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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO DAMARES PEREIRA VICENTE O TEMPO DO TRABALHO Mediações subjetivas no trabalho de assistentes sociais DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL SÃO PAULO 2005

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

DAMARES PEREIRA VICENTE

O TEMPO DO TRABALHO

Mediações subjetivas no trabalho de assistentes sociais

DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL

SÃO PAULO

2005

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DAMARES PEREIRA VICENTE

O TEMPO DO TRABALHO:

Mediações subjetivas no trabalho de assistentes sociais

Tese apresentada à Banca Examinadora

da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para

obtenção de título de Doutor em Serviço

Social, sob a orientação da Professora

Doutora Maria Carmelita Yazbek.

SÃO PAULO

2005

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BANCA EXAMINADORA

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Esta tese é dedicada a meu pai,

Antonio Vicente.

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Agradecimentos

Agradeço, em primeiro lugar, à minha orientadora, Profa. Dra. Maria Carmelita

Yazbek, não só pela orientação, confiança e carinho, mas sobretudo por seu trabalho junto à

categoria profissional nesses muitos anos de coordenação de estudos pós-graduados em

serviço social da PUCSP.

À Profa. Dra. Maria Lúcia Martinelli, por sua atenção, disponibilidade e acolhida em

momentos difíceis deste trabalho.

À Profa. Dra. Maria Lúcia Silva Barroco, por demonstrar como proceder a uma crítica

radical do real como condição para que outro mundo seja possível e, através dela, aos

colegas do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Ética e Direitos Humanos da PUCSP.

À Profa. Dra. Silvia Helena Simões Borelli, por sua marca constante em minha

trajetória.

Aos colegas professores da UniFMU, especialmente à Profa. Ms. Maria Elisa dos

Santos Braga, que me acolheu e me amparou.

Aos colegas do Programa Municipal de DST/Aids, especialmente a Maria Cristina

Abbate, pelo apoio para realização deste trabalho, e às queridas Deborah Malheiros, Elza

Ferreira, Maria Aparecida Cardoso, Rosangela Vieira e Sirlei Salfaia, pela solidariedade.

Aos queridos Carlos José Ferreira Santos, Elisabeth Fortunato, Mônica Muraro

Bertoni , Rafael Pires, Terezinha Rodrigues e Therezinha Lourdes Lopes, pelo carinho.

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo

apoio que viabilizou esta pesquisa.

A Alice Pereira Vicente, Léa Gândara e Thaís Lima, por todas as horas.

Particularmente, a Dagmar Souza, Judith Dias, Luisa Franco, Luzia Graciano, Marly

Consiglio e Rita de Cássia Bezerra, pela paciência e generosidade.

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RESUMO

A pesquisa trata de questões relativas à temática da subjetividade, a partir de uma perspectiva que recupera algumas concepções de Marx, buscando superar a dicotomia que marcou o debate dessa questão no campo das ciências sociais, especialmente quanto ao rebatimento, no serviço social, do positivismo e do estruturalismo. O percurso empreendido considerou como categorias analíticas iniciais o trabalho e a alienação, expandindo-se, através da densa e extensa análise realizada por Lucien Sève, denominada ciência da biografia, para outras perspectivas do campo da filosofia, tratando a psicologia enquanto uma ciência que necessita ser apropriada numa perspectiva materialista-histórica. A pesquisa de campo foi realizada através de entrevistas em que foram solicitados os relatos das histórias de vida de seis assistentes sociais que trabalham na área da saúde pública, especificamente com a implantação e execução das ações do Programa de Saúde da Família, na região periférica da cidade de São Paulo - Subprefeitura Brasilandia/Freguesia do Ó -, através dos aportes metodológicos da História Oral. Os temas que irromperam de forma mais marcante foram tratados teoricamente e compreenderam excertos sobre o romantismo, família, religiosidade e política. As considerações finais pretenderam traduzir teoricamente os resultados das análises empreendidas. Palavras-chave: subjetividade, trabalho, alienação, cultura, biografia, mediação, história e narrativa.

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ABSTRACT

The research relates to questions about the theme of subjectiveness, from a perspective which recovers some Marx conceptions, seeking to surpass the dicotomy that have marked the debate of this question in the social science area, especially regarding the reverberation, in the social work, of the positivism and structuralism. The path choosen considered as initial analytical categories the work and the alienation, then expanding through the dense and extensive analysis done by Lucien Sève, denominated biography science, to other perspectives in the philosophy area, dealing with psychology as a science that need to be fit to a historical-materialistic perspective. The field research consisted of interviews when six social assistants, who work in the public health area were asked to relate their life histories, especifically with the implementation and execution of the "Programa de Saúde da Família" (Family Health Program), in the surrounding region of São Paulo - Brasilândia/Freguesia do Ó, through methodological resources of Oral History. Themes that emerged more remarkably were treated in theory and comprehended excerpts about romanticism, family, religion and politics. The final considerations intend to translate in theory the results of the analysis undertaken. Key words : subjectiveness; work; alienation; culture; biography; mediation; history and narrative.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ................................................................................................... 09 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 13 PARTE 1- FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS ................................. 20

Cap.1 - Conceituação ............................................................................................. 21

1.1 - Estranhamento e alienação ................................................................. 21

1.2 - O lugar do trabalho na constituição da vida humana .......................... 29

Cap.2 – Elementos da teoria marxista da subjetivida de: diálogo com Lucien Sève e Georges Politzer .............................................................. 37

2.1 - A ciência da biografia .......................................................................... 37

2.2 - O indivíduo e a história ....................................................................... 45

Cap. 3 – Método de abordagem ............................................................................ 54

3.1 - História oral, linguagem e narrativa ................................................... 54

PARTE 2 – AS INSCRIÇÕES DOS DRAMAS DAS VIDAS REAIS NO TEMPO

E CONTEXTO DO TRABALHO ........................................................... 68

Cap. 4 – Algumas considerações sobre saúde públic a .................................... 69

4.1 - Freguesia do Ó e Brasilândia: tão perto e tão longe..........................74

4.2 - As unidades básicas de saúde nos bairros da Brasilândia

e Freguesia do Ó: a precariedade histórica ...................................... 78

4.3 - O Programa de Saúde da Família nas UBS: a reiteração da

precariedade ..................................................................................... 82

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Cap. 5 – A história das histórias ........................................................................... 86

5.1 - Judith: “Matar um leão por dia!” .......................................................... 87

5.2 - Marly: Em busca da identidade profissional...................................... 115

5.3 - Luisa: A militante do PT .................................................................. 142

5.4 - Luzia: Paixão pela Vila Brasilândia.................................................. 149

5.5 - Dagmar: “No centro da Brasilândia” .................................................171

PARTE 3 – AS MEDIAÇÕES ................................................................................. 181

Introdução ............................................................................................................. 182

Cap. 6 – Cultura e subjetividade ......................................................................... 184

6.1 - Romantismo ................................................................................... 184

6.2 - Religiosidade ................................................................................... 200

6.3 - Família ............................................................................................. 205

6.4 - Política ............................................................................................. 213

Cap. 7 – O contexto e o tempo do trabalho no serviç o social ........................ 218

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 234

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 244

ANEXOS ................................................................................................................ 253

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APRESENTAÇÃO

No ano de 1999, ocasião em que estava elaborando minha dissertação de

mestrado, A subalternidade, um ponto cego na experiência da loucura, realizei uma

pesquisa nos arquivos do Hospital Psiquiátrico do Juqueri para recuperar o

prontuário médico de minha avó, Antonieta Petrucci Pereira, falecida naquele local

em 1950. Muitas foram as motivações que me levaram àquele hospital, conforme

creio ter podido demonstrar (VICENTE, 2000). E muitas foram as ressonâncias:

recuperando os sentidos desta produção para compor esta apresentação, dei-me

conta que, precisamente no dia 04.08.1999, encontrei no Juqueri uma assistente

social que ali trabalhava e morava, assim como outros profissionais, numa tradição

que se iniciou naquele local na sua fundação. No início do século XX, o Complexo

Hospitalar do Juqueri era um pólo de atração de mão-de-obra, particularmente

aquela formada pela massa de estrangeiros com pouca qualificação que chegava ao

Brasil em busca de trabalho e casa, conforme depoimento de Leopoldino Passos,

psiquiatra do Juqueri desde 1918, em Cunha (1986, p. 91):

...“os empregados não eram muito numerosos, mas os portugueses eram em número proporcionalmente grande; vinham de Vila Nova de Gaia, na Ilha da Madeira (...). Os portugueses mandavam vir outros parentes e parecia que estes que vinham, chamados pelos primeiros, já vinham para trabalhar no hospital”.

A impressão causada por aquele encontro foi decisiva, hoje percebo, para a

realização deste percurso. Registrei suas palavras e creio que ajudam a elucidar

minha busca pelas mediações subjetivas no trabalho dos assistentes sociais:

A médica que me acompanhava foi saudada por uma senhora que lhe disse: “... você vai ficar livre de mim durante um mês...” Ato contínuo, dirigindo-se a mim, disse alegremente: “... sou a secretária das causas difíceis...”. A médica então lembrou-se que, assim como eu, ela era asistente social e nos apresentou. Rapidamente, essa assistente social me informou sua trajetória dentro da instituição e que, desde 1973, morava dentro do Complexo Hospitalar com sua família, razão pela qual, mesmo estando em férias, circulava pelo Hospital. Na verdade, lá era sua casa (VICENTE, 2001, p. 46, grifo da autora).

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Um outro achado, de ordem intelectual, na mesma ocasião, foi a afirmação de

Vasconcelos sobre o recalcamento dos temas relativos à subjetividade nas

produções teóricas do serviço social, a partir do movimento de reconceituação, que

será objeto de análise na Introdução deste trabalho e retomada no Capítulo 7.

A pedra-de-toque do presente trabalho, contudo, foi a implantação do

Programa de Saúde da Família no município de São Paulo na gestão de Marta

Suplicy (2000-2004), onde os assistentes sociais tiveram posições de destaque

ocupando direções de distritos, coordenações de saúde mas, paradoxalmente,

distanciaram-se do serviço social. Melhor dizendo, o PSF, como é chamado o

programa, não prevê em sua equipe oficial o profissional de serviço social. No que

se refere às prioridades do Estado brasileiro quanto a implementação de ações de

saúde, a relação custo/benefício pode ter sido um elemento decisivo para essa

posição. O que intriga, entretanto, é a defesa dessa postura por alguns assistentes

sociais que estão no cotidiano profissional.

Pareceu-me, à ocasião da escolha do objeto de pesquisa, que novos

paradigmas estavam colocados para os assistentes sociais, especialmente os que

se referiam à quebra dos padrões sócio-ocupacionais institucionais tradicionais,

implicando na possibilidade do encontro de novas mediações, rica em contradições.

Na intenção de aproximar-me do novo modelo de atenção, aceitei a tarefa de

realizar discussões de casos de saúde mental com cinco equipes de PSF, na UBS

Cruz das Almas, região da Freguesia do Ó, assim como entrevistei, para o presente

trabalho, seis1 das sete assistentes sociais envolvidas nesse programa na área

geográfica compreendida pela Subprefeitura Brasilândia/Freguesia do Ó.

O resultado dessa empreitada, que buscou aproximar perpectivas tão

diversas, foi apoiado teoricamente por autores como Lucien Sève, Georges Politzer

– teoria marxista da subjetividade –, Raymond Williams – estudos culturais –, Walter

Benjamin – experiência, história e narrativa –, Mercedes Vilanova – História Oral –, e

por autores brasileiros no campo do serviço social/ciências sociais/filosofia – José 1 As entrevistas que compuseram o material escrito desta pesquisa foram cinco. A sexta, conforme explicitado no capítulo 5, não pôde ser transcrita por problemas de ordem técnica, o que não invalidou o depoimento para composição do presente texto.

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Paulo Netto, Maria Lúcia Silva Barroco, Maria Lúcia Martinelli, Maria Carmelita

Yazbek, Marilda Villela Iamamoto, Marilena Chaui, e da cultura/comunicação,

especialmente por Silvia Helena Simões Borelli.

Esse percurso encontra-se, assim, descrito na seguinte ordenação: na Parte 1

– Fundamentos teórico-metodológicos – busquei explicitar, no Capítulo 1, os

conceitos e categorias analíticos de partida. Já no Capítulo 2, tentei traduzir a

busca, em Sève e Politzer, de elementos que iluminassem o caminho para o

encontro de algumas mediações subjetivas no trabalho de assistentes sociais. O

Capítulo 3 tratou dos procedimentos adotados para a aproximação do objeto, no

caso a metodologia da História Oral.

A parte 2 – As inscrições dos dramas das vidas reais no tempo e no contexto

do trabalho – buscou a tessitura da pesquisa através de dados históricos,

geográficos, de saúde e de biografias. Assim, o Capítulo 4 – Algumas considerações

sobre saúde pública – pretendeu trazer alguns elementos para discussão, e o

Capítulo 5 – A história das histórias, o momento no qual as entrevistas inundaram

com a vida real o até então comportado trabalho acadêmico.

A parte 3 – As mediações – conta com uma introdução e dois capítulos, assim

dispostos: Capítulo 6 – Cultura e Subjetividade – , uma busca de mediações nas

biografias que pudessem ser apreciadas teoricamente, e Capítulo 7 – O contexto e

o tempo do trabalho no serviço social – , momento em que foram tecidas

considerações sobre o serviço social, recuperando diálogos com Eduardo Mourão

Vasconcelos (recalcamento dos temas da subjetividade no serviço social), buscando

propor novas perspectivas de análise através de outros autores.

Nas Considerações Finais, cheguei a um momento do percurso em que

penso ter extraído uma categoria analítica que poderá fornecer alguns elementos

para compreensão da complexa realidade na qual nos movimentamos, a partir da

perspectiva que orientou a busca da constituição histórica, materialista e dialética da

subjetividade-objetividade. Dessa forma, o tempo do trabalho como uma mediação

que alinhavou as vidas das assistentes sociais entrevistadas, comprendidos aí vários

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elementos e processos, foi a tentativa de traduzir teoricamente o que considerei uma

mediação substantiva.

O trabalho conta, ainda, com 2 textos anexos. O Anexo I, explorado no

capítulo 7, foi uma pesquisa aos informativos do CRESS – 9ª região que destacou

títulos de capas e de artigos publicados desde o primeiro número, em 1979, até final

de 2004. O objetivo foi explicitar o temas veiculados pelo Conselho através de seu

boletim. Um outro anexo, a transcrição literal de um texto publicado na Revista

Saúde e Loucura por uma das entrevistadas, Luisa Franco, objetivou apresentá-la

também através de suas concepções teóricas.

Finalmente, peço aos leitores a compreensão pelos possíveis erros e

fragilidades deste ensaio. Muitos elementos que os causaram foram superados

através de leituras e de escuta atenta de aulas e de todos com quem convivi,

especialmente durante a realização desta tese; outros, no entanto, encontram-se

inscritos no tempo e no contexto de minha vida e certamente impingiram sua feição.

Isso poderá gerar discordâncias no decorrer da leitura e causará, eventualmente,

alguma sensação de desconforto. Passadas essas dificuldades, solicito que o

material seja apreciado somente, e de fato o é, como uma tentativa de contribuir

para o debate da subjetividade no campo do serviço social, circunscrito pelos

parâmetros colocados pela academia mas, sobretudo, pelas limitações da autora do

trabalho.

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INTRODUÇÃO

Esta tese é fruto de uma pesquisa no campo do serviço social. A questão da

subjetividade como um problema de investigação emergiu como uma possibilidade

de reflexão teórica na mesma medida de sua relativa ausência na literatura sobre a

profissão. Um dos apontamentos mais significativos dessa ausência é um texto de

Eduardo Mourão Vasconcelos, no qual o autor analisa as possíveis causas desse

silêncio teórico acerca das temáticas da subjetividade. Suas reflexões apontaram o

movimento de reconceituação do serviço social como um processo que produziu um

recalcamento2 desses temas no serviço social.

...no Serviço Social, o movimento de reconceituação, ao criticar com razão a abordagem da subjetividade hegemônica no Serviço Social pré-reconceituação, praticamente a identificou como única opção disponível de abordagem da temática, acabando por reproduzir um processo de recalcamento dos temas da subjetividade, do inconsciente, da emoção e dos processos de subjetivação em geral muito semelhante àquele realizado pelo marxismo soviético, praticamente desconhecendo ou secundarizando todo o debate e a produção teórica feita por esses movimentos históricos de aproximação da esquerda com o tema da subjetividade desde a década de 20, produzindo um enorme empobrecimento teórico para a profissão (VASCONCELOS, 2000, p. 201-202, grifo do autor).

O contato com essa afirmação de Vasconcelos, ainda no ano de 2001, foi um

dos instigadores da presente pesquisa. Essa tarefa, entretanto, não poderia ser

realizada sem observar alguns outros elementos, quais sejam, a persistência na

busca da coerência teórico-metodológica, e o trabalho com fontes orais, na

perspectiva da História Oral.

Um outro trabalho mais recente, de Ana Maria Vasconcelos (2002), que versa

sobre a prática de assistentes sociais na área da saúde pública na cidade do Rio de

Janeiro, constituiu-se, igualmente, em fonte de reflexões para este percurso. 2 Para elucidação do conceito psicanalítico de recalcamento utilizado pelo autor, podemos recorrer à definição de J.Laplanche e J.-B. Pontalis (1986, p. 553): "A) No sentido próprio: operação pela qual o indivíduo procura repelir ou manter no inconsciente representações (pensamentos, imagens, recordações) ligadas a uma pulsão.(...) B) Num sentido mais vago: o termo ‘recalcamento’ é muitas vezes tomado por Freud numa acepção que o aproxima de ‘defesa’..."

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Diferentemente do primeiro autor, Vasconcelos não pretendeu discorrer sobre a

condição subjetiva do trabalho dos assistentes sociais em questão, mas sobre como

objetivamente essa prática se constitui.

Ambos os autores, ainda que por caminhos diferentes, problematizaram a

prática dos assistentes sociais, apontando para a necessidade de aprofundamento

de questões que compõem o efetivo exercício da profissão, que podem estar em

maior ou menor consonância com os fundamentos construídos pelo movimento

organizado da categoria e que hoje devem orientar a ação profissional.

Além do debate teórico, o contato com assistentes sociais e alunos de serviço

social tem representado uma fonte permanente de indagações e de paradoxos.

Refletir, portanto, sobre algumas das questões colocadas pelos autores, por colegas

profissionais e por alunos de graduação pareceu importante à medida que o

movimento histórico-social tem exigido, cada vez mais, posicionamentos que

preservem fundamentos teórico-críticos, mas que, ao mesmo tempo, radicalizem o

conhecimento da diversidade humana, para que dele sejam extraídos os elementos

para construção de bases que poderão dar sustentação a um projeto de

transformação social.

O projeto ético-político do serviço social firmou esse compromisso histórico

com a sociedade brasileira. Contudo, o imediato, repleto de concepções a priori,

embora efêmero, é a ferramenta mais próxima, mais acessível e mais utilizada na

vida cotidiana. O trabalho dos assistentes sociais, que é desempenhado nesse

contexto, está impelido pela necessidade de direcionar-se para a formulação de

respostas criativas que apontem para organização de forças sociais potencialmente

promotoras de projetos emancipatórios, em situações permeadas pelo sofrimento,

pela humilhação, pela violência, pelo desamparo e pelo descrédito nas instituições

democráticas.

Essa configuração, excessivamente dura para ser manejada e compreendida

apenas por uma categoria profissional, precisa ser enfrentada por um conjunto maior

da sociedade brasileira. Entretanto, temos a responsabilidade de construir nossa

contribuição e encontrar nas mediações algumas explicitações para os elementos

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que estão presentes nas posições teóricas e políticas. Sobretudo, é necessário nos

voltarmos para a experiência dos assistentes sociais e dela também extrair

conhecimentos.

Este foi, portanto, o primeiro desafio deste trabalho. O segundo desafio foi a

utilização da metodologia da História Oral na coleta e análise das entrevistas, sem

caricaturas, tomando cuidado para não não mergulhar nas idiossincrasias, no

privilégio das análises pontuais e dos significados particulares, embora estejam

plenamente compreendidos nas experiências narradas.

A teoria que iluminou o estudo - Teoria marxista da subjetividade (SÈVE,

1979) - exigiu a busca pelos sentidos das vidas atravessadas pelo tempo histórico.

A recorrência às categorias de Marx estranhamento/alienação foi obrigatória, assim

como a recorrência à VI Tese contra Feuerbach (MARX, 1978). À exceção, portanto,

das categorias referidas, todos os demais excertos foram composições teóricas a

partir das temáticas colocadas pelas entrevistadas, o que resultou necessário para

compreensão dos elementos das sociabilidades que, sendo instituintes das

subjetividades, encontraram-se presentes nas narrativas. Foram eles: família,

religiosidade, política e romantismo.

Do ponto de vista da investigação da produção literária, além da pesquisa

bibliográfica habitual, foi realizada uma busca nos informativos do Conselho

Regional – 9ª Região, desde seu primeiro exemplar, para verificar que conteúdo se

estava buscando transmitir aos assistentes sociais através do órgão da categoria.

Pareceu importante essa investigação, dado que os assistentes sociais que foram

entrevistados são funcionários públicos de região periférica de São Paulo, com

poucos recursos para aquisição de livros ou revistas especializadas. O informativo

do Conselho Regional é o único material que chega às suas mãos sem ônus

adicional, exceto a anuidade obrigatória para o exercício profissional.

Cabe um esclarecimento inicial quanto a utilização da categoria mediação

para composição do presente trabalho. Pontes (2002) empreendeu um estudo

minucioso sobre essa categoria na produção teórica do serviço social. Reproduzir

suas elaborações seria desnecessário, além de um esforço que teria resultados

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tímidos diante da envergadura do referido trabalho. Portanto, serão tomadas

algumas de suas considerações.

Pontes (2002, p.77-78) postula, a partir da reflexão filosófica sobre a categoria

mediação, seu caráter ontológico. Essa tradição, que se inicia com o “termo médio”

de Aristóteles, encontra em Hegel a expressão de sua essencialidade categorial, ou

seja,

...seu papel vertebral nos processos históricos. Numa palavra, apanha a concretude da mediação, especialmente, na sua Fenomenologia do Espírito, com a descoberta de que o homem é o resultado de sua automediação com a natureza, que do ponto de vista ontológico foi profundamente correta. Todavia, Hegel não consegue manter a radicalidade revolucionária de tal descoberta para além do plano lógico, porque descamba para posições de “conciliação do espírito com o mundo” (grifo do autor).

É Marx, ao “despir esta descoberta essencial de Hegel”, localizando as

mediações como as expressões das ações concretas dos homens no mundo através

do tempo histórico do trabalho, quem dá à categoria mediação seu potencial

ontológico. Na asserção de Lukács:

Não pode existir nem na natureza, nem na sociedade nenhum objeto que neste sentido (...) não seja mediato, não seja resultado de mediações. Deste ponto de vista a mediação é uma categoria objetiva, ontológica, que tem que estar presente em qualquer realidade, independente do sujeito (apud PONTES, 2002, p. 79).

Entretanto, para explicitar ainda mais o núcleo teórico-metodológico deste

trabalho é necessário mais um aporte, a relação mediação-particularidade. Pois

bem, sabemos que é na universalidade que estão contidas as grandes

determinações das formações históricas. Entretanto, suas manifestações também

estarão presentes e manifestas no ser social, de formas diferenciadas, o que implica

necessariamente seu conhecimento. Segundo Netto:

Buscar a legalidade de cada processo social é, em primeiro lugar, determinar os processos sociais; em segundo lugar, compreender sua dinâmica específica; e, em terceiro lugar vincular essa dinâmica específica a outras dinâmicas específicas em outros processos sociais (apud PONTES, p. 84).

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E, finalmente, um último elemento, que é o plano da singularidade, ou seja, a

expressão dos objetos “em si”, das expressões singulares da vida, com seus

conteúdos prosaicos, repetitivos. Segundo Pontes, referindo-se a asserções de

Netto, “a dialética dessa tríade [universalidade-particularidade-singularidade] se

expressa na realidade da vida cotidiana de cada ser social” (PONTES, 2002, p. 85).

Pontes (2002, p.85), destaca ainda que a ultrapassagem da singularidade só

poderá dar-se através da “apreensão das determinações onto-genéticas dos

processos sociais”, ou seja, nenhuma determinação que exceda ou transcenda o

ser, mas que o compreenda a partir de sua constituição empírica, que implica em

auto-movimento e mediações.

Para construir o conhecimento do serviço social no contexto das relações

sociais segundo essa angulação, “necessário se faz empreender uma verdadeira

caça às mediações que se articulam na intimidade do tecido sócio-institucional”

(PONTES, 2002, p. 172).

Um segundo esclarecimento necessário refere-se às expressões indivíduo e

sujeito: as mesmas surgirão respeitando o tratamento teórico dado pelo autor que

embasou a reflexão. Dito isso, é necessário reconhecer que essa temática é

demasiado complexa para figurar apenas como esclarecimento. Entretanto, não será

possível aprofundar todas as questões igualmente, sendo preciso eleger algumas

poucas para reflexão. Cabem, contudo, algumas palavras.

O indivíduo, enquanto espécie, distinguiu-se dos demais animais do planeta

dentre outras razões pelo desenvolvimento da capacidade de transformação do

mundo e de por ele ser transformado, o que implicou num lento e progressivo

processo dialético de objetivação-subjetivação. As relações sociais foram as forças

que selaram essa condição. Sendo assim, dada essa capacidade, o indivíduo

humano passou a ocupar um lugar diferenciado, o de ser social. Aparentemente

óbvia, essa concepção modifica radicalmente outras concepções, especialmente

aquelas que atribuem ao indivíduo capacidades advindas de forças extra-humanas

imateriais.

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Assim, uma reflexão de Barroco (2001, p. 37) localiza na possibilidade de

ascensão do singular ao humano-genérico toda complexidade da condição humana:

"Embora o indivíduo seja simultaneamente um ser singular e genérico, não é através

de sua singularidade que ele se expressa como representante do gênero humano."

Segundo a autora, o ser singular ao nível do cotidiano cumpre suas

necessidades de reprodução, o que transforma a cotidianidade numa dimensão

insuprimível. Contudo, será sua relação consciente de genericidade que lhe

outorgará a condição verdadeiramente humana.

A elevação do singular ao humano genérico é a expressão da individualidade humana, pois ela não supõe a eliminação do singular, mas a sua relação com a genericidade através da mediação da consciência. Quando o indivíduo ascende à consciência humano-genérica, sua singularidade é superada e ele se torna “inteiramente homem” (BARROCO, 2001, p. 40, grifo da autora).

Um último esclarecimento ao leitor se faz necessário. Os dramas aqui

relatados são dramas das vidas reais, portanto, desprovidos de qualquer aspecto

poético, exceto aqueles que a arte imita. Os desejos que o constituíram são com “d”

minúsculo (POLITZER, 1989), ou seja, aqueles próprios da vida comum à qual

pertencemos, majoritariamente. A subjetividade, assim, adquire contornos bem

menos misteriosos e bem menos ambiciosos dos que nossa vaidade almejaria. E

este é, sem dúvida, o mais gracioso e surpreendente resultado que se pode obter de

um empreendimento teórico na perspectiva escolhida.

Cumpre finalmente destacar que este trabalho foi construído no tumulto da

vida e que, mesmo traduzido para uma linguagem acadêmica, é um tímido ensaio

sobre as experiências vividas ao longo de quase três décadas de meu trabalho

como assistente social na área da saúde pública, período em que as parcerias com

os usuários dos serviços públicos de saúde e com meus colegas profissionais foram

sublimes, porém igualmente sofridas.

Compartilhei e compartilho ainda hoje, quer seja pela minha origem de classe,

quer seja pelo meu compromisso ético e político, de todas as dores e revoltas que

alinhavaram essas vidas. Contudo, também compartilho com esses homens,

mulheres e crianças do gozo em saber que é possível transformar.

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As assistentes sociais que participaram desta pesquisa, ao nos confiar suas

histórias de vida, impregnaram este trabalho, cada uma a seu modo, do mesmo

compromisso ético que o orientou.

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PARTE 1

FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

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Capítulo 1 – Conceituação

1.1 - Estranhamento e alienação

Todos os caminhos levam a Marx ou Marx leva a todos os caminhos? Essa

questão, que surgiu na exploração teórica do tema proposto neste trabalho, é, a bem

da verdade, uma das causas que me levaram a empreender esta trajetória.

Qualquer que seja a resposta, levam a Marx ou Marx nos leva, o debate que

se pretende está remetido ao momento histórico que vivemos, marcado por uma

complexidade tal que nos obriga a retomar a leitura do teórico que mais bem

estudou a dinâmica das relações capitalistas (sociais e de produção) e que ainda

explica os desatinos cometidos em nome da propriedade privada. Assim,

enfrentamos o grande desafio de permanecermos atentos ao método proposto por

Marx para realizar a crítica que nos possibilitaria avançar na direção das

transformações sociais.

A escolha desse autor, evidentemente, não é aleatória. É claro que qualquer

outra pessoa poderia responder à questão inicial com uma dupla negativa. Aqui,

portanto, começa a se estabelecer uma diferença, que se constitui como um ângulo

de observação se quisermos compreender o sentido da práxis.

Para Marx:

Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestados os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar-se nessa linguagem emprestada (MARX, 1978, p. 30).

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Falar sobre subjetividades partindo de Marx leva-nos, obrigatoriamente, ao

estudo de duas categorias, Entäusserung/Entefremdung. Usadas no estudo da

alienação, Entäusserung se refere à exteriorização, capacidade pela qual o homem

pode tomar distância de si próprio e conceber-se como ser social, e sempre se dá

através de alguma produção que pode originar diferentes objetos, inseridos aí os de

ordem material e os de ordem abstrata ou imaterial; já a palavra entefremdung diz

respeito ao estranhamento ou alienação, processo pelo qual o homem do mundo

burguês acaba por desapropriar-se de sua condição de ser social, a partir de um não

reconhecimento do objeto que produziu (BORGIANNI, 1998; LESSA, 2002).

Os processos gerados por esses dois movimentos são mais facilmente

compreensíveis quando pensados em grande escala, em grandes movimentos

históricos da humanidade que estampam, com cores vibrantes, a tessitura perversa

sobre a qual se fundaram e se mantêm as sociedades capitalistas contemporâneas.

Há um exemplo paradigmático dessas objetivações no campo da ciência

moderna: a descoberta da possibilidade de enriquecimento e fissão do átomo do

urânio e sua utilização em reatores de energia nuclear transformou-se na

possibilidade de fabricar a bomba atômica, que destruiu as cidades e as populações

de Hiroshima e Nagasaki. Um dos cientistas envolvidos no desenvolvimento da

energia atômica, Robert Oppenheimer, após o episódio da explosão das bombas

tornou-se um militante de direitos humanos.

Esse contundente exemplo público ainda pode nos oferecer várias

interrogações acerca das dificuldades que se apresentam para encontrar as

mediações necessárias que permitirão o deslindamento das contradições presentes

na relação entre o ser singular e a história.

E por que essa questão se torna importante? À medida que, em pleno século

XXI, após todas conquistas tecnológicas e científicas, uma parcela imensa do

planeta continua na mais completa condição de opressão e miséria. Quando, porém,

nos debruçamos na busca das determinações econômicas, históricas e sociais

dessa condição, nos defrontamos com uma dimensão que intriga mais do que

esclarece, que é a produção das circunstâncias ideológicas desses processos, o

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poder do discurso ideológico, que penetra as relações sociais e acorre no sentido de

dar a base necessária à consecução de atos de barbárie, cometidos em nome da

ordem e da preservação de valores fundamentais do sistema capitalista.

Discutir subjetividades no campo das ciências sociais, especificamente no

campo do serviço social, que tem como prerrogativa a intervenção na realidade

social, é uma tarefa de extrema dificuldade, porém fundamental. Alguns aspectos

relacionados ao processo de clivagem e à religiosidade foram utilizados para

compreender o estranhamento e a alienação.

Hegel, segundo Plant (2000), ao referir-se à natureza da existência humana

realiza uma inflexão que coloca a filosofia como a sublimação da religião.

É dito, então, que os seres humanos comeram dessa árvore. É claro, na medida em que o conteúdo interessa, que o fruto é uma imagem externa (...). O que realmente tem significado é que a humanidade se elevou a si própria ao conhecimento do bem e do mal; e essa cognição, essa distinção é fonte do mal, é o próprio mal (...) pois cognição ou consciência significa em geral um julgamento ou divisão, uma autodiferenciação dentro de si mesmo. (...) A clivagem, contudo, é o que é mal; é a contradição. Ela contém os dois lados: bem e mal. Somente nessa clivagem o mal está contido e, por conseguinte, ela é o próprio mal (apud PLANT, 2000, p.48).

Na explicação de Plant, comer o fruto da árvore do conhecimento, infringindo

dessa maneira algum mandamento, possibilitou ao homem o discernimento entre o

bem e o mal, ficando sob sua guarda, depois da inocência perdida, a

responsabilidade pessoal e o individualismo. Novamente aí, segundo o autor, Hegel

coloca na religião cristã a possibilidade de redenção, porém o faz filosoficamente,

através da recuperação da unidade, mediatizada pelo Conhecimento Absoluto.

O ser humano enquanto tal é um ser consciente; é precisamente por esta razão que a humanidade ingressa nessa clivagem... Do mesmo modo que essa clivagem é a fonte do mal, todavia ela é também o ponto médio da conversão que a consciência contém no interior dela mesma, no qual esta clivagem é também suprimida (apud PLANT, 2000, p. 50).

Eis aqui uma âncora para reflexão: o ponto médio para suprimir a clivagem e

a restauração da unidade, ou seja, a recuperação da inocência deixada no paraíso

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perdido, poderia ser alcançados através do Conhecimento Absoluto, para a filosofia,

e através de Deus, para a religião.

Para Hegel, portanto, a consciência individual leva à capacidade para o certo e o errado, mas porque a consciência tem também o desejo primordial de unidade, como Hegel sustentou ao longo de sua obra, a possibilidade de superação da Queda e a dirupção que ela causa podem ser conquistadas pela própria consciência e, portanto, em sua linguagem, ‘essa clivagem é suprimida’ (PLANT, 2000, p. 50).

Segundo Raymond Plant (2000), Hegel , Hölderlin e Schelling, ao refletirem

sobre as divisões e fragmentações provocadas pela vida moderna, sobretudo a

visão da tradição judaico-cristã tradicional que concebia o homem como um

estrangeiro, um ser a peregrinar por uma terra que não é a sua, chamaram de

estranhamento essa divisão interna que se processaria no homem e que apartaria

razão da imaginação e do sentimento: “ ‘Nossa religião deseja educar os homens

para ser cidadãos do paraíso, que olham sempre para o alto, e isso os torna

estranhos ao sentimento humano’” (HEGEL apud PLANT, 2000, p. 21).

Especificamente sobre Hegel, refere Plant:

Desde muito jovem (...) estava profundamente ocupado com a questão do relacionamento entre religião e vida em comum na sociedade, e com a potencialidade da religião em assegurar uma integração da personalidade humana, em superar o que em A fenomenologia do espírito ele denominou ‘consciência infeliz’ e em recuperar um senso de ‘estar à vontade’ no mundo (PLANT, 2000, p.22, grifo do autor).

A preocupação de Hegel voltava-se à constituição da vida social, que se

erguera, em parte, pelo pensamento racional que, transformando o cristianismo em

teologia e doutrina, teria promovido um esvaziamento no homem da imaginação e

do sentimento.3 Nessa direção, aludiu à necessidade de se ter uma nova mitologia,

a serviço das Idéias, uma mitologia da Razão e, dessa forma, resolver o problema

3 "A Fenomenologia do Espírito deve substituir-se às explicações psicológicas ou às discussões mais abstratas sobre a fundamentação do saber. O sujeito e o fenômeno kantianos são rigorosamente anistóricos. Desde o ponto de vista de Hegel, são, portanto, abstratos. (...) Hegel transfere para o próprio coração do sujeito – para o seu saber – a condição de fenômeno que Kant [Crítica da Razão pura] cingira à esfera do objeto. Essa é a originalidade da Fenomenologia e é nessa perspectiva que ela pode ser apresentada como processo de "formação" (cultura ou Bildung) do sujeito para a ciência" (VAZ In: HEGEL, 1992, p. 11).

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criado pela clássica cisão entre razão e emoção que destinou a ciência para os

sábios e, para os homens comuns, a emoção. Nos termos de Hegel,

...enquanto não expressarmos as Idéias esteticamente, isto é, mitologicamente, elas não têm interesse para o povo, e, ao contrário, enquanto a mitologia não é racional, o filósofo tem de envergonhar-se dela. Dessa maneira, devem finalmente, Ilustrados e Não-Ilustrados, estender-se as mãos; a mitologia tem de se tornar filosófica para tornar o povo racional; e a filosofia tem de se tornar mitológica, para tornar os filósofos sensíveis (sinnlich)” (apud PLANT, 2000, p. 27).

Esse fragmento de Hegel, segundo Plant, foi escrito em 1796 e revisto por

volta de 1801, já com novas perspectivas para o desenvolvimento de sua filosofia.4

Ludwig Feuerbach, n’A Essência do Cristianismo (1988), formulou uma crítica

radical a Hegel, que implicou numa ruptura ontológica acerca da essência humana,

da teologia, da religião e de Deus: ao invés do homem ser uma criação de Deus,

para Feuerbach, Deus é uma criação do homem. Hermeneuticamente, a teologia

seria a antropologia. Deus está diretamente referido, para Feuerbach, ao que o

homem possui de seu próprio pensamento e disposição projetados num objeto que,

ao tomar forma, se constituirá no próprio sujeito e, assim, podemos ver os primeiros

sinais do que se constituirá no processo de alienação.

Há aí, certamente, uma inflexão teórica de tal importância que esse texto,

escrito em 1841, levou Feuerbach, segundo Rubem Alves (1988) no prefácio da

edição brasileira d’A Essência do Cristianismo, ao mais completo ostracismo

intelectual e ao fim de sua carreira acadêmica. Sua crítica radical à teologia

pretendia destituí-la de suas pretensões teóricas, chegando à essência humana,

para ele a verdadeira essência da religião. A religião como “o solene desvelar dos

tesouros ocultos do homem, a revelação dos seus pensamentos íntimos, a confissão

pública dos seus segredos de amor...” (FEUERBACH, 1998, p. 14).

4 "A Fenomenologia do Espírito é uma obra, por tantos títulos original e mesmo única dentro da tradição do escrito filosófico, e que assinala em 1807 (o autor contava então 37 anos) a aparição de Hegel no primeiro plano de cena filosófica alemã. Tendo publicado até então apenas artigos ou pequenos escritos mas tendo, por outro lado, amadurecido durante os anos do seu ensinamento na Universidade de Jena (1801-1806) as grandes linhas do seu sistema no confronto com os grandes mestres do Idealismo alemão, sobretudo Kant, Fichte e Schelling, Hegel pretende fazer da Fenomenologia o pórtico grandioso desse sistema que se apresenta orgulhosamente como Sistema da Ciência" (VAZ In: HEGEL, 1992, p. 9).

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Para Rubem Alves,

...o discurso religioso, assim, é a expressão-protesto da criatura oprimida, impossibilitada de se realizar dentro das condições dominantes. Sua realidade e seu projeto não desaparecem. Realizam-se simbolicamente nos símbolos religiosos, que se constituem num horizonte para a ação... (In: FEUERBACH, 1998, p.15).

Como se explica, em Feuerbach, o processo de clivagem enquanto a

separação do homem de sua essência? Em primeiro lugar, através de uma cisão, ou

de um desdobramento, onde não consegue realizar-se universalmente. Em segundo

lugar, uma projeção, ou seja, aquilo que não pode realizar em si é projetado para

fora, para o mundo externo, atribuindo todas as capacidades do gênero humano a

um Outro todo-poderoso, já que, cindido, não encontra sustentação para fincar os

elementos fundamentais para a sua realização. Em terceiro, uma inversão, ou seja,

ao perceber-se como criatura limitada, apartada da possibilidade de realizar

singularmente as potencialidades humanas, diante do Outro todo-poderoso,

ilimitado, torna-se objeto, enquanto transforma o Outro em sujeito. (BERTRAND In:

SILVEIRA; DORAY, 1989, p. 17).

Dessa maneira, a religiosidade pode ser compreendida como um esforço

particularizado, singularizado, de realizar uma restauração e, assim, suprimir o

sofrimento causado pela clivagem.

É este o desejo essencial e fundamental que está na fonte de toda crença. O homem, sem dúvida, o consegue através da religião, mas somente na imaginação, e é por isto que a religião é uma ilusão (BERTRAND In: SILVEIRA; DORAY, 1989, p. 17)

Marx também, como sabemos, estudou atentamente Hegel e Feuerbach, de

maneira que qualquer referência ao seu pensamento só pode ser consistente se

tributados aos dois autores vários de seus elementos axiais.

Em 1845, Marx escreveu as Teses contra Feuerbach (1974), um ano após o

reconhecimento do que considerou a única contribuição crítica e séria a respeito da

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dialética de Hegel e da velha filosofia. Na 6a. Tese, Marx revela, de maneira simples

e enfática, suas concepções a respeito da “essência humana”: “Feuerbach resolve o

mundo religioso na essência humana. Mas a essência humana não é abstrato

residindo no indivíduo único. Em sua efetividade é o conjunto das relações sociais”

(MARX,1974, p. 58, grifo do autor).

Essa inflexão, tão cara ao pensamento moderno, é uma questão

metodológica que indica que é na realidade social que se encontram as razões do

sofrimento humano e não numa suposta “essência” humana. Assim, na 8a. Tese,

afirma:

Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios, que induzem às doutrinas do misticismo, encontram sua solução racional na praxis humana e no compreender dessa praxis (MARX, 1974, p. 58, grifo do autor).

Para Marx, as relações só se transformam em relações humanas a partir da

sociabilidade:

...o caráter social é, pois, o caráter geral de todo o movimento; assim como é a própria sociedade que produz o homem enquanto homem, assim também ela é produzida por ele. A atividade e o gozo também são sociais, tanto em seu modo de existência, como em seu conteúdo; atividade social e gozo social. A essência humana da natureza não existe senão para o homem social, pois apenas assim existe para ele como vínculo com o homem, como modo de existência sua para o outro e modo de existência do outro para ele, como elemento vital da efetividade humana; só assim existe como fundamento de seu próprio modo de existência humano. (...) A sociedade é, pois, a plena unidade essencial do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo acabado do homem e o humanismo acabado da natureza (MARX, 1974, p. 58, grifo do autor).

É este o ponto que Bertrand aborda enquanto possibilidade de considerar as

palavras de Marx não de maneira simplificadora ou mecânica, mas de uma lógica

que chega a ser desconcertante:

Se as raízes da ilusão estão no mundo real, a crítica deve visar não a ilusão, mas o mundo real que a produz: (...) “exigir do homem que renuncie às ilusões sobre sua situação é exigir que renuncie a uma situação que necessita de ilusões”. Marx privilegia, sem dúvida nenhuma, a raiz social da ilusão. Certamente há um efeito subjetivo, a clivagem, a

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divisão do sujeito, que sente isto dolorosamente e se esforça para superá-la de um modo imaginário (BERTRAND In: SILVEIRA; DORAY, 1989, p. 18).

O sofrimento causado pela perda da capacidade de transformar e de

transformar-se é praticamente insuportável. Os sucessivos golpes que os indivíduos

sofrem e desferem contra sua própria condição humana os ameaçam de um lugar

que aterroriza, o da própria subjetividade. Assim, diante do próprio clamor, do

desespero, da ausência total de possibilidades reais, objetivas, para uma existência

feliz na “terra prometida”, resta somente projetá-la para além da materialidade

terrena.

Entretanto, os homens constroem, objetivamente, as possibilidades de

emancipação. Não em uma vida singularmente definida, mas na apropriação de

parte do patrimônio social criado pela humanidade na sua incessante busca de

elementos para suprir suas necessidades.

Desde já, na intenção de construir uma possibilidade de teorizar a

subjetividade, o conceito foi compreendido através de um prefixo: inter. Esse prefixo

no contexto deste trabalho significa uma relação. Relação entre subjetividades e

relação entre objetividade e subjetividade, como elementos que fundam as

possibilidades de transformação de situações tanto micro quanto

macroscopicamente referidas.

Partir de construções conceituais prévias, após tanto já dito e feito, embora

seja um caminho menos ambicioso e, eventualmente, menos criativo, pode oferecer

novas reflexões. Qualquer afirmação, avaliação ou um estudo mais afincado acerca

de alguma categoria ou conceito de Marx necessita sempre ser realizado com

cuidado, requer uma análise crítica que incida sobre o movimento das contradições

do real.

O duplo conceito estranhamento/alienação pareceu-me exemplar para uma

reflexão sobre o que se processa nas subjetividades a partir das sociabilidades.

Marcado pelo aviltamento dos pobres e de todos aqueles que vivem da ilusão

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capitalista do trabalho, o estranhamento se processa com os próprios sentimentos

produzidos pelos sujeitos. Estes, os sentimentos, também são transformados em

mercadorias e também podem ser enquadrados no cerne das relações de

produção/reprodução sociais e da mais-valia.

1.2 - O lugar do trabalho na constituição da vida humana

O trabalho é o fator que medeia entre o homem

e a natureza...

Erich Fromm

Capital e trabalho são categorias que, atreladas pelo capitalismo,

antagonizam-se. Este é um pressuposto fundamental se quisermos iniciar uma

compreensão do sofrimento humano.

Uma primeira aproximação da categoria trabalho se faz necessária.

Compreendida em seu sentido ontológico, expressa o fundamento do ser social. Nas

palavras de Lukács: “... o trabalho é antes de mais nada, em termos genéticos, o

ponto de partida da humanização do homem, do refinamento de suas faculdades,

processo do qual não se deve esquecer o domínio sobre si mesmo”. Esse ponto de

partida ao qual Luckács se refere permanece, ao longo da existência humana, como

capacidade vital, possibilitando o desenvolvimento da sociabilidade, da consciência,

da universalidade e da liberdade pela via da autoconstrução histórica (LUKÁCS

apud BARROCO, 2002, p.26).

Essa afirmação, referida ao pensamento de Marx, não desperta nenhuma

estranheza naqueles que estão acostumados a considerá-la como condição

fundamental para a compreensão da realidade. Em um trecho iluminado da obra -

Fundamentos da Crítica de Economia Política – Marx refere:

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... uma vez superada a limitada forma burguesa, o que é a riqueza se não o pleno desenvolvimento do domínio do homem sobre as forças da natureza, tanto sobre as da chamada natureza quanto sobre as da sua própria natureza? O que é a riqueza se não a explicitação absoluta de suas faculdades criativas, sem outro pressuposto além do desenvolvimento histórico anterior, que torna finalidade em si mesma essa totalidade do desenvolvimento, ou seja, do desenvolvimento de todas as forças humanas enquanto tais, não avaliadas segundo um metro já dado? (MARX apud BARROCO, 2002, p.33, grifo nosso).

Contudo, para compreender como, de salto ontológico do homem com

relação aos outros seres na natureza, o trabalho se transformou em fonte de

sofrimento, é necessário compreender duas dimensões, “a relação entre trabalho e

trabalho abstrato (produtivo e improdutivo)...[e] as eventuais relações entre a

centralidade ontológica do trabalho, a centralidade cotidiana do emprego e a

centralidade política da classe trabalhadora” (LESSA, 2002, p.27).

O primeiro elemento de análise, a relação entre trabalho (elemento

ontológico) e trabalho abstrato (apropriado pelo sistema capitalista e produtor de

mais-valia), embora facilmente compreensível através de suas definições, está, na

prática, contaminado pelos movimentos da produção e da reprodução sociais.

O próprio exemplo dado por Lessa (2002) para buscar elucidar a questão

parte da necessidade de estabelecer uma série de abstrações ou

desconsiderações, como o mesmo sugere:

Pensemos no processo de construção de uma casa e desconsideremos o fato de ser ela um elo da reprodução ampliada de capital à medida que o seu construtor compra cimento, tijolos, ferro, etc; ou seja, desconsideremos o fato de que nem todo o trabalho plasmado na casa seja diretamente resultante da atividade de quem a construiu. Se a pessoa que constrói a casa, tal como ocorre nos infinitos casos de “autoconstrução” em nossas cidades, vai nela habitar, sua relação com a moradia, se algum tempo depois for colocada à venda, passa a ter sua relação com quem a construiu como mero valor de troca, passa a ser mensurada a partir do tempo de trabalho socialmente necessário nela plasmado. A diferença qualitativa entre essas duas relações pode ser percebida praticamente: com o mesmo material e desenvolvimento das forcas produtivas, uma casa construída como valor de uso é na maior parte das vezes muito melhor que aquela produzida como valor de troca. Cotidianamente esse fato é reconhecido quando afirmamos que o pedreiro, ao fazer a casa para si mesmo, é muito mais ‘caprichoso’ do que quando vende sua força de trabalho para outrem. Portanto: um mesmo ato de trabalho pode ser, em um dado momento, trabalho e, em outro, trabalho abstrato (LESSA, 2002, p.31).

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Como se pode observar, não há praticamente como escapar à teia de

produção/reprodução sociais. Ainda que façamos uma série de concessões, uma

série de tentativas de compreensão desses processos, somente ontologicamente

podemos distinguir com clareza essas duas dimensões. É onde Lessa também

chega ao afirmar, finalizando seu exemplo: “Não há abismo nas relações sociais

que articulam prática e cotidianamente essas duas categorias” (2002, p. 31).

Podemos, segundo Lessa, compreender a distinção entre duas identidades

formais da categoria trabalho pelas funções sociais que cumprem. A primeira,

trabalho sem adjetivos, o “componente distintivo do homem como um ser prático-

social e, portanto, histórico: produto e criador da vida em sociedade” (IAMAMOTO,

2001, p.35, grifo da autora), e a segunda, trabalho com adjetivo, trabalho abstrato,

portanto como necessidade para a reprodução social.

Essa distinção, ainda que em sentido ontológico, é fundamental para não nos

lançarmos em um terreno guiado pelo determinismo, pela falta de compreensão da

importância do movimento histórico e da contradição na teoria crítica.

Vejamos, porém, a importância do trabalho para o sujeito que o tem como

condição única de pertença a uma sociedade: é de conhecimento de todos aqueles

que transitam pela esfera da reprodução social, assistentes sociais, por exemplo, o

significado social e subjetivo do trabalho como o elemento que imprime sentido à

existência. Nesse aspecto, não há diferença entre trabalho e trabalho abstrato e

tampouco podemos distinguí-la claramente na complexa rede de relações sociais

em que se encontram imbricados.

Ocorre que, novamente, o movimento que define o trabalho nas sociedades

capitalistas pode ser visto como pendular. Se, por um lado, há um reconhecimento

por parte dos sujeitos da centralidade do trabalho em suas existências,

considerando que todos os sujeitos podem ser protagonistas do salto ontológico que

os originou como seres sociais e que os projeta ao anseio por uma vida plena, por

outro, só é possível realizá-lo em condições muito específicas. A principal delas é a

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que ele próprio possa transformar-se em mercadoria e que essa mercadoria tenha

um valor que possa ser trocado por outra, qual seja, o dinheiro.

Esse mecanismo, presente em todas as relações de produção, implica num

grande distanciamento entre o sujeito e a genericidade humana. Esse

distanciamento origina a clivagem, como conseqüência subjetiva, e a ilusão, como

uma tentativa de suprimir o sofrimento causado por ela.

O conceito de clivagem foi desenvolvido por Feuerbach e retomado por Marx

para a realização de uma inflexão fundamental: esquematicamente, o conceito que,

em Feuerbach, relaciona-se com o sujeito, no sentido em que se processa uma

cisão entre a essência e o genérico, em Marx relaciona-se com a sociedade, com o

conjunto das relações sociais, com o mundo do homem, onde situa o que se pode

chamar de essência humana (BERTRAND In: SILVEIRA; DORAY, 1989, p.17-18).

Numa outra leitura, Marilena Chaui (1996) apresenta aspectos de como se

processam na cultura os mecanismos de adesão e de resistência aos processos

ideológicos. Para a autora, não se trata de conformismo ou resistência. Trata-se de

duas categorias indissoluvelmente ligadas, como parte de uma mesma possibilidade

humana, contidas num mesmo corpo, num mesmo ser. Para Espinosa, filósofo

importante nas reflexões de Chaui, a potência de padecimento e a potência de ação

são forças que estão presentes todo o tempo, sendo que a potência de ação ou a

necessidade de perseverar e expandir no próprio ser é a condição básica para

superar a servidão e a tirania e, dessa forma, atingir a liberdade.

Trazendo essa reflexão para o plano da política e da sociabilidade nas

sociedades modernas, trata-se, portanto, de um esforço no sentido de superar a

razão instrumental, parte do ideário neoliberal, que impõe a banalização do

sofrimento humano e encerra no plano do “psicológico” toda sorte de dores e

padecimentos, que não são nada mais que a tradução das atrocidades praticadas

historicamente em nome da ordem, principalmente contra o contingente pobre da

humanidade. Nesta ordenação é que se dá a reificação do sofrimento humano,

traduzido neste trabalho como sofrimento psíquico, tipificado num complexo de

elementos a ser tratado como produção patológica do sujeito.

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Encontram-se perfilados nessa lógica perversa os que estão inseridos na

produção mercantil, via trabalho assalariado, e aqueles que já não mais

conseguem, ou nunca conseguiram, a base material necessária à auto-reprodução.

Em ambas as condições podemos observar o movimento de resistência à perda da

condição humana através de um ato instituinte, a práxis.

Esse exercício de aproximação é necessário se considerarmos a

sociabilidade como elemento fundador da subjetividade. O intrigante na discussão

em curso é que o sofrimento humano, transformado ideologicamente em sofrimento

psíquico, desconsidera a dimensão histórica e social da gênese humana e o

considera como um fenômeno particular, diretamente relacionado às idiossincrasias

daquele indivíduo. Esse, a meu ver, é o pulo do gato capitalista para, ao classificar e

tratar cada vez mais o sofrimento humano como patologia, proceder a uma

reificação do mesmo, colocando-o num plano que não pode ser compreendido pelo

sujeito e nem pelos seus pares, separando-o como se faz com o trigo e o joio.

Segundo José Paulo Netto, para compreender a ocorrência da reificação é

necessário compreender duas outras categorias fundamentais no pensamento de

Marx, quais sejam, a alienação e o fetichismo:

Se compreendermos por alienação (e esta me parece ser a leitura legitimada pelos Manuscritos de 1844) o processo pelo qual os sujeitos (os indivíduos, os agentes sociais particulares) se desapossam de si e da sua atividade criadora na medida em que não conseguem captar as mediações sociais que os vinculam à vida social em seu conjunto e dinamismo, pode-se garantir que a alienação tem todas as possibilidades de se afirmar e desenvolver sem colar-se ou cristalizar-se em coisas (que é o traço constitutivo e pertinente da alienação engendrada a partir do fetichismo) (NETTO, 1981, p.74 -75).

A culpa, a angústia, os temores, o pânico, a tristeza tomam conta desse

sujeito e o exaurem, o tornam ensimesmado, o impedem de exercer a capacidade

vital de auto-transformação que diferencia o homem de qualquer outro ser da

natureza. O golpe desferido atinge a sociabilidade, e o mundo privado, encerrado à

sua cotidianidade, é o espaço que resta à existência humana. Segundo Heller,

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embora a cotidianidade seja constitutiva da vida humana, ela não possibilita uma

consciência do humano-genérico, é necessário ultrapassá-la (HELLER, 2000 ).

Essa ultrapassagem é o que possibilita ao indivíduo “...entrar em contato com

suas capacidades essenciais, ou seja, com sua capacidade de criar, transformar,

escolher, valorizar de forma consciente” (BARROCO, 2001, p. 40). Em outros

termos, transformar a natureza e ser transformado. Contudo, a cotidianidade, onde

uma expressão da dimensão subjetiva se concretiza, não pode ser desconsiderada.

É necessário compreender que, para o exercício da liberdade, da autonomia e da

razão, o homem genérico necessita de sua base singular.

Marilena Chaui (1997), numa mesa-redonda sobre Subjetividades

Contemporâneas, afirmou que devemos refletir sobre as sociabilidades que

plasmam as subjetividades. As sociabilidades estão intimamente relacionadas com a

cotidianidade. Não é possível viver cotidianamente na clausura de um mundo

asfixiante, sob o temor constante da morte, da fome e da doença, sem que isso

defina sociabilidades e, também, subjetividades.

Evidentemente, isso não se processa no real através da tradicional

formulação causa-efeito. Seria, portanto, ingênuo dizer que o medo produz

automaticamente o que chamamos síndrome do pânico, que a suscetibilidade para

adoecer criaria a hipocondria ou que a ameaça da morte geraria as fobias, a

ansiedade ou a depressão. Isto seria colagem, não mediação. Aquilo que proponho,

a partir da compreensão desses autores, é que as subjetividades, ao se constituírem

socialmente e, portanto, historicamente, conterão em si todos os componentes da

realidade social.

A exigência deste trabalho, buscando referência em Marx para a explicitação

do objeto proposto, implica numa tarefa que não pode prescindir de autores que,

dentro da tradição de pensamento aludida, trabalhem com a subjetividade. Nesse

sentido, além dos autores clássicos, houve a apropriação de uma autora brasileira,

Anita Cristina A. Resende (1992), que tratou do tema Fetichismo e Subjetividade.

Nesse trabalho, sob orientação de Octávio Ianni, Resende se debruçou na

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compreensão, através de categorias presentes no método de Marx, dos elementos

que constituem a formação da subjetividade.

Desde o início suas considerações expuseram a dificuldade do tratamento

dessa questão a partir de Marx. O movimento teórico posterior ao autor não raras

vezes situa as produções subjetivas como algo impróprio a esse pensamento,

desconsiderando a subjetividade como fato histórico e, portanto, provido de

concretude e objetividade.

Em outros momentos históricos houve, contudo, uma tentativa de analisar

essa condição que, sendo humana, não poderia estar ausente no pensamento de

Marx. Segundo a autora, uma reflexão sobre essa questão deu-se a partir de, pelo

menos, dois eventos históricos fundamentais para o pensamento ocidental: o

primeiro deles, a Revolução Russa em 1917, quando se consideravam pouco

desenvolvidas as condições objetivas e de consciência de classe para seu êxito; o

outro, em direção oposta aos ventos da revolução proletária, a ascensão do nazismo

na Alemanha e do fascismo na Itália, quando se acreditavam mais solidificadas as

condições objetivas e de organização de classe para a ruptura com o capitalismo.

São também dessa mesma época, mais precisamente de 1929, os escritos

iniciais de Antonio Gramsci na elaboração do que se chamaram Cadernos do

Cárcere, que foram produzidos em sua condição de preso político do regime fascista

na Itália, até 1935, dois anos antes de sua morte. Os escritos de Gramsci se

revelaram como marco fundamental da preocupação em compreender o movimento

das consciências que, coletivamente, tomam uma ou outra direção e definem

situações que darão origem a longos períodos históricos. Foram nessa direção seus

estudos sobre cultura, grupos subalternos e filosofia da práxis, dentre outros

conceitos e categorias.

As ações humanas, coletivas, institucionais ou singulares, podem gerar

sofrimento. Essas ações, quando referidas a sujeitos ou grupos subalternizados,

trazem freqüentemente, de maneira embutida ou explícita, o imperativo da disciplina,

do controle e da repressão. O sofrimento, atravessado pelas ideologias, passa a ser

tratado como sofrimento psíquico, mas nada mais é que tão somente a expressão do

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fracasso da capacidade de transformar as coisas em meios através do trabalho,

entendendo trabalho como atividade humana concreta e histórica, transformadora da

natureza e do próprio homem.

Os debates centrados na consideração da categoria trabalho, relacionada à

transformação da natureza, que privilegia a produção de mercadorias que, através

da valorização, transformam-se em bens, embora sejam os alicerces do qual

partimos para a compreensão da condição humana atual, não lançam luz suficiente

para analisar o objeto do presente ensaio. Para isso, será necessária uma expansão

dessa concepção para que seja possível considerar trabalho como qualquer

atividade humana, quer seja na produção material, quer seja na produção e

reprodução de valores, de símbolos ou mesmo das formas expressivas de dor ou

prazer, compreendida através de uma relação dialética e, portanto, indissolúvel entre

objetividade e subjetividade.

Segundo Chaui, também o saber é um trabalho:

Por ser um trabalho, é uma negação reflexionante, isto é, uma negação que, por sua própria força interna, transforma algo que lhe é externo, resistente e opaco. O saber é o trabalho para elevar à dimensão do conceito uma situação de não-saber, isto é, a experiência imediata cuja obscuridade pede o trabalho de clarificação (CHAUI, 1997, p.45).

Resende, ao tratar da necessidade de considerar objetividade e subjetividade

sempre na perspectiva da relação, afirmou:

A automatização desses elementos [objetividade e subjetividade] implica sempre a impossibilidade de resolução efetiva, a abstração, a fetichização de ambos. Por contraditória que pareça, a negação da vida subjetiva enquanto uma realidade concreta termina por derivar, para além de uma subjetividade pura, numa objetividade abstrata. A análise da realidade social, se despojada da vida subjetiva, transforma-se em sociologismo; ao mesmo tempo, se despojada de sua objetividade, transforma-se em psicologismo. Ambos são falsos em todas as suas formas. A maldição da psicologia tem sido, pela redução de toda realidade à ação do sujeito, a perda da capacidade de distinguir entre as ilusões e a realidade. Por outro lado, uma objetividade anti-subjetiva tem sido a maldição de determinadas vertentes do marxismo que durante décadas rejeitaram as categorias indivíduo, subjetividade, psiquismo, por não terem nenhuma importância na análise objetiva da sociedade (RESENDE, 1992, p.10).

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A autora empreendeu, a partir dessas considerações, um trabalho que se

desenvolveu no pressuposto de que “... ao desvendar de forma tão radical a

sociedade, Marx iluminou e revelou espaços até então obscuros da racionalidade da

subjetividade da sociedade burguesa” (RESENDE, 1992, p.10).

Capítulo 2 – Elementos da teoria marxista da subjet ividade : diálogo com

Lucien Sève e Georges Politzer.

2.1 - A ciência da biografia

Existe um abismo entre uma combinação de

condutas e uma vida humana.

Lucien Sève

O autor em epígrafe, filósofo francês nascido em 1926, é um dos mais

significativos nomes da teoria crítica contemporânea. Em meados dos anos

cinqüenta do século XX dedicou-se a pesquisar a relação entre a teoria de Marx e a

individualidade humana. O resultado dessa investigação transformou-se em um

marco teórico fundamental para diversas áreas da produção de conhecimento

científico. Denominou-a, em 1968, cerca de quinze anos após seu início, de

Marxisme et Théorie de la Personnalité (SÈVE, 1979, p. 9; SÈVE In: SILVEIRA;

DORAY, 1989, p. 153).

Para tanto, promoveu uma crítica radical à psicologia e enfrentou

posições que questionavam a submissão da psicologia ao exame da filosofia.

Segundo o autor, o próprio Piaget posicionava-se nesse sentido:

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Como psicólogo, recuso-me terminantemente – e creio-me, a este respeito, solidário com todos os homens de ciência, seja em que disciplina for – a que os representantes de uma instância diferente venham esclarecer-me sobre qual é o meu domínio, e o venham limitar, afirmando-me: aqui está o que é matemático e o que não é: aqui está o que é psicológico e o que não é (PIAGET In: SÈVE, 1979, p. 62).

Sève considerava a psicologia, segundo a epistemologia marxista,

como uma ciência imatura do século XX, “uma gigantesca ciência adolescente,

em comparação com o que poderia ser, no passado, uma ciência em vias de

formação” (SÈVE, 1979, p.61). E justamente pelo avanço que obtivera em meio

século, apontando para questões que dizem respeito à concepção geral do

homem e ao conjunto das práticas sociais, justificou sua investida. Usando

palavras de Canguilhem:

“é inevitável que, ao propor-se a si mesma como teoria geral da conduta, a psicologia faça sua uma qualquer idéia do homem. Nesse caso, temos de permitir à filosofia que interrogue a psicologia sobre a origem dessa idéia e se não teria sido, no fundo, alguma filosofia” (apud SÈVE, 1979, p. 78).

Estabeleceu, a partir de 1952, as bases para um debate com os autores da

psicologia da personalidade acerca do próprio conceito de personalidade que,

segundo ele, promovia e promove uma redução de objeto. Essa reflexão foi

elaborada em contraposição a um movimento de intelectuais franceses na direção

do resgate da psicologia de Pavlov5 como sendo uma psicologia marxista, através

da revista de psiquiatras comunistas La Raison, de dezembro de 1954.

Sève firma o eixo de sua crítica no estatuto do positivismo presente na

definição de personalidade como sendo “a unidade estável e individualizada de

conjuntos de condutas, ou seja, o conjunto exaustivo de invariantes pessoais”

(SÈVE, 1979, p. 154). Essa proposição, segundo ele, privilegiava o estudo dos

5 Ivan Petrovich Pavlov (1849-1936), fisiologista laureado com o prêmio Nobel e célebre por suas investigações no campo dos reflexos do corpo. "Ao estudar a fisiologia do sistema gastrointestinal, fez uma das descobertas científicas da atualidade: o reflexo condicionado. Foi uma das primeiras abordagens realmente objetivas e científicas do estudo da aprendizagem, principalmente porque forneceu um método que podia ser verificado e explorado de inúmeras maneiras, usando a metodologia da fisiologia. Pavlov inaugurava, assim, a psicologia científica acoplando-se à neurofisiologia” (Revista Eletrônica de Divulgação Científica em Neurociência. Universidade Estadual de Campinas In: http://www.cerebromente.org.br/).

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processos repetitivos do funcionamento psíquico, retirando de suas bases toda a

exuberância da vida social demarcada pela ação do tempo histórico.

Nesse caso, parece ser admitido como evidência primeira o fato de que haveria personalidade unicamente na repetição mais ou menos idêntica das condutas, ou, em outras palavras, de que a prodigiosa riqueza animadora dos atos – que faz a diferença existencial dos destinos individuais–, a diferença biográfica das idades da vida, a diferença histórica das maneiras de ser de um indivíduo, não diriam respeito à personalidade, sendo esta última como um simples fluxo de acontecimentos contingentes que atravessam, sem tocar, uma estrutura fixa do psiquismo (SÈVE In: SILVEIRA e DORAY, 1989, p. 154).

Afirmou, dessa maneira, que a aplicação desse tipo de procedimento

científico (o que estuda o psiquismo humano da mesma forma que estuda o

psiquismo animal) assemelha todos os vertebrados superiores, inclusive o indivíduo

humano, pois em todos é possível localizar uma unidade estável e individualizada

de condutas . Destacou que isso impede promover uma diferença fundamental na

compreensão do psiquismo humano, qual seja, a diferença entre a individualidade e

a personalidade, afirmando: “só há personalidade humana” (SÈVE In: SILVEIRA;

DORAY, 1989, p.154, grifo do autor).

Nesse embate teórico o autor resgatou a VI Tese sobre Feuerbach, de Marx,

segundo a qual a essência humana é o conjunto das relações sociais, para alinhavar

como compreendeu essa asserção: o percurso das gerações constituiu, no tempo

rápido da história, um mundo produzido socialmente que supera o ritmo da evolução

biológica. Esse processo de objetivação, segundo o autor, possibilitou a “reprodução

indefinidamente ampliada das capacidades humanas desenvolvidas” (SÈVE In:

SILVEIRA; DORAY, 1989, p.155, grifo do autor).

Assim, sua teoria de personalidade não se restringe à questão da evolução da

espécie, mas à produção e à reprodução sociais ilimitadas através dos signos, dos

instrumentos e das relações sociais.

Essa passagem amplia e localiza o objeto de sua investigação, qual seja, a

personalidade constituída na e pela história, pela totalidade social, abarcadas aí

todas as mediações, substantivas e adjetivas.

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A sua base de transmissão não está [das capacidades humanas], portanto, inscrita num programa psíquico na criança, mas se encontra socialmente descentrada em relação a ela, inclusive nas realidades não psíquicas, e é graças à sua apropriação parcial, psiquicamente mediada por outrem, que ela se individualiza humanamente por intermédio de uma biografia inesgotavelmente singular (SÈVE In: SILVEIRA; DORAY, 1989, p. 155, grifos do autor)

Isso não significa afirmar que somente as relações sociais, em mão única,

recobrem as biografias de sentidos, usando o mesmo termo do autor. Assim

procedendo, recair-se-ia no mesmo determinismo sociológico de que foi acusado o

pensamento de Marx, em contraposição ao humanismo moralizante que localizou na

mudança dos homens a senha para a mudança da sociedade.

