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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP WILSON DE AZEVEDO MARQUES DEMOCRACIA NA ERA DA BIOPOLÍTICA E DO BIOPODER: QUESTÃO EM ANÁLISE DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2016

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

WILSON DE AZEVEDO MARQUES

DEMOCRACIA NA ERA DA BIOPOLÍTICA E DO BIOPODER:

QUESTÃO EM ANÁLISE

DOUTORADO EM DIREITO

SÃO PAULO

2016

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WILSON DE AZEVEDO MARQUES

DEMOCRACIA NA ERA DA BIOPOLÍTICA E DO BIOPODER:

QUESTÃO EM ANÁLISE

DOUTORADO EM DIREITO

Tese apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para obtenção do título

de Doutor em Direito, área de concentração:

Filosofia do Direito e do Estado, sob a

orientação do Prof. Dr. Gabriel Benedito

Issaac Chalita.

SÃO PAULO

2016

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Tese defendida e aprovada em ____/____/____, pela comissão julgadora:

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A Deus, e aos meus pais, sempre, Rubens de

Azevedo Marques e Rita de Favari Azevedo Marques.

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AGRADECIMENTOS

O desenvolvimento de um trabalho acadêmico leva formalmente quatro anos para encontrar

seu amadurecimento. Acredito na ação de um tempo muito maior, pois a estrada do

conhecimento vem antes e continua para outros aprendizados. Durante todo esse período são

muitas as pessoas que colaboram com orientações importantes que ajudam a alargar o

entendimento almejado. Deixo registrada a minha gratidão a todas essas pessoas por todo o

apoio nesse espaço de tempo.

Em primeiro lugar, ao Professor Doutor Gabriel Chalita, pela atenção, paciência, sabedoria e

ética, e porque soube tão bem ministrar as aulas de filosofia grega em profícuas manhãs na

PUC-SP. Possibilitou uma intimidade com a Ética a Nicômaco, de Aristóteles, ao mesmo

tempo que descortinou a importância da educação.

À Professora Doutora Márcia Cristina de Souza Alvim, pelas instruções e apresentação de

tantas obras do programa de Pós-Graduação, ao nos acolher e pontuar sabiamente cada

pensador que ali estudávamos. Agradeço em particular a disposição com que sempre atendeu

a todos nas questões do curso.

Ao Professor Doutor Willis Santiago Guerra Filho, que me possibilitou conhecer importantes

recessos da Filosofia do Direito e principalmente por suas propostas de aprendermos pensar

sob a perspectiva da diversidade.

Ao Professor Doutor Márcio Pugliesi, pelas orientações no mestrado, apontando caminhos

seguros ao pensar sobre Filosofia.

Ao Professor Doutor José Renato Nalini e Professor Doutor Guilherme Amorim Campos, por

aceitarem o convite para a Banca de Doutorado.

Aos Professores Doutores Sérgio Seiji Shimura e Margareth Anne Leister.

Aos amigos Solange de Oliveira, Elizabete Garcia, Anna Claudia Svoboda, Alexandre Castro,

Andréia Martin e Elizabeth Nantes Cavalcante, Alexandre Zagnoli, José Rubens de Azevedo

Marques, Ângela Pan, Henrique Carnio Garbellini, e Lívia Giorgio, professores e colegas

acadêmicos do curso da Pós, pelo envio de materiais que contribuíram para a elaboração do

meu trabalho.

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Ao profissional André Luís Jaschke, pela normalização e diagramação deste trabalho e pelo

acolhimento em momento tão importante.

À Professora Maria Celeste Arantes Corrêa, pela cuidadosa leitura e revisão gramatical.

A todos os funcionários da biblioteca da PUC-SP, pela paciência no atendimento.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes, pela concessão da

bolsa de estudos, e ao Rui, da secretaria da Pós, pelos constantes auxílios, paciência e

amabilidade com que me acolheu.

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MARQUES, Wilson de Azevedo. Democracia na era da biopolítica e do biopoder:

Questão em análise. 2016. 136 f. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, São Paulo, 2016.

RESUMO

O objetivo da pesquisa que deu origem a este trabalho é tratar o impasse da Democracia na

era do biopoder e da biopolítica e questões sobre o fazer viver. É abordada no trabalho a

questão de condutas totalitárias no processo democrático, na forma de governar. O método de

investigação utilizado toma por base os textos teóricos dos filósofos Hannah Arendt, Michel

Foucault e Giorgio Agamben. Recorro a outros pensadores e outras proposições que reforçam

a importância da ética e da justiça no seio político público, fortalecendo a ideia de uma

política humanista como contribuinte de uma sociedade ordenada. Nos tempos atuais, o poder

e seus efeitos sobrepõem-se a todo e qualquer valor, quando populações deslocam-se de seus

países em busca de segurança jurídica e política, no que chamamos de biopolítica. Resgatam-

se análises que nos alertam quanto a essas questões, com o intuito de impedir a banalização do

mal e do poder, evitando que as dimensões do poder estatal dentro de uma comunidade

acabem por frustrar direcionamentos sociais satisfatórios, quando deveriam estar a serviço da

ordem e da proteção, possibilitando a efetividade constitucional. Uma mudança no paradigma

da linguagem existente entre as relações de poder e política do fazer viver e deixar morrer é

ponto essencial junto às esferas sociais, facultando a efetividade da justiça e da biopolítica.

Palavras-chaves: Biopolítica. Biopoder. Política. Sociedade. Ética. Direito e totalitarismo.

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MARQUES, Wilson de Azevedo. Democracy in the age of biopolitics and of biopower:

issue in review. 2016. 136 f. Thesis and Doctorate in Law – Pontifícia Universidade Católica

de São Paulo, São Paulo, 2016.

ABSTRACT

The objective of the research, giving rise to this effort, seeks to address the problem of

democracy in the age of biopower and of biopolitics and questions about making a living.

There are at work, the issue of totalitarian behavior in the democratic process as a way to

govern. The research method used by research takes the theoretical writings of the

philosophers Hannah Arendt, Michel Foucault and Giorgio Agamben. I turn to other thinkers

and other propositions that contribute to the importance of ethics and justice in public policy

within, strengthening the idea of a humanistic policy as contributing to an orderly society. In

current times, the power and its effect supersedes any and all interest when people move from

their countries in search of legal and political security in the pursuit of biopolitics. Analyzes

are rescues who warn us about this issues, aiming to avoid the trivialization of evil and power,

preventing the dimensions of state power within a community, ends up preventing satisfactory

social directions when it should be at the service of the order and protection, allowing the

constitutional effectiveness. A change in the paradigm of language between the existing

power relations and policy make live and let die is essential point along the social spheres,

enabling the effectiveness of justice and biopolitics.

Keywords: Biopolitics. Biopower. Politics. Society. Ethics. Law and totalitarianism.

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MARQUES, Wilson de Azevedo. Democrazia nell'era della biopolitica e di biopotere:

questione in rassegna. 2016. 136 f. Tesi di Laurea in Diritto – Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, São Paulo, 2016.

RIASSUNTO

L'obiettivo della ricerca, dando vita a questo sforzo, cerca di affrontare il problema della

democrazia nell'era del biopotere e di biopolitica e domande su come effettuare una vita. Ci

sono al lavoro, la questione del comportamento totalitario nel processo democratico come un

modo per governare. Il metodo di ricerca utilizzato dalla ricerca prende le scritti teorici dei

filosofi Hannah Arendt, Michel Foucault e Giorgio Agamben. Mi volto verso altri pensatori e

altre proposizioni che contribuiscono alla importanza dell'etica e della giustizia nella politica

pubblica all'interno, rafforzando l'idea di una politica umanistica come contribuire a una

società ordinata. Nei tempi attuali, il potere e il suo effetto sostituisce ogni e qualsiasi

interesse quando le persone si spostano dai loro paesi in cerca di sicurezza giuridica e politica

nel perseguimento della biopolitica. Analisi sono salvataggi che ci mettono in guardia su

questo problema, al fine di evitare la banalizzazione del male e potere, impedendo le

dimensioni del potere statale all'interno di una comunità, finisce per prevenire indicazioni

sociali soddisfacenti quando dovrebbe essere al servizio dell'ordine e protezione, consentendo

l'efficacia costituzionale. Un cambiamento nel paradigma del linguaggio tra i rapporti di

potere esistenti e della politica rendono vivi e lascia morire è il punto essenziale lungo le sfere

sociali, permettendo l'efficacia della giustizia e della biopolitica.

Parole chiave: Biopolitica. Biopotere. La politica. La società. L'etica. Il diritto e il

totalitarismo.

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A honestidade se percebe nesses momentos, quando não há

testemunhas. Fazer o que é correto por medo das consequências é

a forma mais frágil de ser correto.

Gabriel Chalita

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 12

1 CAMINHOS DE SOCIEDADES BEM-ORDENADAS – UM

PROGRAMA A SER REFLETIDO 20

1.1 Algumas considerações sobre tais sociedades 20

1.2 Na República de Platão 22

1.3 A Política em Aristóteles 25

1.3.1 O legislador e o processo educacional 27

1.4 Sociedade bem-ordenada e a posição original em John Rawls 30

1.4.1 A necessidade do Estado e os grupos divorciados 35

1.4.2 Inversão de modelo: sociedades primitivas sem Estado e contra o Estado 38

1.4.3 Sobre a liberdade e as guerras nas sociedades primitivas 40

2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O PODER NA POLÍTICA E NA

SOCIEDADE – AUTORIDADE E LIBERDADE – PODER EM

MICHEL FOUCAULT E SEUS EFEITOS – SOCIEDADE DE

RISCO E CONSUMO 43

2.1 Algumas considerações sobre o poder 43

2.1.1 Sobre Poder, Autoridade e Liberdade 46

2.1.2 Sobre a Liberdade 48

2.1.3 Um Poder contrário que enfraquece o Biopoder e a Biopolítica 53

2.2 Estado de Exceção – Política e atualidade 56

2.2.1 Outras formas do direito à resistência 59

2.2.2 Sobre a inclusão e a dignidade humana 61

2.2.2.1 Inclusão das diferenças 61

2.2.2.2 Estado de Exceção e a Teoria da Corrupção 62

2.3 Biopolítica e Estado 68

2.3.1 Poder e Direito: Violência e política e a biopolítica 70

2.4 Nova cultura política e política diferencial 81

3 CAMINHOS DA BIOPOLÍTICA E DO BIOPODER –

REFLETINDO A QUESTÃO NA SOCIEDADE E NO ESTADO 84

3.1 Tempo da biopolítica e do biopoder 84

3.1.1 Sobre política e sistema de governo 93

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3.1.2 Biopolítica e Estado de Exceção 97

3.1.3 Vida nua 103

3.2 Capitalismo e biopolítica 105

3.2.1 Capitalismo e humanismo 108

3.2.2 Humanismo e educação 111

3.3 Uma proposta a ser refletida em Jürgen Habermas 115

CONSIDERAÇÕES FINAIS 118

REFERÊNCIAS 131

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INTRODUÇÃO

Em face do cenário em que vivemos e com a preocupação em trazer uma reflexão

sobre o papel da biopolítica e do biopoder junto às políticas públicas e a dinâmica social,

procurei declinar considerações sobre biopolítica e biopoder a partir de uma análise história

com o amparo de pensadores da envergadura de Michel Foucault, Giorgio Agamben e

Hannah Arendt, que possibilitaram entendimentos seguros e amplos, viabilizando uma

aproximação satisfatória da noção da bio-(política e poder) com a arte de bem governar.

Muitos outros pensadores e considerações caberiam neste trabalho, mas procurei

declinar aqueles que mais instigaram e ainda instigam de certa forma a busca de novos rumos

políticos e sociais. Confesso ter ficado fiel a tais obras, declinadas, traduzindo o pensamento

de poucos pensadores, para focar melhor no tema em minhas considerações. O primeiro

capítulo deste trabalho lança bases para a biopolítica e o biopoder, tema desta tese, e defende

que não haverá uma política satisfatória para a vida humana em geral, enquanto a política

pública e a sociedade não se voltarem para o verdadeiro interesse da política vida, permitindo

que o “fazer viver e o deixar morrer”1 sejam algo distante da normalidade. O resgate da obra

A República, de Platão, mesmo com seu modelo de utopia social, nos apresenta os traços de

biopolítica e biopoder. Firmes nos diálogos, os personagens gregos tramam por essa política

de cidade ideal.

As tensões que venham ocorrer, próprias de qualquer sistema social, se não

ponderadas, engessam a democracia, inviabilizando todo consenso que possa existir. Nesse

sentido, o convite ao cenário da obra platônica é o ponto elevado, pois remete aos dias atuais,

às tratativas para encontrar a maneira mais harmoniosa de administrar a política e a cidade.

É impressionante como muito do que se encontra na obra platônica permite refletir o

presente, assim como A Política2, de Aristóteles, pois ambas estabelecem bases seguras senão

definitivas para que o homem, em toda sua trajetória enquanto político, público ou anônimo,

possa saber usar, em seus atos, critérios sábios firmados inicialmente aos moldes aristotélicos,

com perspectivas de viabilizar uma sociedade bem-ordenada que contemple justiça e

igualdade social para todos.

1 Expressão utilizada por Michel Foucault em sua obra. FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. Aula

de 14 de janeiro de 1976 – Collège de France. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes,

2008a. p. 304-312 e em FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I – A vontade de saber. Tradução de

Maria Thereza da Costa Albuquerque e outros. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015. p. 145-174. 2 ARISTÓTELES. A Política. Tradução de Nestor Silveira Chaves. 2. ed. Bauru, SP: Edipro, 2009.

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A ciência política e a filosofia do direito têm se dedicado a este tema, para alinhar

estudos às condutas da administração pública e social, contribuindo com análises para que o

poder em toda sua estrutura não esqueça que em sua organização deve existir o princípio da

justiça, igualdade e liberdade. A ciência política apresenta seus fundamentos sociológicos por

meio da sociologia jurídica. No contexto social, o homem depara-se com inúmeros conflitos,

pois faz parte de uma sociedade altamente complexa. A sociologia jurídica contribui para

atenuar a demanda de soluções e responder a anseios que o indivíduo tem na esfera social.

A modernidade não consegue oferecer respostas a tantas demandas que possam

solucionar crises e conflitos existentes, como demonstra a busca incessante do amparo do

judiciário. No pensamento sociológico de Jürgen Habermas a elaboração da teoria

comunicativa propõe o consenso, pela ação comunicativa dos sujeitos interessados, sob um

“ideal regulativo”3, possibilitando abertura para um direito mais consensual do que litigioso.

Pensar sobre política humanista e Poder parece um tema distante de nossa realidade e

que ao mesmo tempo se faz necessário. Distante porque assistimos hoje a políticas sendo

desenvolvidas para atender interesses nem sempre em busca de soluções condizentes com a

realidade social dos respectivos países que as promovem.

Considerando os tempos complexos e sombrios que vivemos, enquanto assistimos a

avanços e retrocessos no cenário público político e no cenário social, repensar a forma de

fazer política, com uma concepção humanista possibilitará que a biopolítica seja uma nova

arte de governar e não apenas uma promessa na esfera da democracia.

Considerando o cenário mundial, a questão do uso de armas potentes e dos interesses

por regiões de outros países e suas riquezas, fortalece ainda mais a tendência de que os meios

de violência sejam instrumentos do poder. A possibilidade de uma guerra nuclear é discutida

como se populações não existissem no cenário.

John Rawls nos apresenta de forma hipotética um contrato social entre pessoas livres e

racionais que assumem entre si um compromisso de justiça. Mesmo que pareça impossível,

cabe-nos ver nessa teoria uma preocupação com a igualdade, as questões sociais e a

solidariedade. Parece, ao mesmo tempo, que a teoria busca resgatar uma pureza entre os

3 Pelo “ideal regulativo”, seria obtido um consenso a partir do reconhecimento intersubjetivo de pretensões de

validade criticável. Com isso, chega-se ao ápice da crítica. Teoria de Jürgen Habermas com o conceito de

“ação comunicativa”. Cf. VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas e o direito brasileiro. São

Paulo: Saraiva, 2009. p. 27-39. A Teoria da Ação comunicativa é uma das propostas finais deste trabalho.

Habermas vai pensar a vinculação entre a “teoria dos atos de fala” e o conceito de “mundo vivido”. Ainda, “o

mundo vivido emerge, então, como condição de possibilidade do processo comunicativo: ele é reservatório de

evidências e de convicções inabaladas, que constitui o sentido intersubjetivamente partilhado a partir do qual

as pessoas podem comunicar-se”. Cf. ARAÚJO DE OLIVEIRA, Manfredo. Reviravolta Linguístico-

Pragmática na Filosofia Contemporânea. São Paulo: Loyola, 2006. p. 334.

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participantes. Como cogitar de um contrato dessa magnitude em uma sociedade complexa

como a nossa? Seria necessário partirmos igualmente da visão de que todos poderiam

comportar-se no sentido de ações justas.

O objetivo que norteia John Rawls é elaborar uma teoria da justiça que se afigure uma

alternativa, apresentando a justiça como a primeira virtude das instituições sociais, a

possibilitar que entre indivíduos com objetivos e propósitos dispares uma concepção

partilhada de justiça estabeleça vínculos de convivência cívica. O papel da justiça como

descrito nos capítulos iniciais de sua obra tem o papel de cooperação social, a ideia de justiça

como equidade elevando ao nível mais alto o sentido das relações quando destinadas ao bem.4

John Rawls esclarece ainda que na ausência de uma certa medida do que é justo e

injusto fica claramente mais difícil para os indivíduos coordenar seus planos com eficiência, a

fim de garantir que os acordos, mutuamente benéficos, a todos sejam garantidos. Embora a

justiça deva ter prioridade na sociedade para construção de uma sociedade bem-ordenada,

considerando ser ela uma das virtudes mais importantes das instituições, é necessário

observar, para que isso aconteça, a disposição interna de cada membro e a valorização do

processo educativo que colabora com todo esse processo.

Apresento a propósito uma inversão no modelo ideal de sociedade, com as obras A

sociedade contra o Estado e Arqueologia da Violência5 de Pierre Clastres. Nestas obras

podemos verificar como as comunidades primitivas comportam-se sem o Estado. Procurei

fazer um paralelo entre certos grupos de nossa sociedade que não desejam a presença do

Estado e aquelas comunidades primitivas analisadas por Pierre Clastres.

No capítulo segundo, inicio com algumas considerações sobre o poder. Escorei-me em

reflexões de Hannah Arendt, considerando seu rico conhecimento e exemplos sobre as

questões totalitárias que ainda hoje afligem à humanidade: guerras, bombardeios, invasões de

terras e países e políticas voltadas ao particularismo, quando os governantes deveriam estar a

serviço da humanidade ou de seus próprios países.

É neste aspecto que a política humanista sofre abandono por partes dos governantes,

permitindo que haja o rompimento de uma política destinada às obrigações humanitárias,

destacando aqui a importância da cidadania, nos moldes de Hannah Arendt, e em favor de

uma política interessada num totalitarismo autoritário, excludente e ideológico.

4 RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenira Maria Rimoli Esteves. 2. ed. São

Paulo: Martins Fontes, 2002. 5 CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política. Tradução de Theo

Santiago. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. E do mesmo autor CLASTRES, Pierre. Arqueologia da

Violência: Pesquisas de antropologia política. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify, 2011.

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Sobre sermos uma comunidade política interessada em movimentos divergentes de

reconstrução dos direitos humanos, Celso Lafer, em A Reconstrução do Direitos humanos,

nutre uma preocupação em relação à biopolítica deixada apenas a planos de estudo, em

benefício de um único interesse que se destina aos particularismos econômicos, que afastam

políticas humanitárias em prol das comunidades mais necessitadas de políticas públicas.

A noção de Estado, como esclarece Celso Lafer, elaborada pela teoria jurídica,

necessita de elementos como governo, população, território e soberania. Quanto à atenção

recebida pela comunidade política em relação a esses quatro elementos, nem sempre há o

reconhecimento deles: é quando o governo de dada nação despreza políticas que favorecem

sua própria comunidade (interna de um país), ou desconhece a de outros países, em caso de

ataques e guerras, desrespeitando cidadania, nacionalidade e a organização política. Ficam

assim realçados pontos de divergência em relação aos direitos humanos.

Já em A Condição Humana,6 Hannah Arendt lança críticas em relação ao homem,

pontuando que a nova esfera social transformou as comunidades modernas em sociedades de

operários, concentrando-se em torno do labor. Passou a existir um aumento de produtividade

do trabalho.

Anthony Giddens, em Modernidade e identidade,7 defende uma política emancipatória

que busca libertar os indivíduos e grupos de limitações que afetam de forma negativa suas

vidas. Essa política implicaria igualmente valores morais a serem reconhecidos e adotados,

tornando importante a igualdade, justiça e participação.

O estímulo a ideias de emancipação humana percorre um processo de libertação das

desigualdades e opressões existentes nas divisões de classes, como esclarece Giddens:

“opressão é diretamente uma questão de poder diferencial, aplicado por um grupo para limitar

as oportunidades de vida de outro”.8

6 ARENDT, Hannah A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2009. 7 GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. 8 Giddens em sua obra trata de “política emancipatória” no importante sentido de participação na luta contra

desnível das igualdades como proposta de diminuir exploração. “A política emancipatória opera com uma

noção hierárquica do poder, ele é entendido como a capacidade de um indivíduo ou grupo exercer sua vontade

sobre os outros. A política emancipatória se ocupa de reduzir ou eliminar a exploração, a desigualdade e a

opressão. Giddens esclarece que “a exploração significa que um grupo, digamos, as classes superiores em

relação às classes trabalhadoras, os brancos em relação aos negros, ou os homens em relação ás mulheres,

monopoliza de maneira ilegítima recursos ou bens desejados, negando ao grupo explorado acesso a eles. As

desigualdades podem referir-se a quaisquer variações nos recursos escassos, mas o acesso diferencial a

recompensas materiais recebeu em geral a maior importância. A opressão é diretamente uma questão de poder

diferencial, aplicado por um grupo para limitar as oportunidades de vida de outro. Como outros aspectos da

política emancipatória, o objetivo de libertar as pessoas de situações de opressão implica a adoção de valores

morais. A política emancipatória torna imperativos os valores de justiça, igualdade e participação”. Outra

questão abordada por Giddens esclarece “a emancipação significa que a vida coletiva é organizada de tal

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Com a crise mundial atual, comandada pela ordem econômica e política, visualizamos

um desespero generalizado em que os direitos humanos parecem ser tratados como alheios ao

universo humano, à espera de resoluções mundiais e legislativas para apresentação de

propostas que emancipem o homem dessa política desinteressada. Mesmo sob o clima de

proteção de países europeus e críticos em torno do assunto, a crise mundial dos imigrantes

sírios é exemplo de que vivemos uma era do totalitarismo, e a reconstrução dos direitos

humanos muitas vezes se torna mais difícil quando se perde o direito de ter direitos.

A estrutura política pode ser entendida como o conjunto de pessoas organizadas dentro

de plenários e assembleias legislativas, não apenas defendendo suas particularidades

religiosas, financeiras e políticas, mas trazendo contribuições satisfatórias na esfera do Estado

para fortalecer a organização jurídico-política. Caminhos para resoluções políticas tratadas

por Estados-Nação têm contrariado comunidades sociais e políticas de outros países, que

terminam por denunciar a presença do totalitarismo revestido do nome de proteção

internacional, sendo exemplos atuais disso bombardeios indiscriminados a comunidades civis.

O indivíduo é a parte mais importante do cenário. Zygmunt Bauman trabalha a

identidade do indivíduo como uma identidade fragilizada, não alcançada pelo Estado de bem-

estar social9, e vítima da sensação de insegurança e daquilo que chama “corrosão de caráter”

10, provocada por injustiças e falta de liberdade presentes na modernidade.

maneira que o indivíduo seja capaz, num ou noutro sentido, de ação livre e independente nos ambientes de sua

vida social. A liberdade e responsabilidade permanecem em uma espécie de equilíbrio. O indivíduo é libertado

de limitações impostas a seu comportamento como resultado de condições exploradoras, desiguais ou

opressivas; mas ele não é libertado em termos absolutos. A teoria de justiça de Rawls constitui um importante

exemplo de uma versão da política emancipatória” Cf. GIDDENS, 2002, p. 195-196. 9 O Estado de bem-estar social, um Estado inclinado a fazer apenas isso, estava por essa razão genuinamente além

da esquerda e da direita: um apoio sem o capital nem o trabalho não poderiam sobreviver, muito menos mover-se

e atuar. Ainda, “Não por acaso o Estado de bem-estar social não é bem visto pela imprensa. Dificilmente lemos

ou ouvimos, hoje em dia, sobre as centenas de milhares de seres humanos salvos do extremo desespero ou do

colapso por zelosos trabalhadores sociais; ou daqueles milhões para os quais as provisões do bem-estar fazem

toda a diferença entre a terrível pobreza e uma vida decente; ou para as dezenas de milhões para os quais a

consciência de que a ajuda viria quando necessária significava que podiam enfrentar os riscos da vida com a

coragem e a determinação sem as quais a vida bem-sucedida, ou pelo menos digna, é impensável. Mas lemos e

ouvimos falar muito sobre as centenas de milhares que trapaceiam, abusam da paciência e da benevolência e que

vivem à custa das autoridades públicas; ou de centenas de milhares, ou talvez milhões, cuja “vida de pensão

governamental” as transformou em desocupados ineptos e preguiçosos, incapazes e sem vontade de pegar um

trabalho quando este aparece no caminho deles, preferindo viver às expensas do contribuinte que trabalha duro”.

Bauman esclarece ainda em sua obra que a sociedade de risco em que vivemos coloca o indivíduo em situações

de angústia e ansiedade pelas razões que expõe. Esclarece ainda que o Estado de bem-estar social encontra-se

num processo defensivo. Um exemplo que o autor nos coloca em relação a todo este processo que vivenciamos

em relação à sociedade é: “Estamos de volta à estaca zero. Depois de um século de feliz coabitação marital da

ética com a razão racional-instrumental, o segundo parceiro optou por deixar o matrimônio e a ética permaneceu

sozinha para cuidar do lar, antes compartilhado. E quando está sozinha, a ética é vulnerável e não acha fácil

manter sua posição. A pergunta “Sou por acaso o guardião do meu irmão? ”, que há pouco tempo se pensava ter

sido respondida de uma vez por todas, e assim raramente era escutada, volta a ser feita, e de maneira cada vez

mais vociferada e beligerante. E as pessoas que desejam uma resposta afirmativa tentam desesperadamente, mas

sem nenhum sucesso claro, fazê-la soar convincente na fria e comercial linguagem dos interesses. O que

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17

Identidade é condição fundamental para que possamos conhecer comunidades e seu

desenvolvimento numa sociedade. Uma comunidade de “indivíduos que acreditam” faz parte

de um programa que permite que se conheçam os caminhos que percorrem, suas ideias e

ideais, bem como a maneira como agem. Não ser aceito ou obrigar comunidades a retirarem-

se de seus territórios, ou países, contribui profundamente no processo de anulação de uma

identidade social de um povo e permite que a construção social de uma realidade fique

prejudicada.

Mesmo que a chamada globalização tenha ampliado possibilidades em todas

instâncias, Bauman relata que milhares de refugiados e migrantes sofrem com a questão da

identidade e da nacionalidade.

Há uma reflexão sobre o texto de Jacques Derrida, intitulado Força de Lei,11 que nos

aponta o direito em estado de tensão, por violências intrínsecas ao próprio direito.

No terceiro e último capítulo, a reflexão debruça-se sobre questões do biopoder e da

biopolítica. O texto tenta demonstrar como inumeráveis ações e regimes de governo poderiam

contribuir melhor com a atuação de uma política em favor da vida, e como, ao contrário,

inviabiliza-se a atuação da política em favor da vida com a adoção de posturas totalitárias

deveriam fazer em vez disso é reafirmar, de maneira audaz e explicita, a razão ética para o Estado de bem-estar

social, a única razão necessária para que ele justifique sua presença numa sociedade humana e civilizada. Não

existe nenhuma garantia de que o argumento ético fará muita diferença numa sociedade em que a competividade,

os cálculos de custo-benefício, a lucratividade e outros mandamentos do livre mercado reinam supremos e unem

forças no que, de acordo com Pierre Bourdieu, vem rapidamente se tornando nosso pensée unique, a crença além

de qualquer questionamento; mas a questão da garantia não está aqui nem ali, já que o argumento ético é a única

linha de defesa que resta ao Estado de Bem-estar social. ” Cf BAUMAN, Zygmunt. A sociedade

individualizada: Vidas contadas e histórias vividas. Tradução de Jose Gradel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

p. 33, 101-105. “A questão da identidade também está ligada ao colapso do Estado de bem-estar social e ao

posterior crescimento da sensação de insegurança, com a corrosão do caráter, que a insegurança e a

flexibilidade no local de trabalho têm provocado na sociedade. Estão criadas as condições para o esvaziamento

das instituições democráticas e para a privatização da esfera pública, que parece cada vez mais um talk-show

em que todo mundo vocifera suas próprias justificativas sem jamais produzir efeito sobre a injustiça e a falta

de liberdade existentes no mundo moderno. ” Nesta questão a tese tratará sobre os marginalizados pela política

pública, sejam os que sofrem pela corrupção ou abandonados de seus interesses como cidadãos. Bauman nos

fala sobre como a globalização conseguiu criar contrastes e poderia ser mais eficaz em sua capacidade.

BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

p. 11. 10 Ainda sob a questão de identidade do indivíduo e identidade social Bauman relatou que perdeu o direito de

ensinar por ter sido privado de sua cidadania polonesa o pensador declarou “minha exclusão foi oficial,

promovida e confirmada pelo poder habilitado a separar quem está “dentro” de quem está “fora”, quem faz parte

de quem não faz e assim eu não tinha mais direito ao hino nacional polonês…” Bauman declara ainda que lhe

tiraram a identidade, “o tipo de identidade que me foi negado e tornado inacessível.” Bauman cita este episódio

porque reúne, resumidamente, “a maioria dos dilemas inquietantes e das escolhas obsedantes que tendem a fazer

da “identidade” um tema de graves preocupações e agitadas controvérsias. As pessoas em busca de identidade se

veem invariavelmente diante da tarefa intimidadora de “alcançar o impossível [...]” Cf. BAUMAN, Zygmunt.

Identidade. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005 2005, p. 15-18. 11 DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés.

2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

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18

quase sempre desfavoráveis. Percorrem-se algumas das principais obras de Michel Foucault,

entre elas o Nascimento da Biopolítica.12

O conceito de poder abordado nas linhas deste trabalho também ampara-se em Michel

Foucault, para quem o poder se oculta na estrutura da linguagem, podendo ser considerado

uma representação social na forma que se apresenta. Para o pensador, o poder hoje apresenta-

se como uma rede descentrada de confrontações corporais face a face13.

Dentre os cuidados para com o corpo social, na política do biopoder, em Foucault, há

um controle que não se encontra centrado e localizável, mas descentralizado e produzindo

efeitos de controle social e individual. O termo biopolítica, aparece com mais claridade

quando visualiza-se uma forma de relacionar-se dentro de uma política que busca trabalhar o

sentido da vida em sociedade e em prol dessa vida.

A preocupação foucaultiana é o modo de operação do biopoder e os critérios utilizados

na condução do corpo social e político, já que há um elemento político na biopolítica que não

atua em favor da vida.

Ainda neste sentido, Giorgio Agamben14 nos lembra qual o sentido da vida no

chamado “estado de exceção”, durante a segunda guerra mundial, quando, na

indissociabilidade da política e do direito, a vida era capturada pelo ordenamento vigente,

desrespeitados e invalidados quaisquer processos de direitos humanos e reconhecimento do

cidadão de ter direitos. Alerta-nos ainda contra a decadência da democracia moderna e o olhar

cego que se nutre para uma política mais humanizada.

A substituição da ação pela fabricação deixou o indivíduo moderno vulnerável e

totalmente ancorado na ideia de consumo, e o fez abandonar critérios importantes de análise

de sua existência como político. É assim que em sua obra A Condição Humana, Hannah

Arendt enuncia que o homo faber fará com que tudo tenha ausência de significados.

Na parte final do trabalho, o humanismo é enaltecido como forma de possibilitar luz a

humanidade, através do próprio humano, que nos parece encontrar-se distante de sua essência.

12 FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins

Fontes, 2008b. 13 No texto intitulado “Desmascaramento das ciências humanas pela crítica da razão: Foucault”, Jürgen Habermas

esclarece: “o importante em nosso contexto é como Foucault funde esses significados tangíveis do poder e o

sentido transcendental das operações sintéticas que Kant havia atribuído a um sujeito e que o estruturalismo

compreende como um acontecer anônimo, isto é, como uma operação descentrada pura, regida por regras, com

elementos ordenados de um sistema construído de maneira supra-subjetiva.” (Habermas apud Fink-Eitel,H. em

Analítica do poder de Foucault). Na genealogia do Foucault o “poder” é, antes de tudo, um sinônimo dessa pura

atividade estruturalista [...]” Cf. HABERMAS, Jürgen. O Discurso filosófico da modernidade. Tradução de

Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2002b. p. 358. 14 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.

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Acredito que no processo educacional, como pontuam Hannah Arendt e Gabriel Chalita15, há

uma saída. O caminho percorrido iniciou-se com a possibilidade de uma sociedade bem-

ordenada, e muitas coisas interferem e favorecem para isso acontecer.

Por fim, buscando Jürgen Habermas em sua Teoria da Ação Comunicativa, na obra

Pensamento pós-metafisico,16 vislumbramos possibilidades de equilíbrio e diálogo entre os

participantes, em face também da proposta efetuada por Theodor Adorno, em Palavras e

Sinais,17 pela perspectiva de coordenar ações por meio do entendimento e da apresentação do

caráter intencional dos agentes.

15 CHALITA, Gabriel. Educação: a solução está no afeto. São Paulo: Gente, 2004. 16 HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno

Siebeneichcheler. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002c. 17 ADORNO, Theodor Wiesengrund. Palavras e Sinais. Modelos críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995.

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1 CAMINHOS DE SOCIEDADES BEM-ORDENADAS – UM PROGRAMA A SER

REFLETIDO

1.1 Algumas considerações sobre tais sociedades

Na atual configuração da modernidade, em que a sociedade e o Estado necessitam

voltar-se à cooperação mútua para a construção e manutenção de uma sociedade bem-

ordenada, levando em consideração a alta complexidade do sistema social e as expectativas

dos agentes sociais em terem seus direitos correspondidos pela efetividade da política Estatal,

declinarei neste capítulo linhas para buscar um modelo de sociedade nos moldes daquela

apresentada por John Rawls, em Uma Teoria da Justiça,18 e por Platão, em A República19,

bem assim outros pensadores.

John Rawls parte da proposta de que, uma vez acordados os princípios fundamentais, é

possível resgatar dos participantes desse acordo uma postura satisfatória que venha favorecer

aqueles que dele participam. Há a ideia de contrato, pois os agentes, em posição de iguais,

livres e racionais, possuem interesses nos princípios de justiça, e buscam no compromisso

acordado estabelecer propostas de equilíbrio ético e moral.

O interesse é buscar, na teoria de John Rawls, situações que trazem contribuições

voltada à justiça social em todo seu conjunto, impedindo, desta forma, que no regime

democrático tenhamos posturas distantes dessa ordem, para que o cidadão, que poderia

usufruir de uma política mais centrada em seus anseios, não encontre propostas distorcidas e

pouco satisfatórias.

Em John Rawls20 temos o conceito de sociedade bem-organizada como aquela

estruturada, segundo o pensador, para promover o bem de seus membros, e regulada por uma

concepção comum de justiça. Trata-se de uma sociedade em que todos aceitam e sabem que

os outros aceitam os mesmos princípios da justiça. Desta forma, quando se diz todos, devem-

se incluir governantes e governados, nessa proposta, pois há uma concepção pública de justiça

e seus agentes têm o desejo de agir em conformidade com tal concepção.

No segundo capítulo apresentaremos posturas e políticas que quando não aplicadas

com o propósito de formar uma sociedade bem-ordenada, terminam por favorecer um Estado

de Exceção constante, vigendo dentro da democracia e impedindo que a biopolítica e o

biopoder atuem em benefício de todos.

18 RAWLS, 2002. 19 PLATÃO. A República. São Paulo: Spienza, 2005. 20 RAWLS, op. cit., p. 504.

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O divórcio entre sociedade e Estado surge, na modernidade, quando os laços que

possibilitam integração social e um ordenamento político estável sofrem fratura, colocando

em questão o caráter contratual de uma das partes.

O viés burocrático faz parte da organização Estatal, o que de certa forma desequilibra

as forças entre a esfera pública de conteúdo estatal e a sociedade civil, tornando confusa a

relação de ambas, que em meio às complexidades que a burocracia provoca. Atuam inclusive

os particularismos políticos que, distantes dos propósitos sociais, tornam a relação frágil e

parcial, numa constante competitividade entre o reino das necessidades, pertencente à

sociedade, e o Estado, que não revê seus aspectos e posturas burocráticas.

Outra situação é a integração entre moralidade e poder, que traz a questão da

interiorização de valores, seja pela sociedade, seja pela esfera política pública.

A reprodução do comportamento numa sociedade, por partes dos cidadãos e

governantes, como o respeito às normas e seu cumprimento, revela o estágio de

comprometimento existente em seus agentes.

Jessé Souza, em A construção Social da Subcidadania,21 esclarece que obedecer uma

certa regra poderá ser antes de tudo algo aprendido e não um conhecimento. O modo de ser de

indivíduos ou determinados grupos que compõem a esfera social explica desta maneira a

composição atual de nossa sociedade.

Aponta Jessé Souza que a vida quotidiana é atendida por atividades práticas, que vão

além de nossas representações conscientes. Alerta ele sobre “a necessidade de reconstruir a

prática não articulada, que comanda nossa vida cotidiana, e articular a hierarquia de valores

escondida e opaca que preside nosso comportamento[...]”22. Considerando que práticas sociais

cristalizadas e reproduzidas numa esfera social que não condizem com aspectos morais, há a

necessidade de se introduzir um ambiente de maturidade para que este campo opaco e

intransparente não seja a regra dos comportamentos.

Combate-se nesse sentido a redução de atos considerados “naturais” e que violam

posturas que impedem o equilíbrio. Jessé Souza trabalha com o pensamento de Charles

Taylor, que não é objeto de nosso estudo, mas contribui para a construção de propósitos para

uma sociedade bem-ordenada. Assim, as linhas centrais, segundo Jessé Souza, da

reconstrução tayloriana da hierarquia valorativa estarão implícitas na formação do indivíduo:

Controle da razão sobre as emoções e pulsões irracionais, interiorização progressiva

de todas as fontes de moralidade e significado e entronização concomitante das

21 SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade

periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003. p. 64. 22 Ibid., p. 65.

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virtudes do autocontrole, auto-responsabilidade, vontade livre e descontextualizada e

liberdade concebida como auto-remodelação em relação aos fins heterônomos.23

Esse conjunto de virtudes constitui a dignidade.

Há uma crise ética sendo discutida no interior dessas questões, quando reconhecemos

problemas que inviabilizam a cidadania, impossibilitando de reconhecermos o espaço público

em que vivemos, bem como a ausência de processos básicos na esfera social e na esfera

política pública, necessários ao equilíbrio social.

