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13 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP Paulo Fernando Souto Maior Borges Sobre o princípio democrático na fundamentação da atividade tributária Uma proposta hermenêutica de utilização de seus desdobramentos no âmbito do direito tributário MESTRADO EM DIREITO DO ESTADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO – DIREITO TRIBUTÁRIO SÃO PAULO MARÇO DE 2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC - SP

Paulo Fernando Souto Maior Borges

Sobre o princípio democrático na fundamentação da atividade tributária

Uma proposta hermenêutica de utilização de seus desdobramentos no âmbito do

direito tributário

MESTRADO EM DIREITO DO ESTADO

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO – DIREITO TRIBUTÁRIO

SÃO PAULO

MARÇO DE 2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC - SP

Paulo Fernando Souto Maior Borges

Sobre o princípio democrático na fundamentação da atividade tributária

Uma proposta hermenêutica de utilização de seus desdobramentos

no âmbito do direito tributário

Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Direito do Estado – Área de Concentração – Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do Prof. Doutor Paulo de Barros Carvalho

MESTRADO EM DIREITO DO ESTADO

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO – DIREITO TRIBUTÁRIO

SÃO PAULO

MARÇO DE 2008

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BANCA EXAMINADORA:

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À Escola de Direito Público da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, que, pelas lições de seus ilustres Professores, promove reflexão aprofundada sobre os valores fundamentais à manutenção e aprimoramento do Regime Democrático – viga mestra do Estado de Direito.

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Não poderia deixar de manifestar os meus sinceros agradecimentos àqueles que me apoiaram ao longo do curso. A despeito de usualmente feitos por um dever de gratidão, são imprescindíveis e faço-os de coração: Primeiramente, Àquele que tudo criou e que, por todas as razões metafísicas, deve ser sempre glorificado. À minha família, especialmente, aos meus pais, que sempre estiveram presentes nas diversas etapas de minha vida pessoal e acadêmica, apoiando e incentivando de forma constante o meu desenvolvimento espiritual e profissional. À Márcia Maria, a quem devo a lição de amor, carinho,.serenidade.e.delicadeza.incondicionais Aos meus ilustres Mestres, que nunca faltaram na orientação de minha atividade intelectual, na pessoa do Prof. Paulo de Barros de Carvalho, que sempre me atendeu com pronta gentileza e conselhos de absoluta propriedade. Aos meus verdadeiros amigos - aqueles com quem sempre pude compartilhar minhas dúvidas e incertezas. Aos colegas do Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados, Leonardo da Matta, Diego Calandrelli, Diana Lobo, Adriano Gonzales, e Ricardo Fernandes; aos sócios: Marcelo Fortes, pela orientação e apoio constantes; Daniella Zagari, Ivandro Sanchez e Celso Costa, pela compreensão; e, por fim, à Dra. Raquel Novais, que me proporcionou a aplicação da teoria ministrada no curso, além de distinguir-se como profissional que tenho como modelo na advocacia, por executar com altivez e seriedade diárias o seu ofício, seja perante os clientes, seja perante os órgãos judicantes.

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“Yo soy yo y mi circunstancia” (José Ortega y Gasset)

“E se não ousarmos atacar problemas tão complexos que o erro da solução seja quase inevitável, radicalmente, não haverá progresso do conhecimento científico” (José Souto Maior Borges, Ciência Feliz) “Eu vim com a Nação Zumbi Ao seu ouvido falar: Quero ver a poeira subir E muita fumaça no ar Cheguei com meu universo E aterriso no seu pensamento Trago as luzes dos postes nos olhos Rios e pontes no coração Pernambuco embaixo dos pés E minha mente na imensidão” (“Mateus Enter” - Chico Science) Open mind for a different view and nothing else matters…” (“Nothing else matters” - James Hetfield e Lars Ulrich)

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RESUMO

CONSTITUCIONAL - TRIBUTÁRIO – PRINCÍPIO – DEMOCRÁTICO – NORMA

JURÍDICA - HERMENÊUTICA

O trabalho tem como objetivo precípuo a demonstração do Princípio Democrático

como norma jurídica fundante da atividade tributária estatal, por se tratar de norma de

habilitação ao exercício dos demais poderes constitucionalmente instituídos. Além disso, o

trabalho objetiva a possibilidade de adoção de um método hermenêutico de aplicação de

seus desdobramentos no âmbito do Direito Tributário.

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ABSTRACT

CONSTITUCIONAL – TAX – PRINCIPLE – DEMOCRATIC – JURIDICAL – NORM -

HERMENEUTIC

The work has the main objective of demonstrate the democratic principle as the

fundamental juridical norm in the state tax activity, as a rule of competence to the exercise

of state power, and also to present an alternative of juridical interpretation and application

considering its developments in the brazilian constitutional text, based on its supremacy.

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SUMÁRIO

RESUMO..............................................................................................................................7

ABSTRACT..........................................................................................................................8

PARTE I - NOÇÕES INTRODUTÓRIAS E PREMISSAS METODOLÓGICAS AO

DESENVOLVIMENTO DO RACIOCINIO...................................................................13

1. Intróito e apresentação – As marcas da enunciação.................................................13

2. Prólogo - Thomas Kuhn – a estrutura das revoluções científicas: a ciência em

prol da sociedade......................................................................................................22

3. Para além do apenas dogmático...............................................................................24

4. Apologia à Dogmática Jurídica (na sua acepção lata) e crítica à aplicação

equivocada da Dogmática Jurídica (na sua acepção estrita): os valores

juridicamente positivados.........................................................................................26

5. Sistema da Ciência do Direito e Sistema de Direito Positivo...................................30

6. Da metodologia científica utilizada na presente dissertação: do sistema jurídico à

norma jurídica...........................................................................................................31

7. Do contrato social.....................................................................................................32

8. A norma geral e abstrata como norma jurídica de previsão da conduta

convencionalmente prescrita e eventual sanção aplicável na hipótese do seu

não-cumprimento......................................................................................................35

9. A norma individual e concreta como norma jurídica específica de imposição

da conduta convencionalmente prescrita e imputação da sanção, na hipótese

do não-cumprimento da norma geral e abstrata.......................................................39

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PARTE II - UMA BREVE TEORIA DOS PRINCÍPIOS..............................................42

10. A contraposição: “normas-princípio” versus “normas-regra”.................................42

11. Da hierarquia entre “normas-princípio” e “normas-regra”......................................44

12. Da suposta existência de uma hierarquia entre os princípios constitucionais

no ordenamento brasileiro........................................................................................45

13. Da ponderação de princípios....................................................................................47

14. Da norma hipotética fundamental de Kelsen – análise de suas implicações no

ordenamento jurídico positivo..................................................................................54

15. Do "Princípio do Consentimento à Tributação".......................................................56

PARTE III - DO PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO COMO NORMA JURÍDICA

FUNDANTE NO ORDENAMENTO JURÍDICO E DO SISTEMA TRIBUTÁRIO

NACIONAL........................................................................................................................59

16. Do Princípio Democrático como norma jurídica fundante de toda a atividade

jurídica "estatal" (norma jurídica de habilitação ao exercício do poder

estatal)......................................................................................................................59

16.a.) Análise no nível semântico do ordenamento................................................59

16.a.1.) Análise do vocábulo “Princípio”..................................................................60

16.a.2.) Análise do vocábulo “Democrático”............................................................63

16.b.) Análise no nível sintático do ordenamento..................................................65

16.b.1.) Evolução do tratamento normativo-constitucional do Princípio

Democrático.................................................................................................66

16.b.1.1.) Constituição Política do Império do Brazil (1824)..........................67

16.b.1.2.) Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1891)....69

16.b.1.3.) Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1934)....72

16.b.1.4.) Constituição dos Estados Unidos do Brasil (1937)..........................76

16.b.1.5.) Constituição dos Estados Unidos do Brasil (1946)..........................83

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16.b.1.6.) Os Atos Institucionais do Regime Militar e a Constituição da

República Federativa do Brasil (1967).............................................88

16.b.1.7.) Emenda Constitucional n.º 1 (1969).................................................95

16.b.1.8.) Constituição da República Federativa do Brasil (1988).................100

16.c.) Análise no nível pragmático do ordenamento............................................107

17. Do Princípio Democrático como norma jurídica fundante da atividade tributária

estatal (norma jurídica de habilitação ao poder de tributar)...............................................114

17.a.) O Princípio Democrático e suas implicações com o Princípio da

Legalidade Geral........................................................................................115

17.b.) O Princípio da Legalidade Tributária e a competência tributária do ente de

direito público interno................................................................................117

PARTE IV - PROPOSTA DE INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DOS

DESDOBRAMENTOS DO PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO NO ÂMBITO DO

DIREITO TRIBUTÁRIO................................................................................................126

18. Contraposição conceitual entre “mens legis” e “mens legislatoris” e da

colocação do problema hermenêutico....................................................................126

19. Retomada do prestígio da “mens legislatoris”.......................................................130

19.a.) A “mens legislatoris” como resultado da atividade congressual e da

eficácia do Princípio Democrático.............................................................130

19.b.) Necessidade de motivação dos atos emanados pelo Estado.......................132

19.c.) Necessidade de motivação dos atos emanados pelo Poder Legislativo -

A “mens legislatoris” como requisito constitucional de validade do ato

legislativo objetivado – Os atos de enunciação como requisitos de

motivação do ato legislativo........................................................................................141

20. Nova proposta hermenêutico-aplicativa.................................................................146

20.a.) Da hermenêutica histórica agregada à análise dos atos de enunciação

legislativa....................................................................................................147

20.b.) Da Dogmática Jurídica em sentido amplo..................................................157

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20.b.1.) Necessário inter-relacionamento do Direito Tributário com os demais

ramos do Direito.........................................................................................158

20.b.2.) Exemplo de “abertura” do sistema tributário ao valores que, de início,

seriam extradogmáticos: do art. 110 do CTN............................................164

21. Exemplos pragmáticos de utilização da teoria proposta........................................165

21.a.) Das normas relativas à não-cumulatividade do Pis e da Cofins.................165

21.b.) Do drawback para fornecimento no mercado interno................................172

21.c.) Da declaração de inaptidão cadastral da pessoa jurídica............................174

PARTE V - DAS CONCLUSÕES...................................................................................176

22. Conclusões..............................................................................................................176

BIBLIOGRAFIA..............................................................................................................184

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PARTE I

NOÇÕES INTRODUTÓRIAS E PREMISSAS METODOLÓGICAS AO

DESENVOLVIMENTO DO RACIOCÍNIO

1. Intróito e apresentação – As marcas da enunciação1.

“Contar com a ajuda do desfavorável”2. Esse tem sido o paradoxo que tem

norteado os rumos da minha vida pessoal, e particularmente, da minha vida acadêmica nos

últimos tempos (conforme formação que me foi destinada), conduzindo-me, inclusive, ao

desafio de encarar um curso de Mestrado numa das mais conceituadas Universidades do

país, na área de Direito Tributário.

O brilhantismo e o alcance do pensamento jurídico da Escola Paulista de

Direito Tributário, pela inegável excelência doutrinária, têm ofuscado a produção

intelectual por parte das demais Escolas, que se intimidaram com o desenvolvimento

atribuído à Ciência do Direito Tributário, pela utilização da filosofia da linguagem.

Contudo, alguns novos estudiosos ditos lingüísticos - mais exagerados que

os grandes Mestres da Escola Analítica -, resolveram tomar parte neste processo de

desenvolvimento da Ciência Jurídica, com tal exacerbação, que lograram como resultado

uma mitigação do inter-relacionamento do Direito Tributário com os demais ramos

dogmáticos (Direito Constitucional, Direito Financeiro, Direito Administrativo, etc.). Tudo

sob o pretexto de uma insustentável concepção de rigor científico, que impediria a

realização de um corte mais amplo no objeto. A suposta maior profundidade pelo corte

mais estreito implica menor abrangência do objeto empírico (que é uno), e, portanto, a

desconsideração de partes importantes do mesmo.

1 Descrição do percurso de formação de sentido utilizado na presente dissertação (processo de enunciação), conforme obra de Fiorin, José Luís. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, 2001. 2 Guitton, Jean. Le travail intellectuel. Aubier. Paris:1951. pp. 44 e seguintes.

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Dessa circunstância, surge a necessidade de fomentar a atividade jurídica da

Escola dita “tradicional” (a doutrina publicista, constitucionalista), acomodada que estava

com o advento do novo método analítico, de modo a incitar o retorno ao pensar

cientificamente, e como de costume, sem quaisquer restrições quanto ao inter-

relacionamento do Direito Tributário com o demais ramos jurídico-dogmáticos; e até

mesmo num maior inter-relacionamento do próprio Direito3 com as demais ciências

extrajurídicas (para aqueles que se aventuram por vôos mais ousados, como por exemplo,

os estudiosos do chamado law and economics, tão disseminado nos países de primeiro

mundo).

Muito embora, o retorno ao pensar o óbvio, dessa feita, será intentado com a

utilização do valioso instrumental disponibilizado pela filosofia da linguagem, bem como,

pela adoção de uma nova proposta hermenêutica, que envolve o inevitável

interdisciplinamento do Direito Tributário com os demais ramos do Jurídico e a

necessidade de apreciação da motivação de todos os atos estatais, inclusive os legislativos.

Tudo isso, pretende-se, sem abdicar do rigor científico, do necessário fechamento operativo

(Luhmann), e como contrapartida, sem a incursão em maiores exageros doutrinários.

A idéia é simples, e já utilizada por alguns: analisar o objeto empírico

(Princípio Democrático como norma jurídica fundante da atividade tributária estatal e a

utilização de uma nova proposta de interpretação e aplicação, no âmbito do Direito

Tributário, dos seus desdobramentos) nos seus três níveis de linguagem (sintático,

semântico e pragmático), desbravando, assim, esta disciplina tão complexa e já tão

estudada, que é o Direito Tributário, embora, como dito, agregando um toque de

interdisciplinamento com as demais áreas do conhecimento jurídico, a saber, a Teoria Geral

do Direito, a Filosofia do Direito, o Direito Constitucional, o Direito Administrativo, o

Direito Financeiro, etc., e a adoção de novo critério de interpretação/aplicação do Direito,

3 Vide art. 110, do Código Tributário Nacional: “Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.”

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que leve necessariamente em conta a motivação do ato estatal. Saber quais o limites da

Dogmática Jurídica é condição per quam e sine qua non para o estudo interdisciplinar do

tributo.

Poderíamos ter optado por dissertar sobre um tema menos “constitucional” e

nitidamente mais “tributário”, ou ainda, por um tema econômica e profissionalmente mais

vantajoso, do ponto de vista advocatício (ex.: a incidência de determinado tributo sobre

específico setor da atividade econômica dos contribuintes), esclarecendo, porém, que não

condenamos aqueles que o fazem.

Contudo, por tratar-se de um curso de Mestrado, que, além de específico na

área de Direito Tributário, é antes disso, um Mestrado em Direito do Estado – afora o fato

de ser ministrado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, que tem em vários de

seus Professores verdadeiros bastiões das liberdades individuais (ex.: Geraldo Ataliba, no

Direito Constitucional; Celso Antônio Bandeira de Mello, no Direito Administrativo; Paulo

de Barros Carvalho, Roque Carrazza, dentre outros, no Direito Tributário) -, decidimos

abordar um tema que nos parece mais relevante, no sentido de ser dotado de uma maior

abrangência normativa, e que, por isso, fosse ainda mais merecedor de uma nova análise.

A escolha decorreu, também, da adoção de um tema, digamos, “de maior

relevância”, como orientação pelo Prof. Paulo de Barros Carvalho, que, por sua vez, a

recebeu do ilustre Prof. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello. Este sempre orientava os seus

alunos pela opção por temas mais abrangentes.

Ademais, a idéia de abordar o Princípio Democrático começou a se delinear

com a intrigante lição dos Professores das disciplinas de Direito Tributário II e Direito

Constitucional Tributário a respeito do chamado “Princípio do Consentimento à

Tributação” (essa menção era comumente efetuada pelos Professores Roque Antonio

Carraza, José Artur de Lima Gonçalves, além de Estevão Horvath). Admirava-nos o fato de

defender-se com tanta veemência algo que nos parecia, ao menos no primeiro contato,

metajurídico.

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Contudo, posteriormente pudemos perceber que o chamado “Princípio do

Consentimento à Tributação” poderia ser visto como uma variante de expressão do

Princípio Democrático, o qual, concluímos a posteriori, nos termos do art. 1º, parágrafo

único da Constituição Federal, dentre outros dispositivos, consistiria no fundamento para

todas as demais normas do ordenamento jurídico positivo.

De início, havíamos determinado o tema da dissertação como sendo “O

conceito constitucional de tributo”. Contudo, após perceber que quaisquer normas do

sistema de direito positivo advinham do exercício do poder estatal instituído pelo Princípio

Democrático, e que este possuía direta correlação com a atividade jurídica (e,

principalmente, tributária) do Estado, decidimos incluir uma parte introdutória no trabalho,

em que seria abordado o referido princípio. Essa introdução foi tomando corpo, ao ponto de

se tornar uma primeira parte de equivalente proporção à segunda no trabalho.

Contudo, diante da importância desta primeira parte, decidimos abordar,

nesse primeiro momento, apenas o Princípio Democrático, como fundamento de toda a

atividade tributária estatal, bem como, as implicações de alguns de seus desdobramentos no

âmbito do Direito Tributário.

Na segunda parte do trabalho, como conseqüência de conclusões originárias

da primeira, proporemos uma alternativa de interpretação/aplicação do Direito Tributário

que leve em consideração algunos quais, nada mais são que desdobramentos do próprio

Princípio Democrático.

Assim sendo, como forma de otimizar o pouco tempo de estudo de que

dispomos, e conforme ensinado pelo Professor João Maurício Adeodato nas aulas de

Metodologia da Pesquisa em Direito da Pós-graduação da Universidade Federal de

Pernambuco, aproveitamos algumas premissas anteriormente publicadas, para dissertar

sobre uma nova proposta de aplicação de algumas dentre as manifestações do Princípio

Democrático no âmbito tributário, e quiçá, noutro momento, após a finalização do Curso,

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teremos chance de abordar as implicações do referido princípio na delimitação de um

conceito constitucional de tributo.

Com isso, “olhando o direito com os olhos de uma criança”, e contando com

a “ajuda do desfavorável” - a ausência de pré-conceitos (pré-concepções) na análise da

matéria (favorável), agregada à carência de um aprofundamento na análise da matéria

(desfavorável) -, chegamos ao produto final da nossa reflexão, manifestado pela presente

dissertação, que aborda o Princípio Democrático como norma jurídica fundante de toda a

atividade tributária estatal e a proposta de uma nova alternativa de interpretação/aplicação

dos seus desdobramentos no âmbito do Direito Tributário.

Essa nova abordagem, como dito, consiste também na realização de um

corte metodológico mais alargado, que resulte numa apreciação mais ampla: a abordagem

do Direito Tributário, como subsistema constitucional que é, como um capítulo do Direito

Financeiro e Administrativo, além da necessária consideração dos atos de enunciação

normativa como legitimadores do Princípio Democrático. Acreditamos ser essa não

somente uma alternativa a mais de análise, mas, sim, a alternativa de abordagem

constitucional mais adequada aos ditames democráticos, sem quaisquer concessões do

chamado "rigor científico"4.

Contudo, redirecionamos a atenção do leitor, primeiramente, para o quê de

mais importante no Sistema Tributário Nacional o Princípio Democrático tratou de

delimitar: a competência tributária dos entes de direito público interno e sua nítida

vinculação ao Princípio da Legalidade Tributária (art. 150, I CF).

A análise da competência tributária dos entes de direito público interno

(União, Estados, Distrito Federal e Municípios) - após assumida a premissa acima

estabelecida do Princípio Democrático como norma fundante do Sistema Tributário

4 O dito "rigor científico' consiste na adequação das conclusões obtidas como resultado da atividade científica, às premissas adotadas como ponto de partida do trabalho. Contudo, acreditamos existir sempre um determinado grau de indeterminação - p. ex. conceito de "verdade' o qual sempre será de difícil caracterização, visto que, temos por esta, algo sempre transitório, e, portanto, em constante mutação;

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Nacional - não se circunscreve apenas ao exame das suas implicações com o Princípio da

Legalidade Tributária.

Muito mais que isso, o Princípio Democrático, agregado a outros princípios

de ordem igualmente fundamental, como o Princípio Republicano, o Princípio Federativo e

o Princípio do Estado de Direito (CF, art. 1º, caput), pela disseminação de seus efeitos ao

longo de todo o sistema, e até mesmo pelo regime de participação ou representatividade

diretas que o caracterizam, impõem tratamento hermenêutico diferenciado por parte do

intérprete/aplicador à norma jurídica. Em que consiste essa diferenciação hermenêutica?

Relembremos a lição de Cossio: ao aplicar-se determinada norma jurídica,

estar-se-á aplicando o ordenamento jurídico como um todo.

Assim da conjugação do Princípio Democrático, e suas características

peculiares de participação e representatividade diretas; suas implicações com as normas

relativas ao delineamento da competência tributária (v. normas do Sistema Tributário

Nacional, que estabelecem as conformações de cada exação tributária prevista no Texto

Constitucional, e particularmente as limitações constitucionais ao poder de tributar); com

os Princípios Republicano e Federativo (art. 1º, caput, CF); além da interpretação

sistemática com os Princípios da Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e

Eficiência, constantes do art. 37, da CF; dentre outros de inafastável aplicação (v. art. 5º,

LIV, LV, etc.), citados estes apenas a título exemplificativo, e teremos os fundamentos

constitucionais da nossa proposta: a utilização das exposições de motivos do ato legislativo,

ou seus “considerandos”, justificativas de proposições e até mesmo dos anais congressuais

(isto é, todos os atos de enunciação legislativa indicativos da mens legislatoris) como

subsídios válidos à interpretação e aplicação da norma jurídica tributária, e não como atos

sem qualquer valor para a exegese do normativo.

Assim, com a pré-fixação de algumas premissas pela recorrência de alguns

textos anteriores, produzidos durante o curso, e algumas idéias já expostas em artigos

científicos, tentaremos realizar uma análise do Princípio Democrático, bem como, propor

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uma nova alternativa de interpretação/aplicação, levando em conta, os seus desdobramentos

no âmbito do Direito Tributário positivo, como um capítulo que este é dos sobre-ramos do

Direito que lhe são mais próximos, dos quais é parte componente (Direito Constitucional,

Direito Administrativo e Direito Financeiro), para demonstrar que tal abordagem não

somente é possível, como também desejável5.

É legítimo optar pela "setorização" do conhecimento como uma necessidade

meramente didática e organizacional. A especialização, no plano da linguagem descritiva,

dá-se por uma necessidade de aprofundamento científico, como descrito acima, visto ser

mais factível saber-se mais sobre algo em específico, que saber algo sobre um número

maior de objetos. Já no plano da linguagem-objeto do direito positivo, a especialização

ocorre pelo intuito legislativo de regrar determinada matéria de forma isolada e

sistematizada, facilitando a comunicação com os legiferados (v. art. 7º, I, da Lei

Complementar n.º 956).

A subjetividade é uma característica inerente ao ser humano, e, portanto,

está presente em todos os campos do conhecimento. Por conseqüência, presente em toda

está em toda atividade científica. Esclarecemos, inicialmente, que entendemos por

subjetividade a capacidade de cada indivíduo chegar à conclusão não necessariamente igual

a que chegou outro, quando da análise de um mesmo suporte físico, ante a diversidade de

valores que informa a compleição cultural de cada um (inter-subjetividade).

Exemplificativamente, na medicina, em sua subdivisão da medicina

nutricional, temos discussões a respeito das mais variadas espécies ou gêneros alimentícios:

em sua maioria, ora são consideradas como benéficas, por colaborarem com o bom

funcionamento de um determinado órgão ou sistema; outrora são tomadas por maléficas,

5 Trabalhamos com uma teoria própria do direito que, ao reconhecer a impossibilidade de afastamento do aspecto subjetivo, primamos sempre pela "melhor aplicação", em termos de Política Jurídica (In casu, Política Fiscal), e que leve em conta os valores positivados - imanentes ao ordenamento -, que são mais relevantes à sociedade no nosso espaço-tempo (ex.: isonomia, legalidade, redução das desigualdades sociais e regionais, livre iniciativa, etc.). 6 “Art. 7o O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios: I - excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto; (…)”

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tendo em vista os "avanços" na pesquisa médica, que permitem identificar um desequilíbrio

quando do uso (desregrado ou não) dessa mesma espécie ou gênero alimentícios.

Assim também o é no Direito. Temos a prevalência da subjetividade no

objeto de estudo (o ordenamento jurídico), pois nem sempre é possível alcançar a

amplitude valorativa desejada pelo legislador - seja este o das normas gerais e abstratas,

seja o aplicador das normas individuais e concretas. Temos, ainda, o influxo da

subjetividade também no observador, visto que se torna difícil atribuir ao cientista uma

posição de absoluta imparcialidade na visualização do sistema jurídico, salientando-se que

a própria e suposta ausência de posição valorativa já se constitui numa posição valorativa

negativa e, portanto, parcial; e temos, por fim, influência da subjetividade na ciência do

direito, como produto da atividade do jurista, tão sujeito à parcialidade - esta última nada

mais é do que a subjetividade do sujeito do conhecimento formalizada através do produto

da sua atividade científica: livros, artigos, monografias, etc..

Assim, a metodologia científica assumida por determinado paradigma

teórico7 trabalha no sentido convencional de um conjunto de premissas e métodos de

abordagem para os adeptos daquela corrente científica subjetivamente convencionada,

demarcando assim o que pode ou não ser considerado como atividade científica “válida”

dentro daquele determinado “modelo” de conhecimento, e no que consistem os “avanços

científicos”, de acordo com aquele paradigma teórico.

Vejamos o exemplo de dois dos maiores juristas dos últimos tempos, e que

muito influenciaram a presente dissertação, pela assimilação das lições do Prof. Celso

Fernandes Campilongo, na disciplina de Teoria Geral do Direito: Hans Kelsen e Niklas

Luhmann. Apesar de se dedicarem ao estudo do mesmo objeto (ordenamento jurídico), o

fizeram de forma completamente distinta, a começar pelo método de aproximação, pois

Kelsen promoveu a análise do sistema a partir da sua partícula mínima, qual seja, a norma

jurídica, para daí, então rumar à descrição do sistema; enquanto Luhmann preferiu estudar

7 Sobre os paradigmas teóricos, v. Kühn, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. Ed. Perspectiva. São Paulo:2001.

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o Direito pelo caminho inverso: partindo dos variados sistemas, no caso, do sistema

juridico à norma jurídica, o seu “código redutor de complexidades”. Tudo é caminho, como

ensinava Heidegger (Alles ist Weg).

Tomando o direito como um bem cultural8, obra humana que é9, este

necessariamente há de servir de instrumento, de ter uma função de modificação na vida dos

seus destinatários. Desse modo, assumimos como premissa essencial a ser desempenhada

para validade da atividade científica, por qualquer um, em qualquer campo do

conhecimento, a necessária atribuição de um fim valorativo a toda a sua empresa; ou,

colocando em melhores termos: é inafastável a consideração da existência de um fim

imanente a toda e qualquer atividade científica, e não menos no nosso campo específico de

investigação, qual seja, a análise do ordenamento jurídico.

Atente-se, ainda, que a teleologia não se apresenta apenas no âmbito da

linguagem descritiva da Ciência do Direito, mas, decorre da própria linguagem objeto do

direito positivo (art. 3º, CF), o que remata qualquer discussão em torno do tema. A doutrina

de Alfredo Augusto Becker é ainda mais clara quanto à sua existência, ínsita ao próprio

conceito de Estado:

“O Estado (Ser Social) é uma realidade, porém não é qualquer realidade exterior ao homem e à sua atividade o Estado existe nos atos e pelos atos dos indivíduos humanos que são seus criadores; e é nesta atividade contínua e relacionada ao Bem comum que consiste a realidade do Estado10. (...) E esta atividade contínua e relacionada ao Bem Comum, que se sustenta e se alimenta da inteligência e vontade dos homens, é uma relação: a relação constitucional do Estado (Ser Social)11.”

8 Sobre a classificação dos objetos v. Husserl, Edmund, apud, Apostila do grupo de estudos do Prof. Paulo de Barros Carvalho. 9 Carvalho, Paulo de Barros. Sobre os princípios constitucionais tributários, in Revista de Direito Tributário, n.º 55, p. 144. 10 J. Dabin, L’Etat ou le Politique, Paris, 1957, n. 30 e J. Haesaert, Théorie Générale du Droit, Bruxelles, 1948, pp. 149-150 apud Becker, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3ª ed., p. 163, Lejus, São Paulo: 2002.

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Numa tentativa de refutar os ditos dogmáticos kelsenianos (aqueles

emocionalmente mais envolvidos, como se a ausência de análise valorativa por estes

pretendida não implicasse, consoante dito, numa análise valorativa em si!), como forma de

prestigiar o Princípio Democrático, e sua vontade popular representativa do Bem Comum,

tentaremos ao final propor a alternativa de interpretação e aplicação do Jurídico acima

aventada, baseada na importância do referido princípio e seus desdobramentos no

ordenamento jurídico.

Esperamos, todavia, contribuições críticas, pois só mediante testes cruciais

de refutação poder-se-á avaliar a idoneidade teórica da hipótese aventada. Se ela resistir a

esses testes, será uma boa hipótese, e poderá ser adotada até a sua substituição por outra de

maior abrangência no âmbito de explicação do fenômeno descrito: o Princípio Democrático

como norma de habilitação ao exercício dos demais poderes constitucionais (inclusive do

poder de tributar) e a adoção de uma nova alternativa de abordagem dos seus

desdobramentos no âmbito do Direito Tributário positivo, com base nessa premissa.

2. Prólogo - Thomas Kuhn – a estrutura das revoluções científicas: a ciência em

prol da sociedade

Como afirmado em escritos anteriores12, um dos momentos de maior

efervescência na história da atividade científica, indubitavelmente foi o Círculo de Viena.

Filósofos e pensadores se encontravam, periodicamente, em torno de uma “stammtisch”

(mesa de debates em bares e cafés, muito comum nos países germânicos) para refletir sobre

as bases em que ocorre (ou deveria ocorrer, de acordo com o neopositivismo lógico) o

desenvolvimento da atividade científica, e para traçar os rumos daquilo que consideravam o

melhor método de pensar cientificamente.

11 Becker, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3ª ed., p. 163, Lejus, São Paulo: 2002. 12 Borges, Paulo Fernando Souto Maior. O caráter patrimonial das obrigações tributárias acessórias, in Teoria geral da obrigação tributária – Estudos em homenagem ao Prof. José Souto Maior Borges. Malheiros. São Paulo: 2005, p. 311.

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O Círculo de Viena, como antecedente longínquo, informa boa parte da

doutrina nacional em Direito Tributário, que pela sua formação lógico-filosófica, tem no

pensamento de seus representantes (Gottlob Frege, Moritz Schlick, Ludwig Wittgenstein –

este último, apesar de não ter dele participado, exerceu grande influência sobre o Círculo -,

e até mesmo o próprio Kelsen teria participado de alguns debates) o principal fundamento

doutrinário para a atual Escola Paulista de Direito Tributário.

Esse movimento, tido como informador da atual doutrina da Escola Paulista

de Direito Tributário, teve o seu ápice na edição do manifesto “O ponto de vista científico

do Círculo de Viena”, publicado em Congresso na cidade de Praga, onde restou afirmada

como premissa maior que todas as demais a colocação da ciência em prol da humanidade13.

Como criticar uma doutrina que se encastela sob o manto de tão digna pretensão para com a

sociedade? Situação difícil essa, e de outro modo não poderia ser, advindo de tão

competentes pensadores.

Ocorre que, do originariamente pensado e desejado pelos principais

membros do Círculo de Viena, ao efetivamente praticado por uma parte mais fervorosa de

seus inúmeros discípulos, muitas vezes ocorrem distorções, desvirtuações da “essência” do

seu pensamento. A esse tipo de equívoco qualquer um de nós está sujeito quando da

reprodução do pensamento alheio. Essa vicissitude é mais sensível nas traduções de obras

alheias: “tradutor, traidor” – denuncia a velha parêmia.

Thomas Kuhn14 também desencadeou pela publicação do seu “A estrutura

das revoluções científicas” uma nova reflexão por parte dos filósofos sobre as bases em que

ocorre o desenvolvimento da atividade científica. Pregava Kuhn uma dinâmica diversa para

a evolução da atividade científica: o conhecimento se desenvolvia quando um paradigma

(modelo teórico) fosse acometido por anomalias (vícios resultantes da aplicação do

paradigma), ao ponto de resultar numa ou em várias crises (momentos de reflexão do

13 Carvalho, Paulo de Barros. O neopositivismo lógico e o círculo de Viena, in Apostila de Lógica da disciplina de Filosofia do Direito – Lógica Jurídica, ministrada no curso de Mestrado em Direito Tributário da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 14 Kuhn, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. Ed. Perspectiva. São Paulo:2001.

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paradigma), que normalmente desembocariam no surgimento de um novo paradigma,

através de uma ruptura para com o modelo anterior (a revolução científica propriamente

dita).

O presente trabalho resulta da aplicação crítica da teoria de Thomas Kuhn à

Ciência Jurídica praticada por alguns adeptos mais fervorosos da chamada Dogmática

Jurídica em sentido estrito, que somente contribui para uma estagnação do Direito

Tributário em limites cientificamente pouco ambiciosos15.

3. Para além do apenas dogmático.

Como dito, o raciocínio desenvolvido por Thomas Kuhn se aplica à atual

situação da doutrina elaborada por alguns estudiosos dogmáticos kelsenianos, que somente

incorrem em equívoco quando da interpretação da obra daquele jurista.

A posição desta doutrina equivoca-se quando se esquiva de enfrentar vários

problemas científicos por uma questão de exclusivo “corte epistemológico”. Ressalte-se

que tal anomalia somente ocorre por uma desvirtuação da Dogmática Jurídica do seu

sentido mais apropriado (que será abordado no próximo item).

Temos plena consciência da necessidade de a ciência desenvolver-se em

bases sólidas e com absoluta coerência entre suas premissas e conclusões (conforme

salientado pelo Círculo de Viena em seu manifesto), com os seus limites demarcados com

todo o rigor científico possível, sob pena de ingressarmos no labirinto do caos de sensações

kantiano16.

Contudo, a opção pelo rigor científico na análise da fenomenologia tributária

efetuada pelos ditos dogmáticos (aqueles que trabalham com uma acepção mais estrita) não 15 Em matéria de ciência, a ousadia é um método, já dizia, com suporte em Bachelard, José Souto Maior Borges “A ciência não tem por meta qualquer verdade proposicional trivial e simplória, mas ambiciona, isso sim, verdades relevantes”, no seu Ciência Feliz, sobre o mundo jurídico e outros mundos, 3ª ed., Quartier Latin, São Paulo: 2007, p. 25.

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pode descartar o imprescindível inter-relacionamento do Direito Tributário com os outros

ramos do Direito dos quais é parte indissociável, p. ex.: o Direito Constitucional, o Direito

Administrativo e o Direito Financeiro, inclusive, nesta ordem.

Como ressaltado no nosso trabalho sobre o caráter patrimonial das

obrigações tributárias acessórias, necessário direcionar a ciência para a sua melhor

utilização pragmática, dimensão da linguagem em que ela se torna mais rente à realidade

social, no dizer de Pontes de Miranda.

A filosofia da linguagem aplicada ao direito nos ensina que três são os níveis

de linguagem a serem utilizados para uma correta abordagem científica: o sintático (o inter-

relacionamento normativo), o semântico (o significado lingüístico do texto legislativo), e o

pragmático (em que termos ocorre, ou não, a observância dos preceitos pelos destinatários

normativos). Esses são, portanto, os níveis a serem considerados para efeitos de qualquer

estudo jurídico-filosófico, centrado na filosofia da linguagem, e que ora serão utilizados

para a análise do Princípio Democrático como norma jurídica fundante da atividade

tributária estatal, para, a posteriori, apresentarmos a proposta de uma alternativa para o

Direito Tributário estruturada sobre seus desdobramentos.

Reconhecemos a existência de um valor ínsito a qualquer atividade

científica em qualquer contexto espaço-temporal: o benefício da humanidade, conforme

consta do manifesto publicado pelos membros do Círculo de Viena, sendo este entendido

como a melhoria da condição de vida do ser humano. O “Bem Comum” ou “Bem Social”

de Becker, Dabin, e del Vecchio.

A esse respeito, vale salientar que a busca pelo bem-estar social, ou

benefício da humanidade, não consiste mera impressão de valor subjetivo, próprio do autor

do presente trabalho, mas, no caso do nosso sistema jurídico, de objetivo fundamental da

República Federativa do Brasil, nos termos do art. 3º, da CF:

16 Kant, Emmanuel. Crítica da Razão Pura. eBookLibris. Acrópolis. São Paulo: Junho, 2001.

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“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

Do mesmo modo, entendemos que não há como alcançar qualquer benefício

sem a análise da pragmática (a regulação da conduta de acordo com os valores introduzidos

por intermédio das normas jurídicas como fim maior do direito), como ressaltado17.

O grande desafio consiste na seguinte questão: como exercer uma ciência

considerando toda à sua permeabilidade aos valores, sem com isso, afastar o rigor científico

e suas necessárias limitações epistemológicas e metodológicas? Um doutrinador conhecido

costuma dizer: o fato de um problema ser difícil só constitui mais um motivo para que seja

de imediato enfrentado (José Souto Maior Borges).

4. Apologia da Dogmática Jurídica (na sua acepção lata) e crítica à aplicação

equivocada da Dogmática Jurídica (na sua acepção estrita): os valores juridicamente

positivados.

Kelsen foi um dos maiores juristas de todos os tempos. Na primeira metade

do século XX, Cossio denominou-o “o jurista de época contemporânea”. Sem a sua “Teoria

Pura do Direito” (Reine Rechtslehre) a ciência jurídica do último século estaria

descaracterizada.

Antes dele, o Direito não era reconhecido como uma ciência autônoma. Até

então a Ciência do Direito buscava, como visto, tentativas de explicação do seu objeto em

fundamentos exteriores ao Direito, extraídos de outras ciências, que não a Ciência Jurídica.

17 O direito como “ordem normativa da conduta humana” (ver Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. p. 5. Martins Fontes. São Paulo:2003. Para analisar a questão do direito como valor, não podemos deixar de indicar a obra de Reale, Miguel. Teoria tridimensional do direito, in Filosofia do direito. 9ª ed., Saraiva, São Paulo: 1992.

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O Direito chegou inclusive a ser visualizado como um capítulo da Sociologia, e até como

um mínimo ético (Jellinek), reduzido assim a um capítulo da moral.

A “pureza” da teoria kelseniana foi necessária à configuração do Direito

como ciência, e nesse aspecto, muito bem cumpriu o seu dever a Dogmática Jurídica

oriunda da sua obra (na sua acepção estrita), visto que nos dias de hoje, não mais há

discussão quanto ao caráter científico do Direito, restando ultrapassadas as demais

concepções em contrário, como, por exemplo, a que chegou a vislumbrar o Direito como

um capítulo da Sociologia (Comte).

O mesmo podemos dizer em relação ao Direito Tributário, cuja autonomia

científica e dogmática, em relação aos demais ramos do Direito dos quais também é parte

componente (Direito Público, Direito Constitucional, Direito Administrativo, e Direito

Financeiro), é assentada na atualidade. Dizê-lo autônomo, nesse sentido, é o mesmo que

afirmar ser ele inconfundível com outras disciplinas jurídicas especializadas. Esse

significado nada tem a ver com uma pretensa autonomia didática do Direito Tributário.

Apesar das críticas intentadas aos que se equivocam no exame da sua teoria

(e a algumas poucas críticas da nossa parte – v. item 14), entendemos ser Kelsen um jurista

de muitos méritos. Foi, para muitos, o maior doutrinador jurídico do último século,

deixando-nos um legado de dificil superação. À Kelsen coube a sistematização da Teoria

do Direito com base em conceitos pré-existentes já no século XIX. Dizia Cossio, em bela

consígnia: “ir além de Kelsen, sem sair de Kelsen”. É o que se pretende com o presente

trabalho.

A necessidade de uma análise asséptica, no intuito de atribuir natureza

científica ao Direito, como toda atividade de ruptura (revolução científica), como dito,

levou a certos exageros por parte de alguns adeptos mais fervorosos da Dogmática Jurídica

(em sentido estrito), que somente dificultam uma correta operação do jurídico e seus

instrumentos de atuação (normas jurídicas).

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A Teoria Pura de Kelsen, em face dessa necessidade de reconhecimento do

Direito como uma ciência autônoma, resultou na aplicação de um exagerado corte

metodológico por parte destes cientistas dogmáticos, que, no intuito de imprimirem um alto

grau de rigor científico às suas construções teóricas pela superlimitação do objeto de estudo

(sistema jurídico), desprezavam por completo quaisquer interações com outros sistemas

extrajurídicos, e, ainda pior, as relações do subsistema de direito tributário positivo com

outros subsistemas de direito positivo (Direito Constitucional, Direito Administrativo,

Direito Financeiro, etc.), algo que, em termos não só de Política Jurídica, mas, como se

verá adiante, também em termos jurídico-dogmáticos, é absolutamente equivocado, além de

não se confirmar no âmbito pragmático.

Sobre esse aspecto, vale ressaltar a lição de Lourival Vilanova, que já

disseminava, por intermédio de sua obra18, afirmação no sentido de que o mundo dos fatos

ingressa no Jurídico através da porteira aberta da hipótese normativa, e a descrição

constante do seu antecedente19. A hipótese normativa é um descritor deôntico. A

conseqüência normativa é um prescritor (estrutura bimembre da norma, como ensinou, ao

longo de sua obra, Vilanova).

Ou seja, o principal fomentador da doutrina divulgada pela Escola Paulista

de Direito Tributário prega uma consideração valorativa inerente ao Jurídico. De acordo

com Vilanova, o Direito leva necessariamente em consideração a realidade do mundo dos

fatos, e, com isso, toda a sua gama valorativa, principalmente pela sua análise pragmática.

Diversamente do sustentado pela doutrina dogmática (estrita), a análise

valorativa não só é possível, como também, é indispensável à uma correta aplicação do

Direito - que seja um mínimo comprometida com o benefício da humanidade -, sob pena de

18 Vilanova, Lourival. Estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. EDUC – RT. São Paulo:1977. 19 Coloca ainda Vilanova, no seu Estudos jurídicos e filosóficos, vol. 1. Política e direito: relação normativa, p. 367 com bastante propriedade que: “sem um mínimo de notas selecionadas que perfaçam um esquema conceptual relativamente a priori, em face dos possíveis factos ocorrentes, distinção nenhuma habilita o sujeito cognoscente para separar o facto econômico do facto religioso, o facto político do facto econômico e jurídico ou estético e militar” E ainda complementa: “O facto puro, seja ele de qualquer subespécie, é resultado de um corte abstrato feito pelo conceito fundamental que desarticula o contínuo heterogêneo em segmentações homogêneas, o que reconstrói o dado em porções racionalizadas”, p. 368.

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invertermos o raciocínio mais adequado pela preponderância dos valores positivados,

como, por exemplo, da vontade popular positivada, que permeia todo o nosso Texto

Constitucional, e retrocedermos em cessão de espaço ao arbítrio – o que vai de encontro à

uma das principais razões de ser do Direito (regulação das condutas – Kelsen – de acordo

com o Bem Comum – Becker, Dabin, del Vecchio).

Demonstramos, por intermédio da análise sintática, a plena existência de

valores no sistema jurídico pela simples leitura da Constituição Federal, que inicia seu texto

assegurando o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-

estar, o desenvolvimento, a igualdade, e a justiça como valores supremos de uma sociedade

fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social, etc.. Isso sem

mencionar que o preâmbulo é finalizado com a promulgação sob a proteção de Deus. Todos

esses valores são contemplados com plena aplicação pelo Supremo Tribunal Federal

(análise pragmática).

Para aqueles que negam força normativa ao preâmbulo, vale a ressalva que

faz cair por terra qualquer argumentação no sentido da desconsideração dos valores pelo

preâmbulo veiculados no sistema: ainda que sem força normativa por serem mencionados

no preâmbulo, essas prerrogativas dos destinatários da Constituição Federal encontram-se

positivadas e espraiadas ao longo de todo o seu texto, e não apenas na parte preambular20.

