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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Francisca Mattos CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA FEDERATIVA DO BRASIL A CONSCIÊNCIA DA EXPERIÊNCIA, A EXPERIÊNCIA NA CONSCIÊNCIA MESTRADO EM DIREITO CONSTITUCIONAL SÃO PAULO 2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Francisca Mattos

CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA FEDERATIVA DO BRASIL A CONSCIÊNCIA DA EXPERIÊNCIA, A EXPERIÊNCIA NA CONSCIÊNCIA

MESTRADO EM DIREITO CONSTITUCIONAL

SÃO PAULO

2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Francisca Mattos

CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA FEDERATIVA DO BRASIL A CONSCIÊNCIA DA EXPERIÊNCIA, A EXPERIÊNCIA NA CONSCIÊNCIA

MESTRADO EM DIREITO CONSTITUCIONAL

Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Profª. Drª. Haydée Maria Roveratti.

SÃO PAULO

2008

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Banca Examinadora

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Para Vera Pires e Flávio Mattos;

Para Alexandre Ávila;

Para Patrícia Mattos;

Aos amigos da PUC;

Para Haydée Maria Roveratti

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“Países com leis suíças e realidades

africanas existem às pencas. Países onde as

leis são cumpridas são raros e felizes.”

Revista VEJA, 21/02/2007

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RESUMO

Esta investigação busca efetuar uma leitura do jurídico pela ótica da Sociologia e da

Psicologia Social com a finalidade de compreender os motivos pelos quais a subjetividade do

brasileiro apresenta tantos problemas no trato com a lei e com a adesão espontânea à

normatividade, e como isso se refletiu na história constitucional deste país, ao tempo em que

aponta as esferas que devem se sobrepor em relativa harmonia para que uma Constituição

possua legitimidade.

Palavras-chave: constituição, subjetividade, legitimidade.

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ABSTRACT

This research seeks to make a legal reading through the perspective of Sociology and

Psychology for the purpose of understanding the reasons why Brazilian subjectivity has

several problems in dealing with the law and with spontaneous accession to the norms, and

how this has reflected in the Constitutional History of this country, the time that indicates the

sphere overlap with relative harmony for a Constitution to have legitimacy.

Keywords: constitution, subjectivity, legitimacy

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SUMÁRIO

PARTE I

INTRODUÇÃO......................................................................................................................... 1

CAPÍTULO 1 - EM BUSCA DA CONSTRUÇÃO ADEQUADA DO

PROBLEMA.............................................................................................................................. 9

PARTE II - ASPECTOS SÓCIO-CULTURAIS DA LEGITIMIDADE DA CONSTITUIÇÃO

E DO ORDENAMENTO JURÍDICO

CAPÍTULO 2 - OS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO NO BRASIL E A

LEI............................................................................................................................................18

2.1. Da subjetividade: pessoa, indivíduo e sujeito................................................................... 18

2.2. A subjetividade brasileira...................................................................................................22

2.2.1. Os entes subjetivadores brasileiros.................................................................................22

2.2.2. A analogia familiar: a lei e a função paterna................................................................. 25

2.2.3. Alguns casos ou “às pessoas, tudo, aos (mero) indivíduos, a lei”................................. 29

CAPÍTULO 3 – O MODELO JURÍDICO “FORA DO LUGAR”...........................................34

3.1. Considerações sobre o liberalismo.....................................................................................34

3.1.1. Liberalismo, lei e constituição........................................................................................37

3.1.2. Da importação de modelos e da defasagem....................................................................39

3.1.3. O choque do modelo liberal com a subjetividade brasileira...........................................43

3.1.4. Reflexos no ordenamento jurídico e na Constituição.....................................................47

3.2. Jeitinho, universalidade e igualdade..................................................................................50

PARTE III – ASPECTOS PSÍQUICOS COLETIVOS DA LEGITIMIDADE DA

CONSTITUIÇÃO E DO ORDENAMENTO JURÍDICO

CAPÍTULO 4 - PANORAMA GERAL DOS FUNDAMENTOS E CONCEITOS BÁSICOS

DA PSICOLOGIA ANALÍTICA.............................................................................................56

CAPÍTULO 5 - CARLOS BYINGTON, CIÊNCIA E A PSICOLOGIA SIMBÓLICAS:

DIFERENÇAS E AMPLIAÇÕES CONCEITUAIS................................................................62

CAPÍTULO 6 - DOS CICLOS ARQUETIPICOS...................................................................67

6.1. Ciclo Matriarcal.................................................................................................................69

6.2. Ciclo Patriarcal...................................................................................................................72

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6.3. Ciclo da Alteridade............................................................................................................74

6.4. Ciclo cósmico ou da totalidade..........................................................................................75

CAPÍTULO 7 - DA ESTRUTURAÇÃO SOCIAL DA ALTERIDADE NO BRASIL

...................................................................................................................................................77

7.1. As Constituições brasileiras: tentativas de instauração do ciclo da alteridade no

Brasil.........................................................................................................................................80

PARTE IV – SISTEMATIZAÇÕES

CAPÍTULO 8 – ENFIM, COMO DESCOBRIR (CONSTRUIR) O FUTURO?

..................................................................................................................................................90

8.1. Sintetizando para uma interrupção provisória...................................................................90

8.2. A questão da legitimidade em Weber: ação social, relação social e

dominação...............................................................................................................................100

BIBLIOGRAFIA....................................................................................................................105

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PARTE I

INTRODUÇÃO

A antropóloga Maria de Fátima parou de comprar CDs: "Agora eu compro CD virgem

e gravo o que quero para mim e para minhas amigas. Vivo dando CD de presente." Mas ela

não se sente confortável: "Não me sinto bem. Quando a lei está a seu favor, você se sente

muito melhor. O problema é que a sociedade me facilita a cometer um delito. Isso não é o

ideal. Eu me sinto culpada, sim."

Por sua vez, o engenheiro Fabrício não se sente culpado: "Todos os meus programas

de computador são pirateados. Não sou um criminoso, pago meus impostos todos. Claro que,

se compro uma coisa de contrabando, estou sonegando imposto do país, e isso não é legal.

Mas não faria isso se sentisse um retorno real do imposto que é pago pela sociedade."

Marcelo é produtor de eventos e DJ. Todos os seus discos e aparelhos eletrônicos são

contrabandeados: "Baixo umas cem músicas por semana e uns 25 filmes. Tenho um

contrabandista de confiança que me dá até um ano de garantia para as coisas que eu compro,

mas, sinceramente, não me acho um fora-da-lei." Colecionador de CDs, desde 2000 não

compra nenhum disco: "O imposto para discos importados e eletrônicos é extremamente caro.

Essa é a minha maneira de ter [acesso a] cultura."

Gustavo é produtor e músico. "Todas as minhas músicas são feitas com samples pelos

quais eu não pago direitos autorais. E, se quiserem “samplear” coisas minhas, acho ótimo.

Fico honrado ao saber que uma pessoa disponibiliza espaço do seu hardware para guardar

uma música minha." Gustavo tem um "vendedor particular de DVDs piratas": "É como a

pessoa que compra uma bolsa Louis Vuitton falsificada. Acho revolucionário." Perguntado se

se considera criminoso, Marcelo responde: "claro que não. Sou uma pessoa extremamente

séria e ética. Só sou contra a lei do jeito que ela está".

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Esses depoimentos são reais, a despeito dos nomes fictícios. Foram coletados no jornal

Folha de São Paulo do dia 22.05.20051 sob o título “Sou contra a lei do jeito que está”,

integrante de uma reportagem mais ampla, intitulada “O dia em que o Fulano virou

criminoso”.

Muito antes de serem simplesmente representativos da imensa proporção a que chegou

a pirataria no Brasil, estas quatro falas são indicadores da relação particular que o brasileiro

estabelece com a lei e com as questões de obediência e autoridade. A primeira ressalta: “o

problema é que a sociedade me facilita a cometer um delito”. O segundo afirma: “não sou um

criminoso, pago meus impostos todos”, ao tempo em que, ao confessar ser comprador

mercadorias contrabandeadas, admite sonegá-los, justificando: “não faria isso se sentisse um

retorno real do imposto que é pago pela sociedade". O terceiro se utiliza da figura de um

“contrabandista de confiança”, que oferece garantia dos produtos vendidos. Não se considera

um fora da lei: esta é sua forma de ter acesso à cultura. O quarto ressalta o caráter

revolucionário da pirataria. Considera-se sério e ético, e apenas é “contra a lei do jeito que ela

está”.

Estas quatro práticas apresentadas, como se sabe, não são exceções. Podemos

encontrá-las, inclusive, dentro de nós mesmos em diversos níveis. Viver no Brasil é estar

quotidianamente em contato com elas, quer seja pessoalmente, quer seja por meio da atuação

de terceiros, inseridos que estamos nesse estado de dissociação entre nosso sistema legal e

nossa conduta.

Essa reportagem pode ser interpretada de diversas formas, a depender da ótica

assumida pelo intérprete. Juridicamente, o tributarista provavelmente destacaria a questão da

sonegação de impostos; o penalista colocaria em relevo o crime de receptação, o

constitucionalista – com olhar publicista - salientaria o descumprimento do preceito

1 “Não concordo com a lei do jeito que ela está”. Folha de São Paulo. São Paulo, 22 de maio de 2005. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2205200522.htm>. Acesso em 20 de set. de 2006.

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constitucional que assegura o direito autoral e a propriedade intelectual; o civilista faria o

mesmo, dentro de uma visão privatista. Todavia esta abordagem dogmática não apreenderia,

tendo em vista compreender, o alcance dos efeitos da relação que nós - como brasileiros que

somos - travamos com o universo jurídico-normativo, bem como a natureza e a peculiaridade

dessa relação.

Esta é a intencionalidade do projeto proposto: substituir a “racionalidade tecnoformal”

por um “modelo crítico-interdisciplinar da racionalidade emancipatória” que poderia conciliar

a racionalidade técnico-instrumental com um fundamento ético-político2.

Assim, esta pesquisa procura seu fundamento, essencialmente, no pensamento jurídico

crítico , a partir de onde construiu, tendo em vista os fins que a pesquisa pretende colimar,

uma estratégia interdisciplinar que extravasa a dogmática jurídica e busca referências na

Teoria Geral da Constituição, da Sociologia, da Antropologia e da Psicologia (Junguiana e

Social), para tratar da problemática jurídica brasileira mais como uma questão de legitimidade

do que de legalidade, no sentido de que falta ao País, “um grau de consenso capaz de

assegurar a obediência sem a necessidade de recorrer ao uso da força”3. Trata-se, enfim, de

uma leitura do jurídico feita com o auxílio da sociologia e pela psicologia.

Na seara da teoria geral do direito, os depoimentos colhidos pela Folha de São Paulo

seriam analisados à luz da questão da eficácia ou ineficácia social das normas, é dizer, da

qualidade da norma que consegue ou não reger de fato a realidade social por ela descrita. No

direito constitucional, estuda-se tal fenômeno dentro da noção de “força normativa da

Constituição” - graças à grande penetração da obra de Konrad Hesse, de mesmo nome - que

busca descobrir se “a Constituição contém, ainda que de forma limitada, uma força própria,

2 WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Cítico, p. 3. 3 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política, p. 675.

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motivadora e ordenadora da vida do estado”4, que consiga fazer frente ao poder dar relações

fáticas políticas e sociais.

É dizer, consideramos que a problemática da força normativa da Constituição no

Brasil está inserida dentro dessa dissociação entre a norma jurídica e a realidade que permite

aos cidadãos, singularmente considerados, se afirmarem tão frontalmente contrários às leis.

Assim, há que se reconhecer, no Brasil, a mesma dificuldade encontrada por nossa

Carta em impor suas diretrizes. Vivemos num período quase Lassaliano no que se refere à

Constituição brasileira, no qual os fatores reais de poder vêm, sistematicamente, subjugando

as relações jurídicas, forçando os estudiosos a se defrontar com os limites do Direito (em

especial do direito constitucional) como instrumento conformador da sociedade. Parece faltar,

justamente, a “vontade de Constituição”, aludida por Hesse, na consciência coletiva dos

brasileiros - aí incluindo-se, decerto, aqueles que são os principais responsáveis pela ordem

constitucional - de molde que uma lacuna se instala na disposição nacional de orientar a

própria conduta em conformidade com a ordem nela estabelecida.

Assim, busca-se compreender os motivos pelos quais o brasileiro apresenta tantos

problemas no trato com a lei e com a adesão espontânea à normatividade, e como isso se

refletiu na história constitucional deste país, ao tempo em que aponta as esferas que devem se

sobrepor em relativa harmonia para que uma Constituição possua legitimidade.

Para o desenvolvimento da investigação foi organizado estudo do tipo piloto,

consistindo em quatorze questionários que representam uma tentativa de abertura para que

possamos sair de uma discussão teórica e seguir na direção de uma pesquisa empírica,

iluminando o entendimento dos comportamentos apresentados, como forma de esboçar uma

pesquisa sistemática da realidade.

4 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição, p. 11.

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Saliente-se, contudo, que não se trata de uma investigação solucionadora destes

problemas (tem interesses práticos, com certeza), mas, inicialmente, busca compreender por

que o Brasil chegou até aqui, por que tem esses problemas e não outros, por que busca um

dever-ser que não é reflexo do seu ser, com aspirações que não encontram imediata

possibilidade de realização (ou que encontram dificuldades para imediata realização),

originando relevância a intenção de apurar as implicações disto.

A linha diretriz que conduziu esta investigação, que é a de compreender os motivos

que levam os brasileiros a não aderir à normatividade jurídica - em especial à normatividade

constitucional - esteve sempre presente em todos os momentos desta pesquisa. Entretanto, em

alguns momentos da reflexão produzida, pode-se perceber algum distanciamento do foco na

Constituição, fundamentalmente nos capítulos referentes aos aspectos sócio-culturais da

legitimidade (entendimento essencial para a compreensão das questões que estão selecionadas

nesta investigação).

Explica-se: neste ramo do conhecimento, a Constituição não possui a mesma

representação que a seara jurídica oferece. Assim, se a ciência do direito, tradicionalmente,

vislumbra na Constituição uma série de adjetivos, muitas vezes transcendentais5, para as

demais ciências sociais, como também para a psicologia, uma “Constituição” seria

“simplesmente” um conjunto de normas que organizam a relação entre o público e o privado

no âmbito nacional6. Assim, muitas vezes, generalizou-se, nesta investigação, o uso do termo

“lei”, entendida como veículo de uma norma de conduta jurisdicizada, para falar em

Constituição e ordenamento jurídico7.

5 No sentido de “além do ser” (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, p. 970). 6 “A Constituição Nacional é o conjunto de leis que melhor expressa a organização formal do país, sob a perspectiva do público e do privado estabelecida nesse nível” (SOUZA, Meriti de. A experiência da lei e a lei da experiência, p. 21). 7 Na ciência do direito tradicional, Celso Bastos entende a Constituição como sendo “um conjunto de normas legislativas que se distinguem das não-constitucionais em razão de serem produzidas por um processo legislativo mais dificultoso, vale dizer, um processo mais árduo e mais solene (...) Portanto, a Constituição formal não procura apanhar a realidade do comportamento da sociedade, (...) mas leva em conta tão somentea existência de um texto aprovado pela força soberana do Estado e que lhe confere a estrutura e define os direitos fundamentais

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O relativamente longo período de em que se produziram as reflexões agora registradas

na forma em que ficaram apresentadas neste documento e que compreende aproximadamente

dois anos (2006-2008), aproxima alguns trechos do material produzido do formato de ensaio,

também porque os problemas trabalhados não se encontram definitivamente formulados, nem

definitivamente equacionados. Textos foram confeccionados para analisar material produzido

pela imprensa escrita e por outros pesquisadores acerca das diferentes temáticas que cercam

uma investigação multidisciplinar como a que se apresenta. Alguns destes comentários,

contudo, foram parar em notas de rodapé, por questão de clareza e conveniência do texto

principal ao passo que outros transformaram-se em um capítulo a parte8.

Buscou-se, ademais, transformar a independência das partes desta pesquisa na sua

própria fortaleza, de forma que o que orientou a confecção desta foi tanto um método quanto

uma postura, que Karl Mannheim chama de “ensaística-experimental”.9

Ressalte-se, contudo, que a independência a que nos referimos não contradiz o fato de

estarem todas as partes relacionadas a um problema unitário. Apenas quer dizer que possuem

“seu objetivo intelectual próprio”.10 Entende-se que não poderia ser diferente, haja vista estar-

se tratando de universos do conhecimento distintos.

Ademais, não se eliminou as repetições e contradições não foram resolvidas. Segundo

Karl Mannheim, em relação as primeiras, “a mesma idéia, apresentada em diferentes

contextos, se revela, de cada vez, sobre nova luz”, e, no que tange as segundas, “um dado

escorço teórico pode ter muitas vezes, latentes em si, variadas possibilidades, que se deve

dos cidadãos. Esta é uma realidade eminentemente normativa, é um conjunto de normas jurídicas. Por serem normas, não descrevem a real maneira de ser das coisas, mas sim instituem a maneira pela qual as coisas devem ser” (BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional , p. 46). Para Norberto Bobbio, não se pode falar em Direito sem falar em ordenamento, entendido como um complexo de normas coordenadas sistematicamente (BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, p. 21). 8 Ver o capítulo intitulado “Alguns casos ou ‘às pessoas, tudo, aos (mero) indivíduos, a lei’”. 9 MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia, p. 48. 10 Idem, ibidem, p. 48.

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permitir venham à tona, para que se possa apreciar verdadeiramente o alcance da

exposição”.11

É que, no seu entender, operam, ao mesmo tempo e no mesmo pensador várias

concepções que derivam de estilos contraditórios de pensamento e que, se não as notamos,

isto se dá muito pela competência do pesquisador sistemático em escondê-las de si mesmo e

do leitor. Assim, “ao passo que as contradições são para o sistematizador uma fonte de

confusão, o pensador experimental percebe muitas vezes nelas pontos de partida, graças aos

quais o caráter fundamentalmente discordante de nossa situação atual se torna, pela primeira

vez, realmente passível de diagnose e investigação”.12.

Alguns conceitos básicos permearam toda a investigação e o principal deles é,

acredita-se, o conceito de “sujeito”, e, por decorrência, o de subjetividade. Entretanto, ao

invés de adotar uma única teoria que o explica, escolheu-se impregnar o mesmo conceito de

vária teorias, que assume, portanto, conteúdos diferentes no decorrer do trabalho.

É dizer, para a subjetividade, como tratada nos capítulos atinentes aos aspectos sócio-

culturais da legitimidade, só prevalece o aspecto externo da mesma (o que explicitamente se

mostra) ao passo que, quando são tratados os aspectos psíquico-coletivos da legitimidade,

interessa seu aspecto interno, muito embora nestes capítulos exista ainda a referência ao

sujeito epistemológico (que não é, contudo, o objeto central desta investigação).

Assim, a reflexão não reúne, de forma eclética, todas as teorias, mas orienta-se por

leituras diferentes, que são o meio para alcançar a finalidade, que é a de discutir, diante de

determinadas circunstâncias, os problemas do brasileiro no trato com a lei e com a adesão

11 Idem, ibidem. Segundo o autor, “à medida que o método experimental de pensamento se dedica à exploração das possibilidades contidas em idéias germinais, o ponto ilustrado acima se torna manifesto, a saber, que os mesmos ‘fatos’, sob a influência da vontade e de pontos de vista em vias de modificação podem conduzir amiúde a concepções divergentes da situação total. Todavia, enquanto uma ligação entre idéias ainda está em processo de formação, não se devem ocultar as possibilidades que nela haja em estado latente, mas deve-se submete-la, em todas as variações, ao juízo do leitor” (p. 48). 12 Idem, ibidem, p. 48.