A chave para compreensão dessa equação, portanto, é a objetivação,

compreendida enquanto uma relação dialética entre objetividade e subjetividade,

historicamente situada. Em suas palavras, é necessário compreender “ o que um

homem faz de sua vida e o que a sua vida faz dele” (SÈVE In: SILVEIRA; DORAY,

1989, p.155, grifo do autor). Isto significa que os homens criam as condições

objetivas para a sua emancipação, o que não quer dizer que abraçar um projeto

individual seja o suficiente, numa vida singular, para a ruptura da alienação.

Ainda no texto citado de 1989, Sève, ao referir-se às inquietações teóricas

que o levaram a produzir a Teoria Marxista da Subjetividade a partir de 1952,

destacou um outro filósofo, de nacionalidade russa, Vygotski6, que já há vinte e cinco

desenvolvera uma obra com base nos conceitos do materialismo histórico. Essa

produção de Vygostski, encontrada em Signification Historique de la Crise de la

Psychologie, não era conhecida por Sève e o levou a refletir sobre “...quanto tempo

6 Vygotsky, assim como Sève, buscou desenvolver uma obra utilizando os conceitos do materialismo histórico, quando figuravam no horizonte científico, principalmente, as proposições de Pavlov sobre o reflexo condicionado, que não será abordado neste trabalho por não se tratar de objeto fundamental para a presente reflexão. “Vygotsky emergiu na psicologia em um momento extremamente significativo, dadas a consolidação da Revolução Russa e a inauguração de uma nova sociedade, que tendencialmente procuravam a compreensão de um novo homem, exigindo, assim, novas bases de sustentação teórica e metodológica e novas implicações no campo dos problemas práticos. A primeira questão que a revolução russa colocou à ciência psicológica foi a análise dos problemas de aplicação prática” (MOLON, 2003, p. 21). “[Vygostky] elaborou sua teoria da gênese e natureza social dos processos psicológicos superiores preocupando-se com os processos de individuação do homem inserido na cultura” (MOLON, 2003, p. 23). “Vygotsky introduziu, na análise psicológica, a dimensão semiótica, em que a linguagem e os signos constituem os fenômenos psicológicos” (MOLON, 2003, p.19).

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esses desconhecimentos não fortuitos nos terão feito perder, repetindo os erros mais

clássicos e reinventando as contribuições mais avançadas do marxismo no campo

da psicologia!” (SÈVE In: SILVEIRA; DORAY,1989, p. 152).

A proposição de Vygotsky centra-se no estudo dos processos psicológicos

superiores, destacando o significado como a mediação organizadora da consciência,

inseparavelmente ligado à palavra, sem contudo ser idêntico a ela. A produção de

sentidos, através da primazia dos significados, deve levar em conta, através da

comunicação, as motivações afetivo-volitivas, ao que denomina subtexto (SAWAIA

apud MOLON, 2003, p. 11-12).7 Tanto os sentidos quanto os significados são, nessa

perspectiva, construções concretas geradas socialmente, através das intersecções

entre o individual e o histórico, sem prevalência de uma instância sobre a outra. E é

nesse sentido que a linguagem ocupa lugar de mediação fundamental na

constituição das subjetividades.

A ênfase ao excerto de Vygotsky, citado por Sève, para referir-se com pesar

ao desconhecimento de sua obra, parte da referência a uma dada leitura de Marx:

"‘A psicologia tem necessidade do seu Capital – de seus conceitos de classe, de

base, de valor...’” (SÈVE In: SILVEIRA; DORAY, 1989, p. 152, grifo do autor).

Em estudos desenvolvidos recentemente no Brasil, buscando responder

questões referentes às condições, modos ou processos de subjetivação no campo

da psicologia social de perspectiva sócio-histórica, Bader Sawaia, estudiosa de

Espinosa e Vygotsky, tece suas considerações afirmando o caráter ético e político

da afetividade. Entrar no campo dos afetos e sentimentos, alerta a autora, tem sido

uma necessidade no campo das ciências humanas, mas tem-se demonstrado um

terreno altamente espinhoso em virtude do tipo de culto ao plano dos afetos, em

especial à felicidade, que os meios de comunicação têm explorado. Em suas

palavras:

7 "A palavra é uma nuvem da qual jorram milhões de significados, os quais são convertidos em sentidos pessoais, segundo as necessidades e emoções que motivaram seu uso. Portanto, o sentido de uma palavra é a soma de todos os eventos psíquicos que a palavra desperta em nossa consciência. Os processos psicológicos, as relações exteriores e o organismo conectam-se através de significados, configurando motivos que são estados portadores de um valor emocional estável, desencadeadores da ação e do pensamento" (SAWAIA apud MOLON, 2003, p. 12).

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...esse modismo mercadológico da afetividade é mais motivo para que a psicologia e demais ciências valorizem as emoções, ao invés de abandoná-las, zelando para que não sejam devoradas e digeridas pela lógica da exploração mercantil, com a conseqüente negação de sua força criativa e de resistência (SAWAIA, 2003, p.11).

A autora faz uma crítica das reflexões promovidas pelas ciências sociais e

pela própria psicologia social que separaram razão e emoção, recaindo sobre a

segunda toda sorte de desastres que impedem o sujeito de atingir a plenitude de

suas faculdades.

Usando a definição de Espinosa como “o filósofo da alegria” e definindo

Vygotsky “como um psicólogo marxista, ardoroso admirador de Espinosa”, Sawaia

considera que

...ambos concebem corpo e alma, pensamento e emoção como unidade indissociável, e fornecem instrumental teórico-conceitual para eliminar a conjunção ‘e’, bem como o hífen que se convencionou usar para justapor essas palavras supostamente separadas, tanto nas reflexões sociológicas, psicológicas, quanto nas da área médica (SAWAIA apud BARRETO, 2003, p.13).

Contudo, para tentar compreender esse complexo é necessário compreender

que a ontologia que está sendo proposta é a “junção da ética com afetividade e

desta com a política” (SAWAIA, 2003, p.14). Esta compreensão devolve ao sujeito a

sua inteireza, ou seja, sua corporeidade e sua racionalidade:

Espinosa propõe uma concepção de ética ontológica, nem contingente, nem transcendente, mas imanente aos afetos e às idéias adequadas do sujeito. Ética como potência e não como dever, potência de perseverar no próprio ser, superando os condicionamentos sociais da exclusão e da exploração tão bem retratados por Marx. Ética só pode ser experimentada se for sentida como felicidade e não como conformismo à imposição de fora e a alegria é ética, porque aumenta o único fundamento da virtude que é a capacidade de ação em prol da expansão do próprio ser (SAWAIA, 2003, p.14-15).

A potência de padecer, as emoções tristes e a passividade frente ao desejo

do outro colocam os homens, segundo o pensamento de Espinosa, numa condição

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de servidão, diminuindo dessa forma seu conatus ou a necessidade de

perseveração e de expansão do próprio ser.

Em um trabalho anterior, Sawaia explicita alguns aspectos subjetivos

presentes nas experiências de um grupo de mulheres das classes subalternizadas,

a partir de uma pesquisa com moradoras de uma favela no Município de São Paulo,

destacando uma relação com o tempo e a vida muito expressiva, o “tempo de

morrer”.

Desde pequenas, essas mulheres sofrem a falta de amparo externo real (falta de controle absoluto sobre o que ocorre) e a falta de amparo subjetivo (falta de recursos emocionais para agir). Adquiriram, nas relações cotidianas, a certeza da impossibilidade de conquistar o objetivo desejado e desenvolveram a consciência de que nada podem fazer para melhorar seu estado. Desde cedo, aprenderam que lutar e enfrentar é um processo infrutífero e, as que ousaram, receberam como prêmio mais sofrimento. Assim, o pensar descolou-se do fazer e tornou-se sinônimo de tristeza e medo (SAWAIA, 1995, p. 158).

Essa experiência afetiva é denominada por elas próprias “tempo de morrer”:

O “tempo de morrer” é caracterizado pela falta de recursos emocionais, de força para agir e pelo desânimo em relação à própria competência. (...) É a cristalização da angústia (SAWAIA, 1995, p. 159).

Em contrapartida, o “tempo de viver” é o tempo da ação, da saída da apatia

para uma postura combativa e emotiva, a transformação da impotência em força

para lutar. O câmbio de um pólo para outro não é desencadeado por ocorrências ou

mudanças de atividade, advém de algo mais complexo:

Estes fatos podem colaborar, mas o fundamental é a mudança na relação entre o ser e mundo, é o restabelecimento do nexo psico/fisiológico/social superando a cisão entre o pensar/agir/sentir (SAWAIA, 1995, p. 159).

Com relação à ilusão, também sob inspiração espinosana, Marilena Chaui,

segundo Sawaia, assim refere:

Espinosa propõe caminhos para se atingir a ética, ou para a ‘cura da servidão’. Ele define metas claras para tanto: libertar os sujeitos do peso da superstição e do preconceito, fazendo-o compreender e aceitar as causas

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de suas paixões, convidando-os ao exercício de sua própria capacidade de pensar, agir e evitar a ilusão ( CHAUI apud SAWAIA, 2003, p.17).

Além dos autores citados, há outros que tratam dos processos psicológicos

referidos aos aspectos ou modos de subjetivação, em diferentes disciplinas e

campos teóricos8. A psicologia social, assim como a psicologia clínica são as duas

áreas onde mais se concentram tais estudos. Encontramos, porém, estudos

produzidos nas áreas da filosofia e das ciências sociais. Um inventário dessas

produções seria interessante, mas não se configura como o objeto do presente

estudo.

Faz-se necessária, porém, uma escolha teórica que seja balizadora deste

ensaio. Assim, partindo do conhecimento do trabalho do assistente social,

buscaremos compreender as mediações que orientam as ações deste,

concretizadas nas formas de subjetivação do ponto de vista da constituição da

sociedade burguesa, ou seja, de uma sociedade que se fundamenta na divisão de

classes, considerando subjetividade na seguinte angulação:

...a subjetividade é instituída socialmente. Ela é uma criação da sociedade, da mesma forma que a língua, as regras de parentesco, os valores ou os métodos de trabalho (MEZAN, 1997, p. 15).

Essa definição localiza, a meu ver, um campo de investigação da

subjetividade, onde “implica saber de que lado da luta de classes ele es tá [o

indivíduo] – dos que produzem mais valia - ou dos q ue participam na sua

apropriação ” (MEZAN, 1997, p. 14, grifo nosso).

Definida dessa maneira a perspectiva, tanto da pesquisa teórica quanto de

campo, faz-se necessário abordar algumas categorias essenciais da teoria crítica.

8 A questão das subjetividades, ou melhor, de seus processos de constituição, tem sido objeto de estudo em várias áreas de conhecimento, principalmente a partir do século XIX. De uma ampla lista, destaco alguns autores: Louis Althusser, Michel Foucault, Jacques Lacan, Felix Guattarri, Giles Deleuze, Mikhail Bakhtin. No Brasil, Sueli Rolnik, Peter Pál Pelbart, Renato Mezan, Angel Pino, Bader Burihan Sawaia e Luis Cláudio M. Figueiredo.

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2.2 - O indivíduo e a história

Os indivíduos sempre partiram de si mesmos.

K.Marx

Como operar o entrecruzamento entre o indivíduo humano e a história sem

utilizar um raciocínio mecânico ou dogmático? Não basta que, sinteticamente,

situemos o indivíduo humano - inclusas aí todas as características que o definem

como ser dotado de inteligência e vontade, de razão e afetos, de motivações

conscientes e inconscientes – como um produto das determinações sociais; é

preciso que se compreenda de que maneira o indivíduo torna-se “autor e ator de

sua história” (MARX; ENGELS apud FROMM, 1962, p. 23).

Após um vasto trabalho sobre a teoria da personalidade, Sève (1979, p. 528)

propôs uma maneira pela qual se poderia chegar a uma ciência que tivesse como

tarefa, “o domínio teórico e prático do processo de desenvolvimento de cada

indivíduo”. Os passos metodológicos deveriam visar “a captação das estruturas, das

contradições, da dialética da vida pessoal” (SÈVE, p.528, grifo do autor). Esses

princípios deveriam nortear o que denominou ciência da biografia que, em justa

medida, exprimiria conceitualmente a lógica específica do objeto.

Sève aproxima sua formulação do drama politzeriano (SÈVE In: SILVEIRA;

DORAY, 1989 p.152). Georges Politzer (1903-1942), filósofo marxista fuzilado pelos

nazistas em 1942 durante a ocupação francesa, desenvolveu um estudo

denominado Crítica dos Fundamentos da Psicologia I e II, publicados em 1947.

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Propunha uma crítica à psicologia de sua época, que retirava do homem concreto o

fato psicológico, localizando-o apenas em processos introspectivos ou abstratos.

Explicar-nos-á [o psicólogo] que as imagens não são átomos psíquicos mas antes estados “fluídos”; que a associação de idéias, longe de explicar tudo, não é mais do que um estado de baixa tensão, que as pessoas não choram porque estão tristes, mas que estão tristes porque choram. E, se escutarmos atentamente, ficaremos a saber ainda que a nossa personalidade é uma síntese. (...) O psicólogo nada sabe e nada pede. É o parente pobre na grande família dos servidores da ciência. Só se alimenta de esperanças e de ilusões: a matéria compete a outro; ele contenta-se com a forma, pois, para além de todas as suas misérias, é ainda um esteta ... (POLITZER, 1975, p. 46-47).

Suas reflexões apontavam para a psicanálise como a ciência que poderia

devolver ao indivíduo concreto e singular, consideradas todas as circunstâncias de

sua vida, o conhecimento da gênese de qualquer fato psicológico. Suas

argumentações se fundamentavam na clássica obra de Freud A Interpretação dos

Sonhos (1898-9 [1900]), que tomava pelo seu valor enquanto uma contribuição à

ciência da psicologia, não se ocupando do aspecto terapêutico da psicanálise, o

tratamento propriamente dito. Interessava-se particularmente por uma premissa

fundamental da psicanálise, que consiste na possibilidade de capturar, através da

narrativa, os sentidos da vida. Sentidos esses que só poderão ser revelados pelo

próprio indivíduo que os produziu.

O método psicanalítico, segundo Politzer, substituiu o método da observação

e permitiu descobertas verdadeiras:

Freud é assim obrigado a substituir a introspecção pela narrativa. Sendo o facto psicológico um segmento da vida de um indivíduo singular, o que interessa no ato psicológico não é sua matéria e forma, mas o seu sentido; e este só pode ser esclarecido através dos dados fornecidos por uma narrativa do próprio sujeito (POLITZER, 1975, p. 49).

Assim, refere-se à psicanálise como “a viagem de um homem que vê no país

dos que nada viram” (POLITZER, 1975, p.51). Considerando a trajetória de vida de

um indivíduo singular como um drama humano, aí contemplados os acontecimentos

vividos pelo sujeito em sua totalidade, opera um descolamento do conceito literário

de drama:

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Que se entenda, de uma vez por todas, que queremos designar pelo termo “drama” um facto, e que abstraímos totalmente das ressonâncias românticas desta palavra. Pedimos pois ao leitor para se habituar a esta concepção simples do termo e para esquecer o seu significado “comovedor” (POLITZER, 1975, p. 27).

Isto não significa, contudo, um desprezo à literatura. De fato, refere, “a

verdadeira psicologia refugiou-se na literatura e no drama ...” (POLITZER, 1975, p.

50). O drama politzeriano, portanto, refere-se à totalidade de acontecimentos de uma

vida humana, cabendo ao indivíduo concreto a sua autoria, sendo ele, portanto, o

único capaz de desvendar os sentidos a ela atribuídos.

São essas as argumentações de Politzer que Sève retoma, renomeando o

drama. Para ele, trata-se da biografia, termo que define mais acertadamente o

conceito politzeriano.

A justa medida seria aquilo que aquele indivíduo singular expressa como

sendo significativo no percurso de sua vida, o que invalida qualquer modelo de

personalidade pré-estabelecido genericamente para compreensão daquela

singularidade e, sobretudo, invalida qualquer escolha, por parte do biógrafo, dos

elementos que destaca como importantes, promovendo uma despsicologização da

essência humana.

Há dois elementos teóricos, propostos por Sève, que podem nortear a

compreensão de suas proposições, quais sejam, a justa estrutura 9 e o emprego do

tempo 10. O que afiança a proposição de Sève é um argumento de Politzer: “A

psicologia não detém absolutamente o ‘segredo’ dos fatos humanos, simplesmente

porque esse ‘segredo’ não é de ordem psicológica” (SÈVE In: SILVEIRA; DORAY,

1989, p. 152).

9 Justa estrutura: “O fato de que a base das existências humanas seja inteiramente histórica, não faz, portanto, da personalidade uma mera ‘superestrutura’ de sua formação social, mas um ser totalmente específico, a um só tempo estritamente circunscrito por seu estatuto orgânico e inesgotavelmente investido de maneira algo lateral em e por seu mundo de vida” (SÈVE In: SILVEIRA; DORAY, 1989, p. 161). 10 Emprego do tempo: “História pessoal tecida das atividades mais variadas e das relações que se atam no dia, na semana, no ano, na época da vida, constituindo a base, a um só tempo social e individual, necessária e contingente, rígida e evolutiva, da personalidade” (SÈVE In: SILVEIRA; DORAY, 1989, p. 167).

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Para Sève, assim como para vários autores que tomam como objeto de

investigação os modos ou as circunstâncias concretas através dos quais se

engendram as subjetividades, a VI Tese sobre Feuerbach, formulada por Marx, que

tributa a essência humana ao conjunto das relações sociais, é o princípio de toda

reflexão que subsidiou sua elaboração teórica.

As generalidades legítimas de que a ciência da biografia pode partir são, em primeiro lugar, as que, pelo contrário, possuem o seu fundamento afora da individualidade concreta enquanto tal: conhecimentos psicobiológicos, por um lado, e psicossociais, por outro, em particular as formas sociais de individualidade, que são subentendidas por todas as relações temporais da vida humana (SÈVE, 1979, p. 535).

A título de esclarecimento, tomemos o exemplo do autor para deslindamento

dessa asserção:

O fato, por exemplo, de que eu me torne, para além dos meus sonhos de criança não escolarizada, fadada por esse fracasso, ainda mais que outras, a uma vida de ‘biscates’, e de que talvez, após uma adolescência à deriva, minha vida se reestrutura em torno de um grande esforço numa atividade coletiva que apresente interesse para mim, tal coisa não diria respeito à personalidade nem a seu psicólogo científico, ocupado, em seu laboratório, por questões mais sérias, mas deveria ser remetida para a “clínica” de resto sempre incapacitada, como aquele, para pensar teoricamente a biografia (SÈVE In: SILVEIRA e DORAY, 1989, p. 154).

Convém, neste momento, alguns esclarecimentos sobre a tomada da

psicanálise como um ponto de partida para as concepções marxistas sobre o

conceito de indivíduo que Politzer trabalha. Tomemos, justamente, a produção

onírica, o sonho. Considerando o sonho como um fato psicológico provido de sentido

produzido pelo indivíduo, em suas circunstâncias concretas de vida, derruba-se a

concepção clássica da psicologia, criticada por Politzer, de que os sonhos são

processos puramente orgânicos e negativos, ou mesmo uma deficiência. Politzer

toma a seguinte frase de Hebart, citado por Freud:

... uma vigília parcial e bastante anormal (...) dissipa-se pouco a pouco até o amanhecer. (...) O trabalho destes grupos celulares desponta então no seio da nossa consciência enevoada, sem que possa ser completado pelo

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trabalho das partes do cérebro cuja função é associar. (...) À medida que o número das células despertas aumenta, a incoerência do sonho diminui (apud POLITZER, 1975, p. 52).

A crítica de Politzer recaía sobre as teorias neurofisiológicas que, ao invés de

ocuparem-se da originalidade e complexidade do sonho, o consideravam como um

fenômeno irregular, fora do campo dos fatos psicológicos. A intervenção de Freud

consistiu justamente, segundo Politzer, em promover uma ruptura com essa

concepção clássica das ciências. O que estava em questão, segundo o autor, era a

persistência em desprover o sonho de qualquer sentido e, portanto, invalidá-lo como

uma formação referida ao percurso da vida em sua totalidade.

Freud (...) pretende mostrar que o sonho é um fenômeno positivo, uma formação psicológica regular, que longe de dever a sua existência a uma debandada das funções psíquicas, só é explicável por um conjunto de processos regulares e complexos (...) Para Freud, o pensamento do sonho é um desejo concreto devido ao seu conteúdo individual e ao facto de constituir um desejo psicologicamente real: é por esse motivo que o ‘eu’ se mantém constantemente presente no sonho (POLITZER, 1975, p. 53-54 e 85, grifo do autor).

A chave interpretativa de Freud para os sonhos baseia-se no pressuposto da

existência de desejos de natureza sexual, com conteúdos infantis, precocemente

reprimidos e aponta para sua realização, disfarçada sob regras de figurabilidade – a

forma como idéias e afetos são transformados em imagens – , nos sonhos. Como

explicar, então, a freqüência dos sonhos de angústia e os pesadelos? A resposta

inicial de Freud para esse paradoxo é a divisão do conteúdo dos sonhos em duas

partes, o conteúdo manifesto, seu aspecto externo, acessível, pleno de

reminiscências diurnas, e o conteúdo latente, obscuro e cifrado, condensado e

deslocado de forma a confundir o sonhador. A esse conteúdo só se chega através

da interpretação. Portanto, a real apreensão dos sentidos de uma formação

inconsciente tal como o sonho11, no registro da psicanálise, só poderá se dar de

forma mediata, nunca imediata.

A interpretação como princípio analítico para Freud, segundo Racker,

consistia num processo que se assemelhava a um diálogo e valia-se de muitos

11 As duas outras formações inconscientes propostas por Freud são os atos falhos e os sintomas.

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conhecimentos, não só escolásticos, mas advindos do profundo interesse pela

narrativa de todas as circunstâncias que atravessaram a vida do indivíduo em

análise:

Em seus anais clínicos sobre “Dora” e “O Homem dos Ratos” encontramos algumas sessões, reproduzidas quase literalmente e que nos permitem ver como trabalhava. Mostram, antes de tudo, com quanta liberdade Freud desdobrava sua personalidade genial no trabalho com o paciente e quão ativamente participava em cada acontecimento da sessão, dando plena expressão a seu interesse. (...) e a sessão é um franco diálogo (RACKER, 1986, p. 37, grifo do autor).

Essas incursões, a título de esclarecimentos, não devem desviar a atenção do

que de fato consiste a perspectiva deste excerto. A bem da verdade, essas notas

foram na direção da tentativa de explicitar de que maneira Politzer considerou A

Interpretação dos Sonhos o ponto de clivagem entre a psicologia clássica,

neurobiológica, e o que denominou o início de uma psicologia concreta.

Ao considerar “‘que todo sonho é um desejo realizado e que só existem

sonhos de desejo’” (FREUD apud POLITZER, 1975, p. 89), desejo grafado em letra

minúscula, ou seja, concreto, real e singular, Politzer considerou o sonho um

“fermento dialético muito poderoso” da vida dramática do indivíduo. Poderoso a

ponto de outorgar a essa produção psíquica, mesmo em estado de vigília, o status

de fato psicológico completamente referido à esfera dos acontecimentos vividos e,

portanto, ao sujeito em sua totalidade, ou ao “eu da vida quotidiana” (POLITZER,

1975, p. 75).

É com base em alguns desses elementos que Sève propõe que a ciência da

biografia transforme-se na teoria da personalidade. A premissa é que os indivíduos

sejam os detentores e os verdadeiros arautos dos sentidos de suas vidas, e que a

narrativa seja o meio que o psicólogo ou qualquer outro indivíduo que se pretende

estudioso das subjetividades possa utilizar.

O estudo da personalidade começa, por conseguinte, pelo estudo do

“conjunto das relações sociais” tal como se apresenta numa forma social dada e num momento histórico preciso.

(...)

As relações sociais são a verdadeira base, nesse sentido, o verdadeiro ponto de partida, mas só se pode determinar a sua pertinência na questão que abordamos com base em, e a partir de, uma teoria, ainda que

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provisória, da personalidade e da biografia. (...) o sistema pertinente das formas históricas de individualidade de uma formação social dada não é mais que o conjunto de suas relações, mas é dele uma transformada do ponto de vista da individualidade psicobiográfica (SÈVE apud SILVEIRA; DORAY, 1989, p. 158-159, grifo do autor).

As passagens, ou as mediações, não são simples. Se esses autores –

especialmente Sève – partem da premissa de que a vida é ato, e mais, que a

essência humana só poderá ser compreendida pelo conjunto das relações sociais,

de que maneira compreendem e defendem, segundo a proposição de Marx n´A

Ideologia Alemã, o indivíduo como “o autor e ator da própria história”? Sempre

historicamente, é a resposta. Somente a partir dos elementos objetivos,

considerando também as relações sociais constituídas e constituintes das

subjetividades como elementos objetivados através de atos durante o percurso da

vida, num movimento dialético.

Uma abordagem das personalidades e biografias que pretenda ostentar algum rigor científico deve, portanto, estabelecer inicialmente o que é esse sistema na formação social correspondente e aquilo que, para elas, resulta de suas estruturas, contradições, transformações concretas... (SÈVE In: SILVEIRA; DORAY, 1989, p. 159-160).

Para realizar tal tarefa, seguindo as pistas do autor, é fundamental que as

relações de produção estejam contempladas.

Sève não as nega e nem o poderia, dado seu rigor metodológico. O que

propõe, então? De que maneira se realizam esses processos no âmbito de uma vida

singular? O autor compreende que essas realizações, as quais chama de

pertinências, se dão de maneira bastante indireta. Um exemplo bastante

interessante que utiliza refere-se a uma operação financeira clássica na formação

capitalista: a lei da baixa tendencial da taxa de lucro. Que importância direta teria,

diz, essa questão para o exame de uma psicobiografia? Ao passo que, como deixar

de perceber que, ao contrário, o início, o tempo de atividade e a aposentadoria têm

uma pertinência direta para tal exame?

De fato, é de fácil verificação essa argumentação. Qual a proposta do autor,

então? Fixar o exame na segunda? Na aposentadoria ? Não! Considerar a primeira

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como fazendo parte das leis que comandam as segundas. O autor recorre aí,

novamente, ao conceito de alienação capitalista, cujas relações “(...) por estarem

mais afastadas das formas psíquicas, não determinam menos a essência de um

sistema dado de formas históricas de individualidade” (SÈVE In: SILVEIRA; DORAY,

1989, p.159).

Como, porém, propõe essa apropriação?

...recuperar o mundo da vida especificamente pertinente que é o seu, os seus deslocamentos e mutações nas diferentes idades de sua vida, o campo de necessidades, a margem de contingência, o horizonte dos possíveis que lhe são abertos, ou fechados, em cada conjuntura (SÈVE In: SILVEIRA e DORAY, 1989, p. 159).

Enredado pelas contingências e regido pelas necessidades, que lugar o autor

dá ao indivíduo, de que maneira esse indivíduo poderá ser portador do selo que o

distingue de outros seres que habitam o planeta? Como compreendê-lo como a

possibilidade de tornar-se um legítimo representante da genericidade humana, na

direção do desenvolvimento das potencialidades humanas?

No campo socialmente estruturado dos possíveis que é esboçado por um sistema de formas de individualidade, cada indivíduo, a partir de suas capacidades e aspirações, de sua identidade e de seu imaginário, projeta, em troca a sua prospectiva biográfica original, sua própria forma de assumir a necessidade, de situar-se na contingência e de concretizar sua liberdade – dialética cuja complexidade ultrapassa uma “determinação social dos destinos pessoais”.

(...)

...os indivíduos só se configuram como personalidades e suas trajetórias só se organizam como biografias sobre a base objetiva das formas históricas de individualidade (...) Considerar-se-á paradoxal essa abordagem materialista da individualidade humana, como se não fosse evidente, para quem pelo menos pratica o materialismo como dialético, que aí não pode haver objetividade sem subjetividade? (SÈVE In: SILVEIRA; DORAY, 1989, p. 163, grifo do autor).

É dessa maneira que retornamos ao ponto inicial desse trabalho, as

sociabilidades plasmando as subjetividades.

Em outros termos, segundo Barroco (2001, p. 28):

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...ao ser capaz de auto-determinar-se o ser social evidencia sua vontade racional liberadora de sua autonomia; pode escolher entre as alternativas por ele criadas, traçar o seu destino, superar limites, fazer escolhas, objetivando suas capacidades e deliberações.

A universalidade, a liberdade, a sociabilidade e a consciência são

fundamentais para compreensão dessa relação (BARROCO, 2001, p. 28). É através

dessas potencialidades humanas que o indivíduo singular se apropria do patrimônio

civilizatório. Esse patrimônio constrói as gerações e por elas é construído,

constituindo-se na própria totalidade social.

Dito de outra forma, a liberdade, a sociabilidade, a universalidade e a

consciência se constituem como mediações entre o indivíduo singular e o humano-

genérico, entre aquilo que, supostamente, só ao indivíduo singular diz respeito e o

que aponta para os mais complexos estágios da emancipação humana.

Este texto tem a preocupação de não realizar mais um coletânea de

conceitos, noções e categorias afeitas a um sociologismo ou a um psicologismo. A

eleição de autores referidos à teoria crítica e o recurso aos textos do próprio Marx foi

o caminho escolhido. As reflexões, entretanto, não são unânimes, inequívocas,

possuem, como tudo na realidade social, uma data, representam um diálogo e até

mesmo uma perspectiva biográfica dos autores escolhidos12.

Creio, contudo, que essas notas podem auxiliar no sentido de situar de forma

menos misteriosa a questão da subjetividade, libertando-a e libertando-nos dos ardis

ideológicos que distanciam o indivíduo de seu autoconhecimento e do conhecimento

do outro, evitando o caminho para o individualismo e para o surgimento e

12 Sève (In: SILVEIRA; DORAY, 1989, p. 152.), ao referir-se à falta de guias para realizar suas incursões teóricas, resumiu as circunstâncias que o levaram a produzir Marxismo e a Teoria da Personalidade (1979).“... descobrindo avidamente Lenin, nele não procurei apenas as bases de uma formação político-teórica, como também os fundamentos para uma nova ‘ ciência do indivíduo’.(...)Politzer (...) indicava uma rota que deixava uma obra. A glória nascente de Piaget obliterava já o sempre menosprezado trabalho de Wallon. Da psicologia soviética ignorávamos até mesmo a existência. (...) Eu me surpreendia que os marxistas acentuassem a contribuição do materialismo dialético para a psicologia, mas não esse, bem mais tangível, do materialismo histórico, sem desconfiar que o próprio Vygotski havia construído justamente a partir dessa idéia uma obra bastante elaborada”.

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perpetuação das angústias existenciais. Não somos, definitivamente, utilizando uma

expressão de Sève (In: SILVEIRA; DORAY,1989, p. 163), “caixas-pretas” .

Capítulo 3 – Método de abordagem

3.1 - História Oral, linguagem e narrativa

Ali onde termina a especulação, na vida real (...).

As frases ocas sobre a consciência cessam, e um saber real

deve tomar o seu lugar.

K.Marx/F.Engels

... a militância deixa lembranças,

e o silêncio histórico não deixa nenhuma lembrança!

Mercedes Vilanova

As classes que vivem do trabalho (ANTUNES, 1999) são a esmagadora

maioria do povo brasileiro. A tentativa da burguesia de emprestar uma feição

moderna à sociedade deu-se pelo esmagamento das experiências de vida dos

trabalhadores e dos sentidos atribuídos por estes, desqualificando-os, subjugando-

os, principalmente através do perverso processo de alienação. Ao longo dos dois

últimos séculos vem ratificando, sistematicamente, uma constituição social com

profundas injustiças e desigualdades, criando fraturas no corpo social através de

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sucessivas investidas que almejam, sobretudo, manter uma mercadorização da vida,

via cristalização e naturalização da pobreza.

As chamadas áreas periféricas da cidade de São Paulo, as maiores partes de

seu território, foram espaços constituídos através do trabalho e da cultura mas,

sobretudo, pelo sofrimento. São apontadas hoje como as áreas de concentração de

maior violência, de desconforto, de insalubridade e de doenças. Tudo é precário, os

recursos também, os investimentos são reduzidos.

Mas, ao contrário do que se planejava ao empurrar a população para o

abandono, a história reclama por seus sujeitos e, ainda que num plano de quase

denúncia, muitos têm sido os trabalhadores que tentam olhar para seus mortos para

que possam se reconhecer vivos. Afinal,

...todo o trabalho de pesquisa simbólica e de criação de significação é também um trabalho de luto. E que as inscrições funerárias estejam entre os primeiros rastros de signos escritos confirma-nos, igualmente, quão inseparáveis são memória, escrita e morte (GAGNEBIN, 1998, p. 219).

Nas palavras de Vilanova (1995, p. 167), “o silêncio mata, literalmente. Há

pessoas que tem se suicidado por não poder explicar sua trajetória".

Embora a narrativa seja hoje consagrada como uma forma de transmissão de

experiência que privilegia a linguagem oral, enquanto uma capacidade humana que

possibilita a existência da consciência ativa, houve um percurso histórico significativo

para que isso fosse assim considerado. Há dois excertos de Marx n’ A Ideologia

Alemã (1846) que foram trabalhados no sentido de deslindar suas afirmações para

que se fundasse um conhecimento prático sobre o materialismo histórico-dialético:

As idéias dominantes são apenas a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes compreendidas como idéias. (...) A consciência não poderá ser nunca nada mais do que a existência consciente, e a existência dos homens em seu processo de vida real. Se em toda ideologia os homens e suas circunstâncias aparecem de cabeça para

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baixo, como numa câmera obscura13, esse fenômeno surge tanto de seu processo de vida histórico como a inversão dos objetos na retina surge de seu processo de vida físico (MARX; ENGELS apud WILLIAMS, 1979, p. 63, grifo do autor).

Para Williams, embora as analogias sejam difíceis, o que está sendo

articulada é uma resposta enfática às concepções idealistas e abstratas das idéias e

da consciência. Ainda segundo o autor, algumas leituras, assim como uma certa

fantasia objetivista presente nos próprios excertos, teriam dado origem às reduções

ingênuas do “marxismo”, onde a consciência, a imaginação, a arte e as idéias seriam

reflexos, ecos, fantasmas e sublimações (WILLIAMS, 1979, p. 65).

Não partimos daquilo que os homens dizem, imaginam, concebem, nem dos homens como descritos, pensados, imaginados, concebidos, a fim de chegar aos homens em carne e osso. Partimos dos homens reais, ativos, e à base de seu processo de vida real demonstramos o desenvolvimento dos reflexos e ecos ideológicos desse processo de vida. Os fantasmas formados no cérebro humano são também, necessariamente, sublimações de seu processo de vida material, que é empiricamente verificável e limitado por premissas materiais. Moral, religião., metafísica, todo o resto da ideologia e de suas formas correspondentes de consciências, não retêm mais a aparência de independência (WILLIAMS, 1979, p. 64).

Ana Maria Vasconcelos, assistente social e pesquisadora que trabalha com

concepções marxianas no campo da saúde pública, buscou de maneira objetiva a

aproximação ao seu objeto de pesquisa, cunhando, assim, um notável exemplo de

argumentação no campo das ciências sociais:

O relevante e prioritário aqui não é a consideração da visão da profissão pelos seus próprios sujeitos, mas a análise da realidade que põe as demandas profissionais e o realizado a partir delas. É no que fazem os assistentes sociais e nas suas conseqüências, que acabam por impregnar a realidade social – não no que objetivam ou acham da profissão. Assim, não é o fato de reconhecer o Serviço Social como uma profissão – como atividade ou ocupação especializada da qual se pode tirar os meios de subsistência – inscrita numa modalidade de divisão social do trabalho que o coloca numa posição subalterna, inferior ou subordinada ” (VASCONCELOS, 2002, p.104, grifo da autora)

13 "Os processos físicos da retina não podem ser separados dos processos físicos do cérebro que, como uma atividade necessariamente relacionada, controla e “retifica” a inversão. A câmera obscura foi um aparelho destinado a discernir as proporções; a inversão tinha, de fato, sido corrigida pelo acréscimo de outra lente" (WILLIAMS, 1979, p. 64, grifo do autor).

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Entretanto, se tais premissas forem tomadas exclusivamente a partir de uma

objetividade em si, todo seu interessante e instigante trabalho não poderia ser

produzido. A pesquisa empírica, importante etapa do trabalho, foi realizada através

de entrevistas qualitativas com assistentes sociais que trabalhavam, à época, na

Secretaria do Município do Rio de Janeiro, onde figuravam todos os seus dados

colhidos através de extenso formulário14. Envolveu entrevistas diretas, observações

de atendimentos mas, fundamentalmente, constituiu-se através das narrativas das

ações desempenhadas, das quais não se podem separar concepções de mundo,

modos de ser e de viver.

É necessário que seja considerada toda complexidade que implica a

constituição de valores, onde não estão presentes apenas as ideologias, mas

também a cultura, onde se articulam forças que tanto conformam quanto resistem e

isto também é partir do “homem de carne e osso”.

Este acréscimo parece fundamental para se evitar o risco de reproduzir

concepções de um marxismo mecânico ultrapassado, que trouxe mais malefícios

que benefícios na trajetória histórica do serviço social e das ciências sociais como

um todo – a clássica divisão entre objetividade e subjetividade é uma delas.

A memória, a narrativa, a linguagem, através das quais foram feitos os

registros da história da civilização, são a possibilidade de reviver do passado aquilo

que buscamos compreender para transformar, ainda que necessitemos fazê-lo por

muito tempo e de diversas maneiras.

Sem dúvida, foi também essa a proposta da pesquisadora em questão. A

citação de seu texto, a bem da verdade, foi uma possibilidade de polemizar para

inscrever outros procedimentos de pesquisa que, mesmo percorrendo outros

caminhos da história, são procedimentos igualmente importantes no serviço social,

assim como nas ciências sociais, pela possibilidade de agregação de conhecimentos

de outras áreas do saber.

14 “O Formulário de Entrevista, composto de perguntas abertas, semi-abertas e fechadas, procurou levantar os seguintes conteúdos; 1 – Perfil Profissional; 2- Prática profissional; 3 - Referências de conhecimento; 4 – Reflexão/Planejamento; 5 – Ação/Execução” (VASCONCELOS, 2002, p. 536). O Formulário possui cerca de 217 questões.

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Nos termos de Williams:

A noção mesma da história se tornaria absurda, se não víssemos os “homens como narrados” (quando, tendo morrido, dificilmente eles se poderiam tornar acessíveis “em carne e osso”, e aos quais inevitavelmente Marx e Engels recorreram repetidas vezes e em razoáveis proporções), bem como a noção da “história da indústria... como existe objetivamente... um livro aberto das faculdades humanas... uma psicologia humana que pode ser apreendida diretamente” (...), que eles haviam introduzido de forma decisiva contra as exclusões de outros historiadores (WILLIAMS, 1979, p. 65, grifo do autor)

Tomar a narrativa como o modo privilegiado para as análises que comporão

este estudo torna necessários alguns aportes teóricos. Alguns deles já foram

esclarecidos no capítulo 2: retomando, os autores que deram suporte teórico mais

denso às análises empreendidas destacam a importância da narrativa enquanto a

possibilidade de identificar algumas mediações subjetivas. Todavia, essa escolha

encontra-se repleta de particularidades que vão localizá-la em áreas do

conhecimento diversas.

A perspectiva adotada será a que localiza a narrativa no campo da

experiência e a linguagem enquanto um recurso desenvolvido pela humanidade para

suprir suas necessidades de subsistência, de trocas (materiais e imateriais) e de

desenvolvimento de potencialidades.

Segundo Fromm, a linguagem é expressiva da complexidade da alienação.

Alerta o autor que, se nos ativermos ao símbolo ao invés do fato, colocando no lugar

da experiência a ilusão, poderemos vir a acreditar que somente a densidade do

pensamento, quando se expressa um sentimento, é suficiente para torná-lo real.

Melhor dizendo:

Se exprimo um sentimento por palavras, digamos se eu falo “ Eu te amo”, as palavras visam a indicar a realidade existente em meu íntimo, o poder de meu amor. A palavra “amor” é tomada como símbolo do fato do amor, mas assim que é pronunciada ela tende a assumir vida própria tornando-se uma realidade (FROMM, 1962, p.52-53, grifo do autor).

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Substituir a palavra falada pela experiência vivida é o perigo. Contudo, o autor

ressalta que a linguagem “é uma das mais preciosas conquistas humanas; (...) evitar

a alienação deixando de falar seria tolice”. E ainda, localizando as idéias, a arte e

qualquer objeto de criação humana como “ajudas valiosas para a vida”, adverte para

o risco da “tentação de confundir a vida com coisas, experiência com artefatos,

sentimento com capitulação e submissão” (FROMM, 1962, p. 53).

Também Raymond Williams, historiador inglês, coloca a linguagem como uma

atividade prática e constitutiva, portanto elemento indissolúvel da autocriação

humana, em radical distinção entre “língua” e “realidade”, assim como entre

“consciência” e “mundo material”.

Os “produtos” comunicativos reais que constituem signos usáveis15 são, pelo contrário, evidências vivas de um processo social continuado, no qual as pessoas nascem e dentro do qual são formadas, mas para o qual também contribuem de forma ativa, no processo permanente. Isso é, ao mesmo tempo, sua socialização e sua individuação. (...) Encontramos então não uma “linguagem” ou “sociedade” reificadas, mas uma linguagem social ativa. (...) O que temos é, antes, uma compreensão dessa realidade através da linguagem, que como consciência prática está saturada por toda atividade social, e a satura, inclusive a atividade produtiva (WILLIAMS , 1979, p.43, grifo do autor).

A linguagem deve ser portadora de elemento essencial que é a possibilidade

de transformar um signo num signo interior, que por sua vez é parte de uma

consciência ativa e prática, ou seja, além de seu caráter social e material, entre

pessoas reais, o signo deve ter a característica de poder ser expresso através de

uma consciência verbal, ativada individualmente pela própria vontade do indivíduo,

seja na comunicação social, seja nas interpretações pessoais ou privadas

(WILLIAMS, 1979, p.46).

Essa concepção, segundo o autor, desautoriza as concepções subjetivistas

da linguagem que a colocam enquanto uma iniciativa individual, já que “aquilo que

está constituído internamente é o fato social do signo, tendo significado e relações

sociais definidos, embora nunca fixos ou invariáveis” (WILLIAMS, 1979, p. 46).

15 “O signo usável – a fusão do elemento formal [signo] e do significado [articulação social e material, socialmente criada] – é um produto dessa continuada atividade de fala entre indivíduos reais que estão numa relação social continuada” (WILLIAMS, 1979, p. 43).

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A linguagem fala a partir e das relações que ocorrem dentro de uma

sociedade ativa e em transformação ou “o termo médio perdido entre as entidades

abstratas ‘sujeito’ e ‘objeto ...’” (WILLIAMS, 1979, p. 43).

A linguagem, destacado objeto de estudo no campo das ciências sociais, tem

sido amplamente investigada por sua importância na constituição das sociabilidades

e das subjetividades, desde as aquisições biológicas através da evolução da espécie

humana até a sua indiscutível presença na constituição da consciência. Nesse

sentido, a concepção que fala da linguagem como uma faculdade humana,

constituída e constituinte nas e das relações históricas e sociais é a que define com

maior clareza o modo pelo qual são compreendidas as narrativas.

Williams se refere a Vygostsky para elucidar suas concepções sobre fala

interna e consciência:

Se compararmos o desenvolvimento inicial da fala e do intelecto – que, como já vimos, evoluíram dentro de linhas separadas, tanto nos animais como nas crianças muito pequenas – com o desenvolvimento da fala interior e do pensamento verbal, teremos de concluir que esta última fase não é uma simples continuação da primeira. A natureza do próprio desenvolvimento se modifica, de biológica para sócio-histórica. O pensamento verbal não é uma forma natural, inata, de comportamento, mas é determinada por um processo histórico-cultural e tem propriedade e leis específicas que não podem ser encontradas nas formas naturais do pensamento e fala (VYGOTSKY apud WILLIAMS, 1979, p. 49).

O que leva Williams a concluir:

O que podemos então definir é um processo dialético: a consciência prática em transformação dos seres humanos, na qual os processos tanto evolucionário como histórico podem receber todo o seu peso, mas também dentro do qual eles se podem distinguir, nas variações complexas do uso prático da linguagem (WILLIAMS, 1979, p. 49, grifo do autor).

A narrativa como experiência foi também analisada por Walter Benjamim, que

a define com elementos recolhidos do panorama de sua época, tal qual um

observador melancólico que deveria assistir resignadamente a destruição, o mundo

transformando-se em ruínas. Era um homem que buscava refletir sobre seu tempo,

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marcado por perseguições nazistas, que lhe inflingiram dificuldades financeiras,

doenças, a necessidade de tornar-se um viajante constante. Seu suicídio deu-se em

Port Bou, cidade fronteiriça entre a Espanha e a França, última parada de sua

peregrinação fugindo dos nazistas alemães.

A biografia de Benjamim é repleta de elementos que têm sido objeto de

especulação, incluindo seu posicionamento marxista que, para alguns, pode ser em

parte tributado ao amor por uma mulher comunista, Asja Lacis, mencionada na

epígrafe de Rua de Mão Única (1995):

Rua de mão única

Esta rua chama-se

Rua Asja Lacis,

Em homenagem àquela que,

Na qualidade de engenheiro,

A rasgou dentro do autor.

Segundo Jean Marie-Gagnebin (1993), as considerações sobre a obra de

Benjamim são diversas, das que o colocam em uma posição de gênio até as que o

consideram um intelectual incapaz de produzir reflexões profundas. Benjamin tem

sido, segundo a autora, substancialmente evocado, assim como vários de seus

textos, tanto para exaltá-lo como para criticá-lo, assim como para colocá-lo ou retirá-

lo da posição de um legítimo autor da Escola de Frankfurt, cujos maiores expoentes

foram Adorno e Horkeiheimer.

Gagnebin, contudo, em História e Narração em W. Benjamin (1999, p. 1),

refere que, mesmo com as "interpretações simpáticas, mas redutoras, [de] sua teoria

de história", restam questões a elucidar, verdadeiros "buracos negros" no

pensamento do autor. Um deles, refere-se, justamente, à sua concepção da

escritura da história e de sua relação com uma prática transformadora.

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O que é, então, esta narrativa salvadora que evocam as famosas teses "Sobre o Conceito de História" e quem é este "historiador materialista" que saberia dizê-lo, enraizado na experiência coletiva (Erfahrung) dos vencidos? (GAGNEBIN, 1999, p. 1)

Esse paradoxo, segundo a autora, revela-se nas afirmações de Benjamin

sobre a impossibilidade, no mundo moderno, de experiências coletivas, portanto, de

"tradição e palavras comuns" (GAGNEBIN, 1999, p. 2l).

O recurso a fontes orais para deslindamento da história tem sido cada vez

mais adotado no campo das ciências sociais. Elas oferecem a possibilidade de

“escovar a história a contrapelo”, expressão de Benjamim (1996, p. 225) que tem

sido amplamente tomada como ponto de partida para uma nova perspectiva da

história, ressaltando alguns de seus elementos constitutivos através da narrativa,

onde encontram-se perfiladas questões relativas ao tempo, à lembrança e ao

esquecimento mas, sobretudo, à possibilidade de retomar o passado de modo a

transformá-lo, à ilimitada possibilidade que o ato de recordar trás: a chave para

compreensão do que veio antes e o depois de um acontecimento rememorado.

A preocupação central de Benjamin era com as concepções de história, a

saber, a historiografia “progressista” e a historiografia “burguesa” contemporânea

que, ao veicularem, através da social-democracia alemã, a idéia de uma marcha

inexorável do triunfo do progresso, causaram um erro de avaliação quanto ao

fascismo e, conseqüentemente, uma incapacidade de estabelecer uma luta efetiva

contra sua instauração.

Essa concepção de história, para Benjamin, inscrevia o tempo de modo

homogêneo e vazio, cronológico e linear. Ao contrário do que pensava com a

expressão “tempo de agora”, repleto de intensidade e de brevidade. O conceito de

experiência “está referido a esse processo. Benjamin afirmava que era necessário

que o historiador estabelecesse uma experiência com o passado" (GAGNEBIN In:

BENJAMIN, 1996, p. 8).

A importância da memória também é apontada por Lowenthal:

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A memória impregna a vida. Dedicamos muito tempo do presente para entrar em contato, ou manter esse contato, com algum momento do passado. São poucas as horas enquanto despertos que são livres de recordações ou lembranças; somente concentração intensa numa ocupação imediata pode impedir o passado de vir espontaneamente à mente. Mas as lembranças que permeiam o presente estão agrupadas numa hierarquia de hábito, recordação e memento (LOWENTHAL, 1998, p.77-78).

Mercedes Vilanova, professora da Universidade de Barcelona, pesquisadora

cuja trajetória profissional se iniciou na época franquista16, na clandestinidade, “uma

espécie de túnel em que a história, o passado se mistificavam” (VILANOVA In:

MARTINELLI, 1999, p.127), semelhantemente a Benjamim viveu os horrores da

guerra e voltou-se para a história para buscar compreender as determinações do

processo de ascensão dos regimes totalitários ultra-nacionalistas, como o nazismo e

o franquismo que, embora tenham sido processos que se diferenciaram em suas

formas de instauração, levaram à adoção de atrocidades como política de governo.

Vilanova preocupava-se em compreender porque a revolução social havia

fracassado na Espanha, indo inicialmente buscar as respostas nos moldes da

historiografia tradicional, colhendo, basicamente, a história dos militantes, via

organização de trabalhadores anarco-sindicalista (CNT – Confederação Nacional de

Trabalhadores).

Acredito que houve primeiro uma recorrência historiográfica tradicional às fontes bibliográficas, que me apontaram o anarquismo como algo fundamental na história espanhola dos anos 30, como anos de mudança social. Sobre esse período realizei uma estatística qualitativa (...) que me colocou as perguntas fundamentais sobre a democracia para, finalmente, utilizar a fonte oral para buscar algumas respostas (...). É uma fonte viva que é necessária para a contemporaneidade, mas que se define por ser parcial, subjetiva, diferente (...) buscando uma síntese progressiva de nossa própria visão como historiadores e da história do passado (VILANOVA In: MARTINELLI, 1999, p. 129).

Entretanto, a autora adverte que só a interessa uma história cujo diálogo

possa ser universal. Suas pesquisas, apesar de realizadas com fontes orais, não

prescindem dos parâmetros estatísticos, da correlação das variáveis ou, mais

16 Referência ao General Francisco Franco, ditador espanhol que assumiu o governo após vitória da Guerra Civil iniciada na Espanha em 1936. Governou até sua morte, em 1978.

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precisamente, da porcentagem e, de maneira ainda mais refinada, da porcentagem

da porcentagem. Isso significa que, considerando que “a maioria é invisível, pois

tudo que é interessante é majoritário e não se vê”, é necessário quantificar, por

exemplo, a fraude fiscal, as porcentagens de não participação, etc. Mais do que na

utilização de outros recursos, postula que há custos e riscos no recurso a fontes

orais, principalmente “a possível trivialidade do individual, a sedução e o desafio da

fala ou do depoimento” (VILANOVA In: MARTINELLI, 1999, p. 134).

As diferentes metodologias em História Oral utilizadas em vários países

diferem quanto aos pressupostos teóricos que as ancoram; algumas estão

localizadas no campo da história social, outras no campo da psicanálise, e outras

ainda no campo da política.17. Essa diversidade de trilhas, entretanto, não deve

implicar numa postura que desqualifique a metodologia, pois, segundo Alberti,

Fazer história oral não é simplesmente sair com um gravador em punho, algumas perguntas na cabeça, e entrevistar aqueles que cruzam nosso caminho disposto a falar um pouco sobre suas vidas. Essa noção simplificada pode resultar num punhado de fitas gravadas, de pouca ou nenhuma utilidade, que permanecem guardadas sem que se saiba muito bem o que fazer com elas (...) como se o simples fato de deixar registrados depoimentos

17 “...há uma grande tradição dos países do Leste europeu em histórias de vida e biografias. Na Polônia, Hungria, Suécia, inclusive são promovidos concursos radiofônicos em que as pessoas mandam suas biografias; isto seria uma maneira. Eu conheço projetos nos cárceres nova-iorquinos de mulheres que são estimuladas a registrar suas biografias, pois a fonte oral tem um aspecto terapêutico. Foi o que eu disse em meu escrito Transformar-se ou calar, o silêncio mata, literalmente. Há pessoas que tem se suicidado por não poder explicar sua trajetória. Tem sido feito muito na Inglaterra, e estamos começando a fazer na Espanha, é a relação entre os jovens e os velhos; entre a escola secundária e os aposentados, há programas de história oral que ajudam aos dois e é uma maneira de aprender por dois pólos. Depois há, classicamente, a história oral americana. São projetos financiados por grupos. Por exemplo, os politicólogos querem saber como se faz a política com as universidades, com os oftalmologistas, com os médicos, ou seja, políticos, partidos políticos, sindicatos, administrações fazem sua própria história oral, projetos de história oral que são interessantes. Depois há outro, na França, que está trabalhando com Thompson. Está nascendo um projeto na Rússia, muito interessante, através do refazer das genealogias horizontais de pessoas. Entrevistam os imigrantes, na cidade, e a partir de sua história se refaz a trajetória de todos os seus irmãos. E com isto se tem uma perspectiva da diversificação social da imigração, não por genealogias, mas sim horizontal. Bem, é uma outra maneira de fazê-lo. Thompson, que vocês conhecem, que esteve aqui, tem feito este tipo de histórias, digamos social. Há um outro tipo de história inglesa que é a história local feita pelas pessoas. As próprias favelas podem fazer sua história local, feita pelos próprios sujeitos. Eu não faço isto, mas isto é um outro tipo de história. Há também um outro tipo de história como a de Portelli, como a de Passerini que é um tipo de história mais unida à Psicologia, que se mistura à Psicanálise, que é uma aproximação diferente à entrevista, o que é também muito interessante. Depois, há o meu grupo de Barcelona; fazemos muita coisa, mas colocamos projetos em que estatística tem um peso importante, em que procuramos responder algumas perguntas pontuais da historiografia clássica. A França estudou muito as elites, os que decidem frente aos que não decidem, que é uma outra maneira de dizer o majoritário daquilo que não é" (VILANOVA In: MARTINELLI, 1995, p. 167).

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de atores e/ou testemunhas do passado eximisse o pesquisador da atividade de pesquisa. (ALBERTI, 2004, p. 29).

O apontamento dessas preocupações se prende ao fato de que tem sido

muito freqüente o recurso à metodologia da História Oral, principalmente no serviço

social. Ela é uma possibilidade concreta de tornarmos teórico um conhecimento que

já se encontra construído empiricamente na prática profissional, numa relação

orgânica que compreende um profundo conhecimento das dores, dos padeceres,

das alegrias, do modo de pensar e agir de indivíduos, grupos ou populações que

fazem parte da convivência profissional.

Poderíamos aqui abrir uma fresta, usando uma expressão de Vilanova (1995,

p. 129), “subjetividade profissional”, para denominar como essa construção realizada

através da prática é algo que está presente no exercício profissional do assistente

social e que tem se constituído num esforço de teorização:

...minha definição de subjetividade profissional não pessoal é que a máxima, ou a melhor objetividade, é a máxima subjetividade bem explicada. Se sabemos explicar bem a subjetividade, chegamos à objetividade; para mim não tem outra explicação... (VILANOVA In: MARTINELLI, 1995, p. 159, grifo da autora).

Esta citação pareceu útil para compreender o que os assistentes sociais

tentam expressar quando dizem conseguir separar a vida pessoal da vida

profissional. Todavia, muitas vezes essa separação é uma estratégia de uma certa

padronização de interpretações que funciona como uma barreira protetora, mas que

pode impedir uma reflexão mais profunda e mais dolorosa sobre o testemunho

cotidiano de toda a espécie de sofrimento humano.

É importante lembrar sempre que as pessoas não nos contam suas histórias

à toa. Elas esperam alguma coisa, sobretudo uma mudança de qualidade em suas

vidas. O fato de o assistente social ter pouca ou quase nenhuma possibilidade de

alterar uma dada situação não lhe dá a prerrogativa de ignorá-la, isolá-la e lançá-la

no esquecimento. É necessário proceder de maneira contrária, ou seja, atribuir-lhe o

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devido sentido, localizá-la histórica, social, econômica e culturalmente e reavivá-la

junto a outras histórias – semelhantes ou diferentes.

A metodologia da História Oral contempla, em todas as suas interpretações e

intrinsecamente, uma compreensão das questões relativas às subjetividades – tanto

a dos pesquisadores quanto as dos pesquisados - e, justamente por isso, fornece

elementos provocativos para o exercício da criatividade na pesquisa.

Do ponto de vista metodológico, implica num projeto de pesquisa iluminado

por uma teoria, que deverá ser conduzido de forma a trabalhar com as fontes orais

com o mesmo rigor que em outros tipos de pesquisas, o que não significa tentar dar

o mesmo tratamento historiográfico formalista e linear, ou seja, ocupar-se de verificar

a veracidade dos fatos, comprová-los documentalmente, desautorizando o

testemunho e qualificando-o de inverídico. Em história oral trabalha-se com

interpretações singulares, através da narrativa, portadora da memória e do

esquecimento enquanto partes do mesmo processo. Portanto, “errar” uma data,

omitir ou modificar as circunstâncias de um fato não significam um falseamento da

realidade, mas uma interpretação singular, recoberta de sentidos que só poderão ser

compreendidos se referidos àquela biografia.

A memória é subjetiva e, por isso, uma ancoragem para as identidades. Não

podemos contestar as nossas lembranças, a custo de perdermos o sentido das

experiências do presente. A consistência e a garantia pessoal de que foram

registradas na época fazem das recordações fatos prováveis, porém só

comprováveis através da comparação com outras recordações, e não com o fato em

si (LOWENTHAL, 1998, p. 87).

E as lembranças em geral são dignas de crédito prima-face porque são consistentes. Lembranças específicas freqüentemente revelam-se enganosas ou até mesmo inventadas, porém permanecemos confiantes a respeito de quase todas elas porque são coerentes; entrelaçam-se bem demais para serem descartadas como ilusões (LOWENTHAL, 1998, p. 87).

A sustentação da auto-imagem está intrinsecamente ligada ao memento,

enquanto “recordações preciosas propositadamente recuperadas da grande massa

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de coisas recordadas”. Seria, segundo Lowenthal (1998, p. 78), “a retrospecção

unificadora” referida por Virginia Woolf em Orlando.

Lowenthal afirma que a perda da memória implica na destruição da própria

personalidade. Para exemplificar, cita um trecho de Gabriel Garcia Márquez, em

Cem Anos de Solidão:

“a recordação da infância começa a se apagar de sua memória, depois o nome e a noção das coisas, e finalmente a identidade das pessoas, e até mesmo a consciência de seu próprio ser, ... até que mergulha numa espécie de imbecilidade que não tem passado”. (apud LOWENTHAL, 1998, p. 83).

Esse trecho é uma contundente exposição de como a amnésia pode

desprover uma vida de significados e serve para ressaltar a importância da memória

na constituição da personalidade e, portanto, dos sentidos de uma vida. “Saber o

que fomos confirma o que somos” (LOWENTHAL, 1998, p. 83).

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PARTE 2

AS INSCRIÇÕES DOS DRAMAS DAS VIDAS REAIS

NO TEMPO E NO CONTEXTO DO TRABALHO

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Capítulo 4 – Algumas considerações sobre saúde públ ica

O ponto de partida ou a experiência que deu origem ao presente estudo foi o

trabalho do assistente social na área da saúde, mais especificamente no campo da

saúde pública. Falar em saúde pública no Brasil é, antes de tudo, preparar-se para

analisá-la em preto e branco, através de uma posição crítica, levando-se em conta a

extrema precariedade em que se encontra: longas filas, a falta ou a má utilização

dos recursos existentes, insuficiência de equipamentos, mau gerenciamento dos

serviços, consecutivos desmontes de programas, locais sem a mínima condição de

atendimento digno são algumas das agruras enfrentadas pelos usuários dos

serviços de saúde oferecidos pelo Estado. Além disso, o afã de dar resposta às

demandas que acossam os serviços de saúde frequentemente resulta numa

excessiva medicalização do sofrimento humano. Essa tem se constituído como a

única alternativa, se é que assim podemos classificá-la, de acesso das classes

sociais subalternizadas a um direito garantido constitucionalmente.

A trajetória da saúde, como uma preocupação do Estado no Brasil, iniciou-se,

segundo Bravo (2004), na década de 30, época também em que o serviço social

surgiu como profissão. A saúde pública e o serviço social constituíram-se

historicamente em conjunto. Do ponto de vista da intervenção, os assistentes

sociais, até os anos 60, mantiveram a direção moral estigmatizante em suas

intervenções, ou seja, privilegiavam a concepção higienista e adaptativa,

sustentando numa proposta educativa as intervenções, buscando mudanças de

hábitos de higiene e de condutas morais da população.

A saúde é o campo que mais absorve assistentes sociais na cidade de São

Paulo. Dados recentes, publicados pelo Conselho Regional de Serviço Social – 9ª

região, informam que, num universo pesquisado no Estado de São Paulo de 5.872

profissionais, 38,03% trabalham na área da saúde (CRESS-SP, 2004).

Um outro dado interessante apresentado no mesmo informativo do CRESS

refere-se à idade dos assistentes sociais que se encontram empregados: num

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universo pesquisado de 24.242 assistentes sociais, 56,29% encontram-se na faixa

etária 40-59 anos, ou seja, pouco mais da metade dos profissionais em atividade no

serviço social na região pesquisada18 nasceram entre 1946 e 1965 e, inferindo que

seguiram, em sua maioria, o ciclo regular de escolaridade, formaram-se entre 1968

e 1987.

Esse período foi marcado, na América Latina, por um intenso movimento

político e cultural. Datam dessas duas décadas movimentos que repercutiram em

importantes esferas da vida pública e privada. O movimento feminista, o movimento

estudantil, a contracultura, a antipsiquiatria, dentre outros e, no serviço social, o

chamado movimento de reconceituação.

As análises desse processo encontram-se amplamente descritas por autores

contemporâneos, sendo que a leitura de José Paulo Netto (1998) é uma referência

de grande importância. Para esse autor, a reconceituação constituiu-se de três

momentos que denominou, nessa ordenação, a perspectiva modernizadora, a

reatualização do conservadorismo e a intenção de ruptura. Essa divisão impôs

novas perspectivas de análise.

São Paulo constitui-se como uma das maiores cidades brasileiras em

território, população e riqueza. Para cá migram muitos brasileiros e não brasileiros

em busca de oportunidades de trabalho, principalmente. As sociabilidades estão

inegavelmente marcadas pela luta de classes. Convivemos em São Paulo,

violentamente, com toda sorte de problemas gerados pelas desigualdades sociais. A

luta pela sobrevivência se inicia desde cedo. Para muitos, antes mesmo de chegar

na estação rodoviária com as tralhas, as crianças e as esperanças. São Paulo,

freqüentemente, é o destino: o começo e o fim. O começo de uma nova vida, repleta

de desejos, de fé em Deus como o grande fiador da possibilidade de dias melhores

e o confronto com a dura realidade da metrópole: a moradia precária, muitas vezes

em casa de parentes ou amigos, as longas distâncias a percorrer para ir em busca

de um trabalho, a exigência de escolaridade para o desempenho de funções que

18 A 9ª região compreende as seguintes cidades do Estado de São Paulo: São Paulo, Campinas, Bauru, Santos, Ribeirão Preto, São José dos Campos, São Bernardo do Campo, Franca, Piracicaba e Jundiaí.

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não necessitariam mais que a leitura e a escrita, o requisito de "boa aparência"19,

conforme modelos prescritos pelos padrões estéticos da classe dominante, e outros

tantos desafios a vencer.

Entretanto, São Paulo é uma cidade pródiga quanto ao sofrimento que

impinge a determinadas parcelas de seus habitantes. Há um recorte que iguala

todos, os imigrantes, as mulheres, as crianças, os velhos, até mesmo homens

jovens: a pobreza ou, em uma de suas versões mais amenas, a precariedade.

Caracterizar a pobreza é uma tarefa difícil no âmbito das ciências sociais. A

ciência dos números, nas mãos de técnicos planejadores, impõe sempre cada vez

mais indicadores e coeficientes para sua aferição. Entretanto, não só pelas

condições econômicas e materiais a pobreza é avaliada. Ela é, na verdade, a

síntese de várias determinações onde, freqüentemente, as questões que se referem

aos valores, à cultura, à sociabilidade, ao conformismo, à alienação são, também,

importantes objetos de estudos. Embora os números não sejam nada auspiciosos, a

experiência da pobreza é mais exuberante que qualquer dado frio e está disponível

para qualquer um que deseje enxergá-la.

Dados recentes do Instituto Brasileira de Geografia e Estatística, referentes

ao ano de 2003, informam que o consumo de alimentos, por exemplo, aumentou

significativamente no país. Esses dados geraram uma polêmica no campo político e

institucional do Estado brasileiro, justamente pela incompreensão do que está

pressuposto nesse processo, que implica na necessidade de ultrapassar essa

medida como uma referência primeira à formulação das políticas públicas de

alimentação e saúde. Relatórios de entidades ligadas à questão alimentar nos

informam que a produção de alimentos no planeta é suficiente para saciar a fome de

todos e que o maior problema não recai na produção mas, sim, na mercantilização

dos alimentos, que implica diretamente em sua distribuição e segue impondo a

mesma lógica do fetiche da mercadoria em todas as esferas da vida. 19 Recentemente (22/11/2001), em palestra promovida pelo Núcleo de Estudos e Pesquisa em Ética e Direitos Humanos – NEPEDH da PUC/SP, Deise Benedito, Coordenadora de Articulação Política e Direitos Humanos da Fala Preta!, relatou que, ao ver um anúncio em uma pastelaria oferecendo uma vaga exigindo boa aparência, indagou qual função estava sendo oferecida no local que exigia boa aparência. O comerciante lhe respondeu: - Fritar pastel! Segundo Deise, a boa aparência no Brasil é um código para a discriminação por raça/etnia.

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Por outro lado, a escolha de alimentos mais gordurosos, sem adentrar em

outras questões referentes ao campo que investiga o “simples” ato de comer, tem,

no Brasil, um antecedente conhecido por todos: a utilização de sobras,

freqüentemente pedaços gordurosos da carne de porco para alimentar os escravos

após longas jornadas de trabalho na lavoura.

Também os europeus que vieram para o Brasil substituir a mão-de-obra

escrava trouxeram a mesa farta como um valor, é bem provável que a carestia

também os ameaçasse em seus países de origem. Esses aspectos, tornados

“culturais”, são o modo pelo qual a classe trabalhadora pôde, historicamente, suprir

suas necessidades de alimentação.

A obesidade, um problema de saúde pública presente em todas as faixas de

renda, penaliza especialmente os pobres, se não pela despesa com uma dieta

menos calórica, pelo consumo de medicações para os agravos dela decorrentes e

as incapacidades que podem ocasionar. Os serviços de saúde, através de seus

profissionais, muitas vezes tornam essa situação ainda mais perversa: não é raro

observarmos na orientação nutricional a proposição de ingestão de queijos frescos,

peixes grelhados, carnes magras para pessoas que não possuem nenhuma

condição financeira de adquirir tais alimentos.

Todos sabemos que a possibilidade de comer e beber o que se gosta,

principalmente após uma jornada longa e cansativa de trabalho, pode ser um dos

poucos prazeres acessíveis às classes que vivem do trabalho. Ademais, é sabido

que, assim como a linguagem, o que, como, quando e quanto se come e se bebe,

assim como o que se veste, encontra-se já intimamente vinculado aos modos de

vida, portanto, às sociabilidades.

... “o homem é o que come”, na medida em que a alimentação é uma das expressões das relações em seu conjunto e que todo agrupamento social tem uma alimentação fundamental própria; mas, da mesma maneira, é possível dizer que o “ homem é seu vestuário”, o “homem é a sua moradia”, o “homem é o seu modo particular de reprodução, ou seja, “a sua família”, já que – na alimentação, no vestuário, na casa, na reprodução – residem elementos da vida social, nos quais, da maneira mais evidente e ampla

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(isto é, com extensão de massa), manifesta-se o conjunto das relações sociais (GRAMSCI, 1978, p. 42).

Podemos arriscar que essa é uma boa pista para o fabuloso fracasso da

maioria das ações em saúde pública para enfrentar o tabagismo, o uso abusivo de

drogas, a obesidade, a hipertensão, as relações sexuais de risco e assim por diante.