E não se pense com isso que se pretende reingressar na discussão do

Jusnaturalismo versus Positivismo, e nem muito menos, se intente desqualificar o presente

trabalho pela adoção de comentários pejorativos extrajurídicos. O que se pretende, é sim,

colocar à apreciação da comunidade acadêmica uma nova proposta de aplicação da

Dogmática Jurídica na sua acepção lata, que promova um maior inter-relacionamento do

Direito Tributário com os demais ramos jurídico-dogmáticos, e também, com a

consideração dos valores que à própria Dogmática Jurídica são imanentes (ressalve-se,

mais uma vez, que a própria escolha pela ausência de valores, constitui-se numa valoração

implícita). Tarefa que como dito anteriormente, apesar de difícil, é “deonticamente” viável.

20 Vide exemplificativamente CF, arts. 5º, 6º, 8º, 12, 14, 17 etc.

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5. Sistema da Ciência do Direito e Sistema de Direito Positivo.

Existem pelo menos duas alternativas metodológicas para se empreender um

trabalho jurídico: um primeiro caminho seria analisar o objeto do conhecimento da sua

partícula mínima que é a norma jurídica (desconsideradas suas partes constitutivas – as

proposições normativas, equivocadamente chamadas de fragmentos de normas) visando à

análise do seu conjunto que é o sistema de direito positivo (opção adotada por Kelsen). Ou

vice-versa, a partir do sistema de direito positivo (o todo) rumar à norma jurídica (a parte).

Esta opção é adotada, por exemplo, por Niklas Luhmann, em sua teoria dos sistemas

comunicacionais.

Achamos por bem iniciar conceituando o sistema de direito positivo como o

conjunto de normas vigentes num determinado espaço-tempo. Numa acepção de base

(acepção primeira, inicial), seria um “objeto formado de porções que se vinculam debaixo

de um princípio unitário ou como a composição de partes orientadas por um vetor

comum”21.

Tércio Sampaio Ferraz Jr. utiliza os termos “estrutura” para designar o

complexo de relações existente entre os entes aglutinados, e “repertório” para designar o

conjunto de seus elementos constitutivos (in casu, as normas jurídicas22). É a “forma das

formas” no dizer de Husserl. A estrutura mais elaborada dentre as formas lógicas.

Conforme demonstrado numa das melhores teorias a esse respeito, temos

uma linguagem-objeto, constitutiva do sistema de direito positivo, e uma metalinguagem da

Ciência do Direito23. O sistema de direito positivo funciona pois como linguagem-objeto

dos estudos empreendidos pela Ciência do Direito, que atua como metalinguagem

descritiva desse sistema (meta por se colocar além, como que em paralelo).

21 Carvalho, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 15ª ed., p. 131. Saraiva. São Paulo:2003. 22 Ferraz Jr., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Atlas. São Paulo:2003. 23. Carvalho, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 15ª ed., pp. 135 e seguintes. Saraiva. São Paulo:2003

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Ante o exposto, coloca-se o seguinte questionamento: existe sistema tanto na

Ciência do Direito quanto no direito positivo?

Alguns negam o caráter de sistema ao direito positivo, o que não constitui o

entendimento da melhor doutrina24, que acredita haver a necessidade de um mínimo de

organização (talvez daí o termo análogo ordenamento) para que os destinatários das normas

jurídicas possam compreender, por exemplo, a subordinação de uma norma-regra a uma

norma-princípio25, ou porque a competência da Justiça Federal é diversa da competência da

Justiça Estadual, conforme estabelecido pela própria Constituição.

De igual modo, não há como descrever um sistema como o é o jurídico, de

forma válida, sem que se o faça de modo sistemático, mesmo por razões estritamente

metodológicas.

Donde concluímos que, da relação existente entre as normas jurídicas

(relações sintáticas intra-normativas) o ordenamento apresenta-se sob a forma de um

sistema (daí as expressões “sistema de direito positivo”, “sistema jurídico”, “sistema

tributário nacional”, etc.). De modo similar, seja por razões metodológicas, seja por

correspondência da linguagem descritiva com o objeto empírico, a Ciência do Direito que o

descreve deve apresentar-se de forma sistemática.

6. Da metodologia científica utilizada na presente dissertação: migração do

sistema jurídico à norma jurídica.

Escolhemos por opção metodológica a alternativa que leva do sistema

jurídico às normas que nele estão inseridas.

24 Idem. 25 Canotilho, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 5ª ed.. Almedina. Coimbra: 1991, pp. 171 e seguintes.

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Partiremos, portanto, do sistema de direito positivo, esse restrito ao Texto da

Constituição Federal, acrescida da inevitável análise do Código Tributário Nacional (com

preliminar análise de textos constitucionais anteriormente vigentes, atos institucionais e

complementares, etc.), até normas jurídicas específicas, relativas ao nosso tema: o Princípio

Democrático como norma jurídica fundante da atividade tributária estatal e uma nova

proposta de interpretação/aplicação dos seus desdobramentos no âmbito tributário.

No mais, sempre que utilizadas as expressões abreviadas “sistema”, “sistema

de direito positivo”, “Direito” ou “Jurídico” o faremos como sinônimo de ordenamento

jurídico posto. Sempre que nos referirmos ao sistema da Ciência do Direito, utilizaremos a

expressão por extenso: sistema da Ciência do Direito, ou a expressão Ciência do Direito,

Ciência Jurídica, etc..

7. Do contrato social.

A necessidade da consideração do benefício da humanidade como fim maior

de qualquer atividade científica - e portanto, também da atividade científica de

interpretação e aplicação do Jurídico -, somente se confirma quando “retornamos às

origens”26 e verificamos, dentre outras fontes, na doutrina dos filósofos iluministas, a razão

de ser do próprio Estado, o motivo de sua criação como bem cultural pelos homens.

Em sua conhecida obra “O contrato social”, o filósofo suíço Jean Jacques

Rousseau discorreu sobre as razões de ser do Estado27. Para Rousseau o Estado decorreria

da celebração de um contrato social, por intermédio do qual os indivíduos entram em

acordo para proteção dos seus direitos “naturais”, que passariam com o pacto a ser

jurídicos.

26 Expressão utilizada por José Souto Maior Borges. In O retorno ao aprisco, in O contraditório no processo judicial – Uma visão dialética. Malheiros. São Paulo: 1996, p. 33 e seguintes. 27 Rousseau, Jean Jaques. Do contrato social, in Coleção “Os pensadores”, 1ª ed., vol. XXIV. Abril Cultural. São Paulo: 1973.

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Observe-se que não se pretende com a presente dissertação instaurar

qualquer discussão relativa aos chamados direitos naturais, mas, tão somente, colocar o

Direito com bem cultural, obra humana, e que, portanto, há de ter um fim valorativo ínsito

à regulação das condutas do homem em sociedade.

Assim, no dizer de Rousseau, o Estado é criado para a preservação desses

direitos naturais, sendo fundado em dois principais pilares: i) subordinação do indivíduo à

sociedade estatal; e ii) soberania da sociedade estatal sobre todo e qualquer cidadão, de

forma individuada. Dessa forma, o Estado nada mais seria que a unificação do todo social,

competente a representar a vontade única de um povo, ainda que tacitamente, voltada a um

Bem Comum.

Como visto da introdução, em sentido equivalente, é a obra de Becker28, que

citando del Vecchio e Dabin, afirma convergir a atividade política do Estado para um

“absoluto” (Bem Comum), o consenso valorativo manifestado por intermédio da norma

jurídica:

“Toda a Política converge para um ‘absoluto’ (Bem Comum ou Bem Público temporal)29 autêntico ou falso30. O Estado pratica uma política materialista ou espiritualista, coletivista ou personalista, etc.; inclusive no caso em que, pretextando neutralidade entre as doutrinas, o Estado afirma sua negativa em escolher o ‘absoluto’ (autêntico ou falso) sob pena de condenar-se à inércia e a negar-se a si mesmo31. Em cada Estado há uma concepção de mundo específica que predomina – durante algum tempo – sobre as demais concepções. Esta concepção do mundo predominante sobre as outras, quando se refere à finalidade da vida social, determina o conteúdo do Bem Comum específico ao respectivo Estado32. (...) Por isto é errado pensar que o Bem Comum seja de ‘essência sobrenatural’ ou que a teoria do Bem Comum seja uma teoria ‘católica’. O Bem Comum é

28 Becker, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3ª ed., pp. 164-165, Lejus, São Paulo: 2002. 29 del Vecchio, Giorgio. Toeria do Estado, trad., São Paulo, 1957 (Lo Stato Roma), 1953, p. 38 (cap. II, n.º 4, a) apud Becker, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3ª ed., p. 164, Lejus, São Paulo: 2002. 30 J. Dabin, Théorie Générale du Droit, 2ª ed., Bruxelles, 1953, n. 143. 31 J. Dabin, Théorie Générale du Droit, Bruxelles, 1953, n. 141 e L’Etat ou le Politique. Paris, 1957, n.º 30. 32 G. Burdeau, Traité de Science Politique,, Paris, 1949, vol. I, ns. 37, 61 apud Becker, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3ª ed., p. 164, Lejus, São Paulo: 2002.

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34

um reflexo da filosofia do homem; pode perfeitamente haver um ‘bem comum’ marxista ou soviético que reflete ideologia marxista ou soviética.”

Portanto, como é da razão de ser do próprio Estado a proteção dos direitos

do indivíduo, ainda que equivocadamente colocados como direitos naturais por Rousseau,

ou, como mais acertadamente afirmou Becker, a promoção do Bem Comum, nada mais

coerente para o intérprete/aplicador dos preceitos jurídicos que buscar extrair da situação

que lhe é colocada sob análise aquela acepção do Direito que vise à proteção desses direitos

do indivíduo ou a promoção do referido Bem Comum (Bem Social), ainda que esse

conceito esteja permeado tanto pela subjetividade imanente ao ordenamento, quanto pela

decorrente da própria formação cultural do aplicador33.

A proteção desses direitos individuais implica no benefício para a

humanidade (Bem Comum ou Bem Social), como referimos acima. Esse benefício será

alcançado se, por intermédio da operacionalização do sistema, resultar uma aplicação com

base nos valores mais caros à sociedade estatal respectiva (maioria da sociedade, com

respeito às minorias), convencionados em determinado espaço-tempo (conceito de justiça).

A questão da legitimação ainda assim fica sem resposta. Como saber quais

valores seriam mais caros à sociedade em determinado espaço-tempo? Necessário o

consentimento social para aplicação de determinada interpretação normativa?

Em princípio, partimos da óbvia premissa que só há divergência onde não há

consenso sobre determinada interpretação jurídica adotada. Assim, na hipótese de

divergência levada ao conhecimento do Poder Judiciário, este, por intermédio do seu último

órgão a tomar conhecimento de determinada lide (normalmente o Supremo Tribunal

Federal), dirá qual o(s) sentido(s) convencionalmente aceito(s) [válido(s)] por aquela

determinada sociedade estatal, para a expressão de direito positivo (constitucional) em

questão.

33 A Constituição Federal de 1988 é permeada de dispositivos denotativos do que seria o Bem Comum para o povo brasileiro (apenas para exemplificar, vide arts. 1º, 3º, 5º, 43, etc.).

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Esse o órgão legitimado pelo nosso ordenamento para dizer quais valores

são mais caros ou mais repulsivos à nossa sociedade. Entretanto, continuaremos examinado

como ocorre a atuação do Supremo Tribunal Federal de forma mais acurada, ao longo da

presente dissertação.

8. A norma geral e abstrata como norma jurídica de previsão da conduta

convencionalmente prescrita e eventual sanção aplicável na hipótese do seu não-

cumprimento.

Como fruto daquilo que Rousseau denominou de contrato social, e da

criação do Estado (da promoção do Bem Comum por seu intermédio), temos a lei,

instrumento de superação do arbítrio estatal e de garantia dos direitos e liberdades

individuais. O modo usual de manifestação das leis para a sociedade legiferada no

ordenamento brasileiro é por intermédio das normas gerais e abstratas34.

As normas gerais e abstratas são veiculadas pelos textos legislativos

continentes das previsões de condutas que se esperam dos indivíduos e do próprio Estado,

com a descrição (jurídica) de determinada hipótese fática que, se ocorrida no mundo dos

fatos, há de resultar na instauração de determinada relação entre sujeitos-de-direito.

Para o Prof. Paulo de Barros Carvalho, normas gerais e abstratas,

principalmente aquelas introduzidas por intermédio da Constituição Federal, serviriam

como fundamento de validade de todas as demais normas jurídicas constantes do sistema35:

“As normas gerais e abstratas, principalmente as contidas na Lei Fundamental, exercem um

papel relevantíssimo, pois são o fundamento de validade de todas as demais, indicando os

rumos e os caminhos que as regras inferiores haverão de seguir (...)”

34 A respeito da corriqueira utilização da expressão “normas gerais e abstratas”, vale mencionar a crítica de Norberto Bobbio em relação à imprecisão e insuficiência da doutrina que atribui às normas jurídicas as características de generalidade e abstração, in Bobbio, Norberto. Contribución a la teoria del derecho. Soler. Valencia: 1980, p. 293 e seguintes. 35 Carvalho, Paulo de Barros. O princípio da segurança jurídica em matéria tributária. in Revista de Direito Tributário, n.º 61, p. 86

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Para muitos, como Kelsen, essa previsão necessariamente há de vir

acompanhada da respectiva sanção para o caso do seu descumprimento, sem o quê, não há

que se falar em norma jurídica.

A teoria kelseniana, em sua versão originária36, diferencia entre norma

jurídica sancionatória (primária) e norma jurídica de previsão da conduta (secundária),

tendo sido invertida essa classificação quando da edição de sua obra póstuma37.

Contudo, o que se percebe da análise sintática, e até mesmo pragmática do

ordenamento, é que muitos são os preceitos que não possuem qualquer previsão de sanção

para a hipótese do seu descumprimento, consistindo esse, um dos questionamentos mais

antigos da Teoria Geral do Direito: há norma jurídica sem previsão de sanção específica?

Entendemos que, ainda que inexista sanção específica para determinado

descumprimento da conduta prevista na norma dita secundária, ainda assim, com base nos

fundamentos da própria teoria pura, se verificado um mínimo eficacial (eficácia como

confirmação da adequação da conduta, conforme normada), aí teremos uma norma jurídica,

por meio da previsão da conduta pela norma geral e abstrata e do pleno surtimento dos seus

efeitos de regulação da conduta.

Já Niklas Luhmann, conforme lecionado pelo Professor Celso Campilongo,

nas aulas de Teoria Geral do Direito, em sua teoria dos sistemas38, prega que o sistema

jurídico consiste em comunicação jurídica, produzindo comunicação jurídica, por

intermédio de comunicação jurídica, o que pode ser visto também como um processo

autopoiético, de acordo com a sua própria teoria.

Para o autor alemão, o que caracteriza as sociedades é a comunicação, que,

por sua vez, não se confunde com os seus integrantes; sendo neste ponto a sua teoria um

36 Kelsen, Hans. Teoria general del derecho y del estado. Imprensa Universitária. México: 1949, pp. 62-63. 37 Kelsen, Hans. Teoria geral das normas trad. da Allgemeine Theorie der Normen, Sérgio Antonio Fabris, Porto Alegre, 1986, pp. 68 e seguintes. 38 Luhmann, Niklas. El derecho de la sociedad. Barcelona. Antrophos.

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pouco mais sofisticada que a teoria kelseniana, por indicar uma distinção entre a) sujeito

cognoscente e b) objeto de conhecimento, no que não logrou êxito Kelsen ao tratar da

regulação da conduta humana, pois fê-lo sem maior apreciação dos operadores jurídicos.

Luhmann parte de alguns pontos básicos para o desenvolvimento da sua

teoria dos sistemas, dentre os quais, da análise do objeto feita de maneira segmentada:

visualiza uma subdivisão entre “sistema” e “ambiente”; “centro” e “periferia”; “atenienses”

e “estrangeiros”, etc.. Dessa diferenciação básica, temos a distribuição de competências

guardada em funções atribuídas pela comunicação jurídica (“com direitos” versus “sem

direitos”), bem como, a própria necessidade de regulação da conduta, por exemplo, do

“povo conquistado” pelo “povo conquistador”. Ressalte-se que, em tempos democráticos,

não há que falar-se em “povo conquistador” e “povo conquistado”, mas, sim, em

representantes do povo (no exercício da função estatal) editando as normas jurídicas, ao

menos em princípio, com base num programa aprovado pelos seus representados: a própria

sociedade. O parlamentar é o popular no Congresso.

Para Luhmann, da confusão assistemática característica do ambiente

(levando-se em conta a sua maior complexidade - e, portanto, ausência de sistematização -

em relação ao próprio sistema), decorre a distinção sistemática pela atribuição de

comunicação específica a determinado sistema: no caso do sistema jurídico, normas

jurídicas.

A comunicação jurídica é, portanto, menos complexa que o seu ambiente em

virtude da instituição do seu “redutor de complexidades”. Como o Direito tem por função a

regulação da conduta humana39, instituiu-se uma convenção e como resultado de um

procedimento regular (ato de legislação) obtém-se um produto que adquire a característica

de redução da complexidade na comunicação (jurídica) entre os elementos do sistema

(jurídico). Esse elemento é a norma jurídica.

39 Ressalte-se que, a função de regulação da conduta humana pelo direito é afirmação de Kelsen, e não de Luhmann.

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Assim como no sistema econômico temos a moeda como instrumento

redutor de complexidades (ao dispensar a necessidade de escambo, por exemplo), no

sistema jurídico, a norma jurídica tem um papel fundamental na operacionalização da sua

comunicação interna: por seu intermédio a comunicação jurídica se difunde, pela sua

principal função de “generalização congruente das expectativas normativas” – a norma

geral e abstrata como previsão estatal da conduta esperada dos indivíduos.

A nossa interpretação da sua obra conduz à conclusão de que Luhmann vê a

norma jurídica como elemento redutor (e não eliminador) de complexidades, em virtude da

possibilidade de múltiplas significações de um único texto legislativo. Para Luhmann, a

“generalização congruente de expectativas normativas” (decorrente da diminuição de

complexidades na comunicação jurídica, efetuada pela norma geral e abstrata), o que, a

nosso ver, consistiria na objetivação expressa da conduta pretendida pelo Estado e

convencionada pelos cidadãos em assembléia (a priori, constituinte, e a posteriori,

legislativa).

Assim, a norma jurídica teria como função o desempenho de uma

comunicação (jurídica), distinta das demais espécies comunicativas presentes nos demais

tipos de sistemas (econômico, político, sociológico, etc.).

Mas como distinguir a comunicação jurídica das demais espécies de

comunicação pertinentes aos sistemas alheios? A resposta é muito simples: sempre que o

código binário se refira àquilo que é lícito ou ilícito, legal ou ilegal, estaremos diante da

comunicação jurídica característica do sistema jurídico. Diferentemente do que ocorre, por

exemplo, no âmbito religioso em que é utilizado, dentre outros, o código binário

sacro/profano.

Como visto da obra de Luhmann, é com base nas previsões constantes das

normas gerais e abstratas que os indivíduos têm reguladas as suas condutas. É quase

pacífico esse entendimento na doutrina, com algumas críticas à caracterização como gerais

e abstratas (Bobbio). Da mesma forma, é com base no texto que serve de suporte à norma

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geral e abstrata que o intérprete/aplicador instrumentaliza o ato de interpretação/aplicação

do Direito ao caso concreto, pondo, assim, a norma individual e concreta, analisada a

seguir.

9. A norma individual e concreta como norma jurídica específica de imposição da

conduta convencionalmente prescrita e imputação da sanção, na hipótese do não-

cumprimento da norma geral e abstrata.

Já ensinava Kelsen, em sua Teoria Pura, que o Direito é o único e exclusivo

meio produtor de Direito - somente a norma jurídica produz norma jurídica, por intermédio

de outras normas jurídicas. É o que parte da doutrina chama de “autopoiese normativa”40.

Em termos kelsenianos, o Direito regula sua própria criação.

Perfeita a lição do jurista checo, pois, como visto no tópico anterior, é com

base no disposto na norma geral e abstrata, decorrente dos textos legais a que estão sujeitos

os cidadãos, que é possível aplicar ao caso em concreto a norma individual e concreta.

Funcionaria a norma individual e concreta como ato de aplicação do previsto na norma

geral e abstrata ao caso concreto - como uma tentativa de objetivação estatal da

subjetividade decorrente das interpretações divergentes de um mesmo texto legislativo

pelos legiferados.

A aplicação da norma individual e concreta advém da estrutura lógica tão

conhecida pelos que se debruçam sobre a fenomenologia jurídico-normativa da norma geral

e abstrata, abordada no item anterior: dada a ocorrência de um fato F, previsto no

antecedente normativo de determinado texto legal, deve ser a relação R, prescrita no

conseqüente normativo do referido texto.

A transposição dessa estrutura para o campo tributário resultou na teoria da

regra-matriz tributária, no dizer de Paulo de Barros Carvalho41, ou ainda, na estrutura da

40 V. Gunther Teubner. O direito como sistema autopoiético. Trad. José Engrácia Antunes. Lisboa, Gulbekian, além do próprio Niklas Luhmann. El derecho de la sociedad. Barcelona. Antrophos. 41 Carvalho, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 15ª ed., 241 e seguintes. Saraiva. São Paulo:2003.

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regra jurídica tributária, no dizer de Souto Maior Borges42, como norma geral e abstrata a

fundar a aplicação do comando individual: dada a ocorrência de um fato jurídico-tributário,

composto por um verbo acrescido de um complemento (exs.: auferir renda, circular

mercadoria, importar bens, ser proprietário de imóvel, alienar bens imóveis, etc.), que

resultem numa atividade economicamente mensurável, em determinado espaço-tempo,

deve ser o dever de recolhimento de tributo aos cofres estatais, em razão da instauração da

relação tributária entre o sujeito ativo (Estado) e o sujeito passivo (contribuinte).

Mais uma vez, remetemos às notas apontadas pelo Prof. Paulo de Barros

Carvalho relativas a normas individuais e concretas43:

“(...) é naquelas individuais e concretas que o direito se efetiva, se concretiza, se mostra como realidade normada, produto final do intenso e penoso trabalho de positivação. É o preciso instante em que a linguagem do direito toca o tecido social, ferindo a possibilidade da conduta intersubjetiva.”

Vale salientar que, não necessariamente há de estar presente a imputação da

sanção na aplicação da norma individual e concreta (primeiro momento), mas, tão somente,

quando do seu descumprimento é que há de se falar em sanção, ou mesmo, em coerção

(segundo momento).

A questão relativa à sanção tem ainda repercussões outras, particularmente

no campo das obrigações acessórias e na sua possibilidade expressa de ser tomada como

tributo, na conformidade do art. 3º, do Código Tributário Nacional. Essa repercussão já

abordamos no nosso artigo intitulado “O caráter patrimonial das obrigações tributárias

acessórias”44. Naquele artigo defendemos conclusão no sentido de que, se adotada a

premissa de que toda a obrigação tributária tem por objeto a prestação de tributo, e se a

obrigação tributária acessória, quando do seu inadimplemento, converte-se em principal,

42 Borges, José Souto Maior. Teoria geral da isenção tributária. 3ª ed., p. 154. Malheiros, São Paulo:2001. 43 Carvalho, Paulo de Barros. O princípio da segurança jurídica em matéria tributária. in Revista de Direito Tributário, n.º 61, p. 86. 44 Borges, Paulo Fernando Souto Maior. O caráter patrimonial das obrigações tributárias acessórias, in Teoria geral da obrigação tributária – Estudos em homenagem ao Prof. José Souto Maior Borges. Malheiros. São Paulo: 2005, p. 311.

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nos termos do art. 113, §3º, podemos inferir que, em matéria tributária, no nosso

ordenamento, a prestação da sanção pecuniária coincide com a prestação tributária, e ambas

teriam natureza tributária.

Contudo, deixemos de lado a análise da questão relativa à sanção, por não

caracterizar o principal desiderato do presente trabalho45, para focarmos nossas atenções no

conceito da norma individual e concreta, como sendo aquela decorrente da aplicação do

disposto na norma geral e abstrata pelo ente jurisdicional competente. A norma individual

adquire grande importância no presente trabalho, que dentre outros aspectos denotativos da

sua relevância, tem na análise casuística por parte do Supremo Tribunal Federal o supra-

sumo da sua aplicação.

45 A respeito das sanções tributárias, recomenda-se a obra de Ângela Maria da Motta Pacheco. Sanções tributárias e sanções penais tributárias. Max Limonad. São Paulo: 1997. Particularmente nos seus capítulos II - em que faz um apanhado da teoria geral das sanções em Kelsen, Bobbio, Vernengo, Lourival Vilanova, Aftalión, J. Vilanova, Ross, Tércio Sampaio e Reale -, e VI, em que trata da questão específica das sanções tributárias.

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PARTE II

UMA BREVE TEORIA DOS PRINCÍPIOS

10. A contraposição: “normas-princípio” versus “normas-regra”.

A atividade científica no Direito faz com que o estudioso, constantemente,

se depare com os vocábulos “norma” e “princípio”, e os utilize, por muitas vezes, de forma

absolutamente indiscriminada, passando desapercebida a necessidade de diferenciação dos

dois institutos jurídicos.

Como visto nos itens anteriores, o sistema jurídico tem como elementos

componentes as normas jurídicas, o “código redutor de complexidades” utilizado na

comunicação jurídica, no dizer de Niklas Luhmann.

Ao nos depararmos com a contraposição conceitual das “normas-princípio”

e “normas-regra” (utilizando a nomenclatura de Canotilho46), concluímos que os princípios

nada mais são que, normas jurídicas.

Nesse sentido é a obra do Prof. Paulo de Barros Carvalho47, que se posiciona

pelos princípios como sendo normas jurídicas de introdução de valores de grande

importância no ordenamento:

“Toda vez que houver acordo, ou que um número expressivo de pessoas reconhecerem que a norma N conduz um vector axiológico forte, cumprindo papel de relevo para a compreensão de segmentos importantes do sistema de proposições prescritivas, estaremos diante de um ‘princípio’. Quer isto significar, por outros torneios, que ‘princípio’ é uma regra portadora de núcleos significativos de grande magnitude, influenciando visivelmente a orientação de cadeias normativas, às quais outorga caráter de unidade

46 Canotilho, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 5ª ed.. Almedina. Coimbra: 1991, pp. 171 e seguintes. 47 Carvalho, Paulo de Barros. Sobre os princípios constitucionais tributários, in Revista de Direito Tributário, n.º 55, p. 148.

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relativa, servindo de fator de agregação de outras regras do sistema de direito positivo.”

Ao nomear determinadas normas jurídicas como princípios, e no caso

específico da Constituição Federal, também colocá-las em posição topográfica de destaque,

ao longo do texto (arts. 1º, 5º, no início do texto, além do início de Títulos e Capítulos –

ex.: arts. 37, 170, 19448, da CF) o legislador nada mais fez que atribuir a essas normas-

princípio maior abrangência sintática e semântica que as chamadas normas-regra, embora

essa prevalência não necessariamente se verifique em todos os casos, onde, por muitas

vezes, o intérprete/aplicador opta pela aplicação da norma específica, ainda que de menor

hierarquia (e de forma equivocada), pela sua especialidade, ou ainda, pela denominação de

um valor como princípio, por menos relevante que pareça (como parece ser o chamado

“princípio da praticabilidade na tributação”).

Acresça-se à maior abrangência dos princípios, o estabelecimento pela

própria Constituição dos métodos de solução de conflitos normativos, que denotam um

maior alcance das normas-princípio em face às normas-regra, pois, na hipótese de

antinomia normativa entre ambos, imponível a aplicação do disposto em uma norma-

princípio diante do contraposto sentido do veiculado por uma norma-regra, ou ainda, no

comando pela aplicação da lei mais benéfica a casos pretéritos (princípio da retroatividade

benéfica49), ainda que outra lei fosse vigente à época, etc..

48

Vale o comentário a respeito do art. 194, da CF, pois, a despeito de o Texto se referir a disposições gerais e parágrafo único do referido dispositivo nominá-los como objetivos aplicáveis à seguridade social, o Supremo Tribunal Federal atribui tratamento de princípios a estes dispositivos: “EMENTAS: 1. RECURSO. Extraordinário. Inadmissibilidade. Reajuste de benefício previdenciário. Interpretação de legislação infraconstitucional. Ofensa indireta à Constituição. Agravo regimental não provido. Não se tolera, em recurso extraordinário, alegação de ofensa que, irradiando-se de má interpretação, aplicação, ou, até, inobservância de normas infraconstitucionais, seria apenas indireta à Constituição da República. 2. PREVIDÊNCIA SOCIAL. Reajuste de benefício de prestação continuada. Índices aplicados para atualização do salário-de-benefício. Arts. 20, § 1º e 28, § 5º, da Lei nº 8.212/91. Princípios constitucionais da irredutibilidade do valor dos benefícios (Art. 194, IV) e da preservação do valor real dos benefícios (Art. 201, § 4º). Não violação. Precedentes. Agravo regimental improvido. Os índices de atualização dos salários-de-contribuição não se aplicam ao reajuste dos benefícios previdenciários de prestação continuada. AI-AgR 590177/SC - SANTA CATARINA, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Julgamento: 06/03/2007, Órgão Julgador: Segunda Turma.” 49 Diniz, Maria Helena. Dicionário Jurídico. Vol. 3, 2ª ed., p. 845. Saraiva. São Paulo: 2005: “Direito Penal. É aquele pelo qual as normas gerais retroagirão quando extinguirem ou reduzirem penas. Haverá retroatividade da lei penal que decretar penas mais brandas do que a anterior, ou inocentar atos tidos como

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Existem princípios denominados como fundamentais (ex.: art. 1º, 2º, 4º, etc.,

da Constituição Federal), e outros princípios específicos de determinada seção do texto

constitucional, como, por exemplo, os princípios gerais que regem a atividade econômica

(art. 170 e seguintes da Constituição Federal), ou os princípios especificamente tributários,

dentre os quais, tomamos como exemplos aqueles constantes dos incisos do art. 150, da

Constituição, que, em realidade, são transposições ao campo tributário dos direitos e

garantias individuais previstos no art. 5º do Texto Maior. Conseqüentemente,

especificações de princípios fundamentais genéricos.

A despeito da sua denominação como princípios “gerais” da atividade

econômica, ou sua especificidade, no caso das limitações constitucionais ao poder de

tributar, tanto os princípios constantes do art. 170 e seguintes, quanto os do art. 150, da

Constituição são princípios que explicitam os valores ditos fundamentais da República

Federativa do Brasil (art. 1º, CF), ou objetivos fundamentais (art. 3º, CF), ou ainda, direitos

e garantias fundamentais (art. 5º, CF), dentre os quais está o Princípio Democrático.

11. Da hierarquia entre “normas-princípios” e “normas-regra”.

Diante da conclusão a que chegamos no item anterior, de que os princípios

são normas jurídicas com alcance inter-normativo (sintático) mais alargado que as simples

normas-regra, e ainda, que alguns princípios ditos fundamentais devem ter prevalência

sobre outros, simplesmente “gerais” ou “específicos”, por muito maiores razões, podemos

afirmar que há uma relação de prevalência entre as normas-princípio e as normas-regra.

A esse respeito, válida a lição de Kelsen pela visualização do sistema

jurídico como uma “hierarquia escalonada” - rara e notável demonstração de capacidade

descritiva do objeto científico50. Contudo, vale salientar que, a identificação do

ordenamento jurídico como uma pirâmide normativa, em que, no topo, estaria a

passíveis de pena. A norma que for favorável ao indivíduo só poderá ser aceita no âmbito do direito penal, em virtude do primordial princípio nulla poena sine legis, em homenagem à humanitatis causa.” 50 Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. Martins Fontes. São Paulo: 2003, p. 246.

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Constituição, e na base, as normas jurídicas infraconstitucionais e infralegais, deve-se, em

verdade, a Adolf Merkl51.

Destarte, se no âmbito das normas gerais e abstratas as normas-princípio

possuem destaque no texto constitucional, como fundamentais e vinculantes para a

aplicação das normas-regra, no âmbito individual e concreto, o intérprete/aplicador deve

pautar o ato de interpretação/aplicação de forma a prestigiar sempre os princípios, como

garantias de ampla abrangência sintática que detêm os cidadãos/contribuintes, em oposição

ao arbítrio estatal, e em detrimento da aplicação das normas-regra, cuja utilização é maior

pelo Estado, pois lhe são mais favoráveis que as normas-princípio (que limitam sua

atuação), além de específicas.

Essa preferência pela aplicação da norma-princípio somente deve sofrer

restrição se da aplicação da norma-princípio, resultar ofensa a outros princípios, situação

que analisaremos no item 13 (Da ponderação de princípios).

12. Da suposta hierarquia entre os princípios constitucionais no ordenamento

brasileiro.

Como já exposto nos itens anteriores, existe uma hierarquia estabelecida

pelo próprio Texto Constitucional entre alguns princípios, como por exemplo, entre os

princípios ditos fundamentais e os meramente gerais da atividade econômica ou os

específicos tributários (excetuados aqueles que são meras transposições ao campo

específico da atividade econômica, de outros princípios igualmente fundamentais).

Colocando de forma pouco diversa, afirma o Prof. Paulo de Barros Carvalho

com sua costumeira acuidade52: “Há ‘princípios’ e ‘sobreprincípios’, isto é, normas

jurídicas que portam valores importantes e outras que aparecem pela conjunção das

primeiras.”

51 Merkl, Adolf, Teoria general del derecho administrativo, Ed. Nacional, México:1978. pp. 208 e seguintes. 52 Carvalho, Paulo de Barros. O princípio da segurança jurídica em matéria tributária. in Revista de Direito Tributário, n.º 61, p. 84.

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Analisando essa cadeia normativa, muitos doutrinadores já escreveram a

respeito de qual seria o “protoprincípio” no nosso ordenamento jurídico, principalmente,

após o advento da Constituição Federal de 1988.

Acredita-se que o protoprincípio seria o Princípio da Legalidade, sem o qual,

não haveria como falar em Estado de Direito. Outros têm no Princípio da Justiça, muitas

vezes entendida esta como isonomia ou eqüidade, o princípio fundamental constante do

nosso ordenamento.

José Souto Maior Borges identifica e unifica na metalinguagem descritiva,

os princípios do art. 5º, I (isonomia) e II (legalidade), da CF53, ao sustentar uma hierarquia

semântica (relação de implicação) e axiológica (relação de valoração) entre os referidos

princípios fundamentais: assim como o princípio da isonomia condicionaria a legalidade, a

legalidade condicionaria a universalidade da jurisdição (aplicação da lei); e esta, por sua

vez, condicionaria o princípio do contraditório, o devido processo legal e a ampla defesa.

Como tudo é um, essa unificação decorreria de uma condensação de normas-princípio, que

resultaria no Princípio da Isonomia em face da Lei (ou no dizer do Professor

pernambucano, no Princípio da Legalidade-isônoma).

Percebe-se da obra de Geraldo Ataliba uma prevalência do Princípio

Republicano54, como fundamento de validade de todo o sistema jurídico, ao lado do

Princípio Federativo55. Da mesma forma, Paulo de Barros Carvalho manifesta por seus

escritos e exposições uma sobreposição do Princípio da Segurança Jurídica56.

53 Borges, José Souto Maior. Pro-dogmática: por uma hierarquização dos princípios constitucionais, in Estudos em homenagem a Seabra Fagundes. Revista trimestral de direito público n.º 1/1993, p. 146. São Paulo: 1993. 54 Ataliba, Geraldo. República e Constituição. 2ª edição, 3ª tiragem, p. 38. Malheiros. São Paulo: 2004. 55 Como bem descrito pelo Prof. Aires Fernandino Barreto sobre a orientação doutrinária de Geraldo Ataliba: “Dizia o mestre que a exegese das regras da Constituição só pode ser procedida com plena observância das diretrizes que estão contidas nos seus princípios. Advertia, ademais, que mesmo a interpretação dos princípios deveria ser feita de modo a respeitar as mais relevantes diretrizes constitucionais. Em outras palavras, a exegese tem que ser feita, sempre, em harmonia com a Federação, em harmonia com a República, em harmonia com a autonomia municipal”. ISS na constituição e na lei. Dialética. São Paulo: 2003, p. 10. 56 Carvalho, Paulo de Barros. O princípio da segurança jurídica em matéria tributária. in Revista de Direito

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Celso Antônio Bandeira de Mello redigiu notável monografia sobre o

conteúdo jurídico do princípio da igualdade57, que a despeito de curta na extensão, é imensa

na profundidade do trato do referido princípio.

Diferentemente dos autores supra-mencionados, além da hierarquia acima

defendida dos princípios ditos fundamentais sobre os meramente gerais, entendemos que,

de início, não há que se falar em supremacia de um princípio sobre os demais (ex.:

subordinação de um princípio fundamental sobre outro, também fundamental), senão,

diante de um caso concreto, cujo Direito (norma-princípio) a ser aplicado será decidido

com toda a carga de valoração decorrente da situação específica, como também, da própria

subjetividade do intérprete/aplicador. Contudo, a afirmativa encontra restrição apenas no

Princípio Democrático, como norma jurídica fundante que é de toda a atividade estatal,

incluída, principalmente, a atividade tributária.

Vejamos no próximo item como funciona essa subjetividade no ato de

interpretação/aplicação dos princípios ao caso concreto e quais os mecanismos utilizados

pelos operadores jurídicos legitimados para a objetivação do conteúdo normativo.

13. Da “ponderação de princípios”.

Como visto do tópico precedente, de início, não há que se falar em

prevalência de um princípio constante do ordenamento sobre outro (de igual natureza) no

ordenamento jurídico, senão diante da análise do caso concreto, em que se decidirá, com

toda a interferência valorativa do contexto, aliada ao grau de subjetividade imprimido pelo

intérprete/aplicador, qual norma jurídica lhe é aplicável.

É a pragmática, a casuística, como resultado da aplicação de normas

jurídicas permeadas de valores aos casos em concreto, sobrepondo-se a toda a atividade

Tributário, n.º 61, p. 86: “A segurança jurídica é, por excelência, um sobre princípio.” 57 Bandeira de Mello, Celso Antônio. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. Malheiros. São Paulo: 1978.

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científica que delas não se utilize. A respeito da influência da subjetividade nos atos de

intepretação/aplicação, vale o parêntesis concernente à obra de Norberto Bobbio, que ao se

pronunciar sobre o dever de imparcialidade do juiz, já atentava para a carga de

subjetividade do aplicador da norma individual e concreta: “O preceito de imparcialidade é

necessário, porque a aplicação de uma norma ao caso concreto nunca é mecânica e requer

uma interpretação na qual intervém, em maior ou menor medida segundo os diferentes

tipos de lei, o juízo pessoal do juiz”. 58

Ou seja, diante de uma situação concreta, em que apresentada a dúvida sobre

se deva ser aplicado o princípio A ou o princípio B, é que o intérprete/aplicador refletirá

sobre as conseqüências e renúncias decorrentes da aplicação de um ou outro princípio,

antes de declarar em que sentido é o seu ato aplicativo (decisório).

Essa sistemática decorre da própria natureza lógico-dialética do Direito, que

tem como principal caractéristica a contraposição entre tese (princípio A), antítese

(princípio B) e síntese (interpretação prevalecente ou decisão, necessariamente aplicativa

de um ou outro princípio; ou mesmo dos dois princípios, de forma conjunta, sendo um

deles em acepção diversa e mitigada da pretendida pela parte). É a contraposição dialética

entre princípios.

Repita-se aqui um primeiro esclarecimento: a afirmação de que inexistiria

uma hierarquia entre princípios fundamentais foi feita com ressalva (“de início”), em razão

da conclusão expressada pelo tema do presente trabalho, que tem no Princípio Democrático

a norma jurídica fundante de toda a atividade tributária estatal.

Cabe, ainda, um segundo esclarecimento: a despeito do objeto principal do

presente trabalho resumir-se à demonstração do Princípio Democrático como norma

jurídica fundante de toda a atividade tributária estatal e à proposta de uma alternativa

intepretativa/aplicativa dos seus desdobramentos no âmbito do Direito Tributário,

58 Bobbio, Norberto. Teoria geral da política. A filosofia clássica e as lições dos clássicos. 11ª tiragem. Campus.

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entendemos que há um valor maior a ser tutelado no ordenamento, sem o qual, não há que

se falar sequer em democracia, qual seja, o direito à vida. Tanto é assim que o direito à vida

é disposto na Constituição Federal como a primeira garantia de ordem fundamental do

extenso rol do art. 5º da CF, constando, inclusive, do seu caput:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)”

Assim, a primazia sintática do valor “vida” sobre os demais valores

constantes do ordenamento decorre não somente de uma previsão normativo-constitucional,

mas, em maior grau, de uma inferência lógica, pois, onde não há vida, não há sociedade, e

conseqüentemente, inexiste Direito (ubi societas ibi jus59). Atente-se que há aí uma

primazia de ordem lógica de uma garantia sobre os princípios previstos no ordenamento,

ainda que ambos sejam de ordem fundamental.

Em princípio, o valor “vida” não é recepcionado pelo ordenamento como

uma norma-princípio, por intermédio da disposição constante do caput do art. 5º, da CF,

mas, sim, como uma garantia, de ordem fundamental. E na verdade, nem precisaria sê-lo,

por dois motivos: i) o direito à vida, como visto, é pressuposto lógico do próprio Direito,

como bem cultural que este é (obra humana, como dito na apresentação); ii) a previsão do

princípio fundamental pela dignidade da pessoa humana supre perfeitamente a necessidade

de guarida do direito fundamental à vida, sob a forma de princípio (art. 1º, III, CF). É o que

se depreende, inclusive, da leitura de recente decisão prolatada pela Ministra do Supremo

Tribunal Federal Carmén Lúcia Antunes Rocha, que deu provimento monocrático a recurso

de sua relatoria, ao fundamento da ocorrência de ofensa por parte da decisão atacada ao

direito à saúde, sendo este uma das manifestações do direito à vida, o qual, nos termos em

que expusemos acima, é amparado pelo ordenamento não só através da disposição

constante do art. 5º, caput, mas, também, pela previsão constante do art. 1º, III:

59 “Onde há sociedade, aí há direito”, de acordo com a tradução fornecida por Spalding, Tarsilo Orpheu. Pequeno dicionário jurídico de citações latinas. p. 127. Saraiva, São Paulo: 1971.

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“AI 588169/RJ - RIO DE JANEIRO Data do julgamento 26/04/07 (...) 4. O direito à vida compreende o direito à saúde, para que seja possível dar concretude ao viver digno. A Constituição da República assegura o direito à dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III) e, em sua esteira, todos os meios de acesso aos fatores e condições que permitam a sua efetivação. (...). Esse princípio constitui, no sistema constitucional vigente, um dos fundamentos mais expressivos sobre o qual se institui o Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, III). (...)” (Ministra CÁRMEN LÚCIA Relatora)

Vê-se da decisão da relatora, numa clara correlação com o tema do presente

trabalho, a decisão pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, constante do art. 1º, III,

da Constituição Federal, como sendo “um dos fundamentos mais expressivos” do Estado

Democrático de Direito.

Da análise de outra decisão da Suprema Corte, podemos perceber também a

afirmação pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana como elemento basilar do

Estado Democrático de Direito:

“HC 91427 MC/BA – BAHIA (...) A depender da situação concreta em apreço, por conseguinte, (...) a inobservância desses requisitos legais e constitucionais pode se configurar como grave atentado contra a própria idéia de dignidade humana - princípio fundamental da República Federativa do Brasil e elemento basilar de um Estado democrático de Direito (CF, art. 1o, caput e III). (...)” (RI/STF, art. 192). Brasília, 22 de maio de 2007. Ministro GILMAR MENDES Relator

Da leitura das decisões do Supremo Tribunal Federal - órgão maior da

jurisdição constitucional pátria – percebemos o tratamento normativo atribuído ao Princípio

da Dignidade da Pessoa Humana, que pela previsão do art. 1º, III, da Constituição Federal,

funciona como fundamento constitucional do valor “vida”, que, como visto, é o principal

valor tutelado pelo nosso ordenamento jurídico.

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Vale o comentário no sentido de que, em nítida ponderação de princípios

mencionada (v. item 13), decidiu o Tribunal pela prevalência do direito à vida, quando

contraposto ao Princípio da Livre Iniciativa:

“ADI 3512/ES - ESPÍRITO SANTO Relator(a): Min. EROS GRAU Julgamento: 15/02/2006 Órgão Julgador: Tribunal Pleno (...) 6. Na composição entre o princípio da livre iniciativa e o direito à vida há de ser preservado o interesse da coletividade, interesse público primário. 7. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.

