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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC-SP Matheus Barbosa Emérito O fake fotográfico: simulações paródicas DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA SÃO PAULO 2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC-SP

Matheus Barbosa Emérito

O fake fotográfico: simulações paródicas

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

SÃO PAULO

2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC-SP

Matheus Barbosa Emérito

O fake nas mídias: simulações irônicas

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Tese apresentada à Banca Examinadora

da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para

obtenção do título de Doutor em

Comunicação e Semiótica, área de

concentração: Signo e significações na

mídia, sob orientação do Prof. Doutor

Arlindo Ribeiro Machado Neto.

SÃO PAULO

2012

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BANCA EXAMINADORA

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AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e

Tecnológico – CNPQ, por mais um auxílio concedido.

Agradeço as orientações e incentivo do Professor Doutor Arlindo Machado, a

atenção do professor Eric Landowski, das professoras Ana Cláudia, Cecília Salles,

Jerusa Ferreira e aos demais membros que prontamente, aceitaram o convite para

compor a banca examinadora.

Ofereço, também o meu agradecimento a Raoul Djukanovic, Nelito Fernandes,

Gabrielle Pfeiffer e Gerardo Panichi, por fornecerem informações e material para a

análise do corpus.

Sou eternamente grato a minha família, especificamente, a minha mãe, por o

amor que me tem, a Francisca com a sua dedicação, a minha irmã pela torcida de

coração e ao meu pai que me ajudou a escrever cada palavra neste texto.

Agradeço ao companheirismo e estímulo de Ana Maria, ao auxílio do "Seu

Miranda", a paciência do Erick Gomes .

Sou grato aos amigos Ocílio Lago, Charles Silveira, Mateus da Silveira, Lucas e

José Camilo, Yuri Jivago, Danielle Pini Galvão e aos professores do departamento de

Comunicação e Semiótica e a Cida pela prontidão em nos informar.

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"El buen fotógrafo es el que

miente bien la verdad." - Joan

Fontcuberta

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RESUMO

Esta pesquisa traz um estudo sobre fake fotográfico, cada dia mais presente na imprensa e na publicidade mundiais. O termo fake é utilizado por abranger das produções falsas até aquelas que apenas simulam, sem ter como prioridade a intenção de enganar. Com o objetivo de comprovar o potencial do fake fotográfico, como elemento de crítica ao suporte midiático em que também está inserido, este trabalho fez uma distinção entre os conceitos de falsificação e simulação. As fotografias falsificadas ou produzidas como simulações são consideradas dispositivos para reflexão, seja a respeito do processo de produção em si ou de sua representação como elemento da cultura. Por meio da consideração dos estudos de Hans Tietze e Nelson Goodman, observou-se que a falsificação é uma prática cultural que data da Idade Média. Esta prática, bastante comum no comportamento social humano, está diretamente relacionada com os conceitos de identidade, originalidade e autenticidade, conceitos estes tratados por Umberto Eco, e que guiaram a abordagem do falso nesta pesquisa. Todavia, o fake, como simulação, utiliza a paródia para promover a crítica. Por meio dos estudos de Linda Hutcheon, que conferem à paródia uma característica essencialmente irônica, este trabalho define um primeiro aspecto do fake como simulação paródica irônica. Foi examinado, então, a título de corpus, um conjunto de modelos paródicos: Not the Financial Times, impresso que critica o tradicional The Financial Times através da imitação; B.C. Byte Series, trabalho arqueológico ficcional que relaciona a obra de arte com o artefato; a revista Esquire, que divulga notícias ficcionais, entre outros. Ao selecionar um grupo tão diversificado, verificou-se que alguns exemplos apresentam, de forma velada, as pistas responsáveis pela construção do sentido paródico. Assim, uma paródia torna-se trote e determina a simulação paródica radical. Ainda examinando o diverso material fotográfico escolhido, observou-se que as manipulações são recorrentes, como falsificações, simulações paródicas irônicas ou radicais. A fotografia simulativa paródica radical é destacada através da análise dos trabalhos do fotógrafo Joan Fontcuberta, que compõe fotos fictícias, como as de animais, vegetais e até fotobiografias. Percebe-se, assim, a existência de uma reflexão crítica ao processo criativo e ao caráter de verdade que, tradicionalmente, constitui o ethos fotográfico. Os conceitos e a classificação que apresentamos, juntamente com as análises, buscam evidenciar a devida relevância do fake como paródia irônica reflexiva dos meios, dando continuidade à dissertação de mestrado O falso documentário, pesquisa previamente realizada por este autor.

PALAVRAS-CHAVE: falsificação, simulação, paródia, ironia, fotografia, artes visuais.

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ABSTRACT

This research deals with a study about photographic fake that have increasingly present in the media and advertising world of the XXI century. The term fake is used both to define false objects the really try to mistake people, and others which only simulate and have no intention to deceive as a priority. In order to prove the potential of the photographic fake as a critical element of media, even being part of it, so this work made a distinction between the concepts of forgery and simulation. The fake photographs or the ones produced as simulations are considered as devices for reflection elements of the production process itself or its representation as an element of culture. Through consideration of the studies of Hans Tietze and Nelson Goodman, it was observed that faking is a cultural practice that exists since the middle age. This practice is quite common in human social behavior, is directly related to the concepts of identity, originality and authenticity, concepts treated by Umberto Eco, who guided the approach about the false in this thesis. On the other side, there is the fake as simulation that uses the parody to promote critics. Through the studies of Linda Hutcheon, who gives the parody an ironic characteristic, this work defines one side of the fake as a parodic and ironic simulation. It was considered then as a corpus, a set of parody models: Not the Financial Times, which criticizes the traditional printed The Financial Times through imitation; BC Byte Series, archaeological work that relates the fictional work of art with the artefact; Esquire magazine, which publishes fiction news, among others. By selecting a diverse group, we verified that some examples present the hints that are responsible by the construction of the parodic sense in a concealed mode. So, a parody becomes a mock and determines the parodic and radical simulation. While examining the diverse photographic material chosen, it was observed that the manipulations are applied as forgeries, ironic or radical parodic simulations. The parodic radical simulative photography is pointed out through the analysis of photographer Joan Fontcuberta’s works, who designs faked photographs of animals, vegetables and even photo biographies. It is clear, therefore, the existence of a critical reflection on the creative process and the nature of truth that, traditionally, is the ethos of photography. The concepts and the classification presented, together with the analysis, seek to highlight the importance of proper fake as ironic parody of reflective media, continuing dissertation The fake documentary, previous research by this author.

KEYWORDS: counterfeiting, simulation, parody, irony, photography, visual arts.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 01: A St. Eustage - Albrecht Dürer, 1498. A St. Eustage

,Johann Georg Fischer, 1614...............................................

23

Figura 02: Knight, Ritter, Tod und Teufel, Albrecht Dürer, 1513………. 23

Figura 03: Caritas - Lucas Cranach, the elder....................................... 24

Figura 04: Albrecht Dürer. 1484/ Falsificação de um suposto

autorretrato de Dürer 10 anos depois, 1494.........................................

29

Figura 05: Duke Antoine the Good of Lorraine (Hans Holbein, 1543)

Unknown Young Man at his Office Desk (Hans Holbein, 1541) e

falsificação sem data………………………………………………………………

32

Figura 06: L.H.O.O.Q. , Marcel Duchamp, 1919................................... 35

Figura 07: Recortes das páginas da Revista Esquire Julho/2011........ 42

Figura 08: Perspective: Madame Récamier by David, René

Magritte,1951/ Portrait of Madame Récamier, de Jacques-Louis

David, 1800...........................................................................................

52

Figura 09: La Meridienne de Jean-François Millet, 1866 / La Siesta,

de Vincent Van Gogh, 1890.................................................................

54

Figura 10: Les quatre ages, Daumier, 1862/ Les Buveurs, Van gogh,

1890....................................................................................................

55

Figura 11: Thirty Are Better Than One, Andy Warhol, 1963…….......... 57

Figura 12: Le Dance Class, 1874, Edgar Degas/ Le Dance Lesson,

1999, Sophie Matisse………………………………………………………………

64

Figura 13: Sensacionalista, 13 de março de 2012................................. 72

Figura 14: Le Monde, 13 de março de 2012..........................................

Figura 15: Logomarcas do site G17 e G1..............................................

73

76 Figura 16 Folha capa do jornal Financial Times.................................... 78

Figura 17: Folha capa do jornal Not the Financial Times...................... 80

Figura 18: Anúncio da E-on, Not the Financial Times........................... 82

Figura 19: Reconstruction of an Aazudian Temple ……………………… 84

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Figura 20: Imagem de cilindro e chip da exposição B.C. Byte Series.. 85

Figura 21: Palimpsestos exposição B.C. Byte Series............................. 86

Figura 22: B.C. Byte Series no SESC POMPÉIA / SP........................... 88

Figura 23: Capa da Revista Esquire, de novembro de 1996.................. 89

Figura 24: Figura 1 – Campanha Benneton....................................... 101

Figura 25: Raising the Flag on Iwo Jima, de Rosenthal, 1945./Mother Cat stops stops traffic, de Harry Warnecke, 1927……………………………………………………………………..

103

Figura 26: Jornal Meio Norte de 01 de Junho de 2000........................ 105

Figura 27: Henry Peach , Fading Away, 1958………………………………. 107

Figura 28: As fadas de Cottingley,1917............................................... 107

Figura 29: Self Portrait as a Drowned Man, 1840…………………………. 108

Figura 30: Partido Comunista , 1920, em Petrograd........................... 109

Figura 31: A fotografia foi recortada - Partido Comunista , 1920....... 110

Figura 32: A fotografia foi recortada - Partido Comunista , 1920......... 110 Figura 33: 05 de maio, Moscou, Lenin discursa ..................................

Figura 34: Lenin e Stalin, no ano de 1992, em Gorky...........................

111

112

Figura 35: Lenin e Stalin, foto composição de 1938............................. 112

Figura 36: 27 de janeiro de 1936, Guelia com Stalin em Moscou......... 113

Figura 37: Hitler, 1925........................................................................ 114

Figura 38: Berlim, 1937 - Versões alterada e original......................... 114

Figura 39: Franqui e Fidel 1962, 1973, em Cuba.................................

Figura 40: La chine, 1977/La chine, 1981............................................

115

115

Figura 41: Foto registra cerimônia em memória a Mao. ....................... 117

Figura 42: Fotografia de Wu Yinxiam, Yan'an, 1942 ........................... 117

Figura 43: Painel de Dong Wiwen de 1955........................................... 118

Figura 44: Jornal egípcio, setembro de 2010........................................ 119

Figura 45: Foto oficial da captura de Bin Laden cedida pelo Governo

americano..............................................................................................

120

Figura 46: Heaven to hell, 2006, David Lachapelle……………………….. 123

Figura 47: American Jesus, Lachapelle, 2010....................................... 124

Figura 48: A ultima ceia na coletânea Jesus is my homeboy, 2003,

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David Lachapelle................................................................................... 125

Figura 49: Amanda Lapore como Marlyn Monroe de Andy Warhol....... 125

Figura 50: Deluge , David Lachapelle, 2006.......................................... 125

Figura 51: Marcelo do Campo 1969-1975, 2003, Dora Longo Bahia..... 127

Figura 52: Marcelo do Campo 1969-1975, 2003, Dora Longo Bahia..... 128

Figura 53: Marcelo do Campo 1969-1975, 2003, Dora Longo Bahia..... 129

Figura 54: Foto da planta Flor Miguera, Herbarium, Fontcuberta........ 134

Figura 55: Figura 55: Instalação Herbarium no Musée-Château.......... 134

Figura 56: Braohypoda frustrata.......................................................... 134

Figura 57: Astrophythu dicotiledoneus ...............................................

Figura 58: Lavandula angustifólia .......................................................

135

136

Figura 58: Lavandula angustifolia, ......................................................

Figura 59: Vampyroteuthis infernalis, por Louis Bec............................

136

138

Figura 60: Prof. Ameisenhaufen, Fauna, Fontcuberta e Formiguera..... 139

Figura 61: Foto da "radiografia"da Solenoglypha Polipodida..............

Figura 62: Solenoglypha Polipodida, Fontcuberta e Formiguera.........

140

141

Figura 63: Solenoglypha Polipodida, Fontcuberta e Formiguera......... 141

Figura 64: Prof. Ameisenhaufen com o Centaurus Neandertalensis..... 141

Figura 65: Descrição e esboço do Thresquelonia Atis.......................... 142

Figura 66: Prof. Ameisenhaufen com sua irmã Elke, 1907.................. 142

Figura 67: Instalação Fauna no Museu-Châteu Annecy....................... 143

Figura 68: El gran guardiá del Bé Total................................................. 145

Figura 69: Cercophitecus Icarocornu/ "Macacos Alados" da obra "O

maravilhoso mágico de Oz"..................................................................

145

Figura 70: Aerofants de Fauna Secreta / Dumbo, de Walt Disney....... 145

Figura 71: Sirenas, Joan Fontcuberta................................................... 149

Figura 72: vitrine de Sirenas, Digne-les-Bains, 2000........................... 150

Figura 73: Sirenas, Joan Fontcuberta................................................... 150

Figura 74: Centauro, Beuvais Lyon....................................................... 152

Figura 75: The association for creative zoology, Beuvais Lyon......... 153

Figura 76: Sputnik, Joan Fontcuberta ............................................. 154

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Figura 77: Vladimir komarov, 1961...................................................... 154

Figura 78: Sputnik, Joan Fontcuberta ............................................. 155

Figura 79: Sputnik, Joan Fontcuberta ............................................. 155

Figura 80: Sputnik, Joan Fontcuberta ............................................. 156

Figura 81: Sputnik, no Photo Art Festival, Maio, 2000........................ 157

Figura 82: Sputnik, Joan Fontcuberta ............................................. 157

Figura 83: Miracle &CO, Joan Fontcuberta ,milagre da Criofloração. 159

Figura 84: Miracle &CO, milagre da lacrimação sanguínea................ 160

Figura 85: Miracle &CO ,milagre da levitação/ da ubiquidade............ 161

Figura 86: Miracle &CO, Joan Fontcuberta........................................ 161

Figura 87: Deconstructing Osama, Foncuberta..................................... 163

Figura 88: Deconstructing Osama, Foncuberta..................................... 164

Figura 89: Deconstructing Osama, Foncuberta..................................... 164

Figura 90: Material de imprensa Deconstructing Osama...................... 165

Figura 91: Deconstructing Osama, Foncuberta..................................... 165

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................ 12

1 FAKE: FALSIFICAÇÕES ...................................................................... 13

1.1 As falsificações históricas............................................................... 13

1.2 Coleção ........................................................................................... 18

1.3 Falsificação vs simulações ............................................................. 19

1.4 Rumo a classificação ...................................................................... 26

2. FAKE: SIMULAÇÕES .......................................................................... 33

2.1 A classificação ................................................................................. 33

2.2 A simulação ..................................................................................... 37

2.2.1 A simulação criativa ..................................................................... 41

2.2.2 A simulação e os simulacros ....................................................... 45

2.2.3 A simulação criativa e a intertextualidade................................... 48

2.2.4 Simulação de co-presença: tradução, citação e paródia ............. 51

2.3 Simulação paródica ......................................................................... 58

2.3.1 Simulação paródia irônica............................................................ 65

2.3.2 Simulação paródica radical........................................................... 82

3 O FAKE FOTOGRÁFICO...................................................................... 93

3.1 A autoridade realista da fotografia ................................................ 93

3.2 A ficção no fotojornalismo.............................................................. 102

3.3 A intervenção fotográfica nos regimes ditatoriais ........................ 106

3.4 Simulação fotográfica paródica irônica ......................................... 121

3.5 Simulação fotográfica paródica radical ......................................... 126

3.5.1 Fontcuberta e as simulações.......................................................

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................

131

166

REFERÊNCIAS ....................................................................................... 168

ANEXOS ................................................................................................ 176

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INTRODUÇÃO

Um dos termos utilizados na língua portuguesa para caracterizar um elemento

como falso é a expressão "forjado". A princípio, essa palavra tinha apenas o

significado de algo que foi produzido na forja, que é o ambiente de trabalho de um

ferreiro, contendo fornalha, bigorna, etc. O objeto forjado era algo fabricado,

produzido, criado. A partir da objetividade da Renascença até o movimento do

realismo, o termo "forjado" era citado para apontar alguma obra que não fosse fiel à

natureza. "Então, antes o que era considerado um ato de valor criativo para

sociedade, se tornou bastardo ou uma produção espúria" (HAYWOOD, 1987).

Portanto, a expressão falso tem relação estreita com a fabricação e esta, por sua

vez, com a criação. Pode-se afirmar que a falsificação, como iremos constatar, é uma

atividade presente no desenvolvimento histórico do comportamento e da criação

humana.

[...] se soubermos ser menos dramáticos e mais flexíveis, se nos guiarmos por critérios de funcionalidade e não por dogmas de fé, veremos que a “cultura de contrafação” é mais rica que se supõe [...] (MACHADO, 1993, p. 200)

A palavra falso é demasiadamente genérica, podendo confundir-se com

abordagens fora do contexto da comunicação como "falso alarme", "degrau em

falso". Dessa forma, este trabalho optou pelo emprego da palavra fake, no exame de

elementos fotográficos fake na mídia.

O termo fake será utilizado de forma a abranger dois polos de classificação

que se distinguem por meio da intencionalidade: a falsificação, a que nos referimos

até agora, tem o propósito de enganar; as simulações, que procuram promover a

crítica ao processo de criação, ao intertexto ou ainda ao contexto cultural. As

simulações utilizam a paródia, que permite um olhar avaliador sobre um outro texto,

focando a polêmica dos valores projetados pelo criador da obra. O objeto paródico

faz uso da ironia, que, embora seja vista como ferramenta, é, na verdade, um

processo comunicativo que promove esta paródia sancionadora. A ironia é simulativa

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e põe em desacordo a enunciação e o enunciado, para destacar uma segunda

enunciação. As semelhanças entre o texto-base e o texto parodiado serve de

picadeiro para a ironia destacar as diferenças, de forma que o enunciatário

compreenda e reconheça a estratégia discursiva.

A fotografia, desde os primórdios de sua criação, é uma atividade de caráter

objetivo. As pessoas queriam tirar retratos para poderem imortalizar o momento, ou

seja, a foto oferecia a possibilidade de guardar a memória no papel. Esse valor de

verdadeiro que a fotografia herda tradicionalmente, faz dela uma ferramenta muito

útil para aqueles que fabricam o fato e forjam a notícia diária. Desse modo,

culturalmente, o homem é vítima da fé que deposita em sua própria criação.

Essa perspectiva de crédito demasiado da fotografia é uma das várias

questões apontadas pelo artista Joan Fontcuberta. Por meio da ironia de suas

fotografias simulativas paródicas, tenta polemizar o assunto em exposições que

simulam o processo fotográfico. Como na exibição Fauna Secreta, que apresenta

fotos inéditas (manipuladas) de animais desconhecidos pela ciência como um

macaco com chifre de unicórnio e asas de coruja. O fotógrafo ironiza a credibilidade

fotográfica, expondo simulações complexas, em cenários científicos que fazem o

conteúdo subverter o formato. Ele utiliza a paródia como crítica irônica ao revelar

fotos de referentes que não existem de forma palpável. O confronto faz-se e as

simulações, assim como as falsificações, estão situadas de forma importante e

necessária na história do homem.

1 FAKE: FALSIFICAÇÕES

1.1 As falsificações históricas

Como todo adjetivo, a palavra falso tem a função sintática de caracterização

de um substantivo. Esse efeito de retratar um objeto como falso implica apontá-lo

como um elemento oposto ao original, ou seja, não autêntico. Existem variados

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sinônimos para o falso: contrafação, engodo, fraude. A sua forma mais comum de

caracterizar um objeto como falso é o confronto com outro item considerado original.

Na cidade de Nashville (Tennessee, EUA), foi construída uma réplica em

escala 1/1 do Partenon de Atenas. A intenção era possibilitar ao visitante a

oportunidade de entender como se dava a arquitetura do edifício grego sem as

alterações naturais do tempo. Estátuas que contornam sua fachada são reproduzidas

com semelhanças em cores e formas assim como foram criadas, séculos atrás. O

prédio de Nashville, por oferecer uma arquitetura sem as avarias do tempo, com

cores fortes, estátuas em bom estado, tenta recriar a exuberância do edifício

ateniense. Surge, então, a questão: o templo de Nashville é falso? Ele exibe uma

arquitetura semelhante ao original quando foi construído, e não como é visto

atualmente em Atenas, sem cores, deteriorado, cercado por ruínas. A experiência do

visitante do Partenon americano é de deslocamento no tempo e espaço. Na verdade,

o sujeito participa de uma simulação que o "leva" à Grécia de mais de dois mil anos

atrás. O Partenon ateniense é reapresentado como terá sido um dia. A experiência é

uma simulação e não uma falsificação. O prédio de Nashville é uma recriação.

Exemplos de falsificações permeiam a história do homem. Por outro lado, as

simulações também desempenham papel importante no desenvolvimento. São duas

formas distintas do fake, ambas relevantes como parte evolutiva da criação humana,

apesar de que as falsificações sejam uma prática mais condenável.

O artista italiano Michelangelo, com apenas 21 anos de idade, esculpiu um

cupido de acordo com antigos moldes de produção e logo em seguida o enterrou.

Algum tempo depois, a peça foi desenterrada e negociada como antiguidade.

Michelangelo não tirou vantagem financeira da situação, mas sentiu-se orgulhoso por

ter seu trabalho confundido com os de seus ancestrais (TIETZE, 1948).

Obras consagradas da literatura ou artes visuais recebem, ao longo do tempo,

a atenção de estudiosos que, cada um em sua época, pode abordar e oferecer

diversas possibilidades de pontos de vista a respeito de forma, estética, regra, estilo,

ou seja, aspectos e abordagens diferentes. A atividade criativa que permanecer em

seu momento de criação e não ultrapassar as barreiras do tempo, admitindo novos

significados, acaba por "desaparecer". Muitos trabalhos, como os de Shakespeare,

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são reconhecidos de forma diferente a cada período, desde sua produção. A

intensidade semântica na obra de Van Gogh ainda não foi totalmente descoberta e

estudada. Este mesmo pintor, que vendeu pouco em vida, tendo sua obra não

reconhecida pelos seus contemporâneos, é considerado um dos maiores das artes

visuais. Mas será que seus quadros obtiveram novas cores e formas para motivar

essa mudança de perspectiva? De certa forma, o trabalho de Van Gogh não é o

mesmo de sua época. Foram-lhe atribuídos novos sentidos e abordagens a respeito

de sua intencionalidade, processo criativo e outros aspectos inerentes a qualquer

elemento autoral. A respeito da eternidade mutante de alguns produtos culturais,

Mikhail Bakhtin (1986, p. 05) diz que 'no processo da sua "vida póstuma" eles são

enriquecidos com novos significados, nova significância: é como se esses trabalhos

superassem o que eles foram na época de sua criação'.

A produção de falsos objetos baseiam-se em um original, reproduzindo suas

propriedades visíveis ou não. Podem manifestar-se de acordo com as regras

normativas de uma escola e, até mesmo, sugerir que é fruto de uma produção de

determinado autor. Em alguns casos, o próprio criador nem toma conhecimento de

que sua obra foi atribuída a outro, mais famoso, resultando em maior valor

financeiro ao negociador da venda do "objeto de coleção". Exemplos como o do

escultor italiano Giovanni Bastianini - que teve um busto, produzido por ele em 1866,

exposto no Louvre como uma obra da Renascença - ilustram como o falso objeto

pode ser tomado como autêntico e fazer parte da história como tal.

Nas artes visuais, era comum artistas já conceituados serem auxiliados por

iniciantes que não só complementavam ou finalizavam suas obras, mas também

produziam réplicas. Era bem aceito o comércio de réplicas fabricadas por talentos

devidamente treinados. "A oficina desses grandes artistas foi considerada - desde o

século XIX - como uma organização de comércio e não um santuário de um artista

solitário" (TIETZE, 1948). Essa relação "pupilo/mestre", quando muito longa,

tornava-se uma ocasião fértil para duplicações. Em 1937, durante a exibição de

Chefs d`ouvre de l`art français, uma das mais cuidadosas seleções de obras

francesas do século, uma pintura de Emile Bernard, foi exibida como obra de seu

companheiro Paul Gauguin (TIETZE, 1948).

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Mas a falsificação criminosa, o falso mercadológico, não é apenas praticada

nas artes visuais e, muito menos, uma atividade recente. Sua origem deu-se a partir

da comercialização de pedras preciosas, há cinco mil anos. Atualmente, guardado no

Museu de Estocolmo, um papiro egípcio contém amplas instruções sobre como imitar

pedras preciosas coloridas à base de vidro. Sabe-se, através de escritos de Sênecas,

que na Roma de César, havia diversas oficinas destinadas à falsificação de pedras

preciosas. À vista disso, as contrafações "habitam" na trajetória do homem desde o

surgimento da prática da troca, da atribuição de valores a objetos da natureza.

Pois, para se dizer a verdade, as profanações, as alterações, as falsificações de produtos culturais têm a mesma história do homem. Os copistas interferiam deliberadamente no texto, abreviando ou censurando o texto copiado, tudo, é claro, em nome da preservação da “verdadeira” mensagem. Livros raros e antigos têm sido modificados, através de enxertos e montagens, para esconder páginas faltantes. Pinturas e estátuas foram sistematicamente censuradas e modificadas[...] (MACHADO, 1993, p. 195).

Escrituras e textos da antiguidade também sofreram modificações ou foram

totalmente fabricados e disseminados como verdadeiros ao longo da história. No ano

de 391 D.C., a religião cristã foi adotada como a única religião do Império Romano.

A partir dessa data, a Igreja Católica estabeleceu forte influência nas decisões na

política, no poder jurídico e no consenso do que seria "bom costume" na sociedade.

O domínio da Igreja proporcionou uma manifestação adversa da falsificação, que não

era apenas voltada para acréscimos financeiros, mas também para efeitos

doutrinários.

Donatio Constantini foi um suposto decreto de lei do imperador Constantino

que, como um ato de fé, doa à Igreja territórios e edifícios sob seu domínio, dentro e

fora da Europa. O documento foi questionado por diferentes líderes romanos. Desde

então, sabe-se que, durante muito tempo, o escrito foi considerado como genuíno e

contribuiu para o domínio da Igreja Católica. Não só a falsificação, propriamente dita,

mas a omissão de alguns textos, livros, obras artísticas faziam parte da prática da

Igreja para exercer o catequismo autoritário (LAMBERTINI, 1987). O

desenvolvimento intelectual do homem é povoado por situações que apontam para

falsificações, que, de alguma maneira, subvertem aspectos importantes.

Em 1859, o britânico Charles Darwin publica a primeira edição do seu tratado

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A origem das espécies, que revolucionou a biologia com a Teoria das espécies. O

polêmico livro ultrapassou o ambiente acadêmico, tornou-se popular e provocou o

surgimento de diversas relíquias arqueológicas falsas visando ao ganho financeiro

oferecido por museus e colecionadores. Um dos mais famosos exemplos de fraude

foi o Homem de Piltdown (The Piltdownman). Em 1912, durante um encontro entre

profissionais da área, dois geólogos britânicos, Arthur Woodward e Charles Dawson,

anunciaram a importante descoberta do elo perdido entre a raça humana e os

macacos, de acordo com a teoria da evolução darwiniana. Os achados resumiam-se

a um crânio (semelhante ao humano), um fragmento de mandíbula de macaco e

dentes de outros animais - veados, castores e hipopótamos. Os anos seguintes foram

marcados pelo surgimento de inúmeras supostos descobertas relacionadas1 ao

Homem de Piltdown. No entanto, após a morte de Dawson, todas as tentativas

arqueológicas realizadas no local foram mal sucedidas, e nada mais foi encontrado.

O desenvolvimento da técnica de determinação da idade dos ossos por meio do

flúor, permitiu que os fósseis de Piltdown não fossem mais levados a sério como

achados da Era do Gelo, e sim restos de animais semelhantes ao homem. A farsa

durou 40 anos, principalmente porque o British Museum a considerava tão valiosa

que os especialistas não tinham a permissão para uma análise mais profunda (KOHN,

1986, p.140). Os fósseis permaneciam guardados, enquanto réplicas eram oferecidas

para exibição. Apesar de eventos como esses proporcionarem maior status na

carreira de um cientista através do reconhecimento de grandes descobertas, a

falsificação surgiu e continua a ser praticada com o objetivo de ganho financeiro.

1 Em 1913, o padre católico Pierre Teilhard de Chardin, que era paleontólogo amador, encontrou no mesmo local um dente que se encaixava na mandíbula. Em 1914, um operário encontrou uma ferramenta feita de um dente de elefante. Três anos depois da descoberta, Dawson afirmou ter encontrado outro Piltdownman.

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1.2 Coleção

Na esfera das obras de arte, quanto mais colacionável é a peça, maior a

possibilidade da contrafação. Ao considerar uma tela ou escultura como um elemento

de estimável valor para colecionadores, o seu valor aumenta, e, com isso, a

possibilidade de ser falsificada cresce na mesma proporção. Mas não é preciso

necessariamente ser uma obra de arte para ter valor de coleção. No século XXI, a

prática de leilão tornou-se mais popular com o ambiente virtual. Pessoas podem

participar e dar seus lances a qualquer momento, de qualquer lugar e, o principal,

sem mediador. Desde o surgimento da reprodução da imagem relacionada à religião,

o culto ao ícone tornou-se comum. Todavia, os "deuses" do passado tornaram-se os

atores, cantores, atletas, políticos e até elementos ficcionais da TV, que têm sua

imagem cultivada e adorada no presente. O ciberespaço, que é um ambiente

interativo de informações, prolifera com a rapidez necessária para que, em instantes,

promova qualquer pessoa à celebridade. E, assim, quanto mais famosos, mais

elementos colecionáveis vão surgindo e as falsificações em crescimento lateral.

Fortunas são despendidas em busca de objetos "valiosos" como os óculos utilizados

pelo cantor John Lennon, que, nas primeiras 24 horas de leilão via internet, chegou a

quase 750 mil libras (aprox. dois milhões e oitocentos reais). Objetos considerados

por muitos como "fúteis" ou de pouca importância podem chegar a um preço

oneroso tendo em vista o interesse de poucos colecionadores. A fascinação pelo

hábito de colecionar fez com que a falsificação surgisse e se desenvolvesse ao longo

dos anos, principalmente nas obras de arte. "Coleciona-se por motivo de beleza, por

status, para acumular capital e por outros inúmeros motivos, entre os quais, figuram

também e não em último lugar, a vaidade e a ambição[...]" (ARNAU, 1961, p. 20).

A atividade de colecionar é tão primitiva que, possivelmente, originou-se com

as técnicas de conservação de alimentos ("item de valor" na Idade da Pedra),

passando pela obsessão das civilizações grega e romana em reproduzir imagens dos

oligarcas em esculturas e pinturas, que logo se tornaram elementos de alta estima.

Os artistas produziam estátuas ou figuras em série e inseriam apenas as cabeças de

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acordo com cada cliente.

Cosme de Médicis pôs a base de uma coleção que, em 1492, constituía provavelmente a maior coleção de arte de primeira[...]O palácio da família, as quintas e os jardins pareciam na realidade tesouros próprios de museu. Com pinturas, mosaicos de Bizâncio, retalhos, tapeçarias, mobiliários suntuosos, preciosas esculturas de pedra, marfim, madeira ou metal, cristais ou vidros, manuscritos ou quadros, moedas, jóias de todas as classe, correntes, pedras preciosas, obras de ourives e ourivesaria em Florença. (ARNAU, 1961, p. 24)2.

A partir do Quattrocento, famílias investiam boa quantidade de capital para ter

em casa obras da antiguidade romana e grega. Mas a demanda era muito grande e

as obras de arte "originais" estavam-se tornando item raro no mercado. Então, surge

a perfeita oportunidade para a falsificação. Muitos artistas criavam peças que

reproduziam os efeitos "danificados" do tempo para fazer da obra originalmente

antiga, como o cupido criado por Michelangelo. Quanto mais pessoas procuravam

por prestígio e status com a compra de itens cada vez mais raros e antigos para

colecionar, mais obras falsificadas eram vendidas. Naquela época, havia mais

dificuldade na identificação de fraudes; portanto, muitas famílias podem ter obtido

certa deferência devido a obras que não eram originais - a falsificação atuando na

relação e comportamento social.

1.3 Falsificações vs simulações

Constantemente, um objeto cultural pode ser definido como falsificação, mas,

na verdade, é uma simulação resultante de avanços tecnológicos ou inovações no

processo de criação. Um bom exemplo é a tecnologia da representação

cinematográfica. No título Moonraker (1979), da série de filmes do personagem 007,

o espião luta com seu inimigo sobre os cabos que seguram os bondes do Pão de

Açúcar, no Rio de Janeiro. A cena é produzida com o efeito de estúdio denominado

2 Tradução livre.

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de chroma keying. A técnica insere qualquer fundo ao objeto em primeiro plano. O

ator grava a cena com um fundo verde, azul ou vermelho e, com a computação

gráfica, esse fundo é substituído por outra imagem. No filme, o ator nunca esteve a

dar golpes no topo do bonde, no Rio de Janeiro. É aceitável a hipótese de que todos

os espectadores do nosso século não duvidassem da utilização de um artifício

tecnológico para construir a cena. Sob outro ângulo, por ocasião de uma época em

que a técnica ainda não era tão popular, espectadores poderiam achar que o ator

quebrou o cabo do bonde realmente com os dentes como o filme mostra. Dessa

forma, a simulação é reconhecida ou não por meio dos padrões da linguagem

cinematográfica de cada momento na história. Por outro lado, ocasionalmente, a

simulação, os avanços tecnológicos são confundidos como elementos tão falsos

como uma cópia de um quadro produzido para fins lucrativos.

Há, em alguns casos, a "paranóia do original" (MACHADO, 1993), que

exatamente permite dar a todo objeto que foge das convenções, o significado de

falso, por meio de uma abordagem pejorativa.

O gosto da autenticidade a todo preço é o produto ideológico de uma sociedade mercantil, e, quando uma reprodução de uma escultura é absolutamente perfeita, privilegiar o original equivale a privilegiar a primeira edição numerada de um livro, em vez da segunda edição[...] (ECO, 1991, p.159).

Faz-se importante acrescentar que, em muitos casos, grande parte de uma

sociedade não possui conhecimento técnico suficiente para poder perceber as

propriedades que realmente distinguem dois objetos "semelhantes" e, por

conseguinte, reconhecem-nas como idênticos. O cinema documental, ainda hoje, em

meio a tantas provas de manipulações3, há quem defenda a câmera como artifício

para capturar a realidade. A grande plateia, quando não “alfabetizada” da linguagem

utilizada, não distingue os artifícios ficcionais nessa construção.

O objeto falso também não deve ser confundido com a réplica. A réplica é um

idêntico do seu original? O termo "idêntico" sugere a ideia de equivalência, que, nas

3 A manipulação inicia no momento da captura até a edição do filme, passando pela "negociação" da entrevista entre realizador e personagem. Além de outros aspectos como tomada encenada, atores contratados fazendo parte do circo de um filme documentário que é denominado, ingenuamente, como "registro do real".

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ciências exatas, é algo absolutamente igual que reproduz as propriedades mais

intrínsecas e incontroláveis do original. Esses absolutos são utópicos, haja vista sua

dificuldade de reprodução. Os objetos que duplicam o original, copiando o mesmo

procedimento de criação, refazendo-o nas mesmas condições, são denominados

"duplos" - produção em série de um mesmo modelo (ECO, 1991). Todavia, do ponto

de vista semiótico, denomina-se réplica todo objeto que é produzido com apenas um

percentual das propriedades do objeto-modelo - um aeromodelo, por exemplo.

De acordo com Daniele Barbieri (1987, p.44), um objeto é semelhante a outro

quando compartilha pelo menos uma propriedade. Quando o objeto não tiver uma só

propriedade diferente do outro, ambos são idênticos4.

Na fotografia, por exemplo, a cópia produzida em série pode perder no

aspecto autoral. A essa prática, Walter Benjamin (1994) denomina "reprodutibilidade

técnica" - reprodução sistemática, automática, seriada de uma obra de arte. Com a

reprodução técnica a obra tem o seu valor de autoria fragilizado, mas, por outro

lado, ganha no domínio da tradição histórica, devido à popularização. A réplica

substitui a manifestação única da obra por uma manifestação em série.

A reprodução técnica refaz o processo de produção parcialmente e, portanto,

pode interferir para fornecer diferentes resultados. Esse procedimento se encontra

mais voltada para artes visuais, principalmente, escultura, pintura, fotografia e

cinema.