O que se encontra na base desse fenômeno é que, no discurso sanitarista

tradicional,

...os problemas de saúde são da população, agrupada por idade, sexo, e zona geográfica, e não dos trabalhadores; são problemas do consumo e das condutas, e não do trabalho. A realidade cotidiana do trabalho tem sido o ponto cego não somente do olhar sanitarista, como também da maioria dos observadores e analistas da sociedade (LAURELL; NORIEGA, 1989, p. 21).

Mudam os problemas de saúde, mas as suas determinações permanecem. E,

assim, mesmo tendo a obesidade e suas conseqüências tomado lugar de destaque

no país, a desnutrição não é fato acabado. A título de exemplo, temos assistido

pelos meios de comunicação às notícias do aumento da mortalidade de crianças

indígenas por doenças infecto-contagiosas e desnutrição20. Há outros indicadores

que demonstram a vulnerabilidade de alguns segmentos da população. O Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) informa que é grande o número de

adolescentes que engravidam - 20% das crianças que nasceram e foram registradas

em 2004 tinham mães adolescentes (http://www.ibge.gov.br). É alto, no município de

São Paulo, o número de óbitos por causas externas no sexo masculino – o segundo

grupo de causas determinantes no total de mortes de homens no município –,

figurando os homicídios como a primeira causa de morte no grupo das causas

externas, em 2003 (http://prefeitura.sp.gov.br).

20 “ Mortalidade supera média em 70% de áreas – (...) Entre cerca de 12 mil xavantes, a mortalidade infantil em 2004 alcançou 133 mortes por mil nascidos vivos – índice 22% maior que 2003 e 5,5 vezes maior que a média nacional. Foram 36 bebês mortos em 2004. (...) No distrito Litoral Sul – inclui a capital e o litoral de São Paulo e vai até o litoral gaúcho, outra área com conflito de terra – os números assustam: cem mortos por mil nascidos vivos, salto de 224% em relação a 2003” ( Jornal Folha de São Paulo, 06/03/2005 – Caderno Brasil, p. A-16).

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No mesmo portal, encontramos uma referência às doenças do aparelho

circulatório como a principal causa de morte no município de São Paulo desde a

década de 60, apontando para o tabagismo, a obesidade, o sedentarismo e a

hipercolesterolemia como os principais elementos associados às mortes. (PRO-AIM

n°. 43, 2003. http://prefeitura.sp.gov.br).

São dessa magnitude os desafios colocados: da desnutrição até epidemias de

obesidade, essa polarização é um indicador simples da dimensão do espectro de

problemas que assombra os planejadores de políticas públicas de saúde. Num país

desigual, pobreza e doença se constituem num binômio que impõe e perpetua

sofrimento. Sob a experiência constante de privação e dor, os sentidos se organizam

e reorganizam, porém sem conseguir fugir do registro da opressão, comprometendo

a possibilidade humana histórica do exercício da liberdade.

4.1 - Brasilândia e Freguesia do Ó: tão perto e tão longe.

Os dois bairros que dão base territorial a este estudo situam-se na zona Norte

de São Paulo e juntos compõem uma subprefeitura. Embora sejam bairros vizinhos,

a composição da população é bastante heterogênea: quanto mais se avança para a

periferia, mais a pobreza se torna visível.

O bairro da Freguesia do Ó, próximo das margens do rio Tietê, teve sua

fundação em 1580 por Manoel Preto, vinte e seis anos após a fundação de São

Paulo de Piratininga. Sua ocupação, inicialmente, deu-se por bandeirantes e foi um

importante trajeto até o Pico do Jaraguá para a exploração de ouro. A região,

segundo mapas históricos de 1842, era passagem obrigatória para quem se dirigia a

Campinas e Goiás. Acredita-se que essa rota tenha sido feita em período anterior ao

próprio descobrimento, pelos índígenas (http://www.freguesia.news/).

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Até meados dos anos trinta do século XX permaneceu como um bairro que

agregava pequenos comerciantes, principalmente portugueses, com apenas uma

escola pública localizada nos marcos do Largo da Matriz, importante espaço até os

dias de hoje. Nessa época, fazendas e chácaras tomavam as regiões mais próximas

das margens do Tietê, cercadas pela mata mais adentro, onde hoje se situa o bairro

da Brasilândia21. Na Freguesia do Ó foram morar lavradores que, mais tarde,

converteram-se em pequenos comerciantes e chacareiros. Essa população era

basicamente composta de ex-escravos e imigrantes europeus e seus descendentes.

Muitos vinham de cidades do interior deixadas após o declínio do trabalho nas

lavouras das plantações de café.

A Freguesia do Ó é o bairro onde nasci e fui criada.22. Meu avô, Joaquim

Pereira, de nacionalidade portuguesa, veio para o Brasil por volta de 1910, aos seis

anos de idade, com a família, para trabalhar nas lavouras de café. Segundo

depoimento de minha mãe, a família só não retornou a Portugal por absoluta falta de

dinheiro para pagar as passagens. Vieram transportados em navios, fazendo parte

da leva de trabalhadores que afluíram para o Brasil para substituir a mão-de-obra

escrava.

O trabalho livre não nasce, aqui, sob o signo de um mercado que divide e opõe, mas, ao mesmo tempo, valoriza e classifica. Surge como expressão das convenções e das regularidades imperantes na sufocante ordem social escravocrata e senhoril brasileira (...) como se o trabalho livre fosse um desdobramento e uma prolongação do trabalho escravo (FERNANDES, 1981, p. 193).

Assim como os ex-escravos, os imigrantes viviam como mambembes

exilados, vagando pelas ricas terras brasileiras, cuidando de gado, plantando flores,

legumes e verduras. Suas jornadas eram realizadas freqüentemente a pé, pois eram

eles que transportavam nos braços os gêneros que semeavam e colhiam. Mas não

possuíam em suas histórias a cruel experiência da escravidão. Foram personagens

importantes nas organizações de trabalhadores. Entretanto, “nem tudo era italiano” :

21 Depoimento de Dna. Alice Pereira Vicente, moradora da região desde a década de 1930. 22 Tanto minha história de vida como de meus familiares serão tomadas em consideração por questões de método, que tentei explicitar no capítulo onde foram tecidas as conexões entre sociabilidades e subjetividades.

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Os anarquistas e socialistas estrangeiros costumeiramente são colocados como os principais agentes – às vezes os únicos – de toda a ação de resistência dos trabalhadores e também como os únicos a sofrerem os efeitos da dominação e da repressão. (...) Raramente é mencionada a presença dos não imigrantes nesse processo, especialmente os da parcela pobre da população – os chamados negros, índios, mestiços, pretos, pardos, caboclos, caipiras mulatos, nativos, brasileiros, os da terra (SANTOS, 2003, p. 15).

A Vila Brasilândia recebeu seus primeiros moradores por volta de 1949,

através do loteamento de um sítio vendido a uma empresa denominada Brasilândia

Empresa de Terrenos e Construções. A população que para lá afluiu era oriunda do

centro da cidade de São Paulo, expulsa pelo processo de reorganização do espaço

urbano, que se deu pela derrubada de casarões que abrigavam a população pobre

da cidade para construção de avenidas e viadutos durante o governo de Prestes

Maia. Os terrenos eram vendidos para pagamento em doze meses e os

compradores recebiam uma parte do material para construção das casas

(http://freguesianews.com.br/).

Os nacionais despossuídos (SANTOS, 2003), juntamente com imigrantes

portugueses e italianos, foram os pioneiros na Vila Brasilândia. Outros fluxos

migratórios ocorreram e um deles, determinado pela exploração de uma pedreira em

1960 pela empresa Vega, foi um marco importante, dado que os trabalhadores

recebiam casas para morar.

A ocupação da região em cerca de quarenta anos foi tão intensa que, em

1984, o então Prefeito Mário Covas, para construção de um centro educacional e

esportivo reivindicado pela população, teve que desapropriar uma área. Foi durante

o regime militar, portanto, que se deu a grande ocupação da região. Nessa ocasião

surgiram os outros bairros que compõem a Brasilândia: Jardim Damasceno, Jardim

Vista Alegre, Jardim Icaraí, Jardim Carumbé, entre outros.

Também nesse período, especialmente no final dos anos 70, início dos anos

80, surgiram os movimentos sociais locais. A ação de militantes políticos

clandestinos, filiados inicialmente ao MDB – Movimento Democrático Brasileiro, que

foram morar na região, originaram movimentos sociais de saúde, de educação,

contra a carestia, que compuseram o contexto das lutas democráticas pelo fim da

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ditadura militar e a instauração plena da democracia23. Também aí gestou-se uma

militância significativa que iria ajudar a fundar o futuro Partido dos Trabalhadores.

Em contrapartida, a Freguesia do Ó sempre se destacou por uma forte presença do

conservadorismo de direita e algumas lideranças locais dessa tendência foram

notórias.24

Nos dias de hoje, observa-se um refluxo desses movimentos, especialmente

na área da saúde, após as administrações de ultradireita de Paulo Maluf e Celso

Pitta. Também o Partido dos Trabalhadores da região sofreu abalos importantes na

gestão de Marta Suplicy (2001-2004). A região, em nome das alianças políticas para

governabilidade, ficou sob a influência de personagens que foram, outrora,

arquiinimigos do Partido dos Trabalhadores, em detrimento de intelectuais orgânicos

da região, como Márcia Barral, removida do cargo de subprefeita para dar lugar a

indicados pelo Partido Liberal.

Para se ter uma dimensão das contradições entre Freguesia do Ó/Brasilândia,

dados da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE) apontam que,

em 2003, o índice de mortes por 100 mil habitantes na Brasilândia era de 60,0/100

mil, enquanto que na Freguesia do Ó era de 28,6/100 mil (http://www.seade.gov.br).

Os moradores dos jardins que compõem a Vila Brasilândia para sair do bairro

devem, obrigatoriamente, passar pela Freguesia do Ó, pois todas as linhas de

ônibus fazem esse trajeto. Além disso, o Largo da Matriz é um dos pontos mais

importantes da região e para onde se dirigem os jovens à procura de diversão. O

local conta com a Igreja, a Casa de Cultura ligada à prefeitura, inaugurada na gestão

de Luiza Erundina de Sousa (1989-1992), bares e restaurantes de preços e

categorias variáveis. Nesse circuito são organizados shows e a tradicional Festa das

Nações. O Largo da Matriz da Freguesia do Ó é, analogamente, a Av. Paulista dos

moradores da região.

23 Alguns desses personagens: Roberto Lajolo, Teresa Lajolo, Márcia Barral. 24 Até a última gestão petista na cidade (2001-2004), o vereador Viviani Ferraz (PL) manteve-se ativo e influente, indicando boa parte dos nomes para integrar a subprefeitura Freguesia do Ó/Brasilândia. No passado recente, o ex-deputado Hanna Garib (PPB), cassado por corrupção nos anos 90, era figura proeminente da política local.

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4.2 - Unidades Básicas de Saúde nos bairros da Brasilândia e Freguesia do Ó:

a precariedade histórica.

As Unidades Básicas de Saúde (UBS) do Município de São Paulo, salvo raras

exceções, são equipamentos antigos, com pouca ou nenhuma reforma estrutural,

com problemas hidráulicos, equipamentos quebrados, cadeiras rasgadas, macas

inutilizadas. Seus recursos não vão além da medicação, torpedo para inalação e

material para curativos simples. O potencial desses equipamentos, construídos nas

últimas quatro décadas, está na sua localização, na proximidade física com os

moradores, o que propicia um conhecimento dos problemas que a população

enfrenta e podem alterar suas vidas. Segundo Vasconcelos,

...apesar de marcados pela carência material e de recursos humanos qualificados, pela sua utilização eleitoreira pela classe política e pela falta de eficiência operacional, estes novos serviços estão assumindo importância central nas estratégias de combate às doenças infecciosas e parasitárias no Brasil (VASCONCELOS, 2001, p. 22).

Em São Paulo, as UBS encontram-se, do ponto de vista de um sistema

hierarquizado, na condição de prestar o atendimento básico ou primário à população

de seu entorno. Essa função é caracterizada por ações preventivas, educativas e

curativas de baixa complexidade, mas que implicam num trabalho constante de

acompanhamento, a exemplo da vacinação infantil, do controle de doenças crônicas,

como diabetes e hipertensão, da puericultura e do cuidado pré-natal.

Segundo Vasconcelos (2001, p. 23, grifo do autor), as ações organizativas da

Atenção Primária à Saúde podem ser agrupadas em três padrões básicos:

“assistência médica primária, atenção primária seletiva à saúde e atenção primária

integral à saúde”. A primeira forma seria caracterizada pela não valorização da

participação da população e pela ação através dos modelos de atenção dos

consultórios privados. A segunda – a seletiva – contemplaria a escolha dos

problemas a enfrentar, considerando a falta de recursos, privilegiando as ações

técnicas que impliquem em procedimentos bastante específicos, que exigem pouca

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qualificação profissional e com insumos baratos, mas com um impacto significativo

em termos numéricos. O autor cita como exemplos a terapia de reidratação oral no

combate às diarréias e borrifação de inseticidas nos domicílios.25

A terceira forma, a integral, proposta em 1978 na Conferência de Alma-Ata,

organizada pela Organização Mundial de Saúde, “tem como eixo principal o apoio

aos indivíduos e aos grupos sociais para que assumam cada vez mais o controle de

suas vidas e sua saúde” (VASCONCELOS, 2001, p. 24).

Segundo o autor, essa modalidade vem sendo implantada no Brasil em locais

onde houve um avanço das forças sociais, notadamente dos movimentos de saúde,

juntamente com profissionais identificados com essa dimensão do trabalho,

mesclando saberes técnicos e populares e práticas interdisciplinares. O exemplo que

utiliza para explicitar a dinâmica é bastante interessante. Cita um caso de

blenorragia (doença sexualmente transmissível) de uma dona de casa, que tanto

pode ser tratado do ponto de vista do significado particular desse agravo, referido

aos eventuais conflitos nas relações conjugais, como pode servir para subsidiar as

discussões em grupos de mães ou ações educativas com profissionais do sexo, sem

esquecer os jovens e adolescentes em início de atividade da vida sexual, nem os

velhos que, ao contrário do senso comum, exercem atividades sexuais, mas nem

sempre em situações protegidas.

Dependendo das ações desenvolvidas, as UBS do Município de São Paulo se

encontram divididas em unidades tradicionais, unidades de Programa de Saúde da

Família (PSF)26 e unidades mistas.

As ações nas unidades tradicionais foram e são desenvolvidas dentro do

paradigma institucional: é a procura dos usuários que determina o

desencadeamento das ações, através, basicamente, da marcação de consultas com

médicas nas áreas de ginecologia, pediatria e clínica geral. Fazem parte do quadro 25 Atualmente, na subprefeitura Brasilândia/ Frequesia do Ó há um carimbo que introduz em todos os primeiros atendimentos perguntas referentes à tosse e febre para detecção de casos de tuberculose. Se as respostas são positivas é solicitado o exame de escarro ao usuário, independentemente de sua matrícula no serviço. 26 Pela importância do PSF para o presente trabalho, sua discussão foi feita separadamente no subcapítulo 4.3.

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de profissionais assistentes sociais, psicólogos, dentistas, enfermeiros, além do

pessoal técnico-administrativo.

Onde há profissionais que desenvolvem ações educativas há alguns trabalhos

com grupos e com algumas escolas do entorno mas, geralmente, o profissional

acaba por desempenhar suas funções dentro do modelo médico tradicional, com

horários pré-estabelecidos, seleção de problemas, de faixa-etária e outros critérios

estabelecidos a partir de uma percepção vaga e abstrata sobre as necessidades da

população.

As UBS têm sido, historicamente, locais que se confundem com a paisagem

urbana das regiões periféricas de São Paulo. Suas paredes, freqüentemente de

concreto aparente, quase sempre desbotadas ou, mais recentemente, com

pichações, podem ser comparados a totens que se mantêm para lembrar que saúde

é um dever do Estado e um direito do cidadão, conforme escrito no texto

constitucional. Para se chegar a isso, contudo, foram necessárias muitas lutas,

muitos enfrentamentos políticos e até mesmo conflitos com violência física.27

A espera por uma consulta médica nessas unidades gira em torno de três

meses, curiosamente uma média histórica, com pequenas variações ao longo de

diversas administrações municipais. Para a grande maioria da população, que

desconhece a história dos movimentos sociais, assim como seus direitos, a única

luta que faz sentido é a luta cotidiana pela sobrevivência e pela vaga para um

atendimento. Esses serviços, com a precariedade e lentidão que os caracterizam,

são as mais concretas demonstrações de relações sociais marcadas pela

desigualdade e pela negligência.

27 O Pronto Socorro 21 de Junho, que ficou conhecido como Pronto Socorro da Freguesia do Ó, foi inaugurado alguns anos após o movimento de saúde da região ter se organizado e realizado uma manifestação em frente ao prédio da Administração Regional para reivindicar a construção de um hospital na região, durante uma visita do prefeito no governo itinerante. Os tempos eram de ditadura, o prefeito era Paulo Salim Maluf e o método era o da pancadaria. Assim foi: a população foi espancada e somente anos depois o equipamento foi inaugurado pelo então prefeito Mário Covas, ainda durante a ditadura militar. É um pronto socorro isolado, ou seja, não possui leitos para internação, não realiza nenhum tipo de cirurgia ou atendimento a politraumatizados. Durante muitos anos foi o único pronto socorro da região. Atualmente, há 2 hospitais na região, ligados ao Governo do Estado, o que não diminuiu nem modificou a demanda de atendimento no Pronto Socorro 21 de Junho.

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Entretanto, os serviços de saúde mantiveram, desde sua criação, suas portas

sistematicamente abertas - é certo que, na maior parte das vezes, mais por

obrigação que por vocação. A proibição de negar socorro ou de cerrar as portas

antes dos horários indicados, além de caracterizá-los como de primeira necessidade,

mais do que os outros equipamentos da administração pública, os inscreveram no

território de vida da população. A população da vizinhança das UBS costuma

lembrar-se dos profissionais que por ali passaram, considerados bons ou ruins,

competentes ou incompetentes, assim como qual política de atenção, em especial a

distribuição de remédios, foi a mais eficiente.

No campo da saúde mental, as UBS ligadas à Secretaria Municipal de Saúde

ocupavam-se exclusivamente das ações com crianças com distúrbios leves,

geralmente encaminhadas pelas escolas e atendidas por psicólogos, ficando a cargo

do governo do Estado as ações de maior complexidade como, por exemplo, a

administração dos hospitais psiquiátricos, que eram em sua maioria serviços

privados pagos com recursos públicos, os Ambulatórios de Saúde Mental e as

chamadas Unidades Básicas de Saúde-I, que contavam com uma equipe mínima

composta de 1 médico psiquiatra, 1 assistente social e 1 psicólogo. Somente em

1990, no governo petista de Luiza Erundina (1989-1992), as UBS ligadas ao

município, com maior capilaridade, passaram também a contar com equipe mínima

de saúde mental. Esse modelo tem, desde então, sofrido vários solavancos,

chegando a ser virtualmente extinto durante a vigência do Plano de Atenção à

Saúde (PAS), programa de caráter privatizante dos governos Maluf e Celso Pitta

(1993-2000). Na medida em que avançou a municipalização (transferência dos

equipamentos e pessoal de saúde para as administrações municipais, prevista na

constituição) durante a gestão de Marta Suplicy (2001-2004), o modelo foi retomado

parcialmente, mas está em discussão e hoje, em parte pelas mudanças introduzidas

pela implantação do PSF, não se pode dizer que esteja estabelecido.

Nos final dos anos 80, essa rede de atendimento estava esboçada para ir de

encontro à consolidação do movimento da luta antimanicomial, marcado pelas idéias

geradas a partir da antipsiquiatria e da psiquiatria democrática italiana.28 O resultado

28 A Psiquiatria democrática surgiu na Itália na década de 60 e foi responsável por um ideário que denunciou sistematicamente as atrocidades cometidas nos manicômios, não só no que se refere à

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mais expressivo desse momento histórico foi a desinstitucionalização promovida em

Santos/São Paulo, entre o final dos anos 80 e início dos anos 90, que previa uma

ampla desinternação e desativação de hospitais psiquiátricos, com ênfase no

atendimento extra-hospitalar. No plano nacional, porém, a chamada Reforma

Psiquiátrica teve que esperar o século XXI para sua aprovação.

4.3 - O Programa de Saúde da Família (PSF) nas Unidades Básicas de

Saúde: a reiteração da precariedade.

O programa, resumidamente, é uma estratégia de atenção em saúde pública

que propõe a reorganização da atenção básica em um paradigma territorial, com

ênfase na atuação dos chamados agentes de saúde, vindos da comunidade

próxima. A instalação do PSF na cidade de São Paulo começou timidamente na

região da Brasilândia, em 1997, numa parceria do governo do Estado e a Fundação

Zerbini, abrangendo poucas unidades-modelo. Sua implantação como programa do

governo federal para atenção básica dentro do Sistema Universal de Saúde (SUS) já

estava acontecendo em outras regiões do país, especialmente no Nordeste, desde

1995. Em São Paulo, só ganhou destaque como programa público do município no

governo de Marta Suplicy (2001-2004) – “O Governo da Reconstrução”.

Após oito anos de desmontes, de sucateamentos e de dispersão das forças

sociais populares e profissionais, promovidos pela dupla Maluf-Pitta29(1993-2000),

questão dos direitos humanos, mas também quanto ao seu potencial de cronificação e coisificação humanas. Franco Basaglia foi o mais importante de seus teóricos. Sua primeira experiência no hospital psiquiátrico de Gorizia, sul da Itália, resultou na desconstrução das relações de poder e na construção de alternativas cidadãs para a população até então asilada. Essa proposta deu subsídio para vários países, inclusive para o Brasil, e foi objeto de enfrentamentos sociais e políticos. A Lei da Reforma Psiquiátrica italiana, de 1978, foi a grande inspiração dos movimentos da luta antimanicomial no Brasil a partir de 1985, resultando na Reforma Psiquiátrica brasileira (Lei n° 10.216, de 6 de abr il de 2001). O slogan da luta antimanicomial na Itália, Manicomio, no grazie!, no Brasil foi traduzido Por uma sociedade sem manicômios!. 29Em 1996, o pefeito Paulo Maluf deu início ao Plano de Atenção à Saúde (PAS), que pretendia repassar a cooperativas privadas o atendimento em saúde no município. O Plano avançou na administração Pitta e vigorou até 2001, início da administração Marta Suplicy, que o desmontou. O desvio de dinheiro público nesse período ainda não foi adequadamente apurado. Funcionários municipais da saúde que não aderiram ao PAS foram aleatoriamente transferidos para setores

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que implicaram num afastamento do município dos princípios do SUS, inclusive com

importante perda orçamentária de recursos vindos da União, houve a expectativa de

que a saúde pública em São Paulo retomaria seu caminho rumo à constituição de

uma situação semelhante a 1989-1992. Tendo novamente à frente da Secretaria

Municipal da Saúde o deputado Eduardo Jorge, importante quadro do Partido dos

Trabalhadores, médico-sanitarista, ex-secretário no governo Luiza Erundina, as

esperanças foram renovadas, embora já se esboçasse uma mudança de identidade

partidária.

No âmbito da política nacional, os anos do governo Fernando Henrique

Cardoso (1996-2002) tinham promovido uma severa modificação no que foi

assegurado pela Constituição de 1988.

A partir da Constituição de 1988, Saúde e Assistência Social – junto com a Previdência social – passaram a fazer parte integrante da Seguridade Social, concepção inovadora que representou uma inflexão na trajetória da Política Social brasileira. Ambas – Saúde e Assistência Social – passariam a ser vistas como direito de cidadania e dever do Estado. O acesso aos serviços ficou pautado pela universalidade e o seu funcionamento submetido ao controle social. Tratava-se de uma democratização até então inédita no setor público brasileiro (SOARES In: BRAVO, 2004, p. 11).

Entretanto, as políticas neoliberais que passaram a vigorar no país

interromperam o processo de implementação do novo projeto, mais generoso, fruto

do processo de redemocratização do país. Para a autora, a afirmação de que a

Seguridade Social no Brasil não deu certo é falsa. Na verdade, sua construção foi

interrompida pelas exigências do Fundo Monetário Internacional para regularização

de déficit e superávit fiscais.

A idéia da unicidade foi rompida (...). Pela primeira vez, desde os anos 70, a Assistência Social deixou de contar com uma parte dos recursos previdenciários, limitando-se aos escassos recursos fiscais disponíveis (SOARES In: BRAVO, 2004, p.12).

Para Soares (In: BRAVO, 2004, p. 12), também os planos político e ideológico

se modificaram e os congressos e conferências de categorias profissionais, através

de seus documentos, podem confirmar essa observação. “Cada um cuidou do seu. incompatíveis com suas funções, o que gerou bizarrices tais como médicos em usina de asfalto, assistentes sociais em bibliotecas e fonoaudiólogas em centros esportivos.

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Nunca mais se propôs alguma política de ‘Seguridade Social’”, à exceção do grupo

dos assistentes sociais, que sempre a defenderam publicamente. A autora afirma

que houve um investimento na filantropia, na responsabilização da vítima, numa

desresponsabilização progressiva do Estado, elegendo os “mais pobres” como alvos

dos programas focalizados de combate à pobreza, via Terceiro Setor e filantropia,

substituindo o direito.

É nesse contexto que surgiu o PSF como uma alternativa para reorganizar o

atendimento básico de saúde na esfera do SUS, apadrinhado por Adib Jatene. O

programa tem sido alvo de debates no campo da medicina, sendo freqüentemente

apontado como uma estratégia para redução dos gastos com a saúde pública, à

medida que privilegia a contratação de profissionais não médicos para a execução

de procedimentos que tradicionalmente são prerrogativas do médico.

Em 2001, teve início a implantação do PSF na cidade de São Paulo, não

mais como projeto-piloto, como vinha sendo tocado pelo governo do Estado até

então, mas como política municipal de atenção básica em saúde. As unidades, já em

número insuficiente, receberam uma grande quantidade de profissionais, cujas

atividades são desenvolvidas em salas que utilizadas coletivamente. Tornou-se

comum o atendimento com portas abertas, com outros usuários aguardando. O

atendimento do serviço social, dessa forma, freqüentemente é quase público, sem

reservas, sem maiores cuidados. O assistente social não raro é o profissional mais

procurado pela população no serviço de saúde, rivalizando nesse sentido apenas

com o médico. Na esmagadora maioria das vezes, as demandas são relativas a

processos de isenção tarifária, aposentadoria (que é como os usuários se referem

ao Benefício de Prestação Continuada da Lei Orgânica da Assistência Social),

obtenção de passes para locomoção às consultas, pedidos de leite e marcação de

consulta em especialistas.

Os trabalhos em grupo são desenvolvidos nessas Unidades por agentes

comunitários. São ocupadas praças, centro comunitários e o próprio espaço da

Unidade de Saúde para isso. Os passeios com fretamento de ônibus e aluguel de

locais de lazer são custeados pelos próprios usuários, com a administração dos

agentes comunitários. Ao agente cabe a visita periódica ao domicílio, a detecção dos

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problemas que ali se apresentam e a proposição de atividades para aquela

população (por exemplo, controle de pressão arterial, lazer para velhos,

acompanhamento individual ou em grupo de pessoas com problemas mentais).

O assistente social conta quase que exclusivamente com sua força de

trabalho, não raro tendo que desembolsar dinheiro para fornecer condução, postar

uma carta, comprar papel, copos descartáveis, água, papel higiênico e sabonete.

As assistentes sociais escolhidas para compor o presente estudo encontram-

se trabalhando na região Brasilândia-Freguesia do Ó em quatro posições diferentes:

compondo a equipe volante de saúde mental – Luisa Franco e Rita de Cássia

Diógenes Beserra Silva30; trabalhando no atendimento em unidade mista – Marly

Nazareth Frigo Consiglio; trabalhando em unidade com programa exclusivo de PSF

- Dagmar de Souza; e na gerência de unidades exclusivas de PSF: Judith Maria Dias

e Luzia Giosa Graciano.

Na época em que foi realizada a pesquisa de campo, entre setembro/2004 e

janeiro/2005, havia na referida subprefeitura 34 assistentes sociais em atividade nos

serviços de saúde municipais. Dentre elas, à exceção da assistente social que

também é gerente da UBS Cruz das Almas, somente as entrevistadas estavam

diretamente envolvidas nas ações de PSF. Portanto, não só do ponto de vista

qualitativo, mas também quantitativo, essas entrevistas são significativas dos temas

e contradições destacados pelos profissionais dentro do novo paradigma do PSF.

As ações dessas assistentes sociais foram eleitas pressupondo que a

implantação do PSF traria alterações substanciais nas concepções subjetivas

presentes no exercício profissional, à medida que, alterando o paradigma de

atendimento – de institucional para territorial –, o assistente social se defrontaria com

o sofrimento humano sem as barreiras institucionais que organizam, disciplinam e

selecionam a demanda que busca a instituição.

30 Rita de Cássia Diógenes Beserra Silva foi entrevistada, mas a qualidade da gravação de seu depoimento foi prejudicada, o que impediu a transcrição. Embora não faça parte da escrita deste trabalho, seu depoimento foi fundamental para a composição do mesmo.

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Capítulo 5 – A história das histórias

De início, a escolha da forma de apresentação das entrevistas tenderia a

recair sobre a reprodução integral da transcrição das mesmas, por questão de

fidelidade ao material original. No entanto, o volume de páginas resultantes

ameaçava afastar o leitor e comprometer o equilíbrio entre o material de pesquisa de

campo e as considerações teóricas (para dar uma dimensão do problema, basta

dizer que uma única entrevista resultou em cerca de 70 páginas de transcrição). Por

outro lado, o recorte de trechos para elucidar ou ratificar algumas hipóteses desse

ensaio pareceu excessivamente arbitrário, considerando que o método da História

Oral desaconselha o uso de crivos, pelo risco de modificar o material empírico em

benefício do pesquisador.

Certamente, não parecerá estranha a quem se habituou a lidar com material

de pesquisa tão volumoso a ambivalência que ele provoca: parece conter tudo e

nada, simultaneamente universal e prosaico, interessante e indevassável. É preciso

habituar-se ao texto, à cadência das idéias do entrevistado, seu linguajar próprio,

seu modo de dizer-se.

Restava ainda equacionar as narrativas com a ciência da biografia nos termos

propostos por Sève (conferir capítulo 2), tarefa emergente para a qual esse ensaio

tem o desejo de contribuir. A escolha final, um ponto médio, recaiu sobre a

reprodução parcial mas extensa das entrevistas, num capítulo próprio, numa

tentativa de manter suas marcas originais sem sufocar o trabalho com o peso de

páginas em excesso. As observações e comentários sucintos que introduzem os

trechos reproduzidos foram feitos de forma a preencher as lacunas de informação e

permitir, opcionalmente, uma leitura rápida.

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5.1 - Judith: “Matar um leão por dia!”31

As personagens da infância:

Judith, uma mulher viva, esperta e falante, tem uma história repleta de

elementos que, embora se assemelhem a um conto infantil de caráter universal, traz

outros significativos da história do Brasil. Nascida em Bom Jesus da Lapa, cidade de

romarias, no interior da Bahia, seu pai comercializava rapadura, calçados e outros

produtos numa barca no Rio São Francisco. A mãe morreu com a filha caçula

durante o parto.

Meu pai, aliás, a gente saiu da Bahia porque a minha mãe morreu, né? A minha mãe morreu de parto, de uma menina, e aí a vida do meu pai meio que virou, sabe, porque ele tinha uma vida econômica estruturada...

Morou em companhia das tias, irmãs da mãe, as quais todos os irmãos e

primos chamavam de mães, até os 3 anos, quando seu pai ficou doente e veio para

São Paulo em busca de tratamento médico. Tratou-se no Hospital das Clínicas e

mandou buscar os filhos na Bahia, migrando em seguida para o Paraná para

trabalhar no plantio de café e algodão.

...por coincidência apareceu um problema de saúde pra ele, de uma hora pra outra apareceu como se fosse um calombo e esse calombo ía crescendo, crescendo, crescendo e ele achou que tinha que vir pra São Paulo operar. E foi o que ele fez.

No Paraná, seu pai plantou algodão, café, mas não conseguiu fazer da

agricultura um meio de vida porque as sucessivas perdas das lavouras o fizeram

desistir desse projeto e migrar para São Paulo na busca de melhores condições para

seus filhos, especialmente, uma boa educação formal.

31 Judith Maria Dias, 56 anos, solteira, assistente social formada pela Faculdade Paulista de Serviço Social – São Paulo em 1977. Gerente da Unidade Básica de Saúde Jardim Guarani, Brasilândia – São Paulo.

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...é, um pouco, ele arrendou terras, né?, arrendou terra, plantou café, a aí ele ajudava, achava que ía ficar muito bem, só que daí veio a geada e acabou. Aí depois ele arrendou terra de novo, plantou algodão, e ele achava também que dessa vez ía dar certo, só que daí ele colheu o algodão, 30% do que ele colheu ele pagou todas as dívidas dele, dívida de arrendar terra, dívida de trabalhador, dívida de tudo e 70% era lucro. Com esse lucro ele ía comprar terra em Campo Mourão, ía comprar uma fazenda em Campo Mourão e todos nós íamos estudar em Londrina...Só que também não deu certo, porque aí choveu quinze dias seguidos. Aí, o algodão que ele...eu lembro essa passagem assim, todo mundo na janela esperando a chuva passar (...) Aí ele veio comprar um terreno na Freguesia do Ó, fecha o olho e imagina um terreno na Freguesia do Ó cinqüenta anos atrás, fechou? Pois é (risos). Aí ele comprou um terreno, que também não queria pagar aluguel, e aí a gente foi pro grupo escolar, e aí ele foi trabalhando, mas ele dizia o seguinte, que quando a gente crescesse, que a gente não precisasse mais dele, ele ía voltar pra terra dele.

O pai de Judith era filho de um português e de uma escrava afrodescendente.

Ambos morreram quando seu pai era pequeno, o que o levou a morar nas ruas e

sobreviver a partir de trabalhos que realizava em troca de alimento e algum dinheiro.

Tinha filhos do casamento anterior, meu irmão mais velho que tem idade para ser meu pai e meu pai era de...1894. Ele era filho de uma escrava com um português. A mãe dele só ficou livre porque casou com um português.(...) E aí ele teve uma vida muito boa até mais ou menos oito anos. Com oito anos, o pai dele morreu numa gripe, uma gripe muito forte que a gente não sabe, eu até poderia, se quisesse, descobrir que gripe que foi, né? E aí o pai dele morreu numa semana e a mãe parece que morreu um mês depois. Assim, morreu rapidamente, né?... E a minha tia Isabel, como ela tava ficando mocinha, rapidamente alguém pegou, porque era uma mão de obra barata, né?, tal, e ele não. Ele ficou solto, no espaço, né?

Sua honestidade, inteligência e a disposição para o trabalho o levaram às

lavras e à obtenção de um diamante com o qual pôde iniciar a construção de um

pequeno patrimônio de terras no interior da Bahia. O primeiro casamento só foi

permitido pelo pai da moça por causa desses bens, apesar de carregar o estigma de

“Zé Ninguém” por ser filho de uma ex-escrava e de um homem analfabeto, com uma

infância marcada pelo total desamparo. Até hoje, quando Judith volta à sua cidade

natal, as marcas das vidas de seus avós e de seus pais encontram-se inscritas nas

sociabilidades e a localizam num dado lugar da hierarquia social brasileira, a

despeito de atravessar gerações.

Eu sou reconhecida porque eu sou, a família da minha mãe é tradicional, a família do meu pai não, então eu sou da família, "você é da família dos Costa, ah, o Gustavo Costa, o coronel Costa, tal..." Meu pai não, meu pai até tinha uma determinada época ele fez um bom capital, mas era um ilustre Zé ninguém, assim, era, não tinha berço, né? E aí por conta dessa

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coisa dele ser filho de escravo, de ser filho de português analfabeto, ninguém ficou com ele, ele ficou...porque ele falava que ele dormia aqui, dormia ali, menino de rua praticamente, né? Mas era assim, ele falou que ele não sabe porque, que ele era assim extremamente correto, extremamente honesto e todo mundo gostava dele. E porque gostava? Porque trabalhava de graça, entendeu? Então ele chegava numa fazenda, ele trabalhava, e aí em troca do trabalho ele dormia ali no alpendre, que a gente fala alpendre na Bahia, né?, e dava comida pra ele, aí terminava a lavoura, ele ía fazer outra coisa, até que ele fez um...meu pai era extremamente inteligente...até que ele fez um capitalzinho e ele foi pra trabalhar nas lavras, por conta própria, e ele pegou um diamante, com esse diamante ele comprou terras, foi aí que ele se estabeleceu.

O casamento com a mãe de Judith foi o terceiro de seu pai e só pôde

acontecer por causa do pequeno patrimônio que possuía.

...quando ele foi pedir a mão da minha mãe, também, ele só pôde casar porque tinha terras, tinha sítio, tinha não sei o quê...

A mãe de Judith era filha de um ex-seminarista. Sua avó fora capturada por

um caçador dos braços da mãe ainda bebê. Sua bisavó, índia, muito bonita, casou-

se com um coronel. O patrimônio e a tradição da família vêm daí.

...aí meu vô deixou, meu vô era um ex-padre, né?, era, tinha saído do seminário pra casar com a minha vó, que era índia. A minha, a minha bisavó, ela foi capturada pelo, pelo caçador, e ela trazia minha vó no colo, e foi a minha vó que, que...disse que era uma índia muito, disse não, era realmente, uma índia muito bonita, e aí ela acabou casando muito bem, casando com o coronel Plácido, deixou, que herdou uma herança e tal, né? Não adianta, tenho que falar de mim, estou falando...

A mãe de Judith morreu quando ela ainda era muito pequena. Não se lembra

de nada a respeito da mãe biológica, mas persiste uma fantasia, um mito em sua

vida.

... têm umas fantasias, sim, porque eu sempre fico, quem não tem mãe sempre fica achando que a mãe era melhor..[risos]. Não adianta, eu tenho esse mito até hoje: se fosse minha mãe, não seria desse jeito...Mas é pura bobagem, as duas eram irmãs, provavelmente não ía ser tão diferente.

O quarto casamento do pai de Judith deu-se com sua tia, a quem ela já

chamava de mãe.

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Outra mãe, é que eu não contei essa passagem, porque assim, aí depois meu pai casou com a minha tia, irmã da minha mãe, que ela tinha ficado cuidando da gente. Quando minha mãe morreu, meu pai veio pra São Paulo e nós ficamos lá com ela. E aí ele mandou perguntar se ela queria casar com ele, já que ela estava cuidando dos filhos, tal, e ela aceitou...Mas eu já chamava ela de mãe, porque a família da minha mãe, é, eles tiveram filhos muito misturado, muito juntos, né?, e todo mundo mamava em todo mundo, então todo mundo era mãe de todo mundo. Então, assim, era mãe Ivaninha, mãe Alice, mãe...todo mundo era mãe. Ai, eu nem sei porque ela era mãe, porque ela era solteira, porque a gente também chamava ela de mãe, porque ela cuidava e tal, então não teve dificuldade porque a gente já chamava ela de mãe.

O pai de Judith morreu em 1972, aos 78 anos, em São Paulo, apesar de

sempre ter desejado retornar à Bahia.

E...e aí ajeitou a vida, ficamos por aqui mesmo, mas ele sempre dizendo que ele ía voltar pra terra dele, né?, quando ele, quando todo mundo crescesse e tal, só que daí ninguém queria mais voltar porque você não tinha mais raiz, você não tinha mais nada a ver.

Voltando à Freguesia do Ó...

O pai de Judith construiu uma casa no bairro da Freguesia do Ó nos anos 50,

colocou os filhos em escolas estaduais, contrariando sua vontade de dar-lhes uma

educação mais sofisticada.

Então, e aí meu pai tem toda essa história, de querer viver bem, ele não queria mais que os filhos dele passassem, ele tinha pavor que a gente não estudasse, que pra ele ía ser muito difícil estudar, e por isso que ele tinha essa fantasia do colégio interno, da gente estudar, da gente falar língua, minhas duas primeiras irmãs estudaram no colégio de freiras e tocam piano, não sei o quê, quando chegou a minha vez e fui pro grupo escolar, ele ficou amargurado, porque não era isso que ele queria pra gente.

As inscrições do tempo na vida:

Embora necessitando trabalhar, Judith buscou a carreira de medicina, uma

das mais difíceis, caras e elitistas carreiras universitárias. Poucos são dos que

pertencem às classes que vivem do trabalho que conseguem acesso a ela.

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... terminei o primário, fiz o, fiz o ginásio, o colégio, que na verdade eu queria fazer medicina, até fiz o científico, você lembra do Cecem-Cecea-Mapofei? (risos) Então, aí eu queria fazer, queria fazer medicina e até fiz o científico prá isso, né?, tal, só que eu também não tinha rendas, porque meu pai não podia pagar uma faculdade pra mim, e eu não entrei, não consegui entrar na USP, não consegui entrar em nenhuma faculdade que fosse, que fosse pública, né? Não consegui. Aí, logo em seguida meu pai morreu, morreu em 72, né?, eu tentei Cecem 70, 71, 72 ele morreu, eu falei, ah, vou fazer outra coisa.

Após a morte do pai, a acachapante rotina de trabalho em um banco, que não

atendia aquilo que lhe fora transmitido como valor máximo pelo pai, a formação

acadêmica.

Assim, daí eu fui trabalhar, trabalhar na Caixa Econômica e aí eu pensei, eu falei, bom, eu preciso estudar, fazer alguma coisa na vida, não posso ficar só com colegial, trabalhando de escriturária, na Caixa Econômica...

Medicina ou serviço social?

Depois da medicina, o gosto pela cultura geral e pela leitura a fizeram

acreditar que biblioteconomia seria uma profissão interessante. Só seria possível,

porém, se fosse numa universidade pública.

Parei um período, parei...Mas acho que foi, é , foi dois anos, em 74 eu já entrei na faculdade, né? Aí eu peguei, falei, peguei aquele caderninho do Cecem pra ver as outras carreiras que tinha lá. Como eu gosto muito de cultura geral, eu gosto de ler, eu falei, acho que biblioteconomia é uma coisa legal. Peguei, fiz o, me inscrevi pro vestibular de biblioteconomia, mas também só queria se fosse o da USP, porque não queria pagar.

O serviço social, apresentado à Judith através de um chefe de trabalho,

acabou sendo o curso escolhido.

E... e aí tinha essa outra coisa do serviço social, pensei "meu Deus, que diabo é isso?" E aí comecei ler, e aí tinha um gerente que trabalhava comigo na Caixa Econômica, era uma pessoa assim muito legal e a mulher dele era assistente social. E aí ele falou, "ah, você quer conversar com ela, eu vou trazer ela aqui", uma, uma japonesa. "Aí você conversa com ela, tal". Aí eu conversei, ela trabalhava no HC, não me lembro, e ela começou a falar o que fazia a profissão, tal, e eu falei, "acho que não vou gostar de biblioteconomia, não, que eu vou ter que ficar presa, acho que eu vou fazer serviço social." Optei por serviço social.

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O curso de serviço social concentrava disciplinas interessantes e poderia ser

custeado com seu salário.

E as matérias também que tinha, eu olhei, olhei o currículo, falei "nossa, acho que eu vou gostar de estudar isso". E realmente gostei. Aí eu nem fiz o vestibular pra biblioteconomia, aí fui na Paulista, vi que dava pra eu pagar, daí eu falei "mesmo que essa daqui for paga, não tem problema nenhum que com meu salário vai dar pra pagar". Era uma das mais baratas, né? E eu não ganhava tão mal. Aí eu fui no vestibular, passei, peguei, acho que peguei, tava há dois anos parada, lembro até hoje, peguei a 26ª classificação e eu fiz estágio de fim de semana enquanto eu tava estudando porque eu trabalhava o dia inteiro, né?,

Houve uma outra motivação que a levou a cursar a Faculdade Paulista de

Serviço Social, que se funde a muitas histórias de nossa geração: o desejo de

ajudar, desejo que hoje buscamos superar com a luta pela justiça social.

Eu acho que essa coisa do ajudar. Porque, na verdade, eu queria fazer medicina porque eu tinha um mito de salvar as pessoas, ajudar a salvar pessoas e aí quando me apareceu o serviço social como uma coisa que eu também podia ajudar a salvar de outro jeito, né? Podia não salvar da morte, mas salvar, sei lá, salvar hoje, usando um termo mais moderno, salvar da exclusão, salvar da pobreza total, né? Acho que, acho que isso que me chamou a atenção.

Os estágios foram em hospitais e entidades espíritas e no Instituto de Serviço

Social, através de uma técnica denominada Educação de Base32.

...eu fiz numa empresa, fiz numa entidade espírita da assistência social, Soprater, Sociedade do Amparo Fraterno, que dava, assim, assistência a uma população moradora de uma favela, de Paraisópolois, e fiz também num hospital, hospital de Interlagos, então esses foram meus dois estágios. Durante...durante o curso, no 3° ano, lembra do pro fessor Cortez?

Na Faculdade, teve a oportunidade de ingressar na vida acadêmica como

auxiliar de ensino do Prof. Cortez. Entretanto, preferiu fazer um curso para habilitar-

32 Educação de Base foi uma adaptação feita Prof. José Pinheiro Cortez para o método Paulo Freire. Colocava alunos que necessitavam realizar estágios nos finais de semana em locais distantes das periferias de São Paulo para trabalhar com essa técnica, que consistia na utilização de um flanelógrafo, algumas figuras de homens, mulheres e crianças que eram dispostos de acordo com uma história que os grupos formavam. Essas histórias serviam como dispositivos que disparavam temas para discussão dos conflitos e dificuldades sociais e familiares dos componentes desses grupos. Eram, habitualmente, pessoas das comunidades ligadas às igrejas católicas locais.

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se como professora, o que a obrigou a afastar-se da faculdade. Mas não mais deu

aulas.

Pois é, ele me convidou pra ser auxiliar de ensino dele, quase caí das pernas, mas topei. Aí eu fui ser auxiliar de ensino e ele me ajudava naquela coisa de bibliografia, trabalho, tal, e fiz isso no 2° e no 3°, no 3° e no 4° ano, quando eu me formei, ele me convidou pra ser assistente dele, eu fiquei uns dois anos. Aí depois eu fiz um vestibular na FATEC, que era a formação de professores, que era a proposta do governo federal a expansão do curso profissionalizante. Aí eu fui lá, fiz esse curso, né?, um ano, fiz vestibular, passei, aí eu fiquei habilitada como professora III, mas nunca dei aula. E por conta de fazer esse curso eu me, abandonei a carreira da faculdade, né? Que depois de um tempo eu me arrependi tremendamente porque era uma coisa que eu gostava...

O primeiro emprego como assistente social:

Conseguiu seu primeiro emprego logo depois de formada, na Secretaria de

Assistência Social (SAS), onde permaneceu por nove anos. O trabalho era com as

parcelas subalternizadas da população da cidade, lidando com todo tipo de carência.

Eu entrei na prefeitura, trabalhei em SAS em 78, me formei em 77, em 78, já comecei a trabalhar. Saudade desse tempo, porque hoje você se forma e emprego... Eu trabalhei em SAS, entrei em 78, aí fiquei lá até 87, eu trabalhei com favela, água, luz, organização de população, trabalhei com supervisão a creche, trabalhei com adolescentes, trabalhei com formação de mão de obra.

Judith havia participado, ainda que muitas vezes de maneira tímida, da

formação de um novo sujeito coletivo, o PT. Os ventos da democracia sopravam na

época pela primeira vez em nossas vidas e passamos a ser uma das categorias

profissionais que buscavam uma articulação profissional plena entre o social e o

político. Fomos, também, centenas de vezes, perseguidos e demitidos por isso.

Aí em 87 teve uma greve lá que eu participei e eu fui mandada embora, da, da prefeitura. Eu era contratada, contratada. Aí o Jânio mandou embora. Mas ele não me fez um mal, não, ele me fez um bem, porque eu era chefia de habitação e aí eu acabei fazendo uma boa relação com a secretária, Dona Marta Godinho, e aí quando eu fiquei desempregada, dei meu currículo na mão dela e falei que tava desempregada. "Ah, eu sabia,

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achei que essa história de ser petista, mais cedo ou mais tarde você ía ser demitida". Tava saindo da faculdade, tava organizando o partido, né? Então eu já era petista, né? E a dona Marta era PSDB, ela respeitava o meu trabalho, porque ela falava pra mim assim... quando ele, quando a gente fez greve, voltou, ele deu um prazo pra voltar, que tinha tido uma assembléia e eu achei que tinha que ser coerente com a postura da assembléia, se eu tava na assembléia dizendo, eu levantei a mão pra greve continuar, eu não podia voltar sozinha, né? A maioria das pessoas depois não fizeram esse, não tiveram esse entendimento. Mas eu achei que eu tinha que ser coerente e aí quando o secretário chamou pra conversar eu falei "olha, tô em greve!" Perguntou se eu tava na assembléia de manhã, eu falei que estava, aí no dia seguinte saiu a demissão.

Apesar de seu envolvimento político partidário nas lutas no âmbito das

Secretarias Municipais, foi distinguida pela sua capacidade e disposição para o

trabalho.

E ela falava prá mim assim, "eu só fico com você como chefia porque você trabalha, sei que você, a hora que a gente...", sempre trabalhei mesmo, nunca fui de fazer corpo mole. Só que daí o Jânio não tinha essa avaliação.

O país já estava num outro momento político, seria correto supor que as

forças reacionárias e conservadoras da sociedade brasileira estavam ao menos

adormecidas. Mas a história não funciona assim, cronológica e funcionalmente,

como fomos ensinados a pensar. A demissão de Judith foi mais um momento de

retrocesso da sociedade paulistana e o retorno de inequívocas marcas do período

da ditadura militar na cultura.

Mas você lembra que foi um retrocesso o Jânio ter ganho? Houve uma abertura, a gente pôde votar, depois votou...Jânio, não é? (risos) Não é louco?

O caminho na vida mambembe e a chegada ao território da saúde:

A indicação de Marta Godinho rendeu a Judith um excelente emprego na

Universidade de São Paulo. Tratava-se de um trabalho muito bem remunerado, com

grande status e em equipe. Visava à desocupação de área pública, sem "ranhuras”.

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A equipe contava com recursos para viabilizar a compra de novas moradias para os

desalojados e, assim, conseguiu chegar com sucesso ao objetivo do projeto.

Aí eu fui trabalhar na USP, dona Marta me indicou, tinha um projeto habitacional lá, e eu fui ganhando muiiito bem, nossa senhora. Olha, eu saí da prefeitura ganhando oito não sei o quê, nunca sei se era oito milhões ou oito mil, preciso pegar o holerith pra ver o que que é. E aí eu fui pra USP ganhando vinte e três e não sei o quê. Era muito dinheiro, né? E aí eu fiquei lá trabalhando, fazendo esse trabalho, era uma equipe, uma equipe que tinha 2 assistentes sociais, um arquiteto, um engenheiro e era pra desocupar umas áreas invadidas do campus, mas com o mínimo de ranhura, sabe, os moradores tinham que sair com proposta, com projeto, porque a USP não podia passar por esse desgaste de desocupar a área e não dar alternativa, né? E foi isso que a gente fez. Nós removemos duzentas e poucas famílias, compramos casa, apartamento, tudo, e eu fui pra lá com um contrato de.. era prá ficar dois anos, né? Quando terminou o trabalho o reitor achou que era uma pena dispensar a gente, porque realmente a gente tinha prestado um serviço legal. Aí ele nos contratou no RH da prefeitura da Cidade Universitária.

Mais uma vez reconhecida pelo seu trabalho, conseguiu permanecer

empregada. A eleição de Luiza Erundina de Souza para a prefeitura de São Paulo

trouxe novo alento, principalmente para aqueles assistentes sociais que haviam

sofrido algum tipo de retaliação em virtude de participação política. Judith foi

chamada a voltar para a SAS, mas não voltou. Preferiu uma volta como funcionária

pública, desta vez com as prerrogativas oferecidas pelo concurso público que já

prestara. Com um detalhe: um salário menor.

Só que eu fui pra lá e aí eu tinha feito concurso na prefeitura. A Erundina, quando a Erundina voltou, ela chamou todo mundo de volta, eu que não quis voltar, eu tinha feito o concurso e falei "vou entrar nessa droga pela porta da frente". Quando o concurso, quando fiz o concurso, passei, e aí quando me chamaram eu vim pra prefeitura ganhando menos.

Sua decisão de trabalhar novamente num setor público em tão franco

desprestígio frente a um emprego na USP foi algo que causou estranhamento,

principalmente ao diretor que a empregara. Na negociação, não foi demitida, mas

sim afastada sem vencimento por um ano, para permitir que voltasse em caso de

arrependimento.

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Fui falar com o meu diretor da USP que eu ia pedir demissão, ele falou assim: "você vai pedir demissão pra fazer o quê?' "Vou trabalhar na prefeitura de São Paulo, no pronto socorro". Ele falou "onde, em Pirituba?" Eu falei "é". "Eu não acredito que alguém sai da USP...você sabe o que significa trabalhar na USP?"

Evidentemente, ela sabia o que significava, mas sentia que era de pouca

utilidade naquele setor, que o trabalho que havia desenvolvido junto aos moradores

das áreas ocupadas do campus da universidade foi o que realmente fez algum

sentido. Suas palavras definem o incômodo que sentia: eu tava me sentindo meio

encostada lá e eu odeio ficar encostada.

Eu não sou deslumbrada, nunca fui, pra mim o importante é fazer o que eu gosto. Falei "eu sei, é legal, é a universidade mais importante do país, eu já fiz o que eu tinha que fazer aqui, recursos humanos não tá batendo comigo", num tava mesmo, sabe, num tava, eu achava que não tava fluindo, não tava fazendo as coisas que tinha que fazer. Ele falou "não, mas com o tempo você vai...", porque não tava conseguindo implantar, tinha um Coseas que era super estruturado e eu tinha que fazer uma outra coisa no, no, na prefeitura, né?, e tava, não tava rolando...

E assim quis conhecer um novo território, o território da saúde. Não teve

dificuldades para escolher sua vaga num pronto-socorro isolado da periferia. Os

profissionais, de maneira geral, preferem o trabalho em UBS, por seu menor nível de

complexidade e pelos trabalhos voltados não só às doenças, mas também à

prevenção, através da informação e da educação em saúde. Judith, contudo, gosta

de “matar leões” e sem saber onde era o pronto-socorro e tampouco que trabalho

iria desenvolver, decidiu trabalhar em Pirituba.

...mas também eu só queria vir se fosse pra trabalhar em hospital, porque eu tinha passado por várias experiências na profissão, mas hospital eu não tinha vivenciado, né? E aí quando eu fui escolher vaga eu falei "olha, eu não quero posto, eu só quero se for hospital, se não tiver hospital eu não vou trabalhar, não vou aceitar e fico onde eu estou, na USP, né?". Ganhava mais lá. Aí a moça falou "não, pode ficar sossegada, pronto socorro de Pirituba tá bom prá você"? Eu falei "tá ótimo", só que assim, todo mundo queria Posto, ninguém acreditava que eu queria, eu trabalhava no pronto socorro de Pirituba. Aí eu fui pro, pro pronto socorro, amei, que aquilo é um "muquifo", né?(risos) Você conhece?

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Trabalhar num “muquifo”:

Seu amor ao pronto socorro de Pirituba foi à primeira vista. Ali havia uma

urgência psiquiátrica. A proximidade com o sofrimento psíquico intenso, causado por

toda sorte de situações, principalmente aquelas que impelem o indivíduo à perda da

crítica, da razão, do gosto pela vida comum, foi um universo cheio de novidades, de

inquietações, de aquisição de novos conhecimentos.

Ao final de cinco anos, com leituras, discussões de casos em equipe e

trabalho diário numa pequena enfermaria de pronto socorro isolado, Judith já detinha

conhecimentos de psicologia, de psiquiatria, que a auxiliavam muito no trabalho, a

ponto de “fazer diagnósticos médicos” corretos, como dizia um médico de sua

equipe. Lia Freud, Rogers, estudava com pessoas importantes na área da saúde

mental e foi aconselhada a fazer um estágio na psiquiatria do Hospital das Clínicas.

É, da Erundina a saúde mental estava estruturada, tinha um médico muito legal e eu me apaixonei pela saúde mental, né? Aí eu fui fazer curso de capacitação, treinamento, estudava muito, tal, pra eu poder lidar com a, com a questão da saúde mental, né? A questão da saúde mental é uma coisa muito intrigante, porque é essa coisa da mente, da cabeça, porque que as pessoas piram, sabe? Porque que eu preciso de droga, porque que, porque que umas pessoas conseguem dar conta do sofrimento e se manterem equilibradas e outras pessoas, né?, não conseguem, então isso me fascinava. Aí, eu fiquei pensando, puxa, se eu tivesse feito medicina, com certeza eu seria psiquiatra, pra aprofundar isso, né? E, e eu gostei de trabalhar na psiquiatria, essa coisa assim da, de lidar com o desequilíbrio das pessoas, de colher história das pessoas, as pessoas têm uma história, têm uma vida normal, vamos dizer assim, de repente vai por outro caminho, porque, na verdade, na psiquiatria a gente atendia 90% dos nossos casos era álcool e droga, eram as psicoses causada por álcool e droga. E tinha um...as depressões, né?, tinha a esquizofrenia, tal, mas, o que mais aparecia era essa coisa do álcool e da droga. E aí assim, porque será que algumas pessoas precisam de álcool...

E assim, Judith procedeu a várias avaliações, conferiu sentimentos, comparou

sua história de vida a outras, auto examinou-se, conversou, refletiu e concluiu que é

necessário ser forte para sobreviver à exclusão, ao abandono, à rejeição e que os

mais frágeis, mais sensíveis têm mais dificuldades para viver.

Tem pessoas que são sensíveis, né? E elas são mais fortalecidas internamente. Então aquelas pessoas que são mais fortes internamente elas dão conta das dificuldades sem precisar de apêndices. As pessoas

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mais sensíveis, as pessoas mais fragilizadas, elas não agüentam o sofrimento, porque vamos combinar que viver é um sofrimento, né? (risos), não é fácil, não é? Você tem que ter, então assim, tanto que a gente consegue lidar com a rejeição, com o desamor, com o desafeto, com a exclusão, tudo isso sem precisar da bebida, sem precisar do cigarro, sem precisar da droga, né? Isso aí é a conclusão que a gente chegava, que os frágeis é que são os que mais sofrem, os sensíveis, né? Agora, os mais fortalecidos, né?, que a gente fala "os tigres", né?, eu falava assim, eu falava "eu sou tigre, porque eu sobrevivo".(...) Eu sou tigre, eu falo pro povo, porque quando chega aqui choramingando, porque tem agente aqui, né?, 32 agentes, eu falo "gente, pára de choramingar, vocês tem que virar tigre, e quem não virar tigre..."

Assim, virando um tigre, ela constrói suas formas de resistência.

Então, eu procuro exatamente enxergar isso, que a loucura é uma sensibilidade, a pessoa não dá conta, não tem, é...a gente acabou de fazer um treinamento agora, que é do Janela de Oportunidade, que a gente aprendeu um termo lá que é super legal, que é a tal da resiliência, né? E aí é isso, se você não tem uma, se você não foi fortalecido na vida, numa determinada fase da sua vida ter essa resiliência pra ir e voltar, você não, você enlouquece.

E como será que se adquire essa tal resiliência, essa capacidade de ir e

voltar, de não enlouquecer, de não desistir, de não apelar para drogas, de fortalecer-

se através dos momentos difíceis? Os pais têm, para ela, uma missão especial

nesse sentido, o de realizar passagens para os filhos, ou seja, o de fazer das lutas e

derrotas diárias um exemplo de superação.

Como é que é possível? Eu acho que você tem que ser desde pequena, eu vou vendo minha história de vida, é uma história difícil, não é uma história fácil...Eu acho uma história bonita, mas acho que é uma história de fortalecimento, olha, perdeu aqui mas ganhou ali, alguém tem que fazer essa passagem pra você, você não pode achar que você é uma perdedora a vida inteira, sua mãe morreu mas tem uma outra mãe aqui, entendeu, foi pro Paraná não deu certo, plantou algodão, não deu certo, mas veio pra São Paulo, construiu uma casa, num curto espaço de tempo. Então, isso são subsídios que te dão um fortalecimento, e nem todo mundo tem isso, sabe, essa... tanto que esse programa Janela de Oportunidade a gente, a, a proposta é justamente fazer os pais darem esse fortalecimento pros filhos.

Judith chegou, então, ao que poderia ser o esboço de sua teoria a respeito da

origem do sofrimento mental:

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Porque se você é abandonada, você fica mais, você fica amedrontada, fragilizada, então se você tem apoio, né?, perdeu aqui, ganhou ali, e alguém vai fazendo essa passagem pra você, você vai se fortalecendo. Agora, nem todo mundo tem acesso a isso, e às vezes o acesso não é nem a falta de dinheiro, é a cabeça mesmo da, da, da...das pessoas, não consegue fazer, não consegue passar isso pro filho. Sabe, por excesso de proteção, entendeu? É por isso que eu acho que quando a pessoa se vê sozinho, tendo que lidar com um monte de problema, não construiu isso, essa coisa de ir e voltar, porque todo mundo vai e volta, né? Da resiliência é isso, né? É você poder saber lidar com as dificuldades e reconstruir sua vida. E eu acho que as pessoas enlouquecem um pouco... é claro que tem, a predisposição genética, né?, não vou esquecer, tem uma série de questões, mas...desafeto, desamor, o abandono, a superproteção, porque o que que é a superproteção? Você não é capaz, não é? Não é capaz...

O sofrimento adoece:

Para Judith, todas as questões relativas ao sofrimento psíquico e físico

possuem uma raiz social. Somente as patologias seriam os objetos que restariam

aos cuidados da medicina. Em seu entendimento, os sentimentos constantes de

incapacidade, de baixa auto-estima geram as depressões, as dependências

químicas e a loucura. Todas as perguntas que surgem em seu universo profissional

trazem as marcas da Questão Social: a ideologia, o desemprego estrutural, a

ausência de cidadania, e são vividos pela população como uma mescla de violência

estrutural e pessoal.

... um belo dia eu tenho que me dar conta de uma série de coisas, mas aí a vida inteira falava " eu não sou capaz". E aí, já que eu não sou capaz, você entra em depressão, você enlouquece, claro que isso de uma forma muito simplista, né? Mas eu acho que é isso, tem, tem a questão da genética, né? A gente brincava no pronto socorro que era assim, que a nossa psiquiatria vivia cheia de alcoolistas e drogaditos, então a gente dizia o seguinte: se a sociedade desse conta dos seus problemas, dos seus filhos, ía sobrar muito pouca coisa pra medicina cuidar. Porque aí o que ía sobrar pra medicina eram as taras mesmo, entendeu?

Acredita que não só os transtornos mentais estão associados ao sofrimento

pela pobreza, mas também as dores físicas. Acha que não é possível viver sem

feridas em situações que implicam alto grau de sofrimento. Questiona: como é

possível para uma mulher não ser “depressiva” se o cotidiano a submete a situações

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de violência estrutural, que colocam em cheque suas possibilidades de

sobrevivência?

De vez em quando a gente fica discutindo um caso aqui e a gente para e a gente fala assim: nossa você viu que a gente não falou de doença, nós falamos “o marido foi embora, a filha engravidou, a casa encheu de água, ela perdeu o emprego, pronto, ela tá depressiva". Como que não vai ficar depressiva nessa situação?(...) As pessoas não sabem, as pessoas não sabem lidar com o seu sofrimento, porque ela tem um sofrimento que não, que acaba, é...atingindo o físico, mas esse sofrimento não é do físico propriamente, esse sofrimento é do tudo, é do filho de 14 anos que tá envolvido com droga, é da filha de, de 12 anos que engravidou, é do marido que tem uma amante, entendeu? Como que você não vai ter dor de cabeça , como que você não vai ter úlcera, como que você não vai ter desequilíbrios físicos com tudo isso, entendeu?

Para Judith, a Unidade de Saúde recebe isso já como uma doença instalada,

por exemplo, uma úlcera. Nesse caso, acredita que as doenças, pela gravidade das

questões sociais, tornaram-se mais sérias. Aquilo que era contido pela própria

cultura, através da administração de remédios caseiros, passou a ser objeto da

medicina e dos serviços de saúde, ou seja, saiu do âmbito da experiência.

Porque assim, óh, uma determinada época a gente morava na Bahia e até que morava no Paraná, a gente não conseguia, não consumia remédio de droga, a gente não consumia droga, a planta, se usava a planta, né? Porque você tinha as outras coisas minimamente dado conta, porque aparecia uma dor de barriga, mas essa dor de barriga do que que era? De alguma coisa que você tinha comido demais, não é? Daí você tomava um remedinho e parava. Agora hoje, aqui, o que eu sinto no Guarani é, assim, tem uma úlcera, mas essa úlcera ela é física, mas ela é do desequilíbrio emocional muito grande, entendeu?. É do sofrimento, então a questão primeira não é...você entendeu?

Ela acredita que o principal mal da população subalternizada é o sofrimento

causado pelas questões sociais.

O sofrimento, é o sofrimento, o sofrimento. Olha, você...condução é ruim, a casa é ruim, tem toque de reco...aqui não, que aqui é legal, mas...(...) Não tem, tem traficantes, mas assim alguns lugares tem toque de recolher, a violência doméstica é muito grande, a mulher apanha muito, criança apanha muito, então não dá pra você ter saúde, pra você ser muito equilibrado com isso. Só que daí as pessoas têm dor de cabeça, têm isso, têm aquilo, vêm no posto, e não tem remédio que vai dar conta disso.

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As pessoas procuram os serviços, no caso o serviço social, para falar de

todas as suas mazelas, inclusive as mais íntimas, como as que se referem ao prazer

sexual. Muitas mulheres procuram Judith para conversar sobre sua “frieza” sexual.

Numa simples conversa, percebe que as condições concretas da vida dessas

pessoas as impedem de obter qualquer prazer, até porque esse prazer está

idealizado pela televisão.

Então é muito comum as mulheres chegar pra mim e "ai, vim conversar com você porque eu tô com um problema sério"."Qual que é o problema?"Ai, eu sou, eu sou fria, meu marido diz que eu sou fria, não sei o quê..." Aí, primeira coisa que você fala, pergunta: me descreve um pouco sua casa. Aí descreve: "ai, um quarto e cozinha, separado por uma cortininha de madeira, de, de pano, eu tenho um filho que dorme no pé da cama e tenho um bebê que dorme no berço". Quem vai ser quente? Aí você diz, você vai explicando pra ela a questão do corpo, como é que se dá isso, que não é, porque senão, que daí a mulher começa a ficar culpada ela começa num sofrimento muito grande, que ela vê a Globo, que todo mundo tem orgasmo só tocou, e aí aproveita, a gente aproveita pra desmistificar isso pra ela, que não é tão, não é tão fácil como ela pensa. Tem uma série de valores, como é que esse teu marido, pelo menos olha pra você, te acaricia, te agrada? Pra tirar o sofrimento, porque o sofrimento fica tudo na, na , na, nas costas da mulher, né? Por isso eu tô falando pra você que pra mim é, a grande parte dos males físicos dessa região tem a ver com problema psicológico. Tem a ver com a questão social, que interfere, porque ninguém pode é, ter prazer, né?, com uma filha que, que não sabe onde está, um filho que foi adotado pelo traficante, né? Então, acho que a questão da, da, da saúde na periferia é muito mais das carências sociais, do verme, você dá remédio de verme mas ela volta pra casa e toma água contaminada, não tem rede de esgoto, não tem saneamento, né?

Religiosidade e serviço social: uma relação delicada.

Judith procede de uma cidade que preserva a tradição religiosa. Ela também

professava a religião católica, porém, após vários questionamentos e busca de

conteúdos que lhe oferecessem mais suporte para compreender a vida, migrou para

o kardecismo. Crê na reencarnação. Esses valores estão presentes e orientam seu

exercício profissional.

No meu trabalho eu procuro não passar isso, tá? Porque eu acho que são, são valores meus, tá, e eu não tenho, acho que eu não devo fazer com que isso...claro que isso dá um fortalecimento pra mim, pra eu entender o que é sofrimento, e falar assim, "ah, mas, eu tenho expectativa, eu tenho consciência de que esse sofrimento é pra um aprendizado, ela tá passando por essa experiência, é meu papel enquanto ser humano ajudá-la nesse

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sofrimento", né? Nosso papel é fazer com que as pessoas façam sua passagem, não é pra eu cruzar o braço, se eu tô aqui alguma razão tem que ter, né? Então assim, a pessoa tá sofrendo, eu tenho um entendimento que esse sofrimento tem uma justificativa, tem uma causa, né? E o meu papel é ajudar a pessoa a carregar, a passar por esse sofrimento, né?