Depreende-se da decisão acima transcrita que, ao analisar o caso concreto, o

Tribunal optou por fazer prevalecer a norma jurídica assecuratória do valor “vida”, em

contraposição ao Princípio da Livre Iniciativa, rechaçando, assim, pretensão que

desestimulasse a colaboração com interesses legislativos concernentes à saúde da

população. De modo similar, decidiu o Tribunal, em outra ocasião, pelo direito à saúde

como sendo decorrente do próprio direito à vida, denotando, ainda mais, a sua ascendência

sobre os demais valores do ordenamento:

“RE-AgR 393175/RS - RIO GRANDE DO SUL Relator(a): Min. CELSO DE MELLO Julgamento: 12/12/2006 Órgão Julgador: Segunda Turma (...) O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. (...)”

Como última observação relativa ao direito à vida, parece-nos procedente a

posição de José Souto Maior Borges, para quem o valor “vida” teria sido recepcionado pela

Constituição não apenas como direito fundamental (art. 5º, caput, da CF), mas, sim, como

um princípio, conforme previsão da sua parte relativa ao Meio Ambiente (art. 225, caput):

“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

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E parece ter razão o Professor pernambucano, pois, em ponderação de

princípios efetuada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, o direito a um meio

ambiente equilibrado tem prevalecido, em relação ao Princípio da Livre Iniciativa:

“STA-AgR 171 / PR – PARANÁ Relator(a): Min. ELLEN GRACIE Julgamento: 12/12/2007 Órgão Julgador: Tribunal Pleno Ementa AGRAVO REGIMENTAL. SUSPENSÃO DE TUTELA ANTECIPADA. IMPORTAÇÃO DE PNEUMÁTICOS USADOS. MANIFESTO INTERESSE PÚBLICO. GRAVE LESÃO À ORDEM E À SAÚDE PÚBLICAS. (...) 3. Ponderação entre as exigências para preservação da saúde e do meio ambiente e o livre exercício da atividade econômica (art. 170 da Constituição Federal). 4. Grave lesão à ordem pública, diante do manifesto e inafastável interesse público à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da Constituição Federal). Precedentes. (...) 6. Agravo regimental improvido.” “STA-AgR 118/RJ - RIO DE JANEIRO Relator(a): Min. ELLEN GRACIE Julgamento: 12/12/2007 Órgão Julgador: Tribunal Pleno Ementa AGRAVO REGIMENTAL. SUSPENSÃO DE TUTELA ANTECIPADA. IMPORTAÇÃO DE PNEUMÁTICOS USADOS. MANIFESTO INTERESSE PÚBLICO. GRAVE LESÃO À ORDEM E À SAÚDE PÚBLICAS. (...) 4. Ponderação entre as exigências para preservação da saúde e do meio ambiente e o livre exercício da atividade econômica (art. 170 da Constituição Federal). 5. Grave lesão à ordem pública, diante do manifesto e inafastável interesse público à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da Constituição Federal). Precedentes. (...) 7. Agravo regimental improvido.”

Retornado à questão da hierarquia entre os princípios, em relação a eventual

questionamento sobre hipóteses de antinomia normativa entre outros princípios

fundamentais e o Princípio Democrático, cumpre esclarecer que, na realidade, há uma

hierarquia imanente ao ordenamento deste princípio em relação com os demais.

Veja-se, contudo, a conclusão de que inexiste um protoprincípio que

prevaleça sobre os demais (senão o próprio Princípio Democrático, no dizer da

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Constituição mesmo, e conforme será demonstrado adiante) decorre também, da

inexistência de conceitos jurídicos absolutos. O exercício lógico-dialético acima referido e

comumente utilizado nas decisões do Supremo Tribunal Federal, prática que permeia toda a

atividade jurídica, e não somente as hipóteses de antinomia entre princípios, e é

denominada por Humberto Ávila, em citação de Rodriguez de Santiago, como “ponderação

de princípios”60.

Ao analisarmos a norma individual e concreta (item 9), afirmamos que o ato

de aplicação do Direito (do disposto em seus textos legislativos), consiste numa tentativa de

“objetivação da subjetividade” - característica inerente à natureza humana - resultante das

múltiplas possibilidades de interpretação dos textos legislativos. Essa objetivação tem seu

ápice na manifestação expressa do órgão competente, pela prevalência dos valores que

sejam convencionalmente mais relevantes em determinado espaço-tempo, e pela

desconsideração daqueles valores que sejam menos relevantes (ou até os contra-valores

mais repulsivos) àquela sociedade.

Assim, o intérprete/aplicador pode optar pela fundamentação do seu

raciocínio/decisão, com base em um ou mais valores, desde que positivados no

ordenamento (ex.: não pode o magistrado validar a cobrança de imposto sobre a

propriedade predial urbana, sobre imóvel rural, tendo em vista a ausência da previsão dessa

tributabilidade no ordenamento). Pode sim o magistrado decidir entre a aplicação da

capacidade contributiva ou da isonomia, por exemplo, em relação à viúva meeira, que tenha

como único bem de herança a casa em que mora em bairro nobre, sem contudo, dispor de

maiores recursos para arcar com o referido imposto predial que por ela seria devido sobre a

propriedade de imóvel.

Todavia, por mais que o intuito de afastar a subjetividade (via de

conseqüência, o arbítrio) seja dos mais nobres, a atividade jurídica remanesce permeada

(ainda que em menor proporção) de carga subjetiva, não somente, aquela decorrente do

60 Santiago, José M. Rodriguez de. La ponderación de bienes e interesses no derecho administrativo. Madrid, Marcial Pons: 2000. apud Ávila, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 7ª ed., p. 143. Malheiros. São Paulo: 2007.

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próprio suporte físico (textos legislativos), e suas inúmeras possibilidades interpretativas,

como também, aquela com da qual está impregnado o intérprete/aplicador.

Nesse sentido, não constitui exagero afirmar que o Direito funciona como

um instrumento mitigador da subjetividade humana na regulação das condutas (pelo seu

elemento “redutor” de complexidades – a norma jurídica – no dizer de Luhmann; e não “de

eliminação” das complexidades), de forma a afastar a imprevisibilidade, e via de

conseqüência, o arbítrio (garantia de segurança jurídica aos legiferados) e assegurar-lhes o

Bem Comum (Becker).

14. Da norma hipotética fundamental de Kelsen – análise de suas implicações no

ordenamento jurídico positivo.

Apesar do grande feito de "isolar" o Direito das demais ciências, atribuindo-

lhe, assim, cientificidade própria, a obra de Kelsen veicula alguns poucos traços que

poderiam ser taxados de metajurídicos: a necessidade de um fundamento externo ao próprio

Direito servindo como fundamento deste, como o é a norma hipotética fundamental (ponto

crucial e talvez o mais criticado da sua teoria) é um bom exemplo disso. Para alguns

críticos, a norma hipotética fundamental envolve, nela implícito, um jusnaturalismo oculto.

Além do fato de ser algo externo ao Direito, a norma hipotética fundamental

de Kelsen costuma receber outra crítica, que diz respeito à sua desnecessidade, à qual

aderimos. Explicamos.

Seria possível a Kelsen, apenas a título de exemplo, como alternativa mais

simples e adequada à sua teoria, colocar a Constituição como fundamento de validade de si

mesma, sem a necessidade de nenhum elemento externo ao próprio ordenamento, como nos

parece ser a norma hipotética fundamental. A norma fundamental não é posta, mas

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pressuposta. Ao fim, Kelsen a nomeou “fictive norm” (norma fictícia)61.

Como então descrever esse ponto terminal de escalonamento normativo?

Poder-se-ia considerar que há aí um dualismo oculto: 1º) normas que necessitam de outras,

superiores, para fundar-lhes a validade (normas infraconstitucionais); e 2º) normas que não

necessitam de outras para a sua validação (normas constitucionais).

Divergindo da posição kelseniana, que tem no ponto principal da sua Teoria

Pura do Direito a norma fundamental como fundamento de validade das constituições,

Luhmann vê a constituição como um texto autológico, que prevê a si mesmo, devendo-se

tudo isso ao fato de a própria Constituição excetuar-se das regras do lex posteriori derogat

priori; pela auto-regulação da sua modificabilidade; e ainda pelo fato de ela mesma

proclamar-se, originária da vontade de Deus ou do povo, embora haja outras regras de

exceção, como por exemplo, a lex prior derogat posteriori (“cláusulas pétreas” versus

emendas constitucionais).

A despeito da posição dos ilustres juristas, propomos solução diversa, como

se depreende do tema do presente trabalho. Entendemos, que ao invés de escolher algum

fator “estranho” ao Jurídico, como vetor influenciador do mesmo (como o é a norma

hipotética fundamental de Kelsen), mais coerente seria apontar para um elemento interno

do sistema, inclusive no intuito de afastar todas as críticas pela adoção de um fator

metajurídico.

Nesse sentido, entendemos como norma jurídica de pleno destaque no

ordenamento, que pode fazer as vezes de elemento fundamentador de todas as demais

normas jurídicas constantes do ordenamento, o Princípio Democrático, constante do art. 1°,

caput e, principalmente do seu parágrafo único, da Constituição Federal, que estabelece que

todo poder emana do povo, restando, portanto, todos os demais poderes instituídos pela

Constituição subordinados à essa norma-princípio.

61 Kelsen, Hans. Teoria geral das normas trad. da Allgemeine Theorie der Normen, Sérgio Antonio Fabris, Porto Alegre, 1986, pp. 68 e seguintes.

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15. Do "Princípio do Consentimento à Tributação".

Como adiantado na introdução do presente trabalho, a idéia de dissertar

sobre o Princípio Democrático se deve, em grande parte, às ponderações tidas em razão das

constantes menções feitas em sala de aula pelos ilustres Professores Roque Antonio

Carrazza, José Artur de Lima Gonçalves e Estevão Horvath, nas disciplinas de Direito

Tributário II e Direito Tributário Constitucional, ao chamado “Princípio do Consentimento

à Tributação”.

De início, causava-nos certa estranheza a menção à necessidade de

consentimento por parte dos legiferados, da norma que resultasse de texto que fora editado

pelo Parlamento ou emitido por qualquer outro órgão legislativo competente. Óbvio que

essas menções eram bem mais comuns nos casos de medidas provisórias, ato legislativo

cuja competência é monocrática (Presidente da República), em função não preponderante,

de acordo com o art. 62, da Constituição Federal – ato que nem sempre é editado com

estrita observância dos seus requisitos constitucionais de validade (relevância, urgência e

âmbito material passível de regulação por este instrumento legislativo).

Contudo, por vezes a crítica se referia também aos demais atos normativos,

provenientes do Congresso Nacional (Emendas Constitucionais, Leis Complementares,

Leis Ordinárias), das Assembléias Legislativas Estaduais (Leis Estaduais), das Câmaras

Municipais (Leis Municipais), dos Governadores de Estados e Distrito Federal, Prefeitos

(decretos regulamentares), e etc..

A estranheza se devia ao fato de se defender, com tanta veemência, eventual

afronta a um princípio que, dada a sua imprevisão expressa, sequer parecia presente no

ordenamento, e ainda que possível fosse defender a sua existência, essa sugeriria algo

metajurídico, ou seja, a consideração de algo externo ao ordenamento (consentimento dos

legiferados).

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Evidente que, se assim fosse, teríamos, aí sim, o caos de sensações

kantiano62, ou uma manifestação do manicômio jurídico-tributário a que se referiu Becker63,

pois, a grande maioria, desconhecedora (ou insensível) da impossibilidade de atribuição de

bem-estar comum sem uma mínima parcela de sacrifício individual (na forma, por

exemplo, de submissão a uma ordem estatal e recolhimento de uma parcela tributária para

sua sustentação), não consentiria na instituição de qualquer tributo que fosse, o que

inviabilizaria a própria existência do Estado, inexistindo, assim, espaço para o

consentimento, se entendido de tal forma.

Parece-nos mais acertada a consideração do Princípio do Consentimento, de

forma mais “comedida”. Diferentemente daqueles que acreditam que qualquer relação entre

a norma jurídica e a conduta normada implique algo extrajurídico, entendemos, como

Kelsen, pela necessidade de um mínimo de eficácia essencial às normas jurídicas. Nesse

ponto, Kelsen parece ter razão: não há norma jurídica alí onde não exista esse mínimo

eficacial, pois inexiste qualquer regulação efetiva da conduta humana.

Assim sendo, a norma jurídica só se integra com a sua aplicação ao caso em

concreto, seja pela estrita obediência à conduta prevista pela conduta normada, seja pela

concretização da hipótese prevista mediante coerção estatal.

Em relação a esse ponto da obra kelseniana, vale ressaltar um aspecto

curioso dentre as principais características imputadas ao seu autor: de forma diversa

daquilo que é comumente ensinado nos bancos acadêmicos – a sua consideração como um

teórico da validade, pelo suposto fato de ele não ter levado muito em conta a eficácia da

norma jurídica64 –, Kelsen tem como ponto de partida essencial para sua Teoria Pura do

Direito a construção, da norma jurídica de sanção (primária), pelo efetivo descumprimento

da norma jurídica de conduta (secundária), o que infirma frontalmente tais ensinamentos. É

assim Kelsen, um estudioso, tanto da validade, quanto da eficácia das normas jurídicas.

62 Kant, Emmanuel. Crítica da Razão Pura. eBookLibris. Acrópolis. São Paulo: Junho, 2001. 63 Becker. Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. Lejus. São Paulo: 2002. 64 Nesse contexto, temos por "eficácia" a adequação da conduta à hipótese prevista na norma jurídica.

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Vale salientar que, a posição relativa à norma jurídica sancionatória como

sendo primária, e a norma jurídica da previsão da conduta, como sendo secundária,

consoante exposto, foi a posteriori invertida na sua obra póstuma “Teoria Geral das

Normas”65. Porém, na análise da eficácia, sobrelevam os problemas da Sociologia Jurídica,

extradogmáticos, portanto.

Inobstante, percebe-se que a eficácia (social) da norma jurídica, como

relação de observância da conduta normada ao prescrito na norma jurídica, é ponto fulcral

da sua Teoria Pura do Direito, servindo, inclusive, de fundamento de validade do próprio

ordenamento jurídico.

Como já afirmado no tópico anterior, em relação à desnecessidade da

adoção da sua norma hipotética fundamental, afirmamos que, ao invés de mencionar

eventual afronta ao Princípio do Consentimento, ante as críticas que acompanham a sua

existência ou adoção, de maior pertinência, indicamos como fundamento das demais

normas jurídicas constantes do ordenamento o Princípio Democrático (art. 1°, parágrafo

único, da Constituição Federal), que estabelece que todo poder emana do povo, restando,

portanto, todos os demais poderes instituídos pela Constituição subordinados à essa norma-

princípio. É o que passamos a demonstrar na terceira parte do presente trabalho.

65 Kelsen, Hans. Teoria geral das normas trad. da Allgemeine Theorie der Normen, Sérgio Antonio Fabris, Porto Alegre, 1986.

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PARTE III

DO PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO COMO NORMA JURÍDICA FUNDANTE NO

ORDENAMENTO JURÍDICO E DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL

16. Do Princípio Democrático como norma jurídica fundante de toda a atividade

jurídica estatal (norma jurídica de habilitação ao poder estatal).

O principal objetivo do presente trabalho consiste na consideração do

Princípio Democrático como norma jurídica de habilitação (e fundamentação) ao exercício

do poder estatal para formulação das demais normas jurídicas constantes do ordenamento,

particularmente, aquelas relativas ao Sistema Tributário Nacional. Seus desdobramentos no

sistema são adequados a imprimir-lhe ainda maior eficácia, ao servirem de subsídio à

interpretação da norma jurídica, e em específico, da norma jurídica tributária, conforme

adiante será proposto.

A metodologia de demonstração da preponderância do referido princípio,

bem como da possibilidade de utilização dos seus desdobramentos na interpretação e

aplicação do direito tributário positivo, desenvolver-se-á pela incursão na análise da norma

jurídica instituidora do princípio, a qual, será empreendida nos três níveis recomendados

pela filosofia da linguagem: o nível semântico (relativo ao significado lingüístico do texto

legislativo), o nível sintático (concernente ao inter-relacionamento normativo) e o nível

pragmático (que examina em que termos ocorre, ou não, a observância dos preceitos pelos

destinatários normativos).

16.a.) Análise no nível semântico do ordenamento.

Ingressemos, de início, na demonstração pelo nível mais facilmente

verificável da linguagem: o nível semântico da expressão “Princípio Democrático”, pela

análise da sua manifestação lingüística, resultante dos dispositivos do Texto Constitucional

que o introduzem (mormente, o Título I, art. 1º, caput e parágrafo único).

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16.a.1.) Análise do vocábulo “Princípio”.

O vocábulo “princípio” advém do latim principium66, e possui múltiplas

acepções, se considerado de forma isolada, de acordo com o Dicionário Houaiss, disponível

na rede mundial de computadores:

“Acepções ■ substantivo masculino 1. o primeiro momento da existência (de algo), ou de uma ação ou processo; começo, início Ex.: <p. da vida na Terra> <no p. do casamento> <p. da exploração do petróleo nesse país> 2. o que serve de base a alguma coisa; causa primeira, raiz, razão 3. ditame moral; regra, lei, preceito Ex.: <foi educado sob p. rígidos> <não cede por uma questão de p.> <é um homem sem princípios> 4. dito ou provérbio que estabelece norma ou regra Ex.: faça o bem sem olhar a quem é um bom p. 5. proposição elementar e fundamental que serve de base a uma ordem de conhecimentos Ex.: princípios da física, da matemática 5.1. Rubrica: física. lei de caráter geral com papel fundamental no desenvolvimento de uma teoria e da qual outras leis podem ser derivadas 6. proposição lógica fundamental sobre a qual se apóia o raciocínio Ex.: partir de um p. falso 7. Rubrica: filosofia. fonte ou causa de uma ação 8. Rubrica: filosofia. proposição filosófica que serve de fundamento a uma dedução princípios ■ substantivo masculino plural 9. livro que contém noções básicas e elementares de alguma matéria, ciência etc.; elementos Ex.: <p. de estatística> <p. de lingüística geral> 10. instrução, educação; opiniões, convicções”

66 Etimologicamente, conforme consta do Dicionário Houaiss disponível na biblioteca do sítio Universo On-Line – UOL – http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=princ%EDpio&stype=k, o termo princípio deriva do lat. principìum,ìi 'id.'; ver prim-, princip- e 1cap-; f.hist. sXIV principio, sXV prymçipyos.

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Do Aurélio67, temos ainda as seguintes acepções, parte delas coincidentes

com a definição do Houaiss: “1. Momento ou local ou trecho em que algo tem origem;

começo (...) 2. Causa primária. 3. Elemento predominante na constituição de um corpo

orgânico (...) 5. P. ext. Base; (...) 8. Lóg. Na dedução, a proposição que lhe serve de base,

ainda que de modo provisório, e cuja verdade não é questionada.”

Do Caldas Aulete68, temos as seguintes definições, dentre outras: “(...)

origem começo (...) Causa primária (...) Preceito, regra, lei (...) regras fundamentais ou

gerais de qualquer ciência ou arte (...).”

Já Maria Helena Diniz, no seu Dicionário Jurídico69, fornece-nos acepções

especificamente jurídicas para o vocábulo, embora semelhantes àquelas atribuídas pelos

dicionários não jurídicos:

“1. Filosofia geral. a) Origem ou causa da ação (Pascal); causa primária; b) o que contém ou faz compreender as propriedades ou caracteres essenciais da coisa (Lalande); c) cada uma das proposições diretivas ou características a que se subordina o desenvolvimento de uma ciência (Leibniz, Descartes, Newton e Spencer); regras fundamentais de qualquer ciência ou arte; d) norma de ação enunciada por uma fórmula (Fouilée); e) fundamento; f) o que contém em si a razão de alguma coisa (Christian Wolff); g) proposição geral que resulta da indução da experiência para servir de premissa maior ao silogismo (Kant); h) aquilo do qual alguma coisa procede na ordem da existência ou do conhecimento; i) lei empírica, subtraída ao controle da experiência, que obedece a motivos de simples comodidade (Poincaré); característica determinante; k) agente ou força originadora ou atuante; 1) proposição inicial, obtida pelo conhecimento, da qual se deduzem outras proposições científicas. 2. Nas linguagens jurídica e comum, pode significar: a) preceito; norma de conduta; b) máxima; c) opinião; maneira de ver; d) parecer; e) código de boa conduta através do qual se dirigem as ações e a vida de uma pessoa; f) educação; g) doutrina dominante; h) alicerce; base.”

67 Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3ª ed. Revista e atualizada. Positivo. São Paulo: 2004. 68 Caldas Aulete. Dicionário Caldas Aulete. 3ª ed., vol. 4. Delta. São Paulo: 1978. 69 Diniz, Maria Helena. Dicionário Jurídico. Vol. 3, 2ª ed., p. 830. Saraiva. São Paulo: 2005.

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Além das acepções ressaltadas adiante, salientamos, de logo, dentre as

apontadas pela ilustre Professora, o item h que define o princípio como sendo aquilo do

qual alguma coisa procede na ordem da existência ou do conhecimento. Não se faz difícil

presumir, conforme será demonstrado adiante, que os princípios também podem ser

definidos como normas jurídicas originárias, vinculativas da exegese de todas as normas-

regra constantes do ordenamento.

Focalizemos, a nossa análise nas acepções apontadas pelos léxicos que

temos como “principais” para o vocábulo “princípio” (aquelas que mais interessam ao

Jurídico): “o primeiro momento da existência (de algo), ou de uma ação ou processo;

começo, início; o que serve de base a alguma coisa (parágrafo acima); causa primeira, raiz,

razão; ditame moral; regra, lei, preceito; proposição elementar e fundamental que serve de

base a uma ordem de conhecimentos; proposição lógica fundamental sobre a qual se apóia

o raciocínio.” É portanto uma visão lógica originária sobre o significado normativo dos

princípios.

Como se depreende da leitura das acepções acima transcritas, sempre que

utilizada a expressão “princípio”, estaremos diante da necessidade do emissário da

mensagem de comunicar algo inicial, ou do seu intuito de atribuir caráter primordial àquilo

que se quer comunicar. Deseja o emissário que o objeto consignado como princípio seja

encarado pelo receptor da mensagem como sendo algo dotado de valor primordial, que

deve servir de base a todo o mais que se queira comunicado.

Especificamente, no caso dos princípios jurídicos, ao assim denominá-los, o

legislador claramente manifesta o seu intuito de prevalência de tais normas sobre as demais

normas-regra, como acima explanado, seja pela sua própria natureza principial inafastável e

de maior abrangência (p. ex.: princípio da segurança jurídica, ou para mencionarmos um

princípio expresso, o princípio da isonomia), seja pela vontade política constitucionalmente

exposta de caracterizar aquela norma como um princípio (p. ex.: princípio da soberania nas

relações internas ou o princípio da livre iniciativa).

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Vale salientar que, conforme visto das acepções acima apontadas pelo

léxico, na conformidade do descrito no item 5 do presente trabalho, a denominação de

princípio ocorre tanto na linguagem-objeto do sistema de direito positivo (linguagem

objeto), como também é constante a sua ocorrência no sistema da ciência do direito

(metalinguagem), decorrendo o reconhecimento pelo intérprete de determinada norma

como sendo principial, nesse âmbito, pela adequação às notas estabelecidas pelo seu

paradigma teórico para o conceito de determinado instituto como sendo um princípio.

16.a.2.) Análise do vocábulo “democrático”.

Por sua vez, o vocábulo “democrático” deriva do substantivo “democracia”,

que resulta da conjugação de dois termos distintos: i) o prefixo demo-, que advém do grego

demos, que significa “povo”; e ii) o sufixo –cracia, derivado também do grego kratía (-

kráteia), que significa governo, poder, autoridade70. Conjugados formam, então, o termo

“democracia” que significa “governo do povo”. Da consulta ao dicionário temos a

confirmação71:

“1. governo do povo; governo em que o povo exerce a soberania; 2. sistema político cujas ações atendem aos interesses populares; 3. governo no qual o povo toma as decisões importantes a respeito das políticas públicas, não de forma ocasional ou circunstancial, mas segundo princípios permanentes de legalidade; 4. sistema político comprometido com a igualdade ou com a distribuição equitativa de poder entre todos os cidadãos; 5. governo que acata a vontade da maioria da população, embora respeitando os direitos e a livre expressão das minorias; 6. Derivação: por extensão de sentido. país em que prevalece um governo democrático Ex.: ele é cidadão de uma autêntica d. 7. Derivação: por extensão de sentido. força política comprometida com os ideais democráticos Ex.: a d. venceu as eleições naquele país 8. Derivação: sentido figurado. pensamento que preconiza a soberania popular Ex.: a d. ganhou espaço na teoria política”

Por sua vez, conceitua o Aurélio:

70 Cunha, Antonio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. 2ª ed. Nova Fronteira. Rio de Janeiro: 1986.

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“1. Governo do povo; soberania popular; (...) 2. Doutrina ou regime político baseado nos princípios da soberania popular e da distribuição eqüitativa do poder, ou seja, regime de governo que se caracteriza, em essência, pela liberdade do ato eleitoral, pela divisão dos poderes e pelo controle da autoridade, i. e., dos poderes de decisão e de execução; (...) 3. País cujo regime é democrático. 4. As classes populares; povo, proletariado. (...).”

Vale atentar para a última definição da democracia atribuída pelo Aurélio,

como sendo sinônimo do próprio povo, numa acepção claramente extradogmática.

Também do Caldas Aulete72, algumas acepções para o vocábulo

“democracia”, dentre as quais, destacamos: “(...) a influência do povo no govêrno de um

Estado. Sociedade livre em que se prepondera a influência popular (...)”.

Já Maria Helena Diniz, no seu Dicionário Jurídico, aponta como

definições73:

“Ciência Política. Forma de governo em que há participação dos cidadãos. 2. Influência popular no governo através da livre escolha de governantes pelo voto direto. 3. Doutrina democrática. 4. Povo. 5. Sistema que procura igualar as liberdades públicas e implantar o regime de representação política popular. 6. Estado político em que a soberania pertence à totalidade dos cidadãos.”.

Dessa forma, temos um sentido lingüístico decorrente da comunicação

convencional entre os usuários da língua portuguesa atribuído à expressão “Princípio

Democrático” como sendo algo decorrente da necessária prevalência (predominância) da

idéia de um sistema jurídico em que primordialmente haja um governo instituído e regido

pelo poder que é oriundo do próprio povo, sendo este detentor de amplos poderes de

direção e/ou provocação da máquina estatal. Tal definição é suficiente.

71. Definição constante do Dicionário Houaiss disponível na biblioteca do sítio Universo On-Line – UOL – http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=democracia&stype=k. 72 Caldas Aulete. Dicionário Caldas Aulete. 3ª ed., vol. 2. Delta. São Paulo: 1978.

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Analisado o Princípio Democrático no âmbito semântico do ordenamento - e

já num entrelaçamento sintático, rememorando que, de acordo com o art. 13, caput, da

Constituição, a língua portuguesa é o idioma nacional74, de modo que, a análise semântica

empreendida no âmbito da lingüística encontra pleno respaldo no direito constitucional

positivo – passemos à análise do princípio no nível sintático da linguagem objeto.

16.b.) Análise no nível sintático do ordenamento.

Para analisarmos o Princípio Democrático sob o ponto de vista da sintaxe

normativa, conforme estrutura metodológica previamente estabelecida na introdução do

presente trabalho, é necessário analisar a sua fonte normativa primária, qual seja, a

Constituição Federal.

Todavia, além do Texto Constitucional vigente, faremos, primeiramente,

breve incursão nos seus antecedentes históricos, pela análise dos demais textos

constitucionais outrora em vigor. Tudo no intuito de acompanhar a evolução da norma

jurídica relativa ao Princípio Democrático nos textos constitucionais, até a atual concepção

introduzida pela Constituição Federal de 1988, que indica sua preponderância sobre as

demais normas jurídicas no atual ordenamento, além de demonstrarmos que, a despeito de

sempre presente no sistema, pela análise dos seus desdobramentos é que perceber-se-á a

sua efetiva eficácia jurídica e social (análise sintática e aplicação pragmática).

A análise histórico-legislativa será focada, sobretudo, na existência de

previsão constitucional pela possibilidade de realização de eleições diretas para os

principais agentes políticos (formuladores das políticas tributárias), tendo em vista o fato de

o Direito Tributário positivo resultar das normas jurídicas introduzidas pelos textos

legislativos emanados, principalmente, do Poder Legislativo, embora também o sejam, de

forma cada vez mais freqüente, de agentes dos demais poderes (principalmente o Poder

Executivo, por intermédio das medidas provisórias).

73 Diniz, Maria Helena. Dicionário jurídico. 2ª ed., vol. 2. Saraiva. São Paulo: 2005. 74 CF: “Art. 13. A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil.”

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Assim, a importância da incursão histórica, ainda que efetuada de forma

superficial, reside na análise da relação normativa existente entre os mecanismos de

elegibilidade dos principais agentes políticos versus o exercício da competência tributária

exercida por esses agentes.

16.b.1.) Evolução do tratamento normativo-constitucional ao Princípio

Democrático.

Como de conhecimento notório, o país tem um histórico de restrições

normativas ao Princípio Democrático, na amplitude da abrangência com que conhecido

atualmente (exercício direto do poder ou mediante representação, igualmente direta, para a

maioria dos agentes políticos).

Em relação às constituições anteriores, o conceito de democracia foi

instituído, em 1891, quase um século após a primeira Constituição (1824), de modo que,

em relação ao período imperial, mal há que se falar em restrição ao Princípio Democrático,

mas, quase numa ausência de sua contemplação pela Constituição.

De modo diverso, em outras constituições, como as de 1891, 1934, 1937, e a

de 1967, juntamente com a Emenda Constitucional de n.º 1, de 1969, a despeito da previsão

expressa do princípio, logo nos seus primeiros artigos, na realidade, tínhamos a instituição

de regimes muito pouco democráticos, não só pelas realização de eleições de forma

indireta, como também, no tocante à matéria tributária, pela iniciativa de leis (ou mesmo

pela própria competência para legislação), que muitas vezes se dava de forma autocrática.

Façamos, então, uma breve incursão no tratamento jurídico do valor

democracia, ao longo das nossas constituições. A abordagem será empreendida levando em

conta a evolução histórico-normativa do Princípio Democrático, sempre examinando a

existência de previsão constitucional de ampla participação popular no exercício do Poder

Público ou de sua representação direta pelos principais agentes políticos de governo, além

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do respectivo sistema tributário, e a previsão de competência para iniciativa das leis

tributárias.

16.b.1.1.) Constituição Política do Império do Brazil (1824).

Inicialmente, temos na Constituição do Império de 1824, uma idéia limitada,

rudimentar de democracia, pois, a despeito dessa assegurar aos cidadãos brasileiros o

direito de intervir nos negocios da sua Provincia, e que são immediatamente relativos a

seus interesses peculiares, nos termos do seu art. 71, esse poder era exercido pelas Câmaras

Distritais e pelos “Conselhos Geraes de Província”, os quais, eram compostos por

representantes das Províncias, eleitos do mesmo modo que os Representantes da Nação (de

forma indireta):

“Art. 72. Este direito será exercitado pelas Camara dos Districtos, e pelos Conselhos, que com o titulo de - Conselho Geral da Província se devem estabelecer em cada Provincia, aonde não, estiver collocada a Capital do Imperio. Art. 73. Cada um dos Conselhos Geraes constará de vinte e um Membros nas Provincias mais populosas, como sejam Pará, Maranhão, Ceará, Pernambuco, Bahia, Minas Geraes, S. Paulo, e Rio Grande do Sul; e nas outras de treze Membros. Art. 74. A sua Eleição se fará na mesma occasião, e da mesma maneira, que se fizer a dos Representantes da Nação, e pelo tempo de cada Legislatura.”

O Texto Constitucional previa já no seu início (art. 11, do Título III - Dos

Poderes, e Representação Nacional), os entes políticos que eram tidos como representantes

da “Nação”:

“Art. 11. Os Representantes da Nação Brazileira são o Imperador, e a Assembléa Geral.”

Contudo, além do Imperador não possuir legitimidade para representação

dos populares (em termos democráticos), os Deputados e Senadores da “Assembléa Geral”,

bem como, os membros dos “Conselhos Geraes das Provincias” também eram nomeados de

forma indireta, nos termos do art. 90 do Texto Constitucional:

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“Art. 90. As nomeações dos Deputados, e Senadores para a Assembléa Geral, e dos Membros dos Conselhos Geraes das Provincias, serão feitas por Eleições indirectas, elegendo a massa dos Cidadãos activos em Assembléas Parochiaes os Eleitores de Provincia, e estes os Representantes da Nação, e Provincia.”

Assim, tínhamos eleições indiretas para deputados e senadores, além das

restrições eleitorais relativas a possibilidade exclusiva de voto para os homens

alfabetizados, com mais de 25 anos, cuja renda alcançasse determinado valor (eleições

censitárias), embora esse requisito de fruição dos direitos eleitorais não tivesse nenhuma

relação de correspondência com a capacidade contributiva do eleitor, para efeitos de

tributação.

A iniciativa das leis que dispusessem sobre impostos era privativa da

Câmara dos Deputados, nos termos do art. 36, os quais, como visto do art. 90, eram

indiretamente eleitos:

“Art. 36. É privativa da Camara dos Deputados a Iniciativa. I. Sobre Impostos.”

Contudo, era o Imperador, como Chefe do Poder Executivo, que detinha a

competência para a expedição de decretos, instruções e regulamentos necessários ao

cumprimento das leis, e decretava a aplicação das rendas públicas destinadas pela

Assembléia, nos termos do art. 102:

“Art. 102. O Imperador é o Chefe do Poder Executivo, e o exercita pelos seus Ministros de Estado. São suas principaes attribuições (...) XII. Expedir os Decretos, Instrucções, e Regulamentos adequados á boa execução das Leis. XIII. Decretar a applicação dos rendimentos destinados pela Assembléa aos varios ramos da publica Administração.”

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A Constituição Imperial possuía ainda alguns dispositivos ainda mais

característicos de um regime totalitário, como, por exemplo, os arts. 45 e 46, que

estabeleciam como condições para se tornar Senador o exercício de atividade externa que

assegurasse determinada importância em pecúnia (art. 45, IV), e ainda, a garantia do cargo

para os Príncipes da Casa Imperial (art. 46):

“Art. 45. Para ser Senador requer-se I. Que seja Cidadão Brazileiro, e que esteja no gozo dos seus Direitos Politicos. II. Que tenha de idade quarenta annos para cima. III. Que seja pessoa de saber, capacidade, e virtudes, com preferencia os que tivirem feito serviços á Patria. IV. Que tenha de rendimento annual por bens, industria, commercio, ou Empregos, a somma de oitocentos mil réis. Art. 46. Os Principes da Casa Imperial são Senadores por Direito, e terão assento no Senado, logo que chegarem á idade de vinte e cinco annos.”

Havia grande concentração de Poder nas mãos do Imperador. Este, por

intermédio dos poderes que lhe foram constitucionalmente outorgados, podia suspender

magistrados, escolher livremente seus Ministros de Estado, assim como os Senadores, e

ainda, dissolver a Câmara dos Deputados, pela livre possibilidade de convocação e

adiamento de suas sessões, conforme apontado por José Afonso da Silva75.

Vê-se, então, do texto da Constituição Imperial, que a participação popular

direta no poder, ainda que por representação (igualmente direta), era inexistente, em

decorrência dos moldes constitucionais em que fundado o regime monárquico da época.

16.b.1.2.) Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil

(1891).

Já na primeira Constituição da República, não obstante a sua proclamação

ter decorrido de verdadeiro “golpe de Estado” das Forças Armadas, que atentaram contra o

Poder Imperial mediante revolução, tínhamos nos arts. 16, 28 e 30 a adoção do regime

75 Silva, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. Malheiros, pp. 77-78. São Paulo: 1996.

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democrático, com a inovação da previsão de eleições diretas para os representantes do

parlamento:

“Art. 16 - O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República. § 1º - O Congresso Nacional compõe-se de dois ramos: a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. § 2º - A eleição para Senadores e Deputados far-se-á simultaneamente em todo o País. (...) Art 28 - A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo eleitos pelos Estados e pelo Distrito Federal, mediante o sufrágio direto, garantida a representação da minoria. (...) Art 30 - O Senado compõe-se de cidadãos elegíveis nos termos do art. 26 e maiores de 35 anos, em número de três Senadores por Estado e três pelo Distrito Federal, eleitos pelo mesmo modo por que o forem os Deputados.”

A competência tributária era dividida entre União e Estados, nos termos,

principalmente, dos arts. 7º e 9º:

“Art 7º - É da competência exclusiva da União decretar: 1º ) impostos sobre a importação de procedência estrangeira; 2º ) direitos de entrada, saída e estadia de navios, sendo livre o comércio de cabotagem às mercadorias nacionais, bem como às estrangeiras que já tenham pago impostos de importação; 3º ) taxas de selo, salvo a restrição do art. 9º, § 1º, nº I; 4º ) taxas dos correios e telégrafos federais. (...) Art 9º - É da competência exclusiva dos Estados decretar impostos: 1º ) sobre a exportação de mercadorias de sua própria produção; 2º ) sobre Imóveis rurais e urbanos; 3º ) sobre transmissão de propriedade; 4º ) sobre indústrias e profissões. §1º - Também compete exclusivamente aos Estados decretar: 1º ) taxas de selos quanto aos atos emanados de seus respectivos Governos e negócios de sua economia; 2º ) contribuições concernentes aos seus telégrafos e correios.”

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A iniciativa das leis de impostos era exclusiva da Câmara dos Deputados:

“Art. 29 - Compete à Câmara a iniciativa do adiamento da sessão legislativa e de todas as leis de impostos, das leis de fixação das forças de terra e mar, da discussão dos projetos oferecidos pelo Poder Executivo e a declaração da procedência, ou improcedência da acusação contra o Presidente da República, nos termos do art. 53, e contra os Ministros de Estado nos crimes conexos com os do Presidente da República.”

Também para a Presidência e Vice-Presidência da República havia previsão

de eleições diretas:

“Art 47 - O Presidente e o Vice-Presidente da República serão eleitos por sufrágio direto da Nação e maioria absoluta de votos.”

Em relação às eleições estaduais e municipais, pela adoção de um

federalismo com ampla descentralização, os próprios Estados poderiam decidir como

seriam suas eleições, na conformidade de cada Constituição, bem como, se seus

representantes seriam eleitos de forma direta ou indireta, nos termos do art. 63:

“Art 63 - Cada Estado reger-se-á pela Constituição e pelas leis que adotar respeitados os princípios constitucionais da União.”

José Afonso da Silva, citando Amaro Cavalcanti, descrevera a Constituição

Republicana como resultante do texto da Constituição norte-americana completado com

algumas disposições das Constituições suíça e argentina76, complementando o raciocínio

alheio com a sua opinião: “Faltara-lhe, porém, vinculação com a realidade do país. Por

isso, não teve eficácia social, não regeu os fatos que previra, não fora cumprida”77.

Dessa forma, diferentemente da Constituição Imperial, a primeira

Constituição republicana adotou alguns dos princípios básicos do regime democrático

como modernamente conhecido, pela incorporação ao seu texto da previsão de eleições

76 Cavalcanti, Amaro. Anais da constituinte, tomo I, p. 160 apud Silva, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. Malheiros, p. 80. São Paulo: 1996. 77 Silva, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. Malheiros, p. 80. São Paulo: 1996.

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diretas para os principais agentes políticos, no âmbito federal, ressalvada a previsão de

regulamentação própria do sistema eletivo local pelos Estados federados, como resultado

da tendência descentralizadora tão fortalecida no período pós-Império, embora não tenha

tido aceitação (eficácia social), conforme acima indicado.

16.b.1.3.) Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil

(1934).

A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934,

prosseguiu na outorga da representação popular por eleições diretas, também, a despeito de

se tratar de Constituição resultante de golpe institucional, dispunha sobre o Princípio

Democrático, desde o seu preâmbulo, que enunciava solenemente:

“Nós, os representantes do povo brasileiro, pondo a nossa confiança em Deus, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para organizar um regime democrático, que assegure à Nação a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e econômico, decretamos e promulgamos a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL.”

Da mesma forma, dispôs também no seu art. 1º que mantinha como forma

de Governo a República federativa, sob o regime representativo:

“A Nação brasileira, constituída pela união perpétua e indissolúvel dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios em Estados Unidos do Brasil, mantém como forma de Governo, sob o regime representativo, a República federativa proclamada em 15 de novembro de 1889.”

Contudo, a inovação veio no art. 2º, que passou a dispor sobre o Princípio

Democrático, na acepção que conhecemos atualmente, em termos mais próximos aos da

Constituição Federal de 1988, excetuada a possibilidade de participação popular direta e de

representação igualmente direta:

“Art 2º - Todos os poderes emanam do povo e em nome dele são exercidos”.

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Como se vê da leitura do dispositivo acima transcrito, já no texto

constitucional de 1934, a definição constitucional do Princípio Democrático consistia no

reconhecimento jurídico de que todos os poderes emanavam do povo, muito embora a

exceção feita no parágrafo precedente comece a se justificar pela continuação dos seus

dispositivos: parte dos membros da Câmara dos Deputados (bem como o Presidente da

República - art. 52, §1º) seriam eleitos mediante sufrágio universal, enquanto outra parte

dos deputados era eleita de forma indireta, conforme disposto nos arts. 22, 23:

“Art 22 - O Poder Legislativo é exercido pela Câmara dos Deputados com a colaboração do Senado Federal. (...) Art 23 - A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos mediante sistema proporcional e sufrágio universal, igual e direto, e de representantes eleitos pelas organizações profissionais na forma que a lei indicar. (...) Art 52 - O período presidencial durará um quadriênio, não podendo o Presidente da República ser reeleito senão quatro anos depois de cessada a sua função, qualquer que tenha sido a duração desta. § 1º - A eleição presidencial far-se-á em todo o território da República, por sufrágio universal, direto, secreto e maioria de votos, cento e vinte dias antes do término do quadriênio, ou sessenta dias depois de aberta a vaga, se esta ocorrer dentro dos dois primeiros anos.”

Para os senadores, que exerciam em colaboração à Câmara dos Deputados o

Poder Legislativo, também havia previsão pela realização de eleições diretas:

“Art 89 - O Senado Federal compor-se-á de dois representantes de cada Estado e o do Distrito Federal, eleitos mediante sufrágio universal, igual e direto por oito anos, dentre brasileiros natos, alistados eleitores e maiores de 35 anos.”

Como visto, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de

1934, instituiu sistemática de participação popular parcial no Poder, mediante

representação por eleições parcialmente diretas de alguns dos agentes políticos (no caso,

dos deputados) e direta, no caso dos senadores.

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A iniciativa das leis fiscais era, em princípio, compartilhada entre o

Presidente da República e a Câmara dos Deputados (art. 41, caput):

“Art 41 - A iniciativa dos projetos de lei, guardado o disposto nos parágrafo deste artigo, cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, ao Plenário do Senado Federal e ao Presidente da República; nos casos em que o Senado colabora com a Câmara, também a qualquer dos seus membros ou Comissões. § 1º - Compete exclusivamente à Câmara dos Deputados e ao Presidente da República a iniciativa das leis de fixação das forças armadas e, em geral, de todas as leis sobre matéria fiscal e financeira.”

Contudo o chefe do Executivo era competente para promulgar e publicar as

leis provenientes da Câmara dos Deputados (art. 40, parágrafo único):

“Art 40 - É da competência exclusiva do Poder Legislativo: (...) Parágrafo único - As leis, decretos e resoluções da competência exclusiva do Poder Legislativo serão promulgados e mandados publicar pelo Presidente da Câmara dos Deputados.”

Em relação às competências tributárias, no dizer de José Afonso da Silva, a

Constituição de 1934 “discriminou, com mais rigor, as rendas tributárias entre União,

Estados e Municípios, outorgando a estes base econômica em que se assentasse a

autonomia que lhes assegurava”78. Essa opinião se confirma pela análise dos arts. 6º, 8º, 10,

VII e 13:

“Art. 6º - Compete, também, privativamente à União: I - decretar impostos: a) sobre a importação de mercadorias de procedência estrangeira; b) de consumo de quaisquer mercadorias, exceto os combustíveis de motor de explosão; c) de renda e proventos de qualquer natureza, excetuada a renda cedular de imóveis; d) de transferência de fundos para o exterior; e) sobre atos emanados do seu Governo, negócios da sua economia e instrumentos de contratos ou atos regulados por lei federal; f) nos Territórios, ainda, os que a Constituição atribui aos Estados;

78 Op. cit., p. 83.

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II - cobrar taxas telegráficas, postais e de outros serviços federais; de entrada, saída e estadia de navios e aeronaves, sendo livre o comércio de cabotagem às mercadorias nacionais, e às estrangeiras que já tenham pago imposto de importação. (...) Art 8º - Também compete privativamente aos Estados: I - decretar impostos sobre: a) propriedade territorial, exceto a urbana; b) transmissão de propriedade causa mortis ; c) transmissão de propriedade imobiliária inter vivos , inclusive a sua incorporação ao capital da sociedade; d) consumo de combustíveis de motor de explosão; e) vendas e consignações efetuadas por comerciantes e produtores, inclusive os industriais, ficando isenta a primeira operação do pequeno produtor, como tal definido na lei estadual; f) exportação das mercadorias de sua produção até o máximo de dez por cento ad valorem , vedados quaisquer adicionais; g) indústrias e profissões; h) atos emanados do seu governo e negócios da sua economia ou regulados por lei estadual; II - cobrar taxas de serviços estaduais. (...) Art 10 - Compete concorrentemente à União e aos Estados: (...) VII - criar outros impostos, além dos que lhes são atribuídos privativamente.”