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espontânea à normatividade, e como isso se refletiu na história constitucional deste país, por

meio de uma leitura do jurídico efetivada pela Sociologia e pela Psicologia Social.

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CAPITULO I - EM BUSCA DA CONSTRUÇÃO ADEQUADA DO

PROBLEMA

Seria o grau de instrução determinante da atitude do brasileiro diante da lei e da

qualidade de sua adesão à normatividade?

Nos limites da possibilidade material e teórica que circunscreve a autoria destas

reflexões, um estudo empírico-indutivo de tipo pesquisa piloto, com intenções exploratórias,

serviu para apreensões, compreensões, entendimentos e construções preliminares de interesse,

viabilizando propostas de explicações e interpretações interessantes.

A construção do levantamento sistemático da realidade ficou apoiada em crenças pré-

existentes, largamente tratadas na literatura que cuida da descrição dos padrões de

comportamento do brasileiro, especialmente na área da educação, fazendo crença popular a

idéia de que a educação configura as possibilidades de visão de mundo do cidadão, as

possibilidades de vida e de oportunidades.13 Delas fica destacado o corriqueiro entendimento

de que quanto maior o grau de instrução e quanto maior a idade maior a probabilidade de

adesão espontânea à lei.14

13 Evidente que a educação mencionada caracteriza o processo de socialização, interpretado pelo sociólogos como representando o processo de internalização das normas e padrões de comportamento. Como exemplo, as teses de Emile Durkheim que entende ser o “inculcamento” das instituições sociais o processo pelo qual o homem se transforma em ser moral. De outra forma, o entendimento de que a educação presta-se ao controle social, tendo em vista a formação de mentalidades que possam garantir a organização social proposta. 14 Também é crença sociológica (por exemplo, Karl Mannheim), com o auxílio da antropologia clássica (Ralph Linton, entre outros), aquela que entende que os processos de acomodação transformam as mentalidades rebeldes em ajustadas, quanto mais as sociedades disponham de sugestões de formulação de objetivos possíveis e de meios institucionais para a realização dos objetivos escolhidos (Merton). Por esta razão que a juventude apresenta-se descompromissada diante das imposições sociais, enquanto que a maturidade fortalece o comprometimento, diante das responsabilidades que a sociedade impõe sejam assumidas. A menção aos clássicos, em destaque, necessária a citação do processo de formação da consciência, como o faz o materialismo histórico, decorre do fato de ser esta a literatura que estabelece, com acurado apoiado na adesão às idéias de relações causais ou funcionais ou dialéticas, as relações que estamos expondo. A literatura moderna e contemporânea não mais privilegiando as relações de causalidade ou de funcionalidade, fazem adesão às descrições e às intepretações tendo em vista os significados da conduta.

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É preciso salientar que as respostas obtidas junto aos informantes, através do uso do

instrumento escolhido (questionário), foram exploradas quanto ao seu significado, com ensaio

subseqüente na forma de esboço de explicação.

No que se refere ao grau de instrução, optou-se - para fins de tratamento das

informações - por agrupa-los em três categorias (ensino fundamental, ensino médio, e ensino

superior), eliminando a categoria “pos graduação” (que foi absorvida pela variável “ensino

superior”) bem como as subcategorias “completo” e “incompleto”.

Conseqüentemente, partindo-se da tese “quanto maior a escolaridade e quanto maior

for a idade, maior a adesão espontânea à lei”, teríamos que dispor as informações coletadas na

forma de dados, distribuídos na combinação “idade” e “grau de escolaridade”, relacionados

com o indicador de “adesão espontânea à lei”, representado pela resposta à pergunta: “você já

comprou produtos pirateados (CDs, DVDs, relógios, etc)?”. Assim, teríamos:

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1.1) Tabela 1 – Adesão espontânea à lei

Idade e escolaridade

Nunca comprou produtos

“pirateados”

Comprou produtos

“pirateados” apenas uma vez

Comprou produtos

“pirateados” algumas vezes

Comprou produtos

“pirateados” muitas vezes

Até 25 a. c/ ensino fund.

0

0

0

0

Até 25 a. c/ ensino méd.

0 0 14,28% 0

Até 25 a. c/ ensino sup.

7,14% 0 7,14% 0

25-40 a. c/ ensino fund.

0 7,14% 0 0

25-40 a. c/ ensino méd.

0 0 7,14% 0

25-40 a. c/ ensino sup.

21,42% 0 7,14% 0

40-60 a. c/ ensino fund.

0 0 0 0

40-60 a. c/ ensino méd.

0 0 14,28% 7,14%

40-60 a. c/ ensino sup.

0 0 7,14% 0

Total

28,56% 7,14% 57,12% 7,14%

Foram possíveis várias inferências.

A primeira é que, em princípio, nossa tese poderia estar “comprovada”, na medida em

que, isoladamente, declararam nunca ter comprado produto “pirateado” adultos de 40 à 60

anos com curso superior. Entretanto, é preciso que se tenha cautela em afirma-lo, eis que

porque nossa amostra não é significativa, não podemos efetuar a generalização do traço para a

população. Na verdade, o que temos é apenas um teste de adequação do instrumento, razão

pela qual a experiência permite que ainda se mantenha a mesma hipótese para uma

verificação, na qual utilizar-se-á esta estratégia, que se mostrou adequada.

Todavia, a construção hipotética apresentou-se com a qualidade de razoável.

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A segunda é que, parece ser possível adentrar na questão da adesão voluntária à lei,

que consta da questão sobre “pirataria”.

Escolhemos a “pirataria” como referencia não apenas pela atualidade do tema, mas

porque ela se caracteriza como uma ilegalidade das mais “democráticas” no sentido de que

não está adstrita a um único seguimento social.15

Ademais, os argumentos baseados exclusivamente em critérios econômicos - que

ressaltam o fato de que a renda média do brasileiro é muito baixa, por isso o apelo à

“pirataria” - são insuficientes para explicar a disseminação, tolerância e adesão de grande

parte da população aos produtos “pirateados”, chegando ao ponto de causar grave crise no

setor fonográfico brasileiro, causada, especialmente, pela constante queda na venda de CDs.16

Razoável acreditar, igualmente, que soluções como “aumentar a fiscalização”, muito

embora sejam necessárias, são limitadas, devido à já referida tolerância e adesão social que

esta prática ostenta, bem como ao fato de que colocar a solução de um problema desta monta

simplesmente nas mãos de uma fiscalização eficiente acabaria gerando a necessidade, que se

estenderia ad infinitum, de um “órgão fiscalizador para fiscalizar os fiscais”, medida racional

e funcionalmente questionável.

Assim seria porque

“(...) o direito não se aplica, sabemos nós, pela força, a cada momento (...), o direito não teria como se aplicar se na verdade não existisse uma noção totalmente diversa, que é o que funda o direito, que não é a coação, é a coercibilidade, é a possibilidade da coação. Logo ele se aplica geralmente pela convicção das pessoas de que aquelas regras devem ser cumpridas.”17

O que ocorre é que falta, justamente, esta convicção de que tais “regras devem ser

cumpridas”. A investigação a ser empreendida, portanto, deve ter por objetivo identificar e

15 Basta lembrar que o filme “Tropa de Elite”, na sua versão “pirata”, foi parar até em gabinete de ministro (da Cultura, Gilberto Gil), que sugeriu que esta seria uma forma democrática de disseminação da cultura (CARNEIRO, Marcelo. “Recorde de Contrvenção”. Veja. São Paulo, 17 de outubro de 2007. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/171007/p_086.shtml>. Acesso em 31 de out. de 2007) 16 RANGEL, Natália. “Com o pé na estrada”. Istoé. Disponível em <http://www.terra.com.br/istoe/>. Acesso em 02 de nov. de 2007. 17 MELLO, Celso Antonio Bandeira de et al. Poder constituinte, p.76.

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13

entender as variáveis que devem se harmonizar para que ela exista, e quais são os fatores,

dentro do universo de cada variável, que se encontram como que obstando esta convicção.

Ademais, cabe ressaltar que esta “convicção” na seara constitucional é o ponto de

partida para tornar possível a discussão sobre a força normativa das leis e da Constituição

brasileira, bem como a questão de sua legitimidade.

Diante das direções investigativas também fica relevante compreender o que o

brasileiro entende por lei e por Constituição, razão porque duas “perguntas abertas” (pergunta

para livre resposta) foram formuladas: “para você, o que é Lei?” e “para você, o que é

Constituição?”.

As respostas obtidas foram agrupadas conforme a qualidade de seu conteúdo. As que

se referem a Lei permitiram a percepção de três qualidades distintas de resposta e a segunda,

que se referem a Constituição, duas qualidades.

A leitura das respostas foi produzida separadamente em referência a “grau de

escolaridade” e a “idade”.

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14

1.2) Tabela 2 - O que é lei (em função do grau de escolaridade)?

Escolaridade Normas ou regras que

regem a vida das pessoas e/ou

sociedade e/ou país

Um instrumento de proteção do

cidadão

Um mandamento que

o ser humano deve seguir por

imperativo moral

E.Fundamental

0

1 7,14%

0

E. Médio

5 32,71%

1 7,14%

1 7,14%

E. Superior

6 42,85%

0 0

Total 78,57% 14,28% 7,14% 1.3) Tabela 3 - O que é lei (em função da idade)?

Idade Normas ou regras que

regem a vida das pessoas e/ou

sociedade e/ou país

Um instrumento de proteção do

cidadão

Um mandamento que

o ser humano deve seguir por

imperativo moral

Até 25 anos

4

28,48%

0 0

De 25 até 40

4 28,48%

2 14,28%

0

De 40 até 60

3 21,34%

0 1 7,14%

Total 78,57% 14,28% 7,14%

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15

1.4) Tabela 4 – O que é Constituição, conforme o grau de escolaridade

Escolaridade Norma ou regra que rege um país

Instrumento que assegura os

direitos sociais e individuais do

cidadão

E. Fundamental

1 7,69%

0

E. Médio

6 43,16%

0

E. Superior

4 30,76%

2 15,38%

Total 84,61% 15,38%

1.5) Tabela 5 – O que é Constituição, conforme a idade

Idade Norma ou regra que rege um país

Instrumento que assegura os

direitos sociais e individuais do

cidadão Até 25 anos

3

23,07%

1

7,69%

De 25 até 40

5 38,45%

1 7,69%

De 40 até 60

3 23,07%

0

Total 84,61% 15,38%

Primeiramente, a leitura, para analise, das categorias que obtiveram maior percentual

em ambas as perguntas, isto é, aquela que identifica como sendo lei “normas ou regras que

regem a vida das pessoas e/ou sociedade e/ou país” e como sendo Constituição “norma ou

regra que rege um país”.

Nessa esfera, assim aparenta, as leis estão mais próximas dos indivíduos - estando

associadas a palavras como “sociedade”, “população”, - ao passo que a Constituição está mais

associada com “país”, sendo que, por “país”, não se vislumbra, nas respostas oferecidas,

nenhuma idéia de coletividade, mas sim de afastamento do dia a dia dos indivíduos.

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16

Razoável concluir, diante dos resultados apresentados, que a noção de Hesse na forma

de “Constituição como ordem jurídica fundamental de uma comunidade” parece não ser a

referência dos informantes. Para o homem comum, o reflexo de sua vivência jurisdicizada

estaria mais próximo do Código Civil do que da Constituição, o que corroboraria o

entendimento de Maria Helena Diniz, segundo a qual, para conhecer a experiência jurídica de

um país, devemos estudar seu Código Civil.18

Só não se chegou ao ponto de afirmar que, perante o cidadão, a Constituição aparenta

estar esvaziada de conteúdos significativos, tendo em vista a percentagem que afirma que a

mesma se trata de um instrumento assegurador dos direitos sociais e individuais. Entretanto,

considerada a reduzida porcentagem de respondentes (15,38%) é possível questionar o (baixo)

nível de conhecimento da Constituição Federal vigente.

Afirmou-se que a lei tem “função de proteger o cidadão”. Aceito o entendimento de

que a proteção é referida ao arbítrio do estado, parece ser uma visão liberal da lei, que,

primordialmente representou significativo avanço na garantia dos direitos individuais do

cidadão contra o arbítrio do soberano, daí originado seu caráter de impessoalidade e de

generalidade.

Entretanto, frise-se que, se desde a revolução francesa a lei encontrou seu lugar dentro

do rol das fontes primordiais do direito, deve-se reconhecer que o papel atribuído e

reconhecido às leis mudou, devido a uma “crise de hipolegalidade”, causada principalmente

por sua desobediência generalizada; por sua não aplicação ou aplicação seletiva pelos órgãos

oficiais; e pela ineficiência de sua aplicação coercitiva entre os particulares.19

18 É ainda bem recente, inclusive nos ambientes acadêmicos, a relevância jurídico-política do repertório de direito constitucional (não seria incorreto afirmar que o direito constitucional, nas forma de questões constitucionais, tem sido, historicamente, pertinente à Teoria Geral do Estado, embora o seu saber e a sua qualidade cognitiva já dispusessem de autonomia epistemológica. De outra forma, embora detendo especificidade teórico-metodológica, o direito constitucional mais dizia respeito à política do que ao direito). 19 TAVARES, André Ramos. Teoria da justiça constitucional, p. 30-48.

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17

A ênfase legalista encontrou outro golpe com o advento do que se convencionou

chamar de “Welfare State”, que exigia do poder público atuação em áreas antes imunes à

interferência estatal, originando normas que se projetavam para o futuro. A lei deixou de

apenas regular inter-subjetividades comportamentais, passando a ser um instrumento de

governo. O melhor local encontrado para acomodar estes instrumentos foi a Constituição, de

forma que atualmente, ao menos no plano teórico, a função de “proteger o cidadão” estaria

mais próxima da Constituição com suas garantias constitucionais do que da lei ordinária.

Quando se afirma que leis são “um mandamento que o ser humano deve seguir por

imperativo moral”, o direito fica submetido à moral. Tal se assemelha a uma visão

jusnaturalista do direito, que tem como um dos princípios “o bem deve ser feito”.20 Segundo

Maria Helena Diniz, “para a concepção aristotélico-tomista, o direito natural abrange todas as

normas de moralidade, inclusive as normas jurídico-positivas, enquanto aceitáveis ou

toleráveis pela moral”.21

20 DINIZ. Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito, p. 37. 21 Idem, ibidem, p. 37.

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PARTE II. ASPECTOS SÓCIO-CULTURAIS DA LEGITIMIDADE DO

ORDENAMENTO JURÍDICO E DA CONSTITUIÇÃO

CAPÍTULO 2 - OS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO NO BRASIL E A LEI

2.1. Da subjetividade: pessoa, indivíduo e sujeito.

Primeiramente, faz-se necessário ter em mente que nossa existência, enquanto seres

nascidos e/ou criados neste país calca-se numa noção de “ser brasileiro” que, nos termos de

Mériti de Souza, “marca a nossa constituição subjetiva, contribuindo para a construção de um

modelo de existir e de traçar determinada trajetória”.22

Entendemos, então, por subjetividade, “as diferentes formas através das quais o sujeito

pensa, sente, deseja e representa a si mesmo e ao mundo que o cerca”,23 que não são nem

universais nem apriorísticas, mas sim uma construção ligada às conjunturas históricas e

sociais de um espaço e de um tempo. Nesse sentido é que podemos falar em “modos de

subjetivação”, que são as formas de fazer-se das diferentes sociedades em diferentes tempos.

Se podemos falar em modos de subjetivação como sendo as formas de fazer-se das

diferentes sociedades em diferentes tempos, devemos atentar para o fato de que a noção de

qual ente atua neste fazer-se não é uma constante, sendo que, no caso das sociedades

modernas24 ocidentais, Luis Cláudio Figueiredo aponta as idéias de “pessoa”, “sujeito”,

“indivíduo”, e dentro desta última, a de “mero indivíduo”.25

22 SOUZA, M., ob. cit., p. 13. 23 Idem, ibidem, p. 1l8. Nessa mesma direção, vejamos o entendimento de Roberto DaMatta, para quem nossa subjetividade “define um estilo, um modo de ser, um ‘jeito’ de existir” que muito embora esteja calcado na noção universal de “condição humana” - que determina “que todos os homens devem comer, dormir, trabalhar, reproduzir-se e rezar” - ela não especifica “que comida ingerir, de que modo produzir, com que mulher (ou homem) acasalar-se e para quantos deuses ou espíritos rezar”. Segundo o autor em comento, “é precisamente aqui, nessa espécie de zona indeterminada, mas necessária, que nascem as diferenças e, nelas, os estilos, os modos de ser e estar, os ‘jeitos’ de cada qual”. DAMATTA, Roberto. O que faz do brasil, Brasil?, p. 15. 24 De acordo com Abbagnano, modernidade “indica o período da história ocidental que começa depois do Renascimento, a partir do séc. XVII. Do período moderno costuma-se distinguir frequentemente o ‘contemporâneo’, que compreende os últimos decênios” (ABBAGNANO, N., ob. cit., p. 679). Nada nos leva a

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19

Entretanto, para que possamos compreender estas noções, é preciso ressaltar que, a

depender do viés pelo qual se analise a Idade Moderna26, pode-se dizer que a modernidade

calca-se ou no sujeito - entendido como “fundamento autofundante de um mundo convertido

em puro objeto de conhecimento e controle”27 - ou no indivíduo.

Contudo, é preciso que tenhamos em mente que, se estivermos falando de uma

sociedade holista, indivíduo é mera unidade empírica de falas e ações, sendo socialmente

determinado e detentor uma identidade posicional (é dizer, relativa à posição que o mesmo

ocupa no quadro social), ao passo que numa sociedade individualista, “além de unidades

empíricas, os indivíduos são representados como elementos a-sociais, independentes e

autônomos (...) que são tomados como valor a ser realizado nas e pelas práticas sociais, o que

implica no estabelecimento de normas e ideais individualistas, cujo paradigma está

explicitado no ideário liberal dos séculos XVIII e XIX”28.

crer, contudo, que Luis Cláudio Figueiredo faça essa distinção entre modernidade e contemporaneidade. O autor afirma que designa por Idade Moderna “o período que se abre ao final do renascimento (mais particularmente no século XIV), que se instala no século XVII e entra em crise acentuada desde o final do século XIX” (FIGUEIREDO, L. C. Modos de subjetivação do Brasil e outros escritos, p. 134). 25 FIGUEIREDO, L. C. ob. cit., p. 26. 26 Para chegar nessa noções, o autor utiliza duas interpretações da Idade Moderna, quais sejam, a de L. Dumont, para o qual “a caracterização básica da modernidade se dá nos termos de uma oposição entre holismo e individualismo e pela dominância moderna do indivíduo como valor”, bem como a interpretação de filósofos tais como Heidegger, Taylor e Toulmin, que caracterizam a Idade Moderna pela “Constituição de uma posição excepcional para o sujeito”. Nesse sentido, vejamos Louis Dumont: “(...)” quando falamos de “indivíduo”, designamos duas coisas ao mesmo tempo: um objeto fora de nós e um valor. A comparação obriga-nos a distinguir analiticamente esses dois aspectos: de um lado, o sujeito empírico que fala, pensa e quer, ou seja, a amostra individual da espécie humana, tal como a encontramos em todas as sociedades; do outro, o ser moral independente, autônomo e, por conseguinte, essencialmente não-social, portador dos nossos valores supremos, e que se encontra em primeiro lugar na ideologia moderna do homem e da sociedade. Deste ponto de vista, existem duas espécies de sociedades. Quando o indivíduo possui o valor supremo, falo de individualismo; no caso oposto, em que o valor se encontra na sociedade como um todo, falo de holismo” (DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna, p. 37). 27 FIGUEIREDO, L. C., ob. cit., p, 26. 28 Idem, ibidem, p. 27-28. Ressalte-se que o autor em comento salienta logo em seguida que “a predominância de uma dessas formas de sociabilidade em uma dada sociedade não exclui a presença da forma alternativa”, o que significa dizer que nas sociedades chamadas holistas podem existir “algumas brechas institucionalizadas permitindo, dentro de certos limites, individuações mais pronunciadas” e que “a existência de indivíduos numa sociedade individualista não é jamais efetivamente a-social. A crença em indivíduos preexistindo à sua inserção e desenvolvimento em enquadres sociais determinados é uma das ilusões em oposição às quais a sociologia veio a se constituir no século XIX. Nesta medida, o individualismo é mais uma ‘ideologia’ do que uma ‘realidade’” (p.28-29). Ademais, saliente-se ainda que uma boa forma de compreender as sociedades holistas e individualistas é ter em mente que, na primeira, o todo prevalece sobre as partes, e na segunda, as partes prevalecem sobre o todo (DAMATTA, Roberto. A casa e a rua, p. 73).