Mesmo a compreensão objetiva da realidade social está referida à

necessidade de reparação de desequilíbrios em outras vidas. Essa contradição,

difícil de compreender teoricamente, é o alicerce de sua prática profissional.

Muito embora eu não fale nada prá ela do que eu acredito. A minha fala com ela vai no profissional, na questão dela ser encorajada, dela aproveitar essa experiência, do aprendizado, mas aprendizado aqui, eu não tô, poucas pessoas sabem aqui que eu sou, sou kardecista, né? Mas eu acho que a religião me dá esse suporte, de eu olhar pro outro e falar assim," não, é, é sofrido, mas ele, isso vai, isso vai ter um, isso tem um objetivo. E a questão da saúde, da doença mental também. Porque à luz da doutrina espírita, a doença mental são os desequilíbrios de outras vidas, né? Você pode ser...a gente não vai falar isso pra pessoa, senão você contribui pra pessoa desequilibrar mais ainda, né? Mas esse é o nosso entendimento.

Acredita que o aspecto religioso somente lhe fornece estofo para sua prática

profissional laica.

Um suporte pra mim. Por exemplo, vou te dar um exemplo: eu sou, trabalho num órgão público, da minha formação religiosa eu sou contra aborto.Mas se alguém chega prá mim e me pede uma orientação como é, de um aborto, eu dou, na boa. Primeiro falo de todos os, todos os pontos contra, tudo, tudo, tudo. E ajuda na decisão dela. Acho que, eu acho que eu tenho que saber fazer essa, essa...

Judith relaciona valores à prática. Entretanto, para ela é possível realizar uma

separação entre a ética religiosa e a ética profissional.

Consigo. Olha, vou te dar um exemplo: outro dia atendi uma moça, acho que foi o ano passado, ela tava desesperada, ela, uma moça assim, uma senhora, devia ter uns 36 anos, ela tinha uma filha de 12 anos que era de um casamento, casamento que não deu certo, e aí ela encontrou com esse cara e saiu com ele e se relacionaram e ela ficou grávida.

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Como acredita que “filho é uma benção”, faz parte de sua intervenção

profissional a apresentação dessa concepção às mulheres que engravidaram mas

que não desejam a gravidez e pretendem interromper esse processo, o que implica

em colocar claramente valores regidos por uma ética pautada na transcendência.

Eu conversei um tempão com ela, falei, "olha" ... ehhh, eu acho realmente filho uma benção, tá , eu falei, "olha, de repente você tem uma filha de doze anos, essa criança", não sei o que e tal, mas ela tava irredutível. Mesmo sendo contra, porque é assim: eu acho que eu sou contra prá mim, entendeu? Eu não tenho direito de... eu posso mostrar o outro caminho pro outro, agora, o outro não é obrigado a fazer... ele vai pagar...pelas... ele vai dar conta das coisas dele, eu mostrei um outro caminho, mostrei um outro lado.

Mesmo com concepções religiosas valorando sua prática, Judith se esforça

para compreender a situação das adolescentes e das mulheres da periferia que

enfrentam a dura experiência de uma gravidez indesejada. Tem uma percepção dos

males que uma culpabilização dessas mulheres pode causar e não permite que

sejam usados meios educativos que tragam esse tipo de mensagem.

E aí, a Lisiene virou prá mim e falou assim "tem um vídeo, sobre aborto que eu acho que a gente podia passar prás adolescentes, né?" Aí eu falei "que vídeo você tá falando, Lili?" Ela falou "...ai, aquele vídeo..." Eu falei " ai, eu conheço, eu não vou passar aquele vídeo, não, porquê esse vídeo ele... ele não orienta, pelo contrário, ele coloca é uma culpa muito grande nas pessoas..." Então assim, se nós, nosso papel aqui é orientar, agora, passar um vídeo com esse cunho religioso tão forte, eu não... não, eu não vou passar e nem permito que passe. Então assim, acho que eu consigo lidar bem com isso, sabe? Acho que... consigo.

Já acompanhou as conseqüências dos abortos realizados com pessoas leigas

da periferia ou com instrumentos e processos bizarros:

Você sabia que tem mulheres que injetam bom-bril no útero prá provocar a expulsão do feto? Ela causa uma irritação e o feto é expulso. Agora, claro que ela isso dá uma infecção, porquê lá dentro fica, esse bom-bril enferruja. Tem gente que tira com agulha de tricô...(...) Porque aqui o índice de aborto clandestino aqui é muito grande. As meninas vêm fazer o... elas fazem o teste e depois elas voltam e falam que perderam, né? Não perdeu nada, abortou com a Dna. Maria da esquina, né?. Mas...é melhor você fazer uma coisa cuidada, né?, do que você sair por aí abortando com bom-bril, por exemplo, né?

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Tem uma convicção, aparentemente equivocada, de que existe uma

possibilidade de realizar um aborto ilegal em boas condições sanitárias e com

dignidade através de uma ONG.33

Mesmo que ela não tiver vítima de estupro, ela tem direito. Lá eles só atendem mulher e atende mulher de uma forma muito, muito diferente, por exemplo, porque se você chega em qualquer outro lugar pra fazer isso, ehhh, as pessoas vão olhar com esse estranhamento, mesmo, só que lá, ela passa com o assistente social de novo, ela passa com o psicólogo, ela passa com a médica...

O programa de Saúde da Família:

Judith começou sua avaliação do PSF pela saúde mental. Acredita que é uma

das ações que menos resultados positivos obteve, justificando que a tradicional

divisão do ser humano em partes e, conseqüentemente, em áreas específicas de

atuação, deixou marcas muito profundas e rompê-las tem sido uma grande

dificuldade nas equipes da saúde da família, especialmente quando se trata do

sofrimento psíquico.

A saúde mental é uma das coisas mais resolvidas... mais mal resolvidas nesta Unidade, tá? Se você me perguntar assim, que nota eu dou prá saúde mental aqui, eu daria três sendo muito.... porque... as equipes não se apropriaram disso, tá? Ehhh...Então, tava falando, que eu acho que a saúde mental...porque, historicamente, como é que a gente tratou o ser humano, né? A gente tratou assim: o corpo é da medicina geral, né? A cabeça é do psiquiatra e o bolso é do assistente social? E o PSF, ele vem com uma proposta totalmente nova, diferente, é da equipe por inteiro, não é só cabeça, não é só o corpo, é um modelo novo, tá?, que tá em construção, até por conta do PAS a gente não tá aqui, né?, em São Paulo, então os profissionais ainda têm dificuldade de se apropriar da questão da saúde mental. É uma das grandes dificuldades, né? É... que eles tratam do paciente, tá?, quando chega na questão, se tiver algum paciente com algum desequilíbrio mental, eles querem rapidinho encaminhar, eu falo "não tem que encaminhar, nós temos que dar conta", né? Eu acho que não tá dando conta. Eles são medicados, tá?, não sei se certo, mas tratados não. Essa é a minha avaliação.

33 No Brasil, são legais os abortos quando a gestação é resultado de estupro ou quando representa risco de vida para a mãe.

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Mesmo com uma avaliação negativa sobre a saúde mental no PSF, ela confia

no programa porque ele estabelece um vínculo forte entre a população atendida e os

profissionais de saúde, especialmente o médico.

Eu acho...olha, eu sou apaixonada pelo PSF. Eu acho que, eu acho que é o programa que vai, assim, ele se apropria da vida da, do, do, do paciente. Eu sempre brinco, no pronto socorro o paciente ía embora, aqui ele volta, não adianta você tratar ele mal porque ele volta, entendeu? Porque você tem um vínculo muito forte com...tem....você sabe como é que funciona, né? Então, assim, não fica saltitando de médico em médico. O médico vai na sua casa, acompanha seu pré-natal, o médico atende sua mãe...

Quanto às críticas sobre a adoção de um programa com pouca tecnologia,

sem grandes investimentos em materiais e equipamentos, que coloca na relação

equipe-paciente o seu aspecto mais positivo, numa expressão corrente, “uma

medicina pobre para pobres”, Judith avalia que, embora o programa tenha se

instalado em regiões mais carentes, a tendência é que ele se universalize. Não

considera um erro a implantação prioritária em locais mais pobres da cidade.

Eu acho que é um atendimento prá pobre porque o nosso país é pobre, então você tem que priorizar algumas questões. Porque na hora que você colocar PSF em São Paulo inteiro, ele vai ser prá todo mundo. Só que assim, o nosso país é pobre, então você tem que priorizar algumas áreas. Você tem, por exemplo, na Brasilândia implantaram primeiro pela questão da carência. É...é prá pobre? Porque o nosso país é pobre, então não dá prá você implantar um programa desse ainda prá todo mundo, né? Mas a tendência é que fique, você pega na ponta, e a gente só não tá melhor porque a gente lidou com muitas dificuldades aqui, falta... a gente não tem a a questão da referência bonitinho, porque se a gente tivesse a referência, os exames, a gente trabalharia muito melhor. Mas eu, eu não acho que seja programa prá pobre, não. Eu acho que é a grande saída.

A correta execução do programa, contudo, é o grande desafio. Embora tenha

sob sua responsabilidade seis equipes, com um médico em cada uma delas,

acredita que apenas um realiza as atividades de acordo com as diretrizes do PSF.

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Sobre médicos:

Eu sempre conto prá, um exemplo, que a gente tinha um ano mais ou menos de PSF e tem um médico aqui que ele é o melhor médico que...eu tenho, sinto, que....é o único que faz PSF, porque os outros...Até por conta que não tem outros, entendeu? Na periferia a gente trabalha com quem tem. Aí tocou o telefone, que aqui os usuário ligam muito pra gente, prá saber se o médico tá, se tem consulta, se pode vir, se vai visita, é muito legal, é bem humanizado. E aí tocou o telefone e ele tava acabando de chegar pra assinar o ponto, e aí eu conversando com a pessoa, falei "ah, mas dona Maria, qual que é a rua da senhora?" Ela falava assim, "ah, é rua tal, número tal". Eu falei, "ah, é número tal?". Na hora que eu falei, ele falou assim, "ah, essa paciente é a dona Maria, que tem uma filha assim, ela tem uma filha adolescente, tem isso, isso, isso, isso, isso, vou lá rapidinho, porque se ela tá pedindo pra ir é porque ela tá fazendo pico de hipertensão." Isso é PSF, não é?, isso, isso, isso, esse é o diferencial. Em outro tempo, quando que você veria um médico desse? Ele saiu correndo.

Sobre os agentes comunitários de saúde:

Boa vontade e criatividade parecem ser os atributos mais esperados dos

agentes comunitários para lidar com problemas estruturais como, por exemplo, o

analfabetismo.

Os agentes, eles pegam a caixinha do sapato, que tem o paciente da medicação contínua, né?, aí a gente tem uma quantidade muito grande de gente que não sabe ler, a gente tem, a gente desenha um solzinho, quando tomar à noite, na medicação de tomar de dia, a lua na medicação de tomar à noite, ou então eles escurecem, cada um usa de um jeito. Na caixa de sapato. E eles passam periodicamente, eles contam o medicamento, e aí se eles contam, eles falam "mas, dona Maria, pelo tempo que a gente deixou o medicamento, a senhora deveria ter, que tá, deveria ter só tanto, porque que tem tanto?"

Sobre o serviço social:

Tem pouca clareza a respeito da necessidade de assistentes sociais no

programa. Acredita que, dadas as dificuldades dos demais profissionais se

apropriarem das questões sociais como partes integrantes do binômio saúde-

doença, todas as situações que, historicamente, estiveram sob a responsabilidade

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do assistente social assim permaneceriam, o que não auxiliaria na consolidação do

projeto.

E eu nem estou aqui como assistente social. Prá falar a verdade, prá falar a verdade, eu não tenho muita clareza. Eu já me peguei discutindo várias vezes se eu quero assistente social no PSF. Eu não tenho essa clareza, eu ainda não consegui responder isso. Sabe porque? Porque eu acho que tem que esperar essas equipes consolidar. Tem que esperar esses médicos, esses enfermeiros, esses auxiliares, esses agentes se apropriarem disso porque, assim, eles têm medo de gente, tá? Tanto que eles fazem pouquíssima coisa prá mim, muito pouca coisa e eu tenho certeza que o dia que tiver assistente social na equipe, eles vão empurrar tudo prá ela, entendeu? Então eu não tenho clareza, a gente já, eu me lembro que uma vez a gente já fez essa discussão na região e eu fico... acabo nem tendo porque prá mim não é claro. Éhhh, eu sei que num curto espaço de tempo eles vão empurrar, por exemplo, os meus agentes, os agentes daqui...

Embora saiba que sua atitude é polêmica, exemplifica com o repasse, para os

agentes de prevenção, de tarefas simples que certamente dispensariam a

intervenção do assistente social ( o preenchimento do impresso de isenção tarifária

do transporte coletivo intermunicipal 34 é apenas uma delas).

Antonia do Vista Alegre. Ela foi do Conselho, né? E ela falou que qualquer dia que ela ía me denunciar pro Conselho. Porque os agentes, eles têm autonomia, tem uma série de coisas aqui, por exemplo, tem uma coisa chama isenção tarifária. Eu ensinei eles a fazer e eu não faço e ela fala prá mim que isso é ilegal. Eu falei "não é Antonia. Pára com essa coisa de reserva de mercado" (risos). Então, e eles, eles adoram fazer. Por isso que eu fico dividida. Por isso que... eu tenho essa coisa da perda do espaço profissional, éhhh., mas eu tenho essa coisa da empurroterapia. A gente tinha que buscar outros espaços, eu acho que a gente tem um papel importante dentro do PSF, compor a equipe, ajudar, mas, mas espera consolidar porque eu tenho certeza, tenho absoluta certeza, eu tô falando do meu local de trabalho, não sei, né?

Acredita que todos os profissionais deveriam ouvir os usuários, realizar uma

escuta profissional, que sempre foi uma tarefa delegada ao assistente social.

34 O documento de isenção tarifária contém dados de identificação, endereço e diagnóstico médico dos usuários dos serviços de saúde. Não há, em nenhum campo do documento, nada que justifique um estudo social, e muito menos, um parecer do assistente social que auxilie ou mesmo determine a garantia desse direito. Os critérios para a isenção tarifária, tanto em nível estadual quanto municipal, são exclusivamente médicos: é publicada em Diário Oficial a relação das doenças que “dão direito” à isenção. A defesa dos assistentes sociais para o preenchimento do papel é a de que os usuários precisam ser orientados. Essa orientação, contudo, refere-se basicamente aos procedimentos burocráticos de endereçamento, que qualquer profissional com uma escolaridade mínima poderia fazer.

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Quando o enfermeiro traz alguma coisa prá mim, eu digo "não, mas é você, ouvir a pessoa, imagina... pode ir lá, dá conta disso, meu!, o paciente é teu não é meu, que que é você tá com medo? Ouve o paciente, ouve". Porque não foi sempre a gente que fez isso? Se tiver uma assistente social aqui, que vai ficar, num curto espaço de tempo esse povo não vai ouvir mais. Esse povo vai começar a tratar só da doença e vai empurrar a...a...as seqüelas sociais para o serviço social e quando a gente tem a compreensão de que o social é o grande responsável pela doença, se ele não se apropria desse social como é que ele quer curar da doença? Minha fala é essa "não, neguinho, vai lá e colhe a história. Você sabe onde é que ela mora?"

Sua interpretação é que, à medida que os profissionais ficam sabendo das

circunstâncias nas quais a população vive, a rigidez, a tendência de disciplinar a

vida da população tendem a se modificar.

...porque é assim "ai,...chegou quinze minutos, perdeu a consulta.". Tudo bem...agora eles pensam duas vezes, porque eles sabem onde a população mora. Sabem que quando chove não é fácil de chegar aqui e isso, e isso sempre foi coisa que o serviço social deu conta, nós que sempre nos apropriamos disso, né? De ir lá e interpretar pro médico, né? " Olha, doutor, ela chegou quinze minuto atrasada..."

Embora não tenha o poder de determinar se haverá ou não assistentes

sociais nas equipes do PSF, não dá importância aos insistentes pedidos para que

exista esse profissional na equipe e até faz atendimentos eventuais para dissipar a

questão.

Eles vivem pedindo " ai,... porque você não pede uma assistente social?" E eu faço, né?, ouvido de mercador. Porque eu falo prá eles "eu não sou assistente social aqui". Eu atendo, às vezes eu pego caso, tal... falei, "não, mas eu não sou, esse caso é da equipe, discute na equipe".

Para ela, o trabalho de um assistente social numa equipe do PSF deveria

transcender a tradicional prática institucional de “entregar os usuários” para o serviço

social.

Ele poderia ajudar a facilitar essa discussão. Encontrar saídas, mas junto, entendeu? Compor a equipe. A vida inteira eles entregaram o paciente. (...) Eu acho que eu faço um pouco esse papel aqui... Vai por aqui, vai por ali, né?

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Acredita que a construção do saber profissional do assistente social se dá

através do aprendizado, em todas as situações. Avalia também que essa construção

é individual, subjetiva e variável de acordo com as situações de trabalho para as

quais são necessárias respostas. O papel da faculdade é o de dar uma direção, uma

orientação sobre alguns elementos teóricos. Lembra-se de alguns autores da época

de formação, por exemplo, Nelson José Suzano, que considera um marxista

importante no serviço social e destaca Balbina Otonni, à medida que considera úteis

os elementos básicos da profissão descritos pela autora. Além desses, citou Miriam

Veras Baptista, Maria Carmelita Yazbek, Maria do Carmo Falcão, Maria Lúcia

Martinelli e Mariângela Belfiore Vanderlei. Lembrou-se também dos documentos de

Araxá e Belo Horizonte como marcos do movimento de reconceituação.

As teorias, pode não ser exatamente aquilo, mas você sabe minimamente como conduzir um grupo, você sabe minimamente como conduzir uma entrevista, como você lidar com uma pessoa ansiosa, eu acho que isso, isso a faculdade ela te dá... ela não te dá a receitinha, mas minimamente, se você foi uma aluna que se interessou, você vai ter pelo menos um norte, tá? Receita você não tem mesmo. O problema do serviço social é esse, né? A nossa questão é muito subjetiva, a nossa profissão é muito subjetiva. Eu acho que alguns nortes dá. Você, você...é, você vai se prevenir contra falar algumas asneiras, né?, claro que falar algumas você fala, mas você vai sabendo, isso aqui vou falar, isso aqui eu não vou falar direito, não vai dar prá falar isso...

Acredita que o movimento de reconceituação foi um momento importante no

serviço social, mas após 30 anos, acha o serviço social precisa atualizar-se.

Olha, eu acho que assim....eu acho que incorporamos, acho que incorporamos, né? Mas, eu acho que nós estamos vivendo um outro momento, eu acho que a gente vai ter que estar passando por uma outra reconceituação, porque aquela reconceituação, tudo aquilo que a gente viveu, do documento de Teresópolis, da experiência de Belo Horizonte, foram coisas muito importantes naquele momento, e que deu um respaldo muito legal prá gente, que serviu pra consolidar a prática, tal. Agora, acho que tava precisando haver um outro movimento, porque 30 anos a gente teve um salto de, de, de tecnologia, a sociedade, os valores mudaram, o que podia, o que não podia, né? Eu acho que, acho que a reconceituação foi legal naquele momento, acho que gente, acho que a gente precisava passar por um outro movimento. Eu não fui no congresso, eu não participei do congresso, não participei, eu tinha me programado pra participar e aí depois acabei me envolvendo com outras coisas... porque eu tinha curiosidade de saber como tá isso, né? Se é isso que ainda tá vigente, né?

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Não tem participado dos eventos relativos à categoria profissional por falta de

tempo. Disse que, muitas vezes, apenas folheia o jornal informativo do CRESS.

Conhece o novo código de ética e tem uma avaliação bastante crítica quanto à

atuação do Conselho: não avalia que o código dê o respaldo necessário ao exercício

profissional, diferentemente dos códigos de enfermagem e medicina, que de fato

legislam sobre a atividade.

Eu acho que nós somos muito soltas... eu acho, assim, que parece que não tem quem compre a nossa briga, de fato. Sabe? Abandona... eu acho, eu acho assim, tem o código, mas eu não, eu não vejo o Conselho nem o código, assim, comprando a nossa... sabe? Somando com a gente, sabe? Sendo, assumindo as nossas questões, mesmo. Aí quando você abre o código, ele é até muito substancioso, tá tudo lá, mas parece que num tá, só tá de fato, entendeu? Num tá de direito. Eu não me sinto resguardada pelo meu código, entendeu? Por exemplo, se eu sofrer uma injustiça aqui, eu não sinto que, que o código vai me dar um respaldo, entendeu? Vai falar "olha", vai punir, ao passo que... ou vai comprar minha briga ou vai me punir por um desvio e aí acho que até porque a gente não tem essa certeza que a gente fica muito aberta prá fazer os desvios, que é o que a Antonia falava prá mim, "você, você transgride o código".

Faz uma reflexão sobre quais seriam as razões que levam a categoria

profissional ao exercício de práticas tão diversas e contraditórias, encontrando na

origem de classe social da população usuária e no preconceito contra as mulheres,

além do atrelamento às instituições, alguns elementos importantes que poderiam

explicar o lugar social da profissão e as dificuldades de auto-afirmação dos

profissionais.

Talvez se eu soubesse que o código fosse uma coisa que eu pudesse sofrer uma sanção, de fato, talvez, eu até tivesse, eu sinto que ele não... nem os próprios profissionais têm respeito por ele. Eu sinto isso... não é uma coisa assim que, que reforça a profissão, que reforça a categoria. Olha, eu tenho, assim, várias avaliações: nesse país machista, será que é porque é uma profissão essencialmente feminina? Não sei? Éhhh... uma profissão que lida com pobre? E uma profissão que não é prás elites, né? Uma profissão que não te dá, que você não pode ser autônoma.

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Matando um leão por dia:

Aponta que existem vários aspectos que colocam os assistentes sociais numa

condição subalterna diante da equipe, principalmente diante do médico.

Aqui, tanto é que essa história de você ser gerente de unidade, não pensa que foi um processo fácil. Foi assim... éhhh... é um processo muito difícil e que também tem uma questão que é assim: gerenciar uma unidade significa dedicação exclusiva, né? E o salário...não compensa. Então, assim, eu adoro o trabalho. Então, se fosse o contrário, se fosse um alto salário, não seria assistente social, mesmo que eu amasse o trabalho, entendeu? Eu tenho essa avaliação. Basicamente eu falo prás meninas "não vamos deixar ninguém escutar. A gente só está porque ninguém quer".

Contudo, o que aponta como mais importante para exercer a gerência não é

uma qualidade objetiva, mas sim uma característica pessoal, de caráter: a garra.

Tem dia que eu chego aqui às sete hora da manhã e vou embora cinco da tarde, sete da tarde. Tem reunião à noite, tal. Que médico vai fazer isso? Tem uma briga, a questão do ato médico, que eles estão brigando, tal, mas é pura, pura picuinha porque eles não vão pegar isso daqui com a mesma garra.(...) A não ser que aumente o salário. Mas tem que aumentar muito, né? Porque eu ganho quatrocentos reais para dirigir a unidade. Mas assim, eu adoro, mas você concorda que eu poderia adorar e ganhar bem? Pois é, mas então, mas eu tenho certeza que se o salário fosse uns oito paus, eu não seria. Eu, não! Não é a Judith, o serviço social não seria, entendeu? Aí ia ter médico, eles íam pro pau, eles são muito mais organizados, muito mais fortes e com muito mais respaldo da, da... da corporação.

Certa ocasião, chamou a atenção de um médico pelas suas constantes faltas

e atrasos. O mesmo, numa falsa atitude de condescendência, deu a entender que

era difícil para ela coordenar a categoria dos médicos. Judith compreendeu que ser

assistente social, ser de origem afro-brasileira, assim como pertencer ao sexo

feminino eram os elementos negativos que “dificultavam” seu trabalho, na visão do

médico. Assim, colocar-se com alguma autoridade tem sido o seu maior desafio.

"Ai... éhhh... eu fico com pena de você, porque você tá com dificuldade de coordenar médico, né?" Eu falei "eu, não! Eu não tenho nenhuma dificuldade. Dificuldade tem você, você sim, tá com dificuldade de cumprir seu horário, você tá com dificuldade porque você quer violar uma lei física, eu não tenho nenhuma dificuldade, minhas dificuldades são outras. Cumpra o seu trabalho..." Então você percebe o que que tem embutido

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nessa fala? Assistente social, mulherzinha, neguinha, ainda tem isso, né? Éhhh... tá com dificuldade! E eu não tenho dificuldade, juro por Deus! Não tenho. Éhhh... mas eu tenho clareza, de que, eu éhhh... peguei o touro a unha, tá? Mas é matar um leão por dia, sabe? Porque... e se fazer respeitada e mostrar que sei do que eu tô falando, quando eu falo, eu sei, sabe assim... quando eu sento prá discutir, eu falo "óh, neguinho, eu não sei se esse remédio A ou B é bom prá esse mal, tá? Mas eu sei disso, disso, disso e eu sei que você poderia fazer isso, isso, isso, então faça, tá?"

Sobre os usuários:

Os usuários dos serviços procuram o assistente social para falar de todos os

seus males, muitas vezes pelo hábito de fazê-lo.

Os usuários adoram assistente social (risos). Adoram, adoram, adoram, adoram... mas assim, vamos aprendendo também que muitas coisas não é mais o assistente social que faz, sabe? Os agentes aprenderam rapidinho, os trinta e dois. " Ai... ela quer falar, ela quer conversar com você". " Que que é?" " Éhhh, ela quer falar com a assistente social". Falei " mas, você perguntou prá ela que que é que ela queria?" " Ahhh...!" " Então, vai lá, conversa com ela, vê o que ela quer". Às vezes é só um endereço, é só uma informação, não precisa de uma assistente social prá isso, né? E a vida inteira foi assim que aconteceu "ahhh, fala com a assistente social", entendeu?

Judith acredita que sua simplicidade ao falar e sua prática profissional,

sempre com as parcelas subalternizadas da população, construíram uma

possibilidade de bom relacionamento. Mas nem tudo são flores. Confrontos

acontecem, ora com a equipe, ora com a população.

Que é assim, como eu tenho... eu sou sou uma pessoa simples, né? E tenho essa forma... e a vida inteira eu lidei muito com a população carente, então eu sou muito próxima, eu brinco, eu, éhhh... eu me relaciono muito bem, tá? Mas eu tive um problema com um médico aqui, eles preferiam, eu precisei reverter isso, tive que dar nó em pingo d'água, porque eu tive que mandar o médico embora e eles queriam fazer abaixo assinado para eu sair e voltar o médico, que era uma tralha, era um traste.

Sabe que não é sua experiência que tem valor nessas situações, mas o fato

de que a prefeitura não tem em seus quadros quem a substitua.

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Reverti. Chamei, mostrei o salário e "olha, você sabe quanto tempo você demora prá ganhar seis mil por mês? É o que ele ganha. Você sabe que quando ele chega duas horas atrasado, que que significa isso no salário?" Eu reverti. Mas reverti porque eu sou macaca velha, tá? Se é uma pessoa assim que tá chegando, que cai de pára-quedas, ela é engolida e tem que entrar nos esquemas, que eu não entro, entendeu? Então, então, não é fácil. E eu tenho clareza... outro dia eu tava falando prá Nanci, a Nanci não concorda, ela fica triste, eu falei "Nanci: uma coisa é a gente ficar triste, que eu também fico triste, mas outra coisa é a gente lidar com a realidade: nós só somos diretoras porque a Prefeitura teve dificuldade... não tinha médico disponível".

O gosto pelo trabalho:

Judith tem uma ligação muito grande com o trabalho.

Adoro, adoro, adoro, adoro, falei, eu não quero sair porque eu construí isso daqui, demorei prá... não tá do jeito que tem que ser porque o PSF ele é um processo, até porque a gente não, nós não estamos trabalhando com os profissionais que a gente gostaria de trabalhar, eu tenho seis médicos aqui, eu acho que só um sabe fazer PSF, o resto a gente, né? Engole, porque prá vim para a periferia...

Alguns trabalhos conseguem levar a população de diferentes faixas etárias

para outras atividades que não só curam as doenças mas promovem a saúde.

Desenvolvem atividades culturais como cinema, coral, grupos. Aponta a dificuldade

de levar os adolescentes. Já construíram uma quadra para que eles utilizassem,

sem sucesso. As meninas vão já grávidas e os meninos vão buscar preservativos,

não havendo um diálogo entre eles e as equipes.

Judith considera que o PSF é um processo, uma construção, a saída para a

crise em que a saúde pública se encontra. Entretanto, sabe que durante seus quatro

anos de implantação não foram resolvidas questões cruciais para a eficácia do

programa, como a organização dos atendimentos de maior complexidade35.

Porque você até olha... Eu acho que o PSF é o grande projeto estruturador da saúde. Acho que tem que investir. Claro que o PSF só não dá conta,

35 A título de exemplo, a subprefeitura Brasilândia/Freguesia do Ó conta apenas com um aparelho de ultrassonografia em nível ambulatorial, localizado no Centro de Referência DST/Aids, que dá referência para toda a rede e que foi adquirido pelo Programa de DST/Aids com verba do Ministério da Saúde. Atualmente, só realiza exames relacionados à prevenção de cânceres de mama e útero.

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né? Tem que investir na referência e contra-referência e tem que investir na medicina de alta complexidade porque, infelizmente, a gente tem questões, tem os cânceres, que é pouco, né? Mas, se a gente não der conta disso, né? Infelizmente,a gente tateou esse ano, esses três anos aí, quatro anos aí, por falta de referência e contra-referência de boa qualidade, porque não adianta você vir fazer uma boa atenção básica e depois você precisar tirar um nódulo no seio, tô chutando, né? E aí tem que ficar na lista de espera, né? Não adiantou você detectar precocemente, né?, detectou precocemente, mas se você não tiver a ponta prá fazer, isso complica, né? E cobrir todas as áreas, né? Porque nós aqui, por exemplo, éramos prá estar trabalhando com seis mil famílias e nós estamos com praticamente sete mil, com os mesmos profissionais.

Tem dificuldade para demonstrar seu trabalho através dos dados

epidemiológicos. Reputa isso à falta de organização institucional. Quanto aos pontos

negativos, acredita que sua maior dificuldade está na formação universitária dos

médicos, que não privilegia os generalistas e, sim, os especialistas, lógica que

caminha na contra-mão do PSF.

Com perfil, com perfil, não precisa nem tá formado, mas pelo menos com perfil. (...) pessoal. Esse perfil de ouvir, de conversar, de sentar porque PSF, ele é, cinqüenta por cento, relacionamento, construção do vínculo e médico tem essa dificuldade, de construir vínculo. Quando morre vai lá, entendeu? A gente vai nos velório, vai, a gente não vai nos nascimentos? As meninas "ai, morreu Dna. Fulana". Os agentes vão, alguns enfermeiros e alguns médicos vão, os outros não vão. Então é porquê não construiu vínculo, não se apropriou ainda porque PSF é vínculo, tá?

Diferentemente dos médicos, considera que os demais profissionais teriam no

PSF uma excelente oportunidade de romper com a condição subalterna a que estão

relegados nas equipes tradicionais.

É, é, porque a enfermagem... até porque os enfermeiros, historicamente, são mais simples que os médicos. Qual que é a história do enfermeiro? Auxiliar, atendente, maioria, né? Atendente, auxiliar, enfermeiro. E eles tem uma... a vantagem do PSF é que eles têm possibilidade de desconstruir essa subalternidade. Porque no PSF as equipes não têm chefe, a liderança pode ser de um agente, que nunca acontece porque o médico não deixa, né? Ele não entende que liderança não tem nada a ver com chefia.

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5.2 - Marly: “em busca da identidade profissional”36

Marly é uma mulher bonita, alegre e muito falante. Sua história é muito

semelhante às histórias das mulheres de sua geração: a infância pobre na periferia

de São Paulo, o sonho de estudar e obter uma condição da vida diferente da dos

pais, e os dramas da vida real.

Nascida em São Paulo, filha única de um casal com pouca escolaridade,

trabalhadores da área de serviços – o pai eletricista e a mãe faxineira, ambos

empregados de um Hospital –, morava no bairro do Lauzane Paulista, zona norte de

São Paulo, numa rua sem iluminação pública e sem asfalto. Os pais trabalharam e

lutaram muito para que estudasse até o final do curso Normal. Cursar faculdade,

porém, foi uma decisão sua que teve que bancar sozinha, já que os pais

acreditavam que já estudara o suficiente.

Assim como sua mãe, tem apenas uma filha. Também como sua mãe, teve

essa menina aos 35 anos, assim como sua mãe cresceu sozinha, sem irmãos.

Escolheu o serviço social porque não havia o curso noturno de psicologia, que

era sua primeira escolha. Como o serviço social apresentava a disciplina de

psicologia em sua grade curricular, e acreditando que estaria menos exposta sendo

assistente social ao invés de professora, optou pelo curso e ingressou na faculdade

em 1975.

Durante a faculdade trabalhou em escritórios para poder custear seus

estudos. Sempre pedia demissão e fazia acordos para retirar o FGTS visando seu

sustento até conseguir outros trabalhos.

36 Marly Nazareth Frigo Consiglio, 50 anos, formada pela FMU em 1978, assistente social da UBS Cruz das Almas, unidade “mista” – atendimento básico tradicional e Programa de Saúde da Família.

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O primeiro estágio: o patrulhamento ideológico.

Marly participou da organização do Centro Acadêmico na faculdade, e antes

disso, durante o 2º. Grau, recebeu influência de duas professoras formadas pela

PUC-SP que abriam espaços junto aos alunos para algumas reflexões. Essas

experiências a marcaram bastante e forjaram uma visão crítica da contradição entre

capital e trabalho.

Premida pela situação financeira, aceitou um estágio numa empresa durante

a graduação, apesar da conotação ideológica negativa para o serviço social naquela

época. Sentiu-se patrulhada e confusa, já que o estágio foi indicação da própria

faculdade, que oferecia, inclusive, um curso extracurricular de serviço social em

empresas.

Mas a patrulha era muito dentro da faculdade, porque quando eu estagiava em empresa, "você vai trabalhar em empresa, tá trabalhando pro capital, porque você tá trabalhando prá não sei o quê, parara", sabe? Era uma coisa confusa. Tem que trabalhar com o trabalhador, mas como é que dentro da empresa, eu também era uma trabalhadora, né? Mas eu precisava trabalhar, quem que tava me pagando? E eu contei prá você, né?, precisava trabalhar prá pagar a faculdade, né? Alguém tinha que pagar, essa faculdade era o meu trabalho, e lá me foi oferecido também estágio...o estágio de empresa tinha, o estágio, tinha me sido oferecido foi dentro da empresa, né?, antes de trabalhar aí. Eu me perdi, eu acho que eu me perdi por causa disso, inclusive por causa do patrulhamento, fiquei muito atrapalhada, né? Porque eu queria trabalhar, onde eu me inseria, o serviço social tem que se impor, como que eu poderia me impor? Porque tinha que ganhar esse estágio de trabalho, na verdade eu me sentia pressionada, talvez uma questão subjetiva, de, de, sabe, de, de cavar esse espaço do serviço social dentro da empresa, entendeu? Que não tinha, tinha que provar... eu tinha que provar que o serviço social era uma profissão que tinha a ver dentro da empresa, é isso, tá?, e eu não sabia como fazê-lo...

Era final dos anos 70, em plena ditadura militar. Estagiou numa multinacional,

a SHARP, cujos diretores eram militares da reserva. Foi também a época da invasão

da PUC, que era um foco de oposição.

Foi na época que invadiu a PUC, né? O Erasmo Dias invadiu a PUC, que foi um pega prá capar e a minha supervisora de estágio, que era a Neusa, assistente social também, né?, ela tinha se formado na PUC de Campinas e ela só tinha trabalhado em empresa, né? E ela fazia parte dos encontros, porque na época tinha, né?, assistente social da empresa, um grupo que

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se reunia prá discutir as questões de dentro da empresa, os benefícios, enfim, né? E ela fazia parte, mas ela saiu do movimento cristão, da igreja católica, ela tinha toda um formação, se formou na PUC de Campinas, né?, e era muito ligada a movimentos sociais fora da...ela tinha encontro de casais, ela tinha muito...

Sua percepção, embora um pouco fragmentada, foi a de que aquele momento

da ditadura militar acirrou posições entre os militares.

E então, e essa questão da invasão da PUC também acabou mexendo muito...com ela e com a gente lá também, inclusive os dois diretores acabaram brigando também, porque eles eram de linhas diferentes. O Joanor, que era gerente de RH, ele era a favor de que, ele achava que tinha sentido ele tá no poder, mas ele tinha que sair já, e assumir a sua função, que era das armas, não ficar no governo. O outro achava que não. O Joanor tinha toda uma formação humana, ele era psicólogo, né?, mas ele não gostava de ser confundido com a polícia militar. Via de regra, o pessoal dava umas cutucadas nele, porque ele era militar, dizia "sou um militar, mas não sou da polícia militar” ...porque aí mexeu também com toda, sei lá, a classe de militares que estavam no poder na época...

O trabalho nas empresas: o patrulhamento de funcionários.

Acabou trabalhando em várias empresas depois de formada – de 1978 até

1991. Nelas fez de tudo, desde lidar com questões relativas aos direitos trabalhistas,

que no jargão empresarial se denominam benefícios, até cuidar de refeitório e

organizar o lazer dos funcionários.

Então lá na Toga também a gente foi fazer, eu fui fazer, o serviço social foi fazer, foi participar, campeonato de futebol de salão. Não tinha um centro acadêmico. Comprar uniforme, aí vamos fazer uma comissão, comprar uniforme, contratar juiz, tabela de jogo (risos)...lá foi a assistente social fazer isso também. (risos) (...) eu imaginei ali, isso é impossível também, né? Enfim, né? E lá vamos nós. Lavar, eu falei, "bom, meu bem, vocês tem que...", tinha que mandar lavar, eles traziam os uniformes, a gente mandava na lavanderia, aí um dia antes a gente falava assim, "olha, precisa ver se esses uniformes estão certos, quem é que vai contar, por fim, eu não vou contar uniforme sujo, vai do jeito que vai, se faltar, paciência". Mas um dia lá ela ficou tão nervosa, que disse que tinha que contar, aí chegou uma outra colega, mas foi...a gente fingiu que contou prá dizer, prá dizer prá ela, que também não tinha como, né? Tem umas coisas que não tinha...Mas levar as crianças eu levei pro planetário, foi, foi o máximo, né? Levei praquele programa do Bambalalão, liga, leva as crianças, põe no ônibus, foram lá, participaram do Bambalalão. Fizemos cinema, cinema lá dentro, levamos fita, demos pipoca, já que era prá

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inventar, né? Mas foi assim, enfim, a gente tinha que inventar . E fora a festa de natal que tinha que comprar os panetones, formar as cestas, distribuir. Teve uma festa no Playcenter, que a Toga fechava, era moda na época, o Playcenter acho que era novo também, você trabalhava que nem uma desgraça, tudo mundo se distraía, se divertia, você não, você tinha que ficar na distribuição, na administração, festa mesmo você ficava, né?

Marly também tentava realizar atividades que julgava mais importantes, como

organizar uma semana dedicada às questões da saúde das mulheres. Conseguiu

que fossem liberadas do trabalho para assistir à jornada, o que foi uma vitória, dada

a rigidez da empresa quanto à produção.

Aí foi uma negociação prá liberar as meninas no horário de serviço, uma horinha, uma hora e meia, porque tudo era complicado, tinha que ser sempre fora do horário de serviço. Aí a gente conseguiu que liberasse, mas tinha principalmente, na produção não tinha muita mulher, mas tinha muita, e foi um sucesso, as meninas adoraram, as mulheres...mas veio, veio homens também, né? A gente tinha um auditório bacana, a Toga tinha uma infra muito legal. E veio essa médica de fora, eu consegui pagar, a empresa conseguiu pagar...essa minha gerente ela era muito esperta, sabe? "Em termos de horas, nós temos que provar isso, nós temos que provar que vai, que o, que o, que o, que o funcionário ele vai produzir mais", sabe? Esse era o argumento, "se a gente der isso e tal".

Embora percebesse muito claramente a relação de controle do capital sobre a

vida dos trabalhadores, acredita que essas relações talvez pudessem ser

amenizadas pelos contatos pessoais, como a escolha do funcionário padrão do

SESI, da qual participou entrevistando os funcionários, primeiro momento em que

pôde aproximar-se um pouco mais dos trabalhadores, ir às suas casas, conhecer

suas famílias. Acredita que não havia inocência ali, e que até os sindicatos tinham

interesses contraditórios.

A Toga participava do concurso todo, você mandava o candidato, fazia uma eleição dentro da empresa, depois aquele funcionário, ele ía, ele era encaminhado lá pro SESI prá participar de um almoço, prá participar de uma outra, de uma outra disputa, que era com os outros funcionários das outras empresas, né? Então, ele ganhava prêmios, ganhava brindes, né? Mas essa questão de tá fazendo, porque, né?, de tá conversando, era muito, era muito gostoso. Você conhecia a história dele, E era até discutível, a gente sabia que, que isso tudo era uma maneira de controlar, que era um controle mesmo, né? Mas será que na relação pessoal não dava prá, não sei se absorver, ou então diluir um pouco essa questão, né? Porque os funcionários, os operários lá, eles sabiam desse controle, eles tinham consciência, eles jogavam o tempo todo com isso. O próprio sindicato jogava o tempo todo com isso, né? Aí você começa a ter a noção, eu comecei a ter a noção exatamente do que é um sindicato pelego e o que não é.

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Cita outra situação para referir-se à condição dos trabalhadores, que é a

obrigatoriedade de haver creches para os filhos das funcionárias. Tinha a clara

noção de que não atendia às necessidades das mulheres e suas crianças.

Ainda tem, isso é uma balela, não, não atende ao benefício. Mas era obrigado, a lei obriga que a empresa tenha, senão ela é multada, então ela mantinha uma creche lá não sei aonde, né?, que tava aberto...ah, a creche era na Penha, uma vez eu fui visitar, meu fusca quebrou naquela ponte Penha-Guarulhos lá, bem no meio do...Então, sabe, era tudo prá inglês ver, entendeu? Quer dizer, a empresa de uma certa forma era obrigada a ter porque a legislação...mas não servia, entendeu? Então você começa a questionar.

Acredita que as relações interpessoais foram as que mais interferiram em

suas saídas das empresas que trabalhou.

Tava, tava muito cansada. Mas aí, esse cansaço foi das relações, acho que acabou se esgotando a relação pessoal, entendeu? Dessa questão da inveja, do ciúme, da...eu me senti traída depois, porque aí depois eu fui conversar no, no, porque aí você faz entrevista de saída da empresa e a própria psicóloga lá falou que ainda bem que eu tinha pedido demissão, e isso me confirmou depois também o gerente de desenvolvimento de pessoal, porque já tava, a Nilce já tinha dito aos quatro ventos que ía me mandar embora, porque eu não tava correspondendo.

Ao mesmo tempo em que percebe o jogo do capitalismo, fica em dúvida se

não foi um erro estratégico seu e do serviço social não ter aproveitado esses

espaços profissionais que estavam sendo abertos na ocasião. Ao refletir sobre todas

as tarefas que realizou, pensa que não soube garantir seu espaço profissional.

Acredita que o assistente social nos anos 80 era um profissional requisitado para

trabalhar em desenvolvimento de pessoal, em recursos humanos e, em parte por

dúvidas sobre as contradições que estavam colocadas no serviço social pós

reconceituação, desperdiçou algumas chances de desenvolver uma carreira

profissional.

É tão, é tão complicado, é muito complicado, eu achava difícil fazer isso. A gente administrava também o ônibus, porque a empresa tinha ônibus de funcionários, com os pontos determinados, então a gente que administrava e pagava esses ônibus, fazia itinerário junto com os funcionários, dava uma geral de vez em quando prá ver se funcionário que, porque era descontado em folha um pouco, minto, primeiro começou de graça, depois começou a

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ser descontado na folha, então a gente precisava ver se o funcionário que não tinha...eh, eh...que não era descontado em folha estava tomando o ônibus, sabe, tava andando de graça, que isso também não era interessante prá quem pagava, de vez em quando tinha que ir lá 6 horas da manhã prá ver, porque tinha 3 turnos a fábrica, das 6 às 2, das 2 às 10, das 10, um pouco mais restrito, às 6 da manhã. Hoje tenho assim uma crítica de perda de mercado de trabalho, se você tinha a questão de estar ganhando espaço, se você só precisava se formar, com a reconceituação, ganhar mercado de trabalho, se fosse a empresa, sem ver muito essa questão do capital, né?, como trabalhador, lá mesmo, era um espaço, você não podia ser patrulhada, entendeu? Porque era um espaço, quando você abria o jornal, eles tavam querendo o profissional assistente social, porque eles entendiam o mercado de trabalho, né? Se é da reprodução do sistema ou não, já não sei, né? Mas é, sabe, tava crescendo o mercado para a profissão, não sei de que forma, talvez essa não tenha sido a melhor forma, não sei que ponto de vista também, mas era um mercado que tava se abrindo e que você não tava preparado. E que você ía disputar com psicólogo, administração de empresa, com pedagogo, e se o mercado tava procurando o assistente social era um mercado prá se firmar, não prá se perder. E hoje eu sei que se perdeu. Porque hoje você compete com o pedagogo, com o psicólogo, desenvolvimento de pessoal, por exemplo, se você já tava den, dentro da empresa, você também tinha uma formação que te possibilitaria trabalhar com desenvolvimento de pessoal. Sob que ponto de vista, prá ser mais produtivo prá empresa? Pro sistema, né? Ou, sei lá, pro...né?, pro sistema te sugar ainda mais, pro capital te sugar e não te devolver, né? Que eram pessoas que estavam postas que estão postas também hoje, não é? Mas que a gente tá vivendo o tempo todo isso, né?, não é? Não sei, e a gente perdeu esse espaço, né? E eu acho hoje que eu perdi, mas não enquanto assistente social, mas enquanto pessoal, entendeu? Que eram alguns espaços que, por causa dessas minhas dúvidas, eu acabei perdendo, porque quando eu fiz uma análise com você, na semana passada, das coisas que eu trabalhei, nossa, quanto espaço eu tive prá trabalhar! E não sei se o serviço social se firmou dentro da empresa.

A maternidade:

Saiu da última empresa já casada e grávida de sua primeira filha, Teresa

Cristina, a Tetê, que recebeu esse nome em homenagem às duas avós.

Marly se define como tendo sido uma jovem travada sexualmente. Pouco

namorou, mas teve alguns amores platônicos, até encontrar seu atual marido, que

foi durante algum tempo somente um amigo. Conheceu Ednei aos 24 anos e casou-

se aos 32.

Namo...não, eu tive, acho que eu já fiquei (risos), pensando bem hoje, eu fiquei. Eu, namorar mesmo, namorei muito pouco, namorei muito pouco. Eu sempre fui, eu sempre fui muito constrangida, muito tímida, eu sou assim

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muito amiga, tal, muito expansiva, mas nas questões da sexualidade eu sempre fui muito tímida, muito medrosa, né? Então, eu ficava, eu namorava, namorava não, eu flertava, olhava, eu me apaixonava platonicamente, ai, que...Eu me apaixonei platonicamente muitas vezes, muitas vezes, porque era...Mas, quando aproximava, me dava um medo, umas questões...Era meio complicado. Como disse hoje prá minha filha, eu era travada (risos), eu era meio travada e tal, né? Então, eu comecei a destravar um pouco mais velha, quando eu conheci o Ednei eu tava um pouquinho mais destravadinha também...

Não desejava se casar. Não se casaria de novo.

Quando aí resolvi que era, que ía casar, que dava...porque também eu tinha uma questão com casamento muito...eu achava que casar era um saco, né? Que gozado. Dizia (...) que não ía casar, que se fosse casar ía casar tarde, que eu achava casar meio um saco, achava...eu não gostava muito da questão de casar. Hoje, se eu tivesse que descasar, eu não caso outra vez também, porque eu acho (risos)...nossa, como é difícil!

Embora considere seu marido uma pessoa de fácil relacionamento e bem

humorada, mesmo após 19 anos de casamento ainda briga por questões próprias

das relações entre gêneros.

Então acho que tem...acho que por enquanto deu, né? A gente tem umas brigas, porque eu sou muito às vezes passional, né? Não sei se é passional, mas sei que é assim, né?, eu só vou falando, conversando, mas de repente vai enchendo, vai enchendo, aí eu explodo, entendeu? "Como, meu filho, você teve um tempão prá perceber isso e agora?", "ai, credo, como você é nervosa!", "como que eu sou nervosa, se você não sai, cara”, acho que o povo tem que perceber, porque só eu tenho que perceber e dar sinal, o povo tem que perceber também, entendeu? Aí é aquela briga, aquele, aquele jogo, né? Aí, como diz, a gente roda a baiana, que até o vizinho escuta, né? Mas aí também é pouco, né?, essas brigas são poucas, né?

Quando engravidou, saiu do trabalho porque estava cansada das relações

interpessoais na empresa, cravejadas de ciúme, de inveja e de desqualificação de

seu trabalho. Decidiu ficar em casa e cuidar de sua filha. À época, o marido estava

bem colocado profissionalmente, o que garantia o sustento da casa. Refere-se a

essa fase como um momento especial em sua vida e, mesmo sentindo falta de um

espaço profissional, acredita que por um tempo valeu a pena.

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“Ser assistente social é demais da conta de trabalho, dentro da empresa”, também saí com esse discurso, né? Achava que não ía prá, desisti do serviço social, fui ser mãe só e dona de casa. Foi, por um tempo foi legal, demais já começou a me (risos), a me cutucar, mas aí depois outras questões, né?

Um pouco antes do nascimento de sua filha, prestou um concurso público

para prefeitura de São Paulo. Enquanto não foi chamada permaneceu em casa,

vivendo em função das tarefas domésticas. Entretanto, a dependência financeira e

de relações do marido já estava incomodando. As circunstâncias resolveram o

impasse.

A questão de voltar a trabalhar, mas deixar minha filha, né? Pois tudo isso pesou, mas enfim, prá decidir isso, né?, houve, meu marido desempregou, né? Meu marido desempregou, tá certo? O concurso me chamou, não podia jamais dizer que não, né? E aí, mas aí eu já tava, tava engravidando, já tinha dito, do menino e tal e tive que encarar essa, um mundo completamente diferente, um mundo (...), que foi o hospital...

O dedo da morte:

A segunda gravidez foi bastante conturbada. Tinha um problema no ovário, o

bebê nasceu de uma cesárea de urgência devido descolamento de placenta, faleceu

em seguida por insuficiência respiratória. Esse episódio, ocorrido há mais de dez

anos, ainda é um drama comovente e repleto de significados para Marly. Deu um

plantão no último dia daquele ano, embora estivesse no final da gravidez, já com

muita dificuldade. Não solicitou a nenhuma colega a troca de plantão e também

ninguém se ofereceu para isso, mesmo sabendo de sua situação. Saiu do plantão

diretamente para o hospital. O bebê nasceu, mas não sobreviveu. Essa perda é

sentida como um golpe desferido à sua identidade. O relato é contundente:

..."ah, acho que eu vou ver o meu bebê", porque eu tinha, né?, eu podia entrar qualquer hora, e fui. Mas é assim, mas é gozado, eu fui naqueles corredores, porque o Santa Joana tinha um prédio novo e um prédio velho, né? Eu fui assim, que nem assim, eu fui, eu fui, desci aqui, eu fui tão certo, líquido e certo, na porta, quer dizer, eu não tinha ido lá ainda, mas foram me explicando e eu fui como se já soubesse o caminho, é gozado isso, né? Aí eu cheguei lá tava todo mundo em polvorosa em volta de uma isolet,

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não tinha ninguém a hora que eu abri ali a porta prá me atender. Aí quando me viram vieram correndo, mas não sabiam direito que era, que, quem eu era. Aí veio a moça e falou assim "olha, você pode esperar um pouquinho, porque tem um bebê que tá entrando em, tá com problema muito sério, os médicos tão tentando salvar esse bebê." Aí eu eu olhei, eu olhei e falei "é o meu bebê, ah, é o meu bebê", né? Mas eu sabia que era o meu, gozado, né? A equipe lá se dissolveu e a médica pediatra veio falar comigo. Falou "olha, o seu bebê tá correndo perigo, não vai sobreviver, ele tem acho que pouca chance de sobreviver, você quer se despedir dele?" Que até então não tinha apego com ele. Eu falei " eu quero", mas sabe, assim, né?, eu tava tão...aí eu fui, vi, ele já tava todo cheio de fios, né?, já tava ficando com as mãozinhas roxas, com os pezinhos, né?, ela abriu o isolet e deixou eu acariciar o bebê e me despedir dele, né? Aí eu virei, é tão engraçado, né?, ninguém, eu não sei se ninguém veio, acho que o pessoal também não sabia tratar, entendeu? É tão engraçado, né? Eu me despedi e fui embora pro quarto, fui, que nem um autômato, e sentei, não tinha chegado ninguém ainda, tava sozinha. E fiquei sentada lá. Chegou minha sogra, o Ednei chegou e eu falei "olha, o bebê tá morrendo". "Ah, magina"...tudo mundo achava que era..."ah, o bebê tá morrendo, não". Aí de repente veio a pediatra, veio avisar que ele tinha morrido. Acho que uns 15 minutos depois. Aí é gozado, você mesmo é que tem que falar prá todo mundo, né?, você mesmo, aí vem, o pessoal não acredita, depois vieram buscar a roupinha prá poder trocar o bebê, aquelas coisas todas. Não tinha nem registrado ainda, né? E foi nessa cesária que o médico descobriu que ele não achava o meu ovário, não tinha ovário, o ovário já era uma bola, já tava com aderências no intestino e, enfim, que tinha que me operar de qualquer jeito em 40 dias. Eu falei " vocês tão achando que é câncer?" "Imagina". Ninguém me falou na hora, mas é claro que tava pensando depois, né? Dois dias antes de operar o médico me falou "olha, acho que não vai dar prá esconder de você mesmo, mas a gente tá achando que é...você vai entrar prá uma cirurgia prá fazer biópsia de congelamento; se for, é uma histerectomia total." Então foi assim, muito em cima, essa coisa do feminino, do ser mãe, tudo isso virou, sabe? Sei lá, um redemoinho na minha cabeça, 38 anos, parara...Eu que não queria ter só um filho, queria ter mais filhos...É, essas questões todas ficavam muito, sabe?, muito presentes na minha vida, então foi muito difícil.

Conta essa história analisando as variáveis que elegeu: a noite de final de

ano, a opção por um hospital conveniado ao invés do hospital em que trabalhava, o

fato de estar de plantão naquele dia, de ter assumido o cargo no hospital sem

condições físicas para isso, de ter sentido vergonha de apresentar-se para o

trabalho grávida e já com um atestado médico, de temer ser chamada de

vagabunda, enfim, sob qualquer aspecto que examine a questão restam-lhe uma dor

profunda e muitas dúvidas.

Submeteu-se, quarenta dias após o parto, a uma cirurgia que encerrou as

possibilidades de ser mãe biológica novamente.

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O trabalho na Prefeitura: de volta ao patrulhamento ideológico.

Marly foi chamada para assumir uma vaga na prefeitura e escolheu o hospital

Dr. José Hungria, em Pirituba. Não conhecia nem o local, nem o trabalho. Acabou

no pronto socorro. Conta que chorou uma semana inteira. Seu mundo se alterara

completamente: primeiro, as empresas, as relações competitivas, os jogos do poder,

depois, o conforto de sua casa, o aconchego com a filha, e então, um pronto socorro

de hospital público da periferia, o sofrimento, o trabalho sob o signo da carência

estrutural, as relações humanas embrutecidas e o sentimento de impotência.

As relações eram outras, quer dizer, o funcionamento de uma instituição diferente, com as questões políticas partidárias muito presentes, muito fortes, né? Porque era muita miséria, naquelas condições de hospital também, né? Porque o hospital com as macas no chão, não tem vaga vai pro meio do corredor, é funcionário mal humorado, auxiliar de enfermagem, sabe? Enfim, médico estúpido, enfim, tem a, tem muitos profissionais que não tão nem aí, tanto faz como fez, a questão de você, por exemplo, ter que dar conta do leito logo, entendeu?

Apesar da mudança de trabalho e de vida, continuou trabalhando no hospital.

Acha que seu sofrimento pela perda do filho de certa forma a redimiu perante as

colegas de trabalho.

E fiquei lá no hospital, no serviço social hospitalar, né? É que eu acho que depois desse momento eu encontrei uma acolhida naquele grupo que tava lá, fui recebida de uma forma diferente, as meninas ficaram muito solidárias, as colegas de serviço social, né? Ficaram muito solidárias e a gente começou a trabalhar...Não sei se é um sentimento meu, não sei se é verdade, né? Eu sinto que eu me fortaleci enquanto pessoa sabe, de estar, de estar vivendo isso, de estar vendo tão de perto, né? Não só comigo mas com outras pessoas, né?, que o mundo, essas questões, né? Mas é difícil, é sofrido, né?, é sofrido, eu acho, trabalhar com tudo isso.

Conta que se deparou com várias questões sociais que representam um

desafio para qualquer profissional compreender e intervir: os sucessivos abortos

clandestinos praticados pelas mulheres da periferia, especialmente as adolescentes,

a falta de acesso aos métodos contraceptivos, o abandono dos idosos, o abandono

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de crianças após o nascimento, as macas espalhadas pelo chão e outras tantas

situações já conhecidas no campo da saúde. Teve que entrar em contato com o

desatino, com o sofrimento, com a falta de alternativas, confrontando-os com seus

próprios sentimentos, esforçando-se para não fazer um julgamento moral.

A questão de grávidas que chegam lá, têm o bebê e não querem levar o bebê. Nossa, como isso mexia com a gente! Todas éramos mães, uma ou outra que era solteira, né? Também, né? "Como, não quer o seu filho, como que uma mãe não pode querer o seu filho?"

PAS:

Permaneceu trabalhando no hospital até a implantação do PAS na Secretaria

de Saúde da Prefeitura (1996). A região de Pirituba foi a primeira a sofrer a

implantação do novo sistema.

E veio o PAS e a gente realmente não ía ficar, não ía aderir porque não tinha nada a ver, entre outras coisas também porque o PAS não dava garantia nenhuma para o profissional, não é só uma questão ideológica, porque era Maluf, era Pitta, sabe? Também tinha isso porque a gente sabia o que esperar, né? Porque algumas pessoas a gente sabe o que esperar, outras a gente não sabe, tem que experimentar. Mas já tava dado isso, que não ía dar certo.

Marly fala do estigma criado pela mídia no sentido de desqualificar o

funcionário público, tratando aqueles que não aderiram ao sistema como

vagabundos, e das ameaças de serem transferidos para trabalhar em locais muito

distantes de suas residências.

Ainda no hospital de Pirituba, o serviço social foi incumbido pela direção de

realizar o cadastramento de todas as pessoas que desejavam cirurgias de

contracepção definitiva, tanto homens quanto mulheres. Houve uma parte das

assistentes sociais que acreditavam que deveriam recusar o trabalho, principalmente

porque não havia a menor infra-estrutura no hospital para realização das cirurgias,

tratava-se muito mais de uma espécie de campanha de promoção política da

prefeitura. Marly fez parte do grupo que acreditava que era necessário realizar o

trabalho para que pudessem se aproximar da população, explicar que não havia

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condições de realização da cirurgia e não serem acusadas de “vagabundas”.

Contudo, a observação de um usuário recolocou a questão e a fez refletir sobre

essa decisão e a escrever uma carta para para uma revista de grande circulação

reclamando das reportagens que faziam apologia do setor privado em detrimento do

setor público.

Veio gente de todas as idades, de 25 com filho, com 19 que queria fazer a vasectomia e a laqueadura, e um senhorzinho que virou prá mim e falou, "ah, eu sei, o Maluf, o Maluf é um bom prefeito, vocês é que são uns vagabundos", falou na minha cara, "que não querem fazer". Eramos nós que deveríamos trabalhar, entendeu? Nossa, aquilo me marcou, aquilo me deixou...sabe? Falei, "puxa vida, você tá vendo como a gente leva...". Então, aí acabei, né?, escrevendo prá Veja também, né?

Além das ameaças de transferência para trabalhar em locais distantes37 e da

desqualificação pública, para fazer parte das cooperativas do PAS era necessário

abrir mão das garantias que os funcionários públicos têm e desembolsar um valor

em dinheiro, mas com a promessa que os ganhos seriam compensatórios.

Prá trabalhar numa cooperativa e a gente tinha que colocar dinheiro dentro, ainda tinha que dar R$ 500 prá formar essa cooperativa, e que isso ía dar um ganho muito maior de salário. Quer dizer, além dessas questões não serem claras, serem dúbias, existia a questão de quem é que tava fazendo isso, que era um político que a gente sabia que não tava pensando em melhoria de serviço, nenhuma do serviço público. Aí eu me lembro que a imprensa, na época, fazia um grande estardalhaço das modificações e que o serviço, e que o funcionário público era vagabundo e que essa era uma proposta prá melhorar o serviço público e que aqueles funcionários que não tavam aceitando era porque eram vagabundos, não queriam trabalhar. E não era bem isso, mas isso era o que a imprensa dizia, né? E quem não, que nem, quem não aceitasse ía ficar à disposição, podia ser mandado pro Bororé, não sei aonde, sabe aquelas ameaças, né? E agente foi agüentando isso, foi agüentando isso, aí depois também houve uma, houve na época, eu me lembro, uma, uma consulta ao CRESS, o CRESS nos ajudou nessa questão, andou publicando alguma coisa, mas as forças eram muito grandes, né? Tanto que a primeira região que foi...

Tinha poucas alternativas de escolha de local para trabalhar. Destaca as

bibliotecas municipais, equipamentos públicos mais próximos de sua residência.

Contudo, não conseguia imaginar numa biblioteca um trabalho para o serviço social.

Escolheu trabalhar na então SURBES, Supervisão Regional de Bem Estar Social 37 Um temor recorrente era a transferência para o Bororé, bairro no extremo da zona sul de São Paulo, ao qual só se tem acesso através de uma balsa.

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Escolheu a Regional Tiradentes, já que as vagas mais próximas de sua casa,

Freguesia do Ó e Pirituba, tinham sido ocupadas por colegas que já estavam há

mais tempo no serviço público. Lá trabalhou com pessoas em situação de rua, no

plantão social, e logo decobriu que ali funcionava um "castigo" para profissionais

insubordinados.

Quem tava lá quando eu cheguei, funcionárias, as 3 ou 4 funcionárias, altamente ativistas e petistas de carteirinha. Então tinha a Shana, não sei se você chegou a conhecer, a Shana, tinha a Viviane, a Viviane, né?, que estavam lá, que eram pessoas não gratas, que na Erundina tinham sido supervisoras de área, supervisoras de SURBES e que estavam lá no inferno, porque aquilo era o castigo. E eu fui pro castigo, né?, eu fui lá pro castigo, vamos trabalhar, lá é aquilo, né?, mas a nossa chefe de setor, ela era uma gracinha, assim, mas ela era toda assim, ela era assistente social mas ela sempre entrou prá trabalhar no serviço público via político, com cargo, com conhecimento.

As colegas militantes do PT foram as que a receberam melhor. Afeiçoou-se a

elas e admirava sua inteligência e sua coragem para confrontos com a chefia, que

lhes rendia certo ostracismo.Mas ela própria sentia-se constrangida e desgastada

pelo processo da implantação do PAS, não conseguia realizar os confrontos

necessários para garantir uma posição com alguma margem de negociação.

Mas eram que foram, que me receberam, que vieram conversar comigo, saber como eram as coisas da...né? E elas eram muito ágeis no pensamento, nossa, entendeu? Elas davam de dez a zero lá na coitada, entendeu? Mas elas trabalhavam, elas não faziam corpo mole, não. Elas questionavam as ações, porque isso, porque aquilo, mas elas trabalhavam, elas trabalhavam muito, a Viviane trabalhava muito, a Shana também, mas questionavam e gozavam, porque elas tiravam um sarro da outra, da bendita da chefe lá, que ela se embaraçava muito. Então a gente começou a combinar a hora de almoço, mas aí a Lídia, Lídia, lembrei dela, não queria me deixar sair com elas duas prá almoçar. Mas eu tinha a maior, porque que tinha..."não, você não vai sair". Aí a Viviane fazia assim, "ela falou isso prá você? Mas vamos embora", sabe? Mas eu ficava constrangida mesmo.

Embora justifique sua dificuldade de confronto, admite que essa é uma

característica sua desde menina.

E ficar brigando o tempo todo, confrontando o tempo todo, não sei fazer isso, eu não faço isso, não foi assim que eu fiz com o meu pai e com a minha mãe, você percebe? Eu não consegui sair confrontando sempre,

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entendeu? Eu fui saindo prá aqui, fui saindo prá ali, entendeu? Falei assim, "é assim que eu sou", né?

Essa e outras situações levaram Marly ao adoecimento. Uma série de

problemas de saúde surgiram e se agravaram. Nesse momento, seu marido estava

indo trabalhar no interior de São Paulo e decidiram que a família iria se mudar.

Mas era muito complicado, até que um dia, aí tinha uma fulana, essa que é do PSDB, achava o fim da picada, que não sei o quê, e ela resolveu que não ía trabalhar, que ela não ía trabalhar e não ía atender e a outra não tinha força, a chefe lá, de fazer a outra trabalhar. Então o que aconteceu, ela me mudou de horário, ela me fez entrar às 10 e sair às 4 e meia, um horário horroroso. Prá que? Pro serviço não perder continuidade. Então isso tudo me causou um estresse danado. Ainda meu marido indo embora pro interior, eu não sabia se ía, se ficava, ele ía morar lá, ía só vir de fim de semana, foi quando ele começou com essa vida , que tá com essa vida até hoje, né?, de procurar, de trabalhar fora, então isso me estressou demais, eu acabei, fiquei doente, fiquei com infecção na urina, eu nunca tive infecção urinária, eu fiquei...ah...me atacou a rinite com a sinusite, né?, me ataca, eu tive crises homéricas, sabe? Aí o Ednei falou assim, "então vamos pro interior, vamos ver se você consegue ficar lá, mas pode não dar certo". Eu falei, "ah, então eu vou". Então eu saí disso dessa forma, porque prá mim realmente tava muito complicado trabalhar na, na...tava difícil, foi interessante conhecer o trabalho, mas realmente tava ficando muito desgastante, porque eu não ía confrontar mesmo a Lídia de jeito nenhum, mas eu também não ía deixar de trabalhar, entendeu, de fazer corpo mole, né?

Marly pouco se refere ao período em que morou no interior, não citou sequer

a cidade; conta apenas que não deu certo e que voltou para São Paulo.

Ficou afastada do trabalho durante dois anos. Quando retornou, foi avisada

por uma colega que deveria tentar a transferência para a SURBES Freguesia do Ó

ou Pirituba. Na supervisão Tiradentes muita coisa já havia mudado. Estavam

faltando funcionários para o trabalho e ela era identificada com o grupo das

“petistas”, uma questão política que poderia criar difculdades adicionais. Foi

conversar com a coordenadora, que indagou sobre sua posição político-partidária.

Marly conta que teve que declarar que era apenas simpatizante do PT , mas que

acreditava que o trabalho estava acima das questões político-partidárias e que o que

a motivava a solicitar transferência eram questões pessoais, basicamente

necessitava de mais tempo para cuidar da filha. Acha seu pedido foi aceito por

solidariedade feminina.

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Aí, quando voltei e fui pedir a minha transferência, tinha a Maria Luísa lá, que era malufista, que trabalhava mesmo, era...sei lá, escancaradamente malufista, Aí fui falar com essa Malu, aí ela me botou na parede, "ah, você é aquelas petistas...". Não era petista, mas eu não sou, quer dizer, eu voto, petista assim, de ser ligada ao partido, militante e tal. "Ah, sei, você, ah, eu sei, me lembro de você. Ah, eu sei sim, você é daquela turma que veio mas me surpreendeu, você não fez oba-oba, você trabalhou", ela falou. Ela me perguntou qual que era a minha, a minha questão política, eu falei "oh, sempre votei no PT, acredito, acho que tem algumas coisas, né?...mas acho também que a gente tem que trabalhar". Mas aí ela falou assim, "tá bom, vou te liberar", mas ela falou assim prá mim, "gostei dela porque eu sou mulher e sou mãe, hoje meus filhos estão grandes, as minhas filhas estão moças, mas eu sei a dificuldade que é prá gente tá contornando essa situação, sabe? De ser mãe, de ser profissional. Ela me ganhou", malufista ou não malufista, você percebe, as questões partidárias que estão postas? "Essa mulher me ganhou".

