
pontua que é dócil o corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, transformado e
aperfeiçoado. Em qualquer sociedade o corpo está preso no interior de poderes, que lhe
impõem limitações, proibições e obrigações. Há um processo de modelar o indivíduo, pois
não se trata de cuidar do corpo em massa, mas trabalhar detalhadamente como se fosse uma
unidade. O poder exerce sobre os corpos uma coerção sem folga, lhes impõe uma relação de
docilidade-utilidade; é o que Foucault chama de “disciplina”.
248 FOUCAULT, Michel. Controle Social-Loucura uma questão de poder. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro,
12 nov. 1974. 249 Id., 2007, p. 202. 249 Ibid., p. 202. 250 Id., 2009, p. 132-133.
88
Também em Vigiar e Punir nos aparece uma política de vigilância sobre os atos, na
qual o indivíduo moderno enquadra-se sob o olhar do “carcereiro”, palavra de que se vale em
outro ensaio da mesma obra.251 Estamos numa época de professor-juiz, médico-juiz, assistente
social-juiz, educador-juiz; é a sociedade moderna e o poder normalizador, todos fazendo
reinar o poder universal normativo. Há sempre uma regra, uma norma a ser respeitada.
Quando Michel Foucault descreve o Panopticon,252 avalia que esta arquitetura que
tudo permite ver é a utopia de uma sociedade e de um tipo de poder que é, na verdade, a
sociedade que conhecemos, uma utopia que se realizou. Esse tipo de poder pode receber o
nome de panoptismo, onde ele reina.
Com o biopoder existe um controle dos corpos, como podemos ver nos textos da
literatura de Michel Foucault. Assim, técnicas disciplinares são aplicadas para efeito de
vigilância e controle e sem dúvida temos a biopolítica atuando, operando igualmente e
investindo sobre o deixar viver, a vida passando a ser orientada por essas disciplinas.
Michel Foucault ressalva que a recusa, a proibição, o interdito estão longe de serem de
modo geral as formas essenciais do poder, sendo apenas seus limites, as formas frustradoras
ou extremas. As relações de poder são, antes de tudo produtivas. É esse aspecto que se
apresenta como uma nova relação, ou seja, não mais confronto e violência, mas um outro tipo
de ação.253
Esse tipo de ideologia é muito utilizado nestes tempos modernos, trazendo os efeitos
do poder e produção de verdade. Esta ideologia, esclarece Michel Foucault,254 sempre foi
utilizada para explicar erros, ilusões, tudo o que impede a formação de discursos verdadeiros.
Foucault relata que custou a percebê-la, por algumas razões. Uma delas, porque o Ocidente é
que mais se mostra, portanto, o que mais se esconde. As relações de poder estão talvez,
segundo o pensador, entre as coisas mais escondidas no corpo social.
Em Nascimento da Biopolítica, Foucault se posiciona sobre a arte de governar:
[...] o governo dos homens na medida em que, e somente na medida em que, ele se
apresenta como exercício da soberania política. “Governo”, portanto, no sentido
estrito, mas arte também, arte de governar no sentido estrito, pois por “arte de
governar” eu não entendia a maneira como efetivamente os governantes governam.
Não estudei nem quero estudar a prática governamental real, tal como se
251 Ibid., p. 288. 252 Michel Foucault se utiliza da expressão panopticon termo utilizado para designar uma penitenciária ideal,
concebida pelo filósofo Jeremy Bentham. “É um edifício em forma de anel, no meio do qual havia um pátio
com uma torre no centro. O anel se dividia em pequenas celas que davam tanto para o interior quanto para o
exterior. Na torre central havia um vigilante. Para Bentham esta pequena e maravilhosa astúcia arquitetônica
podia ser utilizada por uma série de instituições”. FOUCAULT, 1999, p. 87. 253 Id., 2007, p. 236. 254 Ibid., p. 237.
89
desenvolveu, determinando aqui e ali a situação que tratamos os problemas postos,
as táticas escolhidas, os instrumentos utilizados, forjados ou remodelados, etc. Quis
estudar a arte de governar, isto é, a maneira pensada de governar o melhor possível,
e também, ao mesmo tempo, a reflexão sobre a melhor maneira possível de
governar.255
Para Michel Foucault fica claro o estudar a arte de governar, e a melhor forma de
governar, e resgato na obra a questão da formação da biopolítica, de acordo com o autor:
[...] a análise da biopolítica só poderá ser feita quando se compreender o regime
geral dessa razão governamental de que lhes falo esse regime geral que podemos
chamar de questão de verdade, antes de mais nada da verdade econômica no interior
da razão governamental, e, por conseguinte, se compreende bem o que está em causa
nesse regime que é o liberalismo, o qual se opõe à razão de Estado, ou antes,
modifica fundamentalmente sem talvez questionar seus fundamentos. 256
Quando Michel Foucault trata de razão de Estado, pontuando que o liberalismo se
opõe a esta razão, invoca a identificação do dever-fazer do governo e o dever-ser do Estado:
[...] a razão de Estado é precisamente uma prática, ou antes, uma racionalização de
uma pratica que vai se situar entre um Estado apresentando como dado e um Estado
apresentado como a construir e a edificar. A arte de governar deve então estabelecer
suas regras e racionalizar suas maneiras de fazer propondo-se como objetivo, de
certo modo, fazer o dever-ser do Estado tonar-se ser. O dever-fazer do governo deve
se identificar com o dever-ser do Estado. O Estado como tal como é dado, a ratio
governamental, é o que possibilitará, de maneira refletida, ponderada, calculada,
fazê-lo passar ao seu máximo de ser. O que é governar? Governar segundo o
princípio da razão de Estado é fazer que o Estado possa se tornar sólido e
permanente, que possa se tornar rico, que possa se tornar forte diante de tudo o que
pode destruí-lo.257
Se observarmos o modelo econômico do liberalismo, estudado por Foucault, a
biopolítica analisada, dentre desse processo, desde o seu nascimento, podemos perceber como
o autor define a razão de Estado, colocando-a num sentido ponderado e permanente. Em
Microfísica do Poder, conforme trecho a seguir, temos uma ideia daquilo que o pensador
temia em termos de política econômica, modelo adotado pelo liberalismo. Vinculado ao
Estado, ou seja, o que deveria ser uma razão de Estado com propostas vinculadas no dever-
ser, esse modelo econômico influencia toda a esfera social, questão importante para a razão de
Estado e forma de governar.
255 Id., 2008b, p. 3. 256 FOUCAULT, 2008b, p. 30. 257 Ibid., p. 6.
90
Quando Michel Foucault ressaltou a razão de Estado, vinculando a existência do
Estado ao bem-estar do indivíduo, lançou questões, em Microfísica do poder, sobre esse novo
mecanismo de poder, a disciplina.
Este novo mecanismo de poder apoia-se mais nos corpos e seus atos do que na terra
e seus produtos. É um mecanismo que permite extrair dos corpos tempo e trabalho
mais do que bens e riqueza. É um tipo de poder que se exerce continuamente através
de vigilância e não descontinuamente por meio de sistemas de taxas e obrigações
distribuídas no tempo; que supõe mais um sistema minucioso de coerções materiais
do que a existência física de um soberano. Finalmente, ele se apoia no princípio, que
representa uma nova economia do poder, segundo o qual se deve propiciar
simultaneamente o crescimento das forças dominadas e o aumento da força e da
eficácia de quem as domina. Esse novo tipo de poder, que não pode mais ser
transcrito nos termos da soberania, é uma das grandes invenções da sociedade
burguesa. Ele foi um instrumento fundamental para constituição do capitalismo
industrial e do tipo de sociedade que lhe é correspondente; este poder não soberano,
alheio à forma da soberania, é o poder disciplinar. 258
Sobre a prática de liberdade apregoada pelo liberalismo, que tem seu surgimento no
século XVIII, ele elucida:
[...] essa pratica governamental que está se estabelecendo não se contenta em
respeitar esta ou aquela liberdade, garantir esta ou aquela liberdade. Mais
profundamente, ela é consumidora de liberdade. É consumidora de liberdade. É
consumidora de liberdade na medida em que só pode funcionar se existe
efetivamente certo número de liberdades: liberdade do mercado, liberdade do
vendedor e do comprador, livre exercício do direito de propriedade, liberdade de
discussão, eventualmente liberdade de expressão etc. A nova razão governamental
necessita, portanto da liberdade, a nova arte governamental consome liberdade.
Consome liberdade, ou seja, é obrigada a produzi-la. É obrigada a produzi-la, é
obrigada a organizá-la. A nova arte governamental vai se apresentar, portanto como
gestora de liberdade, não no sentido imperativa, “seja livre”, com a contradição
imediata que esse imperativo pode trazer. Não é o seja livre que o liberalismo
formula. O liberalismo formula simplesmente o seguinte: vou produzir o necessário
para tornar você livre. Vou fazer de tal modo que você tenha a liberdade de ser
livre.259
O liberalismo discutido por Michel Foucault, caracterizado por ele como uma nova
arte de governar, implica na relação de produção/destruição com a de consumo e anulação da
liberdade. Não é uma liberdade pronta que todos teriam de respeitar, não --, é uma liberdade
que se fabrica a todo instante, como se propõe fazer o liberalismo. Segundo o pensador
francês, a liberdade de comércio é necessária, mas demanda controle, regras, prevenções, a
fim de evitar obrigações, coerções e ameaças. Também sob regras e controle, faz referência à
258 FOUCAULT, 2007, p. 187-188. 259 Id., 2008b, p. 86-87.
91
liberdade do mercado interno, ou seja, não se pode ter efeitos monopolísticos e há necessidade
de legislação antimonopólio.260
A biopolítica traz estas questões para serem discutidas e que atingem a sociedade
como um todo. Michel Foucault via na arte de governar algo que se distanciava do equilíbrio
social, como podemos notar neste trecho de sua obra “Nascimento da Biopolítica”:
Creio que começa a se esboçar aí algo muito importante, cujas consequências, como
vocês sabem, estão longe de ter se esgotado. Esboça-se aí uma coisa que é uma nova
ideia da Europa, uma Europa que não é mais a Europa imperial e carolíngia, mais ou
menos herdeira do Império Romano e com estruturas políticas bem particulares.
Tampouco, já não é a Europa clássica da balança, do equilíbrio entre as forças
estabelecidas de tal modo que nunca a força de um prevaleça de uma forma
demasiado determinante sobre o outro. É uma Europa do enriquecimento coletivo, é
uma Europa como sujeito econômico coletivo que, qualquer que seja a concorrência
estabelecida entre os Estados, ou melhor, através da própria concorrência que se
estabelece entre os Estados, deve tomar um caminho que será o do progresso
econômico ilimitado. 261
Michel Foucault nos aponta que o governo manipula interesses, quando declara que
existe um jogo complexo entre direitos fundamentais e independência dos governados, e
procura mostrar que o governo só se interessa pelos interesses, pois não sabe lidar com a
governamentalidade, que são os indivíduos.
A razão governamental em sua forma moderna, na forma que se estabelece no início
do século XVIII, essa razão governamental que tem por característica fundamental a
busca do seu princípio de autolimitação, é uma razão que funciona com base no
interesse. Mas esse interesse já não é, evidentemente, o do Estado inteiramente
referido a si mesmo e que visa tão-somente seu crescimento, sua riqueza, sua
população, sua forma, como era o caso na razão de Estado. Agora, o interesse a cujo
princípio a razão governamental deve obedecer são interesses, é um jogo complexo
entre interesses individuais e coletivos, a utilidade social e o benefício econômico,
entre o equilíbrio do mercado e o regime do poder público, é um jogo complexo
entre direitos fundamentais e independência dos governados. O governo, em todo
caso o governo nessa nova razão governamental, é algo que manipula interesses.
Mais precisamente, podemos dizer o seguinte: os interesses são, no fundo, aquilo
por intermédio do que o governo pode agir sobre todas estas coisas que são, para ele,
os indivíduos, os atos, as palavras, as riquezas, a propriedade e os direitos, etc. Mais
claramente, se me permitem tema simplíssimo: digamos que, num sistema como o
sistema precedente, o soberano, o monarca, o Estado, agia, tinha direito, estava
legitimado, justificado para agir sobre o que? Pois bem, sobre as coisas, sobre as
terras. O rei era muitas vezes, não sempre, considerado proprietário do reino. Era a
esse título que podia intervir. [...]. Podia agir sobre os súditos já que, como súditos,
estes tinham com o soberano certa relação pessoal que fazia que o soberano pudesse,
quaisquer que fossem os direitos dos próprios súditos, agir sobre tudo. Em outras
palavras, tinha-se uma ação direta do poder sob a forma do soberano, sob a forma
dos seus ministros, uma ação direta do governo sobre as coisas e sobre as pessoas. A
partir da nova razão governamental, e é esse o ponto de descolamento entre a antiga
