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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP Giancarlo Bernardi Possamai Livre iniciativa e limites à regulação estatal na perspectiva do Supremo Tribunal Federal MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC/SP

Giancarlo Bernardi Possamai

Livre iniciativa e limites à regulação estatal na perspectiva do Supremo Tribunal Federal

MESTRADO EM DIREITO

SÃO PAULO

2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC/SP

Giancarlo Bernardi Possamai

Livre iniciativa e limites à regulação estatal na perspectiva do Supremo Tribunal Federal

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Direito Administrativo. Orientador: Professor Dr. Carlos Ari Sundfeld.

SÃO PAULO

2014

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Banca Examinadora

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Dedico este trabalho aos meus pais, Alda

Bernardi e Giampaolo Possamai (in

memoriam), com um sincero agradecimento

por tudo aquilo que me proporcionaram.

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AGRADECIMENTOS

Há diversas pessoas que, de algum modo, contribuíram para a realização desta

dissertação, e a quem devo dizer um muito obrigado.

Primeiramente ao meu orientador, professor Carlos Ari Sundfeld, pelo privilégio de ter

sido seu orientando e por tudo aquilo que aprendi ao lado de sua convivência acadêmica.

Aos professores Jacintho Arruda Câmara e Dinorá Grotti sou grato pelas críticas e

sugestões construtivas feitas na banca do exame de qualificação. Devo agradecer também aos

demais professores da PUC/SP, pela importância que tiveram para a minha formação

intelectual.

À minha família e amigos (não é preciso citar nomes pois eles sabem quem são),

agradeço por estarem comigo nas horas tristes e nos momentos felizes.

Por fim, agradeço à Fran por estar sempre ao meu lado e pela doçura que torna os

meus dias mais prazerosos.

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RESUMO

Embora a Constituição Federal estabeleça, como regra, que a estruturação das relações econômicas se dê sobre a liberdade de iniciativa, que é um dos fundamentos da ordem econômica, diversos outros princípios constitucionais parecem ter um sentido justamente antagônico ao desta liberdade, não havendo como ignorar as ambiguidades que isso acarreta. Por isso, a presente dissertação busca justamente analisar a postura adotada pelo Supremo Tribunal Federal diante dos condicionamentos impostos pela regulação estatal aos agentes privados no desempenho das suas atividades econômicas, investigando se é possível constatar uma evolução, por parte da Corte, na resolução dos problemas concretos que lhe são levados, além de verificar como são sopesados os diversos interesses que se manifestam na prática. Nessa perspectiva, o trabalho conclui que o tribunal tende a defender os atos estatais que lá são questionados, fazendo-o a partir de uma argumentação bastante superficial. Além disso, a despeito das transformações havidas na sociedade e no Estado nos últimos vinte anos, não é possível constatar uma mudança significativa no enfrentamento que o tribunal faz da matéria, que continua preso a ideias tradicionais que afirmam a prevalência quase absoluta do setor público sobre o privado.

Palavras-chave: Livre iniciativa. Regulação pública. Intervenção estatal. Ordem econômica. Princípios constitucionais. Supremo Tribunal Federal.

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ABSTRACT

Even though the Federal Constitution establishes as a rule that economic relations are structured over free enterprise, which is one of the economic order fundamentals, a few other constitutional principles seem to have an antagonistic meaning towards this liberty, and the ambiguities that are thus entailed cannot be ignored. Therefore, the present dissertation aims precisely to analyze the Brazilian Supreme Court approach on state regulation conditioning private actors in their economic activities, investigating if it is possible to note an evolution in the way the Court deals with the issues that are put before it, as well as verify how the different interests that come up in practice are balanced. In that respect, the work concludes that the Court, based in a very superficial argumentation, tends to defend the state acts that are submitted to its review. Yet, despite the transformations that the society and the State have gone through in the last twenty years, it is not possible to note a significant change in the Court’s understanding, once it is still attached to traditional ideas that affirm the almost absolute prevalence of the public sector over the private one.

Key words: Free initiative – public regulation – state intervention – economic order – constitutional principles – Brazilian Supreme Court

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO AO PROBLEMA: A DICOTOMIA LIBERDADE ECONÔMICA X REGULAÇÃO PÚBLICA 10

1.1 Tema a ser desenvolvido e problematização 10

1.2 Estruturação do trabalho 13

1.3 Critérios de seleção jurisprudencial 14

1.4 Dúvidas que o trabalho pretende responder 16

2 A ORDEM ECONÔMICA CONSTITUCIONAL E SUAS PECULIARIDADES 20

2.1 Algumas anotações sobre o reconhecimento de direitos econômicos e a evolução do modelo brasileiro de Constituição econômica 20

2.2 O direito econômico na Constituição de 1988 e os seus princípios informadores 23

2.2.1 Valorização do trabalho humano 25

2.2.2 Livre iniciativa 26

2.2.3 Existência digna 29

2.2.4 Justiça social 29

2.2.5 Livre concorrência 30

2.2.6 Defesa do consumidor 31

2.2.7 Defesa do meio ambiente 32

2.2.8 Redução das desigualdades regionais e sociais 33

2.2.9 Busca do pleno emprego 34

2.3 Anotações conclusivas sobre o capítulo 34

3 INTERVENÇÃO ECONÔMICA E LIMITES À REGULAÇÃO ESTATAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL: EXPOSIÇÃO DOUTRINÁRIA E PROBLEMATIZAÇÃO 36

3.1 Os espaços ocupados pelos setores público e privado na Constituição de 1988 36

3.2 Intervenção indireta na economia – limites e possibilidades 40

3.3 Regulação estatal e sua problematização na doutrina 44

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4 LIVRE INICIATIVA E LIMITES À INTERVENÇÃO ESTATAL NA ECONOMIA NA PERSPECTIVA DO STF 48

4.1 Contextualização e apresentação das decisões selecionadas 48

4.1.1 Concessão de descontos compulsórios 51

4.1.1.1 ADI 1950 52

4.1.1.2 ADI 3512 53

4.1.1.3. RMS 28487 54

4.1.1.4 ADI 2435 MC 57

4.1.2 Proibição de produtos/atividades 58

4.1.2.1 ADPF 101 58

4.1.2.2 RE 349686 61

4.1.2.3 ADI 3937 MC 62

4.1.2.4 ADI 2290 MC 65

4.1.3 Controle de preços 66

4.1.3.1 RE 422941 67

4.1.3.2 ADI 319 69

4.1.4 Normais locais interferindo na atividade dos agentes econômicos 72

4.1.4.1 RE 193749 73

4.1.4.2 RE 235736 75

4.1.4.3 RE 189170 76

4.1.5 Regulamentação do comércio 78

4.1.5.1 ADI 2832 78

4.1.5.2 RMS 23732 80

4.1.5.3 ADI 1980 81

4.1.5.4 ADI 2334 82

4.2 Liberdade de iniciativa e os limites à regulação econômica – constatações empíricas 83

CONCLUSÃO 91

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 96

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1 INTRODUÇÃO AO PROBLEMA: A DICOTOMIA LIBERDADE ECONÔMICA X

REGULAÇÃO PÚBLICA

1.1 Tema a ser desenvolvido e problematização

Se é verdade dizer que nunca houve um formato de Estado que rejeitasse totalmente a

importância do papel desempenhado pela iniciativa privada na organização dos mercados,

tampouco há como negar que jamais existiram concepções de Estado absolutamente liberais,

tanto que a sua presença costuma ser a regra nas principais economias contemporâneas –

ainda que a intensidade com que ela se manifeste esteja longe de ser consensual entre

formuladores de políticas públicas e nos círculos acadêmicos.

No Brasil, a participação do governo na economia se acentuou com a inauguração do

constitucionalismo social trazido pelo texto constitucional de 1934, que também incorporou

temas relacionados à ordem econômica, sendo correto afirmar que a intervenção estatal, a

partir de mecanismos mais ou menos invasivos, é um fator da realidade desde então.

Mas na prática, não raro a identificação dos limites que circunscrevem a atuação

governamental nesta seara se revela extremamente problemática, e tudo está em saber como e

até onde esta extensão pública sobre a atividade privada se legitima. Esta dificuldade,

nomeadamente, fica bem retratada na Constituição de 1988, que apesar de consagrar um

modelo capitalista estruturado sobre a liberdade e autonomia dos agentes, reserva ao setor

público a competência para intervir diretamente no plano da produção, circulação e

distribuição das riquezas, ou seja, os princípios contidos no art. 170 não seguem apenas as

linhas do liberalismo clássico e do livre mercado, prestigiando simultaneamente certas

finalidades de cunho distributivista que exigem a interação estatal no domínio privado.

Nesse cenário, a linha que separa a legalidade da arbitrariedade é sutil e o risco de

excessos constante, tornando-se primordial definir em quais circunstancias a participação do

governo tem lugar, e com qual intensidade – máxime quando se leva em consideração o fato

de a livre iniciativa não ser somente uma das vigas de sustentação da economia, mas também

um fundamento republicano, o que exige que esta intervenção ocorra de modo ordenado e

observando alguns parâmetros, sob pena de se tornar abusiva.

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Porém, encontrar o equilíbrio entre autoridade e liberdade, ao contrário do que possa

parecer, não é tarefa simples porque a questão dialoga com princípios jurídicos que podem se

tornar inconciliáveis se tomados em sentido absoluto, sem que o ordenamento identifique

quais deles prevalecem e quais são preteridos. Igualmente, as propostas doutrinárias que vêm

sendo feitas para contornar esta indeterminação normativa e evitar que interesses

constitucionalmente protegidos sejam lesados, antes de harmonizar as divergências existentes,

parecem estimular esta zona de atrito por privilegiar apenas um ou outro aspecto da contenda.

Ocorre que as incertezas envolvendo a convivência entre as liberdades econômicas e o

conjunto de poderes que permite ao setor público cerceá-las têm reflexos importantes,

repercutindo tanto no sistema jurídico quanto na atividade econômica do país. Nesse quadro,

toda a especulação teórica ocasionada pela falta de clareza da legislação acaba sendo mais

bem resolvida no plano prático, pois havendo “dúvida quanto à subsunção de casos em

cláusulas gerais ou em conceitos jurídicos indeterminados, a palavra final só poderá ser dada

pelo Judiciário”1. Isso explica a opção pela investigação da jurisprudência do Supremo

Tribunal Federal, o que permite compreender as soluções que são construídas para os

problemas resultantes de controvérsias em torno da interpretação e aplicação dos princípios

do art. 170 da Constituição na regulação pública, e visualizar os motivos que têm sido

decisivos nos debates sobre a legitimidade das intervenções estatais.

Na realidade, por mais que a análise jurisprudencial seja desprezada na maioria das

discussões jurídicas no país, inclusive porque, segundo uma concepção tradicional e que

pouco a pouco vem se tornando obsoleta, decisões judiciais sequer seriam fontes de direito, o

Poder Judiciário, e especialmente o STF, tem participado ativamente de temas fundamentais

na agenda nacional, arbitrando assuntos de grande repercussão social, e que envolvem

escolhas políticas e morais controvertidas – o que basta para torná-lo objeto de estudo. Ainda,

é inegável que os tribunais têm um papel essencial na organização dos mercados, e a

segurança jurídica que devem proporcionar é o pontapé inicial para a criação de um ambiente

de negócios atrativo para o investidor privado.

Daí a pertinência de inquirir como o STF busca equacionar os conflitos decorrentes da

interação entre os princípios do art. 170 da Constituição Federal, os critérios e padrões

invocados pelos ministros para solucionar os litígios ocasionados por atos praticados no

1 COUTO E SILVA, Almiro do. Princípios da legalidade da Administração Pública e da segurança jurídica no Estado de Direito contemporâneo. Doutrinas essenciais de direito administrativo, v. 1, nov. 2012, p. 561. 2 SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da atividade econômica (princípios e fundamentos jurídicos). 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 37. 3 No resultado da pesquisa foram localizadas diversas decisões monocráticas. Nenhuma delas, no entanto, trouxe

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exercício da regulação pública que, de algum modo, venham a interferir na esfera das

liberdades individuais, e a evolução da jurisprudência da Corte sobre o tema.

Nesse contexto, sem esgotar o rol das hipóteses em que o problema se põe, alguns

exemplos ilustram as indagações que vêm à tona quando é estabelecido esse tipo de impasse:

a liberdade econômica, constitucionalmente protegida, pode ser restringida para que o

empreendedor privado seja obrigado a conceder descontos compulsórios e outros tipos de

vantagens a determinados setores sociais? O princípio da supremacia do interesse público

sobre o privado, abstratamente considerado, exterioriza uma justificativa válida para a

instituição de medida controlando os preços praticados pelo particular, ou isso contraria o seu

direito de fixá-los de acordo com as circunstâncias do mercado? É facultado ao regulador

restringir o exercício de certas atividades econômicas lícitas e fazer exigências a serem

observadas pelo empresariado na comercialização de certos produtos, ou este tipo de

abordagem é inconstitucional por impedir o desfrute de direitos individuais? Afinal, qual

solução mais se afina ao sistema: a que mantem os efeitos destes atos praticados pelo

regulador, ou aquela que os desconstitui? Enfim, situações complexas como essas, para as

quais há diversos desenlaces possíveis, são comuns e estão no cerne da atividade do operador

jurídico. Por esta razão, a opção por um enfoque concreto, baseado em situações reais onde

dois ou mais direitos estejam em situação de colisão.

Para tanto, as etapas que serão percorridas no trabalho incluem a análise dos contornos

constitucionais da ordem econômica, os papeis nela resguardados à iniciativa privada e ao

Estado, os espaços ocupados por cada um destes atores, além dos fatores que, segundo o STF,

condicionam a intervenção estatal na atividade do particular.

Por derradeiro, e considerando a amplitude que o tema pode alcançar, visto que a

regulação é um fenômeno complexo e multifacetário, este estudo tem como objeto apenas as

atividades econômicas abertas à livre iniciativa, pois nas concessões e permissões de serviços

públicos, mesmo que a execução da atividade em si tenha sido transferida para o particular, a

titularidade continua sendo estatal, o que atrai um conjunto de regras próprias e forte

regulação pública, que impedem esta liberdade de se manifestar em sua plenitude.

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1.2 Estruturação do trabalho

A dissertação está dividida em cinco capítulos, cada qual trabalhando pontos

específicos importantes para a sua compreensão como um todo. Nesta primeira parte

(introdução) é delimitado o seu objeto e feita uma breve descrição sobre o conteúdo do

trabalho, identificando ainda os critérios de seleção dos julgados analisados no trabalho, bem

como as dúvidas que a dissertação pretende responder.

Na sequência, no segundo capítulo, as atenções se voltam ao art. 170 da Constituição

Federal. Como neste dispositivo estão postas as normas que constituem a base da ordem

econômica, bem como as finalidades que devem ser perseguidas no processo produtivo, esta

avaliação é essencial para definir os contornos e visualizar as fragilidades deste arranjo. Antes

disso, no entanto, será traçado um panorama sobre a constitucionalização dos direitos

econômicos a partir do século XVIII, fazendo um pequeno retrospecto do seu

aperfeiçoamento no constitucionalismo brasileiro, o que permitirá entender os diferentes

papéis desempenhados pelo Estado na economia ao longo dos anos.

O terceiro capítulo traz algumas linhas sobre a atuação dos agentes públicos e privados

no mercado no atual estágio das relações socioeconômicas, a partir das diferentes

interpretações doutrinárias a respeito da Constituição Federal. De fato, este é um campo

extremamente fértil, em que convivem entendimentos distintos pela inexistência de respostas

precisas no texto para os problemas oriundos da aplicação dos princípios que informam a

ordem econômica. A intenção, com esta abordagem, é demonstrar que embora o regulador

busque respaldo para intervir em enunciados bastante genéricos, a presença do Poder Público

não se faz de forma arbitrária, porquanto há uma série de normas jurídicas que balizam a sua

participação no mercado, e que com espantosa habitude acabam tendo que ser explicitadas

pelos tribunais em decorrência da falta de nitidez da Constituição Federal.

O quarto capítulo, no qual encontram-se a síntese e o propósito do trabalho, aborda a

jurisprudência do STF sobre a interação entre liberdade econômica e autoridade pública,

focando nos limites impostos pela Corte à atuação do Estado na atividade econômica

desenvolvida pelos particulares, e na evolução do tratamento dispensado à matéria. O

problema proposto lida especificamente com a relação, por vezes conflituosa, entre

intervenção estatal e livre iniciativa, de maneira a identificar como os diversos valores

presentes neste debate são trabalhados pelos ministros. Espera-se, com isso, sistematizar a

visão que predomina entre eles acerca da real amplitude da livre iniciativa, num esforço para

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dimensionar o impacto deste princípio como fator atenuante do poder regulador estatal – que,

acima de tudo, “deve ser forma de garantia de um processo de integração econômica

equilibrada”2.

A escolha do Supremo se deve à sua posição decisiva em relação a assuntos

importantes da agenda nacional, já que é a última instância da Justiça brasileira, e o

encarregado de zelar pelos compromissos constitucionais. De mais a mais, a Corte vem

ganhando evidência nos últimos anos, seja em razão do abrangente sistema de controle de

constitucionalidade adotado internamente, seja pelas reformas processuais recentes, que ao

criar expedientes como a repercussão geral e a súmula vinculante, valorizam a sua

jurisprudência e permitem que sirva como diretriz nas instâncias ordinárias, aumentando

consideravelmente o impacto dos seus pronunciamentos.

Por fim, na conclusão são apresentados os resultados da pesquisa. Essa análise, além

de mostrar o grau de preocupação do STF em estabelecer parâmetros para o exercício da

regulação estatal, o que implica discutir a extensão da liberdade econômica na Constituição

Federal, traz à tona interessantes reflexões sobre as premissas valorativas e os contornos

teóricos do modelo regulatório brasileiro, tema em torno do qual existe certo dissenso entre

quem defende a adoção de uma doutrina baseada na preponderância do setor público na

economia e consequente submissão da iniciativa privada, e os que se posicionam a favor da

abertura do mercado e fomento da concorrência.

1.3 Critérios de seleção jurisprudencial

Feitos estes primeiros apontamentos, e considerando ser a jurisprudência do STF o

objeto de estudo do trabalho, algum tempo deve ser gasto para explicar como se deu a seleção

das decisões utilizadas na dissertação. É que na Corte há uma infinidade de julgados

envolvendo aspectos inerentes à intervenção estatal na economia, o que demanda a fixação de

critérios para escolher aqueles que efetivamente representem as exposições e debates úteis aos

fins aqui pretendidos.

Nesse quadro, adotando como recorte temporal o período de 25 anos compreendido

entre a entrada em vigor da Constituição de 1988 e outubro de 2013, foi feita uma busca

2 SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da atividade econômica (princípios e fundamentos jurídicos). 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 37.

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utilizando as ferramentas disponíveis na seção “pesquisa de jurisprudência”, no site do STF,

utilizando os motores de busca “li$ adj iniciativa não fiscal não penal”, e outras combinações

estratégicas. A utilização destes filtros – palavras-chave e delimitação temporal – resultou

num universo de 60 acórdãos3. Outro recurso utilizado foi verificar as decisões mencionadas

nos acórdãos e em doutrina, além de pesquisa em materiais impressos (jornais, revistas, etc.),

o que permitiu encontrar mais duas decisões, que não constaram no resultado da busca inicial.

A leitura individual dos julgados selecionados neste primeiro momento revelou que o

julgamento de diversos deles se deu a partir de argumentos de ordem formal4, tipo de decisão

que não serve para os fins aqui propostos porque o STF não entra no mérito da ação, e a

justificativa apresentada pelos ministros é indiferente para o resultado final. Também foram

excluídas as decisões julgadas com base na Constituição de 1967 proferidas após a entrada em

vigor da Constituição de 1988, assim como controvérsias sobre temas fiscais, nas quais a livre

iniciativa constitui um argumento periférico para obstar a incidência de determinado tributo.

Decisões afetas à regulação de serviços públicos de titularidade exclusivamente pública5, em

que o princípio não se corporifica em toda sua plenitude, submetendo-se, antes, a regras

próprias e diferenciadas, também não interessam.

Além disso, as matérias debatidas em muitas das decisões se repetiam em outros

acórdãos, e nestas situações optou-se pelo exame do precedente judicial, ou seja, daquele caso

que firmou o posicionamento do STF sobre determinado tema6. Igualmente, sempre que

3 No resultado da pesquisa foram localizadas diversas decisões monocráticas. Nenhuma delas, no entanto, trouxe qualquer inovação em relação a matérias que já haviam sido discutidas pelo colegiado, via de regra se limitando a julgar com base na jurisprudência já firmada pelo STF, ou decidir a partir de questões formais. 4 O rol de decisões julgadas apenas com base em aspectos formais, onde o STF não analisa o mérito destas ações é grande, e alguns exemplos são as ADI 3710, ADI 3035, ADI 1646, ADI 1007, ADI 910, ADI 855, ADI 3645, ADI 1595/MC, ADI 2035/MC e ADI 3645. 5 Adotou-se, no presente trabalho, a definição de BANDEIRA DE MELLO (Grandes temas de direito administrativo. 19 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 284), que enfatiza: “há certos serviços que serão públicos quando prestados pelo Estado, mas que concernem a atividades em relação às quais a Constituição não lhe conferiu exclusividade, pois, conquanto as tenha colocado a seu cargo, simultaneamente deixou-as liberadas à iniciativa privada. Há, na verdade, quatro espécies de serviços sobre os quais o Estado não detém titularidade exclusiva, ao contrário do que ocorre com os demais serviços públicos. São eles: serviços de saúde, de educação, de previdência social e de assistência social”. 6 Didier Jr., et al (Curso de direito processual civil, vol. 2. Salvador: Juspodivm, 2008, p. 382) assim explicam o que é um precedente judicial: “[...] à luz de uma situação concreta, o magistrado termina por criar uma norma jurídica que consubstancia a tese jurídica a ser adotada naquele caso – por exemplo, ‘cheque prescrito’ se enquadra no conceito de ‘prova escrita’ de que fala o art. 1.102-A do CPC. Essa tese jurídica é o que chamamos de ‘ratio decidendi’. Ela deve ser exposta na fundamentação do julgado, porque é com base nela que o juiz chegará, no dispositivo, a uma conclusão acerca da questão em juízo. Trata-se de norma geral, malgrado construída, mediante raciocínio indutivo, a partir de uma situação concreta. Geral porque, tal como ocorre com os princípios gerais a que se chega por raciocínio indutivo, a tese jurídica (‘ratio decidendi’) se desprende do caso específico e pode ser aplicada em outras situações concretas que se assemelham àquele em que foi originalmente construída – por exemplo, com base nelas é possível admitir, em qualquer outra situação concreta,

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possível optou-se pela análise de acórdãos proferidos em sede de controle concentrado de

constitucionalidade – ações diretas de inconstitucionalidade (ADI), ações declaratórias de

constitucionalidade (ADC) e arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPF)

–, cujo âmbito de discussão é maior por se tratar de competência originária do STF (CF, art.

102, I, a), que não fica vinculado à fundamentação já prequestionada na origem. Houve uma

única situação onde esta sistemática foi deixada de lado: na discussão das restrições à

comercialização de álcool combustível por empresas transportadoras-revendedoras-retalhistas

de combustíveis (item 4.1.2.2), onde os debates foram mais autênticos no RE 349686 do que

no leading case que consolidou o entendimento da Corte (RE 229440). Com isso, chegou-se a

um universo de 17 decisões úteis aos fins pretendidos.

O próximo passo foi então agrupá-las a partir de sinais em comum, de modo a

identificar as linhas decisórias existentes sobre o tema debatido, o que será melhor exposto no

quarto capítulo. Por ora, adiante-se que nas decisões que integram cada grupo, a livre

iniciativa surge como um motivo determinante para confrontar o ato regulatório que culminou

na medida impugnada no STF. Não se trata, porém, do único motivo, porque há inúmeros

outros habitualmente suscitados – invasão de competências legislativas, vícios de iniciativa,

razoabilidade, etc. Assim, o propósito é exatamente verificar como os vários interesses

existentes neste tipo de discussão são harmonizados pelos ministros, as razões que prevalecem

na prática, e as oscilações da Corte no tratamento de determinada matéria.

Por fim, uma ressalva se faz necessária: considerando o método de pesquisa

empregado (busca por palavras-chave), não há como esgotar todas as combinações possíveis,

e eventualmente alguma decisão pode ter ficado de fora da seleção final. Entende-se, no

entanto, que os prejuízos são mínimos porque as mais relevantes foram devidamente

analisadas, e a partir delas é possível traçar um panorama da jurisprudência do Supremo que

revele dados para compreender qual é a amplitude e quais são os espaços que condicionam a

intervenção estatal na economia no período de tempo definido.

1.4 Dúvidas que o trabalho pretende responder

Uma série de iniciativas no campo econômico ganhou corpo em meados da década de

1990, gerando efeitos importantes em relação aos meios pelos quais o Estado se faz presente

a ação monitória para cobrança de cheque prescrito. Eis aí a essência do precedente: uma decisão judicial cujo núcleo essencial (tese jurídica, ‘ratio decidendi’) pode servir como diretriz para demandas semelhantes”.

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no mercado, quando comparado com a configuração inicialmente concebida pelo constituinte.

Embora as medidas implementadas não tenham resultado na plena exclusão do Poder Público

da economia, mesmo porque a sua presença continua sendo necessária para garantir as regras

do jogo e em certos setores estratégicos, tiveram o claro propósito de multiplicar os espaços

de transações disponíveis para o capital privado, desconstruindo, ao menos em tese, a

composição altamente intervencionista e protecionista até então vigente, que estava ancorada

na forte presença do Estado na atividade produtiva direta.

As inovações decorrentes deste conjunto de transformações requerem, paralelamente,

uma mudança na postura do operador jurídico, que deve enxergar com novos olhos a forma

como se dá a interação entre o Estado e a economia, atentando para a evolução que a

sociedade, cada vez mais complexa, experimenta. A propósito, Egon Bockmann Moreira

chama a atenção para a versatilidade que se espera do intérprete nesse cenário de constantes

transmutações:

Toda norma legal decorre de um ambiente político, social e econômico vigente no momento de sua edição. Mas esse ambiente muda com o decorrer do tempo, exigindo do intérprete e aplicador da lei um esforço de adaptação, para que possa dar a correta solução aos problemas emergentes7.

Dito isso, em primeiro lugar interessa investigar se é possível constatar uma evolução

nos pronunciamentos do STF sobre o alcance conferido à participação do Estado na dinâmica

econômica do país, desvencilhando-se de orientações marcadamente intervencionistas para

priorizar a iniciativa privada como propulsor da economia, num esforço para sintonizar a

interpretação que faz das normas constitucionais à realidade socioeconômica que as circunda.

Para tanto, parte-se da premissa de que a Corte vem procurando adaptar sua jurisprudência ao

contexto político e social que se seguiu à onda de desestatização e privatização dos anos 90,

sendo bastante criteriosa quando colocada diante de iniciativas levadas a efeito pela

Administração nas mais diversas esferas da vida econômica.

Além disso, considerando que a Constituição de 1988 tem, dentre seus traços

marcantes, a incorporação de uma gama vasta de assuntos, não raro regulados por meio de

normas vagas e de elevada indeterminação semântica, não há como negligenciar as

complexidades e variadas contradições que isso acarreta. Na realidade, esta característica não

7 MOREIRA, Egon Bockmann. O direito administrativo contemporâneo e a intervenção do Estado na ordem econômica. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, n. 1, fevereiro de 2005. Disponível em: <www.direitodoestado.com.br>. Acesso em 12/12/2013

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é exclusividade do modelo brasileiro, mas sim dos sistemas jurídicos contemporâneos

genericamente compreendidos, que ao diversificarem e ampliarem o leque dos temas de que

tratam, além de esvaziarem a agenda das maiorias representativas, favorecem a propagação e

intensificação de conflitos normativos – seja por conta de tensões entre normas antagônicas,

seja pela existência de mais de uma saída juridicamente aceitável para um único problema,

sem que a opção a ser trilhada tenha sido expressamente indicada pelo legislador.