O Município foi dotado de competência tributária, passando a ter autonomia

legislativa para eleger seu Prefeito (guardados aqueles que fossem dotados de estâncias

hidrominerais), ainda que de forma indireta, e decretar seus impostos e taxas:

“Art 13 - Os Municípios serão organizados de forma que lhes fique assegurada a autonomia em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse; e especialmente: I - a eletividade do Prefeito e dos Vereadores da Câmara Municipal, podendo aquele ser eleito por esta; II - a decretação dos seus impostos e taxas, a arrecadação e aplicação das suas rendas; (...) § 1º - O Prefeito poderá ser de nomeação do Governo do Estado no Município da Capital e nas estâncias hidrominerais. § 2º - Além daqueles de que participam, ex vi dos arts. 8º, § 2º, e 10, parágrafo único, e dos que lhes forem transferidos pelo Estado, pertencem aos Municípios:

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I - o imposto de licenças; II - os impostos predial e territorial urbanos, cobrado o primeiro sob a forma de décima ou de cédula de renda; III - o imposto sobre diversões públicas; IV - o imposto cedular sobre a renda de imóveis rurais; V - as taxas sobre serviços municipais.”

Ocorreu uma grande ampliação dos direitos eleitorais, com a criação da

Justiça Eleitoral e a previsão de voto feminino, nos termos dos arts. 63, d, 82, e 108 e 109,

da Constituição:

“Art 63 - São órgãos do Poder Judiciário: (...) d) os Juízes e Tribunais eleitorais. (...) Art 82 - A Justiça Eleitoral terá por órgãos: o Tribunal Superior de Justiça Eleitoral, na Capital da República; um Tribunal Regional na Capital de cada Estado, na do Território do Acre e no Distrito Federal; e Juízes singulares nas sedes e com as atribuições que a lei designar, além das Juntas especiais admitidas no art. 83, § 3º. (...) Art 108 - São eleitores os brasileiros de um e de outro sexo, maiores de 18 anos, que se alistarem na forma da lei. (...) Art 109 - O alistamento e o voto são obrigatórios para os homens e para as mulheres, quando estas exerçam função pública remunerada, sob as sanções e salvas as exceções que a lei determinar.”

A despeito da aplicação do Direito Eleitoral, houve uma restrição do regime

representativo direto previsto pela Constituição da República, pois a Câmara dos

Deputados seria agora eleita de forma indireta, em representação das organizações

profissionais, e na forma em que a lei indicasse, além do retorno ao esquema de poder

centralizado.

16.b.1.4.) Constituição dos Estados Unidos do Brasil (1937).

A Carta de 1937 constitui um “capítulo à parte” na história constitucional do

Princípio Democrático, tendo em vista tratar-se de um dos momentos em que sua

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abrangência foi em menor grau contemplada pelo ordenamento, diante do momento

revolucionário pelo qual passava a Nação.

Muito em parte, porque a Carta de 1937 foi decretada pelo então Presidente

da República, Getúlio Vargas (e não promulgada por uma Assembléia Constituinte), que de

acordo com alguns dos seus considerandos, já adiantava o regime normativo:

“(...) ATENDENDO às legitimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de desordem, resultantes da crescente agravação dos dissídios partidários, que, uma, notória propaganda demagógica procura desnaturar em luta de classes, e da extremação, de conflitos ideológicos, tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, resolver-se em termos de violência, colocando a Nação sob a funesta iminência da guerra civil; ATENDENDO ao estado de apreensão criado no País pela infiltração comunista, que se torna dia a dia mais extensa e mais profunda, exigindo remédios, de caráter radical e permanente.”

Surpreendentemente, em seu art. 1º, a Carta de 1937 dispôs em relação ao

Princípio Democrático quase que em repetição ao Texto anterior, estabelecendo que todo o

poder emana do povo:

“Art 1º - O Brasil é uma República. O poder político emana do povo e é exercido em nome dele e no interesse do seu bem-estar, da sua honra, da sua independência e da sua prosperidade.”

Contudo, na Carta de 1937, eram facilmente perceptíveis as restrições ao

Princípio Democrático e à representação direta, como constava, por exemplo, da criação da

figura do decreto-lei, para instrumentalização dos desígnios exclusivos do Chefe do

Executivo, que por seu intermédio exercia poderes quase que ilimitados, na forma dos arts.

13 e 14, com peculiares efeitos sobre questões tributárias (art. 13, d):

“Art 13 O Presidente da República, nos períodos de recesso do Parlamento ou de dissolução da Câmara dos Deputados, poderá, se o exigirem as necessidades do Estado, expedir decretos-leis sobre as matérias de competência legislativa da União, excetuadas as seguintes: a) modificações à Constituição;

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b) legislação eleitoral; c) orçamento; d) impostos; e) instituição de monopólios; f) moeda; g) empréstimos públicos; h) alienação e oneração de bens imóveis da União. Parágrafo único - Os decretos-leis para serem expedidos dependem de parecer do Conselho da Economia Nacional, nas matérias da sua competência consultiva.”

Embora os vereadores pudessem ser eleitos pelo voto direto (art. 26, a), os

prefeitos eram nomeados pelos Governadores dos Estados, na forma do art. 27:

“Art 26 - Os Municípios serão organizados de forma a ser-lhes assegurada autonomia em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse, e, especialmente: a) à escolha dos Vereadores pelo sufrágio direto dos munícipes alistados eleitores na forma da lei; (...) Art 27 - O Prefeito será de livre nomeação do Governador do Estado.”

Por sua vez, em relação aos Governadores Estaduais, somente

permaneceram no cargo aqueles cujo mandato foi “confirmado” pela Presidência da

República, nos termos do art. 176, caput, intervindo a Presidência no Estado do governante

cujo mandato não houvesse sido confirmado, nos termos do parágrafo único do mesmo

dispositivo:

“Art 176 - O mandato dos atuais Governadores dos Estados, uma vez confirmado pelo Presidente da República dentro de trinta dias da data desta Constituição, se entende prorrogado para o primeiro período de governo a ser fixado nas Constituições estaduais. Esse período se contará da data desta Constituição, não podendo em caso algum exceder o aqui fixado ao Presidente da República. Parágrafo único - O Presidente da República, decretará a intervenção nos Estados cujos Governadores não tiverem o seu mandato confirmado. A intervenção durará até a posse dos Governadores eleitos, que terminarão o primeiro período de governo, fixado nas Constituições estaduais.”

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O Poder Legislativo era composto não só por parlamentares, mas por um

Conselho da Economia Nacional e pelo próprio Presidente da República, conforme

dispunha o art. 38:

“Art. 38 - O Poder Legislativo é exercido pelo Parlamento Nacional com a colaboração do Conselho da Economia Nacional e do Presidente da República, daquele mediante parecer nas matérias da sua competência consultiva e deste pela iniciativa e sanção dos projetos de lei e promulgação dos decretos-leis autorizados nesta Constituição. § 1º - O Parlamento nacional compõe-se de duas Câmaras: a Câmara dos Deputados e o Conselho Federal.”

Essa situação afrontava claramente o Princípio da Tripartição de Poderes (e

o Princípio Democrático), como atualmente disposto, pois foi incluído órgão diverso do

Parlamento, nas funções legislativas, com pouca (ou nenhuma) legitimação para o exercício

do poder de editar leis, em nome do povo.

As eleições para a Câmara Federal eram indiretas, nos termos do art. 46,

sendo eleitores os vereadores municipais e dez cidadãos por cada Município, estes sim,

eleitos de forma direta, nos termos do art. 47:

“Art 46 - A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos mediante sufrágio indireto.” Art 47 - São eleitores os Vereadores às Câmaras Municipais e, em cada Município, dez cidadãos eleitos por sufrágio direto no mesmo ato da eleição da Câmara Municipal.”

E da mesma forma indireta eram designados os representantes do Conselho

Federal, órgão de representação dos Estados, equivalente ao atual Senado Federal:

“Art 50 - O Conselho Federal compõe-se de representantes dos Estados e dez membros nomeados pelo Presidente da República. A duração do mandato é de seis anos. Parágrafo único - Cada Estado, pela sua Assembléia Legislativa, elegisrá um representante. O Governador do Estado terá o direito de vetar o nome escolhido pela Assembléia; em caso de veto, o nome vetado só se terá por

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escolhido definitivamente se confirmada a eleição por dois terços de votos da totalidade dos membros da Assembléia.”

Vê-se que metade dos representantes do Conselho Federal eram eleitos

indiretamente pelas Assembléias Legislativas Estaduais e a outra metade era composta por

membros nomeados pela Presidência da República. Vale salientar que esse Conselho era

presidido por Ministro de Estado nomeado pelo Presidente da República, conforme art. 56:

“Art 56 - O Conselho Federal será presidido por um Ministro de Estado, indicado pelo Presidente da República.”

Além dos parlamentares e do próprio Presidente da República, o Poder

Legislativo era exercido com a “colaboração” do Conselho da Economia Nacional,

composto por cinco Seções, representativas de vários ramos da produção nacional:

“Art 57 - O Conselho da Economia Nacional compõe-se de representantes dos vários ramos da produção nacional designados, dentre pessoas qualificadas pela sua competência especial, pelas associações profissionais ou sindicatos reconhecidos em lei, garantida a igualdade de representação entre empregadores e empregados. Parágrafo único - O Conselho da Economia Nacional se dividirá em cinco Seções: a) Seção da Indústria e do Artesanato; b) Seção de Agricultura; c) Seção do Comércio; d) Seção dos Transportes; e) Seção do Crédito.”

Deve-se ressaltar que o Conselho da Economia Nacional também era

presidido por Ministro de Estado indicado pelo Presidente da República, nos termos do art.

59, além de até 3 (três) membros para cada uma das Seções:

“Art 59 - A Presidência do Conselho da Economia Nacional caberá a um Ministro de Estado, designado pelo Presidente da República. § 1º - Cabe, igualmente, ao Presidente da República designar, dentre pessoas qualificadas pela sua competência especial, até três membros para cada uma das Seções do Conselho da Economia Nacional.”

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Saliente-se, também, que o processo legislativo sobre matéria tributária era

da competência do Governo central, de acordo com o art. 64, caput:

“Art 64 - A iniciativa dos projetos de lei cabe, em princípio, ao Governo. Em todo caso, não serão admitidos como objeto de deliberação projetos ou emendas de iniciativa de qualquer das Câmaras, desde que versem sobre matéria tributária ou que de uns ou de outras resulte aumento de despesa.”

Ainda que houvesse previsão pela mitigação da iniciativa privativa da

Presidência (art. 64, §1º), o projeto apresentado pelos parlamentares tinha imediatamente

suspenso o seu trâmite, caso o Executivo manifestasse interesse de apresentar projeto

substitutivo sobre a mesma matéria, nos termos do art. 64, §2º:

“§ 2º - Qualquer projeto iniciado em uma das Câmaras terá suspenso o seu andamento, desde que o Governo comunique o seu propósito de apresentar projeto que regule o mesmo assunto. Se dentro de trinta dias não chegar à Câmara a que for feita essa comunicação, o projeto do Governo, voltará a constituir objeto de deliberação o iniciado no Parlamento.”

A competência tributária exclusiva do poder central (Poder Executivo - art.

20) era também mitigada nas hipóteses em que recaía sobre os demais entes federativos,

conforme disciplinada nos arts. 23, 26, b e 28:

“Art 20 - É da competência privativa da União: I - decretar impostos: a) sobre a importação de mercadorias de procedência estrangeira; b) de consume de quaisquer mercadorias; c) de renda e proventos de qualquer natureza; d) de transferência de fundos para o exterior; e) sobre atos emanados do seu governo, negócios da sua economia e instrumentos ou contratos regulados por lei federal; f) nos Territórios, os que a Constituição atribui aos Estados; II - cobrar taxas telegráficas, postais e de outros serviços federais; de entrada, saída e estadia de navios e aeronaves, sendo livre o comércio de cabotagem às mercadorias nacionais e às estrangeiras que já tenham pago imposto de importação. (...) Art 23 - É da competência exclusiva dos Estados: I - a decretação de impostos sobre:

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a) a propriedade territorial, exceto a urbana; b) transmissão de propriedade causa mortis ; c) transmissão da propriedade imóvel inter vivos, inclusive a sua incorporação ao capital de sociedade; d) vendas e consignações efetuadas por comerciantes e produtores, isenta a primeira operação do pequeno produtor, como tal definido em lei estadual; e) exportação de mercadorias de sua produção até o máximo de dez por cento ad valorem , vedados quaisquer adicionais; f) indústrias e profissões; g) atos emanados de seu governo, e negócios da sua economia, ou regulados por lei estadual; II - cobrar taxas de serviços estaduais. (...) Art 26 - Os Municípios serão organizados de forma a ser-lhes assegurada autonomia em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse, e, especialmente: (...) b) a decretação dos impostos e taxas atribuídos à sua competência por esta Constituição e pelas Constituições e leis dos Estados; (...) Art 28 - Além dos atribuídos a eles pelo art. 23, § 2, desta Constituição e dos que lhes forem transferidos Pelo Estado, pertencem aos Municípios: I - o imposto de licença; II - o imposto predial e o territorial urbano; III - os impostos sobre diversões públicas; IV - as taxas sobre serviços municipais.”

Por fim, todos os projetos de lei que dissessem respeito à economia nacional

eram submetidos, nos termos do art. 65, à apreciação do Conselho da Economia Nacional,

órgão que, como visto, era fortemente influenciado pela Presidência, que nomeava boa

parte dos membros componentes de suas Seções:

“Art 65 - Todos os projetos de lei que interessem à economia nacional em qualquer dos seus ramos, antes de sujeitos à deliberação do Parlamento, serão remetidos à consulta do Conselho da Economia Nacional.”

Não bastassem as arbitrárias previsões constitucionais outorgadas pela

Carta, os parlamentares poderiam perder o mandato, caso verificadas algumas das hipóteses

previstas no parágrafo único do art. 43:

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“Art. 43 - Só perante a sua respectiva Câmara responderão os membros do Parlamento nacional pelas opiniões e votos que, emitirem no exercício de suas funções; não estarão, porém, isentos da responsabilidade civil e criminal por difamação, calúnia, injúria, ultraje à moral pública ou provocação pública ao crime. Parágrafo único - Em caso de manifestação contrária à existência ou independência da Nação ou incitamento à subversão violenta da ordem política ou social, pode qualquer das Câmaras, por maioria de votos, declarar vago o lugar do Deputado ou membro do Conselho Federal, autor da manifestação ou incitamento.”

Os mandatos parlamentares declarados vagos eram preenchidos por eleição

(indireta, como visto acima), ou nomeação:

“§ 3º - As vagas que ocorrerem serão preenchidas por eleição suplementar, se se tratar da Câmara dos Deputados, e por eleição ou nomeação, conforme o caso, em se tratando do Conselho Federal.”

Analisando a Constituição de 1937 alertou José Afonso da Silva para a

centralização de poder por ela instituída79:

“Houve ditadura pura e simples, como todo o poder executivo nas mãos do Presidente da República, que legislava por via de decretos-leis que ele próprio depois aplicava, como órgão do executivo.”

Como se vê da leitura dos seus dispositivos e dos comentários doutrinários,

a Carta de 1937 sinalizou verdadeiro “momento de crise” na evolução normativo-

constitucional do Princípio Democrático, pela instalação do chamado “Estado Novo”, que

caracterizou, como visto, um incisivo golpe nas instituições democráticas, que vinham

sendo gradativamente fortalecidas pelas constituições anteriores (1891 e 1934).

16.b.1.5.) Constituição dos Estados Unidos do Brasil (1946).

A Constituição de 1946 restabeleceu parte da abrangência do Princípio

Democrático no ordenamento jurídico. Por seu intermédio, no que toca ao Direito

79 Op. cit., p. 84.

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Tributário, instituiu-se no ordenamento, por exemplo, a progressividade na tributação, com

a fixação de alíquotas maiores para aqueles que detinham mais bens e receitas.

No seu preâmbulo, como nas outras Constituições do período pós-Império,

já constava menção ao Princípio Democrático, tanto pela representação do povo pelos

constituintes, quanto pelo fundamento da Constituinte como sendo a organização de um

regime democrático:

“Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos, sob a proteção de Deus, em Assembléia Constituinte para organizar um regime democrático, decretamos e promulgamos a seguinte CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL”

Da mesma forma, dispunha em seu art. 1º, a título de disposições

preliminares sobre a origem de todo poder como sendo emanada do povo:

“Art 1º - Os Estados Unidos do Brasil mantêm, sob o regime representativo, a Federação e a República. Todo poder emana do povo e em seu nome será exercido.”

Contudo, de modo diverso do que dispunha a Carta de 1937, a Constituição

de 1946 previa eleições segundo o sistema de representação proporcional para os

Deputados e segundo o princípio majoritário para os Senadores, nos termos dos seus arts.

37, 38, 56 e 60:

“Art 37 - O Poder Legislativo é exercício pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Art 38 - A eleição para Deputados e Senadores far-se-á simultaneamente em todo o País. Art 56 - A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos, segundo o sistema de representação proporcional, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Territórios. Art 60 - O Senado Federal, compõe-se de representantes dos Estados e do Distrito Federal, eleitos segundo o princípio majoritário.”

Por sufrágio direto seriam eleitos o Presidente e o Vice-Presidente da

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República (art. 81) e Governadores Estaduais (art. 11 do Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias):

“Art. 81 - O Presidente e o Vice-Presidente da República serão eleitos simultaneamente, em todo o País, cento e vinte dias antes do termo do período presidencial.” “Art. 11 - No primeiro domingo após cento e vinte dias contados da promulgação deste Ato, proceder-se-á, em cada Estado, às eleições de Governador e de Deputados às Assembléias Legislativas, as quais terão inicialmente função constituinte.”

As eleições, contudo, permaneceram indiretas para os Prefeitos de Capitais;

dos Municípios que possuíssem estâncias hidrominerais naturais, quando beneficiadas pela

União; ou ainda, os Municípios que, por lei, fossem tidos como de excepcional importância

para a segurança nacional:

“Art 28 - A autonomia dos Municípios será assegurada: I - pela eleição do Prefeito e dos Vereadores; (...) § 1º - Poderão ser nomeados pelos Governadores dos Estados ou dos Territórios os Prefeitos das Capitais, bem como os dos Municípios onde houver estâncias hidrominerais naturais, quando beneficiadas pelo Estado ou pela União. § 2º - Serão nomeados pelos Governadores dos Estados ou dos Territórios os Prefeitos dos Municípios que a lei federal, mediante parecer do Conselho de Segurança Nacional, declarar bases ou portos militares de excepcional importância para a defesa externa do País.”

A iniciativa dos projetos de lei, particularmente os relativos à matéria

financeira, passou a ser exclusiva do Presidente da República e de qualquer membro de

qualquer uma das duas Casas Legislativas, nos termos do seu art. 67:

“Art 67 - A iniciativa das leis, ressalvados os casos de competência exclusiva, cabe ao Presidente da República e a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados e do Senado Federal § 1º - Cabe à Câmara dos Deputados e ao Presidente da República a iniciativa da lei de fixação das forças armadas e a de todas as leis sobre matéria financeira. (...)”

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As leis tributárias federais eram da competência do Congresso Nacional,

com a sanção do Presidente da República, nos termos do art. 65, II:

“Art 65 - Compete ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República: (...) II - votar os tributos próprios da União e regular a, arrecadação e a distribuição das suas rendas.”

A competência tributária dos entes constitucionais foi também bastante

discriminada entre a União (arts. 15 e 16), Estados (art. 19) e Municípios (arts. 28 e 29),

além da competência geral (art. 30) de modo similar à Constituição anterior, de 1937:

“Art 15 - Compete à União decretar impostos sobre: I - importação de mercadorias de procedência estrangeira; II - consumo de mercadorias; III - produção, comércio, distribuição e consumo, e bem assim importação e exportação de lubrificantes e de combustíveis líquidos ou gasosos de qualquer origem ou natureza, estendendo-se esse regime, no que for aplicável, aos minerais do País e à energia elétrica; IV - renda e proventos de qualquer natureza; V - transferência de fundos para o exterior; VI - negócios de sua economia, atos e instrumentos regulados por lei federal. (...) Art 16 - Compete ainda à União decretar os impostos previstos no art. 19, que devam ser cobrados pelos Territórios. (...) Art 19 - Compete aos Estados decretar impostos sobre: I - propriedade territorial, exceto a urbana; II - transmissão de propriedade causa mortis ; III - transmissão de propriedade imobiliária inter vivos e sua incorporação ao capital de sociedades; IV - vendas e consignações efetuadas por comerciantes e produtores, inclusive industriais, isenta, porém, a primeira operação do pequeno produtor, conforme o definir a lei estadual; V - exportação de mercadorias de sua produção para o estrangeiro, até o máximo de cinco por cento ad valorem , vedados quaisquer adicionais; VI - os atos regulados por lei estadual, os do serviço de sua Justiça e os negócios de sua economia. (...)

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Art 28 - A autonomia dos Municípios será assegurada: (...) II - pela administração própria, no que concerne ao seu peculiar interesse e, especialmente, a) à decretação e arrecadação dos tributos de sua competência e à aplicação das suas rendas; Art 29 - Além da renda que lhes é atribuída por força dos §§ 2.O e 4.11 do art. 15, e dos impostos que, no todo ou em parte, lhes forem transferidos pelo Estado, pertencem aos Municípios os impostos: I - predial e territorial, urbano; II - de licença; III - de indústrias e profissões; IV - sobre diversões públicas; V - sobre atos de sua economia ou assuntos de sua competência. Art 30 - Compete à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios cobrar: I - contribuição de melhoria, quando se verificar valorização do imóvel, em conseqüência de obras públicas; II - taxas; III - quaisquer outras rendas que possam provir do exercício de suas atribuições e da utilização de seus bens e serviços. Parágrafo único - A contribuição de melhoria não poderá ser exigida em limites superiores à despesa realizada, nem ao acréscimo de valor que da obra decorrer para o imóvel beneficiado.”

Ao descrever a Constituição de 1946, José Afonso da Silva, apesar de tecer-

lhe críticas tópicas, elogia o processo de democratização que foi por ela instaurado:

“Voltou-se, assim, às fontes formais do passado, que nem sempre estiveram conforme com a história real, o que constituiu o maior erro daquela Carta Magna, que nasceu de costas para o futuro, fitando saudosamente regimes anteriores, que provaram mal. Talvez isso explique o fato de não ter conseguido realizar-se plenamente. Mas, assim mesmo, não deixou de cumprir sua tarefa de redemocratização, propiciando condições para o desenvolvimento do país durante os vinte anos que o regeu80.”

Como se vê, com a Constituição de 1946, restaurou-se a importância do

Poder Legislativo como sendo um poder bicameral, composto apenas pela Câmara dos

Deputados e Senado Federal, os quais, por sua vez, eram compostos por representantes

eleitos pelo povo, nos termos dos dispositivos acima elencados, o que ocorreu não só pela

80 Op. cit., p. 86.

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elegibilidade direta dos seus membros, mas, também, pela legitimação do processo

legislativo, que não mais era de iniciativa preponderante do Presidente da República, mas,

sim, e em muito maior proporção, de qualquer representante do Poder Legislativo.

16.b.1.6.) Atos Institucionais do Regime Militar81 e a Constituição da

República Federativa do Brasil (1967).

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1967, como, também,

de notório conhecimento, foi promulgada durante o regime militar, instaurado em 1964,

com a deposição do então Presidente João Goulart pelos comandantes das Forças Armadas,

que designaram o Marechal Castello Branco como primeiro governante do regime, cuja

gestão foi inicialmente marcada pela decretação dos chamados Atos Institucionais, que

caracterizam retrocesso na evolução normativo-constitucional do Princípio Democrático.

O Ato Institucional n.º 1, apesar de inicialmente ter mantido válida a

Constituição de 1946, com o funcionamento do Congresso Nacional, introduziu uma série

de medidas restritivas dos direitos políticos, como a realização de eleições indiretas e a

outorga de poderes quase que ilimitados para o Executivo, como, por exemplo, a iniciativa

exclusiva de projetos que criassem ou aumentassem a despesa pública.

Além da imposição de eleições indiretas, o Ato Institucional n.º 1 suspendeu

as imunidades dos deputados e senadores e outorgou poderes ao Comando Maior para

cassação e suspensão de mandatos políticos, em qualquer nível de governo. Foram

suspensas as garantias asseguradas aos juízes e servidores públicos. Tais medidas

resultaram no afastamento de vários juízes e parlamentares, sendo a maioria de oposição ao

regime. Governadores de alguns Estados foram também depostos (Pernambuco, Goiás e

Sergipe).

Em virtude das expressivas vitórias obtidas pela oposição nas eleições

81 Análise histórica levantada com base nas informações constantes do especial eleições 2002 do site http://www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2002/eleicoes/historia-1964.shtml

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estaduais de 1965, o Comando Maior decidiu adotar novas medidas restritivas, o que foi

instrumentalizado pela edição do Ato Institucional n.º 2, de 17 de outubro de 1965. Por

intermédio deste Ato extinguiu-se os partidos políticos criados durante o Estado Novo, e

estabeleceu-se que a eleição para Presidente e Vice-Presidente da República seria decidida

pela maioria absoluta do Congresso, em sessão pública e votação nominal, com o

desiderato de afastar o risco de repetição das derrotas decorrentes das eleições estaduais.

O intuito de afastar o risco de novas derrotas eleitorais ocasionou a edição

de novo Ato Institucional, de n.º 3, que previa eleições indiretas dos governadores dos

Estados, os quais seriam eleitos pelas respectivas Assembléias Estaduais, além da

conferência de amplos poderes ao Presidente da República, que passou a legislar por

intermédio de decretos-leis.

O Congresso havia sido fechado por um mês em outubro de 1966, em

seqüência às inúmeras cassações de mandato dos parlamentares. Todavia, com a edição do

Ato Institucional n.º 4, o Congresso Nacional foi novamente convocado para aprovar a

nova Constituição de 1967, por intermédio da qual foi mantida a supremacia do Poder

Executivo sobre os demais, pela ampla centralização do poder nas mãos do Presidente.

Mais uma vez recorremos à lição de José Afonso da Silva, que descreveu o

período revolucionário em contundente crítica82:

“A 24.1.1967, fora promulgada a nova constituição, o que veio a resumir as alterações institucionais operadas na Constituição de 1946, que findava após sofrer vinte e uma emendas regularmente aprovadas pelo Congresso Nacional com base em seu art. 217 e o impacto de quatro Atos Institucionais e trinta e sete Atos Complementares, que tornaram incompulsável o Direito Constitucional positivo então vigente.”

Não obstante esses atos arbitrários praticados pelo regime militar, o

Princípio Democrático encontrava previsão expressa na Constituição de 1967, desde o seu

art. 1º, e na mesma redação da Constituição anterior de 1946:

82 Op. cit., p. 87.

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“Art. 1º - O Brasil é uma República Federativa, constituída sob o regime representativo, pela união indissolúvel dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. § 1º - Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido.”

Além do art. 1º, havia também previsão específica pela realização de

eleições mediante sufrágio direto, no art. 143, apesar da ressalva para os casos de eleições

indiretas, previstos pela própria Constituição:

“Art 143 - O sufrágio é universal e o voto é direito e secreto, salvo nos casos previstos nesta Constituição; fica assegurada a representação proporcional dos Partidos Políticos, na forma que a lei estabelecer.”

Todavia, como visto no breve relato histórico do período posterior à

revolução militar de 1964, em realidade, a ressalva do texto pela realização de eleições

indiretas, já se dava para com o Presidente e Vice-Presidente da República, que eram

alçados ao Poder mediante votação do Colégio Eleitoral, nos termos dos arts. 76 e 79.

Como de conhecimento notório, o Colégio Eleitoral era majoritariamente controlado pelo

Executivo:

“Art 76 - O Presidente será eleito pelo sufrágio de um Colégio Eleitoral, em sessão, pública e mediante votação nominal. (...) Art 79 - Substitui o Presidente, em caso de impedimento, e sucede-lhe, no de vaga, o Vice-Presidente. § 1º - O Vice-Presidente, considerar-se-á eleito com o Presidente registrado conjuntamente e para igual mandato, observadas as mesmas normas para a eleição e a posse, no que couber.”

Vale ressaltar que o Vice-Presidente presidia o Congresso Nacional, nos

termos do §2º, do art. 79, o que denota forte influência do Executivo sobre o Legislativo:

“§ 2º - O Vice-Presidente exercerá as funções de Presidente do Congresso Nacional, tendo somente voto de qualidade, além de outras atribuições que lhe forem conferidas em lei complementar.”

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Havia previsão específica para a realização de eleições diretas dos

integrantes do Poder Legislativo Federal, bem como dos Governadores Estaduais:

“Art. 29 - O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Art. 30 - A eleição para Deputados e Senadores far-se-á simultaneamente em todo o País. (...) Art 41 - A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos por voto direto e secreto, em cada Estado e Território. (...) Art 43 - O Senado Federal compõe-se de representantes dos Estados, eleitos pelo voto direto e secreto, segundo o principio majoritário. Art 13 - Os Estados se organizam e se regem pelas Constituições e pelas leis que adotarem, respeitados, dentre outros princípios estabelecidos nesta Constituição, os seguintes: (...) § 2º - A eleição do Governador e do Vice-Governador de Estado far-se-á por sufrágio universal e voto direto e secreto. Art 175 - A primeira eleição geral de Deputados e a parcial de Senadores, assim como a dos Governadores e Vice-Governadores, realizar-se-ão a 15 de novembro de 1970.”

Em princípio, a iniciativa do processo legislativo era de qualquer membro

ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, do Presidente da República ou

dos Tribunais Federais (art. 59):

“Art 59 - A iniciativa das leis cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, ao Presidente da República, e aos Tribunais Federais com jurisdição em todo o território nacional. Parágrafo único - A discussão e votação dos projetos de iniciativa do Presidente da República começarão na Câmara dos, Deputados, salvo o disposto no § 3º do art. 54.”

Contudo, na prática, o Presidente legislava amplamente, fundado no art. 54,

§1º, e com sustentação da sua base no Congresso, que atuava sempre no intuito de protelar

a apreciação de projetos de lei, visando à sua aprovação tácita:

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“Art 54 - O Presidente da República poderá enviar ao Congresso Nacional projetos de lei sobre qualquer matéria, os quais, se assim o solicitar, deverão ser apreciados dentro de quarenta e cinco dias, a contar do seu recebimento na Câmara dos Deputados, e de igual prazo no Senado Federal. § 1º - Esgotados esses prazos, sem deliberação, serão os projetos considerados como aprovados. § 2º - A apreciação das emendas do Senado Federal pela Câmara dos Deputados far-se-á no prazo de dez dias, findo o qual serão tidas como aprovadas.”

Em relação às matérias tributárias, a iniciativa era exclusiva da Presidência

da República, nos termos do art. 60, I:

“Art 60 - É da competência exclusiva do Presidente da República a Iniciativa das leis que: I - disponham sobre matéria financeira;”

Os Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores eram eleitos de forma direta,

excetuados os Municípios que eram sede das capitais dos Estados, os que detinham

estâncias hidrominerais - que eram nomeados pelos Governadores, mediante aprovação

prévia das respectivas Assembléias Legislativas -, e aqueles que fossem tidos pela lei

federal como de interesse da segurança nacional – nos mesmos termos da Constituição de

1946, embora a nomeação dos Prefeitos, no segundo caso (segurança nacional), agora

coubesse ao Presidente da República (art. 16), respeitados os mandatos em curso, nos

termos do art. 176:

“Art 16 - A autonomia municipal será assegurada: I - pela eleição direta de Prefeito, Vice-Prefeito e Vereadores realizada simultaneamente em todo o Pais, dois anos antes das eleições gerais para Governador, Câmara dos Deputados e Assembléia Legislativa; (...) § 1º - Serão nomeados pelo Governador, com prévia aprovação: a) da Assembléia Legislativa, os Prefeitos das Capitais dos Estados e dos Municípios considerados estâncias hidrominerais em lei estadual; b) do Presidente da República, os Prefeitos dos Municípios declarados de interesse da segurança nacional, por lei de iniciativa do Poder Executivo.” (...) “Art 176 - É respeitado o mandato em curso dos Prefeitos cuja investidura

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deixará de ser eletiva por força desta Constituição e, nas mesmas condições, o dos eleitos a 15 de novembro de 1966.”

O Sistema Tributário era regulado de forma pormenorizadamente descritiva

ou, no dizer de José Afonso da Silva, foi reformulado, “em termos mais nítidos e rigorosos,

ampliando a técnica do federalismo cooperativo, consistente na participação de uma

entidade na receita da outra”83.

A discriminação era efetuada já no início do texto constitucional (no

Capítulo V, do Título I), estando a competência tributária dos entes regulada

principalmente nos arts. 18, 22, 23 e 24:

“Art 18 – O sistema tributário nacional compõe-se de impostos, taxas e contribuições de melhoria e é regido pelo disposto neste Capítulo em leis complementares, em resoluções do Senado e, nos limites das respectivas competências, em leis federais, estaduais e municipais. (...) § 4º - Somente a União, nos casos excepcionais definidos em lei complementar, poderá instituir empréstimo compulsório. § 5º - Competem ao Distrito Federal e aos Estados não divididos em Municípios, cumulativamente, os impostos atribuídos aos Estados e Municípios; e à União, nos Territórios Federais, os impostos atribuídos aos Estados e, se o Território não for dividido em Município, os impostos municipais. § 6º - A União poderá, desde que não tenham base de cálculo e fato gerador idênticos aos dos impostos previstos nesta Constituição, instituir outros além daqueles a que se referem os arts. 22 e 23 e que não se contenham na competência tributária privativa dos Estados, Distrito Federal e Municípios, assim como transferir-lhes o exercício da competência residual em relação a determinados impostos, cuja incidência seja definida em lei federal. (...) Art 22 - Compete à União decretar impostos sobre: I - importação de produtos estrangeiros; II - exportação, para o estrangeiro, de produtos nacionais ou nacionalizados; III - propriedade territorial, rural; IV - rendas e proventos de qualquer natureza, salvo ajuda de custo e diárias pagas pelos cofres públicos; V - produtos industrializados; VI - operações de crédito, câmbio, seguro, ou relativas a títulos ou valores

83 Op. cit., p. 88.

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mobiliários; VII - serviços de transporte e comunicações, salvo os de natureza estritamente municipal; VIII - produção, importação, circulação, distribuição ou consumo de lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos; IX - produção, importação, distribuição ou consumo de energia elétrica; X - extração, circulação, distribuição ou consumo de minerais do País. (...) Art 23 - Compete à União, na iminência. ou no caso de guerra externa. instituir, temporariamente, impostos extraordinários compreendidos, ou não, na sua competência, tributária, que serão suprimidos gradativamente, cessadas; as causas que determinaram a cobrança. Art 24 - Compete aos Estados e ao Distrito Federal decretar impostos sobre: I - transmissão, a qualquer título, de bens imóveis por natureza e acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como sobre direitos à aquisição de imóveis; II - operações relativas à circulação de mercadorias, realizadas por produtores, industriais e comerciantes. (Redação dada pelo Ato Complementar nº 40, de 1968) (...) Art 25 - Compete aos Municípios decretar impostos sobre: ' I - propriedade predial e territorial urbana; II - serviços de qualquer natureza não compreendidos na competência tributária da União ou dos Estados, definidos em lei complementar.”

Contudo, o caráter autocrático do regime militar pode ser percebido da

leitura de um único dispositivo do texto da Constituição de 1967, o seu art. 173:

“Art 173 - Ficam aprovados e excluídos de apreciação judicial os atos praticados pelo Comando Supremo da Revolução de 31 de março de 1964, assim como: I - pelo Governo federal, com base nos Atos Institucionais nº 1, de 9 de abril de 1964; nº 2, de 27 de outubro de 1965; nº 3, de 5 de fevereiro de 1966; e nº 4, de 6 de dezembro de 1966, e nos Atos Complementares dos mesmos Atos Institucionais; II - as resoluções das Assembléias Legislativas e Câmaras de Vereadores que hajam cassado mandatos eletivos ou declarado o impedimento de Governadores, Deputados, Prefeitos e Vereadores, fundados nos referidos Atos institucionais; III - os atos de natureza legislativa expedidos com base nos Atos Institucionais e Complementares referidos no item I; IV - as correções que, até 27 de outubro de 1965, hajam incidido, em decorrência da desvalorização da moeda e elevação do custo de vida, sobre

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vencimentos, ajuda de custo e subsídios de componentes de qualquer dos Poderes da República.”

Como se depreende da leitura do seu texto, talvez esse tenha sido o

momento normativo de maior prejuízo para as instituições democráticas, que sofreram com

a Constituição de 1967 o maior ataque até então intentado contra a República, não somente

no âmbito sintático do ordenamento, mas, principalmente, no âmbito pragmático das ações

que foram praticadas sob a sua égide.

16.b.1.7.) Emenda Constitucional n.º 1 (1969).

Diante das novas derrotas impostas ao regime militar nas eleições, a

Constituição de 1967 foi submetida a uma série de alterações implementadas pela Emenda

Constitucional n.º 1, de 17 de outubro de 1969. O número de alterações foi tão grande e

tamanho foi o grau de reforma no texto constitucional de 1967, que alguns autores, como

José Afonso da Silva84 e Lourival Vilanova85, se posicionam pela caracterização da Emenda

Constitucional de 1969 como sendo uma nova Constituição, e não apenas uma emenda à

Constituição anterior.

A despeito do período de extrema instabilidade institucional, a menção ao

Princípio Democrático no início do texto não foi alterada pela Emenda:

“Art. 1º O Brasil é uma República Federativa, constituída, sob o regime representativo, pela união indissolúvel dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. § 1º Todo o poder emana do povo e em seu nome é exercido.”

84 Op. cit., p. 88: “Teórica e tecnicamente, não se trata de emenda, mas de nova constituição. A emenda só serviu como mecanismo de outorga, uma vez que verdadeiramente se promulgou texto integralmente reformulado, a começar pela denominação que se lhe deu: Constituição da República Federativa do Brasil, enquanto a de 1967 se chamava apenas Constituição do Brasil”. 85 Lourival Vilanova chega a afirmar que a Emenda Constitucional de 1969 “recobriu com tal abrangência a Constituição de 1967 e com tal força de poder constituinte originário, que até se pode falar da Constituição de 1969, como se esta representasse originária decisão política sobre o modo de ser do Estado brasileiro” in Vilanova, Lourival. Escritos jurídicos e filosóficos, vol. 1. A dimensão política nas funções do STF.

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Os Estados organizavam-se de acordo com o legislado pelas respectivas

Constituições, permanecendo a eleição dos seus Governadores e Vice-Governadores sob a

forma direta:

“Art. 13. Os Estados organizar-se-ão e reger-se-ão pelas Constituições e leis que adotarem, respeitados dentre outros princípios estabelecidos nessa Constituição, os seguintes: (...) § 2º A eleição do Governador e do Vice-Governador de Estado far-se-á por sufrágio universal e voto direto e secreto.”

Da mesma forma direta seriam eleitos os Prefeitos, Vice-Prefeitos e

Vereadores:

“Art. 15. A autonomia municipal será assegurada: I - pela eleição direta de Prefeito, Vice-Prefeito e vereadores realizada simultaneamente em todo o País, em data diferente das eleições gerais para senadores, deputados federais e deputados estaduais;”

O Poder Legislativo era exercido pelo Congresso Nacional, por intermédio

da Câmara de Deputados e Senadores, para os quais, apesar das restrições impostas pelo

regime, havia previsão de eleições diretas, nos termos dos arts. 27, 28, 39 e 41:

“Art. 27. O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Art. 28. A eleição para deputados e senadores far-se-á simultaneamente em todo o País. (...) Art. 39. A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos, entre cidadãos maiores de vinte e um anos e no exercício dos direitos políticos, por voto direto e secreto, em cada Estado e Território. (...) Art. 41. O Senado Federal compõe-se de representantes dos Estados, eleitos pelo voto secreto e direto, dentre os cidadãos maiores de trinta e cinco anos, no exercício de seus direitos políticos, segundo o princípio majoritário. (...)”

Todavia, as eleições para a Presidência e Vice-Presidência da República

ocorreriam de forma indireta, pelo Colégio Eleitoral, mediante votação nominal:

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“Art. 73. O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado. Art. 74. O Presidente será eleito, entre os brasileiros maiores de trinta e cinco anos e no exercício dos direitos políticos, pelo sufrágio de um colégio eleitoral, e sessão pública e mediante votação nominal.”

Interessante ressaltar a previsão no sentido da realização da posse do

Presidente perante o Supremo Tribunal Federal, na hipótese de não estar reunido o

Congresso Nacional, tamanha a instabilidade política das instituições, à época:

“Art. 76. O Presidente tomará posse em sessão do Congresso Nacional e, se êste não estiver reunido, perante o Supremo Tribunal Federal, prestando compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral e sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil.”

A iniciativa das leis era, via de regra, comum aos membros do Parlamento e

ao Presidente da República, excetuada a competência privativa do Presidente da República

para legislar sobre as matérias constantes do art. 57, dentre elas, no primeiro inciso, a

matéria financeira:

“Art. 56. A iniciativa das leis cabe a qualquer membro ou comissão da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, ao Presidente da República e aos Tribunais Federais com jurisdição em todo o território nacional. Parágrafo único. A discussão e votação dos projetos de iniciativa do Presidente da República terão início na Câmara dos Deputados, salvo o disposto no § 2º do artigo 51. Art. 57. É da competência exclusiva do Presidente da República a iniciativa das leis que: I - disponham sôbre matéria financeira;”

Essa competência exclusiva operacionalizava-se pela possibilidade de

expedição de decretos-leis (art. 55, II), com vigência imediata:

“Art. 55. O Presidente da República, em casos de urgência ou de interêsse público relevante, e desde que não haja aumento de despesa, poderá expedir decretos-leis sôbre as seguintes matérias:

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I - segurança nacional; II - finanças públicas, inclusive normas tributárias; e III - criação de cargos públicos e fixação de vencimentos. § 1º Publicado o texto, que terá vigência imediata, o Congresso Nacional o aprovará ou rejeitará, dentro de sessenta dias, não podendo emendá-lo; se, nesse prazo, não houver deliberação, o texto será tido por aprovado.”

A competência tributária restou estabelecida conforme o disposto nos arts.