260 Ibid., p. 88. 261 FOUCAULT, 2008b, p. 75.
92
e a nova, entre a razão de Estado e a razão de Estado mínimo, a partir de então o
governo já não precisa intervir, já não age diretamente sobre as coisas e sobre as
pessoas, só pode agir, só está legitimado, fundado em direito e em razão para
intervir na medida em que o interesse, os interesses, os jogos de interesses tornam
determinado individuo ou determinada coisa, determinado bem ou determinada
riqueza, ou determinado processo, de certo interesse para os indivíduos, ou para o
conjunto dos indivíduos, ou para os interesses de determinado individuo
confrontados ao interesse de todos, etc. O governo só se interessa pelos interesses. O
novo governo, a nova razão governamental não lida com o que chamaria de coisas
em si da governamentalidade, que são os indivíduos, que são as coisas, que são as
riquezas, que são as terras. Ele lida com estes fenômenos da política que
precisamente constituem a política e os móveis da política, com estes fenômenos
que são os interesses ou aquilo por intermédio do que determinado individuo,
determinada coisa, determinada riqueza, etc.262
Com esta postura do Estado na nova arte de governar, Foucault, em Em Defesa da
Sociedade, aprofunda-se em uma análise em relação ao lucro econômico ou as utilidades
políticas que derivam dele, a qual permite compreender como efetivamente esses mecanismos
acabam fazendo parte do conjunto; em outras palavras, Michel Foucault releva a importância
das engrenagens de poder que produziram e liberaram, a partir do século XIX, um lucro
político que solidificou o sistema e o fez funcionar:
A burguesia não se incomoda com os loucos, mas pelo poder que incide sobre os
loucos; a burguesia não se incomoda pela sexualidade da criança, mas pelo sistema
de poder que controla a sexualidade da criança. A burguesia não dá a menor
importância aos delinquentes, à punição ou à reinserção deles, que não têm
economicamente muito interesse.263
Uma minoria detentora do poder exerce um domínio sobre a maioria criando um
abismo que é comandado pelo crescente consumismo instado na sociedade. Parece que tudo é
troca e mercadoria, não é durável, a circulação é obrigatória, pois as regras são essas. A
sociedade de consumo irá alimentar esta indústria que necessita desta circulação em nome do
lucro máximo. Isso se estende igualmente aos balcões de atendimento da ciência da cura, que
necessita fabricar para alimentar o consumo. Se não puder consumir mercadoria ou serviços o
indivíduo não terá significado. É a cultura do consumo, uma cultura imposta. Sigmund Freud,
em seu texto “O Futuro de uma Ilusão”, nos oferece à análise esta cultura e sua coerção junto
aos indivíduos:
Fica assim com a impressão de que a civilização é algo que foi imposto a uma
maioria resistente por uma minoria que compreendeu como obter a posse dos meios
de poder e coerção. Evidentemente, é natural supor que essas dificuldades não são
inerentes à natureza da própria civilização, mas determinadas pelas imperfeições das
formas culturais que até agora se desenvolveram. E, de fato, não é difícil assinalar
262 FOUCAULT, 2008b, p. 61-62. 263 Id., 2008a, p. 39.
93
esses defeitos. Embora a humanidade tenha efetuado avanços contínuos em seu
controle sobre a natureza, podendo esperar efetuar outros ainda maiores, não é
possível estabelecer com certeza que um processo semelhante tenha sido feito no
trato dos assuntos humanos; e provavelmente em todos os períodos, tal como hoje
novamente, muitas pessoas se perguntaram se vale realmente a pena defender a
pouca civilização que foi assim adquirida. Pensar-se ia ser possível um
reordenamento das relações humanas, que removeria as fontes de insatisfação para
com a civilização pela renúncia à coerção e à repressão dos instintos, de sorte que,
imperturbados pela discórdia interna, os homens pudessem dedicar-se à aquisição da
riqueza e à sua fruição. Essa seria a idade de ouro, mas é discutível se tal estado de
coisas pode ser tornado realidade. Parece antes, que toda civilização tem de se erigir
sobre a coerção e a renúncia ao instinto; sequer parece certo se, caso cessasse a
coerção, a maioria dos seres humanos estaria preparada para empreender o trabalho
necessário à aquisição de novas riquezas. Acho que se tem de levar em conta o fato
de estarem presentes em todos os homens tendências destrutivas e, portanto, anti-
sociais e anticulturais, e que, num grande número de pessoas, essas tendências são
suficientemente fortes para determinar o comportamento delas na sociedade
humana.264
Stuart Hall, em A Identidade Cultural na pós-modernidade, adverte que quanto mais a
vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens
internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente
interligados, mais as identidades de cada indivíduo se tornam desvinculadas, desalojadas, e
parecem flutuar dentro de um processo de alienação. É a difusão do consumismo, seja como
realidade, ou como sonho, que contribui com o que Stuart Hall denomina “supermercado
cultural”.265
3.1.1 Sobre política e sistema de governo
Michel Foucault discorre sobre uma possível repetição em relação ao liberalismo, que
considerou como uma nova arte de governar. Para ele a primeira das transformações do
neoliberalismo era essencialmente a dissociação entre a economia do mercado, o princípio
político do laissez-faire e a economia de mercado.
O problema do liberalismo é, ao contrário, saber como se pode regular o exercício
global do poder político com base nos princípios de uma economia de mercado. Não
se trata, portanto, de liberar um espaço vazio, mas de relacionar, de referir, de
projetar uma arte geral de governar os princípios formais de uma economia de
mercado. É esse, a meu ver, o desafio. E eu havia procurado lhes mostrar que, para
conseguir fazer essa operação, isto é, saber até que ponto e em que medida os
princípios formais de uma economia de mercado podiam indexar uma arte geral de
governar, os neoliberais haviam sido obrigados a fazer o liberalismo clássico passar
por certo número de transformações. [...] Creio ter sido esse descolamento entre a
economia de mercado e as políticas de laissez-faire o que havia sido obtido, o que
havia sido definido, em todo o caso, o principio disso havia sido estabelecido a partir
264 FREUD, 1978, p. 88-89. 265 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira
Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p.7 5.
94
do momento em que os neoliberais haviam apresentado uma teoria da concorrência
pura, que fazia surgir essa concorrência não como um dado primitivo e natural que
estaria, de certo modo, no próprio princípio, no fundamento dessa sociedade, e
bastaria, de certo modo deixar subir de volta à superfície e redescobrir; a
concorrência, longe disso, era uma estrutura, uma estrutura dotada de propriedades
formais, e eram essas propriedades formais da estrutura concorrencial que
asseguravam e podiam assegurar a regulação econômica pelos mecanismos de
preços. 266
O questionamento de Michel Foucault é saber como se pode regular o exercício global
do poder político com base nos princípios de uma economia de mercado, visto que ela tem
suas raízes no liberalismo. Nesse sentido, Foucault conclui:
Por conseguinte, se a concorrência era de fato essa estrutura formal, ao mesmo
tempo rigorosa em sua estrutura interna, mas frágil em sua existência histórica e
real, o problema da política liberal era, justamente, o de organizar de fato, o espaço
concreto e real em que a estrutura formal da concorrência podia atuar. Uma
economia de mercado sem laissez-faire, isto é, uma política ativa sem dirigismo. O
neoliberalismo não vai portanto se situar sob o signo do laissez-faire, mas o
contrário, sob o signo de uma vigilância, de uma atividade, de uma intervenção
permanente.267
Eis aqui a maneira de operar do biopoder. Michel Foucault realça a forma de atuação
do neoliberalismo, como deixa claro: “sob o signo de uma vigilância, de uma atividade, de
uma intervenção permanente”.268 A questão até então tratada, na forma como o biopoder
econômico e político comportava-se em relação ao equilíbrio e igualdade do mercado sob o
signo do liberalismo, sofre agora uma intervenção para que realmente possam ocorrer ajustes
e o neoliberalismo estar mais próximo desse equilíbrio.
Com esse propósito declinei a obra Nascimento da biopolítica, pois a economia e sua
forma de atuação interferem diretamente na política, e quando não se vislumbra o equilíbrio,
que nem sempre é possível no livre mercado, por conta da concorrência desleal, e de
corporações que impõem regras de preços e condutas, a razão de Estado fica prejudicada.
Outra questão abordada por Foucault é a estabilidade dos preços. “Essa estabilidade dos
preços possibilitará efetivamente, sem dúvida, na sequência, tanto a manutenção do poder
aquisitivo como a existência de um nível de emprego mais elevado do que na crise do
desemprego”.269
266 FOUCAULT, 2008b, p. 181-182. 267 Ibid., p. 182. 268 Ibid., p. 182. 269 Ibid., p. 191.
95
O autor ressalva que a concorrência, em seus jogos, em seus mecanismos, não deve ser
julgada como um dado natural, que o Estado deva respeitar, pois trata-se de algo espontâneo
uma simples troca. Foucault, não vê isto como natural, pois a concorrência tem em si mesma
uma essência de poder, de imposição, operando com um jogo de desigualdades, pois existe
nela uma lógica interna, que atua com uma estrutura própria. Com esse pressuposto o governo
deve acompanhar uma economia de mercado.270 A política do biopoder é de assegurar a vida
em seus sentidos vários.
Em História da Sexualidade,271 no último capítulo, Michel Foucault nos informa que a
partir do século XVII ocorrem mudanças nos mecanismos do poder, que deixaram de agir no
sentido de “fazer morrer e deixar viver”, mas produziram uma inversão para “fazer viver e
deixar morrer”. É então que o poder soberano passa a gerir e garantir a vida das pessoas.
Desde esse momento, irá interessar ao poder do Estado estabelecer políticas de higiene e
saúde imprescindíveis para a população, garantindo a vida e seu prolongamento. Isso se dá
igualmente em decorrência do desenvolvimento da medicina, a medicalização geral do
comportamento, que vêm contribuir para melhores condições de vida e espaço de existência
humana.
Trago ainda outras considerações importantes em relação ao biopoder e a biopolítica,
atuando de forma contrária à vida. Neste caso, o mesmo poder que faz viver provoca a morte
com seus efeitos anti-biopoder nas esferas de sua atuação, à medida que invade, destrói,
promove desocupações e fere milhões de pessoas para ganhar mais espaço para o poder.
Oposta àquilo que serviria para estimular e administrar a vida da população, com o fim de
prolongar e cuidar da vida, há então uma obsessão do poder do estado por políticas contrárias
à biopolítica. Como lembra Foucault, em História da Sexualidade:
As guerras já não se travam em nome do soberano a ser defendido; travam-se em
nome da existência de todos; populações inteiras são levadas à destruição mútua em
nome da necessidade de viver. Os massacres se tornaram vitais. Foi como gestores
da vida e da sobrevivência dos corpos e da raça que tantos regimes puderam travar
tantas guerras, causando a morte de tantos homens. E, por uma reviravolta que
permite fechar o círculo, quanto mais a tecnologia das guerras voltou-se para a
destruição exaustiva, tanto mais as decisões que as iniciam e encerram se ordenaram
em função da questão nua e crua da sobrevivência.272
270 FOUCAULT, 2008b, p. 162-165. 271 Id., 2015, p. 145. 272 Ibid., p. 302.
96
Na obra Em Defesa da Sociedade272 Foucault declara que o poder, no século XIX,
tomou posse da vida; dizer pelo menos que o poder, no século XIX, incumbiu-se da vida, é
dizer que ele conseguiu cobrir toda superfície que se estende do orgânico ao biológico, do
corpo à população, mediante o jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das
tecnologias de regulamentação, de outra.
O poder se incumbiu tanto do corpo quanto da vida em geral, envolvendo deste modo
toda a população. O biopoder, então, apresenta algumas questões relativas aos seus limites de
atuação. Uma delas é o poder de matar, que o Estado utiliza, como por exemplo o poder
atômico. Por que é tão difícil de se contornar esta questão de destruição em massa, ou da vida
em geral? Se esse poder é capaz de suprimir a vida, existem contradições em relação às
posturas de se fazer viver.273
Suprimir a vida é o mesmo poder de assegurar a vida, possibilidades que Michel
Foucault classifica como excessos do biopoder. Esses excessos do biopoder aparecem quando
a possibilidade é técnica, de fabricar algo monstruoso, fabricar algo no limite, como por
exemplo o desenvolvimento e a fabricação de vírus incontroláveis, armas biológicas
mortíferas, utilizadas para suprimir vidas.
Nessa tecnologia do poder que tem como objeto e como objetivo a vida, vai se exercer
o direito de matar, na função de estado assassino. Como um poder como este, na função de
biopoder, pode matar, se é verdade que se trata essencialmente de aumentar a vida, de
prolongar sua duração, de multiplicar suas possibilidades, de desviar seus acidentes, ou
compensar suas deficiências? Como entender que ao mesmo tempo esse poder é capaz de
mandar matar, expor à morte seus inimigos e seus próprios cidadãos? “Como esse poder que
tem essencialmente o objetivo de fazer viver pode deixar morrer? Como exercer o poder da
morte, com esse poder, como exercer a função da morte, num sistema político centrado no
biopoder”?274
Ainda no mesmo texto Michel Foucault faz considerações sobre a questão do racismo.
Acredita que o que inseriu o racismo nos mecanismos do Estado foi mesmo a necessidade e
urgência do biopoder. Com efeito, o que é o racismo?
É primeiro, o meio de introduzir afinal, nesse domínio da vida de que o poder se
incumbiu, um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer. No contínuo
biológico da espécie humana, o aparecimento das raças, a distinção das raças, a
272 Id., 2008a, p. 303. 273 FOUCAULT, 2008a, p. 39. 274 Ibid., p. 304.
97
hierarquia das raças, a qualificação de certas raças como boas e de outras, ao
contrário, como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo
biológico de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da
população, uns grupos em relação aos outros. Em resumo, de estabelecer uma cesura
que será do tipo biológico no interior de um domínio considerado como sendo
precisamente um domínio biológico. Isso vai permitir ao poder tratar uma população
como uma mistura de raças ou, mais exatamente, tratar a espécie, subdividir a
espécie de que ele se incumbiu em subgrupos que serão, precisamente, raças. Essa é
a primeira função do racismo: fragmentar, fazer cesuras no interior desse contínuo
biológico a que se dirige o biopoder.275
Michel Foucault esclarece que o racismo terá uma segunda função: terá como papel
permitir uma relação positiva, do tipo: “quanto mais você matar, mais você fará morrer”, ou
“quando mais você deixar morrer, mais por isso mesmo, você viverá”. É uma relação de
guerra: “para viver é preciso que você massacre seus inimigos”.276 O racismo faz funcionar
esta relação de guerra. A morte do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em que
seria minha segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior, é o
que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura.