Os enfrentamentos que vêm à tona neste contexto exigem, então, o desenvolvimento

de meios capazes de equacioná-los, visto que a subsunção e os métodos tradicionalmente

utilizados para apaziguar conflitos normativos (hierárquico, temporal e da especialização) são

insuficientes para resolver adequadamente situações onde houver choque entre normas

constitucionais. Surge então a ponderação, que consiste numa técnica de interpretação jurídica

que envolve valorações e concessões recíprocas, e que poderá culminar tanto na prevalência

de uma das normas conflitantes quanto no afastamento de ambas em favor de uma terceira,

que melhor realize o fim pretendido, não havendo como dizer qual delas prevalece e qual é

preterida sem antes percorrer este caminho8.

Mas embora não seja razoável crer que o STF, já no início dos anos 90, se valesse

desta técnica de decisão jurídica para graduar os diversos interesses em jogo naqueles

conflitos considerados difíceis por envolverem normas constitucionais situadas no mesmo

patamar hierárquico, até porque ainda hoje “a estrutura interna do raciocínio ponderativo não

é bem conhecida”9, presume-se que os ministros tenham adotado certos parâmetros para

encontrar a solução juridicamente adequada para estes casos de maior complexidade, e

inclusive este exercício, com o passar dos anos, pode ter assimilado alguns traços típicos da

ponderação.

E é justamente isso o que se pretende sondar aqui: devido ao posto que ocupa no

desenho institucional brasileiro, imagina-se que o tribunal, diante de normas constitucionais

que se revelam ambíguas na prática, examine atentamente os fatos e circunstâncias

envolvidas, sopesando os diferentes interesses em pauta para, só então, em um segundo

momento, definir qual deles deve preponderar. Algo que, em certa medida, esteja associado às

ideias difusas de equilíbrio de interesses que conformam a ponderação, mas que não se trata,

8 BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. Revista de Direito Privado, v. 18, abril/2004, p. 110. 9 Ibidem.

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por conta do estágio de evolução do controle de constitucionalidade nas décadas passadas, de

ponderação propriamente dita.

Concluindo, os objetivos do trabalho são essencialmente os seguintes: i) verificar se a

compreensão que o STF tem do papel desempenhado pelo governo na economia vem se

alterando desde as reformas institucionais iniciadas na década de 1990, com a Corte

assumindo um entendimento mais voltado ao atual cenário de esvaziamento das atribuições

estatais na economia e prevalência do setor privado, limitando a intervenção estatal àqueles

casos onde ela indiscutivelmente for precisa; ii) indagar se, ao julgar processos onde se

discute a inserção do Estado no domínio econômico privado, o STF tem buscado desenvolver

padrões e critérios de julgamento à altura da complexidade do tema, através de um exercício

que busque equilibrar os valores contrapostos envolvidos com imparcialidade, sem fazer

qualquer espécie de valoração que leve a um resultado prévio favorável a um ou outro

interesse, já que o grau de hierarquia destas normas, não obstante a sua realização conduza a

soluções contrárias, teoricamente é igual.

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2 A ORDEM ECONÔMICA CONSTITUCIONAL E SUAS PECULIARIDADES

2.1 Algumas anotações sobre o reconhecimento de direitos econômicos e a evolução do

modelo brasileiro de Constituição econômica

Historicamente, alguns fatores foram decisivos para a ruptura com as formas de

organização econômica pré-capitalistas e o desenvolvimento do livre mercado a partir do

século XVII: i) a independência dos Estados Unidos, país de longa tradição liberal, com uma

sociedade absolutamente infensa a qualquer espécie de intervenção pública na economia; ii) a

consolidação do liberalismo na Inglaterra, em larga medida influenciada pela ideia de Adam

Smith de que a “mão invisível” do mercado ocasiona uma repartição mais eficiente de

recursos; iii) a atribuição de liberdades individuais às pessoas, aí incluídas as garantias

patrimoniais, a liberdade econômica e a liberdade profissional, esta última impulsionada pela

extinção das corporações de ofício na França; iv) e a Revolução Industrial inglesa, com os

profundos impactos nas relações sociais e de produção10.

Esta gama de acontecimentos permitiu a ascensão de modelos orientados pela lógica

negocial em lugar de sistemas baseados no planejamento estatal, motivando a criação de um

corpo de regras para possibilitar níveis mínimos de controle das relações econômicas e a

continuidade e fluidez dos processos decisórios descentralizados. Este avanço levou tanto à

positivação do Direito privado nos países de tradição jurídica romano-germânica, quanto à

expansão do constitucionalismo como instrumento legitimador do poder político e meio

garantidor de liberdades individuais. Em outras palavras, “a igualdade e a liberdade de

negócio, até então privilégio e concessão, passam a se encontrar na estabilidade da forma da

lei”11.

No constitucionalismo moderno, a Constituição norte-americana de 1787 e a

Constituição da França de 1791 foram os primeiros textos a assegurar a liberdade pessoal dos

governados e a proteção dos seus direitos, subvertendo antigas manifestações autoritárias de

poder para propiciar as condições ideais de funcionamento e operacionalização do mercado.

10 NUSDEO, Fábio. Curso de Economia. Introdução ao Direito Econômico. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 129-131. 11 MASCARO, Alysson Leandro. Crítica da legalidade e do direito brasileiro. São Paulo: Editora Quartier Latin, 2003, p. 31.

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Ao retirar o caráter pessoal do poder político para lhe conferir fundamentação legal, mais do

que assegurar liberdades públicas aos cidadãos, pretendiam evitar ingerências do Estado na

economia, atribuindo-lhe como função unicamente preservar a ordem social. A desigualdade

socioeconômica, um efeito colateral do capitalismo, era considerada um mal menor.

O viés liberal que marcou as constituições do século XVIII se manteve de pé até a

grande depressão econômica (1929/1930), tendo sido o argumento primário invocado pelos

tribunais para fulminar qualquer tentativa de intervenção estatal na economia, sobretudo nas

decisões proferidas pela Suprema Corte dos Estados Unidos. O precedente que firmou a

jurisprudência dominante no órgão de cúpula da justiça americana ao longo do período que

ficou conhecido como Era Lochner12, e que sintetiza a ideologia difundida nesta época, foi o

caso Allgeyer vs. Louisiana (1897)13, a partir do qual a Corte passou, de forma contínua e

reiterada, a fulminar as normas editadas pelos Estados que, de alguma forma, viessem a

interferir nas relações privadas14.

Esse entendimento só começou a mudar na segunda década do século XX, já que as

mazelas resultantes de um liberalismo radical favoreceram o nascimento de novos ideais,

refletidos no arcabouço jurídico das principais economias capitalistas no primeiro pós-guerra,

que enxergavam no aumento da atividade estatal a solução para atenuar as contradições

ocasionadas pela vivência de arranjos econômicos extremamente individualistas.

Nesse panorama, por terem espelhado estas alterações socioeconômicas que vinham

ocorrendo desde a virada do século, a Constituição mexicana de 1917 e a Constituição de

Weimar (1919) são consideradas as precursoras da socialdemocracia, redefinindo os papéis do

mercado e do governo para contemplar, junto com as garantias individuais, direitos

dependentes de prestações estatais positivas. Com efeito, não é exagero dizer que estes dois

textos podem ser considerados divisores de águas para o constitucionalismo moderno, visto

que os ideais neles incorporados, além de dar especial atenção para a questão dos direitos

fundamentais, propunham também substituir a estrutura econômica não-intervencionista que

vinha prevalecendo em boa parte das economias ocidentais, por formas de organização

econômica e social em que a atuação estatal passa a ser desejada. 12 A denominação é uma clara referência ao caso Lochner vs. New York, de 1905, no qual a Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade de lei do Estado de Nova York que estabelecia a duração da jornada de trabalho em padarias, por entender que isto violaria a liberdade de contratar das partes. 13 Neste caso, a Corte analisou a constitucionalidade de lei do Estado da Louisiana que declarava ilegais os contratos que os seus habitantes viessem a celebrar com empresas que não estivessem instaladas nos limites territoriais do Estado; ao final, a Corte julgou a norma inconstitucional por violar a liberdade de contratar. 14 CHEMERINSKY, Erwin. Constitutional law: principles and policies. Third edition. New York: Aspen Publishers, 2006, p. 614.

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No constitucionalismo brasileiro, especificamente, o seu conteúdo teve um peso

considerável na Constituição de 1934. Rompendo com a neutralidade característica das

Constituições imperiais (1824 e 1891), cuja preocupação central era a organização política e a

declaração de alguns direitos básicos (propriedade e liberdades de iniciativa, concorrência e

exercício profissional15), o texto de 1934 consistiu numa tentativa de remodelar o Estado

brasileiro, avançando no campo social e garantindo direitos trabalhistas e previdenciários,

além de consolidar normas destinadas a reger o fato econômico16 e contemplar a intervenção

estatal para atender políticas públicas fundadas na dignidade humana17.

Após a Constituição de 1934, todos os textos constitucionais brasileiros, em maior ou

menor grau, passaram a cuidar do fato econômico, inclusive a de 1937, que embora tenha tido

pouca aplicação efetiva, instituía a reserva de mercado para bancos de depósito,

concessionários de serviços públicos, e até para o setor de navegação.

Mas a intervenção econômica do Estado se tornou mais acentuada com a Constituição

de 1946. Na sua vigência, o modelo de desenvolvimento existente priorizava o mercado

interno e o fortalecimento da indústria nacional como alavanca do crescimento econômico e

forma de enfrentar os problemas socioeconômicos do país, sendo o envolvimento estatal

decisivo para a formação de um sistema econômico sólido devido à carência de investimentos

privados, fator decisivo para a criação das primeiras estatais (Companhia Siderúrgica

Nacional, Companhia Vale do Rio Doce, Companhia Hidrelétrica do São Francisco,

Petrobrás, BNDES, etc.). A Constituição de 1946 ficou marcada também por ter introduzido

no ordenamento jurídico a função social da propriedade (art. 14718), “ainda que de forma

embrionária, subordinando o uso desta ao bem-estar social”19, e por ter se voltado para os

problemas relativos à imperfeição da concorrência, o que representou um marco para o direito

antitruste no Brasil20.

15 NASCIMENTO, Tupinimbá Miguel Castro do. Comentários à Constituição Federal: ordem econômica e financeira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 18. 16 Estas normas estavam projetadas no título Da Ordem Econômica e Social (arts. 115 a 143), que previa diversos instrumentos de intervenção econômica, como a instituição de monopólios públicos (art. 116 e art. 119), o fomento à economia popular e ao desenvolvimento do crédito (art. 117), a nacionalização dos bancos (art. 117) e o estímulo à agricultura em áreas menos desenvolvidas (art. 121). 17 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 323. 18 Art. 147 - O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos. 19 Grau, 1981, p. 51. 20 Sobre este ponto, destaca Venâncio Filho (A intervenção do Estado no domínio econômico. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1968, p. 57): “A legislação antimonopolística é outro aspecto capital da Ordem Econômica e Social, introduzido pela primeira vez na Constituição de 1946, encontrando-se no texto

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Com o golpe de 1964, iniciou-se o projeto que culminou na Constituição de 1967, na

qual o desenvolvimento nacional foi alçado à condição de princípio, o que resultou numa

intensificação da ação do Estado como propulsor da atividade industrial, por meio de

empresas estatais, criação de infraestrutura e produção de insumos para a indústria pesada, e

concessão de financiamentos de longo prazo para grupos empresariais com trânsito no

governo. Com efeito, uma das linhas gerais da política de desenvolvimento dos militares no

fim da década de 1960 e início da de 1970 foi o incentivo às grandes empresas brasileiras para

que tivessem poder econômico suficiente e escala para competir com as estrangeiras, o que

fez o Brasil vivenciar um crescimento econômico vigoroso subsidiado por empréstimos

internacionais, o chamado “milagre econômico”. Todavia, segundo Giambiagi et al.21, a

realidade foi outra, já que o “Brasil de 1964-73 ilustra um caso de nítida ausência de

correlação entre democracia e desenvolvimento e de alta correlação entre autoritarismo e

reforma econômica”.

Esse formato de crescimento com endividamento começou a dar sinais de cansaço

após 1973, o que acabou sendo agravado pela instabilidade econômica no cenário

internacional, com sucessivas crises. Assim, o Brasil chegou à década de 1980 com uma

inflação galopante, déficit público e alto endividamento interno e externo, o que só começou a

mudar com as reformas em áreas críticas executadas na vigência da Constituição de 1988.

Com efeito, em razão da estagnação econômica que tomou conta do país nos anos 80, é

comum se referir ao período como a “década perdida”.

2.2 O direito econômico na Constituição de 1988 e os seus princípios informadores

Não obstante o constituinte de 1988 tenha reunido em um título próprio as normas que

formam a ordem econômica brasileira (Título VII – Da ordem econômica e financeira), há

outras tantas espalhadas pelo texto constitucional tratando do processo de produção e

distribuição de riquezas no país. Os próprios fins republicanos relacionados no art. 3º, ao lado

dos fundamentos especificados no art. 1º, são exemplos claros disso porque a ordem

constitucional a fórmula ‘abuso do Poder Econômico’, como expressão que abrange todas as manifestações de caráter monopolístico e com a caracterização expressa da união e agrupamentos de empresas individuais ou sociais, seja qual for a natureza, que tenham como objetivo dominar os mercados nacionais, eliminar a concorrência e aumentar arbitrariamente os lucros”. 21 GIAMBIAGI, Fábio et al. Economia brasileira contemporânea. 3ª reimpressão. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 70.

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econômica, enquanto peça do grande mosaico que forma a República brasileira, deve

obediência aos fins e princípios a que esta se submete22.

O primeiro dos dispositivos de relevância da ordem econômica constitucional é o art.

170, que ao estabelecer os fundamentos (valorização do trabalho e livre iniciativa),

finalidades (existência digna e justiça social) e alicerces da ordem econômica (soberania

nacional, propriedade privada, função social da propriedade, livre concorrência, defesa do

consumidor, defesa do meio ambiente, redução das desigualdades entre regiões, busca do

pleno emprego e tratamento favorecido para empresas de pequeno porte), procura sistematizar

os dispositivos relativos à economia e ao papel nela resguardado ao Estado:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

Da sua leitura, percebe-se que um dos traços marcantes da ordem econômica é a sua

implicação com o social, pois além de liberdades clássicas, irrenunciáveis a uma economia

capitalista, incorpora preocupações refletidas em disposições que buscam direcionar a atuação

dos agentes econômicos e do Estado, ou seja, mesmo optando por uma economia de livre

mercado, as questões sociais albergadas na Constituição exercem um papel decisivo nos

rumos da atividade econômica.

Ocorre que esse direcionamento mais imediato e específico da economia é feito

através de normas e valores abstratos e aparentemente conflitantes, como liberdade de

iniciativa e função social da propriedade, cuja efetivação está sujeita a algum tipo de 22 NOGUEIRA, André Carvalho. Regulação do poder econômico - a liberdade revisitada. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 215.

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subjetivismo pelo intérprete23. Dessas observações, emerge uma primeira conclusão: o embate

entre os elementos conformadores e impositivos da ordem econômica requer um exercício de

harmonização constante para que se compreenda o seu significado e sua real amplitude24, pois

a simples leitura do art. 170 não permite precisar o seu conteúdo específico.

Dito isso, nesse passo cabem algumas anotações teóricas acerca destes princípios, e de

como eles se inserem na ordem jurídica. Contudo, para evitar uma ampliação exagerada do

tema, não serão analisados aqui todos aqueles inseridos no art. 170 do texto constitucional,

mas apenas os que foram considerados pelo STF ao dimensionar os interesses que

culminaram nos julgados analisados no capítulo 4. Assim, além daqueles valores que

constituem os fundamentos da ordem econômica (livre iniciativa e valorização do trabalho),

dos quais não há como fugir por motivos óbvios, serão analisados os princípios da liberdade

de concorrência, existência digna, justiça social, defesa do consumidor e defesa do meio

ambiente, redução das desigualdades regionais e sociais, e busca pelo pleno emprego (incisos

V a VIII do art. 170), estes últimos comumente relacionados à ideia de interesse público e à

satisfação de valores coletivos.

2.2.1 Valorização do trabalho humano

No sistema constitucional brasileiro, a valorização do trabalho humano tem um sentido

todo particular. Mais do que um princípio da ordem econômica, traduz um valor fundamental

do próprio Estado brasileiro (art.1º, IV e art. 170, CF), além de desempenhar papel chave na

promoção de normas que informam a ordem econômica (dignidade humana, justiça social,

busca do pleno emprego, etc.)25, conforme esclarece Carmen Lúcia Antunes Rocha:

A valorização do trabalho humano significa que a existência digna far-se-á garantir pelo direito de autorrealização por meio do desempenho de legítimo, criativo das pessoas. O trabalho, considerado como direito de todos e dever da sociedade com todos, constitui marca de um tempo no qual o Estado legítimo é o que se volta para o atendimento das demandas sociais e compromete a sociedade como espaço de realização das necessidades sem

23 ALBINO DE SOUZA, Washington Peluso. Teoria da Constituição econômica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 373. 24 SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da atividade econômica (princípios e fundamentos jurídicos). 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 51. 25 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 34 ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 790.

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cujo provimento os homens têm dificuldades, quando não impossibilidades, de se fazerem felizes ou de terem existência digna26.

Em razão disso, em inúmeras passagens o constituinte de 1988 manifestou sua

preocupação com implementação deste princípio, desde o art. 7º, que traz um extenso rol de

garantias aos trabalhadores, além de ter prestigiado o trabalho dos autores e inventores,

através das garantias do direito autoral (art. 5º, XXVII) e de patentes (art. 5º, XXIX), bem

como daqueles profissionais que participam de espetáculos públicos ou de obras coletivas (art.

5º, XXVIII)27.

2.2.2 Livre iniciativa

Fruto da luta dos agentes econômicos durante a fase de desenvolvimento do livre

mercado, na sua origem o princípio da livre iniciativa representou uma reação à intervenção

governamental nas relações privadas, algo habitual no período em que a onipresença do

Estado na economia começa a ser relativizada. Com o passar dos anos, no entanto, o princípio

deixou de ser apenas um signo do modo de produção capitalista para assumir contornos mais

amplos, traduzindo uma garantia de liberdade assegurada à sociedade como um todo28. A

própria Constituição de 1988 é muito eloquente nesse sentido, estampando esta liberdade não

só como valor da ordem econômica, mas também como um fundamento republicano. Há

autores, inclusive, que alegam ser a livre iniciativa um direito fundamental29.

26 ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. O princípio constitucional da função social da propriedade. In.: BACELLAR FILHO, Romeu Felipe (coord. geral); MOTTA, Paulo Roberto Ferreira; CASTRO, Rodrigo Pirouti Aguirre de (coord.). Direito contemporâneo: estudos em memória ao professor Manoel de Oliveira Franco Sobrinho. 2 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 75. 27 BARROSO, Luís Roberto. A Ordem Econômica Constitucional e os Limites à Atuação Estatal no Controle de Preços. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, n. 14, jun./ago. 2002. Disponível na Internet: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em 1/03/2013. 28 NOGUEIRA, André Carvalho. Regulação do poder econômico - a liberdade revisitada. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 224. 29 Sobre este ponto, Alexandre Santos de Aragão (Atividades privadas regulamentadas: poder de polícia e regulação. Revista Forense, ano 102, vol. 383, Rio de Janeiro, jan./fev. 2006, p. 8) elenca duas razões principais que demonstram se estar diante de um direito fundamental: “Em primeiro lugar, a Constituição encara a liberdade de exercício da atividade econômica privada não como um favor do Estado, mas como um dos próprios fundamentos da República (art. 1º, IV, da Constituição) e da Ordem Constitucional Econômica (Constituição Federal, art. 170, ‘caput’), constituindo requisito do desenvolvimento sustentável da Nação [...]. Em segundo lugar, o rol dos direitos fundamentais sempre contemplou direitos de natureza econômica, a exemplo da vetusta ‘liberdade de indústria e comércio’ [...] e do direito de propriedade, base de todos os direitos de natureza econômica”. Há autores, contudo, que discordam deste ponto de vista. Para Gilberto Bercovici e José Maria Arruda de Andrade (A concorrência livre na Constituição de 1988. In. ADEODATO, João Maurício;

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A compreensão do real alcance da livre iniciativa obrigatoriamente envolve o

conhecimento dos elementos que integram o seu conceito. São eles: a liberdade de associação,

porque a união de esforços em busca de objetivos comuns é uma das principais formas de que

se valem os agentes para desenvolver relações econômicas30; a liberdade empresarial e de

trabalho, que de um modo geral afasta a necessidade de autorizações para o exercício de

atividades econômicas pelo particular; a livre concorrência, que assegura ao empreendedor a

faculdade de se lançar no mercado, estabelecendo livremente seus preços em ambiente de

competição com os agentes nele atuante; e, por fim, a liberdade de contratar31.

Nessa perspectiva, Fábio Konder Comparato salienta que a livre iniciativa

desempenha duas funções na ordem econômica. A primeira delas é a integradora, o que

significa que esta liberdade subordina toda a ação estatal, servindo como critério

interpretativo para as normas que tratam do aspecto econômico. A segunda função é a

genética, vinculando o corpo político no exercício das suas competências, a quem cabe adotar

as providências necessárias para dar concretude ao princípio32.

Conquanto este princípio não tenha – e nunca teve – caráter absoluto, pois o Estado

sempre participou ativamente do processo de desenvolvimento econômico, e a própria

manutenção do mercado depende da existência de um corpo mínimo de regras, a discussão

predominante em torno da liberdade de iniciativa envolve justamente a definição da sua

extensão e limites. Essa discussão, longe de ser teórica, tem consideráveis efeitos práticos.

Nesse debate, clássica é a disputa entre orientações liberais e orientações que assumem

um viés mais estatista. Os primeiros interpretam o princípio de modo amplo, enaltecendo o

livre funcionamento do mercado e destacando a liberdade de iniciativa como uma barreira à

atividade interventiva estatal33. A segunda corrente, por sua vez, argumenta que a livre

BITTAR, Eduardo C. B. (org.). Filosofia e teoria geral do Direito. Homenagem a Tercio Sampaio Ferraz Junior. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 463), por exemplo, esta posição ideológica não tem amparo no texto constitucional, porque “sob a Constituição de 1988, liberdade de empresa e livre iniciativa não são sequer direitos fundamentais”. 30 ABREU, Rogério Roberto Gonçalves de. Livre iniciativa, livre concorrência e intervenção do Estado no domínio econômico. Revista dos Tribunais, ano 97, vol. 874, agosto de 2008, p. 76. 31 BARROSO, Luís Roberto. A Ordem Econômica Constitucional e os Limites à Atuação Estatal no Controle de Preços. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, n. 14, jun./ago. 2002. Disponível na Internet: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em 1/03/2013 32 Comparato, 1991, p. 18. 33 É o que defende Ferraz Jr. (Direito constitucional: liberdade de fumar, privacidade, estado, direitos humanos e outros temas. Barueri: Manole, 2007, p. 222): “a atuação do Estado passa a ter um caráter negativo, isto é, de identificação e colocação dos limites aos agentes privados. Sendo assim, não exerce orientações positivas sobre os negócios, o que somente poderia ser indicativo, mas jamais determinante para as empresas (art. 174, caput), restringindo-se a apontar quais as ações ou operações privadas não serão aceitas quando essas ofenderem ou ameaçarem interesses públicos relevantes como a saúde, a livre competição, a segurança, o meio ambiente, o

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iniciativa é apenas mais um dos valores estampados na ordem econômica constitucional, e

não o único, recusando-se a aceitar aquilo que definem como sendo um modo de organização

que concentra o poder econômico majoritariamente na iniciativa privada, alegando que o grau

de amplitude conferido ao princípio é resultado de opções circunstanciais de conveniência

política: “o que a Constituição garante é a livre iniciativa como forma genérica, mas seus

espaços de construção são necessariamente polêmicos e, portanto, políticos”34.

De qualquer modo, em relação ao texto constitucional de 1967, a Constituição de 1988

tem contornos mais abrangentes, o que faz com que o espaço reservado para a atuação do

particular seja maior. Nomeadamente, o art. 17335 do texto constitucional vigente condiciona

a atuação empresarial do Estado à presença de relevante interesse coletivo e imperativos de

segurança nacional, enquanto no texto de 1967 havia a possibilidade de desempenhar

atividade econômica inclusive para suprir deficiências da iniciativa privada, quando esta não

fosse capaz de atender sozinha satisfatoriamente determinado mercado (art. 157, §8º36); as

hipóteses de monopólio estatal atualmente se restringem àquelas mencionadas no art. 17737 da

Constituição, o que contrasta com o modelo anterior, em que a ampla competência normativa

conferida ao legislador infraconstitucional autorizava a instituição de monopólios sobre

qualquer nicho da economia (art. 157, §8º).

pleno emprego, etc. As orientações positivas sobre a organização dos negócios, dentro da lei devem partir sempre dos próprios agentes, por força da livre iniciativa que fundamenta e informa todo o sistema econômico.” 34 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; MENDONÇA, José Vicente de. Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação do princípio constitucional da livre iniciativa. In. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (coord.). A constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 741. 35 Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. 36 Art. 157, § 8º - São facultados a intervenção no domínio econômico e o monopólio de determinada indústria ou atividade, mediante lei da União, quando indispensável por motivos de segurança nacional, ou para organizar setor que não possa ser desenvolvido com eficiência no regime de competição e de liberdade de iniciativa, assegurados os direitos e garantias individuais. 37 Art. 177. Constituem monopólio da União: I - a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos; II - a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro; III - a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores; IV - o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo produzidos no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem; V - a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados, com exceção dos radioisótopos cuja produção, comercialização e utilização poderão ser autorizadas sob regime de permissão, conforme as alíneas b e c do inciso XXIII do caput do art. 21 desta Constituição Federal.

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2.2.3 Existência digna

Seguindo uma tendência de promoção dos direitos fundamentais surgida nas

Constituições europeias no segundo pós-guerra, e que se internacionalizou com a aprovação

da Declaração Universal de 1948, a dignidade humana impõe-se como pilar de sustentação do

Estado e vetor informador da ordem constitucional brasileira (art. 1º, II e III). A despeito da

dificuldade na sua conceituação, frequentemente associada àquilo que é bom ou desejável, a

dignidade recobre um rol de direitos bem mais amplo do que os direitos humanos, sendo

praticamente inesgotáveis as regras constitucionais que buscam preservá-lo – por exemplo,

direitos fundamentais previstos no art. 5º, direitos sociais (art. 6°), direito à saúde (art. 196),

direito à educação, etc. – e seu âmbito de aplicação quase ilimitado.

Na ordem econômica, por seu turno, o fundamento republicano da dignidade humana

se projeta como referência a orientar as relações patrimoniais. Aqui, o princípio vincula os

agentes econômicos privados e o Estado em especial, que devem trabalhar pela sua

realização38.

2.2.4 Justiça social

Para assegurar a dignidade humana, a Constituição de 1988 sujeita a ordem econômica

à justiça social. O principal problema relacionado a este princípio é a falta de uma definição

mais precisa do seu conteúdo, ainda que exista um certo consenso que pressupõe uma

distribuição igualitária dos recursos produzidos pela sociedade. O risco decorrente da

imprecisão é o de que o princípio se torne inócuo, sem qualquer efetividade prática.

Mesmo concordando com a amplitude conceitual que circunda o princípio, inclusive

afirmando que a expressão justiça social chega a ser redundante, porque é inviável conceber

uma justiça que não seja social, Leonetti enuncia o conceito de justiça social como algo

inerente à promoção do bem comum entre os indivíduos segundo critérios previamente

38 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica). 14 ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 199.

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fixados de forma democrática, que permitam uma divisão igualitária dos haveres e deveres na

sociedade39.

Para Eros Grau, o conceito de justiça social “não designa meramente uma espécie de

justiça, porém um seu dado ideológico”, o que lhe confere ares de norma programática40.

2.2.5 Livre concorrência

Enunciado como um dos valores que orientam o processo de produção, circulação e

consumo de riquezas no país, a inclusão da livre concorrência dentre os princípios da ordem

econômica (art. 170, IV) revela a intenção do constituinte em garantir um ambiente no qual

exista um nível de competição razoável entre os agentes econômicos41. Além do art. 170, a

concorrência é mencionada no art. 173, §4º, que prescreve a necessidade de protegê-la de

eventuais abusos de poder econômico; no art. 146-A, que faculta ao legislador complementar

a instituição de critérios especiais de tributação para prevenir desequilíbrios concorrenciais; e

no art. 155, §4º, IV, “b”, que trata da fixação de alíquotas de ICMS para combustíveis e

lubrificantes em mercados competitivos.