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20

Nesta seara (individualista), Luis Cláudio Figueiredo, baseado em Louis Dumont,

propõe uma distinção entre independência e autonomia que nos interessa sobremaneira.29

A primeira seria entendida como “a ausência de vínculos, obrigações pessoais e

lealdades que abre o espaço para escolhas e projetos individualizados, para trajetórias e

destinos idiossincráticos e não previamente determinados pela posição do indivíduo no

quadro coletivo e hierárquico”30, sendo que sua expressão moderna foi consolidada pela

reivindicação de uma esfera livre da interferência do controle social, conhecida pelo nome de

“privacidade”, identificada como “liberdade negativa”, é dizer, a “liberdade como não

interferência”.

Coisa diferente, no entender do autor, seria a autonomia. Muito embora considere a

conquista da “liberdade como não interferência” como condição necessária para atingi-la,

Luis Cláudio Figueiredo acredita que esta seja “a capacidade de gerar leis e viver sob o

império das leis por si mesmo consagradas (...) sejam estas leis as leis positivas que regulam

sua vida pública e a de todos os demais indivíduos, sejam as leis auto-impostas à sua

existência livre e privada”.31, identificada como “liberdade positiva”.

29 Segundo Pedro Fernando Bendassolli, já se fala em neo-individualismo, calcado na diferenciação entre “indivíduo conquistador” (aquele que assume riscos e aventuras, sempre voltado para a performance, não se sentindo obrigado a seguir certas regras ou restrições a priori, não se prendendo ao passado ou a qualquer senso de pertencimento grupal ou familiar, tendo como crença fundamental o governo de si) e “indivíduo incerto” (um “indivíduo sofrente, sobrecarregado e vulnerabilizado pelo montante de tarefas que tem que assimilar de modo privado, incapaz de agir num contexto aberto a infinitas formas de construções subjetivas possíveis). Essa diferenciação decorreria “da falência progressiva da capacidade política do estado em fornecer modelos legítimos de ação e referência sociais aos indivíduos”, acarretando uma modificação nas regras de sociabilidade, que “não mais se articulam em torno de noções como obediência, disciplina, ou conformidade à moral”. Esse contexto “torna comum a idéia de que o indivíduo tem, diante de si, a tarefa de tudo escolher e tudo decidir”. Essa forma de subjetivação pressupõe mudanças na relação com a sensibilidade igualitária, especialmente no que respeita a várias mudanças na perspectiva do laço social, “que deixa de ser referenciado com respeito qualquer lei ‘externa’ ou universal, seja ela divina ou não”. BENDASSOLLI, Pedro Fernando. Público, privado e o indivíduo no novo capitalismo. In: Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, p. 206-9. 30 FIGUEIREDO, L. C., ob. cit., p. 30. 31 Idem, ibidem, p. 30.

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Poderíamos, então, falar em um indivíduo independente, que seria aquele detentor de

liberdade negativa. Quando esse indivíduo ascender à condição de indivíduo autônomo, ele

adquire a possibilidade de realizar sua liberdade positiva e conquista o status de sujeito32.

Segundo o entendimento do autor, ao elevar-se a esta condição, o indivíduo “atingiria

um nível de regularidade, uniformidade e unidade que reduz ou mesmo elimina todas as

diferenças qualitativas que definem as pessoas e toda mera multiplicidade de indivíduos”.33

Ao sujeito caberia tornar o mundo da modernidade habitável, controlável e previsível, o que

implica numa total autonomia, em assenhorar-se plenamente da própria vontade, dominando-

a. No dizer do autor, “será apenas um eu interior bem consolidado que poderá exercer nas

esferas públicas suas prerrogativas de sujeito”.34

Pessoas, por sua vez, são uma modalidade pré-moderna de subjetivação, cuja

existência calca-se num contexto relacional, no pertencimento a uma coletividade.

Personalizar-se implica em receber uma espécie de “máscara” social que tem por finalidade

converter-nos em algo socialmente significativo, nos integrando numa ordem de familiares,

vizinhos e compadres que fazem valer a troca de favores.35 É dizer, trata-se de uma forma de

subjetivação fundada na reciprocidade interpessoal de forma que “aqui, inexiste a noção da

sociedade como societas, isto é, um grupo de personalidades individuais que de modo

voluntário (por um contrato) se juntam para formar um grupo por meio de leis fixas e iguais

para todos. O que existe de modo imediato é um segmento social que estabelece as

prerrogativas de cada unidade (...)”,36 como acontece explicitamente num sistema de castas.

Ser pessoa significa estar vinculado a elementos tradicionais (casa, família, relações pessoais),

32 Idem, ibidem, p. 30. 33 Idem, ibidem, p. 36-37. 34 Idem, ibidem, p. 33. 35 DAMATTA, R. Carnavais, malandros e heróis, p. 223. 36 Idem, ibidem, p. 224.

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de forma que uma ligação com a coletividade (por exemplo, o Estado) é sempre intermediada

pelas relações de amizade, apadrinhamento e filiação.37

Finalmente, temos que os “meros indivíduos” são aqueles pertencentes à sociedades

individualistas que gozam de precária independência de vínculos e obrigações, sendo

reduzidos à condição de objeto e submetidos a formas autoritárias de controle que pode se

consubstanciar, por exemplo, numa “lei impessoal que os transcende, que deles não emanou,

na qual não se reconhecem e se concretiza apenas na presença de uma autoridade (...)”,

estando abertas a eles as possibilidades de personalização e assujeitamento, sendo que o

último pressupõe o primeiro.

Nesse momento, podemos trazer essa discussão para o contexto brasileiro, sendo

imperativo ressaltar que as considerações declinadas alhures referem-se ao panorama

ocidental moderno do qual o Brasil faz parte, mas que, “no contexto da cultura ocidental,

ocupa uma posição excêntrica e peculiar”.38

2.2. A subjetividade brasileira

2.2.1. Os entes subjetivadores brasileiros

A dificuldade em encaixar o Brasil nesses esquemas gerais é ressaltada por diversos

autores que apontam as dualidades e contrastes da experiência brasileira. Uma das principais

interpretações dessas características é o livro “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de

Holanda, que conforme bem assevera Antonio Candido, “é construído sobre uma admirável

37 Lembremos, mais uma vez, DaMatta, para quem “quem você conhece versus quem eu conheço é o dado fundamental no cálculo social brasileiro” (DAMATTA, Roberto. A casa e a rua, p. 97). 38 FIGUEIREDO, L. C., ob. cit., p. 11.

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23

metodologia dos contrários”,39 de polaridades como “trabalho e aventura”, “rural e urbano”,

“burocracia e caudilhismo”, “norma impessoal e impulso afetivo”. Outros autores construíram

suas próprias polaridades, como Roberto DaMatta, que refere-se à “casa” e a “rua” como

espaços sociais cada qual dotado de características e subjetividades específicas.40

É dizer, de acordo com DaMatta, na “casa” seriamos pessoas, possuiríamos “uma

espécie de supercidadania”, sendo reconhecidos nos nossos mais ínfimos desejos e vontades,

membros perpétuos de uma corporação chamada “família brasileira”, que “tem muito mais

vitalidade e permanência do que o governo e a administração pública, que sempre competem

com ela pelo respeito do cidadão”.41 A “rua” seria o território do indivíduo, mas de um

indivíduo anônimo, desprotegido em face das autoridades, que governam ao lado da lei

impessoal, que coisificam os indivíduos a elas submetidos e retira-lhes o nome (o “elemento”

do jargão policial), predominando a desconfiança e a insegurança.42 Na “rua”, seríamos

“subcidadãos”.43

39 CANDIDO, Antonio. O significado de Raízes do Brasil. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil, p. 239. Paulo Eduardo Arantes salienta que “a dialética também inspira a tipologia de pares antitéticos responsável pelo clima peculiar de Raízes do Brasil” (ARANTES, Paulo Eduardo. Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira, p. 9). 40 Não tomemos, contudo, estes termos como sendo os espaços geográficos que os mesmos denotam. A “casa” e a “rua”, no entender do autor, são formas que nos utilizamos para ler, explicar e falar do mundo, como dimensões da vida social, como dois lados da mesma moeda (DAMATTA, R. A casa e a rua, p. 15). Assim, ressalta o autor que essas categorias só se definem por contraste, de modo que, por exemplo, “o espaço da casa pode aumentar ou diminuir, de acordo com a outra unidade que surge como foco de oposição ou de contraste” (idem, ibidem, p. 16). 41 DAMATTA, R. O que faz do brasil, Brasil?, p. 28. 42 Segundo o autor “todos sabemos, por experiência respeitável e profunda, que na rua não se deve brincar com quem representa a ordem, pois naquele espaço se corre o grave risco de ser confundido com quem é ‘ninguém’. E entre ser alguém e ser ninguém há um mundo no caso brasileiro” (idem, ibidem, p. 30-31). Saliente-se, contudo, a ressalva de Luis Cláudio Figueiredo segundo o qual a noção de “casa” e “rua” não deve ser considerada equivalente à de público e privado, que obedece a uma lógica moderna e individualista. Muito embora grande parte das atividades da “casa” ocorram em espaço privado e grande parte das atividades relativas à “rua” em espaço público, “casa” e “rua” não se relacionam dentro da mesmo lógica, como corre com o “público” e o “privado”. É dizer: “Em especial, nada existe aqui que corresponda à subordinação funcional da privacidade às esferas públicas regidas pela ética e pelo império das leis impessoais. Assim sendo, quando, por exemplo, no Brasil, a casa se projeta para a rua, no momento, digamos, em que um pistolão familiar obtém um emprego público ou uma sinecura estatal - o famoso cartório - não estaria havendo uma ‘confusão entre o público e o privado’, tal como pode efetivamente ocorrer numa sociedade integralmente moderna, pois a apropriação do estado pelas oligarquias - as famílias e seus compadres, clientes e agregados - faz parte legítima da atividade pública e ‘política’ da casa” (FIGUEIREDO, L. C., op. cit., p. 43-44). 43 DAMATTA, R. A casa e a rua, p. 21. É como se tivéssemos duas cidadanias baseadas em códigos complementares: o código da rua estaria calcado na pessoa, e o código da rua nas leis impessoais (p. 21). Isso não significa, contudo - por mais que sejamos os “mestres das transições equilibradas e da conciliação” (p. 22) –

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Qualquer uma dessas duas esferas espera que tomemos atitudes condizentes com suas

características específicas, e não que adotemos uma conduta única.44 É dizer, se, por exemplo,

normalmente não se aceita que se jogue lixo no chão da “casa”, na “rua” essa mesma atitude

ainda é vista com bastante naturalidade (muito embora deva ficar claro que não se está, aqui,

defendendo ou corroborando esta conduta, apenas apontando o que de fato ocorre).

No entender de Luís Cláudio Figueiredo, o que DaMatta nos revela é a face de um país

“cindido e oscilante entre um modo de subjetivação tradicional, holístico e hierárquico,

familiar e clientelístico, gerador de pessoas, e um modo de subjetivação moderno e urbano,

igualitário e impessoal, gerador de (meros) indivíduos”.45 Isso por que, muito embora

DaMatta não empregue o termo “mero indivíduo” (apenas “indivíduo”), Luís Cláudio

Figueiredo ressalta que nossa realidade social não é a do contexto individualista, é dizer, não é

uma realidade constituída por indivíduos submetidos à impessoalidade da lei.46

Para os fins do presente capítulo, acolhemos este posicionamento, na medida em que

acreditamos que no Brasil predominam, como entes subjetivadores, não apenas as “pessoas”,

mas igualmente os “meros indivíduos”. Entretanto, ressalvamos que - muito embora tenhamos

ciência de que estão abertas aos últimos as possibilidades de personalização e assujeitamento

(sendo que o último pressupõe o primeiro)47 - acreditamos que, no Brasil, como a ênfase da

sociedade é colocada muito mais nas relações que se estabelecem entre as pessoas,48 a força

da personalização é tamanha que dificilmente se avança em direção ao assujeitamento.

que seja fácil articular essas éticas. Aliás, cumpre ressaltar que se na casa somos “supercidadãos” e na rua somos “subcidadãos”, não somos “apenas” cidadãos em lugar nenhum. Entretanto, este é um assunto que será tratado no decorrer desta pesquisa. 44 DAMATTA, R. A casa e a rua, p. 52. 45 FIGUEIREDO, L. C., ob. cit., p. 43. 46 Idem, ibidem, p. 44. 47 Vide item 2.1. 48 BARBOSA, Lívia. O jeitinho brasileiro, p. 54.

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2.2.2. A analogia familiar: a lei e a função paterna

Outros autores buscam compreender esta problemática fazendo uso de uma analogia

familiar, que, muito embora não coincida exatamente com o conteúdo do capítulo

subseqüente, já aproxima nossa discussão da psicologia.

Em sua conhecida obra, Contardo Calligaris analisa nosso discurso e reconhece duas

figuras retóricas que se encontram presentes de forma concomitante, independentemente da

história ou da posição social dos brasileiros, quais sejam, o colonizador e o colono.49 O

colonizador, no seu dizer,

“é aquele que veio impor sua língua a uma nova terra, ou seja, ao mesmo tempo demonstrar a potência paterna (a língua do pai saberá fazer gozar um outro corpo do que o corpo materno) e exercê-la longe do pai. Pois talvez o pai interdite só o corpo da mãe pátria, e aqui, longe dele, a sua potência herdada e exportada abra-me o acesso a um corpo que ele não proibiu.”50

É um explorador, não apenas no sentido de ser o primeiro a conhecer uma terra, mas

também no sentido de lhe subtrair recursos. A tristeza do colonizador é que o corpo que ele

deteve nas mãos não é aquele que ele desejara, qual seja, o corpo interditado da mãe pátria

portuguesa, mas sim o Brasil, que a despeito de toda exploração e de todo gozo que lhe

proporcionou, se prestava como mera lembrança daquele outro corpo que teve de deixar pra

trás, justamente o que de fato lhe interessava.51

Por sua vez, o colono

“é quem, vindo para o Brasil, viajou para outra língua, abandonando a sua língua materna. Isso evidentemente vale também para os portugueses. Não tanto por razões históricas (ou seja, por ondas de imigração sucessivas nas quais portugueses já viajaram para o brasileiro como outra língua), mas porque ser colono ou colonizador são antes posições subjetivas. O colono não é

49 CALLIGARIS, Contardo. Hello Brasil!: notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil, p. 16. Nesse sentido, ressalta Octavio Souza, que “isso não significa dizer que os brasileiros se dividam entre colonizadores e colonos, mas que cada brasileiro, na referência à sua nacionalidade, pode falar através dos discursos, díspares mas articulados, do colonizador e do colono”. (SOUZA, Octavio. Fantasia de Brasil: as identificações na busca da identidade nacional, p. 82). 50 CALLIGARIS, C., ob. cit., p. 16-17. 51 Idem, ibidem, p. 17-19.

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um colonizador atrasado que poderia esperar participar da festa do colonizador; a sua esperança é outra; se adere à nova língua, não é para ter acesso a um corpo materno finalmente licencioso. O que o diferencia do colonizador parece ser a procura de um nome. Ele não vem fazer gozar a América, mas, na América, se fazer um nome. Procura aqui, numa outra língua, um novo pai que interdite, certo, e de repente, o reconheça.”52

Assim, ao país, colono e colonizador opuseram pedidos contrários: se o segundo

exigia o gozo além do interdito paterno, o primeiro buscava justamente esse interdito que, ao

limitar o gozo, fizesse dele - o colono - um sujeito. Ocorre que, no entender do autor, “o país

não soube ser pai”, é dizer, falhou em assujeitar o colono, processo que deveria ter-se dado

por meio do interdito requerido, pondo freios ao seu apetite de gozo e, com isso, outorgando-

lhe cidadania.

Desta forma, Calligaris analisa as dificuldades nacionais com a função paterna, que,

no Brasil, se pauta pela exigência de se medi-la em função do que ela traz e permite, o que

entra em conflito com a busca de filiação por parte do colono, eis que a função paterna

normalmente se mede pelo gozo que ela interdita, e não pelo gozo ao qual ela dá acesso.53

A função paterna, ao nos limitar e coibir, nos outorga “uma cidadania, um lugar

simbólico e alguns ideais básicos de referência”. Ao descaracterizá-la, fazemos com que a

mesma se pareça “com uma função mais materna, pois o homem de poder no final das contas

vira vaca leiteira. É à mãe, como se sabe, que cada um não para de pedir até o que ela

visivelmente não tem para dar”. Isso não quer dizer que o país não queira um pai - pelo

52 Idem, ibidem, p. 20. Por oportuno, assinalamos a diferença entre desejo e gozo na psicanálise: o desejo busca o gozo, na medida em que o primeiro é “movimento em direção a um objeto”, e o segundo, “a marca de seu encontro”. Entretanto, “uma vez alcançado, o gozo se revela sempre insuficiente, o que realça o movimento do desejo“ (SOUZA, O., ob. cit., p. 53). 53 CALLIGARIS, C., ob. cit., p. 60-1. Calligaris exemplifica ressaltando que, ao assumir um cargo de comando, simbolicamente, portanto, um dos locais de exercício da função paterna, o indivíduo passa a atuar dentro da dinâmica que rege a mentalidade nacional, adotando uma postura paterna nos nossos termos - é dizer, um cargo se sustentará quanto mais quem o estiver exercendo puder gastar e exibir sua riqueza, dando provas de seu poderio por meio do gozo que ele oferece aos demais – abrindo as portas do clientelismo e da corrupção (p. 62). No caso do clientelismo, o favorecimento da cidade natal e dos familiares - representado pela devolução de riqueza direcionada para estas instancias – temos que é exatamente isso o que se espera do político e do funcionário no poder. Em troca desta prodigalidade, receberão “o reconhecimento da dignidade do seu percurso e do seu cargo” (p. 63) e a fidelidade dos eleitores, que se fundamenta não em razões retributivas, mas sim no fato de que a tentativa de corrompê-los não apenas os favorece, mas, sobretudo os permite “reconhecer no corruptor uma autoridade” (p. 64).