Pode-se compreender também por que o racismo se desenvolve nas sociedades
modernas que funcionam baseadas no biopoder. A guerra é um exemplo disto, adversários são
mortos aos milhões, em nome do racismo. Na obra Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt
apresenta o anti-semitismo como uma ofensa ao bom senso, ao constatar:
O anti-semitismo (não apenas o ódio aos judeus), o imperialismo (não apenas a
conquista) e o totalitarismo (não apenas a ditadura), um após o outro, um mais
brutalmente que o outro, demonstraram que a dignidade humana precisa de nova
garantia, somente encontrável em novos princípios políticos e em uma nova lei na
terra, cuja vigência desta vez alcance toda a humanidade, mas cujo poder deve
permanecer estritamente limitado, estabelecido e controlado por entidades
territoriais novamente definidas.277
3.1.2 Biopolítica e Estado de Exceção
A questão e o conceito de biopolítica igualmente encontram-se no espaço de reflexão de
Giorgio Agamben, em sua obra Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Para Agamben
a biopolítica é o melhor modelo de conduzir a vida, pouco importando se a política é de
esquerda, direita, liberal ou totalitária.278 O súdito agora é transformado em cidadão, com o
nascimento o homem é portador imediato da soberania. Não se pode compreender o
275 Ibid., p. 304-305. 276 FOUCAULT, 2008a, p. 305. 277 ARENDT, 1989, p. 13. 278 AGAMBEN, 2002, p. 96.
98
desenvolvimento e a vocação nacional e biopolítica do Estado moderno, esquecendo que seu
fundamento principal se encontra no homem:279
As declarações dos direitos devem então ser vistas como o local em que se efetua a
passagem da soberania régia de origem divina à soberania nacional. Elas asseguram
a exceptio da vida na nova ordem estatal que deverá suceder à derrocada do ancien
régime. Que, através delas, o “súdito” se transforme, como foi observado, em
“cidadão”, significa que o nascimento, isto é, a vida nua natural como tal, torne-se
aqui pela primeira vez (com uma transformação cujas consequências biopolíticas
somente hoje podemos começar a mensurar) o portador imediato da soberania. O
princípio de natividade e o princípio de soberania, separados no antigo regime (onde
o nascimento dava lugar somente ao sujet, ao súdito), unem agora irrevogavelmente
no corpo do “sujeito soberano” para constituir o fundamento do novo Estado-nação.
Não é possível compreender o desenvolvimento e a vocação “nacional” e biopolítica
do Estado moderno nos séculos XIX e XX, se esquecemos que em seu fundamento
não está o homem como sujeito político livre e consciente, mas, antes de tudo, a sua
vida nua, o simples nascimento que, na passagem do súdito ao cidadão, é investido
como tal pelo princípio de soberania. A ficção aqui implícita é a de que o
nascimento torne-se imediatamente nação, de modo que entre os dois termos não
possa haver resíduo algum. Os direitos são atribuídos ao homem (ou brotam dele),
somente na medida em que ele é o fundamento imediatamente dissipante (e que,
aliás, não deve nunca vir à luz como tal), do cidadão.280
Tentarei fazer um breve resumo sobre a situação do cidadão e do estado de exceção na
Alemanha nazista: Quando os nazistas tomaram o poder, em 28 de fevereiro de 1933
baixaram um decreto que suspendia por tempo indeterminado os artigos da Constituição que
concerniam à liberdade pessoal, à liberdade de expressão e de reunião, à inviolabilidade do
domicílio e ao sigilo postal e eletrônico. Segundo Giorgio Agamben, havia nessa situação
uma novidade: o texto do decreto que, do ponto de vista jurídico, baseava-se no artigo 48 da
Constituição ainda vigente e equivalia a uma proclamação do estado de exceção. O artigo da
Constituição Alemã não tinha nenhuma expressão que falasse em Estado de Exceção, mas um
dos parágrafos da Constituição continha a frase – “estão suspensos até nova ordem”. Com o
decreto os direitos fundamentais ficaram suspensos, e os juristas da época consideraram o
caso como peculiar, considerando aquela situação como um estado de exceção desejado pelo
governo alemão.281
O nexo entre estado de exceção e campo de concentração não poderia ser
superestimado, em uma correta compreensão da natureza do campo. “O campo é o espaço que
se abre quando o estado de exceção começa a se tornar a regra”.282 Neste sentido, Giorgio
279 Ibid., p. 134-135. 280 AGAMBEN, 2002, p. 135. 281 Ibid., p. 174-174. 282 Ibid., p. 175.
99
Agamben observa que o estado de exceção, que era essencialmente uma suspensão temporal
do ordenamento jurídico com base numa situação fictícia de perigo, adquire um status de
permanência, mantendo-se de forma estável fora do ordenamento normal.283
Giorgio Agamben284 pontua que é necessário refletir sobre o estatuto paradoxal do
campo enquanto espaço de exceção, ou seja, ele é um pedaço de território que é colocado fora
do ordenamento jurídico normal, mas não é, por causa disso, simplesmente um espaço
externo. Assim, aquilo que nele é excluído (capturado fora) é incluído através de sua própria
exclusão. Mas aquilo que, deste modo, é antes de tudo capturado no ordenamento, é o próprio
estado de exceção.
Outra situação, ainda na sequência, é que na medida em que o estado de exceção é, de
fato, “desejado”, ele inaugura um novo modelo jurídico-político, no qual a norma se torna
indiscernível da exceção. O soberano não irá mais limitar-se a decidir sobre a exceção, como
estava no espírito da Constituição, segundo Agamben, com base no reconhecimento de uma
dada situação fictícia (o perigo para a segurança pública). Assim, exibindo a nu a íntima
estrutura de bando que caracterizava o seu poder, ele agora produz a situação de fato com
consequência da decisão que tomou sobre a exceção.285
Há um movimento interno e externo, as pessoas perderam todo seu estatuto político e
a fórmula neste caso é fazer morrer e deixar viver, citando Michel Foucault, em História da
Sexualidade. O biopoder transforma o cidadão em condição neutra, desprovido de qualquer
direito, o soberano decide quem vive e quem morre; num caso como este, exceção como
regra, o soberano desrespeita a ordem Constitucional em nome de algo que não existia para
dispor das liberdades e das vidas.
Giorgio Agamben, em O que resta de Auschwitz, interroga:
É precisamente tal heterogeneidade que, no entanto, começará a tornar-se
problemática no momento de afrontar a análise dos grandes Estados Totalitários do
nosso tempo, especialmente do Estado nazista. Nele, uma absolutização sem
precedentes do biopoder de fazer viver, se cruza com uma não menos absoluta
generalização do poder soberano de fazer morrer, de tal forma que a biopolítica
coincide imediatamente com a tanatopolítica. Essa coincidência representa, na
perspectiva foucaulteana, um verdadeiro paradoxo que, conforme acontece com
qualquer paradoxo, exige uma explicação. Como é possível que um poder cujo
objetivo é essencialmente o de fazer viver exerça por sua vez um incondicionado
poder de morte?286
283 Ibid., p. 176. 284 Ibid., p. 176-177. 285 AGAMBEN, 2002, p. 177. 286 AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo sacer III). Tradução de
Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 89.
100
Ao lado da questão levantada acima por Giorgio Agamben, Michel Foucault, na obra
Em Defesa da Sociedade, desenvolve a do racismo, o aparecimento das raças. O pensador
francês contribui para ampliar o entendimento daquele momento nos campos de concentração
e a busca pela raça pura defendida pelo soberano alemão na época da Segunda Guerra.
Compreende-se então a função decisiva dos campos no sistema da biopolítica
nazista. Eles não são apenas o lugar da morte e do extermínio, mas também, e antes
de qualquer outra coisa, o lugar de produção do mulçumano, da última substância
biopolítica isolável no continuum biológico. Para além disso, há somente a câmara
de gás.287
Em 1937, durante a celebração de uma reunião secreta, Hitler, segundo Giorgio
Agamben, formula pela primeira vez um conceito biopolítico extremo, que é necessário
comentar. Referindo-se à Europa centro oriental, ele declara que precisa de um volkloser
Raum, ou seja, um espaço sem povo. Como entender isto? Agamben, esclarece que tal
referência não se assemelha a um deserto, ou a um espaço geográfico desprovido de
habitantes (a região a que ele se referia era densa de povos e nacionalidades diferentes). Por
aquela forma ele designa uma intensidade biopolítica fundamental, que pode estar em
qualquer espaço. Haveria uma máquina biopolítica que, uma vez implantada em um espaço
biopolítico absoluto, por ele nomeado daquela maneira, ao mesmo tempo seria o espaço de
vida e da morte, no qual a vida humana passa a estar além de qualquer identidade biopolítica
atribuível.288
O século XX, segundo Celso Lafer, em A Reconstrução do Direitos Humanos,289
presenciou experiências nas quais os limites entre o aceitável e o inaceitável desbordaram
amplamente daquilo que hoje nos parece razoável. A mais dramática dessas experiências foi o
totalitarismo, que Hannah Arendt analisou como uma forma inédita de governo apoiada na
ideologia, na burocracia e no terror, e caracterizada pelo medo. Terror, ideologia e burocracia
permitiram uma dominação total da sociedade.
Ainda neste sentido, no pensamento de Celso Lafer, tal dominação se fez por meio de
leis, que tanto na vigência do nazismo quanto na do stalinismo se colocaram contra os valores
da Justiça e do Direito, os quais, com a modernidade, fizeram do homem o sujeito de Direito
legitimador do ordenamento jurídico.
O governo totalitário, em Origens do Totalitarismo,290 nos coloca diante de uma
espécie totalmente diferente de governo. É verdade que desafia todas as leis positivas, mesmo
287 FOUCAULT, 2008a, p. 90. 288 AGAMBEN, 2008, p. 91. 289 LAFER, 1988, p. 76. 290 ARENDT, 1989, p. 513.
101
aquelas que ele próprio estabeleceu, no caso da Constituição Alemã, e que o governo nunca
revogou; mas não opera sem a orientação de uma lei, nem é arbitrário, pois afirma obedecer
rigorosa e inequivocamente àquelas leis da Natureza ou da História que sempre acreditamos
serem a origem de todas as leis.
As leis positivas destinam-se a erigir fronteiras e a estabelecer canais de
comunicação entre os homens, cuja comunidade é continuamente posta em perigo
pelos novos homens que nela nascem. A cada nascimento, um novo começo surge
para o mundo, um novo mundo em potencial passa a existir. A estabilidade das leis
corresponde ao constante movimento de todas as coisas humanas, um movimento
que jamais pode cessar enquanto os homens nasçam e morram. As leis
circunscrevem cada novo começo e, ao mesmo tempo, asseguram a sua liberdade de
movimento, a potencialidade de algo inteiramente novo e imprescindível; os limites
das leis positivas são para a existência política do homem o que a memória é para a
sua existência histórica: garantem a preexistência de um mundo comum, a realidade
de certa continuidade que transcende a duração individual de cada geração, absorve
todas as novas origens e delas se alimenta.291
Quem entrava nos campos de concentração movia-se em uma zona de indistinção,
conforme pontua Giorgio Agamben, em Homer Sacer – O poder soberano e a vida nua I,292
entre externo e interno, exceção e regra, lícito e ilícito, na qual os próprios conceitos de direito
subjetivo e de proteção jurídica não faziam mais sentido, pelas leis de Nuremberg – não
valiam então seus direitos de cidadão e, nem posteriormente, no momento da “solução final”,
expressão usada para a morte das pessoas completamente desnacionalizadas e sem proteção.
Na medida em que seus habitantes foram despojados de todo estatuto político e
reduzidos integralmente a vida nua, o campo é também o mais absoluto espaço
biopolítico que jamais tenha sido realizado, no qual o direito não tem diante de si
senão a pura vida sem qualquer mediação. Por isso o campo é o próprio paradigma
do espaço público no ponto em que a política se torna biopolítica e o homo sacer se
confunde virtualmente com o cidadão.293
Giorgio Agamben ressalta ainda que a vida nua em que aquelas pessoas foram
transformadas não significa um fato extrapolítico, mas uma aposta de uma decisão política
soberana, que opera na absoluta indiferenciação de fato e direito. O campo é o espaço em que
não há possibilidade de tomada de decisões entre fato e direito, entre exceção e regra.
291 ARENDT, 1989, p. 517. 292 AGAMBEN, 2002, p. 177. 293 Ibid., p. 178.
102
O que o guardião ou o funcionário do campo têm diante de si não é um fato
extrajurídico (um indivíduo biologicamente pertencente à raça hebraica), ao
contrário, cada gesto, cada evento no campo, do mais “simples’ ou mais brutal,
dava-se a decisão sobre a vida nua que efetiva o corpo biopolítico alemão.294
Giorgio Agamben nos traz exemplos que se aproximam da situação dos milhares de
refugiados existentes no mundo, por força de políticas que desconhecem os direitos humanos
e buscam nas guerras e políticas econômicas um anti-biopoder, ensejando constantemente um
estado de exceção, quando na verdade a norma é o Estatuto dos Direitos Humanos. Vejamos o
exemplo atualíssimo hoje dado pelo pensador:
[...] se a essência do campo consiste na materialização do estado de exceção e na
consequente criação de um espaço em que a vida nua e a norma entram em um
limiar de indistinção, deveremos admitir, então, que nos encontramos virtualmente
na presença de um campo toda vez que é criada uma tal estrutura, independente da
natureza dos crimes que aí são cometidos e qualquer que seja sua denominação ou
topografia específica. Será um campo tanto o estádio de Bari, onde em 1991 a
polícia italiana aglomerou provisoriamente os imigrantes clandestinos albaneses
antes de reexpedi-los ao seu país, quanto o velódromo de inverno no qual as
autoridades de Vichy recolheram os hebreus antes de entregá-los aos alemães; tanto
o Konzentrationslager für Ausländer em Cottbus-Sielow, no qual o governo de
Weimar recolheu os refugiados hebreus orientais, quanto as zones d’attente nos
aeroportos internacionais franceses, nas quais são retidos os estrangeiros que pedem
o reconhecimento do estatuto de refugiado. Em todos estes casos, um local
aparentemente anódino (como, por exemplo, Hotel Árcades, em Roissy) delimita na
realidade um espaço no qual o ordenamento normal é de fato suspenso, e que aí se
cometam ou não atrocidades não depende do direito, mas somente da civilidade e do
senso ético da polícia que age provisoriamente como soberana (por exemplo, nos
quatro dias em que os estrangeiros podem ser retidos nas zone d’attente, antes da
intervenção da autoridade judiciária).295
Por esses exemplos, o nascimento do campo em nossos dias surge então, nesta
perspectiva, marcando o espaço político da modernidade. Declinar todas estas considerações
traduz a preocupação com posturas existentes na modernidade de possíveis níveis de
totalitarismo dentro da democracia. São movimentos que podem existir, e deslocar para um
campo aquilo que não interessa ao sistema. Temos uma possível reaparição dos “campos”, nas
considerações de Giorgio Agamben, quando a política se volta aos interesses particulares.