Embora a Constituição de 1988 não traga uma definição mais específica de

concorrência, a doutrina se encarregou de fazê-lo, apontando alguns elementos que lhe

conformam e dão conteúdo. O primeiro deles é a competição que deve haver entre os agentes

econômicos, a quem, logicamente, é vedado adotar comportamentos anticoncorrenciais, sob

pena de se sujeitarem à ação disciplinadora do Estado42. A necessidade de garantir que a

rivalidade entre os agentes privados esteja imune a abuso de poder econômico é outro

elemento que o integra, assim como a posição de neutralidade que o setor público deve

assumir diante do fenômeno concorrencial, isto é, a obrigação de se manter inerte, imparcial,

não podendo influir no jogo de forças em favor de um ou de outro ator43, senão quando a

39 LEONETTI, Carlos Araújo. O imposto sobre a renda como instrumento de justiça social no Brasil. Barueri, SP: Manole, 2003, p. 172-174. 40 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica). 14 ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 229. 41 DERANI, Cristiane. Privatização e serviços públicos. As ações do Estado na produção econômica. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 207. 42 BARROSO, Luís Roberto. A Ordem Econômica Constitucional e os Limites à Atuação Estatal no Controle de Preços. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, n. 14, jun./ago. 2002. Disponível na Internet: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em 1/03/2013. 43 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Direito constitucional: liberdade de fumar, privacidade, estado, direitos humanos e outros temas. Barueri: Manole, 2007, p. 368.

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necessidade de resguardar setores mais vulneráveis aos influxos do poder econômico assim

exigir.

Na realidade, a livre concorrência tem caráter eminentemente econômico, o que de

certo modo a diferencia da liberdade de iniciativa, que está em posição hierarquicamente

superior por ser um fundamento republicando, garantindo aos agentes o direito de empreender

no mercado, o que complementa a liberdade concorrencial44. Ademais, a livre concorrência

relaciona-se não apenas com a finalidade normativa, mas principalmente com o modo de

execução de tais fins, ou seja, não vale atingi-la a qualquer custo, mas sim de acordo com as

variáveis estabelecidas na Constituição e na legislação antitruste.

2.2.6 Defesa do consumidor

O consumidor tem papel de destaque na Constituição de 1988, sendo o destinatário

final de uma série de normas ali previstas: o art. 5º, XXXII impõe ao Estado a sua proteção; o

art. 170, V elenca a defesa do consumidor como um dos princípios da ordem econômica; o

art. 150, §5º exige que a lei traga medidas para que permitam aos consumidores saber quais

são os impostos incidentes sobre mercadorias e serviços; o art. 175, parágrafo único, II

determina que a legislação ordinária esclareça os direitos dos usuários de serviços públicos; e

o art. 220, §4º sujeita a propaganda de cigarros, bebidas alcoólicas, agrotóxicos,

medicamentos e terapias a restrições legais para que seja do conhecimento de todos os

potenciais malefícios daí advindos.

Deveras, o alargamento do alcance das normas jurídicas que balizam as relações

consumeristas decorre da redução dos campos de atuação econômica do Estado, sendo um

fenômeno relativamente recente no Brasil, pois andou lado a lado com o processo de abertura

dos mercados que teve início na década de 1980. Antes disso, por existir um responsável

principal pela produção de bens e prestação de serviços – o Estado – teoricamente esse tipo de

proteção era desnecessário.

44 Há autores que não enxergam qualquer diferença entre as liberdades de iniciativa e concorrência. Nesse sentido, Comparato (A proteção ao consumidor. Revista de direito mercantil, industrial, econômico e financeiro. Ano XXIX, n. 80, out./dez. 1990, p. 71), destaca que “não se pode vislumbrar – na livre concorrência – nenhuma distinção conceitual de importância, relativamente à livre iniciativa. Ainda que se entenda de maneira restritiva, que esta última corresponde à liberdade de instalação e ingresso no mercado e aquela, à atuação no mercado é impossível negar que ambas constituem aspectos ou elementos indissociáveis da liberdade de empresa como um todo”.

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A menção à defesa do consumidor no art. 170 faz com que este valor passe a

condicionar o desenvolvimento das relações econômicas de um modo geral, porque não há

como deixar todas as decisões ao sabor do mercado45, o que demanda a atuação do Estado

para que aos consumidores seja dispensado tratamento legal especial. Estes fatores, inclusive,

fazem com que alguns autores coloquem o princípio no mesmo patamar de importância da

liberdade de iniciativa46.

2.2.7 Defesa do meio ambiente

De um modo geral, é possível afirmar que desenvolvimento econômico e degradação

do ecossistema são correlatos, sendo o correto equacionamento destas variáveis um desafio

cada vez mais atual. E a Constituição de 1988 não ficou alheia a isso, demonstrando clara

preocupação com o problema. Não bastasse trazer um capítulo inteiro dedicado à tutela do

meio ambiente (Capítulo VI do Título VIII), ainda incorpora a sua proteção como um dos

valores da economia, claramente rejeitando o crescimento econômico a qualquer preço. Este,

inclusive, é o maior avanço em matéria ambiental trazido pelo texto de 198847.

Logo, a pretexto de estarem exercendo suas atividades econômicas, não podem os

agentes deliberadamente poluir e esgotar recursos naturais, renováveis ou não, porque na atual

perspectiva constitucional, a busca por um ambiente saudável é um limite a qualquer política

desenvolvimentista48. Estes fatores exigem o planejamento de formas de exploração racional

de recursos naturais e adequada destinação dos resíduos produzidos, conjugados com a

45 A propósito, Barroso (A Ordem Econômica Constitucional e os Limites à Atuação Estatal no Controle de Preços. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, n. 14, jun./ago. 2002. Disponível na Internet: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em 1/03/2013) faz as seguintes considerações sobre este princípio: “o sistema de autorregulação do mercado nem sempre é eficaz em relação a um conjunto de outros aspectos dos produtos e serviços, como qualidade e segurança, veracidade das informações ao consumidor, vedação de cláusulas abusivas, atendimento pós-consumo etc. Daí a necessidade de uma regulamentação específica de proteção ao consumidor, que veio inscrita inclusive como um direito individual constitucionalizado. Trata-se, aqui, tanto de um princípio de funcionamento da ordem econômica, ao qual está vinculada a iniciativa privada, quanto de um dever do Estado. A ele cabe, não apenas assegurar um mercado efetivamente concorrencial, como também criar condições equitativas entre partes naturalmente desiguais, ainda que de forma induzida, e assegurar condições objetivas de boa-fé negocial”. 46 COMPARATO, Fábio Konder. A proteção ao consumidor. Revista de direito mercantil, industrial, econômico e financeiro. Ano XXIX, n. 80, out./dez. 1990, p. 71-74. 47 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco: doutrina, jurisprudência e glossário. 6 ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2009, p. 155. 48 BARROSO, Luís Roberto. A Ordem Econômica Constitucional e os Limites à Atuação Estatal no Controle de Preços. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, n. 14, jun./ago. 2002. Disponível na Internet: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em 1/03/2013.

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formulação de políticas públicas promovendo o desenvolvimento sustentável, sem o qual não

há como garantir uma qualidade de vida sadia à população49.

Em suma, a combinação de preservação e crescimento demanda uma regulamentação,

por parte do governo, dos modelos produtivos, que engloba desde o tradicional exercício do

poder de polícia, passando pela cobrança pela utilização de recursos naturais, compra de

créditos para poluir (por exemplo, créditos de carbono), e inclusive a instituição de algum tipo

de controle demográfico e de consumo50. Ademais, requer a edição de normas e concepção de

políticas públicas cuja execução dê concretude a este objetivo, de modo que a participação do

Estado, mais do que a do particular, seja decisiva para alcançá-lo, tanto por meio de

fiscalização dos agentes econômicos, como através de políticas e outras medidas de

sustentabilidade.

2.2.8 Redução das desigualdades regionais e sociais

O princípio está intimamente ligado ao objetivo republicano de garantir o

desenvolvimento nacional (art. 3º), colocando o Estado diante do problema das disparidades

regionais decorrentes da má distribuição de renda e oportunidades que contaminam o país51.

Isso pressupõe não só a modernização das regiões subdesenvolvidas, mas principalmente o

crescimento que traga mudanças sociais e econômicas que resultem na integração nacional e

melhoria das condições de vida da população em áreas tradicionalmente deficitárias.

Esta norma, no entanto, se destina essencialmente ao setor governamental,

demandando a concepção de políticas públicas que estimulem a atração de investimentos para

estes locais específicos, já que seria irrazoável esperar que o particular espontaneamente

empreenda nestas localidades sem receber algum incentivo para tanto. E justamente por este

49 Sobre a relação entre proteção ambiental e outros princípios da ordem econômica, afirma Eros Grau (Proteção do meio ambiente (caso do Parque do Povo). Revista dos Tribunais, ano 83, abril de 1994, vol. 702, p. 249): “O princípio da defesa do meio ambiente conforma a ordem econômica (mundo do ser), informando substancialmente os princípios da garantia do desenvolvimento e do pleno emprego. Além de objetivo, em si, é instrumento necessário – e indispensável – à realização do fim dessa ordem, o de assegurar a todos existência digna. Nutre também, ademais, os ditames da justiça social.” 50 NUSDEO, Ana Maria de Oliveira. Defesa da concorrência e globalização (o controle da concentração de empresas). São Paulo: Malheiros, 2002, p. 400-401. 51 NOGUEIRA, André Carvalho. Regulação do poder econômico - a liberdade revisitada. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 262.

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motivo, Ana Maria Nusdeo52 assinala que a sua previsão no art. 170 não traz qualquer

obrigação para o particular, vinculando unicamente o Estado.

2.2.9 Busca do pleno emprego

A busca do pleno emprego tem contornos marcadamente programáticos, estando

diretamente atrelada à valorização do trabalho humano, que é colocado em posição de

destaque53, o que pressupõe não apenas a criação de empregos, mas principalmente que estes

possibilitem aos trabalhadores prover sua subsistência com dignidade, ou seja, não se trata de

uma finalidade quantitativa somente, mas especialmente qualitativa. Do seu perfil de norma

programática decorrem algumas consequências, sendo a principal delas a

inconstitucionalidade de atos estatais recessivos54.

2.3 Anotações conclusivas sobre o capítulo

Apesar de optar por um modelo em que predomina a liberdade dos agentes, o

constituinte não deixou todas as decisões econômicas unicamente ao mercado, procurando

harmonizar a lógica privada do lucro com questões sociais. Por isso, enumerou no art. 170

uma gama vasta de princípios, alguns deles antagônicos, que condicionam a liberdade de

atuação privada, e que conjugam tanto a importância do setor público quanto do setor privado

para o desenvolvimento econômico e social.

A Constituição Federal não traz, contudo, uma definição expressa do que prevalece na

prática, e para esta pergunta tampouco há uma resposta jurídico-doutrinária pronta. Prova

disso é que os primeiros anos após a entrada em vigor da Constituição de 1988 tiveram como

marca a preponderância do governo como pivô do processo econômico, o que caracterizava a

forma de gestão estatal da economia existente nos textos anteriores.

52 NUSDEO, Ana Maria de Oliveira. Defesa da concorrência e globalização (o controle da concentração de empresas). São Paulo: Malheiros, 2002, p. 401. 53 NOGUEIRA, André Carvalho. Regulação do poder econômico - a liberdade revisitada. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 26. 54 GRAU, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica). 14 ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 258.

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De fato, a opção por uma linha de atuação mais voltada aos agentes privados só

começou a ganhar corpo com a transformação do perfil da Administração Pública e o

estabelecimento de novos paradigmas na relação Estado-mercado na década de 1990, que

buscaram mitigar o tamanho do setor público e promover a concorrência entre os agentes.

Com isso, o Estado assumiu um papel secundário, mas não menos notável, de regulador,

desempenhando tanto tarefas de cunho econômico, voltadas para a correção de falhas de

mercado e alocação mais eficiente de recursos, quanto sociais, condicionando as dimensões

da liberdade de iniciativa dos agentes econômicos. Este, a propósito, é o objeto do capítulo

seguinte.

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3 INTERVENÇÃO ECONÔMICA E LIMITES À REGULAÇÃO ESTATAL NA

CONSTITUIÇÃO FEDERAL: EXPOSIÇÃO DOUTRINÁRIA E

PROBLEMATIZAÇÃO

3.1 Os espaços ocupados pelos setores público e privado na Constituição de 1988

Acompanhando um movimento observado nas principais economias ocidentais, a

partir do fim da década de 1970 o Estado brasileiro começou a flertar com mudanças em sua

forma de organização, que levariam à desconstrução do modelo centralizador e altamente

intervencionista adotado durante boa parte do século XX. Dentre as justificativas para este

fenômeno estão o esgotamento das fontes de financiamento do setor público, e o desequilíbrio

existente entre o custo de manutenção deste arranjo altamente oneroso e os benefícios

socioeconômicos dele decorrentes, que se revelaram incapazes de elevar o patamar social.

Mas as ações mais emblemáticas que redefiniriam o modo de agir do Estado no plano

econômico só ocorreriam tempos depois, já na vigência da Constituição de 1988, com o

advento do Programa Nacional de Desestatização (Lei n. 8.031/90, posteriormente revogada

pela Lei n. 9.491/1997), ganhando musculatura com o projeto de reforma do Estado no

primeiro mandato de FHC. Isso trouxe alterações profundas na estrutura produtiva e no

mercado porque, através de modificações feitas no texto constitucional e de uma abundante

produção legislativa, extinguiram-se determinadas restrições a investimentos estrangeiros,

empresas estatais foram privatizadas, serviços públicos passaram a ser prestados em caráter

competitivo pela iniciativa privada, e atividades antes sujeitas ao monopólio da União abertas

ao particular55.

55 As transformações econômicas na economia brasileira nos anos 90 se deram, segundo Barroso (Agências reguladoras. In. DALLARI, Adilson Abreu; NASCIMENTO, Carlos Valder do; MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Tratado de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 27-28) em três principais frentes: “A primeira transformação substantiva da ordem econômica brasileira foi a extinção de determinadas restrições ao capital estrangeiro. A Emenda Constitucional n. 6, de 15-8-1995, suprimiu o art. 171 da Constituição, que trazia a conceituação de empresa brasileira de capital nacional e admitia a outorga a elas de proteção, benefícios especiais e preferências. A mesma emenda modificou a redação do art. 176, caput, para permitir a pesquisa e lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais de energia elétrica fossem concedidos ou autorizados a empresas constituídas sob as leis brasileiras, dispensada a exigência do controle do capital nacional. Na mesma linha, a Emenda Constitucional n. 7, de 15-8-1995, modificou o art. 178, não mais exigindo que a navegação de cabotagem e interior fosse privativa de embarcações nacionais e afastando o requisito de nacionalidade brasileira de armadores, proprietários e comandantes, bem como de, pelo menos, dois terços dos

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No entanto, tais acontecimentos não acarretaram a completa saída do Estado da cena

econômica, mesmo porque, no cenário traçado pela Constituição de 1988, os arts. 173 a 175

estabelecem caber a ele regular a economia, prestar serviços públicos e, diante de imperativos

de segurança nacional ou relevante interesse coletivo, explorar diretamente atividade

econômica. Na realidade, o que aconteceu foi o redimensionamento do modo de atuação

estatal e a ampliação dos campos para o exercício da regulação, num esforço para corrigir

deficiências que comprometiam o dinamismo das relações entre os setores público e privado,

fiscalizar as condutas dos agentes, e estimular setores específicos, sobretudo porque o modelo

de desenvolvimento interno sempre dependeu do setor público – vide, por exemplo, a

influência que os fundos de previdência de empresas estatais e o peso que os bancos públicos

de fomento, tais como o BNDES56, ainda hoje têm na economia. E num esforço para

simplificar este universo de normas e possibilidades, a doutrina tem tentado sistematizar as

formas pelas quais o governo interage com os agentes privados e com o mercado.

Há autores, como Celso Antônio Bandeira de Mello57 e Luís Roberto Barroso58, que

falam em normatização e fiscalização da iniciativa privada pelo exercício do poder de polícia;

fomento, através de benefícios fiscais e financiamentos públicos, por exemplo; e também

atuação direta por meio de empresas estatais.

tripulantes. Mais recentemente ainda, foi promulgada a Emenda Constitucional n. 36, de 28-5-2002, que permitiu a participação de estrangeiros em até trinta por cento do capital das empresas jornalísticas e de radiofusão. A segunda linha de reformas que modificaram a feição da ordem econômica brasileira foi a chamada flexibilização dos monopólios estatais. A Emenda Constitucional n. 5, de 15-8-1995, alterou a redação do §2º do art. 25, abrindo a possibilidade de os Estados-membros concederem às empresas privadas a exploração de serviços públicos locais de distribuição de gás canalizado, que, anteriormente, só podiam ser delegados a empresa sob controle acionário estatal. O mesmo se passou com relação aos serviços de telecomunicações e de radiofusão sonora e de sons e imagens. É que a Emenda Constitucional n. 8, de 15-8-1995, modificou o texto dos incisos XI e XII, que só admitiam a concessão a empresa estatal. E, em matéria de petróleo, a Emenda Constitucional n. 9, de 9-11-1995, igualmente rompeu com o monopólio estatal, facultando à União Federal a contratação com empresas privadas de atividades relativas à pesquisa e lavra de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos, a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro e a importação, exportação e transporte dos produtos derivados básicos de petróleo (outrora vedados pela CF, art. 177 e §1º, e pela Lei n. 2.004/51). A terceira transformação econômica de relevo – a denominada privatização – operou-se sem alteração do texto constitucional, com a edição da Lei n. 8.031, de 12-4-1990, que instituiu o Programa Nacional de Privatização, depois substituída pela Lei n. 9.491, de 9-9-1997. Entre os objetivos fundamentais do programa incluíram-se, nos termos do art. 1º, I e IV: (i) reordenar a posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público; (ii) contribuir para a modernização do parque industrial do país, ampliando sua competitividade e reforçando a capacidade empresarial nos diversos setores da economia”. 56 Pesquisas recentes apontam que apenas os recursos provenientes do BNDES respondem por 20% dos investimentos totais da economia (O Estado de São Paulo, Caderno B4, Economia, “BNDES banca 20% dos investimentos”, repórter Vinicius Neder, j. 3/9/2013). 57 Curso de direito administrativo. 19 ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 735. 58 Apontamentos sobre as agências reguladoras. In. MORAES, Alexandre de (org.). Agências reguladoras. São Paulo: Atlas, 2002, p. 114-115.

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A classificação promovida por Eros Grau59 se refere a três tipos de intervenção

econômica: i) por absorção ou participação; ii) por direção; e iii) por indução. A primeira

delas (por absorção) consiste nos monopólios públicos sobre setores que envolvem interesses

estratégicos da União (CF, art. 177), enquanto a intervenção por participação pressupõe a

exploração de atividade econômica em caráter empresarial, concorrendo com a iniciativa

privada. O Poder Público intervém por direção quando pressiona a economia, normatizando e

condicionando a atuação dos agentes, e por indução naquelas hipóteses em que manipula os

instrumentos interventivos em consonância com as leis que regem o mercado. De acordo com

esta classificação, a regulação estatal se materializa através das intervenções por direção e

indução.

Por seu turno, Marcos Juruena Villela Souto60 entende que o texto constitucional

contempla o seguinte conjunto de mecanismos interventivos: planejamento do

desenvolvimento econômico (art. 174, §1º); incentivo e fomento dos agentes (art. 174);

repressão ao abuso do poder econômico (art. 173, §4º); e exploração direta da atividade

econômica (art. 173).

Percebe-se, no entanto, que estas tentativas de definir as formas de atuação estatal na

economia guardam semelhanças. O denominador que as une está justamente no fato de

traçarem uma linha separando a intervenção direta na economia pelo Estado, basicamente

através de empresas estatais, de outros meios de intervenção em que a sua participação se faz

indiretamente, regulando a atuação dos agentes. Dito isso, é necessário entender os

pressupostos teóricos por trás desses dois grandes grupos.

O primeiro deles (atuação direta na economia) vem tratado de forma ampla na

Constituição Federal, abrangendo tanto o exercício de atividades empresariais quanto a

prestação de serviços públicos – estes últimos submetidos a regras próprias e forte regulação

por envolverem uma dimensão extremamente relevante para o desenvolvimento social e

econômico do país. Estão nele incluídos também os monopólios públicos, que podem ser

relativos ou absolutos, conforme a possibilidade ou não de serem delegados para que o

particular os explore.

Embora a intervenção direta possa ser feita pelo próprio poder central, comumente o

Estado se vale de entes descentralizados dotados de personalidade jurídica própria – de direito 59 A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica). 14 ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 146-149. 60 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Aspectos jurídicos do planejamento econômico. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 22.

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público, nas fundações públicas e autarquias, e de direito privado, nas fundações privadas,

empresas públicas e sociedades de economia mista (estas últimas usualmente denominadas

empresas estatais).

A organização estatal sob a estrutura empresarial, precisamente, está disciplinada no

art. 173, vinculando-se ao atendimento de imperativos de segurança nacional e relevante

interesse coletivo, visto que a iniciativa privada, na perspectiva constitucional, prevalece

sobre o setor público no plano econômico. Em termos operacionais, a atuação das empresas

estatais, conquanto submetidas às normas que caracterizam o regime de direito público,

guarda semelhança com os tipos privados, sendo a opção pela personalidade jurídica de

direito privado um meio de que se vale o Estado para atuar com mais flexibilidade em

mercados competitivos, uma vez que algumas regras inerentes à Administração direta e

autárquica deixam de lhe ser aplicáveis61.

E justamente porque o constituinte privilegiou o setor privado como protagonista do

processo econômico, as causas que justificaram a criação de empresa estatal em determinado

momento precisam ser reavaliadas de tempos em tempos, e isso por uma simples razão: o

avanço das relações socioeconômicas pode fazer com que as condições iniciais deixem de

existir, tornando despropositada a sua permanência no mercado, ou seja, na ausência das

condições delineadas no art. 173, não há nada que justifique a sua existência62.

Esta temática ganha maior relevo no Brasil, pois embora as mutações pelas quais a

economia passou nos últimos vinte anos façam parecer que os instrumentos interventivos de

que lança mão o governo sejam outros, mais sofisticados, a teoria e a realidade são dois lados

de uma mesma moeda. Isso porque a exploração direta de atividades econômicas vem

crescendo, e o incremento do número de empresas governamentais na última década

comprova que a velha face do Estado, intervencionista e centralizadora, em certa medida

permanece ativa. Além de convicções políticas, isso tem entre seus porquês os enunciados

abertos da Constituição Federal, passíveis de interpretação com algum subjetivismo, o que dá

margem para a criação de estatais atuantes em diversas frentes, mesmo naquelas que

poderiam ser atendidas perfeitamente pela iniciativa privada – é o caso, por exemplo, da

61 SUNDFELD, Carlos Ari; SOUZA, Rodrigo Pagani de. Licitação nas estatais: levando a natureza empresarial a sério. Revista de Direito Administrativo, v. 245, maio/ago. 2007, p. 20. 62 A ressalva feita por Dinorá Grotti (Intervenção do Estado na economia. Cadernos de direito constitucional e ciência política, n. 15, Revista dos Tribunais, abril/jun. 1996,p. 81-82) é extremamente oportuna: “se as empresas estão fora dos pressupostos constitucionalmente fixados, devem ser privatizadas, ainda que seu desempenho seja eficiente e rentável. Afinal, não é o lucro o que está em jogo, mas uma restrição constitucional traçada para a atuação estatal interventiva”.

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“Segurobrás” (Empresa Brasileira de Gestora de Fundos Garantidores e Garantias S.A.

concebida pela Lei federal n. 12.712/2012), que de fundo garantidor se converteu numa

seguradora atuante em segmentos variados, do seguro da vida ao de veículos, podendo,

inclusive, adquirir participação em empresas privadas dos ramos securitário e ressecuritário63.

Feitas estas considerações prévias, nos tópicos a seguir serão analisados os modos

pelos quais o Poder Público intervém indiretamente na ordem econômica, que é o que

interessa para os fins do presente trabalho.

3.2 Intervenção indireta na economia – limites e possibilidades

A intervenção indireta na economia está diretamente ligada à ideia de regulação, onde

o Estado passa a adotar medidas legislativas ou administrativas para orientar os agentes a

atuarem em determinada direção, em vez de ele próprio exercer atividades empresariais.

Ainda que esta forma de intervenção econômica não tenha surgido no Brasil com as

transformações conjunturais ocorridas no fim do século passado, pois mesmo antes da edição

da Constituição Federal e da criação das primeiras agências independentes já existiam entes

públicos com funções regulatórias64, é inegável que a sua recente institucionalização e

expansão refletem o esvaziamento das atribuições estatais enquanto agente econômico,

iniciativa que foi aplaudida por setores da sociedade por representar uma tentativa de

impulsionar investimentos e criar mais competição na economia65. O foco da regulação

também mudou, porque no cenário anterior, em que boa parte das atividades econômicas

63 “Governo Dilma tem um lado moderno outro antigo”, In Revista Exame, edição 1025, ano 46, 3/10/2012, p. 53. 64 Por exemplo, o Instituto do Açúcar e do Álcool (1933), o Instituto Nacional do Mate (1938), o Instituto Nacional do Pinho (1941), o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE (1962), e o Banco Central do Brasil – Bacen (1964). 65 O tratamento favorecido dispensado às estatais e a falta de condições equânimes de competição com as empresas privadas são apontados como as principais falhas deste modelo de organização empresarial. Em artigo publicado no ano de 1984, Celso Ribeiro Bastos (O uso das estatais como instrumento de dominação. In. Reflexões, estudos e pareceres de direito público. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 14-15) já refutava a presença destas sociedades no mercado por tê-las como algo nocivo à economia, por traduzirem “um instrumento a mais de imposição do Poder contra o desfrute das liberdades públicas”. Este debate continua atual, e um recente estudo revela que o próprio STF tende a estender às empresas governamentais alguns privilégios incompatíveis com a sua natureza de direito privado, tais como imunidade tributária e impenhorabilidade de bens. Contudo, como estas prerrogativas não se aplicam ao particular, terminam sendo uma vantagem competitiva em proveito das estatais, o que desequilibra as condições igualitárias de competição no mercado que supostamente deve haver entre os setores público e privado (PINTO, Henrique Motta. A autarquização das empresas estatais na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: um obstáculo para as reformas na Administração Pública. Cadernos de gestão pública e cidadania, v. 15, n. 57, São Paulo, 2010).

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estava organizada na forma de monopólios públicos, fazia pouco sentido falar em promoção

da concorrência, que é o que dá a tônica na atual conjuntura.

Para o ex-ministro Luís Carlos Bresser Pereira, um dos responsáveis pelas medidas

que culminaram na revisão do processo de atuação do governo na economia e na consolidação

de um contexto gerencial de Administração Pública na década de 1990, o desgaste da ideia de

Estado empresário era patente, o que impunha a criação de novos parâmetros de interação

entre os atores públicos e privados66. As transformações operadas por estas iniciativas podem

ser consideradas o grande legado das reformas institucionais ocorridas no país.

Na Constituição de 1988, especificamente, a intervenção estatal indireta vem tratada

no art. 173, §4º e no art. 174, que elencam as finalidades do Estado enquanto agente

normativo e regulador da economia67. Isso pressupõe as atribuições de editar normas,

fiscalizar o seu cumprimento, e impor sanções68, tanto para estimular os agentes a atuarem

buscando atingir determinados objetivos socialmente relevantes, quanto para combater os

efeitos nocivos à economia decorrentes de eventuais abusos de poder econômico69.