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contrário - estamos sempre em busca de alguém que desempenhe este papel e nos interdite

algo.54

Ocorre que, em comentário a esta obra, Figueiredo, seguido por Meriti de Souza,

acredita que o que foi revelado por Contardo Calligaris trata-se menos da ausência da função

paterna do que “da presença de um padrão de sociabilidade muito distinto do europeu

moderno, padrão no qual o pai comparece de outra forma”.55 É dizer, nossa relação com a

autoridade não seria a de filiação, mas sim a de apadrinhamento e a de clientelismo, o que -

no entender do autor - não assujeita, e sim personaliza.

Entretanto, algumas considerações precisam ser feitas nesse sentido. Primeiramente,

devemos salientar que a figura paterna possui uma função dupla, repressiva e transgressiva, de

guardar os tabus56 familiares no primeiro caso, e de assumir o papel de senhor em técnicas e

de tutor da audácia nos empreendimentos no segundo caso. À função repressiva cabe,

justamente, a internalização da noção de Lei, na medida em que é ela que determina o que é e

o que não é permitido.57 A degradação dessa função nos lança num estado de profunda

arbitrariedade, estado esse que é incompatível com a postura de domínio que se espera que o

sujeito exerça sobre a própria vontade, o que garantiria o exercício público de suas

prerrogativas.

54 Idem, ibidem, p. 80. Nesse sentido lembra o autor que “deste ponto de vista não estranhou ninguém que a popularidade do presidente Collor se mantivesse inalterada depois das medidas do seu plano econômico; ao contrário, o pai que estamos esperando se reconhecerá às privações que saberá finalmente nos impor”. 55 FIGUEIREDO, L. C., ob. cit., p. 91. Nesse mesmo sentido, ver também Meriti de Souza (SOUZA, M. de., ob. cit., p. 73). 56 Sobre os tabus como proibições fortemente morais, bem como sobre o horror ao incesto ver o primeiro capítulo de Freud em “Totem e Tabu”, onde este autor apontando a relação entre o desenvolvimento da civilização e a repressão dos instintos (FREUD, Sigmund. Totem e tabu). Para Lacan, “Freud fornece, quanto ao fundamento da moral, a descoberta, diriam uns, a afirmação, diriam outros, a afirmação da descoberta, creio, de que a lei fundamental, a lei primordial, aquela onde começa a cultura na medida em que se opõe à natureza – pois as duas coisas são perfeitamente individualizadas em Freud no sentido moderno, quero dizer, no sentido em que Lévi-Strauss pode articula-la hoje em dia - que a lei fundamental é a lei do incesto. (...) É na ordem da cultura que a lei se exerce. A lei tem como conseqüência excluir o incesto fundamental, o incesto filho-mãe, que é o que Freud salienta” (LACAN, Jacques. O seminário, livro 7, p. 86-7). 57 BERLINCK, Manoel Tosta. Alexandre e seus irmãos: psicanálise de pixotes?. In: RODRIGUEZ, Sergio Aldo; BERLINCK, Manoel Tosta (orgs.). Psicanálise de sintomas sociais, p. 95-98.

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Assim, se cabe à função paterna o assujeitamento,58 qualquer função que opere

diferentemente disso tem que ser chamada de outra coisa, menos de função paterna. É dizer,

ao personalizar, o pai não comparece de outra forma, ele simplesmente não comparece. Nesse

sentido, retomamos a afirmação já aludida de Calligaris, segundo o qual descaracterizar a

função paterna faz com que ela se assemelhe com uma função mais materna, especialmente se

relembrarmos que sentimento de anomia59 que frequentemente nos domina é justamente

característica de uma etapa matriarcal de estruturação da consciência60, na medida em que

privilegia o prazer, saciedade e conforto em detrimento da relação com a realidade baseada

nos critérios estabelecidos pela cultura.61

Normalmente, o que ocorre é que à licença materna contrapõe-se o interdito paterno62

(e vice-versa), entretanto, o que temos é que no Brasil o interdito está em falta, fazendo com

que a licença passe a constituir-se “ela mesma num pólo auto eferido a partir do qual se

organiza toda uma visão de mundo, um etos próprio a esta sociedade”.63 Assim,

“Existem sempre graus consideráveis de licença que se toma em relação à ‘realidade’, aos outros, e à lei. Aliás, no Brasil pode-se pensar que a lei seria muito mais a exceção à licença que o contrário. Como dizia um velho político mineiro: a lei existe (somente) para os inimigos.”64

Essa situação, ao que parece, nos coloca – no dizer de Octavio Souza - “numa triste

vanguarda do mundo”: se entendermos pós-modernidade como a corrosão do tecido social

58 Para Berlinck, “a lei esclarece os limites do corpo, que, dessa forma, vive essa complexa experiência que alguns chama de Constituição do sujeito” (idem, ibidem, p. 92). 59 SOUZA, O., ob. cit., p. 28. Abbagnano define anomia como o termo que indica “ausência ou deficiência de organização social, e, portanto, de regras que assegurem a uniformidade dos acontecimentos sociais”. (ABBAGNANO, N., ob. cit., p. 62). Para os fins deste trabalho, acolhemos a segunda posição, que denota não ausência, mas sim deficiência. 60 LIMA FILHO, Alberto Pereira. O pai e a psique, p. 244. 61 Idem, ibidem, p. 60. Nesse sentido, basta recordar a expressão de uso corrente no País, segundo a qual “o Brasil só tem mãe, não tem pai”. 62 Lembrando que é a interdição que, inscrita na psique, faz a identificação do Eu com a dimensão paterna. O superego representa a internalização daquilo que é visto como interdição paterna (idem, ibidem, p. 39; 87). Freud afirma: “o superego surge, como sabemos, de uma identificação com o pai tomado como modelo” (FREUD, Sigmund. O ego e o id, p. 67). 63 ARAGÃO, Luiz Tarlei de. Mãe preta, tristeza branca: processo de socialização e distancia social no Brasil. In: Clínica do social: ensaios, p. 31. 64 Idem, ibidem, p. 31.

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pela falta de ideais sociais, podemos dizer que entramos na pós-modernidade sem conhecer as

vantagens da modernidade. Nesse diapasão, afirma o autor que não há “nada mais

característico de uma moral pós moderna, nesse sentido, que a ‘lei de Gérson’, que pauta tão

nefastamente, para muitos, as opções que os brasileiros se vêem compelidos a adotar diante da

anomia de que padece nossa sociedade”.65

2.2.3. Alguns casos ou “às pessoas, tudo, aos (mero) indivíduos, a lei”

Vejamos o seguinte artigo, de autoria de Clóvis Rossi, publicado no jornal Folha de

São Paulo:

“Fui quase a vida toda como 90% (ou mais?) dos motoristas brasileiros. Via no pedestre um estorvo a ser ultrapassado, jamais um ser com direitos até maiores, por estar "desarmado". Só depois de dirigir umas quantas vezes na Europa, comecei a mudar (menos do que deveria, mas mudar, de todo modo). Lá, o rei é o pedestre. E o é menos por coerção legal ou policial e mais por imposição social. Lá, o motorista corre o risco de ser linchado (no mínimo, no mínimo, com um olhar, um palavrão ou um gesto tão eloqüente que dispensa palavras) se desrespeitar o direito de o pedestre cruzar primeiro a rua. Aqui, é o pedestre que corre o risco de ser atropelado se desafiar o motorizado. Depois de dirigir na Europa, pavloviano como sou, passei a aplicar aqui as regras de lá. O resultado é absurdamente surpreendente: cansei de receber mesuras exageradas de agradecimento, sempre que deixava um pedestre cruzar tranqüilamente a rua. Fica claro que o pedestre brasileiro acha que eu estou fazendo um favor a ele, em vez de estar simplesmente respeitando um direito dele. Afinal, a faixa é "de pedestre", não de motorista, certo? Dá a nítida sensação de que a coerção social, aqui, é a inversa: quem pode faz o que bem entende; quem não pode agradece quando o que pode faz o que deveria ser obrigação básica de civilidade. O direito vira concessão. Conto tudo isso porque desconfio que é essa inversão a responsável, ao menos em parte, pela constatação feita na manchete de ontem desta Folha, segundo a qual a distância salarial entre brancos e negros é tanto maior quanto maior o nível de escolarização. Ou seja, a "elite branca e má" (conforme Cláudio Lembo) atropela o "pedestre" até quando ele trafega na sua faixa (de escolaridade). Mais que preconceito, são vícios culturais arraigados”66. (grifamos)

Desconsiderando os comentários referentes à questão da disparidade salarial entre

brancos e negros, tema estranho a esta pesquisa, entendemos que o artigo supra corrobora

nosso argumento referente ao fato da subjetividade brasileira ser formada, essencialmente - e

simbolicamente, no caso - por “pessoas” (os motoristas) e “meros indivíduos” (os pedestres).

65 SOUZA, O., ob. cit., p. 28. 66 ROSSI, Clóvis. “O negro e o pedestre”. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1911200603.htm>. Acesso em 21 de nov. de 2006.

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Na situação apresentada pelo articulista, parece-nos claro a diferença entre uma

sociedade de sujeitos, representada pela Europa, e a formada por “pessoas” e “meros

indivíduos”: no primeiro caso, a coerção social atua de forma tão eficiente que desestimula,

de fato, determinadas práticas, ao passo que no caso do Brasil, ocorre o curioso fenômeno de

se agradecer pelo cumprimento de um direito.67 Nesse sentido, é ilustrativa a afirmação de

Sérgio Buarque de Holanda:

“ (...)toda a nossa conduta ordinária denuncia, com freqüência, um apego singular aos valores da personalidade configurada pelo recinto doméstico. Cada indivíduo, nesse caso, afirma-se ante os seus semelhantes indiferente à lei geral, onde esta lei contrarie suas afinidades emotivas, e atento apenas ao que o distingue dos demais, do resto do mundo. (...) a personalidade individual dificilmente suporta ser comandada por um sistema exigente e disciplinador.”68

Ainda dentro do embate travado entre essas duas formas de subjetivação, tivemos,

recentemente, um caso esclarecedor de como se relacionam os mero indivíduos e as pessoas

no Brasil, e o que acontece quando este relacionamento desanda. Trata-se da história do

caseiro Francenildo Costa, que, na CPI dos Bingos, entrou em confronto com o então ministro

da Fazenda Antônio Palocci.

Resumidamente69: em janeiro de 2006, Palocci houvera deposto na CPI dos Bingos

negando ter frequentado determinado casarão em Brasília, onde se reuniam velhos amigos e

ex-assessores (com a finalidade de tratar de negócios e promover “festinhas”), muitos dos

quais estariam sendo investigados pela citada comissão, suspeitos de envolvimento em

negócios ilícitos e desvio de dinheiro público. Em março do mesmo ano o caseiro desmentiu o

67 Aliás, é sintomático que os pedestres considerem a atitude descrita por Rossi um “favor”, e não um direito, justamente porque esta é uma das formas pelas quais “pessoas” interagem com “meros indivíduos“ (BARBOSA, L., ob. cit., p. XVI, 42). Ademais, ressalte-se que estas considerações não devem ser interpretadas no sentido de se conferir um caráter rígido às posições de “pessoas” e “meros indivíduos”, ao contrário, tais posições, no nosso entender, podem ser tão intercambiáveis quanto as de motorista e pedestre. 68 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil, p. 169. 69 Nesse sentido, ver DUAILIBI, Julia; CABRAL, Otávio. “Está cada vez mais complicado”. Disponível em: < http://veja.abril.com.br/220306/p_066.html>. Acesso em 21 de nov. de 2006, e também DUAILIBI, Julia; CABRAL, Otávio.”O ‘Paloccigate’ e a morte da ética”. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/290306/p_050.html>. Acesso em 21 de nov. de 2006.

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ministro afirmando que o vira na casa diversas vezes. Palocci manteve sua versão em público,

mas, discreta e privativamente, rendeu-se às evidências, espalhando a história de que sua

visita ao casarão se devia a “compromissos particulares”. Nesse ínterim, pelas mãos de um

assessor do então ministro, chegou à imprensa o extrato bancário do caseiro onde se via altas

somas depositadas em sua conta. Nesta clara afronta ao sigilo fiscal, o que se queria era que a

opinião pública desconfiasse que o caseiro estivesse recebendo dinheiro para inventar

mentiras sobre Palocci. Francenildo alegou que o dinheiro houvera sido depositado por seu

pai biológico, que estaria prestes a reconhecê-lo como filho. Ao ser perguntado se tinha

realmente certeza da presença de Palocci na casa, afirmou: “confirmo até morrer”.

Primeiramente, chamamos a atenção para a desconfiança generalizada com que este

tipo de atuação é recebida, a qual poderíamos chamar de “mero indivíduo bancando o

sujeito”. É dizer, ao menos num momento inicial, nos toma de assalto questionamentos como

os que foram postos em palavras por Luis Cláudio Figueiredo, nos seguintes termos: “como e

por que diabo um homem pobre rompia sem mais explicações com as pessoas que o tinham

protegido e apadrinhado – proporcionando-lhe alguns passos no rumo da personalização –

para representar o inseguro papel de cidadão, correndo o risco de ser esmagado como mero

indivíduo?”.70

Em segundo lugar, é muito interessante observar a afirmação o então ministro que,

muito embora tenha sido forçado a admitir ter freqüentado a casa, informa que o fizera por

motivos “particulares”. Ora, independentemente de Palocci estar de fato envolvido no

esquema de corrupção que se encontrava sob investigação ou não, se levarmos ao limite a

noção segundo a qual a “casa”, no sentido oferecido por DaMatta, tem também uma extensão

70 FIGUEIREDO, L. C., ob. cit., p. 58. Ressalte-se que o autor teceu tais comentários fazendo referencia a um caso que, à época, era o que mais caracterizava esta questão, justamente o depoimento do motorista Egberto à CPI do PC. Nesse caso, entretanto, o autor nos faz ver que, ao não querer bancar o sujeito, é dizer, ao não parecer estar “exercendo uma inverossímil cidadania”, Egberto acabou se tornando confiável aos olhos da opinião pública. Suas tiradas e presença de espírito fizeram com que ele fosse visto na condição de “mero indivíduo como se nada aquilo tivesse a ver com ele”, ao que o autor conclui: “bancar o sujeito, isto sim, gera desconfiança”.

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pública e política,71 não há erro: Palocci de fato comparecera nas “reuniões” para tratar de

assuntos “particulares”, já que esta é, na verdade, a forma como a política é exercida no

Brasil.

E, finalmente, no que se refere à afirmação do caseiro, que sustentaria sua história “até

a morte”, bem, “temos que Francenildo morreu”. Não fisicamente, mas pelo menos aquela

parte sua que aspirava à condição de sujeito. Voltou a ser mero indivíduo, e em condições

materiais muito piores do que aquelas que se encontrava antes do seu depoimento. Sua

dificuldade em conseguir emprego, no seu entender, se deve à desconfiança dos demais:

“fizeram parecer que eu falo demais e que fui comprado por um político para falar mal de

outro. Eu só disse a verdade, mas, depois que contei o que sabia para a CPI dos Bingos, patrão

nenhum quis me contratar”.72 Pudera! Ser caseiro é pertencer à “casa”, ao menos em certo

sentido, e dos componentes da “casa” não se espera o rompimento dos laços de unidade e de

corporatividade.73

Outro caso que nos chamou a atenção foi o do delegado de polícia Sindônis Souza da

Cruz,74 que, ao ser atendido numa agência bancária sem ter pego a senha e esperado na fila

como os demais, gerou revolta no aposentado Euvaldo Bezerra Matoso, que também se

encontrava no citado estabelecimento. Após a manifestação do aposentado, o delegado lhe

deu ordem de prisão sob a acusação de “desacato”. Euvaldo foi preso e levado à delegacia,

onde lavrou-se o auto de prisão em flagrante.

Em “Sabe com quem está falando?”,75 Roberto DaMatta nos revela um país

acostumado a se utilizar dessa expressão como forma de operacionalizar a separação radical

71 Nesse sentido, ver nota de rodapé nº 24. 72 Depoimento coletado em entrevista à revista Veja: SCHNEIDER, Andersorn.”Auto-retrato Francenildo Costa”. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/230806/auto_retrato.html>. Acesso em 21 de nov. de 2006. 73 DAMATTA, R. O que faz do brasil, Brasil?, p. 24. 74 “Delegado que furou fila e prendeu quem reclamou terá que pagar R$ 15 mil”. Disponível em: <http://ultimainstancia.uol.com.br/noticia/36421.shtml>. Acesso em 26 de mar. de 2007. 75 DAMATTA, R. Carnavais, malandros e heróis, p. 181.

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de duas posições sociais, no seu entender, indivíduo76 e pessoa. Considerada antipática,

pernóstica e autoritária – a antítese do jeitinho, da cordialidade e da malandragem - é,

contudo, reveladora do nosso formalismo e da nossa tendência hierararquizante, que faz parte

de um mundo onde “cada qual deve saber o seu lugar”.77

O “sabe com quem está falando?” denuncia nossa baixa tolerância à discórdia e à

crises, um traço básico num mundo onde temos que nos mover “obedecendo às engrenagens

de uma hierarquia que deve ser vista como algo natural”, de forma que o conflito será sempre

visto não como sintoma de uma crise no sistema, mas como uma revolta que precisa ser

reprimida, castigando o agente e mantendo o sistema.78

Acreditamos que muito dessa engrenagem foi posta em ação naquela agência bancária,

independentemente do fato da citada expressão ter sido proferida ou se fora omitida. O “sabe

com quem está falando”? é uma daquelas expressões que chama a atenção para uma das

formas de interação uma pessoa e um (mero) indivíduo, cujos papéis, no caso apresentado,

são de uma clareza tal que não é nem preciso indicar quem representa o papel da primeira

nem do segundo.

Então, vejamos: o delegado, uma autoridade pública, dirige-se até uma agencia

bancária para se ocupar de problemas absolutamente comuns e mundanos, e encontra a

agencia cheia. Pegar fila? Nem pensar, já que sua autoridade se estende para todas as

dimensões de sua vida. Ali não se encontrava Sindônis Souza da Cruz, cidadão brasileiro, mas

sim a figura do delegado como autoridade, detentor de privilégios que o alçavam à condição

de pessoa, ainda que num espaço localizado teoricamente fora de suas competências e

atribuições. Nesse sentido, vale a observação de DaMatta, para quem “somos muito mais

76 Que, conforme já nos referimos, chamamos de “mero indivíduo” na analise do caso brasileiro, muito embora DaMatta tenha silenciado sobre essa questão, apenas utilizando os termos “pessoa” e “indivíduo”. 77 Um bom exemplo desse nosso viés hierárquico foi a celeuma em torno da proibição ou não de empregados domésticos, entregadores - populares em geral – utilizar o elevador social. São Paulo “resolveu” a questão bem ao nosso jeito: por meio de uma legislação municipal (Lei nº 11.995/96) que vetou a discriminação. 78 DAMATTA, Carnaval, malandros e heróis, p. 184-5.

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substantivamente dominados pelos papéis que estamos desempenhando do que por uma

identidade geral que nos envia às leis gerais que temos que obedecer, característica dominante

da identidade de cidadão”.79 É muito natural, então, para o delegado, que ele estaria acima

desses incômodos chamados senha e fila.

Ele não contava, entretanto, com a indignação do aposentado - que, provavelmente

utilizando um discurso de igualdade e de primazia dos que já estavam lá antes de sua chegada

(e, portanto individualista-assujeitante) – buscava operacionalizar a quebra da pessoalidade

daquela situação.