Um campo, como espaço permanente de exceção. É nosso tempo moderno. O sistema
político não ordena mais formas de vida e normas jurídicas em um espaço determinado, como
na era nazista, mas contém em seu interior uma localização deslocante,296 (expressão de
294 Ibid., p. 180. 295 AGAMBEN, 2002, p. 181. 296 Ibid., p. 182.
103
Giorgio Agamben), que o excede, e na qual toda forma de vida e toda norma podem ser
capturadas.
Ainda nessa linha, Giorgio Agamben discorre sobre esse campo deslocante que chama
de matriz oculta da política, em que ainda vivemos, e que devemos aprender a reconhecer
através de todas as suas metamorfoses, nas zones d’attente de nossos aeroportos, bem como
em certas partes periféricas de nossas cidades ou Estados. Toda forma de vida e norma podem
ser capturadas. A biopolítica encontra-se nesses campos, mas é preciso analisar qual intenção
de aplicá-la e sua dimensão junto a vida.
3.1.3 Vida nua
Giorgio Agamben assenta que o protagonista da obra “O poder soberano e a vida nua
I” é a própria vida nua, ou seja, a vida matável e insacrificável do homo sacer.297 Ainda:
“uma obscura figura do direito romano arcaico, na qual a vida humana é incluída no
ordenamento unicamente sob a forma de sua exclusão (ou seja, de sua absoluta
matabilidade)”.298
O estado de exceção, no qual a vida nua era, ao mesmo tempo, excluída e capturada
pelo ordenamento, constituía, na verdade, o fundamento oculto sobre o qual repousava o
inteiro sistema político; quando as fronteiras se indeterminam, a vida nua que o cidadão
habitava libera-se na cidade e torna-se simultaneamente o sujeito e o objeto do ordenamento
político e de seus conflitos, o ponto comum tanto da organização do poder estatal quanto da
emancipação dele. Agamben esclarece que o que se encontra em questão é “a vida nua do
cidadão, o novo corpo biopolítico da humanidade”.299
Na obra de Peter Pál Pelbart, Vida Capital-Ensaios de biopolítica300, o autor pontua
que, na esteira de Michel Foucault, Giorgio Agamben sustenta que o totalitarismo nazista é
essencialmente biopolítico. Uma forma estranha de entendermos, mas é o primeiro Estado
radicalmente biopolítico, pois é o Estado tomando decisões sobre a vida, e confundindo um
dado natural com uma tarefa política, considerando que para os nazistas tratava-se de assumir
politicamente sua hereditariedade biológica. O nazismo separava a vida nua das formas de
vida, e depois subsumia as formas de vida à vida nua. Havia uma política de eugenia, de
297 AGAMBEN, 2002, p. 16. 298 Ibid., p. 16. 299 Ibid., p. 17. 300 PELBART, Peter Pál. Vida Capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2009. p. 63.
104
melhoria de raça e de suas condições de reprodução. Há um quadro biopolítico dentro do
contexto nazista de biopolítica.
Na esteira desse esclarecimento, Peter Pál Pelbart ressalta que o campo é um espaço
onde norma e exceção se tornam indiferentes. Ali, o estado de exceção vigora normalmente.
“O campo é o espaço biopolítico mais puro, pois o que ele tem diante de si é a vida nua, a
pura vida, sem nenhuma mediação”.301 Pelbart esclarece que para além de cometer
atrocidades contra a humanidade, ou crimes hediondos contra seres humanos, será também
necessário indagar por quais dispositivos, jurídicos e políticos, seres humanos foram privados
de seus direitos, a tal ponto que qualquer ato nefando contra aqueles indivíduos deixou de ser
considerado criminoso.
Edgar Morin, na obra A cabeça bem-feita – Repensar a reforma e reformar o
pensamento, pondera que se era possível acompanhar a Segunda Guerra Mundial pelas
bandeirinhas fincadas no mapa, hoje não mais é possível fazer qualquer tipo de projeção ou
cálculo sobre o que acontecerá com a humanidade, ao se simular uma guerra com a tecnologia
nos tempos atuais. Os noticiários corroboram essa reflexão. A arma atômica deixou o cidadão
inteiramente desprovido da possibilidade de uma previsão. Sua utilização está entregue
unicamente à decisão do chefe de Estado, sem qualquer consulta a alguma instância
democrática regulamentar. “Quanto mais técnica se torna a política, mais regride a
competência democrática”.302
Os governos arrogam-se o direito de lançar na conta do lucro e das perdas a
infelicidade dos homens que suas decisões provocam e suas negligências permitem, conclui
Oswaldo Giacoia Junior, em artigo intitulado Sobre direitos humanos na era da bio-política:
“É um dever dessa cidadania internacional fazer valer sempre, aos olhos e aos
ouvidos dos governos, os infortúnios dos homens, de que não é verdade que eles são
responsáveis. O infortúnio dos homens não deve jamais ser um resto mudo da
política. Ele funda um direito absoluto a se levantar e a se dirigir àqueles que detêm
o poder.”303
Oswaldo Giacoia Junior cogita a viabilidade de uma intervenção pura, não violenta,
numa modalidade de ação política liberada do modelo obsessivo da soberania. Ele ilustra esse
modelo indesejável com o incidente internacional significativo que ficou conhecido como o
301 Ibid., p. 7. 302 MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: Repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução de Eloá
Jocobina. 21. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014. p. 19. 303 GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Sobre direitos humanos na era da bio-política. Kriterion [online], Belo
Horizonte, v. 49, n. 118, p. 267-308, dez. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/kr/v49n118/
02.pdf>. Acesso em: 02 dez. 2015. p. 8.
105
caso dos boat people, ou seja, os barcos nos quais cerca de oitocentas mil pessoas tentavam
“ilegalmente” escapar do sudeste asiático, em busca de melhores condições de existência. O
autor lembra a exposição desses imigrantes a uma autêntica e dramática situação de
abandono, sofrendo toda espécie de agressão, violência e abusos, recusa de asilo e proteção,
expulsão das águas demarcadas por fronteiras territoriais, argumentando que traumas maiores
poderiam ter sido evitados por meio de intervenções adequadas. 304
Nessa situação Oswaldo Giacoia Junior ressalta que estamos diante de indivíduos
privados de tudo, sem quaisquer tipos de recursos, e não sabemos a razão pela qual
abandonaram seus países, ao invés de permanecerem neles. Teríamos assim que recorrer ao
questionamento do campo onde vigora a exceção, pois existe uma cidadania internacional que
tem seus direitos e deveres e acima de tudo a solidariedade.
3.2 Capitalismo e biopolítica
Na obra Vida Capital, Ensaios de biopolítica, Peter Pál Pelbart, em um de seus
ensaios, intitulado Império e Biopotência, faz algumas considerações interessantes sobre o
poder da sociedade de controle da vida social, amparando-se em algumas posições de Michel
Foucault.
Estamos numa fase onde a globalização alcança rapidamente as coisas,
transformando de certa forma tudo, sem fronteiras. A existência humana parece estar
coberta por esta nova ordem. É algo que se esparrama, se entrelaça ao tecido social.
O Império, diferente do imperialismo, é sem limites, engloba a totalidade do espaço
do mundo, apresenta-se como fim dos tempos e penetra funda na vida das pessoas.
Surge desta forma nova modalidade de controle. A sociedade funciona através de
mecanismos de monitoramento mais difusos, flexíveis, ondulantes, incidindo
diretamente sobre os corpos e a mente. Ele se exerce pela comunicação em rede de
informação, o sujeito adentrou a um estado de alienação autônoma.305
Pelbart, na mesma obra, desenvolve em um dos capítulos o ensaio Império e
Biopolítica, no qual discorre sobre a dimensão biopolítica da sociedade de controle. A vida
volta-se para seus mecanismos, pois rege e regula a vida social, reformulando-se,
possibilitando situações antes não alcançáveis. Em questão de segundos encontros são
realizados, negócios são fechados financeiramente, marcam-se encontros e passeatas em
busca de mudanças na sociedade e na política, tudo virtualmente. A função de cada indivíduo
encontra-se dividida com esta sociedade de controle. Esse controle tem o poder de afetar a
304 Ibid. 305 PELBART, 2009, p. 81-82.
106
vida em sociedade. Definir o “Império” como regime biopolítico implica esse duplo sentido:
“significa reconhecer que nele o poder sobre a vida atinge uma dimensão nunca vista, mas por
isso mesmo nele a potência da vida se revela de maneira inédita.306
Michel Foucault, na obra Em Defesa da Sociedade, realça que o indivíduo é efeito do
poder e é, ao mesmo tempo, na mesma medida, tanto um efeito de poder como intermediário
de poder: o poder transita pelo indivíduo que ele constitui, assim: “o poder é algo que se
exerce, que circula, que forma rede”.307
Pelbart considera que nem tudo pode estar perdido. A multidão nutre o Império e ao
mesmo tempo o ameaça: Biopoder como um regime geral de dominação da vida; biopolítica
como uma forma de dominação da vida que pode igualmente significar, no seu avesso, uma
resistência ativa, o poder comum de agir; e a biopotência como a potência da vida da multidão
-- a biopotência inclui o poder de agir.
Nesse sentido, Hannah Arendt, em A Condição Humana, no ensaio intitulado A Vita
Activa e a Era moderna, propõe:
O que quer que o futuro no reserve, o processo de alienação do mundo, e
caracterizado por um crescimento cada vez maior da riqueza, pode assumir
proporções ainda mais radicais somente se lhe for permitido seguir a lei que lhe é
inerente. Pois os homens não podem ser cidadãos do mundo como são cidadãos dos
seus países, e homens sociais não podem ser donos coletivos como os homens que
têm um lar e uma família são dono de sua propriedade privada. A ascensão da
sociedade trouxe consigo o declínio simultâneo das esferas públicas e privadas; mas
o eclipse de um mundo público comum, fator tão crucial para formação da massa
solitária e tão perigoso na formação da mentalidade, alienada do mundo, dos
modernos movimentos ideológicos de massas [...].308
Roberto Esposito, em Bios – Biopolítica e Filosofia,309 sugere que o conceito de
biopolítica pode tornar-se maior do que representa, para além de transformar-se numa forma
de humanismo tradicional. Envolve uma situação mais ampla, ou seja, afasta-se da ideia de
uma casa bem organizada e avança para questões mundiais, como tratou-se neste trabalho.
Fome, saúde, mortalidade, guerras, ameaças atômicas, desrespeito com a natureza, e outras
mazelas. Trata-se de um projeto de uma política multidimensional do homem, ou seja, toma
proporção e caminhos que se interpenetram.
306 Ibid., p. 83. Sobre a palavra “Império”, apontada no texto, que difere de imperialismo. Império é sem limites,
sem fronteiras. Engloba a totalidade do espaço humano e penetra fundo na vida das pessoas. É uma nova
estrutura de comando, corresponde a fase atual do capitalismo. Cf. PELBART, 2009, p. 81. 307 FOUCAULT, 2008a, p. 35. 308 ARENDT, 2009, p. 269. 309 ESPOSITO, Roberto. Bios: biopolítica e filosofia. Portugal: Edições 70, 2004. p. 38-39.
107
A biopolítica foi definida como a ciência das condutas dos Estados e das coletividades
humanas, tidos em conta as leis, o ambiente natural e os dados ontológicos que regem a vida e
determinam a atividade do homem. A definição envolve a coletividade humana e desloca-se
para o compromisso da sociedade em atuar em favor do meio em que vive e produz. Roberto
Esposito pontua de forma interessante que existe um curto circuito retórico que envolve a
teoria e prática, pois já não é a teoria a interpretar a realidade, mas a realidade a ditar uma
teoria destinada a confirmá-la.310
O fato de que a política se preocupe sempre, de uma ou outra maneira, em defender a
vida, não significa que só agora, coincidindo justamente com a modernidade, essa necessidade
de segurança e cuidados pelas altas demandas e complexidades existentes faça parecer que
haja mais recursos. Significa que em todas as civilizações, passadas e presentes, houve
resolução dos seus problemas de imunização e auto conservação da vida.
Desse modo, podemos ver posturas biopolíticas na obra A República, de Platão, e
como bem cita Roberto Esposito, na obra de Thomas Hobbes. Hobbes não é o filosofo do
conflito, da luta de todos contra todos, mas sim da paz, ou melhor, da neutralização, a partir
do instante em que o estado político serve justamente para dar a garantia preventivamente,
contra a possibilidade de uma guerra.311
Outra observação em relação a esta questão: Roberto Esposito nos fala em imunidade
em sua obra Bios – Biopolítica e Filosofia. Na obra de Thomas Hobbes, Leviatã, o pacto, que
traz a segurança versus paz, não estaria apenas preservando a vida contra-ataques externos ou
internos, mas há uma proposta de vida com paz, numa medida de felicidade, propiciada pelo
Estado. É ofertada à política a tarefa de salvar, há uma sujeição do indivíduo em relação ao
Estado. Observa-se aqui também um caráter negativo da imunização em relação à sujeição:
Vejam-se os casos dos países em conflitos de guerra, ou o das grandes potências mundiais que
também são atacadas por outros países e dentro do seu próprio território sofrem ameaças, sem
término para solução. Dessa maneira, o processo de imunização fica engessado, quando
voltaríamos à expressão de Michel Foucault, sobre a necessidade de “fazer viver e deixar
morrer”.312
O negativo da immunitas preenche agora todo o quadro para se salvar de forma
duradoura, ou seja, a vida é tornada privada no duplo sentido da expressão, segundo Roberto
310 Ibid., p. 44. 311 ESPOSITO, 2004, p. 74-95. 312 FOUCAULT, 2008a, p. 304-305.
108
Esposito: privatizada e privada daquela relação que a expõe ao seu traço comum. Qualquer
relação externa ao fio vertical que vincula cada um ao mando soberano é cortada na raiz.