66 Sobre a crise por que passava o modelo de Estado centralizador adotado no país até então, explica Bresser Pereira (BRESSER PEREIRA, Luís Carlos. Do Estado patrimonial ao Estado gerencial. In. SACHS, Ignacy; WILHEIM, Jorge; PINHEIRO, Paulo Sérgio (org.). Brasil: um século de transformações. São Paulo: Cia. das Letras, 2001, p. 247): “Em 1995, Fernando Henrique Cardoso assume a presidência da República. A crise do Estado burocrático-industrial ou burocrático-desenvolvimentista era fato [...]. A solução não era substituir o Estado pelo mercado, mas reformar e reconstruí-lo para que pudesse ser um agente efetivo e eficiente de regulação do mercado e de capacitação das empresas no processo competitivo internacional.” 67 Alexandre Santos de Aragão (O conceito jurídico de regulação da economia. Revista de direito mercantil, industrial, econômico e financeiro. Ano XL, n. 120, abril/jun. 2001, p. 40) afirma que a regulação envolve três frentes principais: “(a) a regulação dos monopólios, quando a competição é restrita ou inviável, evitando que eles lesem a economia popular, controlando os preços e a qualidade dos serviços ou produtos; (b) regulação para a competição, como forma de assegurar a livre concorrência no setor privado e, no caso de atividades econômicas sensíveis ao interesse público, o seu direcionamento na senda deste; e (c) regulação dos serviços públicos, assegurando a sua universalização, qualidade e preço justo”. 68 Para Eros Grau (A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica). 14 ed. São Paulo: Malheiros, 2010.p. 150), “o planejamento não configura propriamente uma modalidade de intervenção, mas sim um método que a qualifica, a torna mais racional ao se fixar objetivos, projeções, instrumentos e meios pelos quais as ações do Poder Público serão implementadas”. 69 Segundo uma definição com boa aceitação doutrinária, a regulação estatal assume os seguintes contornos: “A regulação, enquanto espécie de intervenção estatal, manifesta-se tanto por poderes e ações com objetivos declaradamente econômicos (o controle de concentrações empresariais, a repressão de infrações à ordem econômica, o controle de preços e tarifas, a admissão de novos agentes no mercado) como por outros com justificativas diversas, mas efeitos econômicos inevitáveis (medidas ambientais, de normalização, de disciplina das profissões etc.). Fazem regulação autoridades cuja missão seja cuidar de um específico campo de atividades considerado em seu conjunto (o mercado de ações, as telecomunicações, a energia, os seguros de saúde, o petróleo), mas também aquelas com poderes sobre a generalidade dos agentes da economia (exemplo: órgãos ambientais). A regulação atinge tanto os agentes atuantes em setores ditos privados (o comércio, a indústria, os serviços comuns – enfim, as “atividades econômicas em sentido estrito”) como os que, estando especialmente habilitados, operam em áreas de reserva estatal (prestação de “serviços públicos”, exploração de “bens públicos” e de “monopólios estatais”).” (SUNDFELD, Carlos Ari. A participação privada nas empresas estatais. In. SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo econômico. 1. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 18).

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A regulação estatal pode se desenrolar de várias maneiras, assumindo feições distintas.

No entanto, se divide em duas principais categorias. A primeira consiste na normatização, por

meio da qual o regulador edita regras disciplinando as relações econômicas e estabelecendo

comportamentos obrigatórios ao particular, sejam elas regras gerais, aplicáveis

indistintamente, ou setoriais, alcançando somente determinadas áreas econômicas. A segunda

categoria é o fomento70, que consiste na criação de estímulos à atividade econômica por meio

de atos consensuais, cujos resultados são obtidos basicamente através de sanções premiais71

(por exemplo, renúncias fiscais mediante incentivos, concessão de financiamentos por bancos

públicos, criação de barreiras à importação, etc.), e não coercitivamente.

No Brasil, o fortalecimento da atividade regulatória foi acompanhado pela emergência

de novos atores, responsáveis por disciplinar a prestação dos serviços públicos concedidos à

iniciativa privada, e certas atividades econômicas de interesse coletivo: tratam-se das agências

reguladoras. Inspiradas nos entes congêneres existentes na estrutura administrativa norte-

americana, internamente foram classificadas como autarquias especiais em razão da maior

independência de que dispõem, se comparadas às autarquias comuns e aos órgãos reguladores

existentes no contexto pré-1988, que eram integralmente subordinados ao governo, o que

facilitava a ocorrência de ingerências externas que minavam a eficiência da sua atuação.

Na realidade, o grande diferencial das agências está na autonomia (gerencial,

orçamentária e financeira) que lhes é assegurada em relação ao Poder Executivo, que mesmo

decorrendo da letra das respectivas leis instituidoras, o que permite a existência de diferenças

entre uma agência e outra, se manifesta a partir de notas características em comum, que as

enquadram e identificam. São elas: independência decisória e poder normativo72 para editar

regras setoriais, algo afeto à ideia de especialização que marca o modelo regulatório

70 Sobre o fomento enquanto manifestação do poder regulatório estatal, há autores que o classificam como uma espécie autônoma da intervenção. É o caso de Alexandre Santos de Aragão (O conceito jurídico de regulação da economia. Revista de direito mercantil, industrial, econômico e financeiro. Ano XL, n. 120, abril/jun. 2001, p. 40), para quem “do conceito de regulação está excluída a atividade direta do Estado como produtor de bens e serviços e como fomentador das atividades econômicas privadas, que, junto com a regulação, constituem espécies do gênero da intervenção do Estado na economia”. 71 BARROSO, Luís Roberto. Apontamentos sobre as agências reguladoras. In. MORAES, Alexandre de (org.). Agências reguladoras. São Paulo: Atlas, 2002, p. 114. 72 Poder normativo é a prerrogativa assegurada ao regulador de editar as normas necessárias para disciplinar o setor em que atua, sejam elas gerais e abstratas ou individuais e concretas, o que se explica pelas particularidades dos diversos mercados regulados, não atendidas a contento pela atividade legislativa somente. Embora nos anos seguintes à criação das primeiras agências houvesse alguma resistência à ideia de regulação normativa, pois as normas daí advindas supostamente não teriam amparo legal, atualmente existe certo consenso sobre a viabilidade da normatização setorial, desde que não inove na ordem jurídica e se atenha aos fins e contornos gerais fixados na legislação ordinária (FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Como regular as agências reguladoras? Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 17, fev./abril 2009. Disponível em www.direitodoestado.com.br. Acesso em 15/09/2012, p. 14).

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brasileiro, onde a autonomia surge como meio de blindar o ente regulador de pressões

políticas externas73; estabilidade do corpo de diretores, que só podem ser exonerados por

decisão judicial ou em processo administrativo disciplinar; imposição de período de

quarentena aos membros da diretoria após deixarem o cargo, durante o qual estão impedidos

de trabalhar no setor regulado pela agência que integravam, providência que visa impedir a

sua cooptação pelo setor privado; no mais, procura-se garantir ao ente fontes de receitas

alternativas, além das dotações orçamentárias gerais74.

Mas este recorte da relação Estado-economia, baseado na regulação econômica, dá

ensejo a uma série de debates ideológicos. Em que pese haver autores entendendo que a

redução do tamanho do Estado e a promoção da concorrência entre os agentes seja a melhor

forma de amplificar os benefícios sociais, principalmente quando se leva em conta o critério

da especialização, importante para monitorar mercados extremamente complexos75, há quem

revele credos mais intervencionistas, se opondo a esta forma de organização.

Um dos que rebate a lógica da regulação econômica é Dalmo de Abreu Dallari, por

considerá-la contraditória. É que embora os agentes regulados defendam a redução da

participação estatal na economia, estes mesmos atores são os primeiros a depositar no Estado

uma série de expectativas em relação à condução da economia, esperando que o governo seja

o grande incentivador das suas atividades por meio de financiamentos públicos, benefícios

fiscais, etc. E é justamente esta aparente falta de coerência que justifica as críticas tecidas por

Dallari, para quem o discurso ensaiado pelos defensores deste modelo é oportunista por ser

repetido somente nas situações que lhes são convenientes76.

73 Sobre o poder normativo das agências, Di Pietro (Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 188) faz o seguinte comentário: “No direito brasileiro, a regulação, como novo tipo de direito, é apenas incipiente porque, ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, não se institui um procedimento obrigatório para elaboração de normas pelas agências, com participação do cidadão. Aqui, falar em regulação significa fazer referência às competências exercidas por agências reguladoras (e entidades afins), que integram a Administração Pública indireta, resultando, na maior parte das vezes, em direito posto unilateralmente pelas mesmas.” 74 JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 21. 75 Barroso (Apontamentos sobre as agências reguladoras. In. MORAES, Alexandre de (org.). Agências reguladoras. São Paulo: Atlas, 2002, p. 110) comenta o colapso do modelo de Estado-empresário adotado no país durante boa parte do século XX: “O Estado brasileiro chegou ao fim do século XX grande, troncho, ineficiente, com bolsões endêmicos de pobreza e de corrupção. Esse foi o Estado que resultou depois de quase 25 anos de regime militar. Um Estado da direita, do atraso social, da concentração de renda. Um Estado que tomava dinheiro lá fora para emprestar aqui dentro, a juros baixos, para a burguesia industrial e financeira brasileira.” 76 Segundo Dallari (Sociedade, Estado e Direito: caminhada brasileira rumo ao século XXI. In. MOTA, Carlos Guilherme (org.) Viagem incompleta: a experiência brasileira (1500-2000). A grande transação. São Paulo: Ed. Senac, 2000, p. 449-450), “entre os vícios herdados do período colonial, um dos mais graves é a concepção de que os interesses privados são sempre absolutamente predominantes, justificando-se, inclusive, o uso do

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Mas as censuras são particularmente fortes na doutrina de Gilberto Bercovici, para

quem a retirada circunstancial do setor público da cena econômica, com o enfraquecimento da

ideia de Estado provedor e o delineamento de novas formas de atuação estatal, é prejudicial

aos valores incorporados no texto constitucional, já que as decisões políticas passaram a ser

condicionadas somente por aspectos financeiros e interesses de grandes grupos econômicos,

abandonando preocupações sociais importantes77.

De fato, a transformação do perfil da Administração Pública e o estabelecimento de

novos paradigmas apresenta falhas. A falta de autonomia destes entes reguladores talvez seja

o principal problema, pois desaparelhados e sem recursos, terminam pecando no papel único e

óbvio de regular. O aparelhamento e captação das agências por interesses políticos igualmente

desafia a eficiência do modelo.

Não obstante, trata-se de um processo sem volta, irreversível, e pouco adianta

simplesmente recriminá-lo. Ao contrário, é necessário estudar os seus problemas e contribuir

para aperfeiçoá-lo78.

3.3 Regulação estatal e sua problematização na doutrina

É indiscutível que as liberdades econômicas estabelecidas na Constituição de 1988 não

impedem a imposição de condicionamentos e limites às atividades privadas. Mas justamente

por interferir nestes direitos, uma das principais controvérsias em torno da regulação estatal

governo, do aparato administrativo e de todos os recursos públicos para a satisfação do interesse exclusivo de uma pessoa ou de um grupo de elite […]. Os direitos passaram a ser estabelecidos, inclusive pelos legisladores, partindo do pressuposto de que a proteção do patrimônio e a liberdade econômica são os valores fundamentais da pessoa, não podendo sofrer qualquer espécie de condicionamento pelo Estado. Ao mesmo tempo, entretanto, ficou estabelecido que o Estado deve manter um alto nível de investimentos em empresas públicas para que os grupos privados possam manter o pleno emprego de suas organizações e equipamentos. Rejeita-se, portanto, a participação do Estado mas exige-se que ele seja investidor, financiador, incentivador da economia privada, promotor e mediador de negócios em escala internacional e grande consumidor”. 77 Para Bercovici (Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 85), “a regulação significou o desmonte da estrutura do Estado, o sucateamento do Poder Público e o abandono de qualquer possibilidade de implementação de uma política deliberada de desenvolvimento nacional”. 78 Sobre este ponto, oportunas são as considerações de Barroso (Regime constitucional do serviço postal. Legitimidade da atuação da iniciativa privada. Revista dos Tribunais, vol. 786, abril/2001, p 132): “É possível detectar, assim, uma tendência nítida nas aspirações da sociedade brasileira. Tal tendência institucionalizou-se pelos mecanismos constitucionais próprios da emenda e da edição de legislação infraconstitucional. A concordância ou discordância em relação a este formato de Estado - fundado, essencialmente, no mercado e na livre concorrência - podem e devem ser manifestadas nas instâncias próprias. Não se pode, todavia, negar ou falsear uma ordem legitimamente em vigor. É preciso evitar, aqui, uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional no Brasil: a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo.”

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refere-se justamente à sua conciliação com outros valores fundamentais acolhidos no texto

constitucional.

De um lado, há uma linha defendendo um sistema mais apoiado na livre atuação dos

agentes e na capacidade organizacional do mercado, mesmo assentindo que em situações

pontuais será preciso que o governo nele intervenha. Os que se filiam a esta corrente

entendem que a regulação pública tem como nota básica a subsidiariedade, cabendo apenas

para corrigir inoperacionalidades do mercado, e quando os agentes privados forem incapazes

de realizar espontaneamente certos objetivos voltados ao bem público. E sendo necessária,

obrigatoriamente tem de ser razoável, o que pressupõe a existência de equilíbrio entre a

intensidade da medida adotada e os fins com ela pretendidos79.

Nessa discussão, Alexandre Santos de Aragão leciona que a liberdade econômica, tal

qual as demais liberdades asseguradas na Constituição de 1988, é um direito fundamental, não

podendo ser eliminada por norma estabelecida em nível legal80. Segundo o autor, a ideia de

interesse público, por si só, não basta para restringir a atividade dos agentes, posto inexistir

um interesse público que, abstratamente considerado, se sobreponha a esta garantia

fundamental81.

Em resumo, portanto, esta linha argumentativa parte da premissa de que o regime

concorrencial é o mais indicado para assegurar a eficiência do mercado, o que impõe ao

governo a obrigação de atuar buscando reduzir ao máximo os impactos anticompetitivos

decorrentes dos seus atos, já que a rivalidade efetiva entre os agentes é um poderoso

instrumento para garantir a eficiência do mercado e a justiça social82.

Mas, na outra ponta, existem autores que atribuem ao Estado funções mais diretas na

organização do mercado e condução da economia. Um dos que integra esta escola é Fábio

Konder Comparato, para quem a regulação do mercado tem no princípio da justiça social o

79 Entre os autores que assim entendem estão Floriano de Azevedo Marques Neto (Limites à abrangência e à intensidade da regulação estatal, Biblioteca Digital Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, jan. 2003, s/p.), e Nelson Eizirik (Monopólio estatal da atividade econômica. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, out./dez. 1993, p. 66), para quem as mitigações à livre iniciativa que autorizam o Estado a intervir na economia são excepcionais e ocorrem de forma residual apenas, ou seja, na ausência de soluções pelo particular cabe a atuação estatal para alavancar o mercado ou preencher os vazios deixados pela iniciativa privada. 80 Para Alexandre Santos de Aragão (Atividades privadas regulamentadas: poder de polícia e regulação. Revista Forense, ano 102, vol. 383, Rio de Janeiro, jan./fev. 2006, p. 13-15), isso representaria uma “improvável delegação de Poder Constituinte ao Legislador, que poderia derrogar norma constitucional sem os procedimentos fixados para a reforma constitucional”. 81 Ibidem. 82 SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da atividade econômica (princípios e fundamentos jurídicos). 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 165-166.

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seu fundamento de validade, e restrições à liberdade econômica estão vinculadas a três outros

princípios constitucionais: legalidade, igualdade e proporcionalidade. Isso porque o quadro

delimitador das restrições admitidas à atuação privada exige previsão legal, bem como um

tratamento isonômico aos seus destinatários, além da existência de proporcionalidade entre

meios e fins. Todavia, satisfeitas estas condições, o Estado teria uma margem de atuação

ampla, que inclusive lhe facultaria instituir regimes regulatórios mais bruscos, como o próprio

controle de preços83.

Esta orientação também encontra ecos na doutrina de Eros Grau, que reconhece o

papel central desempenhado pelo setor público na economia, concordando, de um modo geral,

que sua participação deve se dar de forma ampla. Esta ideia o leva a rejeitar interpretações

que esvaziam as funções do Estado na organização dos sistemas econômicos, justificando,

para tanto, que os fins estabelecidos no art. 170 do texto constitucional não se restringem à

prevalência do livre mercado84.

A despeito das inúmeras teorizações sobre o tema, contudo, percebe-se que a questão

posta é de difícil desate por dialogar com conceitos indeterminados, de modo que a amplitude

e o caráter essencialmente principiológico da Constituição Federal tornam os critérios de

racionalização da regulação pública e a sua compatibilização com outros direitos

constitucionais motivo de incertezas. Na realidade, há um desafio doutrinário e institucional

nesse debate porque a inexistência de uma definição explícita no texto constitucional, que não

manifesta expressamente sua preferência por uma linha econômica mais liberal ou estatizante

(e as interpretações doutrinárias e jurisprudenciais mais díspares dadas ao assunto são uma

prova disso), acaba fazendo com que a determinação concreta das condições de exercício da

regulação seja deslocada para o Poder Judiciário, que então fica encarregado de dar a última

palavra sobre a difícil correlação entre intervenção estatal e liberdade econômica85.

Significa isso que o ideário que cada magistrado aceita e adota será o fator decisivo

para definir que tipo de ato regulatório é tido como admissível, e nessa batalha naturalmente

haverão aqueles que assumirão uma visão mais favorável ao Estado, desejando que a sua 83 COMPARATO, Fábio Konder. Regime constitucional do controle de preços. Revista de Direito Público, n. 97, SP/RJ, jan./mar. 1991, p. 24-28. 84 GRAU, Eros Roberto. “Loterias: serviços Públicos. Livre iniciativa/livre concorrência e imposição de restrições à atividade dos lotéricos”. In GRAU, Eros Roberto; FORGIONI, Paula. O Estado, a empresa e o contrato. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 139. 85 Este fenômeno foi bem captado por Oscar Vilhena Vieira (2006, p. 54): “A adoção de valores como liberdade e igualdade por nossa Constituição não transforma estas expressões políticas em expressões técnico-jurídicas [...]. Simplesmente transfere para a esfera de aplicação da Constituição a disputa sobre o valor desses princípios. Daí os tribunais estarem sempre envolvidos nas mais intrincadas disputas de caráter político e moral, tendo frequentemente que resolver conflitos entre valores, a partir de conceitos muitas vezes imprecisos.”

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presença se dê ostensivamente, e outros que tentarão assegurar ao próprio mercado o posto de

protagonista da economia – mesmo reconhecendo a relevância pontual que o governo pode

desempenhar como agente básico do desenvolvimento econômico.

Assim, torna-se crucial desvendar e avaliar o raciocínio jurídico utilizado para

sustentar um ou outro entendimento, considerando, consequentemente, constitucional ou não

determinada medida regulatória que atenue a liberdade dos agentes privados. É que apesar de

muitos dos atos idealizados e praticados no exercício do poder regulador serem juridicamente

válidos, nem sempre é assim. A dúvida, então, refere-se aos critérios que levam o juiz a

referendá-lo ou não. No próximo capítulo, a finalidade passa a ser buscar respostas para esta

indagação.

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4 LIVRE INICIATIVA E LIMITES À INTERVENÇÃO ESTATAL NA ECONOMIA

NA PERSPECTIVA DO STF

4.1 Contextualização e apresentação das decisões selecionadas

Conforme visto anteriormente, a ordem econômica constitucional é marcada por

normas com conteúdo altamente valorativo, que protegem os mais variados interesses. E

embora estas normas não sejam excludentes entre si, por vezes contêm objetivos conflitantes,

o que faz com que a sua correlação seja permeada por hesitações e dúvidas: ao passo que a

aplicação de parte delas abre margem para uma ampla intervenção estatal, há, em

contrapartida, outras revestidas de um caráter indiscutivelmente liberal, e com base nelas é

possível rebater qualquer espécie de ato praticado pelo governo na economia. Em última

análise, se o Poder Público pode invocar certos princípios para justificar suas decisões de

intervir no mercado, esta lógica se aplica também ao empreendedor privado, que encontra

neste conjunto de valores justificativas consistentes para combater o excesso de proatividade

governamental na área econômica.

O resultado daí advindo tem sido justamente a judicialização da discussão sobre os

espaços de atuação dos entes públicos e privados86, o que torna a gama de casos abrangendo

temas relativos à intervenção econômica no STF ampla e variada: há desde processos onde

governos locais tentam disciplinar a atividade empresarial fixando o horário de

funcionamento do comércio, até polêmicas em torno de medidas editadas por agências

reguladoras que afetam diretamente milhões de consumidores e os negócios de grandes

grupos econômicos.

Realmente, por mais que se teorize a respeito do conceito de livre iniciativa e das

nuances do modelo regulatório brasileiro, uma vertente extremamente relevante disso tudo só

será revelada diante das especificidades das circunstâncias concretas. Isso porque a

86 Algumas críticas se concentram no avanço dos tribunais sobre a esfera que deveria ser ocupada pelas instâncias políticas tradicionais: “[...] tem-se vivido, desde o surgimento da Constituição de 1988, uma maré montante na judicialização de questões envolvendo a administração, com o frequente uso de princípios bastante imprecisos para controlá-la (como o princípio da dignidade da pessoa humana), o que, de algum modo, coloca em questão a própria noção de Direito (afinal, ele agora inclui esses princípios todos, assim abertos e indeterminados, com força normativa?) e, portanto, também de direito administrativo” (SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 48).

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materialização de conceitos abertos, característica marcante das normas com conteúdo

principiológico, implica a tomada de posições político-ideológicas, e por isso não é exagero

dizer que, quanto mais especulativo for o tema, mais importante deve ser a preocupação com

a sua real aplicação. E o STF, enquanto pivô de decisões resguardando temas polêmicos e de

larga repercussão na vida institucional brasileira, tem um papel fundamental na estabilização

desse impasse.

A tarefa, ao contrário do que possa parecer, não é das mais simples, haja vista que o

art. 170 da Constituição Federal pouco ou nada esclarece sobre o alargamento ou restrição do

envolvimento estatal na economia. De fato, neste debate é possível visualizar claramente uma

antinomia jurídica imprópria, onde não há regra que permita dizer precipitadamente qual

princípio prevalece e qual é ignorado, uma vez que a solução desta equação se dá pelo

sopesamento destes interesses, ou seja, em tese as normas em jogo são plenamente válidas e

têm o mesmo peso, e a opção por uma ou outra obrigatoriamente passa pela avaliação das

particularidades da realidade fática87. Logo, conforme sublinha Calixto Salomão Filho, “a

exata medida em que princípios como ‘livre iniciativa’ e ‘justiça social’ [...] é deixada ao

trabalho interpretativo do aplicador do Direito”88.

Mas será que o STF segue este raciocínio quando delibera sobre conflitos derivados de

medidas regulatórias que interferem na atuação da iniciativa privada? Isto é, a Corte

efetivamente faz uma leitura minuciosa dos fundamentos que lhe são levados, balanceando

com isenção a dimensão e a importância que os princípios em oposição têm para o desfecho

dos litígios julgados? Conforme explicado no primeiro capítulo, presume-se que as respostas

para estas interrogações sejam positivas, e o presente estudo visa, pois, analisar se a premissa

adotada inicialmente está ou não equivocada.

Para elucidar como o STF tem se posicionado diante de conflitos normativos

envolvendo liberdades econômicas que, de algum modo, tenham sido restringidas por conta

de atos praticados no exercício do poder regulatório, os 17 julgados selecionados nas buscas

realizadas foram catalogados e agrupados com base no tipo de medida regulatória a que se

referem, de modo a identificar as linhas decisórias existentes e a posição de cada magistrado 87 É o que afirma Eros Grau (Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. 5 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 199): “Em cada caso, pois, em cada situação, a dimensão do peso ou importância dos princípios há de ser ponderada. Isso explica o quanto acima afirmei: a circunstância de em determinado caso a adoção de um princípio, pelo intérprete, implicar o afastamento de outro princípio, que com aquele entre em testilhas, não importa que seja este eliminado do sistema, até porque em outro caso, e mesmo diante do mesmo princípio, este poderá a vir prevalecer.” 88 SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial – as condutas. 2ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 106.

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sobre o tema. Destaque-se, por oportuno, que por mais que as decisões incluídas em cada

conjunto não se relacionem exatamente aos mesmos fatos, há certa proximidade entre elas

pois, em maior ou menor grau, dizem respeito à execução de um determinado tipo de medida

regulatória. Nesse quadro, formaram-se cinco grupos: i) concessão de descontos

compulsórios; ii) proibições de produtos / atividades; iii) controle de preços; iv) normas locais

interferindo na atividade dos agentes econômicos; v) regulamentação do comércio.

Nos casos que integram cada conjunto, a livre iniciativa é um motivo determinante

para confrontar o ato regulatório que culminou na medida impugnada no STF, ainda que não

seja o único, porque há inúmeros outros habitualmente suscitados – invasão de competências

legislativas, vícios de iniciativa, razoabilidade, etc. Assim, o propósito é exatamente verificar

como os interesses antagônicos presentes neste tipo de discussão são harmonizados pelos

ministros, os argumentos que prevalecem na prática, e as eventuais oscilações da Corte no

tratamento da matéria.

E justamente para possibilitar a melhor compreensão dos julgados incluídos em um

dos cinco grupos formados, será adotada a seguinte sistemática: inicialmente serão feitas

considerações sobre os grupos formados, explicando qual é a proximidade existente entre os

acórdãos selecionados que explica a sua reunião sob uma mesma rubrica. Na sequência, as

discussões levadas a cabo em cada julgado e as respectivas linhas decisórias adotadas pelos

ministros serão demonstradas, o que permitirá, ao final, apresentar as principais conclusões

sobre a compreensão que o STF faz do tema.

Por fim, é importante fazer uma ressalva: a profundidade das análises empreendidas

no trabalho reflete o nível dos argumentos formulados pelos ministros e os debates travados

durante os julgamentos. Em parte deles os votos são mais elaborados, com as nuances

relevantes para o desfecho da lide sendo efetivamente enfrentadas e debatidas pelo colegiado,

enquanto em outros tantos, o STF passa ao largo destes pontos, que acabam sendo deixados

em aberto ou eventualmente tratados de forma bastante superficial e vaga.

Uma das possíveis explicações para estas diferenças no processo decisório e no

aprofundamento das decisões está na importância socioeconômica que os ministros enxergam

em determinadas matérias, o que leva a votos mais completos do que os proferidos em casos

de menor relevância e impacto. A outra leitura reflete uma particularidade do processo

decisório do STF, nomeadamente a falta de discussão entre os juízes a respeito das matérias

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em pauta, visto que “levam seus votos prontos para a sessão de julgamento e não estão ali

para ouvir os argumentos de seus colegas de tribunal”89.

4.1.1 Concessão de descontos compulsórios

Este primeiro grupo engloba as decisões do STF discutindo medidas governamentais

concedendo descontos compulsórios a diferentes atores – estudantes, consumidores, doadores

de sangue, governo, etc. Conquanto o escopo destes atos seja dar concretude a certos direitos

sociais, interferem na atuação do empreendedor privado, que na maior parte das vezes não

recebe qualquer espécie de compensação, o que os faz recorrer ao Poder Judiciário na

esperança de obter algum tipo de provimento que cesse o ato governamental.

O STF, naturalmente, não tem ficado imune a esta discussão, que lhe é levada com

certa frequência, sobretudo por delegatários de serviços públicos, onde normalmente a Corte

confirma o ato regulatório combatido, justificando que a titularidade estatal da atividade atrai

um regime jurídico diferenciado que autoriza este tipo de prática90.

Mas debates circundando atividades privadas submetidas à lógica do mercado também

estão na pauta do Supremo, que então fica incumbido de arbitrar assuntos extremamente

complexos, tais como os limites que balizam a intervenção estatal na economia, que grupos

poderão ser beneficiados, entre outros. Embora muitos casos levados ao tribunal sejam

decididos com base em aspectos formais, a pesquisa identificou quatro decisões interessantes

em que a Corte enfrenta os limites que devem ser obedecidos no exercício da regulação

pública para que esta se coadune com as liberdades asseguradas aos agentes econômicos. São

as ADI 1950 (meia-entrada), ADI 352 (meia-entrada para doadores de sangue), RMS 28487

(caso CMED) e ADI 2435 MC (descontos na venda de remédios para idosos), analisadas em

detalhes na sequência.