18 (geral) e seus parágrafos, além dos arts. 21 e 22 (para a União), art. 23 (Estados e

Distrito Federal), e Municípios (art. 24):

“Art. 18. Além dos impostos previstos nesta Constituição, compete à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir: I - taxas, arrecadadas em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização efetiva ou potencial de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição; e II - contribuição de melhoria, arrecadada dos proprietários de imóveis beneficiados por obras públicas, que terá como limite total a despesa realizada. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 23, de 1983) (...) § 3º Sómente a União, nos casos excepcionais definidos em lei complementar, poderá instituir empréstimo compulsório. (...) § 5º A União poderá, desde que não tenham base de cálculo e fato gerador idênticos aos dos previstos nesta Constituição instituir outros impostos, além dos mencionados nos artigos 21 e 22 e que não sejam da competência tributária privativa dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, assim como transferir-lhes o exercício da competência residual em relação a impostos, cuja incidência seja definida em lei federal. (...) Art. 21. Compete à União instituir impôsto sôbre: I - importação de produtos estrangeiros, facultado ao Poder Executivo, nas condições e nos limites estabelecidos em lei, alterar-lhe as alíquotas ou as bases de cálculo; II - exportação, para o estrangeiro, de produtos nacionais ou nacionalizados, observado o disposto no final do item anterior; III - propriedade territorial rural; IV - renda e proventos de qualquer natureza, salvo ajuda de custo e diárias pagas pelos cofres públicos na forma da lei; V - produtos industrializados, também observado o disposto no final do item I; VI - operações de crédito, câmbio e seguro ou relativas a títulos ou valôres mobiliários; VII - serviços de transporte e comunicações, salvo os de natureza

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estritamente municipal; VIII - produção, importação, circulação, distribuição ou consumo de lubrificantes e combustíveis líquidos ou gasosos e de energia elétrica, impôsto que incidirá uma só vez sôbre qualquer dessas operações, excluída a incidência de outro tributo sôbre elas; e IX - a extração, a circulação, a distribuição ou o consumo dos minerais do País enumerados em lei, impôsto que incidirá uma só vez sôbre qualquer dessas operações, observado o disposto no final do item anterior. X - transportes, salvo os de natureza estritamente municipal. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 27, de 1985) (Vigência) § 1º A União poderá instituir outros impostos, além dos mencionados nos itens anteriores, desde que não tenham fato gerador ou base de cálculo idênticos aos dos previstos nos artigos 23 e 24. § 2º A União pode instituir: I - contribuições, nos têrmos do item I dêste artigo, tendo em vista intervenção no domínio econômico e o interêsse da previdência social ou de categorias profissionais; e II - empréstimos compulsórios, nos casos especiais definidos em lei complementar, aos quais se aplicarão as disposições constitucionais relativas aos tributos e às normas gerais do direito tributário. (...) Art. 22. Compete à União, na iminência ou no caso de guerra externa, instituir, temporàriamente, impostos extraordinários compreendidos, ou não, em sua competência tributária, os quais serão suprimidos gradativamente, cessadas as causas de sua criação. Art. 23. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sôbre: I - transmissão, a qualquer título, de bens imóveis por natureza e acessão física e de direitos reais sôbre imóveis, exceto os de garantia, bem como sôbre a cessão de direitos à sua aquisição; e II - operações relativas à circulação de mercadorias, realizadas por produtores, industriais e comerciantes, impostos que não serão cumulativos e dos quais se abaterá nos têrmos do disposto em lei complementar, o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou por outro Estado. (Vide Emenda Constitucional nº 17, de 1980) III - propriedade de veículos automotores, vedada a cobrança de impostos ou taxas incidentes sobre a utilização de veículos. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 27, de 1985) (Vigência) (...) Art. 24. Compete aos municípios instituir impôsto sôbre: I - propriedade predial e territorial urbana; e II - serviços de qualquer natureza não compreendidos na competência tributária da União ou dos Estados, definidos em lei complementar.”

Além da competência privativa do Presidente prevista no dispositivo acima

transcrito, e da possibilidade de expedição de decretos-leis, o Poder Executivo gozava

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ainda da prerrogativa de envio de projetos de lei ao Congresso para votação em caráter de

urgência, os quais, caso não apreciados dentro do prazo de 40 dias, eram tidos como

aprovados (o que, como visto, comumente ocorria pela utilização de subterfúgios

protelatórios pela base governista no Parlamento):

“Art. 51. O Presidente da República poderá enviar ao Congresso Nacional projetos de lei sôbre qualquer matéria, os quais, se o solicitar, serão apreciados dentro de quarenta e cinco dias, a contar do seu recebimento na Câmara dos Deputados, e de igual prazo no Senado Federal. § 1º A solicitação do prazo mencionado nêste artigo poderá ser feita depois da remessa do projeto e em qualquer fase de seu andamento. § 2º Se o Presidente da República julgar urgente o projeto, poderá solicitar que a sua apreciação seja feita em sessão conjunta do Congresso Nacional, dentro do prazo de quarenta dias. § 3º Na falta de deliberação dentro dos prazos estipulados nêste artigo e parágrafos anteriores, considerar-se-ão aprovados os projetos. § 4º A apreciação das emendas do Senado Federal pela Câmara dos Deputados far-se-á, nos casos previstos nêste artigo e em seu § 1º, no prazo de dez dias; findo êste, serão tidas por aprovadas, se não tiver havido deliberação. (...)”

A Emenda Constitucional n.º 1 foi sucedida por vários Atos Institucionais de

igual teor emitidos pelo regime militar, que perdurou por quase três décadas, caracterizando

o momento de maior crise normativo-institucional do Princípio Democrático.

16.b.1.8.) Constituição da República Federativa do Brasil (1988).

O reforço normativo-constitucional do Princípio Democrático ocorreu,

assim, do ponto de vista sociológico, de um momento pós-regime militar, de ausência de

exercício do poder de forma direta pelos legiferados e de pouca representação direta dos

mesmos, que ocasionou graves restrições aos direitos e garantias fundamentais dos

cidadãos, que já clamavam por mudanças, desde a instituição do regime autoritário , em

1964.

Passados vinte e um anos, desde a instauração do Regime Militar, diante da

favorável conjuntura política, foi enviada ao Congresso Nacional a Mensagem Presidencial

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n.º 330, de 18 de junho de 1985, pelo então Presidente da República, José Sarney,

propondo a alteração da Constituição anterior. Essa proposta resultou na Emenda

Constitucional n.º 26/85, pela qual restou convocada a instalação de uma nova Assembléia

Nacional Constituinte.

A convocação dessa Assembléia Constituinte culminou na promulgação, em

05 de outubro de 1988, da atualmente vigente Constituição Federal da República Federativa

do Brasil.

Vale ressaltar, que desde a sua instalação, a Assembléia Constituinte foi

composta por deputados e senadores eleitos pelo voto direto (ainda que não para a

específica função constituinte, mas, meramente, legislativa) da população, que, à época,

clamava pela retorno total das eleições diretas, inclusive para a ordem central de Governo

(Presidência da República), o que, certamente, influenciou na pressão popular pela decisão

para realização de nova eleição para definição dos parlamentares constituintes, o que

acabou por não se concretizar.

Ainda que os parlamentares constituintes não tenham sido eleitos para o fim

específico de instalação da Assembléia Constituinte, percebe-se que, a nossa Constituição

Federal, desde a sua origem, já possuía como vetor principal à formulação e conseqüente

validação das normas jurídicas que estavam por vir, o mecanismo de representação popular

direta, característico dos regimes democráticos (no sentido de contemplação pragmática do

valor democracia). Assim, fez-se consignar expressamente do Texto Constitucional, logo

do seu início (art. 1º), a previsão do Princípio Democrático a reger o Estado de Direito:

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...).”

Vê-se do próprio Texto que foi opção do legislador constituinte denominar o

Título I da Constituição Federal como sendo “Dos Princípios Fundamentais”, dentre os

quais estão em ainda maior destaque, por constarem do caput do art. 1º, os Princípios

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Republicano, Federativo, o Princípio da Indissolubilidade da União dos Estados,

Municípios e Distrito Federal - que, de certa forma, não deixa de ser uma manifestação do

nosso federalismo -, e também, o Princípio Democrático, como diferença específica a

regular o nosso Estado de Direito.

No mesmo sentido é a lição do Professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho86:

“Certamente a intenção do constituinte ao referir-se a Estado Democrático de Direito foi a de mostrar que ele não pretende que o Brasil seja regido por leis formais que violem eventualmente os princípios fundamentais da democracia.”

Assim, além do destaque que quis atribuir o legislador constituinte ao

Princípio Democrático pela sua qualificação como princípio fundamental; pela sua situação

topográfica no Texto Constitucional (art. 1º, parágrafo único); estabeleceu ainda disposição

expressa do Estado de Direito em que se constituiu a República Federativa como sendo um

Estado Democrático.

Ademais, no inciso V, do art. 1º, fez constar a previsão do valor “pluralismo

político” como um dos fundamentos da República Federativa:

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) V - o pluralismo político.”

Não bastassem as cinco notas acima mencionadas, indicativas da

prevalência que quis atribuir o legislador constituinte ao Princípio Democrático, ainda no

parágrafo único do mesmo art. 1º da Constituição encontramos a explicitação da

conformação constitucional atribuída ao princípio – o tratamento próprio que lhe é

atribuído pelo nosso ordenamento:

86 Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Comentários à constituição brasileira de 1988. Vol. I. Arts. 1º a 103. Saraiva. São Paulo: 2000, p. 18.

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“Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

Insere-se no parágrafo único do art. 1º, a definição constitucional do

Princípio Democrático, caracterizado pelo exercício de todos os poderes

constitucionalmente instituídos, de forma direta (direitos e garantias individuais, ação

popular, mandado de segurança, plebiscito, referendo, etc.) ou mediante representação, que

na maioria dos casos dos agentes políticos criados pela Constituição, também ocorre de

forma direta (membros do Poder Legislativo e Executivo – arts. 27, 28 e 29, 45, 46 e 47, e

76 a 82, da CF).

A esse respeito, vale a ressalva que, mesmo no caso dos representantes não

eleitos, tomando, por exemplo os membros do Poder Judiciário (arts. 92 a 126, CF), os

cargos em comissão (ex.: art. 84, da CF), etc., estes, a despeito de não serem representantes

“diretos” da população, são nomeados pelos representantes diretos, mediante autorização

do próprio Texto Constitucional, com base em critérios que atribuem cada vez maior

relevância aos ditames democráticos (realização de concurso técnico de provas e títulos,

com a participação de entidades civis, na maioria dos casos87; notório saber jurídico e

reputação ilibada; representação política; etc.);

No mais, o destaque atribuído ao Princípio Democrático pela parte que é

dotada de força normativa da Constituição Federal vem a ser agregado ao disposto no seu

87 CF: “Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: I - ingresso na carreira, cujo cargo inicial será o de juiz substituto, mediante concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, três anos de atividade jurídica e obedecendo-se, nas nomeações, à ordem de classificação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (...) c) aferição do merecimento conforme o desempenho e pelos critérios objetivos de produtividade e presteza no exercício da jurisdição e pela freqüência e aproveitamento em cursos oficiais ou reconhecidos de aperfeiçoamento; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)” (...) IV previsão de cursos oficiais de preparação, aperfeiçoamento e promoção de magistrados, constituindo etapa obrigatória do processo de vitaliciamento a participação em curso oficial ou reconhecido por escola nacional de formação e aperfeiçoamento de magistrados; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (...)”

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preâmbulo:

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.”

Frise-se que, do início do preâmbulo dá-se ainda maior destaque ao

Princípio Democrático pela inserção das expressões: “Nós, representantes do povo

brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado

Democrático, (...)”, isto é, os deputados e senadores constituintes, ao proclamarem a

Constituição Federal, o fazem na qualidade de representantes do povo brasileiro, no intuito

de instituir um Estado Democrático de Direito.

Assim, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Princípio

Democrático ganhou absoluto destaque no ordenamento jurídico nacional, como resultado

do acolhimento pelo sistema de uma forte reivindicação social por uma maior participação

popular no exercício do Poder (ubi socíetas ibi jus88), que retornou, depois do seu advento,

a ser Público, no sentido de diretamente exercido pelos populares ou por seus

representantes diretamente eleitos.

Assim, analisando sintaticamente a ordem jurídica, enumeramos, pois,

alguns, dentre os principais fundamentos de ordem constitucional, pelos quais

demonstramos quis o legislador constituinte atribuir preponderância ao Princípio

Democrático em relação às demais normas jurídicas constantes do nosso ordenamento:

1) A adoção do valor democracia pelo Texto Constitucional, sob a forma de princípio, já

denota a sua importância normativa, pela natureza de norma-princípio;

88 “Onde há sociedade, aí há direito”, de acordo com a tradução fornecida por Spalding, Tarsilo Orpheu. Pequeno dicionário jurídico de citações latinas. p. 127. Saraiva, São Paulo: 1971.

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2) Sendo norma-princípio, por óbvio, há de prevalecer sobre normas-regra;

3) Não bastasse a sua natureza principial, o legislador constituinte decidiu por denominar o

Princípio Democrático como princípio fundamental89;

4) Sendo atribuído o caráter de fundamental ao Princípio Democrático, este há de

prevalecer não só sobre normas-regra, como também, sobre as demais normas-princípio, de

ordem meramente geral (ou não-fundamental);

5) Ainda que contraposto a outros princípios de ordem fundamental, no exercício da

ponderação de princípios acima mencionado, o Princípio Democrático, em realidade, lhes

serve de fundamento, numa relação de subordinação lógica, para com os demais princípios

fundamentais;

6) A localização topográfica do Princípio Democrático e a sua disseminação pelos seus

desdobramentos no Texto Constitucional (preâmbulo, art. 1º, caput e parágrafo único, arts.

27, 28 e 29, 45,46 e 47, e 76 a 82 da CF, dentre outros), denotam a sua importância

normativa, pela inauguração do “principal” diploma jurídico-normativo com os seus

ditames, e ainda, pelo espraiamento dos seus desdobramentos ao longo do referido texto;

7) A caracterização do Estado de Direito em que se constitui a República Federativa do

Brasil como sendo um Estado Democrático;

8) O pluralismo político como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, de

acordo com o inciso V, do art. 1º;

9) A vinculação de todo o poder constitucionalmente instituído ao Princípio Democrático,

definido pelo parágrafo único do art. 1º, ou seja, todo o poder como sendo emanado do

povo e a forma do seu exercício de modo direto por este ou por seus representantes

eleitos90;

10) As previsões constitucionais de exercício do poder de forma direta, mediante a outorga

de direitos subjetivos de ordem pública (mandado de segurança, ação popular, plebiscito,

89 Mendonça, Cristiane. O princípio constitucional democrático e o voto secreto nas casas legislativas. Dissertação de Mestrado em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – 1996: “Encartada entre os Princípios Fundamentais, a norma que estatui o Estado Democrático de Direito sobressai como princípio pela importância do comando nela contido”. 90 Queiroz, José Guilherme Carneiro. O princípio democrático, o dinamismo social e as cláusulas pétreas. Dissertação de Mestrado em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – 2006: “O sentido maior dos regimes democráticos, sejam eles diretos ou representativos, reside na importância do povo, titular do poder, que pode e deve, sempre que julgar necessário, e verificado os procedimentos determinados, mudar as suas leis sem que signifique, este ato, uma quebra institucional que faça surgir a instabilidade no seio da comunidade”.

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referendo, leis de iniciativa popular, etc. - arts. 5º, LXIX, LXXIII, art. 14, I, II, e III, dentre

outros);

11) A previsão pelo exercício do poder mediante representação, que, como visto na maioria

dos casos, também ocorre de forma direta (membros do Poder Legislativo e Executivo –

arts. 27, 28 e 29, 45,46 e 47, e 76 a 82 da CF);

12) Mesmo no caso de representantes não eleitos, por exemplo, os membros do Poder

Judiciário (arts. 92 a 126, CF), e os cargos em comissão (ex.: art. 84, da CF), estes são

nomeados pelos representantes diretos, mediante autorização da Constituição Federal, hoje,

com base em critérios ainda mais democráticos (realização de concurso técnico de provas e

títulos, na maioria dos casos; notório saber jurídico e reputação ilibada; representação

política; etc.);

13) E, por último, a previsão pela proclamação da Constituição Federal pelos constituintes,

na qualidade de representantes do povo brasileiro, e no intuito de instituir um Estado

Democrático de Direito.

Esses são alguns dos fundamentos os quais acreditamos sejam mais que

suficientes à consideração por parte do intérprete/aplicador do Princípio Democrático como

sendo prevalecente em relação aos demais princípios constitucionais, por servir-lhes de

fundamento de validade, e assim, pela necessidade de aplicação dos mesmos, sempre em

relação de subordinação para com o referido princípio.

Essa relação de subordinação, obviamente, estará sujeita a todos os critérios

de subjetividade descritos na segunda parte do presente trabalho, podendo, inclusive, vir a

ser entendida de forma válida a tese ora defendida, como inclinando-se pela aplicação do

chamado “Princípio do Consentimento à Tributação” a que se referem os ilustres

Professores Roque Carrazza e José Artur de Lima Gonçalves, dentre outros, a despeito de

não consistir objetivo do presente trabalho analisar as implicações dessa escolha.

Com essa proposta, abrem-se, ao menos, duas vias de interpretação possíveis

ao intérprete/aplicador, i) a primeira pela visualização das normas constantes do

ordenamento, relativas ao Princípio Democrático, como sendo limitadoras do exercício do

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poder estatal e denotativas do chamado Princípio do Consentimento (até mesmo com algum

fundamento na obra de Kelsen, pelo mínimo eficacial); ou ii) a consideração do

consentimento como sendo algo decorrente da própria sistemática de representação

popular, mesmo porque, o poder emana do povo, que o exerce por meio de seus

representantes eleitos.

Contudo, acreditamos que, pela simples ciência da necessidade de adoção do

Princípio Democrático como sobreprincípio em relação aos demais, independentemente da

utilização da alternativa do chamado Princípio do Consentimento ou pela desconsideração

da possibilidade de questionamento dos atos legislativos e de governo por parte dos

legiferados pelo não consentimento, ante a assunção dos cargos públicos mediante

procedimento previamente estabelecido pela Constituição, já teremos afastadas diversas

possibilidade de interpretação/aplicação pela total desconsideração da premissa básica e

essencial a qualquer análise do Jurídico, conforme proposta pelo presente trabalho (o

Princípio Democrático como norma jurídica fundante de toda atividade tributária estatal e a

necessidade de consideração dos seus desdobramentos no ato de interpretação/aplicação da

norma jurídica tributária).

16.c.) Análise no nível pragmático do ordenamento.

De acordo com a lição de Kelsen, o sistema jurídico sujeita os legiferados à

regulação das suas respectivas condutas de acordo com o previamente disposto na

respectiva ordem normativa, a qual se apresenta numa forma vertical escalonada91. Dessa

forma, o sistema jurídico vincula igualmente a atuação dos órgãos que a ele estão

vinculados. Da verificação dessa atuação, teremos a análise no âmbito pragmático, sendo-

nos permitida também a identificação do grau de eficácia que o sistema exerce sobre as

respectivas condutas.

Prosseguindo no desenvolvimento do raciocínio do sistema escalonado,

Adolf Merkl costumava remeter a visualização do ordenamento jurídico à uma estrutura

91 Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. Martins Fontes. São Paulo: 2003, p. 246.

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piramidal, estando a Constituição no cume, e os demais atos normativos

infraconstitucionais na sua base92.

Assim, aplicando as lições da melhor Teoria Geral do Direito ao estudo do

ordenamento jurídico brasileiro, temos que a Constituição Federal insere-se no topo da

pirâmide normativa a que estão sujeitas as condutas dos cidadãos e do próprio Estado. As

normas constitucionais subordinam, portanto, todas as demais normas jurídicas constantes

do nosso ordenamento (relação sintática jurídica).

Da premissa acima estabelecida, surge a necessidade para o

intérprete/aplicador, bem como, para o cidadão comum (visando a condução dos seus atos,

tendo em vista a inequívoca subordinação dos mesmos ao Texto Constitucional), de saber o

que pode ser entendido como Constituição, ou seja, qual a interpretação válida para

determinado dispositivo constitucional, para que possa aplicar a alternativa de interpretação

que seja admitida pelo ordenamento como consistente.

Adiantando parte da nossa proposta de aplicação hermenêutica, que será

adiante explanada (item 20), o caminho para solução desse questionamento é a própria

Constituição que haverá de nos indicar, pela dicção do seu art. 102, caput:

“Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: (...)”

Como se depreende da leitura do referido dispositivo, compete ao Supremo

Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição Federal, ou seja, este é o órgão

legitimado pelo legislador constituinte para dizer, em última análise, o que é que se deve

entender como Constituição; qual o significado e alcance das normas constitucionais; qual

interpretação do Texto Constitucional pode ser tida, ao menos, a priori, como válida para o

ordenamento.

92 Merkl, Adolf, Teoria general del derecho administrativo, Ed. Nacional, México:1978. pp. 208 e seguintes.

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Vale aqui a honrosa menção à solidez institucional do Supremo Tribunal

Federal: mesmo em tempos de crise institucional do próprio Princípio Democrático, e do

próprio Estado, a previsão constitucional pela existência da Corte sempre esteve presente

em todos os textos, e atuante o Tribunal, em todos os períodos da nossa história, como

órgão de legitimação judicial último. Essa solidez institucional já havia sido sinalizada por

Lourival Vilanova93:

“A persistência do Supremo Tribunal Federal é de ordem institucional. Quero dizer: é concreção histórica, que não se descontinua em sua integridade institucional diante da descontinuidade das sucessivas Constituições. Por isso, não se trata de simples criação legislativa do constituinte originário, que venha dispondo do arbítrio de instituí-lo ou não. Cada poder constituinte que sobreveio, como suporte de fato, não juridicamente qualificado por qualquer ordenamento jurídico prévio, positivando nova Constituição Federal, foi condicionado pela tradição histórica: foi este um limite extraconstitucional, a demonstrar que histórica e sociologicamente inexiste ilimitação ao pretendido poder absoluto do legislador constituinte. Limita-o e contextua-o a circunstância social, política, econômica, ideológica: limita-o à textura histórica em que ele irremediavelmente se encontra.”

Ao dispor sobre o papel do Supremo Tribunal Federal, vê-se tratar a

Constituição Federal de papel dos mais importantes, dentre os desempenhados pelas

instituições democráticas, quando dispõe sobre a jurisdição constitucional a ser efetivada

pela Corte94. Estabelece a Constituição que, na hipótese de divergência de interpretações, o

Supremo Tribunal Federal exercerá, via de regra, as funções de Minerva, na decisão quanto

à interpretação constitucional que aceitará como válida, dentre as hipóteses que lhe serão

submetidas. E a sua decisão terá caráter definitivo (terminativo).

93 Vilanova, Lourival. Escritos jurídicos e filosóficos, Vol. 01, in A dimensão política nas funções do STF. Axis Mvndi. São Paulo: p. 377. 94 A esse respeito, vale mencionar a doutrina do Min. Gilmar Ferreira Mendes, que ao abordar a temática das especificidades do sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, afirma que ao Tribunal são submetidas quase que todas as lides cujas matérias sejam dotadas de um mínimo de relevância: “Ao ampliar, de forma marcante, a legitimação para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade (CF, art. 103), a Constituição de 1988 reduziu o significado do controle de constitucionalidade incidental ou difuso, permitindo que, praticamente, todas as controvérsias constitucionais relevantes fossem submetidas ao Supremo Tribunal Federal mediante processo de controle abstrato de normas..” in Moreira Alves e o controle de constitucionalidade no Brasil. Celso Bastos Editor, São Paulo: 2000, p. 15.

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E assim vem decidindo o próprio Supremo Tribunal Federal, em

reconhecimento da importância constitucional da sua competência jurisdicional:

“A DEFESA DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA REPRESENTA O ENCARGO MAIS RELEVANTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. - O Supremo Tribunal Federal - que é o guardião da Constituição, por expressa delegação do Poder Constituinte - não pode renunciar ao exercício desse encargo, pois, se a Suprema Corte falhar no desempenho da gravíssima atribuição que lhe foi outorgada, a integridade do sistema político, a proteção das liberdades públicas, a estabilidade do ordenamento normativo do Estado, a segurança das relações jurídicas e a legitimidade das instituições da República restarão profundamente comprometidas. O inaceitável desprezo pela Constituição não pode converter-se em prática governamental consentida. Ao menos, enquanto houver um Poder Judiciário independente e consciente de sua alta responsabilidade política, social e jurídico-institucional.” (ADI-MC 2010 – DF, Relator Min. Celso de Mello)

Contudo, suas decisões não resolvem um problema sério decorrente da

aplicação pragmática da sistemática normativa de análise da constitucionalidade de

determinado ato normativo adotada pela Constituição, qual seja, a ausência de um controle

de constitucionalidade prévio, conforme será melhor explanado adiante (item 18), com a

manifestação prévia do Pretório Excelso sobre a interpretação válida para o aquele ato.

De início, nos contentaremos com a simples conclusão decorrente da leitura

da própria Constituição Federal, que proclama ser o Supremo Tribunal Federal o órgão

constitucionalmente legitimado para dizer qual a interpretação cabível, no exercício dessa

competência jurisdicional. A mais consistente e congruente diante do sistema

constitucional.

Assim sendo, no exercício da sua jurisdição constitucional, o Supremo

Tribunal Federal é quem demonstrará o alcance normativo-constitucional do Princípio

Democrático. Analisemos, portanto, suas decisões e os amplos efeitos jurídicos por elas

atribuído ao Princípio Democrático, como fundamento que é do Estado de Direito:

“AI 520479/RS - RIO GRANDE DO SUL (...)

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2. O princípio constitucional-penal da individualização da pena deve ser observado também na fase de execução, pena de vulneração de princípios constitucionais fundamentais, como o democrático e o social.” (Relator Min. CEZAR PELUSO)

Como se vê, mesmo nas suas decisões monocráticas, proclama o Tribunal

ser o Princípio Democrático um princípio fundamental, abarcando outros subprincípios de

ordem constitucional. Isso pode ser percebido também da análise das decisões de mérito do

seu Tribunal Pleno, as quais declaram não somente a outorga do mandato eletivo pela

população para fins de legislação, como também, a título exemplificativo, o legítimo direito

das minorias parlamentares de fiscalização do cumprimento das normas constitucionais, o

que denota a ampla abrangência que vem sendo atribuída ao Princípio Democrático pelo

Pretório:

“MS 24831/DF - DISTRITO FEDERAL Relator(a): Min. CELSO DE MELLO Julgamento: 22/06/2005 Órgão Julgador: Tribunal Pleno (...) EMENTA: COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO - DIREITO DE OPOSIÇÃO - PRERROGATIVA DAS MINORIAS PARLAMENTARES - EXPRESSÃO DO POSTULADO DEMOCRÁTICO - DIREITO IMPREGNADO DE ESTATURA CONSTITUCIONAL - INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO PARLAMENTAR E COMPOSIÇÃO DA RESPECTIVA CPI - TEMA QUE EXTRAVASA OS LIMITES "INTERNA CORPORIS" DAS CASAS LEGISLATIVAS - VIABILIDADE DO CONTROLE JURISDICIONAL - IMPOSSIBILIDADE DE A MAIORIA PARLAMENTAR FRUSTRAR, NO ÂMBITO DO CONGRESSO NACIONAL, O EXERCÍCIO, PELAS MINORIAS LEGISLATIVAS, DO DIREITO CONSTITUCIONAL À INVESTIGAÇÃO PARLAMENTAR (CF, ART. 58, § 3º) - MANDADO DE SEGURANÇA CONCEDIDO. CRIAÇÃO DE COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO: REQUISITOS CONSTITUCIONAIS. - O Parlamento recebeu dos cidadãos, não só o poder de representação política e a competência para legislar, mas, também, o mandato para fiscalizar os órgãos e agentes do Estado, respeitados, nesse processo de fiscalização, os limites materiais e as exigências formais estabelecidas pela Constituição Federal. - O direito de investigar - que a Constituição da República atribuiu ao Congresso Nacional e às Casas que o compõem (art. 58, § 3º) - tem, no inquérito parlamentar, o instrumento mais expressivo de concretização desse relevantíssimo encargo constitucional, que traduz atribuição inerente à própria essência da instituição parlamentar. (...)

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O ESTATUTO CONSTITUCIONAL DAS MINORIAS PARLAMENTARES: A PARTICIPAÇÃO ATIVA, NO CONGRESSO NACIONAL, DOS GRUPOS MINORITÁRIOS, A QUEM ASSISTE O DIREITO DE FISCALIZAR O EXERCÍCIO DO PODER. - A prerrogativa institucional de investigar, deferida ao Parlamento (especialmente aos grupos minoritários que atuam no âmbito dos corpos legislativos), não pode ser comprometida pelo bloco majoritário existente no Congresso Nacional e que, por efeito de sua intencional recusa em indicar membros para determinada comissão de inquérito parlamentar (ainda que fundada em razões de estrita conveniência político-partidária), culmine por frustrar e nulificar, de modo inaceitável e arbitrário, o exercício, pelo Legislativo (e pelas minorias que o integram), do poder constitucional de fiscalização e de investigação do comportamento dos órgãos, agentes e instituições do Estado, notadamente daqueles que se estruturam na esfera orgânica do Poder Executivo. - Existe, no sistema político-jurídico brasileiro, um verdadeiro estatuto constitucional das minorias parlamentares, cujas prerrogativas - notadamente aquelas pertinentes ao direito de investigar - devem ser preservadas pelo Poder Judiciário, a quem incumbe proclamar o alto significado que assume, para o regime democrático, a essencialidade da proteção jurisdicional a ser dispensada ao direito de oposição, analisado na perspectiva da prática republicana das instituições parlamentares.”

Arrebata, ainda, o Ministro relator Celso de Mello, finalizando o seu

raciocínio com a afirmação de que a previsão da instituição da República num Estado

Democrático de Direito não pode possuir uma conotação meramente retórica, devendo,

sim, produzir efeitos práticos na consecução dos fins colimados pelas normas

constitucionais que o instituem:

“A CONCEPÇÃO DEMOCRÁTICA DO ESTADO DE DIREITO REFLETE UMA REALIDADE DENSA DE SIGNIFICAÇÃO E PLENA DE POTENCIALIDADE CONCRETIZADORA DOS DIREITOS E DAS LIBERDADES PÚBLICAS. - O Estado de Direito, concebido e estruturado em bases democráticas, mais do que simples figura conceitual ou mera proposição doutrinária, reflete, em nosso sistema jurídico, uma realidade constitucional densa de significação e plena de potencialidade concretizadora dos direitos e das liberdades públicas. - A opção do legislador constituinte pela concepção democrática do Estado de Direito não pode esgotar-se numa simples proclamação retórica. A opção pelo Estado democrático de direito, por isso mesmo, há de ter conseqüências efetivas no plano de nossa organização política, na esfera das relações institucionais entre os poderes da República e no âmbito da formulação de uma teoria das liberdades públicas e do próprio regime democrático. Em uma palavra: ninguém se sobrepõe, nem mesmo os grupos majoritários, aos

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princípios superiores consagrados pela Constituição da República. - O direito de oposição, especialmente aquele reconhecido às minorias legislativas, para que não se transforme numa promessa constitucional inconseqüente, há de ser aparelhado com instrumentos de atuação que viabilizem a sua prática efetiva e concreta.(...)”

Atente-se para o final da ementa acima transcrita, que reflete claramente a

preocupação do legislador individual (Supremo Tribunal Federal) com a prática efetiva e

concreta do direito de oposição das minorias parlamentares no regime democrático, numa

atribuição de amplos efeitos, inclusive, de ordem pragmática, ao Princípio Democrático.

Já decidiu também o Supremo Tribunal Federal que o Poder Executivo nos

regimes democráticos encontra-se sujeito à fiscalização do Poder Legislativo, da mesma

forma que no julgado acima citado, afirmando ser a fiscalização do Poder Executivo pelo

Poder Legislativo atividade plenamente compatível com o postulado do Princípio

Democrático:

“ADI-MC 775/RS - RIO GRANDE DO SUL Relator(a): Min. CELSO DE MELLO EMENTA: GOVERNADOR E VICE-GOVERNADOR DO ESTADO - AFASTAMENTO DO PAÍS POR QUALQUER TEMPO - NECESSIDADE DE AUTORIZAÇÃO DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA, SOB PENA DE PERDA DO CARGO - ALEGADA OFENSA AO POSTULADO DA SEPARAÇÃO DE PODERES - MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. A FISCALIZAÇÃO PARLAMENTAR COMO INSTRUMENTO CONSTITUCIONAL DE CONTROLE DO PODER EXECUTIVO: GOVERNADOR DE ESTADO E AUSÊNCIA DO TERRITÓRIO NACIONAL. - O Poder Executivo, nos regimes democráticos, há de ser um poder constitucionalmente sujeito à fiscalização parlamentar e permanentemente exposto ao controle político-administrativo do Poder Legislativo. - A necessidade de ampla fiscalização parlamentar das atividades do Executivo - a partir do controle exercido sobre o próprio Chefe desse Poder do Estado - traduz exigência plenamente compatível com o postulado do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, "caput") e com as conseqüências político-jurídicas que derivam da consagração constitucional do princípio republicano e da separação de poderes.”

Da análise de outras decisões, extraímos, que o Supremo Tribunal Federal

coloca até mesmo o sobreprincípio da Segurança Jurídica, no dizer de Paulo de Barros

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Carvalho, como um subprincípio do Estado Democrático de Direito:

“MS 26117/DF - DISTRITO FEDERAL (...) o decurso do tempo para a apreciação de questões pelo Tribunal de Contas da União investe contra a segurança jurídica, enquanto subprincípio do Estado Democrático de Direito.” (Ministro Eros Grau – Relator)

Percebe-se da leitura das decisões do Supremo Tribunal Federal singular

característica que somente comprova a nossa premissa: muito mais que mencionar eventual

afronta ao Princípio Democrático de forma direta, aprecia-se a lesão ao Estado

Democrático de Direito, às instituições democráticas, e às demais normas jurídicas que são

desdobramentos do referido princípio. Isso ocorre, também, em virtude de outros fatores, já

explanados ao longo desta dissertação, dentre os quais, citamos, a título meramente

exemplificativo: o Princípio Democrático, como visto nas decisões, é fundamento de todo o

Estado de Direito, e assim sendo, serve de base a todas as normas jurídicas que o

estruturam, sendo, portanto, mais comum, a ofensa direta a ditas normas que ao próprio

princípio.

Assim, além de todos os fundamentos acima apontados a comprovarem a

supremacia do Princípio Democrático sobre os demais, temos também toda uma construção

jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal a corroborar da tese pela supremacia do

referido princípio sobre as demais normas jurídicas do sistema, o que robustece, de forma

ainda mais sólida, a tese ora sustentada, pois tal decisão não é meramente opinativa

(doutrinária), mas, sim, jurisdicional.

17. Do Princípio Democrático como norma jurídica fundante da atividade

tributária estatal (Norma de habilitação ao poder de tributar)

Vimos no item anterior a indicação de alguns fundamentos jurídico-

científicos, os quais acreditamos sejam suficientes para a caracterização do Princípio

Democrático como norma jurídica fundante de toda a atividade jurídica estatal.

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Demonstrar-se-á, em seqüência, a irrefutável correlação do Princípio

Democrático e suas formas de representação com o Princípio da Legalidade, o qual, por sua

vez, serve de fundamento ao Princípio da Legalidade Tributária, que possui ampla conexão

com a outorga das competências fiscais aos entes tributantes. Senão, vejamos.

17.a.) O Princípio Democrático e suas implicações com o Princípio da

Legalidade.

Por servir o Princípio Democrático de fundamento à atividade jurídica

estatal, e sendo a atividade tributária apenas parte da atividade do Estado, os mesmos

fundamentos utilizados para a demonstração do referido princípio como fundamento da

atuação estatal, por muito maiores razões, servem agora para demonstração do Princípio

Democrático como fundamento de toda a atividade jurídica tributária estatal (argumento a

fortiori).

Recordemos quais são esses fundamentos gerais:

1) A adoção do valor “democracia” pela Constituição sob a forma de norma-princípio;

2) A prevalência de normas-princípio sobre normas-regra;

3) A caracterização pelo legislador constituinte do Princípio Democrático como um

princípio fundamental;

4) Sendo o Princípio Democrático de ordem fundamental, prevalece, também, sobre os

demais princípios não-fundamentais;

5) A subordinação lógica dos demais princípios fundamentais ao Princípio Democrático;

6) A topografia do Princípio Democrático no Texto Constitucional e os seus

desdobramentos (preâmbulo, art. 1º, caput, e parágrafo único, arts. 27, 28 e 29, 45,46 e 47,

e 76 a 82 da CF, dentre outros);

7) A caracterização da forma estatal em que se constitui a República como sendo um

Estado Democrático de Direito;

8) O pluralismo político como um dos fundamentos da República (art. 1º, V);

9) A vinculação de todos os poderes constitucionalmente instituídos ao Princípio

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Democrático - todo o poder como sendo emanado do povo e a forma do seu exercício de

modo direto por este ou por seus representantes diretamente eleitos (art. 1º, parágrafo

único);

10) As previsões constitucionais de exercício de alguns dos poderes constituídos de forma

direta (arts. 5º, LXIX, LXXIII, art. 14, I, II, e III, etc.);

11) A previsão pelo exercício do poder mediante representação, que, na maioria dos casos,

também é direta (membros do Poder Legislativo e Executivo – preâmbulo, art. 1º, caput, e

parágrafo único, arts. 27, 28 e 29, 45, 46 e 47, e 76 a 82 da CF);

12) Mesmo no caso de representantes não-eleitos, estes são nomeados pelos representantes

diretos da população, pela utilização de critérios que contemplam o Princípio Democrático

com maior efetividade (ex.: concurso público de provas e títulos para os membros do Poder

Judiciário e do Ministério Público);

13) E, por fim, a proclamação da Constituição Federal pelos constituintes, na qualidade de

representantes do povo brasileiro que foram, e no intuito de instituir um Estado

Democrático de Direito, constante do preâmbulo.

Principalmente dos itens 6, 8, 10 e 11 acima, percebemos que o Princípio

Democrático possui implicações bastante estreitas com o Princípio da Legalidade, pois, no

caso específico do sistema jurídico brasileiro (relações sintáticas), na Constituição Federal

de 1988, o Princípio Democrático adquiriu como características predominantes, a

diferenciá-lo das constituições anteriores, um incremento das previsões constitucionais de

participação popular e representação diretas na formulação do processo das leis que

regulam a conduta dos cidadãos.

Assim, o Princípio Democrático tem no Princípio da Legalidade

estabelecido no art. 5º, II, da Constituição Federal, não somente o dever de estabelecer a

necessidade da regulação das condutas dos cidadãos por intermédio da lei, mas, muito mais

que isso, um verdadeiro instrumento de afastamento do arbítrio estatal e promoção do Bem

Comum (Alfredo Augusto Becker).

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17.b.) O Princípio da Legalidade Tributária e a competência tributária do

ente de direito público interno.

Não bastassem os fundamentos indicados no subitem anterior, cabe a

advertência no sentido de que, uma das formas mais comumente verificadas de práticas

arbitrárias por parte do Estado ocorre pelo exercício deturpado da sua competência

tributária, na expropriação descomedida dos recursos dos seus cidadãos-contribuintes.

Ao abordarmos o tratamento constitucional do Princípio Democrático, em

relação aos seus desdobramentos concernentes à matéria tributária, temos ainda outros

tantos fundamentos a confirmar o exposto na presente dissertação. A começar pela análise

do Princípio da Legalidade Tributária, constante do art. 150, I, do Texto Constitucional, e

tão caro aos contribuintes, tendo em vista a irrefutável vinculação do legislador tributário à

lei (constitucional e infraconstitucional), quando da instituição de qualquer exação, e ainda,

do Executivo, quando da sua fiscalização e cobrança:

“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;”

O Princípio específico da Legalidade Tributária nada mais representa que a

transposição do Princípio da Legalidade (geral), constante do art. 5º, II, da Constituição

Federal para o campo tributário:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;”

Portanto, como a instituição, a fiscalização e a cobrança dos tributos dá-se

dentro dos estritos limites da legalidade, ressalvadas as hipóteses constitucionais de

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exceção à aplicação do Princípio da Legalidade (ex: possibilidade de majoração ou redução

do tributo - art. 97, II e IV, do CTN), somente atendido o referido princípio poderia, de

início, o Supremo Tribunal Federal referendar a instituição de qualquer cobrança

(apreciados, obviamente, os demais requisitos legais à sua instituição e a competência

jurisdicional do próprio Tribunal para dizer se o tributo foi constitucionalmente instituído

ou não).

Ao analisar qualquer hipótese envolvendo o Princípio da Legalidade

Tributária estará o Supremo Tribunal Federal, em realidade, decidindo se o ente de direito

público interno age dentro dos limites de sua própria competência tributária, aquela que lhe

é constitucionalmente atribuída.

Desse modo, cabe afirmar que a importância do Princípio da Legalidade

para o Direito Tributário está intimamente ligada ao estudo da competência fiscal do ente

tributante, visto ser essa resultante da própria constituição e da lei.

Vale o parêntesis no sentido de que a doutrina constitucional atualmente

mais em voga95, ao dissertar sobre as principais funções das constituições nos Estados

modernos, visualiza três desideratos que mais comumente aparecem nos textos em todo o

mundo: 1) a estruturação do Estado, com sua respectiva subdivisão (tripartição de poderes)

e colocação dos principais órgãos de atuação estatal; 2) o estabelecimento de limites à

atuação estatal, no intuito de proteger os cidadãos-legiferados; 3) arrolamento de direitos e

garantias individuais fundamentais à sociedade, num alargamento da proteção aos que estão

sob a égide constitucional.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho também vê como função da Constituição a

outorga dos direitos e garantias fundamentais aos cidadãos, embora não desconheça um

novo caráter dirigente ao Texto96:

95. Moraes, Alexandre de. Curso de Direito Constitucional. Atlas. São Paulo: 2001, p. 34-35. 96 Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Comentários à constituição brasileira de 1988. Vol. I. Arts. 1º a 103. Saraiva. São Paulo: 2000, p. 4.

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“Persiste a idéia de que a Constituição tem por função assegurar direitos fundamentais, sejam eles políticos, sejam econômicos e sociais. É verdade que, para promover alguns destes últimos, são previstos programas de ação governamental, que já orientam, nalguns pontos, a atuação dos governos sucessivos.”

Assim sendo, como que num movimento cíclico, a sociedade por intermédio

de seus constituintes põe a Constituição, que, por sua vez, estabelece o que é o Estado, e

para com este, apesar de se confundir com a própria sociedade, visto que fruto da mesma

(Sociologia Jurídica), é reconhecido um histórico de arbitrariedades na atuação dos

detentores do poder para com os cidadãos, de modo que se faz necessária a inserção de

limites à sua atuação, em instância constitucional.

Como em matéria de ciência a unificação deve ser privilegiada como

método orientador, das funções constitucionais ora aventadas, visualizamos apenas uma

dentre elas: a própria estruturação de funcionamento do Estado, visto que, a terceira função

(estabelecimento de direitos e garantias individuais) resumir-se-ia à segunda (limites

estatais), pois as limitações à atuação do Estado são postas pelo rol de direitos e garantias

outorgados aos cidadãos. E mais, essa conclusão se resume à primeira função (estruturação

do funcionamento do Estado), já que este é estruturado em momento simultâneo às suas

limitações, ou seja, sua “estrutura” não é posteriormente limitada pelos direitos e garantias,

mas já nasce delimitada pelo disposto no texto constitucional, inclusive, pelo rol de

direitos.

Ora, nos termos da própria Constituição, o Princípio da Legalidade

estabelece que ninguém poderá fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de

lei (art. 5º, II). Assim, o que não está legalmente proibido, é legalmente autorizado,

conforme notório brocardo, e numa aplicação da teoria da interdefinibilidade de modais

deônticos97. Ressalvando-se que esse princípio lógico submete-se a um critério de

demarcação: ele só se aplica no campo das condutas a) contingentes; não porém, no campo

das condutas b) necessárias; e c) impossíveis (modais aléticos).

97 V. apostila da disciplina de Lógica Jurídica ministrada pelo Prof. Paulo de Barros Carvalho na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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Assim, ali onde não existir a atuação estatal, onde o Estado não estiver

obrigado a atuar em exclusividade, e conseqüentemente, o cidadão não estiver impedido de

atuar livremente, será lícita qualquer atuação privada (CF, Art. 5º, II).

Neste sentido, temos como uma das principais funções da Constituição

Federal, a salvaguarda dos cidadãos às restrições ao exercício de suas liberdades.

Ao analisar as hipóteses juridicamente possíveis de exação dos cidadãos

pelo Estado, Geraldo Ataliba98 indicou quatro hipóteses taxativamente possíveis: a) multa;

b) obrigação convencional; c) indenização por dano; d) tributo. Tomamos como verdadeira

tal proposição descritiva, por total conformidade com o texto constitucional. Cremos serem

essas portanto as únicas hipóteses em que o cidadão pode ser coagido à conduta de levar

dinheiro aos cofres públicos - todas são instituídas por lei ou contrato público em lei

fundamentado.

Sendo a atuação tributária uma restrição legal (constitucional) à liberdade do

cidadão, em razão da necessidade de custeio da própria máquina estatal, esta deve

necessariamente ser instrumentalizada pelo Estado nos estritos termos da Constituição

Federal, que estabelece limites rígidos à sua atuação nesse campo, visando o afastamento

da ocorrência de eventuais constrições indevidas ao patrimônio dos contribuintes. Toda

atribuição de competência implica (i) autorização e (ii) proibição99.

Contudo, o sistema tributário nacional, como conjunto de normas-princípio e

normas-regra concernentes à atividade tributária, visa não somente proteger o cidadão-

contribuinte de ilegalidades no exercício da tributação, como também proteger o próprio

Estado, ao estabelecer prerrogativas e limites da sua correta atuação na instituição das

exações tributárias.