Assim que foi trabalhar em Pirituba, foi convidada a ocupar um cargo de

chefia na supervisão de creches. Essa experiência foi especialmente dolorosa

porque passou a ser considerada como alguém vinculada politicamente ao governo

Maluf/Pitta.

Aí eu vim prá Pirituba, trabalhar na supervisão de creches, né? Nesse trabalho que eu já citei prá você, de tá vendo todas essas questões...Mas aí, né?, a gente tava na supervisão de creches, aí eu peguei também uma chefia. Nunca mais pego chefia, porque era governo Pitta, eu era simpatizante do PT e fui pegar uma chefia dentro do governo Pitta. Nunca mais, mas eu não quero chef...de jeito nenhum, porque eu nem pensei sobre isso, você acredita?

Foi pressionada por suas antigas colegas da saúde, identificadas

politicamente com o PT e vítimas de perseguições políticas, e também pelas

assistentes sociais identificadas com a administração Maluf/Pita. Ingenuamente,

tentava fazer propostas, encaminhar projetos e organizar o serviço, mesmo que

necessitasse contar com pessoas com concepções políticas diferentes e até

antagônicas. Houve um momento mais delicado ainda, que foi uma articulação

política para fazer com que sua supervisora fosse destituída do cargo. Não entende

até hoje como e porque ela deveria participar de tal articulação. Não conseguiu

manter-se no cargo e pediu sua exoneração após 9 meses nessa posição. Desistiu

de um adicional salarial representativo e a chance de galgar um degrau na carreira

na prefeitura em nome de seu bem-estar.

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Comecei a ficar mal-humorada, fiquei um saco, não dormia, adoro comer, adoro beber, sabe aquelas coisas? Isso, sabe, eu tava perdendo essas questões, essa alegria, essa...por causa dessa briga, dessa...sabe? Aí, cheguei pro marido e falei assim, "eu vou dar um pé nesse negócio". "Calma, mas assim vai ficar provado que você sucumbiu à pressão". Eu fiquei pensando, isso me incomoda mesmo, né? Sucumbir à pressão. Mas o que que é melhor pessoalmente prá mim? Eu sucumbi...e uma outra coisa, aí começou a fazer um movimento, começou também a surgir esse movimento de derrubar a supervisora, "vamos derrubar essa fulana", mas porque derrubar? "Porque ela é da Marcantonio", claro que ela tem as questões políticas dela. Mas eu era chefia dela, eu tinha me proposto a trabalhar...ela dizia prá mim que acreditava no meu trabalho, quer dizer, cada vez que eu ía lá e conversava sobre os problemas que a gente tinha, ela acreditava em mim. Ela era de confiança, eu era uma pessoa de confiança dela, sei lá. Acho que eu sou muito...né? Como é que eu vou começar, nos bastidores, a fazer um movimento prá derrubar a mulher, sabe? Eu não tinha nada contra ela, só porque ela era...entendeu? Tinha as questões, tinha , claro, mas não, eu acho que a gente tinha que ser maior do que isso, ainda acho isso, hen? Com os devidos, ainda acho, aliás hoje ainda mais, meu bem, né? Hoje ainda mais, apesar de todos os problemas. Tudo isso foi, eu pensei e tudo isso eu pesei, eu falei "eu não vou ficar, eles vão pensar que eu sou incompetente? Que pensem. Se a fulana disser lá que me derrubou, me derrubou, mas me derrubou prá cair onde?" Você percebe? Eu pedi. Aí fui lá, pedi "Sonia, não agüento, é assim, assado, não tá dando, minha mãe tá doente também, eu não tô agüentando todas essas pessoas, não tô agüentando, eu não vou ficar". "Ah, é uma pena, Marly, você tá deixando, porque fulano é assim mesmo, sicrano...". Falei "não quero, tô deixando o cargo numa boa, você escolha outra pessoa..." Aí o pessoal ficou de boca...achei gozado, "como que você deixou o cargo?"(risos).

Atualmente, tem buscado perceber qual é o lugar das pessoas na vida dela e,

a partir disso, avaliar melhor seu incômodo com o olhar reprovador do outro.

Eu sempre fui uma pessoa meia preocupada mesmo pessoalmente com o olhar do outro, né? Ah, me incomoda, quer dizer, venho trabalhando isso minha vida inteira, hoje eu diria que eu me importo menos, mas ainda me importo. Mas não é determinante, entendeu? Tem hora que não me importo mesmo. Aliás, ontem eu tava pensando, que eu sofro muito com o que pensam de mim, mas quem são essas pessoas? São meus amigos, são as pessoas que eu tenho um vínculo, isso que me importa, o resto acho que não me importo muito, porque tá aí, (...), não faço questão.

A estrela do PT voltou a brilhar em São Paulo:

Marly, assim como boa parte dos trabalhadores da saúde, respirou aliviada

quando o PT entrou novamente na cena pública municipal, em 2001. As

movimentações de pessoal começaram ocorrer e ela pediu sua liberação de

SURBES para retornar à Saúde. Apresentou-se voluntariamente para trabalhar no

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então chamado Posto Avançado – 8, órgão político-administrativo que coordenava

as ações nos bairros da Brasilândia, Freguesia do Ó e Pirituba. Embora próximos,

são bairros grandes e com realidades totalmente diferentes.

As tarefas desse Posto Avançado eram de articulação dos serviços de

saúde, de administração dos serviços juntamente com o PAS, que permaneceria em

atividade por mais 6 meses. A médio prazo, estava prevista a implantação do PSF

nas três regiões.

Mas aí depois, então, mudou, entrou Marta Suplicy, uau, que legal! Vamos...né? Mas aí a gente resolveu voltar antes, ela tinha assumido em 1° de janeiro, quando foi fevereiro começaram essas articulações todas, aí eu falei assim,"ah, eu vou voltar", "mas não tem garantia de você ficar em Posto". "Ah", falei,"eu vou, vamos voltar lá, a gente vai se pendurando lá no distrito que tá se formando e a gente vê o que que...", estávamos lá, lá em SURBES, resolvemos voltar, a Judith já tinha voltado e a gente começou a trabalhar lá na formação do distrito da, da Freguesia do Ó. E naquele, quando nós chegamos, que que nos foi dito? "Oh, vocês vão ficar por aqui, vai lendo isso". Era o documento de implantação do PSF. Não se sabia o que ía ficar, mas como tava vindo, voltando gente, então a gente foi chegando e foi lendo aquele documento, aí começaram a chegar as novas instruções de formação, aonde vai ser PSF, que é PSF, que que precisa, quem é que vai fazer isso aqui na região, né? Então arregaçamos a mão, "vamos lá". E o pessoal aceitou a gente, quer dizer, o supervisor liberou, que disse que a gente ía ser chamada mesmo, aí eu, a Cecília e a Adelaide, que fazer.

Ficou trabalhando na formação do Distrito da Freguesia do Ó e na

estruturação do PSF na região. Não desejava voltar ao hospital, continuava

ressentida.

Eu falei "bom, eu vou até lá", mas na hora que eu olhei aquele pessoal todo do hospital, que eu tava reencontrando, depois de ver toda aquela história, esse sofrimento, eu falei "eu vou voltar prá ganhar, prá trabalhar com aquela...", sabe? E eu acho que bateu a questão do ressentimento mesmo, sabe? De eu ter sofrido tudo aquilo, de ter entrado o PAS, de trabalhar com pessoas que antes...sabe? Isso bateu tão forte, eu falei "eu não vou, eu não vou escolher". Aí eu virei prá minhas colegas, a gente tinha ido juntas, a gente tá sempre junto, prá uma dar força prá outra, "se vocês quiserem escolher, eu não vou, eu vou arriscar, eu não vou voltar pro hospital, não quero, não quero aquilo outra vez, não quero". Não escolhi. Nisso, a Adelaide com a Cecília também não escolheram, falei "seja o que Deus quiser", né? E a gente queria uma salvaguarda, a gente queria que alguém garantisse prá gente, eu me lembro, um lugar, se a gente desistisse do nosso, mas ninguém deu garantias.

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Empenhou-se bastante na tarefa de implantação do novo modelo assistencial.

Contou ruas, fez cursos, trabalhou na seleção de agentes de saúde e, finalmente,

conseguiu trabalhar num posto de saúde da região.

A implantação do PSF e o serviço social:

Os critérios de implantação do PSF, assim como a definição do trabalho do

assistente social nas unidades, não eram muito claros. Entendia-se, num primeiro

momento, que o PSF só seria implantado em áreas mais pauperizadas e a única

unidade escolhida no Distrito da Freguesia do Ó foi a UBS Cruz das Almas. Além

disso, havia uma experiência de implantação do Qualis na região da Brasilândia e

nessa experiência, o assistente social, segundo orientação do Ministério da Saúde,

fazia parte das equipes volantes de saúde mental e não permanecia na UBS, nem

fazia parte de equipes específicas.

Essas questões levaram Marly a acreditar que o agente comunitário

desenvolveria as funções que sempre estiveram a cargo de assistentes sociais. O

assistente social, juntamente com outro profissional, habitualmente o médico

psiquiatra, percorreria várias unidades do PSF e faria a discussão das questões

sociais mais complexas, visando à construção de um projeto terapêutico para ser

desenvolvido pela própria equipe local. Somente em situações mais críticas o

assistente social realizaria o atendimento.

Depois houve a escolha aqui na região e o Cruz tinha essa questão, de você, ía ser o PSF. PSF não cabe assistente social, PSF não cabe assistente social. Aí vamos voltar novamente ao novo modelo e às questões do profissional. Bom, como não cabe assistente social no PSF, eu pensava. Como não cabe? Eu não entendia, não tinha lido nenhuma publicação do Ministério, nenhuma experiência do serviço social dentro de um programa de saúde da família. O que se começava a dizer que o assistente social ocuparia, ele acabaria com a saúde mental, numa dupla, começou a se falar nisso, dando supervisão nas questões de saúde mental, que esse era o papo, esse era a questão, esse era o...o papel do serviço social, onde ele cabia dentro de um programa de saúde da família, mas não dentro de uma Unidade de programa de saúde da família, tá? Eu me lembro que a gente foi conversar na época com a Luzia, que já era chefe do Qualis e que é assistente social, que foi assistente social da prefeitura, e a gente foi, fomos eu, a Nancy, fomos a Denise também, que a

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gente já tava junto com a Nancy, nesse processo todo de implantação e de buscas de caminhos e de como administrar e a Luzia disse "não, prá quê? Assistente social no PSF não cabe." Eu falava "mas como que não cabe?" "Não cabe, o agente comunitário vai dar conta de uma série de coisas, então o que que o assistente social vai fazer dentro da Unidade?" Falei "nossa, mas o agente comunitário tá tomando o lugar do assistente social".

Novamente percebeu a fragilidade do serviço social e perguntou-se pela

identidade da profissão. Não discordava do modelo, ao contrário, considerava um

grande avanço no cuidado das pessoas, principalmente dos idosos, e considerava a

ação profissional do agente comunitário fundamental.

Lá vai outra vez aquela questão de identidade, eu sou tão generalista que qualquer um que chegue vai fazer aquilo que eu tava fazendo, não tenho nada específico, não tenho nada específico. Eu ficava pensando, aquilo, né? Isso foi sempre uma questão colocada por mim, eu falei "mas, ah, eu não acredito nisso, eu acho, eu acho que eu podia trabalhar junto com o agente comunitário", eu não reneguei o agente comunitário em nenhum momento como profissional. Eu achava o modelo ótimo, porque eu me lembrava, principalmente, daqueles casos dos idosos que eu via no hospital, que a família era complicada, trabalhava fora, não tinha ninguém prá ajudar. O médico ía em casa, o auxiliar ía em casa, nossa! Eu achava que era um avanço medonho, ía ser uma assessoria e tanto prá essa família que tava diferente daquela de 40, 50 anos atrás, que tinha sempre alguém dentro de casa prá cuidar do idoso e agora não tinha mesmo.

Marly desenvolve seu trabalho na UBS Cruz das Almas, que é uma unidade

mista, ou seja, há médicos que atendem com agendamento tradicional e 5 equipes

de saúde da família. Marly dá suporte às equipes, especialmente aos agentes,

embora já esteja questionando suas atividades.

Mas, então, que que o serviço social...né? Além de participar da implantação do PSF, dessas discussões todas, qual que é o trabalho aqui? A gente percebe que a gente é um suporte para o agente comunitário fazer suas visitas, tá, digamos assim, burilando um pouco o olhar dele praquela família, tá certo? Independente dele estar fazendo, cumprindo aquele papel de dupla de supervisão em saúde mental, que tá dito no oficial lá que ele poderia estar compondo. Eu estou dentro da Unidade, eu também participo...

Realiza o atendimento tradicional do serviço social em uma unidade de saúde

e queixa-se das más condições de trabalho e do baixo salário.

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Ah, reconhecimento eu não sei se, o reconhecimento acho que não tem , não, não sei, não. Que, por exemplo, em termos salariais, não temos, não temos nada. Com PSF, sem PSF, nós estamos sem reconhecimento nenhum. As condições de trabalho são péssimas, isso aqui tá apertado, os agentes comunitários são 30, não tem sala, a gente não tem sala prá atender, eu tenho uma sala aqui que as enfermeiras usam, que a fono, usa, que a psicóloga usa, entendeu? A gente não tem banheiro direito, não tem nem lugar prá estacionar o carro, "ah, porque que você veio de carro?" "Vim de carro porque eu tenho carro! Ninguém tem nada a ver com isso, isso é questionamento que se faça? Ah, vai te catar, meu!" Você percebe? Então, não tem, não tem.

O agente comunitário e o assistente social:

Marly participou de um encontro de profissionais e agentes da zona leste, em

que foi debatida a questão da necessidade do trabalho do assistente social no PSF.

Na ocasião, um agente comunitário deu um depoimento colocando o serviço social

como algo totalmente desnecessário para desenvolvimento das ações. Ficou

extremamente ofendida.

Eu me lembro que eu fiquei muito ofendida, lembra daquele, você tava naquele encontro que nós fizemos lá na USP, que o pessoal da zona leste foi falar...tava sim, falou da experiência, tava sim, de saúde mental, lá na USP, na faculdade de psicologia da USP, você tava lá. É, tava eu, eu, a Denise. E tinha, tinham feito umas perguntas lá prá alguns agentes comunitários, ele disse, falava, não fui eu, foi uma outra pessoa que falou sobre serviço social e o agente comunitário falou que não precisava de assistente social, que eles davam conta de uma porção de coisas. Aquilo me ofendeu terrivelmente, né? Não tinha, aliás temos pouco assistente social na rede também e eu falei assim, "nossa, não é possível isso acontecer, quer dizer, o agente comunitário tá tomando o nosso, nosso papel, eu acho que não é por aí".

Num encontro realizado no Hospital das Clínicas da Universidade de São

Paulo, em 2001, com a presença de José Paulo Netto e Maria Lúcia Martinelli, foi

elaborado um documento em repúdio ao desempenho de atividades próprias dos

assistentes sociais por agentes comunitários.

Isso é muito complicado, mas eu queria citar prá você que eu participei de um congresso, faz...do primeiro congresso do Serviço Social e Saúde que o HC chamou, ele chamou um simpósio. Então, foi o Zé Paulo Netto lá, foi a Maria Lúcia Martinelli, ah, deixa eu te...eu tava procurando na minha pastinha uns escritos e ela falou umas coisas que eu tinha esquecido, que depois com essas nossas entrevistas eu acabei resgatando um pouco, tal. Mas nesse congresso, o que eu queria dizer, assim, veio gente do Brasil

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inteiro e foi citado a questão do agente comunitário tá tomando espaço do serviço social, né? Houve até um documento de repúdio a isso, porque se entendia que algumas ações que eram do serviço social enquanto...o agente comunitário tava fazendo.

Começa a acreditar que os assistentes sociais possuem uma experiência que

pode ser repassada para os agentes comunitários, ajudando-os a refletir sobre

questões para as quais eles ainda não possuem preparo profissional.

Eu acho, eu acho, eu acho e com a experiência que a gente teve a gente pode até dizer, fazer ele pensar um pouco sobre isso, "olha, você viu aquilo? Olha, melhor...ah,vai lidar com dinheiro? Como é que é lidar com dinheiro frente a uma população...né? E a gente não tem essa...qual o teu papel aqui? Você, você é agente comunitário, mas você também é um profissional hoje que trabalha na saúde", acho que tem essas questões que a gente acaba participando nessa reflexão com ele, que eu acho que o serviço social acaba contribuindo prá isso. Então eu acho que, que essa coisa...né? Eu acho que essa coisa, sei lá, faz parte hoje, né?

O público, o privado e o íntimo:

Marly recuperou, durante o processo das entrevistas, observações de Maria

Lúcia Martinelli e José Paulo Netto que para ela fizeram sentido e passou a refletir

sobre a distância entre essas reflexões e a realidade.

Que ela foi no congresso...e ela me fez pensar um pouco...ahn...umas questões que ela disse naquele dia, que era assim, era o agente profissional, só que isso, ela disse um monte de coisa, é claro, mas eu anotei isso aqui: profissões nunca estão prontas, acho que era uma solicitação, uma questão da nossa, era isso e eu marquei isso; e que a, o nosso compromisso é ético-político, né? A relação do serviço social com a saúde é histórica, é institucional, claro, nós começamos lá, quer dizer, é um espaço que não se deve perder, que é um local de muitos saberes, né? Mas acho que isso é uma visão tão, tão evoluída dela, que eu não sei se a nossa realidade tá muito pobre, tá demorando prá acompanhar isso, tá muito pobre. Que nenhuma pessoa se realiza totalmente no trabalho, que parece que eram umas questões, que a gente vive querendo se realizar no trabalho, isso de uma maneira geral, não sei se nós mais do que outros, porque a gente tá sempre atendendo pessoas, lidando com pessoas e parece que a nossa profissão não vai dar conta, né? Não vai salvar.

Acha que estavam sendo discutidos aspectos relativos à espiritualidade e ao

sagrado.

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Não sei se a gente tem isso muito dentro da gente, mas isso eu sinto e outras colegas também, naquele próprio congresso isso foi colocado, né? E que ela percebia que os compromissos da profissão tava muito, ela tava observando isso, se bem me lembro, com as questões da espiritualidade, do sagrado, ela tinha colocado isso, né? Que o assistente social trabalha entre o público, o privado e o íntimo, que são essas questões do, do trabalho, né?

A espiritualidade:

Marly acredita que Martinelli não fazia exatamente uma crítica, mas estava

abordando e reforçando uma temática que está presente no serviço social, ou seja,

a perda de uma certa espiritualidade trazendo como conseqüência a banalização do

mal, a perda da centralidade do sujeito.

Não, eu não senti como uma crítica, não, eu senti como um reforço, como uma mudança de caminho mesmo, uma mudança de mentalidade. Porque depois eu tinha anotado umas, umas coisas que ela foi falando: os simples são os que mais perguntam complexamente; a nossa profissão tem desafios graves, recuperar a centralidade do sujeito. Essa centralidade , que que é essa questão, onde vai ser, transcendência, essa espiritualidade, entendeu? Aqui eu não me lembro mais: intervenção. Eu coloquei: na equipe, temos papel nexo, eu coloquei até entre parênteses, entre parênteses, não, entre aspas...Mas fala que sofrimento psíquico, né? A gente tem isso e lida com isso, pelas condições de trabalho que a gente tem ou pelas condições, a própria condição da nossa, da nossa, da nossa profissão mesmo, né? A bana...ela colocou, a banalidade do mal, onde...né? Valores, perdeu-se o valor.

Acha que a perda desses valores está expressa nas questões familiares e na

falta de políticas públicas, que fazem com que os próprios assistentes sociais,

imersos nesse mar de dificuldades, acabem também perdendo.

Papel de homem, de mulher, de família, quem é essa mulher que tá aqui hoje, que é que ela quer, né? Quem é este homem, quem é esta família que não tá dando conta de cuidar dos filhos nem dos pais doentes, nem da geração anterior, nem da geração que tá vindo, porque você tá no meio disso e você tá atendendo uma população que tá vivendo isso. Que a sociedade, que o governo não tá dando conta desses equipamentos, digamos, das escolas maternais, das creches, os hospitais, este posto de saúde que não tá atendendo, nem este modelo, que não tá atendendo também, porque não se tá pagando...sabe? Você vai entrando nesse, nesse furor aí, nesse redemoinho aí, né? Eu acho que a gente acaba perdendo também...

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No trabalho, continua presenciando situações onde a hierarquia social e

econômica continua prevalecendo sobre a apropriação do conhecimento de forma

horizontal, interdisciplinar.

Eu acho que um pouco ajuda também essa, essa...porque, assim, a proposta, por exemplo, do PSF, eu acho um avanço prá caramba, né? Essa...a questão da equipe, de você tá se...eh...relacionando no mesmo patamar, sem a hierarquia, somos todos, cada um com seu saber, né? Eu acho bárbaro isso, mas esse saber é claro que é seu, mas isso não significa que você é superior enquanto ser humano, enquanto pessoa, mas isso se mistura na hora da relação, isso se mistura na hora da relação. Que, de repente, o que você percebe numa reunião de equipe, que vem um agente comunitário que ele diz alguma coisa que tem um sentido naquela situação, mas como não foi o médico que disse ou a enfermeira foi contra, não quer trabalhar, não tem valor, deixa de ter valor. Aí, se é uma pessoa que tem, que é muito segura, ela vai, ela briga. Mas se não é, isso fica perdido.

Aponta que a omissão do Estado na dotação dos recursos necessários para o

desenvolvimento do trabalho gera distorções quanto à percepção do que é

verdadeiramente uma intervenção profissional.

Aquele funcionário que é comprometido com o trabalho, tá no sistema, ele tem que ser comprometido até o fim, até tirar dinheiro dele do bolso prá poder um projeto dar certo, tirar xerox de, de, de formulários, comprar lanches prá comunidade ir num passeio, entendeu? Então, às vezes, o profissional, aquele que tira do bolso, ele é o comprometido, aquele que tem vínculo, senão, não tem.

Recuperando as observações de Martinelli, aproxima práticas emancipatórias

e PSF.

Deixa eu voltar aqui, olha, o que ela tinha dito também a respeito da nossa profissão naquela época: "fortalecer práticas emancipatórias", lindo isso, né? "O assistente social detonador, discursos teóricos não mobilizam a consciência"...não mobilizam mesmo. E contamina, me contamina, porque se eu não sou reconhecida, prá que que eu vou ficar me matando, prá que que eu vou ficar questionando? Eu vou sofrer mais ainda e não...sabe? E não adianta, não adianta...Enfim, não sei...deixa eu ver aqui, olha que interessante: "encurtar a distância entre a população e o poder", tá muito...né? O médico era o poder, né? Quando você pega o agente comunitário e junta, né?

Postula que não basta ter um modelo a seguir; é necessário acreditar nele e

essa é uma grande dificuldade.

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Você tá fazendo isso, o modelo faz isso e você como facilitador você pode fazer...mas você tem que saber disso, isso tem que tá claro prá você, você tem que acreditar que isso, se não acreditar não adianta...

A mística do PSF:

Diante de tantos desafios colocados à prática profissional, sentiu necessidade

de estudar melhor o campo da família e foi buscar no INEF – Instituto de Estudos da

Família– um curso introdutório à teoria dos sistemas.

Prá gente poder entender um pouquinho, quer dizer, porque eu vejo assim, tô olhando assim, a gente tá trabalhando com o programa de saúde da família, sobre a questão do agente comunitário ir lá, o assistente social, como é que a gente vai entender a família...

Conta que há um mito que, através do PSF, todos os problemas das famílias

serão resolvidos, inclusive os que se referem às relações interpessoais. Essa

expectativa não só não pode se realizar, como gera uma sensação de impotência.

Você vai lá, resolve, acontece...aí, quando você, do outro lado, que é o governo que eu chamo, não investe. Você vai caindo na impotência, você vai caindo nas limitações, porque ninguém muda nada, ninguém muda a vida de ninguém, não é verdade? Porque quando você coloca o modelo, o médico, o agente comunitário que vai lá e que tem uma pessoa com uma grave, um grave problema de saúde mental, que tem uma história de família que também que resultou naquilo, que tem uma, um social, um contexto, que não ajuda em nada, é muito difícil você ir lá e salvar, você não salva, né? Aí você "ah, tá vendo, não adianta nada, a gente faz, faz e..."

A vida como ela é...

Marly acredita que mudou bastante através de seu trabalho no PSF, que

enxergou a vida como de fato ela realmente é, numa analogia com os programas de

televisão. Acredita que o encontro com a violência, que cega de tão explícita, tem se

constituído numa experiência bastante dolorosa. Entretanto, tem procurado não

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comprometer sua auto-estima, principalmente quando não consegue “salvar” as

pessoas.

Eu mudei, sim. Eu tenho trabalhado muito a minha questão da po...sabe, de serviço social chega e vai resolver tudo, né? Ou eu vou chegar e vou resolver tudo, e o que eu não resolver eu me sentir um lixo, porque eu não valho nada, porque eu não consigo, porque eu sou incompetente.

Ao narrar sua história, pôde perceber que já trabalhou muito e que superou

uma velha sensação de menos valia diante do poder devastador do “sistema”,

apesar de suas limitações.

E me senti, sabe, não me senti tão ruim porque teve tantos momentos na minha vida que eu me senti uma porcaria, uma incompetente, porque não deu certo uma série de coisas e hoje eu tô vendo que não foi bem assim, sabe quando você se resga..ta, resgata? Falei "puxa vida", sabe? Quantos, foram muitos os momentos que eu deixei o sistema me engulir, achando que eu era uma porcaria, é claro que eu tenho as minhas limitações, eu não sou a super, não sou, mas essa merda que tá aí procurou muito me afundar, não é? E aonde que eu fui buscar força prá não...(risos) ficar uma depressiva? Acho que na minha história de vida mesmo, enfim, né?

O legado geracional:

Tenta passar para sua filha uma outra concepção da vida, principalmente

sobre a sexualidade. Recorda-se dos embates que teve com os pais e deseja a

superação das dificuldades que sua geração enfrentou.

A questão da sexualidade também, sabe, que foi mesmo complicada, como eu disse prá minha filha hoje, "ah, sua mãe", falei prá ela, "sua mãe foi", como é que é, eu fui muito, ah, esqueci a palavra, é uma gíria que eles usam, que elas usam agora, "ah, sou muito travada", e eu era travada mesmo, demorei, que dizer, eu acho que a minha filha tá um pouco mais...né? Menos travada do que eu, a gente tem uma relação legal, que eu acho que é legal, a gente conversa, ela me procura prá falar algumas coisas, mas eu não quero, quero que ela seja mais livre, leve e solta, mais do que eu fui, né? Mesmo nesse contexto tão complicado... É, esse é o desejo da nossa geração, é verdade.

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“ Eu tenho umas fés...”:

Acredita em astrologia, na reencarnação e tem flertado com o budismo na

tentativa de compreender melhor aspectos de sua vida que estão no plano espiritual.

Eu tenho umas fés, sei lá se é essa espiritualidade, essa busca, não sei se isso é infantil, não sei se isso é maduro, imaturo, entendeu? Mas eu tenho, que eu acho que isso que me segura um pouco. Hoje em dia eu tenho muito lido umas coisas em relação ao budismo, sobre a medicina tradicional chinesa, né? Que eu acho que me dá algumas respostas. Teve um momento da minha vida que eu fui procurar algumas respostas do ser ou não ser, eis a questão existencial no espiritismo, através dos romances espíritas, eu tenho amigas espíritas, né? Que eu acho que são...então, tem uma série de, de, sabe? De, de...que me respondem algumas coisas, não todas, né? Mas algumas coisas...Astrologia. Eu acho muito interessante o estudo da astrologia... Mas aquele estudo não assim, "olha, você é capricórnio, então você é isso, isso aquilo", não, isso não. "Seu dia vai ser assim", não. Mas eu gosto do estudo dos astros na hora que você nasceu, o que que indicavam os astros, tava assim, assim, assado, porque traça um perfil... Eu acho que...esses estudos, eles revelam tendências, possibilidades. Possibilidades, tendências, mas não são determinantes, porque tem teu livre-arbítrio, entendeu? Porque você vai escolher. Eu acho que ajuda um pouco no conhecimento, no teu auto-conhecimento, mas não a ferro e fogo, não cegamente, entendeu? Não cegamente. Porque eu acho que o poder ainda hoje...porque...tenho pensado muito sobre isso, quanto mais eu vivo, mais eu acho que a decisão é sua mesmo, né?

Embora diga que, quanto mais vive, mais percebe que somos donos de

nossas escolhas, acredita que sem a busca de aspectos relativos à espiritualidade e

ao místico a vida torna-se muito árida.

Mas eu gosto de ver astrologia, cromoterapia eu acho muito interessante, "olha, tal cor influencia, porque tem estudos", né? Então, se eu tô muito triste, se eu tô desernegizada, eu gosto de botar um vermelho, vermelho é vida, vermelho é sangue, o que que te tá a vida, né? Ahn...eu penso que só isso, só essa questão material nossa, não explica o viver sozinha, né? Eu acho que não explica, eu acho que fica muito árido...

A origem de classe social:

Marly não esquece sua origem de classe e tampouco a rejeita. Acredita que

as condições nas quais vivia se assemelhavam em precariedade às que observa

hoje entre a população mais pobre.

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Quando meu pai comprou o terreno lá no Lauzane, não tinha luz elétrica, não tinha asfalto, a casa sem reboco, quem morasse nos Jardins naquela época dizia que eu morava numa favela. Não tinha escola perto, não tinha hospital, não tinha posto de saúde, eu era uma favelada? Porque hoje eu vejo a favela, a favela tem uma creche, tem um posto, claro, eu não tô querendo... Entre eu, meu pai e minha mãe tem uma diferença, não só de geração, de 35 anos, mas cultural muito grande. Eles mal foram na escola, mal tiveram uma família e eu tive uma família e fui prá faculdade, né?

Acredita que os brasileiros são frutos de uma mistura entre diversas

raças/etnias e que há uma cultura que enaltece o estrangeiro e deprecia o nacional.

Acha que precisamos nos apossar de nossa própria história e promover uma grande

revolução na educação.

Primeiro a identidade do brasileiro, que a gente se, a gente toda hora tá dizendo que brasileiro é uma porcaria, que esse país é uma porcaria, não é? Que tudo que é de fora é melhor, não tô dizendo que o que é de fora não seja bom, mas nós também somos, mas a gente vive culturalmente o tempo todo isso, né? Nós somos uma mistura de raças mesmo, mas nessa mistura de raça tem alguma coisa, que a gente não se apossa, que a gente não se apossa, entendeu? O brasileiro é ruim, o Brasil é um país que é uma merda, que tem instiuição...olha, precisa avançar bastante, mas isso é meu, eu tenho que começar a botar a mão na massa, é isso, né? Senão...e a grande revolução tem que ser na educação, meu bem, tem que botar dinheiro nesses professores, sim, tem que fazer a gente pensar na gente, nossa história, entendeu?

Atualmente, coloca-se num lugar entre base e o poder.

Agora, não sei como vai ser feito isso, né? Porque se um dizem que se nós, se não tiver um movimento da população pedindo isso, não acontece, né? Se a base não cutucar, lá não balança, mas do jeito que a base tá, quem é que vai fazer balançar, nós, que tamos (...) do meio, que força que a gente tem? Eu não sei também, não sei isso...

A identidade profissional generalista:

No início de seu percurso, Marly colocava a falta de uma identidade

profissional como um dos maiores entraves para o assistente social.

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É porque ele vem, ele vem assim, ele vem procurando ajuda, é isso a nossa profissão, é essa ajuda? Então...ajuda nós damos, mas o voluntário também dá, você percebe? O que eu quero dizer é assim, a gente não tem uma coisa que é só nossa, mais generalista impossível.

Ao final de sua narrativa, refletindo sobre sua identidade, chega à conclusão

que essa característica generalista acabou sendo uma vantagem para ela.

Mas, eu digo, apesar de ter abandonado a profissão duas vezes achando que não ía dar certo, eu voltei prá ela, eu voltei prá ela e digo prá você que o curso é bárbaro, né? Ele, ao mesmo tempo que me, essa contradição eu vivo, ao mesmo tempo que eu não sou específica, o fato dele me abrir um leque, eu acho que me fez melhor como pessoa, o fato de ter várias visões, de ter trabalhado em várias áreas, de onde eu vim, né? Eu vim de uma classe pobre.

Agora, prepara-se para mais um desafio: a velhice.

Agora tô prá enfrentar a minha terceira idade, me preparando prá enfrentar a minha velhice, porque o modelo de velhice que eu tenho é amargo, é doente, é muito infeliz, né? Mas, vamos ver se eu consigo ser melhor, não sei...

5.3 - Luisa: a militante do PT38

Alguns poucos dados biográficos:

Luisa é uma mulher séria e reservada. Sua história se mistura à história dos

movimentos sociais da região. Nasceu e cresceu na Vila Brasilândia, filha de um

operário nascido no interior de São Paulo e de uma dona de casa nascida em Minas

Gerais. Graças ao emprego de seu pai em uma empresa multinacional, Luisa pôde

completar sua graduação na PUCSP sem precisar trabalhar.

38 Luisa Franco, 43 anos, assistente social lotada na UBS Vila Penteado, formada em 1984 [5] pela PUCSP, faz parte da equipe volante de saúde mental.

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Logo no início da conversa advertiu que, embora esteja refletindo sobre a

questão da subjetividade, essa é uma temática que acredita não ter enfrentado

ainda suficientemente. Não raro se identifica com as histórias que são contadas

pelos usuários que atende.

Quando você fez o convite, eu tava com o Walter, que é um psiquiatra, que a gente faz trabalho junto e eu ainda falei pro Walter, nossa, essa questão da subjetividade é algo que vem, venho esbarrando nela, mas é algo que eu não venho enfrentando, né?, essa discussão. Porque eu acho que esbarra na nossa subjetividade, né?, na hora que você tá com o usuário na sua frente, na hora que você tá escutando a história dele, vem muito a sua história em muitas situações do presente, principalmente se eu pensar na minha realidade, que venho de uma família operária e que, que foi difícil a construção desse conhecimento, das dificuldades que fui encontrando, dificuldade essa eu falo na educação, na escola, que não te dá uma formação.

Formou-se pela PUC em 1984, 1985, não se lembra bem, e continua

morando na região, na Freguesia do Ó. Tem dois filhos. Faz parte da equipe de

saúde mental que visita quinzenalmente as unidades de saúde do PSF para realizar

as discussões das situações mais difíceis.

Os primeiros contatos com as lideranças do movimento de saúde da

Brasilândia:

Luisa ingressou no serviço social, inicialmente para uma pesquisa, em

seguida como estagiária, no projeto PIDA39. Sua primeira atividade foi uma

entrevista com Aldeci, importante liderança da região Brasilândia-Freguesia do Ó,

que deu a ela os primeiros ensinamentos sobre a responsabilidade dos assistentes

sociais, e de qualquer pesquisador, no contato com a população .

Aldeci... uma grande liderança, né?, e nós fomos lá, enquanto estagiários, querer saber da participação, como que é a atuação da mulher, a mulher e separar a mãe, né?, como é que ela conseguia administrar essa situação, ali no trabalho dela, no dia a dia do enfrentamento dela. E foi muito interessante porque,após a entrevista com a Aldeci, ela vira pra nós e fala

39 PIDA- projeto docente-assistencial da cadeira de Medicina Social da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.

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“e aí, o estágio é isso, você vem, colhe, que que eu vou receber em troca?” (risos). Foi uma saia justa, porque a nossa função foi lá, colher dados e fazer o trabalho. E aí eu lembro que quando a gente voltou pra faculdade pra fazer a avaliação dos trabalhos eu fiquei muito brava com a professora, né? Eu falava, o que é isso? Então a Universidade só colhe das pessoas...

Participar da seleção para compor o projeto da Santa Casa foi uma indicação

de sua professora. Foi aprovada e começou desenvolver suas atividades numa

Unidade Básica de Saúde no Jardim Carumbé.

E eu fui prá...eu passei, teve um processo de seleção do projeto PIDA, um projeto docente-assistencial, que a faculdade, tinha a Santa Casa, a Cachoeirinha, tinha alguns equipamentos municipais que participavam, unidades básicas, pronto socorro, e eu passei, a minha professora falou “eu acho que é legal você tentar participar desse concurso aí que vai ter, que abriu pra PUC”. Eu participei e eu passei. Eu vim participar desse projeto. Eu fiz no Carumbé, que foi uma unidade básica que eu fiquei mais tempo e foi lá, foi no Carumbé, que eu acho que era um espaço mais organizado na região naquela época, onde tinha a Noemia, conheci a Dona Hilda, uma série de lideranças...

Essas mulheres que Luisa cita ainda são importantes na região, possuem o

conhecimento orgânico da cultura e ensinam muitos profissionais a desenvolver seu

trabalho. Quando iniciou, sua tarefa na comunidade era a organização de grupos de

adolescentes para discutir as temáticas referentes à sexualidade. Colocou cartazes,

divulgou o trabalho como pôde, sem sucesso. No primeiro encontro, apenas um

adolescente apareceu. Quando foi conversar com Noêmia, liderança da região,

compreendeu o motivo do insucesso.

Que tão até hoje, foram muito importantes pra mim porque, era interessante porque, eu lembro da Noemia, quando a gente tentou fazer o primeiro trabalho com adolescentes, a gente espalhou cartaz, né?, em torno, pra poder cuidar, mexer com a questão da sexualidade, se aproximar desses adolescentes e a Noemia falava assim, e aí a gente “puxa, Noemia, a gente investiu, ninguém apareceu, apareceu um só que veio, mas viu que não tinha ninguém, acabou indo embora, né?, e tal...” , aí ela falou assim, “vocês não sabem mesmo se aproximar dessa comunidade” (risos). Então, ela é uma liderança ensinando lá os acadêmicos como é que... e aí ela falou assim, “olha vocês vão ter que ir lá, casa a casa, se aproximar, se apresentar, quem são, o que querem fazer, e aí sim as pessoas vão começar a conhecer vocês e aí vão se aproximar”. E foi muito legal, a gente pensou, bom, ainda aquela época não tinha o PSF, como é que você vai se aproximar, entrar numa região como aquela, então ela falava, “não, então começa o trabalho aqui com a gente no OSEM”, no espaço da Noemia... ,

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A reconceituação, a questão social, as políticas públicas, o lugar do serviço

social:

Luisa considera o movimento de reconceituação no serviço social uma das

expressões dos avanços que se processavam na sociedade brasileira durante a

redemocratização.

Eu acho que foi o, o avanço do movimento histórico, né?, histórico, político, partidário, que a sociedade tava vivendo, a sociedade exigindo mudança, né?, e eu acho que a reconceituação vem, vem mostrar isso, né?, e um movimento que eu fui vivendo nesse período mesmo, né?, que a mudança do currículo, né?, da faculdade, havia uma discussão em torno de como é que a Universidade tinha que começar também a fazer o ingresso dos estudantes na questão dos estágios, né?, teve uma série de discussões acontecendo...

O trabalho em comunidade, as políticas públicas, a assistência são os temas

que mais a interessam no debate contemporâneo do serviço social.

Eu acho que as políticas públicas, a discussão da assistência, como é que você enfrenta a questão da assistência, a questão do trabalho com comunidade, essa era uma questão que me chamava muito, né? Sempre me chama muito. Na hora que você vai pra instituição você vê que não é bem assim. Porque você esbarra no espaço institucional, não é tudo que dá pra acontecer ali dentro. Uma parte você dá pra acontecer, outra não dá, você precisa ampliar essa rede.

O Programa de Saúde da Família:

Acredita que o trabalho dentro do paradigma institucional implicava numa

limitação profissional, que vem sendo vencida através da experiência de trabalho no

PSF. Entretanto, é sempre questionada quanto à perda da especificidade

profissional.

Eu achava que esse conhecimento específico, que é do assistente social, é ele que cuida da questão social, é ele que vai fazer a visita domiciliar, é ele que pode pensar na questão da documentação do paciente, o quanto que eu acho que esse meu trabalho que eu venho fazendo hoje, com PSF, me fez também repensar que você pode trocar conhecimento e nem por isso você tá perdendo seu lugar.

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Você não deixa de ser um assistente social, porque eu escuto muito as pessoas falarem pra mim “ah, você é mais, você está mais no papel de psicóloga do que de assistente social...”

Para Luisa, uma escuta qualificada não contradiz o trabalho do assistente

social. Exemplifica com o trabalho com famílias. Dentro do paradigma do trabalho

institucional, ouvia a questão pontual, o fenômeno, não podia compreender e

abordar o complexo de relações nas quais toda família está envolta.

Parece que o fato de você fazer a escuta do outro, né?, e escutar o outro não só na sua questão “eu quero um passe de ônibus”, mas que escutar o outro naquela dificuldade que ele tem, porque que ele chegou naquelas condições, e ajudar ele a pensar na relação dele com aquela relação que ele está hoje, né?, que a vida é dele, como é que ele ajuda a construir também caminhos de saída. (...) na hora que eu vou numa casa, numa família, eu ía especificamente pra atender aquela situação dada, hoje eu tenho que reunir todos da casa, né?, reunir todos e ouvir todos. Não que eu não ouvisse a todos, mas eu não ouvia a todos junto, assim, partilhando o sofrimento com todos.

Parece ser opinião corrente que ouvir o sofrimento sem ter um passe ou uma

cesta básica para oferecer não é trabalho de assistente social e, sim, de psicólogo.

Luisa também pensava dessa forma e, hoje, após essa experiência profissional,

percebeu quanto ela própria se modificou.

Isso parece que não era tema nosso, não éramos nós que tínhamos que fazer isso. Essa parte tinha que ser do psicólogo. E eu vejo que não, que não é isso, né? E o quanto eu me abri pra também enfrentar isso me fez diferente.

O espaço institucional, para Luisa, ao mesmo tempo em que limita, protege,

acomoda. Trabalhar territorialemte exige um reposicionamento.

Eu não fazia isso antes, eu acho que isso, esse trabalho, acho que o PSF vai te fazer pensar também numa mudança de lógica de entendimento, né?, que é a problemática daquelas pessoas tem que ser ajudada para ser construída, pensar em caminhos ali com o grupo, junto com o grupo e não fora, porque era muito mais cômodo, no espaço institucional eu até estou muito mais protegida, fazer essa conversa do que lá no espaço do cidadão, né?, que é casa dele, eu vou estar tendo que enfrentar outras diversidades que podem estar presentes, e ajudar na, na condição de saída dali junto, porque é coletivo, né? Acho que isso me fez mudar muito...

Luisa sempre teve uma participação ativa em sua região como cidadã,

portanto não lhe era estranho o trabalho extra-institucional. Não hesita, coloca-se

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claramente, com a segurança de quem sabe percorrer com tranqüilidade os

caminhos políticos.

Apesar de ter esse espaço protetor, eu sempre fiz a minha, fora do espaço institucional, que aí eu me colocava enquanto cidadã, eu me permitia a ousar um pouco mais, porque aí eu podia militar, eu podia, eu podia estar junto com a comunidade, fazer uma discussão até do que se representa a instituição, a quem ela também vem servindo, que isso eu não podia fazer de dentro, mas isso no fórum eu podia fazer, ajudar as pessoas a pensarem que aquela instituição ela é, ela não é um espaço fechado para os profissionais que estão lá, mas é um espaço também de circulação do usuário e o usuário tem direito a poder exigir daquele espaço, né? E isso eu estava livre para falar. E até ajudar as pessoas a reinvindicar, naquele espaço institucional, mudança de atitude, na assistência, na hora que, uma assistência mais de, um pouco mais próxima no sentido de, muito mais, como se diria, mais preventiva, uma assistência que fosse muito mais próximo do que uma assistência que só fica no curativo, ali, fechados nos seus consultórios, esperando só aquela demanda chegar, que fosse atrás dessa demanda, que era importante isso. E eu acho que eu fui descobrindo também aí...

A militância partidária em xeque:

Foi militante política de base do Partido dos Trabalhadores desde sua

fundação. Sempre realizou trabalhos junto à população, visando à organização das

forças sociais através de discussões políticas. Entretanto, tem críticas quanto à

condução do partido e à própria atividade militante.

...eu acho que venho me decepcionando com o partido, né? Que assim, também não posso condenar o partido por todas as pessoas, que eu acho que tem gente interessante ainda dentro do PT, então não dá pra jogar tudo fora, mas também não dá pra mais defender, não consigo mais fazer isso... Uma coisa que antes eu fazia, que eu acho que eu também aprendi, né?, eu acho que eu também, assim, eu acho que eu aprendi a criticar, eu aprendi a às vezes induzir as pessoas no voto, que eu acho que isso eu não faço mais, eu acho que eu tento jogar a informação, né?, e deixar na mão do que as pessoas decidam, se ela quer ou não...

Luisa ainda acredita na importância da “luta”, palavra tão usada na militância

política no campo da chamada “esquerda”. Ao relatar um recente embate com a

subprefeitura Brasilândia-Freguesia do Ó pôde perceber a rápida transformação das

pessoas na direção de um debate organizado e com possibilidades reais de abertura

de um diálogo. Isso a faz não desistir.

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E foi legal porque foram eles que foram percebendo e questionando isso. E no último encontro, que já tava a presença do subprefeito, as pessoas se inscrevendo pra falar, não tinha mais aquela desorganização, só que eles perceberam que desorganizados daquele jeito eles não íam conseguir nada, não tinha condição de diálogo daquele jeito. E eles se deram conta que tinha um outro jeito de fazer, pra construir...

Encontra-se num momento de reflexão a respeito de seus valores. Sabe que

tudo o que tem visto, ouvido e vivido ressoa subjetivamente, e acredita que hoje

necessita conhecer-se melhor, separar as suas questões. Percebeu que há sempre

uma relação intersubjetiva em jogo nas relações profissionais.

Mas eu acho que isso me fez pensar o quanto, assim, por mais que eu fale, ó, é importante o planejamento familiar, é importante a senhora usar pílula, falar pro marido usar camisinha, sem entender, e eu acho que isso eu fazia e acho que fui mudando, sempre, que eu acho que isso me fez, quando eu me deparo com a minha subjetividade e com a do outro, o quanto que o outro tá entendendo isso,o quanto, o que que é a sexualidade dele, como é que tá prá ela, prá ela poder dá espaço de entender até a pílula, entender...porque se eu não tenho nem a dimensão do meu corpo, se não tem nem o entendimento do que eu quero, falar em pílula então é abstrato, coisa extremante distante, não tem... mas isso foi a partir do momento que eu fiquei olhando prás pessoas e prestando atenção mais nas pessoas. Acho que tentar entender mais o que tá pro trás do pedido e aí não de cara olhar o pedido e se restringir a ele, mas poder escutar esse pedido um pouco mais profundamente. Eu acho que isso foi, foi sendo amadurecido com o tempo.

Acredita que tem fugido à análise da própria subjetividade, que precisa

conhecer-se melhor, posicionar-se diante da diversidade de valores e sentimentos

com os quais vem se deparando. Acha que a discussão das situações em equipe, o

aprendizado coletivo é o fundamental para o desenvolvimento do trabalho no PSF, o

suporte para desenvolvimento das ações em territórios tão desafiadores.

Eu venho fugindo, né? Mas eu acho que é uma coisa que vem se aproximando de mim, eu vim aqui (risos)...não, mas isso é bem, bem antes...que é fazer a terapia, é fazer a minha terapia, entender o meu eu aí, meu eu no meio dessa miscelânea onde eu tô metida, com trabalho e tal. Isso que eu falava, você esbarra na subjetividade do sujeito, você esbarra na sua , né? Eu acho que sim, eu acho que além da supervisão institucional, acho que é fundamental, principalmente pra quem faz o trabalho na saúde mental, com o PSF hoje, acho que é fundamental ter essa supervisão, essa discussão, essa troca, que eu acho prá você sair até mais fortalecido ainda e poder ajudar a pensar em caminhos que, em coisas que você foi se esbarrando aí no sofrimento, que é seu...

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5.4 – Luzia : Paixão pela Vila Brasilândia40

Cumprindo o desejo da mãe:

Luzia traz outros traços da cultura paulistana. Descendente de italianos, é

uma pessoa espontânea, despojada e tem no plano afetivo-familiar uma grande

âncora para refletir sobre suas experiências. Nasceu no Bairro do Bom Retiro, era

filha de uma servente de escola e de um contador. Teve grande apoio da sua

numerosa famíla para poder estudar.

Tenho 2 irmãos, eu sou a filha, a única mulher da... da casa e, a minha mãe, ela era servente de escola, né? E o meu pai, ele era, trabalhava com contabilidade. O sonho da minha mãe, porque assim, a minha mãe era uma pessoa que gostava muito de estudar, tal, e não tinha condições financeiras, e o sonho, quando ela teve uma filha, o sonho dela era fazer que a filha dela fosse estudada, fizesse faculdade, tal, e ela tinha isso, que era uma, um ideal dela, tal. Porque assim, meu pai era uma família de 9 irmãos e eles tinham muita união familiar, prá você ver que na minha faculdade foram eles que custearam, foi a família do meu pai. Eles eram muito unidos, sabe? Você não via desavença, nem nada, se um precisava tava sempre o outro socorrendo, e isso passou pros filhos, porque assim, morreram todos e os sobrinhos, até hoje, uma vez por ano, se encontram. São todos casados, são avós, tudo...

Os valores familiares:

Os valores adquiridos através de suas relações parentais são até hoje um

guia para compreender os seres humanos e pauta suas condutas. Honestidade,

condescendência e respeito são alguns deles.

Meu pai, ele tinha, meu pai era uma pessoa muito honesta e ele sempre frisava muito isso com a gente, meu pai era de uma família muito tradicional lá do bairro, né?, e ele sempre foi muito honesto, prá você ver que ele era uma pessoa que morria de vergonha se caso alguma coisa desonesta acontecia na nossa família, morria de vergonha, era capaz de...Então, ele sempre passou isso assim prá gente, porque a gente, nós

40 Luzia Giosa Graciano, 50 anos, casada, assistente social formada pelas Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU em 1976. Gerente da UBS Vila Ramos

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devíamos ser pessoas de caráter, honestas, que a gente devia sempre valorizar o ser humano, nunca partir prá, pro ser humano com julgamentos, ele sempre passava isso, que assim, ele sempre falava assim, se a pessoa faz o que faz é porque tem uma razão, então não julgue antes de saber a razão, né? Então ele sempre passava isso prá gente...

Luzia ressalta a importância da harmonia familiar e percebeu recentemente

que essas referências afetivas a levaram ao trabalho com famílias.

Então, pode ser, eu, eu me toquei disso quando foi, o ano retrasado, acho que foi, eu falei “poxa vida, é por isso que eu me identifico tanto com a parte familiar, porque a minha família sempre pregou muito isso, a família”, certo? A minha...a família do meu pai não tinha desquitado, não tinha separado, sabe? Era uma família muito unida prá, assim, se alguém tava em crise eles íam lá, ajudavam, não passava despercebido ou não, simplesmente, fechavam os olhos.

Embora as famílias com as quais trabalha sejam bastante diversas da sua.

Totalmente diferente, não tem nada a ver, são famílias que tão desagregadas, são famílias que, que tem mil problemas, que não tem senso familiar, não existe neles, né? Eu acho que é porque realmente não tiveram uma educação, elas foram já, já na, antes, pelos pais deles, que a gente percebe, eles foram já abandonados. E aí, assim, eles não têm uma ligação tão grande com família, então é totalmente diferente da minha, da concepção, né? Apesar de que assim, como eu falei, eu sempre, meu pai ensinou que a gente não podia fazer julgamento de nada, eu não julgo nada, mas eu tenho certeza de que, assim, são famílias que não tiveram nenhuma afetividade, né? Por, pela própria condição, pelo próprio desenrolar aí da vida deles, né? São poucas as famílias que você vê que tem uma união, mesmo, você encontra, você não vai dizer que você não encontra, você encontra, mas são muito poucas, muito poucas. Então, são famílias totalmente diferentes daquelas que eu tinha como, como...como é que se fala? Como ideal, como experiência, né?

Entretanto, não permite que suas experiências interfiram no seu trabalho.

...mas isso não me afeta em nada, não me afeta em nada, porque assim, quando a gente discute os casos eu ponho sempre, eu coloco sempre prás pessoas prá gente verificar o outro lado da família, tal, então isso não tem nada a ver.

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A escolha da profissão:

Apesar de desejar ser médica, sua condição financeira não permitia que ela

cursasse uma faculdade de medicina. Cogitou inicialmente psicologia, mas acabou

entrando para o curso de serviço social, que parecia mais próximo do que desejava

fazer como profissional.

Através, assim, eu trabalhei numa firma onde tinha psicóloga e assistente social e aí eu fui atrás prá saber o que que era, o que que era as duas profissões. Comecei a ler também, já lia, já tinha um maior entendimento de que eu queria fazer, então eu fui procurar. E aí eu conheci, tanto a parte de psicologia quanto a parte de serviço social e lá na fábrica onde que eu trabalhei a parte de psicologia era muito voltada a testes, sabe? Você não trabalhava bem o, o funcionário, você trabalhava mais na área de recursos humanos, seleção de recursos humanos, né? Que era só aplicar testes, verificar se tinha condições ou não. E já na parte de serviço social, não, você não só trabalhava o funcionário, você fazia visitas prá saber o que tava acontecendo com ele, na casa dele quando ele apresentava problemas, tudo, e aí eu falava, não, é isso que eu quero, né? É por aí que eu vou. E aí, então, eu segui a carreira de assistente social.

Teve também sua passagem pelo curso Normal, percurso comum às

mulheres de sua geração.

Quando eu me formei no, eu fiz colegial e fiz o Normal junto, que eu queria prestar faculdade. Até então eu ía prestar faculdade de medicina, que eu gostava muito de, da área médica. Só que eu não tinha, minha mãe, minha família não tinha condições financeiras prá isso nem nada e aí eu comecei a escolher algumas profissões, aí escolhi psicologia e conheci um pouco do serviço social. Entre uma e outra faculdade, eu prestei prá serviço social. Aí a minha mãe batalhou prá conseguir uma bolsa de estudos, aí ela conseguiu, porque minha mãe sempre foi muito batalhadora, vencedora, sabe? Aí ela conseguiu, né? E aí então eu comecei a fazer a faculdade.

No início do primeiro ano, pensou em desistir da porque as disciplinas eram

muito teóricas e não a agradavam. Atendendo ao conselho da mãe, persistiu.

No primeiro ano, você sabe, primeiro ano é um ano todo de, de...teoria, mas assim, voltada nada pro serviço social, né? De âmbito geral. Eu comecei a falar, não, será que é isso que eu quero, tal, não sei o quê. Minha mãe falou “espera, espera o outro ano”, também ela falou “vou gastar dinheiro, depois não...não, espera, tal”. Aí no 2° semestre já comecei já me identificar com a carreira, com a profissão e aí realmente foi, tal.

Atualmente, encontra-se distante dos temas do serviço social. Quando faz

algum curso ou lê algum texto são referentes à área da saúde pública ou sobre o

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PSF. Mesmo assim, sempre lê o informativo do Conselho Regional. Os autores dos

quais se recorda são Maria Lúcia Martinelli, Ursula Karsh e Miriam Veras Baptista.

Os primeiros empregos:

O primeiro emprego de Luzia foi justamente na área da saúde, num pronto-

socorro municipal, em 1976. O serviço público era de difícil ingresso.

Quando eu terminei a faculdade, aí eu comecei a correr atrás de emprego, né? Naquela época, prá entrar na, no serviço público, era muito difícil, né? Você tinha que ter pistolão, não tinha concurso público nem nada, tal. E aí saiu no jornal e o meu pai que viu e falou que a prefeitura ía abrir pronto socorros na época e tava selecionando profissionais, era seleção, não era concurso público, profissionais prá essa área. Aí eu fui, me inscrevi, tal, e aí então eu entrei, né?...pelo, por essa seleção, prá fazer, prá trabalhar em pronto socorro na prefeitura como assistente social. Aí então foi que eu comecei a minha vida pública na prefeitura...

Foi contratada para trabalhar em Perus. Conta que ficou espantada com a

distância.

Dia 2 de janeiro eu comecei a trabalhar e eu fui trabalhar no pronto socorro de Perus, longe à beça. Pegava trem prá chegar, porque não tinha condução, era já difícil, né? Naquela época a gente trabalhava 12/36, mas amassei muito barro lá, porque lá em Perus era uma, era, prá mim era outro município, né? Longe, tudo, e aí eu comecei lá, fiquei lá 3 anos, né?

Passou também pelos hospitais do Tatuapé e Pirituba. Quando se casou, em

1982, foi morar na Freguesia do Ó.

Até que eu, eu me casei, né?, e aí o meu marido era daqui da região da Freguesia do Ó e eu vim morar prá cá, prá Freguesia do Ó, em 1982. E aí eu comecei a me identificar muito com...eu trabalhava lá no Tatuapé, comecei a me identificar muito com essa região, no começo eu sofri muito por ter, morar na periferia, né? Porque era bem periferia mesmo, eu...morava num bairro, Bom Retiro, ele não era um bairro rico nem nada, mas era um bairro central, né? E quando eu vim prá cá eu fiquei muito assustada, né?, com o bairro daqui, mas aí eu comecei a verificar algumas coisas que tinha esse bairro, né? Ele era um bairro tradicional, ele era um bairro assim que tinha uma, uma...umas casas tombadas, que eu achava maravilhoso, tudo, e comecei a me identificar. Aí eu trabalhava no hospital Tatuapé, prá mim tava muito difícil, porque eu morava aqui na Freguesia, prá mim ir lá pro Tatuapé era muito, muito longe. Aí eu pedi uma transferência prá cá e aí consegui uma transferência e vim trabalhar no pronto socorro da...João Paulo, né?

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Foi, inicialmente, no pronto socorro da Freguesia do Ó e, depois, no posto de

Saúde do Jd. Icaraí que aprofundou seu contato com a população e algumas

lideranças comunitárias.

E aí, no pronto socorro da João Paulo eu comecei a ter contato com as pessoas da região que eram a comunidade, né? Os líder de comunidade, tudo. Aí eu comecei a me identificar um pouco com eles, tudo, e aí eu comecei a ficar muito atraída pela parte dos postos de saúde e aí teve uma possibilidade de eu ir trabalhar no posto de saúde do Icaraí, né? E aí eu fui prá lá antes de abrir o posto de saúde e aí eu queria conhecer a comunidade de lá e aí eu fiz uma pesquisas participantes, né? Aí eu fui atrás das pessoas que moravam muito tempo no bairro, prá conhecer mais o bairro, prá saber qual que eram o ideais deles em termos de saúde, em termos da...qual a expectativa deles em relação com a abertura do posto de saúde, tudo.

O início da paixão pela Brasilândia:

E, assim, foi se apegando ao local, às pessoas e ao trabalho na periferia.

E aí assim, fiquei, fui me apaixonando, né? Me apaixonando, me apaixonando e assim, até essa pesquisa foi muito importante, porque assim aí eu consegui conhecer um pouco esse lado do bairro do, do subdistrito da Freguesia do Ó, porque era Brasilândia.

Sua origem de classe social foi determinante nessa relação de afeto com a

população da região.

E aí eu comecei a me identificar muito, eu achava que tinha, na época não se falava em tanta violência, né? Mas assim, mas era um bairro já violento, mas não era tanto como é hoje, eu comecei a levantar esses dados junto com a população e me identifiquei muito com essa população, até porque eu também não sou de uma família rica, né? Eu acho que foi tudo com sacrifício que eu consegui na vida, então eu comecei a me identificar com eles, e aí eu...fiquei muito envolvida com esses movimentos sociais que existiam na área, de líder, na época tinha o movimento de saúde, eu comecei a me engajar nesses movimentos, e foi aí que, assim, eu comecei a me apaixonar um pouco por essa região, né?

Luzia percebia o contraste que existe entre a Freguesia do Ó, bairro de classe

média, e a Brasilândia, bairro que concentra pobreza e violência. Não conseguia

compreender a razão dessa fratura social num território geográfico único.

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De ver o contraste dessa região, porque essa região é uma região tradicional, né?, de São Paulo existe um grande contraste, porque se você pegar uma área boa da Freguesia, né?, você vê o contraste com uma área periférica, né? Então a Brasilândia prá mim era assim, puxa vida, eu não conseguia entender como tão próximo da Freguesia do Ó e ter tanta pobreza, tanta violência, eu não conseguia entender isso, puxa vida...

Observou a dinâmica do empobrecimento.

...mas assim, eram as pessoas que tavam migrando de outros bairros, porque assim, a condição social já começou, financeira, já começou a ser achatada e o pessoal procuraria realmente bairros mais longe do centro por causa da questão financeira, de pagar menos aluguel. Então assim, começou, você via nitidamente o aumento de população que existia aqui, porque quando eu cheguei não era uma população alta, mas em 2 anos aquilo cresceu tremendamente. Hoje, nem se fala. Eu fiquei uns tempos sem ir lá pro lado da Brasilândia, quando fui me assustei de tanto que aumentou a população.

A administração municipal de Luiza Erundina:

Conta que saiu da UBS Jardim Icaraí quando recebeu um convite para

compor a equipe de coordenação do Distrito de Saúde da Freguesia do Ó. A partir

dessa experiência percebeu seu gosto por administração.

Da Luiza Erundina. E aí, assim, a gente trabalhou junto lá, fizemos um trabalho legal, tal, aí comecei a me identificar muito com administração, né? Apesar que na faculdade eu tive, na minha época teve, no currículo tinha administração, eu era boa na administração, gostava muito...

A era Maluf/Pitta:

Esse momento da prefeitura do município de São Paulo fez Luzia voltar para

o trabalho em unidade de saúde, por não querer participar da administração que se

iniciava. Foi um período muito difícil, com todo tipo de barreira para o trabalho.

...e aí foi que eu tive a maior decepção da minha vida, porque eu fui trabalhar no centro de saúde Edgar Mantoanelli e aí lá eu comecei a querer por em prática a minha vivência profissional, querer fazer grupos, querer

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trabalhar mais com família, não ficar só no indivíduo, porque eu acredito que, assim, você não pode trabalhar o indivíduo só, isolado da sua família, que tudo que acontece com uma pessoa é proveniente, decorrente da família, né? E assim, eu fui muito barrada, né? A assistente social que tava na época lá falava “ah, não, você não faz nada disso”, sabe? Eu comecei a me sentir muito inútil como profissional e aí eu fiquei tão desiludida, falei não, eu não quero ficar aqui porque...aí eu senti o que era o serviço público, até aí não tinha sentido, porque eu sempre...sabe?(...) Nunca, nunca tinha caído, não, e assim, de, das pessoas, sabe, da minha profissão pensarem dessa forma, sabe? De não poder ficar 8 horas de serviço, que eu tinha que fazer 6, 4, sabe? Porque se eu fizesse todo mundo teria que fazer, então tava me sentindo muito mal, foi uma época muito difícil prá mim, porque eu falei assim, “não, não quero ser funcionária pública, eu quero ser uma profissional”.

Depois dessa experiência, foi trabalhar no hospital do Mandaqui. Na época,

atravessava dificuldades financeiras e não possuía veículo próprio, mas mesmo

assim aceitou o trabalho longe de casa, na área administrativa, distante da prática

do serviço social.

E aí então eu falei “não, não quero ficar aqui”, porque eu já estava desiludida, então eu falei, “poxa, se é isso, né?, não quero”. Aí eu recebi um convite prá ir trabalhar lá no hospital do Mandaqui, aí fui....não quero saber, eu não tinha carro porque tava passando por uma situação financeira difícil, pagava apartamento e chegou uma época que apartamento aumentou muito e a gente, prá poder pagar, a gente teve que vender carro, tudo, né? E aí fui, falei “não faz mal, é longe mas eu vou, mas pelo menos eu vou ter minha satisfação profissional”, porque eu acredito que, assim, se você não tá bem com você, você não tá bem com a sua parte emocional, psicológica, financeira, não tá bem com nada. Eu tenho muito disso, acho que a gente precisa tá bem no conjunto prá você poder ter suas realizações. Aí fui trabalhar lá no hospital do Mandaqui, trabalhar lá, aí eu fui prá parte administrativa, porque prá lá eu não fui como assistente social, eu fui como a parte administrativa, e lá me deu uma experiência muito grande em termos da parte administrativa, que me apaixonei, sabe? Falei, bom, agora não sou mais assistente social, sou mais administrativa. Aí eu fiquei lá, tal, aí uma pessoa que eu sou muito ligada, tal, precisava de uma pessoa de confiança prá trabalhar com ela, me chamou, aí eu fui pro Estado e... comissionada no Estado prá resolver um problema administrativo que tinha no departamento que ela estava, que tinha uma...que tinha tido fraude, tudo, e ela precisava de uma pessoa de confiança prá fazer uma auditoria naquele local. Ela me chamou, eu convidei...ela me convidou, eu falei bom, mais um desafio, né? E como, assim, quando as pessoas te dão muitas...quando as pessoas são legais com você, você não pode dizer não prás pessoas, né? Porque essa pessoa tinha sido muito bacana comigo por um bom tempo, tal, então tá, vou te ajudar. Então eu fui, fui pro Estado.

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O Programa da Saúde da Famíla:

Na Secretaria do Estado da Saúde encontrou sua nova paixão: o Programa

de Saúde da Família (PSF). O programa continha o que ela acreditava ser essencial

para um trabalho em saúde pública: o trabalho com a família.

...até que fiquei conhecendo o programa de saúde da família, né? Foi no Estado e aí eu me apaixonei, era tudo que eu queria, que eu pensava, assim, a família era o centro de tudo, ela insere e que nada a gente conseguia se a gente não tivesse uma interação com ela mínima, que todas as relações do indivíduo era dentro da família. Acredito que, assim, é pela parte familiar que a gente consegue as mudanças, que a gente consegue fazer com que o indivíduo tenha outras perspectivas que não sejam aquelas que ele realizou, se você não conseguir mudar isso dentro de uma família, você não vai conseguir mudança no indivíduo, porque assim, as mudanças que você consegue no indivíduo sozinho é temporário, a família toda tem que tá...embuída de ajudar na mudança, o que for o caso, dependendo do caso, e eu sempre acreditei nisso. Porque assim, desde que eu fazia faculdade, eu me interessava muito com a parte familiar, né?

Interessou-se em trabalhar na UBS Vila Ramos como assistente social.

Porém, foi indicada para ser a diretora da unidade, com a tarefa de implantar o PSF,

e permanece nessa função até hoje. A paixão pelo trabalho persiste.

...fiquei lá, tal, tal, e aí surgiu a oportunidade de vim aqui pro, pro, pro posto Vila Ramos e aí eu aceitei, eu aceitei, e aí, assim, não pensei em vir como diretora, sim vim prá trabalhar. Aí eles falaram “não, que como assistente social naquele momento não era necessário, a gente precisava de uma pessoa da parte administrativa”. E aí eu venho prá cá como diretora, né? Isso foi em 1998 e tô aqui até hoje, então assim, é um programa que eu me apaixo...sou apaixonada por esse programa, por isso que eu tenho muita garra por esse serviço, em função por eu acreditar nesse programa, se eu não acreditasse eu não taria aqui, que eu sou uma pessoa que, assim, se eu não conseguir me identificar com o que eu estou fazendo, eu me retiro, não importa que eu tenha perda salarial, não importa nada, né?

Seu trabalho atual a aproxima do que acredita ser o eixo para a mudança de

qualidade de vida das pessoas: o âmbito das relações familiares.

Sempre me interessei muito pela parte familiar. Então falei “não, é para aí que eu vou”, então por isso que eu cheguei aqui, né? Essa é a minha história de vida.

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A religiosidade:

Luzia se diz católica, como sua família.

Eu sou católica, não sou apostólica romana de freqüentar todo dia, mas acredito em Deus, a minha família sempre foi católica, gosto muito da parte espiritual, espiritualidade, gosto muito de ler sobre...

Acredita que a vida material é apenas um lado da existência. Um acidente

sofrido há muitos anos foi o que detonou sua busca por uma outra dimensão.

É, Alan Kardec, eu gosto muito de ler, eu gosto muito de saber, porque acho que, acho que falta prá nós é saber o que acontece lá do outro lado, tipo...E eu sempre me identifiquei muito com isso, até porque eu tive um acidente e nesse acidente eu me senti em outro plano. Depois que eu me senti em outro plano, eu queria conhecer o que era isso e aí eu fui ler muito sobre Chico Xavier, Alan Kardec, li muito, né? Então, gosto muito, gosto muito dessa parte espiritual, mas em termos de leitura, não pratico nem nada, gosto de ler isso, mas assim, sou católica, vou, uma vez por mês pelo menos vou na, na missa, tal, meus pais.