89 SILVA, Virgílio Afonso da. O STF e o controle de constitucionalidade: deliberação e razão pública. Revista de Direito Administrativo, São Paulo, n. 250, jan./abr. 2009, p. 217. 90 Dois julgados podem ilustrar esta afirmação: a ADI 2649, onde o STF declarou constitucional a Lei federal n. 8.899/1994, garantindo passe livre para pessoas carentes portadoras de necessidades especiais no sistema de transporte interestadual; e a ADI 845, na qual assegurou aos estudantes regularmente matriculados no Amapá o pagamento de meia-passagem no transporte intermunicipal.

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4.1.1.1 ADI 1950

Neste leading case, julgado em novembro de 2005, o STF apreciou ação direta de

inconstitucionalidade proposta pela Confederação Nacional do Comércio (CNC), atacando

norma estadual (Lei paulista n. 7.844/199291) que garantia aos estudantes regularmente

matriculados o benefício da meia-entrada no pagamento do ingresso em espetáculos

esportivos, culturais e de entretenimento no Estado de São Paulo.

Dentre os vícios apontados pela CNC, a vulneração aos arts. 170 e 174 da Constituição

assume um caráter central. É que o desconto obrigatório de 50% consubstanciaria uma

limitação do exercício do direito à liberdade de iniciativa dos agentes econômicos, cerceando

o seu direito de livremente comercializar os bilhetes e onerando excessivamente a sua

atividade empreendedora, sem que o Poder Público lhes garantisse alguma forma de

contraprestação por isso.

No voto que proferiu, Eros Grau, relator da ação, constrói seu raciocínio a partir das

ideias contempladas no livro A ordem econômica na Constituição de 1988, de sua autoria,

defendendo a necessidade de que o Estado atue ativamente na economia, até mesmo para

fomentar a atividade do particular. Na leitura feita por Grau, a liberdade econômica não pode

ser lida isoladamente, mas sim em conjunto com as obrigações sociais previstas no texto

constitucional, cuja implementação exige medidas concretas por parte do governo. Significa

isso que, da mesma forma que o constituinte garantiu ao particular o direito de livre

empreender, assegurou à sociedade direitos prestacionais, que se sobrepõem aos interesses

empresariais privados justamente por se ligarem à ideia de coletividade, o que lhes dá um

alcance maior. Este entendimento prevaleceu no julgamento, sendo abraçado pela maioria dos

ministros.

O ministro Marco Aurélio abriu a divergência por entender que a lei estadual contraria

a livre iniciativa ao impor a concessão do desconto sem garantir qualquer espécie de

compensação aos agentes. Marco Aurélio pôs em xeque também o critério utilizado pela

norma para determinar quem será ou não beneficiado, porque na sua interpretação a lei se

torna anti-isonômica ao não tentar diferenciar aqueles estudantes com condições de pagar o 91 Dispõe o art. 1° da lei em comento: “Fica assegurado aos estudantes regularmente matriculados em estabelecimentos de ensino do primeiro, segundo e terceiro graus, existentes no Estado de São Paulo, o pagamento de meia-entrada do valor efetivamente cobrado para o ingresso em casas de diversão, de espetáculos teatrais, musicais e circenses, em casas de exibição cinematográfica, praças esportivas e similares das áreas de esporte, cultura e lazer do Estado de São Paulo, na conformidade da presente Lei.”

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valor integral, daqueles realmente carentes de recursos. A consequência, defendeu, seria

justamente o repasse do desconto compulsório aos demais consumidores, ocasionando um

aumento generalizado de preços e dificultando o acesso daquelas pessoas que não têm

educação a espetáculos de entretenimento. Em outras palavras, com este tipo de medida o

Estado penaliza justamente quem precisa de mais ajuda.

De igual modo, Cezar Peluso votou pela procedência da ação, só que em razão da

inconstitucionalidade formal nela existente – usurpação de competência da União para legislar

sobre direito civil e comercial (CF, art. 22, I).

4.1.1.2 ADI 3512

A ADI 3512 foi proposta pelo Governador do Espírito Santo contra a Lei n.

7.737/200492, que instituiu a meia-entrada a doadores de sangue em eventos culturais,

esportivos e de lazer realizados e mantidos pela Administração Pública. Aqui, diferentemente

da ADI 1950, o desconto compulsório não vinculava os agentes privados, mas apenas o Poder

Público, o que explica o ajuizamento de ação pelo Poder Executivo.

Embora a livre iniciativa não tenha sido mencionada na inicial, pois o autor da ação

fundamentou seu pedido na existência de vícios de iniciativa na edição da lei, invasão de

competência legislativa pela Assembleia Legislativa, e violação ao art. 199 da Constituição,

que proíbe a comercialização de sangue e qualquer forma de benefício financeiro como

recompensa aos doadores, este ponto tornou-se decisivo no deslinde da controvérsia. A

despeito das diferenças substanciais existentes entre as matérias abordadas nas ADI 1950 e

ADI 3512, o ministro Eros Grau, relator de ambas, praticamente repetiu neste julgamento, que

se deu em fevereiro de 2006, a decisão proferida no primeiro caso, não fazendo qualquer

distinção sobre o fato de um deles se referir ao campo das atividades privadas, e o outro ao

92 A redação da norma impugnada é a seguinte: “Art. 1º. Fica instituída a meia-entrada para doadores regulares de sangue, em todos os locais públicos de cultura, esporte e lazer mantidos pelas entidades e órgãos das administrações direta e indireta do Estado do Espírito Santo. Art. 2º. A meia-entrada corresponde a 50% (cinquenta por cento) do valor do ingresso cobrado, sem restrição de data e horário. Art. 3º. Para efeitos desta Lei, são considerados doadores regulares de sangue aqueles registrados no hemocentro e nos bancos de sangue dos hospitais do Estado, identificados por documento oficial expedido pela Secretaria de Estado da Saúde – SESA. Art. 4º. A SESA emitirá carteira de controle das doações de sangue, comprovando a regularidade das doações. Art. 5º. São considerados locais públicos estaduais para efeitos desta Lei, os teatros, os museus, os cinemas, os circos, as feiras, as exposições zoológicas, os parques, os pontos turísticos, os estádios e congêneres. Art. 6º. O Poder Executivo regulamentará a presente Lei no prazo de 90 (noventa) dias, a contar da data de sua publicação. Art. 7º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”

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das atividades públicas. Na realidade, isso demonstra certa incoerência por parte do

magistrado, que constrói seu voto a partir das suas concepções ideológicas de Estado, sem

entrar satisfatoriamente nas particularidades da ADI 3512.

Desse modo, Grau sustentou que o governo deve regular de perto a vida econômica

para realizar as inúmeras obrigações sociais contempladas na Constituição, de maneira que a

meia-entrada para doadores de sangue consubstanciaria uma forma de intervenção estatal por

indução, em que os instrumentos de intervenção são manipulados em consonância com as leis

que regem o funcionamento do mercado, nos termos do art. 199, §4º93 da Constituição

Federal, quando prevê que a legislação deverá facilitar a coleta de sangue.

O ministro Marco Aurélio discordou do entendimento geral apresentado pelo relator,

convencido de que o Poder Público “cumprimenta com chapéu alheio” ao interferir na

atividade dos agentes privados. A sua crítica é endereçada particularmente ao caso das

empresas estatais que, mesmo integrando a Administração Pública, atuam em regime

competitivo no mercado, o que faz com que a obrigação de concederem a meia-entrada se

transforme numa desvantagem concorrencial frente ao particular, para quem a lei não se

aplica.

4.1.1.3 RMS 28487

Este recurso extraordinário, julgado pela 1ª Turma em fevereiro de 2013, tem como

pano de fundo a intervenção pública no setor farmacêutico (produção e comercialização de

medicamentos), que embora aberto à livre exploração pelos agentes privados, é altamente

regulado.

Com efeito, atualmente as principais regras regulatórias que recaem sobre estas

atividades estão na Lei n. 10.742/2003, norma que criou o órgão técnico responsável pela

concepção das diretrizes e medidas para estimular a competição no setor e a oferta de

medicamentos à população – Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED).

Dentre as atribuições da CMED, está a disciplina dos preços praticados pelos agentes:

93 Art. 199, §4º: A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.

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Resumidamente, a lei confere à CMED poderes para normatizar sobre preços de entrada dos medicamentos (art. 6º, II, primeira parte) e aprová-los concretamente, mediante atos administrativos específicos (art. 6º, III, c/c art. 7º). Naturalmente, tanto uma como outra competência atinge apenas preços novos, referentes a medicamentos inéditos ou lançados sob nova apresentação94.

Nesse quadro, em 2006 a CMED editou a Resolução n. 4, instituindo um desconto

linear nas vendas de determinados medicamentos ao governo (drogas de alto custo

consideradas estratégicas para a continuidade de políticas públicas de saúde, e aquelas

adquiridas por conta de processos judiciais para fornecimento de remédios não

disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde – SUS)95. O percentual deste desconto decorre

da aplicação do Coeficiente de Adequação de Preços (CAP), definido na norma em referência

em 24,69%.

Isso levou à impetração de mandado de segurança96 no STJ para impugnar o conteúdo

da Resolução, por supostamente faltar competência à CMED para instituir critério de fixação

de preços de medicamentos já registrados, podendo fazê-lo somente para remédios novos e

remédios antigos com nova apresentação. A liberdade de iniciativa e concorrencial da

indústria farmacêutica, conforme o impetrante, teria sido violada pois o ente se valeu da sua

posição de regulador para garantir que as compras públicas fossem feitas por preços inferiores

aos usualmente praticados no mercado, algo discriminatório e estranho às suas atribuições

institucionais.

94 SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. O sistema de regulação de preços de medicamentos. Revista de Direito Público da Economia - RDPE, Belo Horizonte, ano 6, n. 22, abr./jun. 2008, p. 33. 95 Eis o texto da lei: “Art. 1º As distribuidoras e as empresas produtoras de medicamentos deverão aplicar o Coeficiente de Adequação de Preço - CAP ao preço dos produtos definidos no art. 2º desta Resolução, sempre que realizarem vendas destinadas a entes da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. §1º O CAP, previsto na Resolução nº. 2, de 5 de março de 2004, é um desconto mínimo obrigatório a ser aplicado sempre que forem realizadas vendas de medicamentos destinadas aos entes descritos no caput. §2º A aplicação do CAP sobre o Preço Fábrica – PF resultará no Preço Máximo de Venda ao Governo – PMVG. §3º O CAP será aplicado sobre o PF. Art. 2º O CAP será aplicado ao preço dos produtos nos seguintes casos: I- Produtos que estejam ou venham a ser incluídos no componente de medicamentos de dispensação excepcional, conforme definido na Portaria nº 698, de 30 de março de 2006. II- Produtos que estejam ou venham a ser incluídos no Programa Nacional de DST/AIDS. III- Produtos que estejam ou venham a ser incluídos no Programa de Sangue e Hemoderivados. IV- Medicamentos antineoplásicos ou medicamentos utilizados como adjuvantes no tratamento do câncer. V- Produtos comprados por força de ação judicial, independente de constarem da relação de que trata o § 1º deste artigo. VI- Produtos classificados nas categorias I, II e V, de acordo com o disposto na Resolução nº 2, de 5 de março de 2004, desde que constem da relação de que trata o § 1º deste artigo. § 1º A Secretaria-Executiva editará, em até 90 (noventa) dias da entrada em vigor desta Resolução, comunicado com a relação de produtos cujos preços serão submetidos ao CAP, conforme decisão do Comitê Técnico-Executivo. § 2º O Comitê Técnico-Executivo da CMED poderá incluir ou excluir produtos da relação de que trata o § 1º deste artigo.” 96 MS 12730.

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Com o julgamento desfavorável no STJ, que referendou o ato normativo combatido, a

parte recorreu ao STF, reiterando a linha argumentativa percorrida na inicial.

Contudo, o relator Dias Toffoli negou provimento ao recurso. Construindo seu

raciocínio sobre a ideia de supremacia do interesse coletivo, o ministro confirmou que o

Estado merece um tratamento diferenciado em relação ao que é dispensado ao particular,

porque a obrigação de garantir à população o acesso à saúde recai sobre os seus ombros. O

juiz acolheu a afirmação da União de que a atuação pública cumpre um papel corretivo

importante no mercado de medicamentos, cujas falhas (barreiras à entrada, inelasticidade da

demanda, assimetria informacional, etc.), se não controladas, fazem com que os atores nele

atuantes adquiram enorme poder de mercado, elevando preços e aumentando lucros

arbitrariamente – artifício vedado pelo art. 173, §4º da Constituição. E justamente por isso,

rejeitou a alegação de afronta à liberdade econômica consubstanciada na Resolução n. 4/2006,

que estaria inserida numa política pública de viés social, efetivando valores elencados no art.

170 do texto constitucional – por exemplo, dignidade humana e justiça social.

Por fim, Toffoli frisou inexistir qualquer norma forçando fabricantes e distribuidores a

venderem para o Poder Público, sendo-lhes facultado negociar somente com a iniciativa

privada – o que afastaria os efeitos da Resolução. Não obstante, se preferirem comercializar

com entes estatais, a observância dos seus termos é impositiva, porque os descontos se

explicam pela necessidade de aquisição de remédios para garantir direitos sociais. Os demais

presentes à sessão (Luiz Fux, Marco Aurélio e Rosa Weber) seguiram o relator por

unanimidade.

A despeito disso, percebe-se claramente que a decisão do STF considerou somente os

fins pretendidos com o ato normativo combatido, ignorando outros aspectos suscitados na

ação, igualmente importantes para o seu desfecho – a legalidade dos critérios de fixação

instituídos pela CMED, e a existência de competência, pelo regulador, para fazer este tipo de

imposição, por exemplo97.

97 SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. O sistema de regulação de preços de medicamentos. Revista de Direito Público da Economia - RDPE, Belo Horizonte, ano 6, n. 22, abr./jun. 2008, p. 31-44. p. 42.

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4.1.1.4 ADI 2435 MC

Aqui, o STF analisou a liminar pleiteada na ADI 2435, proposta pela Confederação

Nacional do Comércio – CNC contra a Lei n. 3.542/200198, do Rio de Janeiro, obrigando

farmácias e drogarias a conceder descontos no preço dos remédios vendidos a idosos.

Segundo o requerente, a obrigatoriedade esbarra na liberdade de iniciativa e concorrência,

representando indevida intromissão estatal nas atividades privadas. O critério eleito pela lei

(idade) tampouco seria isonômico por não expressar a real necessidade e capacidade

econômica do beneficiário.

Na resposta apresentada, a Assembleia Legislativa estadual defendeu que a norma

estaria inserida numa política pública de proteção ao idoso, o que legitima a intervenção

pública. Estas alegações foram repetidas pelo governo estadual.

Levada ao Plenário para julgamento em março de 2002, a relatora Ellen Gracie

indeferiu a medida cautelar pela falta dos pressupostos processuais para a sua concessão, e o

mérito da ação continua, desde então, pendente de julgamento. Na ocasião, ressaltou que a

suspensão da lei traria mais prejuízos à saúde dos idosos do que a sua manutenção traria ao

comércio, até porque, se na análise do mérito a lei viesse a ser declarada inconstitucional, o

empresariado poderia se ressarcir das perdas suportadas. Nesse quadro, a necessidade de

salvaguardar valores sociais novamente teve um papel conclusivo no julgamento,

prevalecendo sobre os direitos econômicos dos agentes. Dentre seus pares, Moreira Alves,

Néri da Silveira, Sydney Sanches, Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Carlos Velloso,

Maurício Corrêa e Nelson Jobim seguiram Ellen Gracie.

O ministro Marco Aurélio, diferentemente, avaliou que se tratava de caso de

deferimento da cautelar, pois o ônus do Estado de garantir à população o direito à saúde não

pode ser transferido ao particular. Marco Aurélio condenou ainda o elemento de diferenciação

eleito pela lei fluminense para determinar os beneficiados pelo desconto, por entender que o

fator idade não leva em conta a condição financeira do adquirente para separar quem pode ou

98 Art. 1º - Ficam as farmácias e drogarias localizadas no Estado do Rio de Janeiro obrigadas a conceder desconto na aquisição de medicamentos para consumidores com mais de 60 (sessenta) anos, na seguinte proporção: a) - Consumidores de 60 a 65 anos – 15% de desconto; b) - Consumidores de 65 a 70 anos – 20% de desconto; c) - Consumidores maiores de 70 anos – 30% de desconto. Art. 2º - O desconto será concedido mediante a apresentação da Carteira de Identidade e da receita médica por parte do consumidor. Art. 3º - O não cumprimento das disposições desta Lei ensejarão a aplicação de multa em valor equivalente a 5.000 UFIR’s por infração, a ser aplicada pela Secretaria de Estado de Saúde. Art. 4º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

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não pagar o valor integral. A consequência, segundo o ministro, é um aumento generalizado

de preços, visto que os descontos acabam sendo repassados para os demais consumidores, em

prejuízo da população de uma forma geral.

4.1.2 Proibição de produtos/atividades

A noção de intervenção estatal sobre a esfera privada é tradicionalmente fundada no

exercício do poder de polícia e em normas com caráter repressivo, e por mais que esta

concepção clássica venha, pouco a pouco, abrindo espaço para novas formas de participação

pública na atividade privada, menos invasivas e mais consensuais, a utilização de mecanismos

coercitivos para condicionar o comportamento dos agentes continua sendo frequente na

disciplina dos setores econômicos. Contudo, repercute no mercado e em toda a cadeia

produtiva, o que basta para que a controvérsia deságue nos tribunais.

Com o intuito de analisar a percepção do STF sobre a temática, neste grupo foram

incluídas quatro decisões: a proibição da importação de pneus usados (ADPF 101), as

restrições impostas às empresas transportadoras-revendedoras-retalhistas de comercializarem

combustíveis (RE 349686), a proibição do amianto (ADI 3937 MC) e a regulação do

comércio de armas de fogo (ADI 2290 MC). Abaixo, cada um deles será dissecado.

4.1.2.1 ADPF 101

Proposta pelo Presidente da República através da Advocacia Geral da União (AGU)

em 2006, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 101 buscava a

desconstituição de decisões judiciais autorizando a importação de pneus usados, por ofensa

aos arts. 196 e 225 da Constituição. É que apesar da existência de atos normativos99 vedando

99 Em 13/05/1991 o então Departamento de Comércio Exterior do Ministério da Fazenda - DECEX baixou a Portaria DECEX 8/1991, proibindo, em caráter geral, a importação de mercadorias e bens de consumo usados. Em 09/04/1992, a Portaria DECEX n. 1/1992 permitiu a importação de pneumáticos usados "exclusivamente quando a mercadoria se destinar à recauchutagem no país", tendo, por sua vez, sido revogada pela Portaria Decex 18, de 13.07.1992. Paralelamente a tal medida ministerial, foi baixada a Resolução CONAMA 8, de 19.09.1991, estabelecendo que “é vedada a entrada no país de materiais residuais destinados à disposição final e incineração no Brasil”. De lá para cá, diversos dispositivos têm mantido esse fundamento legal que proíbe o comércio de pneus usados – como o Decreto 875/93, que ratificou a Convenção da Basileia, e a Portaria 8/2000 (artigo 1º), da Secretaria de Comércio Exterior (Secex), bem como as Resoluções 23/1996 (artigo 4º), 235/1998

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estas importações, bem como de tratado internacional disciplinando o controle transfronteiriço

de resíduos sólidos (Convenção da Basileia, internalizada pelo Decreto federal n. 875/1993),

alguns juízes passaram a proferir decisões autorizando a importação deste material, situação

que levou o Executivo a provocar o STF a reconhecer a constitucionalidade destas normas

protetivas, e consequente inconstitucionalidade dos provimentos jurisdicionais delas

discordantes.

O governo brasileiro concebeu as regras proibitivas para impedir uma prática que

ganhou corpo nos anos 70 e 80, consistente na destinação do lixo produzido nas economias

industrializadas a países subdesenvolvidos100 a preços insignificantes, cujos reflexos passaram

a ser sentidos no Brasil com a abertura comercial na década de 1990. Isso mostra a

complexidade da temática e os vários interesses envolvidos, inclusive no plano internacional,

tanto que as medidas brasileiras restringindo importações de pneus usados foram objeto de

painel no Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio – OMC,

no qual, no entanto, restou decidido que as restrições seriam justificáveis pelos riscos

sanitários e de saúde pública resultantes do descarte inadequado dos pneus inservíveis. As

proibições instituídas no país também foram tema de tribunal ad hoc no âmbito do Mercosul

em 2002, no qual os árbitros consideraram as barreiras legais contrárias aos compromissos de

livre comércio assumidos ao ingressar no bloco econômico, obrigando as autoridades

brasileiras a aceitar os pneus provenientes de países do bloco.

Nessa perspectiva, a grande interrogação levada ao STF foi a seguinte: decisões

judiciais permitindo a importação de pneus usados de países que não compõem o Mercosul

descumprem preceito fundamental? Segundo o governo, a resposta seria positiva por duas

razões básicas: i) o art. 225 da Constituição assegura o direito ao meio ambiente equilibrado,

que acaba sendo ameaçado pela incineração e depósito de pneus velhos; ii) a violação ao

direito à saúde (art. 196) pelo risco sanitário existente no descarte dos pneus.

Por sua vez, as principais justificativas invocadas pelos importadores estariam na

afronta aos princípios da livre iniciativa e concorrência, pois as formas existentes de

aproveitamento dos pneus usados seriam ambientalmente satisfatórias, e apenas lei formal,

discutida e votada pelo Congresso Nacional, poderia introduzir a vedação no ordenamento

jurídico. Ao lado desses motivos, defenderiam que, em se confirmando a proibição, diversas

(artigo 1º), todas do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), e que a Advocacia Geral da União (AGU) pede que sejam reconhecidas como constitucionais. 100 As mais de 40 toneladas de lixo hospitalar apreendidas no Porto de Suape (PE), em 2011, demonstram que o Brasil também integra a lista de países que recebem este material.

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empresas atuantes neste mercado fechariam suas portas, prejudicando a busca pelo pleno

emprego.

Nesse quadrante, portanto, os argumentos em exame eram bastante evidentes: num

lado da balança, as liberdades econômicas clássicas (livre iniciativa e liberdade de comércio);

no outro, os direitos de ordem social, que prevaleceram. O julgamento se deu em duas

sessões, iniciando-se em março de 2009, com o voto da relatora, sendo retomado em junho

daquele ano, após pedido de vista de Eros Grau.

Com efeito, no voto que proferiu na primeira sessão de julgamento, a relatora Carmen

Lúcia deu ênfase às normas cuidando de aspectos sociais incorporadas na Constituição

Federal, cuja concretização demanda que o Estado atue ativamente. Deste modo, entendeu

que as decisões permitindo as importações violaram os arts. 196 e 225 da Constituição,

comprometendo direitos e garantias fundamentais. Além de frisar a existência de tratado

internacional sobre a matéria ratificado pelo governo brasileiro, a relatora acompanhou o

raciocínio da AGU no sentido de que os pneus usados contaminam o meio ambiente e

propagam doenças (por exemplo, a dengue). Logo, votou pelo reconhecimento da

constitucionalidade da legislação coibindo a sua importação, mantendo apenas as decisões

judiciais transitadas em julgado que já tenham sido cumpridas – vedando, contudo, futuras

importações com base nelas. A relatora excluiu da proibição a compra de pneus remoldados

originários do Mercosul, conforme decidido pelo tribunal arbitral do bloco econômico.

Porém, precisamente sobre a alegada afronta à liberdade de iniciativa, a ministra

apenas assinalou não ser este um direito absoluto, e que o interesse coletivo existente na

preservação da saúde humana e do meio ambiente prepondera sobre os interesses individuais

dos importadores. Dentre os juízes que votaram com a relatora, Gilmar Mendes foi quem

entrou mais a fundo neste tema, realçando que:

[...] O argumento dos interessados de que haveria afronta ao princípio da livre concorrência e da livre iniciativa por igual não se sustenta, porque, ao se ponderarem todos os argumentos expostos, conclui-se que, se fosse possível atribuir peso ou valor jurídico a tais princípios relativamente ao da saúde e do meio ambiente ecologicamente equilibrado, preponderaria a proteção desses, cuja cobertura, de resto, atinge não apenas a atual, mas também futuras gerações.

Igualmente, Ellen Gracie salientou que a mera proibição das importações não impede

a atividade econômica dos agentes, que poderiam simplesmente passar a remoldar os pneus

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consumidos internamente, sem precisar trazê-los de fora. Explicando melhor, para Gracie a

restrição não compromete os elementos essenciais da liberdade de iniciativa por não

inviabilizar o direito dos comerciantes continuarem exercendo suas atividades econômicas,

vedando um único produto, que é comprovadamente prejudicial ao meio ambiente e à saúde

humana.

O ministro Marco Aurélio foi voto vencido, pois inadmitiu a ADPF por considerar o

seu âmbito de aplicação bem limitado, de modo que deveriam ter sido empregados outros

expedientes processuais para desconstituir as decisões judiciais mencionadas na ação – ação

rescisória, por exemplo.

4.1.2.2 RE 349686

A matéria aqui confrontada pelo STF diz respeito à possibilidade de comercialização

de combustíveis por empresas transportadores-revendedoras-retalhistas, comprando o produto

diretamente dos distribuidores para posterior revenda ao consumidor final. O caso,

especificamente, chegou até a Corte através de um recurso extraordinário interposto contra

decisão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região que afastou a limitação trazida por norma

do Ministério de Minas e Energia (Portaria n. 62/1995), permitindo que estas empresas

desenvolvessem a atividade por considerar a proibição instituída incompatível com as

liberdades do art. 170 da Constituição de 1988 (livre iniciativa e concorrência).

Por seu turno, a União e as distribuidoras de combustíveis recorrentes (Esso Brasileira

de Petróleo, Shell do Brasil S.A. e Petrobrás Distribuidora S.A.), estas últimas com a intenção

de restringir a atuação de eventuais concorrentes, defendiam a constitucionalidade da Portaria

pela natureza dos produtos a que se referia, que reclamam cuidados no seu depósito,

transporte e manuseio. Com base nisso, alegavam que a distribuição de combustíveis é

atividade que exige ampla regulação, devendo o Decreto-Lei n. 395/1938, que embasou a

criação do órgão incumbido de regular o comércio de combustíveis (Departamento Nacional

de Combustíveis, vinculado ao Ministério de Minas e Energia), ser preservado enquanto não

editada a lei mencionada no art. 238101 da Constituição Federal, inexistindo ilegalidades na

Portaria.

101 Art. 238. A lei ordenará a venda e revenda de combustíveis de petróleo, álcool carburante e outros combustíveis derivados de matérias-primas renováveis, respeitados os princípios desta Constituição.

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O julgamento ocorreu em junho de 2005, com o provimento do recurso extraordinário

pela relatora, para quem a proibição não afronta os princípios da livre iniciativa e livre

exercício de qualquer profissão porque a Portaria não veda que a recorrente se registre como

distribuidor de combustíveis, mas sim que exerça esta atividade sem ter satisfeito as

exigências legais pertinentes. Nesse sentido, destacou:

O exercício de qualquer atividade econômica pressupõe o atendimento aos requisitos legais e às limitações impostas pela Administração no regular exercício de seu poder de polícia, principalmente quando se trata de distribuição de combustíveis, setor essencial para a economia moderna. O princípio da livre iniciativa, portanto, não pode ser invocado para afastar regras de regulamentação do mercado e de defesa do consumidor, como pretende a recorrida no presente feito.

Os ministros Marco Aurélio, Carlos Velloso e Joaquim Barbosa acompanharam Ellen

Gracie, e com este entendimento a 2ª Turma considerou que a proibição da comercialização

tinha amparo legal, sendo compatível com a livre iniciativa e livre concorrência.

4.1.2.3 ADI 3937 MC

Proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (CNTI), a ADI

3937 ataca a lei paulista (Lei n. 12.684/07), que proibiu o uso e comercialização de produtos à

base de amianto no Estado de São Paulo. Os fundamentos invocados pelos autores para

justificar a inconstitucionalidade da referida norma foram a violação dos princípios da

“reserva legal proporcional” e da livre iniciativa (arts. 5º, II e LIV, e 170, respectivamente),

uma vez que não haveria risco a qualquer bem jurídico a justificar a adoção de medida tão

radical. Vícios de inconstitucionalidade formal e de iniciativa do projeto de lei, bem como a

ocorrência de afronta à autoridade do STF, também estavam dentre os argumentos colocados

na inicial.