98 Ataliba, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6ª ed., 5ª tiragem, p. 36. Malheiros. São Paulo: 2004. 99 Forsthoff, Ernst. Tratado de derecho administrativo. Instituto de Estudos Políticos, Madri, 1958, n.º 573: “Toda atribución de competencia representa al mismo tiempo una autorización y una limitación. La autorización para el cumplimiento de la función asignada; y la limitación, precisamente a esta función”.

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Toda essa atividade, podemos concluir do exposto nos itens anteriores,

deriva da eficácia técnica, inerente ao ordenamento jurídico, do próprio Princípio

Democrático.

Muito se escreveu sobre o Princípio da Legalidade em matéria tributária e

suas implicações com a competência tributária. Por não consistir objetivo precípuo do

presente trabalho, não pretendemos cansar os leitores com a repetição de tão bem colocados

argumentos científicos a respeito da matéria, de maneira que remetemos a atenção para os

textos pertinentes100.

Contudo, apenas numa síntese daquilo que é pertinente ao desenvolvimento

do nosso tema, afirmamos que a atividade tributária do Estado resulta da eficácia do

Princípio Democrático e decorre da análise dos seguintes atos jurídicos – característicos da

formação da lei tributária (em sentido amplo), no ordenamento jurídico brasileiro:

1º) A população elege os seus representantes no Congresso Nacional, os quais, a

posteriori, funcionarão na instalação da Assembléia Nacional Constituinte (ainda que não

tenham sido eleitos para o fim específico de elaboração da Constituição101, com implicações

100 Ataliba, Geraldo. Hipótese de incidência tributária, 5ª ed., Malheiros. São Paulo: 1992, pp. 53-54; Coelho, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro, 2ª ed. Forense. Rio de Janeiro: 1999, pp. 118 e seguintes; e ainda, Carrazza, Roque. Curso de Direito Constitucional Tributário, 12ª ed..Malheiros. São Paulo: 1999, pp. 167 e seguintes. 101 Como bem acentuado pelo Prof. Fábio Konder Comparato, a Assembléia Nacional Constituinte instalada para a elaboração do Texto, não foi eleita para esse fim específico: “Em 5 de outubro próximo, a Constituição Federal completará 20 anos de vigência. É mais do que tempo de se reconhecer o que, até hoje, poucos têm tido a coragem de declarar: ela carece de legitimidade democrática. A Constituição de 1988 foi elaborada não por uma Assembléia especialmente criada para esse fim, mas por um órgão político já existente, o Congresso Nacional. O texto abre-se com a declaração solene: "Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático etc.". Em um Estado democrático, a soberania pertence ao povo, que não pode delegar o seu uso a ninguém. A aprovação de uma nova Constituição é o primeiro e principal atributo da soberania. Mas o povo brasileiro não foi chamado a dizer se aceitava o documento composto em seu nome e por sua conta. Aproveitando-se desse vício de origem, o Congresso atribuiu a si próprio todo o poder de reforma constitucional. Com base nessa espúria prerrogativa, ele já emendou a Constituição, até a data em que escrevo estas linhas, 62 vezes (uma média de três emendas por ano). Sempre em nome do povo. Mas este não tem nem sequer direito de apresentar propostas de emenda constitucional. Trata-se, como se vê, de um soberano de opereta, ou, se preferirem, do rei Momo de um permanente carnaval político.” Jornal Folha de São Paulo. Coluna Opinião. Edição do dia 03 de março de 2008 constante do sítio eletrônico do Portal Universo on-line http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0303200809.htm.

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na questão da legimitação constituinte);

2º) Os parlamentares constituintes elaboram o Texto Constitucional de 1988 não só

“legitimados” pelo mandato legislativo que lhes fora então conferido pelo povo (ainda que

parcialmente, pois não legitimados como constituintes), mas, também, quando da

elaboração da parte do Texto relativa ao Sistema Tributário Nacional (não somente o Título

VI da CF, como todas as demais normas constitucionais tributárias – ex.: art. 43, §2º, III;

demais disposições do Título VIII; art. 195 e seguintes; etc.), promovem a audiência de

várias autoridades acadêmicas em Direito Tributário, dentre Professores, especialistas, e

representantes dos diversos setores da atividade econômica que compõem a base tributável

(participação popular - análise pragmática);

3º) Ao elaborarem o Texto do Sistema Tributário Nacional, os constituintes

estabeleceram o que a linguagem doutrinária denomina “Estatuto do Contribuinte”, o qual,

a despeito das suas inúmeras emendas, dispôs originariamente sobre quais seriam os

tributos; quais entes seriam legitimados para a instituição de quais dentre os tributos

constitucionalmente possíveis de instituição; e em que moldes se daria essa instituição

(agente, matéria e procedimento);

4º) Para aqueles que encaram os atos jurídicos praticados em momento prévio à

elaboração da Constituição como sendo extradogmáticos: fundados nas disposições

constitucionais vigentes em momento posterior à sua promulgação (ou vigência), que o

legislador infraconstitucional (ordinário, e eleito de forma direta pela sociedade) procede à

formulação dos atos normativos tributários, limitado pelos moldes previamente

estabelecidos pelo legislador constitucional; na competência que lhe é outorgada pela

própria Constituição (v. também arts. 6º e seguintes do CTN);

5º) Se por algum motivo os destinatários da norma jurídica tributária formulada pelo

legislador eleito não se conformarem com algum aspecto ilícito na sua instituição (agente,

matéria ou forma prevista na Constituição), ou o próprio Estado não concordar com a

negativa do contribuinte em cumprir determinada prestação ou eventual equívoco no seu

recolhimento, ambos hão de buscar amparo no Poder Judiciário, que por intermédio do

Supremo Tribunal Federal decidirá a lide, em última instância, e eventuais ofensas à

Constituição Federal (levando em consideração que todo o ordenamento jurídico-tributário

decorre da Constituição).

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E assim também o faz o Supremo Tribunal Federal, em relação às lides

submetidas à sua apreciação. Por exemplo, ao apreciar a legitimidade da contribuição à

seguridade social sobre a remuneração dos servidores ativos e inativos, inicialmente, se

pronunciou o Tribunal pela transgressão à integridade da ordem democrática, por parte da

Presidência da República, na regulação de matéria que já tenha sido objeto de deliberação

por projeto de lei, na mesma sessão legislativa, incorrendo, assim, em vício procedimental

ao instituir a exação pretendida via medida provisória rejeitada na mesma sessão:

“ADI-MC 2010/DF - DISTRITO FEDERAL (...) EMENTA: SERVIDORES PÚBLICOS FEDERAIS - CONTRIBUIÇÃO DE SEGURIDADE SOCIAL - LEI Nº 9.783/99 - ARGÜIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL E MATERIAL DESSE DIPLOMA LEGISLATIVO - RELEVÂNCIA JURÍDICA DA TESE PERTINENTE À NÃO-INCIDÊNCIA DA CONTRIBUIÇÃO DE SEGURIDADE SOCIAL SOBRE SERVIDORES INATIVOS E PENSIONISTAS DA UNIÃO FEDERAL (CF, ART. 40, CAPUT, E RESPECTIVO § 12, C/C O ART. 195, II, NA REDAÇÃO DADA PELA EC Nº 20/98) - ALÍQUOTAS PROGRESSIVAS - ESCALA DE PROGRESSIVIDADE DOS ADICIONAIS TEMPORÁRIOS (ART. 2º DA LEI Nº 9.783/99) - ALEGAÇÃO DE OFENSA AO PRINCÍPIO QUE VEDA A TRIBUTAÇÃO CONFISCATÓRIA (CF, ART. 150, IV) E DE DESCARACTERIZAÇÃO DA FUNÇÃO CONSTITUCIONAL INERENTE À CONTRIBUIÇÃO DE SEGURIDADE SOCIAL - PLAUSIBILIDADE JURÍDICA - MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA EM PARTE. PRINCÍPIO DA IRREPETIBILIDADE DOS PROJETOS REJEITADOS NA MESMA SESSÃO LEGISLATIVA (CF, ART. 67) - MEDIDA PROVISÓRIA REJEITADA PELO CONGRESSO NACIONAL - POSSIBILIDADE DE APRESENTAÇÃO DE PROJETO DE LEI, PELO PRESIDENTE DA REPÚBLICA, NO INÍCIO DO ANO SEGUINTE ÀQUELE EM QUE SE DEU A REJEIÇÃO PARLAMENTAR DA MEDIDA PROVISÓRIA. (...) - O Presidente da República, no entanto, sob pena de ofensa ao princípio da separação de poderes e de transgressão à integridade da ordem democrática, não pode valer-se de medida provisória para disciplinar matéria que já tenha sido objeto de projeto de lei anteriormente rejeitado na mesma sessão legislativa (RTJ 166/890, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI). Também pelas mesmas razões, o Chefe do Poder Executivo da União não pode reeditar medida provisória que veicule matéria constante de outra medida provisória anteriormente rejeitada pelo Congresso Nacional” (RTJ 146/707-708, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

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Prossegue ainda o ilustre Ministro Celso de Mello explicitando o

entendimento de que a própria supremacia da ordem constitucional decorre dos valores

democráticos que a informam, descabendo falar-se sequer em razões de Estado para

legitimação da agressão a tais valores:

“RAZÕES DE ESTADO NÃO PODEM SER INVOCADAS PARA LEGITIMAR O DESRESPEITO À SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. - A invocação das razões de Estado - além de deslegitimar-se como fundamento idôneo de justificação de medidas legislativas - representa, por efeito das gravíssimas conseqüências provocadas por seu eventual acolhimento, uma ameaça inadmissível às liberdades públicas, à supremacia da ordem constitucional e aos valores democráticos que a informam, culminando por introduzir, no sistema de direito positivo, um preocupante fator de ruptura e de desestabilização político-jurídica. Nada compensa a ruptura da ordem constitucional. Nada recompõe os gravíssimos efeitos que derivam do gesto de infidelidade ao texto da Lei Fundamental. A defesa da Constituição não se expõe, nem deve submeter-se, a qualquer juízo de oportunidade ou de conveniência, muito menos a avaliações discricionárias fundadas em razões de pragmatismo governamental. A relação do Poder e de seus agentes, com a Constituição, há de ser, necessariamente, uma relação de respeito. Se, em determinado momento histórico, circunstâncias de fato ou de direito reclamarem a alteração da Constituição, em ordem a conferir-lhe um sentido de maior contemporaneidade, para ajustá-la, desse modo, às novas exigências ditadas por necessidades políticas, sociais ou econômicas, impor-se-á a prévia modificação do texto da Lei Fundamental, com estrita observância das limitações e do processo de reforma estabelecidos na própria Carta Política.”

Ao afirmar que a invocação das razões de Estado representa ameaça

inadmissível às liberdades públicas, à supremacia da ordem constitucional e aos valores

democráticos que a informam e o eventual acolhimento dessas razões finda por introduzir,

no sistema de direito positivo, um preocupante fator de ruptura e de desestabilização

político-jurídica, o Pretório Excelso coloca o Princípio Democrático no seu devido lugar na

hierarquia estabelecida pela Constituição: como um princípio fundamental, basilar ao

Estado de Direito.

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Como se depreende das suas decisões, o tratamento normativo-

constitucional atribuído pelo Supremo Tribunal Federal ao Princípio Democrático somente

vem a corroborar o exposto no presente trabalho, pela prevalência do referido princípio em

relação a todos as demais normas-princípio e normas-regra constantes do ordenamento

jurídico brasileiro, principalmente pela característica deste servir-lhes de fundamento de

validade.

Afirmada a prevalência do Princípio Democrático sobre as demais normas

jurídicas, passemos a dissertar sobre o segundo objetivo do presente trabalho:

demonstração da possibilidade de utilização dos seus desdobramentos numa nova proposta

hermeneutico-aplicativa.

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PARTE IV

PROPOSTA DE INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DOS DESDOBRAMENTOS

DO PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO NO ÂMBITO DO DIREITO TRIBUTÁRIO

18. Da contraposição conceitual: “mens legis” versus “mens legislatoris” e da

colocação do problema hermenêutico.

Demonstrada a prevalência do Princípio Democrático na atividade jurídica

tributária estatal (Parte III), e tendo em vista a necessidade de consideração dessa conclusão

para qualquer atividade interpretativa/aplicativa, passemos ao objetivo secundário do

presente trabalho, qual seja: a utilização de uma proposta hermenêutica alternativa, que

utilize como método os subsídios que nos são fornecidos pelos desdobramentos do

Princípio Democrático para o ato de aplicação/interpretação do Jurídico.

Como adiantado no item 16.c, as decisões de mérito do Supremo Tribunal

Federal, nos termos do art. 102, caput, da Constituição Federal, nos fornecem um norte para

interpretação e aplicação das normas jurídicas, na necessidade de regulação de conduta

análoga àquela já decidida pela Corte, em hipótese semelhante.

Contudo, as interpretações constitucionais tidas como válidas pelo Tribunal

- mesmo nos casos de ações diretas, em que são preexcluídas todas as instâncias inferiores,

encurtando-se o processo - somente vem a ser conhecida pelos jurisdicionados (pela

ocorrência dos julgamentos e publicação de suas decisões) após transcorrido lapso de

tempo considerável da efetiva ocorrência da conduta ou da publicação do ato normativo em

questão pelo ente legislativo competente, em parte, pela ausência de previsão para

realização de um controle de constitucionalidade prévio, conforme assentado pelo Min.

Celso de Mello, em citação de Gilmar Ferreira Mendes constante do voto proferido em

relatoria da ADI n.º 432:

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“Assinale-se que o nosso direito positivo não admite o controle preventivo de constitucionalidade ‘in abstracto’ tal como ocorre, desde 1956, no sistema germânico de jurisdição constitucional, em que – consoante registra GILMAR FERREIRA MENDES (‘Controle de Constitucionalidade – Aspectos Jurídicos e Políticos’, p. 161, 1990, Saraiva) ‘O Bundesverfassungsgericht considera que o controle de normas pressupõe a existência de ato legislativo formal, afigurando-se, incompatível, por isso, com qualquer modalidade ou mecanismo de índole preventiva. Dessarte, antes da publicação da norma, não há que se cuidar de controle de constitucionalidade”

Como se vê do próprio posicionamento da Corte, não é admitido o controle

constitucional prévio no sistema jurídico brasileiro, que requer a publicação de ato

legislativo formal para, mediante provocação, desencadear o controle.

Assim, os pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal são a suma

manifestação da mens legis aplicada ao caso concreto, e somente com base no conteúdo

deles decorrentes é que os sujeitos-de-direito envolvidos na lide terão acesso a única

interpretação constitucionalmente válida para determinado texto legislativo, no sentido de

que terão o maior grau possível de segurança jurídica, caso pautadas suas condutas com

base naquilo que pelo Tribunal foi decidido.

Saliente-se que essa interpretação atribuída pelo Supremo Tribunal Federal

atribui alguma segurança jurídica às partes envolvidas no caso concreto, sem, contudo,

vincular a atuação da Corte para casos análogos no futuro, cujo exame, mais uma vez,

dependerá das próprias circunstâncias casuísticas.

Contudo, a impossibilidade de um posicionamento prévio à ocorrência das

condutas, por parte do Supremo Tribunal Federal, bem como, a necessidade de uma análise

casuística (com todos as peculiaridades específico), resulta nas mais diversas agressões ao

Princípio da Segurança Jurídica, pois, a todo instante surgem questionamentos em relação à

interpretação que deverá ser atribuída a determinado dispositivo legislativo

(constitucional), diante das múltiplas possibilidades de significações lingüísticas dele

decorrentes.

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Alguns exemplos colhidos da análise pragmática do ordenamento tributário

confirmam tal assertiva, a saber: art. 195, I, b, seria a receita bruta equivalente ao

faturamento, para efeito de tributação das contribuições sociais? Para efeito de tributação

dessas contribuições, devem ser incluídas na receita bruta as receitas não operacionais?; ou,

em relação ao art. 155, II, incide o tributo nas operações de arrendamento mercantil, em

que não haja a aquisição do bem ao final do contrato? Em relação ao crédito-prêmio de IPI,

possui o referido benefício caráter setorial (art. 41, ADCT)? Qual o alcance da Resolução

71/05 do Senado Federal em relação às decisões futuras do judiciário sobre o crédito? Em

relação aos insumos isentos, estes conferem direito a crédito de IPI ou apenas os não

tributados e os tributados à alíquota zero (art. 153, IV, §3º, II)?

Além disso, mesmo nesses momentos de completa insegurança jurídica, pela

ausência de definição pelo Supremo Tribunal Federal da interpretação válida em definitivo

para a hipótese específica, no caso de determinado texto legislativo instituidor de um

tributo, este não deixa de surtir efeitos econômicos (até mesmo pela presunção de

constitucionalidade das leis) nas respectivas esferas patrimoniais dos contribuintes e do

fisco, as quais, por razões de lógica empresarial e eficiência administrativa, usualmente,

passam a ser reguladas pela adoção da interpretação que simplesmente lhes seja

economicamente mais favorável – interpretações, portanto, intrinsecamente discrepantes.

Esse comportamento divergente decorre da interpretação que cada uma das

partes interessadas na aplicação de determinada norma jurídica atribui ao texto normativo-

constitucional (ou infraconstitucional), na persecução de um sentido válido a ser atribuído

ao referido texto legislativo.

O conceito da mens legis ganhou força doutrinária e jurisprudencial pela

aplicação equivocada do seu conceito contraposto da mens legislatoris, cuja desvirtuação

no entendimento da sua correta acepção levou alguns estudiosos, como Aliomar Baleeiro, a

declarar a impossibilidade de “psicanalisar” a vontade do legislador. Correta a assertiva de

Baleeiro se adotada a mens legislatoris na concepção do desejo mental pessoal

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(psicológico) do legislador. Caso adotado o melhor entendimento pela mens legislatoris,

como ora propomos, entendida como sendo o intuito legal (constitucional) do órgão ou

agente legislativo, devidamente objetivado, por intermédio dos atos de enunciação

legislativa (exposições de motivos, justificativas de propostas, considerandos, anais

congressuais, razões de veto, etc.), não há que se falar em psicanálise do legislador.

Como se vê da situação acima exposta, tem-se a abertura da possibilidade de

atribuição de inúmeros sentidos a cada texto normativo, ante a subjetividade daqueles que

serão responsáveis pela sua interpretação/aplicação (partes interessadas e órgãos

judicantes). Contudo, apenas uma interpretação será tida como válida ao final (mens legis

propriamente dita), e normalmente, como visto, esta interpretação é aquela atribuída pelo

Supremo Tribunal Federal (guardados os filtros normativos e jurisprudenciais de restrição

do conhecimento da ação ou recurso e a possibilidade de aplicação imediata de sua

jurisprudência, mesmo pelas instâncias inferiores, ainda que em caráter não definitivo).

Assim sendo, desde i) a expedição da norma jurídica, e o momento de

regulação da conduta; até ii) a apreciação da validade da interpretação que se está

atribuindo a determinado texto legislativo (constitucional) pelo Supremo Tribunal Federal,

remanesce uma lacuna temporal de relativa incerteza (insegurança jurídica102) quanto à

correta interpretação a ser adotada em relação ao referido texto legislativo, que, mesmo

assim, não deixa de submeter a sociedade ao pleno surtimento de seus efeitos, sejam eles

tidos ou não por inconstitucionais, a posteriori, pela Corte, inclusive pela regra geral de

vigência dos atos normativos (LICC, art. 1º, do Decreto-lei n.º 4.657/42103), bem como pela

presunção de constitucionalidade das leis.

Note-se que a insegurança jurídica decorrente desse período de incerteza

quanto à correta interpretação constitucional da norma jurídica, tem levado o Supremo

Tribunal Federal a, cada vez mais, fazer uso de instrumental decisório de limitação 102 Anota Paulo Ayres Barreto que “É exigência do próprio sistema que toda solução de controvérsia, por intermédio de ato jurisdicional, encerre uma conduta certa.” Imposto sobre a renda e preços de transferência. Dialética. São Paulo: 2001, p. 42.

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temporal dos efeitos de seus julgados104, em reconhecimento da necessidade de mitigação

dos respectivos efeitos de suas decisões, diante das ruinosas conseqüências que decorreriam

da prolação de julgado sem quaisquer cautelas temporais.

Como então solucionar problema tão sério, e de conseqüências ainda mais

preocupantes? É o que pretendemos com a nossa proposta de interpretação e aplicação, que

visa a contornar (ou ao menos mitigar) a indefinição resultante da incerteza jurídica que até

o momento reina no sistema jurídico, durante esse interregno.

19. Retomada do prestígio da "mens legislatoris"

19.a.) Da “mens legislatoris” como resultado da deliberação congressual e

da eficácia do Princípio Democrático

A solução proposta pelo presente trabalho visa adotar um novo método

interpretativo/aplicativo do Jurídico, que parta, necessariamente, da consideração do

Princípio Democrático como norma jurídica fundante da atividade tributária estatal e da

utilização de alguns de seus desdobramentos no sistema jurídico tributário para elucidação

de um sentido normativo mais próximo àquele que deva ser referendado, a posteriori, pelo

Supremo Tribunal Federal como legítimo. Digamos, uma “interpretação democrática do

Direito Tributário”.

A adoção dessa premissa inicial deve ser agregada à consideração da mens

legislatoris, não como usualmente conhecida e criticada105, como sendo a vontade que tinha

103 “Art. 1o Salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada.” 104 V. por exemplo o art. 27 da Lei n.º 9.868/99: “Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.” 105 Eros Grau chega a afirmar com uma verve bem humorada que “A única virtude da teoria da vontade do legislador está em que ela conduz a uma proposta de exercício de ciência cooperativa entre advogado, psicólogo e kardecista – porque, se o legislador estiver morto, para captarmos a sua vontade deveremos contar com o auxílio de um kardecista.” apud França, Vladimir da Rocha. Estrutura e motivação do ato administrativo. Malheiros. São Paulo: 2007.

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o político, o parlamentar, o membro do Poder Legislativo – como fruto do desejo mental

(íntimo, não formalizado) da pessoa do legislador, como já adiantado no item anterior.

Diferentemente, propugnamos deva ser encarada a mens legislatoris como

uma manifestação da eficácia do Princípio Democrático, como uma imposição do próprio

ordenamento (motivação do ato legislativo/normativo), resultante da aplicação de seus

desdobramentos jurídicos.

Desse modo, acreditamos seja mais coerente a utilização do conceito de

mens legislatoris como sendo aquela finalidade expressa constante da exposição de motivos

dos atos legislativos (normativos), dos seus considerandos, das justificativas das

proposições, dos próprios anais legislativos do respectivo órgão emissor da norma, etc..

Tudo em atendimento à necessidade de atribuição de um amplo alcance inter-normativo

(sintático) ao Princípio Democrático (eficácia técnica e jurídica), tendo em vista que todos

os poderes dele emanam.

Ao menos um dentre esses atos sempre haverá de estar presente no processo

de formação das leis (maior objetividade), e, portanto, disponível para consulta do

interprete/aplicador106, diferentemente da utilização da mens legis, que advém

exclusivamente da capacidade de atribuição pelo intérprete/aplicador daquele sentido do

texto legislativo que lhe seja mais vantajoso (maior subjetividade).

106 A esse respeito, vale a anotação de que, como ato legislativo mais comumente utilizado para regulação das condutas no nosso sistema, temos em todas as Medidas Provisórias editadas a partir da Emenda Constitucional n.º 32/01, a disponibilização das respectivas exposições de motivos que ensejaram as suas edições, no site do planalto www.planalto.gov.br. Ademais, como bem lecionado por Philipp Heck: “No essencial, as condições para essa investigação são até particularmente favoráveis: muitas vezes, o fim da lei é explicado antecipadamente na literatura e na imprensa judicial; outras vezes, reúnem-se comissões preliminares destinadas a estudar a posição dos interesses; em regra, o projeto é acompanhado da exposição dos motivos; a discussão no parlamento e eventualmente nas comissões põe em relevo, por vezes com notável agudeza, os interesses causais. Tudo isto falta, é certo, em muitos casos, mas não é razão para renunciar à investigação dos interesses causais quando possível (...) A única coisa que podemos esperar dum legislador que inclua os trabalhos preparatórios no elemento histórico, é que torne acessíveis esses trabalhos. E isso hoje é corrente.(...) Ora, a publicação completa o acto legislativo e é, por isso, a expressão necessária da vontade legislativa (perfeicção do acto de comando contido na lei).” Heck, Philipp. Interpretação da lei e jurisprudência dos interesses, in Coleção Stvdivm – Temas Filosóficos, jurídicos e sociais. Livraria Acadêmica. Saraiva e Cia. Editores. São Paulo: 1947, p. 69, 83 e 86.

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Saliente-se que a proposta de interpretação/aplicação ora sugerida concorda

com Philipp Heck, Professor da Universidade de Tübingen, que em sua obra intitulada

“Interpretação da Lei e Jurisprudência de Interesses” (cujo acesso nos foi gentilmente

franqueado pelo colega Fabrício Serafini) propõe, ainda que em nomenclatura não tão

adequada, uma investigação histórica dos interesses107:

“Esse estudo levará á conclusão de que a forma de interpretação das leis que melhor satisfaz os interesses práticos é constituída pela investigação histórica dos interesses. É uma interpretação histórica – adopta os métodos da investigação histórica – mas não exclusivamente subjetiva: deve procurar sim os pensamentos exteriorizados ou revelados por meio do ato legislativo, mas a sua ação retrospectiva deve ir mais longe, até os interesses determinantes da lei, aos interesses causais. Além disso, não exclui a criação judicial do Direito, antes supõe o seu contínuo desenvolvimento jurisprudencial. Se a toda essa atividade de determinação do Direito se quiser chamar interpretação, essa será histórico-teleológica.”

A proposta de Heck é bastante semelhante à alternativa ora sugerida,

dissentindo apenas pela utilização conjunta da análise dos atos de enunciação legislativa

com a hermenêutica histórica, pregada por José Souto Maior Borges, além do maior inter-

relacionamento do Direito Tributário com outros ramos dogmáticos (cf. adiante).

Caso adotada a presente proposta pelo Supremo Tribunal Federal, os

legiferados (não só os contribuintes, como também o Estado) terão um subsídio a mais a

determinar o regramento das suas condutas, e mitigada estará a possibilidade de inúmeras

interpretações ao texto legislativo, pois, ao menos uma delas já será de conhecimento geral

(aquela decorrente das razões do ato legislativo). Vejamos, portanto seus demais

fundamentos.

19.b.) Necessidade de motivação dos atos emanados pelo Estado.

No regime constitucional antecedente a 1988, muito se discutia sobre a

efetiva necessidade de motivação dos atos estatais, mesmo dos atos administrativos, 107 Heck, Philipp. Interpretação da lei e jurisprudência dos interesses, in Coleção Stvdivm – Temas

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fazendo-se uma distinção entre a necessidade de motivação dos atos vinculados e a

desnecessidade de motivação dos atos discricionários108. Porém, todo ato de aplicação do

Direito pode ser tido como discricionário e vinculado. Assim, este dualismo é equivocado.

A diferença entre um e outro – discricionário e vinculado – não é de essência, mas de

graduação. Um ato sem nenhuma vinculação seria extrajurídico (político).

Com o advento da Constituição de 1988, a necessidade de motivação dos

atos estatais adquiriu ampla difusão na sua utilização por parte dos operadores jurídicos, em

virtude dos diversos dispositivos constitucionais que lhes atribuíam competência para tal

aplicação (Princípios Republicano, da Legalidade, Moralidade, Publicidade, Devido

Processo Legal, Contraditório, etc.).

Como exposto acima, foi com base no Princípio Democrático que os

deputados e senadores constituintes (ainda que não eleitos para este fim) elaboraram o

Texto Constitucional de 1988, pela outorga de poder que lhes fora conferida pelo próprio

povo, para exercício dos respectivos mandatos, que, em princípio, tinham função

meramente legislativa, e a posteriori, foram “complementados” com a função constituinte.

Imbuídos, assim, do poder constituinte originário (sem mencionarmos a

questão relativa à sua legitimidade), os constituintes elaboraram o Texto da Constituição

Federal de 1988, e estabeleceram como sobreprincípio a prevalecer sobre os demais

princípios constantes do nosso ordenamento o Princípio Democrático (art. 1º, caput e

parágrafo único, da Constituição Federal).

Como uma das formas possíveis de se atribuir amplo alcance ao Princípio

Democrático, estabeleceram os constituintes a previsão de eleições diretas para os

principais agentes políticos da República (membros do Poder Legislativo e Executivo –

arts. 27, 28 e 29, 45, 46 e 47, e 76 a 82 da CF), além de terem vinculado toda a competência

tributária ao Princípio da Reserva Legal (art. 150, I, CF).

Filosóficos, jurídicos e sociais. Livraria Acadêmica. Saraiva e Cia. Editores. São Paulo: 1947, p. 19. 108 Conforme bem descrito por Cintra, Antonio Carlos de Araújo. Motivo e motivação do ato administrativo. RT. São Paulo:1979, pp. 121-126.

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Com base na competência tributária estabelecida pelo legislador

constituinte, as pessoas constitucionais investidas da competência para legislar

estabeleceram, por intermédio de seus órgãos legislativos (Congresso Nacional,

Assembléias Legislativas Estaduais, Câmaras de Vereadores Municipais), determinadas

exações tributárias, na conformidade das respectivas previsões constitucionais (arts. 153 a

156, CF).

Por sua vez, o Poder Executivo procede à fiscalização e cobrança do tributo,

normalmente, com base no entendimento que lhe seja mais favorável (vantajoso

economicamente, inclusive, por uma questão de eficiência administrativa, como visto).

Contudo, e imprescindivelmente, sempre o fará fundado no veículo introdutor da referida

exação. Assim também o faz o contribuinte, embora em contraposta interpretação que,

igualmente, lhe é economicamente mais favorável, por razões de lógica empresarial - valor

devidamente amparado pelo Texto Constitucional (v. arts. 1º, IV e 170, parágrafo único).

O fato de a atividade de ambos ser pautada com base em previsão constante

do texto legislativo decorre da própria vinculação de todos os legiferados à legalidade,

conforme estabelecida não só pelo art. 5º, caput, e em decorrência do Princípio

Republicano (art. 1º), mas, especificamente, no caso da Administração Pública, pelo art. 37,

da CF:

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)”

Todavia, a despeito da previsão do dispositivo do art. 37 acima transcrito

não se apresentar de forma constitucionalmente expressa, decorrendo de construção

doutrinária e jurisprudencial, a necessidade de motivação dos atos estatais somente veio a

ter maior aplicação com o advento da Lei n.º 9.784/99, onde percebe-se a sua imposição

por vários momentos, a começar pelo art. 2º, e vários dos seus incisos, do art. 50, etc.:

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“Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: I - atuação conforme a lei e o Direito; II - atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei; (...) VI - adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público; VII - indicação dos pressupostos de fato e de direito que determinarem a decisão; VIII – observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados; IX - adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados; X - garantia dos direitos à comunicação, à apresentação de alegações finais, à produção de provas e à interposição de recursos, nos processos de que possam resultar sanções e nas situações de litígio; (...) XIII - interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.”

No art. 50 temos a necessidade de motivação dos atos administrativos, ainda

de forma mais clara:

“CAPÍTULO XII DA MOTIVAÇÃO Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando: I - neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses; II - imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções; (...) V - decidam recursos administrativos; VI - decorram de reexame de ofício; VII - deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão ou discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais; VIII - importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de ato administrativo.

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§ 1o A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato. (...) § 3o A motivação das decisões de órgãos colegiados e comissões ou de decisões orais constará da respectiva ata ou de termo escrito.”

Da leitura dos dispositivos da Lei n.º 9.784/99 acima transcritos,

percebemos claramente a preocupação do legislador infraconstitucional, em

complementação ao já disposto na Constituição, em atribuir maior evidência ao comando

pela necessidade de motivação das decisões e atos administrativos, assegurando aos

administrados, dentre outras garantias constitucionais, o pleno exercício do contraditório e

da ampla defesa.

Vale mencionar, também, que, de acordo com a própria Lei, suas

disposições se aplicam também aos Poderes Legislativo e Judiciário, no tocante ao

desempenho de suas funções atípicas (administrativas), nos termos do art. 1º, §1º:

“Art. 1o Esta Lei estabelece normas básicas sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Federal direta e indireta, visando, em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração. § 1o Os preceitos desta Lei também se aplicam aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário da União, quando no desempenho de função administrativa.”

Entretanto, a previsão constante do art. 1º, §1º, incorre em equívoco quando

da restrição relativa ao âmbito material de validade dos atos sujeitos à imposição de

motivação, em razão da impossibilidade constitucional de limitação, por lei, da necessidade

de motivação apenas aos atos de gestão administrativa dos Poderes Legislativo e Judiciário.

Pregamos, nesse aspecto, a necessidade de motivação também dos atos legislativos.

Primeiramente, porque, em relação ao Poder Judiciário, a necessidade de

motivação decorre da leitura do art. 93, IX e X, da CF, que estabelece, expressamente, a

motivação das decisões judiciais e administrativas emanadas pelo Poder Judiciário:

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“Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: (...) IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 45, de 2004) X as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas e em sessão pública, sendo as disciplinares tomadas pelo voto da maioria absoluta de seus membros; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)”

Contudo, a necessidade de motivação dos demais atos estatais, e não

somente os provenientes do Poder Judiciário, decorre não só dos Princípios da Legalidade e

Moralidade, constantes do art. 37, mas principalmente do próprio Princípio Republicano,

constante do art. 1º, caput, bem como de outros princípios e garantias fundamentais do

ordenamento (Contraditório, Ampla Defesa, Publicidade, etc.).

Embora a necessidade de motivação seja um tanto mais controversa no

tocante ao Poder Legislativo, entendemos também estar o legislador a ela vinculado, por

uma questão de legitimação mesmo do seu mandato representativo, e em uma aplicação

ampla dos ditames introduzidos pelo Princípio Democrático (ex.: Princípios Republicano,

da Legalidade, Moralidade, Publicidade, Contraditório, Ampla Defesa, etc.). Ademais, não

há como negar a necessidade de motivação dos atos legislativos, inclusive, por uma questão

de respeito ao Princípio da Isonomia, que deve nortear também a relação entre os Poderes

da República (Legislativo, Executivo e Judiciário).

Atente-se que o Supremo Tribunal Federal vem decidindo, de forma quase

pacífica, pela necessidade de motivação dos atos estatais, seja em relação ao Judiciário, seja

em relação ao Executivo, atentando que, por muitas vezes, os fundamentos utilizados nas

decisões se aplicam também aos atos emanados do Legislativo, por simples adequação

lógica:

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“RE 235487/RO – RONDÔNIA Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO Julgamento: 15/06/2000 Órgão Julgador: Primeira Turma EMENTA: ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL DE JUSTIÇA. MAGISTRADO. PROMOÇÃO POR ANTIGUIDADE. RECUSA. INDISPENSABILIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO. ART. 93, X, DA CF. Nulidade irremediável do ato, por não haver sido indicada, nem mesmo na ata do julgamento, a razão pela qual o recorrente teve o seu nome preterido no concurso para promoção por antiguidade. Recurso provido.” “HC 68571/DF - DISTRITO FEDERAL Relator(a): Min. CELSO DE MELLO Julgamento: 01/10/1991 Órgão Julgador: PRIMEIRA TURMA Ementa - AUSÊNCIA DE MOTIVAÇÃO DO ATO JUDICIAL - INOCORRENCIA - OBSERVÂNCIA DO ART. 93, IX, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (...)- A ofensa ao dever constitucional de fundamentar as decisões judiciais gera a nulidade do julgamento efetuado por qualquer órgão do Poder Judiciário. Os magistrados e Tribunais estão vinculados, no desempenho da função jurisdicional, a essa imposição fixada pela Lei Fundamental da Republica. A exigência de motivação dos atos decisórios constitui fator de limitação do arbítrio do Estado e de tutela dos direitos das partes que integram a relação processual. A decisão ora impugnada apresenta-se suficientemente motivada. A analise de sua estrutura formal evidencia, de modo destacado, a exposição dos motivos de fato e de direito que conduziram a prolação desse ato decisório. (...).” “MS 25295/DF - DISTRITO FEDERAL Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA Julgamento: 20/04/2005 Órgão Julgador: Tribunal Pleno EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. UNIÃO FEDERAL. DECRETAÇÃO DE ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE NO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. (...). Ordem deferida, por unanimidade. (...) Ressalvas do relator quanto ao fundamento do deferimento da ordem: (i) ato sem expressa motivação e fixação de prazo para as medidas adotadas pelo governo federal; (...)” “ADI-MC 325/DF - DISTRITO FEDERAL Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES Julgamento: 17/08/1990 Órgão Julgador: TRIBUNAL PLENO Ementa - AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO DECRETO N. 99.300, DE 15.6.1990, QUE REGULOU A DISPONIBILIDADE DE SERVIDORES PUBLICOS, COM VENCIMENTOS PROPORCIONAIS, E DO DECRETO N. 99.307, DA MESMA DATA, QUE DECLAROU DESNECESSARIOS CARGOS E EMPREGOS DO QUADRO E TABELA

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PERMANENTES DOS EXTINTOS MINISTERIOS DA FAZENDA E DO DESENVOLVIMENTO, DA INDUSTRIA E DO COMERCIO E COORDENAÇÃO DA PRESIDENCIA DA REPUBLICA. (...) 3. NOS TERMOS EM QUE DEDUZIDOS, NA INICIAL, NÃO SE MOSTRAM RELEVANTES, 'PRIMA FACIE', OS FUNDAMENTOS DA AÇÃO, NO PONTO EM QUE SUSTENTAM HAVER O DECRETO N. 99.307 VIOLADO OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA IMPESSOALIDADE, DA MORALIDADE E DA MOTIVAÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO. (...) DECISÃO DO RELATOR REFERENDADA PELO PLENÁRIO.”

Desse último julgado percebe-se, inclusive, não discordar o Tribunal da

necessidade de motivação dos atos administrativos normativos, a despeito do julgamento

pela improcedência do pedido, ante a prejudicialidade da questão em lide anterior, além da

impossibilidade jurisprudencial de controle de legalidade de decreto pela jurisdição

constitucional do Pretório.

Vemos, portanto, da própria jurisprudência do Tribunal ser clara a

necessidade de motivação dos atos emandos pelo Poder Judiciário e pelo Poder Executivo,

ainda que, a conclusão seja mais freqüente em relação ao atos de caráter nitidamente

normativo.

A doutrina administrativista não discorda da necessidade de fundamentação

dos atos estatais, indicando a existência de uma correlação entre a motivação e o Estado

Democrático de Direito109:

“No arbítrio não há qualquer espaço para o dever de motivação dos atos jurídicos do Estado, uma vez que a legitimação da decisão se faz mediante sua mera imposição material. Logo é manifesta a correlação entre a necessidade de fundamentação dos atos estatais e o Estado Democrático de Direito, no qual a legitimidade da decisão pressupõe a oportunidade ao seu destinatário de compreendê-la e contestá-la.”

Em aplicação da doutrina acima transcrita, percebemos que a necessidade de

motivação do ato legislativo permite não só a compreensão do alcance do texto legislativo

109 Andrade, José Carlos Vieira de. O dever de fundamentação expressa dos actos administrativos, p. 15. Coimbra. Almedina:2002 apud França, Vladimir da Rocha. Estrutura e motivação do ato administrativo. Coleção temas de direito administrativo, n.º 18, p. 93.

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por parte dos legiferados, como também, a possibilidade de contestação da sua legitimidade

perante o Poder Judiciário.

Cabe a ponderação no sentido de que não desconhece o autor a possibilidade

de eventual hesitação do Poder Judiciário em aplicar a proposta ora sugerida num caso

concreto, pelo receio de uma suposta interferência sobre o Poder Legislativo, em

malferimento ao Princípio da Tripartição de Poderes.

Contudo, e a bem da verdade, cumpre esclarecer que não há falar em

violação à Tripartição de Poderes, mas, sim, em exercício da sistemática constitucional de

de freios e contrapesos (harmonia entre os Poderes – art. 2º, CF), pela aplicação de outros

princípios constitucionais (como visto, os Princípios Republicano, Federativo, Moralidade,

Legalidade, etc.).

É decorrência do sistema de freios e contrapesos que, da mesma forma com

que há um certo controle do Poder Judiciário sobre todos os atos provenientes do Poder

Executivo e Legislativo, estes também promovem, por intermédio de vários dentre seus

órgãos, um certo controle sobre o Poder Judiciário (ex.: fiscalização das contas dos

Tribunais Judiciários pelos Tribunais de Contas, nomeação dos Ministros de Tribunais

Superiores pelo Presidente da República, etc.), conforme se depreende dos próprios

julgados da Corte:

“ADI 2911/ES - ESPÍRITO SANTO Relator(a): Min. CARLOS BRITTO Julgamento: 10/08/2006 Órgão Julgador: Tribunal Pleno EMENTA: CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. IMPUGNAÇÃO DA EXPRESSÃO "PRESIDENTE DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA", CONTIDA NOS §§ 1º E 2º DO ART. 57 DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Os dispositivos impugnados contemplam a possibilidade de a Assembléia Legislativa capixaba convocar o Presidente do Tribunal de Justiça para prestar, pessoalmente, informações sobre assunto previamente determinado, importando crime de responsabilidade a ausência injustificada desse Chefe de Poder. Ao fazê-lo, porém, o art. 57 da Constituição capixaba não seguiu o paradigma da Constituição Federal, extrapolando as fronteiras do

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esquema de freios e contrapesos -- cuja aplicabilidade é sempre estrita ou materialmente inelástica -- e maculando o Princípio da Separação de Poderes. Ação julgada parcialmente procedente para declarar a inconstitucionalidade da expressão "Presidente do Tribunal de Justiça", inserta no § 2º e no caput do art. 57 da Constituição do Estado do Espírito Santo.”

Muito mais do que uma simples categoria perceptível da análise do direito

constitucional positivo, a sistemática de freios e contrapesos decorre da própria noção de

Tripartição de Poderes (elemento de Teoria Geral do Direito). Todavia, como em termos

dogmáticos o que importa ao estudo jurídico de determinado instituto é o seu tratamento

normativo, da análise da tripartição, conforme disposta no ordenamento constitucional

impõe-se a igualdade no tratamento aos Poderes da Federação.

Assim sendo, vejamos com maior profundidade o porquê da necessidade de

motivação também dos atos legislativos, assim como ocorre com os demais atos estatais,

provenientes do Poder Executivo e do Poder Judiciário.

19.c.) Necessidade de motivação dos atos emanados pelo Poder Legislativo -

A “mens legislatoris” como requisito constitucional de validade do ato

legislativo objetivado – Os atos de enunciação como requisitos de

motivação do ato legislativo.

Como visto do item anterior, a necessidade de motivação dos atos estatais

decorre da própria eficácia do Princípio Democrático, que, ao surtir seus efeitos ao longo

do sistema jurídico, impõe a necessidade de exposição dos atos de enunciação

(procedimento de formação do ato normativo) do ato enunciado (veículo introdutor da

norma jurídica tributária), inclusive, em relação ao processo legislativo.

Assim sendo, propomos a utilização de um conceito alternativo para a mens

legislatoris, sendo esta entendida não como um desejo íntimo do legislador, mas como um

requisito constitucional de validade do ato legislativo (normativo), sua fundamentação

devidamente objetivada, pela forma que melhor aprouver ao legislador na persecução do

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fim constitucionalmente delimitado de atribuir publicidade à motivação, seja por

intermédio das exposições de motivos, seja pelos considerandos legislativos, seja pelas

justificativas de proposições, seja pelos anais legislativos, etc.. Algum dentre esses

elementos há de espelhar as discussões travadas a respeito de determinado projeto de lei e o

entendimento congressual prevalecente, que fez com fosse aprovada ou rejeitada

determinada parte do texto originalmente proposto, as razões do veto parcial, etc..

Veja-se que não é outra a conclusão resultante da verificação efetuada por

José Afonso da Silva, na sua obra “Processo Constitucional de Formação de Leis”110, onde

assinala a vontade do legislador como sendo objetivada na proposição do projeto de lei, até

que seja aprovado por uma das Câmaras, momento a partir do qual deixará de ser

considerado como um ato denotativo da vontade do parlamentar, para denotar a vontade

(finalidade que se deseja atribuir à norma jurídica) do próprio parlamento:

“Ficou dito que, entre interesses contrastantes, o titular do poder de iniciativa realiza uma escolha daqueles que quer ver tutelados por lei. É essa escolha que predetermina o ato de apresentação do projeto de lei, como objeto do poder de iniciativa. Por onde se vê que a apresentação do projeto, propulsor do procedimento legislativo, constitui um ato procedimental, regido pela escolha em relação à matéria e interesses a serem regulamentados. Pois bem: ao exercer o poder de iniciativa, o titular pretende exatamente isso: que a matéria e os interesses configurados no projeto apresentado recebam regulamentação legislativa na forma específica indicada na proposta; que, enfim, se promulgue uma lei, regulando aquela dada matéria e os interesses ligados a ela na forma pretendida e contida na proposição. Resulta daí que a vontade do proponente, manifestada através do projeto de lei apresentado, continua a ser vontade do proponente até que a sua aprovação, por uma das Câmaras, impeça que assim possa ainda ser considerado.”