O serviço social no Programa de Saúde da Família:

Luzia é uma defensora ferrenha do PSF. Acredita na capacidade resolutiva do

programa. Compartilha da opinião que o assistente social, assim como o médico

psiquiatra e o psicólogo, não devem compor as equipes mas, sim, auxiliar no

planejamento do atendimento.

Olha, eu até fui muito, como assistente social fui muito...ah...criticada na época quando implantou o programa de saúde mental nas unidades do Qualis, porque eu acredito que é assim mesmo que deve funcionar. Eu acho assim, que o assistente social, o psicólogo e o psiquiatra ele tem que dar apoio ao agente comunitário, à equipe de saúde da família, prá poder trabalhar com os casos, porque quem trabalha são essas pessoas, né?

Sua justificativa está na necessidade de mudança de paradigmas.

E se você pegar o serviço social como tradição, né?, e a psicologia, vira mais uma coisa clínica, de atendimento individual, né? Não o assistente social, mas o psicólogo, e fica muito departamentalizado, é o psicólogo,

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agora não é mais a minha vez, agora é com a assistente social, né? E no programa de saúde da família não é isso, né? É em conjunto, é em equipe.

Defende que o assistente social é um profissional assessor, educador e

planejador.

Então, o serviço social, ele tem condições de praticar na equipe, tá? Orientar os profissionais que tão diretamente ligados com a família ou mesmo ele mesmo atender a família, mas não individual, em conjunto com outros elementos da equipe. Então, acho que, prá mim, eu vejo com bons olhos, eu acho que é por aí mesmo, eu acho que a gente não constrói as coisas sozinho, individual, eu acho que a gente constrói em equipe, né? Então, hoje, o assistente social, nós temos um assistente social e que, não dentro, dentro da equipe de saúde mental...

Estabelece uma diferença entre função e papel para sustentar sua análise do

trabalho em equipe.

Papel de assistente social todos nós temos, papel de psicólogo todos nós temos, agora a função é diferente, quem vai desenvolver a função é o assistente social, porque eu tenho essa, essa diferenciação de papel, papel assim, todos nós temos que ser humanos, né? Se eu precisar de um copo d'água, não preciso pedir um copo d'água prá, prá serviçal, posso pedir prá qualquer pessoa, todo mundo tem o papel de dar um copo d'água prá alguém...

Acredita que o trabalho em equipe trás a possibilidade de circular a

responsabilidade, sem perder as especificidades.

É, mas aí quando existe o caso específico, isso que eu tô dizendo prá você, quando é específico, é discutido com a saúde mental e dentro da saúde mental tem um assistente social. Então, por exemplo, se o, o agente comunitário, a gente trabalha muito com os direitos da criança, do adolescente, né? Então, assim, a gente tem casos relacionados a isso, a gente discute na equipe e convoca, quando vem, quando tem dias determinados prá equipe de saúde mental vir, a gente discute na equipe de saúde mental e que é assim, se é um caso que necessita da intervenção do assistente social, o assistente social que vai intervir, você entendeu?

Acha que a informação deve ser socializada e não um privilégio ou

responsabilidade de uma ou outra categoria profissional.

Por exemplo, se eu tenho um caso de serviço social, né?, eu tô atendendo o caso, né?, tô discutindo o caso, por exemplo, tem um recurso da comunidade, certo? Não precisa ser o assistente social prá falar que existe

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um recurso da comunidade que fornece cesta básica, não precisa ser, qualquer pessoa pode falar, certo? Se precisar de uma coisa específica, de um relatório, tal, específica do assistente social, é o assistente social que tem que fazer, certo? Agora o papel de divulgar as coisas não é só do assistente social, é de todo mundo. Porque que eu preciso só do assistente social, né, prá , por exemplo, dar um passe? Porque que eu preciso só do assistente social? Não preciso só do assistente social. É nesse sentido que eu falo.

Quanto às críticas que o PSF vem recebendo no sentido que se trata de um

programa dirigido às classes subalternizadas, com poucos recursos técnicos e

financeiros, Luzia não transige: o que interessa é o foco social do programa.

Então, mas assim, eu acho o seguinte, que, não acho que é de pobre, eu acho que, assim, o agente comunitário é o elo que existe da unidade com a comunidade, quem sabe o que tá acontecendo com aquela família é o agente comunitário. O médico, na visão tradicional, ele fica muito em cima do biológico, ele esquece o social, ele não vê que o social está interferindo no biológico, 80% dos casos que a gente vê é mais o social que o biológico, desencadeia o biológico em função da parte social e se a pessoa não tiver um vínculo com o médico ela não consegue passar prá ele a problemática dela lá atrás, né? Já o agente comunitário, ele conhece porque ele vive 24 horas perto daquela família, sabe o que tá acontecendo, sabe os riscos, você não vê nenhum, nenhuma pessoa, a gente tem muitos casos aqui, hoje já não, hoje as pessoas já se abrem muito bem com os médicos, mas a gente sentiu isso muito no começo, as pessoas que eram vinculadas à violência, os traficantes, a mãe dos, dos, dos...dos assassinos, dos presos, isso, aquilo, ela não chegava pro médico e falava "eu tô tendo pressão alta porque meu filho tá, foi preso ontem", certo?, ou porque isso, aquilo. Não, ela tinha pressão alta, né?, não, é um problema biológico, né? E o médico ficava trabalhando essa parte da medic, da medicação. Com o tempo eles começaram se abrir e a gente viu como que é diferente, porque hoje quando tem um problema de violência na área, no dia seguinte aqui a unidade é cheia só prá atender casos de pressão alta, de descompensação de diabetes, tudo, mas tudo em função do quê? Do que aconteceu.

A relação com os traficantes:

A unidade que Luzia gerencia fica cercada pelo tráfico de drogas. Há vários

pontos de comercialização de substâncias ilícitas e sua posição quanto a isso é a de

buscar uma relação pacífica, o que implica na utilização de diversas estratégias,

muitas vezes guiadas apenas pelo bom senso, e não livra os profissionais da

unidade de saúde, nem ela própria, de riscos reais.

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Na realidade, eu nem sei, viu, porque assim, às vezes eu, eu fico até um pouco preocupada que às vezes eu sou um pouco impulsiva, né? Mas eu lido assim, eu trato eles como pessoas iguais aos outros que vem aqui na unidade, né? Eu preservo muito a segurança da unidade, dos usuários e dos profissionais daqui, então assim, eu tento assim, quando eu vejo que eles estão aí, porque assim, isso tudo mundo já conhece, eles já são pessoas já conhecidas da comunidade e tudo, né?, e quando eles aparecem aí eu tento agilizar o máximo o atendimento, que a gente tem muito aqui o problema da polícia, a polícia ronda muito aqui, ronda demais, porque não sei se você sabe, final daqui da unidade é a favela, considerada a favela Divinéia, onde tem uma grande violência, né? Tem o tráfico de drogas aqui na porta do posto praticamente, você vira assim, eles ficam ali vendo pessoas comprarem, tal, não sei o quê. Eles zelam, eles cuidam da unidade no final de semana, não deixa ninguém entrar aqui, eles zelam, porque eles sabem que eles, eles, é uma, é um serviço prá eles, prá comunidade. Então eles zelam bem, conheço...

Luzia tem muitos exemplos de situações delicadas e tensas na unidade.

Chegam armados. E aí essa pessoa chamou a polícia, então veio um batalhão aqui e o cara aqui dentro, certo? Aí você não sabe qual vai ser a reação porque eu acho que a polícia conhece eles, né? Você não sabe qual vai ser a reação, então você fica...né? Numa, falei “meu Deus”, porque ele pode dar voz de prisão prá ele, qualquer coisa nesse sentido, como é que fica? Porque a minha unidade, não sei se você viu, é um corredor, não tem saída, tem um único... única porta de entrada e saída, né?

Suas tentativas são no sentido de imprimir normalidade às relações com os

traficantes.

Então, é nesse sentido, eu não tenho, assim, contato com eles de conversar com eles, nem nada, você entendeu? Mas conheço, cumprimento, tem uns, um cara que agora tá preso e, e ele tem um problema de tuberculose e eu chamei ele porque ele abandonava todos os tratamento, conversei com ele, tudo, então eu trato ele como se fosse um outro usuário, né?

Mas essa relação é ambígua. Os traficantes não somente preservam a

unidade, querem interferir em seus assuntos, sempre no registro da violência.

Mas a gente fica, eu muito mais que ansiosa, quando acontece esses confrontos aqui, porque eles não mexem com a gente, não mexem mesmo. Por isso que eu falo, eles até zelam, porque uma vez o posto foi assaltado, roubaram os vale-transporte numa época que tava em reforma e eles ficaram sabendo e eles foram atrás da pessoa, eles quiseram saber quem era, foram atrás, não por nós porque a gente não conhecia, nem nada, tinha uma desconfiança mas não podia nem abrir a boca, nem nada, então

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eles mandaram as criança vir aqui prá saber se eu queria de, eu queria auxílio deles pra ir atrás dos caras, falei “não, olha, não roubaram nada, tá tudo em ordem”, mas eles foram atrás do cara, porque sabiam. Aí deram uma, uma, um aperto no cara...

Não houve morte. Luzia conta que as mortes só se dão por questões próprias:

dívidas, brigas pelo domínio de território...

Não, não mataram, não, quanto a isso, não, pelo amor de Deus. Eles não fazem nesse sentido, o negócio deles de matar é quando a pessoa, porque assim, como ele é vinculado ao tráfico, né?, se a pessoa fizer alguma coisa contra a profissão deles, aí sim que tem, que tem guerra, tem briga...

As crianças são usadas como “aviãozinhos” e Luzia conta, com orgulho, que

já conseguiram tirar uma criança dessa condição através do trabalho de agentes

comunitários.

Por isso que eu acho legal o negócio do agente comunitário, porque o agente comunitário foi conversar com os caras que tavam fazendo as crianças aviãozinho, né? Porque assim, a gente tava trabalhando aquele caso e que assim, a gente tá, a gente tirou aquele menino da, da, porque o menino ficava muito, a mãe trabalhava, ficava na rua, e ele queria comprar doce e isso, aquilo, aquilo outro e qual que era a facilidade? Era essa, né? E a gente começou a fazer um trabalho integrado, a unidade, a Educação, porque tem a escola aqui do lado, né? Da gente tirar essa pessoa dessa vida e a gente conseguiu, a gente conseguiu isso e a gente também pediu o auxílio deles, de evitar que...não assim, a gente não fala prá eles “vocês não vão fazer isso”, não, mas assim, mostrar prá eles que a gente tava trabalhando com ele, prá ele ter uma expectativa de vida melhor, pro futuro, tal, não sei o quê e eles realmente, numa boa, não importunaram mais o menino, o menino tem 9 anos hoje, né? E a gente tá conseguindo um trabalho muito legal com esse menino até, sabe? A gente tem alguns casos que é realmente muito bonito de, de se saber. E eles, assim, não interferiram nada no nosso trabalho.

Ela acredita que o trabalho do agente comunitário em meio ao tráfico é

fundamental.

Quando a gente vai em casas que nós não podemos ir a gente tem que avisar, a gente tem que avisar, “olha”, por isso que é importante o agente comunitário, agente comunitário, nós temos casos, casas que são, casas que guardam drogas, né? E a gente não pode entrar lá porque, assim...e hoje a gente entra numa boa, a gente vai, avisa a famíla que vai, tal, o agente comunitário vai, não temos problema nenhum, eles sabem que nós tamos indo desenvolvendo um trabalho, eles não... não atrapalham em nada no nosso trabalho.

Entretanto, as equipes já passaram por várias situações constrangedoras.

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Nós tivemos uma vez que a saúde mental foi fazer uma visita numa dessas casas que guardam (drogas), a saúde mental saiu, baixou a polícia, aí eles acharam que foi a saúde mental que tinha... Aí nós precisamos ir conversar com eles, o agente comunitário foi lá, falou que foi uma coincidência, porque eram pessoas diferentes, você entendeu? Eram pessoas diferentes. Então aí, aí tudo bem, não teve problema nenhum, porque a gente ficou preocupada, né? Aí vão pegar as assistentes sociais, as assistentes sociais, a assistente social e a psicóloga, era a Luisa e a Sílvia, mas aí nunca mais...Mas, assim, o elo que a gente tem é o agente comunitário, que o agente comunitário sabe, eles são da comunidade, moram aí...

Assim como defende o PSF, Luzia defende o trabalho do agente comunitário

de saúde. Acredita que o agente comunitário é um facilitador e que muitos trabalhos

só podem ser desenvolvidos por causa do estreito conhecimento que os agentes

têm das relações que se estabelecem no território.

Nós tínhamos um usuário que tinha tuberculose, né? E ele era...ahn...da máfia daqui da redondeza e aí, assim, ele tava sendo procurado pela polícia e ele morava dentro de um carro, um carro que era todo filmado, tudo, e a gente precisava dar medicação prá ele, porque ele não podia ficar sem medicação, ele tava com uma sensibilidade muito grande da, da rifamp, rifampicina? Não, pirazinamida e, assim, tinha que tomar o medicamento porque ele tava transmitindo pros outros e o agente comunitário sabia que ele morava naquele carro. Então ele fez um trato com o agente comunitário: o agente comunitário ía todo dia, 11 horas, 11:15, naquele carro prá dar o remédio prá ele, certo? Ele ía porque 11:30 passava o rapaz trazendo a quentinha prá ele, prá ele comer, então ele tinha que tomar...antes de comer. Aí o agente comunitário ía, batia 3 vezes lá no carro. Ele abria, tomava a medicação, aí depois o agente ía embora, ele ía almoçar, tudo, porque ele ficava 24 horas naquele carro. Ele tava foragido, a família não queria ele, certo? Ele tava sendo procurado pela polícia e a forma de se esconder era dentro daquele carro, e nós conseguimos curá-lo, certo? Dentro do carro, você acredita? Então acho que isso é importante, sabe?

O agente protege a equipe informando as interdições.

Então, por exemplo, eu que não moro aqui na área, né? Amanhã eu quero fazer uma visita prá determinada família, eu vou sem saber o que aconteceu no final de, à noite aqui, eu vou e posso ter problemas por eu ter ido. Já o agente comunitário, ele fala “olha, hoje não dá prá gente cobrir aquela casa, porque hoje houve isso, isso, isso, isso na área”, você entendeu? Então facilita o nosso acesso às famílias. Porque a gente também, né?, tem que se preservar um pouco, porque senão...A gente sabe que eles fazem as coisas de noite, durante o dia eles tão dormindo, né? A noite é que é o problema.

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Diante de tantas situações complexas, Luzia busca não se deixar tomar por

maus pensamentos.

Eu acho que, assim, não sei se eu já...eu não penso nisso, eu não penso nisso, eu sou uma pessoa muito mais, assim, de não ficar pensando coisas ruins, eu tenho isso comigo, toda vez que eu tenho um pensamento ruim eu tento desviar, porque eu acho que pensamentos ruins atraem coisas ruins, então eu tento...

O dedo da morte, mais uma vez:

Luzia passou por uma experiência que fundou uma profunda convicção da

existência de vida após a morte.

E aí eu tive uma, uma contusão na, na coluna, onde uma vértebra quebrou, a outra encavalou e a outra esmagou e aí, quando eu tive esse acidente, eu fui pruma mesa de cirurgia, prá fazer uma redução e tal, e antes disso eu tive um...como dizer? Eu tive uma...não foi desmaio nem nada, eu senti que eu estava em outro plano, eu vi assim uma, um jardim, uma alameda cheia de margaridas, eu andando, sabe?, me deslocando praquele lugar, sentindo que eu estava indo prá, prum outro plano, né? Que na minha cabeça depois eu achei que era a morte, tudo, né? E aí eu fiquei, assim, achando que as pessoas que as pessoas que tavam lá toda sorridente, tudo, tavam me chamando e eu estava indo ao encontro delas. E aquilo me chocou muito quando eu vi a, quando eu voltei à consciência, me chocou muito, ficou aquilo gravado na minha cabeça. Então eu senti que eu tava morrendo, né? E também durante a, a, a, a cirurgia, eu tive uma experiência que foi o seguinte: o anestesista que tava dando a anestesia em mim falava pro médico ortopedista que eu não ía andar e o médico falava “não, ela vai andar assim, vamos embora, porque pegou numa vértebra que dá, ela vai andar”, ele falava “ela não vai andar, ela vai ficar paraplégica”. Passou. Quando chegou eu voltei de, do, prá consciência, primeira pessoa que eu recebi na minha, no meu quarto, foi o anestesista e ele foi por a mão em mim e eu dei um tapa nele, dei um tapa, “tira a mão daqui”, mas eu não sabia porque que eu tava fazendo aquilo e aí ele até ficou assustado, tudo. Aí veio o médico ortopedista que tinha me operado e ele mandou tirar todo mundo da sala e quis conversar comigo e aí eu peguei e falei prá ele, gozado, assim, que nessa minha visão eu não via o anestesista, a pessoa do anestesista, certo? Eu escutava as vozes e eu acho que a voz dele ficou gravada no meu subconsciente e aí , assim, o, o, o médico veio conversar comigo e eu falei prá ele que eu tava assustada porque eu tinha ido prum outro plano e que eu achava que eu tava morrendo, tal e que tinha uma pessoa que falava que eu ía ficar paraplégica, que eu não ía andar mais e aí ele começou a lembrar tudo que foi falado durante, você sabe como é, os médico durante a cirurgia, os procedimentos, ele se conversam. Então ele me explicou que a reação que eu tive foi que o anestesista tava discutindo com ele a minha condição, certo? E aí ele conversou comigo e ele era espírita esse médico, certo? Aí ele falou prá mim que seria bom eu ler algo que falasse da espiritualidade, de outros planos, que existia realmente outros planos na vida, tal, não sei o quê, não sei o que lá, e ele falou “ó, leia porque você vai gostar, acho que

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você tem um espírito, uma espiritualidade muito, muito sensível e você vai poder saber mais coisas sobre isso”. Eu falei, “então tá bom”, e aí depois que eu saí do hospital, tudo, eu comecei a me, a me, a ler sobre isso tudo, prá saber, né? Eu fiz até uma pesquisa, porque aí eu trabalhava no hospital Tatuapé, eu fiz uma pesquisa com todas as pessoas que entravam em coma, se tinham a mesmas reações que eu tive, porque eu tive um semi-coma, certo? Se elas sentiam realmente que estavam ao redor, porque ela não podia falar, não podia ouvir, ouvir ele pode, não podia falar, né? Mas se ela conseguia, e realmente eu verifiquei que isso era uma coisa de poucas pessoas, não todas as pessoas que estão em coma elas tem essa visão..

Luzia passou a acreditar em reencarnação, em “karma”. Contudo, nunca

havia refletido sobre isso com relação às pessoas que atende no PSF, nunca

pensou que isso talvez seja uma das razões pelas quais consegue conviver em

torno de tantas histórias cruéis, sem parar muito para pensar, para refletir.

Nunca pensei nisso. Eu não aceito o bandido, não aceito, você entendeu? Mas nunca pensei nisso, talvez, pode ser até...uma coisa que vai me deixar ficar pensando agora. Nunca pensei mesmo, viu, Damares? Nunca pensei sobre isso.

A crença de Luzia, contudo, não a apazigua. Na verdade, seu “sexto sentido”

é sua maior defesa. A despeito de todas as evidências, existe sempre uma sensação

que a guia, que a orienta nos momentos mais difíceis.

Eu sou, sabe que é? Eu não sou muito filosófica, não sou, eu sou muito prática, sou prática e eu tenho uma coisa, eu tenho um sexto sentido das coisas. Quando eu sinto que não vai a...não vai a...como é que se fala? Prejudicar, não vai...não sei como eu vou te dizer, como é que eu posso te dizer isso? Sabe quando você sente que algo não vai acontecer, por mais que tão falando que vai acontecer mas você tá sentindo que não vai acontecer? Então eu ajo com tranqüilidade por isso que eu sinto, não pelo que você me fala. Alguma coisa me fala por dentro, você entendeu?

Interroga-se sobre a natureza do seu trabalho.

...não...não penso como uma missão, nunca pensei como uma missão. Eu acho que eu tinha muito que dar prá essa comunidade, né? E, às vezes, assim, eu vejo que é isso mesmo porque, assim, quando eu converso com os meus agentes comunitários eles falam assim, que eu transmito prá eles, eu sou uma pessoa muito severa, né?, comigo mesma, sou muito severa, mas os agentes comunitários, eles falam prá mim “ó, dona Luzia, quando eu vou conversar com a senhora, a senhora mostra um outro lado prá mim que eu não tinha percebido”, mesmo em relação aos problemas deles, certo? Que conforto eles, faz com que eles tenham mais segurança, né? Porque assim, a vida dos agentes comunitários é igual à vida dos nossos usuários, igualzinho, né? Então, eles falam isso prá mim, às vezes eu falo prá eles, eu brinco com eles, né? Falo assim, “acho que vocês são meu

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karma da minha vida, eu tinha que vir aqui pra...”, sabe? Mas nunca pensei de fazer, que eu tô aqui, eu acho que todos nós, lógico, acho que isso daí é, é geral, tudo que a gente faz tem um propósito, é uma missão que a gente tem que...ah...como se fala? A...tá me escapando a palavra, uma missão que a gente tem que passar, acho que são karmas da vida, né?, coisas que a gente tem que passar e não dá prá ninguém mais passar, só nós que temos que passar. Porque, aí também não tenho explicação, você entendeu? Mas eu acho que, pensando nisso pode ser que, nunca pensei assim, é uma missão que eu tô aqui, tal, eu nunca pensei, sinceramente não pensei.

Muitas vezes tem o desejo de jogar tudo para o alto e ir embora, mas, em

seguida, repensa, pondera e permanece. Acredita que os momentos difíceis são os

que trazem a maturidade para enfrentar os desafios cotidianos.

...a gente vive coisas ruins, então, quando acontecem as coisas ruins a gente nunca tem que ver como ruim, a gente tem que ver que aquilo tá te dando uma outra, uma outra visão da vida.(...) Eu acho que o grande problema é esse, as pessoas não tem suporte, né? Você vê em termos de saúde mental, quantas pessoas entram em crise, tem depressão, tudo, porque não tem suporte prá agüentar um, às vezes é um probleminha pequenininho, né?, que faz um problemão prá eles, né?

Como se percebe:

Luzia sofre de hipertensão desencadeada por problemas emocionais.

Eu tenho...é, eu sou... eu brigo em casa, qualquer coisa a minha pressão vai lá em cima, vai lá em cima mesmo. Eu sou uma pessoa muito...emotiva. E não tenho um controle legal das minhas emoções, se eu tiver que falar eu falo, pode ser na frente de qualquer pessoa, hoje eu já melhorei muito, que eu trabalhei muito isso, eu mesmo trabalho isso comigo.

Mesmo nunca tenha desejado se submeter a um processo psicoterapêutico,

tem buscado maneiras de realizar auto-avaliações para melhorar o que considera

prejudicial em seu temperamento.

E...hoje eu trabalho, hoje eu trabalho isso...sabe? Melhorei muito, eu era pior, hoje eu não...sabe? Então, mas às vezes eu...eu volto às minhas origens, né? Italianona, falar, tal...e isso faz com que a minha pressão altere.

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Contudo, seus exemplos demonstram o grau de tensão em seu trabalho.

Porque eu já enfrentei várias coisas aqui, de funcionário, que ameaça, sabe? Quando eu mando embora funcionário, eles pegam muito isso, nessa coisa de me ameaçar, de falar que vai pegar minhas filhas, tudo, mas eu lidei numa boa, não falei nada prá ninguém na minha casa, falei pro meu marido que eu tava sendo ameaçada, mas não falei prás minhas filhas, não vou deixar as minhas filhas em...né, sabe? Com medo, com isso, com aquilo, uma coisa que eu tinha certeza que era só da boca prá fora que a pessoa tava falando.

Luzia anda no fio da navalha e aprendeu a orientar-se por sua intuição.

Perder o cargo. E eu mais ainda, em termos de cargo, porque assim, eu não tinha mais vínculo com a prefeitura, então eu era a primeira a ser espirrada. Aí, nas reuniões, né?, todo mundo falava, “Luzia, você tá tão calma, tão tranqüila”, falei “não vai acontecer nada, não vai acontecer nada, tá?” Eu tinha esse sentimento, eu falava “não vai acontecer nada”, até tenho uma amiga que é do Qualis, ela fala prá mim que que vai acontecer, quando tem algum problemão, assim, ela fala “que que você acha que vai acontecer?” “Pode ficar tranqüila” ou, senão, eu falo “não, ó, vamos que o negócio tá pegando”, você entendeu? É uma coisa que eu não sei te explicar, mas assim, é um sentimento que eu acho que eu não posso desperdiçar, eu não posso ignorar esse sentimento, pode ser que esse sentimento me traga até conforto, tranqüilidade prá poder agir de outras formas, não sei, eu não sei te explicar, eu não entrei fundo, prá você ver, eu tô falando coisas aqui que eu nunca falei, mas assim, eu nunca parei prá analisar se é certo ou errado.

Há cerca de dois anos, submeteu-se a um tratamento para perder peso que a

ajudou a colocar-se no centro de sua própria vida. Perdeu 17 quilos sem qualquer

dieta especial ou medicações.

Então você engorda porque você não sabe trabalhar com a emoção, você não assume as emoções, então você come porque você tá ansiosa, porque você tá triste, por causa disso, por causa daquilo. E esse trabalho ele mostra que você, não, você tem que trabalhar com essas emoções, o que você sentir você tem que expressar isso, não ficar com você. E aí que eu comecei a perceber que todas as minhas emoções são trabalhadas porque de uma forma ou de outra eu encaro a situação e aí eu comecei a perceber isso, esses meus sentimentos que me dava conforto na hora de eu poder agir de determinadas coisas, de eu poder parar prá pensar em determinadas coisas que alguma coisa dentro de mim tava me sinalizando o contrário. Hoje eu penso muito mais em mim, agora eu penso assim, primeiro eu, depois minhas filhas, depois meu marido, antes não, antes era as filhas primeiro, marido, depois eu era sempre a última, falei “ó, hoje não, hoje já reverti a situação”.

A participação política:

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Luzia adora política, mas nunca se filiou a nenhum partido. Identifica-se com o

Partido dos Trabalhadores, porém acredita que a militância partidária impede o

protagonismo pessoal.

Não, não, não sou filiada a nenhum partido, nunca participei de...já fui em reuniões, na época da Erundina, antes da Erundina entrar, nas reuniões da saúde, que tavam fazendo o programa de saúde, tudo, mas não sou filiada a nenhum partido, nenhum partido, acho que eu não quero ficar presa a partido nenhum, eu quero ter as minhas convicções...

Considera-se de esquerda e na última eleição para prefeito de São Paulo

votou pela primeira vez contra o candidato do Partido dos Trabalhadores, Marta

Suplicy, e a favor do candidato José Serra, do Partido Social Democrático Brasileiro.

Prá mim é o seguinte: a Marta, ela, ela administrou com a cabeça dela e não com a cabeça do partido. Ela só começou a falar mais do partido quando o Lula entrou, porque ela precisava do partido, do Lula, prá poder dar verba prá São Paulo. Até então ela só agiu da cabeça dela, prá mim isso daí foi claro, porque a Erundina, a Erundina foi muito...não sei se você lembra?

Luzia se ressente tanto do patrulhamento ideológico que se processa nos

serviços públicos quando mudam os partidos da situação, quanto do desmonte que

ocorre nessas ocasiões, desprezando ações que tecnicamente são boas. Faz uma

separação entre a ação técnica e a ação política e considera que a saúde pública

deve estar acima das questões político-partidárias.

...a gente tem que dar seqüência, não ter essas coisas, pára, pára um governo, sou muito contra isso, pára um governo, joga tudo fora o que esse governo fez, começa do zero. Não, vamos dar seqüência às coisas boas que aconteceram, se teve coisas boas, então vamos dar seqüência. Mas não, não acontece isso, pára tudo. Outro dia (...) vi uma reportagem do Serra, falei “ah, meu Deus, não acredito que um político pensa com eu tô pensando”, né? Que ele falou que ele não ía, isso ele falou, não vou dizer que ele vai fazer, que as coisas que tavam dando certo na, no governo da Marta ele ía dar continuidade. Falei “graças a Deus, pelo menos alguém pensa igual a mim”, falei. Eu me lembro na época da Erundina, o que eu fui massacrada na época da Erundina, no começo, porque o PT entrou, certo, o que ele fez? Todo mundo que...que tinha alguma coisa, jogou pro lixo. Aí ele foi ver que as pessoas, não era em função do partido que estavam lá, era em função de um ideal, de uma política de saúde, tudo. Aí eles começaram a levantar as pessoas, né? Trazer as pessoas prá trabalhar junto deles, mas no começo...não sei se você lembra disso, você lembra?

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Luzia tem uma péssima avaliação do governo de Marta Suplicy. Acredita que

houve um abandono da área da saúde, que sempre foi uma das bandeiras de luta

do Partido dos Trabalhadores, em função de obras que privilegiaram o aspecto

estético da cidade. Acredita, também, que houve muita injustiça, inclusive com

pessoas do próprio partido, por exemplo, a indicação de subprefeitos não

comprometidos com os problemas das regiões, num “loteamento” da cidade, em

detrimento de outros nomes que tinham um compromisso histórico com o PT e com

a saúde pública.

O que ela fez com o Eduardo Jorge, eu não me conformava, não me conformava, é uma pessoa que eu tenho um apreço muito grande, né? Porque sempre lutou pelas causas sociais, né? Infelizmente, aconteceu tudo isso.

Assim como vários assistentes sociais e outros funcionários públicos, tem

uma avaliação muito positiva do governo de Luiza Erundina de Souza. Em seu

prédio, recebeu o apelido de Erundina pela função que ocupou de síndica durante

muito tempo e as atividades que desenvolveu, como simpatizante, nas campanhas

políticas em favor dos candidatos do Partido dos Trabalhadores.

Foi muito, mas ela tinha umas convicções diferentes da Marta Suplicy, que ela foi pela cabeça dela, muitas coisas ela falou até em entrevista, tudo, mas com convicções diferentes. A Marta, ela queria mostrar o, não acho errado o que ela queria mostrar, uma beleza, né?, de São Paulo, mudar a, a, a vista de São Paulo, embelezar São Paulo, tudo, mas a custo do quê?

No ano de 2004, contudo, não fez campanha, não saiu em carreatas e não

indicou a ninguém em quem votar, nem às suas filhas. Desiludiu-se com a prefeita e

com o Partido dos Trabalhadores. Todos estranharam mas, aos 50 anos, julga que

já deve descansar um pouco desses embates. O que a desmotivou foi uma grande

desilusão.

Eu acho que o partido devia tomar outra posição, então eu me desiludi com o partido, você entendeu? Porque eu acho que se eles tavam vendo isso, pô gente, quem tá regendo é o partido, tá certo que tem uma cabeça lá, que é uma pessoa, tal, mas eu acho que tem que chamar a atenção dessa pessoa, dizer ...eu, eu não consigo desvincular o parlamentar do partido, se ele tá agindo incorreto acho que o partido tem que chamar, você entendeu?(...) Mas esse ano, realmente, eu me decepcionei comigo mesma.

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Está com medo de arrepender-se do seu voto nas últimas eleições, mas

acredita que há bons indícios de que não haverá mudanças significativas na linha de

trabalho. Mesmo assim, pensa ser cedo para avaliar. Vota a partir de concepções

que já possui há muito tempo, principalmente sobre saúde pública, mas essas

concepções devem estar representadas por pessoas que lhe inspirem confiança e

simpatia.

...eu por muito tempo gostei muito do Covas, sabe? Porque quando eu fui pro Icaraí quem era prefeito era o Covas e o Covas, ele me deixou uma boa impressão quando ele foi lá no Icaraí e ele fez muito pela comunidade, o Guedes era o secretário, que ouvia muito a comunidade, sabe? E era tudo aquilo, era nova na área da saúde pública e aquilo me apaixonava, me apaixonava porque as pessoas também tinham as mesmas idéias do que eu, né?

E, como a vida continua, e as desilusões fazem parte da vida, segundo suas

próprias convicções, vai avaliar tudo novamente. Já tem em perspectiva as eleições

para governador de Estado e presidente da República.

Então eu me desiludi, nessa história da eleição eu fiquei, foi a primeira eleição que eu...sabe? Eu falei não acredito que eu tô..." Mas eu fiquei muito mal porque eu achava que...eu tinha uma expectativa muito grande em relação ao PT no governo, sabe? Tinha uma expectativa muito grande e perder...são desilusões, né? São desilusões que a gente tem na vida, mas que provavelmente vou, logicamente daqui dois anos vou ter que parar prá pensar novamente, tudo.

Os bons encontros na vida:

Luzia acredita que o PSF fez com que ela se modificasse, no sentido de

valorizar aspectos subjetivos das pessoas.

Eu, olha, vou te falar uma coisa, depois que eu vim pro Qualis eu acho que eu modifiquei muito, muito mesmo, até a minha pessoa, sabe? (...), coisa assim de você valorizar uma outra parte da pessoa, não só ver o lado profissional, ver também o lado pessoal das pessoas, porque quando você tá trabalhando, geralmente você só vê o lado profissional. Você quer saber que faça aquilo, te dê resultado do lado profissional, a emoção você não trabalha muito, o pessoal das pessoas. Quando eu vim pro Qualis eu vi, não, que a gente também tem que trabalhar o pessoal.

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Luzia adora companhia, amizades, sair, passear. Acredita que o serviço social

foi um encontro, uma complementação de coisas que já trazia desde pequena.

Gosto, demais, demais, gosto demais de gente, por isso acho que eu sou assistente social, né? Mas eu sempre desde pequena eu fui assim, desde pequena, eu tinha turma, sabe? Tinha turminha, minha casa era sempre o encontro de toda a turma, sabe? Se encontrava na minha casa, desde pequena, nunca, não gosto de ficar sozinha, gosto de gente, tem que ter gente por perto, adoro, eu adoro sair, sabe? Curtir a noite, essas coisas, adoro, adoro.

O marido possui uma loja de consertos de aparelhos eletrodomésticos. Gosta

de acordar cedo aos domingos, ir ao Horto Florestal, almoçar e depois descansar a

tarde toda, o que a deixa sempre muito contrariada.

E casei com um homem totalmente diferente, você acredita? Meu marido é o oposto de mim, como ele é caseiro! Ele é caseiro e eu falo “não agüento você ficar o dia inteiro em casa dormindo, vá, tchau, tchau, vou embora”.

Luzia tinha medo de se casar e perder sua independência. Brinca que, para

se casar, fez duas exigências ao noivo: se algo acontecesse aos seus pais, eles

iriam morar com ela e que o marido nunca pedisse que ela deixasse de trabalhar.

Durante esses vinte anos de casamento, diz que o marido a ajudou muito com as

crianças e que nunca a impediu de fazer o que deseja. Acha-se uma mulher feliz.

E ele me ajudou e como ele tem mais facilidade, porque como, de horário, ele me ajudou muito, pegava as crianças, levava prá sogra, prá tia, prá isso, prá aquilo, você entendeu? Então ele me ajudou bastante, então acho que deu certo por causa disso, graças a Deus, eu não posso me queixar, eu sou uma pessoa feliz, sabe? Profissionalmente e pessoalmente, graças a Deus, tenho duas filhas, sabe? Logicamente que tenho problemas, já passei por vários problemas, mas eu acho que eu não posso dizer que eu não sou uma pessoa feliz porque eu sou uma pessoa feliz, até porque eu acho que quando você tem filhos, né?, e você já tem uma, uma, um... como é que se fala? Uma gratidão por alguma coisa, só de pensar...Por mais que os filhos dêem trabalho, dê, tudo, mas é muito gostoso ter filhos. E outra que da minha relação com meu marido, que até uma das funcionárias fala “é, é só Seu Garcia mesmo prá te agüentar”.

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5.5 - Dagmar: “No centro da Brasilândia”41

A origem:

Dagmar nasceu em Itararé, interior do Estado de São Paulo, e veio morar na

Vila Brasilândia em 1968, onde cursou todas as séries escolares. É filha de um

ferroviário e de uma dona de casa e a única da família que possui nível universitário.

Até hoje mora com seus pais na mesma casa.

Os pais de Dagmar foram analfabetos até a idade adulta. O pai alfabetizou-se

através da leitura da Bíblia, após ingressar numa igreja evangélica, e a mãe

aprendeu a ler através de revistas. É solteira e não tem filhos. Tem 3 irmãos, todos

casados.

Conta que vir para São Paulo foi a grande oportunidade de sua vida.

Daí há uns três ou quatro (anos), quando eu voltei prá cidade onde eu nasci, que lá é assim: as pessoas são ricas ou são pobres. Daí eu falei pro meu pai, "olha, se nós tivéssemos ficado lá no interior, eu acho que eu teria que ser uma empregada doméstica, porque é o único trabalho que tem na cidade. Que lá é pobre e rico, não tem intermediário, médio, então eu falei pro meu pai "ainda bem que viemos prá São Paulo e eu consegui fazer um curso universitário". Porque onde eu nasci, se meus pais não tivessem vindo prá cá, eu não teria uma profissão, lá onde eu morava não teria, porque lá é só a mão de obra é empregada, não tem trabalho, né? Isso foi um detalhe que eu percebi.

Viver na Brasilândia:

Mora na Vila Brasilândia há 44 anos. Conta que havia, em sua época de

adolescente, cinemas, as ruas eram de terra, a água provinha de poços. Quanto à

violência, acredita que é poupada pelo fato de morar lá há muitos anos.

41 Dagmar de Souza, 54 anos, solteira, assistente social da UBS Vila Brasilândia, unidade de PSF, formada pela FMU em 1979.

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Aqui na Brasilândia a violência existe, mas como você mora no mesmo lugar, você faz aquele trajeto, você toma o ônibus, você conhece todo mundo então você conhece até o malandro, sabe quem é a pessoa, você conhece o traficante, você conhece toda a pessoa e eles também te conhecem. Então acaba... ninguém mexe com você, mora ali há muito anos. Minha casa nunca foi assaltada, nunca... você entendeu?

Quanto à violência doméstica, especialmente o abuso sexual de crianças,

acredita que é muito difícil agir porque as próprias mães temem denunciar.

Lá no Paulistano era assim, o agente comunitário falava “olha, tá acontecendo um abuso sexual...” Mas ela não queria denunciar porque a mulher não queria que denunciasse... É, contra criança até, teve um caso lá, mas ela não podia falar que ela ía ficar mal, né? Ela falou...“O bandido vem atrás de mim, depois...”, ela não queria denunciar, ela não quis denunciar.

Não consegue imaginar-se vivendo em outro lugar.

Não, porque eu conheço tudo aqui, eu não saberia viver em outro lugar, noutra casa, noutro lugar, pra mim é o ideal. Quando eu vejo na televisão, “ai... Brasilândia”. A Brasilândia é tão grande, ninguém sabe que Brasilândia pode ser lá em cima, Carumbé, Terezinha. Eu moro aqui, no centro, né? Não moro mais na Brasilândia periferia, moro no centro da Brasilândia.

A escolha do serviço social:

A decisão de fazer o curso universitário foi exclusivamente sua, não contou

com nenhuma orientação por parte de seus familiares.

E gosto muito do que eu faço. Acho que eu escolhi muito bem o serviço social. Adoro o que eu faço. Atender paciente prá mim é gratificante, sabe? Faço meu trabalho com entusiasmo, com carinho, com amor, eu tenho o maior prazer em atender o paciente. Atender na necessidade do momento, sabe? Poder colaborar na vida do paciente, né? Então eu gosto muito do que eu faço, gosto mesmo.

Dagmar começou trabalhar aos 18 e somente aos 26 passou a cursar a

faculdade de serviço social. Seu trabalho num setor de emissão de laudos médicos,

na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, despertou seu interesse pelas

relações interpessoais.

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...E meu segundo emprego foi na Irmandade da Santa Casa de São Paulo, eu tinha vinte e um anos. Foi aí que eu descobri que eu queria fazer serviço social. Porque eu só fazia FUNRURAL, FUNRURAL dos pacientes e era uma relação com o paciente e aquilo foi me... foi gostando de atender paciente que descobri a saúde. Daí, também, já comecei a trabalhar na saúde. Então, eu trabalhei na Santa Casa de setenta e um, setenta e quatro, não lembro mais. Depois fui prá Abril, a Editora Abril. Daí eu entrei na faculdade em setenta e seis, eu tinha vinte e seis anos. Daí entrei em serviço social. Terminei em 79, 79.

Conta que ficou em dúvida entre serviço social e psicologia.

Que eu tive certeza...Não, eu queria colaborar na vida das pessoas, ajudar socialmente e talvez psicologia, eu queria resolver lá a mim mesma, né? Com as minhas coisas. Psicologia seria prá resolver as coisas internas, as coisas minhas.

Da faculdade, não se lembra de nenhum autor e de nenhum professor.

Contudo, guarda todos os seus cadernos em casa. Como gostava bastante de

psicologia, lembra-se de Moreno, o criador do psicodrama.

Permaneceu na Editora Abril por causa do salário e quando foi demitida, em

1983, reformulou algumas questões em sua vida, mas somente em 1988 ingressou

no serviço público com o cargo de assistente social na UBS Vila Progresso, ligada à

Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo.

Ah... tinha um cargo de secretária na Abril. Então, eu tinha um salário razoável e fiquei lá, não, não fui atuar como assistente social, na época, logo que eu me formei. Daí eu saí da Abril em, eu sei que eu entrei no serviço público, de assistente social, em 88, quando eu comecei a assumir a função. Eu me formei em 79 mas até então eu trabalhava na Abril, como eu fiquei desempregada em 83, da Abril houve o desemprego, daí eu comecei a reformular algumas coisas, fiz o concurso em 88 e entrei no Estado em... entrei dia oito de maio de 88. Daí fui trabalhar na UBS Vila Progresso. Assim, lá eu trabalhei por dez anos...

Dos dez anos que permaneceu nessa UBS conta que aprendeu a ser

assistente social e agente pública. Foi durante 5 anos substituta do diretor. Em

1999, assumiu a direção da UBS Parque Anhanguera.

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Lá trabalhei até 99, 99. Lá eu aprendi a ser assistente social, porque eu não tinha prática nenhuma e aprendi a trabalhar no serviço público, também não tinha prática do serviço público. Então prá mim foi uma escola, aprendi muito lá. Ehhh...até substituí o diretor por cinco anos, desde noventa e cinco substituí a direção. Em noventa e nove assumi a direção de unidade, UBS Parque Anhanguera. De 99 até 2002 eu fiquei na... na gerência de uma unidade.

Após esses quatro anos em cargo de direção, foi trabalhar na UBS Jardim

Paulistano, uma unidade de PSF. Queria trabalhar em local mais próximo de sua

casa, no caso a um quarteirão de distância.

A participação comunitária:

Conta que, durante a faculdade, não teve nenhuma participação política.

Hoje, porém, considera-se uma líder comunitária e, embora seja filiada ao Partido do

Movimento Democrata Brasileiro (PMDB), não tem, atualmente, nenhuma

participação político-partidária.

A atuação comunitária de Dagmar é referida a uma luta por regularização de

lotes clandestinos em seu bairro e à participação na organização das tradicionais

festas que são realizadas anualmente no largo da matriz da Freguesia do Ó

Na época, acho que minha preocupação era trabalhar e estudar, eu acho que eu nem me atentava prá isso, ao passo que, hoje em dia, eu até sou uma liderança comunitária na minha região. Acabei me tornando uma liderança comunitária, porque perto da minha casa tinha um terreno de quinze mil metros vazio, começaram invadir. Acabei pedindo asfalto, telefone, ajudando essas pessoas a regularizar o terreno, então eu virei uma liderança circunstancial, por causa do momento que exigia, eles me procuravam... É e que quando tinha reunião da subprefeitura, a Sociedade de Amigos, daí eu comecei participar muito, hoje participo menos. Participei por dez anos, bastante. Porque daí eu era convidada, eu era chamada pras situações, né? Por causa desse terreno que eu moro. Como eu moro na região há quarenta e quatro anos, invadiram o terreno, depois eu acabei indo no Ministério, fazer uma denúncia, da... regularidade do... possível dono e por causa disso que eu virei essa liderança. Hoje eu sou uma liderança mais tranqüila, não atuo muito...não atuo, não. Eu participo do centro de tradições da Freguesia do Ó, sou participante lá da Sociedade de Amigos desde, festa da Freguesia do Ó, também. Então, eu gosto muito de participar.

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A dificuldade para continuar a se qualificar:

Dagmar lê com freqüência o informativo do CRESS. Localiza cursos que

gostaria de fazer, mas a condição salarial não permite42. Entretanto não reclama.

Acredita que se deve trabalhar pelos ideais e não pelo salário.

O nosso salário, o meu salário tá em torno de mil reais. Mil reais e o prêmio incentivo. Mil e trezentos, né? Meu salário é bem diferenciado. Mas a gente trabalha pelo ideal de vida, não pelo salário, né? Acho que tem objetivo de trabalhar por um ideal... salário, lógico, se fosse melhor, a gente gostaria. Mas... é razoável...

Foi trabalhar na UBS Jardim Paulistano e participou dos trabalhos realizados

e das discussões em todas as equipes de saúde da família.

Tinha uma assistente social, quando implantaram o PSF, daí ela saiu. Não tava no programa, né? E eu, como tava em disponibilidade, fui prá lá, eu queria trabalhar aqui na região. E daí eu fui inserida em todos os programas de saúde da família da unidade: visita domiciliar, acompanhava o agente comunitário, saúde mental... Lá na unidade, eram duplas que íam lá fazer a visita, as reuniões, semanalmente. E os agentes comunitários traziam o caso, porque ele tava mais próximo, a médica e a gente ficava ouvindo e a dupla ficava tentando direcionar prá algumas coisas vendo o paciente... tinha a psiquiatra também, que dava medicação...

O Programa de Saúde da Família:

O trabalho de Dagmar na unidade era o de participar das discussões, dando

suporte às equipes de saúde da família, principalmente aos agentes comunitários.

Deixa eu te falar, eu saí do Paulistano por causa da...de acharem que eu era incluída no programa de saúde da família... Por isso que eu saí de lá, dum desentendimento que eu tive com a direção. Diz que era obrigação minha, o Conselho Tutelar era toda responsabilidade minha. A visita domiciliar era toda responsabilidade minha. Por isso que eu saí de lá. A equipe é responsável e eu dou suporte, sabe? Não sou responsável pelo ConselhoTutelar de nenhuma unidade. Então foi o programa, o programa... Eu saí de lá por causa disso, entendeu? No começo tava indo bem, mas

42 Dagmar é funcionária concursada pelo governo do Estado de São Paulo e, apesar de trabalhar numa unidade de saúde municipalizada, seu salário continua sendo pago pelo governo do Estado, cerca da metade do valor pago a uma assistente social concursada pela prefeitura.

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depois, nesse momento, ficou ruim. Eu tenho o relatório da enfermeira, até... Tô pensando em entrar, constrangimento...

O desentendimento que ocasionou sua saída do Jd. Paulistano girou em

torno de uma intervenção que deveria ser feita frente a uma demanda do Conselho

Tutelar. A direção da unidade avaliou que ela não havia executado seu trabalho a

contento. Dagmar saiu da unidade e pensa em recorrer ao Conselho Regional de

Serviço Social para apurar a situação.

A enfermeira... tinha uma visita prá ser feita e a enfermeira foi fazer a visita e ela queria que eu fosse fazer no dia de reunião de saúde mental, do fórum de saúde mental que tinha aqui, tem aqui na região. Eu não fui. Fui no dia seguinte e ela fez um relatório dizendo que eu me neguei a fazer a visita, que era de minha responsabilidade... o Conselho Tutelar era minha... tudo era minha. Eu não concordei com aquilo. Daí eu chamei eu, a direção e a enfermeira e a direção concordou com a enfermeira, com tudo que tava escrito a meu respeito. Eu até vou entrar com uma ação lá no...Conselho, porque as inverdades que estão nesse papel! E então eu saí de lá por causa disso. Não! Eu faço parte da equipe, prá dar um respaldo, mas não que é minha responsabilidade. A visita domiciliar, nem o Conselho Tutelar. É da equipe. A equipe do agente, do enfermeiro e do médico. Como tinha eu de assistente social, eles acharam que tudo era minha responsabilidade e eu não concordei com isso. Agora nos últimos tempos que aconteceu isso. Daí eu saí de lá, pedi prá sair. Eu dou suporte, mas não que é minha responsabilidade, a visita nem o Conselho Tutelar. Eu não sou responsável na unidade pelo Conselho, eu não respondo pelo Conselho.

O serviço social no PSF:

Como em todas as unidades com PSF, o assistente social não compõe a

equipe, apenas dá assessoria e executa o trabalho institucional tradicional. Quando

chegou à UBS Jardim Paulistano, havia a expectativa de que ela resolveria todos os

problemas da população.

No serviço social...paciente...por ser programa de saúde da família? É, daí o paciente acha "ah, é o assistente social", o paciente é diferente, daí é o programa de saúde da família com assistente social, né? Prá ele é dife...prá ele acha que vai resolver tudo, toda a estrutura, a vida dele coloca ali pr resolver. Tudo, tudo que nem é da alçada da gente, não vai conseguir mesmo, eles colocam tudo.

Sobre as relações com as equipes de PSF, aponta alguns desequilíbrios.

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Eu acho que tem diferença sim, porque não incluir a gente acho que é uma coisa desagradável. Tá trabalhando junto, com equipe que tem até salário no programa de saúde da família e você não estar incluída no programa. Acho, acho, em termos profissionais meus, entendeu? Pessoais. Pra mim fica um desequilíbrio, dá uma...uma insatisfação minha, pessoal. Mas não sepa...profissionalmente, não. Eu esqueço até que é PSF.

Os limites institucionais são o parâmetro para a intervenção profissional de

Dagmar. Quando vai a alguma visita domiciliar, esclarece ao usuário que nem tudo

que ele necessita poderá ser realizado pelo serviço de saúde. Muitas vezes, mesmo

uma demanda que seria própria dos serviços de saúde.

Coloco, aí eu falo "olha, o posto de saúde oferece isso, isso, médico, não dá pra ir mais adiante, renda mínima, quer se inscrever no posto, esses programas sociais, não é no posto, não é no posto, daí você vai na subprefeitura, que não é lá”. "Ah, mas falou que é no posto". "Falou, mas não é". Eles falam. E a gente deixa bem claro, consegue esclarecer o que é do posto e o que é do paciente, que não dá pra ver tudo. Consigo separar bem. É, por exemplo, assim, um deficiente que tá lá acamado, nunca levantou, a gente, eles acham que a gente vai resolver, vai arrumar ambulância, vai arrumar medicação, arrumar fralda, vai arrumar tudo que eles precisam. Comida, se não tiver, sabe? “Nós vamos resolver tudo.”(...) A unidade... o que ela oferece? Eu vou passar o que ela oferece, tá? Recursos da comunidade, eu vou ver o que é possível, tem os recursos da comunidade, eu procuro também, mas com uma limitação, na comunidade já não depende de mim, tá tudo preenchido, leite, cesta básica, ehhh...eu vou muito pelo que o posto oferece.

Conta que sempre conseguiu manter uma distância entre o sofrimento que

presencia e as questões de sua vida. Essa é uma experiência que tenta partilhar

com os agentes comunitários de saúde.

Eu consigo, consigo separar. Não me envolvo, não me envolvo, não. Naquele momento eu vejo a problemática, fico sensível, mas não levo prá minha casa, não penso no paciente, não sofro com o paciente. Não sofro. Separo bem, aquela é a vida dele, a minha vida é outra. Não levo pra casa, nem trago pra cá. Separo, eu consigo. Isso que eu tento com o agente comunitário, não se envolver tanto.

Apesar dos problemas que enfrentou, gosta muito das ações do PSF.

Acredita que o programa trouxe um diferencial importante para os usuários com a

mudança para o paradigma territorial.

Não, eu gosto do PSF, viu? Eu acho que veio, assim, prá atender mesmo as pessoas, atende com mais diferencial, né? Eu acho que o programa é muito bom, nossa! Eu acho que ele atende a demanda, essa delimitação

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de área, achei ótimo, né? Território, sabe? Melhorou, cada unidade com a sua equipe, você conhece mais o paciente, o médico ir na casa do paciente, os acamados, é muito bom, você vê, o grupo de hipertensos, tem os grupos, de diabéticos, de hipertensos, é tudo mais direcionado, né?

Embora ressalte que gosta do trabalho grupal, desde 1999 não tem

trabalhado com esse referencial. Atende individualmente, por demanda. Na UBS Vila

Progresso, onde trabalhou durante dez anos, realizou grupos de planejamento

familiar.

A relação com o Conselho Gestor:

Dagmar acredita que o Conselho Gestor é bastante importante numa unidade

de saúde, o elo entre a unidade e a comunidade. Sempre teve uma boa relação com

os conselheiros, mas acha que às vezes eles perdem o foco.

Não, não é, eles acham que são fiscais da unidade, vê que hora que o funcionário chega. Lá era assim. Quando são eleitos, daí eles querem fazer outras coisas, que não...tem que definir bem as tarefa deles, as funções, eles confundem ...(...) O elo entre a comunidade e a unidade. Ver o objetivo da população, né? Atender a população, as necessidades. Daí eles ficam participando de coisas sociais, de eventos, vira muito status, né? Sabe? Daí perde-se o objetivo, que é a população. Eles são usuários... Daí, quando eles são eleitos, eles perdem o objetivo, vai fiscalizar horário de funcionário, umas coisas que não... lá na unidade era assim.

O lazer através da dança e da companhia de velhos:

Dagmar conta que muito recentemente passou a se divertir, cuidar-se e

realizar um trabalho social.

Hoje eu consigo ter um pouco de lazer e trabalho social. Eu faço...terça e quinta eu faço atividade física, no SESC. Eu faço com o grupo de terceira idade, já. Então eu participo, tem grupo terça e quinta e domingo. Eu faço alongamento e condicionamento físico e faço dança de salão aos domingos, com eles também. E faço também na...galeria, na galeria Olido, lá na Secretaria Municipal da Cultura. Lá é todos os dias, na quarta, na sexta e no sábado eu vou pra lá. É, todas as minhas tardes, minhas tardes são ocupadas. Só a segunda que eu deixo mais livre. Eu trabalho pela manhã, agora, os outros dias, todos os outros dias, eu me ocupo de lazer.

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Dagmar não quer apenas participar de grupos de idosos, deseja especializar-

se na área, mas o salário não permite.

Dos preços, também por causa do salário ser muito baixo, falei “gente, se tivesse uma bolsa, eu faria, viu? Se tivesse uma bolsa...”, devia ir atrás de uma bolsa pra eu fazer, fiquei lendo lá, toda história do idoso, falei “olha, essa daí eu queria”. Eu acho que essas pessoas são frágeis, chegam assim, fragilizadas, sabe? Tão doentes, são depressivas, com dores, e daí ela começa despertar um pouco mais prá algumas coisas, se conhecer, se perceber no mundo. Tem mulher que não saía de casa, agora sai. Fala “olha, que bom ter amigos, conversar.” Elas despertam algumas coisas que tinham dentro delas que elas não sabiam, né?

A importância do serviço social:

Acha que o serviço social a transformou num ser humano melhor.

Eu acho que ele me trouxe muita coisa como pessoa, como ser humano, sabe? Eu acho que eu me tornei uma pessoa melhor. Se eu não tivesse feito esse curso eu não sei o que seria, não seria quase nada. Tudo que eu tenho devo ao serviço social, minha estrutura de vida, sabe? A minha bagagem de vida, a minha estrutura pessoal de vida, meus pais... Tudo que eu tenho eu devo a...ao nível universitário que eu tive, no serviço social.

Houve um momento em que desejou realizar um tratamento psicoterápico na

tentativa de conhecer-se melhor, saber mais a respeito de suas motivações, de seus

desejos, mas coloca a ênfase nas relações.

Não, não, eu quero me conhecer, me ver mais, ver o que eu quero, né? Quero sempre tá me descobrindo... Não sou ilustre desconhecida, não. Me conheço um pouco (risos). Eu conheço partes. Eu quero me conhecer mais, quero ver o que eu quero mais da vida...sabe? Mas, de um modo geral, tô tranqüila, não é coisa que eu não conheço. Eu quero me conhecer mais, quero me entender mais, quero ficar mais harmônica com a vida, com as pessoas, quero ter tolerância, paciência, quero compreender mais o ser humano. Quero ser mais tolerante...

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O amor à humanidade:

Percebe-se como alguém com muitos atributos ligados à capacidade de

compreender, de amar a humanidade e acredita, mesmo não sendo religiosa – é

católica não praticante –, que o sentido da vida não se realiza sem outras pessoas,

sem ajudar o próximo. Entretanto, não havia refletido sobre a possibilidade disso ser

uma espécie de sacerdócio. Acredita que é um atributo seu e que precisa pensar

melhor a esse respeito.

Porque, seu vier ao mundo pra servir só a mim mesma, vai ser ruim. Que bom que eu posso servir uma comunidade... Então, ehhh... eu não sei, é, não fomos religiosos, assim. Nenhum momento. Nem evangélico, nem católico, não... não sei se está dentro de mim, isso, sabe? Eu também não sei explicar. Eu preciso questionar um pouco isso aí, essa...esse valor humano que eu dou muito prás coisas, né? Eu preciso até me olhar e ver o que é isso. Agora nesse momento... eu não sei, eu sou preocupada com o outro, eu quero sempre ter uma empatia, me por no lugar... naquele momento, é evidente, né? É um traço. É um traço, mesmo. Até as pessoas falam “ai, você é muito legal, você é muito legal.” Até sei de onde vem isso daí, que eu sou afável, eu sou humana, sabe? Eu compreendo o outro, quero compreender o outro, éhhh... uma empatia, né? Uma empatia, mas... eu preciso descobrir melhor (risos). Que eu não sei também.

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PARTE 3

AS MEDIAÇÕES

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Introdução

Conforme explicitado na introdução deste trabalho, os temas que serão

tratados a seguir foram extraídos da análise das entrevistas realizadas. Durante as

entrevistas privilegiou-se registrar o fluxo da consciência, através das narrativas.

Foram realizadas várias leituras e vários recortes analíticos buscando extrair

contextos, semelhanças e diferenças nas temáticas apresentadas. Entretanto, não

serão apontados trechos que identifiquem nas falas das entrevistadas a presença

maior ou menor dos tópicos que serão tratados a seguir. A razão dessa escolha não

é aleatória, mas teórica e metodológica.

Em primeiro lugar, é intenção deste estudo contribuir para que se explore uma

outra perspectiva de subjetividade, diferenciando-a do espectro idiossincrático e

misterioso que quase invariavelmente recobre essa temática.

Em segundo lugar, houve uma tentativa de evitar interpretações apressadas,

que privilegiassem o ponto de vista do pesquisador em detrimento do entrevistado.

Também resultariam prejudicados os contextos e as inscrições do tempo nas vidas

das entrevistadas.

Em terceiro lugar, como o estudo refere-se a questões subjetivas, a escolha

foi tratar os dramas das vidas reais na perspectiva indicada por Georges Politzer (ver

capítulo 2, item 2). Houve um cuidado redobrado no sentido de não reduzir esse

conceito a algumas expressões ou paroxismos de linguagem dos entrevistados.

Sendo assim, o extenso mas necessário trabalho de apresentação das

biografias através das narrativas das entrevistadas encontra-se no capítulo anterior.

Nele, foram preservados o mais fielmente possível os sentidos de suas vidas

atribuídos por elas.

O privilégio desta e não de outra forma de apresentar as mediações poderá

causar uma certa estranheza. Trata-se de uma escolha e, como qualquer outra,

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implica riscos. Assim, as mediações encontradas nas entrevistas serão

apresentadas teoricamente.

Entretanto, é necessário buscar as mediações no movimento do real,

levando-nos a um exame não só dos aspectos substantivos desses processos, mas

sobretudo o que podem nos revelar a partir de suas expressões singulares. Essas

mediações, mais próximas dos aspectos prosaicos de uma existência, podem ser

traduzidas através de sentimentos, fantasias e aspirações (GINZBURG, 2002, p.16)

e são expressões contundentes das subjetividades.

Novamente aqui foi realizada uma escolha: deixar à própria voz das

narradoras a manifestação desses aspectos, mantendo uma transcrição parcial mas

extensa das entrevistas. Somente nas considerações finais os sentimentos, as

fantasias e as aspirações foram sintetizados através da compreensão do

desdobramento subjetivo que pareceu o mais significativo, porém não o mais

imediato, que foi cunhado pela expressão tempo do trabalho. Nesse momento,

penso ter realizado a volta do parafuso.

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Capítulo 6 – Cultura e Subjetividade

Assim como a língua, a cultura oferece ao indivíduo

um horizonte de possibilidades latentes – uma jaula flexível e invisível dentro da qual se

exercita a liberdade condicionada de cada um.

Carlo Ginzburg

6.1 – Romantismo

O século XVIII foi o marco da apropriação da memória como uma

possibilidade de tecer a vida como uma narrativa interligada. O romantismo43 é uma

escola literária que expressa isso de maneira bastante clara.

As identidades reveladas nas autobiografias e romances do século XVIII permanecem as mesmas através dos tempos; os acontecimentos não afetam uma consciência maleável, mas simplesmente figuram como momentos fortuitos em modos de vida livres de conexões introspectivas com estágios anteriores na vida (LOWENTHAL, 1998, p. 84-85).

O drama retratado nos romances privilegia as concepções narcisistas e

melancólicas, o que representou uma valorização excepcional das emoções que as

situou acima da terra e dos homens e, portanto, da história, enquanto uma

determinada expressão da objetividade e materialidade da vida. Tornou-se

apropriável pelas forças econômicas através dos meios de comunicação, sobretudo

após a difusão destes a partir do século XIX.

43 Em oposição direta ao Arcadismo, o Romantismo, marco de início do Período Nacional da literatura brasileira, que se estende até nossos dias, tem como lema a subjetividade, ou seja, o culto ao EU, ao individualismo e à liberdade de expressão, buscando a criação de uma linguagem nova e compatível com o espírito nacionalista. Impera a emoção, a constante busca pelas forças inconscientes da alma, assim como a imaginação e os sonhos. É o coração acima da razão humana, que leva ao amor idealizado e puro. A natureza passa a ser a expressão da criação e perfeição de Deus, a única paisagem sem a mão corrupta do homem. É nela que o homem vai refletir todos os seus estados de espírito e desejos de liberdade, de proximidade ao Criador.

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Entretanto, esses dramas existenciais referidos somente às dimensões

subjetivas ou intrapsíquicas constituem-se como expressões culturais importantes,

pois também interpretam, traduzem e, muitas vezes anunciam, ainda que de

maneira idiossincrática, numa estética literária, algumas vicissitudes humanas.

É PARA LÁ QUE EU VOU

Para além da orelha existe um som, à extremidade do olhar um aspecto, às pontas dos dedos um objeto – é para lá que eu vou. À ponta do lápis o traço. Parece a história de alguém que foi e não voltou – é para lá que eu vou. Na ponta dos pés o salto. Parece a história de alguém que foi e não voltou – é para lá que eu vou. Ou não vou? Vou, sim. E volto para ver como estão as coisas. Se continuam mágicas. Realidade? Eu vos espero. É para lá que eu vou. Na ponta da palavra está a palavra. Quero usar a palavra “tertúlia” e não sei aonde e quando. À beira da tertúlia está a família. À beira da família estou eu. À beira de eu estou mim. É para mim que vou. E de mim saio para ver. Ver o que? Ver o que existe. Depois de morta é para a realidade que vou. Por enquanto é sonho. Sonho fatídico. Mas depois – depois tudo é real. E a alma livre procura um canto para se acomodar. Mim é um eu que anuncio. Não sei sobre o que estou falando. Estou falando do nada. Eu sou nada. Depois de morta engrandecerei e me espalharei, e alguém dirá com amor meu nome. É para o meu pobre nome que vou. E de lá volto para chamar o nome do ser amado e dos filhos. Eles me responderão. Enfim, terei uma resposta. Que resposta? A do amor. Amor: eu vos amo tanto. Eu amo o amor. O amor é vermelho. O ciúme é verde. Meus olhos são verdes. Mas são verdes tão escuros que na fotografia saem negros. Meu segredo é ter os olhos verdes e ninguém saber. À extremidade de mim estou eu. Eu, implorante, eu a que necessita, a que pede, a que chora, a que se lamenta. Mas a que canta. A que diz palavras. Palavras ao vento? Que importa, os ventos a trazem de novo e eu as possuo. Eu à beira do vento. O morro dos ventos uivantes me chama. Vou, bruxa que sou. E me transmuto. Oh, cachorro, cadê tua alma? Está à beira de teu corpo? Eu estou à beira de meu corpo. E feneço lentamente. Que estou eu a dizer? Estou dizendo amor. E à beira do amor estamos nós.

Clarice Lispector

A autora em destaque é considerada uma das mais importantes escritoras

contemporâneas. Em sua biografia figuram o nascimento na Ucrânia, o casamento

com um diplomata brasileiro, a residência em outros países e uma intensa vida

literária. Seus textos, segundo Walnice Nogueira Galvão (1996), também escritora,

crítica literária e ensaísta, foram marcados pela introspecção e pelo “exame tenso e

impiedoso das intermitências da consciência”, tecendo-os num registro moderno e

através de técnicas da prosa do século XX de origem anglo-americana, também

encontradas em Virginia Woolf.

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Essa literatura, que privilegia as “flutuações da subjetividade e de estados

d’alma quase impalpáveis” (GALVÃO, 1996, p.8) veio, na literatura brasileira,

substituir uma predominância do “regionalismo com preocupações documentais

realistas” (GALVÃO, 1996, p. 7). Sua primeira publicação foi em 1944 – Perto do

Coração Selvagem, mas o reconhecimento só viria mais tarde, em 1960, através de

Laços de Família.

Embora o romance seja classicamente apontado como uma expressão do

individualismo, da introspecção e do egocentrismo que emergiram a partir do século

XVIII, assim como quaisquer outras produções artísticas, intelectuais ou culturais

encontra-se inscrito historicamente, e juntamente com outros componentes da

realidade social, explicita sociabilidades.

Iamamoto faz uma análise da influência da crítica romântica no serviço social,

destacando, principalmente, seu aspecto conservador. Para a autora, tanto a visão

romântica, quanto a visão humanista foram obstáculos à compreensão histórica do

capitalismo, naturalizando os valores burgueses. Destaca que o arranjo teórico-

doutrinário do serviço social baseado no neotomismo, no moderno conservadorismo

europeu e na sociologia funcionalista levaram

...o Serviço Social a pautar-se por uma crítica romântica à sociedade capitalista, uma coordenação de ordem moral ao mundo burguês, incapaz tanto de compreender o caráter histórico-progressivo da ordem estabelecida quanto de criticá-la em suas bases históricas, porque estas são soterradas pela análise. (IAMAMOTO, 2003, p. 220, grifo da autora).

Numa sociedade de classes, vários são os mecanismos de apropriação do

potencial criativo e revolucionário da classe trabalhadora.

É em contraposição a essa noção de drama que Georges Politzer explicita a

sua, que Lucien Sève vai redefinir como ciência da biografia ao referir-se ao que

seria a concepção marxista da subjetividade ( conferir Capítulo 2).

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A retirada da experiência, como elemento que funda e dá sentido às

existências humanas, foi uma das conseqüências desse movimento. Segundo

Benjamin,

O romance, cujos primórdios remontam à Antiguidade, precisou de centenas de anos para encontrar, na burguesia ascendente, os elementos favoráveis a seu florescimento (BENJAMIN apud D’ALESSIO, 1998, p.271).

Assim como Fromm refere que a linguagem é um instrumento poderoso de

alienação, a linguagem literária, ainda que o seja, não poderá ser descartada e

tampouco ser compreendida fora do movimento histórico, que lhe confere contexto e

sentido. Seria, como afirma Fromm, tolice parar de falar, assim como o seria parar

de ler. O fato é que, até para compreendermos um poema ou um conto é necessário

indagar a história.

Williams define a literatura como um “processo e resultado de composição

formal dentro das propriedades sociais e formais de uma língua” (1979, p.51).

Embora essa definição seja um tanto hermética, interessa destacar da obra,

Marxismo e Literatura, as relações entre cultura, língua e literatura, enquanto

demarcadores que se constituem dialeticamente, ou seja, sua própria construção

implica num movimento originado pela transformação e que ao mesmo tempo é

transformadora do tecido social.