Na realidade, conquanto a Corte já tivesse examinado situação parecida a propósito de

outras leis (ADI 2396 e 2656), em que declarou a proibição do minério por norma estadual

inconstitucional, o julgamento da cautelar na ADI 3937 sinaliza uma mudança na visualização

do problema: se nos primeiros dois casos os juízes ficaram presos a aspectos formais

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(competências legislativas), aqui o debate mergulhou nos próprios contornos da regulação

estatal.

O julgamento da medida iniciou-se em agosto de 2007, tendo sido finalizado em junho

de 2008. Sob a relatoria de Marco Aurélio, a Corte denegou a liminar pleiteada para

suspender os efeitos da lei, mas o mérito continua pendente de julgamento. Na apreciação da

cautelar, as discussões se desenrolaram em torno de três entendimentos distintos.

Uma linha de posicionamento, encabeçada pelo relator, foi pela inconstitucionalidade

da lei estadual e deferimento da liminar. O argumento principal que se colocava em favor

dessa tese era a competência legislativa concorrente entre União e Estados (CF, art. 22, VIII),

não podendo a legislação suplementar fazer restrições inexistentes na norma geral (Lei federal

n. 9.055/95). Essa posição privilegiava as decisões anteriormente proferidas pelo STF, que se

limitaram à análise da ação sob o ângulo da formalidade. Os ministros Menezes Direito e

Ellen Gracie aderiram a esse entendimento.

A segunda linha decisória, defendida por Eros Grau, foi no sentido de que

inconstitucional seria a disposição permissiva constante na norma geral editada pela União,

por afrontar a diretriz constitucional de proteção à saúde pela nocividade do amianto, estando,

portanto, a lei estadual respaldada pelo art. 196 da Constituição. Grau afastou também a

alegação de incompatibilidade entre a norma e o princípio da livre iniciativa, uma vez que a

atenuação seria necessária para a consecução de valores sociais, como a proteção ao

trabalhador e ao consumidor, devendo o exercício do poder regulador triunfar sobre a

liberdade econômica dos agentes. Uma última consideração feita pelo ministro foi a

necessidade de que o STF declarasse a inconstitucionalidade da norma geral

independentemente de provocação das partes. Isso porque a Corte não poderia se limitar às

razões da inicial, devendo apreciar, por ser um tribunal constitucional, toda e qualquer

inconstitucionalidade que chegasse ao seu conhecimento, inclusive indiretamente. Baseado

nisso, votou pelo indeferimento da liminar, sendo acompanhado por Cezar Peluso.

O voto proferido por Joaquim Barbosa trouxe a tese que prevaleceu, ainda que

contrária à orientação do STF nos julgamentos anteriores. Segundo Barbosa, a Convenção n.

162 da OIT legitima a edição de normas protetivas dos trabalhadores expostos ao amianto,

pouco importando o fato de restringirem a produção e comercialização do minério, haja vista

que o conteúdo da Convenção constitui um fator definitivo para avaliar o exercício da

competência legislativa dos Estados, protegendo direitos fundamentais como a saúde,

valorização do trabalho humano, dignidade da pessoa humana e defesa do meio ambiente.

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Dessa maneira, por ter assumido o compromisso de substituir o amianto por materiais

alternativos na esfera internacional, deveria igualmente fazê-lo no plano interno. O ministro

igualmente enfatizou que a Convenção assume o papel de norma geral por não ser razoável

que a União exerça uma opção permissiva no lugar dos Estados-membros em assuntos

relacionados a direitos sociais, retirando-lhes a liberdade de atender os interesses locais. O

último tópico abordado no seu voto foi a ausência de uma medida intermediária à proibição, o

que a tornaria proporcional.

A ministra Carmen Lúcia, que na primeira sessão de julgamento havia votado com o

relator, reajustou seu voto para acompanhar Joaquim Barbosa. Ricardo Lewandowski fez o

mesmo, reforçando que a proteção à saúde não seria apenas matéria de competência

concorrente, mas sim do Estado genericamente compreendido, podendo a legislação local ser

mais restritiva do que a norma geral nacional neste tema.

Carlos Ayres Britto votou na sequência, ressaltando que a princípio julgaria

inconstitucional a lei estadual em razão da existência de norma geral sobre a matéria.

Todavia, sustentou estar o STF diante de um caso peculiar pela existência de tratado

internacional hierarquicamente superior à Lei n. 9.055/95. Logo, considerando que a

Convenção impunha aos signatários a revisão periódica da sua legislação, orientando-a no

sentido da proibição do amianto, Britto enfatizou que a lei local impugnada cumpre, de forma

mais efetiva do que a legislação federal, os princípios e objetivos consubstanciados na CF e

na Convenção da OIT. Com base nisso, reconheceu que o interesse público envolvido

legitimaria a restrição veiculada pela legislação paulista.

Por ser o relator da ADI, Marco Aurélio determinou a realização de audiência pública

ante a necessidade de um exame mais acurado das razões e dos fundamentos debatidos, o que

ocorreu em agosto de 2012. Em outubro daquele ano a ação entrou em pauta junto com a ADI

3357, esta última ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria

(CNTI) contra a Lei gaúcha n. 11.643/2001, proibindo produtos à base de amianto no Rio

Grande do Sul. No julgamento, votaram apenas os ministros Marco Aurélio, relator da ADI

3937, e Carlos Britto, da ADI 3357, cujos votos proferidos seguiram as respectivas posições

por eles manifestadas na análise da cautelar da ADI 3937. O julgamento foi suspenso após

estes votos, estando pendente de conclusão desde então.

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4.1.2.4 ADI 2290 MC

Através da ADI 2290, o Partido Socialista Liberal provocou o STF a se posicionar

sobre a constitucionalidade da Medida Provisória 2.045-2, de julho de 2000, que suspendeu

temporariamente o registro de armas de fogo, fazendo-o nos seguintes termos:

Art. 6º - Fica suspenso, até 31 de dezembro de 2000, o registro de armas de fogo a que se refere o art. 3º da Lei n. 9.437 de 20 de fevereiro de 1997, salvo para: I - as Forças Armadas; II - os órgãos de segurança pública federais e estaduais, as guardas municipais e o órgão de inteligência federal; III - as empresas de segurança privada regularmente constituídas, nos termos da legislação específica.

O argumento principal ventilado na ADI se referia ao fato de que, impedindo novos

registros, a norma inviabiliza o mercado de armas como um todo, pois esta condição precisa

ser preenchida pelos comerciantes para fazer a venda e entregar o produto ao comprador.

Trocando em miúdos, a exigência representaria uma proibição disfarçada à comercialização

lícita de armamentos, ofendendo os princípios da livre iniciativa e concorrência.

Em sua resposta, o governo federal afirmou que a liberdade de iniciativa é um

conceito relativo, e deve ser conjugado com outros dispositivos constitucionais. No mais, a

medida provisória era transitória e se aplicava somente às vendas avulsas de armas,

perseguindo a redução da criminalidade e do número de homicídios. Logo, daí não decorreria

qualquer óbice à produção e comercialização de armamentos.

O STF apreciou a liminar em outubro de 2000, o STF, em acórdão relatado por

Moreira Alves. Na ocasião, por unanimidade o Pleno concedeu a tutela de urgência por

considerar que a medida provisória, ao restringir novos registros, teria tornado o comércio

inexequível, esbarrando na liberdade econômica e de exercício profissional asseguradas aos

agentes econômicos.

O mérito da ação, contudo, jamais foi julgado. Como o Executivo não reeditou a

medida após a sua suspensa pela Corte, o relator suscitou questão de ordem por perda de

objeto, acolhida pelos demais ministros, resultando no seu arquivamento.

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4.1.3 Controle de preços

Um dos assuntos mais controvertidos envolvendo a atuação governamental na

economia é a interferência na livre fixação de preços, que constitui a principal informação

levada em conta pelos agentes econômicos na tomada de decisões de consumo e produção.

Por mais que se trate de medida anômala em economias capitalistas, em que as liberdades de

iniciativa e concorrência garantem à iniciativa privada a prerrogativa de estipular livremente o

valor que praticarão no mercado102, era algo recorrente no Brasil nos planos de estabilização

da segunda metade da década de 1980, sendo comumente mencionada entre as causas que

explicam a estagnação econômica que assolou o país no período pela redução da oferta de

bens e serviços, adiamento de investimentos, impactos na geração de empregos e arrecadação

tributária, etc.

Do ponto de vista da Constituição de 1988, o controle de preços pelo governo não

deve ser praticado como uma política rotineira, sendo cabível somente em situações atípicas

de abuso de poder econômico (CF, art. 173, §4º). Porém, inclusive nesta circunstância alguns

pressupostos obrigatoriamente deverão ser satisfeitos: a existência de adequação entre meios e

fins (razoabilidade); a necessidade de que o controle tenha um prazo certo de duração e

amparo legal, repercutindo apenas enquanto perdurar a situação de anormalidade; e a

proibição de que os preços estipulados unilateralmente pelo Estado sejam inferiores aos

custos de produção são as exigências geralmente apresentadas pela doutrina103.

Todavia, apesar do interesse que o tema desperta, poucas decisões do STF o enfrentam

diretamente, e as que o fazem remontam a fatos acontecidos no período de transformações

socioeconômicas após a redemocratização do país: há o RE 422941, tratando do controle de

preços dos produtos sucroalcooleiros, que é o precedente utilizado no julgamento de casos

103 Nesse sentido, Luís Roberto Barroso (Crise econômica e direito constitucional. Revista Trimestral de Direito Público, v. 6, São Paulo, jul. 1994, p. 32-63, p. 57) defende a possibilidade de adoção de medidas para controlar preços em caráter excepcional, desde que se observem duas condições primordiais: “[...] tanto o congelamento quanto o tabelamento serão inadmissíveis: 1. quando se prolonguem indefinidamente; 2. Quando impuserem ao empresário a venda de seu produto abaixo do preço de custo. No primeiro caso, a permanência do controle rígido de preços por período de tempo excessivamente longo rompe com o caráter excepcional da medida e subverte os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência. Tais princípios, como se demonstrou, não são absolutos e devem ser sopesados com outros. A razoabilidade da demora na volta ao regime de mercado será o critério do intérprete”. Por seu turno, Fábio Konder Comparato (Regime constitucional do controle de preços. Revista de Direito Público, n. 97, SP/RJ, jan./mar. 1991, p. 23) enfatiza: “No que toca, especificamente, à restrição à liberdade empresarial, consubstanciada no controle público de preços no mercado, já se formou um razoável consenso, na doutrina e na jurisprudência, quanto aos limites dentro dos quais essa restrição é considerada legítima. Elas são de três ordens: a legalidade, a igualdade e a proporcionalidade.”

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similares; e o ADI 319, acórdão sobre o reajuste das mensalidades decidido no início dos anos

90.

4.1.3.1 RE 422941

Neste recurso extraordinário, o STF se debruçou sobre as ações localizadas de controle

de preços praticadas no mercado nos anos 80. Explica-se. Em 1965 entrou em vigor a Lei

federal n. 4.870, prescrevendo que os reajustes dos produtos derivados da cana-de-açúcar

deveriam observar a variação periódica dos custos de produção açucareira apurados pelo

Instituto do Açúcar e Álcool e pela Fundação Getúlio Vargas. Porém, numa manobra para

represar a escalada inflacionária da segunda metade da década de 1980, o governo impôs aos

produtores o reajuste com base em outros índices, o que culminou numa enxurrada de ações

judiciais.

Isso porque os indicadores de reajuste eram inferiores aos legais, e os valores obtidos

com a sua aplicação sequer cobriam os preços de custo. Deste ângulo, o argumento central

arrolado pelos produtores para condenar a medida governamental era o de que normas legais

foram atropeladas em nome da estabilização da economia, conduta que ofendia a sua livre

atuação no mercado (CF, art. 170, caput e IV).

O precedente foi justamente o RE 422941, julgado pela 2ª Turma em 2005. Em breve

resumo, o recurso chegou ao STF a partir de uma ação condenatória que tramitou na Justiça

Federal de São Paulo, na qual se requeria que a União reparasse os danos ocasionados pela

adoção de índices de aumento de preços diferentes daqueles indicados na lei. Com a

procedência da ação nas instâncias ordinárias, a União recorreu ao Superior Tribunal de

Justiça, defendendo que o Estado, enquanto regulador da economia, poderia perfeitamente

estabelecer os padrões de reajuste que considerasse mais adequados à política econômica

vigente, levando em conta valores sociais como a defesa do consumidor e a redução das

desigualdades regionais. O STJ acolheu esta argumentação e proveu o especial, o que motivou

a interposição de recurso extraordinário, distribuído ao ministro Carlos Velloso.

Levado a julgamento, o relator expôs que a regulação pública não pode ferir os

princípios que balizam a atividade privada, nomeadamente a livre iniciativa, mais ainda

porque as regras de reajuste já estavam estampadas na legislação, e a sua observância seria

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importante para o amadurecimento do mercado brasileiro. Em suas razões, encontra-se a

seguinte passagem:

A fixação de preços a serem praticados pela Recorrente, por parte do Estado, em valores abaixo da realidade e em desconformidade com a legislação aplicável ao setor constitui-se em sério empecilho ao livre exercício de atividade econômica, em desrespeito ao princípio da livre iniciativa.

Portanto, com base na livre iniciativa e no princípio da legalidade, o STF reformou a

decisão do STJ por maioria, para reconhecer a existência de inconstitucionalidade na adoção

de patamares de reajuste dissonantes dos legais. O ministro Joaquim Barbosa restou vencido

em parte, divergindo apenas no tocante ao período considerado na condenação imposta ao

ente estatal.

O curioso é que o voto do relator transmite a sensação de que o ponto de tensão está na

inobservância dos parâmetros legais de reajuste pela Administração, ou seja, se os índices

tivessem sido seguidos, mesmo que o valor daí resultante fosse menor que o preço de custo, o

Supremo teria chancelado a providência. Mas para afastar essa conclusão, Carlos Velloso

enfatiza que a obrigação de indenizar nasce da violação às liberdades de iniciativa e

concorrência, condicionantes do exercício da regulação estatal:

O dever de indenizar, por parte do Estado, no caso, decorre do dano causado e independe do fato de ter havido ou não desobediência à lei específica. A intervenção estatal na economia encontra limites no princípio constitucional da liberdade de iniciativa, e o dever de indenizar (responsabilidade objetiva do Estado) é decorrente do dano atribuível à atuação do Estado.

Aqui, portanto, a livre iniciativa efetivamente representa um fator de contenção do

poder regulador estatal, por não ser facultado ao governo controlar discricionariamente os

preços de produtos para afiná-los à sua política econômica.

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4.1.3.2 ADI 319104

Proposta pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino – Confenem, a

ADI 319 buscava a inconstitucionalidade da Lei n. 8.039/90105, que fixou o aumento das

mensalidades escolares com base no percentual de reajuste mensal dos salários em geral, num

esforço para coibir aumentos abusivos pelas instituições de ensino. Nessa perspectiva, para a

Confederação seriam três os motivos que impunham a procedência da ação: i) o fato de o

ensino privado ser aberto para o particular prestá-lo em regime de livre iniciativa, o que limita

os casos possíveis de interferência estatal àqueles elencados no art. 209 da Constituição

apenas; ii) os critérios de reajuste fixados pela norma resultam no congelamento ou

tabelamento dos preços das mensalidades escolares, levando os estabelecimentos à

insolvência, o que colide com os princípios da livre iniciativa e livre concorrência elencados

nos arts. 170 e 209 da Constituição; iii) ademais, como a educação não representa um

monopólio estatal, podendo ser desempenhada pela iniciativa privada, a intervenção só se

104 Embora o STF já tenha se pronunciado no sentido de que as atividades educacionais, ainda que desenvolvidas por entes privados, consubstanciam serviço público (por exemplo, na ADI 1266, publicada no Diário Oficial da União em 10/10/2005, e na ADI 1007, publicada no Diário Oficial da União em 13/03/2006, ambas relatadas por Eros Grau), continua existindo alguma dificuldade quanto à caracterização da educação como serviço público ou atividade aberta à livre iniciativa, tema a respeito do qual a doutrina não é unânime. Para os fins aqui relevantes adotou-se a definição defendida, entre outros autores, por Dinorá Grotti (1996, p. 77), que explica: “a regra geral é a de que as atividades econômicas regem-se pelos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, independentemente da autorização de órgãos públicos [...]. No entanto, há atividades econômicas desenvolvidas por entidades privadas que são regidas por um regime constitucional especial. Somente essas atividades submetem-se a restrições de caráter econômico que limitam a livre iniciativa. É o que foi previsto para as atividades financeiras (art. 192, I e II) e para os empreendimentos privados no setor de ensino (art. 209, II), que se submetem às normas restritivas referentes ao cumprimento das normas gerais da educação nacional, e a autorização e avaliação de qualidade do Poder Público”. 105 Este é o inteiro teor da Lei n. 8.039/90: “Art. 1º Os reajustes das mensalidades das escolas particulares de 1º, 2º e 3º graus, bem assim das pré-escolas, referentes aos serviços prestados a partir de 1º de maio de 1990, serão calculados de acordo com o percentual de reajuste mínimo mensal dos salários em geral, fixado no inciso II, do art. 2º, da Lei nº 8.030, de 13 de abril de 1990. Art. 2º Os valores das mensalidades escolares de abril de 1990 serão iguais aos praticados no mês de março anterior, obrigatória a homologação pelos Conselhos Federal e Estaduais de Educação e pelo Conselho de Educação do Distrito Federal, nos limites de suas respectivas competências. § 1º Os critérios de fixação de valores das mensalidades devidas até 31 de março de 1990, são os previstos na legislação anteriormente em vigor. § 2º As escolas apresentarão suas planilhas de custos ou complementação às já entregues, com, no mínimo, os valores das mensalidades cobradas em dezembro de 1988, julho de 1989, fevereiro e março de 1990, até o dia 7 de maio de 1990. § 3º Às escolas que não apresentarem suas planilhas na forma e prazo previstos no parágrafo anterior serão aplicadas as penalidades constantes da Lei Delegada nº 4, de 26 de setembro de 1962. § 4º Os Conselhos de Educação divulgarão os valores das mensalidades de março de 1990, no âmbito de suas respectivas competências, até o dia 21 de maio de 1990. § 5º Por ocasião do pagamento das mensalidades de junho de 1990, será feita a compensação dos valores cobrados em desacordo com o valor-teto homologado para os meses de março, abril e maio, se houver. Art. 3º O valor-teto fixado nos termos desta lei, para o mês de março, constituirá a base de cálculo para os reajustes de maio de 1990 e assim sucessivamente. Art. 4º Serão nulos, de pleno direito, quaisquer aumentos de mensalidades escolares autorizados após 15 de março de 1990, em desacordo com a política de estabilização de preços e salários do Governo. Art. 5º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. Art. 6º Revogam-se as disposições em contrário.”

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legitima se for a posteriori, para conter o aumento arbitrário de lucros (CF, art. 173, §3º, até

porque o art. 209106 do texto já teria esgotado as hipóteses admitidas de intervenção pelo

Poder Público).

Já os requeridos (Ministério da Educação, o Congresso Nacional e a Presidência da

República) defendiam a constitucionalidade da Lei n. 8.039/90 pelas diferenças profundas

existentes entre as sociedades empresárias e as instituições de ensino privadas, o que

autorizaria uma intervenção maior nestas últimas pela importância que a educação tem no

desenvolvimento humano e na realização da justiça social, não podendo o ensino ser

submetido simplesmente ao livre mercado. Destacaram também que a norma objeto da ação

não congelou e nem tabelou preços, mas apenas os compatibilizou com a política instituída

pelo governo para proteger o consumidor de aumentos abusivos.

Na mesma linha, o Ministério Público Federal defendeu a constitucionalidade da lei

pois: i) pelo seu caráter social, a educação atrai um regime regulatório especial, não extensível

às demais atividades; ii) o controle e fiscalização da atividade é inerente ao poder que o

Estado tem de autorizar o seu desempenho pelo particular; iii) as relações entre escolas e

universidades e alunos se inserem na política nacional de defesa do consumidor tratada no art.

170, V da Constituição Federal, e na Lei n. 8.078/90.

O julgamento pelo Plenário teve início no final de 1992, sendo concluído no ano

seguinte. Ao final, prevaleceu a orientação preconizada no voto do relator Moreira Alves,

seguida pela maioria, para quem o simples fato de a Lei n. 8.039/90 fixar índices impositivos

de reajuste das mensalidades não a torna inconstitucional, visto que a regra da liberdade de

preços, típica de economias capitalistas, tem caráter relativo, podendo ser afastada por conta

de valores tais como justiça social (art. 170, caput), dignidade humana (art. 1º, III), defesa do

consumidor (art. 170, V), entre outros. Eis o que assinalou Moreira Alves na ocasião:

Embora a atual Constituição tenha, em face da Constituição de 1967 e da Emenda Constitucional n. 1/69, dado maior ênfase à livre iniciativa, uma vez que, ao invés de considerá-la como estas (arts. 157, I, e 160, I, respectivamente) um dos princípios gerais da ordem econômica, passou a tê-la como um dos dois fundamentos dessa mesma ordem econômica, e colocou expressamente entre aqueles princípios o da livre concorrência que a ela está estreitamente ligado, não é menos certo que tenha dado maior ênfase às suas limitações em favor da justiça social, tanto assim que, no artigo 1º,

106 Dispõe o art. 209 da Constituição Federal: “O ensino é livre à iniciativa privada, atendida as seguintes considerações: I- cumprimento das normas de educação; II- autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.”

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ao declarar que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito, coloca entre os fundamentos deste, no inciso IV, não a livre iniciativa da economia clássica, mas os valores sociais da livre iniciativa; ademais, entre os novos princípios que estabelece para serem observados pela ordem econômica, coloca o da defesa do consumidor (que ainda tem como direito fundamental, no artigo 5º, inciso XXXII) e o da redução das desigualdades sociais.

O ministro Celso de Mello também se mostrou contrário ao pleito da Confenem,

construindo o seu voto a partir da concepção de Estado que entende ter sido consagrada na

Constituição. Para o magistrado, há diferenças notáveis entre o modelo desenhado no texto

constitucional, com inúmeros direitos sociais dependentes de prestações positivas, e o arranjo

liberal clássico, que repele qualquer tipo de participação pública na atividade privada. E é

justamente a necessidade de colocar em prática estas garantias constitucionais que embasa a

regulação pública da atividade privada:

A liberdade econômica não se reveste de caráter absoluto, pois o seu exercício sofre, necessariamente, os condicionamentos normativos impostos pela Lei Fundamental da República. A própria noção de intervenção regulatória ou indireta do Estado, cuja prática legitima o exercício do poder de controle oficial dos preços, constitui uma categoria jurídica a que não se tem revelado insensível o legislador constituinte brasileiro. Quaisquer que sejam as modalidades ditadas pelo sistema de controle oficial de preços ou qualquer que seja o momento em que esse sistema opere e se concretize (a priori ou a posteriori), as limitações que dele derivam, desde que fundadas na lei, incluem-se na esfera de abrangência constitucional do poder de intervenção regulatória do Estado.

Os ministros Sepúlveda Pertence, Paulo Brossard e Octavio Galotti acompanharam o

relator, julgando a ADI improcedente – senão no que toca à expressão “março”, constante no

art. 2º, §5º da lei federal.

Já Marco Aurélio dissentiu dos demais, acatando os argumentos apresentados na ADI.

Em seu voto, o magistrado grifou que a liberdade de mercado prepondera em economias

capitalistas, inclusive na prestação de atividades de ensino. Assim, considerou os fatores

legais de reajuste das mensalidades subversivos à concorrência entre os prestadores da

atividade, prejudicando a qualidade do ensino e podendo resultar no fechamento daquelas

escolas que não conseguirem cobrir os seus custos ordinários de funcionamento.

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É interessante perceber que o ministro, já no início da década de 1990, concordava

com os pressupostos básicos de uma economia liberal. Este posicionamento vem sendo

mantido pelo magistrado, que geralmente se opõe ao controle estatal na economia e na vida

das pessoas por considerá-lo ofensivo às liberdades do art. 170 da Constituição107.

4.1.4 Normais locais interferindo na atividade dos agentes econômicos

Outra discussão existente no STF, e que guarda relação com os limites da regulação

pública, diz respeito às competências municipais para regulamentar os chamados assuntos de

interesse local (CF, art. 30, I). Quando o assunto vem à tona, além das tendências

jurisprudências da Corte, é possível constatar a complexidade da distribuição de competências

normativas na Constituição Federal, e a incerteza que permeia a atuação legislativa dos entes

federativos, sendo cada vez mais frequente a judicialização dos conflitos daí decorrentes.

Os casos ora analisados referem-se a leis municipais que, a pretexto de estipular regras

para tratar de assuntos locais, teriam se imiscuído indevidamente na atividade privada,

despertando contrariedade por parte do empresariado. O argumento central defendido por

estes atores é simples, mas consistente: estas normas atenuam a liberdade econômica

garantida na Constituição Federal.

Dentre as decisões proferidas pelo tribunal, que aparentemente tem um entendimento

bem consolidado sobre este assunto, três delas se destacam, ainda que o seu desfecho seja

bem distinto: o RE 193749 (distância mínima entre farmácias), o RE 235736 (distanciamento

entre postos de gasolina), e o RE 189170 (horário de funcionamento). Em dois destes

julgados, especificamente, é interessante notar que o STF chega a conclusões diametralmente

opostas, mesmo sendo muito próxima a matéria de fundo neles abordada.

107 BUCK, Pedro. A intervenção do Estado na ordem econômica (comentários aos votos do ministro Marco Aurélio em acórdãos do STF). Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 4, n. 14, abr./jun. 2006, p. 242-243.

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4.1.4.1 RE 193749

No RE 193749, decidido por maioria em 04/06/1998, o Pleno do STF analisou a

constitucionalidade da Lei n. 10.991/91108, do Município de São Paulo, que condicionava a

concessão de licença de localização para novas farmácias e drogarias à observância de uma

distância mínima de 200 metros de outros estabelecimentos do mesmo ramo já em

funcionamento. O caso chegou até a Corte através de recurso extraordinário interposto pela

Drogaria São Paulo contra decisão do TJSP que endossou o conteúdo da lei aludida por

considerá-lo inserido no contexto desenhado pelo art. 30, I do texto constitucional, pois

estaria apenas disciplinando a ocupação do solo urbano para evitar a concentração destas

farmácias numa única região, deixando outras áreas desatendidas. Segundo os

desembargadores, a competência assegurada ao legislador municipal para tratar de assuntos

de interesse local legitimaria a regulamentação, e por isso repeliram as alegações de que a lei

municipal seria anti-isonômica, e de que estabeleceu uma reserva de mercado em favor dos

empresários inicialmente instalados em determinada região, excepcionando, com isso, a

liberdade dos agentes econômicos.

Em suas razões, a parte recorrente voltou a bater nessa tecla, insistindo que a norma

declarada constitucional pelo tribunal de origem fere a liberdade de iniciativa, a proteção do

consumidor, e a busca pelo pleno emprego, todos previstos no art. 170 da Constituição.

Sob a relatoria de Carlos Velloso, o STF reformou a decisão recorrida, julgando a

norma inconstitucional. Na ocasião, duas posições permearam o julgamento.

De um lado, o relator optou pela manutenção do acórdão do TJSP, sob o pretexto de

que a lei municipal apenas disciplinou o uso do solo e a localização dos estabelecimentos

farmacêuticos de forma a atender todas as camadas da população, ou seja, razões de cunho

social estariam por trás da lei local.

Discordando desta orientação, Nelson Jobim divergiu. Para o magistrado, mais do que

dispor sobre o zoneamento urbano, a norma disciplina o comércio no âmbito municipal,

tolhendo a liberdade de empreender dos agentes e minorando a concorrência que deve existir

entre eles. Do seu voto, colhe-se a seguinte passagem:

108 O art. 1º desta norma prevê: A licença de localização para a instalação de novas farmácias e drogarias no Município será concedida somente quando o estabelecimento ficar situado a uma distância mínima de 200 (duzentos) metros de raio da farmácia ou drogaria mais próxima já existente.