O início da estrutura de cidade bem-ordenada encontra-se na obra platônica e

aristotélica, como proposta e traço inicial para a formação dos direitos fundamentais, onde se

alicerça e começa a se firmar nossa estrutura e tradição.

1.2 Na República de Platão

Antes de abordarmos Uma Teoria da Justiça, de John Rawls, reproduzo a experiência

e as condições políticas e sociais de nossa tradição, que encontra-se alicerçada em A

República, de Platão. Nessa obra, Platão descreve situações comuns a todos que vivem numa

sociedade, na busca de uma fórmula ou garantia da cidade ideal, política e socialmente livre

de situações anárquicas e com administradores interessados no bem geral. Há interesse na

existência de harmonia e crença em uma política que não fracassaria em seus propósitos.

No livro I, o conceito de justiça é discutido, em um dos diálogos de Trasímaco, que

assim interpela:

[...] acreditas que os governantes das cidades, os que são realmente governantes,

olham para os seus súditos como se olha para carneiros e que objetivam, dia e noite,

tirar deles um lucro pessoal. Foste tão longe no conhecimento do justo e da justiça,

do injusto e da injustiça, que ignoras que a justiça é, na realidade, um bem alheio, o

interesse do mais forte e daquele que governa e a desvantagem daquele que obedece

e serve; que a justiça é o oposto e comanda os simples de espírito e os justos; que os

indivíduos trabalham para o interesse do mais forte e fazem a sua felicidade

servindo-o, mas de nenhuma maneira a deles mesmos. Aqui tens, muito simples

Sócrates, como é necessário encarar o caso do homem justo é em todos os lugares

inferior ao injusto”, e ainda “[...] a justiça significa o interesse do mais forte e a

injustiça é em si mesma vantagem e lucro. 24

Em resposta, no diálogo entre Trasímaco e Sócrates, este responde:

[...] se queres saber o que penso, não estou convencido e não creio que a injustiça

seja mais vantajosa do que a justiça, mesmo quanto a liberdade de praticá-la e não se

23 SOUZA, 2003, p. 72-73. 24 PLATÃO, 2005, p. 31.

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é impedido de fazer o que se quer. Mesmo que um homem, meu caro, seja injusto e

tenha o poder de praticar a injustiça por fraude ou à força: nem por isso estou

convencido de que tire daí mais proveito que da justiça.25

Ainda, no livro I e na sequência do livro II,26 Sócrates faz o diálogo com os

personagens Glauco e Adimanto, definindo o sentido do ato de governar e os interesses que

devem ser afastados, como visar o próprio bem. O ato de governar deve direcionar-se ao

governado, e no intento de aplicar a justiça junto à comunidade. Os governantes devem visar

o bem dos governados, buscando estar a serviço da comunidade.

Em outro diálogo entre Trasímaco e Sócrates, o primeiro defende a justiça como sendo

o interesse do mais forte, apontando que a parte mais forte em cada cidade é o governo:

Cada governo faz as leis para seu próprio proveito: a democracia, as leis

democráticas; a tirania, leis tirânicas, e as outras a mesma coisa,

estabelecidas estas leis, declaram justo, para os governados, o seu próprio

interesse, e castigam quem o transgride como violador da lei, culpando-o de

injustiça. Aqui tens, homem excelente, o que afirmo: em todas as cidades o

justo é a mesma coisa, isto é, o que é vantajoso para o governo constituído;

ora, este é o mais forte, de onde se segue, para um homem de bom

raciocínio, que em todos os lugares o justo é a mesma coisa: o interesse do

mais forte.27

A natureza da justiça não fica restrita apenas a um único indivíduo, mas a toda a

cidade. Será necessário buscar a natureza da justiça nas cidades e em seguida buscar no

indivíduo para descobrir a semelhança da grande justiça da pequena.28

Em diálogo na mesma obra, Sócrates esclarece:

Nenhum governante seja qual a natureza de sua autoridade, quando se coloca na

proposta de governante, na medida em que é um governante, não terá por objetivo e

não ordena sua própria vantagem, mas a do indivíduo que governa e para quem

exerce sua arte; é com vista ao que é vantajoso e conveniente para esse indivíduo

que diz tudo o que diz e faz tudo o que faz.29

Nos livros II ao V d’A República, os diálogos mostram uma evolução para as questões

dos princípios de justiça e para uma justiça que consiga atender aos propósitos da organização

social. Um dos primeiros princípios de justiça a ser contemplado é a solidariedade, ou seja,

25 PLATÃO, 2005, p. 32. 26 Ibid. 27 Ibid., p. 25. 28 Ibid., p. 64. 29 Ibid., p. 30.

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todos contribuem para o bem da coletividade em que vivem; outra questão é a organização

das pessoas dispostas a realizar o bem comum. Como pondera o diálogo de Sócrates:

Então, cada um deverá desempenhar a sua função para toda a comunidade.

O lavrador, por exemplo, garantirá sozinho a alimentação de quatro, gastando quatro

vezes mais tempo e trabalho em fazer a provisão de trigo que terá de repartir com os

outros. Mas não seria preferível que, trabalhando apenas para sí, só produzisse a

quarta parte dessa alimentação na quarta parte do tempo, destinando as outras três

quartas partes a procurar moradia, vestimentas e calçados, tratando ele mesmo das

suas coisas, sem se importar com a comunidade?30

Nos livros VI e VII a interpretação da Alegoria da Caverna permite ao cidadão atentar

para os aspectos do conhecimento e da liberdade, pois lança possibilidades de se vislumbrar

novos caminhos, vencer o medo, as sombras, buscar zonas diferenciadas de atuação.

A conquista da liberdade percorre os caminhos da educação, sem a qual é impossível

deter crises que desestabilizem o progresso de uma sociedade e a organização da política

pública. Platão discute sobre educação, na Alegoria da Caverna, e propõe um Estado ideal.

Logo que a nossa cidade se tenha desenvolvido, irá aumentando como um círculo.

Um bom sistema de educação e instrução, quando preservados de toda e qualquer

alteração, cria bons caracteres e, por outro lado, os caracteres honestos que

receberam essa educação tornam-se melhores do que aqueles que os precederam,

sob diversos aspectos e, entre outros, sob o da procriação, como se verifica com os

outros animais. 31

Os livros VIII e IX da obra A República tratam do declínio e empobrecimento da

cidade, decorrentes da concentração do poder existente nas oligarquias e tiranias. Descrevem

posturas que governantes podem adotar de forma totalitária, ocupando-se da política com

interesses particulares e não para a comunidade, impondo o tipo de governo pela intimidação.

Assim, visualiza-se, nesta passagem da obra, o uso do poder pelos governantes, quando

direcionado e fundamentado na própria vaidade.

Esta questão cria laços com nosso próximo capítulo, que trata do poder, da liberdade e

de regimes totalitários na atualidade, em contribuição ou não com a biopolítica.

Quando um Estado democrático, sedento de liberdade, passa a ser dominado por

maus chefes, que fazem com que ele se embriague com esse vinho puro para além

de toda decência, então, se os seus magistrados não se mostram inteiramente dóceis

e não lhe concedem um alto grau de liberdade, ele castiga-os, acusando-os de serem

criminosos e oligarcas.32

30 PLATÃO, 2005, p. 65. 31 Ibid., p. 138. 32 PLATÃO, 2005, p. 324.

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25

O diálogo político da obra A República declina a melhor forma de governo.

Juntamente com a melhor forma de governar, e em meio a esse intento, encontramos traços da

biopolítica e do biopoder sendo trabalhados a partir dos diálogos dos personagens. Os

assuntos referentes à esfera humana foram tratados, para que a política e suas articulações

obtivessem praticidade. A preocupação com a ideia do bem, e questões sobre o poder de

governar visando o interesse comum, vemos no capítulo VII. No capítulo VI, os diálogos

denunciam a corrupção como comportamento contribuinte dos males à cidade e aos cidadãos,

destaque importante que contraria a proposta do bem.33

1.3 A Política em Aristóteles

Na obra A Política, composta por VIII livros, abordarei os livros VII e VIII, onde

Aristóteles idealiza a forma de vida mais agradável para os indivíduos e as qualidades civis

necessárias à felicidade da cidade, finalizando no livro VIII, onde expõe sobre a educação.

Em A Política Aristóteles esclarece que a polis, sendo uma comunidade de iguais,

compondo-se de várias qualidades e condições de vida, deve visar uma vida que seja sempre

potencialmente boa e melhor. Apontam-se, nesta obra, traços de biopolítica e biopoder, já

apontados na obra A República. Dois trechos particularmente indicam essa forma de governar,

voltada ao bem comum, pois compete à esfera da gestão da vida pública dar ao cidadão uma

vida condizente com as necessidades existentes:

Pois que se deve garantir a saúde dos habitantes e aquilo que para ela mais contribui

é a situação da cidade em lugar determinado, e a uma exposição prevista, pois que é

preciso, em segundo lugar, servir-se apenas de águas salubres; lutar-se-á por esses

dois pontos sem o menor desfalecimento; porque o que mais frequente e comumente

serve à necessidade do corpo é justamente o que mais contribui para a saúde. Tal é a

influência natural da água e do ar. Também, nos Estados sabiamente administrados,

observar-se-á se as águas naturais não são todos iguais, e se não são abundantes,

separar-se-á as que servem para a alimentação e as que se usam para outros fins.34

Em outro trecho, referido à forma adequada e ideal para a convivência humana,

podemos vislumbrar traços do aparecimento da cidadania política, no entendimento de se

preservar o direito natural, como também a presença da biopolítica. Aristóteles esclarece:

33 Ibid., p. 235. 34 ARISTÓTELES, 2009, p. 249.

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Sob os outros aspectos, a cidade deve ter uma situação favorável às ocupações dos

cidadãos e dos guerreiros. Assim, é preciso que os guerreiros dela possam

facilmente sair, e que, ao contrário, seja difícil ao inimigo nela penetrar e fazer-lhe o

bloqueio. É preciso também que tenha água e recursos naturais em abundância. E se

ficar privada dessa vantagem, pode-se obtê-la cavando grandes reservatórios para

águas pluviais, a fim de que não falte água, se as comunicações com o resto do país

forem interrompidas pela guerra.35

O cidadão em particular e o Estado em geral devem buscar o melhor, inclinando-se

para o melhor objetivo. Resta examinar, segundo Aristóteles, se a felicidade do indivíduo é ou

não a mesma que a do Estado. O pensador levanta questões para serem refletidas nesse

sentido:

[...] será mais proveitoso ocupar-se dos negócios públicos e deles participar, ou

libertar-se de todo político e viver como estranho no Estado? Depois, qual a melhor

constituição e o modo de administração perfeita que quase todos tomem parte no

governo ou dele se excluam certas pessoas, admitindo a maioria? [A resposta:] é

preciso, pois, que o melhor governo seja aquele que possua uma constituição tal que

todo cidadão possa ser virtuoso e viver feliz; isto é evidente.36

Assim, as constituições boas visam o bem comum, a felicidade, não isolada e restrita a

apenas certos setores da cidade ou Estado.

Sobre essa citação aristotélica, Hannah Arendt constata, em A Condição Humana, que

“[...] certamente só a fundação da cidade-estado tenha possibilitado aos homens passar toda a

sua vida na esfera pública, em ação e em discurso, na convicção de que essas duas

capacidades humanas são afins uma da outra, além de ser a mais alta de todas [...]”37. Neste

sentido, vemos a necessidade do entrosamento do homem entre a vida privada e pública,

considerando que cada cidadão pertence às duas ordens de existência. 38

A efetividade dos direitos fundamentais e do bem-estar estabelecidos na sociedade; a

liberdade; assim como a distribuição racional do pode; o ato de governar sintonizada com as

necessidades e gestão da saúde, transporte, educação, bem como de outros setores, quando se

tornam preocupação de políticas públicas, é o biopoder atuando com políticas favoráveis à

vida. Esses traços aparecem em Aristóteles igualmente no trecho abaixo, apresentando bases

para a modernidade:

Trata-se agora de fazer sobre o assunto o próprio governo, quais são aqueles que

devem compor a cidade, e que qualidades devem possuir para que seja feliz e bem

administrada. Duas condições são necessárias para alcançar o bem geral:

35 ARISTÓTELES, 2009, p. 248. 36 Ibid., p. 232. 37 ARENDT, 2009, p. 34. 38 Ibid., p. 33.

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27

primeiramente, que haja um ideal e que o fim que se propõe seja louvável; depois,

que se encontrem quais são os atos que podem conduzir a esse fim. Essas duas

condições podem ou não se concordar. Ora, o fim é excelente, mas erra-se no meio

de atingi-lo. Umas vezes tem-se todas as possibilidades de alcançá-lo, mas o fim

proposto é mau. Outras vezes erra-se ao mesmo tempo no fim e nos meios, como

acontece com a medicina, quando julga mal do estado de saúde do corpo, e não

encontra os meios de atingir o fim que se propõe. Ora, nas artes e nas ciências, é

preciso apontar magistralmente ao alvo e aos meios que a ele conduzem.39

Ainda destaco:

É claro que todos os homens aspiram à vida boa e à felicidade; mas uns podem

atingi-las, outros não. A vida boa necessita de uma certa quantidade de meios, que

deve ser pequena para aqueles que são melhor dispostos e maior para os que têm

disposições menos favoráveis. Outros, finalmente, extraviam-se desde os primeiros

passos na procura da felicidade, embora possuam todas as faculdades exigidas. Já

que o objeto que nós nos propomos é a procura da melhor constituição, já que a

melhor constituição é aquela que dá melhor administração da cidade, é a que lhe

proporciona a maior soma de felicidade, segue-se que é preciso antes saber o que é a

felicidade.40

1.3.1 O legislador e o processo educacional

Destaco, ainda, como um dos pontos importantes da construção de cidade feliz e bem

ordenada, sob a ótica política de Platão e Aristóteles, o livro VIII da obra A Política, que

enaltece o processo educacional, ligando-o a uma das importantes preocupações que o

legislador deva ter. “O legislador deve garantir às crianças que se educam uma constituição

robusta e mais possível [...]”.41 Ainda, “Ninguém contestará, pois, que a educação dos jovens

deve ser um dos principais objetos de cuidado por parte do legislador; porque todos os

Estados que a desprezam prejudicaram-se grandemente por isso”.42

Aristóteles ressalta que não se pode deixar os cidadãos na ignorância sobre o que é a

educação, e como é preciso dirigi-la. Nota que o sistema da época dificulta o exame sobre o

que ensinar, pois já não mais se entendiam os que ensinavam quanto às matérias que os

alunos deviam aprender para chegar à virtude e à vida perfeita. Mister seria ocupar-se da

inteligência ou das qualidades morais do homem?43 Neste sentido, o pensador preocupa-se

com a honra, pois deve ser a primeira instrução existente, e não a ferocidade. Os lobos e os

animais, segundo o pensador, não arrostariam um perigo em nome da honra, mas os homens

39 ARISTÓTELES, 2009, p. 252. 40 Ibid., p. 252. 41 Ibid., p. 260. 42 Ibid., p. 267. 43 ARISTÓTELES, 2009, p. 268.

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de bem disto seria capaz. As crianças não podem ficar na ignorância absoluta das coisas que

necessitam saber, ou seja, podem às vezes ser educadas demasiadamente para outras coisas,

quando deveriam tomar conhecimento daquelas que as preparariam para ser um homem de

bem. 44

Aristóteles ainda sublinha que os lacedemônios empregam o máximo de atenção na

educação dos filhos, mas já não havia acordo e entendimento quanto à matéria que a criança

deveria aprender para chegar à virtude ou adquirir qualidades morais:

O sistema atual de educação dificulta esse exame; não se sabe ao certo se se devem

ensinar as artes úteis à vida, ou os preceitos de virtude, ou a ciência de pura

recreação. Todos esses têm os seus partidários, e nada está bem determinado sobre a

virtude; os princípios variam sobre a própria essência da virtude, de tal forma que as

opiniões divergem sobre os meios de exercê-la.45

Nesse tema, ainda, Aristóteles destina ensinamentos para o seu filho, Nicômaco,

preocupado com sua educação e felicidade. Trata sobre a importância da ética, abordando

várias situações da vida. Percebe-se o porquê das considerações em A Política, quando

considera a educação como um dos principais objetos de cuidado por parte do Estado, mas

declina considerações sobre o papel da família na educação dos filhos, em Ética a Nicômaco.

Tratando-se de ética e política, parece contraditório em face de alguns hábitos

desenvolvidos por pessoas públicas quando na administração dos afazeres públicos estatais.

Aristóteles, em Ética a Nicômaco, livro II, ensina que a virtude se estabelece de duas formas:

intelectual e moral. Intelectual porque pode ser produzida ou ampliada pela instrução recebida

pela experiência e o tempo, ao passo que a virtude moral ou ética é o produto do hábito. “As

virtudes, portanto, não são geradas em nós nem através da natureza nem contra a natureza. A

natureza nos confere a capacidade de recebê-las, e essa capacidade é aprimorada e

amadurecida pelo hábito”.46

Se o hábito faz parte do processo educacional, pois o adquirimos com a vivência

familiar e social, aquele que for se dedicar às coisas da política pública terá bons exemplos se

adquiriu bons hábitos. Considerando a posição aristotélica pela qual a virtude não é gerada em

nós, mas aprendida, os hábitos precisam ser contraídos, e o mesmo deve acontecer com as

ações virtuosas.

44 Ibid., p. 271-272. 45 Ibid., p. 268, item 1337b. 46 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Edson Bini. 3. ed. São Paulo: Edipro, 2013. p. 67.

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Num posicionamento sobre educação e política, Hannah Arendt esclarece que sempre

que em questões políticas o juízo humano fracassa ou renuncia à tentativa de fornecer

respostas, podemos estar diante de uma crise; pois este juízo anunciado é o senso comum em

virtude. Toda crise destrói uma parte do mundo, alguma coisa comum a todos nós, na falência

do bom senso, bom senso na vida política.47

Como existe um único objetivo para a cidade, segue-se que a educação igualmente

deve ser única para todos, administrada em comum -- e não entregue a particular, como se faz

hoje --, dirigindo cada qual a educação de seus filhos, e dando o gênero de instrução que

melhor lhe parecer, pontua Aristóteles em A Política. O pensador grego destaca ainda que

aquilo que é comum a todos deve também ser aprendido em comum. Ao mesmo tempo, é

preciso não imaginar que cada cidadão pertença a si próprio, e sim, que todos os cidadãos

pertencem à cidade, “porque todo indivíduo é membro da cidade, e o cuidado que se põe em

cada parte deve, naturalmente, harmonizar-se com o cuidado que cabe a tudo”48

Percebe-se que o pensamento de Aristóteles privilegia o ensino comum a todos,

buscando assim a integração da comunidade, a uniformização dos pensamentos em relação ao

bem comum e das intenções de cada membro em relação aos compromissos que o cidadão

teria, evitando que cada um viesse apresentar formas diversas e até opostas aos preceitos da

virtude.

Na proposta aristotélica vemos este processo em todos os capítulos de Ética a

Nicômaco. Há preocupação com o desenvolvimento de virtudes que devem estar no adulto,

em especial a justiça, quando este ocupar-se de cargos de relevância na carreira pública, ou,

nas atividades habituais do quotidiano.

Um governo justo parece não tirar qualquer proveito de seu cargo, pois não dirige a

si próprio uma porção maior das coisas geralmente boas, a não ser que isto seja

proporcional aos seus méritos; pelo contrário, ele se empenha pelos outros, o que

concorda com o dito mencionado anteriormente, de que a justiça é o bem do outro.

E, por conseguinte, alguma recompensa deve lhe ser dada sob a forma de honra e

dignidade. São aqueles que não se satisfazem com tais recompensas que se tornam

tiranos.49

47 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva,

2014. p. 227. 48 ARISTÓTELES, 2009, p. 267. 49 Id., 2013, p. 162.

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1.4 Sociedade bem-ordenada e a posição original em John Rawls

A relação de textos envolvendo as ideias de Platão, Aristóteles e Hannah Arendt visa

demonstrar a importância e preocupação de se conquistar e formar uma sociedade mais feliz e

ordenada. O Estado Ideal e as instruções políticas de Platão e Aristóteles, mesmo dentro das

dificuldades modernas em alcançar tais propostas, são modelo de reflexão para a

modernidade. Lidar com a estrutura social e Estatal, na qual todos buscam justas vantagens, já

que nem sempre são compatíveis com o melhor do ponto de vista social e político público, é

propor defender uma política humanista, mesmo hipoteticamente, na alternativa de posição

original em John Rawls.

Na proposta de uma sociedade bem-ordenada, trabalhada em Uma Teoria da Justiça,

equidade e justiça (primeira virtude das instituições sociais)50 são capazes de atuar no sistema

social conjuntamente. John Rawls defende que uma sociedade mais justa tem de ofertar

igualdade de oportunidades a todos. Existe na teoria de John Rawls uma preocupação social,

de tal ordem que o que violaria a justiça de outro não poderia ser aceito, havendo o cuidado de

se estender à sociedade a cooperação. John Rawls contempla ainda a questão da

desobediência civil como instrumento da liberdade do indivíduo, caso a liberdade do cidadão

não encontre sintonia na legislação vigente com os atos de governo.

A colaboração mútua preconizada e compartilhada em sociedade, como declinado, no

mesmo sentido manifesta-se em São Tomás de Aquino:

Alguns sustentaram que a prudência não se estende ao bem comum, mas se refere

somente ao bem próprio, pois pensam que o homem não deve buscar senão seu

próprio bem. Mas esta posição é contrária à caridade, que não busca seu próprio

interesse, como afirma o Apostolo (1 Cor 13,5). Daí que também o Apóstolo diga de

si mesmo: Não buscando o que é útil para mim, mas o que é de interesse geral, para

que se salvem (1 Cor 10,33).51

São Tomás de Aquino ainda trata sobre aquilo que é contrário a reta razão, que busca

julgar o bem comum melhor que o bem particular, na Questão 47, artigo 12 – A prudência

não é só para os governantes, mas também para os súditos.52 Neste sentido, convém àquele

que governe ou participe da direção a necessidade de exercer a prudência e a razão. A

prudência não pertence aos títulos que a representam, mas ao homem racional, segundo o

juízo de sua razão.

50 AQUINO, DE TOMÁS. A Prudência: A virtude da decisão certa. Tradução de Jean Lauand. São Paulo:

Martins Fontes, 2005. p. 15-16. 51 Ibid., p. 15-16. 52 Ibid., p. 18.

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Uma sociedade considera-se bem-ordenada não apenas quando encontra-se planejada

para promover o bem de seus membros, mas quando está regulada por uma concepção pública

de justiça: 1) todos aceitam e sabem que os outros aceitam os mesmos princípios de justiça, e

2) as instituições sociais básicas geralmente satisfazem, e geralmente se sabe que satisfazem,

esses princípios.53

John Rawls esclarece que em sociedades concretas, raramente estabelecem-se como

bem-ordenadas nesse sentido, pois o que é justo e injusto encontra-se sob disputa e discussão,

visto que há uma discordância sobre estes princípios. Melhor explicando, cada qual possui

uma concepção de justiça, distanciando-se dos termos que os associam entre si. Cada qual

defende seus interesses e se utiliza dos meios legais existentes para atribuir direitos e

deveres.54

Quando fica aberto à interpretação de cada indivíduo o entendimento do conceito de

justiça, produz-se uma divisão inadmissível nas vantagens apropriáveis a cada um. É nessa

direção que John Rawls esclarece:

Um certo consenso nas concepções da justiça não é, todavia, o único pré-requisito

para uma comunidade humana viável. Há outros problemas sociais fundamentais,

em particular os de coordenação, eficiência e estabilidade. Assim, os planos dos

indivíduos precisam se encaixar uns nos outros para que as várias atividades sejam

compatíveis entre si e possam ser todas executadas sem que as expectativas

legítimas de cada um sofram frustrações graves. Mais ainda, a execução desses

planos deveria levar à consecução de fins sociais de formas eficientes e coerentes

com a justiça.55

Nessa proposição de John Rawls vê-se a necessidade do empenho de cada indivíduo,

embora a concepção de justiça de cada um seja compatível com o grau de entendimento em

querer buscar a justiça dentro de conceitos que tendem a trazer vantagens; assim não haveria

como estabelecer regras de flexibilidade sem entendimento no campo da cooperação e

estabilidade.56

John Rawls trata a escolha dos dois princípios citados acima na hipótese de uma

posição original, ou seja, as partes sociais encontram-se numa situação inicial de igualdade e

de desinteresse mútuo. Devem acordar que os dois princípios são a solução para os conflitos

vivenciados. O caminho para cada indivíduo é que todos o acompanhem na promoção,

segundo o pensador, do bem, independente do venha a ser tal concepção.

53 RAWLS, 2002, p. 5. 54 Ibid., p. 6. 55 Ibid., p. 6. 56 Ibid., p. 7.

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A essência dessa posição, uma teoria social, é que os indivíduos cedam em seus

interesses, tendo o equilíbrio como resultado de acordos racionalmente pactuados. Um

exemplo dado por John Rawls, hoje raramente praticado, é a teoria dos preços, à medida que

ela considera que o equilíbrio entre os mercados competitivos surge quando muitos

indivíduos, cada qual promovendo seus interesses, cedem uns aos outros aquilo a que podem

renunciar com maior facilidade em troca de outros benefícios. 57

Tércio Sampaio Ferraz Júnior58 observa que há nas teses de John Rawls um evidente

apelo à razoabilidade do bom senso, pois supõe que, para haver justiça enquanto equidade, os

membros da sociedade sejam pessoas racionais, capazes de ajustar sua concepção do bem à

sua situação. Tal noção de razoabilidade, contudo, esclarece Tércio Ferraz Sampaio Jr., exige

um princípio de diferença como pressuposto, pois as desigualdades sociais e econômicas

devem existir, mas pessoas interessadas em estabelecer seus interesses aceitariam uma

posição inicial de igualdade para firmar os termos dessa associação.

Quanto às circunstâncias de justiça, nessa proposta, pode ser definido que a

cooperação é tão possível quanto necessária, visto que “embora a sociedade seja um

empreendimento cooperativo de vantagem mútua, está tipicamente marcada por um conflito

bem como por uma identidade de interesses”. 59

Quando o autor traz a noção de “véu de ignorância”, nos ajuda entender o que deseja

ao estabelecer uma hipotética posição original, para a partir disto, fazer sua construção de

ideia de justiça. Tércio Sampaio Ferraz Júnior preconiza que a instauração de uma perspectiva

razoável é essencial ser adotada por todos.60 John Rawls dispõe nesse sentido:

“[...] admito que as partes não conhecem as circunstâncias particulares de sua

própria sociedade. Ou seja, elas não conhecem a posição econômica e política desta

sociedade, ou o nível de civilização e cultura que ela foi capaz de atingir. As pessoas

na posição original não têm informação sobre a qual geração pertencem. Essas

restrições mais amplas impostas ao conhecimento são apropriadas, em parte porque

as questões de justiça social surgem entre gerações e também dentro delas, por

exemplo, a questão da taxa apropriada de poupança de capital e da conservação de

recursos naturais e ambientais [...].” Ainda, “Elas devem escolher princípios cujas

consequências estão preparadas para aceitar, não importando a qual geração

pertençam. ” 61

57 RAWLS, 2002, 128-129. 58 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Sobre John Rawls. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 09 out. 1983. Sobre o

autor: é Jurista e Professor de Filosofia do Direito da Pós-Graduação de Pontifícia Universidade Católica

de São Paulo. Livre Docente da Faculdade de Direito de São Paulo. 59 RAWLS, op. cit., p. 136. 60 FERRAZ JR., op. cit. 61 RAWLS, op. cit., p. 40.

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Vê-se, até o presente, que a teoria de justiça assim formulada conta com a

racionalidade das partes, na proposta hipotética de posição original e a noção de “véu de

ignorância”, o qual, se removido, poderá ocorrer que por motivos de crenças particulares a

pessoa não queira mais uma quantidade destes bens. Guiadas pela teoria do bem e fatos

genéricos da psicologia moral, as partes podem tomar decisões em sentido comum. John

Rawls acredita na suposição mutuamente desinteressada: “as pessoas na posição original

tentam reconhecer princípios que promovem seus sistemas de objetivos da melhor forma

possível”.62

Nesse sentido, John Rawls expõe em sua obra Uma Teoria da Justiça: o bem como

racionalidade, o senso de justiça e o bem da justiça. Estas três relevantes premissas apontam a

necessidade de uma teoria do bem, como intrínseca a uma sociedade bem-organizada e a

moralidade que envolve tal sociedade.

A primeira premissa, o bem como racionalidade, clama a necessidade de uma teoria do

bem, tratando de trabalhar a hipótese da existência da posição original, que supõe que as

partes sociais encontram-se numa situação inicial racional e de desinteresse mútuo; e a noção

de “véu de ignorância”, uma condição de possibilidade a partir da situação hipotética original,

buscando consenso entre os associados. A teoria do bem aproxima-se do estado social

perfeito, pois ao aceitarem o acordo original as partes supõem que suas concepções do bem

têm condições suficientes para acolher os princípios de justiça de modo racional.63

John Rawls pontua que o princípio aristotélico afirma que, em circunstâncias iguais,

os seres humanos sentem prazer ao pôr em prática as suas capacidades. A ética do pensador

grego Aristóteles possibilita que a teoria do bem ocupe um lugar adequado e satisfatório na

sociedade.

O senso de justiça, coerente com nosso próprio bem, aborda a sociedade bem

organizada regulada por sua concepção pública de justiça. A estabilidade depende de que o

senso de justiça seja mais forte que as injustiças existentes. Agir de forma justa faz parte do

bem de todos, e princípios da psicologia moral são conhecidos pelas pessoas na posição

original, tratada anteriormente, e que se baseiam neles para tomar a decisão.64

A conduta correta é aquela que beneficia os outros, com atitude capaz de alcançar a

sociedade e não apenas a si próprio; e, noutro sentido, toda conduta errada visa prejudicar o

62 RAWLS, 2002, p. 154-155. 63 Ibid., p. 438-439. 64 Ibid., p. 506.

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outro. A sociedade, já em sua origem, deve sanar defeitos existentes quando a finalidade não é

benéfica, e isto se consegue pela aprovação e desaprovação dos pais e ou outra pessoa em

posição de autoridade. Processos estes que vão modelar nossa natureza original.65

John Rawls esclarece que nossos sentimentos morais são passíveis de treinamento,

apresentando marcas que são consequências de processos vividos. A teoria de Sigmund Freud

é umas das mais importantes neste sentido, pois processos que crianças vivenciam por ocasião

da fase edipiana, bem como conflitos vividos naquela etapa, se transmitem e definem o

indivíduo, pois refletem aquela fase de édipo. Sustentar essa teoria é declinar no amparo da

estrutura do psiquismo estabelecido como ego, superego e id, ilustração que fará parte de

inúmeras explicações de comportamento, mas que chama atenção para os cuidados

necessários à infância.66

A autoridade ocupa um espaço importante, pois representa a presença dos pais e

outros personagens na vida da criança, estabelecendo aspectos morais significativos, uma vez

que correções que foram feitas pela autoridade de quem governava aquelas vidas nos

primeiros momentos de existência, demonstrando a conduta correta que é aquela que

geralmente beneficia os outros e a sociedade, viabilizam desenvolvimento moral e cognitivo

na criança. Isso se dá pelo processo da educação, pelo qual a autoridade permitirá uma

aprendizagem moral e a ampliação da capacidade de discernimento.67

Há uma crise de autoridade na modernidade. Os adultos recusam-se a adotar tal

postura. Isto significa que os adultos se recusam a assumir responsabilidades no mundo ao

qual trouxeram as crianças. A perda geral de autoridade encontra seu fortalecimento em

posturas familiares e escolares, como se os novos existentes do planeta dominassem a

autoridade educacional. Diante desse impasse resgatam-se os princípios morais trabalhados

anteriormente, como o sentido da autoridade na criança, vislumbrando a formação da

personalidade.68

Educação é um processo de sobrevivência social, expressando nosso mais profundo

desejo: continuar, prosseguir, persistir perante o tempo. Michael Walzer considera o verbo

ser, no sentido do que o processo educativo é, ou seja: “a justiça não se relaciona só com os

resultados, mas também com a vivência da educação”.69

65 RAWLS, 2002, p. 509. 66 Ibid., p. 509. 67 Ibid., p. 509-510. 68 ARENDT, 2014, p. 249-250. 69 WALZER, Michael. Esferas da Justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade. Tradução de Jussara

Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 269-271.

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John Rawls ampara-se na posição original, que definirá perspectivas e posturas do

bem da justiça, impedindo que nossa visão se modele por situações contrárias do acordo,

fazendo prevalecer particularismos, interesses de viés pessoal. Os cidadãos são capazes de

promover e reconhecer a boa-fé e o desejo de justiça uns dos outros, mesmo que venham a

romper de forma ocasional sobre questões políticas. É necessário sempre que a teoria da

justiça esteja presente e buscando adequação junto aos seus princípios. Há nesta proposta de

John Rawls uma natureza contratualista, vinculando sempre os outros na proposta firmada.70

As pessoas que detêm a autoridade são responsáveis pelas políticas que promovem e

pelas instruções que proclamam. E os que aceitam cumprir ordens injustas ou

estimular desígnios maléficos não podem em geral alegar que não sabiam o que

estavam fazendo, ou que a culpa recai apenas sobre aqueles que ocupam posições

mais elevadas. O essencial aqui é que os próprios princípios que mais se adaptam a

nossa natureza de seres racionais livres e iguais também estabelecem a nossa

responsabilidade.71

Numa sociedade totalmente diferente da proposta de John Rawls, e para fazer um

contraponto em relação àquilo que foi exposto no que diz respeito a uma sociedade bem-

ordenada, com participação do poder público estatal e da esfera social, como seria concebida

uma sociedade contra o Estado e ou uma sociedade sem Estado, dentro de um sistema

relativamente autônomo?

1.4.1 A necessidade do Estado e os grupos divorciados

Antes de adentrarmos ao texto sobre sociedade sem Estado, e buscarmos apresentar

um contraste em relação a uma sociedade bem-ordenada, aquela próxima do ideal para o bem

viver, pontuo que a existência de grupos paralelos demonstra o desejo de afastar a presença do

Estado do comando da sociedade.

A formação de grupos ou ideologias que buscam nutrir seus ideais em conquistas

distantes da proposta apresentada neste capítulo possui muitas vezes uma lógica marginal que

termina por desejar formar um poder paralelo na busca de comando e domínio.

70 RAWLS, 2002, p. 571-577. Sobre a posição original Tércio Sampaio Ferraz Junior esclarece que a relação

entre igualdade originária hipotética e diferença originária factual é importante, a nosso ver, para entender a

teoria proposta. Apelando para a intuição, Rawls afirma que os primeiros princípios da justiça são objeto de

um acordo original, a partir de uma situação inicial definida convenientemente. Assim, estes princípios seriam

aqueles que pessoas racionais, interessadas em estabelecer seus interesses, aceitariam numa posição inicial de

igualdade para firmar os termos básicos de sua associação. FERRAZ JR., 1983. 71 RAWLS, op. cit., p. 578.

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Nesta linha de pensamento, isto se daria por conta de suposto “divórcio”72 entre

grupos existentes em sociedade e Estado. Neste sentido, Adrián Guzza Lavalle, em Vida

Pública e Identidade Nacional, tratará a relação sociedade e Estado esclarecendo que

contrastes aparecem na configuração do espaço público, quando se leva em conta a

consolidação política da nação, e a já desarmonia histórica na convivência de ambos os lados.

Em especial o desajuste político-social, que tem como causa uma tardia edificação do Estado

e o vigor dos poderes regionais a obstarem o processo de centralização política, o que termina

por levantar dificuldades para se pensar na origem do espaço público no país, podendo o

processo apontar para conflitos entre tarefas de integração social e ordenamento político do

Estado.73

A efetivação do jogo de reconhecimento político e uma atuação mais eficiente junto

aos setores da cidadania e direitos fundamentais não conseguiu, como esclarece Adrián Guzza

Lavalle, transpor o umbral de questões de cidadania, criando déficits na vida política. Outra

questão levantada pelo pensador é que a cisão entre a sociedade e o Estado não teria como

causa a falta de centralidade da vida pública no pensamento político, mas a própria sociedade

também se demonstra incapaz de engendrar uma vida social vigorosa. 74

Outro aspecto relevante que possibilita este divórcio entre sociedade e Estado é a

moralidade claudicante da vida social, bem como o descrédito das ideologias, e também a

burocracia, que inviabiliza acessos mais eficientes às necessidades fundamentais. Tudo isso

acaba por figurar em conjunto no cenário social e político, provocando um acanhamento no

espaço público do país.75

Adrián Guzza Lavalle esclarece que estes descompassos também são decorrentes da

história, mas lança possibilidades de reconstrução num caminho ainda a ser desbravado,

citando os efeitos deletérios da “ausência do povo” e da “artificialidade das ideias”.76

O pensador traz a reflexão sobre a existência do divórcio entre sociedade e Estado, que

hoje se traduz pelo cenário político-social existente no Brasil, e todas dificuldades ainda

presentes obstando à integração. Mas, em especial, na colocação dos termos “ausência do

povo” e “artificialidade das ideias”, o autor faz crítica à postura inibida da sociedade frente ao

cenário nacional existente. Deve-se considerar que a manifestação de grupos que venham a

72GUZZA LAVALLE, Adrián.Vida Pública e identidade nacional: leituras brasileiras. São Paulo: Globo,

2004. p. 40. O autor do livro intitula o texto que deu origem aos comentários deste trabalho como O divórcio

entre Sociedade e Estado. 73 GUZZA LAVALLE, 2004, p.46-47. 74 Ibid., p. 49. 75 Ibid., p. 59. 76 Ibid., p. 61.

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insurgir-se, combatendo ou discordando do sistema social, promovendo violência e destruição

para defender ideologias particularistas de guerrilha, havida também em outros países com

grupos radicais, divorcia-se da ordem e do contexto social, ao desejar criar estruturas

ideológicas dentro da estrutura existente.

Hannah Arendt, em Origens do Totalitarismo, defende no texto denominado Uma

sociedade sem Classes, que movimentos totalitários são organizações maciças de indivíduos

atomizados e isolados. Distinguem-se dos outros partidos e movimentos por apresentarem

características de total lealdade, obediência aos líderes, que fazem que sejam obedecidos pela

persuasão e ideologia apresentada. “Não se pode esperar essa lealdade a não ser de seres

humanos completamente isolados que, desprovidos de outros laços sociais de família,

amizade, camaradagem, só adquirem o sentido de terem lugar neste mundo quando participam

de um movimento”.77

Hannah Arendt esclarece ainda que o totalitarismo não se contenta em governar

através do Estado graças à ideologia própria, pois descobriu um meio de subjugar e aterrorizar

os seres humanos.