Ora, é claro que em nossa sociedade hierárquica, qualquer conflito é tomado como

uma irregularidade séria, que precisa ser sanada. Este universo social precisa se movimentar

“em termos de uma harmonia absoluta”, já que encontra-se fundamentado num pacto

profundo entre fortes e fracos, de forma que qualquer conflito aberto é algo a ser evitado.80

E assim fez o delegado: evitou o conflito submetendo o cidadão à sua autoridade, na

verdade, submetendo até mesmo a lei a sua autoridade, na medida em que não há que se falar

em crime de desacato fora dos limites da função publica do ofendido. Segundo o próprio

delegado, a prisão do aposentado foi provocada unicamente por este, que “infringiu legislação

penal”, utilizando-se de palavras grosseiras e desrespeitando uma “autoridade policial que se

encontrava em exercício de um cargo público”. Ocorre que “em exercício” é diferente de “no

exercício”. Assim, que fique claro que nem ele mesmo afirma que estava no banco no

exercício de suas funções públicas.

79 DAMATTA, Carnaval, malandros e heróis, p. 198. 80 DAMATTA, Carnaval, malandros e heróis, p. 194-5.

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CAPÍTULO 3 - O MODELO JURÍDICO “FORA DO LUGAR”

3.1. Considerações sobre o liberalismo

Originalmente, o Liberalismo se estruturou na luta por um Estado limitado contra o

Estado absoluto, tomando como ponto de partida a reivindicação dos direitos do indivíduo,

podendo se tratar dos direitos naturais inalienáveis e invioláveis, ou dos direitos civis (por

meio de uma Constituição).81

Apesar das dificuldades existentes numa tentativa de definição ampla que tentasse

abarcar toda a complexidade desse movimento,82 pode-se ressaltar, em primeiro lugar, que foi

na chamada “era liberal”83 que tomou-se consciência - ao menos em sua primeira fase84 - da

liberdade individual como sendo o valor supremo da vida, baseando-se, para tanto, na

ideologia segundo a qual o indivíduo é o centro moral do sistema social, transformando a

sociedade em um instrumento voltado para a consecução dos ideais de felicidade individual.85

Ademais, temos que ter em mente que, por individualismo entendemos a defesa

radical do indivíduo em face do Estado e da sociedade, assim como a renúncia à existência de

qualquer intermediação entre o primeiro e o segundo, o que implica em afirmar que “no

mercado político, bem como no mercado econômico, o homem deve agir sozinho”.86

81 BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política, p. 275. 82 Burdeau salienta que o liberalismo é, simultaneamente, uma teoria, uma doutrina, um programa e uma prática, mas antes de tudo, é uma atitude, “uma predisposição do espírito para encarar numa certa perspectiva os problemas postos ao homem pela organização da sociedade”, e está “indefectivelmente ligado à idéia de liberdade”. Segundo ele, ainda, haveria vários tipos de liberalismo, quais sejam, político, econômico, religioso, bem como um liberalismo dos costumes, sendo que “cada um traz a marca do meio que pretende reger. E como essas marcas não são necessariamente coincidentes, há conflitos de liberalismos” (BURDEAU, Georges. O liberalismo, p. 9-10). 83 BOBBIO, N; MATTEUCCI, N; PASQUINO, G. ob. cit., p. 690. 84 ABBAGNANO, N., ob. cit., p. 604. O autor fala em duas fases desse movimento, a primeira (séc. XVIII) caracteriza-se pelo individualismo, a segunda (séc. XIX), pelo estatismo. 85 DAMATTA, R. A casa e a rua, p. 73. 86 BOBBIO, N; MATTEUCCI, N; PASQUINO, G. ob. cit., p. 689.

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Ocorre que nem sempre o liberalismo leva a esta noção de individualismo tal qual

exposta. Em outros contextos, porém, o liberalismo “reivindicou a necessidade de associações

livres (partidos, sindicatos)”87 que mediasse a relação de indivíduo com o Estado. Saliente-se,

ainda, que por mais estreita que seja essa ligação entre individualismo e Liberalismo este

último é apenas uma dentre as soluções políticas originadas pela teoria do individualismo,

mas é a que “se revelou historicamente vitoriosa mediante as várias Declarações dos direitos

do homem e do cidadão, que consagram a liberdade – no plural – de cada cidadão”.88

Isso não significa, contudo, que a liberdade individual é ilimitada ou que ela pode ser

confundida com o arbítrio. Ao Estado cabe essa limitação, desde que opere com base num

princípio de igualdade jurídica que tem como instrumento a norma jurídica geral e

universalmente válida, “um direito que seja a expressão de um querer comum”, de forma que

“(...) a decisão acerca da nocividade, ou não, desta ou daquela liberdade natural, bem como o

conseqüente controle social levado a efeito pelo direito, deve ser uma resposta à opinião

pública e às formas institucionais, mediante as quais a mesma se organiza”.89 É dizer, a defesa

do indivíduo contra o poder da sociedade e do Estado sempre permeou o ideal Liberalista, que

teve como expressão jurídica as Cartas e Declarações de direitos.

Na verdade, a limitação contra os abusos de poder é exigência permanente desse

movimento, podendo se tratar de uma limitação material (ao reconhecer uma esfera de

comportamentos que são, por natureza, livres, e, portanto, localizados fora do alcance do

soberano) ou formal (que coloca o Estado como um todo).90

O liberalismo deu origem a um novo jeito de ser, que é o ser cidadão. Por cidadania,

entende-se uma forma de subjetivação que tem seu fundamento na idéia de indivíduo e na

adoção de regras universais. Para nós, isso quer dizer que implica na conquista, pelo indivíduo

87 Idem, ibidem, p. 689. 88 Idem, ibidem, p. 696. 89 Idem, ibidem, p. 693. Isso faria parte de um conjunto “de atitudes de racionalidade para uniformizar os dados fornecidos pela tradição” (p. 696). 90 BOBBIO, N. Teoria geral da política, p. 276.

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autônomo, de sua liberdade positiva que o transforma em sujeito, conforme já nos referimos

anteriormente.91 Ser cidadão é pertencer a um espaço público e a definir-se nos termos de um

conjunto de direitos e deveres, atuação que contamina toda a conduta do indivíduo. Este é um

papel que, no dizer de Roberto DaMatta, “realiza a proeza sociológica de pretender excluir

todas as complementaridades e gradações que são parte e parcela dos papéis sociais

tradicionais”92 de forma que aprendemos a ser universais ao abandonar os contrastes e

gradações que definem nosso status social.93 Em troca, a cidadania nos outorga “autonomia,

espaço interno, privacidade, liberdade, igualdade e dignidade”.94

3.1.1. Liberalismo, lei e Constituição

O liberalismo deu origem ao culto á lei como expressão da razão (de acordo com os

ideais iluministas) e da vontade do povo (conforme os revolucionários de 1789), numa síntese

a definia como sendo “a razão humana manifestada pela vontade geral”.95

Ocorre que essa convergência de teses não é evidente, de forma que a síntese operada

pelo pensamento liberal se deu baseada no entendimento de que “razão e vontade do povo

constituem para a lei uma fonte única, pois, sob a designação de vontade geral, as exigências

91 Nesse sentido, já nos pronunciamos no item 1.1. Esclarecendo: os autores consultados falam simplesmente em “indivíduo” quando se referem à cidadania. Ocorre que optamos pela diferenciação estabelecida por Luis Cláudio Figueiredo, baseado em L. Dumont, segundo o qual pode-se falar em “indivíduo independente”, “mero indivíduo” e “indivíduo autônomo” e “sujeito”. Nesse sentido, o que estamos chamando de “indivíduo” no presente capítulo, é o “indivíduo autônomo” que conquistou sua liberdade positiva, portanto, sujeito. Assim, pode-se dizer que nesse sentido - e apenas nesse sentido – o presente capítulo trata “indivíduo” e “sujeito” como sinônimos. O motivo pelo qual simplesmente não substituímos um termo pelo outro é o fato de que a palavra “indivíduo” está tão atrelada ás noções de cidadania e de liberalismo que achamos por bem mantê-la, de forma a não descaracterizar o presente estudo. 92 DAMATTA, R. A casa e a rua, p. 74. Frise-se que entendemos “papéis sociais” como “o perfil que o indivíduo assume a medida que cumpre determinadas tarefas ou funções , as quais encontra, na maioria das vezes, dadas e definidas pela sociedade em que vive. Ao cumprir tais tarefas, preenche mais ou menos bem um papel, e a sociedade lhe corresponde de uma maneira ou de outra, dependendo do seu rendimento“ (SILVA, Bededicto (coord). Dicionário de Ciências Sociais, p. 862). 93 DAMATTA, R. A casa e a rua, p. 75. Saliente-se ainda, que por “status social”, entendemos “posição, no que diz respeito à distribuição de prestígio dentro de um sistema social” (SILVA, B, ob. cit., p. 1180). 94 DAMATTA, R. A casa e a rua, p. 75. 95 BURDEAU, G., ob. cit., p. 60.

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populares não fazem mais do que exprimir os imperativos da razão”, e, sendo assim, o papel

do legislador não seria o de criar regras, mas sim o de “descobrir, para as traduzir em

fórmulas jurídicas, aquelas que, em todos os tempos e lugares, governam a natureza

humana”.96

Para Burdeau, ”mal se consegue ver que a lei assim concebida faça parte do universo

dos homens. De qualquer modo, fica imune das suas mediocridades e das suas paixões. A lei

ensina, organiza ou condena, desdenhando conscientemente a resistência dos factos”.97

Ademais, como uma regra só pode brotar da vontade consciente do indivíduo, a ordem

jurídica só poderá derivar da lei (“vontade refletida”) ou do contrato (“concurso de vontades”)

- o que a impede de emergir espontaneamente das práticas sociais coletivas – como se a lei

natural subitamente tivesse encarnado em forma de uma lei positivada, de autoridade

indiscutível.98 No entender de Burdeau:

“(...) na realidade, semelhante posição não se encontra de modo nenhum na linha da filosofia liberal. Os primeiros teóricos do liberalismo nunca pensaram que tal forma de empresa privada, tal tipo estatuto da propriedade, tal tipo de contrato, realizavam abstracta e definitivamente as exigências da liberdade. Nem Bentham, nem Jean-Baptiste Say, nem Stuart Mill, teriam aceitado ligar o destino da liberdade à manutenção duma regulamentação.”99

Temos, ainda, que a generalidade100 da lei seria uma garantia aos cidadãos de que a

regra é a mesma para todos, excluindo privilégios, ao passo que a impessoalidade eliminaria o

receio de que a regra fosse utilizada como forma de perseguir o cidadão com normas

arbitrárias e parciais.101

96 Idem, ibidem, p. 60. 97 Idem, ibidem, p. 60. 98 Idem, ibidem, p. 123-4. 99 Idem, ibidem, p. 124. 100 A generalidade pode ser observada quanto ao campo de aplicação da lei (visão que já apresentamos no texto), bem como quanto ao conteúdo das disposições que estabelece, onde ela “é o complemento da permanência e do carácter abstrato da lei. Se desse aos problemas da vida quotidiana soluções específicas, seria tributária de situações mutáveis e não poderia, consequentemente, beneficiar da duração a que deve uma parte de sua autoridade” (idem, ibidem, p. 63.). 101 Idem, ibidem, p. 63.

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No que se refere à Constituição, temos que sua essência consistiria numa resposta à

desconfiança que este movimento possuía no poder e na autoridade. Limita-los por meio de

uma regra que lhes é superior implica em afirmar que o governante não é proprietário do

poder, mas sim mero agente do mesmo. O liberalismo, assim, vê na Constituição um

instrumento de liberdade, de proteção contra o arbítrio.102

Este movimento jamais atribuiu à Constituição outro sentido que não este – um

instrumento de proteção contra a arbitrariedade governamental - de forma que, os estados que

a acolheram como um programa de reivindicações populares, como os países de terceiro

mundo, o fizeram sob o risco de não cumprir as promessas pela falta de meios para realiza-

las.103

3.1.2. Da importação de modelos e da defasagem

Primeiramente, cabe ressaltar que a importação de modelos estrangeiros é menos uma

questão estritamente jurídica do que uma situação reiterada em nossa história intelectual. A

própria busca de nossa identidade nacional teve como um de seus principais dilemas a questão

da originalidade e da cópia: “como ser diferente dentro de um universo cultural formado pela

importação de cânones estrangeiros?“.104

Ocorre que a busca da identidade nacional brasileira, em especial na literatura, nunca

buscou apenas nos descrever ou nos definir, mas sim “suprir certas carências que impediram

os brasileiros de ocuparem o lugar de agentes da construção de seu próprio destino

102 Idem, ibidem, p. 52. 103 Idem, ibidem, p. 54. 104 SOUZA, O. Ob. cit., p. 15. No dizer de Roberto Schwarz, “desde o século passado existe entre as pessoas educadas do Brasil – o que é uma categoria social, mais do que um elogio – o sentimento de viverem entre instituições e idéias que são copiadas do estrangeiro e não refletem a realidade local” (SCHWARZ, Roberto. Cultura e política, p. 123). Segundo Luís Cláudio Figueiredo, “a adesão a modelos e, conforme se sabe, um ingrediente universal dos processos de Constituição de identidade. Há casos, contudo, em que esta adesão se converte em imitação preciosística, em cópia estilizada, excessiva e empolada de um modelo sumamente idealizado” (FIGUEIREDO, Luis Cláudio. A invenção do psicólogo, p. 44).

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nacional”,105 reduzindo nossa posição de dependência cultural externa. Assim é que, esta

empreitada, “preocupada em mostrar e retratar aquilo em que o Brasil seria diferente” acaba

colocando de lado “o que no Brasil se apresenta como diferença”.106

Ocorre que, se falar em identidade implica numa idéia de unidade e estabilidade,107

como pretender fundá-la com base na diferença, que tem justamente o poder “de introduzir

dúvidas e rupturas na própria idéia de identidade”?108 Somos herdeiros dessa situação que, ao

ressaltar a diferença, acabou nos transformando, ao menos para os olhares estrangeiros, em

caricatura do paraíso terrestre, na terra do exotismo e da permissividade.

Retomando a questão da importação, apontamos para o fato de que Roberto Schwarz

chegou a cunhar uma expressão que refletisse a distância entre os ideais europeus que aqui

aterrissavam e a sociedade brasileira: seriam as “idéias fora de lugar”, trazidas de fora, e cujo

teste de coerência com a nossa realidade parecia pouco importante.109

Muito embora o autor não aponte diretamente um conceito pronto para o que sejam as

tais “idéias fora do lugar”, acreditamos que elas sejam idéias submetidas à influência de um

lugar que não o seu de origem, sem, contudo, perderem suas pretensões originárias,

transplantadas que foram sem estarem acompanhadas da referência estrutural constitutiva da

origem. E, como atuam com base em novas regras - quais sejam, as regras do lugar que as

acolheram - geram “graças, desgraças, ambigüidades e ilusões também singulares”.110

105 SOUZA, O., ob. cit., p. 18. 106 Idem, ibidem, p. 38. 107 Idem, ibidem, p. 17. 108 Idem, ibidem, p. 39. 109 SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas, p. 15. O autor refere-se especificamente ao liberalismo europeu em cotejo com a sociedade escravista brasileira. 110 Idem, ibidem, p. 26. Schwarz ainda ressalta: “Ao longo de sua reprodução social, incansavelmente o Brasil põe e repõe idéias européias, sempre em sentido impróprio” (p. 29), salientando, em seguida, que “não Brasil, as idéias estavam fora de centro, em relação a seu uso europeu” (p. 30). O mesmo autor, em outra obra, ainda salienta: “(...) A concomitância regular dos traços moderno e colonial não representa atraso nem disparate, como fazem crer a analise e o sentimento liberais, mas o resultado lógico e emblemático da feição que tomou o progresso no país”, é dizer, “dado o contexto nacional, (...) o esforço de agradar e parecer atende à ordem efetiva, sem nada de ilusório ou anacrônico, e a sua funcionalidade é palpável. Nem por isso deixávamos de pertencer ao século XIX burguês, com sua exigência de autonomia e razão, forrada de menosprezo pelas artes da simpatia” (SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo, p. 127; 160).

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Por sua vez, Vilém Flusser, ao invés de falar propriamente em importação, refere-se a

defasagem. Segundo ele, se considerarmos história como sendo desenvolvimento das

potencialidades, podemos afirmar que, “a todo o estante, o espírito do tempo se manifesta em

todos os fenômenos culturais”, o que faz com que o espírito humano assuma uma forma

determinada (que Flusser chama de “máscara”). Contudo, isso não significa que os todos

homens que vivam sob este signo tenham assumido esta máscara, apenas que um grupo

decisivo (“vanguarda”, no dizer do autor) conseguiu impor esta forma à sociedade, de maneira

que “a grande maioria pode perfeitamente continuar usando máscaras superadas, até muito

superadas”.111 Vejamos o que aconteceu no caso do Brasil.

No entender do autor, as fases da história ocidental aparecem no Brasil de forma

deturpada, é dizer, defasadas. Portanto, as tentativas de se rotular fenômenos brasileiros tendo

como base tais fases, longe de explicar a realidade, acabam por enconbrí-la.112 É que, no seu

entender, compreender um espírito não é vivenciá-lo, o que acarreta no fracasso dos

movimentos nele baseados. Para Flusser “o essencial da defasagem é: ser uma tentativa de

traduzir o comunicado para o mundo concreto e vivido para o receptor da mensagem”. Ocorre

que “mensagens comunicadas não são vivenciáveis, e quando retransferidas para a vivência

são deturpadas”. Assim, “a defasagem é a tentativa, condenada ao fracasso, de vivenciar

mensagens”.113

Ressalte-se, também, que toda mensagem é embasada numa estrutura histórica

peculiar que igualmente não pode ser comunicada - e isso vale para modelos de diversas

111 FLUSSER V., ob, cit., p. 76. 112 Idem, ibidem, p. 80. O autor exemplifica em duas vertentes: uma seria o caso do chamado “barroco mineiro”, que, de barroco mesmo, só possui “a espiral e a elipse” na arquitetura, mas uma vez que nos libertamos do rótulo, teremos capacidade de contemplar toda a beleza da síntese formada por elementos portugueses, orientais e negros, e de descobrirmos esse fenômeno como sendo uma de nossas raízes e potencialidades, mas, “obcecados pela ideologia”, pretendemos “ver barroco (...), até barroco excepcionalmente bem elaborado, um ponto alto do barroco”. Outra seria o caso da “Inconfidência Mineira”, no seu entender “uma ideologia de burgueses alienados do seu ambiente que procuram impor sobre ele um espírito romântico americano e francês (...)” (p. 80-82). 113 Idem, ibidem, p. 85-86. Nesse sentido, Schwarz afirma: “privados de seu contexto oitocentista europeu e acoplados ao mundo da sociabilidade colonial, os melhoramentos da civilização que importávamos passavam a operar segundo outra regra, diversa da consagrada nos países hegemônicos” (SCHWARZ, R. Cultura e política, p. 130).

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searas114 - de forma que, quando transportados, os modelos tendem a se alterar ao ponto de

descaracterizarem-se. Essa descaracterização ocorreria, no caso brasileiro, e no entender do

autor, por que somos, no geral, um país de misturas e não um país de sínteses.115

Explica-se: na síntese, “os ingredientes são elevados a novo nível no qual desvendam

aspectos antes encobertos”, ao passo que na mistura “os ingredientes perdem parte de sua

estrutura, para unir-se no denominador mais baixo”.116 É dizer, a síntese não descaracteriza,

só traz à tona o que antes estava oculto, o que dá a ela a nota da originalidade (o que Flusser

chama de “carga de informação”). Isso não pode ser afirmado sobre a mistura, que nivela seus

componentes por baixo, mutilando suas características originais.