Essas composições às quais Williams se refere são eminentemente históricas

e respondem às demandas sociais. O romance de folhetim44 como matriz cultural do

gênero melodrama desempenhou um papel de difusor dessas demandas no século

XIX. Seu surgimento, que mais tarde foi objeto de estudos sobre seu papel na

mescla de campos culturais diversos como a literatura e o jornalismo, nasceu “como

narrativa de entretenimento em que começa, na Europa, uma cultura de mercado

que reorganiza as relações no campo cultural” (BORELLI, 1996, p. 56).

44 "O folhetim – do original francês feuilleton – é denominação atribuída ao espaço localizado na faixa inferior – rodapé, réz-de chaussée – de jornais e periódicos franceses, no início do XIX. (...) Locus de variedade, novidade, recreação. Tanto narrativas ficcionais quanto charadas, receitas, conselhos, crítica cultural de teatro, além de resenhas de livros, têm lá seu lugar" (BORELLI, 1996, p. 56-57, grifos da autora).

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Está em questão a serialização na produção cultural, compreendida “como

alternativa para que a cultura seja produzida aos pedaços, em fatias...” É o processo

analisado por Benjamim e através do qual desenvolveu seus ensaios sobre a

reprodutibilidade técnica. Essa nova forma atraiu, segundo Borelli, uma nova

demanda de receptores, especialmente o público feminino, e passou a dirigir-se a

temas relativos a moda, a assassinatos, histórias românticas (BORELLI, 1996, p.

56).

O romantismo como movimento estético expressou uma tendência

contestadora entre oralidade e escritura. Surgiu em meados do século XVIII e migrou

da oralidade para a linguagem escrita. Shakespeare, cuja produção é hoje

reconhecida como literatura, foi inicialmente um escritor popular.

O romance popular, também surgido no final do século XVIII como subdivisão

do movimento romântico, estabeleceu-se como gênero que popularizou a literatura e

promoveu uma subversão das formas clássicas das tragédias, das comédias,

formalizando a contestação e o sentimentalismo. Sua forma de circulação principal

deu-se através dos folhetins.

Segundo Borelli, a América Latina, inclusive o Brasil, acompanharam quase

simultaneamente esse movimento, que se deu especialmente na Europa,

representado aqui por autores como Machado de Assis, Olavo Bilac, Martins Penna

e outros. No Brasil, também surgiu a forma de crônica/folhetim em jornais,

acompanhando a “atmosfera modernizadora”.

A monarquia era então comandada por D.Pedro II, reconhecidamente um

imperador que incentivou a produção artística, na pintura, na música, no teatro e

também na literatura. As produções pictóricas, assim como as teatrais e musicais,

procuravam, através do romantismo, tecer uma identidade brasileira, exaltando a

natureza e o povo, especialmente os indígenas, que foram retratados através da

beleza de suas mulheres, das relações com os padres jesuítas e, principalmente, da

valorização dos artifícios e da ornamentação.

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Aquele momento da sociedade brasileira deixou marcas profundas nas

sociabilidades. O projeto nacional de busca de uma identidade, colocando o

indígena como o “bom selvagem”45 é uma tradição seletiva46 que se encontra

presente nas narrativas sobre as histórias de vida de vários brasileiros. Muitos de

nós “somos” netos ou bisnetos de uma bela índia que foi capturada nas matas

brasileiras, nua, por um português que se apaixonou e se casou com ela.47

Ser descendente de um indígena significa, muitas vezes, a justificativa para a

cor de pele morena que, juntamente com os cabelos crespos ou levemente

cacheados, denuncia a nossa ascendência africana. Na cultura brasileira, considera-

se melhor descender de indígenas do que de negros e parece ser esta uma marca

importante do romantismo no Brasil, na construção de seu projeto de identidade do

povo brasileiro.

Contudo, a atmosfera modernizadora nacional mesclava modernidade e

escravidão. O Brasil, como se sabe, foi o último país do mundo a abrir mão da

escravatura.

Um exemplo desse momento e que marcou nosso ingresso na arte em

território estrangeiro é a ópera "O Guarani" (1870), de Carlos Gomes, que foi

apresentada no Teatro Scala de Milão sob patrocínio de D.Pedro II.

Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste.

45 "Na prosa, José de Alencar aparece como um dos mais importantes escritores desse período. Em sua obra, nota-se a preocupação em expressar uma realidade tipicamente brasileira através de um modo de escrever que procura refletir o espírito do nosso povo, seu vocabulário e sua maneira de falar. Seus romances Iracema e O Guarani mostram a figura do índio idealizado ao extremo. Em O Sertanejo e em O Gaúcho relata a vida e hábitos das populações que viviam longe das cidades. Já em seus romances sociais ou urbanos, José de Alencar traçou uma crítica das relações humanas na sociedade do Rio de Janeiro na época, além de destacar, nos 'perfis femininos', a força da mulher" (http://www.rio.rj.gov.br). 46 Para Williams, “A tradição é na prática a expressão mais evidente das pressões e limites dominantes e hegemônicos. (...) na verdade, é o meio prático de incorporação mais poderoso. (...) mas uma tradição seletiva: [é] uma versão intencionalmente seletiva de um passado modelador e de um presente pré-modelado, que se torna poderosamente operativa no processo de definição e identificação social e cultural” (1979, p. 118, grifo do autor). 47 Essa é uma das lendas que compõem a minha história de vida, narrada por minha mãe desde minha infância. Aparece também na entrevista de Judith.

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Criança! Jamais verás país nenhum como este.

Olha que céu, que mar, que floresta!

A natureza aqui perpetuamente em festa

É um seio de mãe a transbordar carinhos.

(...)

Imita na grandeza a terra em que nasceste.

Olavo Bilac

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Permeados de heroínas e heróis de pele morena, cercados por belezas

naturais inefáveis, trabalhadores valorosos e pacíficos por natureza foram elementos

que compuseram o que Marilena Chaui (2000) denominou mito fundador da

sociedade brasileira.

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Quando a autora se refere a mito fundador evoca duas configurações básicas:

aquela que, mantendo um vínculo interno com o passado “como um passado que

não cessa nunca”, torna-se anacronicamente recolocada e não permite a

compreensão do presente; a outra, de origem psicanalítica, significa um impulso à

repetição que escamoteia a realidade impedindo que se entre em contato com ela.

Um mito fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e idéias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo (CHAUI, 2000, p. 9)

Segundo Chaui, as raízes do mito fundador da sociedade brasileira foram

fincadas já em 1500 e permanecem até os dias de hoje, porém reatualizadas:

Há, assim, a crença generalizada de que o Brasil: 1) é “um dom de Deus e da Natureza”; 2) tem um povo pacífico, ordeiro, generoso, alegre e sensual, mesmo quando sofredor; 3) é um país sem preconceitos (é raro o emprego da expressão mais sofisticada “democracia racial”), desconhecendo discriminação de raça e de credo, e praticando a mestiçagem como padrão fortificador da raça; 4) é um país acolhedor para todos os que nele desejam trabalhar e, aqui, só não melhora e só não progride quem não trabalha, não havendo por isso discriminação de classe e sim repúdio da vagabundagem, que, como se sabe, é a mãe da delinqüência e da violência; 5) é um “país dos contrastes” regionais, destinado por isso à pluralidade econômica e cultural. Essa crença se completa com a suposição de que o que ainda falta ao país é modernização – isto é, uma economia avançada, com tecnologia de ponta e moeda forte -, com a qual sentar-se-á à mesa dos donos do mundo (CHAUI, 2000, p. 8).

Ainda segundo a autora, foram realizadas, em 1995, duas pesquisas de

opinião sobre a questão do orgulho de ser brasileiro. Enquanto 60% responderam

afirmativamente, somente 4% referiram sentirem-se envergonhados. Dentre os

motivos, 50% dos que afirmaram sentir orgulho destacaram as seguintes

características como as mais importantes do povo brasileiro: trabalhador/lutador,

alegre/divertido, conformado/solidário e sofredor (CHAUI, 2000, p. 6-7).

Essa identidade, como refere Chaui, que tem fundamento numa concepção

falsa, a do país abençoado por Deus, faz com que as contradições permaneçam

encobertas. Apesar de vivermos uma situação de violência, tanto na cidade quanto

no campo, com assassinatos originados da luta pela ocupação de terra (Eldorado

dos Carajás), crimes de ódio (assassinatos de homossexuais) e violação de direitos

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humanos (massacre do Carandiru), sua análise vem recoberta de outros sentidos,

quais sejam, que os outros não são bons, que a culpa é dos que querem “invadir

terras privadas”, dos criminosos que, presos, só dão despesas para a sociedade, ou

mesmo de crianças que não foram adequadamente educadas pelos pais com

medidas punitivas, talvez filhos de marginais e vagabundos.

O silêncio da sociedade nestas situações deve-se, fundamentalmente, à

anuência, a um acordo tácito com instituições corruptas que executam, em nome do

bom e cortês brasileiro, aqueles que são os “frutos podres” da sociedade.

Os programas de televisão do chamado realismo jornalístico são os grandes

difusores desse tipo de concepção. Não defendem direitos humanos, não visam à

informação e o esclarecimento da população, ao contrário, mostram sua mercadoria,

cotidiana e cruelmente, com sensacionalismo. Como se não bastasse, fazem a

apologia do emprego de truculência, da pena de morte e outros meios de punição

aos bandidos. Instigam a população a colocar em cheque os direitos sociais e

humanos, ao que recebem, ao tempo certo, solenes aplausos de uma platéia

instruída.48 Embora já haja uma reação da sociedade civil contra esse tipo de

programação televisiva, estamos longe de alcançar um patamar que diminua seu

nível de perversão.

O que será, porém, que leva o brasileiro a assistir esse tipo de programa e

não reconhecer em si o mesmo desejo de revolta e de violência? Segundo Reich, a

psicologia burguesa é responsável pela explicação psicológica dos motivos que

levam esta ou aquela pessoa a praticar um ato criminoso, colocando o problema

num suposto ato de irracionalidade, o que, segundo o autor, sempre nos levará a

explicações reacionárias. O problema a ser enfrentado pela psicologia materialista

dialética é que “o que é necessário explicar não é que o faminto roube ou que o

explorado entre em greve, mas por que razão a maioria dos famintos não rouba e a

maioria dos explorados não entre em greve” (REICH, 1974, p. 23).

48 Recentemente, um apresentador de TV, ao mostrar cenas de um crime, finalizou com um zoom em sua imagem dizendo que tudo isso era culpa dessas leis que impedem os pais de bater nos filhos e que no passado isso não existia. Foi veementemente aplaudido. Esse é apenas um dos ataques explícitos e impunes da televisão brasileira contra o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

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O autor tentava compreender, assim como tantos intelectuais de sua época,

a vitória do nazi-fascismo, através do que denominou Psicologia de massas do

fascismo, título escrito em 1933. Acreditava que a maneira como o marxismo vulgar

havia tratado o “fator subjetivo”, creditando somente à economia a determinação da

consciência humana, foi unilateral e esquemática, relegando-o a uma psicologia que

nada teria de materialismo dialético a oferecer, colocando-o como, a priori, um

sistema metafísico. O marxista vulgar,

...quanto mais nega a psicologia, mais faz ele próprio psicologismo metafísico, e até pior: uma espécie de melancólico coueismo, por exemplo quando explica uma situação histórica a partir da “psicose hitleriana” ou quando consola as massas dizendo-lhes que confiem nele, que apesar de tudo as coisas avançam, que é impossível destruir a revolução, etc. Pouco a pouco enterra-se e acaba-se por insuflar nas pessoas uma coragem ilusória, sem dizer na realidade seja o que for de concreto a respeito da situação, sem compreender o que efetivamente se passou (REICH, 1974, p. 19).

Essa citação a Fromm, mais para ilustrar do que para compor os referenciais

do presente trabalho, ainda nos é útil para saber que é necessário compreender as

sociabilidades das classes sociais brasileiras e que os programas de televisão,

sobretudo os que “falam a voz do povo” mesclando informação, drama e diversão,

apresentados por figuras polêmicas, também interpretam “demandas sociais".

Seriam, segundo Williams, uma demonstração de impulsos que motivam a

construção de mudanças.

Em contraposição a um determinismo tecnológico, Williams, segundo Lopes,

propõe:

Se a tecnologia é uma causa, nós poderíamos, na melhor das hipóteses, modificar ou controlar os seus efeitos. Mas, se a tecnologia, na maneira como é utilizada, for um efeito, para que outro tipo de causas, e outro tipo de ações nós deveríamos relacionar a nossa experiência de seu uso? Estas não são questões abstratas (WILLIAMS apud LOPES; BORELLI; RESENDE, 2002, p. 312).

Se considerarmos desse ponto de vista, a televisão é parte da história e

encontra-se inserida, como outros tantos construtos humanos polêmicos, na esfera

da produção, não se diferenciando de qualquer outro produto que sofre, no sistema

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capitalista, a coisificação necessária ao consumo. Contudo, a sua peculiar

capacidade de organização de sentidos para a vida social a torna, para além das

condenações que vem recebendo e com as quais tendo a concordar, um elemento

que não poderá estar ausente dos debates sobre as sociabilidades neste século

XXI. Se até algum tempo atrás os aparelhos eram domésticos, ficavam nas salas

das casas, hoje ganharam mais espaço. É comum que bares, lanchonetes,

restaurantes, salas de espera de consultórios ou qualquer outro estabelecimento

comercial tenham um aparelho de televisão ligado. Também não é difícil verificar

que dezenas de olhos se voltam para ele e que as rotinas são frequentemente

organizadas pela sua programação.

A busca de um final feliz para os que se amam, castigo para os que são maus

e conforto para os que sofrem são alguns dos objetos desejados quando se assiste,

por exemplo, uma telenovela49. Esse produto cultural, consumido por milhares de

espectadores em várias partes do mundo tem, no Brasil, não só um público

importante como um celeiro de renomados escritores, artistas, roteiristas, diretores

de teatro e de cinema (MARTÍN-BARBERO In: LOPES; BORELLI; RESENDEi, 2002,

p. 12).

A entrada desse gênero ficcional – a telenovela - na vida das pessoas é um

fenômeno que precisa ser mais bem investigado se pretendermos compreender um

elemento importante das sociabilidades contemporâneas, no espaço familiar e

cotidiano, e o lugar de excelência ocupado pelos meios de comunicação.

Foi com essa e outras premissas que foi realizado um estudo, através de

pesquisadores no campo das ciências sociais e da comunicação da Universidade de

49 “1. A telenovela é um gênero representativo da modernização tardia por combinar o arcaico e o moderno (produto cultural híbrido). 2. A telenovela possui uma matriz narrativa popular e ativadora de competência cultural e técnica. 3. Pacto de recepção entre produção e recepção, no sentido de construção da competência cultural/de leitura do gênero ficcional pelo receptor. 4. Repertório compartilhado não significa consenso de sentido, mas antes luta pela interpretação mais legítima do sentido. 5. Telenovela cumpre funções de agenda setting: sujeitos compartilham experiências públicas e privadas (dramatizações) a partir de leituras da telenovela. 6. Modos de assistência/negociação como operações dos habitus: cada família cria seu palimpsesto (programação como intertextualidade). 7. Lógicas dos usos/lógicas da produção: expressam-se em cada família através de sua história com os meios” (LOPES et. alli, 2002, p. 36, grifo da autora).

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São Paulo e Pontifícia Universidade de São Paulo, intitulado Vivendo com a

telenovela – mediações, recepções, teleficcionalidade. O ponto de partida foi a

concepção que as mediações constituem-se enquanto um processo de interação

entre o espaço da produção e o da recepção, enquanto respostas às exigências que

surgem da trama cultural e dos modos de ver (MARTÍN-BARBERO; MUNHOZ apud

LOPES; BORELLI; RESENDE, 2002, p. 39).

Foram usados vários instrumentais de pesquisa, que mesclaram observações

de famílias de diferentes classes sociais, entrevistas com os diversos membros da

família e pesquisa bibliográfica50. A justificativa de seus pesquisadores centra-se na

importância dos estudos dos nexos entre os meios de comunicação e a audiência,

do ponto de vista menos homogêneo dos estudos de recepção51.

Em pesquisa realizada nas dissertações de mestrado e teses de doutorado

produzidas no Programa de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo, no período de 1998-2004, não foram encontrados registros de temática

que se refira, explicitamente, aos meios de comunicação como produtores, senão de

valores, de objetos das narrativas.

Esse silêncio no campo do serviço social se deve a vários motivos,

especialmente aqueles que têm privilegiado as situações mais concretas e mais

precárias de vida da população brasileira, assim como a prevalência dos estudos

que se voltam para o enfrentamento de questões intrínsecas ao movimento da

profissão no contexto nacional. Fruto de uma orientação ética bastante clara, nossa

tarefa tem sido, analisar, criticar, denunciar, apontar, colocar o dedo nas feridas da

sociedade brasileira. Contudo, algumas temáticas, ainda que não se caracterizem

como um objeto clássico de estudo no serviço social, necessitam ser abordadas e

50 “É claro que não podemos reproduzir, aqui, o que foi nossa experiência concreta de pesquisa, com suas inúmeras tentativas de ensaio e erro, os desvios e acertos, o ir e vir, os avanços e retrocessos, as pistas encontradas e as perdidas, os encontros e desencontros, com tudo isso se interpenetrando e se confundindo no plano do discurso científico e também no plano da experiência pessoa e interpessoal, naquilo que faz de cada pesquisa uma experiência de vida única.” (LOPES; BORELLI; RESENDE, 2002, p. 19) 51 “Os estudos de recepção na América Latina são muito recentes. Sua emergência se dá no início dos anos 1980, no bojo de um forte movimento teórico-crítico que procurava fazer uma reflexão alternativa sobre a comunicação e a cultura de massas através da perspectiva gramsciana, reflexão alternativa às análises funcionalistas, semióticas e frankfurtianas predominantes até então” (LOPES; BORELLI; RESENDE, 2002, p. 29).

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podem se configurar como um espaço de novas reflexões sobre a vida cotidiana52

contemporânea em grandes metrópoles, como é o caso da cidade de São Paulo.

A recepção através da televisão é o meio que torna possível a visualização do

que acontece no mundo em tempo real. Exemplo disso foi a difusão, em todos os

cantos do planeta, do ataque às torres gêmeas em Nova York, em 11 de setembro

de 2001. As conseqüências desse ato pretenderam justificar o massacre do povo

iraquiano promovido pelos Estados Unidos da América, sob a batuta de George W.

Bush, com a alegação de guerra contra o terrorismo. A televisão desempenhou

papel fundamental no que se refere à exploração do fato para justificar esse

desfecho. As centenas de cenas que se sucederam buscavam construir uma grande

cadeia de pertencimento a uma comunidade, a dos cristãos ocidentais, ameaçada

pelos muçulmanos orientais. Com o fim da Guerra Fria, fonte de todo tipo de conflito

durante cerca de meio século, esse evento tornou-se o meio não só de garantir uma

nova e conveniente polarização do mundo, dessa vez entre oriente e ocidente, como

também a reeleição de George W. Bush.

Nesse sentido, é fundamental que a recepção seja, cada vez mais, objeto de

estudos e que seja compreendida como um meio que coloca um desafio diferente

para os estudos sobre as culturas, sobretudo no que diz respeito à constituição das

lógicas expressas nas narrativas e à produção ou reprodução de valores aí contidos,

inclusive na dimensão das subjetividades.53

52 Até o dia da invasão do Iraque pelos Estados Unidos da América (18.03.2003) era quase inconcebível que, a despeito de todas as manifestações pela paz realizadas no mundo inteiro e contrariando as orientações da Organização das Nações Unidas (ONU), o presidente dos EUA, George W. Bush, ordenasse a invasão do Iraque. Essa invasão não só ocorreu com todos os requintes de uma guerra, como perdura até hoje, numa trágica sucessão de erros. Destacam-se os movimentos de deserção de soldados norte-americanos, dando-se tiros, usando drogas para não serem aprovados em exames médicos e outros expedientes para evitar a participação da campanha. Vale acrescentar, também, as torturas perpetradas pelos soldados americanos contra civis iraquianos, que horrorizaram o mundo pela desfaçatez, pelo descaso e o total desrespeito aos direitos humanos. Além disso, após longa batalha para libertação de uma jornalista italiana, já em 2005, que encontrava-se refém dos soldados iraquianos, os soldados americanos alvejaram o carro que a conduzia de volta e mataram um agente do serviço secreto italiano. A Itália, a partir desse episódio, embora tenha sido negado pela Casa Branca, anunciou a retirada dos soldados italianos do Iraque. 53 A Profa. Déa Fenelon, em aulas na PUCSP em 1998, contava que, durante algum tempo, lecionou numa cidade fora de São Paulo às segundas-feiras e que, para poder problematizar as questões em aula, era preciso assistir na noite anterior o “Fantástico”, da Rede Globo de Televisão, pois as temáticas que surgiam eram geradas pelas reportagens apresentadas durante o programa.

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É necessário considerar que a revolução tecnológica tem rebatimentos em

todos os setores da vida contemporânea e que, juntamente com a discussão do

acesso aos bens produzidos historicamente pela civilização, a televisão deve ser

analisada com todos os pressupostos teóricos já disponíveis, compreendendo-a

como uma realidade concreta, histórica, presente na praticamente totalidade das

casas brasileiras, sem o que será muito difícil compreender modos de viver e de ver

o mundo.

As concepções burguesas encontram-se impressas na cultura

contemporânea e nos encontramos atravessados, visceralmente, pelos apelos

constantes à valorização da intimidade, encerrados aos recônditos da vivência

doméstica, ao mundo visto através de um aparelho de televisão, onde o efêmero

ganha destaque com o zapear do aparelho e, assim, as subjetividades ganham

elementos produzidos por idéias que aparecem prontas para o consumo, sem

compartilhamento, sem trocas. No lugar da experiência, a introspecção e a

idiossincrasia. As trocas se dão somente em espaços privados, encerradas ao

âmbito doméstico. Muitos dos males que contemporaneamente se apresentam têm

relação com as dificuldades de enfrentar questões relativas à vida real, ao drama

propriamente dito da existência humana. Este, sim, raramente com um final feliz.

A televisão é um meio de comunicação bastante complexo. Para fazer chegar

a programação em forma de som e imagem a todas as casas são usados recursos

tecnológicos impressionantemente sofisticados, inclusive no campo da psicologia,

que sustentam, organizam e dirigem os bastidores das programações de TV, a ponto

de tudo se passar como se existisse “um mundo à parte”, uma fantástica fábrica de

onde brotam desejos, anseios, conhecimentos, viagens interplanetárias, ou seja, a

realização imagética e sonora de todos as cobiças humanas: uma grande fábrica de

ilusões.

Isso representa um tesouro de valor incalculável para os expectadores, mas

bastante calculável para as poucas famílias que detém o monopólio das

comunicações no Brasil, que são concessões do Estado. As emissoras de televisão

encontram-se dentre as mais ricas e poderosas empresas capitalistas no Brasil. A

família Marinho, proprietária da Rede Globo, é um exemplo não só de poderio

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econômico, como também de domínio, durante muitos anos, da audiência televisiva.

Isto significou, dentre vários exemplos, uma interferência clara e direta nos

resultados das eleições presidenciais de 1989 e de 1994:

A Rede Globo teve um peso desproporcional (qualquer que seja o parâmetro que se escolha para comparar) nas eleições de 1989 e de 1994. Nos dois episódios, o seu papel, naturalmente, foi o de preservação da ordem posta, o que se explica: a vocação desse modelo de televisão (que a Globo representa), desde que foi formado, é a de perpetuar a ordem autoritária que o gerou. (BUCCI apud BORELLI; PRIOLLI, 2000, p. 70).

Nas eleições de 1989 ficou nítida a posição da Rede Globo a favor de seu

candidato, Fernando Collor de Mello, naquele momento em disputa com o atual

presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva. Em 1994, um perfil adesista

determinou, segundo Borelli, um declínio da credibilidade dos telejornais da

emissora, forte produto da empresa, prova de que público reage, não é papel em

branco onde podem se inscrever valores aleatoriamente. A composição de valores

que dão referências para as ações no mundo é, sem dúvida, muito menos mecânica

do que se supõe.

O estudo sobre as telenovelas já citado apresenta questões que merecem ser

analisadas, no que se refere à transformação das temáticas apresentadas na TV em

signos usáveis (WILLIAMS,1979).

A televisão, veículo dos mais significativos, intervem de modo decisivo no processo de interação entre indivíduo e grupo social, seja através de imagens, seja através de enunciados discursivos e não discursivos. Dentre suas produções, a telenovela é opção privilegiada entre telespectadores, ainda que não tenha merecido a atenção adequada como objeto de análise nos meios acadêmicos (...) revela o fenômeno cuja principal característica é a de desencadear o processo simultâneo de representação e incorporação das relações sociais. (LOPES; BORELLI; RESENDE, 2002, p. 181).

Considerando que a telenovela aparece como uma representação

melodramática da vida social, descendente direta do romance popular dos folhetins,

que tanto na Europa quanto no Brasil tiveram autores expressivos, podemos

localizá-la como uma verdadeira representante do que Borelli considera a

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modernização tardia nacional, que une, tanto ao nosso gosto, o arcaico e o moderno

em sua composição (LOPES; BORELLI; RESENDE, 2002, p.182). Essa combinação

é absolutamente familiar, tanto na instituição da sociedade burguesa no Brasil,

quanto na própria constituição do serviço social no contexto nacional.

Essa é a justificativa para trazê-la para o debate das mediações subjetivas no

serviço social, para que possa auxiliar na compreensão, através de aproximações

sucessivas, de uma dimensão fundamental da vida, não enquanto depósito de

segredos ou tesouros inacessíveis, mas como fonte de processos acessíveis e

passíveis de serem transformados em conhecimento, compreendendo que os

estudos sobre recepção citados partem de uma premissa fundamental, a de que

ocorrem trocas em todos os campos da cultura, inclusive no televisivo.

A coexistência de experiências culturais atreladas a valores tradicionais a contrapelo de valores modernos proclama mudanças de mentalidades. Questionar efeitos subjetivos da recepção resgata a questão da representação psíquica do processo de modernização em andamento dentro e fora da telenovela. (LOPES; BORELLI; RESENDE, 2002 p.182).

6.2 - Religiosidade

Em recente pesquisa sobre as relações entre religião e serviço social, Pedro

Simões, pesquisador da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de

Janeiro, empreendeu uma análise sociológica que avaliou, meticulosamente, a

mediação religiosa nas intervenções de assistentes sociais brasileiros e ingleses.

Suas conclusões apontam para o seguinte: “...os vínculos existentes entre a religião

e o serviço social se estabeleceram desde suas origens, não só no Brasil, mas no

mundo, e (...) têm acompanhado o fazer profissional ao longo de todos os anos de

sua existência” (SIMÕES, 2004, p. 188).

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A questão da permanência de valores religiosos no serviço social está

relacionada, segundo o autor, não só à origem da profissão, principalmente na

América Latina, como um braço da Igreja Católica54, mas, sobretudo, às dificuldades

históricas do serviço social em definir seu expertise55 profissional e em estabelecer

fronteiras entre o voluntarismo e a ação profissional.

O autor postula que os valores religiosos presentes no serviço social, a

despeito da secularização do ensino na graduação, poderiam ter sido superados

...caso não encontrassem correspondência com valores religiosos dos assistentes sociais; caso a dificuldade de se estabelecer um expertise profissional não continuasse, sem uma clara definição, ao longo da história da profissão; caso, as fronteiras entre público e privado, Estado e Mercado, voluntário e profissional tivessem tido definições mais precisas, ao longo da história (SIMÕES, 2004, p. 23, grifo do autor).

Um trecho de suas entrevistas, extraído da fala de uma assistente social

brasileira, é bastante expressivo do caráter valorativo das intervenções:

...quando eu estagiei, trabalhei no Abrigo, por um ano, eu pude acompanhar e observar as mães. Durante este ano, as mães, o que evoluíram! Eu peguei a família sem ter as coisas necessárias básicas, elas não tinham. Depois de um ano, melhoraram, prosperaram. Assim de ter uma casa com as necessidades básicas preenchidas. Televisão, geladeira, estes aparelhos todos domésticos. Foram seis mães que participaram da Igreja Evangélica. Então isso eu pude constatar. As que não estavam [na Igreja Evangélica] eu pude ver que não melhoraram, não progrediram em nada. (...) Eu acho que é uma forma de educar que, às vezes, a religião consegue (apud SIMÕES, 2004, p. 174).

O assistente social no Brasil, em sua tarefa cotidiana na busca da

implementação de direitos, sucumbe, muitas vezes, assim como os sujeitos com os

quais trabalha, à idéia de que a mudança da mentalidade do sujeito ou da família

constituirá uma via de acesso a bens materiais e imateriais. No caso, a assistente

social referiu-se aos bens materiais e interpretou, enquanto mediação, a educação,

um bem simbólico.

54 Para Simões, “o serviço social brasileiro não surge para que houvesse uma clara diferenciação entre a assistência social religiosa e a profissional, mas para qualificar o apostolado social, aumentando, assim, a eficiência de suas ações religiosas” (2004, p. 31). 55 Expertise: perícia, habilidade.

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Os desafios colocados pela sociedade contemporânea geram um

desconforto cotidiano para esses profissionais diante do sofrimento humano. Os

valores e crenças oriundos, principalmente, do humanismo cristão – catolicismo,

espiritismo - permanecem subjacentes na constituição dos sentidos das vidas

desses indivíduos e são evocados constantemente como um importante alicerce da

ação profissional.

A análise de Simões contempla várias situações com as quais nos

deparamos na prática e no ensino do serviço social no Brasil. O profissional busca

uma compreensão teórica, usando conhecimentos que adquiriu no curso de

graduação, mas esses conhecimentos nem sempre são suficientes, e/ou encontram-

se desatualizados, e ademais, um escopo profissional jamais poderá constituir-se

como o único articulador dos sentidos de uma vida. O esforço para encontrar

explicações fica, muitas vezes, aderido ao mundo cotidiano, ao senso comum, aos

primeiros valores raramente reavaliados, tecidos no âmbito familiar, e por

formulações simplistas em relação à gravidade e à complexidade dos problemas

enfrentados.

Entretanto, ao contrário de Simões, penso que não está na questão da

definição de um expertise profissional a chave explicativa dessa questão. Embora

reconheça o borramento das fronteiras entre o voluntarismo e as práticas

profissionais, esse processo encontra-se referido à própria constituição da cultura

brasileira, sendo o serviço social, enquanto uma profissão de intervenção direta no

real, uma das que mais bem interpretam seu movimento e suas contradições.

Na pesquisa realizada para este trabalho, embora não sejam possíveis

inferências percentuais, a questão da religiosidade surgiu em todas as entrevistas,

ainda que de maneira transformada, ou seja, embora as assistentes sociais

pesquisadas tenham sido formadas dentro dos princípios do catolicismo, hoje há um

certo sincretismo religioso, permanecendo substantivamente a religiosidade como

mediação subjetiva. Essa característica é observável na busca de respostas para

questões afeitas às suas intimidades, momentos de dor ou incompreensão mais ou

menos superados, mas que necessitaram da atribuição de outros sentidos além dos

que concebem a vida como uma expressão material efêmera.

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Mas eu acho que a religião me dá esse suporte, de eu olhar pro outro e falar assim: “não, é, é sofrido, mas ele, isso vai, isso vai ter um, isso tem um objetivo”. E a questão da saúde, da doença mental também. Porque à luz da doutrina espírita, a doença mental são os desequilíbrios de outras vidas, né? (Judith)

Hoje em dia eu tenho muito lido umas coisas em relação ao budismo, sobre a medicina tradicional chinesa, né? Que eu acho que me dá algumas respostas. (Marly) Alan Kardec, eu gosto muito de ler, eu gosto muito de saber, porque acho que, acho que falta prá nós é saber o que acontece lá do outro lado...E eu sempre me identifiquei muito com isso, até porque eu tive um acidente e nesse acidente eu me senti em outro plano. Depois que eu me senti em outro plano, eu queria conhecer o que era isso e aí eu fui ler muito sobre Chico Xavier, Alan Kardec, li muito, né? (Luzia) Porque, seu vier ao mundo pra servir só a mim mesma, vai ser ruim. Que bom que eu posso servir uma comunidade... (Dagmar)

Segundo Rubem Alves, Durkheim afirmava: “aos fiéis pouco importa que

suas idéias sejam corretas ou não. A essência da religião não é a idéia, mas a força”

(apud ALVES, 1983, p.64).

O domínio das dificuldades pela fé coloca o sujeito numa situação que julga

privilegiada, diferenciada, para a ação. É como um esforço de concentração, um

suporte para os temores, para as incertezas e a crença de que, para além da dura

realidade concreta, hão de existir outros elementos com as quais poderá contar.

Segundo Simões,

...os assistentes sociais brasileiros e ingleses afirmaram que costumavam orar antes de realizar uma atividade assistencial”. (...) O uso da oração (...) poderia revelar apenas a fé que os profissionais detém. No entanto, ela revela mais: para os profissionais que assim procedem existem questões da prática profissional (e certamente de sua vida privada) que não encontram solução nas teorias sociais, nas técnicas interventivas, na experiência profissional própria e de colegas, mas apenas através do recurso a um poder superior, que mostrará o que fazer (2004, p.166-167, grifo do autor).

A pesquisa de Simões é bastante inquietante, pois problematiza um aspecto

que tem sido evitado, que é a marcante presença de princípios religiosos que não se

localizam apenas no nascimento da profissão, mas persistem e perpassam o

trabalho do assistente social.

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Uma das grandes dificuldades em tratar dessa questão é o necessário

cuidado para não tomar um distanciamento que, supostamente científico, torne-se

também um elemento dogmático e, portanto, gerador de pontos cegos que dificultem

a aproximação do problema proposto.

O que parece ser urgente e importante ressaltar nessas considerações é em

que medida a persistência de valores referidos ao humanismo cristão, que

preconizam que a restauração ou salvação da humanidade só se efetivarão após a

morte ou numa outra dimensão, impedem que rupturas sejam realizadas, que

radicalidades conceituais e práticas sejam efetivadas, persistindo assim, a despeito

das últimas produções políticas e teóricas do serviço social, práticas muito distantes

dessas formulações.

As marcas da religiosidade, segundo Simões, já foram apontadas por estudo

de Lídia da Silva (1991) que, ao entrevistar assistentes sociais de orientação teórica

marxista que influenciaram a profissão, observou que a quase totalidade desses

autores (dezenove das vinte e três entrevistas) tinham em suas histórias de vida

participação em movimentos da igreja católica e a escolha do serviço social como

profissão foi motivada por questões religiosas, “com fortes conotações políticas”

(SIMÕES, 2004, p. 137).56

Simões conclui que

A formação cultural dos asistentes sociais, especificamente da "primeira" geração marxista no serviço social, detém uma perspectiva de análise religiosa que determina, teórica e metodologicamente, a formação profissional (SIMÕES,2004, p. 139).

A presente pesquisa ratificou parcialmente a presença da religiosidade nas

narrativas (além do catolicismo, outras influências apareceram, como o kardecismo e

aspectos das filosofias orientais). 56 Os entrevistados foram: Alba Maria Pinho de Carvalho, Aldayr B. Barthy, Ana Ma. Quiroga F. Netto, Assunção Hernandes de Andrade, Eugênia Célia Raizer, Eva Teresinha S. Faleiros, Joaquina B. Teixeira, Josefa B. Lopes, José Paulo Netto, Leila Lima Santos, Maria Inês de S. Bravo, Maria Helena de Almeida Lima, Maria Helena L. Godinho, Maria Luiza de Souza, Marta Silva Campos, Nobuco Kameyama, Rosalina Santa C. Leite, Safira Bezerra Ammann, Suely Gomes Costa, Vicente de Paula Faleiros, Yara S. Vicini, Walderez L. Miguel e Lídia Ma. M. Rodrigues da Silva (SIMÕES, 2004, p. 139).

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Reconhecer, portanto, a busca da transcendência pela religiosidade como

uma mediação subjetiva importante e persistente e apreciá-la como uma matriz

cultural poderá possibilitar novas análises e abordagens, aproximando a produção

teórica do debate ético- político das práticas profissionais.

Para Gramsci,

O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que é realmente, isto é, um ‘conhece-te a ti mesmo’ como produto do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços acolhidos sem análise crítica. Deve-se fazer, inicialmente, essa análise (1999, p. 94).

O que resta observar é se essa presença marcante da religiosidade, como

uma mediação substantiva, põe em cheque o projeto ético-político da profissão, que

caminha na direção da superação dos processos alienantes. Nesse sentido, a

proposição de novos elementos para análise poderá possibilitar um auxílio na tarefa

de articulação dos assistentes sociais em torno da reflexão, discussão e publicização

dessas temáticas.

6.3 - Família

Os filhos são sob todos os aspectos, mesmo fisicamente, muito mais filhos da

mãe que do pai.

Auguste Comte

A organização familiar tem sido objeto de estudos por vários campos

teóricos. A psicanálise, particularmente, fundou uma compreensão sobre família

baseada em três eixos: a proibição do incesto; a autoridade paterna, fraturada na

passagem da família autoritária e patriarcal para a família romântica do século XVIII;

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e a diferença entre os sexos57. No entanto, os avanços da ciência na área da

reprodução, prescindindo das relações sexuais; os golpes à autoridade paterna, que

se iniciam no século XVIII, quando o advento da burguesia colocou a maternidade

no centro da família (ROUDINESCO, 2002), e prosseguem por dois séculos,

culminando com a entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho na

segunda metade do século XX e o renascimento do feminismo a partir dos anos 60;

e os movimentos identitários, como o homossexual, parecem elementos

suficientemente perturbadores para justificar não só agonia, mas o desfecho da

novela familiar como a víamos desenrolar-se até aqui58.

Elizabeth Roudinesco, no entanto, propõe a reinvenção da família como uma

organização social viva, malgrado suas metamorfoses contemporâneas:

...para os pessimistas que pensam que a civilização corre o risco de ser engolida por clones, bárbaros bissexuais ou delinqüentes da periferia, concebidos por pais desvairados e mães errantes, observamos que essas desordens não são novas – mesmo que se manifestem de forma inédita –, e sobretudo que não impedem que a família seja atualmente reivindicada como único valor seguro ao qual ninguém quer renunciar. (ROUDINESCO, 2003, p. 198).

57 “Podemos distinguir três grandes períodos na evolução da família. Numa primeira fase, a família dita ‘tradicional’ serve acima de tudo para assegurar a transmissão de um patrimônio. Os casamentos são então arranjados entre os pais sem que a vida sexual e afetiva dos futuros esposos, em geral em idade precoce, seja levada em conta. Nessa ótica, a célula familiar repousa em uma ordem do mundo imutável e inteiramente submetida a uma autoridade patriarcal, verdadeira transposição da monarquia de direito divino. Numa segunda fase, a família dita ‘moderna’ torna-se receptáculo de uma lógica afetiva cujo modelo se impõe entre o final do século XVIII e meados do XX. Fundada no amor romântico, ela sanciona a reciprocidade dos sentimentos e os desejos carnais por intermédio do casamento. Mas valoriza também a divisão de trabalho entre os esposos, fazendo ao mesmo tempo do filho um sujeito cuja educação sua nação é encarregada de assegurar. A atribuição da autoridade torna-se então motivo de uma divisão incessante entre Estado e os pais, de um lado, e entre os pais e as mães, de outro. Finalmente, a partir dos anos 1960, impõe-se a família dita ‘contemporânea’- ou ‘pós-moderna’ – que une, ao longo de uma duração relativa, dois indivíduos em busca de relações íntimas ou realização sexual. A transmissão da autoridade vai se tornando então cada vez mais problemática à medida que divórcios, separações e recomposições conjugais aumentam”(ROUDINESCO, 2003, p. 19 ). 58 Um aspecto da crise da família contemporânea pode ser inferido pela sua retração numérica. Segundo Hobsbawm, nos EUA, as famílias compostas por casal casado com filhos, caíram de 44% de todas as casas para 29%, em vinte anos (1960-1980). Em contrapartida, o número de pessoas vivendo sós também disparou nesse período, chegando a quase duplicar na Grã- Bretanha de 12% para 22% de todas as casas entre 1960 e 1980, e em 1991 eram mais de um quarto. Também deixaram de ser típicas: em 1991, 58% de todas as famílias negras dos EUA eram chefiadas por uma mulher sozinha (em 1940, eram 11,3%) e 70% de todas as crianças tinham nascido de mães solteiras (HOBSBAWN, 2000, p. 316).

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O princípio da autoridade, em crise, por um lado

...se opõe, pela afirmação majestosa de sua soberania decaída, à realidade de um mundo unificado que elimina as fronteiras e condena o ser humano à horizontalidade de uma economia de mercado cada vez mais devastadora, mas por outro incita incessantemente a se restaurar na sociedade a figura perdida de Deus pai, sob a forma de uma tirania. Confrontada com esse duplo movimento, a família aparece como a única instância capaz, para o sujeito, de assumir esse conflito e favorecer o surgimento de uma nova ordem simbólica. (...) Do fundo do seu desespero, ela parece em condições de se tornar um lugar de resistência à tribalização orgânica da sociedade globalizada (ROUDINESCO, 2003, p. 199).

Um tema caro para o serviço social, a família tem recebido quase

consensualmente nos últimos anos a tarefa de promover uma sociabilidade sadia

para seus componentes, criar novos arranjos afetivos, garantir a estabilidade

emocional de seus integrantes, participar da vida comunitária, ser agente de ação e

transformação de espaços educacionais, ser guardiã de valores que possam impedir

o esgarçamento do tecido social, enfim, é a organização social mais conclamada

para execução de programas sociais voltados para a inclusão.

Teoricamente, há um investimento por parte de autores de várias áreas em

tematizar, polemizar e trazer contribuições para o debate acadêmico e no âmbito da

formulação de políticas públicas. Uma das autoras que se destaca nessa área, Maria

do Carmo Brant de Carvalho59 , observa:

Há no desenho da política social contemporânea um particular acento nas microssolidariedades e sociabilidades sócio-familiares pela sua potencial condição de assegurar proteção e inclusão social (CARVALHO, 2000, p. 16)

A autora propõe, alertando que não se trata de uma “revalorização nostálgica

e conservadora” da família, que sejam desenvolvidas ações que a contemplem em

todos os níveis:

59 Maria do Carmo Brant Falcão foi uma das idealizadoras e executoras do “Comunidade Solidária” no Governo Fernando Henrique Cardoso. Esse programa sofreu críticas severas por parte dos intelectuais envolvidos com a questão dos mecanismos proteção social no país.

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Acolhimento e escuta – Os serviços vêm colocando uma ênfase maior na escuta das queixas da família ou de algum de seus membros. Tem-se observado que o acolhimento e escuta empática (...) por si sós, atuam como detonadores de solução de problemas ou de busca ativa e cooperativa da solução de problemas (...). Rede de serviços de apoio psicossocial, cultural e jurídico à família - Estes serviços são extremamente necessários e incluem desde a atenção psicossocial especializada de serviços de saúde mental até os lúdicos socializantes (...). Programas de complementação de renda – No Brasil tais programas começam a se tornar numericamente significativos. (...) há avaliações positivas sobre seus impactos quando articulados a processos de apoio sócio-informacional e fortalecimento da autonomia familiar. Programa de geração e trabalho e renda – Também estes são fundamentais no processo emancipatório e de autonomização almejado por famílias em situação de pobreza absoluta ou relativa. (...) são tímidos no Brasil e pecam, em geral, pela falta de insumos necessários... (CARVALHO, 2000, p. 18-19, grifo da autora).

Apesar do relativo sucesso de alguns programas espalhados pelo país de

1998 a 2002, essas ações voltadas para o privilégio das microssociabilidades

favorecem uma inversão, no sentido de tomar um efeito como causa, através da

focalização da família como o núcleo onde se criam novas possibilidades de

solidariedade e de onde brotam atitudes criativas para enfrentar a pobreza e o

abandono político, econômico e social.

Ademais, voltam a ser privilegiadas as investidas intersubjetivas, baseadas na

capacidade de sentir ou gerar empatia, qualidade que certamente não se aprende

num curso de graduação. Esse aspecto, em particular, pode ser danoso no exercício

profissional, por incentivar o uso de procedimentos baseados em concepções

próprias sobre famílias e, ainda, valorizar o aspecto catártico da intervenção, que

não pode ter efeitos duradouros.

A família ganhou lugar de destaque nas políticas públicas brasileiras, como o

próprio Programa de Saúde da Família (PSF), que vem sendo implantado pelo

Ministério da Saúde desde 1995 numa tentativa de reorganizar o atendimento

básico.

O que é inquietante, contudo, não é a atenção que a família eventualmente

possa receber por parte do Estado mas, sim, a homogeneidade do discurso que

encobre as contradições. Se, no campo da assistência social, permanecem as

contradições sobre sua real configuração como um instrumento de garantia de

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inclusão dentro do frouxo contexto de proteção social no Brasil, com a família isso

não vem ocorrendo.

Se, por um lado, criticam-se as idealizações da família burguesa tradicional,

ou nuclear, composta de pai, mãe e filhos, por outro, a mesma organização social,

com arranjos mais flexíveis, tem sido objeto de investidas por parte do poder público.

Malgrado suas metamorfoses, continuam sendo consideradas os principais baluartes

da sociedade, onde tudo se pode prevenir e/ou remediar.

Se forem as mulheres os chefes de família60 atuais, com filhos de pais

diferentes que se foram, considera-se que “empoderá-las” é a solução,

considerando-as as legítimas ocupantes de um lugar historicamente destinado ao

homem. Esse “empoderamento” ao modo nacional significa, na maioria das vezes, a

inclusão em um programa de complementação de renda de uma renda que não

existe. A total falta de condições mínimas para ultrapassar aquela situação nunca é

realmente enfrentada pelo poder público.

Senão, vejamos: as estatísticas demonstram que as mulheres ganham, para

desempenhar as mesmas atividades dos homens, trinta por cento menos do que

eles. Há uma sucessiva tentativa por parte das mulheres das periferias de São

Paulo, assim como de qualquer pessoa de outras classes sociais, de uma realização

afetiva, o que as leva a procurar companheiros que lhes dêem alguma proteção e

que trabalhem para ajudar no sustento da casa. Ter um filho desses companheiros

é, muitas vezes, uma demonstração de amor e fidelidade. Isso significa que, quando

ele se vai – o que frequentemente ocorre – ela ficará com mais uma criança para

cuidar.

Não é raro, também, que sejam vítimas, assim como suas crianças, de

agressão física e coação na hora do relacionamento sexual, o que torna a

negociação do uso de preservativos particularmente difícil porque coloca em questão

o poder dos homens sobre as mulheres, que se demonstra exuberantemente no ato

sexual. Também é comum que o companheiro faça uso abusivo ou seja dependente

60 A palavra “chefe” só pode ser aplicada ao gênero masculino; se usada no feminino, a expressão deveria ser “as chefas”. Na redação foi mantida a expressão utilizada comumente.

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de alguma droga, especialmente o álcool. Essas situações são públicas, inclusive

através dos programas de televisão61, e corriqueiras em qualquer plantão social.

A família tem sido objeto de estudos, de avaliações e de propostas e,

freqüentemente, tem sido indicada para salvaguardar a ordem, conter a

criminalidade e assegurar os valores da sociedade burguesa, ainda que não seja

mais exatamente como “deveria ser”. O modelo socialmente aceito continua sendo o

modelo nuclear. Continuam presentes, na linguagem jurídica, do serviço social, da

psicologia e outras, as expressões “família desestruturada” e “família incompleta”.

Ou seja, para dar conta de todas aquelas tarefas que a sociedade lhe atribuiu

através da escola, dos programas de assistência social, dos serviços de saúde, dos

organismos de proteção à criança e adolescente, essa mulher deve, com

pouquíssima ou quase nenhuma qualificação profissional, cuidar dos filhos e da

manutenção da casa, sem contar que deve, igualmente, dar conta de seus desejos.

Isso sim, porque é importante que ela continue desejando para que possa consumir.

A sexualidade feminina torna-se alvo, ao mesmo tempo, de críticas ferozes e

romantizações por parte dos serviços de saúde, da mídia e dos companheiros.

Se elas não têm o poder, as mulheres têm, diz-se, poderes. No Ocidente contemporâneo, elas investem no privado, no familiar e mesmo no social, na sociedade civil. Reinam no imaginário dos homens, preenchem suas noites e ocupam seus sonhos. “Somos mais do que a sua metade; somos a vida que vocês passam para seu sono; e pretendem vocês dispor o plano dos seus sonhos”, declara uma heroína de romance, nesse século XIX que, mais do que qualquer outro, celebrou a Musa e a Madona (PERROT, 1988, p. 167, grifo da autora).

Segundo Perrot, as representações sobre o poder das mulheres são

antigas, a começar pelo livro bíblico de Gênesis, que apresenta Eva, a eterna

sedutora, como aquela que originou o mal e a infelicidade humanas. Em oposição à

lucidez masculina na claridade do dia, a mulher tem sido representada como a

“potência noturna, força das sombras, rainha da noite” (PERROT, 1988, p.168),

compondo o tecido social com uma imagem da mulher que, mesmo sendo colocada

num plano inferior em termos econômicos, civis, políticos e sociais, supostamente é

61 Existem vários programas religiosos de televisão que expõem os dramas familiares para promover os aconselhamentos de pastores, padres e mesmo de jornalistas. Basta ligar a TV nos horários noturnos para assistirmos pessoas narrando suas experiências e pedindo ajuda emocional.

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detentora do poder invisível e perigoso de reinar nos bastidores e de dirigir os

inocentes homens tal qual marionetes62. Essa concepção, totalmente vigente ainda

hoje, influenciou vários campos de conhecimento:

Inspiradora da decisão política, muitas vezes tomadas “sobre o travesseiro”, a mulher, em si tão pouco criminosa, é a verdadeira instigadora do crime. “Procurem a mulher” dizem em coro Lombroso e Joly63 (PERROT, 1998, p. 168).

É ainda Perrot que indica que não só através de interpretações negativas as

mulheres foram representadas socialmente: “ As mães possuem ‘os destinos do

gênero humano’. (...) A figura obcecante da Mãe tende a absorver todas as outras”

(1998, p. 169). O tema da “potência civilizadora” feminina foi uma reatualização, no

século XIX, de uma temática já presente na civilização64. A revalorização da criança

e das funções educadoras femininas garantiram a função de Mãe, que ainda

permanece hipertrofiada no imaginário social, amplamente explorada pela mídia,

principalmente para estimular o consumo.

Perrot refere que houve uma inversão a partir da lógica da privatização:

Observemos quão atual é essa problemática da inversão. Ela é reforçada pela importância conferida à sociedade civil e seus atores, à dimensão privada da vida. Em época de privatização, (...) o pólo feminino da sociedade se tornaria prioritário (PERROT, 1998 p. 169).

Essa nova responsabilidade atribuída às mulheres ressoa política, econômica,

social e culturalmente. Tornou-se uma idéia comum. A autora reputa essa inversão

também à pesquisa feminista que, ao buscar a superação de um discurso da

opressão e assim subverter o ponto de vista da dominação, procurou uma

demonstração mais exuberante dos supostos poderes femininos, uma marca cultural

específica das mulheres e da plenitude de seus papéis sociais (PERROT, 1998, p.

170).

62 Conferir MacBeth. 63 Nota da autora: “Célebres criminologistas do século 19”. 64 Desde a primeira cena de Gênesis, através da figura sedutora de Eva (PERROT, 1988, p. 168).

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A própria Perrot se insere nesse movimento de inversão das perspectivas

historiográficas tradicionais, através de texto publicado em Historie sans qualité

(História sem qualidade):

...eu, por minha vez, quis substituir a representação dominante de uma dona-de-casa insignificante, negligenciada e negligenciável, oprimida e humilhada, pela de uma “mulher popular rebelde”, ativa e resistente, guardiã das subsistências, administradora do orçamento familiar, no centro do espaço urbano (PERROT, 1998, p. 172).

A autora alerta para o risco de, ao delimitar um lugar social de poder, manter-

se a situação como está já que, se as mulheres têm poderes, do que reclamam? O

que reivindicam? Mantê-las nesse lugar, com essa aposta numa cultura

intrinsecamente feminina, camufla o jogo de poder que a análise do poder das

mulheres implica (PERROT, 1998, p. 172).

No Brasil, as mulheres são representadas através de todas essas fabulações:

sedutora, protetora, autoritária, mentora, oprimida, opressora e assim por diante. O

que interessa, contudo, nesse momento, é a reflexão sobre quanto dessas

concepções encontram-se presentes nas mentes dos planejadores e executores das

políticas públicas no Brasil, em especial, no ideário dos agentes terminais das

políticas públicas voltadas à criança e ao adolescente, aos velhos, aos doentes

físicos e mentais, que persistem na identificação da mulher (mãe, irmã, avó ou tia)

como as figuras preferenciais para a responsabilização pelo cuidado desses grupos

sociais mais vulneráveis.

Ao lado dessa supervalorização de algumas funções femininas, a sociedade

caminha num rigoroso e cruel patrulhamento e, efetivamente, julga e condena os

atos dessas mulheres. A sua utilização social como uma protetora sem nenhuma

proteção coloca essas mulheres numa condição duplamente perversa e essa

perversidade se desdobra em múltiplas ações e reações que se estendem pelo

tecido social. É sabido que quem sofre por injustiças pode, também, inflingir a dor.

Dessa forma, perpetuam-se os mecanismos de manutenção de uma ética da

vigilância, do julgamento e da punição como os principais dispositivos da estrutura

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da sociedade brasileira, tão assemelhada nesse aspecto à sociedade

estadunidense.

O risco de perpetuar essa imagem heróica da mulher, submetendo-a

novamente à mesma responsabilização, é manter uma situação de opressão

feminina que em nada deixará avançar nas reflexões sobre a desigualdade de

gênero em nosso país, altamente conservador e brutalmente injusto.

Enquanto isso, emudecem os estudos sobre a análise política do poder

exercido pelos homens, restando a eles, muitas vezes, um lugar determinado pela

banalização da violência através de sua naturalização, deixando-os entregues ao

duplo lugar de vítimas e algozes. Talvez se parássemos de observar as sociedades

num viés que ora condena as mulheres, ora as torna heroínas, pudéssemos

realmente avançar numa concepção que se justificasse enquanto uma verdadeira

práxis.

Nas palavras de Engels, a consolidação da propriedade privada, o casamento

burguês enquanto chave da opressão das mulheres significou “a derrota histórica do

sexo feminino” (apud PERROT, 1998, p. 175).

6.4 - Política

A história recente do serviço social está atrelada à constituição de um sujeito

político, o Partido dos Trabalhadores. Os anos 80, fundamentais para o debate ético-

político do serviço social, foram, igualmente, anos em que a sociedade brasileira

pôde organizar-se em torno de grandes conquistas, uma delas a própria Constituição

de 1988. A intensa movimentação das forças políticas democráticas nacionais

imprimiu uma nova dimensão ao serviço social e impregnou seus agentes com uma

característica inédita: o de ser um militante de um partido de esquerda, nacional,

legalizado.

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A questão da ética, tanto na política quanto na administração pública, na

criação e desenvolvimento de políticas públicas, passou a constituir um debate

instigante e re-instituinte do lugar da profissão para os assistentes sociais. Esses

novos elementos instituintes e instituídos pelo movimento político nacional de

esquerda foi protagonizado pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Portanto, os

debates recentes do serviço social encontram-se, assim como a sociedade

brasileira, entrelaçados à constituição desse novo sujeito político.

O PT agregava o que existia de mais progressista na esfera da organização

das forças sociais, através da disputa política organizada, construída organicamente.

Pela primeira vez na história brasileira, intelectuais como Florestan Fernandes,

Francisco de Oliveira, Ricardo Antunes, Octávio Ianni, Marilena Chaui e tantos

outros puderam expressar, através do partido, suas concepções políticas, com

propostas que prefiguravam um novo projeto societário para o país, numa vigorosa

produção teórica e numa ação militante.

Concentrando uma militância nascida principalmente a partir do movimento

sindical brasileiro, o PT irradiou-se para outras classes e frações de classes sociais.

Em 09 de junho de 1988, Florestan Fernandes perguntava-se pelo destino do

PT num país com uma colossal quantidade de problemas a enfrentar:

O PT ainda é um partido "virgem", que não foi deformado por duas moléstias legais: 1) o clientelismo, o paternalismo e o fisiologismo, que constituem o traço marcante de nossa tradição política subdemocrática; 2) pelo convívio com o poder, especialmente o poder institucional, organizado e corroído por interesses espúrios. Não são suas origens operárias nem suas posições socialistas que o protegem. É a sua idade, o idealismo por vezes cru e ingênuo, mas sadio e libertário, que o impulsiona nas contestações, nas solidariedades, nos sacrifícios que exigem companheirismo invulnerável nas lutas políticas cotidianas. O partido se tece, avança gradualmente, transforma-se. Dentro dele convivem várias ideologias e políticas de esquerda. Qual vencerá? Como será o PT em seu estágio maduro? Repetirá a tragédia da social democracia européia, os dramas do partido comunista ou se revelará capaz de unir as várias tendências e gerar o partido de esquerda de novo tipo que as Américas ibéricas necessitam? (http://www.folha.uol.com.br)

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A principal expressão desse movimento em São Paulo, com especial

repercussão no serviço social, foi a eleição para a prefeitura da assistente social

Luiza Erundina de Souza (1989-1992).

Esse período, considerado por muitos profissionais o mais importante para o

desenvolvimento das ações e mudança de conceitos sobre as políticas públicas,

introduziu um debate no âmbito da saúde renovador e ativo. Os assistentes sociais

puderam construir ações voltadas para o interesse da população subalternizada.

Mesmo aqueles que não eram militantes ou que não concordavam com as iniciativas

tiveram a oportunidade de participar dos debates e refletir sobre a necessidade de

um compromisso político com a defesa e implementação de direitos. Em outros

termos, puderam promover uma remodelação de sentidos.

Segundo Sève (1989, p. 166, grifo do autor):

O fato, por exemplo, de que existam uma infinita variedade de estilos subjetivos de vida militante não torna evidente que essa lógica de vida, longe de ser uma “racionalização” dessa compulsão específica, é, pelo contrário, adequada para incorporar a si as compleições mais diversas - evidentemente, singularizando-se a elas em sua essência e até mesmo remodelando-os em sentidos bastante diferentes?

Florestan Fernandes, comparando os programas de Plínio de Arruda Sampaio

(candidato preferencial dentro do PT na época) e de Luiza Erundina, em publicação

na Folha de São Paulo em 09/06/1988, observava:

Os proletários não formam nem multiplicam conselhos populares e tão pouco optam em massa por partidos de esquerda. Dispersam-se e fortalecem os blocos de poder da burguesia, com seus candidatos tipo Montoro, Quadros ou Quércia. Por isso, as campanhas do PT devem conter elevado teor de socialização política .Em meu entender, é aí que se tornam nítidas certas vantagens incisivas do programa de Erundina. Ele aponta, com extrema acuidade, os dilemas que São Paulo descarrega sobre os miseráveis, os mais ou menos pobres, os trabalhadores, como uma das megalópolis mais cruéis e desumanas da era atual. Dilemas que são políticos e somente se apresentarão como questões administrativas quando forem submetidos a controle social (http://www.folha.uol.com.br)

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O efetivo exercício da cidadania, a luta pela hegemonia, a disputa politizada,

o expressivo avanço dos movimentos pelos direitos das populações historicamente

excluídas faziam parte da efetivação do Sistema Universal de Saúde (SUS) e

estavam contemplados nas ações de saúde em todos os níveis de atenção.

Assim, em 1990, todas as Unidades Básicas de Saúde (UBS) do Município de

São Paulo receberam em seus quadros profissionais para desenvolver várias ações,

principalmente na área da saúde mental: médicos psiquiatras, assistentes sociais,

psicólogos e terapeutas ocupacionais.

Profissionais de diversas áreas engajavam-se concretamente nas disputas

políticas, através de chapas para conselhos gestores, montagem de serviços, ainda

que com precariedade de recursos, e construção de um modelo de gestão

democrática, com efetiva parceria com a população.

O governo municipal de Luiza Erundina é até os dias de hoje lembrado, tanto

pela população mais organizada quanto pelos profissionais, como sendo a

expressão mais bem acabada do que deveria ser o setor público, principalmente na

área da saúde: resolutivo e politizado.

A esse governo sucederam-se oito anos sob o mando de um dos mais

expressivos políticos da direita conservadora no país, Paulo Salim Maluf, e seu

sucessor, Celso Pitta. Juntos, promoveram na área da saúde o impensável:

terceirizar a saúde pública com erário público, ou seja, contratar a iniciativa privada

para administrar, oferecer serviços, comprar material e equipamentos e remunerar

aqueles funcionários que aderissem ao modelo, o finado Plano de Assistência à

Saúde (PAS).

Florestan Fernandes, em 30.11.92, escreveu no Jornal Folha de São Paulo

num tom direto, quase como um desabafo:

Depois de uma administração como a de Luiza Erundina de Souza, recaímos no padrão arcaico do mandonismo, do fisiologismo e das falsas esperanças. Alguém poderá exercer um governo sério com um secretário que promete endividar a cidade e quer enterrar US$ 50 milhões emprestados para restabelecer prioridades pecuniárias dos de cima?

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(...)

Os que viveram o passado combatendo ou sofrendo os pendores do sr. Paulo Maluf já sabem o que nos aguarda. O seu antipetismo não é mero equivalente do anticomunismo. "Nada temos contra o Suplicy, o que não queremos é o PT mandando aqui." Essa bandeira de ordem significa o passado redivivo. Intolerância, repressão e opressão, indulgência e troca de favores entre os poderosos e privilegiados, capitalismo e politicismo sem risco, em suma, a filosofia de que "os fins justificam os meios". Pobre cidade de São Paulo! (http://www.folha.uol.com.br)

O modelo do PAS implantado no município em 1996 gerou muito mais que o

desmonte e o sucateamento de serviços, promoveu um arrastão de valores éticos

que até ali se haviam construído. Esses valores, afiançados pela implantação do

SUS, importante avanço na área da saúde pública nacional garantido pela

Constituição de 1988, vinham sendo construídos através das Conferências

municipais, regionais e nacionais de saúde, da politização dos movimentos de

saúde, da participação desses movimentos nos Conselhos Gestores das unidades

de saúde e hospitais, em continuidade aos movimentos que se processaram na

década de oitenta que revelaram “novos personagens”.

Pequenas lutas que, no dizer de um outro, são “lutas por migalhas” e, ao mesmo tempo, “uma luta interessante”. Que são as migalhas das pequenas vitórias das pequenas lutas? São a experiência que os excluídos adquirem de sua presença no campo social e político, de interesses e vontades, de direitos e práticas que vão formando uma história, pois seu conjunto lhes “dá a dignidade de um acontecimento histórico” (CHAUI In: SADER, 1988, p. 12).

A posição militante dos assistentes sociais no contexto das lutas políticas

coletivas, embora discutível do ponto de vista do que se pode considerar profissional

ou não profissional foi, sem dúvida, a nova experiência instituinte.

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Capítulo 7 - O contexto e o tempo do trabalho no s erviço social

O exame dos exemplares dos jornais do Conselho Regional de Serviço Social

São Paulo – CRESS – 9a. Região pretendeu conhecer de que maneira, ao longo dos

vinte e cinco anos de sua publicação, deu-se a veiculação de informações gerais e

específicas sobre o trabalho profissional junto aos inscritos no Conselho.

Num primeiro momento, buscou-se temas relacionados às condições do

trabalho que se aproximassem do exercício cotidiano dos assistentes sociais, à

medida que a profissão se encontra na esfera capitalista da reprodução social da

vida. Segundo Yazbek, “...a profissão só pode ser entendida no movimento histórico

da sociedade. Sociedade que é produto das relações sociais, de ações recíprocas

entre os homens, no complexo processo de reprodução social da vida” (YAZBEK,

2004, p. 13). Essas temáticas estavam praticamente ausentes desse veículo,

conforme apontam os resultados.

A característica básica de um conselho regional de categoria é a fiscalização

do trabalho profissional, no sentido de salvaguardar seus princípios fundamentais

expressos no Código de Ética. O jornal é uma unidade de informação que segue a

linha editorial da Diretoria que está constituída naquele período, eleita pela categoria

profissional a cada quatro anos. Em linhas gerais, seu conteúdo refere-se tanto às

questões burocráticas e administrativas, quanto aos assuntos que, naquele

momento, tornam-se relevantes para o conjunto de profissionais. Além desse

aspecto, busca atualizar os seus leitores quanto a temas polêmicos, com artigos

sobre temas específicos, entrevistas e debates.

A produção do jornal do CRESS sempre contou com um profissional da área

de jornalismo. Um aspecto que chamou atenção, porém, é a ausência da tiragem do

jornal. Esse dado poderia dar uma noção do número de profissionais que estaria

tendo acesso as suas informações. Como se trata de um jornal de categoria,

presume-se que todos os inscritos recebam o informativo. Outro aspecto intrigante é

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a numeração é irregular. Em 1990, por exemplo, há novamente um exemplar de

número 1. Houve também dificuldade de distinguir uma linha jornalística de

ordenação das matérias. Em muitos exemplares, foi difícil a identificação do que

estava sendo tratado como artigo principal. O mesmo ocorreu com relação à

manchete, o assunto mais urgente. O jornal recebeu diversos títulos ao longo dos

anos. Atualmente, é veiculado na forma impressa e via internet e a apresentação

gráfica teve uma melhora significativa.

A análise empreendida é relevante à medida que, embora haja uma produção

teórica no campo do serviço social bastante significativa, esse é o único meio de

comunicação de tendências e debates que chega aos assistentes sociais

gratuitamente e em seus locais de residência. O mercado editorial brasileiro

apresenta grandes restrições, principalmente quanto ao custo das publicações, para

a aquisição de livros e periódicos se considerarmos a baixa remuneração dos

profissionais. Além desse aspecto, a falta do hábito de leitura, assim como o difícil

acesso a bibliotecas e livrarias especializadas, representam importante dificuldade

para atualização dos elementos teóricos que darão sustentação ao trabalho do

assistente social.

Evidentemente, o jornal do CRESS não tem, a princípio, essa tarefa colocada,

a de suprir a necessidade de leitura. Porém, de fato, é um elemento que sinaliza

temas, convoca para reuniões e conferências, mobiliza a categoria para congressos

e encontros, além de pontuar aspectos conjunturais que são fundamentais para o

trabalho.

Para uma representação temática das chamadas de capa e artigos principais,

destacamos a freqüência, no total de edições, de algumas categorias

numericamente mais significativas no período de vinte e cinco anos pesquisado,

independentemente do ano de publicação e da composição da Diretoria.

1. Políticas públicas (criança e adolescente, LOAS, educação, habitação, saúde)

• Capa ..... 16,64%

• Artigo ..... 40,56%

• Total : 57,2%

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2. Atuação do Conselho (eleições, prestação de contas, demissões,

reformulação do Código de Ética)

• Capa ..... 40,56%

• Artigo ..... 11,44%

• Total : 52%

3. Direitos humanos, econômicos, sociais, políticos e culturais (Gênero,

raça/etnia, infância e adolescência, saúde mental, movimentos sociais).

• Capa ..... 10,4%

• Artigo ..... 20,8%

• Total : 31,20%

4. Posicionamentos políticos (chamamento da categoria para a participação

política)

• Capa ..... 16,64%

• Artigo ..... 11,44%

• Total : 28,08%

5. Convocação para Encontros e Congressos

• Capa ..... 8,32%

• Artigo ..... 4,16%

• Total : 12,48%

6. Marcos da categoria (Dia do Assistente Social, 50 anos de Serviço Social)

• Capa ..... 9,36%

• Artigo ..... 1,04%

• Total : 10,4%

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7. Debates teóricos sobre o trabalho do assistente social

• Capa ..... 5,2%

• Artigo ..... 10,4%

• Total: 16,6%

8. Mercado de Trabalho

• Capa ..... 2,08%

• Artigo ..... 4,16%

• Total : 6,24%

9. Organização sindical

• Capa ..... 1,04%

• Artigo ..... 1,04%

• Total : 2,08%

O que se pode observar, numa breve análise, é que os temas mais

representados referem-se às políticas públicas e atuação do Conselho. O primeiro

demonstra a preocupação em informar e fomentar a discussão em torno das

políticas públicas, principal instrumento na consolidação dos direitos e importante

norteador da atuação profissional. O segundo é coerente com a formulação de um

jornal de categoria profissional. Outras temáticas aparecem de maneira

representativa, por exemplo, as discussões sobre direitos humanos (31,2%),

englobados aí temas sociais e políticos contemporâneos.