A tomada do poder através dos instrumentos de violência nunca é um fim em si, mas

apenas um meio para um fim, e a tomada do poder em qualquer país é apenas uma

etapa transitória e nunca o fim do movimento. O fim prático do movimento é

amoldar à sua estrutura o maior número possível de pessoas, acioná-las e mantê-las

em ação; um objetivo político que constitua a finalidade do movimento totalitário

simplesmente não existe. ”78

A formação de grupos à margem do contexto social distancia-se das normas

estabelecidas que gravitam entre direitos e obrigações. Os códigos formais de conduta, como

aqueles estabelecidos em lei, não são compartilhados por estes grupos, que procuram romper

com a estrutura social nos moldes e organização que temos. Os grupos divorciados da

sociedade apresentam uma forma distorcida de interpretar a linguagem que a estrutura social

apresenta, pois aqueles desejam impor respostas ao sistema que contestam por meios de

condutas contrárias às sanções normativas do ordenamento político estatal. A questão do

poder e da dominação é tema central na ideologia destes grupos.79

77 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das

Letras, 1989. p. 373. 78 Ibid., p. 375-376. 79 Ibid., p. 373.

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Neste caso, poderá existir uma linguagem saturada entre a esfera social organizada e

politicamente administrada pelo Estado, e as esferas destes grupos que buscam formar outro

comando a partir de suas próprias ideologias. 80

Ainda, Anthony Giddens, em A Constituição da Sociedade, esclarece que “as sanções

normativas expressam assimetrias estruturais de dominação, e as relações daqueles que lhe

estão sujeitos nominalmente podem ser de várias espécies diferentes de expressões dos

compromissos que essas normas supostamente engendram”.81

Na teoria de Thomas Hobbes,82 o contrato realizado entre todos os cidadãos e o Estado

faz com que aqueles abdiquem do direito de se defender e fazer justiça com as próprias mãos,

o que até então poderia ser uma liberdade de cada um ao exercer esse papel no propósito de

autodefesa. A partir do contrato, a justiça e a defesa de cada cidadão passariam a ser de

competência exclusiva da estrutura Estatal. Há uma aliança entre os homens a favor da paz

garantida pelo Estado.

A preservação da paz civil na sociedade é uma das prioridades do Estado, na visão de

Thomas Hobbes, para quem um Estado forte e centralizado evitaria que a sociedade fosse

ameaçada por guerras, e desse modo encontrasse a paz; e o convívio humano com a

participação do Estado possibilitaria que o homem não fosse o algoz do próprio homem, daí a

frase de Thomas Hobbes “o verdadeiro lobo do homem era o próprio homem”.

A ideia de Estado Soberano possibilitaria o convívio harmônico numa sociedade. O

Estado, regido por um príncipe soberano, conteria o estado natural dos homens, pois Thomas

Hobbes considerava que a sociabilidade do homem é construída por mera convenção e não

por sua própria natureza.

1.4.2 Inversão de modelo: sociedades primitivas sem Estado e contra o Estado

Na obra A sociedade Contra o Estado – Pesquisas de antropologia política, Pierre

Clastres esclarece que as sociedades primitivas são sociedades sem a presença do Estado.

Busquei isolar o modelo que vinha trabalhando para comparar tipos de sociedades existentes e

modos de condutas. Assim, as sociedades primitivas estão privadas de algo, no caso o Estado,

80 GIDDENS, Anthony. A Constituição da Sociedade. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes,

2009. p. 37 81 GIDDENS, 2009. p. 36 82 HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Tradução de

Rosina D’Angina. 2. ed. São Paulo: Martins Claret, 2012, e GUERRA FILHO, Willis Santiago. Filosofia:

Uma Introdução. Teresópolis: Daimon, 2009. p.101-130, e NASCIMENTO, Luiz C. Thomas Hobbes e o

Leviatã. Revista de Filosofia: Grandes Temas de Filosofia, São Paulo, n. 19. p. 41-45, 2011.

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e o pensador considera que são sociedades só aparentemente incompletas, porque não

constituem verdadeiras sociedades, não sofrem policiamento e apenas subsistem, numa forma

de sobrevivência talvez dolorosa, sem a presença do Estado. 83

Na sociedade primitiva, sociedade essencialmente igualitária, os homens são senhores

de sua atividade de caça e coleta, senhores da circulação dos produtos dessa atividade: eles só

agem para si próprios. O aparecimento do Estado realizou a grande divisão tipológica entre

selvagens e civilizados, traçando uma indelével linha de separação que foi se modificando,

pois o Tempo se torna História.84

Pierre Clastres explica que, nas sociedades primitivas, a presença do Estado seria

impossível pela estrutura de organização que se cristalizou, não havendo divisão de mais ricos

ou pobres. O espaço do chefe não é o lugar do poder, e a figura do chefe não configura a

figura do déspota. “O chefe está a serviço da sociedade, é a sociedade em si mesma,

verdadeiro lugar do poder que exerce sobre tal sua autoridade como chefe”.85 E ainda

“O poder político isolado é impossível na sociedade primitiva; nela não há lugar, não há vazio

que o Estado pudesse preencher”.86

Pierre Clastres acrescenta que a ausência do Estado nas sociedades primitivas não é

uma falta, e a ausência da estrutura do Estado não significa que tais sociedades se encontram

na infância da humanidade ou são incompletas, ou não são suficientemente grandes, mas se

explica porque elas recusam o Estado em sentido amplo.87

O texto de Pierre Clastres traz uma visão de como os povos primitivos comportavam-

se dentro dessas comunidades não grandes, sem o controle de forças maiores de comando nem

tampouco protegidas por leis que pudessem impor direitos e deveres quando alguém

reclamasse sua propriedade. “As sociedades arcaicas, sociedades da marca, são sociedades

sem Estado, sociedades contra o Estado. A marca sobre o corpo, igual sobre todos os corpos,

enuncia: “Tu não terás o desejo do poder, nem desejarás ser submisso”.88

Em Arqueologia da Violência, do mesmo pensador, o chefe selvagem de povos

primitivos não detém o poder de mandar, o que não significa que ele não sirva para nada, mas

que é investido pela sociedade de tarefas, e seria possível ver nele uma espécie de funcionário,

83 CLASTRES, 2003, p. 207. 84 CLASTRES, 2003, p. 215. 85 Ibid., p. 224. 86 Ibid., p. 227. 87 Ibid., p. 236. 88 Ibid., p. 62.

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não remunerado, da sociedade. Esse chefe assume a vontade da sociedade como se fossem

todos uma única pessoa, e falaria em nome da sociedade junto às outras comunidades.89

As decisões de amizade e de guerra seguem a vontade da tribo, a guerra só acontece se

a tribo assim o desejar. Desta forma, “[...] a atenção particular que é dada (aliás nem sempre)

à palavra do chefe nunca chega ao ponto de deixá-la transformar-se em voz de comando, em

discurso de poder: o ponto de vista do líder só será escutado enquanto exprimir o ponto de

vista da sociedade como totalidade una”.90

Fica claro que o chefe na sociedade primitiva é o próprio corpo social, que detém o

comando e o exerce como unidade indivisa. Pierre Clastres destaca ainda que esse poder não

separado da sociedade se exerce num sentido bem claro e único, com um propósito, ou seja,

manter na indivisão o ser da sociedade, “impedir que a desigualdade entre os homens instale a

divisão na sociedade”.91

1.4.3 Sobre a liberdade e as guerras nas sociedades primitivas

Ainda na mesma obra, Arqueologia da Violência, Pierre Clastres aborda a questão da

liberdade. Esclarece que o Estado, como divisão instituída da sociedade, é o estabelecimento

efetivo da relação de poder. Deter o poder é exercê-lo: um poder que não se exerce não é

poder, é uma aparência. O Estado é apenas a extensão da relação de poder, destarte o

aprofundamento sempre mais marcado da desigualdade entre os que mandam e os que

obedecem. Para Clastres será determinada como sociedade primitiva toda esfera ou máquina

social que funcione segundo a ausência da relação de poder.92 “Consequentemente, será

considerada como Estado toda sociedade cujo funcionamento implica, por mínimo que possa

nos parecer, o exercício do poder”.93

O autor trata, ainda, do tópico “desejo de submissão, recusa de obediência: sociedade

com Estado, sociedade sem Estado”94. As sociedades primitivas recusam a relação de poder,

impedindo que o desejo de submissão se realize. “Aos seus filhos, a tribo proclama: sois todos

iguais, nenhum de vós vale mais que o outro, nenhum vale menos que o outro, a desigualdade

é proibida pois ela é inscrita, em marcas iguais, dolorosamente recebidas, no corpo dos jovens

89 Id., 2011, p.139-140. 90 Ibid., p. 140. 91 CLASTRES, 2011, p. 142. 92 Ibid., p. 151. 93 Ibid., p. 151-152. 94 Ibid., p. 155.

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iniciados a saber dessa lei”95. Como nas sociedades primitivas conservadoras -- pois desejam

conservar seu ser-para-a-liberdade --, as sociedades divididas, ou seja, sociedades com

Estado, não se cansam de mudar, o desejo de poder e a vontade de servidão nunca acabam de

se realizar. 96

Pierre Clastres questiona: “Como pensar o sistema de guerra nas sociedades

primitivas?”97Ou: “Seria a guerra uma condição de possibilidade do ser primitivo?”.98

O autor elucida que a possibilidade de guerra está inscrita no ser da sociedade

primitiva. O equilíbrio se torna frágil caso haja a violação de território, agressões supostas ao

xamã dos vizinhos, o que pode ocasionar um conflito imediato.99 Neste sentido, voltando às

considerações de Thomas Hobbes, podemos refletir sobre a necessidade do Estado, que

estabelece a ordem devido a impossibilidade de diálogos entre as comunidades; tanto no caso

das sociedades primitivas, como no caso de sociedades com Estado podemos dar exemplos do

que ocorre na ausência de policiamento: no caso de greves de policiais ou outras forças de

proteção estatal, ou ainda na ausência de lei que normalize uma situação, observamos a

ocorrência de altos índices de assaltos, agressões, roubos e homicídios nas ruas das cidades.

Ainda sob esse prisma, pode-se invocar a existência de uma sociedade com Estado, e

ao mesmo tempo uma sociedade sem Estado, já que neutralizados os seus efeitos como poder

de Estado (Sociedade sem Estado). Em outro patamar encontram-se governos totalitários ou

movimentos totalitários adotados por governantes, e ainda por governos tirânicos, que passam

a exercer suas ações desrespeitando os termos fundamentais da democracia.

Na sequência, questões abordadas permitirão uma reflexão sobre possibilidades e

fatores inviabilizadores da biopolítica, e sobre o quanto o biopoder poderá contribuir para que

uma política possa estar mais voltada a procedimentos adequados e condizentes com o ato de

governar, dentro daquilo que foi exposto neste capítulo. Um pensamento político, exposto aos

critérios da saúde, educação e planejamento da esfera social, possibilitará uma riqueza social

para toda a comunidade; mas será necessário a quem governa pensar o biopoder e a

biopolítica em benefício social, ponto que liga o “político ao ético.”100 A população é um

conjunto de seres vivos e coexistentes que apresentam traços biológicos e patológicos

particulares e cuja própria vida é suscetível de ser controlada a fim de assegurar uma melhor

95 Ibid., p. 156. 96 Ibid., p. 156-157. 97 Ibid., p. 237. 98 Ibid., p. 237. 99 CLASTRES, 2011, p. 237. 100 REVEL, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais. Tradução de Maria do Rosário, Nilton Milanez e

Carlos Piovesani. São Carlos: Claraluz, 2005. p. 28-29.

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gestão da força de trabalho. Enquanto a disciplina se dá como anátomo-política dos corpos e

se aplica essencialmente aos indivíduos, a biopolítica representa uma “grande medicina

social” que se aplica à população a fim de governar a vida: a vida faz, portanto, parte do

campo do poder. Algumas considerações a seguir ilustrarão o que envolve o viver, como ser

político e ser privado. Há dois lados nessa questão: a função vida privada e vida pública, a

primeira ligada à família e à vida individual, e a outra ligada às coisas políticas envolvendo o

ambiente social.101

Podemos encerrar o capítulo com a assertiva de Hannah Arendt, que releva a

importância do domínio das necessidades pelos indivíduos. “O domínio sobre a necessidade

tem então como alvo controlar as necessidades da vida, que coagem os homens e os mantêm

sob seu poder. O homem livre, o cidadão da polis, não é coagido pelas necessidades físicas da

vida nem tampouco sujeito à dominação artificial de outros”102 Hannah Arendt invoca a

liberdade no âmbito da política, que se inicia com o domínio das coisas da esfera privada.

101 Ibid. 102 ARENDT, 2014, p. 158-159.

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2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O PODER NA POLÍTICA E NA SOCIEDADE –

AUTORIDADE E LIBERDADE – PODER EM MICHEL FOUCAULT E SEUS

EFEITOS – SOCIEDADE DE RISCO E CONSUMO

2.1 Algumas considerações sobre o poder

Temas do poder têm sido tratados por muitos pensadores, e podemos apresentar

algumas considerações que possibilitarão alcançar sua importância quando o poder estiver

direcionado para organizar e estar a serviço da vida. Nem sempre é utilizado para esse fim,

visto que seus detentores, por vaidade e orgulho, submetem outros a seu jugo de forma a obter

obediência e submissão. A ocorrência de tal situação na política pública logra tornar a

condição humana mais precária e complexa, caracterizando países em constantes guerras

internas e externas, cujos governantes utilizam-se do poder econômico e político para

conquistar mais poder e vangloriar-se diante do mundo do seu poderio, exercido muitas vezes

a serviço dos seus interesses e benefícios pessoais.

As considerações a seguir têm o propósito de demonstrar como a Autoridade e a

Liberdade podem contribuir e, ao mesmo tempo, inviabilizar a biopolítica em favor de uma

sociedade bem-ordenada. Presenciamos de forma frequente atos de autoridades

governamentais, bem como dos governados, que contribuem de forma tímida e com pouca

eficácia e efetividade para este cenário ambivalente, utilizando-se da plataforma de (bio)

poder, para atingir, no entanto, outras vantagens nem sempre em favor do todo.

Governar nos dá o sentido e necessidade de poder. Seria frágil um governo ou uma

sociedade desprovida de poder, vale citar as observações realizadas por Pierre Clastres

quando apresenta diferenças entre sociedade primitiva dita sociedade sem Estado e sociedade

com Estado. Mas o poder tratado neste item relaciona-se com a obrigação de tornar sua força

uma dinâmica funcional a serviço da ordem social, pressupondo a necessidade de

conhecermos a autoridade que administra o poder e suas funções, dentro de uma sociedade

com Estado e a caminho de uma sociedade bem-ordenada, nos moldes já declinados no

primeiro capítulo.

Aristóteles, em A Política, nos coloca três tipos de exercício do poder, distribuídos

entre os livros que compõem a obra: o poder e ou autoridade do pai sobre o filho, do senhor

sobre o escravo e dos governantes sobre os governados, cada qual com suas condutas

específicas, considerando o tipo de poder que cada um irá exercer sobre o outro.103

103 ARISTÓTELES, 2009, p. 254.

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Em Thomas Hobbes, o poder é transferido em nome da paz. Há uma troca a ser

realizada visando à paz social, a liberdade e a guerra submetidas ao pacto que o homem fará

com o soberano. A condição é o homem submeter-se ao Estado para construir a paz no campo

social, considerando que há um ganho e uma perda. A perda da liberdade que se tinha para

lutar e conquistar objetivos em razão das paixões, em troca da segurança ofertada pela ação

do Estado.

Nesse sentido, a presença do Estado é a garantia da paz, à medida que apresenta as

condições para o homem viver a vida na esfera social com segurança, como aponta Thomas

Hobbes sobre o poder absoluto do povo sendo entregue ao Estado por meio de um contrato. O

estado de natureza sofre uma conversão pela entrega que se faz ao poder do Estado, na

passagem do estado de natureza para o estado civil. Aqui assistimos o poder do ordenamento

jurídico definido pelo Estado, atuando com as normas para estabilizar as relações:

Um Estado é considerado instituído quando uma multidão de homens concorda e

pactua que a um homem qualquer ou a uma assembleia de homens seja atribuído,

pela maioria, o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu

representante), todos sem exceção, tanto os que votaram a favor desse homem ou

dessa assembleia de homens como os que votaram contra, devendo autorizar todos

os atos e decisões desse homem ou dessa assembleia de homens, como se fossem

seus próprios atos e decisões, a fim de poderem conviver pacificamente e serem

protegidos dos restantes homens.104

Em A República, de Platão, o poder nas mãos de um Estado bem governado

possibilitará uma riqueza de que o homem tem necessidade para ser feliz, ou seja, uma vida

virtuosa e sábia. “As pessoas guerreiam para obter o poder, e esta guerra doméstica e interna

perde não só os que a travam como também o restante da cidade”.105

Em Massa e Poder, Elias Canetti concebe o poder nas mãos da massa, os homens

descobrindo que unidos podem conquistar o desconhecido, e conclui que os elementos do

poder aparecem em uma assembleia aberta ou fechada, feito uma comunhão de interesses.

Elias Canetti observa que o poder basta a si mesmo; quer apenas a si mesmo, ele não

existe em função de coisa ou pessoa alguma e sempre exerceu sobre os homens seu maior

fascínio.

A massa é um fenômeno enigmático, que repentinamente se forma onde antes não

havia. Poucas pessoas se juntam e a reunião, de dezenas ou mais, toma corpo, mediante um

anúncio, ou sem que nada tenha sido anunciado. É a massa espontânea que pode dividir-se

104 HOBBES, 2012, p. 141. 105 PLATÃO, 2005, p. 269.

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em massa aberta ou fechada. A massa aberta é entendida aqui em todos os sentidos: ocorre em

toda parte e em todas as direções, existe enquanto cresce e sua desintegração inicia-se quando

para de crescer. Ao passo que quando a massa fechada se fixa, se limita, significa que o

espaço que irá preencher foi-lhe destinado.106 Elias Canetti aponta que o próprio indivíduo

tem a sensação de que, na massa aberta, ele vai muito além das fronteiras de sua pessoa. O

indivíduo toma corpo de forma que as fronteiras são rompidas e ele ganha uma liberdade, com

o movimento da massa, que não teria se ficasse isolado.107

A massa precisa de uma direção. Assim pontua Elias Canetti, no texto intitulado As

propriedades da Massa. Uma meta exterior aos indivíduos e idêntica para todos soterra metas

particulares e desiguais que poderiam significar o desfazimento da massa. Enquanto houver

meta, a massa persiste.108

Também nesse caminho Hannah Arendt desvela em sua obra Origens do

Totalitarismo o termo “massa” e o trata em seus escritos como aquilo que realmente é

dominado, as massas deixam-se enganar muitas vezes pela ausência de bom senso; é então

que entendemos como o poder no totalitarismo utiliza seus recursos para dialogar com a

massa:

O que as massas se recusam a compreender é a fortuidade de que a realidade é feita.

Predispõem-se a todas as ideologias porque estas explicam os fatos como simples

exemplos de lei e ignoram as coincidências, inventando uma onipotência que a tudo

atinge e que supostamente está na origem de todo acaso. A propaganda totalitária

prospera nesse clima de fuga da realidade para a ficção, da coincidência para a

coerência.109

Em O Poder, Gabriel Chalita defende que uma das características do poder é a

bilateralidade, exercendo-se na correlação entre duas ou mais vontades. Para o poder existir,

necessita de vontades reciprocamente submetidas. O poder não é um objeto, e sim uma

relação; não existe senão na medida em que há dominação e influência. Não se pode afirmar

que alguém “tem poder”, sem referência a uma situação, sem confrontá-lo a uma

conjuntura.110

106 CANETTI, Elias. Massa e Poder. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

p. 15. 107 Ibid., p. 18-19. 108 Ibid., p. 28. 109 ARENDT, 1989, p. 401. 110 CHALITA, Gabriel. O Poder: Reflexões sobre Maquiavel e Etienne de La Boétie. 3. ed. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2005. p. 23.

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2.1.1 Sobre Poder, Autoridade e Liberdade

Como dissemos antes, Hannah Arendt denuncia, em sua obra Entre o Passado e o

Futuro, que a autoridade desapareceu do mundo moderno. A pensadora constata que a

autoridade do governo sofreu uma falta de reconhecimento por conta de posturas autoritárias

de governantes, movimentos e ou regimes totalitários, que passaram a fazer parte da

atmosfera política governante.

O conceito que Hannah Arendt utiliza de autoridade é de origem platônica, quando

Platão começa a considerar a introdução da autoridade no trato dos assuntos públicos na polis.

Desta forma, o sentido e postura de autoridade exclui qualquer utilização de meios de

coerção: “onde a força é usada, a autoridade em si mesma fracassou”.111 A perda da segurança

ocasionada por essa crise de autoridade não acarreta a perda da capacidade humana de

construir, preservar e cuidar de um mundo que pode sobreviver e estar mais adequado à

vida.112

A restrição de liberdade existente em regimes de ordem autoritária e ainda a perda da

liberdade política que passa a existir em regimes tirânicos exercem um comprometimento da

autonomia, pois ao se verificar as posturas destes dirigentes nota-se que as ações de liberdades

são restritas e encontram-se engessadas. “As diferenças entre tirania e ditadura, de um lado, e

de outro lado, dominação totalitária, não são tão diferentes que as existentes entre

autoritarismo e totalitarismo, salienta Hannah Arendt”. 113

Aristóteles, em A Política, nos remete às arbitrariedades das tiranias ligadas à

monarquia, algumas fundadas em leis e na vontade dos súditos; mas eram tirânicas, pelo fato

de ser o poder absoluto e totalmente arbitrário. Esclarece existir uma terceira espécie de

tirania, ou seja, uma tirania que jamais se importa com os interesses particulares dos súditos.

No entanto, ela existe, apesar de não existir um homem livre que a suporte voluntariamente.114

Em A República, de Platão, “o tirano, evitando a razão e a lei, transpõe o limite dos

prazeres ilegítimos e vive no meio de uma escolta de prazeres servis”.115

Os países totalitários, em que governantes detêm o poder absoluto, acabam por

substituir a propaganda pela doutrinação e empregam a violência não mais para aterrorizar o

povo, mas para dar realidade a suas doutrinas ideológicas. Existe o uso de propaganda voltada

111 ARENDT, 2014, p. 129. 112 Ibid., p. 132. 113 Ibid., p. 135. 114 ARISTÓTELES, 2009, p. 138-141. 115 PLATÃO, 2005, p. 363.

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à mentira dirigida a um público considerado ainda não subjugado dentro do mesmo país, a

segmentos da própria população e a outros países.116

O uso de insinuações indiretas caracteriza a propaganda totalitária, melhor ainda que

as ameaças diretas e demais crimes contra pessoas. Assim, aqueles que não deram atenção às

suas orientações e ou ensinamentos sofrem esse tipo de propaganda.117 O totalitarismo

aperfeiçoou o seu cientificismo ideológico e a técnica de afirmações proféticas, pois sob o

ponto de vista demagógico, a melhor forma de evitar discussão é tornar o argumento isento de

verificação no presente, como ao convencer os indivíduos, ou a população, de que o futuro irá

revelar os méritos daquele governo.118

Lembremos que Hannah Arendt destaca ainda que o que as massas recusam a

compreender é a fortuidade de que a realidade é feita.

Predispõem-se a todas as ideologias porque estas explicam os fatos como simples

exemplos de leis e ignoram as coincidências, inventando uma onipotência que a tudo

atinge e que supostamente está na origem de todo acaso. A propaganda totalitária

prospera nesse clima de fuga de realidade para a ficção, da coincidência para a

coerência.119

Nesse entendimento, Hannah Arendt explica que mesmo considerando que as massas

nutrem desejo de fugir da realidade porque privadas de um lugar no mundo, já não suportam

os aspectos acidentais e incompreensíveis dessa situação, e buscam por esse modo um

afastamento da realidade e do bom senso; nesse caso o processo de conhecimento do social

não produz mais efeitos nos indivíduos.

A preocupação em resgatar os pensadores trabalhando tais questões, é perceber o

quanto países democráticos estão sofrendo com movimentos totalitários, ou, no mínimo, um

certo autoritarismo, sem a atuação de uma autoridade que se preocupe com os interesses do

Estado, nos moldes já apresentados. Hannah Arendt aponta ainda que “tem sido

frequentemente apontado que os movimentos totalitários usam e abusam das liberdades

democráticas com o objetivo de suprimi-las”.120

Posturas totalitárias, tirânicas ou autoritárias sempre apresentam interesses diversos

daqueles pretendidos pela democracia, pois se apresentam também na forma de

representações sociais. Serge Moscovici, em Representações Sociais – Investigações em

116 ARENDT, 1989, p. 390-391. 117 ARENDT, 1989, p. 394. 118 Ibid., p. 395. 119 Ibid., p. 401. 120 Ibid., p. 362.

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Psicologia Social, aponta que os elementos da psicologia individual são primários e se

referem apenas a fenômenos extremamente limitados de um determinado indivíduo. Algumas

expressões linguísticas que são reproduzidas no quotidiano nem sempre fazem parte do

mundo do interlocutor, mas das contribuições no campo da linguagem e que nos são

atribuídas, e das quais o boato seria um exemplo.

Assim sendo, devemos ir além da experiência imediata da cada pessoa. Operações

mentais e linguísticas de indivíduos nos mostram que a psicologia das representações sociais

coletivas esclarece algumas experiências individuais. “O holismo de uma representação

significa que o conteúdo semântico de cada ideia e cada crença depende de suas conexões

com outras crenças e ideias”.121

Vale enfatizar na linha de pensamento de Serge Moscovici, que discursos e padrões de

linguagem podem estar ligados a ideologias que divergem daquilo que a situação política e

social de um país apresenta, assim um discurso poderá estar recheado de crenças e instruções

que divergem do cenário social, o que impossibilita a quem discursa o agir favoravelmente

naquele momento.

O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as

palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para

velar intenções mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir,

mas para criar relações e novas realidades. Conforme Hannah Arendt, é o poder que mantém a

existência da esfera pública, e possui um caráter de potencialidade.122

Na esfera pública o poder alcança todos os setores e é o que se mantém pela ação

social e política. Pode encontrar-se na figura do representante do povo e no próprio povo que

é soberano. A efetivação e os efeitos do poder se dão a todo instante, seguindo a linha de

pensamento de Michel Foucault. Uma forma desvirtuada na esfera da política pública é

quando poder e violência compartilham a mesma sala. No caso da forma tirânica de governar

se utilizar da violência e do poder para fragilizar seus súditos, usa-se da mesma força e poder

para no poder manter-se, conforme nos aponta Hannah Arendt em Origens do Totalitarismo.

2.1.2 Sobre a liberdade

121 MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: Investigações em Psicologia Social. Tradução de Pedrinho A.

Guareschi. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 183. 122 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2009. p. 212.

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O termo liberdade nos traz vários sentidos, e no texto a seguir iremos nos defrontar

com uma conotação política, no sentido de podermos ser livres em agir, pensar, falar,

escolher, porque uma Constituição permite que o façamos. Podemos nos sentir livres

interiormente mesmo participando de situações que nos atormentam. A coerção externa não

abalaria a situação interna de cada pessoa se assim ela o desejasse ou conseguisse, devido à

liberdade interior que cada um tem.

Se buscarmos em Platão o sentido de liberdade, este estaria ligado à busca de sua

essência, a sua conversão das sombras para as figuras artificiais e a luz que as projeta, a sua

ascensão para o Sol: busca no interior do homem as forças e a mudança, a liberdade que

possui para realizar isto; neste momento alcança o bem e a liberdade.

Anthony Giddens, em sua obra Modernidade e Identidade, ressalta que a política

emancipatória, de que trata, se ocupa de reduzir ou eliminar a exploração, a desigualdade e a

opressão. A exploração significa que as classes superiores em relação às classes

trabalhadoras, os brancos em relação aos negros, ou os homens em relação às mulheres,

acabam por monopolizar de forma ilegítima recursos ou bens desejados, negando ao grupo

explorado acesso a eles.

A emancipação significa que a vida coletiva é organizada de tal maneira que o

indivíduo seja capaz, num ou outro sentido, de ação livre e independente nos ambientes da

vida social. Desta maneira, liberdade e responsabilidade permanecem em uma espécie de

equilíbrio. O indivíduo não é libertado de maneira absoluta, haverá sempre responsabilidade

em relação aos outros, mas as condições exploradoras e desiguais deixam de ser

vivenciadas.123

A força exercida pela pressão democrática sobre um sistema político, e o sucesso ou

fracasso do seu caminhar em direção ao ideal de uma sociedade autônoma, dependem do

equilíbrio entre liberdade e segurança. A participação do sistema político e da cidadania de

forma responsável quando há a escassez da liberdade, e a busca por um equilíbrio político

mais sintonizado, ainda permanecem inacabados, mas prosseguem, pois liberdade e segurança

são dois aspectos da condição humana.

Zygmunt Bauman lembra que temos boas razões para desconfiar que um possível

enlace de bem-estar, reconciliação e coexistência pacífica completa e livre de conflitos entre a

liberdade e a segurança é um objetivo que não conseguiremos alcançar, mas o principal

perigo, tanto para a liberdade como para a segurança, encontra-se em abandonar a busca pela

coexistência da liberdade e segurança. “Uma sociedade autônoma é inconcebível sem

123 GIDDENS, 2002, p. 196.

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cidadãos autônomos, e a autonomia dos cidadãos é impensável em qualquer lugar fora de uma

sociedade autônoma e os esforços necessitam ao mesmo tempo dos níveis macro e micro”.124

Nesse momento, Bauman pontua a necessidade de todas as esferas da sociedade, pública e

privada, comungarem o mesmo ideal, sem o qual será mais complexo alcançar níveis de

satisfação para todo o conjunto.

Na obra Em busca da política, Zygmunt Bauman observa que ser um indivíduo não

significa necessariamente ser livre. “A forma de individualidade disponível no estágio final da

sociedade moderna e na sociedade pós-moderna, aliás comuníssima nesta última, é a da

individualidade privatizada, que significa essencialmente uma antiliberdade”.125

Ainda, Zygmunt Bauman reitera, na mesma obra, que a influência de tendências

totalitárias tem por objetivo a total aniquilação da esfera privada, inviabilizando o

desenvolvimento e o relacionamento do indivíduo com as esferas sociais a que pertence,

engessando a autodeterminação individual. O objetivo não é impedir os indivíduos de pensar,

pois seria impossível, mas tornar o seu pensamento impotente, irrelevante, sem ação e sem

influência para o sucesso ou o fracasso do poder.

Sobre liberdade, Hannah Arendt aponta, na obra Entre o Passado e o Futuro, que o

campo em que a liberdade sempre foi conhecida, não como um problema, mas como fato da

vida quotidiana, é o âmbito da política. Hoje é necessário refletir sobre o problema da

liberdade, as questões políticas e o fato de o homem ser dotado com o dom da ação, pois na

124 BAUMAN, 2008, p. 75. 125 BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

2000. p. 71. Nesse mesmo texto Bauman denomina seus escritos com a pergunta: Até que ponto o Homem é

livre? Procura demonstrar como estamos comprometidos com os excessos do quotidiano. Vale estabelecer

um olhar para o que Hannah Arendt trata na obra A condição Humana e igualmente na obra “Origens do

Totalitarismo”; aquestão do homo faber e sua atuação nas esferas públicas e privadas. Nesse sentido Hannah

Arendt pontua: “O que chamamos de isolamento na esfera política é chamado de solidão na esfera dos

contatos sociais. Isolamento e solidão não são as mesmas coisas. Posso estar isolado, isto é, numa situação

em que não posso agir porque não há ninguém para agir comigo, sem que esteja solitário; e posso estar

solitário, isto é, numa situação em que, como pessoa, me sinto completamente abandonado por toda

companhia humana, sem estar isolado. O isolamento é aquele impasse no qual os homens se veem quando a

esfera pública de suas vidas, onde agem em conjunto na realização de um interesse comum, é destruída. E, no

entanto, o isolamento, embora destrua o poder e a capacidade de agir, não apenas deixa intactas todas as

chamadas atividades produtivas do homem, mas lhe é necessário. O homem como homo faber tende a se

isolar com o seu trabalho, isto é, a deixar temporariamente o terreno da política. A fabricação (poesis, o ato

de fazer coisas), que se distingue por um lado, da ação (práxis) e, por outro, do mero trabalho, sempre é

levada a efeito quando o homem, de certa forma, se isola dos interesses comuns, não importa que o seu

resultado seja um objeto de artesanato ou de arte.[...]. O homem isolado que perdeu o seu lugar no terreno

político da ação é também abandonado pelo mundo das coisas, quando já não é reconhecido como homo

faber, mas tratado como animal laborans, cujo necessário “metabolismo com a natureza” não é do interesse

de ninguém. É aí que o isolamento se torna solidão. A tirania baseada no isolamento geralmente deixa

intactas as capacidades produtivas do homem; mas uma tirania que governasse “trabalhadores”, como por

exemplo o domínio sobre os escravos na Antiguidade, seria automaticamente um domínio de homens

solitários, não apenas isolados, e tenderia a ser totalitária”. Cf. ARENDT, 1989. p. 527.

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ação e na política residem as únicas coisas em que não poderíamos admitir a ausência de

liberdade. É complexo tocar em um problema político sem tocar em um problema de

liberdade humana. Além da liberdade ser um problema da esfera política, temos ainda a

justiça, igualdade e o poder.

Falamos aqui da liberdade que se admite como aquela instaurada em toda a teoria

política e mesmo os que veneram a tirania precisam levar em conta que esta liberdade é

oposta à “liberdade interior”, que é o espaço estabelecido dentro de cada um, na intimidade do

qual todos os indivíduos podem afastar-se da coerção externa e sentir-se livres.

A consciência da liberdade é refletida em nossos relacionamentos, naquilo que

sentimos quando estamos próximos ou distantes, mas raramente a notamos dentro de nós. Em

toda espécie de inter-relacionamento humano, entre pessoas ou numa dada comunidade, a

liberdade é necessária e aclamada. Já na esfera pública, a liberdade não possui realidade

concreta. Sem espaço público politicamente assegurado, falta à liberdade o espaço onde deva

aparecer.126

Hannah Arendt assinala que somos levados a acreditar que a liberdade começa onde a

política termina, por termos visto a liberdade desaparecer sempre que as chamadas

considerações políticas terminam por prevalecer sobre todo o resto. Aponta ainda para o credo

liberal, com um questionamento, ou seja, “quanto menos política mais liberdade”?127

Em o Espírito das Leis, Montesquieu apresenta suas considerações demonstrando que

a constituição deve ter uma relação com o cidadão. Pode acontecer que a constituição seja

livre, mas o cidadão não o seja, e pode acontecer que o cidadão seja livre e a constituição não

será. “Nestes casos, a constituição será livre de direito e não de fato; o cidadão será livre de

fato, e não de direito”.128

Montesquieu ainda nos assevera que somente a disposição das leis, e mesmo das leis

fundamentais, forma a liberdade em sua relação com a Constituição. Na relação com os

cidadãos, costumes, maneiras, exemplos recebidos podem fazê-la nascer.

Talvez por essas considerações, a política, quando decide, termina por oprimir com

excessos de leis, e muitas vezes com a ausência delas, o que impede que satisfaçam o bem

social. Excessos de tributos a serem pagos limitam a vida das pessoas, que se oprimem em

busca de mais trabalho ou redução nos gastos particulares em função de decisões advindas da

política pública. Outro exemplo de opressão: países em guerras constantes atacam e são

126 ARENDT, 2014, p. 195. 127 Ibid., p. 196-197. 128 MONTESQUIEU, Charles de Secondat Baron de. O Espírito das leis. Tradução de Cristina Murachco.

3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 197.

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atacados, com isto a liberdade externa e interna de um território depende de vigilâncias

permanentes visando proteger-se do inimigo.

Aristóteles fundamenta que o princípio fundamental do governo democrático é a

liberdade; a liberdade, segundo o pensador, é o objeto de toda democracia. Uma das

características essenciais da liberdade é que os cidadãos obedeçam e mandem

alternativamente, porque o direito ou a justiça, em um Estado popular, consiste em observar a

igualdade, e não a que se regula ao mérito.129 Desta forma: “Segundo essa ideia de justo, é

preciso forçosamente que a soberania resida na massa do povo, e que aquilo que ele tenha

decretado seja definitivamente firmado como o direito ou o justo por excelência, pois que se

pretende que todos os cidadãos tenham direitos iguais”.130

Em termos de soberania e liberdade, Hannah Arendt pontua que “a famosa soberania

dos organismos políticos sempre foi uma ilusão, a qual, além do mais, só pode ser mantida

pelos instrumentos de violência, isto é, com meios essencialmente não-políticos”.131

Liberdade e soberania conservam pouca identidade entre si, deixando de haver o

entrosamento necessário. “Onde os homens aspiram ser soberanos, como indivíduos ou como

grupos organizados, devem se submeter a opressão da vontade individual com a qual me

obrigo a mim mesmo, ou da vontade geral de um grupo organizado”.132

Bruno Bettelheim, em O Coração Informado – Autonomia na era da massificação,

expõe que se pode argumentar que as liberdades específicas de ação e decisão que

necessitamos ter para não nos sentirmos submetidos à tirania informam-nos quais as questões

decisivas para uma sociedade ou grupo de pessoas dentro dela. Enuncia ainda que há níveis de

consciência, e em qualquer época ou lugar da história existem áreas de ação humana em que a

consciência de liberdade é intensa, e outras em que encontra-se adormecida.133

Em outra proposição de Bruno Bettelheim, o que preocupa são os perigos que possam

ameaçar a autonomia em nossa sociedade, pois considerando sua alta complexidade, maior a

necessidade de autonomia individual, já que se exigirão estágios mais adiantados de

consciência de liberdade. A tecnologia moderna, a produção em massa e a sociedade de massa

129 ARISTÓTELES, 2009, p. 210-211. 130 ARISTÓTELES, 2009, p. 211. 131 ARENDT, 2014, p. 213. 132 Ibid., p. 213. Neste sentido ainda, Hannah Arendt destaca na mesma obra: “Todos os negócios políticos são e

sempre foram transacionados dentre de um minucioso arcabouço de laços e obrigações para o futuro como

leis e constituições, tratados e alianças, derivando todos, em última instância, da faculdade de prometer e de

manter a promessa face às incertezas intrínsecas do futuro. Além disso, um Estado em que cada homem

pensa apenas seus próprios pensamentos é, por definição, uma tirania”. Cf. ARENDT, 2014, p. 212. 133 BETTELHEIM, Bruno. O coração informado: Autonomia na era da massificação. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1985. p. 59.

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trouxeram ao homem muitos benefícios concretos, mas, de outro lado, como ele obteve

muitas vantagens ao confiar amplas áreas de sua vida aos especialistas, tornou-se-lhe

altamente tentador deixar que estes cada vez mais tomassem conta de áreas que na realidade

deveriam continuar cuidando como sendo de liberdade pessoal. 134

2.1.3 Um Poder contrário que enfraquece135 o Biopoder e a Biopolítica

Há sempre uma violência quando não identificamos ou lutamos pela biopolítica. Este

campo encontra-se aberto a todos e nem sempre é reconhecido pelos motivos já declinados,

mas mesmo assim, devemos admitir que ainda há o mau uso da autoridade, da liberdade e do

poder. Em A Condição Humana Hannah Arendt busca o sentido da vida. A política penetra na

vida e solicita que descubramos isto pela participação que todos podem ofertar para a

conquista e preservação de um cenário melhor.