Alguns anos atrás, com o desenvolvimento da tecnologia digital, tornou-se

possível colorizar obras cinematográficas em grande escala. Filmes clássicos como

Casablanca (Michael Curtiz, 1942) ou Suddenly (Lewis Allen, 1954) receberam cores

para exibição na TV ou para serem comercializados em fitas cassetes, tendo maior

apelo mercadológico. Na época, ocorreu certa polêmica porque muitos cinéfilos

confrontavam a prática de colorizar como uma intervenção radical que modificava o

conteúdo da obra, fazia do original uma fraude. O assunto, definido como "síndrome

da colorização" (MACHADO, 1993) e chegou aos congressos americano e inglês. No

entanto, a colorização no cinema era rotina de realizadores como Georges Méliès,

que possuía uma equipe para inserir cores em seus filmes, quadro por quadro. 4 Tal afirmação poder até ser duvidosa, mas é suficiente para compreender a réplica.

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É fato, ao que se percebe com alguns exemplos de adulterações citados até

agora, que a história é composta também por fraudes. Por outro lado, o culto

prescindível ao original, mesmo definido superficialmente como o "primeiro", pode

permitir uma intransigência quanto a novas formas de manifestação artística. O

fetiche pela originalidade, a moralização conservadora dos meios culturais estavam

por interromper uma práxis comum na história da criação artística: o retoque.

Normalmente, quando ocorre uma variação no original de uma pintura que

não seja para causar-lhe maior interesse com propósito financeiro, isso se dá por

meio de ajustes ao "gosto", à "moda" da época ou até mesmo para privilegiar alguns

dos envolvidos: autor original, retocador ou proprietário da peça.

Em 1498, um artista da Bavária, Albrecht Dürer, pintou a imagem de um

membro da família Paumgartner (que encomendou a obra) como se fosse um

personagem sagrado. Cerca de 120 anos depois, o duque da Bavária adquiriu a peça

e solicitou ao pintor da corte, Johann Georg Fischer, que a restaurasse (Figura 1). O

artista substituiu a bandeira por uma lança, inseriu uma espécie de capacete no

personagem, colocou um cavalo em um cenário sombrio com uma colina ao fundo. O

pintor acrescentou à obra de Dürer elementos com o interesse de afastar o

personagem principal do caráter de "santo" para aproximá-lo à função de cavaleiro,

fazendo referência ao comportamento do duque, recém-proprietário da obra. Faz-se

necessário apontar que, neste caso, o retocador com sua intervenção, fez do painel

uma criação de dois autores. Ainda há outro detalhe importante no trabalho de

Fischer: o cavalo, a mata, a colina, o castelo são itens de outra obra de Albrecht

Dürer, de 1513, considerada uma de suas obras primas: Ritter, Tod und Teufel. Esse

é um tipo de episódio que dá a entender a obra artística como uma constante em

desenvolvimento, com compreensões diferentes ao longo do tempo, de acordo com

Bakhtin (1986). Os diversificados entendimentos são relacionados à perspectiva e ao

comportamento de cada época, incluindo retoques ou inserções numa obra de arte.

Não há dúvida de que o painel de Dürer foi modificado, provocando outra

interpretação. Todavia, não faz da obra uma falsificação.

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Figura 1 À esquerda: St. Eustage - Albrecht Dürer, 1498. À direita: a mesma obra alterada por Johann Georg Fischer, 1614.

Figura 2 Knight, Ritter, Tod und Teufel, Albrecht Dürer, 1513.

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Assim como obras que foram alteradas para corresponder ao gosto do seu

proprietário, outras tiveram suas telas modificadas com o objetivo de reajuste à

maneira mais apreciável de determinado momento cultural. Nos séculos XVII e XVIII

diversas criações sofreram intervenções plásticas para alinhar sua estética a

convenções como a sobreposição de ilustrações de roupas e tecidos aos detalhes em

nu.

A pintura a óleo produzida em 1536, por Lucas Cranach ("o mais novo"), foi

modificada anos depois, de acordo com o conservadorismo da época. O restaurador,

além de cobrir as pinceladas anteriores com o dever de reaver, renovar a obra,

decide por alterá-la, vestindo a virgem com roupas e modificando a curvatura do seu

braço esquerdo, que segura a criança. Particularmente, a autoria dos trabalhos com

a assinatura de Lucas Cranach é confusa porque, em sua oficina, trabalhavam juntos

o pai e o filho com o mesmo nome. Não obstante, algumas produções do filho eram

reproduções temáticas do pai e vice-versa. A relação pupilo e mestre promove um

processo criativo em conjunto.

Figura 3 - À esquerda: reprodução em preto e branco e recortada da versão modificada de Caritas - Lucas Cranach, the elder. A direita: quadro restaurado, sem a camada de tinta utilizada anteriormente, para encobrir o personagem.

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Muitas galerias, em outras épocas, chegavam a cortar as telas ou alongá-las

para produzir em o efeito decorativo desejado - obra de arte como bem de

decoração. Na verdade, é difícil para qualquer sujeito, sem conhecimentos

especificamente técnicos, reconhecer uma obra alterada ou retocada. Desse modo,

dizer que essas pinturas são falsificações aponta para a velha tradição da adoração

ao original. As falsificações são objetos forjados para substituir o original, que

caracterize o crime como objetivo da venda. Além de que o exercício da restauração

é um bem ao patrimônio histórico da arte.

A restauração não tem na sua essência a intencionalidade de falsear. "A

restauração deve visar ao restabelecimento da unidade potencial da obra de arte [...]

sem cancelar nenhum traço da passagem da obra de arte no tempo"(BRANDI, 2004,

p.33). Esse "traços" não são nada mais que marcas, indícios da existência da obra ao

longo do tempo, que comprovam sua história. Mas, durante muitos séculos, os

especialistas e negociadores de obras de arte ofereciam bustos, estátuas e pinturas

"magicamente" (TIETZE, 1948, p.14) semelhantes ao original. Peças eram

restauradas a ponto de aniquilar qualquer traço histórico. Entretanto, os

compradores, por efeito do hábito de colecionar, começaram a exigir a presença dos

traços que comprovassem o valor histórico da obra. E, então, os falsificadores

voltaram-se a produzir peças novas com esses indícios e convencionadas à moda

antiga, como o cupido de Michelangelo, citado anteriormente. Talvez, com o

propósito de evitar a eliminação desses traços históricos, alguns cinéfilos defenderam

a não colorização dos clássicos do cinema. A valorização da obra fílmica reduziu-se a

sua materialidade e não à artisticidade. Talvez, na concepção dos opositores da

colorização cinematográfica, o filme Casablanca perderia sua qualidade artística. As

cores na tela da televisão, com certeza, não iriam mudar diálogos ou a trama do

filme, mas promoviam uma nova versão. E, sendo uma versão, entende-se a

existência de um antecessor, eliminando o processo de um passar-se por outro. É

comum encontrar inúmeras versões de filmes, ou melhor, refilmagens, termo mais

comumente utilizado para denominar a produção cinematográfica que se baseia em

outra, considerando em parte ou completo o roteiro original. Essa prática não faz da

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versão anterior um trabalho mais ou menos admirável. Ao contrário, se uma história

é refilmada, entende-se como uma referência, no sentido de respeito e autoridade.

É evidente a existência, desde a literatura clássica, da paródia irônica, que,

muitas vezes de forma jocosa, tenta provocar um desconforto visando à crítica. Mas,

na maioria dos casos, especialmente no cinema blockbuster5, as refilmagens buscam

o sucesso obtido pela versão anterior. A adaptação de um livro ou peça de teatro é,

como a colorização, também uma manifestação criativa, comum na prática

cinematográfica. A peça Romeo e Juliet, escrita há mais de quatro séculos por

William Shakespeare, foi inúmeras vezes retratada no cinema. Depois das versões

que mais se destacaram - Romeo and Julieta (Franco Zeffirelli, 1968) e Romeo and

Juliet (George Cukor, 1936) - a adaptação Romeo + Juliet (Baz Luhrmann, 1996) foi

a mais ousada. Apesar de seguir as falas dos personagens escritas por Shakespeare,

o drama passa-se na década de 1990, inserindo gírias, músicas modernas e

elementos novos. Os cavalos são substituídos por carros, as espadas cedem lugar

para as pistolas de fogo e até os efeitos da comunicação de massa sobre a sociedade

moderna são retratados com inserção da televisão como locutora da história de

Romeu e Julieta. Assim como a colorização, o efeito em três dimensões são

desenvolvimentos tecnológicos que oferecem versões que destacam o valor artístico

do texto-base e não falsificações.

1.4 Rumo à classificação

As atividades humanas sofreram mudanças resultantes do capitalismo. O

trabalho artístico passa a ser considerado mercadoria. Como uma obra de arte

precisa da criatividade para se destacar, a demanda vem a ser maior que a oferta.

Desse modo, os preços aumentam e as fraudes são mais praticadas. Verifica-se

também que a falsificação está ligada a outros aspectos sociais como a religião. Os

5 Jargão que se refere aos filmes de maior apelo comercial, destinados à venda em massa. Termo baseado no nome de uma das maiores cadeias de video locadoras do mundo.

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apócrifos são exemplos de documentos fraudados ou apenas "omitidos". Vê-se

claramente que o falsear é uma prática comum há muito tempo. Esculturas de

pedra, madeira, marfim, metal, com ou sem pedras preciosas, ainda são "fabricadas"

para se passar por antiguidades. Falsificavam-se moedas facilmente, e a descoberta

do ato criminoso fica mais distante por conta do seu uso massificado. Acontece o

oposto com os colecionadores de selo postal, que, devido ao seu conhecimento

técnico, são eventualmente capazes de identificar falhas na reprodução ilegal. Por

outro lado, os criminosos especializam-se na produção de carimbos, tendo em vista

que selos carimbados são mais valiosos. Criam-se até instrumentos musicais aos

moldes dos clássicos e não se vendem como réplicas, mas como os originais. Enfim,

contam-se inúmeros exemplos das falsificações criminosas, seja no âmbito artístico

ou não. A princípio, a classificação do falso pode-se dar por meio de uma simples

dicotomia: Falso histórico e Falso artístico (BRANDI, 2004). O falso histórico, oposto

ao falso artístico, seria a prática da falsificação fora do âmbito das obras de arte.

Documentos, mapas, registros, objetos industrializados, todos os elementos não

considerados um trabalho artístico, quando falsificados podem ser definidos na

categoria de falso histórico. A formulação de Celso Brandi é geral o suficiente para

reduzir o estudo do falso numa análise apenas do produto final. Não observa a

intencionalidade do falso e a sua potencialidade de interpretação.

Há de se observar, com todos os exemplos, que as falsificações são formas de

expressão deliberadamente enganosas. Para tanto, seus modos de operação devem

ser complexos e assim seus efeitos de sentido. Por conseguinte, uma classificação

mais apurada do falso pode ser esboçada.

Para Umberto Eco (1987), o objeto só é falso quando identificado como tal.

Para que uma escultura seja considerada uma fraude, ela deve ser reconhecida

dessa forma. Não importa se a tela é adulterada, o que interessa é se as pessoas

acreditam ou não na sua autenticidade. Portanto, a sua classificação é baseada nas

ações do "pretendente", aquele que está no exercício de identificar a obra. Dessa

forma, o estudioso propõe uma tipologia da falsa identificação: a contrafação radical,

a contrafação moderada e a contrafação ex nihilo.

Quando dois objetos, "Original A" e "Original B", intentam a ser um só, ou

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seja, idênticos, ocorre a contrafação radical ou moderada. Pode ser praticada por

meio da Falsa identificação deliberada, Falsa identificação ingênua, Cópias de Autor e

Alteração do Original.

A falsa identificação deliberada ocorre quando o pretendente identifica o Oa

diferente de Ob, mas declara, com objetivo de enganar, que Ob é o original (Oa). Na

falsa identificação ingênua, os destinatários do pretendente acreditam que Ob é o

original Oa, mesmo sem que o pretendente o tenha declarado como tal. É o caso de

pessoas que confundem a réplica exposta no corredor de uma exibição como sendo

o original, guardado em cofre. Outra forma de contrafação radical são as cópias de

autor. Ao finalizar uma obra, o artista efetua um duplo, que aparentemente é igual

ao original e possui os mesmos valores estético e histórico. Por outro lado, os

adeptos do fetichismo do original não permitem a coexistência dos dois e

obrigatoriamente, aponta Ob como falso. Uma prática muito comum, como foi citado

anteriormente, a alteração do original pode fazer de Ob original (Oa). Todavia, sabe-

se que Ob é Oa alterado.

Outro processo de falsa identificação formulada por Eco é a contrafação

moderada. Nesse tipo, o falso é operacionalizado de duas formas. Em uma delas o

pretendente não é sensível a questões de autenticidade e aponta como original tanto

o Ob como Oa. A essa postura o teórico define como "entusiasmo gerador de

confusão", pois, ao nivelar, ambos se tornam o mesmo objeto, ou seja, dois originais

possuem a mesma identidade. A intercambialidade é o que rege a contrafação

moderada, e assim a tradução e, em alguns casos, a restauração é apontada como

adulteração, tendo em vista o embasamento na "paranóia do original". A

comparação da atividade de traduzir com a falsificação será retomada

posteriormente.

Por fim, a classificação proposta por Umberto Eco descreve também um tipo

de contrafação que surge sem ter um original (Oa) como referência, provinda "do

nada". O Ob é fruto de reprodução de traços de autores ou estilo. É denominada

contrafação ex nihilo a que se opõe à produção ex materia, que significa a

preexistência da matéria.

Em 1484, Albrechet Dürer pintou seu primeiro autorretrato na idade dos treze

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anos. Algum tempo depois, não se sabe exatamente quando, surgiu uma falsificação

datada de 1494 de outro autorretrato de Dürer. O falsificador não copiou exatamente

outra obra, não se utilizou de uma matéria preexistente por completo. Na verdade, o

autor criou uma imagem de Dúrer mais velho, utilizando o personagem do quadro de

1484, inclusive, manteve o chapéu e os cabelos longos. Além disso, criou fissuras na

tela para parecer uma obra antiga.

O falso diplomático e o falso histórico são algumas das formas de

manifestação da contrafação ex nihilo. O primeiro refere-se a documentos falsos com

informações verdadeiras. Como uma fotomontagem do momento em que a princesa

Isabel assina a Lei Áurea. O falso histórico ocorre quando o documento é

formalmente autêntico, mas a informação é falsa - uma notícia de jornal sobre um

fato fictício.

A contrafação ex nihilo deliberada faz-se quando o autor de Ob é o mesmo

pretendente e assim produz o falso à maneira de outro autor ou período, como

Michelangelo fez ao enterrar o cupido. Ainda como na classe do ex nihilo, Eco cita a

falsa atribuição quando o pretendente não é o autor de B e o objeto Ob se passa por

uma data e autoria deturpada.

FALSA IDENTIFICAÇÃO DELIBERADA CONTRAFAÇÃO RADICAL

FALSA IDENTIFICAÇÃO INGÊNUA

Figura 4.1 - À esquerda, autorretrato aos 13 anos, Albrecht Dürer. 1484. À direita, falsificação de um suposto autorretrato de Dürer 10 anos depois, 1494.

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CÓPIAS DE AUTOR ALTERAÇÃO DO ORIGINAL ENTUSIASMO GERADOR DE CONFUSÃO CONTRAFAÇÃO MODERADA PRETENSA DESCOBERTA DE INTERCAMBIALIDADE FALSO DIPLOMÁTICO CONTRAFAÇÃO EX NIHILO DELIBERADA

CONTRAFAÇÃO EX NIHILO

FALSA ATRIBUIÇÃO INVOLUNTÁRIA Quadro 1- Classificação proposta por Umberto Eco (2010). Percebe-se um termo em comum nas classificações descritas - o falso

histórico. Trata-se de um registro que contraria a eventualidade dos fatos. Em 1813,

a Revista do Instituto Histórico e Georgráfico Brasileiro publicou um documento

sobre a conquista do território dos índios goitacás no século XVII. O registro sendo

genuíno, consistiria em grande valor para o estudo da história indígena do país.

Todavia, por meio do confronto entre o estilo da escrita do documento e o estilo

praticado no século que o data, concluiu-se que a escritura é uma falsificação do

século XIX (MARTINS, 1996, p.146). De acordo com Eco, o falso histórico é aquele

que faz do acontecimento verídico algo enganoso, "uma simples mentira"(ECO, 2010,

p.140). Mas nem sempre o contrário de verídico é enganoso. Basta citar o cinema

ficcional, no qual estórias que de fato nunca aconteceram são exibidas na tela, mas

sem a pretensão de enganar. O docudrama, por exemplo, é uma ficção pontuada por

elementos que realmente existiram e compõe a história. O filme Cidade de Deus

(Fernando Meirelles, 2002) apresenta uma narrativa que retrata a violência em uma

das maiores favelas do Rio de Janeiro. Além disso, inclui personagens que fizeram

parte dos acontecimentos da época reportada na película. Na literatura há casos

como esse. O livro The life and strange surprizing adventures of Robinson Crusoe, de

Daniel Defoe, publicado em 1719 e inspira inúmeras obras da cultura atual,

fundamentou-se na aventura do marinheiro Alexander Selkirk. O jovem escocês foi

abandonado numa ilha, no arquipélago de Juan Fernandez, na América do Sul, de

outubro de 1704 a fevereiro de 1709. Selkirk, retornando ao Reino Unido, tornou-se

famoso o suficiente para servir de inspiração para Defoe.

Na verdade, tanto Cidade de Deus como o livro de Robinson Crusoé são obras

que contam fábulas as quais, de acordo com a definição de Eco podem ser

consideradas falsas. Entretanto, há um acordo entre os polos da relação

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comunicacional de uma narrativa fictícia. Eco (1991) define como "pacto ficcional"

esse acerto em que o criador deixa marcas para o destinatário perceber e não tomar

como verdadeiros os episódios narrados.

Na semiótica greimasiana (GREIMAS, 2008), esse pacto é denominado

contrato de veridicção (GREIMAS, 2008), o qual indica que a verdade depende de

estratégias de linguagem. Há uma partilha entre o “crer-verdadeiro” do enunciador

com o do enunciatário. E é através desse equilíbrio tênue que se forma ou não a

verdade no discurso. Como afirma Fiorin (1996): “Esses contratos determinam a

atribuição de estatutos veridictórios distintos aos dois tipos de discurso. Trata-se,

com efeito, de um jogo que se estabelece entre o ser (dizer) e o parecer (dito)”. Na

verdade, não interessa muito se o enunciador está a criar discursos verdadeiros, e

sim a produção de efeitos de sentido de verdade junto ao enunciatário. O "fazer

parecer verdadeiro" é praticar a verdade. Da mesma forma, os romances literários e

filmes "baseados em fatos reais" também firmam acordo com o destinatário

objetivando não "parecer verdadeiro" e assim se tornar um trabalho assumidamente

ficcional.

Na classificação de Eco (2001), apesar de ser verificada a distinção da prática

de forjar pela ótica da origem da produção: a contrafação ex nihilo. Há o descuido de

não citar casos em que se mesclam duas obras genuínas. Como exemplo dois

trabalhos de Hans Holbein (Figura 4) que foram montados em um só: Duke Antoine

the Good of Lorraine de 1543 com Unknown Young Man at his Office Desk de 1541.

O criador do terceiro quadro utiliza a cabeça do duque Antoine e o corpo do homem

da tela de 1541. Alguns poucos aspectos são modificados como o rosto do duque,

que é rejuvenescido, o ouro do seu chapéu é removido e os anéis retocados em

outro dedo.

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Figura 5 Da esquerda para direita: Duke Antoine the Good of Lorraine (Hans Holbein, 1543) Unknown Young Man at his Office Desk (Hans Holbein, 1541) e falsificação sem data.

Outro detalhe excluído no arranjo de Eco são as "contrafações criativas",

como o próprio autor cita (ECO, 2010, p.145), mas não as desenvolve. Tendo em

vista que o fetiche pelo original já está enraizado na cultura, qualquer manifestação

que propõe uma simulação de fatos, objetos, situações do cotidiano pode ser

considerada como contrafação. Na verdade, faz-se necessário definir uma

conceituação por meio de expressão menos pejorativa para, assim, abranger

exemplos6 "criativos" que ironicamente sugerem uma crítica ou reflexão e não o

engano criminoso.

As categorias a que este trabalho visa estão embasadas na intenção do

destinador, em suas estratégias para gerar o contrato entre as partes que envolve o

processo comunicacional e manter esse pacto com o objetivo do humor ou provocar

reflexão sobre algum aspecto do homem, da sua manifestação cultural ou até

mesmo da própria mídia. Desde então, há uma clara divisão entre dois

comportamentos: o enganoso, aqui denominado falsificação, e a simulação, definida

como ação de crítica. À vista disso, percebe-se que a intencionalidade move a

distinção. O interesse maior não é a busca interminável de definir, claramente,

termos como autenticidade, originalidade, verdade e mentira (o esclarecimento nas

6 Esses objetos irão compor o tema principal deste trabalho.

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primeiras páginas é suficiente para o nosso propósito). Mas entender como a

"paranóia do original" permite a manifestação criativa que se voltam contra esse

dogma e utiliza-o como ferramenta para promover a reflexão através da crítica.

2 FAKE: SIMULAÇÕES

2.1 A classificação

Com a evolução do comércio e a valorização dos objetos, houve um

desenvolvimento da atividade da falsificação. Ao longo da história, livros foram

modificados; pinturas, adulteradas; moedas replicadas; esculturas, forjadas. Os

diversos exemplos certificam que o fetiche do falso/original deve ser cuidadosamente

ponderado, tendo em vista que o adjetivo "falso" trata de forma pejorativa

elementos que possuem importante valor cultural. As falsificações vêm há muito

tempo retratando, assim como as consideradas "autênticas", o comportamento

humano. Réplicas fraudulentas de quadros de séculos atrás permitem o estudo da

forma de produção criativa do autor copiado. Falsas esculturas antigas que recriaram

traços de artistas da era romana impulsionam a análise de características peculiares

dessas elaborações de época. As falsificações têm valor cultural porque carregam

consigo uma dupla história: a do seu tempo de criação e a do tempo que reportam.

O cupido que Michelangelo enterrou fornece informações do procedimento de criação

dos antepassados do artista e, ao mesmo tempo, das predileções da época em que a

escultura foi produzida.

Porém é de maior valia para esta pesquisa em desenvolvimento um outro tipo

de elemento que subverte linguagens e padrões de modelos em diversas mídias, a

simulação. Sua intencionalidade não é a de enganar ou o ganho financeiro. Está mais

voltado para provocar reflexão por meio da polêmica ou humor. Dentro da

semelhança, a implícita diferença destaca o objetivo do autor da obra.

Na metade da década de 1990, o físico Alan Sokal interessou-se pelos estudos

pós-modernos das ciências sociais e considerou que muitos dos textos criticavam

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incoerentemente outras ciências. Ao se inteirar, escreveu um dossiê que refletia a

respeito de estudos de filósofos como Lacan, Deleuze, Derrida por utilizarem um

relativismo exagerado por "esquerdistas radicais". Dessa forma, no ano de 1996, o

cientista resolveu inscrever um artigo para seleção na revista de "estudos culturais",

a Social Text editada pela New York University. A revista estava por lançar uma linha

editorial chamada de "Guerra nas Ciências", que justamente criticava a intervenção

de teóricos das Ciências Exatas no âmbito das Humanas e Sociais. O texto

Transgressing the boundaries: toward a transformative hermeneutics of quantum

gravity (Transgredindo Fronteiras: Em direção a uma Hermenêutica Transformativa

da Gravidade Quântica), de Sokal, foi aprovado e publicado. Todavia, tratava-se de

um arranjo de citações longas de diversos filósofos, argumentações sem

fundamentos e incoerente relação com a matemática e a física. O seu objetivo era

provocar uma polêmica a respeito da conexão comumente feita entre teorias

científicas e estudos sociais, além de criticar o processo impreciso da seleção por

parte dos editores da revista. No mesmo ano, Alan Sokal publica o artigo A Physicist

experiments with cultural studies ("Experiências de um físico com os estudos

culturais") na revista Língua Franca, em que o autor aponta todos os aspectos

desconexos e discrepâncias do artigo anterior. Ele utilizou artigos científicos da área

(ditos como "modelos"), produziu uma paródia e criticou intelectuais e suas teorias,

sem precisar citá-los diretamente. Percebe-se que é uma manifestação do falso, mas

diferente da falsificação criminosa. Em outras palavras, Sokal fez uso do padrão do

recipiente (expressão) para subverter o teor (conteúdo), comumente utilizado. A

atitude ganhou destaque nos principais periódicos do mundo como New York Times,

The Observer e Le Monde.

Pensei que seria mais divertido e mais útil, ao invés de criticar, escrever um artigo elogiando esses textos. Então, tive a idéia de escrever uma paródia, que fosse, ao mesmo tempo, um experimento - ainda que não científico - e um embuste. Pensei que a sátira e o humor poderiam ser armas mais potentes que um artigo normal para desbloquear um debate que há muito tempo estava bloqueado. (SOKAL, 1998).

Para ilustrar melhor esse tipo nas artes visuais, cita-se a obra dadaísta

"L.H.O.O.Q.", de Marcel Duchamp, 1919. Trata-se de uma reprodução da pintura

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Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, mas com alguns detalhes que se destacam.

Duchamp desenhou a lápis um bigode, barbicha na personagem e ainda escreveu no

inferior da canvas as inicias "L.H.O.O.Q", que, lendo-se em frânces, é Elle a chaud au

cul ("Ela tem um cu excitante"). O dadaísmo tinha como objetivo a surpresa, o

escândalo para protestar contra problemas sociais e atitudes hostis das grandes

nações. Todavia, existia o interesse em corromper as convenções, em

descaracterizar normas e qualquer referência ao clássico e padrão. Sendo assim,

entende-se que "L.H.O.O.Q" é um exemplo que desperta a atenção para algo oposto

e contrário ao habitual. Através de uma perspectiva formal, o "L.H.O.O.Q" seria uma

falsificação grosseira da obra de Da Vinci. Mas Duchamp assina a pintura,

fornecendo ao espectador uma prova de que não há a intenção de enganar, e sim de

sugerir um efeito diferente. Dessa forma, o trabalho faz referência a outra e

inaugura um significado paralelo, ou seja, parodiando.

À vista disso, está clara a distinção: enquanto a falsificação visa ao engano, os

exemplos citados anteriormente priorizam a crítica exatamente por sinalizarem que o

Figura 6 - L.H.O.O.Q. , Marcel Duchamp, 1919.

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objeto em questão não é o original. Desse modo, sugere-se uma classificação do

falso, posicionando, de um lado, as falsificações que tentam passar-se por original à

procura apenas de iludir, e, do outro, as simulações que assumem o papel de

mimese para depreciar ou aplaudir.

A falsificação seria ato ou efeito de falsificar ou falsear, isto é, de tornar falso.

O termo falso, ao passo que é muito próximo a falsificação, distancia-se do conceito

de simulação e paródia, que será discutido posteriormente. Faz-se necessário, a

propósito de uma nova classificação, emprestar da língua inglesa a expressão fake. O

fake possui um significado menos pejorativo do falso, mais afastado do efeito

criminoso, com o objetivo de fingir ou simular. Atualmente, o termo fake tem sido

muito utilizado na língua portuguesa por consequência das identidades suspeitas na

internet, assumindo avatares7 de outras pessoas. Em redes sociais, como o twitter

ou facebook, muitos são os usuários fakes - pessoas que se passam por e assumem

identidade de artistas ou celebridades antes que estes o façam ou criem sua própria

representação no ambiente virtual. De forma sensível, por ser mais moderado e por

estar fora da língua portuguesa, o termo fake aplica-se bem para englobar as duas

vertentes: engano e crítica. Então, o fake divide-se em falsificação e simulação.

7 Um personagem inteiramente virtual que é controlado por um sujeito através do computador.

FAKE

FALSIFICAÇÃO SIMULAÇÃO

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2.2 A simulação

Assim como a falsificação, a simulação consiste no efeito de fingir o que não

é. Mas a simulação não se restringe apenas a semelhança visual, mas a aspectos

funcionais. O piloto de aviões caça do exército de países desenvolvidos passam por

testes que simulam as situações de decolagem, pouso, aterrissagem forçada, ou

seja, procura oferecer ao sujeito dificuldades que possivelmente encontrará, mas de

forma segura por meio de máquinas - simuladores em terra. Astronautas, antes de

seguirem em missão no espaço, passam por diversos exames que simulam o

ambiente que enfrentarão, como o da gravidade zero. O exercício simulativo auxilia

no desenvolvimento de projetos que ainda não foram postos em prática, prevendo

possíveis erros a serem corrigidos. A cada dia, os computadores são capazes de

ilustrar situações que ainda nem saíram do papel e, por conseguinte, determinam se

devem ou não ser executadas.

Há casos em que o "sistema-objeto", elemento a ser experimentado, não pode

ser testado porque ainda não existe. Na engenharia civil, simulações ajudam no

processo de desenvolvimento de grandes construções como a capacidade de

sustentação de uma ponte ou a quantidade de pessoas que estádios de futebol

suportarão numa final de campeonato.

Na teoria dos sistemas de jogos, a simulação é "a execução ou manipulação

dinâmica de um modelo de um sistema-objeto com um objetivo qualquer" (BARTON,

1973). São diversos os propósitos da simulação aplicada cientificamente:

compreensão funcional, auxiliar no treinamento de controle e tomada de decisões do

sistema-objeto.

Nos consultórios médicos, a simulação também é utilizada. Uma cirurgia

estética pode ser ilustrada na tela do computador para que o paciente verifique os

possíveis resultados a serem obtidos. O procedimento, a grosso modo, não difere

muito de um projeto de construção civil. As informações são fornecidas pelo

paciente, e o médico as transforma em coordenadas e simula o resultado. E, assim,

ambos determinam como deve ser desenvolvido o esboço.

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Além da aplicação científica e estética, os procedimentos simulativos são

utilizados de forma lúdica no entretenimento. O ilusionismo de Mèliès com projeções

em vidros para reprodução em três dimensões foram as primeiras convincentes

experiências simulativas da imagem. Com o passar do tempo, o cinema foi o maior

responsável por simulações para entreter. Técnicas de efeitos visuais eram

empregadas com o objetivo de exibir formas que não existem além de fornecer mais

possibilidades para os roteiristas. Personagens que realmente nunca habitaram a

terra, como o gorila King Kong, eram mostrados "vivos" na tela. Com o

desenvolvimento da infografia ou computação gráfica, modelos de "sistemas-

objetos" podem ser criados, reproduzindo detalhes como estrutura óssea, textura de

pele, suor, respiração. Há casos em que essas imagens sintéticas passam a substituir

o seu referente, a se tornarem a imagem real do sistema-objeto. Jurassic Park

(Steven Spilberg, 1993) foi um dos primeiros filmes da infografia contemporânea

capaz de recriar imagens críveis. As cenas de dinossauros, simulando diversos

detalhes do animal, tornaram-se as mais realistas imagens da raça. Principalmente,

levando-se em conta que não há, nem seriam possíveis fotografias analógicas ou

digitais dos animais vivos. Atualmente, é comum a produção de documentários

recheados de efeitos de computação gráfica com o propósito didático de retratar

espécies extintas da Era do Gelo. Tratam-se de simulações avançadas, mas que

mantêm explícito o caráter ficcional. Tais reproduções artificiais não se limitam

apenas a dinossauros ou a outros animais do gênero. Recentemente, filmes têm

resgatado personagens de outras produções, mais antigas, nas quais os atores

apresentam a mesma aparência (mais jovem) da época. O ator Arnold

Schwarzenegger protagonizou três dos filmes da série "Exterminador do futuro".

Devido ao seu cargo político, estava impedido de participar do último trabalho da

sequência. Contudo, a produção, por meio de alta tecnologia gráfica digital, pôde

inserir o ator "virtualmente". No filme Exterminador do futuro 4: a Salvação

(Terminator Salvation, Mcg, 2009), o andróide T-800, personagem interpretado por

Schwarzenegger pela primeira vez em 1984, participa de uma cena. O que causa

surpresa é a simulação digital da imagem, reproduzindo detalhes como o corte de

cabelo, porte físico e a semelhança visual do ator 25 anos antes. O método

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desenvolveu-se a certo ponto que um mesmo ator contracenou "consigo mesmo". No

filme Tron: Legacy(Joseph Kosinski, 2010) - sequência do filme Tron (Steven

Lisberger, 1982), o ator Jeff Bridges interage em cena com o mesmo personagem

que interpretou anos atrás. A imagem do ator foi reproduzida digitalmente, assim

como era: 28 anos mais jovem. Ao analisar o avanço, rapidamente descrito, da

computação gráfica, é possível imaginar que, brevemente, personagens

interpretados por atores já falecidos8 voltem às telas do cinema9.

A face lúdica do modo de operação simulativo não se restringe apenas ao

cinema, também os games estão inseridos. Por outro lado, diferentemente do

ambiente cinematográfico, nos games o usuário interfere no processo de construção

ficcional. Os filmes, com exceção de poucos, oferecem ao espectador uma história

pronta, que cabe ao indivíduo apenas assistir a ela, sem mudar qualquer desfecho.

Neste caso, o destinatário não participa do processo de desenvolvimento da

narrativa. Nos primeiros jogos de videogame, as possibilidades eram limitadas e

impostas pelo destinador (manipulador) e não criadas pelo destinatário, mas

escolhidas por ele. A simulação lúdica dos games dava-se de forma organizada e

fechada. Com o passar dos anos, pode-se dizer que a evolução dos jogos permitem

que o sujeito seja responsável pela narrativa. Variados usuários oferecem

divergentes percursos do personagem inserido no game. Então, diferentemente de

meios como cinema ou fotografia, o usuário interage e torna-se uma espécie de

enunciador de segundo grau.

Quanto mais possibilidades, mais único se torna o percurso narrativo. Em

determinados jogos de complexidade avançada, o trajeto de um personagem

realizado por um usuário "X" será diferente do personagem controlado pelo usuário

"Y". Tendo em vista as diversas variáveis que compõem um sistema de probabilidade

8O filme Transformers: The dark side of the moon (Michael Bay, 2011) exibe o presidente dos Estados Unidos, John Kennedy, durante o início da década de 60, autorizando o inicio do programa espacial americano a Lua. Evidentemente que isso nunca fora registrado, o diálogo foi construído digitalmente. 9 No dia 15 de abril de 2012, durante uma apresentação do rapper Snoop Dogg, a imagem de Tupac Shakur, morto em 1996, aparece no palco e canta para mais de 100.000 pessoas. O efeito foi provocado pela projeção da imagem em um vidro instalado no palco. Entretanto, a novidade está na criação digital de Tupac cantando musicas novas e dançando. Uma empresa especializada em efeitos visuais para o cinema recriou a imagem do rapper e o projetou. Essa inovação criou alvoroço na indústria musical com promessas de show de Michael Jackson para 2013.

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remota de repetição, o "herói de X" pode atravessar o rio (obstáculo) a nado,

enquanto o "herói de Y", por ter tido uma performance melhor na fase anterior , o

jogo oferece-lhe uma lancha para a tarefa. Esse simples exemplo empírico ilustra as

diferentes experiências entre jogadores num mesmo aparato simulativo. Ao contrário

das simulações científicas como as do exército ou do esporte, os gamers10 têm

sensações e escolhas adversas, aproximando-se assim do cotidiano, que promove

essa diversidade de "vivência". Todavia, vale ressaltar que a "vivência" nos games é

diferente da experiência real. Um garoto que se torna quase imbatível nos jogos de

games que simulam carros de corrida, não é hábil necessariamente para pilotar um

Fórmula 1. Da mesma forma, aqueles que ganham facilmente jogos de guerra on-

line não estão prontos para batalha. Há características importantes que a simulação

não reproduz, como o peso da arma, o choque provocado pelo disparo, a dor de um

eventual ferimento, etc. De fato, não seria mais simulação se operacionalizasse todos

os aspectos.

Até este ponto, demonstraram-se várias funções da simulação: científica,

estética e lúdica. No entanto, tal prática não tem como propósito enganar. As

simulações dispostas aqui são, assumidamente, ficção. Não têm a intenção de

suplantar quaisquer referentes, como acontece com um quadro falsificado ou uma

moeda falsa. Os elementos simulativos não são algo oposto à verdade, inexato,

infundado, enganação ou até mesmo fraude criminal. Têm como objetivo promover

maior experiência científica, treinamento ou entretenimento.