Tal não significa dizer que sínteses não ocorram no Brasil, e o exemplo dado pelo

autor é a questão da mistura de raças, que, no seu entender, conseguiu alcançar uma síntese

”graças à qual o especificamente racial cede ao genericamente humano em novo nível (no

caso, ao genericamente feminino)”. Entretanto, o que ocorre é que esses processos de síntese,

no Brasil, possuem sempre o caráter não deliberado, já que o brasileiro despreza programas.

Nossos processos se dariam, no entender do autor, à margem da história – se entendermos,

aqui, história como “tornar consciente”-de forma que concedemos “um terreno muito amplo

ao inconsciente, ao emotivo e ao intuitivo”.117

Entretanto, voltando à noção de mistura, temos que, nesse contexto, ela se manifesta

sob a forma de ecletismo, que no entender do autor “não é ruptura da defasagem, mas

114 Flusser fala em “modelos econômicos, sociais, culturais, artísticos, filosóficos e religiosos” (idem, ibidem, p. 87). 115 Idem, ibidem, p. 51. 116 Idem, ibidem, p. 52. 117 Idem, ibidem, p. 52-53. Observe que esse desprezo por programas aparentemente entra em confronto com o amor que o brasileiro possui pelas formas fixas e imutáveis, pelo planejamento, pelo dogmatismo e pelo racionalismo. Mas a contradição é aparente. Vejamos o que diz o autor: “O pensamento racional e dogmático, o agarrar-se a teorias e a esquemas majestosos, a maneira cartesiana e positivista de raciocinar, não passam de tentativas de construir contrapesos contra a tendência mais fundamental para o misticismo. Isto faz com que, por exemplo, o pensador brasileiro pendule constantemente entre a atração mágico-mística e um escolástico academicismo. E quanto ao planejamento, Brasília e a Estrada Transamazônica são exemplos gigantesco de como funciona. É verdade, são projetos planejados e espelham o planejamento em todos os seus aspectos, mas, no fundo, são fantásticos e podem ser defendidos racionalmente com dificuldade” (p. 53).

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defasagem violenta”, que pode ser observada na nossa tendência a aceitar prontamente o novo

e, ato contínuo, tomá-lo como “mais um retalho a ser acrescentado na colcha”, o que implica

em não digerí-lo.118

É dizer, passamos de um movimento cultural a outro não pelo esgotamento da antiga

escola, mas sim pelo prestígio que a nova doutrina possui nos meios internacionais

(especialmente, frise-se, na Europa e Estados Unidos), acarretando em mudanças que não tem

base em nossas necessidades internas, mas sim no gosto pela novidade terminológica e

doutrinária.119 A descontinuidade de nossa reflexão nos impede de descobrir quais são nossos

“problemas reais, particulares, com inserção e duração histórica próprias, que recolha as

forças em presença e solicite os passos adiante”.120

Assim, trazendo, finalmente a discussão para o caminho que nos interessa, cabe-nos

questionar: o que podemos falar de um sistema jurídico originariamente fundado numa

concepção liberal de lei, privilegiando os indivíduos, que foi entornado num país

personalista?

3.1.3. O choque do modelo liberal com a subjetividade brasileira

No texto “As idéias fora do lugar” Roberto Schwarz aponta para a disparidade

existente entre o Brasil escravista e o ideário liberal europeu tal qual importamos, exposto

pela nossa primeira Constituição, que data de 1824,121 fruto de uma declaração de

118 Idem, ibidem, p. 87-88. Entretanto, nem tudo está perdido para o autor: “Quem observa o país pela superfície vê apenas as reações ideológicas, quer dizer, as tentativas desesperadas da burguesia de transplantar fases superadas (inclusive as recentíssimas) para a realidade brasileira. As tentativas são desesperadas, a burguesia não vivencia tais fases, ainda que as compreenda intelectualmente (também duvidoso, em muitos casos). Mas quem se engaja no país e procura ser ‘brasileiro no melhor dos casos’ observa além disso uma ruptura da defasagem em muitos lugares, nos quais se articula uma cultura a-histórica que é síntese de elementos próprios e assimilados” (p. 90-91). 119 SCHWARZ, R. Cultura e política, p. 110-111. 120 Idem, ibidem, p. 112. 121 Ver, nesta Carta de Direitos, o Título 8º, denominado “Das disposições Gerais e Garantias dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brasileiros”.

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independência que, por si só, já houvera sido feita em nome de ideais franceses, ingleses e

americanos.122

Essa Carta, aliás, nos dá uma boa medida da dimensão da defasagem e das “idéias fora

do lugar” a partir das quais assentou-se nosso direito constitucional, ao transcrever a

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 para o Brasil de 1824, período em

que convivíamos com a escravidão quotidianamente.

Ora, sabemos que a busca da igualdade foi um dos nortes do liberalismo, motivo pelo

qual, simplesmente a condição de inferioridade que era compartilhada pelos escravos já

indicava a impropriedade do liberalismo no Brasil. Entretanto, no dizer de Schwarz, “estas

dificuldades permaneciam curiosamente inessenciais. O teste da realidade não parecia

importante (...)”.123 No entender do autor, este fato não deixa de expressar um modo de

inferioridade que se revelaria “na renúncia à experiência social própria e a subordinação à

hegemonia intelectual dos países avançados, cuja auto-representação se torna critério

absoluto”.124

Ressalte-se, ademais, que o liberalismo em especial é considerado um movimento de

difícil exportação, na medida em que sempre esteve firmado num um substrato histórico

deveras específico - que é o europeu - de forma que não é tarefa de pouca monta conseguir

desencarná-lo de suas instituições políticas e sociais originárias para transplantá-lo sem os

122 Em consonância com Schwarz, e como já sabemos, “entre nós, o rompimento com a metrópole e a abertura para o mundo contemporâneo não foram acompanhados de revolução social, como é sabido, consistindo antes num arranjo de cúpula. Ficava intacto o imenso complexo formado por trabalho escravo, sujeição pessoal e relações de clientela, desenvolvido ao longo dos séculos anteriores (...)” (SCHWARZ, R. Um mestre na periferia do capitalismo, p. 127). 123 SCHWARZ, R. Ao vencedor, as batatas, p. 15. Schwarz relembra que a dupla latifúndio-trabalho escravo “atravessou impávida a Colônia, Reinados e Regências, Abolição, a Primeira República, e hoje mesmo é matéria de controvérsias e tiros” (p. 25). Em outra obra, o autor afirma ainda: “Porque não seria - como era localmente - respeitável e moderno um proprietário de escravos na plenitude assumida de suas vantagens? A impossibilidade decorre do patamar normativo, estabelecido pelas revoluções burguesas, patamar desrespeitado em toda parte, incluídos aí Estados Unidos, Inglaterra e França, mas cujo desconhecimento implicava em exclusão do campo civilizado” (SCHWARZ, R. Um mestre na periferia do capitalismo, p. 124). 124 SCHWARZ, R. Um mestre na periferia do capitalismo, p. 126.

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riscos da defasagem.125 Se, conforme Burdeau, o liberalismo for, antes de tudo, uma atitude -

é dizer, “uma predisposição do espírito para encarar numa certa perspectiva os problemas

postos ao homem pela organização da sociedade”126 – acreditamos que, de fato, os obstáculos

são de grande porte.

Ocorre que mesmo não sendo possível ao Brasil a vivência da mensagem liberal, ela

foi adotada de forma decorativa (denotando “modernidade”127) por nossa tendência à cópia e à

mistura, levando nosso ordenamento, fundado sob o viés liberalista que consagra a

generalidade da lei, a ser considerado por nós “fora do lugar”.128

É que, historicamente, as idéias de cidadania e de individualismo representaram o fim

dos privilégios do clero e da nobreza, estabelecidos por leis particulares que os diferenciava e

os colocava em posição hierárquica superior aos demais.129 Ocorre que ao ser comunicado e

retirado de sua estrutura histórica peculiar, as noções de cidadania e de indivíduo deram

origem a práticas sociais e tratamentos diferentes.

Segundo DaMatta, somos um país que privilegia as relações entre pessoas, e não a

impessoalidade dos formalismos legais. Nesse sentido, causa espanto nosso credo liberal ser

tão alardeado como base de nossas instituições jurídicas. Entretanto, o susto diminui quando

observamos que continuamos operando de modo a privilegiar as relações pessoais, a despeito

de termos assumidos moldes liberais.130 É que uma comunidade só pode ser igualitária se não

for fundada na pessoa - já que, de fato, esta possui estilos, tamanhos e interesses distintos -

mas sim no indivíduo. Entretanto, como nossa unidade básica é a pessoa, a família, os

125 BOBBIO, N; MATTEUCCI, N; PASQUINO, G., ob. cit. p. 687-691. Isso por que “não podemos olhar para o liberalismo como sendo um simples ideologia política de um partido, mas como uma idéia encarnada em instituições políticas e em estruturas sociais” (p. 691), daí o fato do liberalismo ser “a única, entre as várias ideologias européias, que não consegue realizar seu potencial cosmopolita” (p. 687). 126 BURDEAU, G., ob. cit., p. 9. 127 Nesse sentido, Meriti de Souza: “Assim, à revelia da realidade brasileira, a Constituição de 1824, a primeira de uma série, assume o perfil liberal desejado por uma parcela da população, ansiosa por identificar-se com a modernidade, porém, com a modernidade idealizada” (ob. cit., p. 60). 128 SCHWARZ, R. Um mestre na periferia do capitalismo, p. 12. 129 DAMATTA, R. A casa e a rua, p. 77. 130 Idem, ibidem, p. 81.

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parentes e nossos grupos de amigos, não temos como formar uma sociedade homogênea – o

terreno onde floresce a cidadania.131 Assim,

“O resultado é um sistema social no qual convivem diferentes concepções de sociedade, de política, de economia e, naturalmente, de cidadania. Num sistema onde a palavra de ordem é a relação, podem conviver dimensões e esferas de vida cujos valores são diferentes, embora complementares entre si.”.132

Explica-se: as sociedades que passaram pela revolução individualista

instituíram um código de conduta calcado na idéia de cidadania, ao passo em que nas

sociedades relacionais, como a nossa, operam diversos códigos de comportamento que atuam

simultaneamente, complementando-se e não competindo entre si, de forma que “aquilo que

um nega, o outro pode facultar. O resultado (...) é uma multiplicidade de códigos e eixos de

classificação que irão dar ao sistema um dinamismo peculiar e altamente complexo”.133

Assim, “há uma nação brasileira que opera fundada nos seus cidadãos, e uma sociedade

brasileira que funciona fundada nas mediações tradicionais”.134

É dizer, nós sabemos que “o tratamento universalizante e impessoal é utilizado para

não resolver e/ou para dificultar a resolução de um problema”.135 Assim, nossa postura diante

da lei é a seguinte: “não é que a lei esteja em princípio errada, mas é que ela não se aplica a

meu caso (ou ao caso dos meus protegidos). Logo, a lei deve ser esquecida ou anestesiada e o

caso particular ressaltado por meio de um relacionamento específico”.136 A lei universal nos

131 Idem, ibidem, p. 84-85. É que para o autor, “o cidadão é a entidade que está sujeita à lei, ao passo que a família e as teias de amizade, as redes de relações, que são altamente formalizadas política, ideológica e socialmente, são entidades rigorosamente fora da lei” (p. 89). Salientamos que, por “fora da lei” não entendemos “ilegais”, apenas o fato de que em determinadas sociedades estas entidades ainda conseguem atuar fora do alcance da lei. 132 Idem, ibidem, p. 86. 133 Idem, ibidem, p. 98. 134 Idem, ibidem, p. 95. 135 Idem, ibidem, p. 87. 136 Idem, ibidem, p. 92.

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põe na defensiva, de forma que nossa vontade se fará valer pelo uso não de outra lei universal,

mas de uma relação pessoal que dobre ou rompa com a lei.137

3.1.4. Os reflexos no ordenamento jurídico e na Constituição

A lei, na sua acepção liberal, tal qual importamos, detentora das características da

impessoalidade e generalidade, só cumpre sua função numa sociedade formada por sujeitos.

Nosso comportamento diante de uma norma geral é, para dizer o mínimo, cínico - de afronta -

na medida em que aprendemos desde cedo que “sempre há um modo de satisfazer nossas

necessidades e desejos, mesmo que isso vá de encontro às normas do bom senso e da

coletividade em geral”.138

E, a despeito destas características - e talvez justamente por causa delas - possuímos,

no dizer de Sérgio Buarque de Holanda, “um amor pronunciado pelas formas fixas e pelas leis

genéricas, que circunscrevem a realidade complexa e difícil dentro do âmbito de nossos

desejos”,139 de forma que facilmente compreendemos o sucesso do positivismo no Brasil, com

suas definições imperativas e sua capacidade de engessamento da fluidez que caracteriza a

vida. Entretanto, segundo este mesmo autor, o positivismo é apenas um exemplo de nossa

tendência a fugir da realidade por meio “da crença mágica no poder das idéias”, de forma que

“trouxemos de terras estranhas um sistema complexo e acabado de preceitos, sem saber até

que ponto se ajustam às condições de vida brasileira e sem cogitar as mudanças que tais

condições lhe imporiam”.140

Nesse mesmo sentido, Flusser ressalta que, como brasileiros, somos alheios a todo

antidogmatismo, dominados que somos pelo Racionalismo e pelo dogmatismo, acarretando

137 Idem, ibidem, p. 92. 138 DAMATTA, R. O que faz do brasil, Brasil?, p. 95. 139 HOLANDA, S. B. de., ob. cit.,, p. 172. 140 Idem, ibidem, p. 175.

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numa “tendência geral de crer em teorias e agarrar-se a elas. Pois racionalismo e dogmatismo

são muito próximos do misticismo (embora não pareçam sê-lo)”141.

Essa característica encontra-se presente nas diversas instancias do poder, de forma

que, ao legiferar, os legisladores não saem de dentro de seu universo particular, acarretando

na fabricação de uma realidade fictícia e alheia à nossa via social e ao fazer-se das pessoas.

Recriamos, então, um mundo que refletisse nossos anseios, para que não tivéssemos que por

em risco nossa personalidade.142

Assim, nos parece que a obediência a uma ordem legal decorreria de uma adequação

entre a prática social e o universo jurídico, e não de uma tentativa de reinventar a realidade,143

originando-se muito menos de uma questão de educação e civilidade do que de uma afinação

entre nossas práticas sócias e a legislação - o que não significa dizer que a boa ordem social

também não dependa da criação de preceitos obrigatórios e sanções eficazes.144 Apenas

acreditamos que no Brasil levamos a extremos a crença de que “da sabedoria e sobretudo da

coerência das leis depende diretamente a perfeição dos povos e dos governos”, para a alegria

dos políticos e demagogos “que chamam atenção freqüentemente para as plataformas, os

programas, as instituições, como únicas realidades dignas de respeito”.145

Essa fé que depositamos na palavra escrita é generalizada, de forma que nossa tradição

regulamentadora146 no leva para dois caminhos, quais sejam, o de contraste com os países

141 FLUSSER, V. ob. cit., p. 44. 142 HOLANDA, S. B. de., ob. cit., p. 179. 143 DAMATTA, R. O que faz do brasil, Brasil?, p. 98. Segundo este mesmo autor, nosso ordenamento não parte da prática social, “mas é feito justamente para corrigi-la ou até mesmo instaurar novos hábitos sociais. Trata-se, como é mais que óbvio, de uma lógica que conduz ao discurso do Estado que, no caso brasileiro e ibérico em geral, tem razões que a sociedade e a cultura local desconhecem” (DAMATTA, R. A casa e a rua, p. 18-19). 144 HOLANDA, S. B. de., ob. cit., p. 173. Sérgio Buarque relembra o caso dos ingleses, “que não tendo uma Constituição escrita, regendo-se por um sistema de leis confuso e anacrônico, revelam, contudo, uma capacidade de disciplina espontânea sem rival em nenhum outro povo”. 145 HOLANDA, S. B. de., ob. cit., p.197. 146 Nesse sentido, podemos apresentar o contraste da Inglaterra, país onde “as liberdades públicas foram mais cedo protegidas contra o despotismo do soberano. Não é ela, porém, o país da Declaração dos Direitos do Homem. A Inglaterra nunca conheceu tais declarações. O inglês sente apenas ceticismo e até mesmo desconfiança por esses documentos. Seu espírito não o leva a declarações de princípio. A concepção processual que tem do direito leva-o a ver as coisas sob um prisma mais pragmático: a Inglaterra é um país onde em que foram organizadas normas processuais eficazes para defender e salvaguardar as liberdades fundamentais”. Aliás,

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anglo-saxões - onde a lei corresponde a um principio básico que dá grande margem de

atuação para o senso comum - e o de considerar como resolvido tudo aquilo que

transformarmos em lei.147

Assim, houve no Brasil a importação um modelo de direito não correspondente

ás praticas sociais e subjetivas dos brasileiros, o que “redundou na criação de mecanismos

institucionais e subjetivos, destinados a dar conta da convivência com a realidade nacional,

pautada por uma organização formal e por uma outra informal”.148 Como não nos

reconhecemos na norma jurídica, essa falta de reconhecimento acaba por criar tal dicotomia,

acarretando no descumprimento da mesma. Trata-se, no dizer de Roberto DaMatta, de um

sistema jurídico que relaciona a igualdade formal (importada, não oriunda de nossas práticas

sociais) com nossa cultura hierárquica, “recusando-se a tomar um desses códigos como

exclusivo e dominante”.149

Trazendo essa discussão para a seara constitucional, temos que esse pensar é

igualmente corroborado pelo entendimento de Hesse, para quem as possibilidades e limites da

pretensão de eficácia da Constituição só podem resultar da relação Constituição versus

realidade, salientando, com base em Wilhelm Humboldt, que uma Constituição jurídica que o direito inglês como um todo apresenta-se “como o conjunto das regras processuais e materiais que essas Cortes consolidaram e aplicaram tendo em vista a solução dos litígios. A regra de direito inglesa (legal rule), condicionada historicamente, de modo estrito, pelo processo, não possui o caráter de generalidade que tem na França uma regra de direito formulada pela doutrina ou pelo legislador”. Ademais, salienta o autor, nos países onde se adotou o modelo jurídico fundado no direito romano “O direito continua a ser visto, antes de mais nada, como um modelo de organização, uma espécie de moral social; nossa regra de direito visa ensinar aos indivíduos como se comportar; ela não é concebida sob o prisma do processo, sua meta essência não é dizer como o litígio deve ser resolvido. Os códigos são vistos como um ponto de partida, uma base a partir da qual se desenvolve o raciocínio dos juristas, para descobrirem a solução a aplicar” (DAVID, René. O direito inglês, p. 2-3; 76). 147 BARBOSA, L., ob. cit., p. 79. Nossa tendência, no que se refere ao segundo caminho encontra-se sempre presente: diante do recente caso do menino João Hélio (preso pelo cinto de segurança do lado de fora do carro, arrastado por cinco bandidos – um menor de idade) a reação oficial dominante foi, como era de se esperar “simplista, mágica e doutrinária”: diminuição da maioridade penal, um pacote de medidas que contra quem comente crime hediondo, pena dobrada para bandidos que recrutam menores de idade, tudo o que fuja ao cerne da questão: aplicar as leis já existentes, retirando do infrator a certeza da impunidade, e fazer com que as instituições responsáveis por aplicar a lei funcionem (FRANÇA, Ronaldo. “Adianta fingir que não vê?”. Disponível em: < http://veja.abril.com.br/210207/p_048.shtml>. Acesso em 10 de março de 2007). 148 SOUZA, M., ob. cit., p. 19. 149 DAMATTA, R. A casa e a rua, p. 54. Em outra obra, o autor afirma que a cultura do “sabe quem está falando” é justamente uma denúncia da nossa “ojeriza à discórdia e à crise”, um traço básico, no entender de DaMatta, “num sistema social extremamente preocupado com ‘cada qual no seu lugar’, isto é, com hierarquia e com a autoridade” (DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis, p. 184).