Ainda sobre a obra de Hannah Arendt Crises da República,135 ao se refletir sobre as

violências existentes nos atos humanos, há um fator na situação atual que, embora não

previsto por ninguém, é de igual importância. Hannah Arendt raciocina que o

desenvolvimento técnico dos implementos da violência chegou a tal ponto que nenhum

objetivo político concebível poderia corresponder ao seu potencial destrutivo, ou justificar seu

uso efetivo num conflito armado.

Verifica-se que a ação humana utiliza-se de meios para realizar conquistas,

principalmente no campo político, como se pode verificar na modernidade. Há uma revolução

nos campos tecnológicos, como o emprego de armas poderosas, com o intuito da utilização de

violência e arbitrariedades contra a humanidade.

Ela registra ainda que na arte da guerra, o apocalíptico jogo entre as superpotências,

entre os que manobram no plano mais alto de nossa civilização, está sendo jogado segundo a

regra “se qualquer um ganhar é o fim de ambos”.137 Há uma forte crítica de Hannah Arendt

em relação a essas posturas e posicionamentos das superpotências, quando ela estabelece que

nessas circunstâncias há poucas coisas mais assustadoras do que o incrível crescimento do

prestígio dos estrategistas com mentalidade científica nos Conselhos governamentais: “O

134 Ibid., p. 61. 135 Título inspirado na obra Leviatã de Thomas Hobbes a partir do texto denominado: “Das coisas que

enfraquecem um Estado ou levam a sua Dissolução”. HOBBES, 2012. p. 255. 135 ARENDT, Hannah. Crises da República. Tradução de José Volkmann. São Paulo: Perspectiva, 2010. p. 93. 137 Ibid., p. 94.

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problema não é que eles tenham sangue frio suficiente para pensar o impensável, mas

justamente é que eles não pensam”.138

Ainda nesse aspecto, em relação às superpotências, e suas posturas de guerras, Hannah

Arendt analisa cuidadosamente e de forma específica em seus estudos os estados totalitários e

o declínio do Estado-nação, buscando na figura dos apátridas-displaced person139, pessoas

desnacionalizadas, sem quaisquer qualidades e valor, que acabavam sendo repatriadas para

seus países de origem, perdendo todos os seus direitos, marginalizadas até onde o biopoder e a

biopolítica jamais os alcançariam.

Nessa linha de pensamento Hannah Arendt nos traz a discussão sobre liberdade,

emancipação e soberania popular, pois estas só poderiam ser alcançadas através da completa

emancipação nacional, e os povos privados de seu próprio governo nacional ficariam sem a

possibilidade de usufruir dos seus direitos. Mais uma situação que isolava aqueles que

abandonaram seus países em busca de uma condição melhor, pois onde se encontravam eram-

lhes impostas condições que oprimiam o seu modo de vida de apátridas.

Expressa em sua obra as perplexidades com os abusos contra os Direitos Humanos,

qualificados por ela em três momentos como inalienáveis, irredutíveis e indeduzíveis. O

homem surgia como único soberano em questões de lei, da mesma forma como o povo era

proclamado o único soberano em questões de governo. A soberania do povo era proclamada

em nome do Homem, parecendo normal que o Homem encontrasse sua garantia no direito do

povo a um autogoverno soberano e se tornasse importante e inalienável esse direito.

Os direitos do Homem, afinal, haviam sido definidos como “inalienáveis” porque se

supunha serem independentes de todos os governos; mas sucedia que, no momento

em que seres humanos deixavam de ter um governo próprio, não restava nenhuma

autoridade para protegê-los e nenhuma instituição disposta a garanti-los.140

As pessoas consideradas apátridas não tinham direito à residência, ao trabalho, tinham

de viver em constante transgressão à lei. Sujeitos a ir para cadeia sem nunca ter cometido um

crime, pois estavam desprovidas de um estatuto político que pudesse definir sua condição.

Sem a proteção das comunidades jurídico-políticas nacionais, e privados dos direitos

138 Ibid., p. 96. 139 Segundo Hannah Arendt “A expressão displaced person (pessoas deslocadas) foi inventada durante a segunda

guerra mundial com a finalidade única de liquidar o problema dos apátridas de uma vez por todas, por meio do

simplório expediente de ignorar a sua existência. O não reconhecimento de que uma pessoa pudesse ser “sem

Estado” levava as autoridades, quaisquer que fossem, à tentativa de repatria-la, isto é, deportá-la para o seu país

de origem, mesmo que este se recusasse a reconhecer o repatriado em perspectiva como cidadão, ou, pelo

contrário, desejasse o seu retorno apenas para puni-lo”. Cf. HANNAH, 1989, p. 313. 140 Ibid., p. 325.

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universais do Homem, os apátridas eram vítimas de um sério desequilíbrio na efetividade e

atuação da política de direitos humanos.

Uma situação que impressiona é o caso de um apátrida que cometesse determinado

crime, ou infração: um pequeno furto poderia melhorar a situação do apátrida para legal, pois

o crime passa a ser a melhor maneira de recuperação de certa igualdade humana, já que a lei

prevê esta exceção nestes casos; assim o apátrida ficaria a salvo das arbitrariedades policiais

quando cometesse um delito. “Só como transgressor da lei pode o apátrida ser protegido pela

lei”.141 Na condição de criminoso o apátrida teria sua situação favorecida.

O mesmo homem que ontem estava na prisão devido à sua mera presença no mundo,

que não tinha quaisquer direitos e vivia sob ameaça de deportação, ou era enviado

sem sentença e sem julgamento para algum tipo de internação por haver tentado

trabalhar e ganhar a vida, pode tornar-se quase um cidadão completo graças a um

pequeno roubo. Mesmo que não tenha um vintém, pode agora conseguir advogado,

queixar-se contra os carcereiros e ser ouvido com respeito. Já não é o refugo da

terra: é suficientemente importante para ser informado de todos os detalhes da lei

sob a qual será julgado. Ele torna-se pessoa respeitável.142

A situação tornou-se grave, pois o Estado-nação, incapaz de prover uma lei para

aqueles que haviam perdido a proteção de um governo nacional, acaba transferindo o

problema dos apátridas para a polícia. Assim a polícia da Europa recebeu autoridade para agir

por conta própria, para administrar e governar diretamente as pessoas, nesta esfera da vida

pública. Nos regimes totalitários, antes e durante a Segunda Guerra mundial, a polícia havia

conquistado o auge do poder, ficando a situação mais complexa ainda.143

Durante o século XIX, o consenso da opinião era de que os direitos humanos tinham

de ser invocados sempre que um indivíduo precisasse de proteção contra a nova soberania do

Estado e arbitrariedade da sociedade contra este indivíduo.144 Hannah Arendt sublinha que o

conceito de direitos humanos foi tratado de modo marginal pelo pensamento político do

século XIX, e nenhum partido político do século XX o incluiu em seu programa, mesmo

quando era urgente fazê-lo.

Os apátridas, ou povos sem Estado, têm sido uma constante em nosso mundo. De

alguma forma, a ausência dos direitos humanos em situações críticas da humanidade, revela a

extensão de políticas tirânicas e totalitárias existentes, à medida que há um desprezo em

relação àquele estatuto e ao ser humano em toda a sua potencialidade. Há Estados que por

141 ARENDT, 1989a, p. 320. 142 Ibid., p. 320. 143 Ibid., p. 321. 144 Ibid., p. 324.

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políticas externas e questões de segurança interna divulgam informações dentro do próprio

território, com o fim de aterrorizar e criar expectativas em relação a outros povos. Ou seja,

como se outros povos representassem um perigo ou ameaça para a Nação em que buscam

acolhimento.

Na linha de estudo e pesquisa de Hannah Arendt, Giorgio Agamben declinou sua tese

voltada à biopolítica e ao biopoder. O texto a seguir trabalha a política e os exemplos por ela

deixados, o mais grave dos quais nos permitirá perceber o quanto o Estado afasta-se das

propostas de uma política mais humana e daquilo que podemos declinar como o sentido desta

política vida.

2.2 Estado de Exceção – Política e atualidade

O estado nazista é exemplo relevante para o entendimento do estado de exceção, pois

logo que tomou o poder foi promulgado o Decreto para a proteção do povo e do Estado, que

suspendia os artigos da Constituição de Weimar145 relativos às liberdades individuais.

O decreto nunca foi revogado, de modo que o estado de exceção durou 12 anos. Giorgio

Agamben146 afirma que o totalitarismo moderno pode ser definido nesse sentido, como a

instauração por meio do estado de exceção de uma guerra civil legal, que permite a

eliminação física não somente dos inimigos políticos, mas igualmente categorias de cidadãos

que, por qualquer motivo pareçam perigosos ou perseguidos do sistema político.

No estado nazista o estado de exceção passa a garantir a existência da norma, ao

mesmo tempo que suspendia outra norma, a Constituição de Weimar. O decreto que vigorou

representava o estado de exceção em relação à liberdade individual. “É o momento em que a

aplicação da lei é suspensa, mas ela mesma se mantém em vigor”.147 O autor observa, ainda,

que “o estado de exceção apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de

indeterminação entre democracia e absolutismo”.148

Responsáveis por fatos que colocam em risco a ordem de um país, pessoas que foram

detidas por serem suspeitas de colocarem em risco a segurança pública, são classificadas

como seres juridicamente inomináveis ou inclassificáveis, sendo apenas comparáveis com a

145 No entendimento da leitura do texto significa Constituição Alemã (Tradução e entendimento livre). 146 AGAMBEN, 2004, p. 13. 147 TESHAINER, Marcus Cesar Ricci. Política e desumanização – Aproximação entre Agamben e a

psicanálise. São Paulo: Educ/Fapesp, 2013. p. 66. 148 AGAMBEN, op. cit., p. 13.

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situação jurídica dos judeus, ou seja, haviam perdido toda a identidade jurídica, conservando

apenas a sua identidade judia.149

Giorgio Agamben nos aponta que hoje há uma progressiva erosão dos poderes

legislativos, a ratificar decisões promulgadas pelo poder executivo sob a forma de decretos

com força de lei, como no caso o Brasil: Medidas Provisórias tornam-se uma prática rotineira,

possibilitando que o Executivo legisle numa constância, fazendo desta forma a casa legislativa

afastar-se de assuntos importantes de ordem nacional.

Uma das características essenciais do estado de exceção, a abolição provisória da

distinção entre poder legislativo, executivo e judiciário, mostra, aqui, sua tendência a

transformar-se em prática duradoura de governo.150

Nessa ordem, a questão mostra quanto o problema do estado de exceção apresenta

semelhanças com o direito de resistência. Segundo Giorgio Agamben, discutiu-se muito, em

especial nas assembleias constituintes, sobre a oportunidade de se inserir o direito à

resistência no texto da Constituição. É assim que o projeto da atual Constituição italiana

introduziu um artigo que estabelecia: “Quando os poderes públicos violam as liberdades

fundamentais e os direitos garantidos pela Constituição, a resistência à opressão é um direito e

um dever do cidadão”.151

Segundo Giorgio Agamben houve rejeição à sua implementação, mas na Constituição

Alemã figura um artigo que legaliza, sem restrições, o direito de resistência, afirmando que

“contra quem tentar abolir esta ordem (a Constituição democrática), todos os alemães têm o

direito de resistência, se outros remédios não forem possíveis”.15

Tanto no direito de resistência quanto no estado de exceção, o que realmente está em

jogo é o problema do significado jurídico de uma esfera de ação em si extrajurídica.

Aqui se opõem duas teses: a que o direito deve coincidir com a norma e aquela que,

ao contrário, defende que o âmbito do direito excede a norma. Mas em última

análise, as duas posições são solidárias no excluir a existência de uma esfera humana

que escape totalmente do direito.153

Quanto à introdução de artigo na Constituição Alemã, ao direito de resistência à

opressão, Giorgio Agamben pontua que ocorrendo violação às liberdades fundamentais e dos

direitos garantidos pela Constituição, o Estado estaria numa situação de estado de exceção,

149 Ibid., p. 12. 150 AGAMBEN, 2004, p. 19. 151 Ibid., p. 23. 152 Ibid., p. 23-24. 153 Ibid., p. 24.

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pois violaria estes direitos garantidos constitucionalmente. Ele estaria regulamentando o

direito à resistência.

O indivíduo exposto a todo esse processo não escapa às relações de poder, e deve

acreditar nas leis e no ordenamento jurídico – político, com atenção às questões das

necessidades pautadas na vida:

O direito à resistência produz-se por uma causa interna, essencial, própria da

afirmação da vida contra as subjugações, o “direito à vida” depende de uma causa

externa, da concessão transcendente de valores por parte das forças dominantes. Na

biopolítica, quando os dispositivos de poder visam atribuir de fora o valor ao

homem, valor chamado dignidade da pessoa humana, eles prescindem de que a

própria vida produza os seus valores.154

Em atenção a nosso estudo, pensar os direitos humanos é fundamental como

construção de igualdade e ainda considerar a atuação da biopolítica e do biopoder em tais

situações. Celso Lafer aproxima-se das ideias da filósofa alemã, na obra A Reconstrução dos

Direitos Humanos – Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt,155 abordando também

a questão dos apátridas, para ele não se resumindo na situação de terem perdido somente suas

casas, mas o tecido social em que nasceram e no qual estabeleceram um lugar no mundo.

O apátrida não acha um lugar na família das nações, ele perde em primeiro lugar o

elemento de conexão com o Direito Internacional Público, que é a nacionalidade, pois a

ligação tradicional entre o indivíduo e o Direito das Gentes estabelece-se através da

nacionalidade, que permite a proteção diplomática, resultante da competência pessoal do

Estado em relação aos seus nacionais.156

Em fatos mais recentes, que todos têm acompanhado pela grande imprensa, e que

colocam muitos países em estado de atenção, considerando o mundo extremamente

organizado politicamente, verificamos os fenômenos de imigração em que refugiados lotam

barcos na tentativa de chegarem a outros países que possam acolhê-los. Muitos não logram a

felicidade de chegarem vivos, considerando a extrema dificuldade em atravessar, em barcos

frágeis, águas dos mares que vizinham ou não outros continentes.157

154 CAVA, Bruno; MENDES, Alexandre. A vida dos direitos – Violência e Modernidade em Foucault e

Agamben. Rio de Janeiro: NPL/Agon Grupo de Estudos, 2008. v. 2. (Revista de Filosofia Política do Direito

Agon). p. 87. 155 LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos: Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt.

São Paulo: Cia das Letras, 1988. 156 Ibid., p. 146. 157 FLECK, Isabel. Menino morto aviva comoção por refugiados. Folha de S. Paulo, São Paulo, 03 set. 2015,

n. 31, Caderno A – Notícias do Mundo. p. 12.

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59

São refugiados de vários países, sem a presença do biopoder, da biopolítica e do

biodireito. A imagem do pequeno menino morto na praia correu o mundo pelas redes sociais

conforme informações da imprensa. O irmão e a mãe não resistiram também. Nas estradas,

caminhões com mais refugiados (vivos e mortos) foram encontrados, todos em busca de uma

nova pátria.

Com o início da guerra em seus países de origem, sofrendo perseguições e se tornando

vítimas de guerras civis, indivíduos ou populações acorrem em peregrinações para outros

países. São crises que se agravam a cada dia, e países da Europa já colocam limites para a

entrada de estrangeiros.

O autoritarismo e o totalitarismo de governos provocam um processo de desagregação

social, inviabilizando ao cidadão habitar sua própria nação, obrigando-o à perda de sua

identidade. O problema colocado por Hannah Arendt, conforme pode-se verificar, atinge todo

processo do biopoder, ausente numa política de alcance com relação a esses fatos; melhor

dizendo, existe um Estatuto dos Direitos Humanos, mas este se vê praticamente enfraquecido

diante do totalitarismo. A existência de seres humanos pode ser vista como supérflua:

As declarações dos direitos devem então ser vistas como o local em que se efetua a

passagem da soberania régia de origem divina à soberania nacional. Elas asseguram

exceptio da vida na nova ordem estatal que deverá suceder à derrocada do ancien

régime. Que, através delas, o “súdito” se transforme, como foi observado, em

“cidadão”, significa tornar-se aqui pela primeira vez (como uma transformação cujas

consequências biopolíticas somente hoje podemos começar a mensurar) o portador

imediato da soberania. O princípio de natividade e o princípio de soberania,

separados no antigo regime (onde o nascimento dava lugar somente ao sujet, ao

súdito) unem-se agora irrevogavelmente no corpo do sujeito soberano para constituir

o fundamento do novo Estado-nação. Não é possível compreender o

desenvolvimento e a vocação nacional e biopolítica do Estado moderno nos séculos

XIX e XX, se esquecemos que em seu fundamento não está o homem como sujeito

político livre e consciente, mas, antes de tudo, a sua vida nua, o simples nascimento

que, na passagem do súdito ao cidadão, é investido como tal pelo princípio de

soberania. A ficção aqui implícita é a de que o nascimento torne-se imediatamente

nação, de modo que entre os dois termos não possa haver resíduo algum. Os direitos

são atribuídos ao homem (ou brotam dele), somente na medida em que ele é o

fundamento, imediatamente dissipante (e que, aliás, não deve nunca vir a luz como

tal), do cidadão.158

2.2.1 Outras formas do direito à resistência

Busquei, dentro daquilo que estamos trazendo como reflexão, os aspectos totalitários

na forma de governar, lembrando que mesmo dentro de regimes democráticos podemos

158 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo

Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 135.

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encontrar movimentos nesse sentido; ao lado deles, uma forma de oposição contra injustiças

existentes, que impedem a vida política na esfera social e em que o biopoder termina agindo

contrariamente à proposta de atuar favoravelmente para todos.

O que desejo esclarecer resgato da obra de John Rawls, Uma Teoria da Justiça,

quando abordo o caso da desobediência civil como atitude favorável ao cidadão. Quando

assistimos situações em que governantes desconhecem para quem e por que estão

governando, desconhecem a cidadania e por consequência os direitos humanos e

fundamentais.

Algumas consequências biopolíticas “negativas” começam a ficar aparentes, devido às

dificuldades com que as sociedades vêm se defrontando, como a ausência desses direitos

importantes na esfera social; ao mesmo tempo, recursos de grandeza última são empregados

em guerras, corrupções e políticas com fins particulares sem nenhum proveito para o cidadão.

Posso errar, mas aqui é o fazer morrer e não deixar viver.

John Rawls define desobediência civil como um ato público, não violento, consciente:

um ato político, geralmente para provocar mudanças na lei e nas políticas de governo. Agindo

por desobediência, alguém se dirige ao senso de justiça da maioria da sociedade. Há uma

ponderação e na opinião da maioria conclui-se que os importantes princípios não estão sendo

respeitados. Sem dúvida, num regime constitucional, os tribunais podem no fim posicionar-se

ao lado dos opositores e declarar que a lei ou a política em questão é inconstitucional ou

injusta.160

A desobediência civil é um ato político, não somente no sentido de que se dirige à

maioria que detém o poder político, mas também porque é um ato que se orienta e justifica

por princípios políticos, ou seja, pelos princípios de justiça que regulam a Constituição e as

instituições sociais de forma geral.161

É resposta a uma constante violação, de forma contínua e deliberada, de princípios

básicos, por um período largo e sem que nenhum governante tome consciência de sua

gravidade, especialmente quando trata de infração a liberdade básica, incitando ou à

submissão ou à resistência.

John Rawls define em seu texto ser a desobediência civil um ato público, com

comunicação franca com todos; não é encoberta e não representa ser ato secreto, do qual não

se saiba o verdadeiro interesse, tampouco é voltado a gestos de violência contra patrimônio ou

pessoas por parte daquilo e daquele que se posiciona. A conscientização pública é necessária

160 RAWLS, 2002, p. 404. 161 Ibid., p. 405.

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para que aconteçam as propostas das reformas que devem ser feitas. O sentimento de justiça

será visto como uma força política vital, assim que se reconhecerem as formas sutis de

influência e particularmente o seu papel de tornar certas posições sociais indefensáveis.162

2.2.2 Sobre a inclusão e a dignidade humana

Jürgen Habermas, em A Inclusão do Outro,163 traz reflexões sobre o caso dos

imigrantes. Nos casos de imigrantes, sob o ponto de vista humanitário, há uma busca pelo

bem-estar social daqueles refugiados – imigrantes que tencionam escapar de uma existência

de miséria em sua terra natal, quando não de eternas guerras que destroem comunidades

inteiras.

Há boas razões morais para uma reivindicação de direito individual a asilo político,

invocando a defesa da dignidade humana. Habermas nos aponta que segundo a Convenção

sobre Refugiados, de Genebra, tem direito a asilo todo aquele que foge de países “em que sua

vida ou sua liberdade pudesse estar ameaçada por causa de sua raça, religião, nacionalidade,

por pertencer a determinado grupo social ou por causa de sua convicção política”.164

Em favor da postulação moral, Jürgen Habermas pontua que é possível apresentar

boas razões que justifiquem um processo imigratório. Normalmente as pessoas não

abandonam a terra natal a não ser em meio a grandes dificuldades; para documentar sua

necessidade de auxílio basta o fato de terem fugido, mas ainda estas e outras razões não

bastam para justificar a garantia de um direito individual à imigração que seja legítimo e que

possa ser cobrado por ação judicial; mas o comprometimento moral poderá colaborar no

comprometimento com uma política liberal de imigração, buscando equilibrar a justificativa

dada “o barco está lotado”.165

2.2.2.1 Inclusão das diferenças

Jürgen Habermas igualmente trabalha em seu texto, intitulado “Lutas por

reconhecimento – os fenômenos e os planos de sua análise”,166 o que igualmente Hannah

Arendt pontua em Origens do Totalitarismo, ou seja, as questões de inclusão das diferenças

162 Ibid., p. 429. 163 HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. Tradução de George Sperber e outros. 3. ed. São Paulo:

Loyola, 2002a. 164 HABERMAS, 2002a, p. 267-268. 165 Ibid., p. 269. 166 Ibid., p. 246-269.

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surgem também nas sociedades democráticas, quando uma cultura majoritária, no exercício

do poder político, imprime às minorias a sua forma de vida, negando aos cidadãos de origem

cultural diversa uma efetiva igualdade de direitos. A coexistência com igualdade de direitos

de diferentes comunidades étnicas, grupos linguísticos, confissões religiosas e formas de vida,

não poderá ser obtida ao preço da fragmentação da sociedade. A cultura majoritária deve

envolver e permitir que haja integração com a minoritária, se não quiser prejudicar o processo

democrático em determinadas questões existenciais, que são relevantes para as minorias.

É assim que podemos observar as relações preconceituosas existentes não apenas em

relação aos imigrantes estrangeiros e apátridas, como já foi anteriormente declinado nos

textos de Hannah Arendt, mas buscamos encontrar também nas abordagens de Jürgen

Habermas, os ataques efetuados em prol da exclusão de pessoas de raça, credo e orientação

sexual diferentes, que se encontram nas mesmas condições de direitos e deveres de grupos

que se dizem majoritários. Todos terão que adquirir uma linguagem comum, uma ação

comunicativa que funcione em interesse de todos.

Jürgen Habermas esclarece que autodeterminação democrática significa participação

homogênea de cidadãos livres e iguais no processo de tomada de decisões. O que está em jogo

na ordem do dia são estratégias que possam evitar, na medida do possível, o uso da violência,

e que estas estratégias venham influenciar a situação interna de Estados formalmente

soberanos com o objetivo de incentivar uma economia auto-sustentada e condições sociais

suportáveis, uma participação democrática uniforme, a vigência do Estado de direito e uma

cultura de tolerância.167

Celso Lafer pontua que na esfera do público, que diz respeito ao mundo que

compartilhamos com as outras pessoas e que, portanto, não é propriedade privada de

indivíduos e ou de poder estatal, deve prevalecer, para se alcançar a democracia, o princípio

da igualdade. Este não é dado, pois as pessoas não nascem iguais e não são iguais nas suas

vidas. A igualdade resulta da organização humana. Afirma ainda que “é a polis, que torna os

homens iguais por meio da lei, assim perder o acesso à esfera do público significa perder

acesso a igualdade”.168

2.2.2.2 Estado de Exceção e a Teoria da Corrupção

167 HABERMAS, 2002a, p. 178. 168 LAFER, 1988. p. 153.

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Outro item que proponho incluir no assunto sobre estado de exceção, é a questão sobre

a corrupção existente em vários setores sociais e políticos. Um artigo publicado no Jornal O

Estado de São Paulo, publicado em 24/02/1980, escrito por J. Patrick Dobel, denominado

Teoria da Corrupção, traz luz a um tema discutido e apontado como problema sério no

cenário social e político. O articulista pontua que a corrupção possibilita uma crise moral

política e privada, pois problemas desta ordem criam situações desestruturadoras em uma

sociedade.

O artigo relata igualmente que a corrupção pode ser considerada uma forma

desordenada de vida, pela utilização de meios que se encontram para burlar uma situação pelo

oferecimento a uma pessoa de oportunidades de ganho em troca de outro ganho. Não é um

problema apenas do cenário privado, mas do político também.

Como e por que o Estado e as pessoas se corrompem? transformei em questão uma

justificativa levantada por J. Patrick Dobel.169 São questões difíceis de serem respondidas,

pelo menos nesta tese, mas o fator corrupção colabora e contribui negativamente com a

biopolítica e o biopoder, inviabilizando suas propostas de vida, justiça e igualdade junto a

sociedade. Convém lembrar que nossa tese central se assenta no esforço em construir uma

sociedade bem-ordenada, sem as amarras de governos totalitários ou tirânicos, mas

experimentados em processos democráticos, com a biopolítica e biopoder, e as questões de

fazer viver e deixar morrer.

Patrick Dobel esclarece que uma proposta de igualdade econômica e política, dentro

de um equilíbrio que possa satisfazer os direitos fundamentais, é proposta essencial para a

efetividade desses direitos. A virtude cívica é alimentada pela educação do indivíduo que

contribui para que um Estado Social e de Direito vislumbre posições mais seguras de justiça

social.170

O artigo esclarece que indivíduos que são altruístas e com disciplina moral são fortes

colaboradores que podem impedir o trânsito de propostas que circulam junto a instituições

públicas ou junto aos vários departamentos do setor privado, evitando desta maneira fraturas

no corpo das instituições públicas e privadas, que são patrimônio de todos.171

O texto do artigo revela que a interpretação econômica argumenta que as distribuições

desiguais da economia e do poder levaram a rupturas sociais graves, criando um abismo entre

as possibilidades e necessidades; assim a teoria da corrupção pode ser uma alternativa da 169 DOBEL, J. Patrick. Como e por que um Estado se corrompe. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 24 fev.

1980. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19800224-32192-nac-0119-999-119-not>.

Acesso em: 02 jan. 2016. Professor da Universidade de Washington de Ética Pública e Gestão Pública. 170 Ibid. 171 Ibid.

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decadência de confiança e a ausência do fator reciprocidade entre governantes e governados

nas propostas que cabem a ambos.172

Embora na contemporaneidade a corrupção geralmente signifique a traição da

confiança pública para o lucro de indivíduos ou grupos, como a teoria política faz saber, já

declinou-se dessa questão em favor da filosofia política, que passo a expor:

Assim é, meu grande amigo, em toda a sua extensão, a corrupção que perverte as

melhores naturezas, aliás bem raras, como observamos. É de homens assim que

saem não apenas os que causam os maiores males às cidades e aos cidadãos, mas

também os que lhes proporcionam o maior bem quando seguem o caminho certo;

mas um temperamento medíocre nunca faz nada de grande a favor ou em detrimento

de alguém, mero cidadão ou cidade.173

Em certo momento da obra A República, Platão aponta como alguns homens agem na

cidade e na vida pública como tiranos, pois nutrem o mesmo tipo de comportamento na vida

particular como na vida pública:

[...] na vida particular, e antes de chegarem ao poder, esses homens não se

comportam da mesma maneira? Em primeiro lugar, vivem com pessoas que são para

eles aduladores prontos a obedecer-lhes em tudo ou, se têm necessidades de alguém,

cometem baixezas, atrevem-se a desempenhar todas as funções para lhe

demonstrarem a sua dedicação, como o inconveniente de se recusarem a conhecê-lo,

uma vez alcançados os seus fins. 174

Aristóteles realça que a primeira espécie de democracia é a que tem a igualdade por

fundamento. Nos termos da lei que regula essa democracia, a igualdade significa que os ricos

e os pobres não têm privilégios políticos, assim tanto uns como os outros são soberanos de um

modo exclusivo, e todos o são exatamente na mesma proporção.175 Aristóteles acrescenta

ainda:

De resto a questão que aqui tratamos aplica-se em geral a todos os governos, mesmo

os bons governos. Assim operam os que são corrompidos e só visam ao interesse

particular, e do mesmo modo se conduzem os que têm em vista o interesse geral.

“[...] vê-se, pois, que nos governos corrompidos ele só serve o interesse particular, e

só é justo sob este aspecto; talvez se compreenda com a mesma clareza que ele não é

absolutamente a expressão da justiça”. 176

172 Ibid. 173 PLATÃO, 2005, p. 235. 174 PLATÃO, 2005, p. 345. 175 ARISTÓTELES, 2009. p. 106 176 Ibid., p. 106.

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Patrick Dobel destaca a mudança da qualidade moral da vida do cidadão, que

combinada com a desigualdade, gera facções. Facções às vezes podem estar em todos os

níveis, podendo corromper agências públicas e a lei. Ser membro de uma facção muda o

caráter moral das pessoas, estimula o egoísmo radical.178

O artigo aprofunda-se na vida privada do indivíduo, rumo à alienação, à violência e à

anarquia institucional cada vez maior. Uma outra situação abordada é a vida moral individual

tornar-se progressivamente privatizada e o interesse próprio passar a ser motivo normal da

maioria das ações. A privatização das preocupações morais muda o cálculo moral da

sociedade. O contrato interesseiro passa a ser a relação social normal.

Dobel179 destaca ainda que a virtude cívica requer não apenas lealdade, mas também

desinteresse e adesão pessoal ao bem comum. Em consequência, quem é totalmente egoísta é

também totalmente corrupto, no sentido de que não possui lealdade, não possui desinteresse

nem compromisso com o bem comum. A lealdade é uma condição prévia, pois sem ela não

será possível ter desinteresse, tampouco compromisso com a comunidade.

O hábitos, os costumes e a empatia espontânea com os outros cidadãos dão conteúdo

diário à lealdade ativa. Essa lealdade cívica não é simplesmente patriotismo dominado por

emoções. A verdadeira lealdade exige reflexão racional do cidadão, um compromisso

desinteressado com a família e a comunidade. Nesse aspecto o sistema de educação social

pode estar comprometido, conforme alerta o articulista:

O sistema de educação cívica da sociedade é corrompido por meio de vários

assaltos. À medida que a corrupção dos valores do governo e da sociedade em geral

vai ficando mais evidente, torna-se mais difícil encontrar professores que ensinem a

sério tais valores. O ensino, em si, transforma-se numa ocupação desvalorizada, num

mundo de grandes disparidades econômicas e sociais, e cada vez menos as pessoas

de talento dedicam-se a ele. Ao mesmo tempo, professores e escolas veem-se sob o

ataque constante de várias facções porque ensinam um conjunto de valores que

poderia levar um estudante a questionar o lugar ocupado na sociedade por uma

determinada facção, ou prejudicar o recrutamento futuro de uma facção. As escolas

também se confrontam com estudantes e pais que acham contraproducente a

“antiga” preocupação com lealdades e costumes racionais e humanos num mundo de

egoísmo atomizado e competição faccional. As escolas são lentamente

transformadas em mero treinamento ocupacional para as facções e ficam destituídas

de quaisquer valores independentes, ligados à lealdade, ao bem comum e aos outros

cidadãos.180

178 DOBEL, 1980. 179 Ibid. 180 DOBEL, 1980.

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No livro Oitavo da obra O Espírito das Leis,181 Montesquieu demonstra que a

corrupção de cada governo começa quase sempre pela corrupção de seus princípios. As

situações levantadas por Montesquieu parecem a ordem do dia, de tão atuais que são. O

pensador explica que o princípio da democracia se corrompe não somente quando se perde o

espírito de igualdade, mas também quando se adquire o espírito de igualdade extremo e assim,

cada um quer ser igual àqueles que escolheu para comandá-lo.

Montesquieu observa que o povo cai nesta desgraça quando aqueles a quem confia seu

destino, querendo esconder sua corrupção, tentam corrompê-lo. Para que o povo não perceba

sua ambição, só lhe falam de sua grandeza; para que não perceba sua avareza, elogiam sempre

a do povo. Montesquieu reitera essa proposição:

A corrupção aumentará entre os corruptores e entre aqueles que já estão

corrompidos. O povo distribuirá entre si todos os dinheiros públicos e, como terá

junto à sua preguiça a gestão de negócios, irá igualmente desejar juntar à sua

pobreza os divertimentos do luxo. Com sua preguiça e seu luxo, somente o dinheiro

público poderá ser para ele um objetivo.182

Montesquieu segue em seus apontamentos: “Assim, a democracia deve evitar dois

excessos: o espírito de desigualdade, que a leva à aristocracia, ou ao governo de um só; o

espírito de igualdade extrema, que a leva ao despotismo de um só, assim como o despotismo

de um só termina com a conquista”.183

Dobel184 lembra ainda que, num Estado desigual e corrupto, a maioria não tem por que

defender algo que lhe dá tão pouco. As elites preocupam-se muito consigo mesmas e possuem

meios próprios de proteção.

O estado de exceção estabelecido por conta da corrupção, volto a insistir que não se

resume unicamente em transações financeiras de pessoas interessadas em troca de favores e

serviços, quando deveriam respeitar a lei, dirigida a todos, pois esta é que torna os homens

iguais; mas a corrupção permeia todos os ambientes da vida social. Uma espécie de poder,

que se utiliza de mecanismos contrários à ordem estabelecida pela Constituição.

A intenção é demonstrar que a corrupção inviabiliza uma legislação, colocando-a em

segundo plano, por conta de outras regras que são estabelecidas pelos interessados para

promover seus próprios interesses e “direitos”. Criou-se um estado de exceção perigoso, pois

contraria o ordenamento jurídico de um Estado. O modelo adotado por algumas pessoas, ou

181 MONTESQUIEU, 2005, p. 120. 182 MONTESQUIEU, 2005. p. 122. 183 Ibid., p. 123. 184 DOBEL, 1980.

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sociedade ou agentes públicos, engessa qualquer via de acesso a igualdade de direitos. Como

nota Willis Santiago Guerra Filho num artigo intitulado “(Anti-)Direito e força de lei/lei”

publicado na Revista Panóptica: “o estado de exceção, concluíra Agamben, com apoio em

Carl Schmitt, é um espaço anômico, onde o que está em jogo é uma força de lei sem lei”. 185

Guerra Filho esclarece ainda que “Jacques Derrida, em sua obra Força de Lei, passa a

escrever a partir de dado momento de sua exposição força de lei, riscando a palavra ‘lei’, para

assim demonstrar, graficamente, como a forças sem a lei é mera força, violência disfarçada de

lei”.186

A corrupção se transformou numa força violenta, não apenas por burlar o ordenamento

jurídico, criando um “anti-direito’ (palavra de Willis Santiago Guerra), mas por desenvolver

no setor público e privado posturas contrárias aos critérios de justiça. De fato, adverte

Montesquieu: “Mas quando num governo popular as leis tiverem cessado de ser executadas,

como isto só pode vir da corrupção da república, o Estado já estaria perdido”.187

“O Estado de exceção, certamente não por acaso, tende cada vez mais a se apresentar

em todo o lado, com intensidade variada, como o paradigma de governo dominante na política

contemporânea”.188 Poderia ajustar esta colocação de Willis Guerra, dentro do assunto que

tratamos neste item, ou seja, que instaurou-se um estado de exceção dentro do Estado

Democrático. Este estado de exceção é a teoria da corrupção vigorando como “lei”. Tudo isso

devido ao envolvimento que instituições públicas e privadas podem buscar em favor próprio.

Na acepção de Jacques Derrida, poder-se-ia entender, “ela interrompe o direito estabelecido

para fundar outro”.189

“No estado de exceção, considerando que a ordem normativa continue formalmente

válida, é-lhe subtraída a eficácia, aplicando-se as medidas excepcionais”.190 Há uma exceção

do poder público que deveria estar seguindo a lei, com mínimo de validade para lei formal,

com o máximo de eficácia para uma dada decisão que adquire força de lei.

Thomas Hobbes, em seu Leviatã, alerta sobre as coisas que enfraquecem o estado e

causam a sua dissolução. Atitudes contrárias à essência do Estado acontecem quando o poder

do estado é dividido. Thomas Hobbes formula uma questão: “Em que consiste dividir o poder

185 GUERRA FILHO, Willis Santiago. (Anti-)Direito e força de lei/lei. Panóptica, São Paulo, ano 1, n. 4, p. 65-81,

2010. p. 77. Giorgio Agamben define em sua obra Estado de Exceção: “O estado de exceção é um espaço

anômico onde o que está em jogo é uma força-de-lei sem lei (que deveria, portanto, ser escrita: força-de-lei). Tal

força-de-lei, em que potência e ato estão separados de modo radical. Cf. AGAMBEN, 2004, p. 61. 186 Ibid, p. 71. 187 MONTESQUIEU, 2005, p. 32. 188 GUERRA FILHO, 2010, p. 79. 189 DERRIDA, 2010. p. 84. 190 AGAMBEN, 2004, p. 73.

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de um Estado, senão em dissolvê-lo, uma vez que os poderes divididos destroem-se uns aos

outros?”.191 E responde: “Por essas doutrinas, os homens apoiam-se, principalmente, naqueles

que, fazendo das leis sua profissão, tentam torná-las dependentes de seu próprio saber e não

do poder legislativo”.192

Outra situação é o uso exagerado de Medidas Provisórias pelo Poder Executivo:

Essa confusão entre os atos do Poder Executivo e os do Legislativo é uma das

características essenciais do estado de exceção (o caso-limite é o regime nazista, no

qual, como Eichmann não cessava de repetir, “as palavras do Führer têm força de

lei”). O estado de exceção define um regime de lei no qual a norma vale, mas não se

aplica (porque não tem força), e atos que não possuem o valor de lei adquirem sua

força.193

Guerra Filho ressalta ainda que no caso-limite, a força de lei flutua como um elemento

indeterminado que pode ser reivindicado ora pela autoridade do Estado, ora pela autoridade

de uma organização revolucionária.

O poder político possui dispositivos de poder para cumprir as tarefas da biopolítica,

assim buscar campo para favorecer uma política mais humanizada e menos envolvida com

políticas destinadas a processos econômicos sem compromissos com a humanidade. “Assim,

o poder biopolítico não se apresentará como uma decisão da indignidade, mas da

humanidade”.194

2.3 Biopolítica e Estado

Com os fatos descritos anteriormente, relativos à imigração e à corrupção, apurados

em matérias jornalísticas e de conhecimento de todos, quisemos contribuir para ampliar o

entendimento da extensão e importância da biopolítica como uma nova forma de lidar com a

política do mundo.