Mas será para um tipo específico de simulação que este estudo irá voltar-se:

um modelo que procura expor os dispositivos midiáticos para, através da paródia,

propor uma reflexão crítica. Operam de forma implícita as suas reais intenções,

porém não objetivam apenas a indução ao erro ou mesmo iludir, burlar

criminosamente, como os autores de elementos falsos. Este formato será

denominado por hora simulações criativas, apenas para o efeito de diferenciar-se das

diversas definições citadas até o momento.

10 Denominação aos usuários da prática do games.

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2.2.1 A simulação criativa

A revista masculina norte-americana Esquire publicou, em julho de 2001,

matéria (Figura 06). a respeito da vida do humorista Jon Stewart Trata-se de uma

biografia, um profile, apresentado de uma forma bem peculiar. O texto está repleto

de rabiscos e comentários em post-it11. O artigo pretende ser uma espécie de

esboço, em que o próprio comediante interage com o profissional que escreveu.

Logo de início, a assinatura da matéria - "por A.J. Jacobs"12 - possui uma retificação

escrita a punho: "anotada por Jon Stewart" (JACOBS,2011). Ao decorrer das linhas, o

jornalista descreve a carreira de Stewart, enquanto este faz comentários corrigindo

particularidades como a sua idade, altura e detalhes de sua infância. É bastante

comum o profile como formato jornalístico que apresenta resumidamente a biografia

de alguém. Todavia, neste caso, utilizou-se uma manobra criativa ao exibir um

diálogo indireto entre Stewart e Jacobs. Na matéria, o humorista expõe sua opinião a

respeito da mediação proposta pela revista, parecendo estar realmente reparando os

erros do profissional que produziu o texto. Ao publicar um artigo como "esboço",

além de oferecer ao leitor certa descontração provocada pelas linhas do comediante,

a Esquire, rompe as características normativas. Esse artifício de desfamiliarização que

causa estranhamento ao leitor é uma das bases pragmáticas da paródia, que utiliza

um original ou regras de estilo apenas como protótipo a ser subvertido, dando-lhe

novo significado. De acordo com formalistas russos (Tomachevski, 1965), na

literatura, a paródia, por meio desse confronto de padrões, é vista como um

mecanismo de reformulação do antigo ao promover novas formas. A matéria da

revista americana é uma simulação criativa, diferenciada, ao imprimir um profile

formal completamente rabiscado. De certa forma, também sugere aos leitores uma

reflexão quanto a suspeitar da exatidão das palavras de um jornalista ou biógrafo. O

texto apresenta fatos que são "contestados" pelo próprio objeto da matéria de modo

11 Pequenos recortes de papéis em cores fortes para servirem de lembretes. 12 Tradução livre.

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a implicitamente promover suspeitas sobre a objetividade do trabalho jornalístico. A

crítica é um dos principais dispositivos da paródia.

Figura 7 : Recortes das páginas da Revista Esquire Julho/2011.

Outro exemplo interessante de simulação criativa é a matéria (TADDEO, 2011)

da Esquire de abril de 2008, chamada "The last days of Heath Ledger" ("Os últimos

dias de Heath Ledger"), que consiste em um artigo que diz trazer a público o diário

inédito do ator falecido naquele ano.

A matéria tem uma breve introdução do ator explicando como é estranho

descrever os últimos dias de sua vida. Dias que outrora foram banais, mas que a

morte os transformou nos mais importantes. Todo o texto é dividido em capítulos

com datas, horas e títulos. "19/01/08 - Dois Coringas - 10:47 pm13" intitula a

primeira página do diário fake, que se refere ao personagem de gibi, Coringa, que foi

interpretado por Ledger e também por Jack Nickolson em filmes diferentes, os quais

contavam as aventuras do herói de quadrinhos, Batman. A jornalista insere na

13 Tradução livre.

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crônica episódios que considera oportunos em relação à carreira e à personalidade

do ator. Neste "primeiro dia", após uma longa filmagem do seu último filme, The

Imaginarium of Doctor Parnassus (Terry Gilliam, 2009), Ledger recebe, via

mensagem de celular, um inesperado convite de Jack Nickolson para um jantar que

termina numa noite de conselhos de como o ator deve levar o seu trabalho menos a

sério e se "manter fora das drogas de pílulas". No dia seguinte - título de "Até a

minha máscara se dá bem" -, Heath conta que seguiu os conselhos do "velho

Coringa" e sai à noite em busca de aventuras. Usando máscara de ski, o ator

comprova que mesmo com algo tão inusitado escondendo seu rosto, ele, como

celebridade, poderia ser reconhecido e ir para cama com alguma modelo. Então,

narra como uma modelo da Tailândia termina a noite em sua cama com a sua

máscara no rosto. Consiste em um conto fantasioso de momentos banais dos

"últimos" dias do ator.

A morte do ator foi cercada por notícias especulativas, porque sua causa fora

desconhecida até 15 dias depois do ocorrido. Dessa forma, muitas pessoas não

sabiam ao certo o motivo que levou o jovem a falecer14. A escritora soube explorar

esse cenário de mistério para suprir com um conto criativo os ainda curiosos. O texto

é narrado em detalhes pelo ator falecido, em primeira pessoa. Tendo em vista que

um morto não seria capaz de falar, e muito menos de escrever para uma revista, o

acordo está firmado: enunciador direciona o enunciatário a perceber, facilmente

neste caso, o caráter ficcional, comprovando a sua intenção de parodiar o estilo

investigativo jornalístico.

Torna-se teatralmente importante, depois que você morrer, de como seus últimos dias se dão. Para mim, foi como qualquer outro fim de semana na minha vida. Eu não comi uma última refeição, eu não me masturbei, eu não escalei uma montanha [...] Mas, de repente é importante exatamente o que eu fiz, porque eles são os últimos dias, e o que você faz no últimos dias, até o seu último almoço, torna-se um conto de fadas.(TADDEO, 2008).

Outros personagens, além de Jack Nickolson, surgiram na estória. Health

relata que conversou rapidamente com Mary-Kate Olsen, atriz apontada por vários

14 Apenas duas semanas depois, os responsáveis pelo serviço de medicina forense da cidade de Nova York divulgaram que Heath Ledger morreu devido ao uso abusivo acidental de drogas prescritas.

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jornais como sua última namorada. O ator ainda descreve que, no dia de sua morte,

acordou escutando músicas do cantor britânico Nick Drake, morto em 1974 por

ingestão indevida de pílulas para dormir. De acordo com o ator, eles tiveram uma

pequena conversa sobre a morte. Percebe-se a relação da ficção com os fatos da

vida real. Conexões como seu trabalho com o ator Jack Nickolson, a vida amorosa

com Mary-Kate, a causa da morte com Nick Drake são passagens que

implicitamente, interagem com o conteúdo noticiado pela imprensa. A escritora, Lisa

Taddeo, aproximou a narrativa da realidade dos jornais, utilizando os personagens,

mas envolvidos em acontecimentos fantasiosos que sugerem figuras temáticas como

arte, sexo e morte.

Enfim, Health assume sua personalidade fantasmagórica, assim como a ficção

do texto - "Eu, Nick, Mary-Kate, Jack. Nós somos todos fantasmas"-, e faz um

pedido: "Não investigue meus últimos dias, porque esses dias poderiam ser os seus

últimos dias. Interprete o seu próprio papel". A esse ponto, o destinador, em acordo

com a destinatária, não entende o texto como verdadeiro ou falso diário de Heath,

mas como uma interpretação, uma construção. Na última linha, há ruptura: frase em

itálico, tendo a revista Esquire como locutora, orienta o leitor a voltar à página 30

para mais informações sobre o diário. Como voz fora da narrativa, a simulação

criativa é revelada.

Para escrever uma crônica concebível dos últimos dias de Heath Ledger, a escritora Lisa Taddeo visitou bairro do ator, conversou com os proprietários das lojas e bartenders que podem tê-lo visto durante sua última semana e leu incontáveis contos e rumores sobre os acontecimentos que envolveram a sua morte como possível. Ela preencheu o resto com sua imaginação. O resultado é o que chamamos de ficção relatada. Alguns dos elementos são verdadeiros. (Ledger estava em Londres. Ele era um regular no Inn Beatrice e no Café Miro. E ele estava encantado com Nick Drake.) Outros não são. (ESQUIRE, 2009, p.30).

Em vez de seguir a linha editorial da época, que formava um conjunto de

especulações a respeito da morte e dos últimos momentos do ator, Lisa Taddeo criou

a sua versão destacando aspectos da personalidade do ator através de personagens

ligados à sua trajetória. A esse artifício criativo, formato diferenciado fora do padrão,

assumidamente fake, encontra-se uma simulação que, por meio da paródia, permite

nova forma a partir da antiga. Há dois momentos da paródia que promovem a crítica

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da postura da imprensa da época. O primeiro deles é a realidade criada por Lisa

sugerindo que de tudo pode ser feito na imprensa, incluindo diários escritos por

defuntos para trazer notícia de acontecimentos enigmáticos. Em seguida, o próprio

narrador, Heath Ledger, afirma que sua história era uma fantasia e que, assim como

seus personagens, ele era um fantasma que precisou voltar à vida, e pede a todos

que deixem de investigar sobre seus últimos momentos.

A matéria da revista Esquire difere o bastante de outras obras que misturaram

elementos do mundo real com fantasia. Como o caso do livro An historical and

geograpgical description of Formoza de George Psalmanazar. Tratava-se de um

diário de viagem a uma terra com costumes e idioma ainda desconhecidos pela

civilização que, na verdade, era fruto da imaginação do seu criador. No entanto,

Psalmanazar tornou-se famoso o suficiente para acumular riqueza com palestras a

universidades e grupos de interesse. Seu objetivo era ganhar fama, não ofereceu

nenhuma pista inferencial aos leitores. Pelo contrário, em entrevistas sempre

atestava os fatos com detalhes cada vez mais curiosos. Essa ausência de marcas que

apontam para outro (oposto ou não) texto não permite o reconhecimento da

paródia. Esta só pode ser identificada caso o enunciatário tenha competência para

reconhecer a dupla voz do texto.

2.2.2 A simulação e simulacros

As manifestações apontadas até agora, assumidamente simulações, diferem

das definições exercidas por uma corrente radical que afirma que as relações sociais

e de comunicação se distanciam do real por serem compostas apenas de simulacros,

como é o caso do trabalho de Jean Baudrillard. Para este autor, ao passo que a

simulação é apontada como falsa representação, ela engloba todo o tipo de

representação (BAUDRILLARD, 1991, p.08). As simulações seriam as expressões

humanas compostas por simulacros, imagens falsas. O autor dedica-se à crítica das

artes visuais por meio da relação entre imagem e simulacros. Para Baudrillard (1991,

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p.13), o conteúdo imagético teve sucessivas fases: "imagem como reflexo de uma

realidade profunda", "como máscara que deforma uma realidade profunda",

"mascara a ausência de realidade profunda". Em outras palavras, a imagem,

primeiramente, teve a "boa aparência" do sagrado. Depois surge como algo de má

aparência, maléfica. Finalmente, finge ser uma aparência e, ao fingir, torna-se

simulação. O autor generaliza como um conjunto de simulacros toda e qualquer

produção - abordagem por demais cética e iconoclasta. Baudrillard, possivelmente,

inspirou-se nos textos platônicos como O Sofista ou O político, que citam as artes

como simulacros, produções não verdadeiras.

Entretanto, a simulação criativa é defendida neste trabalho como uma

construção reflexiva. Não há uma aproximação ao conceito de Baudrillard, visto que

o objeto a ser estudado possui uma relação com o real, como mediação. Sendo

assim, não exerce papel de “simulacro puro”, “signos vazios” ou qualquer termo

radical que possa sugerir uma realidade artificial vivida.

Ao longo dos anos, o termo simulacro adquiriu conotações diversas, mas,

principalmente, por meio de um tratamento pejorativo, associado ao "irreal" ou

oposto à verdade. Platão, por exemplo, apontava os simulacros como imitações

grosseiras, erros da mimese (DELEUZE, 1998). No texto "Platão e o simulacro", Gilles

Deleuze rebate a tipologia platônica, a fim de elevar os simulacros às instâncias de

ícones ou cópias. O filósofo grego, quanto à idolatria estética, dividia as imagens

(eikons) em "cópias-ícones" e "simulacros-fantasmas" (DELEUZE, 1998, p.262). Em

outras palavras, seria uma dicotomia entre uma cópia bem produzida e outra mais

grosseira. Os simulacros sempre posicionados no nível mais baixo da potência do

falso - como se a semelhança do simulacro não tivesse valor histórico ou moral.

Deleuze discorda, afirmando que os simulacros possuem uma identidade própria e

que fazem parte do processo de produção e formulação da verdade.

O simulacro é construído sobre uma disparidade, sobre uma diferença, ele interioriza uma dissimilitude. [...] Se o simulacro tem ainda um modelo, trata-se de um outro modelo, um modelo do Outro de onde decorre uma dessemelhança interiorizada (DELEUZE, 1998, p.263).

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O mesmo faz-se com as simulações criativas, porque são ricas manifestações

construídas para agir de acordo ou não com o outro, tendo o objetivo de reflexão da

própria identidade da matéria, suporte ou da forma.

Na semiótica greimasiana, assim como a posição defendida por Deleuze, o

simulacro possui funções linguísticas complexas o suficiente para não serem

apontados como "signos vazios". Baudrillard, ao sugerir um mundo "irreal", tem

como referente principal as mensagens publicitárias. Na publicidade, por diversas

vezes, ocorre uma construção de representações. A situação da narrativa, assim

como em um filme de ficção, é construída para se fazer mecanismo da

argumentação textual, um sistema articulado de manipulação (volição, sedução,

tentação, provocação). Na propaganda, muitos dos sentidos que o ator da

enunciação pretende provocar são atualizados por meio de manobras que remetem a

uma mensagem promissora visando ao desejo capaz de acionar o fazer do

destinatário. Por construírem uma realidade ao gozo do seu destino, os simulacros

que "fingem ser" são considerados "vazios" de realidade para Baudrillard. Todavia,

essas imagens simuladas promovem efeitos de sentido que modificam o estado de

quem as apreendem. A "encenação publicitária nos faz olhar os simulacros que

constrói e o que ela nos faz ser ao contemplá-los" (LANDOWSKI , 2002, p.129).

Desse modo, são elementos de significado na expressão e no conteúdo capazes de

manipular o destinatário.

Mas o termo simulacro também é utilizado por outra perspectiva na semiótica

greimasiana. Além de serem denominados como imagens construídas para iludir,

prometer e seduzir por meio de sua função representativa, o simulacro pode ser

definido como a presença do enunciador no discurso. São modelos virtuais,

compostos por traços de permanência capazes até de presentificar atores no

discurso. Ao analisar trabalhos de um mesmo autor, o estudioso é capaz de apontar

alguns aspectos recorrentes que caracterizam a produção. Seria o mesmo que, no

senso comum, "estilo" do realizador. O pesquisador pode afirmar que os filmes de

Woody Allen costuma trazer temas de relações afetuosas como a traição. Essas

marcas são traços de permanência que instauram no enunciado o autor da

enunciação por meio do simulacro. Sendo assim, ao verificar a traição em um filme

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de Woody Allen, pode-se dizer que essa característica é a presença, virtual, do

diretor no enunciado.

Verificaram-se, até aqui, algumas definições para o simulacro. A simulação

criativa, como qualquer simulação, opera por meio de simulacros. Porém, estes não

são "fantasmas", de acordo com Platão, ou "vazios" como Baudrillard tanto

descreveu. A paródia é composta por simulacros no enunciado que permitem a

apreensão de outro ator da enunciação. A presença do outro, seja por ela traços do

autor ou até de outro texto (intertextualidade), é uma das formas de produção de

sentido da simulação paródica.

2.2.3 A simulação criativa e a intertextualidade

O conceito de intertextualidade introduzido por Kristeva (1974) foi,

possivelmente, desenvolvido tendo como base a teoria da polifonia de Bahktin

(2002) - várias vozes coexistindo no mesmo texto. A expressão "vozes" seriam as

diversificadas falas contidas no enunciado, ou seja, os discursos, caso a abordagem

diferencie texto de discurso.

O intertexto de uma obra, seja ela pintura, fotografia, cinema, literatura,

consiste nas referências a textos anteriormente produzidos ou estilos e convenções

normativas de gênero. Tais pontuações podem ser das mais "amigáveis" a polêmicas

como o bigode na Monaliza de "L.H.O.O.Q.", de Marcel Duchamp, 1919.

A intertextualidade visa à retomada de outro texto - do mesmo autor ou não -,

seja para promover crítica ou exaltação da obra (intertexto). Também oferece

debates quanto a valores morais ou até mesmo do procedimento de criação, como

também sugere novas formas estéticas. Tal retomada se realizada por meio de

inferências, marcas deixadas pelo enunciador de acordo com o repertório que

presume conhecer do enunciatário. Este último, reconhece as pistas e processa os

mecanismos de enunciação até chegar a temas e figuras. Os indícios de semelhança

ou diferença são deliberados segundo a intenção do autor. A ponta do vestido

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(semelhança) da Madame Récamier, de Magritte (Figura 07), sob o caixão

(diferença), desenvolve a ideia de fim a algo de valor como a beleza.

Desde a década de 1960, diversos autores elaboraram classificações com

abordagens diferentes para a intertextualidade na literatura. Quanto ao plano da

expressão, pode ser classificada (KOCH, I.G.; BENTES, A. C.; CAVALCANTE M. M.

2008) como temática, estilística, explícita ou implícita. Quando textos compartilham

do mesmo tema, como portais de notícias que exibem a mesma pauta ou obras

literárias de uma mesma escola, por remeterem ao mesmo assunto, executam a

intertextualidade temática. Em dois textos que compartilham o mesmo estilo criativo,

seja por meio da paródia ou da simples imitação, a relação intertextual pode ser

definida como estilística. A intertextualidade explícita acontece no momento em que

um texto cita a fonte do outro texto, indica a origem do outro. Seria o caso dos

resumos, resenhas,citações etc. Entende-se como intertextualidade implícita a obra

que faz referência a outro trabalho de forma mais indireta, seja para usá-la como

argumento ou para confrontá-la - incluem-se aí os enunciados paródicos ou

paráfrases.

A autoria seria outro enfoque ao categorizar. O intertexto alheio (KOCH, I.G.;

BENTES, A. C.; CAVALCANTE M. M. 2008) pode ser definido diante do empréstimo de

um texto de outro autor. Quando tal empréstimo for de um trabalho do mesmo

autor, caracteriza-se o intertexto próprio. Ao elaborar as marcas a partir de textos

considerados de repertório coletivo, denomina-se a intertextualidade de enunciador

alheio.

Quanto à função argumentativa, Affonso Sant`anna (2004, p.28) arranjou-a

em dois tipos: a intertextualidade das semelhanças - quando um texto capta e

reproduz a mesma "ideia" de outro - e a intertextualidade das diferenças - quando o

texto subverte o conceito ou os valores do alheio.

O interesse deste estudo está na forma como o segmento textual é "colhido",

retomado e não se a matéria é do autor ou alheia. Para tratar das simulações

descritas neste texto, é necessário entender a intertextualidade como procedimento

que aproxima e trabalha com dois ou mais textos e pontua as diferenças para

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confrontar os valores morais, criticar processo de produção ou apenas inovar o

antigo.

Partindo dessa perspectiva, a divisão categórica mais oportuna (porém ainda

questionável) para o que está sendo tratado é de Nathalie Piègay-Gros (apud KOCH,

I.G.; BENTES, A. C.; CAVALCANTE M. M. 2008). Primeiramente, ela divide a

intertextualidade em dois polos: copresença e derivação. O primeiro reporta-se as

relações que destacam dois textos, e o segundo ocorre quando um texto descende

de outro. No polo da copresença, estão inclusos citação, referência, alusão e plágio,

respectivamente ordenados em ordem crescente, de acordo com a implicitude das

marcações no enunciado.

A citação ocorre quando o texto simplesmente cita a sua fonte - "Segundo o

livro Tratado da Semiótica...". Ao descrever personagens do texto fonte, a

intertextualidade pode ser caracterizada como referência - "Nenhum Mickey irá

comer desse queijo". A alusão é assinalada pela implicitude da sua referência. Trata-

se de uma remissão indireta - o texto é indiretamente mencionado; o leitor deve

entender as "entrelinhas". Quando o autor se apropria do texto do outro para que

este seja considerado como seu, ocorre o plágio. Nesse caso, o enunciador não tem

a intenção de fazer com que o enunciatário decodifique até encontrar outro texto de

outra autoria.

Na derivação, Piégay-Gros inclue o pastiche como imitação do estilo do autor

e não pela repetição normativa do gênero; o travestimento burlesco é a modificação

do estilo, enquanto se conserva o conteúdo; a paródia repete as normas formais do

gênero e dá-lhe um novo sentido.

Talvez no ambiente literário, seja mais fácil perceber e destacar a diferença

entre derivação e copresença, assim permitindo a classificação sugerida acima. Mas,

ao ampliar para outras mídias, torna-se mais pertinente entender que todo texto que

deriva outro é um fenômeno de copresença. O processo descrito por Piégay é

decorrência da teoria de hipertextualidade (derivação) de Gerárd Gennete (1989). No

entanto, Genette inclui dois tipos de textos nesse processo, que seriam o hipertexto

(texto derivado) e o hipotexto (texto). Dessa forma, percebe-se a dualidade que faz

da derivação uma copresença. Ao evocar outro texto, a obra derivada desaparece?

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Evidente que não e, pelo contrário, ela aparece com um efeito de sentido diferente.

A derivação e copresença podem significar a mesma forma de expressão: ao derivar,

não estou excluindo o texto derivado e muito menos o novo texto.

Para efeito de tornar mais claro o objeto de estudo, é momento de converter

o termo simulação criativa em simulação de copresença, que trabalha sempre com a

interação de dois ou mais textos.

2.2.4 A simulação de copresença: tradução, citação e paródia

Em 1800, o pintor neoclássico francês Jacques-Louis David pintou a figura de

Madame Récamier. Tratava-se de uma mulher com ideias contrárias ao império de

Napoleão Bonaparte, mas que, ironicamente, foi retratada com a elegância de uma

monarca. Aparte da polêmica imposta pelo autor, um século e meio depois, o

surrealista René Magritte pintou a tela Perspective: Madame Récamier by David

(Figura 07), que promovia uma outra (nova) ótica ao retrato da francesa. Pode-se

afirmar que o surrealismo primava por uma perspectiva de liberdade quanto a

qualquer objetividade. Na tela de Jacques-Louis, Récameir era um símbolo da beleza

ideal e juventude da época, que, pelas mãos de Magritte, torna-se nada mais que

um mórbido caixão. O pintor recria o cenário em seus detalhes como o sofá, as cores

das almofadas, o candeeiro, mas a figura da bela moça é substituída pelo caixote

que não é construído da forma usual. Ele possui uma curvatura, imitando o corpo

humano que descansa no divã. Não se faz uma tarefa difícil para o espectador

entender que Magritte quer falar da morte. Os temas beleza, juventude, riqueza são,

imediatamente, postos em relação com o fúnebre e o misterioso. É importante

apontar para o pedaço da vestimenta da moça retratada por David. O pintor

surrealista não a deixa de fora de sua obra, a ponta da camisola cai do sofá e é

coberta pelo caixote. À primeira vista, o examinador pode achar que o objeto

funéreo caiu sobre a moça, e lhe dar fim. No entanto, a curvatura do caixão

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aproxima-o da aparência humana, e assim permite a leitura de que a personagem

sofreu uma metamorfose "kafkiana" e sobrevive na figura de uma caixa.

Magritte resgata a bela pintura de Jacques-Louis, mas insere na diferença a

mensagem central que quer transmitir. O enunciador utiliza o texto de outrem para

destacar que a beleza da juventude não é eterna. O empréstimo de outra obra se faz

como um ato irônico e polêmico, e não é nocivo ou enganoso. Em momento algum,

o pintor tenta passar-se por Jacques-Louis para um fim lucrativo. Pelo contrário, o

nome da obra oferece pistas de que o quadro é uma perspectiva, um intertexto, uma

outra compreensão da obra de David. Dessa forma, não há o aspecto criminal do

fake como falsificação e sim, uma simulação.

O quadro de Magritte recria o Portrait of Madame Récamier com um novo

significado. O antigo é retomado, renovado e são-lhe inseridas diferenças que ditam

o novo sentido. Assim, percebe-se uma interação entre textos, e o espectador

necessariamente, para entender a obra, deve "enxergar" as diferenças. E para que

isso aconteça, precisa decodificar o trabalho em duas vozes e compará-las. Caso não

ocorra esse reconhecimento, o leitor irá neutralizar a correspondência e assim verá

apenas uma obra. Faz parte da estratégia do enunciador supor a competência do

enunciatário em entender o dispositivo. Como também, o enunciatário não é passivo

e, a partir de inferências contidas na mensagem, desenvolve a compreensão

sugerida.

Figura 8- A esquerda, Perspective: Madame Récamier by David, René Magritte,1951. A direita, Portrait of Madame Récamier, de Jacques-Louis David, 1800.

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O leitor que não conhece a obra de Jacques-Louis David não fará a relação

necessária entre as duas obras e, portanto, possivelmente não percorrerá mais a

fundo a amplitude de possibilidades de interpretação - entre elas a "beleza finita".

O dispositivo de simulação faz-se pela intertextualidade, com a copresença de

dois textos. Porém, observa-se um elemento disfórico, um confronto de ideias.

Ocorre efeito alusivo que indica, sem citar exatamente, a origem. Faz-se a retomada

indireta de uma obra anterior, mas, de forma irônica, entra em contraste com as

normas ou princípios que a produção quer expressar.

Por outro lado, há algumas simulações de copresença que são caracterizadas

pela sua ampla proximidade com a obra fonte. Elas podem ser denominadas

simulações de copresença por tradução.

Na segunda metade do século XVII, o poeta e crítico John Dryden discutia as

primeiras questões sobre a teoria da tradução na literatura. Ele classificou (apud

MILTON, 1998, p. 49) como metáfrase a "tradução de um autor palavra por palavra",

como paráfrase, a "tradução com latitude" - quando o tradutor muda algumas

palavras, mas mantém o sentido -, e imitação quando ele abandona as palavras e o

sentido, mas mantém a ideia geral do original.

O tipo de simulação a ser discutido neste parágrafo recebe o nome de

tradução, porque os seus exemplos são reafirmações de outras obras, são versões

que mudam no enunciado, mas procuram manter o sentido e a ideia do trabalho

original. Eles se aproximam do conceito de paráfrase na retórica, que seria a

recriação textual com um desvio mínimo que não é capaz de mudar o juízo da obra.

O termo tradução aqui empregado pode (por alguns) ser confundido com

versão. Na verdade, a prática de traduzir é definida de várias maneiras, por diversos

autores, desde Dryden a Walter Benjamim. Para melhor explicar a aplicação do nome

tradução às simulações midiáticas, pode-se tomar como exemplo o conto de Jorge

Luis Borges, "Pierre Menard, autor de Quixote" (BORGES, 1999, p. 18). A narração

de Borges fala de um homem que pretendia escrever o Quixote de Cervantes com as

mesmas palavras, mas sem reescrever ou copiar. Ele pretendia criar novamente a

mesma obra. Para tornar o desafio possível, Menard procurou aproximar-se o

bastante da personalidade do romancista espanhol para assim poder escrever

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Quixote. No entanto, foi exatamente ai, na individualidade dos autores, que os

Quixotes se diferenciam. O autor fictício de Borges, situado no século XX, tem a sua

obra com significado distinto da redigida por Cervantes no século XVII. Como afirma

Borges (1999, p.22) : "O texto de Cervantes e o de Menard são verbalmente

idênticos, mas o segundo é quase infinitamente mais rico (Mais ambíguo, dirão seus

detratores; mas a ambiguidade é uma riqueza.)". Na simulação por tradução o

objetivo é exatamente o contrário, manter o sentido sem precisar ser verbalmente

idêntico. Se Menard fosse apenas traduzir a obra, por meio do gesto da paráfrase,

iria preservar a ideia original e poderia modificar o enunciado. Desse modo, a

simulação por tradução aproxima as mensagens significativas dos textos, mantém os

enunciados divergentes entre os textos relacionados na copresença.

Em 1866, o pintor realista Jean-François Millet desenhou com lápis em papel

vergê uma cena de camponeses descansando após o trabalho (Figura 08). Anos

depois, Vicent Van Gogh visitou uma exposição de Millet, tornou-se obcecado pelo

trabalho do pintor e decidiu fazer a sua simulação de copresença por tradução. Duas

décadas depois da criação de "La Méridienne", de Millet, Van Gogh produziu um

painel em tinta óleo (Figura 08). Percebe-se a preservação da mensagem e ideia do

descanso, mas o estilo de Van Gogh destaca-se com suas pinceladas circulares,

criando uma trama em movimento, sem preocupação em deixar a superfície lisa

como a do original em lápis. Essa diferença de procedimentos, em outras palavras,

estilo, escreve de forma constante a mesma ideia. Trata-se de uma celebração de

um texto por outro.

Figura 9 - A esquerda: La Meridienne de Jean-Franc ̧ois Millet, 1866. A direita: La Siesta, de Vincent Van Gogh, 1890,

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O mesmo acontece com o Honoré Daumier, que teve sua obra traduzida por,

também, seu admirador Vincent Van Gogh (Figura 09). Assim como no exemplo

anterior, percebe-se a diferença entre a forma de "escrever" o texto em Les buveurs

do pintor impressionista que parafraseia a ilustração em lápis preto, Les quatre ages

de Daumier. Mais uma vez, os contornos circulares das pinceladas reafirmam e não

modificam, por inteiro, o significado do trabalho anterior.

Entretanto, uma questão deve ser destacada nesse contexto: a obra de Van

Gogh não caracteriza um plágio? Assim como no exemplo anterior, sua obra pode ser

confundida com o plágio. O pintor apropria-se do texto do outro e assina seu nome.

Particularmente, nas artes visuais a assinatura do criador é o contrato de

autenticidade da obra. Fora a genialidade estética, a rubrica de um célebre pintor é o

que valoriza qualquer rascunho. Desse modo, o trabalho de Van Gogh pode ser visto

como plágio. Por outro lado, o seu traço vibrante é uma marca deliberada da

dualidade da tradução. Normalmente, na paráfrase, o texto original é coletivamente

conhecido a ponto de a reescritura não ser confundida com a sua fonte.

Evidentemente, que por esse motivo, o enunciatário, conhecendo a obra de Daumier,

não irá entender como plágio, mas como uma versão ao estilo de pinceladas

inquietantes de Van Gogh.

Figura 10 - À esquerda: Les quatre ages, Daumier, 1862. À direita: Les Buveurs, Van gogh, 1890.

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O plágio seria um tipo particular de intertextualidade implícita, com valor de captação, mas no qual, ao contrário dos demais, o produtor do texto espera (ou deseja) que o interlocutor não tenha na memória o intertexto e sua fonte (ou não venha proceder à sua ativação), procurando, para tanto, camuflá-lo por meio de operações de ordem linguística, em sua maioria de pequena monta (apagamentos, substituição de termos, alterações de ordem sintática, transposições etc). (KOCH, I.G.; BENTES, A. C.; CAVALCANTE M. M., 2008).

O plágio pretende não ser descoberto como apropriação, característica que o

difere da tradução, que tem a intenção que o observador/leitor compreenda a

dualidade da obra, relembre e celebre a homenagem que está sendo prestada. A

literalidade é o que difere a simulação por tradução do plágio. A tradução é um

empréstimo parcial pró-estilo, pró-texto. Não se apropria literalmente e também não

subverte ou confronta.

Um outro tipo de simulação ocorre quando um texto apresenta a sua fonte de

forma mais explícita, como a simples reprodução. A simulação por citação exibe as

marcas de copresença mais acentuadas das demais descritas até o momento. As

obras indicam o original, expondo-o de forma explícita, revelando os créditos do

criador. A autoria é um aspecto importante para citação, que tem exatamente como

objetivo não correr riscos de o enunciatário deixar de reconhecer a obra citada. Vale

ressaltar também que a citação pode ser confrontante, como também a favor dos

valores que a obra original expressa. Um bom exemplo é a obra, de 1963, produzida

pelo artista pop Andy Warhol, denominada Thirty Are Better Than One (Figura 10).

Apesar de que o nome da obra ("trinta é melhor que um") seja um pouco agressivo,

nada tem de conflito ou disputa. Pelo contrário, Warhol reproduziu a Mona Lisa

(Leonardo Da Vinci) trinta vezes em silkscreen numa tela de quase sete metros

quadrados. Isso quer dizer que está celebrando a obra e não a combatendo. É

evidente que pretende provocar um choque com a técnica de silk comparada à da

pintura renascentista, mas nada de polêmica. Desse modo, Andy cita a obra de Da

Vinci de forma harmônica.

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Foram discutidos aqui três processos de copresença que não se manifestam,

necessariamente, isolados. O que celebra a obra - como Van Gogh para Millet,

denominado de simulação de copresença por tradução, que é baseada nos conceitos

retóricos da paráfrase. Há também a simulação de copresença por citação, que,

explicitamente, indica e apresenta sua fonte original de empréstimo. E a simulação

que utiliza a alusão irônica para entrar em choque com a obra original anterior -

como o exemplo de Magritte. Esse efeito de crítica e retomada é característica da

paródia, que é amplamente estudada na literatura. Ela resgata obras do passado e

confere-lhes um novo sentido, renova-as. A simulação por tradução e a por citação

repousam no procedimento em que as semelhanças as caracteriza. Não ocorre um

desvio capaz de causar a polêmica. Ambas, normalmente, fazem-se estruturas que

celebram as demais.

Este trabalho assume maior interesse nos discursos polêmicos, nos quais as

diferenças fazem as marcações, e irá deixar de lado as citações e traduções para

focar-se nas simulações paródicas, porque justamente elas retomam e renovam pelo

artifício paródico crítico.

Figura 11 - Thirty Are Better Than One, Andy Warhol, 1963.

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2.3 Simulação paródica

A grosso modo, a paródia é tão polêmica que a descrição da sua origem

etimológica é contraditória entre alguns autores - Sant'anna (2004), Fiorin (2003) e

Hutcheon (1985). O sufixo ode, que provém de odos, em grego, significa "canto". No

entanto, o prefixo para possui dois significados: o de "oposição" e o "paralelo".

Enquanto alguns estudos apontam apenas para o "canto paralelo", outros procuram

salientar que a paródia trabalha na concordância dos dois textos, tendo em vista que

"paralelo" pode indicar oposição. Durante anos, na literatura, a paródia tem sido

definida como uma técnica para ridicularizar o texto parodiado. Linda Hutcheon

(1985) é uma dessas teóricas, que, preocupada com a aproximação conceitual da

paródia com o burlesco, defende-a como um "canto" que vai além do oposto, pois

pode posicionar-se "de acordo".

Na realidade, este estudo, assim como outros - Sant'anna (2004), Fiorin

(2003) -, trata a definição com outra perspectiva. Os textos em "paralelo" devem

situar-se como numa estrada de mão dupla: duas linhas paralelas em sentidos

contrários. A paródia envolve uma crítica ao texto origem ou aos códigos do gênero.

Ela trabalha por meio do destaque da diferença, contradizendo valores da obra

parodiada - uma dessacralização do original.

Ao longo do tempo, principalmente nas artes visuais, a valorização demasiada

da individualidade do autor sobrepõe-se, por vezes, à criatividade mais abstrata na

tela. Percebe-se que a paródia, como uma reflexão crítica, tem sido submetida

apenas a uma técnica menor, que utiliza o trabalho de terceiros para obter destaque.

Entretanto, as formas criativas do mundo moderno têm, cada vez mais, retomado o

passado, promovendo um novo sentido a esses textos anteriores. Desse modo, a

paródia é uma atualização dos textos clássicos e códigos mais tradicionais.

A autoreflexividade das formas de arte modernas toma muitas vezes a forma de paródia e, quando o faz, fornece um novo modelo para os processos artísticos. Num esforço para desmitificar o “nome sacrossanto do autor” e para “dessacralizar a origem do texto” [...] (HUTCHEON, 1985, p.16)

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A simulação de copresença paródica é uma forma criativa séria, embora seja

ainda questionada por utilizar, muitas vezes, do humor ao desdenhar do original -

um bom exemplo, já citado, é o "L.H.O.O.Q." (Figura 05), de Marcel Duchamp, 1919.

Apesar da prática do jocoso, a paródia, ao remeter a outro texto, presta-lhe um bem

que é a sua atualização, com significado novo. Uma obra como Mona Liza, que está

há tempos nos livros de história da arte moderna como um ícone da pintura

renascentista, recebe novo sentido, seja ele contrário ou a favor dos valores

estéticos ou morais que o artista procurou expressar.