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não se pretenda estéril não deve intentar produzir nada que já não esteja na natureza singular

do presente. É dizer:

“(...) a Constituição não pode emprestar ‘forma e modificação’ à realidade; onde inexiste força a ser despertada - força essa que decorre da natureza das coisas - não pode a Constituição emprestar-lhe direção; se as leis culturais, sociais, políticas e econômicas imperantes são ignoradas pela Constituição, carece ela do imprescindível germe de sua força vital. A disciplina normativa contrária a essas leis não logra concretizar-se.”150

No mesmo sentido, veja-se:

“A norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. A sua essência reside na sua vigência, ou seja, a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade. Essa pretensão de eficácia (Geltungssanspruch) não pode ser separada das condições históricas de sua realização, que estão, de diferentes formas, numa relação de interdependência, criando regras próprias que não podem ser desconsideradas. Devem ser contempladas aqui as condições naturais, técnicas, econômicas e sociais. A pretensão de eficácia da norma jurídica somente será realizada se se levar em conta essas condições. Há de ser, igualmente, contemplado o substrato espiritual que se consubstancia num determinado povo, isto é, as concepções sociais concretas e o baldrame axiológico que influenciam decisivamente a conformação, o entendimento e a autoridade das proposições normativas.”151

Neste ponto, Hesse está, em verdade, ressaltando a necessidade de legiferar tendo

como base nossa realidade e não um estado de coisas futuras, posição acatada por esta

investigação. Entretanto, resta questionar quais são os efeitos sociais decorrentes da vigência

de um ordenamento jurídico que - contrariamente ao conselho de Konrad Hesse no que se

refere à Constituição, ápice deste conjunto de normas - desconsidera nossa história e substrato

espiritual, e que parece querer operar modificações na nossa realidade por decreto.

3.2. Jeitinho, universalidade e igualdade

Em pesquisa realizada sobre o tema, Lívia Barbosa nos apresenta o jeitinho como

constitutivo de nossa identidade nacional.152 Ele pode ser definido tanto como fruto de nossa

150 HESSE, K., ob. cit., p. 18. 151 Idem, ibidem,, p. 14-15. 152 Segundo a autora, interpretação dada a ele, contudo, pode ser positiva ou negativa, a depender do contexto. Ressalte-se ainda, que práticas similares ao jeitinho podem aparecer em qualquer país, mas só o que se chama

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criatividade, utilizado em situações de emergência, bem como “forma de agilizar algum tipo

de procedimento por meio da quebra de lei ou norma preestabelecida”.153

Nesse sentido, Thiago Azevedo ressalta:

“Sem sombra de duvida, a ação social de se dar um jeitinho é poderosa. Ela é capaz de driblar a burocracia do serviço público, capaz de burlar os códigos da lei civil, e muitas vezes até criminal. Ao lado disso, um jeitinho especial para quem pede e para quem executa, é capaz de abrir portas, de “furar a fila”, de se receber a aposentadoria, mesmo que algum documento esteja incorreto.”154

O jeitinho surgiria, no entender de Lívia Barbosa, da noção de que, no Brasil, o “não”

simplesmente não se constitui num limite último para nossas necessidades e “quereres”,155

inclusive - e especialmente - em relação ao interdito que a lei representa.156

Longe de estar fadado à extinção, que poderia se dar pelos avanços econômicos,

políticos e institucionais dos últimos tempos, o jeitinho reafirma sua permanência tendo em

realmente de jeitinho é a prática brasileira, porque ela foi definida como sendo parte de nossa identidade nacional, o que não ocorre em mais nenhum outro lugar. Sobre essas tais práticas similares - que não podem simplesmente ser definidas como jeitinho – temos o exemplo da própria Inglaterra, onde quase dois terços dos britânicos admitiram cometer atos desonestos no cotidiano, como por exemplo, fazer o que quer que seja necessário para conseguir que seus filhos consigam vaga na escola (pública ou particular) que eles julguem ser a mais adequada para os mesmos, não importando se tais práticas sejam lícitas ou não, ressaltando-se que os piores infratores foram pessoas da classe A e B, onde 70% assumiram que cometem fraudes e desonestidades no cotidiano. Esse percentual surpreendeu os britânicos, já que “houve época em que as classes médias praticamente se definiam por sua retidão ética, ocupando uma posição moral supostamente elevada, entre as classes trabalhadoras displicentes e a aristocracia degenerada”. Explicações brotaram de todos os cantos da Inglaterra: em função dos inúmeros casos de crimes de colarinho branco envolvendo grandes empresas (como a Enron), que levaram muitas pessoas a se sentirem defraudadas, as pessoas acabaram por criar uma desconfiança, insegurança e cinismo em relação às leis e os regulamentos. Há quem afirme que “seria difícil provar que a classe média se tornou menos honesta, porque qualquer mudança nos comportamentos reportados pode simplesmente refletir uma disposição maior em assumi-los”, de forma que seria muito provável que as pessoas sempre tenham agido de forma a proteger seus interesses pessoais, muito embora, de fato, esta tendência pareça ter aumentado em muito. Finalmente, outros ainda acreditam que a Inglaterra e o mundo estejam vivendo a “morte da vergonha”, resultante do fim da “respeitabilidade” como se conhecia até a década de 60 (basta lembrar que a ruína financeira já foi tão vergonhosa, que a única saída honrosa para um cavalheiro incapacitado de pagar suas dívidas era o suicídio). Entretanto, se os ingleses não se importam tanto com a respeitabilidade como antes, hoje eles teriam outros valores que antes não existiam, tais como “os valores ecológicos, uma preocupação com os direitos das minorias e a crença na importância da transparência com relação aos sentimentos pessoais”. Assim, “por esse novo código, delitos pequenos cometidos contra empresas ou burocratas sem rosto não são vergonhosos, porque são apenas uma maneira de revidar contra empresas que lucram em excesso ou contra o sistema. Mas não faltam novos ‘crimes’ que a classe média de hoje teria vergonha de ser flagrada cometendo, tais como dirigir um veículo 4x4 pelo centro de Londres, contar piadas racistas ou bater em seus filhos” (TOMKINS, Richard. “A classe sem pudor”. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1911200620.htm>. Acesso em 21 de nov. de 2006). 153 BARBOSA, L., ob. cit., p. 63. 154 AZEVEDO, Thiago Escobar de. Lusitanidade e ética na malandragem: um estilo de vida especial. In: Mudanças: Psicoterapia e Estudos Psicanalíticos, p. 77. 155 BARBOSA, L., ob. cit., p. 2. 156 “(...) Da mesma forma que a lei, a norma e a Constituição também não implicam barreiras definitivas e irrevogáveis para o comportamento e o desejo das pessoas” (idem, ibidem, p.2).

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vista que ele está fundamentado na nossa “notória dificuldade de lidar com um princípio

burguês fundamental, qual seja: o da igualdade de todos perante as normas”,157 de forma que

operamos com dois códigos: um é o Brasil enquanto sociedade, hierárquico, no qual a maioria

está em busca da personalização e sujeito aos apelos da simpatia pessoal dos que pedem

favores e jeitinhos, ao passo que o outro é o Brasil como estado-nacional, em busca do

assujeitamento por meio da confecção de leis universais e igualitárias.158

Dentro de nossa realidade, contudo, o que se universalizou, no entender da autora, foi

o jeitinho, como forma de contornar o excessivo formalismo de nossa organização

burocrática, que procura estabelecer de antemão todas as situações possíveis. Tal condição fez

surgir um paradoxo numa sociedade que – sim – possui setores modernizados e

individualistas,159 e onde o Estado deveria comparecer como mediador: ele acaba por encarnar

justamente a hierarquização presente nas sociedades holistas, o que o separa da sociedade:

“O interessante é que, para sobreviver dentro desse sistema, a solução escolhida, o jeito, parte de pressupostos opostos aos que norteiam a burocracia. Enquanto a máquina burocrática é teoricamente racional, impessoal, anônima e faz uso de categorias intelectuais, o jeito lança

157 DAMATTA, Roberto. In: BARBOSA, Lívia. Idem, p. xxiii. 158 Mais uma vez ressaltamos nossa opção tripartite pessoa – (mero) indivíduo – sujeito, em detrimento da dos autores em tela, que fundamentam sua visão no esquema pessoa – indivíduo. 159 A autora afirma que o jeitinho só pode existir “em universos sociais contaminados pela ótica individualista, impessoal, igualitária e anônima. Um universo social holista e hierárquico prescinde de qualquer um desses mecanismos, pois as posições dos interlocutores já estão dadas previamente. Todos sabem ‘quem é quem’ na estrutura social“ (BARBOSA, L., idem, p. 100). No sentido de observar esta dinâmica - ora pendendo para o individualismo assujeitante, ora para o personalismo - é interessante observar a discussão sobre o fim do nepotismo nos três poderes, prática típica de sociedades hierárquicas. Ao passo que em um dia vemos nos jornais afirmações peremptórias a do novo presidente de seção baiana da OAB Saul Quadros, que salienta: “a sociedade não aceita mais a prática do nepotismo” (“A sociedade não aceita mais a prática do nepotismo”. A Tarde, 21 de janeiro de 2007. Disponível em: http://atarde.ideavalley.com.br/flip.php?idEdicao=158e58f98a72809b50468bd3607fe60c# Acesso em 10 de abr. de 2007), podemos observar, na Câmara dos Deputados, uma suavização da PEC contra o nepotismo no serviço público. Essas alterações aliviam o rigor da proposta de emenda no que diz respeito à obrigatoriedade de uma quarentena de três anos após a ocupação do cargo público, período no qual os parentes ainda não poderiam ser contratados, bem como no que tange à vedação de contratação dos parentes por empresas prestadoras de serviço ou concessionárias de serviço público. Além do mais, cunhados e primos continuam a não ser afetados (BRAGON, Ranier. “Câmara suaviza PEC contra o nepotismo no serviço público”. Folha de São Paulo. São Paulo, 10 de abril de 2006. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1004200708.htm>. Acesso em 10 de abr. de 2007). Qual desses dois exemplos melhor retrata o Brasil? Ambos. Operamos com os dois códigos, o individualista e o personalista, muito embora acreditemos que o segundo ainda tenha mais força. O que é importante ressaltar é que, caso a cultura hegemônica fosse a ibérica e não a anglo-saxã, nossa forma de ser seria a regra, e, muito provavelmente, o nepotismo estaria legitimado.

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mão de categorias emocionais. Com os sentimentos, estabelece um espaço pessoal no domínio do impessoal.”160

Entretanto, é por meio do jeitinho, e não de sua experiência em face da lei universal,

que o brasileiro experimenta a igualdade. Esta, por sua vez, é uma igualdade personalista, já

que no momento em que o jeitinho é solicitado, “a interação se desenrola a partir dos recursos

idiossincráticos que os atores apresentam naquela situação”. Por isso, “o fracasso e o sucesso

do jeitinho estão diretamente relacionados ao desempenho das pessoas envolvidas na

situação”.161

É que, no Brasil, fatores puramente pessoais acabam extrapolando a esfera privada

alcançando a dimensão coletiva, de maneira dá origem a uma categoria do que seja “justo”

que não corresponde àquela legalmente estabelecida, mas assentada numa idéia de “quem está

mais ‘necessitado’”.162

Assim, argumentos como uma doença em família, engarrafamentos, uma viagem que

acabou demorando mais do que o previsto, possuem grande chance de serem aceitos como

justificativas para, por exemplo, o descumprimento de determinados prazos, ensejando o

pedido do jeitinho, situações essas que, em países de cultura anglo-saxã, fazem parte de uma

esfera da vida exclusivamente privada de cada um.

Tal, no entender da autora, funcionaria como o que ela chama de “uma cidadania

invertida”, que não esta baseada na submissão à lei universal, mas “na necessidade de quem

precisa e na compreensão de quem manipula a situação naquele momento”.163 “Invertida”

porque a idéia que possuímos de cidadania seria, como outras, importada:

“A cidadania, nos moldes americanos é, como representação, a única forma legítima de filiação à sociedade brasileira. Todas as outras, como relações pessoais, nepotismo, jeitinhos, são mencionadas como retratando justamente o ‘estado de coisas’ que se quer alterar.”164

160 BARBOSA, L., ob. cit.,, p. 46. 161 Idem, ibidem,, p. 49. 162 Idem, ibidem, p.64. 163 Idem, ibidem, p. 64. 164 Idem, ibidem, p. 77.

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Alteração esta que, como não poderia deixar de ser, esperamos que venha por meio da

modificação das leis vigentes ou por meio da criação de outras que dêem conta da

desconformidade existente entre nossa conduta e o modelo de cidadania que queremos (ou

achamos que queremos).

O jeitinho ilustra, no dizer da autora, “um drama social” - no qual a lei universalizante

exige o desempenho do papel de cidadão (nos moldes anglo-saxões), ao passo que o agente

deseja ser observado por meio de uma ótica personalista que não apenas difere da primeira,

mas que lhe é oposta165 - em sua tentativa de conciliar “o princípio individualista da regra

universalizante e da igualdade ao tratamento personalizado, concebido e previsto pela ótica

hierárquica e holista”.166 Contudo, não chegamos a concretizar nenhuma das visões de mundo

apresentadas, de forma que podemos até mesmo “escolher” se utilizaremos, na resolução de

um problema, o jeitinho ou na lei universal.

Essa perspectiva de usar alguma coisa de acordo com as conveniências de cada um,

no entender de Luis Cláudio Figueiredo, seria indicativa de um agente que se identifica com

uma lei que não é nem a dos contatos pessoais nem a lei universal, mas sim a “lei do sucesso

instrumental a qualquer preço e sem limites, conhecida entre nós como ‘lei de Gerson’”.167

Esse tipo de “escolha”, via de regra, é um sintoma do papel relativista que os valores

desempenham no universo social brasileiro, de forma que, em face da situação que se

apresenta a nossa frente, fazemos uso do instrumento – jeitinho ou lei universal – que

achamos que nos trará melhores benefícios.168

165 Idem, ibidem, p. 100. Na verdade, chegamos até mesmo a poder “escolher” como resolver uma situação, se com base no jeitinho ou na lei universal. 166 Idem, ibidem, p. 105. 167 FIGUEIREDO, L. C., ob. cit., p. 46. 168 BARBOSA, L., ob. cit., p. 95. Tal nos parece corresponder à essência da “Lei de Gérson”: levar vantagem em tudo. Não devemos confundir, contudo, lei de Gérson, jeitinho, e malandragem, muito embora sejam três criações nacionais de base comum, que é a dificuldade do brasileiro no trato com a lei universal e impessoal. Acreditamos que a primeira seria uma abertura de possibilidade de escolha que o brasileiro se arroga no direito de fazer: jeitinho ou lei universal? Resposta: dependerá da situação, desde que eu leve vantagem nela. O segundo faz parte da equação da lei de Gérson, mas não se confunde com ela. A terceira, por sua vez, é a atividade daqueles que fazem da lei de Gérson e do jeitinho modo de vida, encarnada na figura do malandro, indivíduo

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É justamente essa faceta do jeitinho que mais nos interessa, já que, no nosso entender

ele representa um sintoma relacionado as nossas dificuldades na estruturação social do

arquétipo paterno. Entretanto, para que cheguemos nessa noção, precisaremos percorrer um

novo caminho, que implica em passar pela contribuição que a psicologia junguiana (e

desdobramentos da mesma) oferece nossa pesquisa.

dotado de uma lógica e de uma maneira de se comportar toda especial, voltada para a suavização de suas responsabilidades (especialmente com o trabalho) por meio de artimanhas (mentiras, autovaloração exacerbada, burla da lei). A malandragem pode ser considerada como “jeitinho esperto para levar vantagem em tudo” (AZEVEDO, T. E., ob. cit., p. 54). Liliana Wahba sintetiza bem: “o nosso famoso ‘jeitinho’, aprimorado pela ‘lei de Gérson’, aquele das vantagens, coroou-se com ‘estar na frente, sendo mais esperto’” (WAHBA, Liliana Liviano. Atropelar – uma conduta das grandes cidades. In: Junguiana - Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, p. 52).

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PARTE III - ASPECTOS PSÍQUICOS COLETIVOS DA LEGITIMIDADE DO

ORDENAMENTO JURÍDICO E DA CONSTITUIÇÃO

CAPÍTULO 4 - PANORAMA GERAL DOS FUNDAMENTOS E CONCEITOS

BÁSICOS DA PSICOLOGIA ANALÍTICA.

É muito comum, na construção de um estudo sobre a estrutura da psique, recorrer à

alegoria segundo a qual esta seria um grande oceano (inconsciente) onde emerge uma

pequena ilha (consciente), sendo que no centro desta ilha reside o ego. Os conteúdos e

processos psíquicos, para se tornarem conscientes, precisam, necessariamente, se relacionar

com o ego, sob pena de permanecerem na inconsciência.169

A psique, portanto, é mais do que a consciência, daí por que Jung não compactua com

a idéia segundo a qual o homem vem ao mundo como tabula rasa, com a psique vazia, a qual

será preenchida com o que aprendeu na sua experiência individual.170

É que, na psicologia analítica fala-se em dois tipos de inconsciente, os quais fazem

parte - concomitantemente - da estrutura da psique humana: o individual e o coletivo171. O

primeiro “refere-se às camadas mais superficiais do inconsciente, cujas fronteiras com o

consciente são bastante imprecisas”,172 sendo que seus conteúdos são fruto da experiência

individual, formados por percepções, impressões subliminares, traços de acontecimentos

169 SILVEIRA, Nise da. Jung: vida e obra, p. 63. nesse sentido, afirma Jung: “teoricamente, é impossível dizer até onde vão os limites do campo da consciência, por que este pode estender-se de modo indeterminado. Empiricamente, porém, ele alcança sempre o seu limite, todas as vezes que toca o âmbito do desconhecido. Esse desconhecido é constituído por tudo quanto ignoramos, por tudo aquilo que não possui qualquer relação com o eu enquanto centro da consciência. O desconhecido se divide em dois grupos: o concernente aos fatos exteriores que podemos atingir por meio dos sentidos, e o que concerne ao mundo interior que pode ser objeto de nossa experiência imediata. O primeiro grupo representa o desconhecido do mundo ambiente, e o segundo, o desconhecido do mundo interior. Chamamos de inconsciente a este último campo” (JUNG, C. G. Aion, p. 44). 170 JUNG, Carl G. et al. O homem e seus símbolos, p. 75. 171 Jung alarga bastante o conceito de inconsciente de Freud, para quem este se parece com um deposito (que guarda todo o refugo do consciente, como um apêndice), sem o dinamismo que caracteriza o inconsciente na acepção junguiana (Idem, ibidem, p. 47). Afirma ainda que “a princípio o conceito do inconsciente limitava-se a designar o estado dos conteúdos reprimidos ou esquecidos. O inconsciente, em Freud, apesar de já aparecer – pelo menos metaforicamente – como sujeito atuante, nada mais é do que o espaço de concentração desses conteúdos esquecidos e recalcados, adquirindo um significado prático graças a eles” (JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo, p. 15). 172 SILVEIRA, N., ob. cit., p. 64.