Todos, sem exceção, devemos nos debruçar sobre estes assuntos e estudos, pois é a

permanência num mundo mais organizado política e juridicamente, que possibilitará cada vez

menos casos de imigração, que é o resultado do descuido de políticas públicas voltadas ao

bem-estar social e nacional por parte dos governantes.

191 HOBBES, 2012, p. 259. 192 Ibid., p. 259. 193 GUERRA FILHO, op.cit., p. 76. 194 CAVA; MENDES, 2008, p. 63.

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A proposta tem uma discussão no centro da biopolítica, envolvendo biopoder e

biodireito, pois impossível descentralizar ambos da política moderna. Há um conflito entre

política e direito na administração da biopolítica. “Nesse sentido, Giorgio Agamben diz ser

necessário reconstruir a filosofia política, não mais nas figuras tradicionais, como cidadão,

povo soberano, ou trabalhadores, mas na figura do refugiado, aquele que é vítima da violência

e tem sua vida reduzida à vida nua”.195

A questão imigratória, não se isola dentro de acontecimentos que representam o

enfraquecimento ou esquecimento da biopolítica na política dos países; também atos de

guerra exercidos na atualidade por países potencialmente desenvolvidos, ou a simples

execução de testes atômicos no planeta, demonstram que “há a dominação de uma soberania

popular cada vez mais vazia de sentido pelo governo e pela economia”.196

Desta forma, a exposição do indivíduo aos conflitos da modernidade provocados por

articulações fora do propósito da bíos – e voltadas à violência, torna a vida do sujeito político

inviável, de modo que o termo “matar, aqui, não se refere ao ato em si de tirar a vida, mas

defende a existência de formas indiretas de matar, tais como expor pessoas à morte, aumentar

o risco de morte ou providenciar a morte política, por meio da expulsão ou rejeição”.197

Hannah Arendt traz em seu texto a questão sobre ideologia e terror como uma nova

forma de governar. Sobre essa questão observou muitas vezes que o terror reina sobre homens

que se isolam ou afastam-se do propósito da esfera pública. Há a necessidade de restauração

do espaço político como garantia de liberdade. A liberdade tratada por Arendt refere-se ao

sentido político”.198

[...] o isolamento e a impotência, isto é, a incapacidade básica de agir, sempre foram

típicos das tiranias. Os contatos políticos entre os homens são cortados no governo

tirânico, e as capacidades humanas de ação e poder são frustradas. Mas nem todos os

contatos entre os homens são interrompidos, e nem todas as capacidades humanas

destruídas.199

A intimidade da biopolítica com a lei traz a reflexão sobre a atuação efetiva dos

direitos humanos em relação a casos como esses, ou seja, países que abandonam, por qualquer

motivo, seus cidadãos às situações de maus tratos, sujeição à morte, e situações que fere a

cidadania.

195 TESHAINER, 2013, p. 50. 196 Ibid., p. 51. 197 TESHAINER, 2013, p. 55. 198 ARENDT, 1989, p. 526. 199 Ibid., p. 526.

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Num mundo único a cidadania, como base para o direito a ter direitos e como

condição para um indivíduo beneficiar-se do princípio da legalidade, evitando-se

dessa maneira o surgimento de um novo “estado totalitário de natureza”, não pode

ser examinada apenas no âmbito interno de uma comunidade política.200

A estabilidade das leis e seu alcance aos casos da esfera pública garantirão liberdade e

segurança, como ressalta Celso Lafer, utilizando-se da leitura de Hannah Arendt:

Política e Direito são, portanto, para Hannah Arendt, complementares: a primeira

favorece a diversificação da ação e o segundo protege e preserva a sua especificidade.

A legalidade impõe uma duração às vicissitudes da ação e a constituição cumpre o

papel de delimitar o espaço público igualitário que torna possível a criatividade da

ação, pois sem a proteção estabilizadora da lei o espaço público não sobreviveria ao

próprio instante da ação.201

2.3.1 Poder e Direito: Violência e política e a biopolítica

Sobre o poder e Direito, violência e biopolítica, faço algumas considerações para

refletir como o Direito pode atuar para amparar o espaço púbico em seus anseios por uma

política mais voltada à efetividade dos direitos fundamentais, sendo instrumento de justiça e

não somente de violência e poder. Sua atuação é parte essencial muitas vezes para que

reconheçamos que a Constituição Federal autônoma tem força normativa para a concretização

desses direitos.

Existem desafios atuais importantes e urgentes a serem enfrentados, como aqueles já

declinados anteriormente em relação aos apátridas em situação de buscar amparo dos direitos

humanos, bem como situações internas de países em relação aos direitos fundamentais,

considerando os vários casos das crises políticas, sociais e econômicas por conta dos colapsos

administrativos governamentais e sociais, que fazem com que a finalidade estatal e o bem

social não se efetivem.

Há um ideal de justiça que nos parece que não se realiza e ao mesmo tempo um ato de

violência, não somente no sentido de agressão ou ataque a outras pessoas e instituições, mas

da violência contra a biopolítica. Uma violência amparada pelo poder que cria uma tensão

social e individual. Vale lembrar que a liberdade é fator que possibilita escolhas sociais.

O direito se apresenta como um estado de tensão permanente entre o ideal de justiça,

jamais realizado ao menos abstratamente, com a verdade, que é uma forma da justiça, sendo

assim também ela um ideal de regulação, para aqueles que a buscam, seja pela ciência, seja

200 LAFER, 1988, p. 154. 201 Ibid., p. 217.

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pela filosofia; e a realidade da violência traduz a forma cujo conteúdo é o sofrimento causado

a um sujeito, passivo, por um outro sujeito, ativo, para assujeitá-lo à simples violência de uma

vontade de poder.202

O direito poder ser extraído e traído pela força, negativa, malévola, desse meio e

instrumento por excelência do poder que é a violência, materializada em corpos legislativos e

de funcionários a serviço de uma legislação; desde os mais altos, agindo ou omitindo-se de

maneira que autorize a violência, até aqueles que praticam concretamente os atos de violência,

como as corporações policiais.203

É desta negatividade do direito que o biopoder e a biopolítica desejam afastar-se e

buscar o direito como instrumento de justiça e concretização do bem social e individual.

Segundo Walter Benjamin, no ensaio Para uma crítica da violência,204 a tarefa de uma crítica

da violência pode se circunscrever à apresentação de suas relações com o direito e com a

justiça. Assim, qualquer que seja, segundo Walter Benjamin, o modo como atua uma causa,

ela só se transforma em violência, no sentido ruim da palavra, quando interfere em relações

éticas.

No texto205 Walter Benjamin enuncia que a possibilidade de um direito de guerra

repousa nas mesmas contradições objetivas na situação de direito que a possibilidade do

direito de greve, ou seja, na medida em que os sujeitos de direito sancionam violências cujos

fins permanecem, para aqueles que sancionam, fins naturais, e por isso podem, em casos

graves, entrar em conflito com seus próprios fins de direito ou naturais.

O militarismo por exemplo é a imposição do emprego universal da violência como

meio para fins do Estado. Esta imposição do emprego da violência aparece realmente como

ameaçadora, e ainda suscita a antipatia da multidão perante o direito.206

A violência da guerra procura, antes de tudo, chegar a seus fins de maneira totalmente

imediata, e enquanto violência predatória, no entanto, chama a atenção o fato de que mesmo

em condições primitivas que mal conhecem primórdios de relações de direito de Estado, e

mesmo nos casos em que o vencedor entrou na posse de algo, exige celebrar uma cerimônia

de paz, independente das relações com o direito. Essa sanção consiste em reconhecer as novas

202 GUERRA FILHO, Willis Santiago; CARNIO, Henrique Garbellini. Teoria Política do Direito: A expansão

política do direito. 2. ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2013. p. 115. 203 Ibid., p. 115. 204 BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. Tradução de Susana Kampff Lages e Ernani

Chaves. São Paulo: 34, 1995. p. 121. 205 Ibid., p. 130. 206 Ibid., p. 130.

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relações como um novo “direito”, isso de maneira independente saber se essas novas relações

darão certo. 207

Neste sentido ainda, o Estado, entretanto, teme essa violência, pela instauração do

direito e, ao mesmo tempo, é obrigado a reconhecê-la como instauradora do direito quando

potências estrangeiras o forçam a conceder o direito de guerra.

Jacques Derrida, em Força de Lei,208 sugere que tal situação é, de fato, a única que nos

permite pensar a homogeneidade do direito e da violência, a violência como exercício do

direito e o direito como exercício da violência. A violência não é exterior à ordem do direito.

Ela ameaça o direito no interior do direito, e não consiste, essencialmente, em exercer sua

potência ou uma força brutal para obter resultados, mas ameaçar ou destruir determinada

ordem de direito estatal que teve de conceder o direito à violência, por exemplo, o direito de

greve.

Sobre o direito de greve209, exemplo dado em Força de Lei, amparado no texto de

Walter Benjamin, e muito bem esclarecido em Derrida, temos que os grevistas impõem

condições para a retomada do trabalho e só encerram a greve se algumas das condições forem

aceitas. O trabalhador nesse caso está dentro de seu direito em relação ao direito de greve,

exercendo-o. No entanto, o Estado suporta mal essa passagem e julga abusiva a greve,

ocorrendo um mal-entendido entre ter e não ter direito à greve. O Estado pode fazer que a

greve seja considerada ilegal e, se ela persistir, teremos uma situação revolucionária. Tal

situação, que pode ocorrer, caracteriza uma violência como exercício do direito e o direito

como exercício da violência.

Este mal-estar entre violência e direito se entrelaça, pois, há o direito de greve por

parte dos trabalhadores e o direito de suspender a greve dependendo das considerações do

Estado em relação aos trabalhadores. A luz da questão será tentar evitar que a violência

interfira no sentimento de justiça.

Aquilo que ameaça o direito pertence já ao direito, ao direito ao direito, à origem do

direito. A greve geral fornece, assim, um fio condutor precioso, já que ela exerce o

direito concedido para contestar a ordem do direito existente e criar uma situação

revolucionária na qual se tratará de fundar um novo direito[...]210

207 Ibid., p. 130. 208 DERRIDA, 2010, p. 84. 209 DERRIDA, 2010, p.80-81. 210 Ibid., p. 82-83.

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Walter Benjamin considera que talvez se devesse levar em conta a possibilidade

surpreendente de que o interesse do direito em monopolizar a violência com relação aos

indivíduos não se explicaria pela intenção de garantir os fins de direito -- o caso de guerra e

da greve acima --, mas, garantir o próprio direito; que a violência, quando não se encontra nas

mãos do direito estabelecido, qualquer que seja, o ameaça perigosamente, não em razão dos

fins que a violência deseja alcançar, mas por sua existência fora do direito.211

Uma outra situação pode ser sugerida e de forma mais drástica, na argumentação de

Walter Benjamin. É quando a figura de um “grande” criminoso tantas vezes suscita a secreta

admiração do povo, por mais repugnantes que tenham sido seus fins. Isto se deve não a seu

ato criminoso, mas sim à violência que o direito atual procura retirar das mãos dos indivíduos

em todos os domínios de ação, em que aparece como realmente ameaçadora; e mesmo

vencida, também neste caso suscita a simpatia da multidão contra a ordem do direito.

Jacques Derrida, em Força de Lei, comenta este exemplo acima, dado por Walter

Benjamin. Pode-se explicar da mesma maneira o fascínio que exerce, na França, um

advogado que defende as causas mais insustentáveis, praticando o que ele chama de

“estratégia de ruptura”, ou seja, contestação radical da ordem dada pela lei, da autoridade

judicial, e da legitimidade da autoridade do Estado, que faz seus clientes comparecerem diante

da lei. Oposição à lei que o faz comparecer e contestar a ordem do direito, e por vezes as

vítimas.212

Ainda sobre a questão do “estado de exceção” tratado por Giorgio Agamben, o espaço

político da soberania, representa para a política pública que se preocupa com a forma da lei,

quando legisla, assim como os poderes constituídos, encarregados de dirigir uma comunidade

politicamente organizada, não seriam eficazes se contassem somente com a força para se fazer

obedecer. É essencial, para o exercício do poder, que sua legitimidade seja reconhecida, e que

ele possa usufruir de uma autoridade que busque o consentimento geral dos que estão sujeitos

a esse poder legítimo.

Referimo-nos aqui à violência como uma força utilizada no esforço de impor uma

vontade, sendo que a violência utilizada no “estado de exceção” não conserva tampouco

exerce o direito, mas suspende e o põe excetuando-se. 213

A violência na instauração do direito tem uma função dupla, no sentido de que a

instauração do direito almeja como seu fim, usando a violência como meio, aquilo que é

211 BENJAMIN, 1995, p. 127. 212 DERRIDA, 2010, p. 78-79. 213 AGAMBEN, 2004, p. 72.

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instaurado como direito, sendo que no momento da instauração não abdica da violência; mais

do que isso, a instauração constitui a violência em violência instauradora do direito, num

sentido rigoroso, isto é, de maneira imediata, porque estabelece não um fim livre e

independente da violência, mas um fim necessário e intimamente vinculado a ela, e o instaura

enquanto direito sob o nome de poder. Assim, a instauração de poder é, enquanto tal, um ato

de manifestação imediata da violência.214

Nesse sentido Michel Foucault discorre sobre a atuação do direito e poder em todos os

campos. Segundo ele, convém não tentarmos questionar quem tem o poder, e o que pretende,

ou o que procura. Pois o poder está investido em práticas reais e efetivas, não é um fenômeno

de dominação maciço e homogêneo de um indivíduo sobre os outros, ou de grupos sobre

outros grupos. Deve ser analisado como algo que circula, e funciona em cadeia. O indivíduo é

um dos efeitos do poder.215

O sistema do direito, o campo judiciário são canais permanentes de relações de

dominação e técnicas de sujeição. O direito deve ser visto como um procedimento de

sujeição, que ele desencadeia, e não com uma legitimidade a ser estabelecida. Michel

Foucault apresenta algumas linhas de análises, e algumas precauções metodológicas para

desenvolvê-las. 216

Tratar-se-ia de captar o poder em suas extremidades, em suas últimas ramificações,

em suas formas e instituições mais regionais e locais, principalmente no ponto em que,

ultrapassando as regras de direito que o organizam e delimitam, ele se prolonga, penetra em

instituições, corporifica-se em técnicas e se mune de instrumentos, de intervenção material,

eventualmente violentos. 217

Michel Foucault exemplifica com a atuação do poder e do direito, dizendo que, em

vez de tentar saber onde e como o direito de punir se fundamenta na soberania tal como

apresentada pela teoria do direito monárquico ou do direito democrático, o pensador relata

que procurou examinar como a punição e o poder de punir materializavam-se em instituições

locais, regionais e materiais, quer ser trate do suplício ou do encarceramento, no âmbito ao

mesmo tempo institucional, físico, regulamentar e violento dos aparelhos de punição. Em

outras palavras, seria captar o poder na extremidade cada vez menos jurídica de seu exercício.

214 BENJAMIN, 1995, p. 148. 215 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2007.

p. 182-183. 216 FOUCAULT, 2007, p. 182. 217 Ibid., p. 182.

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Foucault ainda nos apresenta mais efeitos do poder por meio de técnicas

disciplinadoras e de normalização. Técnicas de vigilância e observação, em locais sociais, têm

como objetivo mecanismos de controle, que ficam reféns deste mecanismo do poder e do

saber. Podemos observar hoje como o mundo virtual detém controle e conhecimento dos

assuntos pertinentes ao mais íntimo do homem. Não há o que não se conhece, pois tudo está

controlado pelos mecanismos do poder.

No mundo virtual todo relacionamento perde a sua privacidade, a violência em forma

de invasão dos assuntos particulares ocorre quando o controle dos corpos, expressão utilizada

por Michel Foucault que visa corrigir e vigiar os corpos, ocorre sem prévia autorização

daqueles que participam das relações sociais virtuais. A gestão da vida passa a ser sugerida

por esses mecanismos de vigilância dos corpos.

O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e

o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também uma mecânica do poder, está

nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não

simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer,

com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina

fabrica assim os corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina

aumenta as formas do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas

mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o

poder do corpo; faz dele por um lado uma aptidão, uma capacidade que ela procura

aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e

faz dela uma relação de sujeição estrita.218

A formação da sociedade disciplinar pode ser caracterizada no final do século XVIII e

início do século XIX, conforme apurado nas obras de Michel Foucault. Mas procurar os

efeitos do poder em seus escritos não se resume em um trabalho de única obra. Qual a

intenção do governo em relação a população? questiona Michel Foucault. Não certamente

governar, mas melhorar a sorte da população, aumentar sua riqueza, sua duração de vida, sua

saúde, bem como outras coisas. E quais são os instrumentos que o governo utilizará para

alcançar esses fins que são imanentes à população? questiona novamente o filosofo francês.

Parece que temos aqui uma preocupação com a biopolítica, uma gestão política da vida e ao

mesmo tempo, um interesse por parte do Estado em controlar sua população.218

Esse controle se faz por campanhas, através das quais se age diretamente sobre a

população, e técnicas que agem indiretamente sobre ela, permitindo elevar, sem que as

pessoas se deem conta, a taxa de natalidade, ou dirigir para uma determinada região ou para

218 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 36. ed.

Petrópolis: Vozes, 2009. p. 133-134. 218 Id., 2007, p. 289.

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uma determinada atividade os fluxos de população. Assim, a população aparece mais como

fim e instrumento do governo que como força do soberano; ela aparece como sujeito de

necessidades e aspirações, e ao mesmo tempo, aparece como objeto nas mãos do governo;

como consciente, frente ao governo, daquilo que ela quer, e inconsciente em relação àquilo

que se quer que ela faça.219

Temos ainda outra questão de dominação relacionada ao funcionamento do discurso,

seja político, médico científico, religioso, ou do jurista. A prática discursiva é constituída pela

prática de poder. Os mecanismos de poder aproximam-se dessas práticas e ocorre uma

apropriação social dos discursos.

Em A Ordem do Discurso, Michel Foucault deslinda as práticas discursivas. Nessa

obra acabamos por analisar como as ciências não são independentes das práticas do poder e

seus efeitos, e como a ciência apropria-se de discursos, como procedimentos de controle que

colocam em jogo o poder e o desejo, conforme a obra vai demonstrando. O autor ainda

ressalva que o papel da disciplina nestas ciências muitas vezes “não é a soma de tudo que

pode ser dito de verdadeiro sobre alguma coisa”.220

Sobre a importância do discurso e atos da fala, em A linguagem e a morte,221 Giorgio

Agamben elucida que a voz não quer nenhuma proposição e nenhum evento; ela quer que a

linguagem seja, quer o evento originário, que contém a possibilidade de todo e qualquer

evento. A Voz é a dimensão ética originária, na qual o homem pronuncia o seu sim à

linguagem e consente que ela tenha lugar. Na Política de Aristóteles há o problema ético-

político da linguagem na seguinte passagem:

Claramente se compreende a razão de ser o homem um animal sociável em grau

mais elevado que as abelhas e todos os outros animais que vivem reunidos. A

natureza, dizemos, nada faz em vão. O homem só, entre todos os animais, tem o

dom da palavra; a voz é o sinal da dor e do prazer, e é por isso que ela foi concedida

aos outros animais. Estes chegam a experimentar sensações de dor e de prazer, e a se

fazer compreender uns aos outros. A palavra, porém, tem por fim fazer compreender

o que é útil ou prejudicial, e, em consequência, o que é justo ou injusto. O que

distingue o homem de um modo especifico é que ele sabe discernir o bem do mal, o

justo do injusto, e assim todos os sentimentos da mesma ordem cuja comunicação

constitui precisamente a família do Estado.221

219 Ibid., p. 289. 220 FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de

fevereiro de 1979. 20. ed. São Paulo: Loyola, 1996. p. 31. 221 AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte. Tradução de Rodrigo Burigo. Belo Horizonte: Editora

UFMG, 2006. p. 119. 221 ARISTÓTELES, 2009, p. 16.

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Em relação ainda a vigilância e violência em Michel Foucault, podemos encontrar em

A verdade e as Formas Jurídicas mais considerações.222 Foucault observa que o panoptismo é

um dos traços característicos da nossa sociedade. É uma forma de poder que se exerce sobre

os indivíduos por meio de constante e contínua vigilância, como instrumento de controle, de

punição, recompensa e correção, isto é, de formação e transformação dos indivíduos em

função de certas normas. Vigilância, controle e correção – parecem características de relações

de poder que existem em nossa sociedade.

Constatamos que temos hoje constantes controles efetuados por câmeras de segurança,

monitorando o fluxo e inclusive a privacidade dos indivíduos, sempre com a justificava de

garantir a segurança ou outro argumento similar. Os corpos encontram-se seguros pelos

olhares atentos do olhar oculto das câmeras de controle.

Foucault explicita que na atual época todas as instituições, sejam elas fábricas, escolas,

hospitais psiquiátricos, hospitais em geral ou prisões, têm por finalidade não excluir, mas, ao

contrário, fixar os indivíduos. Desse modo, as fábricas não excluem os indivíduos e sim

ligam-nos aos aparelhos de produção ininterrupta para abastecer o mercado de vendas num

ciclo constante de produção e consumo. O mesmo acontece com os hospitais psiquiátricos:

uma rede liga-os a um aparelho de correção e medicamentos, controlando-os dentro de uma

normatização da medicina. Todos encontram-se dentro de um processo de regras e normas.223

Podemos fazer um paralelo quanto ao sintagma estabelecido por Michel Foucault em

relação às relações de poder: Vigilância, controle e correção, com o texto de Jacques Derrida

em Força de Lei, quanto este enuncia:

Mesmo reconhecendo que o corpo fantasmal da polícia, por mais invasor que seja,

permanece sempre igual a ele mesmo, Benjamin admite que seu espírito (Geist), o

espírito da polícia, faz menos estragos na monarquia absoluta do que nas

democracias modernas, nas quais sua violência degenera. Seria apenas, como

estaríamos hoje inclinados a pensar, porque as tecnologias modernas da

comunicação, da vigilância e da interceptação garantem à polícia uma ubiquidade

absoluta, saturando o espaço público e privado? Seria porque as democracias não

podem proteger o cidadão contra a violência policial, a não ser entrando nesta lógica

da coextensividade político-policial? Isto é, confirmando a essência policial da coisa

pública (polícia das polícias, instituições do tipo “informativa e liberdade”,

monopolização pelo Estado das técnicas de proteção do segredo da vida privada,

como é atualmente proposto aos cidadãos americanos pelo governo federal e por

suas polícias, que, em troca, produziriam os meios técnicos necessários e decidiram

o momento em que a segurança do Estado exige a interceptação da conversa

privada, por exemplo a instalação de microfones invisíveis, a utilização de

222 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e

Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau, 1999. p. 103. 223 FOUCAULT, 1999, p. 114.

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microfones direcionados, a intrusão nas redes informatizadas ou, simplesmente, a

prática tão comum entre nós da velha e boa “escuta telefônica”)?[...]224

Teríamos então uma operação de controle e vigilância por parte do Estado, como no

caso norte-americano, que, amparada por lei de segurança nacional, invadiu a privacidade de

cidadãos e países; e em outro momento temos a lei que protege a privacidade. Jacques

Derrida observa que o direito é inseparável da violência, imediata e mediata, presente ou

representada.

Na obra A reconstrução dos direitos humanos,225 Celso Lafer, no texto intitulado O

direito à intimidade e do direito à informação – conflito e complementaridade, deixa claro

que o direito à intimidade é parte integrante do direito à personalidade. Tutela o direito do

indivíduo de estar só e a possibilidade que deve ter toda pessoa de excluir do conhecimento de

terceiros aquilo que só a ela se refere, e que diz respeito ao seu modo de ser no âmbito da vida

privada.

Celso Lafer pontua que há uma interferência crescente na esfera da vida privada por

parte do poder público, tanto no exercício quotidiano do poder de polícia quanto no campo da

atividade judiciária; além disso há maior possibilidade de terceiros intrometerem-se na

intimidade das pessoas, por meio do uso de tecnologias com todas as inovações existentes,

para uma maior aproximação e invasão da intimidade.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 é uma resposta à ruptura

totalitária, pois contempla o direito à intimidade: “Artigo 12 – Ninguém sofrerá intromissões

arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência,

nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda pessoa tem

direito à proteção da lei”.

Quanto ao direito à informação, Celso Lafer acrescenta ainda que uma das

características do totalitarismo é a ausência de transparência na esfera pública, seja através da

estrutura burocrática, seja pela manipulação por meio do emprego da mentira, que impede a

circulação de informações honestas e exatas.226

Hannah Arendt, em A Condição Humana, também nos traz o sentido do termo

público, que acredito ser importante declinar neste texto, pois ainda estamos em busca da

biopolítica e do biopoder como forma de gerir a política em vários níveis em favor da vida e

da vida junto à esfera pública.

224 DERRIDA, 2010, p. 112. 225 LAFER, 1988, p. 239. 226 LAFER, 1988, p. 242.

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O processo de alienação do indivíduo ocorre quando ele se desloca do espaço da

esfera pública e passa a viver em função de seu próprio interesse, fixando-se excessivamente

no mundo privado. É a condição em que o indivíduo se colocou, substituindo o sentido da

ação pela fabricação e consumo, denominado por Hannah Arendt de homo faber. A tentativa

de substituir a ação pela fabricação é visível em todos os argumentos contra a democracia,

impossibilitando o homem de aproximar-se do espaço público e realizar ações.

Tudo o que acontece na esfera pública é resultado das ações do indivíduo, e a tentativa

de eliminar essa pluralidade das ações equivale à supressão da própria esfera pública. O

banimento do cidadão da esfera política é para neutralizá-lo em suas relações com os assuntos

da realidade social política. Promover uma política que visa inviabilizar a ação do homem faz

parte de uma tentativa de privar o cidadão de participar nas questões comuns a todos.227

Assim, ao discutir a esfera pública,228 Hannah Arendt defende que o público é tudo o

que vem a público e pode ser visto e ouvido por todos, tendo a maior divulgação possível. Em

segundo lugar, o termo público significa o próprio mundo, na medida em que é comum a

todos. Esse espaço tem a ver com as coisas humanas, produzidas pelos homens e que junto

com eles habitam o mesmo mundo.

Sob o título A Promoção Social, inserido na obra A Condição Humana, Hannah

Arendt sublinha como a esfera social transformou as sociedades modernas em sociedades de

operários:

A mais clara indicação de que a sociedade constitui a organização pública do próprio

processo vital talvez seja encontrada no fato de que, em tempo relativamente curto, a

nova esfera social transformou todas as comunidades modernas em sociedades de

operários e de assalariados; em outras palavras, essas comunidades concentram-se

imediatamente em torno da única atividade necessária para manter a vida, o labor.

(Naturalmente, para que se tenha uma sociedade de operários não é necessário que

cada um dos seus membros seja realmente um operário ou trabalhador, e nem

mesmo a emancipação da classe operária e a enorme força potencial que o governo

da maioria lhe atribui são decisivas neste particular; basta que todos os seus

membros considerem o que fazem primordialmente como modo de garantir a

própria subsistência e a vida de suas famílias.) A sociedade é a forma na qual o fato

da dependência mútua em prol da subsistência, e de nada mais, adquire importância

pública, e na qual as atividades que dizem respeito à mera sobrevivência são

admitidas em praça pública.229

227 ARENDT, 2009, p. 233-235. 228 Ibid., p. 59. 229 ARENDT, 2009, p. 56.

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Márcio Pugliesi, em Teoria do Direito,230 lembra que o mundo, lugar da práxis,

engloba o tempo e é um construto compartilhado, conforme a capacidade e o interesse de cada

ator, pela sociedade que se atém, pois a construção da realidade social surge cotidianamente

nas comunicações interpessoais e na busca de controle do ambiente sociofísico (situação

presente); ou, quando possível, na busca de configurações que satisfaçam aspirações presentes

no campo da cultura, algo como o buscar sentido para a existência e tornar-se autor de seus

próprios atos.

Em Sociedade de Risco,231 Ulrich Beck, no ensaio intitulado A perda de função do

sistema político, destaca que a discussão política na esfera pública ao longo das últimas duas

ou três décadas pode ser na verdade representada como uma intensificação dessa oposição. A

descoberta de condições restritivas da ação política, que foi empregada precocemente e

ganhou novo impulso nos últimos anos com o discurso da ingovernabilidade e da democracia

volúvel, jamais é confrontada com a pergunta sobre se a outra sociedade surgirá talvez sem

planejamento, escrutínio, ou se viria com oficinas de avanço técnico-econômico.

Assim, as regras da democracia restringem-se à escolha dos representantes políticos e

à participação na elaboração de programas políticos.

Uma vez assumidos o posto e as honras, o representante com prazo fixo não apenas

desenvolve qualidades ditatoriais de comando, impondo suas decisões

autoritariamente de cima para baixo, como também as instâncias, grupos de

interesses e de cidadãos afetados pelas decisões esquecem seus direitos e convertem-

se em “súditos democráticos”, que aceitam sem questionamento a pretensão de

dominação do Estado.232

De outro lado, Ulrich Beck afirma que essa concepção autoritária de altos escalões

políticos e liderança política torna-se sistematicamente esvaziada e irreal justamente com a

implementação e o gozo de direitos democráticos. Assim,

[...] sempre que direitos são garantidos, que ônus sociais são redistribuídos, que a

participação é viabilizada, que cidadãos se tornam ativos, a política avança um

pouco, mas na dissolução de suas fronteiras e em sua generalização; paralelamente,

a ideia de um centramento do poder decisório hierárquico na cúpula do sistema

político converte-se na lembrança de um passado pré-semi-ou formalmente

democrático.233

230 PUGLIESI, Márcio. Teoria do Direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 75-75. 231 BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento.

São Paulo: 34, 2001. p. 281. 232 Ibid., p. 286. 233 BECK, 2001, p. 288.

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Ulrich Beck234 conclui que o algo mais na democracia usufruída gera escalas e

demandas sempre novas, nas quais os cidadãos são conscientes de seus direitos e lhes dão

vida, o que exige uma compreensão da política e instituições políticas diferente daquelas da

sociedade que ainda caminha nesta direção.

2.4 Nova cultura política e política diferencial

Ulrich Beck nos mostra que para vislumbrar uma nova política e uma política

diferencial teríamos como ponto de partida a dissolução das fronteiras da política. Existe uma

política executiva no centro da política, que necessita buscar mudanças, para não criar

distâncias e modificar o aqui e agora nas relações de conveniência sem ter que recorrer a

projetos de lei. O autor remete a uma ampla ativação política dos cidadãos,235 podendo ser

usada com efetividade, e a exemplos dados (proteção do meio ambiente, movimento contra a

energia atômica, e na proteção da privacidade).

A necessidade de uma postura inicial é a compreensão da existência de uma

autolimitação em que se encontra. Nas eleições e campanhas eleitorais, não se trata de

escolher um comandante da nação, que iria dispor de rédeas de decisões e controle social, e

responsável por tudo de bom e ruim que aconteça durante seu mandato. Caso fosse,

poderíamos pensar numa ditadura, mas em termos democráticos temos de pensar no grau de

democracia existente na sociedade. 236

Em Sociedade do Espetáculo,237 Guy Debord nos apresenta a mercadoria como

espetáculo, a raiz do espetáculo estando no terreno da economia que se tornou abundante, daí

advindo os frutos que tendem a dominar o mercado, tornando-o o cenário principal; pois a

economia domina a sociedade moderna com suas altas ofertas a serem adquiridas, e suas

tecnologias que controlam as escolhas.

Guy Debord afirma que a questão do desenvolvimento da economia mais avançada

tem como objetivo certas prioridades. Há um movimento de banalização que domina

mundialmente a sociedade moderna, e se apropria também em cada ponto em que o consumo

desenvolvido das mercadorias multiplicou e melhorou a aparência de cada um, e os objetos de

escolha tornaram-se variados, por conta da indústria do consumo.

234 Ibid., p. 289. 235 Ibid., p. 290. 236 Ibid., p. 338-339. 237 DEBORD, Guy. A sociedade do Espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro:

Contraponto, 1997. p. 37-47.

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Oposições arcaicas parecem sempre renascer e a contradição oficial se apresenta como

a luta de poderes que se constituíram para a gestão do mesmo sistema sócio-econômico,238

acentua Guy Debord; e na verdade fazem parte do mesmo processo, tanto mundialmente

como em cada nação.

Assim sendo, o espetacular concentrado pertence essencialmente ao capitalismo

burocrático, de modo que a ditadura da economia burocrática não pode deixar nenhuma

margem significativa de escolha, pois ela teve de escolher tudo, a economia que propõe o que

ela quer e quanto custará.

A sociedade portadora do espetáculo não domina as regiões subdesenvolvidas

apenas pela hegemonia. Domina-as como sociedade do espetáculo. Nos lugares onde

a base material está ausente, em cada continente, a sociedade moderna já invadiu

espetacularmente a superfície social. Ela define o programa de uma classe dirigente

e preside sua formação. Assim como ela apresenta os pseudobens a desejar, também

oferece aos revolucionários locais os falsos modelos de revolução. O espetáculo

específico do poder burocrático, que comanda alguns países industriais, faz parte do

espetáculo total, como sua pseudonegação geral, e seu sustentáculo. Visto em suas

diversas localizações, o espetáculo mostra com clareza especializações totalitárias

do discurso e da administração social, mas estas acabam se fundindo, no nível do

funcionamento global do sistema, em sua divisão mundial das tarefas

espetaculares.239

Em referência a sociedade do espetáculo e economia, com atenção à banalização da

função do homem político, no próximo capítulo, onde tratarei de biopolítica e biopoder,

comentarei sobre capitalismo e humanismo, fazendo uma reflexão em relação ao modelo

imposto pela economia, buscando equilibrar o ciclo de consumo a um processo de

conscientização humana e equilibrada de investimento, empreendedorismo e gastos, levando

em consideração as contribuições de Hannah Arendt, em A Condição Humana, em especial

quando pontua que a nova esfera social transformou todas as comunidades modernas em

sociedades de operários e de assalariados239. Arendt observa igualmente uma defasagem entre

nossas capacidades e nosso humanístico em geral, referindo-se a uma mudança de

comportamento e na psicologia dos seres humanos; revela preocupação com o rumo que a

esfera pública tomou, pontuando que “nenhuma atividade pode tornar-se excelente se o

mundo não proporciona espaço para o seu exercício”.240

Para terminar este segundo capítulo, construído para visualizarmos quais as situações

contribuintes positivamente e negativamente para a biopolítica e o biopoder, e seguir para o

238 Ibid., p. 37. 239 Ibid., p. 38. 239 ARENDT, 2009. p. 56. 240 Ibid., p. 59.

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terceiro e último item deste trabalho, que trata da vida sob os cuidados da política pública e da

esfera política social, antes vale destacar uma passagem do texto de Sigmund Freud, intitulado

O Mal-estar na Civilização, que vem contribuir para o raciocínio de todos estes pensadores, já

que buscam esclarecer e alertar sobre a importância de retomarmos o cenário político para

melhor vivermos.

No processo civilizatório tratado por Sigmund Freud, no texto O Mal-estar na

Civilização,241 ele deixa claro que existe um esforço pela busca da felicidade, por isto existe

uma ausência de sofrimento e uma fuga do desprazer e a busca de intensos sentimentos de

prazer; assim a palavra felicidade relaciona-se a este sentido, subestimando tudo aquilo que

realmente tem sentido na vida. Colocar o gozo antes da cautela faz parte da satisfação

irrestrita de todas as necessidades. Sigmund Freud nos aponta no texto o desejo pela riqueza,

poder e sucesso. Alerta que nossos relacionamentos com outras pessoas são os mais difíceis

de darmos conta em relação a outros problemas que por ventura tenhamos. Com o sofrimento

que pode vir dos relacionamentos humanos, a defesa imediata é o processo de isolamento

voluntário, ou seja, contra o temível mundo externo, uma das formas de defesa é o

afastamento. Contra isso Sigmund Freud nos dá opções, ou seja, buscarmos na solidariedade e

na caridade a minimização deste mal-estar.

241 FREUD, Sigmund. Cinco lições de psicanálise: A história do movimento psicanalítico; O futuro de uma

ilusão; O mal-estar na civilização; Esboço de psicanálise. Tradução de Durval Marcondes. São Paulo: Abril

Cultural, 1978. (Os pensadores). p. 131-194.

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3 CAMINHOS DA BIOPOLÍTICA E DO BIOPODER – REFLETINDO A QUESTÃO

NA SOCIEDADE E NO ESTADO

3.1 Tempo da biopolítica e do biopoder

As propostas de investigação da Biopolítica e do Biopoder tiveram início nas

primeiras linhas deste trabalho com a invocação da ideia de bem e justiça apresentadas de

forma que pudéssemos vislumbrar nossa posição na sociedade, por pensadores já anunciados

naquele capítulo. Com mais ênfase no último capítulo, pois para estudar este tema e propósito

precisei percorrer caminhos que envolveram os direitos fundamentais e os direitos humanos,

amparado nos exemplos dos apátridas, bem como outras várias situações que envolvem o

tema e impedem ou dificultam o aparecimento desta forma de gestar a vida em sua plenitude.

O exercício de governar, e do cidadão em saber e buscar posicionar-se diante da

realidade em que se encontra, necessita achar espaço nas respectivas maneiras de atuar, cada

qual em sua posição, para melhor se tornar a condição humana.

A condição humana relaciona-se com todos os aspectos de bem-estar social e

individual. O mais importante nesta etapa é o social, pois deve desenvolver-se com projetos

governamentais, e estes com os projetos sociais. Não se vislumbra somente a ausência em sua

plenitude de saúde adequada, educação, transporte, que são problemas a serem ainda

trabalhados e desenvolvidos no Brasil e em outras partes do mundo, mas refiro-me às

questões políticas governamentais necessárias para conduzir ou reconduzir àquele ideal.

O cenário descrito foi inclusive o mundial, no qual tratamos de imigrantes e questões

de totalitarismo em democracias, ou ainda de movimentos totalitários. Alguns governos

programam-se para etapas de guerra, invasão e políticas econômicas externas, visando

vantagens para si, de modo que o desenvolvimento desse quadro, sendo a atual forma de fazer

política, isola-se cada vez mais de políticas voltadas à vida, aproximando-se de critérios de

governança egoísta, partidária, totalitária e sem função para a biopolítica, que aguarda novos

rumos.

A violência se faz presente em vários atos no quotidiano, como apontamos

anteriormente, pois é a forma que se encontra de conduzir certas situações; e ao mesmo tempo

isso se torna confuso quando a violência atua com o direito, uma vez que sempre o ligamos à

ideia de justiça e à forma que temos de buscar nossos direitos e efetivá-los.

Quando declinamos de repensar a biopolítica e o biopoder, é necessária uma reflexão.

Os interesses daqueles que vivem em sociedade no fundo são os mesmos, pois todos querem

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adentrar por uma porta menos estreita e na certeza de não sofrer opressão e descaso. O

conjunto social deseja sempre a harmonia, mas não temos como conhecê-la neste momento

sem repensar a esfera social e política.