Remetemos, também, a atenção para a obra sobre técnica legislativa do Prof.

Mayr Godoy, que se pronuncia pela exposição de motivos como elemento aclarador do

direito a ser aplicado pelos legiferados, na regulação das suas condutas111:

110 Silva, José Afonso da. Processo constitucional de formação das leis. 2ª ed., 2ª tiragem, Malheiros. São Paulo: 2007, p.188. 111 Godoy, Mayr. Técnica constituinte e técnica legislativa. Leud. São Paulo: 1987, p. 168.

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“A anexação da exposição de motivos ao projeto encaminha o debate parlamentar, podendo ir adiante dele, integrando-se à futura lei, como documento aclarador do direito (...)”

Atente-se que vários são os documentos legislativos sobre os quais pode se

debruçar o intérprete/aplicador na persecução do sentido normativo que quis atribuir o ente

legislativo ao texto de lei, destacando o Prof. Mayr Godoy alguns dentre eles (a justificativa

do projeto, a mensagem do Executivo, os pareceres das comissões, as justificativas

parlamentares, as emendas, as razões de veto, etc.).

Outra não é a opinião de Philipp Heck, que descrevendo a sua Investigação

Histórica de Interesses afirma de forma bastante esclarecedora112:

“A investigação histórica dos interesses é aconselhada pela simples consideração de que todos os interesses da comunidade que foram causa da lei e nesta devem achar proteção, são desse modo mais seguramente garantidos. (...) É quase evidente que a comunidade jurídica tem um grande interesse em conseguir, por meio da lei, os resultados que pretendia, e não outros, diferentes ou até opostos. A comunidade jurídica também quer, com a lei, obter determinados efeitos. Se estes efeitos se não produzem, os interesses legislativos são prejudicados. E a consciência comum reage mais vivamente quando a frustração de efeito da lei resulta da ação consciente dos tribunais, instituídos para sua garantia. Tudo isso é evidente. (...) Frustração da lei pela interpretação não histórica – é igualmente certo que o juiz, abandonando a interpretação histórica, compromete inevitavelmente o êxito da lei. (...) Assim compreendida, a investigação tem objecto real: não procura a vontade psicológica, mas, correspondentemente à determinação da vontade normativa na vida corrente (...) os interesses causais.”

Prosseguindo no desenvolvimento do raciocínio, afirma Heck de forma

ainda mais contundente113:

112 Heck, Philipp. Interpretação da lei e jurisprudência dos interesses, in Coleção Stvdivm – Temas Filosóficos, jurídicos e sociais. Livraria Acadêmica. Saraiva e Cia. Editores. São Paulo: 1947, p. 66-71.

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“É simplesmente notório que as leis não caem do céu, nem são o efeito das forças naturais (...), mas resultam dum esforço humano. É certo que nem sempre se pode conhecer a situação na sua totalidade, mas isso não é razão para a desprezar quando é possível conhecê-la.(...)”

Vale ressaltar que, a despeito da inexistência de dispositivo expresso

determinando a motivação dos atos legislativos, como visto, duma análise sistemática do

nosso ordenamento, extrai-se essa imposição constitucional, como uma decorrência de

várias outras normas-princípio, como por exemplo, aquelas constantes dos arts. 1º, caput

(Princípio Republicano), 5º, II, LIV, LV (Legalidade, Contraditório, e Ampla Defesa), 37,

caput (Legalidade Administrativa, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência),

dentre outras.

Boa parte da doutrina administrativista também concorda com o ponto de

vista ora exposto, pela necessidade de motivação do ato legislativo, indicando, inclusive,

sirva sua fundamentação à interpretação dos respectivos atos114:

“A motivação do ato legislativo é, evidentemente, bem diversa daquela constante no ato administrativo. O regime jurídico do ato legislativo já outorga uma ampla publicidade no processo de sua expedição, permitindo a participação dos cidadãos mediante seus representantes115. Aí, a fundamentação do ato legislativo serve exclusivamente para fornecer elementos para a interpretação de seu conteúdo116. Raciocínio similar deve ser empregado para os atos normativos, nos quais a motivação se consubstancia em seus considerandos. Inclusive, o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos não aprecia os respectivos motivos, embora a Administração possa ser compelida a explicar as razões de atos normativos que impliquem intervenção no domínio econômico. Envolvendo-se matéria tributária, há controvérsia quanto à obrigatoriedade

113 Op. cit., pp. 80- 114 Andrade, José Carlos Vieira de. O dever de fundamentação expressa dos actos administrativos, p. 15. Coimbra. Almedina:2002 apud França, Vladimir da Rocha. Estrutura e motivação do ato administrativo. Coleção temas de direito administrativo, n.º 18, p. 93 e 94. 115 Araújo, Florisvaldo Dutra, Motivação e controle do ato administrativo. pp. 20-23, Ed. Del Rey, Belo Horizonte: 1992; e Gomes Filho, Antonio Magalhães, A motivação das decisões penais, pp. 77-78. RT. São Paulo: 2001, apud França, Vladimir da Rocha. Estrutura e motivação do ato administrativo. Coleção temas de direito administrativo, n.º 18, p. 93 e 94. 116 Andrade, José Carlos Vieira de. O dever de fundamentação expressa dos actos administrativos, p. 15. Coimbra. Almedina:2002 apud França, Vladimir da Rocha. Estrutura e motivação do ato administrativo. Coleção temas de direito administrativo, n.º 18, p. 93.

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de sua fundamentação quando envolve a alteração de alíquotas117. Mas a lei pode eventualmente exigir fundamentação expressa desses provimentos.”

Atente-se para a parte final da transcrição doutrinária, que menciona decisão

do STF (RE n.º 222.330-CE) em que supostamente teria se decidido pela desnecessidade de

exposição de motivos pela Administração, quando da majoração de alíquota do IPI. Na

realidade, decidiu o tribunal pela existência de motivação do ato no processo administrativo

que resultou na majoração da alíquota, conforme transcrição de sua ementa:

“RE 222330/CE – CEARÁ Relator(a): Min. MOREIRA ALVES Julgamento: 20/04/1999 Órgão Julgador: Primeira Turma II - A motivação do decreto que alterou as alíquotas encontra-se no procedimento administrativo de sua formação, mesmo porque os motivos do decreto não vêm nele próprio. (...).”

Em relação aos atos provenientes do Poder Executivo e do Poder Judiciário,

como visto, estes vem sendo motivados de acordo com as interpretações que os referidos

Poderes resolvam adotar, as quais, ainda que vinculadas ao Texto Constitucional e/ou

legislativo, encontram na atual concepção da mens legis a sua legitimidade jurídica (numa

mens legis, digamos, inicial e particular de cada ente).

Já no tocante ao Poder Legislativo, costuma-se afirmar, com bastante

freqüência nos bancos acadêmicos, que não cabe ao intérprete/aplicador adivinhar o intuito

do Poder Legislativo na edição de determinado texto legislativo; buscar a chamada mens

legislatoris.

Contudo, tomando por base a premissa assumida na primeira parte do

presente trabalho do Princípio Democrático como norma jurídica fundante da atividade

jurídica, e por conseqüência, da atividade tributária estatal, bem como, a concepção da

mens legislatoris como resultado da imposição constitucional de motivação do ato

legislativo, na conformidade da doutrina e dos dispositivos constitucionais aventados,

propomos a presente alternativa de interpretação e aplicação, fundada, inclusive, com base 117 A favor REsp 40.719, contra RE 222.330-CE.

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na jurisprudência do próprio Supremo Tribunal Federal – órgão legitimado para jurisdição

constitucional última.

20. Nova proposta de interpretação/aplicação no Direito Tributário dos

desdobramentos do Princípio Democrático, como norma jurídica fundante da

atividade (tributária) estatal

Além da demonstração do Princípio Democrático como norma jurídica

fundante da atividade tributária estatal - não somente pela sua prevalência sobre as demais

normas constantes do ordenamento, mas, principalmente, pelas suas implicações diretas na

questão da competência tributária -, consiste objetivo secundário do presente trabalho a

propositura de uma nova alternativa hermenêutica, decorrente da consideração da premissa

inicial de prevalência do Princípio Democrático, sobretudo pela utilização dos seus

desdobramentos no sistema jurídico como subsídios ao ato de interpretação/aplicação do

Direito Tributário positivo.

Essa nova proposta consistirá na utilização de dois elementos (fases não

necessariamente ordenadas) no ato de interpretação/aplicação do Jurídico, conforme

descritos adiante.

Primeiramente, na utilização da hermenêutica histórica, como método de

interpretação (não absoluto), agregada à inovação pela consideração do disposto nos atos de

enunciação legislativa/normativa (as exposições de motivos, considerandos, justificativas

de proposições, anais congressuais, etc.) como subsídios ao ato de interpretação/aplicação

do Direito Tributário. Essa metodologia caracterizaria o primeiro e mais inovador, dos dois

elementos componentes da nossa proposta de interpretação/aplicação do Jurídico.

O segundo e preponderante elemento proposto, é caracterizado pela própria

Dogmática Jurídica, sendo esta entendida, contudo, numa acepção mais ampla, com um

maior interdisciplinamento do Direito Tributário positivo com os demais ramos do qual é

derivado (Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Financeiro, etc.),

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conjugado aos métodos tradicionais de interpretação do ordenamento, tais como o

sistemático e o finalístico, ou seja, levando-se em conta o próprio fim do Estado (Bem

Comum), conforme já adiantamos nos itens 3 e 4, e ora será sintetizado no item 20.b.

Vale salientar que, a proposta do presente trabalho restringe-se apenas a uma

maior abrangência da Dogmática Jurídica agregada à utilização dos atos de enunciação

como elementos de influência na análise normativa do texto legislativo, e não pela

consideração desses atos como únicos elementos vinculantes de interpretação/aplicação do

Direito Tributário, a influenciar-lhes de forma isolada, é dizer, excludente de outras

perspectivas hermenêuticas.

Vejamos, portanto, a síntese da nossa proposta de interpretação/aplicação

dos desdobramentos do Princípio Democrático no âmbito do Direito Tributário positivo.

20.a.) Da hermenêutica histórica agregada à utilização da análise dos atos

de enunciação118 legislativa.

Como parte introdutória do primeiro critério a ser utilizado em nossa

proposta de interpretação/aplicação dos desdobramentos do Princípio Democrático no

âmbito do Direito Tributário, quase que num dever de gratidão – científica, bairrista e

sentimental - fazemos menção à necessidade de adoção, inicialmente, por parte do

intérprete/aplicador do método indicado por José Souto Maior Borges como sendo dos

mais adequados à verificação do alcance da norma jurídica: a hermenêutica histórica.

Ensina Souto Maior Borges que a hermenêutica histórica constitui método

diverso de interpretação da hermenêutica histórico-evolutiva, pois ao invés de analisar a

evolução de determinada categoria legal ou conceito científico ao longo do tempo, a

118 A respeito do processo de enunciação, vide também Moussalém, Tárek Moysés Moussalem. Fontes do direito tributário. Max Limonad. São Paulo: 2001. Já em relação ao processo legislativo, vide Silva, José Afonso da. Processo Constitucional de Formação das Leis. 2ª ed., 2ª tiragem. Malheiros. São Paulo:2007.

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hermenêutica histórica nada mais faz que dar o passo atrás, o retorno à origem119.

Atente-se que, o método interpretativo do Prof. Souto Maior Borges deriva

da obra de Lourival Vilanova, a quem remete a leitura120, após afirmar em conclusão do

seu raciocínio:

“Trata-se de uma escavação conceitual; ir ao fundo dos fundamentos das categorias científicas. (...) A hermenêutica histórica corresponde, pela volta ao passado, à uma ruptura epistemológica fundamental. É radical porque vai à raiz do conhecimento dos fenômenos normativos que o jurista pretende descrever e explicar. Paradoxalmente, a suprema prudência do jurista postula um ato de radicalização: ser radical é ir à raiz das coisas – como nô-lo ensinava Marx.”

De acordo com o Professor Souto Maior Borges, a análise contextual

sugerida pelo elemento histórico não só permeia a criação das normas jurídicas (no

âmbito da linguagem-objeto), mas, também, deve influenciar a interpretação dessas

normas pelo jurista (metalinguagem descritiva).

Não obstante a inovação estabelecida com a hermenêutica histórica, como se

dá sua aplicação no âmbito do Direito Tributário?

Exemplifica Souto Maior Borges com o tratamento doutrinário no passado

atribuído ao fato gerador, indicando que, embora se trate de expressão reconhecidamente

ambígua nos dias de hoje - pela menção ao fato concretamente ocorrido (elemento

extranormativo) -, sem a teoria anterior, não se poderia chegar às conclusões vigentes

119 Borges, José Souto Maior. Teoria geral das isenções tributárias. 3ª ed., p. 134. Malheiros, São Paulo:2001. 120 “Por isso ela opera um corte metodológico numa seriação de fatos históricos a serem considerados:’corta-se a corrente do suceder histórico e a partir de um elo tem-se o ponto inicial ou ponto de origem do ordenamento jurídico-positivo’ (Lourival Vilanova, Lógica Jurídica, p. 72) Substitua-se a expressão ‘ordenamento jurídico-positivo’ por ‘instituto jurídico-positivo’ e aplicar-se-á, como luva, essa lição à hermenêutica histórica, preconizada no presente estudo, até porque, noutro tópico, Vilanova é explícito: ‘a pré-história e a história de um instituto de direito, ou de todo um ordenamento, são problemas importantes para compreender-se o direito em suas projeções características, num dado tempo e numa dada cultura’ (op. cit., p. 70)”.

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sobre o fato jurídico tributário; à identificação da obrigação tributária; à determinação do

sujeito passivo da obrigação tributária; à fixação dos conceitos de incidência, não

incidência e isenção; à determinação do regime jurídico da obrigação tributária; à

distinção dos tributos in genere e à distinção dos impostos in specie; à classificação dos

impostos em diretos e indiretos; à eleição do critério para interpretação da lei tributária;

à determinação dos casos concretos de evasão; ao estabelecimento dos princípios de

atuação da discriminação constitucional de rendas com a definição da competência

impositiva e determinação dos casos de invasão de competência e de bitributação121, etc.

E mais: não seria possível alcançar a distinção superveniente entre “hipótese de

incidência tributária” e “fato concreto ocorrido”

A despeito da entusiástica adesão ao novo método, esclarece o Prof. Souto

Maior Borges em acertada ressalva:

“Propõe-se um novo método de exegese para as normas tributárias. E não o único correto e verdadeiro. Não aspira, a hermenêutica histórica, substituir os outros métodos exegéticos, mas pretende conviver com eles como um instrumental valioso para o progresso da ciência do Direito Tributário.”

A referida ressalva se aplica, de igual modo, à proposta ora sugerida, pois

não pretende o autor a utilização isolada do método ora aventado, mas, sim, a sua

conjugação a outros critérios de interpretação/aplicação do Jurídico de equivalente valor

científico/normativo (ex.: métodos sistemático, finalístico, etc.).

Assim, empreende a hermenêutica histórica uma análise das circunstâncias

em que surgiu determinado texto normativo ou determinada teoria científica, sem,

contudo, examinar a evolução do conceito normativo ou da respectiva teoria, ao longo

do tempo (análise histórico-evolutiva). Esse, portanto, o método da hermenêutica

histórica.

121 Falcão, Amílcar de Araújo. O fato gerador da obrigação tributária, 1ª ed., p. 22. Financeiras, Rio de

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Para não incorrermos em tautologia da obra dos ilustres Professores

pernambucanos, acreditamos propor verdadeira inovação ao sugerirmos a utilização da

hermenêutica histórica agregada à utilização dos atos de enunciação legislativa, como

sendo de extrema relevância à uma interpretação/aplicação do Direito Tributário

positivo, que seja mais adequada aos ditames do Princípio Democrático, conforme

abordamos no item 19, pela consideração dos seus desdobramentos intra-sistêmicos.

Veja-se que, a despeito da crítica pela impossibilidade de “psicanálise do

legislador”, a opinião doutrinária do ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, Aliomar

Baleeiro, é no sentido do método proposto como sendo de valor inestimável, caso

adotado em conjunto com outros métodos como o sistemático e o finalístico, exatamente

como sugerido pelo presente trabalho122:

“De certo, os trabalhos preparatórios de elaboração da lei não são decisivos. Decisivo por si só, sem consulta aos demais métodos de interpretação, não é nenhum meio técnico de hermenêutica. (...) Condena-se, não há dúvida, o abuso de aceitar-se como argumento de valor absoluto e com caráter de interpretação autêntica, apenas o trabalho preparatório, sobretudo, determinada peça, como, p. ex., o projeto primitivo, a opinião de um parlamentar, a justificação da emenda vencedora. Mas os materiais legislativos, hoje como no passado, conservam valor inestimável. Se documentam e revelam, por sua multiplicidade e concordância entre si, os elementos decisivos para o processo teleológico e sistemático.”

No mesmo sentido é a doutrina de Ezio Vanoni, que afirma que os atos

formalizadores do processo legislativo contribuem para o alcance interpretativo do

intuito estatal predominante na formação do texto legal123:

“Os trabalhos preparatórios permitem reconstituir o processo formativo da vontade do Estado manifestada em forma de lei, e portanto, contribuem para dar uma visão exata dessa vontade no momento da promulgação da lei.”

Janeiro:1964. 122 Baleeiro, Aliomar. Clínica fiscal. Livraria Progresso Editora. Salvador, Bahia: 1958, p. 40. 123 Vanoni, Ezio. Natureza e interpretação das leis tributárias. p. 214.

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Importante mencionar que o próprio Supremo Tribunal Federal já se

pronunciou sobre a alternativa proposta pelo presente trabalho, e decidiu pelos debates

parlamentares como sendo expressivos elementos de útil indagação das circunstâncias

que motivaram a elaboração de determinada norma inscrita na Constituição,

atribuindo-lhes efeitos para interpretação do alcance normativode norma constitucional:

“DEBATES PARLAMENTARES E INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO. - O argumento histórico, no processo de interpretação constitucional, não se reveste de caráter absoluto. Qualifica-se, no entanto, como expressivo elemento de útil indagação das circunstâncias que motivaram a elaboração de determinada norma inscrita na Constituição, permitindo o conhecimento das razões que levaram o constituinte a acolher ou a rejeitar as propostas que lhe foram submetidas. Doutrina. - O registro histórico dos debates parlamentares, em torno da proposta que resultou na Emenda Constitucional nº 20/98 (PEC nº 33/95), revela-se extremamente importante na constatação de que a única base constitucional - que poderia viabilizar a cobrança, relativamente aos inativos e aos pensionistas da União, da contribuição de seguridade social - foi conscientemente excluída do texto, por iniciativa dos próprios Líderes dos Partidos Políticos que dão sustentação parlamentar ao Governo, na Câmara dos Deputados (Comunicado Parlamentar publicado no Diário da Câmara dos Deputados, p. 04110, edição de 12/2/98). O destaque supressivo, patrocinado por esses Líderes partidários, excluiu, do Substitutivo aprovado pelo Senado Federal (PEC nº 33/95), a cláusula destinada a introduzir, no texto da Constituição, a necessária previsão de cobrança, aos pensionistas e aos servidores inativos, da contribuição de seguridade social.” (ADI-MC 2010/DF Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Julgamento: 30/09/1999, Órgão Julgador: Tribunal Pleno)

Como visto do julgado acima, ao apreciar a primeira tentativa de instituição

das contribuições sociais sobre a remuneração paga aos servidores inativos, pronunciou-se

o Tribunal pela importância dos atos de enunciação normativa, como o são os debates

parlamentares que ocasionaram a exclusão de parte do texto da proposta que resultou na

Emenda Constitucional n.º 20/98, no processo de formação de sentido normativo, ainda que

não de forma absoluta, exatamente como ora proposto pelo presente trabalho.

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Da leitura do acórdão acima transcrito, percebe-se que a proposta de

interpretação/aplicação dos desdobramentos do Princípio Democrático (no caso, dos

debates parlamentares), muito mais do que mera criação doutrinária do autor, caracteriza

técnica de decisão já utilizada pelo Pretório Excelso, que corrobora entendimento pela

relevância desses atos de enunciação legislativa na análise normativa.

Em outra decisão, o Supremo Tribunal Federal decidiu que os considerandos

de atos estatais não possuem caráter normativo, caracterizando simples motivação do ato,

não sendo passíveis, assim, de controle quanto à sua constitucionalidade, advertindo-se que

se tratava de simples deliberação infralegal. Veja-se que, do ponto de vista extradogmático,

caso quisesse o Tribunal aplicar o mesmo fundamento à análise de ato normativo passível

de controle, incorreria em patente contradição, pois, se os considerandos configuram a

motivação do ato, esta nada mais seria que a manifestação da sua adequação ao direito

positivo, sendo passível, portanto, de apreciação pela Corte, caso versasse sobre matéria

constitucional:

“ADI-AgR 2071/SP - SÃO PAULO Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES Julgamento: 03/10/2001 Órgão Julgador: Tribunal Pleno EMENTA: - DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DE ATO ADMINISTRATIVO DO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA DE SÃO PAULO, CONSISTENTE EM DELIBERAÇÃO SOBRE O PROSSEGUIMENTO DE CONCURSO PÚBLICO DE PROVAS E TÍTULOS PARA OUTORGA DAS DELEGAÇÕES DE NOTAS E DE REGISTRO. INADMISSIBILIDADE DA A.D.I., POR NÃO SE TRATAR DE ATO NORMATIVO (ART. 102, I, "A", DA C.F.). SEGUIMENTO NEGADO PELO RELATOR. AGRAVO IMPROVIDO PELO PLENÁRIO. DECISÃO UNÂNIME. 1. O ato impugnado na presente A.D.I. é mera deliberação administrativa, sem nenhum caráter normativo, não passando seus "consideranda" de simples motivação. Se esse ato é inconstitucional ou ilegal, é questão que se não pode resolver no âmbito de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, perante esta Corte, pois nesta só se há de impugnar ato normativo (federal ou estadual), nos termos do art. 102, I, "a", da Constituição Federal. 2. Afora isso, o controle de constitucionalidade ou legalidade de ato administrativo é feito, nas instâncias próprias, pelo sistema difuso. 3. Agravo improvido.”

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O Tribunal firmou também entendimento no sentido de que meros

considerandos não possuem eficácia normativa, e nem integram o conteúdo da norma

jurídica, a despeito dos considerandos apreciados pela Corte no caso específico

corresponderem à fundamentação de ato normativo infralegal (portarias), no dizer do

próprio relator, de caráter exclusivamente interno, e deixaram de ser apreciados em

controle de constitucionalidade, ante a impossibilidade do controle preventivo de atos

normativos, sem caráter legislativo formal:

“ADI 432/DF - DISTRITO FEDERAL Relator(a): Min. CELSO DE MELLO Órgão Julgador: Tribunal Pleno Ementa ADIN - PORTARIAS MINISTERIAIS - SERVIÇOS DE TELECOMUNICAÇÕES - SERVIÇO DE RADIOCOMUNICAÇÃO MOVEL TERRESTRE RESTRITO CELULAR - SERVIÇO MOVEL CELULAR - ATOS ADMINISTRATIVOS SEM CONTEUDO NORMATIVO - INEXISTÊNCIA DA INCONSTITUCIONALIDADE POTENCIAL - A QUESTÃO DOS "CONSIDERANDA" DO ATO ESTATAL E O JUÍZO DE CONSTITUCIONALIDADE - AÇÃO DIRETA NÃO CONHECIDA. – (...) A expectativa de comportamentos inconstitucionais, materializada pela possibilidade de a Administração Pública, em atendimento a prescrições ordinatórias destinadas a seus agentes, vir a produzir atos eivados de inconstitucionalidade, não justifica que, com base nela, se venha a aparelhar, perante o Supremo Tribunal Federal, a ação direta, cujo pressuposto de atuação e a existência, efetiva e atual, de atos estatais dotados de conteúdo normativo. - Meros "consideranda", que correspondem a motivação do ato administrativo, não lhe integram o conteúdo e nem se revestem de eficácia normativa. Eventuais vícios que se possam verificar nos motivos do ato estatal não contagiam as normas nele veiculadas. O juízo de constitucionalidade não incide sobre os motivos subjacentes a formulação do ato estatal.”

Como visto, necessário ponderação na interpretação daquilo que foi

decidido pelo Pretório no julgado acima, pois, em realidade, não se conheceu da ação direta

pela natureza formal do ato (portaria - ato infralegal), que sequer havia sido editada pelo

Ministro das Telecomunicações (impossibilidade de controle de constitucionalidade de ato

vindouro).

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Veja-se, em outro caso, que ao apreciar o Tribunal a aplicação de isenção

outorgada pela União de tributo estadual (ICMS) na importação de bem destinado ao ativo

fixo, sob a égide da Constituição de 1967, e Emenda Constitucional n.º 1/69, foi

reconhecido o direito adquirido do contribuinte ao benefício, em grande parte, pelo

acolhimento das razões dispostas na exposição de motivos interministerial posteriormente

aprovada pela Presidência da República, em franca manifestação jurisprudencial de

prestígio ao intuito prévio do poder normativo (exposição de motivos):

“RE 277372/SP - SÃO PAULO Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO Julgamento: 19/09/2000 Órgão Julgador: Primeira Turma EMENTA: TRIBUTÁRIO. IMPORTAÇÃO DE BENS DESTINADOS AO ATIVO FIXO. ISENÇÃO DE TRIBUTOS FEDERAIS (DL Nº 2.324/87) E, CONSEQÜENTEMENTE, DE TRIBUTOS ESTADUAIS. ART. 1º, § 4º, VI, DO DL Nº 406/68. INCIDÊNCIA DO ART. 41, §§ 1º E 2º, DO ADCT/88. ALEGADA AFRONTA AOS ARTS. 151, III, DA PARTE PERMANENTE, E 34 E 41 DA PARTE TRANSITÓRIA DA CONSTITUIÇÃO DE 1988. O regime isentivo, de natureza setorial, teve sua vigência assegurada no primeiro dispositivo constitucional transitório até outubro/90. Direito adquirido acertadamente reconhecido pelo acórdão, em face da norma contida no segundo dispositivo mencionado, tendo em vista tratar-se de incentivo especificamente concedido por meio de exposição de motivos interministerial aprovada pelo Presidente da República. Jurisprudência assentada por ambas as Turmas desta Corte. Recurso não conhecido.”

Também com base na exposição de motivos de ato interministerial

posteriormente aprovado pelo Presidente da República restou não conhecido o RE 140896.

Da mesma forma, quando da apreciação da inconstitucionalidade de lei que

introduzia contribuição previdenciária para os servidores ativos e inativos do Distrito

Federal, pronunciou-se também o Tribunal pela consideração do disposto na exposição de

motivos do ato legislativo que a instituiu, a qual, agregada as informações prestadas pelo

Governador, foram suficientes ao não acolhimento do pleito.

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“ADI-MC 2034/DF - DISTRITO FEDERAL Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES Julgamento: 09/02/2000 Órgão Julgador: Tribunal Pleno EMENTA: - DIREITO CONSTITUCIONAL E PREVIDENCIÁRIO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI Nº 232, DE 13 DE JULHO DE 1999, DO DISTRITO FEDERAL, QUE DISPÕE SOBRE A ALÍQUOTA DA CONTRIBUIÇÃO PARA A PREVIDÊNCIA SOCIAL DOS SERVIDORES PÚBLICOS ATIVOS E INATIVOS, E DOS PENSIONISTAS DOS PODERES DO DISTRITO FEDERAL, SUAS AUTARQUIAS E FUNDAÇÕES PÚBLICAS, E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AOS ARTS. 40, 149, PARÁGRAFO ÚNICO, 201, § 1º, E 150, IV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. MEDIDA CAUTELAR (ART. 170, § 1º, DO R.I.S.T.F.) 1. A Exposição de Motivos, que acompanhou o Projeto de Lei, e as informações prestadas pelo Sr. Governador do Distrito Federal, com os documentos que os instruíram, abalam, consideravelmente, os fundamentos deduzidos na inicial, cuja relevância, portanto, resta, assim, afetada. Na verdade, não conseguiu a autora demonstrar que a Lei em questão tenha deixado de observar "critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial", pois não ofereceu elementos seguros para uma avaliação a respeito. E com os argumentos trazidos pelo Sr. Governador, é de se presumir, por ora, a constitucionalidade da Lei, que visa, segundo parece, restabelecer o equilíbrio necessário às finanças da previdência social dos servidores do Distrito Federal, em proveito dos já aposentados e dos que ainda vierem a se aposentar. 2. Também não se vislumbra, até aqui, caráter de confisco na fixação da alíquota unificada de 11%. Ademais, uma medida liminar somente deve ser concedida, em A.D.I., quando sopesados os riscos que possam advir, seja da suspensão da Lei, seja de sua não suspensão. No caso, são maiores os riscos da suspensão da Lei, em face dos prejuízos que poderá trazer para todo o sistema de previdência social do Distrito Federal, em detrimento de todos os seus beneficiários, atuais e futuros. 3. Medida Cautelar indeferida.”

Percebe-se dos julgados acima uma tendência de utilização, pela

jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, da proposta de interpretação/aplicação dos

desdobramentos do Princípio Democrático, no âmbito do Direito Tributário, conforme ora

exposto no presente trabalho.

Caso seja intensificada essa simples tendência, com a consideração pela

Corte da hermenêutica histórica, agregada à uma maior utilização da mens legislatoris,

como acima explanada (resultado da eficácia dos desdobramentos do Princípio

Democrático no ordenamento), criar-se-á um ambiente normativo mais estável para os

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legiferados, que poderão pautar suas condutas não só com base no entendimento do

Judiciário sobre a matéria específica, como também, pela manifestação da finalidade

legislativa pretendida pelo legislador com determinado texto, atribuindo-se, assim, maior

segurança às relações entre os sujeitos-de-direito.

Por fim, não poderíamos deixar de mencionar a clássica obra sobre

Hermenêutica Jurídica de Carlos Maximiliano124, cujas categorias ora utilizamos, apenas na

tentativa de melhor sintetizar e comunicar a respeito da proposta de interpretação/aplicação

ora sugerida.

Ao dissertar sobre os métodos de hermenêutica e aplicação do Direito,

Maximiliano referiu-se, inicialmente com um certo sarcasmo, ao método da escolástica (ou

dogmática), como sendo decorrente do sistema tradicional, primitivo de Hermenêutica, ao

que se obstina jungir o Direito aos textos rígidos e aplicá-lo hoje de acordo com a vontade,

verificada ou presumida de um legislador sepultado.

Contudo, em seqüência, afirmou que em toda a escola teórica há um fundo

de verdade. Procurar o pensamento do autor de um dispositivo constitui um meio de

esclarecer o sentido deste; o erro consiste em generalizar o processo, fazer do que é

simplesmente um dentre muitos recursos da Hermenêutica – o objetivo único, o alvo

geral.125

A ponderação de Carlos Maximiliano é plenamente acolhida na presente

dissertação, que procura não limitar a atividade do julgador, pela conexão do método

escolástico com o método finalístico, conforme se depreende da sua descrição específica

para a atividade teleológica de interpretação126, em que:

“Levam-se em conta os esforços empregados para atingir determinado escopo, e inspirados pelos desígnios, anelos e receios que agitavam o país,

124 Maximiliano, Cláudio. Hermenêutica e aplicação do direito. 9ª ed., 1ª tiragem. Forense. Rio de Janeiro: 1979. 125 Op. cit., p. 44. 126 Op. cit., p. 152.

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ou o mundo, quando a norma surgiu. O fim inspirou o dispositivo; deve, por isso mesmo, também servir para lhe limitar o conteúdo; retifica e completa os caracteres na hipótese legal e auxilia a precisar quais as espécies que na mesma se enquadram.”

Da sua descrição das regras que servem para completar a doutrina acerca do

emprego do elemento teleológico, temos a correspondência de parte da proposta de

interpretação/aplicação sugerida, com esse método interpretativo127:

“Algumas regras servem para completar a doutrina acerca do emprego do elemento teleológico; eis as principais: a) As leis conformes no seu fim devem ter idêntica execução e não podem ser entendidas de modo que produzam decisões diferentes sobre o mesmo objeto. b) Se o fim decorre de uma série de leis, cada uma há de ser, quanto possível, compreendida de maneira que corresponda ao objetivo resultante do conjunto. c) Cumpre atribuir ao texto um sentido tal que resulte haver a lei regulado a espécie a favor, e não em prejuízo de quem ela evidentemente visa a proteger. d) Os títulos, as epígrafes, o preâmbulo e as exposições de motivos da lei auxiliam a reconhecer o fim primitivo da mesma.”

Assim, na tentativa de enquadrar a proposta de interpretação/aplicação ora

sugerida às categorias indicadas por Carlos Maximiliano, havemos de colocar o nosso

método como sendo mais aproximado dos seus critérios escolástico e finalístico. Não o

fazemos, contudo, de modo absoluto e excludente de outros métodos que, a depender das

circunstâncias do caso em concreto, possam ser utilizados em complemento (ex.: método

sistemático).

20.b.) Dogmática Jurídica em sentido amplo.

Já adiantamos que não se pretende utilizar o método da hermenêutica

histórica agregada aos atos de enunciação normativa como excludente dos demais métodos

interpretativos/aplicativos das normas jurídicas, mas, sim, preconiza-se sua utilização como

um critério a mais, a fornecer um grau maior de objetividade aos legiferados,

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principalmente no momento de pré-definição pelo Supremo Tribunal Federal da

interpretação que será tida como válida para determinado dispositivo constitucional.

Como segundo elemento hermenêutico, e não menos importante, temos a

Dogmática Jurídica em sentido amplo (v. item 4), que, de forma diversa do atualmente

pregado pelos dogmáticos mais radicais, necessariamente leva em conta outros ramos do

direito positivo, principalmente aqueles dos quais o Direito Tributário é subramo (Direito

Constitucional, Direito Financeiro e Direito Administrativo, etc.), para interpretação dos

seus ditames. Senão, vejamos.

20.b.1.) Necessário inter-relacionamento do Direito Tributário com os

demais ramos do Direito.

Como visto do item 4, antes de Kelsen o Direito não era reconhecido como

uma ciência autônoma, visto que chegou a ser identificado como simples capítulo da

Sociologia, e até como um mínimo ético por Jellinek, reduzido a um capítulo da moral. O

mesmo ocorreu com o Direito Tributário, cuja autonomia em termos científicos para com

os demais ramos do Direito, hoje em dia, é também, no geral reconhecida.

A lição de Lourival Vilanova que afirmava que o mundo dos fatos ingressa

no Jurídico através da porteira aberta da hipótese normativa, e a descrição constante do seu

antecedente, somente ajuda a comprovar a existência de uma interação entre o Direito e os

demais saberes científicos, mostrando-nos, também que uma análise valorativa é inevitável

à uma correta interpretação/aplicação do Direito.

Isso porque os valores permeiam todo o Texto Constitucional, como, p. ex.,

pelas previsões dos direitos sociais e individuais, da liberdade, da segurança, do bem-estar,

do desenvolvimento, da igualdade, e da justiça como valores supremos de uma sociedade

fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social, etc..

127 Op. cit., p. 156.

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Assim, além da hermenêutica histórica agregada à consideração da mens

legislatoris, conforme exposta (atos de enunciação como elementos viabilizadores da

legitimação do processo legislativo), pretendemos sugerir, como segundo aspecto da nossa

alternativa de interpretação/aplicação, um maior inter-relacionamento não só do Direito

com os demais saberes, mas, principalmente, do Direito Tributário com os ramos do direito

positivo dos quais é parte (Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito

Financeiro, etc.), e ainda, dos demais ramos que lhe parecem menos próximos (Direito

Civil, Direito Comercial, etc.).

Essa proposta, tem função interpretativa bipartida, a depender do ramo com

o qual se pretenda relacionado o Direito Tributário: se integrado com os ramos de “Direito

Público” dos quais é parte componente (Direito Constitucional, Direito Administrativo,

Direito Financeiro, etc.), há de se levar em conta sua vinculação ao conteúdo dos mesmos,

por atuarem como sobre-ramos continentes do Direito Tributário (ex.: destinação das

contribuições sociais como elemento determinante da sua legitimidade – matérias de direito

financeiro). Se integrado com os ramos que lhe são menos afetos (Direito Civil, Comercial,

etc.), necessariamente haverá de se respeitar, no âmbito tributário os conceitos

historicamente convencionados para os respectivos institutos jurídicos (ex.: faturamento,

para efeito de determinação da base de cálculo das contribuições para a seguridade social).

Alfredo Becker, em citação de Vittorio Berliri, já apontava, à sua época,

tendência do legislador tributário de desvirtuação dos conceitos jurídicos oriundos de

outros ramos do Direito128:

“Recomenda Luigi Vittorio Berliri o abandono, de uma vez para sempre, do arbitrário expediente de atribuir ao legislador tributário (como se fosse um outro legislador e, ainda por cúmulo, ignorante do direito) uma linguagem sua própria que atribuiria a palavra ou expressão que tem um bem preciso e conhecido significado jurídico, um esquisito significado novo de Direito Tributário.”

128 Berliri, Luigi Vittorio. L’imposta di ricchezza mobile. Milano: 1949, p. 322. apud Becker, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3ª ed., pp. 123-124, Lejus, São Paulo: 2002.

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E conclui Becker com a sua verve habitual129:

“O costume de aceitar como coisa ‘óbvia’ o pseudoprincípio de que a regra jurídica tributária teria finalidade diversa das regras jurídicas do direito privado, tem gerado múltiplas confusões e doutrinas contraditórias. A ‘obviedade’, com que costuma ser aceito este pseudoprincípio, vê o finalismo da regra jurídica tributária como se fosse uma espécie de divisor de águas: a incidência da regra jurídica tributária cairia de um lado; a incidência da regra jurídica do direito privado cairia do outro lado; e o incidir deste lado seria diferente do incidir daquele outro lado.”

A simples consulta ao texto constitucional confirma a procedência da

doutrina do jurista gaúcho. A Constituição Federal ao instituir o Sistema Tributário

Nacional, não o fez somente pelas normas introduzidas pelos artigos constantes do Título

VI, Capítulo I, mas também por várias outras normas decorrentes de outros artigos

introdutores, como conseqüência do inter-relacionamento dos subsistemas jurídicos

positivos (vide, p. ex.: arts. 43, §2º, III, 177, §4º, dentre outros).

Noutro exemplo, para instituição e cobrança de contribuições à seguridade

social incidentes sobre a folha de salários, necessária a análise da presença de critérios

oriundos do Direito do Trabalho, como os requisitos necessários para uma caracterização

de uma relação como sendo empregatícia (habitualidade, onerosidade, subordinação, etc.),

conceitos estes que não pode o Direito Tributário desvirtuar, sob pena de incursão em grave

ofensa ao Princípio da Segurança Jurídica.

Assim, ao interpretar o Sistema Constitucional Tributário de forma

“sistemática”, o operador deve necessariamente levar em conta todo o contexto normativo-

constitucional (e infraconstitucional), e não apenas a parte isolada do Sistema Tributário

Nacional, ou apenas a parte da Constituição dita tributária, tendo em vista que os

dispositivos alí inseridos relacionam-se com todo o texto constitucional (cânone

hermenêutico da totalidade do sistema jurídico de Alfredo Augusto Becker).

129 Becker, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3ª ed., pp. 125, Lejus, São Paulo: 2002.

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Também da análise das contribuições sociais previstas no art. 149 da

Constituição Federal - cuja finalidade tem grande importância na delimitação do seu regime

jurídico-constitucional, percebemos, claramente, a interação entre o Direito Tributário, o

Direito Constitucional e o Direito Financeiro, pois, ainda que contrapostas ao art. 4º, II do

Código Tributário Nacional - que estabelece ser irrelevante para identificação da natureza

jurídica do tributo a destinação legal do seu produto -, temos patente que, com o advento da

Constituição Federal de 1988, em sentido diametralmente oposto, a efetiva destinação

(constitucional) do produto (elemento, em princípio, de Direito Financeiro) deve

necessariamente ser analisada pelo intérprete/aplicador.

Denunciou Roque Carrazza, que a competência tributária para instituição

das taxas em decorrência de serviços públicos, necessariamente decorre da competência

“administrativa” do ente político, constante dos arts. 21 a 32, CF 130. Ou seja, não adianta

determinado ente político que não a União (a título de exemplo, o Estado-membro),

pretender impor tributação mediante taxas sobre serviço postal, pois está esse serviço fora

do âmbito das suas competências131, sendo-lhe, por isso constitucionalmente vedada a

instituição da exação. Para chegar à tal conclusão, o ilustre Professor demonstra ter

efetuado análise da competência administrativa da União Federal (elemento de Direito

Administrativo Constitucional), o que corrobora da nossa teoria, quanto à

imprescindibilidade do inter-relacionamento.

Do mesmo modo, afirma Luciano Amaro pela existência de um necessário

relacionamento do Direito Tributário com outros ramos do Direito132:

“Dado o caráter relativo da autonomia de qualquer ramo do direito, sempre que se estuda essa questão têm de ser referidos os entrelaçamentos que existem entre os vários setores do ordenamento jurídico. Obviamente, disso não escapa o direito tributário, que se vale das construções elaboradas por outros segmentos do direito, para, sobre elas, estruturar as relações tributárias.”

130 Carrazza, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. Malheiros. São Paulo: 2003. 131 Como sabido por todos o serviço postal é de competência privativa da União (art. 22, V), exercido atualmente pela ECT – Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (empresa pública federal). 132 Amaro, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. Saraiva. São Paulo: 1997, p. 11.

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A intenção dos ilustres Professores coincide com a do presente trabalho:

denotar a impropriedade de uma análise dogmática do Direito Tributário desconsiderando-

se suas relações com o Direito Constitucional, o Direito Administrativo e o Direito

Financeiro, a título de exemplos (sobre-ramos continentes do Direito Tributário), sob o

pretexto de um corte metodológico mais estreito.

Veja-se que não há que se falar em inter-relacionamento sem que efetuado

um corte epistemológico, no nível da linguagem descritiva, ou um corte normativo, no

nível da linguagem-objeto, pois, para definir se determinado instituto foge ao âmbito de

regulação do Direito Tributário positivo, necessária uma noção prévia de quais os seus

limites e quais os limites do ramo dogmático continente do referido instituto que se

pretende aplicar.

Como visto dos itens 10 a 15, em todo sistema constitucional moderno, tem-

se, em razão do princípio da hierarquia, uma sobreposição das normas constitucionais para

com as demais normas do sistema jurídico (escalonamento hierárquico das normas de

Kelsen).

A Constituição Federal (normas superiores) determina até certo ponto o

conteúdo e o procedimento de formação das normas que lhe são inferiores, o que já

denotaria como característica própria do sistema, um relacionamento de subordinação das

normas constitucionais para com as normas infraconstitucionais.

A título meramente ilustrativo, quando da elaboração da monografia relativa

à disciplina de Teoria Geral do Direito, lecionada pelo Prof. Celso Campilongo, dada a

preponderância programática da teoria dos sistemas de Luhmann, procuramos visualizar no

nosso objeto de estudo não apenas os seus acoplamentos estruturais inter-sistêmicos, mas,

também, os seus acoplamentos estruturais intra-sistêmicos, ou seja, os acoplamentos

estruturais existentes entre os subsistemas constitucionais do Direito Tributário e do Direito

Financeiro (destinação constitucional do produto).

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Além da questão da destinação do produto das contribuições constantes do

art. 149, da CF, constatamos, também que o Título VI foi denominado como "Da tributação

e do orçamento", donde percebe-se, de logo, a conexão da matéria tributária ao lado da

matéria financeira. É a contraposição inafastável “receita versus despesa” (Direito

Financeiro). Prosseguindo na análise, verifica-se também a subdivisão desse Título VI em

dois capítulos: "Do sistema tributário nacional" e "Das finanças públicas", denotando ainda

mais a indissociabilidade das duas matérias.

Assim, da simples análise do ordenamento, concluímos que o Direito

Tributário, em realidade, é apenas parte do Direito Financeiro, que tem seu conteúdo mais

abrangente, pois não cuida apenas das receitas estatais decorrentes da atividade

arrecadatória, mas, também de todas as demais receitas correntes (financeiras, comerciais,

etc.)133. Não é por outro motivo que, os debates em torno da Reforma Tributária

inevitavelmente resvalam na distribuição das receitas entre os entes tributantes.