A intertextualidade, a princípio, foi definida como apenas uma interação entre

dois textos. A partir dos estudos da linguística e semiótica (KRISTEVA, 1969) , o

processo intertextual envolve o autor, leitor e os textos. Para que o texto

referenciado seja apreendido como intertexto, é necessário que o enunciador trace

marcações que permitam ao enunciatário decodificá-las e o guiam à enunciação. A

teórica Linda Hutcheon (1985), ao conceituar a paródia, não tinha em vista o

desenvolvimento dos estudos da intertextualidade e, desse modo, destacou a

paródia como gênero que não poderia ser reduzido apenas à prática intertextual.

Ocorre que, como descrito acima, é conhecido por todos que o processo intertextual

não se limita a dois textos relacionando-se, como indicava Hutcheon (1985, p.54). O

que a autora de Uma teoria da paródia utilizou para distinguir a intertextualidade da

paródia foi exatamente o que faz dela uma estratégia intertextual, as inferências. As

diferenças no bojo das semelhanças em uma paródia são regidas por marcações

deliberadas para o propósito da compreensão da enunciação, a grosso modo, do que

o autor quer realmente "dizer" no seu discurso. O espectador da Madame Récamier,

de Magritte, percebe na semelhança a intertextualidade e descobre pela diferença a

paródia. O caixão é a formação da marca que é deliberadamente posta em destaque

para que ocorra o percurso gerativo de sentido proposto pelo enunciador. Essa

intenção, além de procurar garantir a compreensão do significado intertextual, coloca

em evidência o sujeito da enunciação.

Por outro lado, uma simulação de copresença pode pedir empréstimos a

vários textos para subverter um gênero por inteiro, como acontece com os falsos

documentários que são filmes ficcionais que se utilizam de artifícios próprios do tipo

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como entrevistas, voz-over, registros in loco, mas com conteúdo de ficção.

Normalmente, os falsos documentários parodiam não o estilo de um autor, mas os

códigos habituais do gênero, que, por si, promovem uma credibilidade,

culturalmente, já compartilhada (EMERITO, 2008). Desse modo, aqui pode surgir,

por meio de uma compreensão apressada do que se tem tratado até o momento,

uma confusão que rompe a paródia da intertextualidade. O próprio nome "intertexto"

é capaz de limitar o processo apenas à relação entre textos, deixando de fora

interações entre texto e gênero como no falso documentário. Na verdade, a

simulação paródica, como uma intertextualidade, pode refletir sobre um texto

parodiado ou por convenções normativas de um tipo de manifestação

comunicacional. Sendo assim, em alguns casos, o espectador até não identifica com

exatidão o texto-base, mas percebe que se trata de uma paródia através de outras

estratégias enunciativas que não seja o empréstimo de um enunciado específico,

mas a alusão ao gênero de outro texto ou o emprego do humor. Não há paródia sem

a intertextualidade, pois se trata de um formato de interação não só entre textos

produzidos anteriormente, mas entre estilos e convenções normativas de classe. A

intertextualidade está presente no conceito da simulação, porque, tanto na

copresença por tradução como na citação ou paródia, há a referência a outro texto

ou classe, dentro de um grau de implicitude divergente que as separa, como foi

descrito anteriormente.

Uma das características da paródia é o efeito contrário ao sentido do texto

base. Para simplificar, toma-se de Maingueneau (apud DISCINI, 2004, p. 26) os

termos opostos "subversão" e "captação". A simulação por tradução e a por citação,

em sua maioria, não se manifesta em contraste com a enunciação; desse modo,

ocorre mais um efeito de "captação". Por outro lado, a estratégia da simulação

paródica é conduzida pelos valores enunciativos do texto fonte, porque reafirma os

seus códigos com o objetivo de corromper seus valores enunciativos. Por meio do

apego a um texto ou gênero, a paródia tem o objetivo de subversão para construir

uma reflexão crítica ao próprio texto como para a sua categoria.

Na verdade, a paródia contém uma diferença em relação ao texto-base, na medida em que subverte seu enunciado e desqualifica sua enunciação,

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propondo uma outra enunciação substituta, contrária, diferente. No entanto, essa diferença articula-se sobre uma semelhança. (DISCINI, 2004, p.26)

O conceito de paródia, eventualmente, é incorporado ao da estilização. De

acordo com Fiorin (1996, p.31), a “estilização é a reprodução do conjunto dos

procedimentos dos ‘discurso de outrem’, isto é, do estilo de outrem". Os estilos são

as recorrências formais do autor em outras obras. Alguns teóricos, como Tynianov

(apud SANT'ANNA, 2004, p.35), apontam a estilização como procedimento que

trabalha sempre com a concordância entre os textos. Desse modo, qualquer efeito

contrário ao texto estaria fora da estilização, ou seja, a estilização e a paródia

estariam em oposição. É mais apropriado afirmar que a paródia, assim como a

paráfrase, é resultado da técnica estilística. Há dois polos, o contraestilo (paródia) e

pró-estilo (paráfrase). Em outras palavras, a paródia é o efeito negativo de uma

estilização, porque se manifesta por meio do contraste das diferenças em um

"ambiente" semelhante ao usual. Bom exemplo da paródia como perspectiva de

estilização negativa é a matéria de Lisa Taddeo, The last days of Heath Ledger,

publicada na revista americana Esquire. Como já descrita, o texto apropria-se de um

sistema formal de construção própria da escrita de um diário para propor uma

inversão, através da ficção, no noticiário. Desse modo, o estilo, recorrência

normativa, é utilizado para destacar, como diferença, o ficcional inserido em um

cenário próprio de elementos não-ficcionais. A estratégia da paródia, mais uma vez,

foi a do contraste que subverte.

Possivelmente, o principal motivo de ser a paródia mais utilizada para crítica

irônica ou humor é o seu potencial de continuidade. Enquanto, as simulações por

tradução estacionam nas semelhanças, "correndo" a favor do texto, as paródicas

estão sempre provocando evolução da linguagem, trazendo o novo através do velho,

já conhecido.

Algumas formas da retórica foram tão discutidas ao longo do tempo que os

diversos conceitos se fundem causando distorções. A paródia e o pastiche, por

exemplo, podem-se manifestar, ambos como imitações textuais, mas o primeiro tem

como resultado a crítica transformadora (GENETTE, 1989, p.34). O plágio e a paródia

também, muitas vezes confundidos, são distintos porque este último não tem a

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intenção de enganar, mas de provocar reflexão crítica. Entre vários termos como

citação, tradução, travestimento burlesco, a sátira e a alusão, erroneamente, podem

ser consideradas sinônimos da paródia.

O nome sátira surgiu de uma escola cênica (entre o séc. III e I a.C.) em que

seus escritores, para terem a liberdade de desprezar e caçoar as convenções que

detestavam, optaram por não conviver com outros da arte. Ao serem ignorados,

tinham como hábito ridicularizar os trabalhos por meio do cômico (FIORIN, 2003,

p.52). Desse modo, está claro o aspecto de escárnio da sátira. Por outro lado, a

paródia pode ser ativada também por meio do ridículo. Então, há diferença entre os

termos? Na verdade, a sátira é um efeito que resulta da crítica aplicada pela

intertextualidade da paródia. Linda Hutcheon (1985, p.28) afirma que a atividade de

satirizar está no mesmo nível da paródia e o que as difere, mais uma vez, é a

intenção. A paródia critica o procedimento, gênero, ou dimensão "intramural", e a

sátira critica fatos sociais ou valores morais - "extramurais". "[...]como podem então

chegarem a confundir-se a paródia com a sátira, que é extramural (social, moral) no

seu objetivo aperfeiçoador de ridicularizar os vícios e loucuras da humanidade, tendo

em vista a sua correção?" (HUTCHEON, 1985, p.61). A estudiosa ainda acrescenta

que a distinção se encontra na ausência do julgamento negativo por meio da obra

paródica. Tal perspectiva limita a paródia a paráfrases que apenas celebram o

intertexto. A este tipo de atividade, no presente estudo, denomina-se traduções,

como as citadas telas Les Buveurs e La Siesta, ambas de Van gogh. Não há nenhum

juízo de valor opositor aparente, e a obra original não sofre ataques de cunhos

"intra" ou "extramurais". Na verdade, a paródia moderna é um gênero avaliador das

diversas formas midiáticas atuais e, desse modo, pratica uma sanção negativa,

positiva sobre o processo ou a respeito do contexto em que a obra ou o texto base

está inserido. Assim como em Perpective - Madame Récamier, com a tela Perpective

II - Le Balcon de Manet (1950), Magritte faz uma paródia criticando a cultura

retrógrada da elite, propondo o seu fim através da figura do caixão. O quadro Le

Balcon (1869), de Manet, exibe três personalidades francesas da época olhando para

a rua, sobre um balcão. Na obra de Magritte, não há apenas uma alusão para

homenagear um colega de profissão, mas os valores são invertidos e criticados

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ironicamente. Ao contrário, Warhol, ao duplicar a Mona Lisa, fez uso da ironia por

meio da paródia para censurar a sociedade consumista "ávida" por quantidade à

qualidade, mas não subverte o texto-base, por isso não sendo paródia, mas citação.

É importante ressaltar que a paródia como é definida neste estudo não

pretende abranger os diversos trabalhos que procuram unicamente fazer uma

correspondência com outros, sem imprimir uma reflexão. A paródia praticada pelas

simulações de copresença paródicas descritas até o momento utiliza a alusão para

repreender algum aspecto do processo de produção da obra (texto-base) ou mesmo

temas do contexto histórico. Fica claro que o texto singularmente alusivo está mais

para a paráfrase ou simulação por tradução que, como dito anteriormente, recria

textualmente com um desvio mínimo, procurando manter-se mais próximo possível

do efeito semântico proposto originalmente.

A simulação paródica tem o propósito de acentuar a diferença, o oposto da

tradução. A artista contemporânea Sophie Matisse pintou, em 1999, o quadro Le

Dance Lesson (Figura 11), que faz alusão clara à obra de Degas, Le Dance Class

(1874). Contudo, não há no discurso uma tendência de oposição ao processo

criativo. O famoso quadro de Degas exibe um professor conduzindo uma aula de

balé para várias alunas e suas mães a esperar ao fundo. A dessemelhança entre as

telas está no grande vazio provocado pela ausência dos personagens. A substituição

das figuras por caixões (em Magritte) é um contraste bem mais acentuado que a

retirada de elementos. No trabalho de Sophie, pode-se ter o efeito de continuidade

de uma narrativa em que os personagens não estão mais na aula, apenas foram

para outro lugar. O desaparecimento das alunas, professor e mães causa um

estranhamento, mas não há uma evidente crítica revelada, com a inserção de outras

figuras como caixões, que, necessariamente, consistiriam em uma simulação

paródica. Desse modo, Le Dance Lesson é mais uma tradução que recria com

mínimo transvio capaz de oferecer ao espectador uma nova perspectiva e revigora o

texto base.

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De fato, o que difere a simulação de copresença paródica das demais é o

efeito irônico provocado pela alusão que pode ou não resultar em sátira. A principal

forma de reconhecimento das marcações da paródia é a ironia. O enunciatário

desperta para a duplicidade por meio da alusão irônica. Apesar da alusão manifestar-

se, normalmente, mais pela similitude do que por meio da diferença crítica, a alusão

irônica ativa dois textos concomitantemente e provoca um conflito que tem a

reflexão como efeito. A alusão não pega empréstimo literal do enunciado do texto-

base, procedimento da citação. Por outro lado, procura uma referência implícita que

seja reconhecida pelo enunciador, e este retoma, pela memória, o texto de origem e

constrói o significado sugerido pelo enunciador. Desse modo, o enunciatário é um

coenunciador, pois partilha da construção da enunciação.

A paródia é, pois, na sua ironia "transcontextualização", inversão, repetição com diferença. Está implícita uma distanciação crítica entre o texto em fundo a ser parodiado e a nova obra que incorpora, distância geralmente assinalada pela ironia. Mas esta ironia tanto pode ser apenas bem humorada, como pode ser depreciativa; tanto por ser criticamente construtiva, como pode ser destrutiva. (HUTCHEON, 1985, P.48)

Figura 12- A esquerda Le Dance Class, 1874, Edgar Degas. A direita, Le Dance Lesson, 1999, Sophie Matisse.

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2.3.1 Simulação paródica irônica

A palavra ironia surgiu da expressão grega eironeia. Aristóteles, considerando o

primeiro registro dessa palavra na República, de Sócrates (MUECKE, 1995, p.31),

instituiu dois significados: o de comportamento dissimulativo e o uso enganoso da

linguagem. O conceito da ironia aprimorou-se muito lentamente, durante os anos. O

termo não aparece no inglês até 1502 e não consta na literatura geral até o início do

século XVIII, e sempre houve dificuldade de se desenvolver uma forma específica

para caracterizar a ironia.

[...] porque geralmente é aceito que existem duas formas básicas de ironia, diferentes mas aparentadas e não facilmente separáveis, e quase-mitológica porque "ironia" é apenas um conceito, um elemento num sistema conceitual que, por sua vez, é apenas um acordo temporário quanto ao instrumento e compreensão do mundo. (MUECKE, 1995, p. 27).

De acordo com Knox (apud SEIXAS, 2006), até o século XVIII, o fenômeno

irônico possuía, basicamente, quatro funções: dizer o contrário do que significa; dizer

coisa diferente do que significa; crítica com falso elogio e elogiar por meio da

simulação e zombar ("mocking") ou caçoar. A partir de então, a ironia evoluiu além

da linguagem estritamente verbal e apenas observada pela ótica de quem a pratica.

O evento irônico pode ser não-intencional, que aconteceu com alguém (perspectiva

da vítima) ou que se tornou alguém. Desse modo, fez-se mais complexo o estudo e

análise de objetos irônicos, e surgiram ao longo dos anos, diversas abordagens

teóricas.

Seixas (2006) destacou e descreveu diversas perspectivas: perspectiva

filosófica, psicanalítica, retórica, pragmáticas e cognitivistas. A abordagem filosófica

abrange duas perspectivas da atividade irônica. A ironia socrática, como o próprio

nome aponta, provém da argumentação em que o locutor finge ser humilde para

que, moderadamente, coloque em contradição os demais envolvidos no diálogo. Esse

aspecto em que o sujeito ou a situação podem ser irônico e não apenas o texto, faz

da ironia algo mais que figura da linguagem, um princípio filosófico. O outro tipo

irônico da abordagem filosófica destacada pela autora é a romântica, que se baseia

no princípio de que somente a atividade irônica oferece a liberdade absoluta ao

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poeta. A partir desse ponto de vista, a ironia passa de situacional para os textos

literários. Houve uma "rebeldia do subjetivismo contra a objetividade [...] o autor

passa a assumir voz na narrativa, representando-se através de um narrador

implicado no texto" (DUARTE, 1994, p. 09). A partir do Romantismo literário, o

autor assume o "eu" e divide com o receptor a responsabilidade da construção do

texto, tendo em vista o reconhecimento da ironia. De acordo com Duarte (1994), o

artifício irônico passa a produzir efeitos de crítica e denúncia.

A perspectiva retórica aponta a ironia como tropo ou figura. O tropo, de

acordo com Quintiliano (apud SEIXAS, 2006), seria um "modo de falar descolado do

natural e primeira significação". Propriamente, a ironia seria a forma de trabalhar por

antífrases. Este é o formato mais simples e coloquial de manifestação da ironia, em

que, basicamente, é limitada a um procedimento textual verbal. Por outro lado,

assim como a sátira, o efeito irônico surgiu não por meio da literatura, mas por meio

de situações irônicas.

Retornando às perspectivas citadas em Seixas (2006), a abordagem

pragmática baseia-se na retórica. No entanto, reconhece a interação enunciador e

enunciatário coenunciador. Quanto à semântica, a ironia pode ser identificada como

tropo, mas pode exercer funções como a objeção de valores argumentativos e como

estratégia defensiva. É impróprio afirmar que a mera contradição, o "dizer o

contrário do que se pensa", é característica específica da ironia. Segundo

Berrendomer (apud SEIXAS, 2006, p.61), a oposição de valores argumentativos é o

que monta a distinção da ironia entre outras formas antifrásicas. Os princípios da

argumentação são postos em desacordo.

Como eu já deixei entender, há, então, um paradoxo argumentativo: o enunciado comenta, sobre o modo representacional, sua enunciação como um argumento a favor de r, enquanto que a enunciação se comenta sobre o modo sintomático como um argumento em favor de não-r. (BERRENDONNER apud SEIXAS, 2006, p. 64).

A alusão irônica na paródia inverte o significado, simulando, para promover o

julgamento do seu alvo. Normalmente, possui uma abordagem de escárnio e ridículo,

que, assim como um desenho caricato, exagera no destaque de forma a distorcer e

sinalizar as marcações. Esses pontos de ressalto devem ser inferidos pelo

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decodificador como estratégia de crítica a outro texto, autor, gênero, código. Um

simples exemplo de ironia é a inversão de significado que esconde a real intenção do

autor. A Perspective: Madame Récamier by David, de Magritte, assim como Le

Balcons, são obras que ironizam o tema tratado no texto-base: morte contraposta à

vitalidade e beleza. Magritte expõe uma mensagem "X", mas nas "entrelinhas" fala

de outra coisa, oposta, "Y". Esse implicitude empregada pela inversão aciona a

função avaliadora da alusão irônica da paródia como simulação e intertextualidade.

Esse contraste de "dizeres" se dá por meio do conflito entre enunciação

enunciada e enunciado enunciado. A lógica pressuposta do enunciado é negada pelo

enunciado enunciado. Em outras palavras, o que é dito, escrito, exibido, pintado,

fotografado não está de acordo com o que o autor quer "transmitir". Na verdade, a

enunciação é oposta à enunciação enunciada. O confronto, a contrariedade de

isotopias têm como propósito a tematização do protesto, censura ou humor. O texto

ou gênero parodiado é refutado implicitamente, pois é reproduzido pelo enunciado

de forma que desloca do ridículo ao cômico.

Subjacente ao dito há o dizer que também se manifesta. O enunciador pode, em função de suas estratégias para fazer crer, construir discursos em que haja um desacordo entre essas duas instâncias [...] No caso de um acordo entre enunciado e enunciação, ele explicita-se como "enunciado X deve ser lido como X"; no caso oposto, como "o enunciado X deve ser interpretado como não-X” (FIORIN, 1996, p.39).

A ironia não é apenas uma ferramenta, mas um processo comunicativo que,

de acordo com Hutcheon (1995, p.56), possui três características semânticas:

relacional, inclusiva e diferencial. "A ironia seria uma estratégia relacional por operar

entre significados (ditos e não ditos) e também entre pessoas (ironistas,

interpretadores, alvos)". Dessa forma, a prática irônica opera entre a dinâmica da

interação dos textos, contexto, interpretador e, por vezes, ironista.

A ironia é inclusiva, porque não precisa trabalhar com antífrase

necessariamente, substituindo um significado pelo outro. Esses significados podem e,

muitas vezes, coexistem no mesmo discurso. Como atua por meio da diferença

dentro do universo da semelhança, Hutcheon (1995,p.56) denomina como diferencial

uma característica da ironia.

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Foi discutido, ao longo deste capítulo, o dispositivo da paródia como "canto

paralelo" de textos coexistindo de forma inclusiva. Falou-se das marcações no bojo

das semelhanças (diferencial) que constrói, deliberadamente, um efeito que promove

a interação entre texto e intertexto, enunciatários e enunciadores (relacional). Sendo

assim, verifica-se a evidente proximidade da ironia com a paródia. A simulação de

copresença paródica é ativada pela alusão irônica, promovendo a sátira como crítica

social e moral, além do humor.

Ironia, raramente envolve uma simples decodificação de uma mensagem invertida; é mais comumente um processo complexo de relação, diferenciação e combinação do dito com o não dito.(HUTCHEON, 1995, p.85)15

Faz-se necessário deixar claro que, como foi dito anteriormente, a ironia é

uma ato intencional como outros em um processo comunicativo. Porém, deve-se

entender que um aspecto a distingue além da intencionalidade: a inferência. A

atividade paródica irônica tem como intenção o confronto de valores do texto-base, o

protesto social, a crítica ao processo produtivo do gênero, e até mesmo, o humor.

Para que esse propósito seja alcançado, devem ser reconhecidas na obra, as

marcações inferenciais deixadas pelo enunciador. Por conseguinte, o enunciatário,

como coenunciador, constrói o discurso proposto.

Neste trabalho, pretende-se examinar a intenção do enunciador em

caracterizar mais acentuadamente ou não a alusão irônica da paródia. O material a

ser analisado posteriormente, está elencado para dar formato a uma classificação

que destaque a intensidade das marcações relacionada com a competência

inferencial do enunciatário. O grau de implicitudade, desde o início da cadeia da

tipologia proposta, é a característica mais relevante porque é o que define o objeto

como simulação de potencial trote ou não. Os sinais devem estar à mostra para que

o decodificador os perceba e seja capaz de inferir o efeito crítico do texto.

O termo "copresença" assinala, necessariamente, a existência de dois textos.

Entretanto, em alguns casos, a paródia não se refere a um texto específico, mas a

15 Tradução livre.

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um gênero. Como os falsos documentários, que inserem a ficção em um suporte que

hipoteticamente deveria ser não ficcional. Não há um texto base único, mas uma

classe que é parodiada. Os códigos próprios do tipo são utilizados de forma

distorcida para efetuar a marcação e assim resultar na ironia.

O site brasileiro Sensacionalista16, criado em 2010, simula o modo de

funcionamento de um portal de notícias, mas com o conteúdo fictício, como eles

mesmos se definem em um dos tópicos do portal: "um site de humor com notícias

fictícias, baseadas ou não na realidade". Trata-se de uma simulação pelo fingimento

de ser objetivo nas matérias assim como em um jornal. Pelo aspecto de estar

tomando empréstimo de códigos de uma categoria (portal de notícias), deve ser

definido como copresença. Quanto à paródia, fica claro o tom irônico, ao inserir a

ficção em uma mídia essencialmente voltada para dar suporte a notícia.

A informação noticiosa, ao longo dos anos, desenvolveu-se como mercadoria

por meio da padronização em negar o subjetivismo. Aspectos do acontecimento

como tempo, lugar, modo, causa, finalidade e instrumento devem compor a

informação de forma a não ser opinativa. Com o desenvolvimento industrial, a

criação de agências de notícias e publicidade levou o jornalismo para uma prática

mercadológica da informação. Com a dinâmica do ambiente virtual, quanto a esse

aspecto de venda da notícia, quase nada mudou. Entretanto, a prática jornalística é

pautada por fatos que acontecem quase ao mesmo tempo em que são divulgados.

Os portais de notícias na internet têm modificado a prática do jornalismo. Os

acontecimentos de "ontem" são substituídos por acontecimentos de hoje. Houve, de

acordo com essa perspectiva, um retrocesso tendo em vista que, no início do século

XX, o jornalismo era demasiadamente sensacionalista visando à venda de jornais

impressos. A notícia é, cada vez mais, resultado do seu atributo monetário, que é

diretamente relacionado com imediaticidade do fato.

Existe uma profunda ironia na fabricação de notícias. A credibilidade de uma imagem política repousa, não numa verificação independente sobre sua precisão, mas no seu sucesso passado como uma fórmula noticiosa. Neste mundo de realidade dos media, a noticiabilidade se torna um substituto da validade, e a credibilidade é reduzida a uma formúla sobre quem aplica que

16 www.sensacionalista.com.br

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imagens a quais eventos e sob que circunstâncias. (LANCE BENNET apud MORETZSOHN, 2002).

O conteúdo jornalístico informativo, além de ter, a priori, isenção da

subjetividade, deve adequar-se a todos os padrões que o meio social exige para que

a informação, como mercadoria que é, seja valorizada. A notícia, para ser

considerada atual, deve submeter-se ao imediatismo da publicação instantânea

factual provocada pelos portais, blogs noticiosos na internet. Por razões de economia

de tempo com o propósito de noticiar primeiro, o jornal submete a critérios

inconsistentes a coleta e seleção dos fatos a serem investigados.

O jornalismo não é apenas a venda da informação, deve-se dispor de tempo

para exame e seleção do conteúdo factual. Todavia, o jornalista não desfruta do

tempo necessário para análise de um acontecimento ou entrevistas, e, assim, a

matéria torna-se mais superficial. A informação sempre foi tratada como mercadoria,

mas a demanda exige mais informações por hora do que no século passado. De

certo modo, esse novo processo desenvolvido ao longo da adaptação e criação do

jornalismo na internet teve como consequência a propagação de temas jornalísticos

mais evasivos, porém mais fáceis de captar e padronizar e até o surgimento de

notícias parcial ou inteiramente falsas. As redações sempre tiveram que lidar com a

verificação contínua dos fatos; no entanto, atualmente, esse processo está, a cada

dia, mais apressado e frágil. O portal Sensacionalista, por meio do humor,

desenvolve uma reflexão implícita da notícia fútil e, por muitas vezes, dos males

sociais.

"Neymar joga últimos 15 minutos de partida com iPod no ouvido para escolher

música para o Fantástico"17 - é a frase de uma das manchetes do Sensacionalista

em oito de março de 2012. No dia anterior, o jogador de futebol Neymar fez dois

gols no jogo em que seu time bateu o adversário por três a um. As manchetes de

esporte, em sete de março, nos principais portais, foram a respeito do garoto.

"Ovacionado na Vila, Neymar marca três, repete gol de placa, e Santos vence o

17 MARCELO Z. Neymar joga últimos 15 minutos da partida com Iphone no ouvido para escolher música para o fantástico. O Estado de São Paulo, São Paulo, 19 set. 1998. Disponível em: <http://www.sensacionalista.com.br/2012/03/07/neymar-joga-ultimos-15-minutos-da-partida-com-iphone-no-ouvido-para-escolher-musica-para-o-fantastico/> Acesso em: 07 mar. 2012.

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Internacional", foi a manchete do UOL. O portal Terra destacou: 'Neymar faz dois

golaços e revive dia de "carrasco" de Dorival'. Percebe-se que o Sensacionalista

trabalha em conformidade com as pautas dos principais sites de notícias do país.

"Em geral vemos o que está acontecendo nos sites de notícia e nos trending topics

do Twitter. Trocamos alguns emails com ideias e fazemos as notícias" - afirma Nelito

Fernandes (JÚNIOR, 2012), fundador do jornal. Porém, as informações que elenca

são fictícias. É duvidoso que o jogador Neymar jogou com Ipod nos ouvidos e, muito

menos, com o objetivo de escolher uma música para um quadro do programa de TV,

Fantástico. Ao tomar empréstimo de códigos da linguagem verbal e visual de um site

de notícias, o Sensacionalista simulou e parodiou um tipo: jornalístico. Sendo

jornalismo, as matérias teriam que ser, precisamente, de acordo com os fatos. Não

há credibilidade em que o conteúdo é fictício. Então, o Sensacionalista é um fake de

falsificação ou simulação?

No site18, a equipe adverte que o objetivo "é um só: fazer rir...o

Sensacionalista não se dedica a espalhar boatos e nem notícias falsas na internet".

Além da declaração que afirma a política do jornal, o humor é a marcação mais

evidente da paródia simulativa do Sensacionalista. A ironia ocorre quando toma a

pauta do dia dos principais meios de comunicação do país e elabora pequenos textos

fictícios como notícias. As manchetes do Sensacionalista, comparadas com os dados

do que realmente aconteceu, revela o quão absurdas e fantasiosas são suas

matérias. O que inverte a objetividade do jornalismo em um artefato lúdico, faz do

site um portal de humor. O valor moral da credibilidade é invertido para o escárnio e

anarquia da alusão irônica da paródia. Essa contrariedade, por sua vez, embora o

jornal assuma que tem o propósito apenas humorístico, tem implícito o protesto.

No dia 12 de abril de 2012, o Supremo Tribunal Federal decidiu autorizar o

aborto voluntário em casos da gravidez com fetos anencéfalos. Como se configura

um tema polêmico (tramita na Corte desde 2004), tornou-se manchete e um assunto

bastante discutido nas redes sociais. Head Lines, como "Supremo aprova

18 http://www.sensacionalista.com.br/about/

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antecipação de parto de feto anencéfalo" do portal UOL19 e " STF julga

descriminalização de aborto de anencéfalos nesta quarta" do Terra,20 abordaram o

acontecimento com destaque. O Sensacionalista utiliza a pauta do dia e publica uma

matéria com a seguinte frase (Figura 12): "Pessoas que têm o cérebro perfeito, mas

não usam, entram na mira do STF". A "notícia", com humor, fala que a Corte deve

"liberar a eutanásia ou não de pessoas que têm cérebro completo e perfeitamente

normal, mas não o usam", como os "motoristas que dirigem bêbados". Embora

alguns autores (DISCINI, 2004, p. 60) sustentem que apenas a ironia sem o humor

configura o protesto, percebemos, no Sensacionalista, um tipo de protesto cômico

avaliador. "O humor serve para fazer cócegas tocando nas feridas também." - diz

Nelito (JÚNIOR, 2012) quando perguntado se o jornal promove uma crítica a

questões do comportamento social.

Figura 13- Captura de tela do site Sensacionalista acessado em 13 de março de 2012. O portal possui semelhança com outros sites de notícias, mas com uma

primordial diferença, que é a ficção. A aparência da logomarca, com um tipo de fonte

(Old English Text MT) utilizada em jornais antigos, organiza um sistema gráfico que

19 http://noticias.uol.com.br/ciencia/ultimas-noticias/redacao/2012/04/12/supremo-aprova-antecipacao-de-parto-de-feto-anencefalo.htm 20 http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI5712617-EI306,00-STF+julga+descriminalizacao+de+aborto+de+anencefalos+nesta.html

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não oferece marcas de que se trata de uma paródia. No plano da expressão, as

isotopias figurativas "dialogam" com as de outros objetos, como o portal do jornal

francês Le Monde (Figura 13), com as cores do fundo em branco em contraste com a

logomarca em preto, usando a mesma tipologia. A diagramação também se

assemelha quando o menu está no sentido horizontal e localizado no topo. A

manchete principal, em ambos os sites, localiza-se na lateral esquerda e destaca-se

por foto, deixando livre o lado direito para publicidade. Essas são algumas das

características que o Sensacionalista toma emprestado para se camuflar no âmago

de modelos de um gênero.

Figura 14 - Captura de tela do site (http://www.lemonde.fr/) do jornal Le Monde,

acessado em 13 de março de 2012.

O Sensacionalista em 2011, além da internet, passou a tomar a televisão

como suporte. Diferente da versão virtual, o telejornal que é transmitido via TV

fechada uma vez por semana não aborda, necessariamente, os principais temas

discutidos nos últimos dias pelos programas jornalísticos do país. Mas sempre de

forma irônica, busca a chacota e o cômico como ferramentas de humor e crítica a

aspectos do comportamento social. Reportagens como "Rapaz morre depois de

encolher a barriga por 5h em primeiro encontro na praia", além de ter o objetivo de

provocar o riso, também toca em assuntos polêmicos como a busca exagerada à

forma física ideal.

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"O Sensacionalista não visa a crítica da imprensa" - afirma Nelito (JÚNIOR,

2012), ao ser perguntado se o Sensacionalista poderia depreciar a prática

jornalística de alguma forma. Apesar do jornal não ter como o objetivo primário

promover uma reflexão a respeito do jornalismo atual, em alguns casos, a

interpretação pode voltar-se para isso. O contraste entre o plano da expressão,

semelhante a outros telejornais, e o plano do conteúdo, com notícias fantasiosas,

gera uma comicidade que subverte os valores representados pela figura do âncora

de um jornal na televisão. Os temas figurativos como seriedade, imparcialidade,

objetividade, oriundos das características da postura do apresentador, de sua forma

de vestir, falar, interpretar a notícia, juntamente com aspectos decorativos do

cenário, entre outros, são ridicularizados com a exposição de matérias como a de:

"Saci nasce com duas pernas e deixa os pais arrasados". Antes da reportagem21 ser

exibida, um dos âncoras (homem) diz: "A família do pequeno Saci vive um drama na

floresta". Em seguida, a outra apresentadora completa: "O Saci nasceu com duas

pernas e está sendo considerado uma aberração entre os coleguinhas". Além do

humor deliberado, a notícia ficcional, por ser exibida de forma tão formal e por meio

de códigos já reconhecidos pelo público como de um telejornal, pode promover uma

crítica ao gênero. Todas as características normativas de um jornal para televisão

foram desenvolvidas para a paródia. Todavia, ao passo que um telejornal, com a

mesma "aparência", dialoga através de um discurso fantasioso, põe em questão os

valores de credibilidade e imparcialidade. Embora a produção do Sensacionalista não

admita a intenção de criticar a imprensa, isso acontece em alguns casos em que a

notícia atinge um perfil lúdico mais acentuado ao tratar um personagem folclórico,

Saci Pererê, como um cidadão comum.

Da mesma forma que não tem o objetivo de reflexão a respeito do jornalismo,

o Sensacionalista não pretende enganar. Porém, isso também acontece quando o

dispositivo é a apropriação de regras de um sistema já assimilado por um público

vasto. No dia 04 de maio de 201022, referido portal publicou a seguinte manchete:

21 Reportagem disponível no canal de videos You Tube através do link: http://www.youtube.com/watch?v=cH-zuLeXv9o&feature=relmfu 22 Reportagem disponível no site do Sensacionalista por meio do link: http://www.sensacionalista.com.br/2010/05/04/mulher-engravidou-vendo-filme-porno-3d/

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"Mulher engravidou vendo filme pornô 3D". A matéria descreve que "um casal

branco americano teve um bebê negro e a mulher diz que engravidou assistindo a

um filme pornô 3D". Na mesma semana, mais de 100 sites (brasileiros e

internacionais) publicaram a notícia como verdadeira. É evidente que nenhuma

mulher pode engravidar por meio da televisão, mas as pessoas habituadas a

acreditar em qualquer notícia de portais jornalísticos fazem o engano não ser tão

surpreendente.

Atualmente, o portal possui o alcance de mais de 76 mil pessoas relacionadas

com sua página no Facebook23 e cerca de 115 mil seguidores no Twitter24. Esses

números comprovam que o fake se tem tornado, a cada dia, uma espécie comum na

mídia contemporânea. A ironia paródica era processo de criação utilizado apenas na

literatura. Todavia, mostrou-se um modelo tão eficaz de reflexão que se manifesta

em outras mídias como cinema (falso documentário), fotografia e internet.

É no contexto geral desta interrogação moderna acerca da natureza da auto-referência e da autolegitimação que surge o interesse contemporâneo pela paródia, gênero, que foi descrito simultaneamente como sintoma e como ferramenta critica do epistema modernista (HUTCHEON, 1985, p.12).

Um bom exemplo é o portal de notícias fictícias denominado G1725. O site

também procura, por meio da ironia, promover o humor. Assim como o

Sensacionalista, o G17 simula uma interface virtual semelhante aos sites noticiosos

para exibir matérias irônicas, subvertendo os valores do jornalismo. O slogan do

portal é "Sem compromisso com a verdade". Então, está evidente a mesma fórmula

controvertida do exemplo anterior. O humor é o objetivo priorizado nos dispositivos

de ambos; no entanto, a crítica está presente no seu conteúdo, seja a respeito do

bojo social ou do próprio processo de produção da notícia. Vale ressaltar que o G17

possui uma apropriação menos difusa que o Sensacionalista. Há, de fato, um texto-

base especificamente parodiado (Figura 14): o site de notícias do portal da Globo,

g1.com.br. Os nomes são parecidos, as logomarcas possuem a mesma cor

(vermelha), as tipologias são semelhantes (sem serifa) entre os dois veículos. A 23 Fonte: http://www.facebook.com/sensacionalista 24 Fonte: https://twitter.com/#!/sensacionalista 25 www.g17.com.br

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equivalência faz parte da estratégia enunciativa. O texto parodiado figura em um dos

portais mais acessados no Brasil26. Desse modo, a credibilidade de um é confrontada

com o slogan do outro. A contradição, artifício tão comum na ironia, permite ao

leitor, logo no início do processo, perceber que o G17 não é um portal de notícias

como vários outros.

Figura 15 - Logomarcas do site G17 e G1. As manchetes abordam, principalmente, nomes de personalidades que são

assunto de pauta de outros sites com alto número de acesso. E, assim, a matéria é

vendida como uma piada.

O Sensacionalista e o G17 operam de forma a apropriar-se de códigos do

jornalismo virtual para fazerem do humor seu principal objetivo. Ambos são

simulações, porque não têm como finalidade enganar. As marcações para que isso

não aconteça são evidentes como a mensagem na logomarca do G17. Os dois sites

podem ser definidos como dispositivos de copresença, porque oferecem interação

entre textos, caracterizada pela paródia; vide os elementos que se assemelham. E

podem ser chamados de irônicos por promoverem "dessacralização do discurso

oficial ou desmascaramento de uma pretensa objetividade em discursos tidos como

neutros" (BRAIT, 2004, p.16).