Hannah Arendt, em A Condição Humana, alerta que somente a existência de uma

esfera pública e a subsequente transformação do mundo em uma comunidade de coisas que

reúne os homens e estabelece uma relação entre eles irá depender de como o compromisso do

indivíduo será junto a esta esfera pública. “Se o mundo deve conter um espaço público, não

pode ser construído apenas para uma geração e planejado somente para os que estão vivos,

mas deve transcender a duração da vida de homens mortais”.242

Sem esta visão de continuidade e vislumbrar o futuro, nenhuma política, ou mundo de

forma geral serão possíveis. Cuidar da ordem e buscar avanços garantindo que o espaço que

pertence ao homem tenha um processo de continuidade representa passos firmes para o que

Hannah Arendt chama de imortalidade. “De fato, nas condições modernas, é tão pouco

improvável que alguém aspire sinceramente à imortalidade terrena que possivelmente temos

razão de ver nela simples vaidade”.243

Nessa obra Hannah Arendt tem uma preocupação com a vida. Certas situações busca

combater, pois são alienantes, quando se diz de possibilitar a presença do indivíduo mais

próxima da esfera pública, pois que necessita ter constante participação nos negócios da

ordem social. As questões da biopolítica e do poder são constantes neste conjunto,

considerando se tratar de situações que todos que vivem em uma cidade precisam, por uma

necessidade básica, no entanto Arendt avança e convoca o homem para refletir sobre sua

condição humana.

Para ampliar o alcance do conceito da palavra Biopolítica, trago uma análise de Judith

Revel:

O termo biopolítica designa a maneira pela qual o poder tende a se transformar,

entre o fim do século XVIII e o começo do século XIX, a fim de governar não

somente os indivíduos por meio de um certo número de procedimentos disciplinares,

mas o conjunto dos viventes constituídos em população: a biopolítica, por meio dos

biopoderes locais, se ocupará, portanto, da gestão da saúde, da higiene, da

alimentação, da sexualidade, da natalidade etc., na medida em que elas se tornaram

preocupações políticas.244

242 ARENDT, 2009, p. 64. 243 Ibid., p. 65. 244 REVEL, 2005, p. 26.

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Outra questão analisada em Michel Foucault que também se refere à biopolítica e ao

biopoder é a forma como o Estado e instituições governamentais ou não governamentais estão

investidos na mecânica do poder compondo essa relação: em alguns textos do autor aparecem

os termos procedimentos disciplinares, vigilância e controle, marcando os conceitos

foucaultianos de biopolítica e biopoder.

Essas expressões têm o sentido que demonstra a atuação e o controle da sociedade por

parte do Estado. Assim, em relação ao tema, biopolítica e biopoder, o Estado fiscaliza a vida

politicamente, assumindo um controle, que marca nossa atualidade, sobre os corpos e as vidas

dos indivíduos

Em Vigiar e Punir245 Michel Foucault fala em micro-poderes que se exercem em

nosso quotidiano, o poder movimentando-se em vários níveis, deslocando-se; mesmo com

toda a atuação do Estado, este não é o órgão central do poder, embora tenhamos que analisar a

extensão dos efeitos da atuação do Estado.

Em Poder e Saber246 Foucault explica que as relações de poder existem entre mulher e

homem, entre pais e filhos, e na família. Na sociedade há milhares de relações de poder. Se é

verdade que essas pequenas relações de poder são com frequência comandadas e induzidas

pelo Estado e pelas grandes dominações de classe, é preciso esclarecer que, uma dominação

de classe ou uma estrutura do Estado só poderá acontecer se houver essas pequenas relações

de poder.

O poder do Estado, segundo Michel Foucault, é aquele que impõe, por exemplo, o

serviço militar obrigatório, e outras situações. A estrutura do Estado, no que tem de geral, de

abstrato, e mesmo de violento, não chegaria a manter assim, contínua e cautelosamente, todos

os indivíduos, se ela não se enraizasse, não utilizasse, como uma espécie de grande estratégia,

pequenas táticas locais e individuais que encontram-se junto a cada um de nós.247

Quando em visita ao Rio de Janeiro no ano de 1974, para entrevistas e palestras,

Michel Foucault escreve um artigo ao Jornal do Brasil, intitulado “Controle Social - Loucura

uma Questão de Poder”. É interessante no artigo o destaque que o autor confere à disciplina,

vigilância e ao controle com que o Estado e suas estratégias atuam para com todos. Desta

maneira a biopolítica e o biopoder encontram-se nesta linha de discussão, ligados à

245 FOUCAULT, 2009. 246 FOUCAULT, Michel. Estratégia, poder-saber. Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro:

Forense Universitária, 2003. 247 Ibid., p. 232.

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manutenção da ordem, o controle das pessoas e a disciplina. É a forma com que o biopoder e

a biopolítica manifestam-se, ou seja, com a preocupação de controle:

[...] o que me parece característico da forma de controle atual é o fato de que ele é

exercido sobre cada indivíduo: um controle que nos fabrica, impondo-nos uma

individualidade, uma identidade. Cada um de nós tem uma biografia, um passado

sempre documentado em algum lugar, desde um dossiê escolar a uma carteira de

identidade, um passaporte. Há sempre um organismo administrado capaz de dizer a

qualquer momento quem é cada um de nós, e o Estado pode, quando quiser, trilhar

todo nosso passado. Creio que hoje a individualidade está completamente controlada

pelo poder, e que nós somos individualizados, no fundo, pelo próprio poder.248

Em Microfísica do Poder 249Michel Foucault discorre sobre o privilégio da higiene e o

funcionamento da medicina como instrumento de controle social. A velha noção de regime

que era entendida como regra de vida e como forma de medicina preventiva alarga-se a se

tornar o regime coletivo de uma população. É a busca da prevenção de surtos, epidemias, com

vistas ao aumento de duração média de vida do cidadão. Foucault analisa a higiene como

regime de saúde das populações, implicando em intervenções autoritárias e de medidas de

controle.

Ainda nesse sentido Foucault amplia suas considerações e acrescenta que as

intervenções do Estado como medida de controle e disciplina junto à sociedade assumem um

lugar cada vez mais intenso acerca da saúde, das doenças, da condição de vida, de habitação,

hábitos, e começa a se formar um saber-médico administrativo que servirá de núcleo à

economia social, isso já no século XIX. Essa política-médica sobre a população ocasionará

um saber sobre a existência e comportamento que envolve o vestir, o beber, a sexualidade e a

fecundidade, e a disposição de cada um em seu espaço.249

Em Os Corpos Dóceis,250 um dos ensaios da obra Vigiar e Punir, Michel Foucault

pontua que é dócil o corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, transformado e

aperfeiçoado. Em qualquer sociedade o corpo está preso no interior de poderes, que lhe

impõem limitações, proibições e obrigações. Há um processo de modelar o indivíduo, pois

não se trata de cuidar do corpo em massa, mas trabalhar detalhadamente como se fosse uma

unidade. O poder exerce sobre os corpos uma coerção sem folga, lhes impõe uma relação de

docilidade-utilidade; é o que Foucault chama de “disciplina”.

248 FOUCAULT, Michel. Controle Social-Loucura uma questão de poder. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro,

12 nov. 1974. 249 Id., 2007, p. 202. 249 Ibid., p. 202. 250 Id., 2009, p. 132-133.

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Também em Vigiar e Punir nos aparece uma política de vigilância sobre os atos, na

qual o indivíduo moderno enquadra-se sob o olhar do “carcereiro”, palavra de que se vale em

outro ensaio da mesma obra.251 Estamos numa época de professor-juiz, médico-juiz, assistente

social-juiz, educador-juiz; é a sociedade moderna e o poder normalizador, todos fazendo

reinar o poder universal normativo. Há sempre uma regra, uma norma a ser respeitada.

Quando Michel Foucault descreve o Panopticon,252 avalia que esta arquitetura que

tudo permite ver é a utopia de uma sociedade e de um tipo de poder que é, na verdade, a

sociedade que conhecemos, uma utopia que se realizou. Esse tipo de poder pode receber o

nome de panoptismo, onde ele reina.

Com o biopoder existe um controle dos corpos, como podemos ver nos textos da

literatura de Michel Foucault. Assim, técnicas disciplinares são aplicadas para efeito de

vigilância e controle e sem dúvida temos a biopolítica atuando, operando igualmente e

investindo sobre o deixar viver, a vida passando a ser orientada por essas disciplinas.

Michel Foucault ressalva que a recusa, a proibição, o interdito estão longe de serem de

modo geral as formas essenciais do poder, sendo apenas seus limites, as formas frustradoras

ou extremas. As relações de poder são, antes de tudo produtivas. É esse aspecto que se

apresenta como uma nova relação, ou seja, não mais confronto e violência, mas um outro tipo

de ação.253

Esse tipo de ideologia é muito utilizado nestes tempos modernos, trazendo os efeitos

do poder e produção de verdade. Esta ideologia, esclarece Michel Foucault,254 sempre foi

utilizada para explicar erros, ilusões, tudo o que impede a formação de discursos verdadeiros.

Foucault relata que custou a percebê-la, por algumas razões. Uma delas, porque o Ocidente é

que mais se mostra, portanto, o que mais se esconde. As relações de poder estão talvez,

segundo o pensador, entre as coisas mais escondidas no corpo social.

Em Nascimento da Biopolítica, Foucault se posiciona sobre a arte de governar:

[...] o governo dos homens na medida em que, e somente na medida em que, ele se

apresenta como exercício da soberania política. “Governo”, portanto, no sentido

estrito, mas arte também, arte de governar no sentido estrito, pois por “arte de

governar” eu não entendia a maneira como efetivamente os governantes governam.

Não estudei nem quero estudar a prática governamental real, tal como se

251 Ibid., p. 288. 252 Michel Foucault se utiliza da expressão panopticon termo utilizado para designar uma penitenciária ideal,

concebida pelo filósofo Jeremy Bentham. “É um edifício em forma de anel, no meio do qual havia um pátio

com uma torre no centro. O anel se dividia em pequenas celas que davam tanto para o interior quanto para o

exterior. Na torre central havia um vigilante. Para Bentham esta pequena e maravilhosa astúcia arquitetônica

podia ser utilizada por uma série de instituições”. FOUCAULT, 1999, p. 87. 253 Id., 2007, p. 236. 254 Ibid., p. 237.

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desenvolveu, determinando aqui e ali a situação que tratamos os problemas postos,

as táticas escolhidas, os instrumentos utilizados, forjados ou remodelados, etc. Quis

estudar a arte de governar, isto é, a maneira pensada de governar o melhor possível,

e também, ao mesmo tempo, a reflexão sobre a melhor maneira possível de

governar.255

Para Michel Foucault fica claro o estudar a arte de governar, e a melhor forma de

governar, e resgato na obra a questão da formação da biopolítica, de acordo com o autor:

[...] a análise da biopolítica só poderá ser feita quando se compreender o regime

geral dessa razão governamental de que lhes falo esse regime geral que podemos

chamar de questão de verdade, antes de mais nada da verdade econômica no interior

da razão governamental, e, por conseguinte, se compreende bem o que está em causa

nesse regime que é o liberalismo, o qual se opõe à razão de Estado, ou antes,

modifica fundamentalmente sem talvez questionar seus fundamentos. 256

Quando Michel Foucault trata de razão de Estado, pontuando que o liberalismo se

opõe a esta razão, invoca a identificação do dever-fazer do governo e o dever-ser do Estado:

[...] a razão de Estado é precisamente uma prática, ou antes, uma racionalização de

uma pratica que vai se situar entre um Estado apresentando como dado e um Estado

apresentado como a construir e a edificar. A arte de governar deve então estabelecer

suas regras e racionalizar suas maneiras de fazer propondo-se como objetivo, de

certo modo, fazer o dever-ser do Estado tonar-se ser. O dever-fazer do governo deve

se identificar com o dever-ser do Estado. O Estado como tal como é dado, a ratio

governamental, é o que possibilitará, de maneira refletida, ponderada, calculada,

fazê-lo passar ao seu máximo de ser. O que é governar? Governar segundo o

princípio da razão de Estado é fazer que o Estado possa se tornar sólido e

permanente, que possa se tornar rico, que possa se tornar forte diante de tudo o que

pode destruí-lo.257

Se observarmos o modelo econômico do liberalismo, estudado por Foucault, a

biopolítica analisada, dentre desse processo, desde o seu nascimento, podemos perceber como

o autor define a razão de Estado, colocando-a num sentido ponderado e permanente. Em

Microfísica do Poder, conforme trecho a seguir, temos uma ideia daquilo que o pensador

temia em termos de política econômica, modelo adotado pelo liberalismo. Vinculado ao

Estado, ou seja, o que deveria ser uma razão de Estado com propostas vinculadas no dever-

ser, esse modelo econômico influencia toda a esfera social, questão importante para a razão de

Estado e forma de governar.

255 Id., 2008b, p. 3. 256 FOUCAULT, 2008b, p. 30. 257 Ibid., p. 6.

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Quando Michel Foucault ressaltou a razão de Estado, vinculando a existência do

Estado ao bem-estar do indivíduo, lançou questões, em Microfísica do poder, sobre esse novo

mecanismo de poder, a disciplina.

Este novo mecanismo de poder apoia-se mais nos corpos e seus atos do que na terra

e seus produtos. É um mecanismo que permite extrair dos corpos tempo e trabalho

mais do que bens e riqueza. É um tipo de poder que se exerce continuamente através

de vigilância e não descontinuamente por meio de sistemas de taxas e obrigações

distribuídas no tempo; que supõe mais um sistema minucioso de coerções materiais

do que a existência física de um soberano. Finalmente, ele se apoia no princípio, que

representa uma nova economia do poder, segundo o qual se deve propiciar

simultaneamente o crescimento das forças dominadas e o aumento da força e da

eficácia de quem as domina. Esse novo tipo de poder, que não pode mais ser

transcrito nos termos da soberania, é uma das grandes invenções da sociedade

burguesa. Ele foi um instrumento fundamental para constituição do capitalismo

industrial e do tipo de sociedade que lhe é correspondente; este poder não soberano,

alheio à forma da soberania, é o poder disciplinar. 258

Sobre a prática de liberdade apregoada pelo liberalismo, que tem seu surgimento no

século XVIII, ele elucida:

[...] essa pratica governamental que está se estabelecendo não se contenta em

respeitar esta ou aquela liberdade, garantir esta ou aquela liberdade. Mais

profundamente, ela é consumidora de liberdade. É consumidora de liberdade. É

consumidora de liberdade na medida em que só pode funcionar se existe

efetivamente certo número de liberdades: liberdade do mercado, liberdade do

vendedor e do comprador, livre exercício do direito de propriedade, liberdade de

discussão, eventualmente liberdade de expressão etc. A nova razão governamental

necessita, portanto da liberdade, a nova arte governamental consome liberdade.

Consome liberdade, ou seja, é obrigada a produzi-la. É obrigada a produzi-la, é

obrigada a organizá-la. A nova arte governamental vai se apresentar, portanto como

gestora de liberdade, não no sentido imperativa, “seja livre”, com a contradição

imediata que esse imperativo pode trazer. Não é o seja livre que o liberalismo

formula. O liberalismo formula simplesmente o seguinte: vou produzir o necessário

para tornar você livre. Vou fazer de tal modo que você tenha a liberdade de ser

livre.259

O liberalismo discutido por Michel Foucault, caracterizado por ele como uma nova

arte de governar, implica na relação de produção/destruição com a de consumo e anulação da

liberdade. Não é uma liberdade pronta que todos teriam de respeitar, não --, é uma liberdade

que se fabrica a todo instante, como se propõe fazer o liberalismo. Segundo o pensador

francês, a liberdade de comércio é necessária, mas demanda controle, regras, prevenções, a

fim de evitar obrigações, coerções e ameaças. Também sob regras e controle, faz referência à

258 FOUCAULT, 2007, p. 187-188. 259 Id., 2008b, p. 86-87.

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liberdade do mercado interno, ou seja, não se pode ter efeitos monopolísticos e há necessidade

de legislação antimonopólio.260

A biopolítica traz estas questões para serem discutidas e que atingem a sociedade

como um todo. Michel Foucault via na arte de governar algo que se distanciava do equilíbrio

social, como podemos notar neste trecho de sua obra “Nascimento da Biopolítica”:

Creio que começa a se esboçar aí algo muito importante, cujas consequências, como

vocês sabem, estão longe de ter se esgotado. Esboça-se aí uma coisa que é uma nova

ideia da Europa, uma Europa que não é mais a Europa imperial e carolíngia, mais ou

menos herdeira do Império Romano e com estruturas políticas bem particulares.

Tampouco, já não é a Europa clássica da balança, do equilíbrio entre as forças

estabelecidas de tal modo que nunca a força de um prevaleça de uma forma

demasiado determinante sobre o outro. É uma Europa do enriquecimento coletivo, é

uma Europa como sujeito econômico coletivo que, qualquer que seja a concorrência

estabelecida entre os Estados, ou melhor, através da própria concorrência que se

estabelece entre os Estados, deve tomar um caminho que será o do progresso

econômico ilimitado. 261

Michel Foucault nos aponta que o governo manipula interesses, quando declara que

existe um jogo complexo entre direitos fundamentais e independência dos governados, e

procura mostrar que o governo só se interessa pelos interesses, pois não sabe lidar com a

governamentalidade, que são os indivíduos.

A razão governamental em sua forma moderna, na forma que se estabelece no início

do século XVIII, essa razão governamental que tem por característica fundamental a

busca do seu princípio de autolimitação, é uma razão que funciona com base no

interesse. Mas esse interesse já não é, evidentemente, o do Estado inteiramente

referido a si mesmo e que visa tão-somente seu crescimento, sua riqueza, sua

população, sua forma, como era o caso na razão de Estado. Agora, o interesse a cujo

princípio a razão governamental deve obedecer são interesses, é um jogo complexo

entre interesses individuais e coletivos, a utilidade social e o benefício econômico,

entre o equilíbrio do mercado e o regime do poder público, é um jogo complexo

entre direitos fundamentais e independência dos governados. O governo, em todo

caso o governo nessa nova razão governamental, é algo que manipula interesses.

Mais precisamente, podemos dizer o seguinte: os interesses são, no fundo, aquilo

por intermédio do que o governo pode agir sobre todas estas coisas que são, para ele,

os indivíduos, os atos, as palavras, as riquezas, a propriedade e os direitos, etc. Mais

claramente, se me permitem tema simplíssimo: digamos que, num sistema como o

sistema precedente, o soberano, o monarca, o Estado, agia, tinha direito, estava

legitimado, justificado para agir sobre o que? Pois bem, sobre as coisas, sobre as

terras. O rei era muitas vezes, não sempre, considerado proprietário do reino. Era a

esse título que podia intervir. [...]. Podia agir sobre os súditos já que, como súditos,

estes tinham com o soberano certa relação pessoal que fazia que o soberano pudesse,

quaisquer que fossem os direitos dos próprios súditos, agir sobre tudo. Em outras

palavras, tinha-se uma ação direta do poder sob a forma do soberano, sob a forma

dos seus ministros, uma ação direta do governo sobre as coisas e sobre as pessoas. A

partir da nova razão governamental, e é esse o ponto de descolamento entre a antiga

260 Ibid., p. 88. 261 FOUCAULT, 2008b, p. 75.

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e a nova, entre a razão de Estado e a razão de Estado mínimo, a partir de então o

governo já não precisa intervir, já não age diretamente sobre as coisas e sobre as

pessoas, só pode agir, só está legitimado, fundado em direito e em razão para

intervir na medida em que o interesse, os interesses, os jogos de interesses tornam

determinado individuo ou determinada coisa, determinado bem ou determinada

riqueza, ou determinado processo, de certo interesse para os indivíduos, ou para o

conjunto dos indivíduos, ou para os interesses de determinado individuo

confrontados ao interesse de todos, etc. O governo só se interessa pelos interesses. O

novo governo, a nova razão governamental não lida com o que chamaria de coisas

em si da governamentalidade, que são os indivíduos, que são as coisas, que são as

riquezas, que são as terras. Ele lida com estes fenômenos da política que

precisamente constituem a política e os móveis da política, com estes fenômenos

que são os interesses ou aquilo por intermédio do que determinado individuo,

determinada coisa, determinada riqueza, etc.262

Com esta postura do Estado na nova arte de governar, Foucault, em Em Defesa da

Sociedade, aprofunda-se em uma análise em relação ao lucro econômico ou as utilidades

políticas que derivam dele, a qual permite compreender como efetivamente esses mecanismos

acabam fazendo parte do conjunto; em outras palavras, Michel Foucault releva a importância

das engrenagens de poder que produziram e liberaram, a partir do século XIX, um lucro

político que solidificou o sistema e o fez funcionar:

A burguesia não se incomoda com os loucos, mas pelo poder que incide sobre os

loucos; a burguesia não se incomoda pela sexualidade da criança, mas pelo sistema

de poder que controla a sexualidade da criança. A burguesia não dá a menor

importância aos delinquentes, à punição ou à reinserção deles, que não têm

economicamente muito interesse.263

Uma minoria detentora do poder exerce um domínio sobre a maioria criando um

abismo que é comandado pelo crescente consumismo instado na sociedade. Parece que tudo é

troca e mercadoria, não é durável, a circulação é obrigatória, pois as regras são essas. A

sociedade de consumo irá alimentar esta indústria que necessita desta circulação em nome do

lucro máximo. Isso se estende igualmente aos balcões de atendimento da ciência da cura, que

necessita fabricar para alimentar o consumo. Se não puder consumir mercadoria ou serviços o

indivíduo não terá significado. É a cultura do consumo, uma cultura imposta. Sigmund Freud,

em seu texto “O Futuro de uma Ilusão”, nos oferece à análise esta cultura e sua coerção junto

aos indivíduos:

Fica assim com a impressão de que a civilização é algo que foi imposto a uma

maioria resistente por uma minoria que compreendeu como obter a posse dos meios

de poder e coerção. Evidentemente, é natural supor que essas dificuldades não são

inerentes à natureza da própria civilização, mas determinadas pelas imperfeições das

formas culturais que até agora se desenvolveram. E, de fato, não é difícil assinalar

262 FOUCAULT, 2008b, p. 61-62. 263 Id., 2008a, p. 39.

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esses defeitos. Embora a humanidade tenha efetuado avanços contínuos em seu

controle sobre a natureza, podendo esperar efetuar outros ainda maiores, não é

possível estabelecer com certeza que um processo semelhante tenha sido feito no

trato dos assuntos humanos; e provavelmente em todos os períodos, tal como hoje

novamente, muitas pessoas se perguntaram se vale realmente a pena defender a

pouca civilização que foi assim adquirida. Pensar-se ia ser possível um

reordenamento das relações humanas, que removeria as fontes de insatisfação para

com a civilização pela renúncia à coerção e à repressão dos instintos, de sorte que,

imperturbados pela discórdia interna, os homens pudessem dedicar-se à aquisição da

riqueza e à sua fruição. Essa seria a idade de ouro, mas é discutível se tal estado de

coisas pode ser tornado realidade. Parece antes, que toda civilização tem de se erigir

sobre a coerção e a renúncia ao instinto; sequer parece certo se, caso cessasse a

coerção, a maioria dos seres humanos estaria preparada para empreender o trabalho

necessário à aquisição de novas riquezas. Acho que se tem de levar em conta o fato

de estarem presentes em todos os homens tendências destrutivas e, portanto, anti-

sociais e anticulturais, e que, num grande número de pessoas, essas tendências são

suficientemente fortes para determinar o comportamento delas na sociedade

humana.264

Stuart Hall, em A Identidade Cultural na pós-modernidade, adverte que quanto mais a

vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens

internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente

interligados, mais as identidades de cada indivíduo se tornam desvinculadas, desalojadas, e

parecem flutuar dentro de um processo de alienação. É a difusão do consumismo, seja como

realidade, ou como sonho, que contribui com o que Stuart Hall denomina “supermercado

cultural”.265

3.1.1 Sobre política e sistema de governo

Michel Foucault discorre sobre uma possível repetição em relação ao liberalismo, que

considerou como uma nova arte de governar. Para ele a primeira das transformações do

neoliberalismo era essencialmente a dissociação entre a economia do mercado, o princípio

político do laissez-faire e a economia de mercado.

O problema do liberalismo é, ao contrário, saber como se pode regular o exercício

global do poder político com base nos princípios de uma economia de mercado. Não

se trata, portanto, de liberar um espaço vazio, mas de relacionar, de referir, de

projetar uma arte geral de governar os princípios formais de uma economia de

mercado. É esse, a meu ver, o desafio. E eu havia procurado lhes mostrar que, para

conseguir fazer essa operação, isto é, saber até que ponto e em que medida os

princípios formais de uma economia de mercado podiam indexar uma arte geral de

governar, os neoliberais haviam sido obrigados a fazer o liberalismo clássico passar

por certo número de transformações. [...] Creio ter sido esse descolamento entre a

economia de mercado e as políticas de laissez-faire o que havia sido obtido, o que

havia sido definido, em todo o caso, o principio disso havia sido estabelecido a partir

264 FREUD, 1978, p. 88-89. 265 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira

Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p.7 5.

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do momento em que os neoliberais haviam apresentado uma teoria da concorrência

pura, que fazia surgir essa concorrência não como um dado primitivo e natural que

estaria, de certo modo, no próprio princípio, no fundamento dessa sociedade, e

bastaria, de certo modo deixar subir de volta à superfície e redescobrir; a

concorrência, longe disso, era uma estrutura, uma estrutura dotada de propriedades

formais, e eram essas propriedades formais da estrutura concorrencial que

asseguravam e podiam assegurar a regulação econômica pelos mecanismos de

preços. 266

O questionamento de Michel Foucault é saber como se pode regular o exercício global

do poder político com base nos princípios de uma economia de mercado, visto que ela tem

suas raízes no liberalismo. Nesse sentido, Foucault conclui:

Por conseguinte, se a concorrência era de fato essa estrutura formal, ao mesmo

tempo rigorosa em sua estrutura interna, mas frágil em sua existência histórica e

real, o problema da política liberal era, justamente, o de organizar de fato, o espaço

concreto e real em que a estrutura formal da concorrência podia atuar. Uma

economia de mercado sem laissez-faire, isto é, uma política ativa sem dirigismo. O

neoliberalismo não vai portanto se situar sob o signo do laissez-faire, mas o

contrário, sob o signo de uma vigilância, de uma atividade, de uma intervenção

permanente.267

Eis aqui a maneira de operar do biopoder. Michel Foucault realça a forma de atuação

do neoliberalismo, como deixa claro: “sob o signo de uma vigilância, de uma atividade, de

uma intervenção permanente”.268 A questão até então tratada, na forma como o biopoder

econômico e político comportava-se em relação ao equilíbrio e igualdade do mercado sob o

signo do liberalismo, sofre agora uma intervenção para que realmente possam ocorrer ajustes

e o neoliberalismo estar mais próximo desse equilíbrio.

Com esse propósito declinei a obra Nascimento da biopolítica, pois a economia e sua

forma de atuação interferem diretamente na política, e quando não se vislumbra o equilíbrio,

que nem sempre é possível no livre mercado, por conta da concorrência desleal, e de

corporações que impõem regras de preços e condutas, a razão de Estado fica prejudicada.

Outra questão abordada por Foucault é a estabilidade dos preços. “Essa estabilidade dos

preços possibilitará efetivamente, sem dúvida, na sequência, tanto a manutenção do poder

aquisitivo como a existência de um nível de emprego mais elevado do que na crise do

desemprego”.269

266 FOUCAULT, 2008b, p. 181-182. 267 Ibid., p. 182. 268 Ibid., p. 182. 269 Ibid., p. 191.

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O autor ressalva que a concorrência, em seus jogos, em seus mecanismos, não deve ser

julgada como um dado natural, que o Estado deva respeitar, pois trata-se de algo espontâneo

uma simples troca. Foucault, não vê isto como natural, pois a concorrência tem em si mesma

uma essência de poder, de imposição, operando com um jogo de desigualdades, pois existe

nela uma lógica interna, que atua com uma estrutura própria. Com esse pressuposto o governo

deve acompanhar uma economia de mercado.270 A política do biopoder é de assegurar a vida

em seus sentidos vários.

Em História da Sexualidade,271 no último capítulo, Michel Foucault nos informa que a

partir do século XVII ocorrem mudanças nos mecanismos do poder, que deixaram de agir no

sentido de “fazer morrer e deixar viver”, mas produziram uma inversão para “fazer viver e

deixar morrer”. É então que o poder soberano passa a gerir e garantir a vida das pessoas.

Desde esse momento, irá interessar ao poder do Estado estabelecer políticas de higiene e

saúde imprescindíveis para a população, garantindo a vida e seu prolongamento. Isso se dá

igualmente em decorrência do desenvolvimento da medicina, a medicalização geral do

comportamento, que vêm contribuir para melhores condições de vida e espaço de existência

humana.

Trago ainda outras considerações importantes em relação ao biopoder e a biopolítica,

atuando de forma contrária à vida. Neste caso, o mesmo poder que faz viver provoca a morte

com seus efeitos anti-biopoder nas esferas de sua atuação, à medida que invade, destrói,

promove desocupações e fere milhões de pessoas para ganhar mais espaço para o poder.

Oposta àquilo que serviria para estimular e administrar a vida da população, com o fim de

prolongar e cuidar da vida, há então uma obsessão do poder do estado por políticas contrárias

à biopolítica. Como lembra Foucault, em História da Sexualidade:

As guerras já não se travam em nome do soberano a ser defendido; travam-se em

nome da existência de todos; populações inteiras são levadas à destruição mútua em

nome da necessidade de viver. Os massacres se tornaram vitais. Foi como gestores

da vida e da sobrevivência dos corpos e da raça que tantos regimes puderam travar

tantas guerras, causando a morte de tantos homens. E, por uma reviravolta que

permite fechar o círculo, quanto mais a tecnologia das guerras voltou-se para a

destruição exaustiva, tanto mais as decisões que as iniciam e encerram se ordenaram

em função da questão nua e crua da sobrevivência.272

270 FOUCAULT, 2008b, p. 162-165. 271 Id., 2015, p. 145. 272 Ibid., p. 302.

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Na obra Em Defesa da Sociedade272 Foucault declara que o poder, no século XIX,

tomou posse da vida; dizer pelo menos que o poder, no século XIX, incumbiu-se da vida, é

dizer que ele conseguiu cobrir toda superfície que se estende do orgânico ao biológico, do

corpo à população, mediante o jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das

tecnologias de regulamentação, de outra.

O poder se incumbiu tanto do corpo quanto da vida em geral, envolvendo deste modo

toda a população. O biopoder, então, apresenta algumas questões relativas aos seus limites de

atuação. Uma delas é o poder de matar, que o Estado utiliza, como por exemplo o poder

atômico. Por que é tão difícil de se contornar esta questão de destruição em massa, ou da vida

em geral? Se esse poder é capaz de suprimir a vida, existem contradições em relação às

posturas de se fazer viver.273

Suprimir a vida é o mesmo poder de assegurar a vida, possibilidades que Michel

Foucault classifica como excessos do biopoder. Esses excessos do biopoder aparecem quando

a possibilidade é técnica, de fabricar algo monstruoso, fabricar algo no limite, como por

exemplo o desenvolvimento e a fabricação de vírus incontroláveis, armas biológicas

mortíferas, utilizadas para suprimir vidas.

Nessa tecnologia do poder que tem como objeto e como objetivo a vida, vai se exercer

o direito de matar, na função de estado assassino. Como um poder como este, na função de

biopoder, pode matar, se é verdade que se trata essencialmente de aumentar a vida, de

prolongar sua duração, de multiplicar suas possibilidades, de desviar seus acidentes, ou

compensar suas deficiências? Como entender que ao mesmo tempo esse poder é capaz de

mandar matar, expor à morte seus inimigos e seus próprios cidadãos? “Como esse poder que

tem essencialmente o objetivo de fazer viver pode deixar morrer? Como exercer o poder da

morte, com esse poder, como exercer a função da morte, num sistema político centrado no

biopoder”?274

Ainda no mesmo texto Michel Foucault faz considerações sobre a questão do racismo.

Acredita que o que inseriu o racismo nos mecanismos do Estado foi mesmo a necessidade e

urgência do biopoder. Com efeito, o que é o racismo?

É primeiro, o meio de introduzir afinal, nesse domínio da vida de que o poder se

incumbiu, um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer. No contínuo

biológico da espécie humana, o aparecimento das raças, a distinção das raças, a

272 Id., 2008a, p. 303. 273 FOUCAULT, 2008a, p. 39. 274 Ibid., p. 304.

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hierarquia das raças, a qualificação de certas raças como boas e de outras, ao

contrário, como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo

biológico de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da

população, uns grupos em relação aos outros. Em resumo, de estabelecer uma cesura

que será do tipo biológico no interior de um domínio considerado como sendo

precisamente um domínio biológico. Isso vai permitir ao poder tratar uma população

como uma mistura de raças ou, mais exatamente, tratar a espécie, subdividir a

espécie de que ele se incumbiu em subgrupos que serão, precisamente, raças. Essa é

a primeira função do racismo: fragmentar, fazer cesuras no interior desse contínuo

biológico a que se dirige o biopoder.275

Michel Foucault esclarece que o racismo terá uma segunda função: terá como papel

permitir uma relação positiva, do tipo: “quanto mais você matar, mais você fará morrer”, ou

“quando mais você deixar morrer, mais por isso mesmo, você viverá”. É uma relação de

guerra: “para viver é preciso que você massacre seus inimigos”.276 O racismo faz funcionar

esta relação de guerra. A morte do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em que

seria minha segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior, é o

que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura.

Pode-se compreender também por que o racismo se desenvolve nas sociedades

modernas que funcionam baseadas no biopoder. A guerra é um exemplo disto, adversários são

mortos aos milhões, em nome do racismo. Na obra Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt

apresenta o anti-semitismo como uma ofensa ao bom senso, ao constatar:

O anti-semitismo (não apenas o ódio aos judeus), o imperialismo (não apenas a

conquista) e o totalitarismo (não apenas a ditadura), um após o outro, um mais

brutalmente que o outro, demonstraram que a dignidade humana precisa de nova

garantia, somente encontrável em novos princípios políticos e em uma nova lei na

terra, cuja vigência desta vez alcance toda a humanidade, mas cujo poder deve

permanecer estritamente limitado, estabelecido e controlado por entidades

territoriais novamente definidas.277

3.1.2 Biopolítica e Estado de Exceção

A questão e o conceito de biopolítica igualmente encontram-se no espaço de reflexão de

Giorgio Agamben, em sua obra Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Para Agamben

a biopolítica é o melhor modelo de conduzir a vida, pouco importando se a política é de

esquerda, direita, liberal ou totalitária.278 O súdito agora é transformado em cidadão, com o

nascimento o homem é portador imediato da soberania. Não se pode compreender o

275 Ibid., p. 304-305. 276 FOUCAULT, 2008a, p. 305. 277 ARENDT, 1989, p. 13. 278 AGAMBEN, 2002, p. 96.

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desenvolvimento e a vocação nacional e biopolítica do Estado moderno, esquecendo que seu

fundamento principal se encontra no homem:279

As declarações dos direitos devem então ser vistas como o local em que se efetua a

passagem da soberania régia de origem divina à soberania nacional. Elas asseguram

a exceptio da vida na nova ordem estatal que deverá suceder à derrocada do ancien

régime. Que, através delas, o “súdito” se transforme, como foi observado, em

“cidadão”, significa que o nascimento, isto é, a vida nua natural como tal, torne-se

aqui pela primeira vez (com uma transformação cujas consequências biopolíticas

somente hoje podemos começar a mensurar) o portador imediato da soberania. O

princípio de natividade e o princípio de soberania, separados no antigo regime (onde

o nascimento dava lugar somente ao sujet, ao súdito), unem agora irrevogavelmente

no corpo do “sujeito soberano” para constituir o fundamento do novo Estado-nação.

Não é possível compreender o desenvolvimento e a vocação “nacional” e biopolítica

do Estado moderno nos séculos XIX e XX, se esquecemos que em seu fundamento

não está o homem como sujeito político livre e consciente, mas, antes de tudo, a sua

vida nua, o simples nascimento que, na passagem do súdito ao cidadão, é investido

como tal pelo princípio de soberania. A ficção aqui implícita é a de que o

nascimento torne-se imediatamente nação, de modo que entre os dois termos não

possa haver resíduo algum. Os direitos são atribuídos ao homem (ou brotam dele),

somente na medida em que ele é o fundamento imediatamente dissipante (e que,

aliás, não deve nunca vir à luz como tal), do cidadão.280

Tentarei fazer um breve resumo sobre a situação do cidadão e do estado de exceção na

Alemanha nazista: Quando os nazistas tomaram o poder, em 28 de fevereiro de 1933

baixaram um decreto que suspendia por tempo indeterminado os artigos da Constituição que

concerniam à liberdade pessoal, à liberdade de expressão e de reunião, à inviolabilidade do

domicílio e ao sigilo postal e eletrônico. Segundo Giorgio Agamben, havia nessa situação

uma novidade: o texto do decreto que, do ponto de vista jurídico, baseava-se no artigo 48 da

Constituição ainda vigente e equivalia a uma proclamação do estado de exceção. O artigo da

Constituição Alemã não tinha nenhuma expressão que falasse em Estado de Exceção, mas um

dos parágrafos da Constituição continha a frase – “estão suspensos até nova ordem”. Com o

decreto os direitos fundamentais ficaram suspensos, e os juristas da época consideraram o

caso como peculiar, considerando aquela situação como um estado de exceção desejado pelo

governo alemão.281

O nexo entre estado de exceção e campo de concentração não poderia ser

superestimado, em uma correta compreensão da natureza do campo. “O campo é o espaço que

se abre quando o estado de exceção começa a se tornar a regra”.282 Neste sentido, Giorgio

279 Ibid., p. 134-135. 280 AGAMBEN, 2002, p. 135. 281 Ibid., p. 174-174. 282 Ibid., p. 175.

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Agamben observa que o estado de exceção, que era essencialmente uma suspensão temporal

do ordenamento jurídico com base numa situação fictícia de perigo, adquire um status de

permanência, mantendo-se de forma estável fora do ordenamento normal.283

Giorgio Agamben284 pontua que é necessário refletir sobre o estatuto paradoxal do

campo enquanto espaço de exceção, ou seja, ele é um pedaço de território que é colocado fora

do ordenamento jurídico normal, mas não é, por causa disso, simplesmente um espaço

externo. Assim, aquilo que nele é excluído (capturado fora) é incluído através de sua própria

exclusão. Mas aquilo que, deste modo, é antes de tudo capturado no ordenamento, é o próprio

estado de exceção.

Outra situação, ainda na sequência, é que na medida em que o estado de exceção é, de

fato, “desejado”, ele inaugura um novo modelo jurídico-político, no qual a norma se torna

indiscernível da exceção. O soberano não irá mais limitar-se a decidir sobre a exceção, como

estava no espírito da Constituição, segundo Agamben, com base no reconhecimento de uma

dada situação fictícia (o perigo para a segurança pública). Assim, exibindo a nu a íntima

estrutura de bando que caracterizava o seu poder, ele agora produz a situação de fato com

consequência da decisão que tomou sobre a exceção.285

Há um movimento interno e externo, as pessoas perderam todo seu estatuto político e

a fórmula neste caso é fazer morrer e deixar viver, citando Michel Foucault, em História da

Sexualidade. O biopoder transforma o cidadão em condição neutra, desprovido de qualquer

direito, o soberano decide quem vive e quem morre; num caso como este, exceção como

regra, o soberano desrespeita a ordem Constitucional em nome de algo que não existia para

dispor das liberdades e das vidas.