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Essa norma fere o dispositivo constitucional da livre concorrência, e nossas preocupações em relação a um sistema de livre mercado, que seja legítimo, estão exatamente nos instrumentos de proteção da concorrência, traduzidos basicamente no Código de Defesa do Consumidor e na legislação que coíbe os abusos da ordem econômica.

Pela relevância da matéria, já que o STF julgava a ocorrência de ofensa direta a

normas constitucionais, os integrantes da 2ª Turma, para onde o recurso fora inicialmente

distribuído, remeteram-no ao Plenário com respaldo no art. 97 da Constituição Federal, que

exige que a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público seja declarada

pelo voto da maioria absoluta dos seus membros, ou dos integrantes do respectivo órgão

especial. A retomada do julgamento aconteceu após alguns meses, e na ocasião votaram pelo

provimento do recurso e afastamento da lei local Maurício Corrêa e Marco Aurélio, que foram

seguidos por Moreira Alves, Néri da Silveira, Sydney Sanches, Octávio Galotti e Ilmar

Galvão.

Segundo Maurício Corrêa, a limitação geográfica da lei conduziria a uma situação de

reserva de mercado, beneficiando os estabelecimentos já instalados na área, situação

incompatível com os princípios da livre iniciativa e livre concorrência, além de interferir na

liberdade de escolha do consumidor e no seu acesso a preços mais competitivos. Assim, o

ministro declarou a norma inconstitucional, sublinhando que a exigência de autorização

prévia à instalação seria a única restrição admissível ao direito de livre empreender dos

agentes.

Igualmente, Marco Aurélio proveu o extraordinário por considerar a lei municipal

contrária ao art. 174 da Constituição Federal. O ministro, entretanto, não se posicionou sobre

a concentração de mercado ventilada no recurso, justificando que, no seu entendimento, a

intenção do legislador local não teria sido favorecer determinado estabelecimento em

detrimento dos demais, mas sim planejar a ocupação do espaço urbano.

O STF replicou o entendimento a que chegou neste precedente em casos futuros

julgados pela Corte, até sumulá-lo no ano de 2003, em verbete com o seguinte teor: “ofende o

princípio da livre concorrência lei municipal que impede a instalação de estabelecimentos

comerciais do mesmo ramo em determinada área” (Súmula 646/STF).

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4.1.4.2 RE 235736

Ainda sobre os problemas envolvendo liberdades econômicas e a delimitação da

competência legislativa municipal, o STF analisou a possibilidade de fixação de distância

mínima entre postos de gasolina em decorrência de lei local assim dispondo. O leading case é

o RE 235736, decidido em março de 2000, mas em duas outras oportunidades o colegiado se

deparou com o tema: no RE 204187, julgado em 2003, e no RE 199101, de 2005 (nestas duas

ações prevaleceu aquilo que fora decidido anteriormente no precedente).

No precedente, especificamente, a Corte foi provocada a se pronunciar sobre a lei

municipal de Belo Horizonte, prescrevendo que novos postos de gasolina deveriam estar

localizados a uma distância de 200 metros de igrejas, escolas, supermercados e afins (Lei n.

6.978/95, art. 1º109). No extraordinário, o recorrente alegava a incompatibilidade da exigência

com princípio da liberdade de iniciativa, por representar indevida intervenção na atuação

econômica do empreendedor privado.

A 1ª Turma do STF, no entanto, rechaçou o recurso e manteve a lei vigente,

justificando que o afastamento destes estabelecimentos de locais com grande circulação de

pessoas se explica pelos riscos existentes na comercialização de produtos altamente

inflamáveis. Para os ministros, isso basta para legitimar a imposição contida na norma, não

havendo que se falar em concentração de mercado e nem em violação a liberdades

econômicas porque o interesse público existente na prevenção de acidentes prevalece sobre

interesses comerciais privados.

Este entendimento se repetiu no RE 204187, em que o STF referendou, por

unanimidade, lei municipal de Belo Horizonte (Lei n. 2.390/1974110) determinando que se

respeitasse um espaço de 800 metros na instalação de novos postos de gasolina, em relação a

estabelecimento congênere já funcionando na área, pelos motivos de segurança acima

acentuados.

109 Dispõe o art. 1º da Lei n. 6.978/95: “A construção e o funcionamento de Posto de Abastecimento de Combustíveis e Lubrificantes dependem da outorga de alvará municipal, respeitadas as condições estabelecidas nesta Lei e em outras pertinentes a este tipo de comércio. Parágrafo único - Considera-se Posto de Abastecimento de Combustíveis e Lubrificantes o estabelecimento comercial destinado preponderantemente à venda a varejo de derivados de petróleo e álcool carburante para veículos automotores.” 110 Esta norma, que veio a ser revogada pela Lei n. 9.959/2010, dispunha em seu art. 3º: “Somente serão aprovadas plantas para a construção de Postos de Serviço que satisfaçam, além das exigências da legislação sobre construções, as seguintes condições: [...] b) distância mínima de 800 metros de raio de outro estabelecimento congênere”.

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Igualmente, no RE 199101 a Corte chancelou lei do Município de Joinville que exigia

um afastamento mínimo entre revendas de combustíveis, reformando decisão do Tribunal de

Justiça de Santa Catarina que havia julgado a norma local inconstitucional por desnaturar os

princípios da proporcionalidade, livre iniciativa e livre concorrência. No julgamento deste

recurso extraordinário, o único julgador que manteve o acórdão do tribunal catarinense foi

Marco Aurélio, que sustentou que o distanciamento mencionado na lei municipal atentaria

contra a liberdade econômica do recorrente, até porque o risco é imanente à comercialização

de combustíveis, pouco importando se os postos estão situados próximos uns aos outros ou

não.

4.1.4.3 RE 189170

Neste recurso extraordinário, o STF discutiu a possibilidade de lei local fixar o

expediente do comércio. O caso chegou no STF em 1995, após ser admitido na origem

(TJSP). No tribunal estadual, restou decidido que a proibição imposta a farmácias e drogarias

não escaladas para o cumprimento de plantões de funcionarem fora do horário comercial

(conforme o art. 4º da Lei n. 8.794/98, e art. 5º do Decreto n. 28.058/89111), é legal e se insere

no poder de polícia do ente público. O julgamento no STF levou aproximadamente um ano,

ocorrendo entre os meses de março de 2000 e fevereiro de 2001.

Colocado em pauta, o ministro Marco Aurélio deu provimento ao recurso para

reconhecer a inconstitucionalidade dos dispositivos pela ofensa aos princípios da defesa do

consumidor, livre iniciativa e livre concorrência, e do princípio que assegura ao Estado o

exercício, de forma indicativa, da função de planejamento da atividade econômica no setor

privado (CF, arts. 170 e 174). Do voto do magistrado, colhe-se a seguinte passagem, que

sintetiza o seu parecer:

111 A redação destes dispositivos é, respectivamente, a seguinte: “Art. 4º: Fora dos horários normais de funcionamento, não será permitida a abertura das farmácias e drogarias que não estiverem escaladas para o cumprimento dos plantões obrigatórios, salvo mediante prévia autorização da Secretaria de Higiene e Saúde, por períodos de tempo pré-determinados. Parágrafo único: Os infratores do disposto neste artigo serão autuados e os estabelecimentos terão suas portas cerradas no ato, independentemente de reincidência ou não, requisitada a força policial, se necessário. Art. 5º. Fora dos horários estabelecidos no art. 3º não será permitida abertura das farmácias e drogarias que não estiverem escaladas para o cumprimento dos plantões obrigatórios.”

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Poderia a Municipalidade impor funcionamento de farmácias e drogarias, mas jamais proibir que algumas delas abrissem em certos dias. Surge, até mesmo, a contrariedade a ordem natural das coisas, ao princípio da razoabilidade no que a proibição de as farmácias abrirem em certos dias, discrepa do objetivo maior do próprio plantão [...]. Aliás, o preceito do art. 174 da Carta Federal revela que o Estado (gênero), como agente normativo e regulador da atividade econômica, exerce, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este último, de regra, determinante apenas para o setor público e indicativo para o setor privado. Os novos ares da Carta de 1988, a defesa do consumidor, a preservação da livre iniciativa e da livre concorrência passaram despercebidos à Corte de origem e, também, ao Juízo [...].

O ministro Maurício Corrêa votou na sequência, entendendo que a lei municipal pode

disciplinar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial porque esta matéria se

insere na sua competência legislativa para cuidar de assuntos de interesse local (art. 30, I),

entendimento que acabou prevalecendo entre seus pares. É interessante notar, porém, que

Corrêa se limita a afirmar que a regulamentação dos plantões não esbarra na livre iniciativa

dos comerciantes, invocando algumas decisões anteriores do STF, mas sem explicitar, de

forma contundente, os motivos que o levaram a esta conclusão.

É curioso ver que o voto de Marco Aurélio no RE 189170, embora vencido, destoa

daquele posicionamento por ele assumido em pelo menos duas ocasiões onde se discutiu a

mesma matéria: no RE 203358 e no RE 174645. Ambos foram julgados por unanimidade pela

2ª Turma em 1997, e neles o colegiado decidiu que a fixação do horário de funcionamento do

comércio e disciplina do sistema de plantão a ser observado na área municipal pode ser feita

por lei local, e esta disciplina não depõe contra a liberdade econômica dos agentes. Presente

às respectivas sessões de julgamento, o ministro acompanhou a maioria nos dois casos, o que

implica dizer que adotou uma linha distinta daquela por ele posteriormente defendida no RE

189170.

Estes acórdãos da década de 1990, porém, não fornecem elementos suficientes para a

compreensão das razões pelas quais Marco Aurélio sustentou um entendimento diverso, já

que neles o magistrado apenas seguiu o relator. Na realidade, este déficit de informações na

decisão evidencia uma característica prática do trabalho do STF na interpretação da

Constituição, consistente na mera adesão, pelos ministros, ao voto condutor proferido, sem

que apresentem os fundamentos que o levam a decidir em determinado sentido112.

112 Este ponto foi bem captado por Carlos Ari Sundfeld e Henrique Motta Pinto (Três desafios para melhorar a jurisdição constitucional brasileira. In. VOJVODIC, Adriana et al. Jurisdição constitucional no Brasil. São

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Alguns anos depois, em 2003, a matéria acabou sendo sumulada pelo STF, a despeito

da posição contrária de Marco Aurélio, em enunciado com a seguinte redação: “é competente

o Município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial” (Súmula

645/STF).

4.1.5 Regulamentação do comércio

Nos quatro acórdãos que integram este último grupo, o STF é chamado a dizer até

onde os atos regulatórios disciplinando temas inerentes à rotina dos agentes econômicos são

compatíveis com a sua liberdade de iniciativa e comércio. As discussões, conforme será visto,

são ocasionadas pelo fato de o Estado fazer certas exigências em relação a um produto ou a

procedimentos a serem seguidos pelo empreendedor privado, ao argumento de que são

necessários para a proteção do consumidor.

A iniciativa privada, entretanto, geralmente contesta este tipo de medida, por

supostamente privilegiar um único aspecto da discussão, minorando outros interesses

igualmente importantes, tais como as liberdades econômicas constitucionais. E para

demonstrar o enfrentamento que é feito deste tema, foram selecionados os seguintes casos:

ADI 2832, regulando o café vendido no Paraná; RMS 23732, sobre a exibição dos preços dos

produtos vendidos em supermercados; ADI 1980, sobre a comercialização de combustíveis; e

a ADI 2334, exigindo que os tanques dos postos de combustíveis sejam lacrados.

4.1.5.1 ADI 2832

Em 2008, o STF julgou ação direta de inconstitucionalidade proposta pela

Confederação Nacional da Indústria questionando a Lei paranaense n. 13.519/2002113, que

Paulo: Malheiros, 2012, p. 27) quando afirmam: “outra característica prática do processo decisório do STF é a tendência prática de adesão ao voto condutor pelos demais ministros vencedores. Considerada a vultosa demanda de trabalho do Plenário e das Turmas, tanto em número de processos quanto na variedade de questões submetidas, a necessidade de atender a ela frequentemente importa adesão ao voto condutor somente em função do seu resultado, independentemente de concordância com a sua fundamentação. Assim, a unanimidade ou a maioria se formam não necessariamente em função das razões dadas pelo ministro-relator, mas sobretudo pelo resultado que propõe”. 113 Eis o teor da norma: “Art. 1º. Fica estabelecida a obrigatoriedade de informação, nos rótulos das embalagens de café comercializado no Paraná, da percentagem de cada espécie vegetal de que se compõe o produto. § 1°. O

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exigia que o café comercializado mencionasse, no seu rótulo, o percentual de cada espécie

vegetal que compunha o produto. Além da usurpação de competência da União para legislar

sobre direito comercial e comércio interestadual, a ideia básica advogada pela CNI era que

esta regra impedia os produtores de exercerem sua atividade econômica de forma plena, em

parte pela discriminação necessária nos rótulos em si, em parte pela obrigatoriedade de que as

embalagens de café estampassem um selo de qualidade outorgado pela Associação

Paranaense de Cafeicultores, que, por ser um ente privado e não integrar o aparato estatal, não

teria competência para emiti-lo, já que o poder de polícia é indelegável, cabendo unicamente

ao Estado exercê-lo.

O governo estadual e a Assembleia Legislativa rebateram estas afirmações

sustentando, em síntese, que a lei tinha como fim proteger o consumidor e mantê-lo

informado sobre os produtos colocados no mercado, conforme art. 170, V da Constituição,

argumento perfilhado pela Advocacia-Geral da União. A Procuradoria da República, por seu

turno, opinou pela improcedência da ação.

Em acórdão relatado por Ricardo Lewandowski, o Pleno julgou a ação parcialmente

procedente por maioria, apenas para limitar os efeitos da norma ao Paraná – por isso, o STF

expurgou a expressão seja comercializada no Brasil, contida no art. 2º. Entretanto, o relator

acentuou que a exigência contida na lei não vulnera a Constituição, mas sim dá efetividade a

valores constitucionais ao garantir ao consumidor o direito à informação:

produto comercializado no Paraná com o nome de café, independentemente de sua apresentação, somente poderá ser produzido a partir de grãos de espécies vegetais do gênero Coffea. § 2°. Nos casos em que se utilizarem grãos de plantas híbridas de diferentes espécies do gênero Coffea, especificar-se-á no rótulo do produto a participação percentual do híbrido. Art. 2º. As disposições desta lei aplicam-se ao café torrado em grão, ao café torrado moído, ao café solúvel e a todas as demais formas em que o café, destinado ao consumo humano, puro ou em mistura com outros produtos alimentícios, seja comercializado no Brasil. Art. 3º. Para os efeitos desta lei, adotam-se as seguintes definições: I - Café Torrado em Grão: é o endosperma beneficiado do fruto maduro de uma ou mais espécies do gênero Coffea, submetido a tratamento térmico adequado, até atingir o ponto de torra escolhido; II - Café Torrado Moído: é o Café Torrado em Grão submetido a adequado processo de moagem; III - Café Solúvel: é o produto resultante da desidratação do extrato aquoso obtido exclusivamente do café torrado, através de métodos físicos, utilizando água como único agente extrator; IV - Para os efeitos desta lei, entende-se por espécies do gênero Coffea as espécies "Coffea Arábica" e "Coffea Canephora"; a) A espécie Canephora será referida no rótulo de acordo com as variedades conhecidas como "Robusta" ou "Conillon". b) A espécie Arábica será referida no rótulo com este próprio nome. Art. 4º. O regulamento desta lei estabelecerá, entre outros aspectos, os requisitos relativos a características sensoriais, físicas, químicas e microbiológicas, acondicionamento e higiene, os teores máximos de impurezas ou contaminantes admitidos, os planos de amostragem e os métodos de análise a serem observados. Art. 5º. Constará das embalagens de todo o café comercializado no Paraná um selo da qualidade emitido pela produção, através da Associação Paranaense de Cafeicultores – APAC, com a fiscalização da EMATER-Paraná e aprovação técnica, através de laudo laboratorial a ser fornecido pelo Instituto Agronômico do Paraná – IAPAR.”

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Quanto à alegação de violação aos princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência estampados no art. 170, IV, e parágrafo único da Constituição, melhor sorte não colhe a autora. É que a lei impugnada tem apenas o escopo de informar o consumidor quanto aos dados de produto por ele adquirido. Não se olvide, de resto, que o inciso V do citado artigo 170 da Constituição estabelece, como princípio da ordem econômica, precisamente a defesa do consumidor.

Os ministros Menezes Direito, Cármen Lúcia, Carlos Ayres Britto, Cezar Peluso,

Ellen Gracie, Celso de Mello e Gilmar Mendes acompanharam o relator.

Por sua vez, Joaquim Barbosa divergiu por considerar a norma restritiva ao estabelecer

que apenas o tipo de café nela indicado pudesse ser vendido no Paraná, criando obstáculos

para a comercialização de produtos de outros Estados. Assim, julgou inconstitucional também

a regra do art. 1º, §1º. Já Marco Aurélio julgou a ação integralmente improcedente, não

enxergando vício algum a contaminar a lei.

4.1.5.2 RMS 23732

Em agosto de 1998, o Diário Oficial da União publicou despacho do Ministro da

Justiça referendando iniciativa do Diretor do Departamento de Proteção e Defesa do

Consumidor do ministério, determinando que os supermercados afixassem nos produtos à

venda em suas prateleiras o respectivo preço, independentemente da utilização do código de

barras. O ato ministerial tinha o seguinte teor:

[...] Desse modo, apoiado na legislação mencionada e na Constituição Federal, que consigna a defesa do consumidor como princípio da ordem econômica, referendo o Despacho do Senhor Diretor do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, datado de 20 de maio de 1998, publicado no Diário Oficial de 25 do mesmo mês, razão pela qual estabeleço a data de 11 de setembro do corrente ano como limite para a afixação dos preços diretamente nos produtos expostos à venda.

Devido ao aumento de custos daí resultante, o Sindicato dos Supermercados e

Atacados de Auto Serviço da Bahia impetrou mandado de segurança no STJ alegando que o

ato ministerial traduziria um intrometimento na atividade privada, esbarrando nas liberdades

de iniciativa e concorrência por inexistir lei em sentido estrito formalizando a exigência aí

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contida, e pela carência de competência por parte do Ministro de Estado para editar normas

com este conteúdo.

Com o julgamento desfavorável naquele tribunal superior, o Sindicato recorreu ao

STF, reafirmando aquilo que fora alegado na inicial. Mas em acórdão unânime relatado por

Gilmar Mendes, a 2ª Turma manteve a decisão do STJ, reconhecendo a legalidade do ato

ministerial que impôs a fixação dos preços diretamente nos produtos expostos à venda. Na

sessão de julgamento, o colegiado concluiu que a regra não violou qualquer dispositivo da

Constituição, mas sim deu concretude ao art. 170, V (defesa do consumidor).

Nomeadamente sobre a afronta à liberdade de iniciativa dos agentes, Mendes se

limitou a afirmar que não houve desrespeito ao princípio porque o ato foi proferido por

autoridade competente para tanto, não tendo ocorrido um debate mais detido em torno deste

ponto:

não houve ofensa ao princípio da livre iniciativa, visto que se trata de ato normativo emanado por autoridade competente. O despacho proferido pelo Diretor do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor está inserido no âmbito de suas atribuições legais.

Só não está claro, no entanto, a correlação entre a competência ministerial para regular

a matéria, e a inexistência de violação à liberdade de iniciativa, e Gilmar Mendes tampouco

explora este tema, limitando-se a fazer a colocação supratranscrita, sem acrescentar

argumentos para justificá-la.

4.1.5.3 ADI 1980

Esta ação direta foi proposta pela Confederação Nacional do Comércio – CNC contra

a Lei paranaense n. 12.420/1999, que assegura ao consumidor a obtenção de informações

sobre a natureza, procedência e qualidade dos combustíveis comercializados nos postos

situados no Paraná. Além de matérias afetas à divisão de competências legislativas, já que

somente a União poderia legislar sobre a venda de combustíveis, ao impedir os postos de

comercializarem produtos de distribuidora diversa da bandeira que ostentam, a norma

estadual estaria restringindo indevidamente a atividade econômica dos agentes privados,

ferindo as liberdades de iniciativa e concorrência.

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Especificamente sobre este argumento, que é o que interessa para o presente trabalho,

nas contrarrazões apresentadas o governo estadual alegou que não houve qualquer violação à

Constituição, posto que o único objetivo da lei é resguardar o interesse público existente por

trás da defesa do consumidor.

Levada a julgamento, o Supremo reconheceu a constitucionalidade da lei paranaense

por entender que ela cuida de matérias inseridas no âmbito da competência concorrente entre

Estados e União. Ainda, o impedimento de que o posto divulgue a marca de determinada

distribuidora e venda produtos de outras não afronta a liberdade econômica dos agentes por se

tratar de providência que busca evitar a indução do consumidor a erro.

Segundo o relator Cezar Peluso, cujo voto condutor foi seguido por unanimidade pelos

seus pares, a lei não estaria interferindo diretamente nas relações firmadas entre postos e

distribuidoras, nem restringindo a possibilidade de os agentes econômicos escolherem a qual

distribuidora se filiarão em regime de exclusividade – algo que, para ele, é inerente ao

resguardo do interesse público. Com isso, o tribunal julgou improcedente a ação direta por

unanimidade, nos termos do voto de Peluso.

4.1.5.4 ADI 2334

Através da ADI 2334, a Confederação Nacional do Comércio – CNC questionou a

constitucionalidade da Lei estadual n. 3.438/2000, do Rio de Janeiro, que obrigou

distribuidoras de combustíveis a lacrarem eletronicamente os tanques dos postos de gasolina.

Na ação, a CNC alegava, resumidamente, que a norma teria esbarrado nos princípios da livre

iniciativa e concorrência, e invadido competência legislativa privativa da União.

Ao proferir seu voto, o relator Gilmar Mendes rejeitou de plano o argumento de que

houve violação de competência normativa, e às liberdades de iniciativa e concorrência. Ao

contrário, Mendes concluiu que a norma teve por fim evitar a adulteração dos combustíveis,

resguardando o consumidor destes produtos. O relator rejeitou ainda a alegação de que houve

violação à liberdade de iniciativa e concorrência porque, na sua percepção, estes princípios

não podem ser concretizados em detrimento do interesse público. Os demais ministros

seguiram seu voto e a decisão foi unânime.

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4.2 Liberdade de iniciativa e os limites à regulação econômica – constatações empíricas

Se comparada aos textos constitucionais anteriores, a experiência proporcionada pela

Constituição de 1988 é bastante significativa em tema de liberdades econômicas, assegurando

à iniciativa privada um amplo espaço de atuação pelo fato de a atividade econômica,

encabeçada pelo Estado, assumir um caráter secundário. No entanto, se na teoria esta lógica

parece fazer sentido, mostra-se extremamente duvidosa quando confrontada com dados da

realidade, porquanto o constituinte não definiu, de forma categórica, até onde vai a

participação do Estado na organização do mercado, e a legislação vigente tampouco é

concludente quanto à dimensão do protagonismo estatal na regulação do comportamento dos

agentes que atuam em regime concorrencial.

Isso faz do STF uma referência incontornável para quem deseja compreender como se

dá a interação existente entre liberdade de iniciativa e regulação pública, e a análise dos casos

julgados pelo tribunal permite visualizar algumas questões interessantes, além de revelar que

há um grande hiato entre o que a doutrina expõe e aquilo que a jurisprudência realmente

aplica ao equacionar estes elementos.

Em primeiro lugar, os ministros claramente colocam a liberdade de iniciativa um

degrau abaixo daqueles princípios revestidos de viés social (justiça social, existência digna,

proteção do consumidor, entre outros), invocando, para tanto, a elástica ideia de superioridade

do interesse coletivo, que é aplicado indistintamente nos acórdãos envolvendo restrições à

atividade privada. Apoiados nesta ideia, os juízes se limitam a assinalar a existência de um

amplo espaço na Constituição Federal a legitimar a ação estatal, defendendo que a liberdade

de iniciativa não tem caráter absoluto e é superada pelas normas alinhadas com os anseios da

coletividade – o que pouco ou nada diz sobre o grau de intervencionismo estatal admitido.

Não buscam, porém, definir a essência desta liberdade e nem precisar seus contornos,

tampouco expõem de que maneira o interesse público se manifesta no caso concreto, como se

a simples referência a ele bastasse para justificar o seu uso114. Isso torna extremamente difícil

delimitar o grau de envolvimento público aceito na economia.

114 A propósito, a advertência de Floriano de Azevedo Marques Neto (Regulação estatal e interesses públicos. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 148-149) no sentido de que é inviável conceber o interesse público de forma simplista, como sendo aqueles interesses contrários ao do particular, se aplica ao processo decisório do STF, já que a Corte não se preocupa em avaliar com mais cuidado o que realmente caracteriza o interesse público nos casos lá julgados. Afirma o autor: “não se pode mais entender por interesse público algo tão genérico a ponto de

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Na realidade, ao agir desta forma o STF indiretamente estabelece uma hierarquia entre

princípios constitucionais que permite definir antecipadamente qual deles prevalece e qual é

preterido na prática. O entendimento de que a livre iniciativa não pode ser invocada para

afastar regras de regulação do mercado, recorrente nos acórdãos115, corrobora esta alegação,

confirmando a aparente relação de prevalência entre o interesse público que os ministros

afirmam estar corporificado nestes princípios sociais, e o interesse privado que a livre

iniciativa espelha.

Em outras palavras, aí está dito que as normas garantidoras de direitos sociais

sobrelevam quando confrontadas com a liberdade econômica dos agentes. Só que por não

estar mais bem explicitada, esta ideia provoca questionamentos em torno das razões pelas

quais a livre iniciativa não estaria no mesmo nível impositivo dos demais valores

informadores da ordem econômica, se teoricamente a Constituição Federal os coloca em pé de

igualdade – inclusive, há autores que conferem a esta liberdade um peso maior do que o

daqueles princípios previstos no art. 170, I a IX por ser um valor conformador da ordem

econômica116. O próprio Gilmar Mendes, no julgamento da ADI 2334, onde a Corte debateu a

constitucionalidade da lei fluminense determinando o lacre dos tanques dos postos de

combustíveis, salienta que o constituinte de 1988 concebeu um sistema onde os princípios

coexistem harmonicamente, não havendo uma ordem de subordinação entre eles. Mas se

contradiz, no voto proferido nesta mesma ação, ao afirmar que a livre iniciativa jamais

prevalece sobre defesa do consumidor nesta estrutura, pois os princípios da livre

concorrência, da propriedade privada e da livre iniciativa não podem ser concretizados em

detrimento do interesse público. Ora, se realmente se tratasse de uma relação equilibrada,

isonômica, não seria possível determinar a priori quais princípios preponderam e quais são

desprezados, e em determinadas circunstâncias a livre iniciativa naturalmente deveria

prevalecer – o que, segundo Gilmar Mendes, não ocorre.

se resumir pela negativa – como interesses não privados – ou a partir dos abstratos interesses definidos por um Estado plenipotenciário e distante dos reais interesses existentes no cada vez mais complexo corpo social”. 115 Duas passagens colhidas dos acórdãos analisados sintetizam a orientação que tem dado o tom no STF: i) no RE 349686, a ministra Ellen Gracie grifa que “o princípio da livre iniciativa não pode ser invocado para afastar regras de regulamentação do mercado e de defesa do consumidor”; ii) na ADI 2334, ao discorrer sobre as características da ordem econômica constitucional, Gilmar Mendes sublinha que “os princípios da livre concorrência, da propriedade privada e da livre iniciativa não podem ser concretizados em detrimento do interesse público, especialmente da defesa do consumidor”, e na sequência afirma que “o texto supõe uma relação equilibrada na aplicação dessas fórmulas de otimização, não se podendo atribuir prevalência à ideia de livre concorrência em detrimento da devida proteção ao consumidor”. 116 É o que sustentam André Carvalho Nogueira (Regulação do poder econômico - a liberdade revisitada. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 216) e Tercio Sampaio Ferraz Jr. (Direito constitucional: liberdade de fumar, privacidade, estado, direitos humanos e outros temas. Barueri: Manole, 2007, p. 221).