Dessa forma, sempre que o texto constitucional instituir determinada

contribuição, seja ela para o financiamento da seguridade social, de intervenção no domínio

econômico ou de interesse de categorias profissionais, a destinação do produto de sua

arrecadação deverá ser confirmada no âmbito pragmático, sob pena de invalidação da sua

instituição por ofensa ao Princípio Democrático, e todos os seus desdobramentos

conferentes da legitimação do nosso regime representativo – ex.: Princípios Republicano,

Moralidade, Publicidade, etc..

Esse raciocínio é possível por uma aplicação dos acoplamentos estruturais

de Luhmann, transpostos do nível inter-sistêmico, existente entre os diversos sistemas

comunicacionais, ao nível intra-sistêmico, onde se atritam o Direito Financeiro, como

subsistema constitucional, e o seu sub-ramo, o Direito Tributário.

133 Borges, José Souto Maior Borges. Introdução ao direito financeiro. Max Limonad, São Paulo:1998, pp. 117-118.

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20.b.2.) Exemplos de “abertura” do sistema tributário a valores que, de início,

seriam extradogmáticos : do art. 110 do CTN.

A teoria dos sistemas de Luhmann afirma sofrer o sistema jurídico a

interferência de valores extrasistêmicos, por intermédio dos acoplamentos estruturais com

os demais sistemas comunicacionais.

No caso específico do Direito Tributário positivo, podemos extrair, em igual

sentido, alguns dispositivos que determinam somente possa ser analisada determinada

norma jurídica se interpretada/aplicada com o exame do alcance de valores alheios,

oriundos de outros subsistemas jurídicos (arts. 3º, 20, II, 21, 24, II, 29, etc., todos do CTN).

Dentre esses dispositivos, destaca-se o art. 110 do Código Tributário

Nacional, que desautoriza o legislador tributário a alterar conceitos de direito privado

utilizados pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis

Orgânicas dos Municípios e do Distrito Federal, para definir ou limitar competências

tributárias:

“Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.”

Depreende-se da leitura não apenas a possibilidade de adoção de conceitos

de direito privado pelo legislador, numa patente “intrusão assistemática” (Luhmann),

relativamente ao sistema de Direito Tributário positivo, mas, também, uma impossibilidade

desse legislador de alterar esses conceitos, quando postos pelas Leis Fundamentais dos

entes tributantes.

Vale salientar que a menção restrita às Constituições e Leis Orgânicas não

abarca outras espécies legislativas pela presunção do legislador complementar, no sentido

de que, matéria relativa a direito privado, com implicações na competência tributária dos

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entes de direito público interno, necessariamente haveria de estar prevista, à época do

Código Tributário Nacional, nas Constituições Federal e Estaduais, bem como nas Leis

Orgânicas, tendo em vista também que, com o advento da Constituição Federal de 1988,

tais conceitos necessariamente hão de estar presentes nos referidos Textos, excetuada

disposição em contrário por ela mesma veiculada (p. ex.: art. 146, III, a e b).

Assim, o próprio sistema jurídico prevê hipóteses de inter-relacionamento

entre os seus diversos subsistemas, a despeito do seu oposto art. 109, também do CTN, que

dispõe não servirem os princípios jurídicos de direito privado, na sua acepção própria, para

definição dos efeitos pretendidos pelo legislador tributário, que, a nosso ver, implica em

contradição instituída pelo próprio sistema.

No caso do art. 110, do Código Tributário Nacional, esse viabiliza a relação

entre o subsistema do Direito Tributário, com os subsistemas de Direito Privado, cujo

instituto a legislação fiscal aproveite, num reconhecimento do legislador complementar da

necessidade de inter-relacionamento do Direito Tributário com outros ramos do Direito.

21. Exemplos pragmáticos de utilização da teoria proposta.

Passamos a demonstrar a plena aplicabilidade das conclusões obtidas pelo

presente estudo ao Direito Tributário positivo, pela menção a alguns exemplos práticos em

que se utilizou ou que pode vir a ser utilizada a proposta de interpretação/aplicação ora

sugerida.

Tendo sido esposado que a presente proposta de intepretação das normas

jurídicas no âmbito do Direito Tributário é não apenas desejável, como também, é

plenamente viável, pois já utilizada, inclusive, pelo próprio Supremo Tribunal Federal,

(ainda que com alguma reserva acertadamente fundada, em função da necessidade de

utilização dos atos de enunciação do processo legislativo conjugados a outros métodos,

como o sistemático), passamos agora à indicação de alguns exemplos colhidos da

pragmática, em que a possibilidade ou a efetiva utilização da proposta se mostra patente.

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Selecionamos, assim, por simples amostragem, alguns exemplos que

resultam da utilização dos diferentes métodos de interpretação somados à proposta

hermenêutica ora sugerida – sistemática mais condizente com os ditames do Princípio

Democrático (questão da legimitação), como norma jurídica fundante do ordenamento

jurídico.

21.a.) Da análise das normas relativas à não-cumulatividade do Pis e da Cofins.

Citamos, de início, como exemplo de plena adequação da teoria

interpretativa/aplicativa ora proposta à questão da não-cumulatividade da contribuição ao

PIS (Programa de Integração Social) e da COFINS (Contribuição para o financiamento da

Seguridade Social), instituídas, em definitivo, pelas Leis n.ºs 10.637/02 e 10.833/03.

No tocante ao PIS, a não-cumulatividade foi inicialmente instituída pela

Medida Provisória n.º 66/02, que dispôs em sua ementa134, no título da primeira parte135, e

nos arts. 1º, 2º e 3º136, descritivamente, como seria a não-cumulatividade da contribuição.

134 “Dispõe sobre a não cumulatividade na cobrança da contribuição para os Programas de Integração Social (PIS) e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep), nos casos que especifica; sobre os procedimentos para desconsideração de atos ou negócios jurídicos, para fins tributários; sobre o pagamento e o parcelamento de débitos tributários federais, a compensação de créditos fiscais, a declaração de inaptidão de inscrição de pessoas jurídicas, a legislação aduaneira, e dá outras providências.” 135 “COBRANÇA NÃO CUMULATIVA DO PIS E DO PASEP”. 136 Art. 1º A contribuição para o PIS/Pasep tem como fato gerador o faturamento mensal, assim entendido o total das receitas auferidas pela pessoa jurídica, independentemente de sua denominação ou classificação contábil. § 1º Para efeito do disposto neste artigo, o total das receitas compreende a receita bruta da venda de bens e serviços nas operações em conta própria ou alheia e todas as demais receitas auferidas pela pessoa jurídica. § 2º A base de cálculo da contribuição para o PIS/Pasep é o valor do faturamento, conforme definido no caput. § 3º Não integram a base de cálculo a que se refere o artigo, as receitas: I - decorrentes de saídas isentas da contribuição ou sujeitas a alíquota zero; II - não-operacionais, decorrentes da venda de ativo imobilizado; III - auferidas pela pessoa jurídica revendedora, na revenda de mercadorias em relação às quais a contribuição seja exigida da empresa vendedora, na condição de substituta tributária; IV - de venda dos produtos de que tratam as Leis nº 9.990, de 21 de julho de 2000, nº 10.147, de 21 de dezembro de 2000, e nº 10.485, de 3 de julho de 2002, ou quaisquer outras submetidas à incidência monofásica da contribuição; V - referentes a: a) vendas canceladas e aos descontos incondicionais concedidos;

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A Medida Provisória n.º 66/02 foi objeto de conversão na Lei n.º 10.637/02,

que alterou significativamente o regime de créditos a serem deduzidos da base de cálculo,

b) reversões de provisões e recuperações de créditos baixados como perda, que não representem ingresso de novas receitas, o resultado positivo da avaliação de investimentos pelo valor do patrimônio líquido e os lucros e dividendos derivados de investimentos avaliados pelo custo de aquisição, que tenham sido computados como receita. Art. 2º Para determinação do valor da contribuição para o PIS/Pasep aplicar-se-á, sobre a base de cálculo apurada conforme o disposto no art. 1º, a alíquota de 1,65% (um inteiro e sessenta e cinco centésimos por cento). Art. 3° Do valor apurado na forma do art. 2º a pessoa jurídica poderá descontar créditos calculados em relação a: I - bens adquiridos para revenda, exceto em relação às mercadorias e aos produtos referidos nos incisos III e IV do § 3º do art. 1º; II - bens e serviços utilizados como insumo na fabricação de produtos destinados à venda ou na prestação de serviços, inclusive combustíveis e lubrificantes; III - energia elétrica consumida nos estabelecimentos da pessoa jurídica; IV - aluguéis de prédios, máquinas e equipamentos, pagos a pessoa jurídica, utilizados nas atividades da empresa; V - despesas financeiras decorrentes de empréstimos e financiamentos de pessoa jurídica, exceto de optante pelo Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte ( SIMPLES); VI - máquinas e equipamentos adquiridos para utilização na fabricação de produtos destinados à venda, bem assim a outros bens incorporados ao ativo imobilizado; VII - edificações e benfeitorias em imóveis de terceiros, quando o custo, inclusive de mão-de-obra, tenha sido suportado pela locatária; VIII - bens recebidos em devolução, cuja receita de venda tenha integrado faturamento do mês ou de mês anterior, e tributada conforme o disposto nesta Medida Provisória. § 1º O crédito será determinado mediante a aplicação da alíquota prevista no art. 2º sobre o valor: I - dos itens mencionados nos incisos I e II, adquiridos no mês; II - dos itens mencionados nos incisos III a V, incorridos no mês; III - dos encargos de depreciação e amortização dos bens mencionados nos incisos VI e VII, incorridos no mês; IV - dos bens mencionados no inciso VIII, devolvidos no mês. § 2º Não dará direito a crédito o valor de mão-de-obra paga a pessoa física. § 3º O direito ao crédito aplica-se, exclusivamente, em relação: I - aos bens e serviços adquiridos de pessoa jurídica domiciliada no País; II - aos custos e despesas incorridos, pagos ou creditados a pessoa jurídica domiciliada no País; III - aos bens e serviços adquiridos e aos custos e despesas incorridos a partir do mês em que se iniciar a aplicação do disposto nesta Medida Provisória. § 4º O crédito não aproveitado em determinado mês poderá sê-lo nos meses subseqüentes. § 5º Sem prejuízo do aproveitamento dos créditos apurados na forma deste artigo, as pessoas jurídicas que produzam mercadorias de origem animal ou vegetal classificadas nos capítulos 2 a 4, 8 a 11, e nos códigos 0504.00,07.10, 07.12 a 07.14, 15.07 a 15.13, 15.17 e 2209.00.00, todos da Nomenclatura Comum do Mercosul, destinados à alimentação humana ou animal, poderão deduzir da contribuição para o PIS/Pasep, devida em cada período de apuração, crédito presumido, calculado sobre o valor dos bens e serviços referidos no inciso II do caput, adquiridos, no mesmo período, de pessoas físicas residentes no País. § 6º Relativamente ao crédito presumido referido no § 5º: I - seu montante será determinado mediante aplicação, sobre o valor das mencionadas aquisições, de alíquota correspondente a setenta por cento daquela constante do art. 2º; II - o valor das aquisições não poderá ser superior ao que vier a ser fixado, por espécie de bem ou serviço, pela Secretaria da Receita Federal.

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bem como, a sistemática de alíquotas a que passariam a estar sujeitos determinados setores

da economia.

Das alterações referidas, percebe-se que a não-cumulatividade da

contribuição, seja de acordo com o instrumento legislativo autocrático, seja de acordo com

a lei, muito pouco tem que ver com a sistemática constitucional tão conhecida dos

contribuintes, referente ao recolhimento dos impostos não-cumulativos (IPI e ICMS), além

de, numa interpretação sistemática, não atender aos ditames do art. 195, §12137, da CF. Em

realidade, denominou o legislador como “não-cumulatividade” das contribuições ao PIS

algo bastante diverso: um método de outorga de alguns créditos a serem deduzidos da base

de cálculo do tributo devido.

Contudo, não somente nesse ponto o ato legislado merece ressalvas. Da

Exposição de Motivos elaborada pelo Ministro de Estado da Fazenda e encaminhada pelo

Presidente da República como motivação de sua Medida Provisória, consta da nota de nº. 3,

observação a respeito da manutenção da carga tributária nos mesmos patamares em que

anteriormente estavam submetidos os contribuintes:

“MF 00211 EM MPV PIS PASEP Brasília, 29 de agosto de 2002. Excelentíssimo Senhor Presidente da República Tenho a honra de submeter à apreciação de Vossa Excelência a proposta de edição de Medida Provisória que dispõe sobre a não cumulatividade na cobrança da contribuição para os Programas de Integração Social (PIS) e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep), nos casos que

137 “Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998) (...) b) a receita ou o faturamento; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998) (...) IV - do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003) (…) § 12. A lei definirá os setores de atividade econômica para os quais as contribuições incidentes na forma dos incisos I, b; e IV do caput, serão não-cumulativas. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)”

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especifica; sobre os procedimentos para desconsideração de atos ou negócios jurídicos, para fins tributários; sobre o pagamento e o parcelamento de débitos tributários federais, a compensação de créditos fiscais, a declaração de inaptidão de inscrição de pessoas jurídica, a legislação aduaneira, e dá outras providências. 2. A proposta, de plano, dá curso a uma ampla reestruturação na cobrança das contribuições sociais incidentes sobre o faturamento. Após a instituição da cobrança monofásica em vários setores da economia, o que se pretende, na forma desta Medida Provisória, é, gradualmente, proceder-se à introdução da cobrança em regime de valor agregado – inicialmente com o PIS/Pasep para, posteriormente, alcançar a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins). 3. O modelo ora proposto traduz demanda pela modernização do sistema tributário brasileiro sem, entretanto, pôr em risco o equilíbrio das contas públicas, na estrita observância da Lei de Responsabilidade Fiscal. Com efeito, constitui premissa básica do modelo a manutenção da carga tributária correspondente ao que hoje se arrecada em virtude da cobrança do PIS/Pasep. (...)”

Contudo, a despeito da concessão dos créditos, em regime supostamente

não-cumulativo, como sabido, a Medida Provisória n.º 66/02, por intermédio do seu art.

2º138, aumentou a alíquota da contribuição ao Pis anteriormente prevista no art. 1º da

Medida Provisória n.º 2.158-35/01139, o que resultou, por mais que as intenções

governamentais se manifestassem em sentido contrário, numa majoração da carga tributária

a que estavam sujeitos os contribuintes.

Em aplicação de nossa proposta de interpretação/aplicação, a majoração

promovida pela instituição da nova sistemática de tributação, pretensamente não-

cumulativa, dentre outros aspectos, como a própria ofensa ao art. 195, §12, da CF, numa

análise sistemática, mas também, e, principalmente, por contrariar a própria motivação do

ato legislativo, poderia ser tida por ilegítima pelo intérprete/aplicador, em função da ofensa

ao intuito declarado do ente legislativo, quando da indevida majoração da carga tributária a

que passaram a se sujeitar os contribuintes. 138 “Art. 2º Para determinação do valor da contribuição para o PIS/Pasep aplicar-se-á, sobre a base de cálculo apurada conforme o disposto no art. 1º, a alíquota de 1,65% (um inteiro e sessenta e cinco centésimos por cento).” 139 “Art. 1o A alíquota da contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público - PIS/PASEP, devida pelas pessoas jurídicas a que se refere o § 1o do art. 22 da Lei no

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Vale mencionar que essa posição vem sendo acatada pelo próprio Poder

Judiciário, que em caso envolvendo empresa prestadora de serviços tributada sobre o lucro

real (cujo principal insumo é a mão-de-obra) assegurou-lhe, pela análise da mens

legislatoris, o direito de manutenção do regime cumulativo de recolhimento das

contribuições, em reconhecimento da ilegitimidade da majoração decorrente do novo texto

legislativo, que, a despeito de assegurar a apropriação de alguns créditos, elevou a alíquota

conjunta do PIS e da COFINS de 3,65% para 9,25%, em ofensa à razoabilidade, à

capacidade contributiva, à isonomia e à livre concorrência:

“Classe: AC - APELAÇÃO CIVEL Processo: 2004.71.08.010633-8 Data da Decisão: 20/03/2007 Orgão Julgador: SEGUNDA TURMA LEANDRO PAULSEN PROSSEGUINDO NO JULGAMENTO, A TURMA, POR UNANIMIDADE, DECIDIU DAR PARCIAL PROVIMENTO À APELAÇÃO. TRIBUTÁRIO. PIS. COFINS. REGIME NÃO-CUMULATIVO. PRESTADORA DE SERVIÇOS. DUPLICAÇÃO DA CARGA TRIBUTÁRIA. PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE, DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA, DA ISONOMIA E DA LIVRE CONCORRÊNCIA A questão não é de inconstitucionalidade em tese das leis que estabeleceram os regimes não-cumulativos do PIS e da COFINS, mas da sua aplicação a caso concreto quando os seus efeitos implicam violação a princípios constitucionais. Pretendesse o legislador simplesmente aumentar as contribuições sobre o faturamento/receita, teria elevado as alíquotas anteriormente estabelecidas pelo art. 1º da MP 2.158-3/01 (0,65%) e pelo art. 8º da Lei 9.718/98 (3%). Não foi esta, contudo, a intenção. O estabelecimento dos regimes não-cumulativos visou, isto sim, a melhor distribuir a carga tributária ao longo da cadeia econômica de produção e comercialização de cada produto. Daí a elevação da alíquota associada à possibilidade de apuração de créditos compensáveis para a apuração do valor efetivamente devido. No caso específico da Autora, que tem por objetivo social principal a prestação de serviços, a submissão ao novo regime não-cumulativo implicou um aumento de mais de 100% no ônus tributário decorrente da incidência do PIS e da COFINS. Isso porque, como empresa prestadora de serviços, os créditos que pode apurar não são significativos. O acréscimo do ônus tributário, não corresponde a aumento da capacidade

8.212, de 24 de julho de 1991, fica reduzida para sessenta e cinco centésimos por cento em relação aos fatos geradores ocorridos a partir de 1o de fevereiro de 1999.”

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contributiva da Autora, que não teve alteração. Implica, ainda, tratamento relativamente aos demais contribuintes, sujeitos ou ao regime comum ou ao regime não-cumulativo em atividade econômica em que a apuração de créditos é significativa. O critério de discriminação (regime de tributação pelo Imposto de Renda, se pelo lucro real ou não), no caso concreto, mostra-se falho e incapaz de levar ao resultado pretendido de distribuição do ônus tributário ao longo de uma cadeia de produção e circulação, comprometendo a própria função do regime não-cumulativo, o que evidencia violação não apenas à isonomia como à razoabilidade. Por fim, também cria obstáculos à livre concorrência, porquanto empresas dedicadas à mesma atividade que a Autora continuam submetidas ao regime comum, não tendo sido oneradas pelo advento do regime não-cumulativo. Direito da autora de permanecer recolhendo as contribuições pelo regime comum (cumulativo) relativamente às suas receitas provindas da prestação de serviços e de compensar os valores pagos a maior.”

Vê-se que, além da ofensa aos princípios da razoabilidade, capacidade

contributiva, isonomia e livre concorrência, constantes do dispositivo, o Poder Judiciário

também fundamentou sua decisão numa interpretação sistemática e finalística, em razão da

ofensa ao fim pretendido pelo legislador constitucional de instituição, pelos referidos

instrumentos legislativos, não de seu fim declarado (um verdadeiro regime não-

cumulativo), mas de um simples regime de outorga de alguns créditos para operações

específicas. Tal regime implicou, inclusive, a majoração desarrazoada da carga tributária

em agressão à “premissa básica do modelo de manutenção da carga tributária

correspondente ao que hoje se arrecada” (Exposição de Motivos da Medida Provisória n.º

66/02), que serviu de finalidade à edição do ato legislativo de introdução do suposto regime

não-cumulativo ao PIS.

Saliente-se, por fim, que os fundamentos para regulamentação do suposto

regime não-cumulativo do PIS são os mesmos utilizados para sua instituição em relação ao

COFINS (v. Exposição de Motivos 197-A/2003-MF140).

140 “EM No 197-A/2003 – MF, Brasília, 30 de outubro de 2003, Excelentíssimo Senhor Presidente da República, 1. Tenho a honra de submeter à apreciação de Vossa Excelência a proposta de Medida Provisória, que dispõe, entre outros, sobre os seguintes temas: · a instituição da não-cumulatividade na cobrança da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social - COFINS, nos casos que especifica; (...)

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21.b.) Do drawback para fornecimento no mercado interno.

Recentemente divulgou-se na imprensa controvérsia envolvendo

contribuintes e Fisco, relativa à aplicação ou não do benefício de drawback para

fornecimento no mercado interno às empresas privadas.

Em breve síntese, consiste o benefício do drawback para fornecimento no

mercado interno num regime de suspensão dos tributos incidentes sobre a importação de

mercadoria a ser exportada após beneficiamento, ou destinada à fabricação,

complementação ou acondicionamento de outra a ser exportada, conforme previsão do art.

5º da Lei n.º 8.032/90, na redação dada pela Lei n.º 10.184/01:

“Art. 5o O regime aduaneiro especial de que trata o inciso II do art. 78 do Decreto-Lei no 37, de 18 de novembro de 1966, poderá ser aplicado à importação de matérias-primas, produtos intermediários e componentes destinados à fabricação, no País, de máquinas e equipamentos a serem fornecidos no mercado interno, em decorrência de licitação internacional, contra pagamento em moeda conversível proveniente de financiamento concedido por instituição financeira internacional, da qual o Brasil participe, ou por entidade governamental estrangeira ou, ainda, pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES, com recursos captados no exterior. (Redação dada pela Lei nº 10.184, de 2001)”

Em razão de um caso específico de fraude envolvendo determinado

contribuinte que supostamente fez mal uso do benefício, voltou-se em arbítrio o Fisco (e a

SECEX) contra todos os demais projetos de contribuintes que se utilizaram do drawback,

nesta modalidade, sob o pretexto de que o benefício somente poderia ser adotado por

empresas públicas, tendo em vista o emprego pela lei da expressão “licitação

internacional”. 1.1. O principal objetivo das medidas ora propostas é o de estimular a eficiência econômica, gerando condições para um crescimento mais acelerado da economia brasileira nos próximos anos. Neste sentido, a instituição da Cofins não-cumulativa visa corrigir distorções relevantes decorrentes da cobrança cumulativa do tributo, como por exemplo a indução a uma verticalização artificial das empresas, em detrimento da

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Para esclarecer quais seriam os destinatários legais do benefício, adveio o

art. 3º da Medida Provisória n.º 418/08

“Art. 3º Para efeito de interpretação do art. 5o da Lei no 8.032, de 12 de abril de 1990, licitação internacional é aquela promovida tanto por pessoas jurídicas de direito público como por pessoas jurídicas de direito privado do setor público e do setor privado. § 1º Na licitação internacional de que trata o caput, as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado do setor público deverão observar as normas e procedimentos previstos na legislação específica, e as pessoas jurídicas de direito privado do setor privado, as normas e procedimentos das entidades financiadoras. § 2º Na ausência de normas e procedimentos específicos das entidades financiadoras, as pessoas jurídicas de direito privado do setor privado observarão aqueles previstos na legislação brasileira, no que couber. § 3º O Poder Executivo regulamentará, por decreto, no prazo de sessenta dias contados da entrada em vigor desta Medida Provisória, as normas e procedimentos específicos a serem observados nas licitações internacionais promovidas por pessoas jurídicas de direito privado do setor privado a partir de 1o de maio de 2008, nos termos do § 2o.”

Percebe-se da leitura do caput do art. 3º, da Medida Provisória n.º 418/08

que não apenas as empresas públicas, mas, também, as empresas privadas podem realizar

as licitações internacionais a que se refere o art. 5º, da Lei n.º 8.032/90, podendo, também,

usufruírem do referido benefício de suspensão dos tributos nas importações de mercadoria

destinada à fabricação, complementação ou acondicionamento de outras mercadorias a

serem posteriormente exportadas.

Caso a literalidade do art. 3º, da Medida Provisória, n.º 418/08 não seja

suficiente ao convencimento do intérprete/aplicador, da leitura da nota 12 de sua Exposição

de Motivos extrai-se o intuito expresso do legislador de aplicação do benefício não apenas

às empresas públicas, mas, também, às empresas particulares, colocando-se uma pá-de-cal

em qualquer interpretação que disponha em sentido diverso:

distribuição da produção por um número maior de empresas mais eficientes – em particular empresas de pequeno e médio porte, que usualmente são mais intensivas em mão de obra.”

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“12. Para fins de dirimir dúvidas surgidas na interpretação do art. 5º da Lei nº 8.032, de 12 de abril de 1990, incluiu-se dispositivo interpretativo relativamente à expressão “licitação internacional” constante no referido artigo. Impende acrescentar que tais dúvidas têm acarretado impactos na política comercial brasileira, o que se pretende solucionar por intermédio da redação do art. 3º da presente medida.”

Demonstra-se, da transcrição acima, que serve a Exposição de Motivos da

Medida Provisória n.º 418/08 de elemento decisivo à correta interpretação/aplicação do

Direito a ser aplicado ao caso concreto, caracterizando subsídio de imprescindível

relevância ao alcance da norma isentiva, conforme defendido no presente trabalho.

21.c.) Da declaração de inaptidão cadastral da pessoa jurídica.

Como último exemplo de aplicação pragmática da teoria hermenêutica ora

sugerida, e demonstrando que a alternativa proposta não se aplica apenas às questões

relativas ao recolhimento do tributo (ou seja, às obrigações tributárias principais), mas

também às obrigações tributárias acessórias, temos o exemplo das razões do veto à

supressão da impossibilidade de declaração de inaptidão cadastral pela Administração

Fazendária Federal, constante do projeto de lei de conversão da Medida Provisória n.º

351/07 na Lei n.º 11.488/07, em cujo texto final restou vetada a disposição constante do art.

15 da referida Lei, que alterava o art. 81 da Lei n.º 9.430/96, de maneira a impossibilitar a

Secretaria da Receita Federal a declarar inapta a inscrição cadastral da pessoa jurídica que

não apresente declaração anual de imposto sobre a renda por um ou mais exercícios ou que

não seja localizada no endereço informado ao Fisco, ou ainda, que não exista de fato.

Vejamos a atual redação do art. 81, caput, da Lei n.º 9.430/96:

“Art. 81. Poderá, ainda, ser declarada inapta, nos termos e condições definidos em ato do Ministro da Fazenda, a inscrição da pessoa jurídica que deixar de apresentar a declaração anual de imposto de renda em um ou mais exercícios e não for localizada no endereço informado à Secretaria da Receita Federal, bem como daquela que não exista de fato.”

Conforme disposto nas razões do veto presidencial, elaborado com base em

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pronunciamento do Ministério da Fazenda, tal dispositivo foi retirado do projeto de

conversão da Lei n.º 11.488/07, pela impossibilidade de supressão de competências

administrativas que visam a coibir práticas de evasão fiscal:

“Razões do veto A nova redação dada pelo art. 15 do Projeto de Lei de Conversão ao art. 81 da Lei no 9.430, de 1996, retira a possibilidade de ser declarada inapta, nos termos e condições definidos em ato do Ministro da Fazenda, a inscrição de pessoa jurídica que deixar de apresentar declaração anual de imposto de renda em um ou mais exercícios. Assim, estamos diante da supressão de um instrumento da Administração Pública, que visa a coibir possíveis atos de sonegação fiscal, razão pela qual recomendamos veto ao dispositivo.”

Percebe-se das razões de veto constantes da Mensagem n.º 376, de 15 de

junho de 2007, acima transcritas qual a motivação que deu ensejo à exclusão do dispositivo

constante do projeto de lei de conversão da Medida Provisória n.º 351/07 na Lei n.º

11.488/07 por parte do Presidente da República, que na qualidade de representante maior

da União (principal interessada na manutenção dos instrumentos necessários ao exercício

da sua competência fiscalizatória), e ouvido o seu Ministro da Fazenda, entendeu por vetar

o dispositivo que mitigava sua capacidade de sanção à sonegação.

Assim, percebe-se das razões de veto da Presidência da República, a

manifestação objetivada da motivação que conduziu o Poder Executivo a vetar a disposição

que mitigava-lhe parte da sua competência fiscalizatória, devendo a norma remanescente

do processo legislativo ser sempre interpretada com base nessas premissas governamentais.

Nos três exemplos citados, caso haja uma mínima presunção de que os atos

de enunciação legislativa exercerão um papel preponderante na atividade do aplicador

(Poder Judiciário), quando da apreciação da questão, tanto os contribuintes, quanto o Fisco

conviverão num ambiente normativo mais estável e de maior previsibilidade do Direito que

será aplicado ao caso específico, cuja regulação da conduta esteja pendente de definição.

E os exemplos se multiplicam, inclusive, no campo da chamada

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extrafiscalidade, das imunidades, isenções, tributação ambiental, manipulação de alíquotas

do II, IE, IPI e IOF pelo Executivo, etc., que, necessariamente, são (ou se não o são,

deveriam ser), como visto no transcorrer do presente trabalho, devidamente motivadas

pelos entes legislativos que emitem as disposições que lhes são pertinentes, principalmente,

por uma questão de atribuição de legitimidade ao ato normativo. Ou, no plano dogmático,

em obediência aos ditames resultantes do Princípio Democrático, como norma jurídica

fundante da atividade tributária estatal141.

141 Como última anotação, espera-se com o presente trabalho, em última instância, uma reflexão inclusive quanto à legitimidade dos atos legislativos monocráticos (Medidas Provisórias, Decretos Executivos, etc.), que cada vez mais servem de instrumento à regulação das condutas dos legiferados, numa corrupção da sistemática legislativa colegiada, e em patente afronta aos ditames estabelecidos pelo Princípio Democrático.

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PARTE V

DAS CONCLUSÕES

22. Conclusões.

1) Tomando o direito como um bem cultural, resultado da obra humana, o

ordenamento jurídico há de servir de instrumento para regulação das condutas, direcionadas

ao Bem Comum (Becker), e de ter uma função modificadora na vida dos seus destinatários

(o “absoluto” de del Vecchio). Assim é premissa essencial também, para a validade da

atividade científica que o descreve (o Direito), a necessária imputação de um fim valorativo

como resultado; ou, colocando em melhores termos: é inafastável a consideração da

existência de um fim imanente a toda e qualquer atividade dogmática e científica.

2) No caso específico do ordenamento brasileiro, essa finalística não se apresenta

apenas no âmbito da linguagem descritiva (Ciência do Direito), mas, decorre da própria

linguagem-objeto do direito positivo (v. p. ex.: art. 3º, da Constituição Federal e todos os

seus incisos142).

3) Ao nomear determinadas normas jurídicas como princípios, e, no caso da

Constituição Federal, também colocá-las em posição topográfica de destaque, ao longo do

texto (arts. 1º, 5º, no início do texto, e precedendo-o somente os princípios e objetivos

fundamentais da República, além do início de Títulos e Capítulos – ex.: arts. 37, 170,

194143, da CF) o legislador atribui a essas normas-princípio maior abrangência semântica e

sintática que as chamadas normas-regra. 142 “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

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4) Existem princípios denominados fundamentais (ex.: art. 1º, 2º, 4º, etc., da

Constituição Federal) e outros princípios específicos de determinada seção do texto

constitucional, como, por exemplo, os princípios gerais que regem a atividade econômica

(art. 170 e seguintes da Constituição Federal).

5) Os princípios constitucionais tributários, dentre os quais, os do art. 150, são

transposições, ao campo tributário, dos direitos e garantias individuais previstos no art. 5º

do Texto.

6) Da lição de Kelsen, temos que o ordenamento apresenta-se como uma estrutura de

normas jurídicas de “hierarquia escalonada”. Adolf Merkl, visualiza o ordenamento

jurídico como uma pirâmide normativa, em que, no topo, estaria a Constituição, e, na base,

as normas jurídicas infraconstitucionais e infralegais. Dessa doutrina, podemos extrair uma

hierarquia entre as normas-princípio e as normas-regra; uma hierarquia das normas-

princípio que são fundamentais diante de normas-princípio, meramente gerais.

7) Dessa hierarquia dos princípios ditos fundamentais sobre os meramente gerais,

contudo, não há que se falar em supremacia de um princípio de igual ordem sobre outro,

senão, diante de um caso concreto (ponderação de princípios), cujo Direito (norma-

princípio) a ser aplicado em prevalência do outro será decidido pelo aplicador com toda a

carga de valoração decorrente da situação específica e de sua subjetividade. Todavia, essa

afirmativa encontra restrição apenas no Princípio Democrático, como norma jurídica

fundante que é de toda a atividade estatal, incluída, principalmente, a atividade tributária,

sendo esta norma-princípio de hierarquia superior a todas as demais.

8) A despeito de visualizarmos o Princípio Democrático como norma jurídica fundante

de toda a atividade tributária estatal, entendemos que há um valor maior a ser tutelado no

ordenamento: o direito à vida, o qual, de início, não seria veiculado pelo ordenamento sob a

forma de uma norma-princípio (art. 5º, caput, da CF), mas, sim, como uma garantia, de

ordem fundamental. E nem precisaria sê-lo, tendo em vista que i) o direito à vida é

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pressuposto lógico do próprio Direito, como bem cultural (obra humana); e ii) a previsão do

princípio fundamental da dignidade da pessoa humana supre perfeitamente a necessidade

de guarida do valor, sob a forma de princípio (art. 1º, III, CF).

9) O ato de aplicação do Direito consiste numa tentativa de “objetivação da

subjetividade”, como característica inerente à natureza humana, que resulta nas múltiplas

possibilidades de interpretação dos textos legislativos. Essa objetivação tem seu ápice

(estabilização) na manifestação expressa do órgão competente (nos termos do art. 102,

caput da CF, o Supremo Tribunal Federal), pela prevalência dos valores que sejam

convencionalmente mais relevantes à determinada sociedade num dado espaço-tempo, e

pela condenação daqueles contra-valores que lhe sejam mais repulsivos.

10) Sempre que utilizada a expressão “princípio”, estaremos diante da necessidade do

emissário da mensagem de comunicar algo inicial, ou do seu intuito de atribuir um caráter

primordial àquilo que se quer comunicar. Deseja o emissário que o objeto consignado como

princípio seja encarado pelo receptor da mensagem como sendo algo primordial, que deve

servir de base a todo o mais que seja comunicado.

11) Dessa forma, temos um sentido lingüístico, decorrente da comunicação

convencional, entre os usuários da língua portuguesa, atribuído à expressão “Princípio

Democrático” como algo decorrente da necessária prevalência (predominância) da idéia de

um sistema jurídico em que primordialmente haja um governo instituído e regido pelo

poder que é oriundo do próprio povo, sendo este detentor de amplos poderes de direção

e/ou provocação da máquina estatal.

12) Da análise histórico-legislativa do Princípio Democrático, com a possibilidade de

realização de eleições diretas para os principais agentes políticos (formuladores das

políticas tributárias), ante o fato de o Direito Tributário positivo resultar, principalmente,

das normas jurídicas introduzidas pelos textos emanados do Poder Legislativo, percebe-se a

relação existente entre o mecanismo de elegibilidade e a competência tributária dos entes

(ex.: preponderância de Decretos-leis nos regimes autocráticos).

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13) Analisando sintaticamente a CF/88, enumeramos alguns fundamentos pelos quais

demonstra-se que pretendeu o constituinte atribuir um predomínio ao Princípio

Democrático: i) a adoção do valor “democracia” sob a forma de norma-princípio; ii) pela

sua natureza, o Princípio Democrático prevalece sobre as normas-regra; iii) sua

caracterização como um princípio de ordem fundamental; iv) e da fundamentalidade, sua

prevalência também sobre as demais normas-princípio, de ordem meramente geral (ou não-

fundamental); v) mesmo contraposto a outros princípios de ordem fundamental, no

exercício da ponderação de princípios, o Princípio Democrático lhes serve de fundamento;

vi) sua destacada topografia e seus inúmeros desdobramentos no Texto Constitucional

(preâmbulo, art. 1º, caput e parágrafo único, arts. 27, 28 e 29, 45, 46 e 47, e 76 a 82 da CF,

dentre outros); vii) a caracterização do Estado de Direito em que se forma a República

Federativa do Brasil como sendo um Estado Democrático; viii) o pluralismo político como

fundamento da República Federativa do Brasil, de acordo com o inciso V, do art. 1º; ix) a

vinculação de todo o poder, constitucionalmente instituído, ao Princípio Democrático,

conforme definido pelo parágrafo único, do art. 1º, ou seja, como sendo emanado do povo,

ou por este exercido de modo direto ou representação direta; x) as previsões constitucionais

de exercício do poder de forma direta (mandado de segurança, ação popular, plebiscito,

referendo, leis de iniciativa popular, etc. - arts. 5º, LXIX, LXXIII, art. 14, I, II, e III, dentre

outros); xi) as previsões específicas de exercício do poder mediante representação

(membros do Poder Legislativo e Executivo – arts. 27, 28 e 29, 45, 46 e 47, e 76 a 82 da

CF); xii) mesmo no caso de representantes não eleitos, por exemplo, os membros do Poder

Judiciário (arts. 92 a 126, CF), cargos comissionados (ex.: art. 84, da CF), etc., estes são

nomeados pelos representantes diretos, por autorização do Texto, com base em critérios de

caráter democrático (concurso técnico de provas e títulos; notório saber jurídico e reputação

ilibada; representação política; etc.); xiii) e, por fim, a previsão pela proclamação da

Constituição Federal pelos constituintes, na qualidade de representantes do povo e no

intuito de instituir um Estado Democrático de Direito.

14) Das decisões do Supremo Tribunal Federal, percebe-se o tratamento destinado ao

sobreprincípio da Segurança Jurídica, como subprincípio do Estado Democrático.

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15) Ao abordarmos os desdobramentos do Princípio Democrático concernentes à

matéria tributária, temos outros fundamentos a confirmar sua preponderância, a começar

pela análise do Princípio da Legalidade Tributária (art. 150, I, CF), tendo em vista a

vinculação do legislador tributário à lei, quando da instituição de qualquer exação, e

também do Poder Executivo, quando da fiscalização e cobrança do tributo. A atividade

tributária resulta da eficácia do Princípio Democrático e decorre dos atos jurídicos

característicos da formação da lei tributária (em sentido amplo), no ordenamento jurídico

brasileiro: 1º) a população elege os seus representantes congressistas, os quais funcionaram

como constituintes (ainda que não eleitos para este fim); 2º) os constituintes elaboram o

Texto Constitucional relativo ao Sistema Tributário Nacional de 1988, não só

“legitimados” pelo mandato conferido pelo povo, mas, também, promovem a audiência de

vários técnicos, Professores, especialistas, e representantes dos vários setores da atividade

econômica, em ampla participação popular - análise pragmática; 3º) ao elaborarem o

Sistema Tributário Nacional, os constituintes estabeleceram, p. ex., o “Estatuto do

Contribuinte”, que a despeito das inúmeras emendas, dispôs originariamente sobre quais

seriam os tributos; quais entes seriam legitimados para sua instituição; quais seriam os

tributos possíveis de instituição; e em que moldes esta e daria (agente, matéria e

procedimento); 4º) fundados nas disposições constitucionais vigentes em momento

posterior à promulgação, o legislador ordinário, eleito de forma direta, procede à

formulação das leis tributárias, limitado pelos moldes estabelecidos pela CF; e 5º) se os

destinatários da norma jurídica tributária formulada pelo legislador não se conformarem

com algum aspecto da sua instituição (agente, matéria ou forma previstos na CF), ou se o

próprio ente tributante não concorda com a forma de recolhimento praticada pelo

contribuinte, este há de buscar o Poder Judiciário, que, por intermédio do Supremo

Tribunal Federal, decidirá a lide, em última instância, e eventuais ofensas ao Texto

Constitucional (levando em consideração que todo o ordenamento tributário dele decorre).

16) O Supremo Tribunal Federal coloca a própria supremacia da ordem constitucional

como sendo decorrente dos valores democráticos que a informam, não havendo que se falar

sequer em razões de Estado para legitimação de eventual agressão a tais valores.

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17) Os pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal representam a suma

manifestação da mens legis aplicada ao caso concreto, e somente com base no conteúdo dos

mesmos é que os sujeitos-de-direito terão acesso à única interpretação constitucionalmente

válida para determinada hipótese (maior grau possível de segurança jurídica). Contudo, as

interpretações tidas como válidas pelo Tribunal - mesmo nas ações diretas, em que são

preexcluídas todas as instâncias inferiores - somente vêm a ser realizadas após transcorrido

grande lapso de tempo da ocorrência da conduta ou da publicação do ato normativo em

questão, o que resulta numa insegurança jurídica, pois a todo instante surgem

questionamentos em relação à interpretação que deverá ser atribuída a determinado

dispositivo, diante das múltiplas significações lingüísticas dele decorrentes. Essa

insegurança decorre, em parte, da ausência de um controle prévio de constitucionalidade e

da multiplicidade de interpretações possíveis a serem atribuídas ao Texto Constitucional.

Saliente-se, ainda, que essa interpretação atribuída pela Corte não vincula a sua atuação em

casos futuros.

18) Transposta essa insegurança jurídica ao âmbito tributário, pela demora da decisão

definitiva a ser emitida pelo Supremo Tribunal Federal, indicando a interpretação válida

para a hipótese específica, no caso de texto legislativo instituidor de tributo, este não deixa

de surtir efeitos econômicos (mesmo pela presunção de constitucionalidade das leis), nas

respectivas esferas patrimoniais dos contribuintes e do fisco. Assim, por razões de

eficiência administrativa e lógica empresarial, as respectivas condutas (tanto a fiscal,

quanto a do contribuinte) usualmente, passam a ser reguladas pela adoção da interpretação

que simplesmente lhes seja economicamente mais favorável – interpretações, portanto,

intrinsecamente discrepantes (“mens legis particular”).

19) A solução proposta surge desse problema, e visa à adoção de novo método

interpretativo/aplicativo, que parte da premissa do Princípio Democrático como norma

jurídica fundante da atividade tributária estatal e da utilização de seus desdobramentos no

sistema tributário para elucidação de um sentido normativo mais próximo àquele que deve

ser referendado, a posteriori, pelo Supremo Tribunal Federal como legítimo. A adoção

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dessa premissa inicial deve ser agregada à consideração da mens legislatoris, não como

usualmente conhecida e criticada, mas como a vontade do Poder Legislativo devidamente

objetivada, como motivação do ato de legislar (manifestação da eficácia do Princípio

Democrático e imposição do próprio ordenamento). Propõe-se a utilização das exposições

de motivos dos atos legislativos (normativos); dos seus considerandos; das justificativas

das proposições; dos anais legislativos; das razões de veto, etc., como elementos

denotativos da motivação do legislador, que há de ser observada até mesmo por uma

questão de legitimidade, como forma de atribuir amplo alcance ao Princípio Democrático.

20) Caso acolhida a proposta pelo Supremo Tribunal Federal, os contribuintes e o Fisco

terão o incremento de um subsídio (ainda mais seguro) a determinar o regramento das suas

condutas, e mitigada estará a possibilidade de inúmeras interpretações ao texto legislativo,

pois, ao menos uma porção delas já será de conhecimento geral como não aceitas pela

Corte (aquelas contrárias à motivação do ato legislativo), bem como, uma delas será tida

por válida (aquela tida por contemplativa da motivação legislativa).

21) Essa proposta decorre da irrefutável necessidade de motivação dos atos estatais,

sejam eles provenientes do Poder Judiciário, do Poder Executivo, ou do Poder Legislativo,

em decorrência dos Princípios da Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade,

Eficiência (art. 37, CF), mas, principalmente, dos Princípios Democrático e Republicano

(art. 1º, caput, e parágrafo único). Veja-se ainda que tal posição observa outros princípios e

garantias fundamentais do ordenamento (Contraditório, Ampla Defesa, etc.). Eventual

hesitação do Poder Judiciário em aplicá-la, por receio de suposta interferência no Poder

Legislativo, em realidade, não malfere a Tripartição de Poderes, mas, sim, exercita o

sistema constitucional de freios e contrapesos (harmonia entre os Poderes, art. 2º, da CF).

22) A hermenêutica histórica, com a verificação das circunstâncias em que foi originado

determinado conceito ou instituto jurídico, agregada à inovação da utilização dos atos de

enunciação legislativa (normativa) e à uma Dogmática Jurídica numa acepção mais ampla

parece-nos uma das formas mais adequadas de interpretação/aplicação do Direito

Tributário; interpretação que contempla os ditames do Princípio Democrático.

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