Giorgio Agamben, em O que resta de Auschwitz, interroga:

É precisamente tal heterogeneidade que, no entanto, começará a tornar-se

problemática no momento de afrontar a análise dos grandes Estados Totalitários do

nosso tempo, especialmente do Estado nazista. Nele, uma absolutização sem

precedentes do biopoder de fazer viver, se cruza com uma não menos absoluta

generalização do poder soberano de fazer morrer, de tal forma que a biopolítica

coincide imediatamente com a tanatopolítica. Essa coincidência representa, na

perspectiva foucaulteana, um verdadeiro paradoxo que, conforme acontece com

qualquer paradoxo, exige uma explicação. Como é possível que um poder cujo

objetivo é essencialmente o de fazer viver exerça por sua vez um incondicionado

poder de morte?286

283 Ibid., p. 176. 284 Ibid., p. 176-177. 285 AGAMBEN, 2002, p. 177. 286 AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo sacer III). Tradução de

Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 89.

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Ao lado da questão levantada acima por Giorgio Agamben, Michel Foucault, na obra

Em Defesa da Sociedade, desenvolve a do racismo, o aparecimento das raças. O pensador

francês contribui para ampliar o entendimento daquele momento nos campos de concentração

e a busca pela raça pura defendida pelo soberano alemão na época da Segunda Guerra.

Compreende-se então a função decisiva dos campos no sistema da biopolítica

nazista. Eles não são apenas o lugar da morte e do extermínio, mas também, e antes

de qualquer outra coisa, o lugar de produção do mulçumano, da última substância

biopolítica isolável no continuum biológico. Para além disso, há somente a câmara

de gás.287

Em 1937, durante a celebração de uma reunião secreta, Hitler, segundo Giorgio

Agamben, formula pela primeira vez um conceito biopolítico extremo, que é necessário

comentar. Referindo-se à Europa centro oriental, ele declara que precisa de um volkloser

Raum, ou seja, um espaço sem povo. Como entender isto? Agamben, esclarece que tal

referência não se assemelha a um deserto, ou a um espaço geográfico desprovido de

habitantes (a região a que ele se referia era densa de povos e nacionalidades diferentes). Por

aquela forma ele designa uma intensidade biopolítica fundamental, que pode estar em

qualquer espaço. Haveria uma máquina biopolítica que, uma vez implantada em um espaço

biopolítico absoluto, por ele nomeado daquela maneira, ao mesmo tempo seria o espaço de

vida e da morte, no qual a vida humana passa a estar além de qualquer identidade biopolítica

atribuível.288

O século XX, segundo Celso Lafer, em A Reconstrução do Direitos Humanos,289

presenciou experiências nas quais os limites entre o aceitável e o inaceitável desbordaram

amplamente daquilo que hoje nos parece razoável. A mais dramática dessas experiências foi o

totalitarismo, que Hannah Arendt analisou como uma forma inédita de governo apoiada na

ideologia, na burocracia e no terror, e caracterizada pelo medo. Terror, ideologia e burocracia

permitiram uma dominação total da sociedade.

Ainda neste sentido, no pensamento de Celso Lafer, tal dominação se fez por meio de

leis, que tanto na vigência do nazismo quanto na do stalinismo se colocaram contra os valores

da Justiça e do Direito, os quais, com a modernidade, fizeram do homem o sujeito de Direito

legitimador do ordenamento jurídico.

O governo totalitário, em Origens do Totalitarismo,290 nos coloca diante de uma

espécie totalmente diferente de governo. É verdade que desafia todas as leis positivas, mesmo

287 FOUCAULT, 2008a, p. 90. 288 AGAMBEN, 2008, p. 91. 289 LAFER, 1988, p. 76. 290 ARENDT, 1989, p. 513.

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aquelas que ele próprio estabeleceu, no caso da Constituição Alemã, e que o governo nunca

revogou; mas não opera sem a orientação de uma lei, nem é arbitrário, pois afirma obedecer

rigorosa e inequivocamente àquelas leis da Natureza ou da História que sempre acreditamos

serem a origem de todas as leis.

As leis positivas destinam-se a erigir fronteiras e a estabelecer canais de

comunicação entre os homens, cuja comunidade é continuamente posta em perigo

pelos novos homens que nela nascem. A cada nascimento, um novo começo surge

para o mundo, um novo mundo em potencial passa a existir. A estabilidade das leis

corresponde ao constante movimento de todas as coisas humanas, um movimento

que jamais pode cessar enquanto os homens nasçam e morram. As leis

circunscrevem cada novo começo e, ao mesmo tempo, asseguram a sua liberdade de

movimento, a potencialidade de algo inteiramente novo e imprescindível; os limites

das leis positivas são para a existência política do homem o que a memória é para a

sua existência histórica: garantem a preexistência de um mundo comum, a realidade

de certa continuidade que transcende a duração individual de cada geração, absorve

todas as novas origens e delas se alimenta.291

Quem entrava nos campos de concentração movia-se em uma zona de indistinção,

conforme pontua Giorgio Agamben, em Homer Sacer – O poder soberano e a vida nua I,292

entre externo e interno, exceção e regra, lícito e ilícito, na qual os próprios conceitos de direito

subjetivo e de proteção jurídica não faziam mais sentido, pelas leis de Nuremberg – não

valiam então seus direitos de cidadão e, nem posteriormente, no momento da “solução final”,

expressão usada para a morte das pessoas completamente desnacionalizadas e sem proteção.

Na medida em que seus habitantes foram despojados de todo estatuto político e

reduzidos integralmente a vida nua, o campo é também o mais absoluto espaço

biopolítico que jamais tenha sido realizado, no qual o direito não tem diante de si

senão a pura vida sem qualquer mediação. Por isso o campo é o próprio paradigma

do espaço público no ponto em que a política se torna biopolítica e o homo sacer se

confunde virtualmente com o cidadão.293

Giorgio Agamben ressalta ainda que a vida nua em que aquelas pessoas foram

transformadas não significa um fato extrapolítico, mas uma aposta de uma decisão política

soberana, que opera na absoluta indiferenciação de fato e direito. O campo é o espaço em que

não há possibilidade de tomada de decisões entre fato e direito, entre exceção e regra.

291 ARENDT, 1989, p. 517. 292 AGAMBEN, 2002, p. 177. 293 Ibid., p. 178.

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102

O que o guardião ou o funcionário do campo têm diante de si não é um fato

extrajurídico (um indivíduo biologicamente pertencente à raça hebraica), ao

contrário, cada gesto, cada evento no campo, do mais “simples’ ou mais brutal,

dava-se a decisão sobre a vida nua que efetiva o corpo biopolítico alemão.294

Giorgio Agamben nos traz exemplos que se aproximam da situação dos milhares de

refugiados existentes no mundo, por força de políticas que desconhecem os direitos humanos

e buscam nas guerras e políticas econômicas um anti-biopoder, ensejando constantemente um

estado de exceção, quando na verdade a norma é o Estatuto dos Direitos Humanos. Vejamos o

exemplo atualíssimo hoje dado pelo pensador:

[...] se a essência do campo consiste na materialização do estado de exceção e na

consequente criação de um espaço em que a vida nua e a norma entram em um

limiar de indistinção, deveremos admitir, então, que nos encontramos virtualmente

na presença de um campo toda vez que é criada uma tal estrutura, independente da

natureza dos crimes que aí são cometidos e qualquer que seja sua denominação ou

topografia específica. Será um campo tanto o estádio de Bari, onde em 1991 a

polícia italiana aglomerou provisoriamente os imigrantes clandestinos albaneses

antes de reexpedi-los ao seu país, quanto o velódromo de inverno no qual as

autoridades de Vichy recolheram os hebreus antes de entregá-los aos alemães; tanto

o Konzentrationslager für Ausländer em Cottbus-Sielow, no qual o governo de

Weimar recolheu os refugiados hebreus orientais, quanto as zones d’attente nos

aeroportos internacionais franceses, nas quais são retidos os estrangeiros que pedem

o reconhecimento do estatuto de refugiado. Em todos estes casos, um local

aparentemente anódino (como, por exemplo, Hotel Árcades, em Roissy) delimita na

realidade um espaço no qual o ordenamento normal é de fato suspenso, e que aí se

cometam ou não atrocidades não depende do direito, mas somente da civilidade e do

senso ético da polícia que age provisoriamente como soberana (por exemplo, nos

quatro dias em que os estrangeiros podem ser retidos nas zone d’attente, antes da

intervenção da autoridade judiciária).295

Por esses exemplos, o nascimento do campo em nossos dias surge então, nesta

perspectiva, marcando o espaço político da modernidade. Declinar todas estas considerações

traduz a preocupação com posturas existentes na modernidade de possíveis níveis de

totalitarismo dentro da democracia. São movimentos que podem existir, e deslocar para um

campo aquilo que não interessa ao sistema. Temos uma possível reaparição dos “campos”, nas

considerações de Giorgio Agamben, quando a política se volta aos interesses particulares.

Um campo, como espaço permanente de exceção. É nosso tempo moderno. O sistema

político não ordena mais formas de vida e normas jurídicas em um espaço determinado, como

na era nazista, mas contém em seu interior uma localização deslocante,296 (expressão de

294 Ibid., p. 180. 295 AGAMBEN, 2002, p. 181. 296 Ibid., p. 182.

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Giorgio Agamben), que o excede, e na qual toda forma de vida e toda norma podem ser

capturadas.

Ainda nessa linha, Giorgio Agamben discorre sobre esse campo deslocante que chama

de matriz oculta da política, em que ainda vivemos, e que devemos aprender a reconhecer

através de todas as suas metamorfoses, nas zones d’attente de nossos aeroportos, bem como

em certas partes periféricas de nossas cidades ou Estados. Toda forma de vida e norma podem

ser capturadas. A biopolítica encontra-se nesses campos, mas é preciso analisar qual intenção

de aplicá-la e sua dimensão junto a vida.

3.1.3 Vida nua

Giorgio Agamben assenta que o protagonista da obra “O poder soberano e a vida nua

I” é a própria vida nua, ou seja, a vida matável e insacrificável do homo sacer.297 Ainda:

“uma obscura figura do direito romano arcaico, na qual a vida humana é incluída no

ordenamento unicamente sob a forma de sua exclusão (ou seja, de sua absoluta

matabilidade)”.298

O estado de exceção, no qual a vida nua era, ao mesmo tempo, excluída e capturada

pelo ordenamento, constituía, na verdade, o fundamento oculto sobre o qual repousava o

inteiro sistema político; quando as fronteiras se indeterminam, a vida nua que o cidadão

habitava libera-se na cidade e torna-se simultaneamente o sujeito e o objeto do ordenamento

político e de seus conflitos, o ponto comum tanto da organização do poder estatal quanto da

emancipação dele. Agamben esclarece que o que se encontra em questão é “a vida nua do

cidadão, o novo corpo biopolítico da humanidade”.299

Na obra de Peter Pál Pelbart, Vida Capital-Ensaios de biopolítica300, o autor pontua

que, na esteira de Michel Foucault, Giorgio Agamben sustenta que o totalitarismo nazista é

essencialmente biopolítico. Uma forma estranha de entendermos, mas é o primeiro Estado

radicalmente biopolítico, pois é o Estado tomando decisões sobre a vida, e confundindo um

dado natural com uma tarefa política, considerando que para os nazistas tratava-se de assumir

politicamente sua hereditariedade biológica. O nazismo separava a vida nua das formas de

vida, e depois subsumia as formas de vida à vida nua. Havia uma política de eugenia, de

297 AGAMBEN, 2002, p. 16. 298 Ibid., p. 16. 299 Ibid., p. 17. 300 PELBART, Peter Pál. Vida Capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2009. p. 63.

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melhoria de raça e de suas condições de reprodução. Há um quadro biopolítico dentro do

contexto nazista de biopolítica.

Na esteira desse esclarecimento, Peter Pál Pelbart ressalta que o campo é um espaço

onde norma e exceção se tornam indiferentes. Ali, o estado de exceção vigora normalmente.

“O campo é o espaço biopolítico mais puro, pois o que ele tem diante de si é a vida nua, a

pura vida, sem nenhuma mediação”.301 Pelbart esclarece que para além de cometer

atrocidades contra a humanidade, ou crimes hediondos contra seres humanos, será também

necessário indagar por quais dispositivos, jurídicos e políticos, seres humanos foram privados

de seus direitos, a tal ponto que qualquer ato nefando contra aqueles indivíduos deixou de ser

considerado criminoso.

Edgar Morin, na obra A cabeça bem-feita – Repensar a reforma e reformar o

pensamento, pondera que se era possível acompanhar a Segunda Guerra Mundial pelas

bandeirinhas fincadas no mapa, hoje não mais é possível fazer qualquer tipo de projeção ou

cálculo sobre o que acontecerá com a humanidade, ao se simular uma guerra com a tecnologia

nos tempos atuais. Os noticiários corroboram essa reflexão. A arma atômica deixou o cidadão

inteiramente desprovido da possibilidade de uma previsão. Sua utilização está entregue

unicamente à decisão do chefe de Estado, sem qualquer consulta a alguma instância

democrática regulamentar. “Quanto mais técnica se torna a política, mais regride a

competência democrática”.302

Os governos arrogam-se o direito de lançar na conta do lucro e das perdas a

infelicidade dos homens que suas decisões provocam e suas negligências permitem, conclui

Oswaldo Giacoia Junior, em artigo intitulado Sobre direitos humanos na era da bio-política:

“É um dever dessa cidadania internacional fazer valer sempre, aos olhos e aos

ouvidos dos governos, os infortúnios dos homens, de que não é verdade que eles são

responsáveis. O infortúnio dos homens não deve jamais ser um resto mudo da

política. Ele funda um direito absoluto a se levantar e a se dirigir àqueles que detêm

o poder.”303

Oswaldo Giacoia Junior cogita a viabilidade de uma intervenção pura, não violenta,

numa modalidade de ação política liberada do modelo obsessivo da soberania. Ele ilustra esse

modelo indesejável com o incidente internacional significativo que ficou conhecido como o

301 Ibid., p. 7. 302 MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: Repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução de Eloá

Jocobina. 21. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014. p. 19. 303 GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Sobre direitos humanos na era da bio-política. Kriterion [online], Belo

Horizonte, v. 49, n. 118, p. 267-308, dez. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/kr/v49n118/

02.pdf>. Acesso em: 02 dez. 2015. p. 8.

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caso dos boat people, ou seja, os barcos nos quais cerca de oitocentas mil pessoas tentavam

“ilegalmente” escapar do sudeste asiático, em busca de melhores condições de existência. O

autor lembra a exposição desses imigrantes a uma autêntica e dramática situação de

abandono, sofrendo toda espécie de agressão, violência e abusos, recusa de asilo e proteção,

expulsão das águas demarcadas por fronteiras territoriais, argumentando que traumas maiores

poderiam ter sido evitados por meio de intervenções adequadas. 304

Nessa situação Oswaldo Giacoia Junior ressalta que estamos diante de indivíduos

privados de tudo, sem quaisquer tipos de recursos, e não sabemos a razão pela qual

abandonaram seus países, ao invés de permanecerem neles. Teríamos assim que recorrer ao

questionamento do campo onde vigora a exceção, pois existe uma cidadania internacional que

tem seus direitos e deveres e acima de tudo a solidariedade.

3.2 Capitalismo e biopolítica

Na obra Vida Capital, Ensaios de biopolítica, Peter Pál Pelbart, em um de seus

ensaios, intitulado Império e Biopotência, faz algumas considerações interessantes sobre o

poder da sociedade de controle da vida social, amparando-se em algumas posições de Michel

Foucault.

Estamos numa fase onde a globalização alcança rapidamente as coisas,

transformando de certa forma tudo, sem fronteiras. A existência humana parece estar

coberta por esta nova ordem. É algo que se esparrama, se entrelaça ao tecido social.

O Império, diferente do imperialismo, é sem limites, engloba a totalidade do espaço

do mundo, apresenta-se como fim dos tempos e penetra funda na vida das pessoas.

Surge desta forma nova modalidade de controle. A sociedade funciona através de

mecanismos de monitoramento mais difusos, flexíveis, ondulantes, incidindo

diretamente sobre os corpos e a mente. Ele se exerce pela comunicação em rede de

informação, o sujeito adentrou a um estado de alienação autônoma.305

Pelbart, na mesma obra, desenvolve em um dos capítulos o ensaio Império e

Biopolítica, no qual discorre sobre a dimensão biopolítica da sociedade de controle. A vida

volta-se para seus mecanismos, pois rege e regula a vida social, reformulando-se,

possibilitando situações antes não alcançáveis. Em questão de segundos encontros são

realizados, negócios são fechados financeiramente, marcam-se encontros e passeatas em

busca de mudanças na sociedade e na política, tudo virtualmente. A função de cada indivíduo

encontra-se dividida com esta sociedade de controle. Esse controle tem o poder de afetar a

304 Ibid. 305 PELBART, 2009, p. 81-82.

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vida em sociedade. Definir o “Império” como regime biopolítico implica esse duplo sentido:

“significa reconhecer que nele o poder sobre a vida atinge uma dimensão nunca vista, mas por

isso mesmo nele a potência da vida se revela de maneira inédita.306

Michel Foucault, na obra Em Defesa da Sociedade, realça que o indivíduo é efeito do

poder e é, ao mesmo tempo, na mesma medida, tanto um efeito de poder como intermediário

de poder: o poder transita pelo indivíduo que ele constitui, assim: “o poder é algo que se

exerce, que circula, que forma rede”.307

Pelbart considera que nem tudo pode estar perdido. A multidão nutre o Império e ao

mesmo tempo o ameaça: Biopoder como um regime geral de dominação da vida; biopolítica

como uma forma de dominação da vida que pode igualmente significar, no seu avesso, uma

resistência ativa, o poder comum de agir; e a biopotência como a potência da vida da multidão

-- a biopotência inclui o poder de agir.

Nesse sentido, Hannah Arendt, em A Condição Humana, no ensaio intitulado A Vita

Activa e a Era moderna, propõe:

O que quer que o futuro no reserve, o processo de alienação do mundo, e

caracterizado por um crescimento cada vez maior da riqueza, pode assumir

proporções ainda mais radicais somente se lhe for permitido seguir a lei que lhe é

inerente. Pois os homens não podem ser cidadãos do mundo como são cidadãos dos

seus países, e homens sociais não podem ser donos coletivos como os homens que

têm um lar e uma família são dono de sua propriedade privada. A ascensão da

sociedade trouxe consigo o declínio simultâneo das esferas públicas e privadas; mas

o eclipse de um mundo público comum, fator tão crucial para formação da massa

solitária e tão perigoso na formação da mentalidade, alienada do mundo, dos

modernos movimentos ideológicos de massas [...].308

Roberto Esposito, em Bios – Biopolítica e Filosofia,309 sugere que o conceito de

biopolítica pode tornar-se maior do que representa, para além de transformar-se numa forma

de humanismo tradicional. Envolve uma situação mais ampla, ou seja, afasta-se da ideia de

uma casa bem organizada e avança para questões mundiais, como tratou-se neste trabalho.

Fome, saúde, mortalidade, guerras, ameaças atômicas, desrespeito com a natureza, e outras

mazelas. Trata-se de um projeto de uma política multidimensional do homem, ou seja, toma

proporção e caminhos que se interpenetram.

306 Ibid., p. 83. Sobre a palavra “Império”, apontada no texto, que difere de imperialismo. Império é sem limites,

sem fronteiras. Engloba a totalidade do espaço humano e penetra fundo na vida das pessoas. É uma nova

estrutura de comando, corresponde a fase atual do capitalismo. Cf. PELBART, 2009, p. 81. 307 FOUCAULT, 2008a, p. 35. 308 ARENDT, 2009, p. 269. 309 ESPOSITO, Roberto. Bios: biopolítica e filosofia. Portugal: Edições 70, 2004. p. 38-39.

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A biopolítica foi definida como a ciência das condutas dos Estados e das coletividades

humanas, tidos em conta as leis, o ambiente natural e os dados ontológicos que regem a vida e

determinam a atividade do homem. A definição envolve a coletividade humana e desloca-se

para o compromisso da sociedade em atuar em favor do meio em que vive e produz. Roberto

Esposito pontua de forma interessante que existe um curto circuito retórico que envolve a

teoria e prática, pois já não é a teoria a interpretar a realidade, mas a realidade a ditar uma

teoria destinada a confirmá-la.310

O fato de que a política se preocupe sempre, de uma ou outra maneira, em defender a

vida, não significa que só agora, coincidindo justamente com a modernidade, essa necessidade

de segurança e cuidados pelas altas demandas e complexidades existentes faça parecer que

haja mais recursos. Significa que em todas as civilizações, passadas e presentes, houve

resolução dos seus problemas de imunização e auto conservação da vida.

Desse modo, podemos ver posturas biopolíticas na obra A República, de Platão, e

como bem cita Roberto Esposito, na obra de Thomas Hobbes. Hobbes não é o filosofo do

conflito, da luta de todos contra todos, mas sim da paz, ou melhor, da neutralização, a partir

do instante em que o estado político serve justamente para dar a garantia preventivamente,

contra a possibilidade de uma guerra.311

Outra observação em relação a esta questão: Roberto Esposito nos fala em imunidade

em sua obra Bios – Biopolítica e Filosofia. Na obra de Thomas Hobbes, Leviatã, o pacto, que

traz a segurança versus paz, não estaria apenas preservando a vida contra-ataques externos ou

internos, mas há uma proposta de vida com paz, numa medida de felicidade, propiciada pelo

Estado. É ofertada à política a tarefa de salvar, há uma sujeição do indivíduo em relação ao

Estado. Observa-se aqui também um caráter negativo da imunização em relação à sujeição:

Vejam-se os casos dos países em conflitos de guerra, ou o das grandes potências mundiais que

também são atacadas por outros países e dentro do seu próprio território sofrem ameaças, sem

término para solução. Dessa maneira, o processo de imunização fica engessado, quando

voltaríamos à expressão de Michel Foucault, sobre a necessidade de “fazer viver e deixar

morrer”.312

O negativo da immunitas preenche agora todo o quadro para se salvar de forma

duradoura, ou seja, a vida é tornada privada no duplo sentido da expressão, segundo Roberto

310 Ibid., p. 44. 311 ESPOSITO, 2004, p. 74-95. 312 FOUCAULT, 2008a, p. 304-305.

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Esposito: privatizada e privada daquela relação que a expõe ao seu traço comum. Qualquer

relação externa ao fio vertical que vincula cada um ao mando soberano é cortada na raiz.

Mais do que pelo poder positivo do Estado soberano, ele é protegido pela margem

negativa que o entrega a si próprio. Poder-se-ia dizer que a soberania, em última

análise, não é mais do que o vazio artificial criado em torno de qualquer indivíduo, o

negativo da relação que medeia entre entidades sem relação.313

Roberto Esposito faz algumas considerações sobre o genocídio ocorrido durante a

Segunda Guerra Mundial, e a forma como o nazismo procedia na biopolítica. Tal se deu em

princípio de 1939, quando um dos médicos de confiança de Hitler foi encarregado de iniciar o

processo de eutanásia para as crianças abaixo dos três anos que fossem suspeitas de graves

problemas hereditários, como idiotia, microcefalia e outros males. Em outro período a ordem

foi igualmente estendida a adultos com problemas dessa ordem. O programa foi ampliado

geograficamente para outras regiões da Alemanha.314

Na sequência, Roberto Esposito lembra que foi decidida a “solução final” para todos

os judeus. É aquilo a que se chama genocídio. Os executores dos crimes estavam convencidos

de que somente eles poderiam fazer com que o povo alemão recuperasse a saúde; assim, com

relação ao massacre a proposta era a regeneração vencer a degeneração através do genocídio.

Nesta tese convergem autores que, implícita ou explicitamente, têm insistido na

caracterização biopolítica do nazismo, ou seja, foi a crescente imbricação entre política e vida

que introduziu nesta última a cesura normativa entre aqueles que devem viver e aqueles que

devem morrer. A morte se tornava ao mesmo tempo objeto, e um instrumento de cura.

Situações relativas a distúrbios hereditários passaram a sofrer legitimação dos médicos, ou

melhor, os médicos legitimavam decisões tomadas na esfera política e criavam diagnósticos

por pura discriminação racial, decididos ao arbítrio, para favorecer o que o Estado desejasse.

Para captar a essência da política nazista, não se pode perder o entendimento entre os

dois fenômenos, biológicos e políticos. É como justamente a reivindicação do primado da

vida a provocar a sua absoluta subordinação à política.315

3.2.1 Capitalismo e humanismo

313 ESPOSITO, op. cit., p. 94. 314 ESPOSITO, 2004, p. 194-195. 315 Ibid., p. 199.

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O Capitalismo Humanista316 é uma obra de Ricardo Sayeg e Wagner Balera. Dela

sobressai que apesar da crise do capitalismo global, ocorrida em 2008, o neoliberalismo ainda

prevalece na economia mundial, estabelecendo para o planeta a globalização econômica

capitalista. A ideia da obra parte da concepção do humanismo integral a ser utilizada nos

processos econômicos para maior e melhor equilíbrio do sistema, e inegavelmente das

pessoas, buscando um olhar para a dignidade da pessoa humana nas relações existentes.

O texto nos conduz a conformar o capitalismo às exigências da atualidade em favor do

homem, de todos os homens e do planeta, assim é necessário formular uma teoria jus-

humanista da economia e do mercado. A necessidade da regência do Direito se torna

imprescindível, pois é o que garante a efetividade e o cumprimento dos direitos fundamentais

e do respeito à dignidade humana. No propósito aqui declinado penso em universalidade e

igualdade.

Na introdução à obra os autores destacam que é inegável o caráter individualista das

poderosas forças de mercado, e que só se contemplará a efetividade multidimensional dos

direitos humanos através do mínimo concreto para o planeta, qual seja, a consecução dos oito

objetivos gerais identificados nas Metas do Milênio, a saber:317

1) Erradicar a extrema pobreza e a fome;

2) Atingir o ensino básico universal;

3) Promover a igualdade de gênero e a autonomia das mulheres;

4) Reduzir a mortalidade infantil;

5) Melhorar a saúde materna;

6) Combater o HIV/AIDS, a malária e outros doenças graves;

7) Garantir a sustentabilidade ambiental e;

8) Estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento.

As presentes propostas e reflexões constituem uma proposta de caminho, segundo os

autores, e igualmente vêm em sintonia com as análises sobre biopolítica e biopoder.

Com a globalização econômica, dada a força do capital, principalmente por meio de

transações financeiras e negócios multilaterais, o grupo central do capitalismo impôs ao

mundo, em especial aos países financiados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI),

envolvendo os emergentes e em desenvolvimento, a pauta jus-econômica neoliberal do

316 SAYEG, Ricardo; BALERA, Wagner. O capitalismo humanista. Petrópolis: KBR, 2011. 317 SAYEG; BALERA, 2011, p. 17.

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Consenso. O Brasil, por exemplo, como tantas outras nações, tomou recursos do FMI na

década de 1990 mediante o compromisso de privatizações e da abertura do país à globalização

capitalista liberal.318

O planeta migrou para a ampla e global economia de mercado. Foi a retomada

concreta das clássicas teorias liberais econômicas de Adam Smith e David Ricardo, segundo

constataram Ricardo Sayeg e Wagner Balera, sob a premissa de que, se cada um dentro da

comunidade agir em favor de seus interesses individuais, sem consideração com o outro,

haverá maior eficiência econômica e que isso, no final, resultará naturalmente em favor do

interesse coletivo, ainda que muitas vezes sem os aspectos de igualdade.

Nesse sentido, seguir esta linha de individualismo na forma de proceder nos assuntos

econômicos junto ao mercado abdicará de qualquer consideração de ordem humanista, para

tão só atingir a proposta de produzir melhores resultados econômicos. Assim, a exclusão

econômica, social, política e cultural, como também o esgotamento do planeta, são

considerados naturais, tudo em prol da seleção natural e de um crescimento econômico no

qual os ricos ficam mais ricos e os pobres, mais pobres.319

O Capitalismo Humanista320 defende a humanização da economia de mercado,

deslocando o capitalismo neoliberal do seu ser, que corresponde ao estado de natureza,

selvagem e desumano, para o dever-ser da concretização multidimensional dos direitos

humanos mediante a universal dignificação da pessoa humana. Essa é a filosofia humanista do

Direito Econômico, que nada mais é do que o transporte teórico da Lei Universal da

Fraternidade para o Direito Econômico, buscando a liberdade e igualdade.

A filosofia humanista do Direito Econômico entende, portanto, “que o processo de

desenvolvimento deve centrar-se na pessoa humana e no planeta, visando garantir a todos os

homens níveis básicos de subsistência e sustentabilidade do planeta”.321

Nesta mesma linha de pensamento, um caso ilustra essa preocupação: o poder privado,

com todo seu domínio econômico, em se tratando de empresas do mundo corporativo, por

exemplo, os planos de saúde: de fato é manifesto que entre o particular e o plano de saúde há

uma forte relação de poder estabelecida, não apenas de natureza econômica, mas também

técnica. De tal modo que os planos de saúde podem, pelo menos de certa maneira, ser

equiparados aos serviços de saúde prestados pelo Estado, o que justifica a forte fiscalização

que há sobre eles, em especial após a criação da Agência Nacional de Saúde. Visa-se assim

318 Ibid., p. 23. 319 SAYEG; BALERA, 2011, p. 24. 320 Ibid., p. 25. 321 Ibid., p. 27.

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garantir o atendimento mínimo necessário, conforme prescrevem os direitos fundamentais

constitucionais. Em ações que tramitam na Justiça há cláusulas abusivas com a proposta de

majoração de valor cobrado pelos planos em razão da idade. O Poder judiciário muitas vezes

termina por estabelecer limitação no poder de majoração efetuado pela empresa de Saúde.322

Resgatei o exemplo acima apenas para ilustrar e trazer o capitalismo humanista

alcançado pela eficácia dos direitos sociais nas relações privadas, como o princípio da

solidariedade entre as partes, para a concretização do equilíbrio nas relações. Na obra

Direitos Fundamentais Sociais e Relações Privadas, Cibele Gralha Mateus assinala:

“o direito privado não está isento da incidência dos valores constitucionais [...]. Além disso,

um dos objetivos da República Federativa do Brasil é exatamente construir uma sociedade

justa, livre e solidária”.323

Poderia ter inserido tal questão no item onde foi tratado o tema do nascimento da

biopolítica em Michel Foucault, mas destaquei neste momento o assunto capitalismo

Humanista para finalizar com a leitura do texto sobre o humanismo de Martin Heidegger.

3.2.2 Humanismo e educação

Em sua obra Carta sobre o Humanismo Martin Heidegger considera que “se entende

por humanismo, de modo geral, o empenho para que o homem se torne livre para sua

humanidade, para nela encontrar a sua dignidade, então o humanismo distingue-se, em cada

caso, segundo a concepção de liberdade e da natureza do homem”324

A apatricidade que assim deve ser pensada reside no abandono antológico do ente. Ela

é o sinal do esquecimento do ser. Em consequência dela, a verdade do ser permanece

impensada. O esquecimento do ser manifesta-se indiretamente no fato de o homem sempre

considerar e trabalhar só o ente. E como nisto não pode evitar de ter o ser na representação,

322 MATEUS, Cibele Gralha. Direitos Fundamentais sociais e relações privadas: o caso do direito à saúde na

Constituição brasileira de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008. p. 139-140. A título

exemplificativo da situação acima abordada, a mesma autora traz um julgado em favor dos menos

favorecidos em relação ao assunto tratado sobre Capitalismo e humanismo: Apelação Cível. Seguros. Plano

de Saúde. Revisão de Contrato. Cláusula que prevê aumento de 100% da mensalidade ao atingir a faixa etária

de 60 anos. Limitação em 20%. Diálogo de Fontes: CDC, Lei dos Planos de Saúde e Estatuto do Idoso.

Índice de Correção a ser aplicado quanto ao período de 2002 a 2003. IGP-M. I – Majoração em razão do

implemento da idade. Mostra-se abusiva a cláusula que prevê o reajuste da contraprestação em 100% em

razão do implemento da idade de 60 anos. Limite de majoração em 20%, reconhecido o diálogo estabelecido

entre as seguintes fontes: CDC e Leis n.9.656/1998 e 10.741/2003. Rio Grande do Sul. Tribunal de Justiça.

Sexta Câmara Cível. Apelação Cível n. 70012183521. Relator: Ubirajara Mach de Oliveira. Julgado em: 14

set. 2005. 323 MATEUS, 2008, p. 135. 324 HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Tradução de Rubens Eduardo Frias. 2. ed. São Paulo:

Centauro, 2005. p. 19.

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também o ser é explicado apenas como o mais geral e, portanto, o que engloba o ente, ou

como criação do ente infinito, ou ainda, como produção de um sujeito finito. O ser enquanto

destino que destina a verdade permanece oculto.325

Na mesma obra Martin Heidegger responde à pergunta de Jean Beaufret: “Comment

redonner un sens au mot Humanisme?”326 (“Como restaurar o sentido à palavra

Humanismo?”):

Ela perdeu o sentido pela convicção de que a essência do humanismo é de caráter

metafísico e isto significa, agora, que a Metafísica não só coloca a questão da

verdade do ser, mas a obstrui, na medida em que a Metafísica persiste no

esquecimento do ser. Mas o pensar que conduz a esta compreensão do caráter

problemático da essência do humanismo levou-nos, ao mesmo tempo, a essência do

homem mais radicalmente.327

Em Sete lições sobre o Ser328 Jacques Maritain nos apresenta o texto denominado O

Ser desrealizado. Em um dos apontamentos da obra, que se divide em lições que discorrem

sobre a essência e existência do ser, Maritain nos explica que o ser, quando cai sob a

consideração do lógico, quando é considerado entre outros objetos próprios da lógica, e

investido em todos eles, é algo diferente do ser do metafísico. Ele o pressupõe, mas em lógica

o ser é compreendido como objeto de segunda intenção mental. A diferença entre o ser lógico

e o metafísico se apresenta no sentido de que o lógico, caráter mental, discerne, reflexiva e

cientificamente, do ponto de vista de sua própria ciência, o caráter de extensão máxima ou de

universalidade soberana que o ser vago, o ser como termo de uma simples abstractio totalis,

já permite descobrir.

Outra consideração de Jacques Maritain encontra-se no ensaio intitulado Ser e

Movimento.329 A observação consiste em reconhecer que a realidade que se atinge pela ideia

de ser implica movimento. Esse movimento é em direção à perfeição desejada. Em todas as

coisas sempre haverá movimento e mudança. Daí a necessidade, para o ser, de se distribuir

em dois planos diferentes, o do ser em ato e o do ser em potência. Esses dois planos são

análogos, segundo o pensador.

Um texto importante que possibilita cobrir toda a reflexão deste trabalho remete à

educação e conscientização, sem as quais se torna mais complexo o caminho que

325 Ibid., p. 46-47. 326 Ibid. Quando responde a pergunta de Jean Beaufret: “Comment redonner un sens au mot Humanisme? ”

(“Como restaurar o sentido à palavra Humanismo? ”): em resposta da por Heidegger. Tradução livre. 327 Ibid., p. 55-56. 328 MARITAIN, Jacques. Sete lições sobre o ser. Tradução de Nicolás Nyimi Campanário. 3. ed. São Paulo:

Loyola, 2005. p. 42. 329 Ibid., p. 80.

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necessitamos percorrer. O texto que acredito alcança tais convicções denomina-se Palavras e

Sinais, de Theodor W. Adorno,330 e reflete sobre educação após Auschwitz. Para que a

situação de Auschwitz não se repita é primordial a educação. Os comentários envoltos a esta

situação têm sido pouco abordados no exame de posturas totalitárias. Que Auschwitz não se

repita. Não apenas o genocídio, mas posturas políticas agressivas e sem propostas de levar

adiante acordos de paz têm raízes em momentos que não merecem ser repetidos, mas

lembrados no processo da educação.

As raízes devem ser buscadas, segundo Theodor Adorno, nos perseguidores, não nas

vítimas, exterminadas sob os pretextos mais mesquinhos. Devemos buscar os mecanismos

que levam as pessoas a cometer tais crimes contra a humanidade, mostrar a elas mesmas e

tratar de impedir que voltem a agir assim. Por outro lado, quando se fala em educação após

Auschwitz, Adorno refere-se à educação na infância, sobretudo na primeira; aí dar-se-ia o

esclarecimento geral a estabelecer um clima espiritual, cultural e social que não admita a

repetição daquilo; o clima da infância será a base para que o que tentar praticar o horror não o

faça, já que a base do bem estará lançada na infância.331

Tem-se levado em conta o problema do autoritarismo envolvendo dirigentes de nações

que terminam por cometer atos que ultrapassam o admissível. A uma mentalidade sadia

parece plausível invocar vínculos que ponham termo ao sádico, destrutivo, devastador,

mediante uma enérgica expressão interna: Tu não deves. A única força verdadeira contra o

princípio de Auschwitz seria a autonomia, razão por que Theodor Adorno cita Kant: “a força

para a reflexão, para a autodeterminação, para o não deixar-se levar”. 332

Adorno nota que precisamente nos maiores centros urbanos encontramos a tendência à

violência. A tendência global da sociedade engendra hoje, por toda parte, tendências

regressivas, ou seja, pessoas com traços sádicos e patológicos. Sempre que a consciência

estiver mutilada, isso se reverte para o corpo e para a esfera somática através de uma estrutura

compulsiva, propensa à violência. Adorno cita o esporte, que deveria ser melhor reconhecido,

considerando seu poder de integração.333

Visando reagir contra a repetição de Auschwitz, parece essencial esclarecer, em

primeiro lugar, como se forma o caráter manipulador, a fim de procurar, de forma mais

urgente, impedir seu surgimento mediante a modificação das condições que levaram a tal

formação; estudar os culpados, por meio de análise de comportamento, e discutir para

330 ADORNO, 1995. 331 ADORNO, 1995.p. 108-109. 332 Ibid., p. 110. 333 Ibid., p. 112.

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conscientizar; estudar igualmente aquilo que se refere à consciência coisificada, a relação com

a técnica, o véu tecnológico, o fetiche pela morte daquelas pessoas, próprio daqueles que

sabiam que conduziriam suas vítimas para os campos e esqueceriam qual era a sorte que as

aguardava ali. 334

Por fim, Theodor Adorno pontua que a falta de amor hoje é uma falha de todas as

pessoas, dentro de suas atuais formas de existência. Um dos grandes impulsos do

Cristianismo foi o de extinguir a frieza que penetra em tudo. Assim cabe a todos uma

educação política para que não se repitam os horrores de Auschwitz, o que só seria possível se

pudéssemos tratar os assuntos abertamente, sem chocar poderes estabelecidos.

Hannah Arendt, na obra Entre o passado e o futuro, examina a crise na educação.