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Veja-se que o argumento interesse público autoriza decisões nos mais variados

sentidos, até porque a realização de parte do conteúdo que está na sua essência depende da

atividade privada e do desenvolvimento socioeconômico por ela proporcionado, sobretudo em

países de economia emergente e incipiência institucional como o Brasil (por exemplo, geração

de emprego e renda, recolhimento de tributos para custeio do funcionamento do aparato

administrativo e de serviços públicos, redução de desigualdades regionais, etc.117).

Na realidade, pelo papel que desempenha, espera-se do Supremo decisões consistentes

e que permitam a formulação de uma pauta de onde se extraiam regras claras que orientem

julgamentos futuros, e não decisões fundamentadas convenientemente na ideia de interesse

público118, contaminadas por graus acentuados de imprecisão. Isso evitaria o mal consistente

na “acentuada incerteza jurídica provocada por juízos de ponderação produzidos sempre caso

a caso”119.

Note-se que mesmo o STF não estando muito empenhado em fixar uma doutrina mais

sistemática no que toca à profundidade e intensidade da carga regulatória a que a atividade

empresarial se sujeita, que permita enquadrar casos futuros com certa previsibilidade, em

outras áreas jurídicas a preocupação da Corte com a criação de um regime mais objetivo salta

à vista. Em matéria tributária, para ficar em um exemplo, este propósito é real, tanto que 25%

das súmulas vinculantes já editadas pelo STF (oito verbetes de um total de trinta e um) se

referem a assuntos fiscais120.

Uma segunda constatação é que os ministros, embora aparentemente mais

preocupados com as consequências distributivas das suas decisões do que com os seus

reflexos no âmbito privado, o que faz com que se inclinem pela orientação que tem, à

primeira vista, maior apelo social, não entram a fundo nos problemas colocados, limitando-se 117 Celso Antônio Bandeira de Mello (Grandes temas de direito administrativo. 19 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 182) conceitua interesse público como sendo “a dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, dos interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da sociedade (entificada juridicamente no Estado), nisto se abrigando também o depósito intertemporal destes mesmos interesses”. 118 Carlos Ari Sundfeld (Direito administrativo para céticos. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 80) critica a utilização desmedida e aleatória que os tribunais, de um modo geral, fazem dos princípios: “[...] o uso retórico de princípios muito vagos vem sendo um elemento facilitador e legitimador da superficialidade e do voluntarismo. E por que facilitador e legitimador? Porque belos princípios ninguém tem coragem de refutar, e muita gente se sente autorizada a tirar conclusões bem concretas apenas recitando fórmulas meio poéticas (aliás, de preferência muitas delas – como se enfileirar princípios, todos muito vagos, aumentasse a força da conclusão). A verdade é que motivações e discussões que ficam nesse plano de generalidades são insuficientes para conclusões concretas. A razão é óbvia: nesse plano, quase todo mundo tem alguma razão no que diz”. 119 BINENBOJM, Gustavo. A constitucionalização do direito administrativo no Brasil: um inventário de avanços e retrocessos. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 13, mar./maio 2008. p. 1-44. Disponível em www.direitodoestado.com.br. Acesso em 05/12/2013, p. 11. 120 Súmulas 8, 12, 19, 24, 28, 29, 31, 32.

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a fazer uma leitura superficial das situações que lhes são levadas, não raro deslocada da

realidade fática. Basta ver a posição encabeçada por Ellen Gracie na ADI 2435 MC, quando

diz que a suspensão da lei fluminense assegurando descontos a idosos na compra de

medicamentos traria mais efeitos negativos a estas pessoas do que a sua manutenção aos

empresários e comerciantes, que no futuro poderiam facilmente se ressarcir dos prejuízos

experimentados. No terreno do concreto, porém, as coisas não são tão simples: o caminho a

ser percorrido para obter a condenação judicial do Estado é tortuoso (prazos processuais

diferenciados, reexame necessário, recursos procrastinatórios, e a sistemática de pagamento

por precatórios), e o prazo prescricional quinquenal para a propositura de ações indenizatórias

faria com que somente parte das perdas fosse assimilada pela Administração. Ainda, ao não

estabelecer critérios para separar quem tem recursos para pagar pelos medicamentos, daquelas

pessoas desprovidas economicamente, a norma dá a quem não precisa, restringindo o direito à

saúde do restante da população, já que o empresariado, pelo lado financeiro, compensa as

perdas ocasionadas pelos descontos obrigatórios embutindo-as nos preços repassados aos

demais consumidores.

De maneira semelhante, ao tratar da meia-entrada nas ADI 1950 e ADI 3512, o STF

reconheceu que os direitos à cultura e ao lazer tranquilamente prevalecem sobre a livre

iniciativa e intuito lucrativo do empresariado, e o fez seguindo o relator, ministro Eros Grau,

que constrói seu voto a partir do modelo de Estado que considera ideal para, só então, se

debruçar sobre o conteúdo da norma objeto das ações. Mas a Corte parece ignorar que as

consequências econômicas daí decorrentes não são absorvidas pelo empreendedor privado,

pois o custo desse tipo de medida onera reflexamente o restante dos pagantes, onde estão

aquelas pessoas hipossuficientes que são justamente as que mais precisam de incentivos.

Trocando em miúdos, com este tipo de prática, a justiça social está longe de ser alcançada,

pois ao beneficiarem determinada categoria, penalizam diretamente outras pessoas, o cidadão

comum121.

Enfim, com essa argumentação o STF se contenta com a retórica distributivista,

confirmando as opções tomadas pelo governo, mas desconsidera dois importantes dados: a

livre iniciativa é a regra no cenário desenhado pelo constituinte, dela decorrendo o direito dos 121 Criticando a posição do STF na ADI 1950, a qual vale para outras áreas onde esta discussão vem à tona, Sundfeld (2014) salienta que “o verdadeiro conflito de interesses não era entre empresas de entretenimento e pobres estudantes. Era entre estudante (isto é, jovens das famílias mais ricas) e o restante do público dos cinemas, teatros, shows; público esse formado por outros jovens e por adultos que, em muitos casos, ganham menos do que os pais dos estudantes beneficiados e mesmo assim teriam de arcar com o subsídio em favor destes. Como as empresas de entretenimento encarnaram o inimigo fácil – afinal, foram elas que criticaram a lei –, os ministros do STF não se interessaram em sair à busca de quem ia pagar a verdadeira conta”.

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agentes econômicos ao lucro, que deve ser protegido122; o cobertor das gratuidades é curto

para tapar todo mundo, e como as leis que instituem políticas privilegiando determinados

segmentos geralmente não trazem suas respectivas fontes de custeio, alguém terá de arcar

com o ônus, ocasionando um aumento de preços generalizados que dificulta – e até impede –

o acesso de parte dos indivíduos a estes bens.

Do que foi até aqui exposto, emerge uma terceira constatação: a indicação de fonte de

receita para custear medidas ocasionadas pela intervenção do Estado na atividade empresarial

privada não é uma preocupação do STF, ao contrário do que se dá nas concessões de serviços

públicos, por exemplo. Diferentemente das atividades abertas ao particular, nas concessões

não existe liberdade tarifária, o que leva a Corte a ser mais criteriosa diante da instituição de

obrigações inexistentes no início do contrato. Há hoje uma jurisprudência abundante no

tribunal123, cujos fundamentos dialogam com “a preservação do equilíbrio econômico-

financeiro dos contratos, que seria violado pela criação de novos encargos ou supressões de

receitas, desprovidas da indicação de fontes que reparassem as perdas”124. Já nas atividades

exploradas livremente pelo particular, os preços podem ser alterados para cobrir estes ônus, e

por isso os ministros exigem a demonstração da viabilidade e de como serão financiadas estas

despesas supervenientes.

Um quarto ponto intrigante diz respeito à articulação das liberdades econômicas com

os chamados interesses locais. Afinal, as decisões nas quais o STF se escolta neste argumento

para coibir ou endossar determinada medida regulatória não permitem visualizar com clareza

a coerência em relação aos parâmetros utilizados para fundamentá-las. A dúvida,

especificamente, se refere às posições assumidas em dois casos muito parecidos: no RE

189170, restou decidido que lei local pode fixar o horário de funcionamento do comércio

dentro da área municipal, porque este tipo de norma preconiza o interesse do consumidor, não

havendo aí qualquer choque com a livre iniciativa; mas no RE 193749, o tribunal invocou

estes mesmos princípios (livre iniciativa e defesa do consumidor) para julgar inconstitucional

lei municipal fixando uma distância mínima entre farmácias e drogarias. Só não fica claro o

que justifica a adoção de orientações tão distintas em situações muito semelhantes, e esta

incerteza se manifesta entre os próprios ministros, tanto que o relator do RE 193749, ministro 122 É o que afirma Miguel Reale (REALE, Miguel. O Plano Collor II e a intervenção do Estado na ordem econômica. Temas de direito positivo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1992, p. 255): “o direito de obtenção de lucro não arbitrário é assegurado, constitucionalmente, ao produtor, o qual, operando com livre iniciativa em regime de livre concorrência, não pode ser privado do direito de fixar livremente os preços das mercadorias levando em conta os custos e margem razoável de lucro”. 123 Por exemplo, as ADI 2299, ADI 2337 e ADI 2733. 124 SUNDFELD, Carlos Ari. Pareceres. vol. II. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013, p. 182.

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Carlos Velloso, considerou que o distanciamento mínimo entre estabelecimentos se inclui

naquilo definido como interesse local, enquanto Marco Aurélio reconheceu que a fixação do

expediente de farmácias viola a liberdade dos agentes.

A falta de precisão nos critérios invocados para decidir alcança igualmente a utilização

de argumentos de ordem formal pelo STF. A liminar proferida na ADI 3937, sobre a

proibição do amianto, ilustra essa afirmação, já que nas duas primeiras oportunidades que a

Corte teve de analisar esta matéria, proclamou que as normas estaduais teriam usurpado

competência legislativa da União. Os ministros, contudo, alteraram sua posição no último

julgamento (ADI 3937), ainda que diante de um contexto fático praticamente igual nas três

oportunidades – em todos eles a norma geral editada pela União estava vigorando, e o tratado

internacional sobre o tema já havia sido ratificado e internalizado. A impressão que se tem é

que o argumento formal é convenientemente utilizado naquelas ações mais complexas,

constituindo um subterfúgio para que não seja preciso encarar o seu mérito, detalhando

abertamente o que justifica a adoção de uma ou outra linha decisória.

Dito isso, a partir das decisões representativas do entendimento da Corte, percebe-se

que o tratamento dispensado aos problemas que lhe são levados é bastante genérico, repetindo

argumentos sem entrar a fundo nas particularidades do caso concreto. Da leitura destes

julgados não há como extrair um critério de validade jurídica cuja ausência autoriza a sua

revisão judicial, tampouco até onde vai a liberdade de iniciativa dos agentes e o interesse

público que autoriza o Estado a intervir na atuação privada.

Não obstante, as decisões selecionadas evidenciam que o STF é hostil à tese da

mínima intervenção, que tem a autorregulação do mercado como regra, sendo o papel

desempenhado pelo Estado na economia subsidiário ao do particular125. A Corte, ao contrário,

atribui ao setor público funções mais diretas, e isso explica o fato de aderir à grande maioria

das medidas regulatórias que lá são questionadas.

Ainda em torno destas premissas, o único juiz do STF claramente avesso à intervenção

estatal é Marco Aurélio, que de um modo geral reduz o espaço ocupado pelo governo no

125 Sobre isso diz Floriano de Azevedo Marques Neto (Limites à abrangência e à intensidade da regulação estatal, Biblioteca Digital Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, jan. 2003, s/p.): “o manejo da autoridade estatal só se põe aceitável, porquanto necessária, na medida em que uma finalidade de interesse geral (tanto a dirimição de um conflito, como a promoção do bem comum) não seja alcançável autonomamente pelas instituições sociais. Por certo, é através deste raciocínio que se permite divisar as fronteiras entre a atuação do Estado (necessária, mas não necessariamente pretendida) e o campo de liberdade e autonomia dos indivíduos (entendido como um bem em si)”.

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mercado, criticando as iniciativas oficiais na vida econômica126. Mas se em tema de regulação

pública a orientação encabeçada por Marco Aurélio é isolada, rejeitando a presença estatal na

economia, o mesmo não se pode dizer da posição por ele assumida diante de outra liberdade

constitucional: a liberdade profissional. Aqui, surpreendentemente, Marco Aurélio assume

uma postura intervencionista. Em duas recentes oportunidades nas quais o assunto esteve em

pauta (RE 511961 e RE 414426), a Corte condenou o excesso de regulação em matéria de

liberdade profissional, que seria quase absoluta, sendo a intervenção estatal subsidiária, ou

seja, cabendo somente quando se impuser algum tipo de tutela estatal. Numa destas

oportunidades, nomeadamente, por maioria de votos o STF decidiu pelo fim da

obrigatoriedade do diploma específico de jornalista para o exercício da profissão (RE

511961), entendendo que esta exigência representaria uma forma de controle prévio da

liberdade de expressão e informação. O voto vencido foi exatamente o de Marco Aurélio, que

considerou a conclusão de curso superior um requisito a ser preenchido por quem pretende

trabalhar na área. Assim, a teoria liberal que o ministro sustenta diante de intervenções

estatais na economia destoa daquela por ele trilhada neste caso específico, em que avalizou

um controle mais rígido por parte do Estado.

Os acórdãos nos quais o STF rejeitou a intervenção estatal, em contrapartida, denotam

algumas considerações importantes, e talvez a principal delas seja a repulsa ao controle de

preços como medida conjuntural de política econômica. Essa orientação fica bem clara no

caso das empresas do setor sucroalcooleiro (RE 422941), e na recente condenação imposta à

União pelo congelamento das tarifas aéreas nos anos 80 e 90 (RE 571969127). Nestes dois

julgamentos, o núcleo da discussão se referia à possibilidade de o governo colocar em marcha

iniciativas típicas de economias planificadas, ignorando regras elementares do capitalismo –

como a lei da oferta e da procura. Não obstante, as decisões tiveram mérito de revelar a

objeção do STF a este tipo de ato, para quem o Poder Público deve assumir as consequências

econômicas dele decorrentes, compensando os prejuízos trazidos ao empresariado.

126 BUCK, Pedro. A intervenção do Estado na ordem econômica (comentários aos votos do ministro Marco Aurélio em acórdãos do STF). Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 4, n. 14, abr./jun. 2006, p. 242. 127 Por cinco votos a dois, o STF negou provimento ao RE 571969, por meio do qual a União e o Ministério Público Federal buscavam reverter decisão proferida nas instâncias ordinárias que garantiu à Varig o direito a indenização em razão do congelamento de tarifas ocorrido durante o Plano Cruzado, entre outubro de 1985 e janeiro de 1992. A maioria dos ministros seguiu o voto da relatora, Cármen Lúcia, para reconhecer a responsabilidade do governo pelo congelamento, já que este tipo de iniciativa acarreta o desequilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão.

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Na outra decisão em que o STF afastou o ato intervindo na economia (ADI 2290 MC),

os ministros consideraram que a suspensão de novos registros de armas, ainda que por

determinada período de tempo, consubstanciaria limitação desproporcional à liberdade,

porque inviabilizaria o comércio de armas – atividade que, embora sujeita a uma intensa

regulação, é lícita. Aqui, o tribunal julga com base na regra da razoabilidade, entendendo que

a norma culminaria na proibição reflexa de atividade econômica lícita.

Nessa ordem de ideias, o STF não tenta traçar um limite para a intervenção estatal na

economia que garanta concomitantemente a livre iniciativa e o interesse público,

contrabalançando estes interesses. Ao contrário, baseado na ideia de interesse público, tende

simplesmente a confirmar os atos praticados no exercício da regulação pública, sem municiá-

los satisfatoriamente para saber se, de fato, o interesse público primário está sendo

efetivamente atingido com a manutenção da medida. Por isso, Carlos Ari Sundfeld e Liandro

Domingos, comentando a postura assumida pelo STF nesse contexto, dizem que

a função do Supremo Tribunal Federal tem sido mais a de examinar casualmente as críticas feitas por quem se considera prejudicado pelas políticas inventadas pela Administração a partir de normas constitucionais e legais. Nesses casos, o STF tem exercido não um papel constitutivo, mas sim confirmatório128.

E levando em consideração o papel central desempenhado pelo Poder Judiciário na

organização dos sistemas econômicos, que tem no STF o seu principal expoente por ser

responsabilidade sua dar a última palavra sobre a aplicação e interpretação do Direito

constitucional vigente, é plausível afirmar que o contexto regulatório brasileiro não propicia

um ambiente favorável à livre iniciativa econômica. Acompanha legislativo, não exerce

controle efetivo, não proporciona um cenário favorável.

128 DOMINGOS, Liandro. Supremocracia ou administrocracia no novo direito público brasileiro? In. ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; MIGUEL, Luiz Felipe Hadlich; SCHIRATO, Vitor Rhein (coord.). Direito público em evolução: estudos em homenagem à Professora Odete Medauar. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 35.

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CONCLUSÃO

O presente estudo espera ter contribuído em relação a alguns aspectos que permeiam a

atuação estatal na economia, chamando atenção para os desafios por trás da organização e

funcionamento do sistema econômico desenhado na Constituição Federal.

Neste capítulo conclusivo, porém, ao invés de simplesmente compilar as ideias

apresentadas na pesquisa, o que se tornaria repetitivo e inevitavelmente acabaria fazendo com

que aspectos importantes trabalhados ao longo do texto fossem deixados de fora, optou-se por

apresentar uma pergunta conclusiva cujas respostas, em certa medida, sintetizam a abordagem

feita no trabalho, e a partir disto retomar as principais ideias da dissertação.

Assim, a interrogação que se coloca é a seguinte: em que medida as normas

constitucionais são capazes de impactar no conteúdo da regulação estatal e no seu controle? A

Constituição Federal anuncia alguns marcos importantes, mas não há como extrair daí uma

pauta normativa que permita dizer com segurança quando determinado ato estatal é ou não

legítimo. Na essência, essa incerteza sobre os limites cabíveis à atuação oficial na economia e

suas razões justificadoras afeta o processo de desenvolvimento econômico do país, visto que

“o Direito é uma das instituições que mais influenciam a diferença de desempenho entre

países desenvolvidos e não desenvolvidos”129.

Primeiramente, e por óbvio que isso possa parecer, o atual modelo tem na força da

iniciativa privada o seu motor de crescimento, cabendo ao Estado a atribuição principal de

fiscalizar e regular os negócios privados. Não basta, contudo, a existência de normas

assegurando a liberdade econômica; o seu manuseio é igualmente importante, já que a

moderação indevida da liberdade de iniciativa e da autonomia do particular leva a uma

situação de arbitrariedade na interpretação deste plexo de normas.

A questão, então, refere-se aos vetores que moderam a participação dos órgãos

públicos nos diversos setores da economia, porque neste campo o texto constitucional contém

algumas brechas. A incerteza resulta da aparente incompatibilidade de um ordenamento

jurídico arquitetado sobre princípios antagônicos, que mesmo contemplando uma economia

de mercado, dá margem para uma ampla intervenção na economia através de políticas

restringindo e direcionando a atividade dos agentes privados para que persigam outros

129 PINHEIRO, Armando Castelar; SAADI, Jairo. Direito, economia e mercados. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p. 14.

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objetivos, além do lucro que move o empreendedorismo. Esta dúvida não é meramente

especulativa, destituída de efeitos práticos; pelo contrário, está no cerne da atividade do

intérprete e reflete a aproximação que irá orientar a resolução das dificuldades resultantes do

entrelaçamento das normas que conformam este sistema por vezes pouco claro. Daí a

exigência de respostas contundentes a estes problemas conjunturais e estruturais de caráter

econômico, não previstas de forma específica pelo constituinte.

Nesse quadro, a jurisprudência analisada revela que a livre iniciativa, mesmo sendo

um fundamento republicano e também da ordem econômica, é pouco considerada nas

discussões em que o STF é acionado para decidir até onde pode ir a intervenção pública no

mercado, ou ao menos recebe um peso menor do que aquele que a doutrina conceitualmente

sustenta que o princípio tem. A rigor, os acórdãos escolhidos para representar a posição da

Corte sobre a temática denunciam que os ministros nem sempre levam esta liberdade em

conta, e naquelas situações em que o princípio é trazido para o debate, com surpreendente

frequência acaba sendo posto de lado, como se se tratasse de um argumento pouco relevante

para o desfecho da controvérsia.

Além disso, a falta de objetividade da legislação ao cuidar da liberdade de iniciativa

não é suprida pelo exercício interpretativo do STF, que pouco diz de concreto quanto ao seu

conteúdo. Com efeito, a tentativa de definição construída pelos ministros surge a partir

daquilo que entendem que o princípio não é, não transparecendo uma conceituação positiva

desta liberdade.

No mesmo sentido, num balanço comparativo não se identifica, do enraizamento da

regulação pública no Brasil através das políticas de desestatização da década de 1990 até hoje,

um progresso substancial no padrão decisório do STF envolvendo iniciativas governamentais

na economia. Ao contrário, percebe-se uma nítida tendência de confirmação judicial destes

atos, quer disciplinem temas de amplo alcance, como demonstraram os casos discutindo

controle de preços (RE 422941 e ADI 319) e proibição à fabricação e importação de produtos

consumidos em larga escala (ADI 3937 MC e ADPF 101), quer se refiram a questões

pontuais, limitadas a grupos determinados (caso, por exemplo, da meia-entrada e expediente

de farmácias). Logo, apesar de o modelo econômico adotado no país ter caminhado em

direção a uma economia mais aberta e menos sujeita a interferências externas, em boa parte

acompanhando o esvaziamento da soberania e da autonomia dos Estados nacionais causada

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pela globalização130, a tradição intervencionista brasileira não foi inteiramente superada,

sequer no âmbito do Poder Judiciário.

Evidentemente não se está defendendo a eliminação do Estado do mercado, o que

encontra críticas até mesmo entre os mais ardorosos defensores da doutrina liberal. Mas num

contexto fundado na livre iniciativa e na proteção da propriedade privada, o STF, devido à

relevante posição que ocupa no jogo político-democrático, tem um papel importante a

desempenhar para o amadurecimento da economia e rompimento com a ideia de que o Estado

deve participar dela ativamente. O fato de o órgão de cúpula do Judiciário brasileiro consentir

com a maioria dos atos interventivos questionados, não raro ancorado em um discurso raso,

construído sobre a opinião dos ministros a respeito das incumbências atribuídas ao governo na

economia, certamente impulsiona mais intervenção pública, prolongando a concepção de um

Estado onipresente e ativo, e contribuindo para a desconfiança que ainda existe em relação à

iniciativa privada.

Talvez o primeiro passo para superar esta visão e corrigir a disfunção dela decorrente

seja o desenvolvimento de padrões de julgamento claros e adequados para solucionar as

questões envolvendo limites à regulação pública, que permitam extrair regras sobre a

aplicação prática dos princípios do art. 170. Embora o argumento interesse público seja

atualmente o principal instrumento conceitual a embasar a discussão sobre intervenção

econômica no STF, que com base nele exalta o papel intervencionista do Estado e a sua

participação ostensiva no mercado, esta justificativa se destaca por ser demasiadamente frágil.

Na realidade, o que se percebe é que existe uma clara propensão, por parte do

Supremo, a concordar com os atos impugnados nas ações que lá são julgadas, e a ideia de

interesse público surge como um argumento conveniente que pode ser moldado para legitimar

estas medidas. Assim, ainda que os ministros defendam que as medidas governamentais são

as que melhor realizam os anseios da coletividade por atingirem um universo maior de

pessoas, já que a rejeição dos atos interventivos beneficiaria apenas o empreendedor privado,

este raciocínio está escorado menos nas reais preocupações sociais da Corte do que na

predisposição de defenderem os atos governamentais que lá são questionados – até porque a

identificação do efetivo interesse público nem sempre é tão simples quanto o STF quer fazer

parecer.

130 FARIA, José Eduardo. Globalização econômica e reforma constitucional. Revista dos Tribunais, v. 736, fev. 1997, p. 17.

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Nos pedidos de intervenção federal pelo não pagamento de precatórios alimentares,

por exemplo, onde o interesse público primário é identificado com facilidade por envolver

verbas referentes a salários, pensões e aposentadorias, esta mesma lógica é abandonada, com

a ideia de interesse público, que nas discussões sobre regulação econômica tem caráter quase

absoluto; tal lógica é mitigada, cedendo espaço para outra linha de raciocínio, baseada na

ideia de reserva do possível. Com isso, os ministros sistematicamente rejeitam os pedidos de

intervenção, ao argumento de que o inadimplemento destes precatórios se dá por conta de

dificuldades financeiras experimentadas pelas unidades federativas131, não sendo intencional.

Situações como esta levam à seguinte tese: a argumentação que o STF desenvolve a

partir da ideia de interesse público nos julgamentos envolvendo regulação pública é, antes de

tudo, um discurso convenientemente ensaiado para reforçar as ideias que ensejaram os atos

governamentais, com a sua consequente manutenção132.

Assim, esperam-se justamente julgamentos mais criteriosos, que se distanciem de

aproximações puramente teóricas para levar em consideração a repercussão social e

econômica que terão na prática, o que contribuiria para aumentar a qualidade das decisões

judiciais, reforçando, ainda, a legitimidade da Corte.

Por outro lado, a principal conclusão que se extrai das decisões contrárias à

intervenção pública é a antipatia do Supremo à adoção de medidas conjunturais de controle de

preços, algo que tem encontrado solo fértil na América Latina nos últimos anos. Comparando

os dois acórdãos sobre a matéria – ADI 319, tratando do reajuste das mensalidades escolares,

e RE 422941, acerca do tabelamento dos produtos derivados da cana-de-açúcar – constata-se

um nítido avanço na percepção da Corte sobre o tema, sendo correto afirmar, com base nisso,

que este tipo de expediente não agrada o STF. Logo, apesar de o texto da norma

constitucional continuar igual, o alcance e o conteúdo a ela conferidos neste tipo de discussão

são diversos ao que se tinha décadas atrás.

Nessa ordem de ideias, portanto, as concepções iniciais do trabalho não se

confirmaram: sob o enfoque proposto, é inviável dizer que o processo decisório do STF tem

evoluído para consagrar um modelo econômico menos interventivo e mais orientado para a

autorregulação do mercado. Exceto em matéria de controle de preços, onde as mudanças são 131 Nesse sentido, são o IF 5101/RS, rel. Min. Cezar Peluso, DJ 05/09/2012; e também o IF 164/SP, rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 14/11/2003. 132 SUNDFELD, Carlos Ari; DOMINGOS, Liandro. Supremocracia ou administrocracia no novo direito público brasileiro? In. ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; MIGUEL, Luiz Felipe Hadlich; SCHIRATO, Vitor Rhein (coord.). Direito público em evolução: estudos em homenagem à Professora Odete Medauar. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 33-37.

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perceptíveis, a Corte tende a escolher uma plataforma mais estatizante, não obstante a

reengenharia da economia trazida pela reestruturação do Estado que ganhou corpo nos anos

90.

No mesmo sentido, em seus pronunciamentos o STF acentua a importância de alguns

princípios sociais, conferindo-lhes um peso maior do que o atribuído às liberdades

econômicas – ainda que tecnicamente estejam no mesmo nível hierárquico. Por conta disso, a

Corte sistematicamente abona os atos estatais que atenuam a atuação dos agentes privados,

com apenas um pequeno percentual dos acórdãos rechaçando a intervenção pública. Para

tanto, se prende a argumentos bastante genéricos, e que devido à sua abstração podem ser

trabalhados conforme exigem as circunstâncias do caso concreto.

Em última análise, a disposição que faz o STF abraçar os atos praticados pelo

regulador nas mais diversas frentes, hipertrofiando a presença estatal na economia em

detrimento dos agentes privados, leva o tribunal a agir desta forma. E devido a este conjunto

de fatores, é possível afirmar que os critérios utilizados pelo tribunal na resolução dos

problemas concretos que lhe são levados não suprem as demandas de um modelo de Estado

contemporâneo.

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