O que chama atenção, porém, pela sua baixa representação, é o tema da

organização sindical (2,08%). Além da discussão do mérito, se há ou não

necessidade de um sindicato próprio, há um aspecto que pode encontrar-se

subsumido, qual seja, a discussão, a publicização das condições de trabalho dos

assistentes sociais. Este é, a meu ver, um verdadeiro ponto cego nos artigos

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produzidos pelo jornal do CRESS. Não há, exceto em dois números do Jornal (n°. 3

– jan/fev, 1994 – “Convivência gera cidadania” e n°. 4 març/abr, 1994 – “Uma luta

que vale a pena”), qualquer menção a relatos de experiências onde apareçam

nitidamente concepções que norteiam o trabalho cotidiano.

Outros artigos que se referem ao trabalho profissional são, em geral, os

relatos isolados de programas e projetos, destacando as especificidades do

trabalho, por exemplo, o trabalho do Hospital das Clínicas com epilépticos e o

trabalho do Hospital Geral de Taipas com usuários de drogas e outros ( conferir

Anexo I).

A questão que intriga é a desvinculação das condições de trabalho,

essencialmente penosas, do debate da categoria. À medida que não são trazidas

para a esfera pública , seu debate se encerrará ao campo privado, oferecendo

trocas restritas, através de elementos para análise bastante limitados, sobretudo no

que se refere à construção das mediações entre teoria e prática.

Em recente palestra, José Paulo Netto65 foi argüido por uma assistente social

que trabalha na Prefeitura de Belo Horizonte na área de saúde mental:

O meu problema é o seguinte: concordo com tudo o que você falou, mas, na minha prática individual, quando eu estou fazendo acolhimento em saúde mental, atendimento aos meus neuróticos graves, que estão lá, pedindo socorro, eu tenho lá duas posições que eu posso encaminhar no meu fazer profissional: ao mesmo tempo em que eu tenho diante de mim um cidadão, um sujeito que eu posso falar para ele ir lá na Comissão Estadual de Saúde, para ele ir denunciar no SOS saúde da Prefeitura de Belo Horizonte, a falta de medicação, a falta de psiquiatras, etc, eu tenho um sujeito sofrendo diante de mim, uma individualidade e, diante dessa individualidade, eu posso me postar ou de uma maneira de construção de subjetividade ou de uma maneira que eu vou tratar aquela pessoa como vítima, como coitado, como um assujeitado. Então, eu acho um pouco difícil para o Serviço Social enfrentar, será que isso é campo do Serviço Social, não é campo da Psicologia? Eu acho que não, porque, cada vez mais, o Serviço Social se depara com essa situação, que, quando eu me formei, atendimento de caso era uma coisa horrorosa, não podia fazer, o negócio era comunidade. Então minha pergunta é a seguinte: como trabalhar com a subjetividade, com a parte singular do indivíduo que eu atendo de uma maneira não conservadora. Qual o instrumental que nós temos para trabalhar aí, como assistentes sociais.

65 Palestra proferida no 1°. Congresso de Saúde do Ho spital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de são Paulo – 2002, sob o título “O Sujeito Social no Mundo Atual”.

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Essa questão é paradigmática, porque nos permite a visualização de várias

temáticas presentes no cotidiano profissional: o atendimento individual não

conservador, a marca da reconceituação expressa pelo privilégio ao trabalho em

comunidades, a classificação médica e a confusão entre conceitos e disciplinas.

Em suma, há uma referência a concepções e preconceitos que aparecem

mesclados para definir um sujeito idealizado, que o assistente social crê poder

construir.

Mais adiante, na mesma conferência, uma nova indagação, desta vez de uma

assistente social que trabalha num hospital psiquiátrico:

Eu queria discutir um pouco essa questão de que projeto, nós assistentes sociais que estamos na prática, eu sou uma pessoa que está na prática, eu atendo diariamente, já participei dos Conselhos, das Comissões tripartites, hoje eu trabalho em hospital psiquiátrico. Eu queria colocar uma questão: até que ponto, eu como assistente social, que, como você disse, a gente se constitui como sujeito, como uma pessoa, como cidadão, porque na minha prática eu falo para todo mundo ser cidadão, então, eu penso em exercer a minha cidadania, como eu, enquanto profissional, você sabe que a nossa condição é horrorosa, porque não é que eu não consigo comprar revistas francesas ou americanas, eu não consigo comprar livros em português, mal consegui pagar a taxa para estar aqui hoje. E a gente trata hoje com uma população pauperizada, São Paulo, com mais de uma milhão de desempregados, eu pergunto, até que ponto a constituição desse sujeito, que prática eu poderia ter porque a minha preocupação é com a construção desse sujeito, como é que o Serviço Social pode contribuir para a constituição desse novo sujeito, pensando na redistribuição da riqueza, até que ponto a gente poderia estar fazendo isto? Ou seja, como nós, enquanto profissionais, podemos estar contribuindo para a constituição desse novo sujeito?

Novamente, percebe-se a dificuldade na expressão dos objetivos, dos

instrumentos e das construções teóricas que embasam o serviço social. Além disso,

um desabafo quanto à precariedade das condições econômicas. O que importa

destacar é que há uma tentativa de aprender, de agir de acordo com as proposições

teóricas, mas existem impedimentos de toda ordem: conceituais, econômicos, de

cultura profissional e de condições de trabalho. Não por coincidência, essas duas

profissionais trabalham com saúde mental, área que oferece desafios adicionais.

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Espaços coletivos que permitam encontros para o diálogo entre prática e

teoria seriam altamente desejáveis, dado o divórcio em que hoje se encontram e do

qual, ao menos parcialmente, se ocupa esse trabalho.

As narrativas das assistentes sociais entrevistadas apontam para os valores

construídos no movimento de reconceituação do serviço social brasileiro como os

que ainda orientam suas ações, inspiram suas reflexões e alicerçam suas

experiências de trabalho.

José Paulo Netto refere-se ao processo denominado movimento de

reconceituação como um processo de renovação indissoluvelmente ligado à

autocracia burguesa e mesmo por ela promovido, no curso de um aprofundamento e

de solidificação das relações capitalistas de feições modernizadas e conservadoras,

através do mercado de trabalho e das instituições incumbidas da formação

profissional. Um dos elementos que aponta como decisivos nessa trajetória foi a

laicização do serviço social, o que contribuiu para que emergissem os debates

teóricos, a busca de um padrão acadêmico, oposições e contradições.

Isto equivale a afirmar que, instaurando condições para uma renovação do Serviço Social de acordo com as suas necessidades e interesses, a autocracia burguesa criou simultaneamente um espaço onde se inscrevia a possibilidade de se gestarem alternativas às práticas e às concepções profissionais que ela demandava (NETTO,1998, p.129, grifo do autor).

A aproximação dos problemas teóricos no campo das ciências sociais, porém,

foi o dado novo que, segundo Netto, representou um ganho significativo nos marcos

da renovação do serviço social. Em suas palavras, nas

...polêmicas e confrontos contemporâneos das ciências sociais, profissionais de Serviço Social não só o abriram [o debate] aos influxos da modernidade, mas, nesta operação, vêm se credibilizando como interlocutores junto às tradicionais fontes fornecedoras de insumos teóricos à profissão, inserindo-se nas suas discussões não apenas como receptores (“consumidores”). Se a elaboração emergente neste tipo novo de relacionamento contém problemas e ambigüidades, uma coisa é certa: ela contribui para oferecer, no plano intelectual, um contrapeso à subalternidade profissional que historicamente envolveu o Serviço Social (NETTO, 1998, p.132).

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Foi sob a influência do estruturalismo althusseriano que se gestaram as

primeiras reflexões críticas que se deram no âmbito do serviço social,

acompanhando o movimento das ciências sociais. Para Bosi, as inflexões

althusserianas foram proveitosas à medida que se processou na sociedade

brasileira, nos anos setenta, uma movimentação intelectual que tendia a perder a

“confiança no reformismo puramente verbal” e nas visões “integrativas”, marcas

distintivas dos anos anteriores. Contudo, junto com as novas perspectivas, uma

outra ferida se abriu: “... com o jargão do racionalismo tecnocrático o ódio a toda

subjetividade; o que é a sua face antiquada e superável” (BOSI In: MOTA, 1994,

p.VII). É necessário ressaltar que Bosi também considera que as posteriores

releituras de Lukács, Gramsci, Horkheimer e Adorno, recolocados coerentemente os

princípios da dialética de Hegel, superaram essa visão althusseriana através da

teoria da cultura.

Acompanhando, portanto, o movimento das ciências sociais, os agentes

críticos do serviço social buscaram romper com o pensamento conservador e instituir

a profissão nos marcos da sociedade “moderna” brasileira. Para tanto, se exigiu o

abandono, pelo menos no plano teórico, de questões relacionadas às relações

profissionais baseadas nas concepções subjetivistas presentes no serviço social sob

influência da psicologia.

Malgrado todos os esforços para essa realização, o processo de renovação

teve um matiz claramente conservador, em fina sintonia com o projeto burguês que

se construía, pleno, porém, de contradições. Assim como Netto, compartilho dessa

crítica e parto da reflexão de que, justamente pela constituição do movimento ter se

realizado nos marcos da autocracia burguesa, sua capacidade de revolucionar foi

abortada, impedindo uma ruptura com os aspectos mais conservadores da

sociedade brasileira que encontravam expressão no serviço social.

A questão da radicalização é bastante evocada em contraposição ao bom

senso. O adjetivo radical, em latim, radice, significa simplesmente raiz. Raiz, por sua

vez, dentre outros sentidos, os de origem, princípio e causa. Radicalizar, ir à raiz

significa, portanto, sem apelar a grandes digressões, ir à origem, ao princípio e à

causa dos fatos, dos sentimentos, das atitudes, enfim.

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Historicamente, porém, a expressão radicalizar significou uma atitude de

ruptura, quer seja com um pensamento, quer seja com um sistema de governo, com

uma construção social, com uma filosofia e assim por diante. Quando se contrapõe

radicalização ao bom senso está presente um apelo, uma crítica e, sem dúvida, um

tom moderado que pode estar ocultando o conservadorismo. Evidentemente, nem

tudo que é considerado tradicional é reacionário, assim como nem tudo que é dito

dialético é revolucionário. Por que, simplesmente, como afirma Alfredo Bosi, “...

dentro do balanço, as ideologias não são tão definidas quanto parecem ser” (In:

MOTA 1994, p. I). O bom senso sugerido pelo autor, portanto, refere-se à

compreensão da complexidade do real e das idéias que a expressam.

Os movimentos sociais apresentam, via de regra, momentos onde as

radicalizações de alguns princípios são levadas a cabo. Pretendem uma ruptura de

uma seqüência de acontecimentos, de uma organização que segue num ritmo

regular que não promove mais mudanças substantivas.

Tomemos, como exemplo, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra

(MST). Algumas ações, ainda que radicais, pretendem produzir uma contradição na

direção de uma reforma agrária tão tardiamente urgente no Estado brasileiro. É

necessário compreender que, por um lado, a radicalização é uma estratégia, mas

que, por outro, produziu ao longo da história desatinos em nome de uma causa.

Evidentemente, não há justificativa para genocídios e outras ações extremadas

dessa natureza.

O movimento que se processou no serviço social, a partir dos anos sessenta

e início dos anos setenta do século XX, pretendeu-se radical? Posicionou-se com

firmeza contra o conservadorismo presente na profissão?

A resposta a essa questão apresenta uma série de matizes. Um deles, a meu

ver o mais radical, é a análise de José Paulo Netto. Esse autor, assistente social de

formação, profundo conhecedor de filosofia, especialmente de Marx, sintetizou em

sua tese de doutorado pela Pontifícia Universidade Católica (PUCSP), Capitalismo

monopolista e Serviço Social, publicada em primeira edição em 1992, uma extensa

e minuciosa análise dos fatores – substantivos e adjetivos – que caracterizaram o

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percurso do serviço social pós 1964, no entrecruzamento da dinâmica

socioinstitucional e da dinâmica interna à realidade da profissão (Netto, 1998).

Embora já bastante estudadas, suas conclusões não se encontram superadas. Ao

contrário, ainda provocam vigorosos debates, justamente pelo seu rigor teórico-

metodológico.

Marilena Chaui, em 1977, no texto O Discurso competente, chama à atenção

de seus próprios pares para o que vinha se processando no âmbito das ciências: a

formação do discurso ideológico, aquele que ao ser proferido por especialistas que

... “ensinam” a conhecer e agir. (...) é aquele que pretende coincidir com as coisas, anular a diferença entre o pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma lógica de identificação que unifique pensamento, linguagem e realidade para, através dessa lógica, obter a identificação de todos os sujeito sociais com uma imagem particular universalizada, isto é, a imagem da classe dominante (CHAUI, 1997, p.3).

O que se processava naquele momento, e que Marilena Chaui denunciava,

pode ser interpretado como uma “revolução passiva”, nos termos de Gramsci,

resultando no “transformismo”,

...processo de cooptação dos dirigentes políticos e/ou intelectuais das camadas subalternas, que se tenta conservar à margem das grandes decisões, ou das camadas aliadas, que se tenta manter em posição de inferioridade no seio do bloco do poder, a classe dominante esvazia as condições de luta política, ‘decapita’ os seus inimigos reais ou eventuais, e, desse modo, enfraquece a sociedade civil e a mantém ligada umbilicalmente ao Estado (COUTINHO, 1980, p.57).

Os então denominados trabalhadores sociais, evidentemente não de forma

homogênea, à época atentos ao que se processava no âmbito da categoria

profissional e na sociedade brasileira, identificavam a necessidade de prosseguir

com as reflexões para evitar o retrocesso à condição do chamado serviço social

tradicional. Em 1979, Leila Lima Santos advertia:

Se este estado de incontestável ‘crise’ no movimento dos trabalhadores sociais não é analisado devidamente por nós, os acertos da reconceituação, seu espírito de ruptura, seu impulso crítico e o grau de consciência atingido sobre o significado do Trabalho Social por parte dos próprios trabalhadores sociais, corre o risco de perder-se e de ceder terreno frente a uma reedição da ideologia assistencialista, desta vez

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provavelmente mais fortalecida e menos ingênua (apud CARVALHO, 1983, p.17).

A “revolução passiva” que se processava, denunciada por Chaui (1997), era

um processo que se irradiava por toda sociedade brasileira, em todas as suas

instituições. O serviço social, completamente mergulhado na realidade social e,

sobretudo, nas contradições do real, encontrava-se diante de um fato histórico, em

seus trinta e poucos anos brasileiros, de tal relevância que implicaria em um

posicionamento político, malgrado todos os erros cometidos durante o processo.

Radicalizar o debate, portanto, em torno das possibilidades de transformação

da sociedade, buscando um serviço social que, comprometido com as classes

dominadas, nas palavras da época, se reformulasse prática e teoricamente, parecia

“a determinação da tarefa”. É fato, também, que essa opção política nos levou a uma

série de enganos e, o que nos é mais doloroso, não rompeu com a prática

conservadora no âmbito da profissão, promovendo, a bem da verdade, um

fenômeno descrito por Netto (1998) como um ecletismo político e ideológico que

manteve as raízes do conservadorismo. E esse conservadorismo da sociedade

brasileira persiste ordenando e reordenando sentidos. Creio, entretanto, que o

serviço social, de modo bastante aproximado ao debate que vem se processando no

âmbito das ciências sociais, tem sistematicamente procedido a uma crítica que,

embora não tenha garantido a homogeneidade no trabalho cotidiano, garantiu uma

direção política ao seu coletivo.

Este debate tem um caráter paradoxal: em sua configuração de intervenção

social, acompanhando o movimento das ciências sociais, realizou uma inflexão

fundamental, ou seja, a busca da ruptura com as práticas calcadas na adaptação do

sujeito à realidade social, na tentativa de compreender esse sujeito como integrante

de um contexto econômico e social que desenha sua ação no mundo; por outro lado,

por contingências de ofício, não pôde, diferentemente de outras disciplinas, furtar-se,

por método e técnica, da relação com o(s) sujeito(s) com os quais trabalha. Esse

diálogo é instituinte do trabalho profissional.

As reflexões posteriores – anos oitenta em diante – nos possibilitaram a

compreensão da real inserção do serviço social no sistema capitalista, na condição

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de qualquer trabalhador, ou seja, naquela que determina a necessidade da venda da

força de trabalho para a garantia da sobrevivência: “...tratar o serviço social como

trabalho supõe privilegiar a produção e a reprodução da vida social, como

determinantes na constituição da materialidade e da subjetividade das ‘classes que

vivem do trabalho’...” (IAMAMOTO, 2000, p.25).

Aparentemente, as mediações necessárias para a compreensão do novo

direcionamento político do serviço social não foram suficientemente construídas. O

isolamento teórico a que estão sujeitos os profissionais da periferia do sistema, em

outras palavras, a maioria deles, impede que se reduza esse abismo já clássico

entre teoria e prática e produz compensações idiossincráticas como, por exemplo, o

recurso à metafísica cristã66 como modelo explicativo mais acessível. O

conhecimento através de divisões instrumentais, tal qual ocorre na divisão social e

técnica do trabalho, implica numa operação ideológica que imprime a fragmentação

do conhecimento, propiciando a recorrência às explicações mais cristalizadas e mais

prontamente acessíveis para a abordagem de questões que, mesmo sendo

cotidianas, implicam grandes complexidades que não se encerram no imediatismo

que marca a sociedade contemporânea.

É por isso que se faz necessário um contínuo exame dos elementos que

originam a subalternidade quando analisamos as condições dos que vivem do

trabalho. Há que se destacar dois elementos cunhados por Gramsci: o consenso e a

direção.67 Os apelos massivos à banalização dos sentimentos, às conclusões

baseadas no senso comum, à função instrumental da religiosidade, à compaixão

como um antídoto contra a discriminação e outros recursos que, particularizando o

real, confundem e fundam uma culpa que dificulta a expressão de sua outra face, a

mais perversa, ou seja, sua face política. A própria psicanálise foi atravessada pelos

deslocamentos que se processaram em nome da particularização: “... Freud (...)

dissera que, com a psicanálise, trouxera a peste à humanidade. Como explicar,

então, que esse flagelo tenha podido converter-se, mundo afora, em terapia

adaptativa e de ajustamento, se aquilo a que essa ‘terapia’ pretende nos ajustar é

66 Chaui, 2004, p. 193-195 67 Esses conceitos referem-se ao modo pelo qual as classes sociais buscam exercer sua hegemonia. (Coutinho, 1980).

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exatamente o que torna possíveis a neurose, a psicose e a loucura?” (CHAUI, 1999,

p.7).

Passados cerca de quarenta anos a partir do início do movimento de

reconceituação, o Brasil mudou, o debate na categoria profissional ganhou fôlego,

qualificou-se através da participação ativa dos movimentos sociais, políticos e

partidários e através do afincado estudo de autores no campo da teoria social de

Marx, tais como Lukács, Heller, Gramsci, Adorno, Benjamim, Horkheimer, abrindo

um leque fecundo para que os autores brasileiros tivessem condições de proceder

ao exercício constante da reflexão crítica, com maturidade e sensibilidade para

perceber os novos mas, sobretudo, os velhos desafios colocados pelo capitalismo,

especialmente nas sociedades que se “modernizaram” por respingos de um

processo civilizatório.

Buscaram-se novas perspectivas de análise, trafegando inclusive por autores

contemporâneos que buscam e buscaram desvendar o real através da superação de

Marx, a exemplo de Morin, Derrida, Deleuze. Caminhou-se no sentido de colocar o

pluralismo como o modo mais importante na superação do ecletismo no âmbito do

serviço social.

Contudo, não por acaso Gramsci tem sido um dos autores aos quais os

agentes sociais críticos do serviço social têm recorrido com freqüência para

compreender a realidade, e a categoria subalternidade tem auxiliado no estudo das

questões referentes à cultura, compreendendo-a como o modo de viver das classes

que vivem do trabalho.

Uma dessas empreitadas teóricas no campo do serviço social é o resultado,

em forma de livro, de uma pesquisa realizada recentemente por Ana Maria

Vasconcelos. Essa autora procedeu a uma rigorosa pesquisa de campo com

assistentes sociais da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, através do

materialismo histórico-dialético, orientada pelas reflexões de Marilda Iamamoto e

José Paulo Netto, buscando compreender o trabalho daqueles profissionais sob a

luz do projeto ético-político do serviço social, referendado pelas organizações de

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categoria, pelo código de ética profissional e pelo redimensionamento do ensino nos

cursos de graduação.

Desde as primeiras linhas, essa autora nos adverte, sistematicamente, sobre

o que não esperar de seus escritos. Ao referir-se às possibilidades de realização de

um trabalho profissional realmente comprometido com os interesses historicamente

constituídos pelas classes trabalhadoras, afirma:

O sonho é contraditório, ambíguo. Ao mesmo tempo que acalenta, perturba; ao aliviar tensão, inquieta; ao dar esperanças, engana, pode tornar-se uma falácia; ao nos levar a visualizar as possibilidades do ideal, nos afasta do real. Por outro lado, a realidade desmascara, mostra as ilusões quando nos permitimos apreender e nos defrontar com o que ela pode, se desvelada, nos revelar. Ao permanecermos no sonho, corremos o risco de mais sonhar do que agir, persistindo na mera declaração de princípios (VASCONCELOS, 2002 p.24).

Para os objetivos deste trabalho serão tomadas algumas concepções mais

diretamente referidas às subjetividades, que rebatem no campo das ações

profissionais. Ao listar alguns pontos que considerou entraves e complicadores do

trabalho profissional dos assistentes sociais, destacou:

... a pretensa incompatibilidade no enfrentamento concomitante dos direitos sociais e do sofrimento humano, fruto do culto ao individualismo obsessivo que difere do respeito à individualidade emancipatória; - a incapacidade dos diferentes trabalhadores sociais para trabalhar com o sofrimento, o choro, a perda (de vidas, da saúde, de bens materiais, de pessoas queridas), a perspectiva da morte, a negação da morte social, o que induz os profissionais à compaixão, apoio, ajuda, orientação, encaminhamento, amparo, doação, aconselhamento, orientação, cuidado, tomados como fins em si mesmos, em detrimento do resgate da autonomia (VASCONCELOS, 2002, p.23).

Há que se ter muita capacitação para trabalhar cotidianamente em péssimas

condições, em instituições atacadas sistematicamente pelo descaso, pela falta de

diretrizes políticas que se voltem de fato para os interesses da classe trabalhadora,

lidando com as conseqüências da subalternização, exigindo, ao mesmo tempo, a

compreensão da sua própria ou da que está submetida a sua profissão. A lista de

Vasconcelos refere-se, simplesmente, às manifestações, expressões e mesmo às

circunstâncias mais dolorosas, mais cortantes na vida de um ser humano. Todas

elas estão ligadas a condições históricas e sociais materialmente determinadas.

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Portanto, evidentemente, as atitudes descritas, tomadas em si, não são as capazes

de promover qualquer transformação, seja em âmbito individual, seja em âmbito

social.

Indiretamente, a autora indica uma das possibilidades de superação dessa

condição:

Os assistentes sociais, como a investigação mostra, ainda que com um discurso progressista, em sua maioria, não dispõem de possibilidades para superar, sem suporte – capacitação continuada, assessoria –, uma prática de caráter conservador (VASCONCELOS, 2002, p.31).

O conservadorismo está ligado indissoluvelmente a valores, crenças,

preconceitos, que podem se tornar atos através das interpretações singulares e/ou

coletivas. E estes, os valores, os preconceitos, também instituintes das

sociabilidades, irão plasmar as subjetividades. A relação é absolutamente dialética.

Ou seja, só será possível caminhar na direção da compreensão da totalidade

humana se considerarmos a relação objetividade-subjetividade.

Segundo Chaui,

...seres e objetos culturais nunca são dados, são postos por práticas sociais e históricas determinadas, por formas da sociabilidade, da relação intersubjetiva, grupal, de classe, da relação com o visível e o invisível, com o tempo e o espaço, com o possível e o impossível, com o necessário e o contingente. Para que algo seja isto ou aquilo e isto e aquilo é preciso que seja assim posto ou constituído pelas práticas sociais (1996, p. 122, grifo da autora).

Portanto, o que restou de mais complexo neste estudo: procurar um caminho

metodológico que pudesse apreender pelo menos parte dessas visões,

considerando o serviço social como

...a atividade ou ocupação especializada da qual se pode tirar os meios de subsistência – inscrita numa modalidade de divisão social do trabalho que o coloca numa posição subalterna, inferior ou subordinada (VASCONCELOS, 2002, p. 104).

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Estaríamos mais próximos de uma sociedade menos injusta não fosse a

camisa-de-força colocada, dentre todos os mecanismos institucionais que

conhecemos, pela coerção e pelo consenso. Esses mecanismos ferem diretamente

a capacidade criativa, a auto-estima, a capacidade de reflexão, a possibilidade de

uma identidade de classe e, sobretudo, reiteram a interdição ao acesso aos bens

produzidos historicamente pela classe trabalhadora.

No início do século XXI, há mais de cem anos dos primeiros escritos de Marx,

sua teoria continua viva e inspiradora de inquietações para aqueles que desejam,

assim como ele, buscar a superação dos processos que impedem o homem de

realizar suas potencialidades e geram a alienação.

Porém, há várias vozes emitidas por pensadores de peso no campo

chamado de pós-modernismo68 que, ao apontarem essa fratura provocada pela

ausência do debate de questões intrínsecas do homem, questionam o próprio

método de conhecimento do real, assim referido por Vasconcelos:

Trata-se de um alerta dos autores que enfatizam a importância das rupturas realizadas pelo pós-modernismo. Para eles, a busca de integração, de instaurar formas de unidade e totalidade em um campo de saber múltiplo, pluralista, heterogêneo e fragmentado, pode significar querer voltar o ‘trem da história’ e restaurar, segundo eles, um espírito identificado com o modernismo, do tipo iluminista/racionalista, que visaria propor a ordenação da sociedade segundo uma razão que se acredita capaz de esgotar o real, recuperando uma unidade já perdida e superada, e com riscos de totalitarismo (VASCONCELOS, 2000, p. 48).

Mesmo correndo esse risco, o presente ensaio pretendeu ser uma tradução

acadêmica dessas inquietações na busca de novos elementos para o trabalho

profissional no campo do serviço social, de acordo com o projeto ético-político que

vimos construindo a partir do movimento de reconceituação. Na compreensão de

Severino (In: Martinelli, 2001, p. 11), nosso incansável acerto de contas com o

conservadorismo do qual se originou a profissão.

68 Os mais expressivos para o serviço social, Boaventura de Souza Santos e Edgard Morin, embora não sejam os autores escolhidos para compreensão da realidade proposta neste ensaio, são leituras fundamentais e trazem contribuições inestimáveis a um debate que deve ser pautado pelo pluralismo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que um homem faz de sua vida e o que a sua vida faz dele: eis a substância de um conceito de

personalidade digno desse nome e digno de uma ciência que se empenha em estudar as suas

lógicas fundamentais e as suas condições de transformação.

Lucien Sève

O autor em epígrafe indica alguns elementos fundamentais para uma

compreensão das mediações subjetivas através de uma análise biográfica, ou seja,

a necessidade de

recuperar o mundo da vida especificamente pertinente que é o seu, os seus deslocamentos, a margem de contingências, o horizonte dos possíveis que lhe são abertos ou fechados em cada conjuntura (SÈVE, 1989, p. 159).

Seguindo essa orientação, não houve neste trabalho uma preocupação com a

linearidade do pensamento e tampouco com uma cronologia rígidas. Não se

pretendeu, sobretudo, ao categorizar teoricamente algumas dessas mediações,

traçar um quadro generalizador. Entretanto, como o Sève alerta que “as relações

sociais são as verdadeira base e, nesse sentido, o verdadeiro ponto de partida...”

(1989, p. 159), toda a análise foi realizada nessa perspectiva.

As histórias das assistentes sociais que compuseram o presente estudo são

narrativas de dramas reais, contextualizados e datados historicamente.

Possibilitaram o conhecimento de algumas das interpretações singulares que

compõem o universo das relações sociais de uma geração de assistentes sociais e

apresentaram, algumas vezes, elementos semelhantes aos das histórias narradas

de modo ficcional.

Num primeiro plano analítico, foi possível perceber a presença de valores

relativos ao humanismo cristão, que se desdobraram em concepções e ações que

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privilegiaram a centralidade da família como elemento que dá base e sustentação às

subjetividades e às sociabilidades. Uma constante articulação entre o arcaico e o

moderno na constituição das mediações, a partir de um projeto burguês de

identidade forjado a partir do final do século XVIII, através da concepção de uma

identidade nacional romântica, orientando a escolha do serviço social como a

profissão articuladora dessas experiências. Num segundo plano analítico, foi

possível relacionar as concepções e experiências inscritas no e pelo tempo histórico

do trabalho como importantes fios que arremataram essas vidas.

A tarefa principal deste trabalho foi buscar compreender, através das

histórias de vida narradas, algumas das circunstâncias produtoras de novos sentidos

para as existências e outras que recolocaram sentidos anteriormente atribuídos.

Uma hipótese desse ensaio era que o Programa da Saúde da Família (PSF),

eleito por representar uma abordagem nova no campo da saúde, teria promovido

uma rearticulação dos sentidos já articulados anteriormente pelo serviço social

quando da escolha da profissão. Esses sentidos foram inscritos muito precocemente

nas vidas dessas assistentes sociais e persiste uma luta intensa por parte delas para

que não se esgarcem, para que não haja cisões que comprometam suas

integridades psíquicas. Esse apego pode ser compreendido como uma estratégia

para que possam suportar não somente os dramas das vidas das pessoas que

atendem cotidianamente, como também seus próprios dramas pessoais.

Nesse sentido, a concepção de serviço social que possuem representa uma

possibilidade de realização dessa reunificação. Os valores, as bases filosóficas, os

projetos e os desejos encontram-se ancorados em pontos mais remotos de suas

vidas e não são ameaçados com as contradições do real. Talvez, se exercessem

outras profissões, possivelmente a contradição capital-trabalho estaria mais à flor da

pele e não se rearticulariam tão facilmente os sentidos fincados radical e

precocemente em suas vidas.

As duas categorias teóricas que iluminaram o presente estudo foram o

trabalho e a alienação. A reflexão pretendida, contudo, foi a busca de algumas

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mediações que pudessem clarear de que maneira os assistentes sociais incorporam

à sua prática cotidiana e à sua reflexão os valores fornecidos pelas sociabilidades.

O segundo plano analítico apontou que, em todas as narrativas das

assistentes sociais entrevistadas, a marcação das suas vidas se deu pelo tempo e

pelo contexto do trabalho. Filhas de trabalhadores, alguns analfabetos, outros semi-

analfabetos, elas foram aparentemente preparadas para estudar, numa clara

tentativa de diferenciação para o trabalho.

As entrevistadas pouco ou nada referiram sobre suas infâncias. Pouco ou

nada apareceu sobre os jogos infantis, sobre as brincadeiras, sobre as experiências

afetivas infantis. As infâncias foram relatadas através da luta pela sobrevivência de

seus pais, através do trabalho. Nas poucas vezes em que se pôde depreender

alguma referência à adolescência, novamente o tempo do trabalho apareceu como o

maior articulador de sentidos.

A profissão de assistente social foi escolhida por expressar anseios já

presentes em suas trajetórias de vida. O desejo de ajudar foi um deles, contudo

outros elementos estiveram presentes.

As assistentes sociais entrevistadas foram formadas nos primeiros anos

posteriores aos marcos do movimento de reconceituação do serviço social brasileiro

e em plena ditadura militar. Entretanto, à exceção de Marly, que trabalhava numa

multinacional cujos chefes eram militares, não apareceram nas entrevistas menções

às experiências advindas desse momento da sociedade brasileira.

A população que residia nas periferias da cidade de São Paulo,

especialmente os jovens e adolescentes, permaneceu à margem dos movimentos

sociais, vivendo uma realidade paralela, distanciada, com pouco ou nenhum acesso

aos acontecimentos políticos, econômicos e sociais. Havia a necessidade imperativa

de prepararem-se para o trabalho, concreta e decisiva experiência de suas vidas.

Entretanto, há alguns aspectos que podemos resgatar desse momento

histórico, presentes nas narrativas, que só poderiam ser capturados se

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promovêssemos, como orienta Pontes (2001), uma caça às mediações. No caso, as

mediações subjetivas, quais sejam:

• A persistência de valores adquiridos na infância através da família e da

religião. O valor moral do trabalho é o mais importante deles.

• Uma relação orgânica entre suas origens e identidades de classe social.

• O crédito na possibilidade de transformação do real.

• A disposição, a despeito de sua faixa etária, tempo no serviço público e,

principalmente, a quase total falta de assessoria e recompensas financeiras,

de auxiliar no planejamento e montagem de um programa de atenção à saúde

da população.

• A firme convicção da saúde como direito inalienável.

• A espiritualidade como sustentação para a utopia necessária para continuar

vendo e vivendo as situações de violência às quais elas próprias encontram-

se entregues, no cotidiano de seus trabalhos.

• A família nuclear como ideal.

• A identificação da necessidade de sujeitos políticos69 para construção de

políticas públicas.

• A transformação das posturas heróicas em busca de um compromisso com

uma compreensão de seus lugares na vida e no serviço social.

• A busca de respostas profissionais para a diversidade de situações novas que

se apresentaram durante e após a implantação do PSF.

• A inquietação diante dos novos desafios colocados pelos processos de

trabalho e pelas vicissitudes da vida.

Esses elementos resgatam uma face da história de uma geração de

assistentes sociais que foi formada durante a ditadura militar, através de currículos

precários, com bibliografia escassa e, fundamentalmente, necessitando de um

conhecimento que ajudasse a cumprir a mais precoce herança recebida, a de

trabalhar. Trabalhar para mudar sua história. No caminho, encontraram o serviço

social e, assim, passaram a trabalhar para mudar outras histórias.

69 Cf. SADER, 1988.

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O caráter romântico dessa escolha não se encontra presente somente em

suas subjetividades; o serviço social lhes ofereceu esse sonho, o de constituírem-se

como agentes de transformação. Evidentemente, se não o serviço social, a própria

vida, carregada de contradições, encarregou-se de desmontar suas concepções

iniciais da vida e do trabalho. Buscaram reformular-se, sem ajuda das instituições

nas quais trabalham, sem apoio financeiro para realização de cursos, aquisição de

livros e outros suportes necessários à manutenção da “saúde intelectual”, e assim

permanecem, buscando melhorar, contribuir, refletir e avançar.

No percurso de suas vidas houve arrependimentos por várias escolhas.

Nenhuma das entrevistadas, contudo, arrependeu-se da escolha profissional; o

serviço social representou uma alavanca para alçar vôos mais longos que aqueles

que seus pais puderam realizar. Consideram-se, portanto, pessoas que lutaram e

ainda lutam, sem nenhuma intenção de desistir ou recuar.

O que pode um sujeito na sociedade capitalista atual, senão resistir? Parece

que, cada uma a seu modo, essa tem sido uma constante em suas vidas. Trabalhar

para resistir, resistir para trabalhar.

A princípio, a escolha de uma profissão poderia expressar um momento

definido por uma conjunção de fatores subjetivos e objetivos, que dariam ao

indivíduo a oportunidade de colocar em prática um repertório de habilidades, que

fariam parte de uma vida pautada por sentidos socialmente válidos. Ao escolher uma

profissão, busca-se, em última e simples análise, a tradução, para o coletivo

humano, de supostas capacidades, habilidades e aspirações. As profissões, assim

como qualquer elemento da produção/reprodução, encontram-se inscritas social e

historicamente.

A profissão de assistente social não fugiu ao contorno que origina várias

profissões ao longo da história. Sua origem e seu desenvolvimento acompanharam,

expressaram e sintetizaram o movimento da sociedade brasileira, particularmente no

último quarto de século. Um movimento marcado por lutas políticas e sociais, pela

necessidade cotidiana de sobrevivência, pelas marcas institucionais brasileiras e

pela condição subalterna da maioria da população.

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É necessária uma menção à questão de gênero neste trabalho. Todas as

pessoas entrevistadas são mulheres. Todas, sem exceção, recorreram a aspectos

relacionados à posição social feminina para narrar suas experiências, que se

entrelaçaram com as questões de classe social, de raça/etnia e de suas posições

como trabalhadoras.

O ponto de partida teórico-metodológico para construção deste trabalho,

conforme explicitado no subitem – ciência da biografia -, recupera os sentidos da

vida na materialidade das relações sociais e, ainda mais, orienta a busca desses

sentidos nas narrativas. Portanto, subtrair ou inverter esses sentidos seria, no

mínimo, uma atitude destituída de cientificidade, sem contar que a própria biografia

da autora deste trabalho, não por coincidência, muito se equivale à das

entrevistadas.

O dados coletados são de grande importância e demarcam lugares das

mulheres na esfera da produção/reprodução social, principalmente quanto às

marcas do trabalho.

Uma concepção, que é compartilhada pelas assistentes sociais que

gerenciam as unidades de saúde e as que fazem parte das equipes volantes de

saúde mental, considera correto que as equipes de saúde da família não contem

com assistentes sociais fixos, e que o trabalho tradicionalmente destinado ao

assistente social deva ser equacionado de forma diferente, numa crítica efetiva ao

trabalho institucional, que consideram cartorial, burocratizado e subalterno.

Defendem um assistente social assessor, planejador, no mesmo patamar que outros

profissionais.

As duas assistentes sociais que desenvolvem um trabalho institucional70 e

dão suporte técnico para as equipes de PSF, discutindo situações específicas,

realizando intervenções pontuais em condições mais críticas e, especialmente,

70 Essas asistentes sociais desenvolvem seu trabalho na unidade de saúde e participam das reuniões de todas as equipes de PSF compostas de médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, auxiliares administrativos e agentes comunitários de saúde. Atendem individualmente as pessoas que procuram ou são encaminhadas ao serviço social. Realizam intervenções familiares pontuais quando há solicitação das equipes.

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orientando os agentes comunitários de saúde, verdadeiros ponta-de-lança do

programa, também consideram esse trabalho fundamental, já que as contradições

que os agentes encontram em seus territórios geográficos invadem seus territórios

subjetivos e geram sofrimentos intensos, quando não adoecimentos.71 Acreditam,

contudo, que esse trabalho também pode ser desenvolvido com assistentes sociais

fixos nas unidades.

O que pareceu subjacente a esse debate é o trabalho do agente comunitário

de saúde. Como, historicamente, o assistente social foi o profissional que manteve

uma estreita relação com a população atendida, no sentido que foi para eles que os

usuários narraram seus padecimentos e seus desejos, à medida que entra em cena

o agente comunitário e sua extrema valorização no programa72, surgiu a

necessidade de estabelecer diferenças mais relevantes no trabalho desempenhado

pelos assistentes sociais. Além disso, à medida que as equipes do PSF não

possuem assistentes sociais em sua composição oficial, seu trabalho está previsto

de forma transversal, ou seja, perpassa unidades, equipes, territórios e famílias,

houve, sem adentrar no mérito dessa questão, numa diminuição da oferta de

trabalho para esse profissional.

Tanto o trabalho nas equipes volantes de saúde mental como o fixo nas

unidades de saúde mista implicam numa condição extremamente extenuante do

ponto de vista dos recursos subjetivos, obrigando-as a buscar suportes que possam

ajudá-las a conter conflitos internos, seja a psicoterapia, a religiosidade, o desejo de

uma formação como terapeutas ou a mudança de locais de trabalho.

71 Durante o primeiro semestre de 2004 realizei, juntamente com um psiquiatra, discussões de situações referentes ao trabalho com as populações vulnerabilizadas atendidas pelo PSF da UBS Cruz das Almas, especialmente no campo da saúde mental. Essa experiência possibilitou-me um conhecimento bastante aprofundado das contradições do programa, assim como da extrema exposição dos profissionais. A reação varia de acordo com os valores que permeiam suas experiências de vida. A formação universitária que receberam não é sequer aproximada da perversa realidade que presenciam no cotidiano do trabalho. Os agentes comunitários de saúde, por sua vez, são os mais afetados por essa violência. Por duas razões principais: a primeira, porque são eles que vão às casas mais frequentemente e entram em contato com toda sorte de situações; a segunda, porque suas defesas são muito poucas, considerando que o universo de relações nos territórios nos quais desenvolvem suas ações é, em praticamente tudo, seu mesmo universo pessoal . 72 Essa valorização estratégica não inclui a contrapartida salarial e tampouco a ruptura da subalternização em razão da questão de classe social, acrescidas das hierarquias relacionadas à formação acadêmica e à raça/etnia.

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Fundamentalmente, o que irrompeu da observação dessas experiências foi a

absoluta solidão a que continuam submetidas em suas trajetórias de vida, que as

tem obrigado, desde meninas, a enfrentar toda sorte de perigos às suas integridades

físicas e psíquicas. Usando as palavras de Judith, é como “matar um leão por dia!”.

Nesse sentido, o serviço social, para além da questão do assalariamento, aspecto

fundamental de sua compreensão no campo da produção/reprodução do

capitalismo, articula sentidos e medeia subjetividades.

Ao lado do trabalho, como a mediação subjetiva mais contundente e mais

antiga das experiências das assistentes sociais entrevistadas, surgiu a experiência

política como uma nova e instigante possibilidade de articular sentidos e instituir

novas mediações. Essa modalidade, florescida nos movimentos sociais e gestadas

no âmago das contradições da ditadura militar, levou para suas vidas,

concretamente, a possibilidade de realização de muitos de seus desejos e, até hoje,

se constitui como referencial fundamental.

Na introdução deste trabalho foram citados alguns debates teóricos que

instigaram a realização da pesquisa. O primeiro deles, e certamente o mais

provocativo, foi o de Eduardo Mourão Vasconcelos, que atribuiu ao movimento de

reconceituação um processo de recalcamento de temas da subjetividade, do

inconsciente, da sexualidade e da emoção no campo teórico do serviço social. Esse

recalcamento teria se irradiado nas ciências a partir da instauração do stalinismo e

foi dissipado pelas expressivas produções teóricas de autores como Vigotsky,

A.Heller, Lukács, W. Reich e outros. Afirma, apesar de não nomear autores que, no

Brasil, houve uma penetração dessa temática no campo das ciências sociais, apesar

de heterogênea.

No serviço social, entretanto, afirma que isso não ocorreu e que a

permanência desse recalcamento produziu um empobrecimento teórico significativo

para a profissão, trazendo “implicações sérias na formação, na cultura profissional e

na prática concreta dos profissionais” (VASCONCELOS, 2000, p. 202, grifo do

autor).

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As implicações aludidas se referem às dificuldades teórico-metodológicas

para as elaborações subjetivas, ao gênero, ao trabalho com grupos, com sofrimento

psíquico e às que exigem maior recurso ao repertório singular.

Embora a observação do pesquisador em questão seja baseada em vasta

experiência, vale destacar que as situações que usa para exemplificar as

dificuldades dos assistentes sociais, via de regra, constituem-se como algumas das

mais contundentes expressões da Questão Social, verdadeiros desafios para

atuação de qualquer profissional, mesmo que devidamente preparado:

Nos campos de atuação e nos grupos de clientela do Serviço Social nos quais as questões relacionadas à subjetividade individual e coletiva têm presença mais marcante, tais como os das crianças em situação de rua, aidéticos, idosos, doentes terminais, presidiários, vítimas de violência e negligência social séria, portadores de transtornos mentais, deficientes físicos e mentais, etc., o profissional de Serviço Social tende a se sentir ainda mais despreparado para a sua atuação, tanto no sentido de suporte teórico-metodológico, da instrumentalidade prática, como também no sentido de sua própria subjetividade, já que a relação com esses grupos de clientes mobiliza sempre aspectos sexuais, emocionais e inconscientes conflituosos e difíceis de ser tratados por abordagens restritas ao nível do consciente e da racionalidade científica convencional (VASCONCELOS, 2000, p. 205).

Caberia indagar se as temáticas referentes à desigualdade de gênero, à

dificuldade de encaminhar projetos coletivos, ao grau de abandono e carência de

nossos velhos e de nossas crianças, à feminização e ao empobrecimento da

epidemia pelo HIV são desafios colocados para uma única categoria profissional. E

além disso, não seria também demasiado reputar ao movimento de reconceituação a

responsabilidade por um suposto empobrecimento teórico que impediu o assistente

social de apropriar-se subjetivamente dessas temáticas?

Embora concordando com a pouca expressão teórica dos temas relativos à

subjetividade, o trabalho ora empreendido indicou circunstâncias que se encontram

muito mais diretamente ligadas às contradições da sociedade brasileira, da qual

somos partícipes, do que propriamente aos movimentos da profissão, mesmo se

tratando de um movimento que ocorreu não só no Brasil, mas no âmbito da América

Latina.

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Portanto, o movimento teórico da profissão tomou a direção de preservar as

sociabilidades como o elemento instituinte das subjetividades, mesmo naqueles

processos nos quais estiveram presentes os mais dilacerantes momentos de uma

vida humana.

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SÈVE, Lucien. Marxismo e a teoria da personalidade. 3 v. Trad. Emanuel Lourenço Godinho. Lisboa: Livros Horizonte Ltda., 1979. Título original: Marxisme et théorie de la personnalité.

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VICENTE, Damares Pereira. Voltando ao Juqueri. Revista Margem, n. 11, São Paulo: FAPESP/EDUC, 2000.

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YAZBEK, Maria Carmelita. Classes subalternas e assistência social. São Paulo: Cortez, 1996.

______ . O Serviço Social e o movimento histórico da sociedade brasileira. Legislação Brasileira para o Serviço Social. Coletânea de leis, decretos e regulamentos para instrumentação da (o) assistente social. São Paulo: CRESS SP, 2004.

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ANEXO I

Relação das capas e artigos dos Jornais do Conselho Regional de Serviço Social – São Paulo – 9a. Região.

Jun. 1979 – número 1 Capa: Semana do Assistente Social debate criação do Sindicato. Artigo: Artesanato é moda. O Artesão é um cliente. Ago. 1979 – número 2 Capa: Encontro em Ribeirão Preto Artigo: Recuperação do menor da FEBEM depende da comunidade. Set.1979 – número 3 Capa: III CBAS – A busca de uma posição política. Artigo: E o mercado de trabalho...como vai? (Entrevista com Maria Lúcia Martinelli – Diretora da Faculdade de Serviço Social/FMU. Out./nov. 1979 – número 4 Capa: III CBAS: marco de posicionamento político. Artigo: A sociedade um agente social, de libertação e transformação. Jan. 1980 – número 5 Capa: CRAS apura demissões em massa no Inocoop. Artigo: Atendimento social aos fissurados. Mar./abril 1980 – número 6 Capa: Começa o debate do Código de Ética. Artigo: Aqui a posição do CRAS ante o novo Código do Menor. Maio/Jun. 1980 – número 7 Capa: Seccionais discutem formas de atuar em todo Interior. Artigo: Uma experiência junto a portadores de câncer. Set./out. 1980 – número 8 Capa: Projeto 2726 é uma ameaça ao Serviço Social Artigo: Reintegração social do deficiente. Nov./dez. 1980 – número 9 Capa: Eleições. Artigo: Nova visão da humanização hospitalar. Fev./mar. 1981 – número 10 Capa: Chegou a hora! Todos às urnas. Artigo: Análise social do “Ato de violência” Maio/jun. 1981 – número 11 Capa: “Novo Conselho Diretor”. Artigo: Posse do novo Conselho Diretor (íntegra do discurso de posse de Nelson José Suzano – sob o título : “Não nos curvaremos e nem cederemos”). Jul./ago. 1981 – número 12 Capa: “Anistia Geral” Artigo: Pesquisa: atuação do Serviço Social em Epilepsia” Set./out. 1981 – número 13 Capa: Participar – Do lat. Participare

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v.t.d. 1. Fazer saber, informar, anunciar, comunicar... Participante – Do lat. Participante Adj. 2g. e s.g. 1 – Que ou quem participa; participador; partícipe. 2 – Que ou quem, em política, tem participação ativa. Artigo: Educando para a saúde através do Serviço Social. Nov. 1981 – Edição Extra Capa: Serviço Social Escolar. Artigo: Mobilização: a força do Serviço Social Escolar. Nov./dez. 1981 – número 14 Capa: 1982... e agora??? Artigo: Psiquiatria: unidade feminina. Jan./fev. 1982 – número 15 Capa: 50 anos de Serviço Social. Artigo: Bauru – pesquisa em Serviço Social Escolar. Abr./maio 1982 – número 16 Capa: Marco profissional – 50 anos. Artigo: Serviço Social – meio século de lutas. Jun./jul. 1982 – número 17 Capa: Ciclo de Debates. Artigo: Reconceituação e a Concepção Dialética da Realidade. Dez./1982 – números 18 e 19 Capa: "Vá em busca do/ teu povo/Ame-o/Aprenda com ele/Sirva-o/Comece com aquilo que/ele sabe/construa sobre aquilo/que ele tem." (poeta revolucionário africano) Artigo: CRAS pergunta e partidos respondem. Fev. 1983 – número 20 Capa: Anuidade: Reajuste é legal Artigo: As promessas dos eleitos Mar./abr. 1983 – número 21 Capa: 15 de Maio – Dia do Assistente Social. Artigo: Montoro atende pedido do Conselho. Maio/jun. 1983 – número 22 Capa: Melhores condições de vida Trabalho e melhores condições Saneamento básico Alimentos baratos Abaixo o controle da natalidade Queremos saúde Saúde total Artigo: Movimento popular de saúde: a prática da zona leste. Jul./ago. 1983 – número 23 Capa: “acho chata a vida, nem sobra tempo para brincar...”- Márcia, 11 anos. Artigo: Menor, a exploração maior. Set./out. 1983 – número 24 Capa: Conheça o Projeto de Lei 336/83. Artigo: As implicações do exercício da supervisão em Serviço Social e as alternativas para regulamentação. Jan./fev. 1984 – número 25 Capa: Ganha força projeto do Serviço Social na Escola.

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Artigo: documento analisa Serviço Social nas Prefeituras. Mar./abr. 1984 – número 26 Capa: O CRAS e a democracia Artigo: Serviço Social na rede escolar do município. Set./out. 1984 – número 27 Capa: A história brasileira hoje exige um novo assistente social. Artigo: Movimentos sociais e poder popular. Nov./dez. 1984 – número 28 Capa: “que o amarelo tão ensaiado se torne realidade” Artigo: Uma visão de instituição pública na atual conjuntura política. Jan./fev. 1985 - número 29 Capa: início ciclo de debates “Os caminhos da transformação social” Artigo: A mulher na linha de produção. Mar./abr. 1985 - número 30 Capa: 15 de maio, dia do Assistente Social. Artigo: Quase um século de “ Emancipação” do negro. Maio/jun. 1985 - número 31 Capa: Participação popular na constituinte. Artigo: “ O último reajuste nas prestações do BNH representam (sic) um sacrifício para o governo e não para o povo”. Jul./ago/set. 1985 - número 32 Capa: Profissionais paulistas e seu congresso Artigo: Aspectos sociais da AIDS. Jan. 1986 - número 33 Capa: A quem cabe a responsabilidade social? Artigo: Código de ética profissional. Maio 1986 - número 34 Capa: Assembléia geral Artigo: Processo eleitoral CFAS/CRAS Jun.1986 - número 35 Capa: Novo código de ética. Artigo: Participação popular na constituinte. Jul. 1986 - número 36 Capa: Nos dias 29 e 30 de julho, VOTE. Artigo: Plataformas das duas chapas que concorrem às eleições para a próxima gestão do Cras- 9ª Região Ago. 1986 - número 37 Capa: Processo Eleitoral, Assembléia Geral. Artigo: II Congresso dos Trabalhadores de Saúde Mental Nov. 1986 - número 38 Capa: Processo Eleitoral, participe. Artigo: Plataformas políticas Fev.1987 - número 39 Capa: Compareça à Assembléia Geral do dia 16 março. Artigo: Como anda o CRAS de São Paulo Maio 1987 - número 40

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Capa: Diretoria provisória assume e faz CRAS andar Artigo: Agora, CRAS aliado à categoria. Fev. 1988 - número 41 Capa: Assembléia Geral da categoria – Assistentes Sociais Artigo: Entrevistas com Maria Aparecida Accorsi Pereira – Federação de Obras Assistenciais –FASE Entrevista com Maria carmelita Yazbek, professora da PUC em São Paulo. Jul./ago. 1988 - número 43 Capa: Carta aos Assistenciais Sociais ( sobre demissões em órgão público) Artigo: sem artigo relevante Dez. 1988 - número 44 Capa: Regulamentação da profissão Artigo: sem artigo Fev./mar. 1989 - número 45 Capa: Luiza Erundina (prefeita São Paulo) Artigo: Chico Mendes, Ecologia e a luta de classe. Abr./maio 1989 - número 46 Capa: Semana do Assistente Social Artigo: VI CBAS: o maior evento do ano. Jun./jul. 1989 - número 47 Capa: Eleições presidenciais: existe alguma esperança? Artigo: Anteprojeto de LOAS. Out./nov. 1989 - número 48 Capa: Quem tem medo do voto? Artigo: Racismo: que país é este? Dez.1989/ jan. 1990 - número 49 Capa: Depois de votar, é hora de cobrar Artigo: CFAS/CRAS abrem o processo sucessório. Fev./març. 1990 - número 50 Capa: Avançar e fortalecer a organização popular Artigo: 8 de março: 80 anos do Dia Internacional da Mulher Set. 1990 - número 1 Capa: Nova diretoria e muito trabalho pela frente Artigo: Discurso de posse no CRAS (Elizabeth Borgianni) Jun./jul. 1991 - número 2 Capa: O CRAS 9 Região tem nova sede Artigo: O tema Assistência Social vai para o interior do movimento social. Ago./set. 1991 - número 3 Capa: Anuidade de 92, venha decidir. Artigo: Para que serve a anuidade paga pelo Assistente Social. Dez. 1991 - número 4 Capa: 1992: Enfim o CRAS 9ª Região muda-se para sua sede própria. Mas atenção: Artigo: O poder público também se organiza para defender a LOAS Abr. 1992 - número 5 Capa: Vem aí o VII CBAS! Artigo: Projeto de lei da nova regulamentação da profissão de Assistente Social

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Nov. 1992 - número 6 Capa: O que está em jogo nas eleições municipais de São Paulo Artigo: Aborto Legal Fev. 1993 - número 7 Capa: Eleição no CRAS: porque é importante ocupar seu espaço. Artigo: Pena de morte, um desafio dos direitos humanos do Brasil. Mar. 1993 - número 8 Capa: Eleição de abril, a hora de consolidar um projeto democrático e plural. Artigo: Reformulado, código de ética defende e amplia as conquistas de 86 Abr. 1993 - número 9 Capa: Eleição no CRAS Artigo: Prefeitura de São Paulo dificulta a ação dos Conselhos Tutelares Jul. 1993 - número 10 Capa: Veja balanço gestão 90-93 Artigo: Saúde vai mal com Maluf, diz dossiê. Set./out. 1993 - número 11 Capa: Que país é este? Art.igo: Extermínio de crianças: impunidade Nov./dez. 1993 - número 12 Capa: A revisão constitucional deve mudar a forma de financiamento da assistência social, saúde e previdência? Artigo: LOAS é aprovada na Câmara e no Senado. Jan./fev. 1994 - número 3 (início seção especial: relato de experiência) Capa: LOAS foi assinada. Art.: Convivência gera cidadania. Març/abr. 1994 - número 4 (Uma luta que vale a pena) Capa: Prefeitura acaba com habitação popular Artigo: Cingapura: de novidade, só a esperteza. Maio/jun. 1994 - número 5 Capa: 15 de maio, o seu dia Artigo: Encontro Nacional atende expectativas da categoria Jun./jul. 1994 - número 6 (Um por todos, todos por um) Capa: A semana do Assistente Social é comemorada em São Paulo Artigo: O Serviço Social de Empresa Ago./set. 1994 - número 7 Capa: Eleições gerais Artigo: Política social: quero uma para viver Out./nov. 1994 - número 8 Capa: XXIII Encontro CFESS/CRESS Artigo: FHC será um novo JK? Fev./mar. 1995 - número 9 Capa: VIII Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais Artigo: O governo Maluf e plano PAS, com “s”. Abr./maio 1995 - número 10 Capa: Assistente Social. Artigo: Comunidade Solidária: direito ou caridade?

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Jun./jul. 1995 - número 11 Capa: Encontro Estadual: projeto neoliberal e políticas públicas em discussão. Artigo: Moradores de rua terão direitos garantidos em lei. Set./out. 1995 - número 12 Capa: Conferência Nacional modifica rumos da assistência social no país. Artigo: LOAS desenha futuro mais humano e justo. Nov./dez. 1995 - número 13 Capa: I Conferência Nacional reescreve a história da assistência social no país. Artigo: PAS: proposta falida? Fev./mar. 1996 - número 14 Capa: Seminário debate BPC. Artigo: Assistentes Sociais sofrem arbitrariedades. Abr./maio 1996 - número 15 Capa: Clínica de desintoxicação da periferia é modelo para outros países. Artigo: Hospital de Taipas tem atendimento modelo para viciados. Jun./jul. 1996 - número 16 Capa: Diretorias dos Conselhos e Delegacias tomam posse. Artigo: Conferência Nacional de Saúde rejeita PAS e CPMF. Ago./set. 1996 - número 17 Capa: Encontro reúne diretores e funcionários do CRESS e Delegacias Seccionais Artigo: O Assistente Social e a política Out./nov. 1996 - número 18 Capa: Crise financeira reestrutura CRESS. Artigo: Encontro Nacional CFESS/CRESS dá novas diretrizes a categoria. Jan./fev. 1997 - número 19 Capa: 1 Encontro Serviço Social de Empresas discute a globalização e as transformações no mercado de trabalho. Artigo: Escolas do Estado poderão ter Assistentes Sociais. Mar./abr. 1997 - número 20 Capa: Encontro de Seguridade Social: estratégia contra desmonte. Artigo: I Encontro Serviço Social do Trabalho em Empresas mesclou reflexão e descontração. Maio/jun. 1997 - número 21 Capa: II Conferência Nacional dos direitos da criança e do adolescente: prioridade absoluta. Artigo: Encontro define princípios para prática profissional no Tribunal de Justiça. Jul./ago. 1997 - número 22 Capa: Encontro traça política nacional de fiscalização (da prática). Artigo: I Encontro de Serviço Social na esfera da Seguridade Social no Brasil – Ato combate desmonte da seguridade social. Set./dez. 1997 - número 23 Capa: Rumo ao século XXI: o que foi 1997. Perspectivas 1998. Artigo: Entrevista com Suzana Aparecida Rocha Medeiros. Jan./mar. 1998 - número 24 Capa: Encontro Estadual de Assistentes Sociais, preparatório ao IX CBAS Artigo: A doença mental e suas metáforas. Abr./jun. 1998 - número 25 Capa: Marcha global contra o trabalho infantil.

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Artigo.: Entrevista com Luiza Erundina. Na defesa do ECA. Jul./ago. 1998 - número 26 Capa: Seminário discute o ECA. Artigo: A realidade do Brasil real e a visão de FHC. Set./out. 1998 - número 27 Capa: Assistente Social trabalhador da Saúde em defesa do SUS. Artigo: Seminário “ECA: reflexões para a prática profissional” lota auditório. Nov./dez. 1998 - número 28 Capa: Em defesa dos quilombos. Artigo: CRESS promove encontro em defesa da saúde. Jan./fev. 1999 - número 29 Capa: Caras do Brasil Artigo: Organização política e Sindical da categoria dos Assistentes Sociais e condições de trabalho. Mar./abr. 1999 - número 30 Capa: CFESS, CRESS e Delegacias têm novas direções Artigo: Participação é o meu nome: entrevista com Maria Carmelita Yasbek Maio/ago. 1999 - número 31 Capa: CRESS tem eixos e plano de ação até 2002. Artigo: Assistência Social: Seminário Nacional discute a reforma do Estado e a rede de assistência e proteção social. Maio/ 2000 - número 32 Capa: Que o respeito aos direitos sociais seja a boa notícia dos próximos 500 anos. Artigo: Ética em defesa da profissão. Set./2000 - número 33 Capa: Participação dos profissionais democratiza a gestão orçamentária do Conselho. Artigo: Conferência no Canadá discute Serviço Social. Mar./2001 - número 34 Capa: A mulher e o Serviço Social Artigo: Terceiro Setor, tendência mundial, campo de reflexão. Jun./2001- número 35 Capa: Em debate controle social. Artigo: Sociedade começa a incorporar a democracia participativa. Set./2001 - número 36 Capa: Assistência Social: Lei Orgânica aguarda efetividade. Artigo: Saúde da Família: garantia de acesso ao usuário? Dez. 2001- número 37 Capa: Trabalho é o centro da agenda para 2002. Artigo.: Prisões, desafio ético para o Assistente Social. Mar. 2002 - número 38 Capa: II Fórum Social Mundial reúne 50.000 em Porto Alegre. Artigo: Orçamento público: O desafio é conhecer, para exigir efetividade. Maio 2002 - número 39 Capa: Eleições movimentam a categoria. Artigo: Gestão participativa: tentativa que deu certo. Out./dez. 2002 - número 40

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Capa: Vitória do PT gera otimismo para políticas sociais Artigo: Governo Lula deverá priorizar políticas sociais. Jan./mar.- 2003 – número 41 Capa: O Governo não respeita direitos garantidos pelo ECA. Artigo: Previdência: ajuste financeiro ou seguridade social? Abr./jun. 2003 - número 42 Capa: A lei do mais forte Artigo: O novo código civil e a igualdade Jul./set. 2003 - número 43 Capa: Em direitos não se mexe. Artigo: O que está por trás do terceiro setor: “setor” ou função social? Out./dez. 2003 - número 44 Capa: Unificação de políticas sociais reproduz assistencialismo? Artigo: Serviço Social num governo “ em disputa”. Jan./mar.- 2004 número 45 Capa: Defender direitos humanos é compromisso ético da sociedade. Artigo: A criança, o adolescente e a democracia no Brasil.

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ANEXO II

Texto de Luisa Franco publicado na Revista SaúdeLoucura

QUATRO OBSERVAÇÕES SOBRE AS PARCERIAS

Luiza Franco Antonio Lancetti

PRIMEIRA

Em nosso trabalho observamos, constatamos, respiramos o capitalismo real. Nosso

deambular pelas ruas e vielas de Vila Nova Cachoeirinha, nossa constante passagem pelas casas e nossa convivência com as condições de vida e com os territórios existenciais dessas famílias nos põem diante da devastação subjetiva que o capitalismo triunfante produziu.

Os hábitos, os costumes e os modos como essas famílias se organizam revelam o subdesenvolvimento psicossocial e o embrutecimento: violência, indiscriminação sexual entre pessoas de idades diferentes, maus-tratos praticados especialmente com crianças e mulheres.

No dia-a-dia vemos o resultado do triunfo da ideologia neoliberal e a miséria das políticas públicas: a escola não ensina ou ensina pouco, a assistência é focal ou simplesmente inexiste como política de direitos, os Conselhos Tutelares não têm condições mínimas para operar, recebem salários miseráveis e cobrem áreas excessivamente extensas. A cultura e o esporte, como políticas públicas, inexistem para o povo da periferia de São Paulo.

SEGUNDA

Para por em prática nossa metodologia é vital a realização constante de parcerias. Nosso trabalho parte de uma parceria que consiste na responsabilidade partilhada pela equipe de saúde mental e a equipe de saúde da família. Elaboramos um programa de saúde mental para cada família e, como foi assinalado em outros textos do livro, todos contêm ações que implicam parcerias. Nossos usuários participam de caminhadas organizadas pelas unidades de saúde, de capoeira, expressão corporal, artesanato e dos variados coletivos organizados nos postos de saúde. Mas eles participam também de outros grupos organizados por ONGs ou associações comunitárias. Outros recursos são propiciados por vizinhos dispostos a acolher famílias inteiras ameaçadas de morte, dispostos a se oferecerem como pais sociais ou a serem guardiões de crianças com vidas extremamente difíceis. Nossa experiência demonstra que, mesmo numa cidade como essa, em que as políticas públicas foram pauperizadas ou desativadas, é possível realizar parcerias. A cada dia constatamos o grande potencial solidário dos paulistanos pobres, e os denominados recursos escondidos da comunidade acabam aparecendo.

TERCEIRA

É preciso que o movimento da reforma psiquiátrica e a práxis da reabilitação psicosssocial incorporem no seu arcabouço conceitual e na própria clínica a Doutrina da Proteção Integral e a sistemática do Estatuto da Criança e do Adolescente. Com isso não queremos dizer que ao portador de doença mental deva ser atribuído o estatuto de criança, como tutelado, ou menor, quanto à sua capacidade contratual. Seria salutar para a retrógrada lei que rege os direitos do doente mental a convivência com uma lei revolucionária como é o ECA. Afinal a lei ainda vigente tem sintonia doutrinária com o Código de Menores. O Estatuto da Criança e do Adolescente afirma, de saída, o direito à vida e propõe a desinstitucionalização como método para propiciar o desenvolvimento pessoal e social da criança e do adolescente. O ECA adota também a desinstitucionalização como normativa para adequar as instituições encarregadas de operar medidas protetivas.

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No referente às medidas socioeducativas a questão é mais complexa, mas o ideário da desinstitucionalização está presente na excepcionalidade da medida de internação e nas outras medidas prescritas. Como nossa prioridade é atender as famílias em maior dificuldade e não esta ou aquela patologia, deparamo-nos a toda hora com crianças estupradas, adolescentes grávidas de seus parentes, com jovens em liberdade assistida ou internados da Febem. Somos obrigados a manusear o ECA. Duas situações foram ilustrativas. Em uma oportunidade atendemos uma criança estuprada pelo tio. O menino era órfão de pai e mãe. A tia com quem morava solidarizou-se com o marido, dizendo que a culpa era do “viado do moleque”. No meio ao “barraco” armado, a médica da família constatou dilatação do ânus, fez um relatório, adicionou-o ao da equipe de saúde mental e o apresentou ao Conselho Tutelar. Alguém, supostamente o estuprador, telefonou para esse Conselho fazendo ameaças. O Conselho Tutelar fechou as portas, abrigou as crianças e nos impediu de visitá-las. Nós também estávamos ameaçados e os vizinhos queriam linchar o sujeito. A ascendência sobre essas pessoas nos permitiu desviar a solução para outra, baseada no direito e na proteção da criança. Fizemos uma busca e os localizamos, mantivemos o vínculo e o enriquecemos fazendo visitas periódicas, aproximando-os da irmã mais velha e, depois de muito embate, conseguimos que o juiz outorgasse a guarda a essa adulta responsável. Em outra ocasião, pedimos o abrigamento de duas crianças cuja mãe estava em plena desordem, quase psicótica. Percebendo que maltratava psicologicamente os filhos e que era negligente, depois de semanas de tratamento, ela mesma solicitou o abrigamento dos filhos. O juiz determinou o acolhimento das crianças no Abrigo Emma Chiappini, construído em terreno doado pela prefeitura durante o período de administração malufista. Nosso programa terapêutico-pedagógico previa o tratamento da mãe ou a localização de algum familiar que viesse a se constituir como guardião. Para nossa surpresa, a instituição não permitia a visita de pais e familiares, pois eles preparam as crianças para adoção internacional. A discussão acabou em uma mesa-redonda ocorrida no Instituto Sedes Sapientiae, onde além de nós estava presente o juiz responsável pelo caso. Argumentamos que o abrigo não respeitava o direito à convivência familiar e comunitária. O juiz acolheu nossas reivindicações, e os meninos foram transferidos para a Casa de Passagem da Freguesia do Ó, onde conseguimos desenvolver nossa política de primazia do vínculo. As nossas instituições democráticas são ainda muito frágeis, como mostram esses e tantos outros exemplos. Já faz dez anos que foi promulgado o Estatuto. A familiarização com a doutrina e a sistemática do ECA é fundamental para o entremeado que constituem a clínica cartográfica que praticamos. O Estatuto da Criança e do Adolescente ilumina ética e operativamente a experiência da reabilitação psicossocial.

QUARTA

Por último, queremos destacar algumas observações sobre o funcionamento do assistente social na equipe volante de saúde mental. O assistente social (nós temos só um) não tem por função a realização de visitas domiciliares, nem a procura de contatos com qualquer instituição. Ele é um membro da equipe. E como tal, troca e faz circular seu saber entre os companheiros. Todos os profissionais dedicam-se a produzir conexões com os mais diversos dispositivos: escolas, conselhos tutelares, hospitais psiquiátricos, creches, associações de bairro, entidades filantrópicas, etc. Todos realizam intervenções nos domicílios. Todos discutem passo a passo cada “caso” atendido. Na nossa experiência, como já foi destacado, a busca de parceiros é constante e dramática. Muitas vezes, quando parece não haver mais possibilidades, os agentes comunitários de saúde chegam com uma idéia ou apresentam alguma alternativa inesperada. Os agentes comunitários de saúde são os grandes descobridores dos recursos escondidos da comunidade.