Uma crise só se torna um desastre quando retornamos a ela com juízos pré-formados,

furtando-nos à reflexão sobre novos caminhos. “A educação não pode desempenhar papel

nenhum na política, pois na política lidamos com aqueles que já estão educados. Quem quer

que queira educar adultos na realidade pretende agir como guardião e impedi-los de atividade

política”.335

Hannah Arendt esclarece que ao emancipar-se da autoridade dos adultos, a criança não

foi libertada, e sim sujeita a uma autoridade muito mais terrível e verdadeiramente tirânica.

As crianças banidas do mundo dos adultos ficarão entregues à tirania de seu próprio grupo, e a

reação da criança a essa pressão tende a ser ou o conformismo ou a delinquência juvenil, e

frequentemente é uma mistura de ambos.336

Uma crise na educação em qualquer ocasião originaria séria preocupação, mesmo se

não refletisse, como ocorre no presente caso, uma crise e uma instabilidade mais

gerais na sociedade moderna. A educação está entre as atividades mais elementares e

necessárias da sociedade humana, que jamais permanece tal qual é, porém se renova

continuamente através do nascimento, da vinda de novos seres humanos.337

A obra Educação – A solução está no afeto338, de Gabriel Chalita, reforça a

importância da educação que percorre os caminhos das pessoas e as fortalece em seus ideais.

Abrir um livro sobre educação, a começar pela família, demonstra a enorme preocupação com

essa instituição. Não se experimentou para a educação informal nenhuma célula social melhor

334 Ibid., p. 118. 335 ARENDT, 2014. p. 225. 336 Ibid., p. 230. 337 Ibid., p. 234. 338 CHALITA, 2004. p. 17.

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que a família. É nela que se forma o caráter. Qualquer projeto educacional sério depende da

participação familiar.

Gabriel Chalita destaca que todo esse processo educacional trará reflexões importantes

e significativas para a cidadania. Esta palavra carrega um significado ideológico que traz a

exigência de direitos e a garantia de uma participação efetiva na sociedade, segundo o

pensador. Quando se analisa a Constituição Federal, fica-se perplexo diante de numerosas

possibilidades de participação que o cidadão encontra.339

A convivência humana, que de certa forma é bastante abrangente, refere-se àquela que

se dá com os vizinhos, os amigos, os sócios do clube, nos contatos que contaminam positiva e

negativamente a personalidade que se encontra em formação, como pontua Gabriel Chalita.340

O ser humano é social, mas não nasce preparado para viver em sociedade, sendo papel dos

pais, na primeira infância, conter os ímpetos desmedidos do pequeno, pela educação, um

processo que prepara o ser humano para o exercício da convivência.341

Sobre humanismo e educação cabe ainda o esclarecimento de Hannah Arendt, Entre o

passado e o futuro, pontuando sobre a educação para um mundo melhor:

A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para

assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria

inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. E educação é,

também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las

de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de

suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós,

preparando em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo

comum”.341

Edgard Morin nos mostra que a educação deve contribuir para a autoformação da

pessoa, ensinar a assumir a condição humana, ensinar a viver, e ensinar como se tornar

cidadão. Um cidadão é definido, em uma democracia, por sua solidariedade e

responsabilidade em relação a sua pátria. “O que supõe nele o enraizamento de sua identidade

nacional”.342

3.3 Uma proposta a ser refletida em Jürgen Habermas

339 Ibid., p. 110. 340 Ibid., p. 123. 341 Ibid., p. 247. 341 ARENDT, 2014, p. 247. 342 MORIN, 2014, p. 65.

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Pensei em terminar o texto deste trabalho, que buscou refletir sobre questões de

biopolítica e biopoder nas esferas democráticas, sempre com a atenção voltada aos

movimentos totalitários nos processos democráticos, ou em condutas que se dispersam muito

de uma política voltada à vida. No texto de Theodor Adorno, Palavras e Sinais, há uma

proposta para a educação com a finalidade de evitar campos que são estranhos para a

sociedade e principalmente para governantes. Esses campos representam todas as realizações

positivas e negativas de atuação, são os campos das exceções, dentro da sociedade e na esfera

política.

Esses campos muitas vezes são onde encontram-se pessoas para serem educadas e

conduzidas. Adorno nos fala de ocuparmos lugares aonde pudesse ser levada a

conscientização da educação. Um desses lugares poderia ser atingido pelos meios de

comunicação, considerando o alcance que possibilitam.

Penso também na formação de algo como grupos e colunas móveis de educação,

formados por voluntários, que saíssem a campo e que, através de discussões,

tentassem suprir as falhas mais perigosas. Certamente, não ignoro que tais pessoas

dificilmente seriam bem recebidas. Mas não tardaria em constituir-se um pequeno

grupo de discussão em torno delas, que poderia, talvez, converter-se em foco de

irradiação.343

Com esse propósito, buscaríamos na Teoria da Ação Comunicativa de Jürgen

Habermas o amparo necessário para propagar, conscientizar e divulgar processos positivos

inerentes ao biopoder e à biopolítica. Em sua obra Pensamento pós-metafísico,344 ele

desenvolve a teoria da ação comunicativa, que pontua num dos ensaios o texto intitulado Agir

Comunicativo – Virada Linguística.

Jürgen Habermas345 explica que a utilização do termo agir social e interação, pode ser

analisado com o auxílio dos conceitos elementares agir e falar. Nas intenções mediadas pela

linguagem, esses dois tipos de ação, segundo o pensador, encontram-se ligados um ao outro.

O entendimento através da linguagem funciona da seguinte maneira: os participantes da

interação unem-se através da validade pretendida de suas ações de fala ou tomam em

consideração os dissensos constatados. Dessa maneira, através das ações de fala são levadas

pretensões de validade criticáveis, as quais apontam para um reconhecimento intersubjetivo.

343 ADORNO, 1995, p. 112. 344 HABERMAS, 2002c. 345 HABERMAS, Jürgen. A consciência moral e agir comunicativo. Tradução de Guido Antonio de Almeida.

2. ed. São Paulo: Tempo Brasileiro, 2013. p. 70-72.

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Em outra consideração, Habermas amplia a possibilidade da ação da fala, o uso da

linguagem, compreensível para o ouvinte e aceita por ele, a qual se difunde também para as

consequências relevantes da ação, que resultam do conteúdo semântico do proferimento, seja

de modo assimétrico para ouvintes e falantes tomados isoladamente, seja de modo simétrico

para ambas as partes. “Quem aceita uma ordem, sente-se obrigado a executá-la; quem faz uma

promessa, sente-se no dever de cumpri-la, caso seja necessário; quem aceita uma asserção,

acredita nela e comporta-se de acordo com ela”.346

Jürgen Habermas nos apresenta a sociedade como mundo da vida simbolicamente

estruturado. Assim, qualquer ato da fala, através do qual um falante se entende com um outro

sobre algo, localiza a expressão linguística, sendo que a relação interpessoal assume as

possibilidades da linguagem, tornando possível um acordo entre os atores, racionalmente

motivados.347

Sempre vejo um objetivo de indução a um consenso entre as partes, através deste

processo de argumentação, voltado para o entendimento e esclarecimento. Declinei a Teoria

da ação Comunicativa, não buscando um aprofundamento na Teoria de Habermas, mas com o

propósito de restabelecer diálogos, como bem pontuou Theodor Adorno em seu texto

Palavras e Sinais. Teremos nestas situações universos voltados a ação e estratégias.

Se tomarmos como base a obra A Ordem do Discurso,348 de Michel Foucault,

entenderemos que existem, evidentemente, muitos outros procedimentos de controle e de

delimitação do discurso. São os discursos que exercem seu próprio controle, e pode-se supor

que há, muito regularmente, nas sociedades, uma espécie de desnivelamento entre os

discursos, e nós os conhecemos em nosso sistema de cultura, na forma de textos religiosos, ou

jurídicos, ou médicos, ou científicos

A ação desses discursos estaria carregada pelos efeitos do poder, e na exposição de

Jürgen Habermas, segundo Paulo Sergio Rouanet,349 em As razões do Iluminismo, relações de

poder predominam sobre as relações comunicativas, embora os processos argumentativos

possam superar certas estratégias do poder.

A partir daí Jürgen Habermas lança luz em todo este cenário, que realmente existe, e

atua, pois os efeitos do poder transitam pelos setores das atividades humanas e em nós, mas

toda relação e ação comunicativa sempre refaz situações que possibilitam novos rumos,

repensando a política nas esferas sociais para que a vida seja garantida.

346 Ibid., p. 72. 347 Id., 2002c, p. 95. 348 FOUCAULT, 1996, p. 21. 349 ROUANET, Paulo Sergio. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 159.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Recordas-te do homem da caverna: a sua libertação das correntes, a sua conversão

das sombras para as figuras artificiais e a luz que as projeta, a sua ascensão para o sol [...]”.350

A partir desta colocação de Sócrates, em A República de Platão, temos a esperança

diante de tudo aquilo que pudemos refletir e declinamos neste trabalho, em especial a questão

levantada sobre a vida nua de Giorgio Agamben de que há uma libertação para o homem.

Sócrates ensina ainda que na Alegoria da Caverna temos os efeitos do estudo das ciências que

acabamos de examinar, que elevam a parte mais sublime da alma até a contemplação do mais

excelente de todos os seres.

Em outro momento da mesma obra, que colocamos no início de nosso trabalho, outra

passagem se destaca:

[...] semelhante ao viajante que, durante uma tempestade, enquanto um muro atrás

do qual possa se abrigar, os filósofos, constatando que a injustiça reina impune por

toda parte, sentem-se felizes em poder conservar-se em seu retiro isentos de

injustiças e de ações ímpias e passar seus dias sorridentes e tranquilos e com o

consolo de uma bela esperança.351

Na obra Ética a Nicômaco,352 Aristóteles, em seu livro V, assinala que todos entendem

por justiça a disposição moral que torna os indivíduos aptos a realizar atos justos que os faz

agir justamente e desejar o que é justo, e analogamente, por injustiça a disposição que leva os

indivíduos a agir injustamente e desejar o que é injusto. Aristóteles assume esta definição

como ponto de partida e desenvolvimento de seu texto.

Há outros apontamentos sobre a justiça no texto direcionado ao seu filho Nicômaco.

Pontua que o justo significa aquilo que é legal e aquilo que é igual ou equitativo, e o injusto

aquilo que é ilegal e aquilo que é desigual ou não equitativo. O transgressor da lei é injusto,

quanto àquele que a obedece, justo. Estabelece ainda que o que é legal é estabelecido pela

legislação e às várias decisões desta denominam-se regras de justiça.353

Outra observação aristotélica considera a justiça como uma virtude perfeita, sendo a

virtude principal. Sempre que se recorre a um juiz, dirige-se à justiça, pois o juiz ideal é, por

assim dizer, a justiça personificada. O juiz é um elemento mediano para poder estabelecer o

equilíbrio nas pretensões dos litigantes.354

350 PLATÃO, 2005, p. 284. 351 Ibid., p. 237. 352 ARISTÓTELES, 2013, p. 145. 353 Ibid., p. 146-147. 354 Ibid., p. 155.

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Um homem injusto é alguém não equitativo, há uma desigualdade a ser analisada.

A injustiça pode incorrer na deficiência, no desequilíbrio, no demasiado muito, no demasiado

pouco.355 A razão pela qual é necessário que a lei governe, e não o ser humano, ampara-se no

sentido de se governar para todos, dentro de um processo de igualdade e não desigualdade.356

Quando Aristóteles trata das virtudes, estabelece algo importante que são as

faculdades como potência e seu desenvolvimento posterior. Isso seguramente não ocorre com

os nossos sentidos, ou seja, não adquirimos a faculdade da visão ou da audição, pelo simples

fato de vermos repetidamente, ou ouvirmos, mas simplesmente possuímos a visão e a audição.

Contrariamente às virtudes, porque nós as adquirimos por tê-las praticado, assim como

praticamos as artes.357

Nessa reflexão, Aristóteles desenvolve a ideia de que, através dos hábitos, vamos

aperfeiçoando as virtudes morais. Vamos aprendendo fazendo as coisas, e assim com a arte,

os homens se tornam construtores construindo casas e tocadores de lira tocando lira. Um dos

pontos de maior brilho encontramos quando Aristóteles raciocina que, analogamente, nos

tornamos justos realizando atos justos, moderados realizando atos moderados; legisladores

tornam os cidadãos bons treinando-os em hábitos de ação correta. “Nos compete controlar o

caráter de nossas atividades, considerando que a qualidade de nossas atividades determina a

qualidade de nossas disposições”.358

Gabriel Chalita, em Os dez mandamentos da ética, possibilita ampliarmos as várias

faces da excelência moral, tratando das virtudes, ou de como a excelência moral é

experimentada conforme as emoções e as vontades em questão, em cada situação que

vivenciamos. Sobre a ambição que corrói a autoridade e o poder, essa falha moral causa males

infindáveis na política. Temos por ideia, aponta Chalita, uma figura pública que se omite na

defesa dos cidadãos mais fracos, pela covardia, contra especuladores e exploradores da

sociedade. Noutro extremo encontra-se a pretensão. O pretensioso é aquele que aspira a coisas

que estão além de suas forças, de suas capacidades, e que exagera suas realizações buscando

não o bem como finalidade, mas sim o elogio sem mérito, a homenagem vazia de sentidos.

Este não tem vontade de caminhar em direção certa, que exige autoconhecimento e

compromisso com a excelência moral.359

355 ARISTÓTELES, 2013, p. 153. 356 Ibid., p. 162. 357 Ibid., p. 67-68. 358 Ibid., p. 69. 359 CHALITA, Gabriel Benedito Issaac. Os dez mandamentos da ética. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

p. 93-105.

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Na mesma obra Chalita afirma ser a justiça a excelência moral mais completa, pois

sintetiza as outras excelências. Ela é ao mesmo tempo individual e coletiva. Não há a

possibilidade de ser justo comigo mesmo sem ser justo com o outro. O autor considera a

consciência como uma boa sinalizadora do sentido da justiça. Enganar o outro é enganar a

sociedade, significa quebrar um contrato que se faz para que exista harmonia no mundo.

Neste sentido, esclarece ainda que temos apontamentos platônicos e aristotélicos, com

linhas importantes que servem de condutas quando no exercício de nossas atividades. É na

atividade política e privada que aplicaremos as virtudes. Não há como isolar cada uma delas e

diferenciá-las para cada momento.

Gabriel Chalita explicita ainda, em sintonia com John Rawls, que a justiça na política

necessita estar presente no povo, no governado. Muitas vezes as pessoas cobram uma postura

ética e digna de quem governa, e agem contrariamente aos princípios da mesma ética pela

qual clamam. Dessa maneira, pode-se perceber como é importante a relação entre justiça e

política, e como a redação de boas leis e a obediência a elas são fundamentais para que a

justiça política se traduza na forma de uma sociedade ética, de bem-estar social, e bem-

ordenada.

Por mais perfeitas que sejam as leis, sem a presença viva dos cidadãos da comunidade

elas serão inúteis. Assim, toda lei tem sua razão de ser nas pessoas: mas a comunidade precisa

cobrar seu cumprimento, além de obedecer a seus preceitos. A justiça enraizada no coração é

a justiça feita pelos cidadãos, e não apenas por leis; ela nasce e se nutre do coração do

homem, e não do papel que usamos para anotar as tantas regras de convivência que as

modernas sociedades, tão complexas, precisam para se organizar. A verdadeira justiça nasce

da alma, é um poder de deliberação cuja força provém do espírito. As leis devem ser seus

auxiliares, guias de orientação, mas a fonte de onde brota a excelência da justiça reside

mesmo, segundo a obra Os dez mandamentos da ética, no coração e na mente das pessoas.

John Rawls está presente no primeiro capítulo desta tese. A proposta é esta. Com

olhos em Aristóteles, invocamos a justiça para ter-se uma ideia da dimensão que representa

quando refletida e ponderada. Nos moldes de John Rawls, a justiça nos chega em forma de

contrato, mas procura apresentar-se de tal maneira que possamos acima de tudo discutir a

questão. Quando o autor aponta para a questão da posição original, partimos da suposição de

que as partes que estabelecerão a relação estão numa posição racional e de desinteresse

mútuo.

Uma sociedade bem-ordenada fortalece a autonomia das pessoas e irá encorajar seus

juízos ponderados sobre justiça, e que se tornam coletivamente racionais a partir da ideia e da

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perspectiva da posição original; considerando que o ponto de vista do indivíduo, o desejo de

afirmar a concepção pública da justiça como fator determinante, como plano de vida, e

coerente com os princípios da escolha, tais juízos se estabelecem como: “1) todos aceitam e

sabem que os outros aceitam os mesmos princípios de justiça; e 2) as instituições sociais

básicas geralmente satisfazem, e geralmente se sabe que satisfazem, esses princípios”.360

A partir dessas considerações em John Rawls, já anunciadas anteriormente, é que se

apoiariam na comunidade a ideia e os valores de justiça.

Há que se considerar na ideia de construção de sociedade bem-ordenada a questão da

moralidade dos participantes, pois não se descarta que por ser ela uma característica humana,

o comportamento das pessoas que irão se comprometer e terão que lidar com uma situação

racional e de desinteresse mútuo deverá ser revisto, pois determinadas inclinações não

deverão fazer parte do acordo, partindo-se da suposição, conforme John Rawls observa, de

que as pessoas na posição original não são movidas por certas inclinações de sentimentos.

Assim sendo,

Uma sociedade bem-organizada satisfaz os princípios da justiça, que são

coletivamente racionais a partir da perspectiva da posição original; e o ponto de

vista do indivíduo, o desejo de afirmar a concepção pública da justiça como o fator

determinante de nosso plano de vida é coerente com os princípios da escolha

racional.361

A partir das escolhas, existe a proposta em valorizar a comunidade e sempre a busca

do consenso. Mesmo com as restrições iniciais, é a ideia de justiça que irá se desenvolver, que

se constrói a partir do consenso para o todo.

O desejo de afirmar a concepção pública demonstra o avanço para a esfera

comunicativa. A ação comunicativa atinge a publicidade, pois segundo John Rawls, é a

publicidade que permite que cada um justifique a sua conduta perante todos os outros (quando

a conduta for passível de justificativa), sem frustrações ou qualquer situação que venha causar

desequilíbrio ou perturbação.362

John Rawls ainda pontua que se levarmos a sério a ideia de união social e da

sociedade como uma união social composta dessas uniões, certamente a questão de tornar

pública a conduta é uma condição natural, pois ajuda estabelecer que uma sociedade bem-

360 RAWLS, 2002, p. 5. 361 Ibid., p. 643. 362 RAWLS, 2002, p. 649.

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organizada é uma atividade unificada, na qual todos sabem que seguem esta concepção

reguladora e que cada um irá partilhar dos esforços em benefícios de todos.

Temos um grande desafio em estabelecer a concepção proposta. A partir de uma

sociedade de alta complexidade como a nossa, teríamos que admitir que buscar consenso

inicial ou básico sobre a esfera do dissenso demandaria buscar condições menos exigentes

para os participantes, conforme igualmente aponta John Rawls, e que possibilitassem a

construção viável de justiça. Vamos analisar em Jürgen Habermas uma possível saída pela

ação comunicativa.

A proposta de Jürgen Habermas poderá colaborar com a proposta de integração entre

indivíduos através do encontro no mundo vivido, um campo das interações naturais, onde os

agentes se encontram para conduzir o processo de argumentação, formular suas pretensões de

validade, criticá-las, aceitá-las, e chegar a um consenso.362

O mundo da vida é o pano de fundo da ação comunicativa, ali se encontram os grupos

sociais. A ação comunicativa irá coordenar as ações pelo aspecto do entendimento, com

caráter intencional. Nessa perspectiva, teríamos um universo de possibilidades de encontrar,

no mundo da vida, componentes importantes para viabilizar pretensões de justiça e igualdade.

Como resolveríamos a integração de subsistemas, mundo do trabalho, em oposição com

economia e capitalismo? 363

Com essa proposta, os grupos divorciados do Estado, ou aqueles que não se ajustam às

regras das leis, não estariam isolados do mundo da vida, e o processo comunicativo passaria a

ser regulado de forma a integrar mais as pessoas. Os agentes participantes tentam definir de

forma cooperativa os seus planos de ação, levando em conta sempre a situação que cada um

possui, através de processos de entendimento. Nem sempre este tipo de ação e cooperação

consegue prosperar em sociedades complexas, mas são passos que poderão promover ajustes

e integrações entre os atores.

Hannah Arendt chamou atenção para o despertar do indivíduo e a sua relação com a

esfera pública. Em defesa da vida, buscou nos apátridas todas as pessoas do mundo

desprotegidas e desamparadas por suas Nações e Estados. As condições de isolamento, maus

tratos e a perda da cidadania trazem para o cenário a importância e o sentido da liberdade, da

felicidade e do respeito ao próximo, antes mesmo do Estatuto dos Direitos Humanos. A

condição humana é sua preocupação. A preocupação com o cidadão, que deve estar na pauta

362 ROUANET, 1987, p. 160. 363 HABERMAS, 2002c.

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das discussões, debates e outros eventos que se ocupam dos assuntos humanos com o olhar da

solidariedade em primeiro plano, e não somente porque a legislação determina ou prescreve.

Um processo de alienação instaurou-se no indivíduo. Um esquecimento da esfera

pública. É a liberdade política que preocupa Hannah Arendt. O que ela chama de isolamento

na esfera pública é chamado de solidão na esfera dos contatos sociais. A perda no terreno

político da ação é do homo faber, que apresenta este isolamento em função do seu trabalho;

deixando temporariamente o terreno da política, o homem isolou-se da esfera pública para

cuidar de si.

Este isolamento tem uma questão que percorreu as páginas das obras A Condição

Humana e Entre o passado e o futuro. Ao deixar a esfera dos contatos sociais, concentrando

suas vontades em si mesmo, afastando-se do espaço político, deixando de buscar interesse

pelas coisas públicas, pelo sentido da política, pela forma como as leis estão sendo elaboradas,

o indivíduo possibilita com este seu isolamento que este espaço público muitas vezes seja

dominado por governos e movimentos distantes do bem-estar público político e de interesses

de todos.

Desse modo, este espaço público que é tido como a realização das ações, da liberdade

política, das manifestações populares, das discussões voltadas ao bem social; tido como campo

de encontro para assuntos em comum e de interesses de todos, acaba sofrendo uma destruição

da sua capacidade política e da esfera da vida pública. O significado do espaço público, para

Hannah Arendt, deveria estar carregado pela ação, pela vida ativa. Agindo juntos todos têm

poder e podem estabelecer uma liberdade condizente com seu valor.

A preocupação de Hannah Arendt, em relação ao espaço público, envolve a questão da

liberdade do indivíduo. Estaria ligada à sua interação com aquele espaço. Em Michel Foucault

a liberdade estaria comprometida, pois quando trata sobre a disciplina, mecanismos de

controle e norma, a liberdade ficaria restrita, à medida que o indivíduo seria um objeto dócil-

e-útil, inviabilizando o exercício desta liberdade em seus afazeres como cidadão e indivíduo

social. O excesso de burocracia e seus mecanismos de informações já transformam o sujeito

em objeto dócil-e-útil.

Realmente as técnicas utilizadas para apurar dados privados dos indivíduos

encontram-se dentro de uma perfeição inigualável. O controle exercido sobre o social vem ao

encontro da proposta exposta por Michel Foucault. O poder e seus efeitos existem e acredito

na vigilância permanente como meio de controle. A ideia e a certeza em encontrar o poder

localizado em um centro único retirou-se de cena e temos agora uma sociedade disciplinar

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acompanhada por constantes vigilâncias e punições. O sujeito é vigiado e acompanhado por

um poder que permanece e com o qual ele está em constante sintonia.

Pode-se concluir que o indivíduo moderno pode recorrer à sua capacidade de interação

e discernimento e reconhecer que também possui condições de transformar posições e

pensamentos. Mesmo sujeito de uma disciplina e vigilância a que é submetido pelo poder,

poderá exercer, a partir de ações, como bem esclarece Hannah Arendt, uma transformação no

meio em que vive.

O Estado democrático deve ser alimentado por políticas que contribuam com posturas

voltadas ao fazer viver. Nesse sentido, vimos em Michel Foucault a ação da biopolítica.

Foucault se refere à governamentalidade liberal e nos traz contribuições sobre aquilo que

chamou a nova arte de governar, o liberalismo. E no centro dele um mercado que se coloca

como uma indústria de consumo e promove profundas alienações nos indivíduos, como bem

já citou Hannah Arendt. Em Nascimento da biopolítica, Michel Foucault também aponta

nesse sentido.

E nos remete igualmente a essa nova arte de governar:

Uma reorganização interna que, mais uma vez, não pergunta ao Estado que

liberdade você vai dar à economia, mas pergunta à economia: como a sua liberdade

vai poder ter uma função e um papel de estatização, no sentido de que isso permitirá

fundar efetivamente a legitimidade de um Estado?364

A forma de Michel Foucault pensar as questões do poder e seus efeitos faz sentido.

A sociedade disciplinar, o controle e situações de vigilâncias constantes fazem parte dos

efeitos do poder e o poder não se revela como um “rei”, mas é anônimo. Dizer que o poder

teria dominado a vida ou dela tomado posse, é dizer que ele se incumbiu dela, é dizer que

conseguiu cobrir a superfície que lhe corresponde, como esclarece na obra Em Defesa da

Sociedade. O poder articula-se em constantes intervenções para manter o indivíduo em

vigilância permanente, o indivíduo sofre sua ação. Considerando toda cobertura que passou a

exercer sobre a vida, num controle da vida em geral, é então nesse sentido que Michel

Foucault questiona: “Como exercer o poder da morte, como exercer a função da morte, num

sistema político centrado no biopoder?”365

Se o poder a partir do século XIX incumbiu-se da vida, realmente promoveu

mudanças nas ciências para fazer aumentar a vida, para controlar seus acidentes, suas

364 FOUCAULT, 2008b, p. 127. 365 FOUCAULT, 2008a, p. 304.

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deficiências e necessidades. Surge aqui o poder biopolítico, voltado ao bem-estar dos

indivíduos, e ao mesmo tempo retorna a questão: o interesse do homem como cientista, ou na

esfera governamental, na condição de governo, na função de biopoder, estabelece e faz

aumentar a vida, para na sequência a destruir, com armas de toda espécie, por um erro ou

descuido político em administração pública que se traduza em guerras, que inviabilizam e

neutralizam o biopoder e a biopolítica.

Esse descuido e decisões que não são observadas e terminam por engessar a vida

pública com suas consequências. O que falta no poder e na governamentalidade? Qual critério

deveria ser usado para afastar situações que possibilitam a existência de estado de exceção?

Giorgio Agamben se manifesta nesse sentido quando nos conduz para a esfera da vida nua.

Situações vivenciadas em Auschwitz denunciam a fragilidade do homem e o quanto encontra-

se desamparado. Havia uma política voltada à biopolítica negativa, em nome da morte. Assim,

não havia possibilidade da existência da biopolítica na esfera social, tampouco interesse pelo

biopoder (negativo). A vida do homem necessita estar no planejamento do biopoder e da

biopolítica, e encontrar lugar na pauta moderna com propostas mais concretas de reconduzir a

maneira da relação da política com a sociedade.

Os procedimentos do biopoder, conforme sinaliza Michel Foucault, em História da

Sexualidade I: a vontade de saber, confirmam o entendimento sobre os investimentos sobre o

corpo vivo e sua valorização. A biopolítica fará parte dos cálculos de transformação da vida.

Fazer viver e deixar morrer.366

O direito que antes era o de apropriar-se dos corpos e dos bens das pessoas, com o uso

da força, passa neste momento a salvar vidas. Mas refletir sobre as considerações de Michel

Foucault sobre o holocausto nos conduz muito bem ao entendimento de como os governantes

agiam sobre os corpos. Os limites da crueldade foram ultrapassados com o argumento de

salvar uma raça, levando ao propósito fazer morrer e deixar viver, agindo paralelamente com

fazer viver com deixar morrer. É o que se denomina de biopoder e biopolítica negativa. “O

poder de expor uma população à morte geral é o inverso do poder de garantir a outra sua

permanência em vida”.367

Giorgio Agamben tratou sobre tanatopolítica, a decisão sobre o morrer, fazer morrer,

inserida nas formas de lei penal não escritas, nos genocídios que podemos acompanhar pelo

mundo, assim como atos de guerra, invasões, e pessoas que morrem sem assistência médica

adequada em leitos hospitalares. Enquanto se faz uma política voltada à vida, que é a

366 Id., 2015, p. 146. 367 Ibid., p. 147.

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biopolítica, pode-se ao mesmo tempo convertê-la na tanatopolítica, atingindo a vida social e

todos aqueles que buscam na política a vida. A postura adotada pelo biopoder e pela

biopolítica na modernidade ainda nos conduz às questões de violência, sem que as

Organizações Humanitárias possam intervir de forma mais eficaz.

O conceito de soberania dado por Giorgio Agamben, denunciado na obra Homo sacer

I, eleva o indivíduo, não a uma condição política ou jurídica, mas a uma situação que inclua o

vivente na política e no direito, possibilitando que não faça parte de comunidades que o

excluam, mas que ganhe participação na condição de cidadão. Giorgio Agamben faz uso da

expressão que irá bem definir essa situação. Sendo a exceção uma espécie de exclusão, para

aquele que foi excluído da norma geral a relação com a norma não existe mais, assim o

indivíduo é incluído na exceção.

A exceção é uma espécie da exclusão. Ela é um caso singular, que é excluído da

norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção é que aquilo que é

excluído não está, por causa disto, absolutamente fora de relação com a norma; ao

contrário, esta se mantém em relação com aquela na forma de suspensão. A norma

se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se desta. O estado de exceção não é,

portanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta da sua suspensão.

Neste sentido, a exceção é verdadeiramente, segundo o étimo, capturada fora e não

simplesmente excluída. 368

Zygmunt Bauman percorre em Modernidade Líquida369 os espaços vazios de

significados. São lugares não colonizados, com a presença da vida nua. Bauman relata nessa

obra que em uma de suas viagens a uma cidade populosa, grande e movimentada no Sul da

Europa, esteve presente para uma série de conferências. Ao chegar no aeroporto da cidade

destino, foi recepcionado por uma moça de alta cultura e financeiramente bem posicionada,

que o acompanharia em seus compromissos. Foi informado pela moça que o trajeto do

aeroporto ao hotel onde ficaria hospedado tomaria quase duas horas, devido ao tráfico intenso

e caminhos tortuosos dentro da cidade. Bauman relata que de fato demorou. Ao término de

seus compromissos e de volta ao aeroporto para retornar à sua cidade, informou a todos que

voltaria de taxi, para não incomodar as pessoas.

O trajeto de volta demorou menos de dez minutos. O motivo: o motorista tomou caminhos por

ruas e vielas pobres, abandonadas e cheias de pessoas rudes, morando em barracos e

esquecidas em suas periferias, conforme relata.

368 AGAMBEN, 2002, p. 25. 369 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

2001b. p. 121-123.

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Bauman ressalva que a ênfase da moça bem-sucedida que o acolheu era verdadeira,

pois era o trajeto que ela conhecia e que fazia parte do roteiro de vida que tinha -- era o

sentido de vida e trajeto que compreendia. Conclusão. A cidade apresenta muitos caminhos,

cantos, pessoas, zonas indeterminadas, pessoas com vidas nuas que não conhecemos e não são

vistas por algum motivo. Ao referir-se a uma possível alienação do homem em relação ao

espaço público, Hannah Arendt apresenta esta preocupação em relação a processos de

abandono e esquecimento. “O vazio do lugar está no olho de quem vê e nas pernas ou rodas

de quem anda. Vazios são os lugares em que não se entra, não se acolhe, e onde se sentiria

perdido e vulnerável, surpreendido e um tanto atemorizado pela presença de humanos”.370

Zygmunt Bauman enfatiza ainda que a principal capacidade de demonstração de

civilidade é quando interagimos com pessoas estranhas, sem que essa estranheza ou frieza

possa contaminar laços de interação. É a capacidade de conviver com as diferenças, aceitar

outras propostas para adquirirmos e ampliarmos nossos entendimentos em relação à vida e à

civilidade.

Por essa reflexão Bauman nos conduz sobre o trabalho a ser realizado no espaço

público dentro de uma proposta de interação, pois aí se aglomera o maior número de pessoas

necessitadas destes exercícios de interação e civilidade. Os laços sociais estão fragilizados

pelos esforços em preservar à distância o “outro”, o diferente, o estranho e o estrangeiro,

inviabilizando a comunicação possível na esfera pública ou política.

As artes do diálogo e da negociação encontram-se num processo decadente, o que a

curto ou longo prazo, comprometerá a liberdade, sendo que é justamente a liberdade do

espaço público que também preocupa Bauman. O singelo caso que Zygmunt Bauman nos

relatou acima é ponto de reflexão para que a liberdade não fique atrelada aos mais capacitados

de todas as formas, mas atinja igualmente os lugares vazios, como se referiu. Pessoas

residentes em bairros pobres e isolados são estranhas e diferentes aos olhos de muitos, mas é

de liberdade e de possibilidades que Bauman excogita, de condições de participar de uma

sociedade condizente com a dignidade de todos.

Anthony Giddens enfatiza a natureza da política-vida como um certo nível de

emancipação. Não salienta que esta emancipação seria uma autonomia completa de vida, pois

vários fatores estão envolvidos, mas que possibilita ver o poder como gerador de

oportunidades e não hierárquico.371

370 BAUMAN, 2001b, p. 122. 371 GIDDENS, 2002, p. 197.

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Na reflexão de Roberto Esposito, a vida política possui um sentido biopolítico que

parte da conservação da vida através da imunização, que é o sentido biopolítico da estrutura

do poder soberano na modernidade, e ao mesmo tempo uma negação existente dentro da

mesma comunidade social. Por esse raciocínio, Esposito parte de uma abordagem de modelo

de conservação da vida, através do processo de imunização, a um processo que nos levaria a

outro processo que não deixa de ameaçar a própria vida.

A partir de todo o exposto, buscamos percorrer a vida social concebida por Platão e as

instruções de Aristóteles sobre a política. A ideia foi buscar um reconhecimento da

importância do biopoder e da biopolítica no campo social. Desde a importância da liberdade à

importância de reconhecermos a existência dos efeitos do poder, nas esferas humanas. Dentro

desta reflexão, a obra de Theodor Adorno, Palavras e Sinais, mostra um caminho precioso de

oportunidades. E é justamente em Adorno que podemos ter a viabilidade de encontrar na

educação a maneira de impedir avanços e repetição de Auschwitz, ou zonas de exceção

estabelecidas em locais sociais. Há uma proposta de estudo e ação, que sugere ao homem uma

nova maneira de conduzir um possível mal-estar existente na sociedade.

No caso de Auschwitz, pessoas bem-intencionadas que não desejam que tudo aquilo

volte a acontecer citam com frequência o conceito de vínculo. A condição de as pessoas não

terem vínculos com outras poderia sugerir que ninguém foi responsável por aquilo. Nutrir

uma mentalidade saudável contribuiria para reconhecer os vínculos que temos com o mundo.

Theodor Adorno, em seu texto considera ilusório acreditar ou esperar que o apelo a vínculos

ou a exigência para que se tenha reconhecimento a certas situações aconteça sem um trabalho

maior de conscientização.372

Os chamados vínculos, tratados em Adorno, são um alerta que nos chama para a

solidariedade humana. Os chamados vínculos facilmente convertem-se em passaportes sociais

aceitos por uma pessoa com o fim de legitimar-se como honrado cidadão. São vínculos

descompromissados, permutáveis. Por isso, a recomendação do vínculo é importante e até

fatal. A única força verdadeira contra o princípio de Auschwitz estaria ligada à autonomia

interna, para o não deixar-se levar,373 quando Adorno nos esclarece sobre as questões de

nossas escolhas diante dos fatos da vida, e, portanto, do poder de escolha de cada indivíduo

frente aos acontecimentos de Auschwitz. Havia realmente interesses políticos e pretensões

audaciosas que burlaram a humanidade e violentaram qualquer tarefa em favor da biopolítica.

372 ADORNO, 1995, p. 108. 373 Ibid., p. 110.

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E a escolha não é certamente uma vontade, embora pareçam intimamente

aparentadas. A escolha não pode ter por objeto impossibilidades: se um homem

dissesse que escolheu algo impossível, seria dado como um insano, mas é possível

que aspiremos (tenhamos vontade de) a coisas impossíveis, por exemplo, à

imortalidade. Também podemos aspirar àquilo que não pode ser assegurado graças à

nossa própria ação, por exemplo, que um ator ou um atleta em particular vença (uma

competição). Entretanto, ninguém escolhe o que não depende de si, mas somente o

que pensa poder ser atingido por suas próprias ações. Acrescente-se que a vontade

(aspiração) visa a fins de preferência a meios, ao passo que a escolha visa ao que

contribui para a consecução do fim; por exemplo, aspiramos a ter saúde, mas

escolhemos coisas que nos tornem saudáveis, aspiramos a ser felizes e esta é a

expressão que empregamos nesse sentido, mas não seria apropriado dizer que

escolhemos ser felizes visto que, genericamente falando, a escolha parece dizer

respeito às coisas que se acham dentro de nosso próprio controle.374

Para acompanharmos a proposta de educação de Theodor Adorno, que menciona o

processo educacional e processo de informação conscientizadora como forma de prevenir

atitudes mal-intencionadas e divulgar a importância dos fatos que vivemos, resgatei em Platão

o texto sobre a educação e o tempo de amadurecimento deste processo.

Proporcionar aos adolescentes e às crianças uma educação e uma cultura adequadas

à sua juventude; cercar de todos os cuidados o seu corpo na época em que ele cresce

e se forma, a fim de prepará-lo para servir a filosofia; em seguida, quando chega a

idade em que a alma entra na maturidade, reforçar os exercícios que lhe são

próprios; e, quando as forças declinarem e passou o tempo das atribuições políticas e

militares, dar baixa no acampamento sagrado, isentos de toda e qualquer ocupação

importante, àqueles que pretendem levar neste mundo a vida que tiveram vivido

com um destino digno dela.374

Há uma preocupação em A República em relação à educação da criança e do

adolescente, assim igualmente em A Política, de Aristóteles, demonstrando a importância

desses cuidados para que na maturidade os jovens possam saber estabelecer critérios dignos

no mundo.

O que muitas vezes impera são os mecanismos subjetivos que atuam nas relações.

Conhecer tais mecanismos pode tornar-se complexo, mas a conscientização poderá chegar

pelas mãos da educação, de diálogos, encontros, ações comunicativas, com o intuito de expor

a dimensão política de cada um.

Nas considerações de Jacques Derrida e Walter Benjamin, parece-me que a conjunção

entre o direito, violência e política estão operando dentro de uma sintonia negativa,

inviabilizando muitas vezes o combate à banalização do mal, ou do biopoder negativo.

Revisitar a forma de atuação desse processo é tarefa que nos cabe na condição de levar ao

374 ARISTÓTELES, 2013, p. 93. 374 PLATÃO, 2005, p. 239.

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diálogo e à consciência. É no processo democrático que podemos colaborar com políticas

públicas satisfatórias e efetivas em favor da vida, pois o humanismo presente nas condições

humanas da vida é ponto essencial na modernidade, com tantos recursos disponíveis para

cumprir a tarefa da biopolítica e do biopoder nas esferas a que pertencemos.

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