Mais do que pelo poder positivo do Estado soberano, ele é protegido pela margem
negativa que o entrega a si próprio. Poder-se-ia dizer que a soberania, em última
análise, não é mais do que o vazio artificial criado em torno de qualquer indivíduo, o
negativo da relação que medeia entre entidades sem relação.313
Roberto Esposito faz algumas considerações sobre o genocídio ocorrido durante a
Segunda Guerra Mundial, e a forma como o nazismo procedia na biopolítica. Tal se deu em
princípio de 1939, quando um dos médicos de confiança de Hitler foi encarregado de iniciar o
processo de eutanásia para as crianças abaixo dos três anos que fossem suspeitas de graves
problemas hereditários, como idiotia, microcefalia e outros males. Em outro período a ordem
foi igualmente estendida a adultos com problemas dessa ordem. O programa foi ampliado
geograficamente para outras regiões da Alemanha.314
Na sequência, Roberto Esposito lembra que foi decidida a “solução final” para todos
os judeus. É aquilo a que se chama genocídio. Os executores dos crimes estavam convencidos
de que somente eles poderiam fazer com que o povo alemão recuperasse a saúde; assim, com
relação ao massacre a proposta era a regeneração vencer a degeneração através do genocídio.
Nesta tese convergem autores que, implícita ou explicitamente, têm insistido na
caracterização biopolítica do nazismo, ou seja, foi a crescente imbricação entre política e vida
que introduziu nesta última a cesura normativa entre aqueles que devem viver e aqueles que
devem morrer. A morte se tornava ao mesmo tempo objeto, e um instrumento de cura.
Situações relativas a distúrbios hereditários passaram a sofrer legitimação dos médicos, ou
melhor, os médicos legitimavam decisões tomadas na esfera política e criavam diagnósticos
por pura discriminação racial, decididos ao arbítrio, para favorecer o que o Estado desejasse.
Para captar a essência da política nazista, não se pode perder o entendimento entre os
dois fenômenos, biológicos e políticos. É como justamente a reivindicação do primado da
vida a provocar a sua absoluta subordinação à política.315
3.2.1 Capitalismo e humanismo
313 ESPOSITO, op. cit., p. 94. 314 ESPOSITO, 2004, p. 194-195. 315 Ibid., p. 199.
109
O Capitalismo Humanista316 é uma obra de Ricardo Sayeg e Wagner Balera. Dela
sobressai que apesar da crise do capitalismo global, ocorrida em 2008, o neoliberalismo ainda
prevalece na economia mundial, estabelecendo para o planeta a globalização econômica
capitalista. A ideia da obra parte da concepção do humanismo integral a ser utilizada nos
processos econômicos para maior e melhor equilíbrio do sistema, e inegavelmente das
pessoas, buscando um olhar para a dignidade da pessoa humana nas relações existentes.
O texto nos conduz a conformar o capitalismo às exigências da atualidade em favor do
homem, de todos os homens e do planeta, assim é necessário formular uma teoria jus-
humanista da economia e do mercado. A necessidade da regência do Direito se torna
imprescindível, pois é o que garante a efetividade e o cumprimento dos direitos fundamentais
e do respeito à dignidade humana. No propósito aqui declinado penso em universalidade e
igualdade.
Na introdução à obra os autores destacam que é inegável o caráter individualista das
poderosas forças de mercado, e que só se contemplará a efetividade multidimensional dos
direitos humanos através do mínimo concreto para o planeta, qual seja, a consecução dos oito
objetivos gerais identificados nas Metas do Milênio, a saber:317
1) Erradicar a extrema pobreza e a fome;
2) Atingir o ensino básico universal;
3) Promover a igualdade de gênero e a autonomia das mulheres;
4) Reduzir a mortalidade infantil;
5) Melhorar a saúde materna;
6) Combater o HIV/AIDS, a malária e outros doenças graves;
7) Garantir a sustentabilidade ambiental e;
8) Estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento.
As presentes propostas e reflexões constituem uma proposta de caminho, segundo os
autores, e igualmente vêm em sintonia com as análises sobre biopolítica e biopoder.
Com a globalização econômica, dada a força do capital, principalmente por meio de
transações financeiras e negócios multilaterais, o grupo central do capitalismo impôs ao
mundo, em especial aos países financiados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI),
envolvendo os emergentes e em desenvolvimento, a pauta jus-econômica neoliberal do
316 SAYEG, Ricardo; BALERA, Wagner. O capitalismo humanista. Petrópolis: KBR, 2011. 317 SAYEG; BALERA, 2011, p. 17.
110
Consenso. O Brasil, por exemplo, como tantas outras nações, tomou recursos do FMI na
década de 1990 mediante o compromisso de privatizações e da abertura do país à globalização
capitalista liberal.318
O planeta migrou para a ampla e global economia de mercado. Foi a retomada
concreta das clássicas teorias liberais econômicas de Adam Smith e David Ricardo, segundo
constataram Ricardo Sayeg e Wagner Balera, sob a premissa de que, se cada um dentro da
comunidade agir em favor de seus interesses individuais, sem consideração com o outro,
haverá maior eficiência econômica e que isso, no final, resultará naturalmente em favor do
interesse coletivo, ainda que muitas vezes sem os aspectos de igualdade.
Nesse sentido, seguir esta linha de individualismo na forma de proceder nos assuntos
econômicos junto ao mercado abdicará de qualquer consideração de ordem humanista, para
tão só atingir a proposta de produzir melhores resultados econômicos. Assim, a exclusão
econômica, social, política e cultural, como também o esgotamento do planeta, são
considerados naturais, tudo em prol da seleção natural e de um crescimento econômico no
qual os ricos ficam mais ricos e os pobres, mais pobres.319
O Capitalismo Humanista320 defende a humanização da economia de mercado,
deslocando o capitalismo neoliberal do seu ser, que corresponde ao estado de natureza,
selvagem e desumano, para o dever-ser da concretização multidimensional dos direitos
humanos mediante a universal dignificação da pessoa humana. Essa é a filosofia humanista do
Direito Econômico, que nada mais é do que o transporte teórico da Lei Universal da
Fraternidade para o Direito Econômico, buscando a liberdade e igualdade.
A filosofia humanista do Direito Econômico entende, portanto, “que o processo de
desenvolvimento deve centrar-se na pessoa humana e no planeta, visando garantir a todos os
homens níveis básicos de subsistência e sustentabilidade do planeta”.321
Nesta mesma linha de pensamento, um caso ilustra essa preocupação: o poder privado,
com todo seu domínio econômico, em se tratando de empresas do mundo corporativo, por
exemplo, os planos de saúde: de fato é manifesto que entre o particular e o plano de saúde há
uma forte relação de poder estabelecida, não apenas de natureza econômica, mas também
técnica. De tal modo que os planos de saúde podem, pelo menos de certa maneira, ser
equiparados aos serviços de saúde prestados pelo Estado, o que justifica a forte fiscalização
que há sobre eles, em especial após a criação da Agência Nacional de Saúde. Visa-se assim
318 Ibid., p. 23. 319 SAYEG; BALERA, 2011, p. 24. 320 Ibid., p. 25. 321 Ibid., p. 27.
111
garantir o atendimento mínimo necessário, conforme prescrevem os direitos fundamentais
constitucionais. Em ações que tramitam na Justiça há cláusulas abusivas com a proposta de
majoração de valor cobrado pelos planos em razão da idade. O Poder judiciário muitas vezes
termina por estabelecer limitação no poder de majoração efetuado pela empresa de Saúde.322
Resgatei o exemplo acima apenas para ilustrar e trazer o capitalismo humanista
alcançado pela eficácia dos direitos sociais nas relações privadas, como o princípio da
solidariedade entre as partes, para a concretização do equilíbrio nas relações. Na obra
Direitos Fundamentais Sociais e Relações Privadas, Cibele Gralha Mateus assinala:
“o direito privado não está isento da incidência dos valores constitucionais [...]. Além disso,
um dos objetivos da República Federativa do Brasil é exatamente construir uma sociedade
justa, livre e solidária”.323
Poderia ter inserido tal questão no item onde foi tratado o tema do nascimento da
biopolítica em Michel Foucault, mas destaquei neste momento o assunto capitalismo
Humanista para finalizar com a leitura do texto sobre o humanismo de Martin Heidegger.
3.2.2 Humanismo e educação
Em sua obra Carta sobre o Humanismo Martin Heidegger considera que “se entende
por humanismo, de modo geral, o empenho para que o homem se torne livre para sua
humanidade, para nela encontrar a sua dignidade, então o humanismo distingue-se, em cada
caso, segundo a concepção de liberdade e da natureza do homem”324
A apatricidade que assim deve ser pensada reside no abandono antológico do ente. Ela
é o sinal do esquecimento do ser. Em consequência dela, a verdade do ser permanece
impensada. O esquecimento do ser manifesta-se indiretamente no fato de o homem sempre
considerar e trabalhar só o ente. E como nisto não pode evitar de ter o ser na representação,
322 MATEUS, Cibele Gralha. Direitos Fundamentais sociais e relações privadas: o caso do direito à saúde na
Constituição brasileira de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008. p. 139-140. A título
exemplificativo da situação acima abordada, a mesma autora traz um julgado em favor dos menos
favorecidos em relação ao assunto tratado sobre Capitalismo e humanismo: Apelação Cível. Seguros. Plano
de Saúde. Revisão de Contrato. Cláusula que prevê aumento de 100% da mensalidade ao atingir a faixa etária
de 60 anos. Limitação em 20%. Diálogo de Fontes: CDC, Lei dos Planos de Saúde e Estatuto do Idoso.
Índice de Correção a ser aplicado quanto ao período de 2002 a 2003. IGP-M. I – Majoração em razão do
implemento da idade. Mostra-se abusiva a cláusula que prevê o reajuste da contraprestação em 100% em
razão do implemento da idade de 60 anos. Limite de majoração em 20%, reconhecido o diálogo estabelecido
entre as seguintes fontes: CDC e Leis n.9.656/1998 e 10.741/2003. Rio Grande do Sul. Tribunal de Justiça.
Sexta Câmara Cível. Apelação Cível n. 70012183521. Relator: Ubirajara Mach de Oliveira. Julgado em: 14
set. 2005. 323 MATEUS, 2008, p. 135. 324 HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Tradução de Rubens Eduardo Frias. 2. ed. São Paulo:
Centauro, 2005. p. 19.
112
também o ser é explicado apenas como o mais geral e, portanto, o que engloba o ente, ou
como criação do ente infinito, ou ainda, como produção de um sujeito finito. O ser enquanto
destino que destina a verdade permanece oculto.325
Na mesma obra Martin Heidegger responde à pergunta de Jean Beaufret: “Comment
redonner un sens au mot Humanisme?”326 (“Como restaurar o sentido à palavra
Humanismo?”):
Ela perdeu o sentido pela convicção de que a essência do humanismo é de caráter
metafísico e isto significa, agora, que a Metafísica não só coloca a questão da
verdade do ser, mas a obstrui, na medida em que a Metafísica persiste no
esquecimento do ser. Mas o pensar que conduz a esta compreensão do caráter
problemático da essência do humanismo levou-nos, ao mesmo tempo, a essência do
homem mais radicalmente.327
Em Sete lições sobre o Ser328 Jacques Maritain nos apresenta o texto denominado O
Ser desrealizado. Em um dos apontamentos da obra, que se divide em lições que discorrem
sobre a essência e existência do ser, Maritain nos explica que o ser, quando cai sob a
consideração do lógico, quando é considerado entre outros objetos próprios da lógica, e
investido em todos eles, é algo diferente do ser do metafísico. Ele o pressupõe, mas em lógica
o ser é compreendido como objeto de segunda intenção mental. A diferença entre o ser lógico
e o metafísico se apresenta no sentido de que o lógico, caráter mental, discerne, reflexiva e
cientificamente, do ponto de vista de sua própria ciência, o caráter de extensão máxima ou de
universalidade soberana que o ser vago, o ser como termo de uma simples abstractio totalis,
já permite descobrir.
Outra consideração de Jacques Maritain encontra-se no ensaio intitulado Ser e
Movimento.329 A observação consiste em reconhecer que a realidade que se atinge pela ideia
de ser implica movimento. Esse movimento é em direção à perfeição desejada. Em todas as
coisas sempre haverá movimento e mudança. Daí a necessidade, para o ser, de se distribuir
em dois planos diferentes, o do ser em ato e o do ser em potência. Esses dois planos são
análogos, segundo o pensador.
Um texto importante que possibilita cobrir toda a reflexão deste trabalho remete à
educação e conscientização, sem as quais se torna mais complexo o caminho que
325 Ibid., p. 46-47. 326 Ibid. Quando responde a pergunta de Jean Beaufret: “Comment redonner un sens au mot Humanisme? ”
(“Como restaurar o sentido à palavra Humanismo? ”): em resposta da por Heidegger. Tradução livre. 327 Ibid., p. 55-56. 328 MARITAIN, Jacques. Sete lições sobre o ser. Tradução de Nicolás Nyimi Campanário. 3. ed. São Paulo:
Loyola, 2005. p. 42. 329 Ibid., p. 80.
113
necessitamos percorrer. O texto que acredito alcança tais convicções denomina-se Palavras e
Sinais, de Theodor W. Adorno,330 e reflete sobre educação após Auschwitz. Para que a
situação de Auschwitz não se repita é primordial a educação. Os comentários envoltos a esta
situação têm sido pouco abordados no exame de posturas totalitárias. Que Auschwitz não se
repita. Não apenas o genocídio, mas posturas políticas agressivas e sem propostas de levar
adiante acordos de paz têm raízes em momentos que não merecem ser repetidos, mas
lembrados no processo da educação.