O humor, não necessariamente, deve ser inserido no conceito da paródia,

como meio de manifestação. A paródia, por muitas vezes, pode-se caracterizar

simplesmente como crítica, sem a intenção da comicidade. Entretanto, o vigor da

paródia moderna está centralizado na ironia. A atividade irônica é o que distingue a

paródia avaliadora da citação e tradução discutidas anteriormente, como formatos

que não contestam aspectos do texto-base. Por conseguinte, a contraposição de

valores sugerida pela ironia é um dispositivo comum em elementos que visam ao

humor. Em suma, a oposição de isotopias do objeto irônico é o que o aproxima do

26 Fonte: http://www.alexa.com/topsites/countries/BR

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humor. Como afirma DISCINI (2004, p.60), "[...] o humor, intertextualmente,

reconhecido como prerrogativa da paródia, constitui um fenômeno de contrariedade

de isotopias.”

Há autores como BERGSON (apud BRAIT, 2004, p. 41) que insistem em

abordar o humor como o "inverso da ironia". Na verdade, o humor pode ser um

fenômeno isolado da ironia, como a ironia pode ser praticada sem o humor. Por

outro lado, os dois juntos em um processo criativo desperta interesse na simulação

de copresença paródica, seja pelo caráter cômico ou de reflexão.

Linda Hutcheon (1995, p.45) defende que a ironia pode ser bem humorada

como também depreciativa ou transgressora. Ela organiza em um diagrama as

formas que a ironia pode-se manifestar de acordo com a sua intensidade. Entende-

se como intensidade a "carga máxima exercida" de ironia em um discurso, ou seja, o

quanto irônico é o texto. De acordo com o esquema de Hutcheon (Anexo A), a ironia

pode ser da reforçadora a agregadora, passando por outras funções como

"opositiva", "de ataque", etc. O que, de fato, é relevante a esta tese não é elencar

ou reafirmar as diversas finalidades da ironia. No entanto, faz parte do raciocínio

desenvolver análises de objetos do corpus para verificar seu efeito simulativo de

copresença de paródia por meio da ironia. Evidentemente, as funções de Hutcheon

irão compor esses exames, não como a base de orientação, e sim consequência.

No dia 27 de março de 2009, vésperas do "Dia da Mentira", um jornal foi

distribuído em Londres, em algumas estações do metrô. O impresso assemelhava-se

ao tradicional jornal de finanças Financial Times (Figura 15). Aparentemente, a

principal diferença está no nome, pois a publicação se chamava Not the Financial

Times (Figura 16). Mas ao ler o texto, percebe-se que o impresso é composto de

notícias fictícias. Um grupo de jornalistas ativistas publicaram este fake que parodia o

Financial Times.

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Figura 16 - Folha capa do jornal Financial Times. O jornal Financial Times (Figura 15) teve a sua primeira publicação no ano de

1888 e é um dos mais tradicionais periódicos britânicos, vendido a executivos do

mundo todo. Já o Not the Financial Times é um único número, com cerca de 15.000

impressões, distribuídas gratuitamente nas bancas de jornais ou mão a mão. A

grosso modo, o jornal satiriza e critica os temas tratados no Financial Times.

Diferente do Sensacionalista, o Not the Financial Times não pretende despertar o

humor, mas a crítica ao sistema político e econômico praticado por governos e

grandes corporações. Desse modo, suas "matérias" são centralizadas em temas

como autoridades de países influentes, empresas, organizações multinacionais e

práticas não ecológicas.

A estratégia de oposição por meio das semelhanças pode ser verificada com

as características topológicas em comum entre os dois textos. O Not the Financial

Times é composto por três lâminas de um tipo conhecido de off-set que é o papel

jornal. A sua dimensão é a mesma das mídias impressas convencionais: 57,5cm por

73,5 cm. Cada lâmina possui apenas uma dobra, tendo o aspecto de um "grande

livro" de 12 páginas, assim como o Financial Times. A primeira característica que

aproxima os dois objetos é a cor do papel. Como o off-set comum é um produto

sujo, o jornal Financial Times adota um tipo que é mais limpo e de cor avermelhada.

Trata-se de um insumo mais caro, que eleva o preço de cada publicação e, assim,

coloca o produto em posicionamento privilegiado para um público de maior renda

como a classe de executivos que se interessam por assuntos de finanças. Com

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exceção do FT (Financial Times), nenhum jornal conhecido internacionalmente utiliza

tal papel. Desse modo, a cor avermelhada destaca-o e faz dele um objeto fácil de ser

parodiado. O título “Financial Times” centralizado no topo da página usa a mesma

fonte e compõe igual logomarca do texto-base. Porém, ao lado, em caixa alta e

corpo 12, está escrito "Not the". Essa negação serve como a primeira marcação

estratégica para o enunciatário compreender o texto como de copresença, ou seja,

como algo que se refere a outro. Mas a cor do papel e o título vão na contramão do

"Not the" e podem fazer com que esta "pista" seja ignorada. O leitor, levado pela

semelhança estética, talvez inicie todo o processo não interpretando o Not the

Financial Times como simulação. Logo abaixo do título, há uma segunda marca da

simulação. O jornal é datado como sendo do futuro: Wednesday April 1 2020/free

(Quarta-feira, 1º de abril de 2020/Grátis)27. Com isso o enunciatário poderá, então,

compreender que se trata de ficção, porque as notícias "são" do futuro.

Normalmente, em um material jornalístico, o texto dá-se no pretérito perfeito do

modo indicativo, ou até no presente, quando o acontecimento ainda está em

andamento. A data de um jornal sempre é atual e nunca no futuro, pelo simples fato

de ser impossível a coleta de informações do "amanhã". No caso do Not the Financial

Times, o tempo é futuro, o enunciatário é levado ao ano de 2020, e esta fratura

promove um estranhamento capaz de despertar a dúvida sobre o valor de verdadeiro

do impresso.

27 Tradução livre

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Figura 17 - Folha capa do jornal Not the Financial Times.

Frequentemente, o Financial Times apresenta, logo abaixo da logomarca e

data, manchetes de matérias que são de grande apelo, incluindo, muitas vezes, fotos

de autoridades e executivos. Esse destaque é copiado no Not the Financial Times,

mas de forma irônica. Ao contrário de fotos de pessoas populares no meio das

finanças, o fake jornal reproduz a imagem do personagem de desenho animado de

comédia, Homer Simpson. Vale ressaltar que, de acordo com o programa seriado, a

figura de Homer é a de um irresponsável, fanfarrão, desequilibrado, personalidade

que não é relacionado em nada com o mundo das finanças e produz um efeito

irônico.

Ainda nessa sessão de "evidência", o jornal simulativo acrescenta: All the fun

of the future, without the pain of living there (“Toda a diversão do futuro, sem a dor

de viver nele”). Esta frase é mais uma pista de que o conteúdo do jornal é

diferenciado, o destinador manipulador alerta ao destinatário que irá diverti-lo com

as notícias do desastroso futuro.

Manchetes questionam política, economia e comportamento social. Uma

matéria afirma que com a criação, em 2018, de Kanaan, novo país que "incorpora

todo o território anteriormente conhecido como Israel", houve um declínio do

antissemitismo. Blair pilgrimage continues ("A penegrinação de Blair continua") é a

manchete do texto dando conta de que o ex-primeiro ministro britânico Tony Blair se

converteu ao catolicismo e mostra-se, "moralmente perturbado por muitos aspectos

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de seu governo, principalmente seu papel na invasão norte-americana do Iraque em

2003". Por causa desses acontecimentos, como uma forma de expiação, Blair decidiu

fazer uma peregrinação descalço de Londres ao Vaticano. As notícias do futuro estão

sempre relacionadas com o presente, porque os fatos atuais são os objetos da crítica

proposta pela paródia do Not the Financial Times.

Ainda no ano de 2020, uma "corte do clima" julgou executivos de grandes

corporações com a acusação de "envenenar a atmosfera"; o presidente da

"Confederação das Indústrias Britânicas" recebeu o prêmio Nobel da Paz por guiar o

país a práticas transparentes e ecologicamente responsáveis. Tal modelo de notícia

fictícia promove uma reflexão dos atos desses personagens em seu tempo. O Not the

Financial Times diferencia-se, essencialmente, do Sensacionalista, porque não há

uma organização voltada para o humor. A ironia sem o riso produz um efeito mais

intenso de protesto.

Como uma paródia de um jornal inteiro, o Not the Financial Times possui

anúncios fakes também. Vale destacar o da empresa americana Ford, que diz no

título: I want my SUV... ("eu quero meu SUV"). A propaganda possui um imagem de

um carro se movendo entre montanhas rochosas, sem neve e a seguinte frase

complementa a chamada: Who needs Himalayan snow? ("Quem precisa de neve do

Himalaia?"). Fica evidente, o protesto ao aquecimento global provocado pela ação do

homem.

Outro anúncio publicitário fictício que se configura como protesto é o da

empresa energética E-on. A chamada Always responsible ("sempre responsável")

está em corpo 36, logo acima da figura do diretor da empresa, que está sorrindo.

Abaixo da chamada, inicia-se com to our interests ("ao nosso interesse") uma cadeia

de frases (em tamanho menor) que provoca uma ruptura no valor de "confiança"

que a leitura da chamada sugere. A cadeia continua com “... to our directors”, “... to

shareholders”, “... and to the planet”, “In that order”. De acordo com o jornal, a

responsabilidade da empresa está, na verdade, voltada para seus interesses,

diretores, acionistas e, por fim, para o planeta.

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Figura 18 - – Anúncio da E-on, recortado da página 04 do jornal Not the Financial Times

Ao longo do impresso, várias matérias discorrem sobre meio-ambiente,

disputa por fontes energéticas, guerra, temas que permite a reflexão de como seria

sobreviver em um mundo com tantas notícias desastrosas. Esse dispositivo propõe

reflexões sobre o próprio comportamento humano, objetivo central dos seus

criadores.

O Not the Financial Times, como simulação de copresença paródica irônica,

retoma um texto que é reelaborado com o propósito de crítica social. Esse mesmo

mecanismo é utilizado pelo Sensacionalista para promover o humor e até a reflexão.

A diferença entre as semelhanças do texto e do texto-base é o que permite à ironia

exercer tais funções como a dessacralização dos valores contidos no objeto

parodiado. A paródia renova por meio do seu canto paralelo e "é, ao mesmo tempo,

duplicação textual (unifica e reconcilia) e diferenciação que coloca em primeiro plano

a oposição irreconciliável entre textos e o mundo" (HUTCHEON, 1985, p.129).

2.3.2 Simulação paródica radical

Para que a ironia resulte em humor, crítica, protesto, subversão ou qualquer

de suas funções, é necessário que seja apreendida pelo enunciatário como tal. Uma

paródia literária irônica, por exemplo, pode utilizar-se da alusão para definir as

marcas que o leitor deve seguir e compreender o sentido do discurso paralelo.

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Todavia, percebe-se que há uma gradação da implicitude dessas pistas

deliberadamente expostas. Alguns trabalhos optam por se concentrar apenas nos

sujeitos com repertórios suficientemente adequados para constatar e entender o

efeito irônico, pressupostamente adotado pelo enunciador. O jornal Not the Financial

Times destaca suas marcas para que grande parte dos leitores verifique o protesto

sugerido. Porém, em alguns casos, a paródia irônica, estrategicamente, não acentua

os vestígios que possibilitam o seu reconhecimento, correndo o risco de tornar-se

trote. A esse tipo "arriscado" de fake denominamos simulação paródica radical. O

radicalismo está caracterizado pela implicitude das marcações empregadas na ironia.

A obra simulativa paródica radical não deixa de praticar o efeito irônico, mas o

camufla, de forma que os mais habituados com o repertório ou linguagem do

discurso específico podem deduzir a presença desse efeito polêmico. "Aceitamos que

há ironias como contrários, aceitamos que há marcas menos ou mais explícitas de

ironia, mas aceitamos também haver casos em que isso não parece tão claro assim."

(SEIXAS, 2006, p. 109).

A teórica Linda Hutcheon, em seu livro Irony's Edge: The Theory and Politics

of Irony (HUTCHEON, 1995), descreve alguns trabalhos que se encaixam na prática

radical da ironia. Beauvais Lyons, professor de artes da Universidade do Tennessee,

produziu uma série de simulações que, gradualmente, a cada exibição criada, desafia

mais ainda o expectador a entender o efeito da ironia implícita. O seu primeiro

projeto foi a invenção de uma civilização antiga do norte da Turquia, denominada de

Arenot. O nome que remete à negação é a primeira marca da ironia. Lyons exibiu

restos arqueológicos e documentações como vasos de cerâmica feitos à mão, pratos

litografados, etc. Para Hutcheon (1995, p. 161), o segundo projeto de Lyons foi

menos evidente quanto as marcações. Na exposição The excavation of the Apasht

(1980-83), Lyons teve ainda mais cuidado em camuflar qualquer evidência de ficção

para que a exposição fosse entendida como ironia apenas por aqueles que têm

conhecimento técnico suficiente para isso.

O elaborado processo de imaginar e, em seguida, fabricar e documentar uma cultura imaginária em toda a sua complexidade através de uma ampla variedade de mídias depende da menção de reais achados arqueológicos e sua exibição para acionar a atribuição da ironia. Mas, para que isto ocorra, o

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estado ficcional do Apasht deve primeiro reconhecido pelo intérprete. Para mim, as complicações (ou sutileza) ocorre quando precisamente o que fornece as documentações com a sua aparência de autenticidade é o que desencadeia a atribuição de ironia. (HUTCHEON, 1995, p. 162).28

Uma exposição arqueológica é um palco em que os objetos devam ser

factuais, representem acontecimentos, características da cultura, comportamento de

um povo. Em outras palavras, são artefatos e, por pressiposição, não devem conter

ficcionalidade. Quando a ficção é inserida de forma demasiadamente camuflada, os

observadores não percebem a ironia, e não atentam que os objetos são forjados,

fabricados para compor uma instalação irônica.

As principais formas de marcar a ficção no trabalho de Lyons são os exageros

nos dados históricos ("Apasht é a civilização mais antiga de todas") e as contradições

deliberadas (os glifos são caracterizados como "indecifráveis"; no entanto,

apresentam imagens claras de rostos, genitais e mãos com dedos cruzados). Nessa

arqueologia ficcional, o que Lyons procura destacar como ponto de reflexão é o

"conflito entre arte e artefato, ficção e fato" (HUTCHEON, 1995, p.165). Trata-se de

um debate a respeito da prática da arqueologia e a sua autenticidade que é posta

sob suspeita, tendo em vista que o modo de manifestação (exibições, por exemplo) é

um discurso já habitual; portanto, assim como o jornal, solo fértil para o fake. "Será

que este vaso da civilização Apasht é realmente autêntico?" - eis um dos

questionamentos que, de modo provável, Lyons quer que o público faça diante das

suas exposições.

Figura 19 - Afresco em relevo que representa a luta da deusa Tamoot contra uma peste. Peça da exposição Reconstruction of an Aazudian Temple (1993) de Lyons.

28 Tradução livre.

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Vários outros artistas fabricam objetos como se fossem achados arqueológicos

para promover em uma simulação paródica. Inês Raphaelian, desde ano de 1993,

vemm trabalhando com exposições forjadas. O projeto é denominado de B.C. Byte

Series. As siglas "B.C" datam um período de "antes de Cristo" (Before Christ), como

uma suposição de que o material a ser exibido é antigo, mais de 1993 anos. Por

outro lado, há uma fratura no percurso, quando ler-se o restante do nome. A palavra

"byte" é utilizada como unidade para medir o tamanho (espaço virtual) de um dado

numa seção de armazenamento, como um HD (Hard Disc) dentro de um

computador. Então, há esta discordância: em se tratando de uma exibição

arqueológica antiga, como poderia ter alguma relação com os bytes computacionais?

É nesse elo que está concentrada a ironia proposta por Raphaelian. Variados

componentes do CPU (Central Processing Unit) de um computador ou, até mesmo,

ícones utilizados na composição gráfica do ambiente virtual dos sistemas

operacionais mais populares (Windows) são representados como glifos ou símbolos

de uma civilização do passado. Afrescos apresentam, em baixo relevo, o formato de

conectores eletrônicos. Cilindros apresentam códigos binários (Figura 19),

assemelhando-se aos discos utilizados para armazenar dados, como DVD e os

próprios HDs. Peças de cerâmica recriam a forma do mouse, instrumento essencial

para o acesso a qualquer sistema computacional. Chips em resinas reproduzem a

aparência de âmbar (Figura 19). Placas deterioradas representam pedaços de

murais, contendo comandos de softwares. Percebe-se que as peças foram

produzidas para aparentar ser de outra época. Elas se mostram quebradas (Figura

20), sem cor, como se estivessem comprometidas pelo tempo, assim como fósseis

ou vestígios de um passado distante.

Figura 20 - À esquerda, imagem de cilindro com códigos binários (esquerda). À direita, imagem de chip em resina, imitando o âmbar.

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Figura 21 - Pedaços de parede que formam palimpsestos que escondiam uma linguagem de software.

A obra B.C. Byte Series procura produzir também um contexto para alimentar

a ironia criada em volta das peças arqueológicas do "futuro". A instalação, além de

exibir todos os objetos em vitrines (Figura 21) , com título e descrição, assim como

nos museus tradicionais, fornece informações da expedição em que se encontrou tais

"restos arqueológicos". Numa das paredes foi colocado um quadro que exibe um

texto, supostamente da agência de notícia Reuters, que conta a história da

descoberta dessas peças. A redação diz que tudo aconteceu em Itaparica, na Bahia,

quando uma mulher, que catava conchas, quebrou o seu dedo numa placa

enterrada na praia. Na sala de emergência do hospital, a mulher contou o ocorrido

para o médico Raimundo Santo "Zé" da Silva, que fazia parte do Conselho de

Turismo e Desenvolvimento. Dr. Raimundo chamou a diretora do Museu de

Arqueologia de Salvador, Dr. Andreia Gardenia Maia, que, percebendo a importância

da peça, tratou de entrar em contato com o professor Vincent Agustinovich ,

pertencente a Universidade de Nova York, e que liderou a expedição. O docente

ainda acrescenta: "É uma ameaça a tudo o que sabemos [...] Esta é claramente uma

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civilização muito avançada"29. Na verdade, todos esses personagens foram

produzidos para criar uma narrativa ficcional que recebe o aval da veracidade a que

os museus aspiram. Há, de fato, uma simulação porque parodia um formato usual na

arqueologia para promover uma ironia situacional que, embora apresente marcas

definidas, também constrói um sistema organizado de índices para certificar a

veracidade do material colhido. Desse modo, o conjunto de estratégias para atestar

os fatos (aparentemente não ficcionais) põe em risco a manifestação da ironia,

caracterizando a simulação paródica radical.

Construo uma falsa realidade a partir de objetos reais que são falsos, de situações reais que são ficcionais estabelece o discurso, as pessoas olham, vêem e não param para analisar se aquilo é verdade ou mentira. Então, a gente tem uma falsa ilusão de que aquilo é uma realidade, porque o discurso já está estabelecido. O discurso já existe como uma forma, um formato que nós absorvemos com maior facilidade: a construção de um museu, de um espaço sacralizado que dá veracidade ao fato, constrói a história [...]. (RAPHAELIAN, 2011)30

A ironia de B.C. Byte Series relaciona a obra de arte com o artefato. Os

objetos "apresentando" marcas do tempo fazem parte desse jogo que aponta a arte

como objeto científico. Por outro lado, é evidente que Raphaelian busca uma

reflexão sobre como o museu sacraliza os objetos que exibe. A ironia provocada pela

inserção de produtos da recente história humana na linguagem arqueológica

promove uma reflexão que insinua a fantasia dentro de um ambiente científico. B.C.

Byte Series e instala questionamentos sobre os fatos históricos citados pelos

museus.

"O museu estabelece a história ou o discurso a partir da interpretação dos objetos.

Então eu também me apropriei da forma do museu de apresentar esses objetos e

torná-los de uma certa maneira, verídicos, aceitos como reais." - afirma Inês

Raphaelian (2011). Desse modo, por meio da contradição ao posicionar produtos

tecnológicos como artefatos, destaca ao público sua ironia que subverte o próprio

formato parodiado. Outra crítica que pode ser percebida no trabalho de Raphaelian é 29 Todas as fotos, textos referentes às exposições de Inês Raphaelian não foram tirados de nenhum livro ou material bibliográfico. Mas foi coletado através de um informal CD-ROM portfólio, concedido pela própria autora. 30 Fragmento de transcrição de depoimento em vídeo on-line.

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a respeito de conceitos sobre a cultura. A rápida mudança, atualização, substituição

dos aparatos tecnológicos, juntamente com a velocidade da informação pelo meio

virtual, provocam questionamentos sobre o que é novo e velho na relação humana.

Raphaelian embalsama o recente (chips foram criados em 1971) dentro de uma

"forma" característica de restos arqueológicos, vestígios de civilização do passado.

A organização dos objetos, sua produção semelhante a peças da arqueologia,

textos que embasam todo o processo comprovam que a obra tem como vítima de

sua ironia um público seleto, aquele que frequenta museus e tem contato com a

informática. Esse target tem um repertório capaz de reconhecer a ironia, e tal

reconhecimento é ao mesmo tempo sua causa e origem. Por outro lado, nem todos

serão capazes de ignorar a complexidade deliberadamente montada para promover o

efeito irônico e podem enganar-se, ao não entender os artefatos como arte recém-

fabricada, uma simulação. Sendo assim, a polêmica que põe em questão o processo

de autenticidade provocado pela prática museográfica só alcança a alguns, o

restante é vítima de um trote. A ironia não é destacada o suficiente para, em geral,

ser percebida, caracterizando o que denominamos de simulação paródica radical.

A ironia radical não é apenas aplicada de forma situacional, como os exemplos

descritos anteriormente. A revista americana Esquire, embora tenha sido fundada no

Figura 22 - Imagem da B.C. Byte Series no SESC POMPÉIA / SP. Objetos e peças são expostos assim como nos museus.

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ano de 1933, não segue muito a linha tradicional, procura utilizar o ficcional no

jornalismo de forma criativa para contar os fatos. Em novembro de 1996, a Esquire

estampa na sua capa a foto de uma atriz e coloca a seguinte manchete: "Esqueça

Gwyneth...esqueça Mira...Aqui está a próxima garota do sonhos de Hollywood"

(SHERILL, 1996). Dentro, a matéria de seis páginas, com muitas fotos posadas ou de

paparazzi exibindo a agitada vida de celebridade da atriz. A revista conta sua história

de vida como os países em que morou após o pai divorciar-se da mãe. Escreve seus

casos românticos com atores e produtores famosos (David Schimmer e Quentin

Tarantino) e ainda revela sua agenda de filmes com diretores consagrados, como

Woody Allen e Bernado Bertolucci. Entre outros detalhes do seu profile não há

indicações da ficção. Assim como o jornal Not the Financial Times, a matéria de

Martha Sherrill na revista Esquire insere dentro de um discurso voltado para a não

ficção, um conteúdo fantasioso. A diferença entre os dois objetos de estudo é que o

primeiramente citado oferece indícios de que se trata de uma ironia.

Figura 23 - Capa da Revista Esquire, de novembro de 1996. Allegra Coleman, a suposta nova estrela do cinema, é interpretada por Ali

Larter, uma atriz e modelo ainda pouco conhecida na época. O texto não apresenta

qualquer pista de que se trata de ironia. Os poucos que conhecem bem o perfil e

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trabalho das celebridades envolvidas na matéria podem desconfiar. Caso contrário, o

efeito irônico passa despercebido. A ironia é suplantada pelo radicalismo do trote,

que se revela de forma indireta, com acontecimentos extratexto. Depois de

receberem ligações de agências de atores à procura de Coleman, o editor da revista

relatou que a matéria era ficcional e estava destinada a criticar diversas revistas que

se concentravam apenas em descrever a vida de celebridades. De acordo com

Edward Kosner, editor chefe, a matéria é " uma brilhante paródia de celebridades

inúteis sem cérebro que preenchem a mídia atualmente"31 (“a brilliant parody of the

brainless celebrity fluff that fills the media these days.”).

Diferente do Sensacionalista, a matéria de Sherrill teve apenas um objetivo,

que foi a crítica da própria mídia. Nas categorias funcionais dispostas por Hutcheon

(1995, p.45), seria "atacante" ou de "oposição", porque é corretiva e transgressora

ou mesmo auto-reflexisiva.

Depois do sucesso que Allegra fez, a atriz Ali Larte participou de filmes

importantes de Hollywood (House on Haunted Hill , American Outlaws , and Legally

Blonde) e séries de impacto na televisão (Heroes). A sua criadora, Martha Sherill,

deu continuidade à ironia radical e escreveu um livro em que Allegra é a

protagonista: My Last Movie Star (2003).

Na verdade, as bordas que separam os dois gêneros aqui descritos, a

simulação paródica irônica e a simulação paródica radical são tênues; por muitas

vezes, nem podem ser consideradas isoladas, por mias radical que seja, a simulação

também se manifesta irônica. Uma peça que possa parecer de fácil reconhecimento

irônico, torna-se radical como resultado do repertório limitado de quem vai

interpretar o determinado tema abordado. Talvez um bom exemplo seria a matéria

Senna Vive, redigida por Reginaldo Leme, em abril de 2012. O texto discorre sobre a

vida do piloto de automobilismo que é ídolo no Brasil desde a década de 1980. No

entanto, a biografia ignora sua morte em 1994 e prossegue como se ele ainda

estivesse vivo.

31 Trecho de matéria disponível em http://meredithmagstudies.wordpress.com/2010/02/10/notorious-magazines/. Acessado em: 08 jun. 2012.

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A matéria foi publicada na revista Alfa com doze páginas, sendo que as duas

primeiras compõem uma pintura32 em que se exibe o carro destroçado pelo acidente

que vitimou o piloto, mas, ao contrário do que aconteceu, Senna está em pé, ileso,

escapando com vida. No canto inferior direito, a clara pista do trabalho ficcional:

"Senna vive: E se ele saísse daquele carro sem um arranhão? ALFA pediu a

REGINALDO LEME que imaginasse Ayrton hoje. E o resultado é uma história que

adoraríamos ter visto" (LEME, 2012). Apesar desta primeira marcação, o

reconhecimento se dá por meio da popularidade do protagonista, por se tratar de

uma celebridade (mais 250 mil pessoas acompanharam seu velório). Informações da

carreira do piloto são imaginadas como se estivesse em vida: conquistou 100 poles,

70 vitórias e seis mundiais33. Aposentou-se em 1999, foi presidente da Federação de

Automobilismo Mundial, comprou uma equipe de Fórmula-1, constituiu família,

escreveu livros, etc. Alguns depoimentos na matéria foram realmente ditos pelo

piloto e outros, criados, como aquele no qual ele mesmo comenta o acidente de

1994, que na realidade o matou: "E pensar que passei por aquilo sem um mísero

arranhão". O texto continua detalhando momentos de campeonatos que Senna

conquistou apenas nessa narrativa ficcional. No ano em que citada matéria foi

publicada, celebraram-se os 18 anos da morte de Ayrton Senna. Eventos e

homenagens ocorreram não apenas no ambiente editorial. Senna vive é mais uma

paródia que homenageia. A ironia está na inclusão da ficção em um suporte

tradicionalmente restrito ao não ficcional. De fato, ao longo das 12 páginas, com

exceção das primeiras frases que contam da solicitação feita ao autor da matéria,

apenas uma nota de rodapé, em corpo de letra inferior a 10, diz: "As declarações de

Senna foram inspiradas em entrevistas reais". Apesar de existir essas duas

marcações, o enunciado esconde, como um trote, a ficção. Percebe-se a estratégia

de não manifestar ou destacar no longo texto, a ironia como numa simulação

paródica radical. Por outro lado, a popularidade do personagem, faz com que os

dados e informações produzidas, forjadas pelo enunciado, sejam contestadas. Desse

32 Alone, Oleg Konin, 1995. 33 Ayrton Senna conquistou 65 poles, 41 vitórias e 03 campeonatos.

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modo, a diferença entre simulação paródica irônica ou radical não se faz tão

claramente.

Vale ressaltar que a ironia, apesar de não ser contestadora quanto ao tema, é

transgressora quanto ao suporte jornalístico, pois oferece uma perspectiva ficcional.

A simulação radical como o trote são tipos que se aproximam e confundem-se

com a falsificação, discutida no primeiro capítulo. O projeto Assina: do texto ao

contexto, que fez parte da tese de doutorado de Cícero da Silva (2006), examina

aspectos do direito à propriedade, assinatura, autoria relacionado com a

autenticidade. O dispositivo do trabalho consiste na disseminação de homepages

ficctícias com conteúdo supostamente científico. Os textos de pessoas famosas como

Deleuze, são publicados com e sem seus nomes (assinaturas). O objetivo é atestar a

hipótese de que o "nome" se está tornando uma "marca" duvidosa na internet. O

projeto possui mais de 50 endereços de sites, com quase 20 institutos de pesquisa

científica fake (BEIGUELMAN, 2004). Os textos são gerados a esmo e

automaticamente traduzidos para o espanhol, com o objetivo de promover mais

credibilidade. Em algumas dessas "revistas" existe até a chancela ISSN, que, no

entanto, em nada se relaciona com o cadastro de obras, mas apenas o nome

fantasia: Interstellar Synchronism Setup Noise. Pessoas enviam textos para serem

publicados por conta dessa marca. Assim como Alan Sokal (1996), que forjou um

artigo publicado numa revista científica, Cícero não tem nenhuma intenção em

revelar sua ironia. Desse modo, não permite pistas ou marcações. Pelo contrário, seu

projeto consiste em provocar uma confusão por meio do engano para alertar o meio

científico do comportamento da citação inconsequente de publicações irresponsáveis

sem referência promovida frequentemente, pela internet. Cícero (apud BEIGUELMAN,

2004) confirma que “as pessoas não lêem as informações ou os detalhes. Ficam

imersas nesse mundo cheio de textos e mais textos e somente se apropriam daquilo

que ‘serve’ para elas em determinado momento. Não há mais pensamento ou

reflexão sobre o dito no escrito”.

E, assim, por ter como objetivo de enganar, o projeto de Cícero é um fake de

falsificação e não uma simulação paródica irônica.

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O fake foi classificado em dois extremos: falsificações e simulações. Esta

tipologia, produzida a partir de exemplos que vão da arqueologia até as artes visuais,

serão as bases para o estudo da produção fotográfica forjada, fabricada, ou seja, o

fake fotográfico.

3 O FAKE FOTOGRÁFICO

3.1 A autoridade realista da fotografia

Na Grécia antiga, Platão dizia (LICHTENSTEIN,2004, p.17) que a pintura está

afastada da verdade porque o pintor imita um objeto que já é, por sua vez, uma

imitação, uma imagem da ideia. Para o filósofo, a pintura era apenas uma imitação e

o seu realizador um impostor porque "imita a aparência das coisas, sem conhecer a

verdade delas e sem ter a ciência que as explica" (MACHADO, 2001, p.09). As

imagens seriam simulacros-fantasmas, representações vazias, falsas. "[...] a imitação

está longe da verdade e, se modela todos os objetos, é porque respeita apenas a

uma pequena parte de cada um, a qual, por seu lado, não passa de uma sombra" - A

república (Platão, 2000, p.5).

Por outro lado, anos depois, Aristóteles (2003, p.30), em defesa da imitação,

afirma que esta faz parte da natureza humana. O homem, por instinto, imita para

poder ter o prazer de obter novo conhecimento, distingue-se dos outros animais

também pela sua aptidão ao desenvolvimento da imitação. Desse modo, a

iconoclastia platônica é contrariada por Aristóteles ao assumir que o procedimento

criativo artístico é realizado de acordo com a mimese, que busca a reprodução do

real. Para o filósofo, os pintores têm como ofício recriar a realidade e sua imitação

não os distancia da natureza. Pelo contrário, ao imitar, a pintura torna-se

instrumento de conhecimento e prazer.

Outros filósofos (LICHTENSTEIN,2004, p.82) apontaram a pintura como

reprodução de algo verdadeiro ou real. Tertuliano, em sua obra Contra Hermógenes,

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afirma que "se existem figuras, elas provêm, necessariamente, de objetos reais e

não de objetos sem consistência[...]". Sócrates conclui que "uma pintura é a

representação do que vemos". Desse modo, inicia-se um processo de emprego de

valor realista à imagem, como reprodução da natureza: "pintura deve ser a imagem

do que existe ou do que pode existir", disse Vitrúvio (apud LICHTENSTEIN,2004,

p.83). Então, as imagens, desde o início da sua prática, carregam consigo a tarefa de

corresponder ao mundo natural. O artista, ao criar a imagem, também está imitando

os traços dos objetos ao seu redor, do seu contexto e espaço. O ato de imitar, no

sentido de reproduzir, está relacionado ao de criar. " A imitação deliberada, humana,

da natureza, implica sempre desejo de criação concomitante ao desejo de

reprodução (e que frequentemente o procede)" (AUMONT, 1990, p.199). Durante

sua história, o homem procurou, por meio das atividades artísticas, promover essa

reprodução e, ao mesmo tempo, desenvolver sua necessidade de expressão (BAZIN

apud AUMONT, 1990, p.200). Entretanto, em determinado momento, essa

necessidade foi suprimida pelo desejo de uma correspondência absoluta do objeto

representado.

No século XV, na Itália, os artistas voltaram-se mais para as doutrinas

clássicas, das ideias realistas dos filosóficos gregos. Foi nesse período que a imagem

tendem a definir-se como icônica, ou seja, mais semelhante possível da realidade. O

iconismo na pintura – isto é, o efeito de objetividade – depende de técnicas

coincidentes com um máximo de abstração (teorias geométricas, teorias de cores,

etc.). Quanto mais se buscava o efeito de verossimilhança, mais se recorria a um

artifício que requeresse forte adestramento técnico.

Nessa época, deu-se a prática da perspectiva artificialis, que consistia em um

sistema que visava a fiel reprodução do espaço visto pelo homem. O objetivo

científico, de certo modo, era suplantar a representação para que esse "analogon"

passasse pelo próprio real (MACHADO, 1984, p.27). A pintura formada pela

perspectiva continha linhas imaginárias, perpendiculares à tela, que convergiam a

um ponto central, coincidindo com o próprio observador. Desse modo, certifica-se o

homem como centro, característica do humanismo tão difundido no período.

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A necessidade humana da analogia absoluta começa a ser saciada com a

prática da perspectiva. O pintor, ao inserir a técnica, tem o propósito de tornar a

imagem mais próxima do real. No entanto, a perspectiva artificialis não passa de

uma ilusão especular, em que a realidade passa a ser compreendida mais ainda

através da imagem e sua profundidade.

Essa gênese automática desmantelou radicalmente a psicologia da imagem. A objetividade da fotografia lhe confere um poder de credibilidade ausente de toda obra pictórica. Sejam quais forem as objeções de nosso espírito crítico nós somos obrigados a acreditar na existência do objeto representado, efetivamente re-presentado, isto é, tornado presente no tempo e no espaço. (BAZIN apud MACHADO, 1984, p.36)

Com o surgimento da fotografia, a pintura, de certo modo, tornou-se livre do

fetiche do real. A atividade fotográfica promoveu uma objetividade que satisfez o

desejo da ilusão analógica. A semelhança do referente da imagem fotográfica e o

objeto retratado é próxima o suficiente para fazê-la mais crível que a pintura. Essa

similitude é tão eficaz que o ato fotográfico, particularmente, provoca efeitos

subjetivos diferenciados. Ao ter em mãos uma fotografia, o sujeito toma posse do

momento. De pronto, a primeira experiência tentadora da fotografia, em sua

popularização, foi o efeito de "embalsamar" pessoas, lugares, objetos e eventos. Por

meio das fotos, tudo ao redor pôde, de certa forma, ser objeto de consumo. Esta

impressão de imortalidade é resultante da eficácia de potencializar uma das

competências mais complexas e, ao mesmo tempo, comuns do ser humano, que é a

imaginação. Essencialmente, o homem é capaz de armazenar momentos por meio da

memorização e assim compor imagens em sua mente. A fotografia, por sua vez,

oferece esse resgate na folha de papel ou screen.