As raízes devem ser buscadas, segundo Theodor Adorno, nos perseguidores, não nas
vítimas, exterminadas sob os pretextos mais mesquinhos. Devemos buscar os mecanismos
que levam as pessoas a cometer tais crimes contra a humanidade, mostrar a elas mesmas e
tratar de impedir que voltem a agir assim. Por outro lado, quando se fala em educação após
Auschwitz, Adorno refere-se à educação na infância, sobretudo na primeira; aí dar-se-ia o
esclarecimento geral a estabelecer um clima espiritual, cultural e social que não admita a
repetição daquilo; o clima da infância será a base para que o que tentar praticar o horror não o
faça, já que a base do bem estará lançada na infância.331
Tem-se levado em conta o problema do autoritarismo envolvendo dirigentes de nações
que terminam por cometer atos que ultrapassam o admissível. A uma mentalidade sadia
parece plausível invocar vínculos que ponham termo ao sádico, destrutivo, devastador,
mediante uma enérgica expressão interna: Tu não deves. A única força verdadeira contra o
princípio de Auschwitz seria a autonomia, razão por que Theodor Adorno cita Kant: “a força
para a reflexão, para a autodeterminação, para o não deixar-se levar”. 332
Adorno nota que precisamente nos maiores centros urbanos encontramos a tendência à
violência. A tendência global da sociedade engendra hoje, por toda parte, tendências
regressivas, ou seja, pessoas com traços sádicos e patológicos. Sempre que a consciência
estiver mutilada, isso se reverte para o corpo e para a esfera somática através de uma estrutura
compulsiva, propensa à violência. Adorno cita o esporte, que deveria ser melhor reconhecido,
considerando seu poder de integração.333
Visando reagir contra a repetição de Auschwitz, parece essencial esclarecer, em
primeiro lugar, como se forma o caráter manipulador, a fim de procurar, de forma mais
urgente, impedir seu surgimento mediante a modificação das condições que levaram a tal
formação; estudar os culpados, por meio de análise de comportamento, e discutir para
330 ADORNO, 1995. 331 ADORNO, 1995.p. 108-109. 332 Ibid., p. 110. 333 Ibid., p. 112.
114
conscientizar; estudar igualmente aquilo que se refere à consciência coisificada, a relação com
a técnica, o véu tecnológico, o fetiche pela morte daquelas pessoas, próprio daqueles que
sabiam que conduziriam suas vítimas para os campos e esqueceriam qual era a sorte que as
aguardava ali. 334
Por fim, Theodor Adorno pontua que a falta de amor hoje é uma falha de todas as
pessoas, dentro de suas atuais formas de existência. Um dos grandes impulsos do
Cristianismo foi o de extinguir a frieza que penetra em tudo. Assim cabe a todos uma
educação política para que não se repitam os horrores de Auschwitz, o que só seria possível se
pudéssemos tratar os assuntos abertamente, sem chocar poderes estabelecidos.
Hannah Arendt, na obra Entre o passado e o futuro, examina a crise na educação.
Uma crise só se torna um desastre quando retornamos a ela com juízos pré-formados,
furtando-nos à reflexão sobre novos caminhos. “A educação não pode desempenhar papel
nenhum na política, pois na política lidamos com aqueles que já estão educados. Quem quer
que queira educar adultos na realidade pretende agir como guardião e impedi-los de atividade
política”.335
Hannah Arendt esclarece que ao emancipar-se da autoridade dos adultos, a criança não
foi libertada, e sim sujeita a uma autoridade muito mais terrível e verdadeiramente tirânica.
As crianças banidas do mundo dos adultos ficarão entregues à tirania de seu próprio grupo, e a
reação da criança a essa pressão tende a ser ou o conformismo ou a delinquência juvenil, e
frequentemente é uma mistura de ambos.336
Uma crise na educação em qualquer ocasião originaria séria preocupação, mesmo se
não refletisse, como ocorre no presente caso, uma crise e uma instabilidade mais
gerais na sociedade moderna. A educação está entre as atividades mais elementares e
necessárias da sociedade humana, que jamais permanece tal qual é, porém se renova
continuamente através do nascimento, da vinda de novos seres humanos.337
A obra Educação – A solução está no afeto338, de Gabriel Chalita, reforça a
importância da educação que percorre os caminhos das pessoas e as fortalece em seus ideais.
Abrir um livro sobre educação, a começar pela família, demonstra a enorme preocupação com
essa instituição. Não se experimentou para a educação informal nenhuma célula social melhor
334 Ibid., p. 118. 335 ARENDT, 2014. p. 225. 336 Ibid., p. 230. 337 Ibid., p. 234. 338 CHALITA, 2004. p. 17.
115
que a família. É nela que se forma o caráter. Qualquer projeto educacional sério depende da
participação familiar.
Gabriel Chalita destaca que todo esse processo educacional trará reflexões importantes
e significativas para a cidadania. Esta palavra carrega um significado ideológico que traz a
exigência de direitos e a garantia de uma participação efetiva na sociedade, segundo o
pensador. Quando se analisa a Constituição Federal, fica-se perplexo diante de numerosas
possibilidades de participação que o cidadão encontra.339
A convivência humana, que de certa forma é bastante abrangente, refere-se àquela que
se dá com os vizinhos, os amigos, os sócios do clube, nos contatos que contaminam positiva e
negativamente a personalidade que se encontra em formação, como pontua Gabriel Chalita.340
O ser humano é social, mas não nasce preparado para viver em sociedade, sendo papel dos
pais, na primeira infância, conter os ímpetos desmedidos do pequeno, pela educação, um
processo que prepara o ser humano para o exercício da convivência.341
Sobre humanismo e educação cabe ainda o esclarecimento de Hannah Arendt, Entre o
passado e o futuro, pontuando sobre a educação para um mundo melhor:
A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para
assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria
inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. E educação é,
também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las
de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de
suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós,
preparando em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo
comum”.341
Edgard Morin nos mostra que a educação deve contribuir para a autoformação da
pessoa, ensinar a assumir a condição humana, ensinar a viver, e ensinar como se tornar
cidadão. Um cidadão é definido, em uma democracia, por sua solidariedade e
responsabilidade em relação a sua pátria. “O que supõe nele o enraizamento de sua identidade
nacional”.342
3.3 Uma proposta a ser refletida em Jürgen Habermas
339 Ibid., p. 110. 340 Ibid., p. 123. 341 Ibid., p. 247. 341 ARENDT, 2014, p. 247. 342 MORIN, 2014, p. 65.
116
Pensei em terminar o texto deste trabalho, que buscou refletir sobre questões de
biopolítica e biopoder nas esferas democráticas, sempre com a atenção voltada aos
movimentos totalitários nos processos democráticos, ou em condutas que se dispersam muito
de uma política voltada à vida. No texto de Theodor Adorno, Palavras e Sinais, há uma
proposta para a educação com a finalidade de evitar campos que são estranhos para a
sociedade e principalmente para governantes. Esses campos representam todas as realizações
positivas e negativas de atuação, são os campos das exceções, dentro da sociedade e na esfera
política.
Esses campos muitas vezes são onde encontram-se pessoas para serem educadas e
conduzidas. Adorno nos fala de ocuparmos lugares aonde pudesse ser levada a
conscientização da educação. Um desses lugares poderia ser atingido pelos meios de
comunicação, considerando o alcance que possibilitam.
Penso também na formação de algo como grupos e colunas móveis de educação,
formados por voluntários, que saíssem a campo e que, através de discussões,
tentassem suprir as falhas mais perigosas. Certamente, não ignoro que tais pessoas
dificilmente seriam bem recebidas. Mas não tardaria em constituir-se um pequeno
grupo de discussão em torno delas, que poderia, talvez, converter-se em foco de
irradiação.343
Com esse propósito, buscaríamos na Teoria da Ação Comunicativa de Jürgen
Habermas o amparo necessário para propagar, conscientizar e divulgar processos positivos
inerentes ao biopoder e à biopolítica. Em sua obra Pensamento pós-metafísico,344 ele
desenvolve a teoria da ação comunicativa, que pontua num dos ensaios o texto intitulado Agir
Comunicativo – Virada Linguística.
Jürgen Habermas345 explica que a utilização do termo agir social e interação, pode ser
analisado com o auxílio dos conceitos elementares agir e falar. Nas intenções mediadas pela
linguagem, esses dois tipos de ação, segundo o pensador, encontram-se ligados um ao outro.
O entendimento através da linguagem funciona da seguinte maneira: os participantes da
interação unem-se através da validade pretendida de suas ações de fala ou tomam em
consideração os dissensos constatados. Dessa maneira, através das ações de fala são levadas
pretensões de validade criticáveis, as quais apontam para um reconhecimento intersubjetivo.
343 ADORNO, 1995, p. 112. 344 HABERMAS, 2002c. 345 HABERMAS, Jürgen. A consciência moral e agir comunicativo. Tradução de Guido Antonio de Almeida.
2. ed. São Paulo: Tempo Brasileiro, 2013. p. 70-72.
117
Em outra consideração, Habermas amplia a possibilidade da ação da fala, o uso da
linguagem, compreensível para o ouvinte e aceita por ele, a qual se difunde também para as
consequências relevantes da ação, que resultam do conteúdo semântico do proferimento, seja
de modo assimétrico para ouvintes e falantes tomados isoladamente, seja de modo simétrico
para ambas as partes. “Quem aceita uma ordem, sente-se obrigado a executá-la; quem faz uma
promessa, sente-se no dever de cumpri-la, caso seja necessário; quem aceita uma asserção,
acredita nela e comporta-se de acordo com ela”.346
Jürgen Habermas nos apresenta a sociedade como mundo da vida simbolicamente
estruturado. Assim, qualquer ato da fala, através do qual um falante se entende com um outro
sobre algo, localiza a expressão linguística, sendo que a relação interpessoal assume as
possibilidades da linguagem, tornando possível um acordo entre os atores, racionalmente
motivados.347
Sempre vejo um objetivo de indução a um consenso entre as partes, através deste
processo de argumentação, voltado para o entendimento e esclarecimento. Declinei a Teoria
da ação Comunicativa, não buscando um aprofundamento na Teoria de Habermas, mas com o
propósito de restabelecer diálogos, como bem pontuou Theodor Adorno em seu texto
Palavras e Sinais. Teremos nestas situações universos voltados a ação e estratégias.
Se tomarmos como base a obra A Ordem do Discurso,348 de Michel Foucault,
entenderemos que existem, evidentemente, muitos outros procedimentos de controle e de
delimitação do discurso. São os discursos que exercem seu próprio controle, e pode-se supor
que há, muito regularmente, nas sociedades, uma espécie de desnivelamento entre os
discursos, e nós os conhecemos em nosso sistema de cultura, na forma de textos religiosos, ou
jurídicos, ou médicos, ou científicos
A ação desses discursos estaria carregada pelos efeitos do poder, e na exposição de
Jürgen Habermas, segundo Paulo Sergio Rouanet,349 em As razões do Iluminismo, relações de
poder predominam sobre as relações comunicativas, embora os processos argumentativos
possam superar certas estratégias do poder.
A partir daí Jürgen Habermas lança luz em todo este cenário, que realmente existe, e
atua, pois os efeitos do poder transitam pelos setores das atividades humanas e em nós, mas
toda relação e ação comunicativa sempre refaz situações que possibilitam novos rumos,
repensando a política nas esferas sociais para que a vida seja garantida.
346 Ibid., p. 72. 347 Id., 2002c, p. 95. 348 FOUCAULT, 1996, p. 21. 349 ROUANET, Paulo Sergio. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 159.
118
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Recordas-te do homem da caverna: a sua libertação das correntes, a sua conversão
das sombras para as figuras artificiais e a luz que as projeta, a sua ascensão para o sol [...]”.350
A partir desta colocação de Sócrates, em A República de Platão, temos a esperança
diante de tudo aquilo que pudemos refletir e declinamos neste trabalho, em especial a questão
levantada sobre a vida nua de Giorgio Agamben de que há uma libertação para o homem.
Sócrates ensina ainda que na Alegoria da Caverna temos os efeitos do estudo das ciências que
acabamos de examinar, que elevam a parte mais sublime da alma até a contemplação do mais
excelente de todos os seres.
Em outro momento da mesma obra, que colocamos no início de nosso trabalho, outra
passagem se destaca:
[...] semelhante ao viajante que, durante uma tempestade, enquanto um muro atrás
do qual possa se abrigar, os filósofos, constatando que a injustiça reina impune por
toda parte, sentem-se felizes em poder conservar-se em seu retiro isentos de
injustiças e de ações ímpias e passar seus dias sorridentes e tranquilos e com o
consolo de uma bela esperança.351
Na obra Ética a Nicômaco,352 Aristóteles, em seu livro V, assinala que todos entendem
por justiça a disposição moral que torna os indivíduos aptos a realizar atos justos que os faz
agir justamente e desejar o que é justo, e analogamente, por injustiça a disposição que leva os
indivíduos a agir injustamente e desejar o que é injusto. Aristóteles assume esta definição
como ponto de partida e desenvolvimento de seu texto.
Há outros apontamentos sobre a justiça no texto direcionado ao seu filho Nicômaco.
Pontua que o justo significa aquilo que é legal e aquilo que é igual ou equitativo, e o injusto
aquilo que é ilegal e aquilo que é desigual ou não equitativo. O transgressor da lei é injusto,
quanto àquele que a obedece, justo. Estabelece ainda que o que é legal é estabelecido pela
legislação e às várias decisões desta denominam-se regras de justiça.353
Outra observação aristotélica considera a justiça como uma virtude perfeita, sendo a
virtude principal. Sempre que se recorre a um juiz, dirige-se à justiça, pois o juiz ideal é, por
assim dizer, a justiça personificada. O juiz é um elemento mediano para poder estabelecer o
equilíbrio nas pretensões dos litigantes.354
350 PLATÃO, 2005, p. 284. 351 Ibid., p. 237. 352 ARISTÓTELES, 2013, p. 145. 353 Ibid., p. 146-147. 354 Ibid., p. 155.
119
Um homem injusto é alguém não equitativo, há uma desigualdade a ser analisada.
A injustiça pode incorrer na deficiência, no desequilíbrio, no demasiado muito, no demasiado
pouco.355 A razão pela qual é necessário que a lei governe, e não o ser humano, ampara-se no
sentido de se governar para todos, dentro de um processo de igualdade e não desigualdade.356
Quando Aristóteles trata das virtudes, estabelece algo importante que são as
faculdades como potência e seu desenvolvimento posterior. Isso seguramente não ocorre com
os nossos sentidos, ou seja, não adquirimos a faculdade da visão ou da audição, pelo simples
fato de vermos repetidamente, ou ouvirmos, mas simplesmente possuímos a visão e a audição.