A semelhança da fotografia provoca uma ilusão de uma réplica exata, que

copia todas as propriedades do objeto retrato. Essa imitação criou um hábito de

analogia que está arraigado no comportamento social. Há muitos espectadores que

consideram qualquer imagem do cinema documental, por exemplo, como um

fragmento do real. Fotógrafos ainda defendem suas obras como registros da

realidade, sem mediação. E, assim, qualquer manifestação artística que não procura

reproduzir os traços dos elementos é considerada pela maioria dos observadores

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como deturpação (AUMONT, 1990). É evidente que a objetividade da fotografia faz

dela mais crível que a pintura, mas esse valor é herança, ao longo da história da

arte, do desejo da ilusão representativa ideal. A necessidade de analogia faz da

imagem fotográfica um perfeito instrumento para captar elementos da realidade

visível de acordo com uma perspectiva ingênua de que essa captura fosse possível, o

puro iconismo.

Uma fotografia é considerada realista quando produz informações pertinentes

do objeto retratado. O problema está no critério de que somente a mais semelhante

obra fornece tal pertinência. Por exemplo, uma tela cubista pode oferecer tantas

informações sobre pedofilia que uma foto. Desse modo, as aparências não indicam

necessariamente quão realista é a obra. A característica do realismo em uma

fotografia difere do aspecto realista que ela possa ter. O realismo fotográfico de que

tratamos aqui faz parte de uma ilusão de que a imagem possui as mesmas

expectativas do objeto registrado. A apreensão desse realismo se faz por meio da

"probabilidade de confundir a representação com o objeto representado"

(GOODMAN, 1976, p. 34).

Entretanto, o realismo deveria ser entendido não como analogia absoluta, mas

consoante com o potencial simbólico da imagem. Uma figura é realista quando

oferece informações pertinentes de acordo com o "sistema padrão" adotado em

determinado período. Uma representação realista, a grosso modo, é uma questão de

convenção.

Uma imagem que, sob um sistema (desconhecido) é uma representação

correta, mas altamente irrealista de um objeto pode, em outro sistema (o

padrão) ser uma representação realista, [...]. Só no caso de informações

precisas produzidas sob um sistema padrão, a imagem representará o

objeto corretamente e literalmente. (GOODMAN, 1976, p.38)

A produção de imagens buscou, durante muito tempo, por meio de avanços

tecnológicos do daguerreótipo até as câmeras de celulares, uma conexão ideal entre

signo e designado. Desde a antiguidade, teoricamente, a linha que distingue a

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imagem da coisa real é tênue. Povos primitivos consideravam a figura e seu objeto

como o mesmo elemento, apenas se manifestavam de formas diversas, mas

compartilhavam da mesma força de espírito. Talvez surgisse daí a crença nas

imagens religiosas.

A máquina fotográfica desde a sua invenção, levou adiante a ideia da

"captura", seja do real "tal como ele é", seja por meio de uma perspectiva. A

verdade é que a prática fotográfica com isso, se torna uma reprodução automática

da realidade, um aperfeiçoamento para o propósito de mímese tão cobiçado na

história da arte e para os que acreditam na analogia perfeita. E como é um recorte

"automático", significa dizer que é dispensada a intervenção crítica do homem, como

diria Bazin (1991). A foto seria um resultado natural, sem a intencionalidade ou

estilização pessoal do operador. E é essa ideologia que se sobressai, tendo em vista

que a pintura levou anos para adquirir sua legitimidade, enquanto a fotografia, desde

sua criação até os dias de hoje, não sofre com críticas severas.

De fato, está na tradição fotográfica o efeito de verdade, mesmo diante de

diferentes abordagens sobre o aparato, operador ou referente. Arlindo Machado

(1984) dá o exemplo de antropólogos que fazem uso da fotografia para registrar a

vida de certas comunidades, "crentes de que a câmera favorece uma abordagem do

primitivo muito mais imparcial e isenta". Na verdade, há diversas características

desse processo que já intervêm no comportamento de quem está diante das

câmeras. Essa polêmica é muito comum no cinema documental, mais precisamente

no denominado cinema direto. Dito como o formato imparcial, no documentário, ao

passo que o cinegrafista enquadra e dá um close em determinado movimento do

objeto, ele está escolhendo e julgando os mais importantes. O tipo de lente utilizado,

também é uma maneira de intromissão, por exemplo. O que acontece, tratando-se,

principalmente, de imagem documental34, é que se propaga a ideia de filmar "tal

como o objeto é". Contudo, deveria ser capturar "um aspecto do mundo tão normal

quanto possível, visto por um olho inocente" (GOODMAN apud AUMONT, 1990,

p.202).

34 A câmera como olho que registra o real é propaganda de muitos documentaristas. Um bom exemplo é nome do tradicional festival internacional de Documentários que ocorre no Brasil: "É tudo verdade".

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Faz-se necessário ao espectador deixar de lado essa postura ingênua,

distanciar-se, promover uma reflexão para entender a foto não como algo

automático, sem presença e intenção do operador. Na verdade, a fotografia é um

produto deliberadamente pensado, desde o tipo de lente até o filtro,

enquadramento, ângulo, tema, etc. Embora seja uma linguagem bastante comum,

tecnologicamente desenvolvida, a imagem fotográfica não é uma fatia da realidade.

Esta é e sempre será mediada. Com efeito o real é modificado, recriado, reciclado

não só nos meios fotográficos e cinematográficos. E a simulação paródica está

inserida nessa construção do real.

Por outro lado, há sempre a questão tão discutida do índice.

Enquanto uma pintura, mesmo quando se equipara aos padrões fotográficos de semelhança, nunca é mais do que manifestação de uma interpretação, uma foto nunca é menos do que o registro de uma emanação (ondas de luz refletidas pelos objetos) - um vestígio material do seu tema, de um modo que nenhuma pintura pode ser (SONTAG, 2004, p.170).

Apesar de o ato fotográfico ser mais difundido como reprodução da realidade,

também é defendido como um vestígio, uma marca, indicação de que aquilo

fotografado existe ou existiu. A teoria de Charles Sanders Peirce (DUBOIS, 1994)

aponta a fotografia como índice, ou seja, possui uma conexão física por conta do seu

processo, que compreende a exposição de luz sobre as chapas de sais de prata. De

certo modo, Peirce defende que um retrato, por exemplo, carrega consigo um pouco

da natureza. Vale abrir parêntese para os que não compartilham a ideia de que a

fotografia é o elemento mais indicial das artes visuais. O artista e teórico Joan

Fontcuberta (2001) afirma que a classificação de Peirce é excessiva e superficial,

tendo em vista que, através do procedimento de produção, pode-se indicar outros

fenômenos artísticos que se manifestam como índice, assim ou mais que a

fotografia. Ele dá o exemplo de um desenho qualquer feito com a fricção de um

objeto sujo de pó de grafite com papel - "O traço seria uma unidade linguística cuja

articulação nos permitirá criar estruturas de ordem muito mais complexa mas que

carecia de intenção de representação por si só." (FONTCUBERTA, 2001, p.80). O que

Fontcuberta ignora é que, mesmo tendo o processo quase a mesma intensidade de

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conexão física com a natureza, a fotografia fornece traços mais semelhantes com o

objeto imitado que a xilografia.

Por outro lado, há outros teóricos (Dubois, Metz) que afirmam ser a foto um

índice além do vínculo químico. Defendem que ela possui um a continuidade física e

indica a existência atemporal do seu referente - a fotografia carrega o referente e

também o contexto histórico do período em que foi retratada. Assim como a pintura,

a prática da fotografia oferece dados do comportamento de uma cultura de outra

época. Vários estudos de moda são feitos por meio da análise fotográfica do

passado.

Roland Barthes escreveu um livro, A câmara clara (1984), em que busca a

"essência" da fotografia por meio da análise de vários retratos do seu tempo ou

mesmo do passado. Barthes destaca a presença de um referente que impregna a

fotografia. Explica que os raios luminosos rebatidos do objeto são revelados na

película. “A foto é literalmente uma emanação do referente" (BARTHES, 1980,p.121).

Acrescenta que a essência da fotografia está no noema "isso foi", que toda foto

possui um referente e é a prova de que este, realmente, existiu.

[...] na fotografia jamais posso negar que a coisa esteve lá. Há dupla posição conjunta: de realidade e de passado. E já que essa coerção, só existe para ela, devemos tê-la, por redução, como a própria essência, o noema da Fotografia. (BARTHES, 1980,p.115).

Barthes, como diria Dubois (1994, p.49), cai na armadilha tentadora do culto

da referência pela referência, não admitindo um referente metafórico, que muitas

vezes não foi nem precisa ser fotografado para compor uma fotografia. Com tantos

avanços tecnológicos, a tal representação do referente, verificada pela caracterização

do índice por meio da conexão química, é polemizada com a criação dessa realidade.

As simulações estão mais presentes nas manifestações midiáticas a cada dia. Assim,

a questão do referente, como algo que existiu, "esteve lá", pode ser questionada.

Martin Lefebvre, atento às possíveis críticas à fotografia como índice, discorre

sobre o equívoco de certas abordagens sobre a semiótica peirceana que descarta o

valor indicial da produção digital de imagens. Lefebvre (2007) contesta, definindo

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dois tipos de índices: índice direto e índice indireto.35 O índice direto manifesta-se, ao

passo que o objeto se mostra como “causa eficiente” do signo. Por exemplo: a

dilatação do mercúrio por força do calor exercido sobre eles. No índice indireto, a

causa é denominada como “formal”. O objeto é apresentado indiretamente através

da “causa eficiente”. Um exemplo no cinema, encontra-se no trabalho produzido pelo

canal de televisão Discovery Channel chamado Vôo 1907 (Alan Tomlinson,2007), a

respeito de um desastre aéreo ocorrido no Brasil. Uma das cenas do filme foi

construída virtualmente através da modelagem em 3d. A sequência é resultado da

mediação do operador digital, o qual reconstituiu o cenário (como um pintor a uma

pintura). Dessa forma, o objeto (a cena) manifesta-se através de uma “causa

eficiente”, ou seja, indiretamente. A dúvida quanto ao caráter de índice dessas

imagens é provida de sua existência como fato real. Lefebvre, baseado na teoria de

Peirce, explica que a fotografia, por si só, implica uma direta ou genuína relação

existencial com o objeto original.

Goodman (1976) também defende o referente por meio de uma simples

distinção em que denomina as imagens inexistentes no mundo real como fictions;

por exemplo, a figura de um unicórnio. As imagens fictions possuem referente, mas

o processo não envolve a representação diante da presença desse referente. Sabe-se

que o unicórnio é um cavalo com único chifre. Então, mesmo sem ter o referente

para ser representado em sua presença, a imagem do animal pode ser realizada por

meio de referentes secundários. Em outro caso, "uma figura pode denotar um

homem para representá-lo, mas não precisa denotar nada para ser representação de

um homem" (GOODMAN, 1976, p.24). Desse modo, um homem que nunca existiu,

por meio de traços já convencionados como os de um humano do sexo masculino,

representa um homem. Sendo assim, uma escultura de bailarina pode ser apenas

uma obra que exibe uma bailarina, indefinida, não específica como personagem, mas

tem como referente a figura de mulheres bailarinas existentes. Ainda assim, dentro

da possibilidade da pintura, pode-se dizer que o cubismo seria um forma de

35 Charles Peirce distinguiu dois tipos de índices: designators e reagents. Ambos correspondem, respectivamente, a índice indireto e índice direto de acordo com Lefevbre. Tal distinção de Peirce pode ser encontrada em Collected Papers of Charles Sanders Peirce, 8. 369, n.23 (Cambridge: Harvard University Press, 1931-1935)

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metaforizar a imagem. De certo modo (ignorando as possibilidades de manipulação),

pode até ser que não haja “fotografia sem que um referente pose diante da câmera

para refletir para a lente os raios de luz que incidem sobre ele" (MACHADO, 1984,

p.158), e, como presumia Barthes, "a presença do objeto fotografado nunca é

metafórica" (MACHADO, 1984, p.158). Entretanto, com os avanços tecnológicos, as

simulações fotográficas oferecem as mesmas expectativas da pintura, como de uma

paisagem ou monstro, ou seja, referentes não reais no mundo natural, originados do

imaginário. Há casos interessantes de manipulação fotográfica que têm como

referente um evento que não aconteceu, mas com pessoas (referentes secundários)

reais. Como é o caso da propaganda da marca de roupas Benetton.

Depois de onze anos sem fazer grandes campanhas, a empresa Benetton

optou por uma estratégia pouco comum nos meios publicitários, mas recorrente da

marca, que é a polêmica. Para chamar atenção do público mais jovem, criou

situações (simulações) em que líderes mundiais se beijam na boca: Barack Obama

beija Hugo Chávez e o presidente chinês Hu Jintao; o premiê israelense Binyamin

Netanyahu beija o líder palestino Mahmoud Abbas; o papa Bento XVI beija o egípicio

Ahmed el Tayeb. Desconsiderando todo o choque causado com beijos de

autoridades, algumas inimigas, observa-se que a manipulação teve seu uso como

uma forma de propaganda. O fato, como referente, não existiu, mas as pessoas da

narrativa ficcional estão inseridas na realidade. A chamada do anúncio, distribuído

primeiramente nas redes sociais, era : "Unhate", que significa "não ódio". Ao exibir

líderes aos beijos, a mensagem foi bem clara e a simulação, eficaz.

Figura 24 - À esquerda imagem exibindo o líder americano, Barack Obama, beijando o venezuelano, Hugo Chávez. À direita, a primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel, beija Nicolas Sarkozy, da França.

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3.2 A ficção no fotojornalismo

No início da prática fotográfica, devido à pouca sensibilidade à luz das placas

de prata iodada, o objeto fotografado deveria ficar imóvel por muito tempo. Então,

para fotografar era necessário todo um preparo do modelo, uma verdadeira

fabricação de um cenário. Foi desse modo que surgiu o hábito da pose. Todo

material fotográfico era resultado de um trabalho anterior de encenação. A partir do

desenvolvimento de lentes mais rápidas, a espontaneidade e registro de inesperado

tornou-se possível. Entretanto, a pose continua presente na prática fotográfica, com

exceção do fotojornalismo, que evita a encenação como parte do contrato de

verdade que propõe. Mesmo evitando a ficção da pose, a fotografia nunca poderá

fornecer uma realidade sem mediação, intacta da intervenção. Para acionar o

disparador, há um sujeito que toma decisões, interferindo a partir do conteúdo até a

estética. Nenhuma câmera, com exceção daquelas de tamanho reduzido (como

canetas de uso investigativo), deixará de ser indiscreta. O fotografado, ao perceber a

presença do aparato, logo muda, de alguma forma, o seu comportamento.

O jornalismo, como prática de relato dos fatos, imparcial, tem a sua

objetividade ainda mais acentuada. Partindo da assertiva de que o propósito da

fotografia jornalística é informar através de imagens, sobre acontecimentos reais, há

de se considerar qualquer artifício utilizado para alterar essa realidade uma forma de

manipulação da informação? Porque, de acordo com a crença que o grande público

deposita nas imagens fotográficas, qualquer nuance nesse sistema de codificação de

crédulo aponta para algo forjado. A fabricação de eventos no jornal não é

profissionalmente aceita. A imprensa, seja ela impressa ou virtual, não permite (ou

busca não permitir) qualquer prática que fuja da retratação objetiva situacional. A

espontaneidade do imediatismo de um fato é a principal característica

fotojornalística. Desse modo, ao contrário do passado, a pose como qualquer

encenação é, portanto, considerada por muitos ficção.

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A foto de Joe Rosenthal, vencedora do Pulitzer Prize, que retrata a vitória americana

em uma batalha, na ilha japonesa de Iwo Jima (Figura 24), em 1945, é celebrada em

livros, revistas, jornais e até monumentos.

Figura 25 - À esquerda, foto Raising the Flag on Iwo Jima, de Rosenthal, 1945. À direita, Mother Cat stops stops traffic, de Harry Warnecke, 1927. Um sargento, minutos antes da famosa foto, tirou fotografias do mesmo

grupo de soldados levantando uma bandeira menor. O que se conta é que Rosenthal

estava a subir no pico quando os soldados decidiram tirar abaixo a pequena bandeira

e colocar uma maior para a fotografia (BRUGIONI, 1999). No entanto, são muitos os

que criticam, suspeitando de uma encenação, perdendo seu potencial valor

documental. Na verdade, a foto de Rosenthal é um registro histórico que simboliza o

patriotismo, a união, a vitória por meio das imagens desses soldados. Por mais

encenada que fosse, a fotografia consegue transmitir ao espectador, na medida do

possível, características e perspectivas do cenário que se formou em determinado

lugar e tempo. O problema está no potencial documental da imagem, que, como em

qualquer documento, é exigido para certificar a verdade do fato. Assim, repousa

uma questão: a encenação faz da fotografia uma ficção por total? De forma radical,

pode-se dizer que a fotografia não tem valor histórico, porque o operador negociou

uma pose, bem como um diretor de cinema consegue uma entrevista para

documentário?

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Grande número de fotos pode ter sido posado e, mesmo assim, não perde sua

importância. A foto Mother Cat stops traffic (Figura 24), de 1927, por exemplo. Uma

gatinha atravessava a avenida quando um guarda de trânsito para os carros para o

animal passar com sua cria. No momento, o fotógrafo Harry Warnecke conseguiu

fotografar. Mas insatisfeito com seu primeiro disparo, solicitou a todos cooperarem

com nova fotografia. E assim foi feito, percebam que as pessoas estão paradas ao

lado esquerdo. Prova de que o acontecido não foi tão inesperado como a foto quer

mostrar, mas a qualidade não se perde por isso.

A pose, por ser encenada, ensaiada e refeita, está mais próxima do processo

de produção ficcional que os considerados não-ficcionais, como o fotojornalismo e o

cinema documentário. A constatação da produção de cenário numa fotojornalística

pode ser interpretada até como manipulação.

No ano de 2000, o jornal Meio Norte, impresso veiculado no estado do Piauí,

publicou uma foto (nas páginas "policiais") de presos numa delegacia de polícia. Um

dos detentos aciona a justiça, alegando que foi forçado a posar para fotografia, e

pediu indenização por danos morais. Claro que é dever do jornalismo fornecer

informações de interesse público, como os crimes praticados pelo sujeito. Entretanto,

os delitos, em si, não foram o principal da questão, mas sim se a foto foi encenada

ou não. Observa-se (Figura 25) que os prisioneiros estão encurralados numa parede,

dentro da delegacia, sem indícios de movimento e ainda há alguns agachados ao

chão, de forma a comprovar a pose como em foto de time de futebol antes de iniciar

a partida. A decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí considerou que houve

encenação e, portanto, coação para que a fotografia fosse realizada, compondo a

violação do direito civil da imagem. Apesar do sujeito ter realmente cometido delitos

naquela madrugada, afirma que participou da foto por intimidação da força policial e,

desse modo,vai receber do jornal a quantia corrigida de 30 salários mínimos.

Em decorrência disto, verifico que não houve espontaneidade para retratação do fato jornalístico, já que a imagem não foi obtida no momento do flagrante em cenário público, motivo pelo qual houve manipulação da imagem pelo veículo de comunicação (PIAUÍ,TJ, Ap.2009.0001.0031166-8, Relator: Des. Francisco Antônio Paes Landim Filho, 2011).

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Figura 26 - Fotografia da publicação do Jornal Meio Norte de 01 de Junho de 2000, objeto da ação judicial. No jornalismo, a objetividade, a imparcialidade ditam a forma de registro dos

fatos para o bem público. O fotógrafo não mentiu ao posicionar os presos. A pose

não tornou o relato uma ficção. Os detentos cometeram crimes e foram pegos pela

polícia. Por outro lado, justamente a pose denuncia o abuso das autoridades e com o

aval da equipe jornalística.

Decorridos 180 anos da sua popularização, a fotografia ainda possui a

credibilidade que lhe é natural pelo efeito da analogia. Apesar de estarmos hoje um

pouco mais treinados a suspeitar desse "reflexo" do real. Ainda é necessário que as

pessoas compreendam o processo de criação para assim poder em desconfiar dessa

característica factual que o elemento fotográfico carrega.

Na época da foto de Warnecke, a fotografia ainda estava no início da sua

popularização. Desse modo, os espectadores eram pouco "alfabetizados" com a

linguagem fotográfica para perceber em a encenação da foto da gata levando seu

filhote. Dificilmente tinham conjunto de informações colaterais suficiente para

duvidar daquilo. A foto em um suporte documental como o jornalismo, numa era

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digital, apresenta as possibilidades de criação, de forja, fabricação de cenários bem

maiores e exige ainda mais das pessoas uma educação36 de leitura visual.

3.3 A intervenção fotográfica nos regimes ditatoriais No início da fotografia, quando não era possível a impressão automática em

papel da imagem capturada, pintores eram os que fotografavam. Não existia prática

de fotografia para fotografia. As fotos eram mapas, auxílio para uma pintura realista

em busca da "ilusão espetacular". Dessa forma, misturou-se um aparato objetivo,

como a câmera, com prática de possibilidades mais abstratas que é a pintura. Como

resultado, tendo em vista o caráter de crédulo da fotografia, as primeiras

manipulações, consideradas fotomontagens, foram surgindo.

Em 1857, Oscar Gustav Rejlander destacou-se nesse meio com a alegórica

foto The two ways fo life feita com 30 negativos sobrepostos. Um ano depois, Henry

Peach utilizou 5 negativos para compor Fading Away (Figura 26). As junções das

imagens foram perfeitamente camufladas. Ambas as fotos se aproximam da pintura

pela estética clássica (Romana/Grega e Vitoriana) que adotam. E devido à difundida

e ingênua perspectiva da captura automática da realidade, esses processos foram,

de acordo com o seu desenvolvimento, rotulados como manipulações porque alteram

o resultado da operação fotográfica. Mas na verdade, são formas criativas e

alternativas de produção no mesmo suporte.

36 Um bom exemplo de que as pessoas devem compreender melhor os códigos da imagem, assim como o seu alfabeto, são as capas da revista Veja, que ,vez ou outra, promove manipulação de fotos para fornecer uma capa de acordo com um tema. Seria quase uma caricatura fotográfica.

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Figura 27 - Henry Peach , Fading Away, 1958. Esses formatos distintos de produção, denominados como manipulações ou

até falsificações, devido à prática da alteração, podem ser classificados (BRUGIONI,

1999, p.20) como: fotomontagens, colagem e composição. As fotomontagens são

fotografias que, rearranjadas, formam um novo trabalho fotográfico. Como em

Fading Away. Por outro lado, na colagem, pedaços de elementos fotográficos (ou

não) são adicionados ou subtraídos e formam uma nova imagem. Alguns estão mais

para uma mistura de pintura e desenho com fotografia. Ainda no século XIX, a

fotografia, por vezes, como um atrativo para sua popularização, oferecia

características lúdicas, como desenhos de arabescos, personagens fantasiosos. Um

bom exemplo de colagem é As fadas de Cottingley (Figura 27), uma fotografia tirada

por duas jovens (Elsie Wright and Frances Griffiths) e que exibe uma delas

"interagindo" com fadas. A imagem, na época, enganou a muitos no Reino Unido.

Figura 28 - As fadas de Cottingley,1917.

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As alterações no processo fotográfico surgiram de acordo com o

desenvolvimento da técnica. Na verdade, um ano após o surgimento da invenção,

houve a primeira foto composição. Tipo que certamente se denomina falsificação se

levar a cabo a suposta fidelidade ao real da fotografia. O francês Hippolyte Bayard,

independentemente de Daguerre, descobriu um processo viável de fotografia.

Quando seus primeiros esforços não foram reconhecidos, ele fez um autorretrato,

supostamente do seu suicídio como protesto pela falta de reconhecimento do público

e autoridades do governo. A foto é conhecida como Self Portrait as a Drowned Man

("Homem afogado") (Figura 28).

Figura 29 - Self Portrait as a Drowned Man, 1840. A composição seria um nível mais baixo de manipulação, por não haver

recortes. O trabalho não sofre alterações plásticas, mas trata-se de uma foto

montada, encenada, posicionada, com modelos; portanto, considerada amiúde,

ficcional. Deve-se entender que tais alterações são classificadas como manipulações,

devido à crença difundida de absoluta verdade no resultado fotográfico. Todavia, de

fato, são processos criativos que até estimularam a popularização e o comércio da

prática fotográfica. Desse modo, não se deve pensar que fogem da realidade, tendo

em vista que esta é mediada por fenômenos como a própria fotografia.

Retomando a Idade Média, no Império Romano, aqueles considerados,

politicamente, traidores, tinham as suas imagens apagadas das esculturas e

monumentos. Essa punição era denominada de damnatio memoriae. Em outras

palavras, eles eram eliminados da memória histórica e social. De igual forma, os

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regimes autoritários como os dos bolcheviques, Mao Tse Tung, Hitler faziam com

seus oponentes. Ao longo da história há exemplos, recentemente revelados, de

manipulações fotográficas reproduzidas como propaganda de seus regimes.

A política da "cultura da personalidade" fazia do líder uma celebridade, e,

dessa forma, não havia o interesse de colocá-lo junto a outras pessoas com menos

respaldo ou com pensamentos doutrinários opostos. Assim, as imagens eram

alteradas de acordo com os objetivos políticos. Companheiros, em outro tempo ao se

tornarem desafetos tinham suas imagens apagadas e até perderam a vida.

Na década de 1920, o Partido Comunista Russo, com o propósito de fazer

propaganda de seus ideais, fez uso da imagem de Lenin em fachadas, selos, cartões

postais e pôsteres. Embora o próprio Lenin (JAUBERT, 1989) não estimulasse essa

idolatria, motivo pelo qual, a partir de sua morte, a exploração da sua imagem foi

bem maior, transformando-o em mito. Entretanto, a figura estava sendo cultivada

como o único grande líder da revolução. Esse processo de sacralização não permitia

a exibição de Lenin com outros menos importantes ou que perderam o interesse

pelos ideais do partido. Como é o caso desta foto (Figura 29), realizada durante o

Segundo Congresso Internacional Comunista, em julho de 1920. Vários partidários e

participantes do evento se juntam a Lenin para o registro. Ao longo dos anos, esta

imagem foi modificada várias vezes.

Figura 30 - Foto original de Viktor Bulla, 1920, em Petrograd.

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Primeiramente, a foto (Figura 30) limitou-se a Lenin e Gorky (escritor),

porque, alguns dos demais, como a irmã de Lenin, foram assassinados durante o

período stalinista. Posteriormente, foram feitos retoques. Percebe-se (Figura 31) a

intervenção dos degraus cobertos de tinta, os sapatos tirados da grama e pintados,

o dedo da mão, que estava à amostra, é escondido no bolso.

Leon Trotsky, um dos fundadores do Exército Vermelho, após a morte de

Lenin se tornou o principal adversário de Stalin no comando do Partido Comunista da

União Soviética e, consequentemente, decidiu por exílio. No decorrer dos anos, teve

sua imagem retirada de qualquer foto que acompanhasse Lenin. No exemplo

destacado (Figura 32), Lenin discursa, motivando as tropas do Exército Vermelho

para combater os soldados poloneses. A foto, ícone da cultura revolucionária

(JAUBERT, 1989), permanece ainda em pôsteres, capas de livros, selos, estátuas,

mosaicos, etc. Dois disparos foram feitos (segundos os separam) e um detalhe os

difere: as imagens de Trotsky e de outro homem foram retiradas da fotografia.

A técnica de manipulação fotográfica, nos estúdios de antigamente, era

simples e assemelhava-se às utilizadas nas restaurações das telas. Normalmente, são

feitos recortes, colagens, retoques com grafite e tintas. Novas imagens são

processadas para compor as emendas, remendos e para sobrepor alguma figura

indesejada. Esse trabalho está mais para colagem, porque adiciona ou subtrai

Figura 31- A fotografia foi recortada por volta de 1930. Foi exibida desta forma no Grand Palais, Paris, 1970.

Figura 32 - Fotografia retocada e exposta nos trabalhos de Maxim Gorky, Moscou, 1979.

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elementos, mas não rearranja fotos para compor em nova imagem como uma

montagem fotográfica: fotomontagem.

Outro exemplo radical de manipulação fotográfica utilizada para fins políticos

ocorreu em 1922, durante um encontro de Stalin com Lenin. Em 1921, Lenin estava

doente e foi procurar repouso na casa de sua irmã. Stalin, então, foi fazer-lhe uma

visita. Na fotografia original (Figura 33), os dois mostram-se sentados, posados de

forma semelhante. Anos depois, sob o regime de Stalin, outra versão surgiu. Lenin

aparece quase deitado na cadeira como se estivesse moribundo, e Stalin ao seu lado,

de forma descontraída, para sugerir a ideia de superioridade pela sua forma física

saudável. Esse contraste de forte vs frágil denota uma relação de pai e filho. E,

assim, considerando que Lenin já era um grande mito na Rússia, Stalin passa a

propor sua figura como sucessora de todas as realizações.

Ao contrário do que mostra a foto, Lenin era contra Stalin se tornar o

Secretário-Geral: "Camarada Stalin, se tornando o Secretário-Geral, terá concentrado

em suas mãos grande poder que acredito não será utilizado com sabedoria"

(JAUBERT, 1989).

Figura 33 - 05 de maio, Moscou, Lenin discursa para tropas do exército vermelho. Duas fotografias foram disparadas consecutivamente, o que certifica a manipulação.

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Após se tornar Secretário-Geral, Stalin perseguia os que, de alguma forma,

manifestavam oposição às suas atitudes ou ideias, mesmo aqueles que outrora

estavam ao seu lado. O tirano é acusado de mandar matar até os mais próximos,

como sua mulher e irmão. Essas pessoas eram eliminadas e esquecidas da vida

política e da história, porque também havia perseguição às imagens dos

considerados traidores.

O recente documentário de Gabrielle Pfeiffer, Facing the dead (2005), relata

como esses inimigos do Estado sofreram o damnatio memoriae: famílias eram

obrigadas a cortar fotos em que suas imagens apareciam; antigos livros de escola,

"reformulados" de modo a não exibir figuras de inimigos, como Trotsky. Um caso

interessante foi o de Guelia Markizova. Em 1930, a garota de apenas 6 anos de idade

ofereceu um buquê de flores e recebeu presentes de Stalin, durante solenidade. O

momento foi registrado (Figura 35) por um fotógrafo. Essa imagem correu o país

como símbolo da benevolência do líder e ditador.

Algum tempo depois, o pai da menina foi preso e morto com mais alguns

líderes do partido. A mãe, enviada a um campo de concentração na Turquia,

cometeu suicídio. Guelia cresceu sem nenhuma foto dos pais, mas tinha a imagem

de Stalin abraçando-a. Como na Roma antiga, os infiéis deveriam ser esquecidos,

Figura 34 - Foto de Maria Ulianova, irmã de Lenin, no ano de 1992, em Gorky.

Figura 35- Foto composição de 1938.

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sua memória tinha que ser apagada. Então, quem possuísse fotos dessas pessoas

também era considerado traidor e poderia morrer.

Figura 36 - 27 de janeiro de 1936, Guelia com Stalin em Moscou.

A prática do culto à personalidade, como forma de preservar o líder, foi um

modelo logo difundido entre os regimes totalitários do mundo inteiro. Fotografias

eram manipuladas em vários governos de ditadores, comprovando o Fake na

história.

Hitler ordenava censura a todo material fotográfico que o exibiam em

momentos de descontração (Figura 36), mas também tinha suas fotografias

modificadas de acordo com o interesse político e como forma de evitar

constrangimentos; assim, alterar qualquer aspecto na construção de um mito. No

ano de 1937, Hitler é retratado em um jardim de Berlim acompanhado da atriz e

cineasta oficial do regime, Leni Riefenstahl, do ministro da propaganda, Joseph

Goebbels, entre outros. Anos depois foi encontrada uma cópia da fotografia em que

Goebbels tinha sido apagado (Figura 37). O motivo (JAUBERT, 1989), acredita-se, foi

o possível envolvimento do ministro com a atriz, em anos anteriores considerados,

na imprensa alemã, a noiva do Fuhrer.

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Figura 37 - Foto datada de 1925

Figura 38 - Berlim, 1937 - Versões alterada e original, da esquerda para direita.

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Na Itália, Mussolini, antes mesmo de Stalin ou Hitler, fundou um instituto para

produzir filmes e fotografias a favor do seu regime totalitário. A propaganda, além de

utilizar o cinema, fazia uso dos artifícios de pós-produção do estúdio fotográfico para

remodelar imagens, com o objetivo de fazê-las despertar mais interesse do público

ou mascarar qualquer evento ou pessoa indesejada. Como o caso de Carlos Franqui,

em Cuba, um dos principais ativistas da revolução da década de 1960. Mas rompeu

com o partido porque se manifestou contra a ocupação da Tchecoslováquia por parte

da USSR. Ao contrário, Fidel Castro apoiou a invasão, e logo Franqui tornou-se um

dos maiores críticos de Castro ao longo dos anos, resultando, obviamente, na

censura à exposição de sua imagem, principalmente durante a sua participação na

revolução ao lado de Fidel.

Figura 39 - À esquerda Franqui aparece na fotografia de 1962, em Cuba. À direita, Franqui foi apagado numa montagem de 1973. Após governar a Républica da China por quase cinquenta anos, Mao Tse-tung,

possivelmente, foi o líder que mais fez uso da fotografia e das possibilidades desta

como forma de incentivo à idolatria de sua imagem. O culto da personalidade

realizou-se através de reprodução maciça da figura de Mao, a isolação de sua

imagem, a remoção dos rivais, a reposição de sua figura em cenas atuais e até a

invenção de situações ou cenários que preenchem livros, telas, enormes painéis dos

museus chineses. A intervenção fora tão praticada na China, durante o governo de

Mao, que, anos após, as fotografias continuam em constante mutação. Ao contrário

da antiga União Soviética, na China os renegados e eliminados das fotos, por vezes,

têm sua imagem recolocada. A atividade de iconografia chinesa foi tão difundida que

perdeu o controle e podem-se encontrar inúmeras versões de uma mesma imagem.

Aparentemente, o fetiche pela objetividade fotográfica, a suposta capacidade de

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absorver a realidade foram aspectos ignorados pelos chineses. Tendo em vista que a

fotografia não perdia o seu prestígio, porque nela se inseria a imagem de um líder.

Liu Shaoqi, um membro do Comitê Central, em 1959 sucedeu a presidência de

Mao. No entanto, em 1968, foi deposto e durante a Revolução Chinesa tornou-se

uma das principais vítimas da censura e tortura do regime. Teve sua imagem (Figura

39) apagada, como na foto abaixo, por meio de um retoque grosseiro.

Figura 40 - Esquerda, foto publicada na revista La chine, 1977. Direita, foto com Shaoqi ao fundo, publicada na revista La chine, 1981. Entre vários exemplos ,um grupo de seguidores das ideias de Mao foi

considerado traidor do regime posterior à morte do líder. Esse grupo denominou-se

Camarilha dos Quatro (Figura 40). Quatro políticos e teóricos, incluindo-se a ex-

mulher de Mao, tiveram suas imagens eliminadas dos livros, pôsteres e quadros. Mao

Tse-tung faleceu em setembro de 1976, e houve uma grande cerimônia em sua

homenagem. As fotos oficiais distribuídas à imprensa do mundo inteiro foram

retocadas com o objetivo de apagar a presença da "gangue dos quatro". Os quatro

tiveram sua imagem retirada como uma forma de demonstração de controle do

regime atual.

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Figura 41 - Foto registra cerimônia em memória a Mao. Na imagem acima, os Camarilha dos Quatro fazem parte dos líderes no palco. Na versão, logo abaixo, suas imagens são retiradas.

Figura 42 - Fotografia de Wu Yinxiam, Yan'an, 1942. A imagem da direita foi publicada em 1976.

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Figura 43 - Painel de Dong Wiwen de 1955.

Verifica-se que o fetichismo pela realidade conferida à fotografia torna-a

instrumento de manipulação. E, na era digital com o contínuo avanço técnico,

computadores sofisticados e programas como o photoshop, qualquer jornalista ou

fotógrafo, em segundos, pode mudar o sacralizado referente da foto. Os softwares

não só recortam ou retocam, eles criam elementos baseados na realidade. Coletam

informações de textura, cores, sombras de seres naturais e oferecem ferramentas

que permitem a recriação. Essas possibilidades são difundidas com a mesma rapidez

em que são desenvolvidas. Com a internet, que penetra em todos os domínios da

vida social e transforma-os, surge uma nova configuração - a sociedade em rede - e,

dessa forma, as mudanças e nuances nos processos de criação vão-se propagando

muito rápido. Os profissionais estão aptos cada vez mais a intervenções no material

fotografado e, ao mesmo tempo, mais dependentes dessa mesma tecnologia digital.

A prática de manipulação na imprensa ou mesmo na política não ficou no passado.