Contrariamente às virtudes, porque nós as adquirimos por tê-las praticado, assim como
praticamos as artes.357
Nessa reflexão, Aristóteles desenvolve a ideia de que, através dos hábitos, vamos
aperfeiçoando as virtudes morais. Vamos aprendendo fazendo as coisas, e assim com a arte,
os homens se tornam construtores construindo casas e tocadores de lira tocando lira. Um dos
pontos de maior brilho encontramos quando Aristóteles raciocina que, analogamente, nos
tornamos justos realizando atos justos, moderados realizando atos moderados; legisladores
tornam os cidadãos bons treinando-os em hábitos de ação correta. “Nos compete controlar o
caráter de nossas atividades, considerando que a qualidade de nossas atividades determina a
qualidade de nossas disposições”.358
Gabriel Chalita, em Os dez mandamentos da ética, possibilita ampliarmos as várias
faces da excelência moral, tratando das virtudes, ou de como a excelência moral é
experimentada conforme as emoções e as vontades em questão, em cada situação que
vivenciamos. Sobre a ambição que corrói a autoridade e o poder, essa falha moral causa males
infindáveis na política. Temos por ideia, aponta Chalita, uma figura pública que se omite na
defesa dos cidadãos mais fracos, pela covardia, contra especuladores e exploradores da
sociedade. Noutro extremo encontra-se a pretensão. O pretensioso é aquele que aspira a coisas
que estão além de suas forças, de suas capacidades, e que exagera suas realizações buscando
não o bem como finalidade, mas sim o elogio sem mérito, a homenagem vazia de sentidos.
Este não tem vontade de caminhar em direção certa, que exige autoconhecimento e
compromisso com a excelência moral.359
355 ARISTÓTELES, 2013, p. 153. 356 Ibid., p. 162. 357 Ibid., p. 67-68. 358 Ibid., p. 69. 359 CHALITA, Gabriel Benedito Issaac. Os dez mandamentos da ética. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.
p. 93-105.
120
Na mesma obra Chalita afirma ser a justiça a excelência moral mais completa, pois
sintetiza as outras excelências. Ela é ao mesmo tempo individual e coletiva. Não há a
possibilidade de ser justo comigo mesmo sem ser justo com o outro. O autor considera a
consciência como uma boa sinalizadora do sentido da justiça. Enganar o outro é enganar a
sociedade, significa quebrar um contrato que se faz para que exista harmonia no mundo.
Neste sentido, esclarece ainda que temos apontamentos platônicos e aristotélicos, com
linhas importantes que servem de condutas quando no exercício de nossas atividades. É na
atividade política e privada que aplicaremos as virtudes. Não há como isolar cada uma delas e
diferenciá-las para cada momento.
Gabriel Chalita explicita ainda, em sintonia com John Rawls, que a justiça na política
necessita estar presente no povo, no governado. Muitas vezes as pessoas cobram uma postura
ética e digna de quem governa, e agem contrariamente aos princípios da mesma ética pela
qual clamam. Dessa maneira, pode-se perceber como é importante a relação entre justiça e
política, e como a redação de boas leis e a obediência a elas são fundamentais para que a
justiça política se traduza na forma de uma sociedade ética, de bem-estar social, e bem-
ordenada.
Por mais perfeitas que sejam as leis, sem a presença viva dos cidadãos da comunidade
elas serão inúteis. Assim, toda lei tem sua razão de ser nas pessoas: mas a comunidade precisa
cobrar seu cumprimento, além de obedecer a seus preceitos. A justiça enraizada no coração é
a justiça feita pelos cidadãos, e não apenas por leis; ela nasce e se nutre do coração do
homem, e não do papel que usamos para anotar as tantas regras de convivência que as
modernas sociedades, tão complexas, precisam para se organizar. A verdadeira justiça nasce
da alma, é um poder de deliberação cuja força provém do espírito. As leis devem ser seus
auxiliares, guias de orientação, mas a fonte de onde brota a excelência da justiça reside
mesmo, segundo a obra Os dez mandamentos da ética, no coração e na mente das pessoas.
John Rawls está presente no primeiro capítulo desta tese. A proposta é esta. Com
olhos em Aristóteles, invocamos a justiça para ter-se uma ideia da dimensão que representa
quando refletida e ponderada. Nos moldes de John Rawls, a justiça nos chega em forma de
contrato, mas procura apresentar-se de tal maneira que possamos acima de tudo discutir a
questão. Quando o autor aponta para a questão da posição original, partimos da suposição de
que as partes que estabelecerão a relação estão numa posição racional e de desinteresse
mútuo.
Uma sociedade bem-ordenada fortalece a autonomia das pessoas e irá encorajar seus
juízos ponderados sobre justiça, e que se tornam coletivamente racionais a partir da ideia e da
121
perspectiva da posição original; considerando que o ponto de vista do indivíduo, o desejo de
afirmar a concepção pública da justiça como fator determinante, como plano de vida, e
coerente com os princípios da escolha, tais juízos se estabelecem como: “1) todos aceitam e
sabem que os outros aceitam os mesmos princípios de justiça; e 2) as instituições sociais
básicas geralmente satisfazem, e geralmente se sabe que satisfazem, esses princípios”.360
A partir dessas considerações em John Rawls, já anunciadas anteriormente, é que se
apoiariam na comunidade a ideia e os valores de justiça.
Há que se considerar na ideia de construção de sociedade bem-ordenada a questão da
moralidade dos participantes, pois não se descarta que por ser ela uma característica humana,
o comportamento das pessoas que irão se comprometer e terão que lidar com uma situação
racional e de desinteresse mútuo deverá ser revisto, pois determinadas inclinações não
deverão fazer parte do acordo, partindo-se da suposição, conforme John Rawls observa, de
que as pessoas na posição original não são movidas por certas inclinações de sentimentos.
Assim sendo,
Uma sociedade bem-organizada satisfaz os princípios da justiça, que são
coletivamente racionais a partir da perspectiva da posição original; e o ponto de
vista do indivíduo, o desejo de afirmar a concepção pública da justiça como o fator
determinante de nosso plano de vida é coerente com os princípios da escolha
racional.361
A partir das escolhas, existe a proposta em valorizar a comunidade e sempre a busca
do consenso. Mesmo com as restrições iniciais, é a ideia de justiça que irá se desenvolver, que
se constrói a partir do consenso para o todo.
O desejo de afirmar a concepção pública demonstra o avanço para a esfera
comunicativa. A ação comunicativa atinge a publicidade, pois segundo John Rawls, é a
publicidade que permite que cada um justifique a sua conduta perante todos os outros (quando
a conduta for passível de justificativa), sem frustrações ou qualquer situação que venha causar
desequilíbrio ou perturbação.362
John Rawls ainda pontua que se levarmos a sério a ideia de união social e da
sociedade como uma união social composta dessas uniões, certamente a questão de tornar
pública a conduta é uma condição natural, pois ajuda estabelecer que uma sociedade bem-
360 RAWLS, 2002, p. 5. 361 Ibid., p. 643. 362 RAWLS, 2002, p. 649.
122
organizada é uma atividade unificada, na qual todos sabem que seguem esta concepção
reguladora e que cada um irá partilhar dos esforços em benefícios de todos.
Temos um grande desafio em estabelecer a concepção proposta. A partir de uma
sociedade de alta complexidade como a nossa, teríamos que admitir que buscar consenso
inicial ou básico sobre a esfera do dissenso demandaria buscar condições menos exigentes
para os participantes, conforme igualmente aponta John Rawls, e que possibilitassem a
construção viável de justiça. Vamos analisar em Jürgen Habermas uma possível saída pela
ação comunicativa.
A proposta de Jürgen Habermas poderá colaborar com a proposta de integração entre
indivíduos através do encontro no mundo vivido, um campo das interações naturais, onde os
agentes se encontram para conduzir o processo de argumentação, formular suas pretensões de
validade, criticá-las, aceitá-las, e chegar a um consenso.362
O mundo da vida é o pano de fundo da ação comunicativa, ali se encontram os grupos
sociais. A ação comunicativa irá coordenar as ações pelo aspecto do entendimento, com
caráter intencional. Nessa perspectiva, teríamos um universo de possibilidades de encontrar,
no mundo da vida, componentes importantes para viabilizar pretensões de justiça e igualdade.
Como resolveríamos a integração de subsistemas, mundo do trabalho, em oposição com
economia e capitalismo? 363
Com essa proposta, os grupos divorciados do Estado, ou aqueles que não se ajustam às
regras das leis, não estariam isolados do mundo da vida, e o processo comunicativo passaria a
ser regulado de forma a integrar mais as pessoas. Os agentes participantes tentam definir de
forma cooperativa os seus planos de ação, levando em conta sempre a situação que cada um
possui, através de processos de entendimento. Nem sempre este tipo de ação e cooperação
consegue prosperar em sociedades complexas, mas são passos que poderão promover ajustes
e integrações entre os atores.
Hannah Arendt chamou atenção para o despertar do indivíduo e a sua relação com a
esfera pública. Em defesa da vida, buscou nos apátridas todas as pessoas do mundo
desprotegidas e desamparadas por suas Nações e Estados. As condições de isolamento, maus
tratos e a perda da cidadania trazem para o cenário a importância e o sentido da liberdade, da
felicidade e do respeito ao próximo, antes mesmo do Estatuto dos Direitos Humanos. A
condição humana é sua preocupação. A preocupação com o cidadão, que deve estar na pauta
362 ROUANET, 1987, p. 160. 363 HABERMAS, 2002c.
123
das discussões, debates e outros eventos que se ocupam dos assuntos humanos com o olhar da
solidariedade em primeiro plano, e não somente porque a legislação determina ou prescreve.
Um processo de alienação instaurou-se no indivíduo. Um esquecimento da esfera
pública. É a liberdade política que preocupa Hannah Arendt. O que ela chama de isolamento
na esfera pública é chamado de solidão na esfera dos contatos sociais. A perda no terreno
político da ação é do homo faber, que apresenta este isolamento em função do seu trabalho;
deixando temporariamente o terreno da política, o homem isolou-se da esfera pública para
cuidar de si.
Este isolamento tem uma questão que percorreu as páginas das obras A Condição
Humana e Entre o passado e o futuro. Ao deixar a esfera dos contatos sociais, concentrando
suas vontades em si mesmo, afastando-se do espaço político, deixando de buscar interesse
pelas coisas públicas, pelo sentido da política, pela forma como as leis estão sendo elaboradas,
o indivíduo possibilita com este seu isolamento que este espaço público muitas vezes seja
dominado por governos e movimentos distantes do bem-estar público político e de interesses
de todos.
Desse modo, este espaço público que é tido como a realização das ações, da liberdade
política, das manifestações populares, das discussões voltadas ao bem social; tido como campo
de encontro para assuntos em comum e de interesses de todos, acaba sofrendo uma destruição
da sua capacidade política e da esfera da vida pública. O significado do espaço público, para
Hannah Arendt, deveria estar carregado pela ação, pela vida ativa. Agindo juntos todos têm
poder e podem estabelecer uma liberdade condizente com seu valor.
A preocupação de Hannah Arendt, em relação ao espaço público, envolve a questão da
liberdade do indivíduo. Estaria ligada à sua interação com aquele espaço. Em Michel Foucault
a liberdade estaria comprometida, pois quando trata sobre a disciplina, mecanismos de
controle e norma, a liberdade ficaria restrita, à medida que o indivíduo seria um objeto dócil-
e-útil, inviabilizando o exercício desta liberdade em seus afazeres como cidadão e indivíduo
social. O excesso de burocracia e seus mecanismos de informações já transformam o sujeito
em objeto dócil-e-útil.
Realmente as técnicas utilizadas para apurar dados privados dos indivíduos
encontram-se dentro de uma perfeição inigualável. O controle exercido sobre o social vem ao
encontro da proposta exposta por Michel Foucault. O poder e seus efeitos existem e acredito
na vigilância permanente como meio de controle. A ideia e a certeza em encontrar o poder
localizado em um centro único retirou-se de cena e temos agora uma sociedade disciplinar
124
acompanhada por constantes vigilâncias e punições. O sujeito é vigiado e acompanhado por
um poder que permanece e com o qual ele está em constante sintonia.
Pode-se concluir que o indivíduo moderno pode recorrer à sua capacidade de interação
e discernimento e reconhecer que também possui condições de transformar posições e
pensamentos. Mesmo sujeito de uma disciplina e vigilância a que é submetido pelo poder,
poderá exercer, a partir de ações, como bem esclarece Hannah Arendt, uma transformação no
meio em que vive.
O Estado democrático deve ser alimentado por políticas que contribuam com posturas
voltadas ao fazer viver. Nesse sentido, vimos em Michel Foucault a ação da biopolítica.
Foucault se refere à governamentalidade liberal e nos traz contribuições sobre aquilo que
chamou a nova arte de governar, o liberalismo. E no centro dele um mercado que se coloca
como uma indústria de consumo e promove profundas alienações nos indivíduos, como bem
já citou Hannah Arendt. Em Nascimento da biopolítica, Michel Foucault também aponta
nesse sentido.
E nos remete igualmente a essa nova arte de governar:
Uma reorganização interna que, mais uma vez, não pergunta ao Estado que
liberdade você vai dar à economia, mas pergunta à economia: como a sua liberdade
vai poder ter uma função e um papel de estatização, no sentido de que isso permitirá
fundar efetivamente a legitimidade de um Estado?364
A forma de Michel Foucault pensar as questões do poder e seus efeitos faz sentido.