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Dois casos interessantes do uso da intervenção deliberada na imprensa chamou a

atenção. No ano de 2010, durante encontro para tratar do acordo de paz entre

israelitas e palestinos, foi fotografado (Figura 43) um grupo de autoridades

caminhando sobre um tapete vermelho, liderados pelo então presidente dos Estados

Unidos, Barack Obama. Porém, o jornal egípcio Al-Ahram decidiu reposicionar a

ordem dos chefes de governo, especificamente um que estava no final da fila. Na

foto original, o presidente do Egito, Hosni Mubarak, está ao fundo, mas na

publicação do Al-Ahram ele é colocado à frente de todos, como se fosse o líder mais

importante dos que estavam ali. Esse fato ocorreu antes de Mubarak renunciar ao

cargo depois de 30 anos, por pressões da população. Na verdade, assim como na

antiga União Soviética, o Egito, nos últimos 50 anos, não usufrui de uma democracia.

O regime é autoritário e, por conseguinte, utiliza o controle da mídia para promover

o seu chefe de Estado.

Figura 44 - Foto original acima e foto alterada pelo jornal egípcio abaixo, setembro de 2010.

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Outro caso interessante aconteceu em 2011 (Figura 44), nos Estados Unidos,

quando o presidente americano Barack Obama, a secretária de Estado, Hilary

Clinton, e outros assessores foram fotografados enquanto assistiam, na íntegra, à

famosa operação que resultou no assassinato de Osama Bin Laden. Entretanto, um

jornal ortodoxo judeu, chamado Hasidic, publicou a foto sem a imagem de Clinton e

de outra mulher que se encontrava ao fundo. Como a foto foi divulgada amplamente

pela importância do fato, a manipulação virou manchete nos principais jornais e

portais do mundo. O jornal, em sua defesa, fez um pronunciamento que dizia que

por conta de suas "leis de modéstia"37, não era permitido publicar fotos de

mulheres.

Figura 45 - À esquerda foto manipulada. À direita, imagem divulgada pelo Governo americano. O fato é que, assim como o desenvolvimento da técnica fotográfica, a sua

popularização, a sua evolução para era digital, a manipulação é praticada

paralelamente e também apresenta seu avanço e características específicas de

manifestação como a simulação paródica irônica.

Ainda hoje, nos domínios da vida cotidiana e no âmbito estreito da criação artística, a imagem aparece como uma tecnologia para a verdade. A câmera testemunha o que aconteceu, o filme fotossensível pretende ser um suporte

37 Matéria do portal Foxnews.com Disponível em:<http://www.foxnews.com/politics/2011/05/09/hassidic-newspaper-edits-clinton-iconic-situation-room-photo/> Acesso 12 de jun. 2012.

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de provas. Mas isso é só aparência, é uma convenção que por força de ser aceito sem reservas termina na nossa consciência. A fotografia serve como o beijo de Judas: um carinho falso vendido por trinta moedas. (FONTCUBERTA, 1997, p.17)38

3.4 Simulação fotográfica paródica irônica

Como afirmado anteriormente, toda simulação, por ter sua produção orientada

pelo dispositivo de um outro objeto, refere-se a um terceiro e caracteriza o

fenômeno da copresença, principal atributo da intertextualidade. Essa retomada de

outro texto ou autor se dá por meio de pistas, marcações criadas pelo enunciador

para que o enunciatário as identifique e processe os mecanismos da enunciação. O

enunciatário não é passivo, ele é convocado para construir a enunciação de acordo

com o seu repertório e torna-se uma espécie de coenunciador. O sujeito, ao ler o

intertexto, divide com o outro a competência de construção do sentido no discurso.

“Ler uma variante intertextual é compartilhar o prazer de desvendar o outro no um,

esse outro que se mostra, mas não se circunscreve, não se marca; é seguir pistas

dadas pelo texto para, numa negociação enunciativa sutil,[...]" (DISCINI, 2003 p.

227-228).

A paródia, como canto paralelo, possui referências a outros textos. A atividade

paródica é um tipo de intertextualidade que constrói um outro sentido para a mesma

"história" do texto base. Essa contrariedade simula que aceita o texto parodiado,

mas cria polêmica para provocar uma crítica ou comicidade. É por meio da ironia que

a paródia é avaliadora e contesta o texto referencial. O fake Not the Financial Times

representa um modelo de simulação paródica irônica porque simula ao se apropriar

de códigos, parodia ao apontar para um jornal específico (Financial Times) e é

irônico ao passo que insere a ficção num suporte originalmente criado para exibir

fatos, não ficção.

38 Tradução livre para o português.

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Assim como o jornal, a fotografia oferece possibilidades criativas para

promover a ironia reflexiva ou mesmo o humor. O fotógrafo David Lachapelle é um

dos artistas que utilizam a alusão para promover a ironia paródica dos valores entre

os textos. Em alguns casos, a ironia manifesta-se através do escárnio porque procura

distorcer o significado do texto parodiado. Na verdade, é uma estratégia crítica a

valores sociais promovidos pela obra base. As diferenças são acentuadas para que a

manobra seja apreendida.

Em 2006, Lachapelle criou Heaven to hell: paródia de uma das esculturas mais

famosas de Michelangelo, Piéta, que exibe Jesus morto no colo da virgem Maria. A

imagem produzida por Lachapelle explora a figura de Courtney Love, polêmica

cantora que ganhou fama por ser a viúva de um dos mais celebrados músicos de

rock, Kurt Cobain. A foto (Figura 45) tráz Courtney no papel de "Maria" e Kurt como

"Jesus", na escultura, paródia de Pietá. Cobain morreu nos anos 90, vítima do uso de

drogas, quando Courtney ganhou mais ainda destaque na mídia. Lachapelle procura

a polêmica ao comparar a figura religiosamente sagrada com a de um músico

conturbado e viciado em drogas. Essa oposição é, exatamente, a estratégia que

Lachapelle utiliza para criticar a idolatria à pop music ou à sacralização de Jesus

Cristo. Todavia, quando Lachapelle coloca, na mesma posição, a viúva39 chorando

pelo marido e a mãe (também sagrada pela religião) velando seu filho, ele

"canoniza" Courtney e lhe tira o pecado. Por outro lado, o autor promove reflexão

quanto à iconografia religiosa que sacraliza seu personagem e a idolatria

sensacionalista da mídia. O texto provoca a ideia de que Maria e Jesus são

celebridades assim como Courtney e Kurt. Os valores são invertidos ou convertidos

para polemizar.

39 No contexto midiático e social, muitos podem considerar que a viúva se aproveita da fama do ex-marido para poder se tornar celebridade.

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Em 2010, Lachapelle volta (Figura 46) a criar uma simulação paródica irônica,

relacionando celebridades a figuras religiosas. O mesmo texto-base, Pietá, é usado

para promover e relativizar o valor do que é sagrado. Um ano após a morte de

Michael Jackson, o cantor é retratado morto no colo de um Jesus com roupas, como

uma espécie de Cristo atual, com aparência de mendigo. Diferente da obra anterior,

Lachapelle não traz uma mãe para segurar o filho, Michael Jackson. Mas o próprio

Jesus o segura, lamentando a sua morte. Neste caso, especificamente, a intenção

não é de questionar ícones religiosos, mas de sacralizar, assim como Courtney, a

imagem da celebridade em questão. Michael Jackson foi muito censurado pela

imprensa por conta de acusações de pedofilia. Lachapelle quis demonstrar que ele foi

acusado injustamente assim como Jesus, no passado.

Figura 46 - Heaven to hell, 2006, David Lachapelle.

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O enunciatário é convidado a buscar, no seu repertório, a obra de

Michelangelo e, ao mesmo tempo, considerar Michel Jackson tão sagrado quanto

Jesus, já que este lhe está dando o colo. O enunciatário torna-se ator da enunciação,

mas de forma ativa, como co-produtor. O enunciador tem como estratégia a

reorganização dos elementos de um contexto alheio ao texto-base, para promover a

reflexão moral junto ao enunciatário. Em entrevista, David Lachapelle revela sua

intenção de preservar ou até sacralizar a figura do cantor americano na simulação:

Eu acredito que Michael em um sentido é um mártir americano. Mártires são perseguidos e Michael foi perseguido. Michael era inocente e mártires são inocentes. Se você vai no YouTube e assistir entrevistas com Michael, você não vê uma rachadura na fachada. Há essa pureza e essa inocência que continuou. (FITZSIMONS, 2010)

Figura 47 - Imagem da exibição American Jesus, Lachapelle, 2010.

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Figura 48 - A ultima ceia na coletânea Jesus is my homeboy, 2003, David Lachapelle

Figura 49 - Clara referência a série de retratos de Marilyn Moroe, por Andy Warhol.

Figura 50 - Deluge , David Lachapelle, 2006 que faz referência ao "O dilúvio" de Michelangelo na Capela Sistina.

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A simulação paródica irônica é também uma forma criativa de manifestação

porque se diferencia ao utilizar outros textos e inverte, ironicamente, os seus valores

para propor uma mensagem, seja de crítica, reflexão ou, ainda, humor. Lachapelle

utiliza-se de outras obras, além dessas citadas para trazer o enunciatário a

construção da enunciação. A apropriação de outro texto serve de convite ao

enunciatário para resgatar esta outra obra e seguir os aspectos difusos de destaque

que causam o estranhamento, despertando um novo significado para a obra, e, mais

uma vez, a paródia renova a arte. Nesse sentindo, Lachapelle revigora Pietá com

isotopias figurativas decorrentes de temáticas da mídia do presente.

3.5 Simulação fotográfica paródica radical

A tipologia fake, formulada neste trabalho, divide-a em dois polos:

falsificações e simulações. Foram abordadas, neste capítulo, as manipulações

fotográficas que, de acordo com crença demasiada na objetividade fotográfica,

podem ser denominadas como falsificações. Também foi discutido o outro lado da

classificação, que é a simulação (copresença) fotográfica paródica irônica. Desse

modo, resta-nos analisar a manifestação "arriscada" do efeito da ironia paródica na

fotografia, que são as simulações fotográficas paródicas radicais.

Foi discutido (item 2.3.2) que, para existir a ironia em um texto, faz-se

necessário seu reconhecimento. No entanto, percebe-se uma forma de expressão

simulativa que, mesmo visando ao humor, crítica, protesto, subversão ou qualquer

outra função irônica, limita a compreensão da polifonia aos que possuem uma

experiência colateral mais profunda do tema ou assunto. De fato, objetos como o

projeto Assina: do texto ao contexto (Cícero da Silva, 2006) ou a matéria de Allegra

Coleman , na revista Esquire, são ironias mais camufladas e assumem o risco de não

serem entendidas como tal; portanto, denominadas radicais.

A fotografia, tendo em vista a tradicional fé como espelho do real, faz-se um

campo fértil para a manipulação (como descrito nos regimes militares), para a

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simulação irônica (Lachapelle, por exemplo) e, consequentemente, para o protesto

ou autorreflexão mais mascarada como a simulação paródica radical .

No ano de 2003, a pesquisadora Dora Bahia publicou a dissertação titulada

Marcelo do Campo 1969-1975. De acordo com a autora (BAHIA apud ITAU

CULTURAL, 2006, p.02) a "pesquisa recupera a obra do artista Marcelo do Campo

(1951-?) elaborada entre 1969 e 1975". Através do seu trabalho, Dora Bahia

questiona alguns pontos fundamentais da arte. Qual a importância da produção para

a interpretação? Quais os limites de uma obra efêmera ou documentação? Até que

ponto a existência do objeto interfere na concretização da obra de arte? E, para isso,

criou um personagem, esse Marcelo do Campo, uma homenagem a Marcel

Duchamp, que, segunda ela, questionava o valor de autor que a obra carrega.

Então, a autora descreve o seu trabalho de investigação sobre Marcelo, sem

apontá-lo como aquilo que de fato é, um personagem fictício. Afirma que tudo

começou quando ela, pesquisando o projeto de Vilanova Artigas para o prédio da

FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo), no campus da USP, encontrou

desenhos de Marcelo do Campo, que eram verdadeiros devaneios que rompiam com

qualquer norma da arquitetura. Interessada por esse tipo de trabalho, de artistas

que testavam as fronteiras entre arte e arquitetura, Dora Bahia seguiu em frente e

produziu o texto sobre a vida e obra desse desconhecido artista.

Ela, assim, discorre sobre a biografia dele, descreve sua trajetória: local de

nascimento; colégio; a vida como estudante de arte em Genebra;

Figura 51 - Cenário produzido na Galeria Luisa Strina, em 2001, mas que foi exibida como sendo material registrado de 26 de outubro de 1976.

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o engajamento no protesto político por meio da arte, ainda jovem; o ingresso na FAU

da USP; a participação em um movimento terrorista; até o seu abandono das

manifestações artísticas para dedicar-se ao surfe e à criação de abelhas. O estudo,

que também se tornou exposição, descreve tais acontecimentos exibindo fotos das

obras desenvolvidas pelo artista.Tais obras, na verdade, são produções da década de

2000, coordenada por Dora Bahia.

Marcelo do Campo, era ativista político que se engajava e, portanto, em 1971

integrou o Movimento Terrorista Andy Warhol (MTAW), formado por estudantes da

FAU e de outras faculdades. E assim, é exibida uma fotografia como se fosse da

década de 70, em preto e branco, com pessoas encapuzadas e armas como martelo,

serra elétrica, foice, enxadas, num lugar que parece um esconderijo, para que seja

entendido como uma quadrilha revolucionária. Uma produção voltada para criar um

cenário que dê mais legitimidade ao enunciado do texto-verbal.

Em determinado período de sua "vida", Marcelo do Campo volta-se contra a

alienação da sociedade brasileira a respeito da atual (regime militar) realidade

política do país e cria uma série de intervenções. Numa delas, denominada

Acontecimento 2 (Figura 51), com uma arma de fogo, o artista atira contra um disco

de LP da trilha sonora da Copa do Mundo de Futebol de 1970. Dora expõe

detalhadamente o material produzido como se fossem raros achados, em estado de

degradação ou apenas em parte.

O trabalho de Dora Longo Bahia sobre Marcelo do Campo, divide-se em dois

momentos: um conto ficcional acerca de um artista e seu trabalho desenvolvido

entre os anos de 1969 e 1975 e outro sobre como essa criação pode dar conta dos

aspectos da arte contemporânea questionados por ela. Nessa primeira fase, não há

Figura 52 - Foto encenada em 2006, São Paulo.

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marcações claras para que o enunciador entenda a simulação proposta pela autora.

O livreto que acompanha a exposição demonstra todo o processo investigativo sem

revelar que o personagem é fictício, com exceção de suas últimas páginas, que são

direcionadas a tratar das problemáticas propostas pela pesquisadora.

Durante toda a ficção, raramente é dada uma pista de que poderia tratar-se

de simulação: quando Marcelo se apropria de um vaso (mictório) para propor uma

de suas ações artísticas. Um observador dotado de repertório suficiente sobre a

história da arte fará a devida correspondência com a obra "L.H.O.O.Q.", de Marcel

Duchamp (1919). E, de certo modo, traduzindo literalmente o nome "Marcel

Duchamp", chegando a Marcelo do Campo, o que poderia promover leve suspeita da

ficcionalidade do projeto. No entanto, como essas marcas são frágeis, mascaradas,

elas limitam o número daqueles que poderiam compreender (antes de chegar ao

final) a exposição como simulação, tornando-a uma ironia do tipo radical, porque

arrisca sua manifestação como tal.

Dora Bahia questiona-se a respeito dos limites de uma obra efêmera e a sua

documentação. Ela afirma que a realidade mediada pela fotografia resulta em outra

realidade. Que não há como analisar ao certo todas as qualidades de um fenômeno

Figura 53- Encenado e fotografado em São Paulo, em 2003. Mas pretende passar-se por uma fotografia de 1972.

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quando ele é investigado via instrumento, como a câmera. Ocorre sempre a

intervenção do instrumento e/ou do operador. Desse modo, a simulação de Marcelo

do Campo vem trazer à tona a problemática criada pelo tradicional dogma de

registro do real que a fotografia cultivou pela sua objetividade. A ficção de Marcelo

do Campo, inserida numa linguagem de registro documental, pôde comprovar

àqueles que não perceberam a ironia de início, que podem ser facilmente enganados

com manipulações midiáticas. Na verdade, como defende a semiótica greimasiana, o

que leva a verdade depende das estratégias de linguagem defendidas pelo

enunciador. Deve haver um pacto, contrato de veridicção (GREIMAS, 2008), entre

enunciador e enunciatário para que haja o compartilhamento do “crer-verdadeiro”.

Dora Bahia foi muito eficaz na sua produção quando inseriu na narrativa ficcional

características de um contexto real. A biografia de Marcelo do Campo pode ser

entendida como possibilidade pois, naquele momento histórico, vários artistas

seguiram caminhos semelhantes: o de corromper barreiras interdisciplinares de

utilizar a arte como arma contra o regime em questão, contrária a inércia da

população brasileira em geral, naquele período. Então, tais características, baseadas

talvez em outros artistas reais, fazem da trajetória de Marcelo do Campo algo

genuíno e, portanto, de fácil teor crível. Ainda mais, utilizando uma linguagem

científica embasada numa dissertação de mestrado, aliado a um vasto material que

não aparenta ser fabricado ou encenado. A simulação fotográfica paródica radica,l

além de provocar reflexão quanto à realidade fotográfica, também é uma forma

criativa de produção, tendo em vista que Marcelo do Campo, ironicamente, é um

sujeito ambíguo, porque sua obra faz parte do passado dos anos 70 e do recente

presente dos anos 2000. Talvez, os outros questionamentos que Bahia fez quanto à

importância da produção para a interpretação e sobre a que ponto a existência do

objeto interfere na concretização da obra de arte foram respondidos na medida em

que percebe-se que a produção recente, imitando obras do passado, está

diretamente ligada à interpretação do observador se o resultado é atual ou não. E o

objeto não precisa existir para que haja uma arte concreta. Marcelo do Campo é real

até que a autora revele que é "uma criação imaginária" (BAHIA apud ITAU

CULTURAL, 2006) e questionadora, com a sua ironia.

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De forma gradativa, há trabalhos que se arriscam mais ainda em ocultar as

características que, provavelmente, denunciem a ficção e, por conseguinte, a ironia,

fazendo-os deles ainda mais radicais. O fotógrafo e teórico Joan Fontcuberta vem

desenvolvendo trabalhos que rompem a forte ligação da fotografia com o objeto,

procurando questionar sempre o falso realismo. A prática fotográfica, como evidência

do mundo material, é o seu principal alvo. No livro El beso de Judas (1997), de sua

autoria, Fontcuberta comenta o dispositivo do fotógrafo Keith Cottingham, que

produziu uma série de retratados fictícios de jovens que personificam o ideal da

beleza masculina:

O falso realismo em seu trabalho funciona como um espelho que aponta não a nós mesmos, mas para as nossas invenções, e que nos dá primeiro, um fascínio e depois, náuseas. Rompe-se o cordão umbilical entre imagem e objeto. O mito modernista do espelho termina escasso. (FONTCUBERTA, 1997, p.50)

3.5.1 Fontcuberta e as simulações

Em seu trabalho, Fontcuberta promove simulações camufladas para que a

ironia promova essa crítica à fotografia como registro documental da realidade. Seus

projetos, ao longo dos anos, vão além e não se resumem apenas a fotografias, mas

também a esculturas, objetos científicos, textos e desenhos que servem para

legitimar a sua ficção. Assim como Raphaelian, com B.C. Byte Series, Fontcuberta

expõe suas obras inseridas em uma linguagem acadêmica para impressionar o

público em geral ou mesmo seleto, como o dos cientistas.

Desde o início dos anos 80, Fontcuberta vem realizando experiências que

antecipam as variadas formas de manipulação digital, comum com o avanço

tecnológico contínuo, cada vez mais, esgotando o valor indicial impregnado na

cultura da fotografia. Entre a vasta produção do artista, foram selecionados seis

trabalhos que tratam essencialmente da credibilidade fotográfica como um processo

de aprendizado por meio da ironia. Em outras palavras, os projetos visam, por meio

da ironia, questionar a fotografia como captura da realidade e, dessa forma, aguçar

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o senso crítico dos espectadores. Dividiu-se a análise40 em dois grupos definidos

como: 1) Contranatureza - Herbarium e Fauna Secreta: exposições fotográficas que,

além de ironizar o efeito audiovisual, oferecem apropriações da linguagem científica,

especificamente de cada tema, com desenhos, mapas, esculturas e esquemas que

tratam da criação artificial de plantas e animais, respectivamente. 2) Avatar -

Sirenas, Sputnik, Miracles & Co. e Deconstructing Osama: com tema e linguagem

mais informais, porém ainda expondo objetos, fotos e textos no formato de museu

com o objetivo de convencer mais pessoas. Vale ressaltar um ponto que os

diferencia do grupo anterior, que é a participação do autor em frente à câmera,

representando personagens ou apenas a si mesmo.

Karl Blossfeldt publicou, em seu livro Urformen der Kunst (1928), um processo

bastante rigoroso de documentação botânica, procurando demonstrar a origem da

inspiração humana para a criação de elementos arquitetônicos art nouveau. No ano

de 1984, Fontcuberta criou Herbarium, uma exposição (também catálogo) que

seguiu exatamente o rumo contrário, ao exibir, através de detalhes rigorosos e

sistemáticos, por diversas fotos e desenhos de plantas falsas, "construídas", assim

como uma arte decorativa. "Blossfeldt provava que o imaginário provinha da

natureza, enquanto Fontcuberta parte efetivamente de imagens, quer dizer, do

imaginário do seu predecessor." (CHEVRIER, 1998, p.57). De certa forma, o que era

uma fonte de inspiração para Blossfeldt é um resultado para Fontcuberta. O artista

espanhol repensou o trabalho de Blossfeldt e retratou plantas falsas. São esculturas

construídas, basicamente, com restos industriais, ossos, raízes e membros de

animais. Foram fabricadas, ou seja, forjadas para servir como material fotográfico.

Apesar de não serem seres vivos, possuem vida na película a ponto de se fazerem

crer.

40 A análise não segue ordem cronológica, mas uma orientação temática que vai da exploração vegetal, animal, animal/homem, pessoal biográfica. A ordem cronológica dos trabalhos especificamente selecionados é: Herbarium (1984), Fauna (1987), Sputnik (1997), Sirens (2000), Miracles & Co. (2002), Deconstructing Osama (2007).

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Em Herbarium, Fontcuberta assume o papel de um criador genético de espécies da

natureza, de certa forma antecipando-se ao crescente investimento da ciência na

manipulação genética em alimentos e animais41. De acordo com Flusser, em

Herbarium pode parecer que "o conceito de 'informação' coincidiu tanto no seu

significado biológico como na foto. Fontcuberta parece capaz de lidar com

informação biológica por procedimentos fotográficos" (FLUSSER, 1998).

Como estratégia para dar mais credibilidade às fotos, Fontcuberta insere na

exibição textos (ficcionais) que explicam como ele descobriu tamanha coleção de

plantas "desconhecidas". O autor conta42 que em um vale, no norte de Honduras,

denominado de Lancetilla, foi cultivado um exemplar de uma rara planta. A Flor-

cadáver, como afirma Fontcuberta, tem esse nome porque possui um cheiro muito

forte decorrente da carne putreficada e outros excrementos. Além de rara, ela é

única, porque é a maior do mundo e tem um processo de polinização peculiar. Desse

modo, Fontcuberta interessou-se pelo objeto, já que estava escrevendo um livro em

homenagem a Blossfedt e decidiu investigar e fotografar a planta, durante sua

floração, que é um fenômeno raro. Porém, Fontcuberta não conseguiu chegar a

tempo, mas como consolo foi levado a conhecer essas outras fascinantes espécimes

como a Flor Miguera (Figura 53), que, de acordo com Fontcuberta, trata-se de uma

planta em formato de bacia que os franceses chamavam de "herbe du diable". O

nome é devido ao forte odor que exala e vem da frase "Osti le Diable", do Príncipe

da Rochegalant, quando entrou em contato com uma empregada que usou o cheiro

da planta para afastar soldados. A estratégia, além de exibir as fotos das plantas,

recheia a série com textos que atestem a existência dessas espécies. O uso de

nomes reais, como Lancetilla, é deliberadamente manobra para tornar mais crível o

objeto.

41 Cerca de 13 anos depois é anunciada a clonagem do primeiro mamífero. 42 Fotos e textos de todos os projetos estão disponíveis em www.fontcuberta.com.

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Figura 54 - Foto da planta Flor Miguera, exposta como verdadeira em Herbarium.

Figura 55 - Instalação no Musée-Château, Annecy, maio de 2008.

Figura 56 - Braohypoda frustrata

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Figura 57 - Astrophythu dicotiledoneus

Por meio de um vasto material sistematicamente detalhado e apresentado

(Figura 54) de forma científica, a ironia de Fontcuberta toma corpo ao passo que o

espectador começa a processar as poucas marcações. O trabalho é desenvolvido

dentro de uma estrutura com nomes em latim e negrito, fotos incolores, resgatando

uma linguagem de catálogo. Outra forma de manipulação de Fontcuberta foi inserir

na exposição desenhos e fotografias de plantas realizadas por cientistas como Karl

Blossfeldt. O espectador observa a série de imagens e compreende a exibição como

um estudo geral de botânica, com uma coleta minuciosa de materiais de diversos

estudiosos como Fontcuberta, sem perceber de imediato que trata-se de uma

simulação paródica radical.

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Figura 58 - Lavandula angustifolia, produção de Fontcuberta. O conjunto de ornamentos de Herbarium resulta em um questionamento

sobre, mais uma vez, a ontologia da imagem fotográfica. A apresentação de uma

série de aberrações, no fim das contas, tenta provocar a desconfiança sobre a

perspectiva dos objetos como documento. Há alguns exemplos que ultrapassam a

descrição aplicada por meio do modelo científico como a Lavandula angustifolia

(Figura 57), que é um arranjo de folhas de repolho com uma cabeça de tartaruga ao

meio. Esse destaque alegórico pode resultar na marca mais evidente da ironia

praticada. O espectador, ao percorrer a exibição, aos poucos, vai percebendo que

tudo o que apreciou até então como um relato documental pode ser uma ficção e, a

partir dai compreende a ironia avaliadora: a realidade que as fotografias sugere pode

fazer parte de um mundo fantasioso. Por meio do efeito irônico, Joan Fontcuberta

pretende produzir uma crítica que se opõe ao que a fotografia permite acreditar.

Essa crítica utiliza exatamente os códigos da linguagem fotográfica para promover a

reflexão através da experiência reveladora do efeito simulativo. A problemática

envolve, então, o discurso fotográfico com a produção de registro documental

histórico.

Herbarium quer propor um discurso alternativo de negar qualquer realismo, confiança acrítica, desacreditar e negar a possibilidade da objetividade [...] ironicamente faz com que o espectador, envenene suas certezas e estimula a liberação dos anticorpos correspondentes. (FONTCUBERTA, 1998, p. 54)

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Por outro lado, ao contrapor o mimetismo fotográfico, o artista protege as

manifestações não objetivas, ficcionais e, principalmente, abstratas. Ao longo dos

anos, a fotografia auxiliou no desenvolvimento científico, como na botânica,

oferecendo artifícios visuais que o olho não permite observar. Assim, detalhes da

flora foram sendo revelados ao passo do avanço tecnológico do aparato. E,

paralelamente ao registro fotográfico, os modelos de catálogo, necessários para um

estudo como o da botânica, também foram aprimorados. Portanto, Fontcuberta

reinvidica e convoca a fotografia para promover a "liberdade" do abstrato.

Herbarium propõe um exercício de jogo e liberdade: a capacidade de ultrapassar os limites da realidade e voltar a um estágio primitivo, em que é possível redesenhar nossa conexão emocional, estética e política com o mundo. (FONTCUBERTA, 1998, p. 55)

As fotografias de Joan Fontcuberta, por tentarem abandonar a cientificidade

do retrato objetivo, situam-se em um formato mais "puro" (FLUSSER, 1998), em que

o fotógrafo se aproxima do trabalho do pintor. O projeto Herbarium mostra-se real,

científico, preso a uma nomenclatura, supondo um retrato sério, documental da flora

de Honduras. Todavia, revela-se uma paródia simulativa, livre da ciência, propondo

uma ironia crítica aos meios científicos e de registro.

Em 1987, o biologista Louis Bec juntou-se a Vilém Flusser para realizar o

projeto Vampyroteuthis infernalis (FLUSSER;BEC, 2011), que é uma ficção

organizada numa linguagem científica. Nesse texto fantasioso, são ilustrados vários

tipos de uma mesma raça de Vampyroteuthis infernalis, que seria um molusco de 30

centímetros que supostamente viveria nas profundezas do oceano. Enquanto Flusser

aborda questões filosóficas, políticas e até religiosas, Bec descreve as variadas

formas do animal. Assim como em Herbarium, o imaginário é inserido num domínio

da ciência, fazendo o conteúdo subverter o formato. As gravuras são organizadas

como um catálogo descritivo de classificação científica: taxonomia, prodótica,

zootipia, taxiopsie, espécie. O desenho (Figura 58) é detalhado com legendas de

cada parte dos membros do animal. E, na mesma página, há a descrição completa

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da espécie, além de um suposto selo do Institut Scientifique de Recherche

Paranaturalist, como uma forma de legitimar a ilustração fantasiosa de Bec.

Coincidentemente, no mesmo ano (1987), Joan Fontcuberta e o fotógrafo

Pere Formiguera produziram outro trabalho que teve como foco principal na

discussão entre do limite entre a realidade e a ficção. Eles propugnavam, assim

como em Herbarium, a crítica da "convicção fotográfica"(FONTCUBERTA, 1998).

Primeiramente, os artistas levaram quatro anos para criar o personagem do

professor Peter Ameisenhaufen (Figura 59). De acordo com a narrativa de sua

biografia, que era exibida em todas as instalações do projeto, Ameisenhaufen nasceu

em Munique, no ano de 1895, teve pai caçador e mãe irlandesa e, aos 10 anos, foi

morar na África, quando começou interessar-se pela zoologia. "Quando morriam

alguns daqueles animaizinhos - conta sua irmã - Peter os dissecava e estudava seu

interior"(ARAMATA apud FONTCUBERTA, 1998, p.189). Peter formou-se pela

Figura 59 - Ilustração de uma das supostas espécies, por Louis Bec.

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Universidade Ludwig Maximilian, de Munique, e tornou-se professor na mesma

instituição. Entre os anos de 1933 e 1950, dedicou-se a viagens ao redor do mundo,

catalogando animais menos conhecidos ou em busca daqueles que fazem parte do

imaginário coletivo, como uma cobra com patas e macacos que voam. Até ficar

doente, e decidiu morar em Glasgow, Escócia, com a esposa. Desde então, passou a

organizar todo o material de animais fantásticos coletado em suas expedições. Até

que em 1955, após excursão solitária, foi dado como desaparecido. Algum tempo

depois, sua casa sofreu incêndio, o que fez perder alguma uma parte do seu

material, mas foi depois reconstruída, permitindo o contato de Fontcuberta com o

estudo que restou. Toda a história é descrita com detalhes. Os acontecimentos,

assim como em um filme, relacionam-se de forma a fazer sentido com o conflito

principal, que é a revelação desse material supostamente esquecido pela ciência.

E para comprovar a suposta existência do acervo de animais peculiares, foi

produzido uma variedade de material. São simulações como: fotografias pessoais e

de animais, mapas, radiografia, textos, vídeos, áudios, instrumentos de laboratório,

correspondências, fichas zoológicas e animais dessecados. Cada objeto é reproduzido

de forma a convencer sobre a existência de Ameisenhaufen. O conjunto é organizado

como uma paródia elaborada dos museus e exposições de centros de ciência natural.

Ao modo de B.C. Byte Series, Fauna Secreta é uma produção que se apropria das

características da investigação científica para expor a ficção. O rigor de detalhes e a

variedade do material são ferramentas utilizadas para compor a estratégia do

Figura 60 - Fotografia produzida por Fontcuberta e Formiguera do Prof. Ameisenhaufen, que, na verdade, é um modelo argentino, amigo dos artistas.

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contrato de veridicção (GREIMAS, 2008), ou seja, para construir uma verdade. A

descrição recorre às formalidades científicas, como Bec fez em Vampyroteuthis

infernalis. Para cada criatura é fornecida a informação de taxonomia, a forma de

captura, morfologia e hábitos, como em um zoológico. Uma das legendas diz:

"Solenoglypha Polipodida. Morfologia: uma mistura entre um réptil e um pássaro que não voa. Hábitos: extremamente agressiva e venenosa. Caça para alimentar-se, mas também por prazer. Quando se depara com a presa, se ergue completamente, imóvel e emite um som agudo paralisando o inimigo. Diferente de outros répteis, Solenoglypha Polipodida não descansa após comer. Ao contrário, ela prossegue na caça até defecar."(PANICHI, 2005)

As fotografias, em sua maioria, não são manipulações como a fotomontagem.

Desse modo, para produzirem o seu referente, que são animais inusitados, os

artistas fizeram uso da contribuição de um profissional em taxidermia. Membros de

animais dissecados eram colados a outros de forma a compor uma nova criatura. A

partir daí, são fotografados e o resultado sofre mais alguns efeitos estéticos para que

pareçam envelhecidos ou que exibam marcas de uso contínuo. Como é o caso da

Solenoglypha Polipodida (Figura 61), uma serpente com patas de ave; seria uma

mistura de réptil com pássaro. Com a fotografia do animal in loco, é exibida uma

radiografia (Figura 60), com anotações e desenhos (à mão) do Prof. Ameisenhaufen

com as características do animal.

Figura 61 - Foto da "radiografia"da serpente com patas.

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Figura 63 - Desenho que apresenta detalhes anatômicos da criatura.

Figura 62 - Solenoglypha Polipodida

Figura 64 - Prof. Ameisenhaufen com o Centaurus Neandertalensis.

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Figura 65 - Descrição e esboço do Thresquelonia Atis.

Figura 66 - Prof. Ameisenhaufen com sua irmã Elke, 1907.

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Figura 67 - Instalação no Museu-Châteu Annecy, 2008.

A fim de provocar uma discussão sobre os conceitos de ciência e arte,

questionar as fontes de conhecimento como a investigação científica e retomar a

crítica à fotografia como registro do real, Fontcuberta e Formiguera produziram uma

simulação paródica radical por meio da criação de um personagem; de vários

elementos para compor uma cenário habitual das ciências naturais e comprovar a

realidade criada. Desse modo, os indícios absorvidos pelos espectadores são

contrariados pela decepção irônica, estimulando a crítica.

No conjunto fabricado de animais para servir de evidências da pesquisa do

Prof. Ameisenhaufen, percebe-se a divisão em três grupos: criaturas produzidas a

partir de seres mitológicos ou do imaginário; criaturas resultantes de deformações de

animais existentes; seres compostos da junção de animais.

O primeiro grupo de animais, decorrentes estas de manifestações folclóricas,

mitos ou até seres da produção fictícia popular, resulta nas marcas mais evidentes

da ironia. "A morfologia de alguns de nossas criaturas foram tiradas dos modelos de

figuras mitológicas clássicas ou extraordinárias quimeras" - afirma Joan Fontcuberta

(1998, p.110). Um dos animais estudados por Ameisenhaufen foi o El gran guardiá

del Bé Total (Figura 67), que é um unicórnio, personagem mitológico tão retratado

no Renascimento. Pelo fato de ser facilmente reconhecido como um personagem

ficcional, traz dúvidas com relação à veracidade das peças apresentadas. Outros dois

animais do material revelado fazem referência a personagens do imaginário coletivo,

que já tiveram a sua imagem demasiadamente popularizada como criação

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fantasiosa: Cercophitecus Icarocornu (Figura 68) e Aerofants (Figura 69). Trata-se o

primeiro de um macaco com chifre de unicórnio e asas com penas. A sua figura é

semelhante, portanto alusiva, aos "Macacos Alados" que fazem parte da novela "O

maravilhoso mágico de Oz", tão conhecida mundialmente. O Aerofants, incrível

elefante voador, inicia o processo de suspeita da ironia. Todavia, também há um

personagem popular, o Dumbo, um elefante que voa. A diferença está nas asas. O

Dumbo, criação de Walt Disney, voa devido às suas enormes orelhas. A verdade é

que a semelhança faz com que o espectador, mesmo inserido num ambiente de

museu, com todos os materiais científicos expostos, consiga fazer a relação com a

ficção, que logo poderá perceber a ironia proposta pela paródia simulativa. Outra

pista da simulação consiste no toque de humor como a descrição do Pirafagus

Catalanae, que é uma espécie de dragão, mas com características únicas. Ele pode

cozinhar sua comida com seu fogo, inala e expira as chamas, emite gases gástricos

que inflamam em contato com a atmosfera e, às vezes, até perde o controle das

mesmas: "[...] em situações extremas, ele perde todo o controle de seu fogo oral,

corre para o rio ou lago mais próximo submerge completamente para abafar as

chamas " (FONTCUBERTA, 1998, p.125). Essas marcações são limitadas se

comparadas ao grande cenário com fotos, vídeos, registros sonoros, documentos

montados para comprovarem a veracidade do estudo. Desse modo, a simulação é

radical, porque não permite uma apreensão da ironia logo de início43.

43 Joan Fontcuberta, em entrevista (disponível em:< http://www.youtube.com/watch?v=TGQ-00vkXzA>) diz que seu trabalho funciona como um despertador que em dado momento dispara e o espectador percebe o truque. No entanto, há o risco de não percebê-lo. Um exemplo, que ele mesmo conta, é o livro que produziu para Fauna Secreta. Trata-se de uma produção que "imita os livros acadêmicos, os livros de edições universitárias, deliberadamente composto de um papel barato, desenho pobre, baixa qualidade de impressão...Estes livros em nenhum momento explicam que se trata de um objeto artístico e se apresenta dentro de um âmbito biólogico em qualquer caso científico. Muitos desses livros foram parar em universidades e centros culturais. E me causa grande satisfação quando os vejo não numa área de arte ou fotografia, mas numa área de ciências, morfologia."

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Figura 68 - El gran guardiá del Bé Total

Figura 69 - À esquerda, a forja de um macaco com chifres, o Cercophitecus Icarocornu. À direita, representação (Anton Loeb) dos "Macacos Alados" da obra "O maravilhoso mágico de Oz", que se assemelham aos macacos de Fauna Secreta.

Figura 70 - À esquerda, Aerofants de Fauna Secreta. À direita, o popular elefante voador, Dumbo, de Walt Disney.

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O objetivo de Fontcuberta e Formiguera é propor, por meio da ironia ativada

pela simulação, uma reflexão sobre a credibilidade fotográfica assim como em

Herbarium. No entanto, considerando a longa lista de material que teve que forjar

(radiografias, objetos de laboratórios, animais dessecados, fotos, vídeos, áudios,

etc), Fauna Secreta é uma produção mais complexa e, portanto, tem objetivos mais

audaciosos que envolvem o questionamento da ciência como conhecimento. É muito

provável que o espectador que se descobre manipulado pela ironia de Fauna Secreta

perceba como é frágil a fonte de informação, mesmo quando ela é, habitualmente,

crível como nos museus onde a exposição se instalou. Toda suposição que o

observador tem de fenômenos, como animais desconhecidos, é fruto da autoridade

de livros, professores e instituições como a escola e o museu. Os dados agrupados

num formato característico de zoológicos e museus de ciência natural são elementos

que fazem o "crer verdadeiro" (GREIMAS, 2008) se consumar. Os animais expostos

em Fauna Secreta tornam-se reais porque foram fotografados, tendo em vista a

habitual crença da fotografia como análogo absoluto. Essa condição histórica da

fotografia move trabalhos como Fauna Secreta a praticar a crítica de simulação

paródica radical.

Fontcuberta, como teórico, explica que o indivíduo já não pode receber

informação alguma sem a mediação de um canal ou de um código e que todos estão

à mercê das características dessas mídias. "Se as expectativas referentes à 'verdade'

e 'realidade' são condicionadas em aceitar uma mídia específica, teremos que reduzir

nossa geral habilidade para diferenciar 'realidade' e 'código de

comunicação'".(FONTCUBERTA, 1998, p.208). A mídia específica, neste caso, é a

fotografia. E, ao tirar o véu da analogia por meio da ironia, o indivíduo tem mais

competência para questionar a própria mídia.

Nossa proposta era confrontar o espectador com o poder das fontes emissoras de informação e a influência dos recursos utilizados. Problematizar, em suma, tanto a fotografia e o museu, que se originou em ambos os casos a satisfazer os desejos de descrição empírica, registro da natureza e das taxonomias incontáveis de sua diversidade (FONTCUBERTA, 1998, p.137).

Como foi explicado anteriormente, a simulação irônica pode envolver o

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confronto de valores do texto-base, o protesto social, a crítica ao processo produtivo

do gênero e até o humor. Fauna Secreta contraria os valores da fotografia a ponto

de colocar sob suspeita sua posição de registro crível. O enunciatário, mais uma vez,

é ativo ao compreender a ironia e construir o discurso secundário. A grande

diferença a destacar é que o dispositivo simulativo paródico irônico de Fauna Secreta

é arriscado por não deixar evidente o efeito irônico.

Por outro lado, apesar de Fontcuberta afirmar que Fauna Secreta se mostra

"claramente ficcional", ele mesmo fornece dados que comprovam o "risco". Em

outubro de 1989, um membro do Departamento de Educación del Museo de Zoologia

concluiu que, durante o mês de férias escolares (ou seja, a maioria dos visitantes

eram adultos interessados e habituados a museus), 28% dos visitantes não

entenderam a ironia, acreditaram no cenário exposto (FONTCUBERTA, 1998, p.230).

Sendo assim, mesmo com fotos de elefantes voadores, macacos alados, Fauna

Secreta é radical porque é audaciosa ao não deixar tão claras as marcações. Porém,

essa forte camuflagem, proporcionalmente, provoca mais surpresa naqueles que

entendem a ficção da obra e, assim, "envenena suas certezas" e origens das suas

suposições. "Nesse cenário definido historicamente e politicamente, a fotografia nos

distrai com sua aparência e objetivas. E esconde a operação mecânica do seu

potencial infinito para a invenção" - afirma Fontcuberta (2012).

Pode-se afirmar que a principal estratégia do dispositivo utilizada por

Fontcuberta para tornar suas peças críveis era a fidelidade ao modelo utilizado em

botânica, zoologia e museologia. A proposta de reproduzir a técnica de catalogar

vegetais criada e amplamente difundida por uma corrente alemã (Blossfeldt), usar a

linguagem dos museus de história natural e a taxidermia tornou seus objetos mais

fiéis ao que tentavam representar, e isso é essencial ao ato de promover a ironia.

A reprodução ou mesmo a atribuição de características palpáveis faz da

ficção algo mais fácil de ser entendido como real. Seria pôr em prática o dito popular

de que, "para mentir, seria necessário falar um pouco de verdade". Bom exemplo foi

o do americano Phineas T. Barnum. Ele era um showman bem sucedido e, embora o

tema de "sereias" já houvesse sido bastante explorado em Vaudevilles, conseguiu

destacar-se exatamente por exibir uma realidade mais "provável". A sereia de

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Barnum sugeria uma espécie de metade múmia e outra de peixe. Foi montada com

ossos, peles e escamas reais e com o cuidado de não deixar à mostra os remendos.

O cartaz que anunciava a "Siren do Fidji" (HISPANO, 2001), exibia, como usual,

mulheres-peixes com seios fartos, rostos bonitos e cabelos longos. Todavia, o objeto

em si era uma massa de pele e osso, distorcida, como uma múmia. A maioria das

pessoas ficaram horrorizadas com sua feiúra. Por outro lado, ele causou polêmica

porque ter aparência de cadáver, parecia mais real, e até os mais céticos se

deixaram enganar. Essa estratégia garantiu um outro viés para a exibição seres

incomuns: o debate sobre se elas existem ou não.

Depois de forjar vegetais e sua aplicação científica, tornar reais animais

naturalmente impossíveis, Fontcuberta voltou-se para uma produção mais específica,

porém não menos popular no imaginário coletivo, que dragões. Em Sirenas, o artista

promove uma simulação que expõe, ficção em forma de fotos e desenhos a pesquisa

do paleontólogo jesuíta Jean Fontana, que descobriu fósseis de uma espécie que

pode ser considerada o elo perdido da cadeia evolutiva do homem. Jean Fontana

(interpretado por Fontcuberta), encontrou, pela primeira vez esqueletos do que

denominou Hydropithecus ("macaco água") dos Alpes. Depois de vários anos, foi

chamado para dirigir escavações em Cerro de San Vicente (Salamanca, Espanha),

onde foram encontrados mais fósseis do "macaco água". Na verdade, por se tratar

de um animal metade macaco e metade peixe, foi comparado às místicas sereias. A

descoberta projetou novas perspectivas à teoria da evolução, tendo em vista que os

ossos datam do período Mioceno (23 a 5 milhões de anos atrás).

Fontana dedicou-se a estudar e catalogar os fósseis de Salamanca, com o

objetivo de provar a existência da Hydropithecus fêmea e seus hábitos como dar à

luz nas praias ou água calmas, de forma isolada do grupo. Toda a polêmica da

fraude do Homem de Piltdown (Cap. 01) e suspeitas sobre o trabalho de cientistas

de ordens religiosas católicas fizeram com que referidos fósseis fossem esquecidos.

Até que a Reserva Geológica de Haute Provence incluiu na sua área de visitas os

achados de "sereias".

Fontcuberta utiliza-se de fotografias, desenhos e até uma imagem de uma

revista especializada que trás na capa os restos do Hydropithecus. Assim como em

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Fauna Secreta, há o personagem do cientista que, coincidentemente, morreu em

circunstâncias misteriosas. Repete-se também a ideia do importante registro que o

trabalho se propõe tendo em vista a "revelação" de uma pesquisa esquecida como os

animais de Ameisenhaufen.

Novamente, Joan Fontcuberta insere a linguagem científica como forma de

autenticar o material fotografado.

Várias hipóteses são consideradas para tentar explicar a condição excepcional do presente esqueleto. A posição da coluna arqueada, a abordagem das patas dianteiras e da posição de perfil do crânio vislumbram que este Hydropithecus foi rapidamente enterrado enquanto dormia. Isso também explicaria a ausência de espalhamento dos ossos, apesar do desaparecimento do tecido macio (músculos, ligamentos, etc). Um deslizamento poderia ter causado a morte e revestimento posterior da amostra. (FONTCUBERTA, 2008, 181)

Mais uma vez, a fotografia encontra-se no centro da crítica irônica de

Fontcuberta. Ele pretende expor que a câmera, de fato, é capaz de ser realista, mas

na medida em que a realidade se deixa ser capturada. Dizer que a fotografia é

registro do real, "é não entender que o realismo, como qualquer invenção humana, é

relativo, histórico, condicionados pela ideia que os homens fazem do mundo e de si

mesmos" (FONTCUBERTA, 1998, P.37). Além de voltar a inserir a fotografia no

debate real versus ficção, Sirenas, por apropriar-se de discursos científicos como a

paleontologia, traz a ciência como obra de arte. Nesse caso, o artefato, literalmente,

Figura 71 - À esquerda, imagem do esqueleto de uma sereia à margem do rio Tormes. À direita, esboço de sereia realizado por Jean Fontana.

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mescla a arte com o fato para promover uma reflexão a respeito da fácil aceitação

de informação perante elementos institucionais da autoridade científica, como o

museu.

Na mesma orientação, o artista e professor da Universidade do Tennessee

(Estados Unidos) Lyon Beuvais. Assim como Inês Raphaelian e Fontcuberta, ele cria

elementos fotográficos, esculturas, cerâmica e xilografias como simulações

paródicas irônicas. Alguns trabalhos de Beuvais reproduzem os mesmos temas

Figura 72 - A esquerda, Sereia de Tormes. A direita, vitrine da instalação no CAIRN, Digne-les-Bains, 2000.

Figura 73 - A esquerda, Sereia de Tanaron. A direita, simulação de uma capa de revista especializada que "abordou"o assunto.

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abordados por Fontcuberta e Raphaelian. Na exibição The Centaur Exacavations at

Volos, Beuvais questiona a autoridade institucional do museu ao mostrar uma ficção

como artefato. Em uma vitrine (Figura 73), localizada numa das bibliotecas da

Universidade do Tennessee, foi exposta uma combinação de ossos de pônei com um

esqueleto humano em decomposição, com tábuas de argila inscritas. Todo o

conjunto para simular um achado arqueológico de um Centauro, mito grego, metade

homem, metade animal. A descrição indicada na simulação: "um dos três enterros de

Centauro descobertos, em 1980, pela Sociedade de Arqueologia de Argos Orestiko a

oito quilômetros a nordeste de Volos, na Grécia". Beuvais incluiu ainda gravuras de

Centauros, explicando a morfologia do animal. O dispositivo é o mesmo de

Fontcuberta, ao apropriar-se de uma linguagem objetiva, como a utilizada nas

descrições em museus de ciência natural. O Centauro de Volos é uma simulação

paródica de arqueologia que reflete sobre os meios de informação, os quais, por

vezes, não são observados com uma visão crítica."Esse trabalho de paródia das

funções acadêmicas trabalha como uma forma consciente de auto-crítica,

desconstruindo a autoridade da biblioteca em si." (BEUVAIS, 2012).

Embora seja simulação paródica, pode ser classificada como radical, porque a

ironia é intensamente camuflada, com exceção do título da descrição: "Você acredita

em Centauros? (Do you believe in centaurs?)". Embora a frase destaque o sentido de

credibilidade, pondo sob suspeita o artefato, pode ser interpretada apenas como

provocativa, não induzindo a percepção da ironia de expor uma montagem como

sendo um cadáver de Centauro.

Além da semelhança visual do objeto artístico de Beuvais com as sereias de

Sirenas (Fontcuberta), ambos levam até o limite a ficção ao inserir dois elementos

místicos, que sempre foram considerados lendas ou folclore, num formato de estudo

histórico. Tanto os centauros como as sereias são personagens presentes na

fantasiosa dos contos e fábulas e que, de repente, surgem "provas"da sua existência.

Mais uma vez, o conteúdo é autenticado pelo formato e, após a compreensão do

efeito subversivo irônico, o formato é atualizado como suspeito e frágil. Este é um

dos principais objetivos de Beuvais.

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Outro trabalho de Lyon Beuvais que desperta interesse por trabalhar a ficção

dentro da formalidade da ciência é The association for creative zoology. Beuvais

simula uma exposição móvel (um quiosque) que apresenta um vasto material de

litografia e taxidermia de animais ficcionais. Mas o seu registro comprova uma

abordagem religiosa que contraria a teoria da evolução: zoomorphic juncture. De

forma similar, a Fauna Secreta, o zoológico criativo de Beauvais, fornece um material

de criaturas inusitadas, resultado de uma pesquisa na Ilha de Tallilumbae, realizada

por um professor (Nichols) - uma ficção para legitimar as imagens expostas. Os dois

trabalhos resultam numa crítica à legitimação documental científica.

Diferente de Herbarium e Fauna Secreta, alguns trabalhos de Fontcuberta

priorizam o jornalismo investigativo, em virtude de não tratar mais de animais ou

plantas, mas de pessoas que, supostamente, fazem parte da história política e

cultural. Um trabalho tão elaborado quanto Fauna foi Sputnik.

Fontcuberta não faz mais uso de modelos científicos, mas prossegue com o

formato de museu dotado de uma diversidade de material suficiente para autenticar

a sua ficção e utilizar a sua imagem para produzir o personagem. Como nos

trabalhos anteriores, neste há uma história ficcional que tem como ferramentas de

autenticidade

Figura 74 - Fotografia da simulação arqueológica do Centauro, da biblioteca da Universidade do Tennessee.

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fotografias manipuladas, documentos, uniformes, máquinas fotográficas e livro. A

ficção conta que, em 25 de outubro de 1968, o astronauta russo Ivan Istochnikov e

Kloka, uma cadela treinada, embarcaram na aeronave Soyuz 2 para uma missão de

manobras com a Soyuz 344. Ao tentar realizar o acoplamento orbital, houve

problemas, e quando a Soyuz 2 foi encontrada, o astronauta e a cadela tinham

desaparecido. Em meio à corrida espacial com os Estados Unidos, a Rússia não

permitiu o revelar ao público a perda de um astronauta. Desse modo, decidiram

esconder que teriam perdido Istochnikov no espaço, e as autoridades do estado

chantagearam seus colegas, enviaram sua família para a Sibéria, além de manipular

fotos para apagar sua imagem. Com a Perestróica, foi criada a Fundação Sputnik,

exatamente para procurar esclarecer casos como esse. E, assim, surgiu a exposição

Sputnik, que descreve como Istochnikov foi apagado da história.

Ainda para autenticar a ficção, acontecimentos da história entram como base

para o enredo. A simulação exibe fotos que foram manipuladas para apagar a

imagem do astronauta. Uma prática realmente comum dos governos autoritários

para eliminar da história política líderes que tentaram desenvolver ideias contrárias.

O uso do damnatio memoriae, abordado anteriormente como padrão na China,

Rússia, Alemanha e até em Cuba, são pontuações reais que servem para agregar

mais credibilidade à ficção de Sputnik. Um bom exemplo desse link entre realidade e 44 Com o propósito de tornar a história ainda mais convincente, Fontcuberta faz uso de fatos concretos. A aeronave Soyuz 3 realmente existiu e tinha como missão encaixar-se com a Soyuz 2.

Figura 75- Imagem de animais empalhados e montados com membros de outros. Xilografia de animais exóticos ficcionais.

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fantasia é a foto (Fotografia 59) que, de acordo com a história de Fontcuberta, foi

descoberta por um jornalista americano, que a comparou com uma réplica adquirida

em leilão, percebendo que fora alterada. A fotografia, originalmente de 1967, exibe

os astronautas Leonov, Nikolayev, Rozhdestvensky, Berezovoy e Shatalov com

Istochnikov, o que não acontece com a réplica de 1993. Vale ressaltar que o retrato

desses astronautas é autêntico e que Fontcuberta apenas acrescentou sua imagem,

ou melhor, a do personagem Istochnikov.

A Rússia (Figura 77) tinha como hábito apagar imagens de astronautas

mortos. Era muito importante para o governo manter a ideia de que os russos eram

melhores que os americanos, que não cometiam falhas.

Figura 76 - À direita, foto que sofreu manipulação digital e resultou na foto "oficial"de Ivan Istochnikov (à esquerda).

Figura 77 - À esquerda, foto (1961) dos astronautas russos: Sentados: Andrian Nikolaev, Yuri Gagarin, Sergei Korolev, Boris Yegorov, Vladimir Shatalov/ Em pé: Pavel Popovich, Vladimir Komarov, German Titov, and Valery Bykovsky. A direita (1971), foto sem a imagem de Vladimir komarov, que morreu em 1967.

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O russo Vladimir Komarov, foi o primeiro astronauta a morrer em uma missão (Soyuz

1). Na foto com outros colegas, de 1961, (Figura 77) ele teve sua imagem apagada.

Istochnikov seria uma paródia de Komarov?

Sputnik é um trabalho que, além de exibir réplicas de foguetes, capacetes,

objetos de astronautas, é sistematicamente organizado para formar uma biografia

por meio de fotos. Naquela época, devido à importância que o governo soviético

dava aos avanços na conquista do espaço, a imagem dos astronautas era explorada

ao máximo por meio de fotografias e até selos postais. Desse modo, Sputnik

desenvolve sua paródia produzindo grande diversidade de fotografias de Istochnikov,

em sua infância, ingresso no exército, casamento, discursos públicos e antes de

embarcar para o espaço.

Figura 78 - À esquerda, foto com Istochnikov (manipulação digital). À direita, foto sem o personagem desaparecido.

Figura 79 - Imagens manipuladas para Sputnik.

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Mais uma vez, Fontcuberta promove o debate a respeito da realidade

fotográfica. Ao trabalhar com a ironia, o artista procura orientar o espectador a

duvidar dos suportes midiáticos, como um todo. Da mesma forma que surpreende ao

revelar a ficção nesse ambiente de museu e põe em dúvida a mídia como registro

documental. Dentro de um cenário essencialmente voltado para exibir documentos, a

ficção é exposta como evento factual. A ironia de Sputnik é avaliadora porque, ao

mostrar uma instalação que parece exibir eventos verídicos, denuncia como são

frágeis os critérios que resultam na credibilidade de um documento. Tanto a

autoridade da fotografia, quanto a do museu, como meios de informação

documental, são postos sob suspeita. E, assim, a paródia irônica que Fontcuberta

constrói com o desacordo entre ficção e não ficção, pode promover, no espectador, o

exercício de desafiar a crença acrítica na fotografia como documento histórico.

Sputnik consiste em um procedimento didático que confronta o potencial que um

recipiente (museu) tem ao agregar valor "sacramental" de credibilidade em um

objeto como o Centauro de Beuvais ou as cerâmicas do futuro de Raphaelian.

De modo geral, o espectador vê-se numa instalação, tendo ao seu redor vasto

material documental inédito e de grande importância na história da exploração

espacial. Todavia, em dado momento, ele desperta para a ironia e desconfia que

tudo aquilo é ficção. Na Fauna, um desses pontos que estimulam o despertar é a

foto dos elefantes voadores, porque seria um fenômeno bem improvável de

acontecer. Em Sputnik, a fotografia que mostra uma garrafa de vodka com um

bilhete dentro, vagando pelo espaço, é a pista necessária para que o visitante da

exposição seja motivado a descobrir a ironia que se passou, possivelmente

despercebida até o momento. Mesmo com esses pontos de "disparo", Sputnik

mostra-se um modelo de simulação paródica radical, porque assume a possibilidade

de a ironia não ser reconhecida45.

45 O programa de tv Cuarto Milenio en Cuatro exibiu fotos de Sputnik como sendo provas da existência de um astronauta desaparecido, ou seja, não observaram a ironia e "cairam" no trote. Eles convidam um "especialista" para falar do assunto, que afirma que Istochnikov foi um astronauta que teve sua história apagada. Disponível em < http://www.youtube.com/watch?v=EXZTVDkL2JM>. Acesso em: 28 Jan. 2012.

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Figura 82 - Imagem de uma garrafa de vodka que vaga pelo espaço com, supostamente, uma carta de despedida de Ivan

Figura 81 - Instalação no Photo Art Festival, Maio, 2000.

Figura 80 - A esquerda, Ivan Istochnikov se despedindo antes do embarque. A direita, Ivan é agraciado com o "pañuelo de pionero"em Moscou.

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Outros dois trabalhos de Fontcuberta seguem o mesmo propósito de motivar o

senso crítico de seus espectadores. Todavia, questionam, especificamente, o

jornalismo investigativo que oferece comprovações por meio do registro documental,

seja fotografia ou vídeos.

Em Miracle & Co. Fontcuberta retorna ao início da prática fotográfica, quando

era amplamente utilizada como verificação de eventos sobrenaturais. De fato, alguns

acreditavam que a fotografia era capaz de capturar a alma e imprimi-la no papel46.

Desse modo, como uma forma de explorar o aparato de revelação, fotógrafos

começaram a vender a ideia de que podiam registrar a aparição da alma dos

parentes falecidos do seus clientes. Esta prática deu origem a uma das primeiras

formas de manipulação fotográfica. Os profissionais conseguiam alguma foto dos

falecidos e mesclavam partes com novos negativos por meio de exposições

repetidas em laboratório (BRUGIONI, 1999, p.157). Este tipo de atividade também é

utilizada por fanáticos religiosos para comprovar milagres de aparições de figuras

sagradas. Retomando o propósito de apontar a fotografia como uma plataforma

documental frágil, Fontcuberta mostra que a manipulação é uma prática ativa,

principalmente com as possibilidades digitais.

A narrativa ficcional, desta vez, conta que Fontcuberta, em viagem à

Finlândia, deparou-se com um anúncio inusitado nos classificados do principal jornal

da cidade: que um monastério de Valhamönde oferecia curso para as pessoas

aprenderem a produzir milagres. Então, Fontcuberta, percebendo o enigma, decidiu

ir ao local para investigar e fazer registros documentais fotográficos das práticas que

lá sucediam. E, assim, o artista seguiu para a região de Karelia. Vale acrescentar

que, diferentemente de Sputnik, a imagem de Fontcuberta representa ele mesmo e

não algum personagem fictício.

Na exposição, são exibidos vídeos e fotografias dos diversos milagres que

Fontcuberta aprendeu com os monges: milagre da eletrogênese (controle da

eletricidade dos raios), milagre do espelho (espelho errante que reflete sem

46 "Alguns povos ditos “primitivos” acreditam que a fotografia lhes rouba o espírito e resistem a ser fotografados, temendo que alguma parte de si mesmos seja fixada no celulóide" (MACHADO, 1984, p.33)

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reverter), da ubiquidade (multiplicação da pessoa), da criofloração (floresce uma

árvore), da invisibilidade, levitação, etc. Todos têm sua descrição, jornalística, e

alguns são baseados em eventos "sobrenaturais" como o milagre do pensamento

fotográfico. Na década de 50, Ted Serious, um sensitivo de Chicago, afirmou que

podia imprimir fotos com imagens originadas do seu pensamento. O caso foi

popularmente divulgado. Fontcuberta afirma que Serious assinou contrato de ensinar

apenas aos monges de Valhamönde o segredo do seu dom.

Outros milagres são baseados na crença religiosa como o milagre da

lacrimação sanguínea, da divisão das águas e da ressurreição. Em Miracle & Co.

Fontcuberta focaliza sua produção em astúcias da manipulação fotográfica digital. A

maioria das peças não são tão críveis mesmo porque é sabido que o realizador de

tantos milagres não é uma figura bíblica, mas um fotógrafo. De fato, o ilusionismo de

Miracle & Co. promove uma retomada dos primórdios da prática fotográfica para

poder demonstrar as artimanhas do Photoshop.

Figura 83 - Fontcuberta "realizando"o milagre da Criofloração.

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O trabalho não configura um a simulação radical, porque se percebe o

propósito maior do humor do que fazer o espectador acreditar no que vê. Em outras

palavras, a ironia produzida pela paródia de Miracle & Co. tem mais um efeito

humorístico do que avaliador. Em Fauna Secreta e Herbarium, os referentes das

fotografias poderiam existir se considerarmos o número de animais e plantas

existentes e que ainda não foram catalogados pela ciência. Por outro lado, em

Miracle & Co., a imagem do fotógrafo realizando milagres é bem mais duvidosa e,

assim, não permite o firmamento do "crer verdadeiro" para que depois o espectador

descubra a ironia. Na verdade, a ironia está dada por meio da paródia. Sendo de tal

modo, Miracle & Co diferencia-se dos demais por ser uma simulação paródica irônica,

ou seja, não é radical porque não é arriscada.

Figura 84 - Fontcuberta "fazendo" o milagre da lacrimação sanguínea.

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Figura 86 - A esquerda, Fontcuberta em o milagre da feminilidade. A direita, carta de Tarot utilizada como material didático.

Figura 85 - A esquerda, Fontcuberta realizando o milagre da levitação. A direita, o milagre da ubiquidade.

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Em 2002, o diretor de cinema William Karel produziu o falso documentário

Operátion Lune, que afirmava (e exibia provas como arquivos de imagem e

entrevistas) que o homem nunca pisou na Lua e que a exibição ao vivo foi uma

farsa, que, na verdade, era um filme dirigido por Stanley Kubrick. Ao final, nos

créditos, aparecem os erros dos atores que se passaram por pessoas envolvidas na

farsa e, assim, é definida uma das poucas evidências da simulação. Operátion Lune é

uma obra que aborda um tema polêmico, tendo em vista que muitas pessoas ainda

duvidam da façanha dos americanos em 1969.

Fontcuberta também se aproveita de uma "conspiração" para criar uma

simulação paródica radical. De acordo com o artista (FONTCUBERTA, 2007), depois

dos atentados de 11 de setembro, as autoridades norte-americanas precisavam

encontrar um culpado e produziram a imagem de Osama Bin Laden. A partir daí,

criou-se a ficção que orienta todo o trabalho de Deconstructing Osama.

Assim que os vídeos e fotos do terrorista foram-se espalhando pela internet,

grupos antiguerra acusaram o governo de que Bin Laden, na verdade, era um ator e

cantor chamado Mohamed Bin Yousuff, que teria sido contratado para interpretar o

papel desse "vilão". Então, para obter mais informações sobre o verdadeiro líder da

Al-Qaeda, Dr. Fasqiyta Ul-Junat, os jornalistas Mohammen ben Kalish Ezab e Omar

ben Salaad investigaram o caso e descobriram que este também era um terrorista

falso, interpretado por um ator de novela e comerciais chamado Manbaa Mokfhi, que

desapareceu em circunstâncias misteriosas.

Deconstructing Osama não é uma paródia tão complexa como Fauna Secreta.

Porém, observa-se uma simulação dentro de outra. Fontcuberta interpreta Mokfhi,

que, dentro da ficção, interpreta Ul-Junat. Esse desdobramento representa a

possibilidade de sermos manipulados pela mídia. Deconstructing Osama é constituída

de fotografias e vídeos que comprovam a existência de Mokfhi, interpretado pelo

fotógrafo. O processo de ironia de Fontcuberta, no entanto, é o mesmo: cria-se uma

ilusão que, no percurso da experimentação, o espectador vai desvendando a ironia.

Por outro lado, essa compreensão é o que se espera da maioria, exatamente para

que a simulação não seja um trote, e sim uma ironia que avalia, questiona e educa

as pessoas quanto à sua própria ingenuidade, tradicionalmente apreendida, a

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respeito da fotografia. Mas assim como em Miracle & Co., Fontcuberta pôs em pauta

a fotomontagem para uso religioso. Em Deconstructing Osama, ao buscar a reflexão

da manipulação midiática não somente no substrato fotográfico, mas na criação

situacional: como seria se Osama Bin Laden fosse um ator ou se toda a crença do

homem na Lua se resumisse a mais um filme de Kubrick.

Figura 87 - Manbaa Mokfhi interpretando o personagem Dr. Fasqiyta Ul-Junat.

Fontcuberta busca, numa manifestação, trazer a arte e o fato. Este último se

apresenta como paródia dos discursos jornalísticos ou científicos, com o objetivo

principal de propor a reflexão crítica sobre a fotografia como realidade. A ficção é

inserida e legitimada por meio de cenários com fotos, vídeos, objetos. Embora ocorra

que algumas pessoas não observem a ironia, não é intenção de Fontcuberta a

indução ao erro ou iludir por iludir. Ele pretende a ilusão a priori, para depois

resgatar esse espectador inserido na ficção visando para mostrar-lhe como é fácil a

manipulação da fotografia. Com efeito, Fontcuberta não só questiona a fotografia,

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mas todo sistema de informação, todo suporte midiático como cinema, televisão,

jornal impresso, internet, etc.

Figura 88 - Manbaa Mokfhi numa campanha internacional do Mecca Cola, 1986.

Figura 89 - Manbaa Mokfi numa foto promocional da comédia O sorriso de Sherezade.

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Figura 90 - Material de imprensa relacionado com Dr. Fasqiyta-Ui Junat, terrorista falso interpretado pelo ator Manbaa Mokfhi

Figura 91 - Dr. Fasqiyta-Ui Junat no Iraque, 2004.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para o propósito de verificar o fake fotográfico como elemento de crítica, foi

necessário discutir, primeiramente, os motivos que levam o homem a fabricar

elementos falsos que, por meio de diversos exemplos, podemos observar que estão

inseridos na nossa história. Examinamos essa causa a ponto de entenderemos que

as falsificações fazem-se capazes de fornecer informações do seu processo de

produção, que, por vezes, nem a análise do elemento imitado em si é capaz de

oferecer. Desse modo, foi fundamental assumir a historicidade das falsificações,

como mediadora da identidade cultural do homem. Por outro lado, entre esses

motivos, encontramos o engano, o lucro e a vantagem financeira, mas não a reflexão

sobre o suporte midiático, a estética ou, até mesmo, o estilo do autor. A

contemplação do questionamento crítico como objetivo fundamental só foi possível

experimentar (de tal forma) em trabalhos que têm o dispositivo de reportar-se a

outros textos, as simulações. Todavia, o paralelo não é uma simples paródia, mas

um processo que promove o confronto de valores, seja ele do formato, do conteúdo

parodiado ou mesmo de outro aspecto extramural (contexto histórico, autoria, etc).

O fake fotográfico destaca-se porque a sua falsificação não tem o ganho

financeiro e as suas simulações paródicas; são ironias que subvertem a própria

prática. No século XXI, com o avanço tecnológico, as câmeras fotográficas estão

mais acessíveis. Os celulares smartphones trazem lentes com resoluções altas e

aplicativos que manipulam essas fotografias. Há softwares que oferecem de filtros

até colagens. Como sempre foi, o desenvolvimento técnico promove a popularização

do aparato, que, por conseguinte, disponibiliza maior facilidade em manipular o

resultado, principalmente quando é digital. As simulações, como as de Fontcuberta,

pretendem, exatamente, eliminar as convicções que a imagem produz para colocá-

las sob suspeita devido às possibilidades de intervenções.

No Sensacionalista, vimos uma crítica velada ao jornalismo como mercadoria.

O Not the Financial Times censura o capitalismo e as práticas não sustentáveis. Já

Fauna Secreta, por meio de um conjunto de elementos, produz o efeito ilusório,

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que, quando revelado, visa apontar para a confiança acrítica depositada no meios

institucionais de informação como a mídia e os museus.

Na dissertação de mestrado (EMÉRITO, 2008), depois de examinar o falso

documentário e classificá-lo, foi observada a complexidade do falso e que era

necessário abordá-lo em outros suportes para poder verificar a crítica como propósito

comum. Para isso, esta pesquisa pôde examinar o falso e chamá-lo de fake, porque

nem tudo é falsear. Percorremos, então, a rota desde as falsificações até as

simulações. A variedade de trabalhos pesquisados ofereceu características

suficientes no sentido de apontar para a simulação irônica e a simulação radical,

sendo as duas, formas de prática irônica que se diferenciam por intensidade das

marcas reveladoras. Quanto menos marcações, o enunciado aponta ao enunciatário,

mais ele poderá não seguir o percurso narrativo que leva à enunciação proposta.

Nesses casos arriscados, estão as simulações radicais como Sputnik. Vale ressaltar

que a distinção da simulação radical é questionável, haja vista que não há formas

seguramente mensuráveis para os níveis de exposição das marcas que revelam a

ironia. Desse modo, a classificação como radical está na comparação com outras

mídias mais sutis.

As simulações paródicas irônicas apresentam uma encenação para, depois,

causarem uma ruptura com a revelação da ironia. Com tal fim, a estratégia de iludir

está em fazer verdadeira a ficção por meio da construção de elementos que

compõem o cenário autoritário de credibilidade, como uma exposição em museu. Os

códigos dessa linguagem científica, nas simulações fotográficas de Fontcuberta,

comprovam que a apropriação, ou melhor, a paródia produz um efeito que agrega o

valor crível necessário para posteriormente, ao revelar-se como desacordo, produzir

a ironia. As diversas relações questionadas pelos elementos que compõem as

análises, de fato, comprovam o fake como uma das formas de auto-reflexividade dos

regimes midiáticos do nosso tempo.

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ANEXO A - Diagrama de funções da Ironia - Linda Hutcheon

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ANEXO B - Transcrições de comentários recolhidos durante a exposição de Fauna Secreta pelo Departamento de Educação do Museu de Zoologia de Barcelona: “Essa exposição de fotografia relacionada à combinação de espécies distintas me assombrou verdadeiramente já que as fotografias têm um realismo que embora sejam antigas, manifestam as realizações da ciência.” Anônimo (4/6/1989) "Agradecido por essa amostra tão maravilhosa que nos deixou a equipe do professor Ameisenhaufen. Espero o reconhecimento das próximas gerações”. Maria Eugenia Ramos, Marisa, Maria Elena Ramos, Gonzalo, Laura B. (4/6/1989) “É algo que não se pode descrever com palavras, é um mundo que jamais havia pensado que existia”. Francisco Fernández (28/7/1989) “Acho que só 4 animais. Eu acho que esse cientista teve a sorte de descobrir alguma espécie nova, e depois, com o desejo de obter fama, começou a fazer experiências genéticas, acrescentando clara montagem fotográfica, criou esta série de exposições para o mundo". Juan Andrés (23/7/1989) “Exposição sobre animais muito pouco críveis. Se esses animais tivessem existido haveria algum exemplar vivo”. Jaume R. (3/6/89) “Não sei...a natureza é muito sábia e misteriosa mas o homem é muito desonesto...tenho as minhas dúvidas se não estão trapaceando” Javier (10/7/1989) “Eu gosto de ver como as pessoas crêem naquilo que vêem fotografado” Assinatura ilegível (18/6/89) “A exposição demonstra como algo que é surreal pode parecer real por causa das técnicas visuais, etc.; o que nos leva à conclusão de como o uso indevido dos meios de comunicação podem chegar a exercer uma manipulação e controle sobre a população”. Anônimo (15/7/89) “A fraude total. Completamente ficcional, lixo. Absurdo, nós devemos olhar para a verdadeira beleza natural, seu homem doente”. Ecologista de Londres (29/8/89) “Espero não ter pesadelos. Algum dia serei veterinária” - Andrea (14/9/89)