A sociedade disciplinar, o controle e situações de vigilâncias constantes fazem parte dos
efeitos do poder e o poder não se revela como um “rei”, mas é anônimo. Dizer que o poder
teria dominado a vida ou dela tomado posse, é dizer que ele se incumbiu dela, é dizer que
conseguiu cobrir a superfície que lhe corresponde, como esclarece na obra Em Defesa da
Sociedade. O poder articula-se em constantes intervenções para manter o indivíduo em
vigilância permanente, o indivíduo sofre sua ação. Considerando toda cobertura que passou a
exercer sobre a vida, num controle da vida em geral, é então nesse sentido que Michel
Foucault questiona: “Como exercer o poder da morte, como exercer a função da morte, num
sistema político centrado no biopoder?”365
Se o poder a partir do século XIX incumbiu-se da vida, realmente promoveu
mudanças nas ciências para fazer aumentar a vida, para controlar seus acidentes, suas
364 FOUCAULT, 2008b, p. 127. 365 FOUCAULT, 2008a, p. 304.
125
deficiências e necessidades. Surge aqui o poder biopolítico, voltado ao bem-estar dos
indivíduos, e ao mesmo tempo retorna a questão: o interesse do homem como cientista, ou na
esfera governamental, na condição de governo, na função de biopoder, estabelece e faz
aumentar a vida, para na sequência a destruir, com armas de toda espécie, por um erro ou
descuido político em administração pública que se traduza em guerras, que inviabilizam e
neutralizam o biopoder e a biopolítica.
Esse descuido e decisões que não são observadas e terminam por engessar a vida
pública com suas consequências. O que falta no poder e na governamentalidade? Qual critério
deveria ser usado para afastar situações que possibilitam a existência de estado de exceção?
Giorgio Agamben se manifesta nesse sentido quando nos conduz para a esfera da vida nua.
Situações vivenciadas em Auschwitz denunciam a fragilidade do homem e o quanto encontra-
se desamparado. Havia uma política voltada à biopolítica negativa, em nome da morte. Assim,
não havia possibilidade da existência da biopolítica na esfera social, tampouco interesse pelo
biopoder (negativo). A vida do homem necessita estar no planejamento do biopoder e da
biopolítica, e encontrar lugar na pauta moderna com propostas mais concretas de reconduzir a
maneira da relação da política com a sociedade.
Os procedimentos do biopoder, conforme sinaliza Michel Foucault, em História da
Sexualidade I: a vontade de saber, confirmam o entendimento sobre os investimentos sobre o
corpo vivo e sua valorização. A biopolítica fará parte dos cálculos de transformação da vida.
Fazer viver e deixar morrer.366
O direito que antes era o de apropriar-se dos corpos e dos bens das pessoas, com o uso
da força, passa neste momento a salvar vidas. Mas refletir sobre as considerações de Michel
Foucault sobre o holocausto nos conduz muito bem ao entendimento de como os governantes
agiam sobre os corpos. Os limites da crueldade foram ultrapassados com o argumento de
salvar uma raça, levando ao propósito fazer morrer e deixar viver, agindo paralelamente com
fazer viver com deixar morrer. É o que se denomina de biopoder e biopolítica negativa. “O
poder de expor uma população à morte geral é o inverso do poder de garantir a outra sua
permanência em vida”.367
Giorgio Agamben tratou sobre tanatopolítica, a decisão sobre o morrer, fazer morrer,
inserida nas formas de lei penal não escritas, nos genocídios que podemos acompanhar pelo
mundo, assim como atos de guerra, invasões, e pessoas que morrem sem assistência médica
adequada em leitos hospitalares. Enquanto se faz uma política voltada à vida, que é a
366 Id., 2015, p. 146. 367 Ibid., p. 147.
126
biopolítica, pode-se ao mesmo tempo convertê-la na tanatopolítica, atingindo a vida social e
todos aqueles que buscam na política a vida. A postura adotada pelo biopoder e pela
biopolítica na modernidade ainda nos conduz às questões de violência, sem que as
Organizações Humanitárias possam intervir de forma mais eficaz.
O conceito de soberania dado por Giorgio Agamben, denunciado na obra Homo sacer
I, eleva o indivíduo, não a uma condição política ou jurídica, mas a uma situação que inclua o
vivente na política e no direito, possibilitando que não faça parte de comunidades que o
excluam, mas que ganhe participação na condição de cidadão. Giorgio Agamben faz uso da
expressão que irá bem definir essa situação. Sendo a exceção uma espécie de exclusão, para
aquele que foi excluído da norma geral a relação com a norma não existe mais, assim o
indivíduo é incluído na exceção.
A exceção é uma espécie da exclusão. Ela é um caso singular, que é excluído da
norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção é que aquilo que é
excluído não está, por causa disto, absolutamente fora de relação com a norma; ao
contrário, esta se mantém em relação com aquela na forma de suspensão. A norma
se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se desta. O estado de exceção não é,
portanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta da sua suspensão.
Neste sentido, a exceção é verdadeiramente, segundo o étimo, capturada fora e não
simplesmente excluída. 368
Zygmunt Bauman percorre em Modernidade Líquida369 os espaços vazios de
significados. São lugares não colonizados, com a presença da vida nua. Bauman relata nessa
obra que em uma de suas viagens a uma cidade populosa, grande e movimentada no Sul da
Europa, esteve presente para uma série de conferências. Ao chegar no aeroporto da cidade
destino, foi recepcionado por uma moça de alta cultura e financeiramente bem posicionada,
que o acompanharia em seus compromissos. Foi informado pela moça que o trajeto do
aeroporto ao hotel onde ficaria hospedado tomaria quase duas horas, devido ao tráfico intenso
e caminhos tortuosos dentro da cidade. Bauman relata que de fato demorou. Ao término de
seus compromissos e de volta ao aeroporto para retornar à sua cidade, informou a todos que
voltaria de taxi, para não incomodar as pessoas.
O trajeto de volta demorou menos de dez minutos. O motivo: o motorista tomou caminhos por
ruas e vielas pobres, abandonadas e cheias de pessoas rudes, morando em barracos e
esquecidas em suas periferias, conforme relata.
368 AGAMBEN, 2002, p. 25. 369 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001b. p. 121-123.
127
Bauman ressalva que a ênfase da moça bem-sucedida que o acolheu era verdadeira,
pois era o trajeto que ela conhecia e que fazia parte do roteiro de vida que tinha -- era o
sentido de vida e trajeto que compreendia. Conclusão. A cidade apresenta muitos caminhos,
cantos, pessoas, zonas indeterminadas, pessoas com vidas nuas que não conhecemos e não são
vistas por algum motivo. Ao referir-se a uma possível alienação do homem em relação ao
espaço público, Hannah Arendt apresenta esta preocupação em relação a processos de
abandono e esquecimento. “O vazio do lugar está no olho de quem vê e nas pernas ou rodas
de quem anda. Vazios são os lugares em que não se entra, não se acolhe, e onde se sentiria
perdido e vulnerável, surpreendido e um tanto atemorizado pela presença de humanos”.370
Zygmunt Bauman enfatiza ainda que a principal capacidade de demonstração de
civilidade é quando interagimos com pessoas estranhas, sem que essa estranheza ou frieza
possa contaminar laços de interação. É a capacidade de conviver com as diferenças, aceitar
outras propostas para adquirirmos e ampliarmos nossos entendimentos em relação à vida e à
civilidade.
Por essa reflexão Bauman nos conduz sobre o trabalho a ser realizado no espaço
público dentro de uma proposta de interação, pois aí se aglomera o maior número de pessoas
necessitadas destes exercícios de interação e civilidade. Os laços sociais estão fragilizados
pelos esforços em preservar à distância o “outro”, o diferente, o estranho e o estrangeiro,
inviabilizando a comunicação possível na esfera pública ou política.
As artes do diálogo e da negociação encontram-se num processo decadente, o que a
curto ou longo prazo, comprometerá a liberdade, sendo que é justamente a liberdade do
espaço público que também preocupa Bauman. O singelo caso que Zygmunt Bauman nos
relatou acima é ponto de reflexão para que a liberdade não fique atrelada aos mais capacitados
de todas as formas, mas atinja igualmente os lugares vazios, como se referiu. Pessoas
residentes em bairros pobres e isolados são estranhas e diferentes aos olhos de muitos, mas é
de liberdade e de possibilidades que Bauman excogita, de condições de participar de uma
sociedade condizente com a dignidade de todos.
Anthony Giddens enfatiza a natureza da política-vida como um certo nível de
emancipação. Não salienta que esta emancipação seria uma autonomia completa de vida, pois
vários fatores estão envolvidos, mas que possibilita ver o poder como gerador de
oportunidades e não hierárquico.371
370 BAUMAN, 2001b, p. 122. 371 GIDDENS, 2002, p. 197.
128
Na reflexão de Roberto Esposito, a vida política possui um sentido biopolítico que
parte da conservação da vida através da imunização, que é o sentido biopolítico da estrutura
do poder soberano na modernidade, e ao mesmo tempo uma negação existente dentro da
mesma comunidade social. Por esse raciocínio, Esposito parte de uma abordagem de modelo
de conservação da vida, através do processo de imunização, a um processo que nos levaria a
outro processo que não deixa de ameaçar a própria vida.
A partir de todo o exposto, buscamos percorrer a vida social concebida por Platão e as
instruções de Aristóteles sobre a política. A ideia foi buscar um reconhecimento da
importância do biopoder e da biopolítica no campo social. Desde a importância da liberdade à
importância de reconhecermos a existência dos efeitos do poder, nas esferas humanas. Dentro
desta reflexão, a obra de Theodor Adorno, Palavras e Sinais, mostra um caminho precioso de
oportunidades. E é justamente em Adorno que podemos ter a viabilidade de encontrar na
educação a maneira de impedir avanços e repetição de Auschwitz, ou zonas de exceção
estabelecidas em locais sociais. Há uma proposta de estudo e ação, que sugere ao homem uma
nova maneira de conduzir um possível mal-estar existente na sociedade.
No caso de Auschwitz, pessoas bem-intencionadas que não desejam que tudo aquilo
volte a acontecer citam com frequência o conceito de vínculo. A condição de as pessoas não
terem vínculos com outras poderia sugerir que ninguém foi responsável por aquilo. Nutrir
uma mentalidade saudável contribuiria para reconhecer os vínculos que temos com o mundo.
Theodor Adorno, em seu texto considera ilusório acreditar ou esperar que o apelo a vínculos
ou a exigência para que se tenha reconhecimento a certas situações aconteça sem um trabalho
maior de conscientização.372
Os chamados vínculos, tratados em Adorno, são um alerta que nos chama para a
solidariedade humana. Os chamados vínculos facilmente convertem-se em passaportes sociais
aceitos por uma pessoa com o fim de legitimar-se como honrado cidadão. São vínculos
descompromissados, permutáveis. Por isso, a recomendação do vínculo é importante e até
fatal. A única força verdadeira contra o princípio de Auschwitz estaria ligada à autonomia
interna, para o não deixar-se levar,373 quando Adorno nos esclarece sobre as questões de
nossas escolhas diante dos fatos da vida, e, portanto, do poder de escolha de cada indivíduo
frente aos acontecimentos de Auschwitz. Havia realmente interesses políticos e pretensões
audaciosas que burlaram a humanidade e violentaram qualquer tarefa em favor da biopolítica.
372 ADORNO, 1995, p. 108. 373 Ibid., p. 110.
129
E a escolha não é certamente uma vontade, embora pareçam intimamente
aparentadas. A escolha não pode ter por objeto impossibilidades: se um homem
dissesse que escolheu algo impossível, seria dado como um insano, mas é possível
que aspiremos (tenhamos vontade de) a coisas impossíveis, por exemplo, à
imortalidade. Também podemos aspirar àquilo que não pode ser assegurado graças à
nossa própria ação, por exemplo, que um ator ou um atleta em particular vença (uma
competição). Entretanto, ninguém escolhe o que não depende de si, mas somente o
que pensa poder ser atingido por suas próprias ações. Acrescente-se que a vontade
(aspiração) visa a fins de preferência a meios, ao passo que a escolha visa ao que
contribui para a consecução do fim; por exemplo, aspiramos a ter saúde, mas
escolhemos coisas que nos tornem saudáveis, aspiramos a ser felizes e esta é a
expressão que empregamos nesse sentido, mas não seria apropriado dizer que
escolhemos ser felizes visto que, genericamente falando, a escolha parece dizer
respeito às coisas que se acham dentro de nosso próprio controle.374
Para acompanharmos a proposta de educação de Theodor Adorno, que menciona o
processo educacional e processo de informação conscientizadora como forma de prevenir
atitudes mal-intencionadas e divulgar a importância dos fatos que vivemos, resgatei em Platão
o texto sobre a educação e o tempo de amadurecimento deste processo.
Proporcionar aos adolescentes e às crianças uma educação e uma cultura adequadas
à sua juventude; cercar de todos os cuidados o seu corpo na época em que ele cresce
e se forma, a fim de prepará-lo para servir a filosofia; em seguida, quando chega a
idade em que a alma entra na maturidade, reforçar os exercícios que lhe são
próprios; e, quando as forças declinarem e passou o tempo das atribuições políticas e
militares, dar baixa no acampamento sagrado, isentos de toda e qualquer ocupação
importante, àqueles que pretendem levar neste mundo a vida que tiveram vivido
com um destino digno dela.374
Há uma preocupação em A República em relação à educação da criança e do
adolescente, assim igualmente em A Política, de Aristóteles, demonstrando a importância
desses cuidados para que na maturidade os jovens possam saber estabelecer critérios dignos
no mundo.
O que muitas vezes impera são os mecanismos subjetivos que atuam nas relações.
Conhecer tais mecanismos pode tornar-se complexo, mas a conscientização poderá chegar
pelas mãos da educação, de diálogos, encontros, ações comunicativas, com o intuito de expor
a dimensão política de cada um.
Nas considerações de Jacques Derrida e Walter Benjamin, parece-me que a conjunção
entre o direito, violência e política estão operando dentro de uma sintonia negativa,
inviabilizando muitas vezes o combate à banalização do mal, ou do biopoder negativo.
Revisitar a forma de atuação desse processo é tarefa que nos cabe na condição de levar ao
374 ARISTÓTELES, 2013, p. 93. 374 PLATÃO, 2005, p. 239.
130
diálogo e à consciência. É no processo democrático que podemos colaborar com políticas
públicas satisfatórias e efetivas em favor da vida, pois o humanismo presente nas condições
humanas da vida é ponto essencial na modernidade, com tantos recursos disponíveis para
cumprir a tarefa da biopolítica e do biopoder nas esferas a que pertencemos.
131
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