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ocorridos durante a vida do ser humano em questão que foram perdidos pela memória

consciente, recordações penosas, etc.173 É dizer, seus conteúdos já foram, conscientes, mas

imergiram no inconsciente por terem sido esquecidos ou reprimidos.174

Por sua vez, o segundo “corresponde às camadas mais profundas do inconsciente, aos

fundamentos estruturais da psique comum a todos os homens”,175 um substrato psíquico

comum a todos os seres humanos.176 Seus conteúdos são, portanto, impessoais, no sentido de

que “não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo portanto uma aquisição

pessoal”.177

O inconsciente coletivo é, assim, de natureza universal, “isto é, contrariamente à

psique pessoal, ele possui conteúdos e modos de comportamento, os quais são (...) os mesmos

em toda parte e em todos os indivíduos”.178

Arquétipos179 são os conteúdos do inconsciente coletivo, constituindo-se em “tipos

arcaicos – ou melhor, primordiais – isto é, de imagens universais que existiram desde os

tempos mais remotos”.180 São “alicerces da vida psíquica comuns a todos os seres

humanos”,181 formas instintivas de se imaginar. Não devemos, contudo, confundi-los com a

existência de idéias e imagens inatas, já que arquétipo é forma, não conteúdo, constituindo-se

numa tendência para construir representações análogas ou semelhantes:182

173 Idem, ibidem, p. 64. 174 JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo, p. 53. 175 SILVEIRA, N., ob. cit., p. 64. 176 Idem, ibidem, p. 65. 177 JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo, p. 53. 178 Idem, ibidem, p. 15. 179 O mais próximo que podemos chegar, na teoria Freudiana, da noção de arquétipo seria, em princípio, o que Freud denominou de “resíduos arcaicos”, definidos como “elementos psíquicos que sobrevivem na mente humana há tempos imemoriais”. Entretanto, Jung considera essa uma visão equivocada do fenômeno, não podendo ser chamados meramente de “resíduos”, eis que, para Jung, esse é “um ponto de vista característico dos que consideram o inconsciente um simples apêndice do consciente” (JUNG, Carl G. et al. O homem e seus símbolos, p. 47). 180 JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo, p. 16. 181 SILVEIRA, N., ob. cit., p. 33. Ademais, segundo Cassirer, “antropólogos e etnólogos frequentemente ficaram bastante surpresos ao encontrar os mesmos pensamentos elementares dispersos em todo o mundo, e em condições culturais e sociais completamente diferentes” (CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem, p. 123). 182 SILVEIRA, N., ob. cit., p. 68.

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“A noção de arquétipo, postulando a existência de uma base psíquica comum a todos os seres humanos, permite compreender por que em lugares e épocas distantes aparecem temas idênticos nos contos de fadas, nos mitos, nos dogmas e nos ritos das religiões, nas artes, na filosofia, nas produções do inconsciente de um modo geral – seja nos sonhos de pessoas normais, seja em delírios de loucos.”183

Muita celeuma existe em torno do fato de Jung tê-los denominado “imagens

primordiais”, como se nós tivéssemos nascido com imagens inatas gravadas em nosso

aparelho psíquico. Ocorre que os arquétipos não expressam imagens ou modelos definidos, na

verdade, eles nem ao menos são imagens concretas que existam no tempo-espaço.184 Nesse

sentido, Jung afirma:

“Sempre deparo de novo com o mal-entendido de que os arquétipos são determinados quanto ao seu conteúdo, ou melhor, são uma espécie de ‘idéias’ inconscientes. Por isso devemos ressaltar mais uma vez que os arquétipos são determinados apenas quanto à forma e não ao conteúdo, e no primeiro caso, de um modo muito limitado. Uma imagem primordial só pode ser determinada quanto ao seu conteúdo no caso de tornar-se consciente e portanto preenchida com o material da experiência consciente. Sua forma, por outro lado, como já expliquei antes, poderia ser comparada ao sistema axial de um cristal, que pré-forma, de certo modo, sua estrutura no líquido-mãe, apesar de ele próprio não possuir uma existência material (...) o sistema axial determina apenas a estrutura estereométrica, não porém a forma concreta do cristal particular.”185

No mesmo sentido, afirma:

“Há tantos arquétipos quantas situações típicas na vida. Intermináveis repetições imprimiram essas experiências na Constituição psíquica, não sob a forma de imagens preenchidas de um conteúdo, mas precipuamente apenas formas sem conteúdo, representando a mera possibilidade de um determinado tipo de percepção e ação.”186

É dizer, eles se constituem numa tendência instintiva187 para formar as mesmas

representações de um motivo, as quais podem conter inúmeras variações de detalhes, sem que

183 Idem, ibidem, p. 69. No entender de Jung, eles não se difundem mediante a simples tradição, linguagem e migração, “mas ressurgem espontaneamente em qualquer tempo e lugar, sem influência de uma transmissão externa” (JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo, p. 58). 184 NEUMANN, Erich. A grande mãe, p. 19. 185 JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo, p. 91. 186 Idem, ibidem, p. 58. 187 De forma a esclarecer a relação entre instinto e arquétipo, temos que Jung afirma: “chamamos de instinto aos impulsos fisiológicos percebidos pelos sentidos. Mas, ao mesmo tempo, esses instintos podem também manifestar-se como fantasias e revelar, muitas vezes, sua presença apenas através de imagens simbólicas. São a estas manifestações que chamo arquétipos. A sua origem não é conhecida; e eles se repetem em qualquer lugar do mundo” (JUNG, Carl G. et al. O homem e seus símbolos, p. 69). Em outra obra, afirma o autor: “(o homem) traz consigo sistemas organizados e que estão prontos a funcionar numa forma especificamente humana; e isto ele deve a milhões de anos de desenvolvimento humano. Da mesma forma como os instintos dos pássaros de

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isso represente perda de sua configuração original. É dizer, os arquétipos não se constituem

em formas estáticas, são, isso sim, “fatores dinâmicos que se manifestam por meio de

impulsos, tão espontâneos quanto os instintos”.188 Por exemplo:

"(...) pai e mãe são dimensões arquetípicas da psique, enquanto o pai e a mãe pessoais são dois dentre os inúmeros fatores consteladores de que uma pessoa dispõe para acessar esses – e outros – arquétipos. (...) fatores ambientais e históricos exercem significativa influência sobre o modo como a rota arqetípica será realizada, frustrada ou dificultada. As imagens coletivas de pais adquirem conteúdo e se tornam conscientes em razão do encontro entre as predisposições inconscientes e os fatos empíricos que tocam ou ativam. Ao nascer, uma pessoa compartilha com a totalidade dos seres humano o potencial arquetípico inerente à espécie (formas básicas), mas sua Constituição genética específica (manifestação individual) a diferencia e a torna única.”189

Por representarem essencialmente um conteúdo inconsciente, os arquétipos necessitam

de um meio para serem trazidos à consciência e se colocarem como objeto de nossa

percepção,190 meio esse que, no entender de Jung, são as “imagens arquetípicas”. Não se pode

afirmar destas, contudo, que todas elas expressem um símbolo,191 muito embora elas sejam

sempre um fator “constitutivo” essencial do mesmo.

migração e construção do ninho nunca foram aprendidos ou adquiridos individualmente, também o homem traz do berço o plano básico de sua natureza, não apenas de sua natureza individual, mas de sua natureza coletiva” (JUNG, C. G. Freud e a psicanálise, p. 44). 188 JUNG, Carl G. et al. O homem e seus símbolos, p. 76. 189 LIMA FILHO, A. P., ob. cit., p. 23. Nesse sentido, Marcus Cezar Donha afirma: “Ser homem e ser pai são características básicas dos arquétipos masculinos que estruturam a identidade masculina, assim sendo, não podemos incorrer no risco de confundir os arquétipos do Pai e da Mãe com as figuras parentais. Também não podemos negligenciar o fato de que tanto o pai quanto a mãe pessoais veiculam princípios de dois arquétipos” (DONHA, Marcus Cezar. O arquétipo do pai na cultura patriarcal, p. 11). Jung oferece outros exemplos: “existem, por exemplo, muitas representações do motivo irmãos inimigos, mas o motivo em si continua o mesmo” (JUNG, Carl G. et al. O homem e seus símbolos, p. 67), ou “embora a figura da mãe, tal como aparece na psicologia dos povos, seja de certo modo universal, sua imagem muda substancialmente na experiência prática individual” (JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo, p. 93). 190 Idem, ibidem, p. 17. 191 Algumas considerações precisam ser feitas para melhor explicar a noção de símbolo adotada por Jung. A primeira delas é que não podemos confundir símbolo com sinal. Sinal é, para Jung, uma figura sintética substitutiva de coisas conhecidas, por isso, é sempre menos do que o conceito que ele representa (por exemplo, o livro estilizado que compõe a marca da editora Saraiva). Nesse sentido, acreditamos que Jean Chevalier define muito bem o que vem a ser sinal (muito embora o chame de “atributo”): “o atributo corresponde a uma realidade ou imagem, que serve de signo distintivo a um personagem, uma coletividade, um ser moral: as asas são o atributo de uma sociedade de navegação aérea; a roda, de uma companhia ferroviária; a maça, de Hércules; a balança, da Justiça. Escolhe-se um acessório característico para designar o todo” (CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos, p. XVI). Com o símbolo, por sua vez, ocorre o contrário: ele sempre significa mais do que seu significado imediato, e não são sintéticos, pois eles não podem ser criados, sendo produtos naturais e espontâneos. A segunda consideração é que essa diferenciação entre sinal e símbolo é outro fator de diferenciação entre as teorias freudiana e junguiana, na medida em que as representações disfarçadas de conteúdo reprimidos no inconsciente são símbolos para os freudianos e apenas sinais para os junguianos. Jung não considera que os símbolos sejam o disfarce de uma outra coisa, como supõe Freud, mas

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O símbolo é uma forma extremamente complexa de reunião de opostos “numa síntese

que vai além das capacidades de compreensão disponíveis e que ainda não pode ser formulada

dentro de conceitos”,192 escapando a qualquer tentativa de definição, sendo próprio de sua

natureza “romper os limites estabelecidos e reunir os extremos numa só visão”.193

Ademais, por mais que as palavras sejam indispensáveis para sugerir o sentido de um

símbolo, tal não significa que elas consigam expressar-lhe todo seu valor,194 já que o mesmo

se firma “como um termo aparentemente apreensível, associado a um outro algo que – este

sim – escapa à apreensão”.195 Ele acaba aproximando o consciente do inconsciente, na medida

em que é, concomitantemente, racional e irracional, eis que possui “essa propriedade

excepcional de sintetizar, numa expressão sensível, todas as influências do inconsciente e da

consciência (...)”.196 Tal caracterizaria, no entender de Jean Chevalier, a função unificadora

dos símbolos.197

O símbolo, então, é um termo, nome ou imagem detentora de conotações especiais,

que vão “além do seu significado evidente e convencional. Implica em alguma coisa vaga,

desconhecida ou oculta para nós”. Este termo/nome/imagem possui um aspecto que não se

sim um produto da natureza (Idem, ibidem, p. XXII). Nise da Silveira aponta ainda outras diferenças: “Freud afirma que a simbolização surge como resultado do conflito entre a censura e as pulsões reprimidas, enquanto Jung, em vez de ver na atividade formadora de símbolos o resultado de conflitos, vê uma ação mediadora, uma tentativa de encontro entre opostos movida pela tendência inconsciente à totalização. Outra diferença consiste em que, na concepção freudiana, embora os símbolos sejam numerosos, referem-se sempre a reduzidos número de idéias inconscientes que dizem respeito ao corpo do indivíduo, às personagens da família, aos fenômenos do nascimento, da sexualidade e da morte. O símbolo, na concepção junguiana, é uma linguagem universal infinitamente rica, capaz de exprimir por meio de imagens muitas coisas que transcendem as problemáticas específicas dos indivíduos” (SILVEIRA, N., ob. cit., p. 71-76; JUNG, Carl G. et al. O homem e seus símbolos, p. 20; 55). 192 SILVEIRA, N., ob. cit., p. 71. 193 CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A., ob. cit., p. XIII. 194 Idem, ibidem, p. XIII. 195 Idem, ibidem, p. XXI. Chevalier ainda completa: “Se um dia o termo oculto tornar-se conhecido, o símbolo morrerá. Simbólica é a concepção que, superando qualquer interpretação concebível, considera a cruz como a expressão de certo fato ainda desconhecido e incompreensível, místico ou transcendente (e portanto psicológico em primeiro lugar), que é absolutamente impossível de ser representado com maior exatidão, a não ser pela cruz” (Idem, ibidem, p. XXII). 196 Idem, ibidem, p. XIV. 197 Idem, ibidem, p. XVIII.

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revela aos seres humanos de forma definida e explicada, de forma que ele se localiza num

termo médio entre a consciência e a inconsciência, entre o universal e o individual.198

Tal seria, no entender de Jean Chevalier, conseqüência da atuação do símbolo em sua

função mediadora, que reúne elementos separados, estendendo pontes entre eles,

confrontando tendências contrárias e antinômicas, reunindo-as numa certa relação.199

Finalmente, para Jung, no âmago do inconsciente coletivo encontra-se o self (si-

mesmo), definido como “centro profundo no inconsciente, centro ordenador da vida psíquica

e fonte de energia”.200

Assim, feitas estas considerações, podemos passar ao estudo da psicologia simbólica,

destacando, em especial, a contribuição de Carlos Byington para a investigação.

198 CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A., ob. cit., p. XIX. 199 Idem, ibidem, p. XXVII - XXVIII. 200 SILVEIRA, N., ob. cit., p. 16. Para a autora, “em determinadas circunstâncias esse centro corresponde ao superego da psicologia freudiana. Quando a renúncia aos desejos egoístas ocorre por temor da opinião pública e dos códigos, conforme acontece ordinariamente, isso significa que o self permanece inconsciente, e, nesta condição, projeta-se no exterior, identificando-se à consciência moral coletiva. Nesse caso, self e superego coincidem. Mas, desde que o self se torne perceptível como fator psíquico determinante então a renúncia às exigências egoístas não será mais motivada pela pressão da moral coletiva, porém pelas próprias leis internas inerentes, de modo inato, ao self. Em tais circunstâncias esta instância psíquica deixa de coincidir com o superego” (SILVEIRA, N., ob. cit., p. 65). Nesse sentido, afirma Byington: “O conceito de Superego na Psicanálise é, em parte, análogo ao conceito de Self, se bem que, em inúmeros aspectos mais restrito que este. Um deles é que ao Superego tem sido atribuída a função orientadora, limitadora e propiciadora do crescimento do Ego como também a função persecutória e punitiva, geralmente no contexto do Arquétipo do Pai, ou seja, como expressão do Self predominante no ciclo patriarcal. A outra grande diferença é não ter sido percebido no Superego a capacidade criativa, simbolizadora e de organização central da personalidade em função do Todo (...)” (BYINGTON, Carlos. O desenvolvimento simbólico da personalidade, p. 54). Há uma outra questão que precisa ser aclarada: para a psicologia analítica, a psique pode ser comparada a uma esfera com uma pequena zona brilhante em sua superfície correspondendo à consciência. O centro dessa zona corresponde ao ego. Mas o self é, a um só tempo, o núcleo dessa esfera, bem como a esfera inteira, de forma que a psicologia muitas vezes prefere falar em self quanto se fala na esfera inteira, e “arquétipo central” quando quer se referir apenas ao núcleo desta esfera (JUNG, Carl G. et al. O homem e seus símbolos, p. 161). Preferimos não nos aprofundar nessa questão por fugir em demasiado do foco deste estudo.

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CAPÍTULO 5 - CARLOS BYINGTON, CIÊNCIA E A PSICOLOGIA SIMBÓLICAS:

DIFERENÇAS E AMPLIAÇÕES CONCEITUAIS

Para os fins deste estudo, interessa aprofundar o entendimento acerca de um arquétipo

em especial, qual seja, o paterno, por excelência, o arquétipo, da autoridade e da

normatividade.201 Ocorre que, para uma pesquisa que busca - neste momento - retirar

contribuições da psicologia (em especial junguiana) para compreender a questão da

dificuldade nacional no que se refere à legitimidade de sua ordem normativa, não poderíamos

ficar adstritos à esfera meramente individual da psicologia.

E, muito embora a psicologia analítica não se reduza à compreensão do ser humano

apenas em sua esfera individual – ao contrário, ela também se aplica à leitura dos fenômenos

coletivos202- fizemos a opção de não utilizar apenas suas diretrizes como base, na medida em

que outras teorias também se mostraram igualmente relevantes para a realização dos objetivos

propostos neste.

Assim, acreditamos que podemos contar com a psicologia simbólica de Carlos

Byington de forma a retirar da esfera particular determinadas noções - que apresentaremos em

seguida – de molde a que possamos dar continuidade a nosso estudo dentro de um viés

coletivo.

Para tanto, é preciso que utilizemos o estudo de Carlos Byington sobre os quatro

dinamismos arquetípicos, dinamismos que constituem-se em verdadeiros modos de

estruturação da consciência coletiva, a que o direito, como fenômeno humano, encontra-se

igualmente submetido.

201 “Representante de um dever-ser cultural, ao pai são atribuídos os papéis interditores de censor, fiscal e governante“ (LIMA FILHO, A. P., ob. cit., p. 12). 202 Nesse sentido, ver o editorial da Revista Junguiana n.24, de 2006, nos seguintes termos: “a psicologia analítica não se reduz à compreensão do indivíduo, mas também se aplica à leitura dos fenômenos coletivos e aos valores éticos envolvidos” (JUNGUIANA: Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. São Paulo: Paulus, n. 24, p. 3).

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Ocorre que, para que seja possível compreendê-los, antes é preciso que sejam

apontadas as diferenças e ampliações conceituais trazidas à baila por Byington em relação à

psicologia (até mesmo à psicologia analítica) tradicional.

Primeiramente, devemos ter em mente que as descobertas da ciência ocidental foram

feitas à luz da dissociação203 sujeito-objeto204 como forma de afastar o componente subjetivo

da observação científica, que era visto apenas como um empecilho a ser removido do âmbito

da observação científica, desprezando-se as contribuições que poderia oferecer a ela.205

Na psicologia, por exemplo, isso significa que as descobertas dos seus pioneiros foram

por eles mesmos feitas e analisadas à luz de uma psicologia identificada com o subjetivo,

dissociada da natureza em sua própria essência. Desta forma, o autor acredita que o resgate

dessa dissociação “só pode ser feito por uma psicologia que perceba a energia psíquica como

uma das formas de energia física”, 206 sendo, portanto, parte do universo natural.

203 O próprio Jung afirmava: “A mente ‘cultural’ moderna revela um alarmante grau de dissociação” (JUNG, Carl G. et al. O homem e seus símbolos, p. 83). 204 Devemos salientar que, para os fins deste capítulo, estamos tratando de um sujeito epistemológico, Importante ressaltar que, segundo Mannheim, a especulação epistemológica se orienta dentro da polaridade sujeito-objeto. Pode-se, contudo, “escolher” qual dos dois pólos será o ponto de partida. Após o colapso da Idade Média, buscou-se determinar a natureza e o valor do ato cognitivo humano tendo como pressuposto o fato de que o sujeito nos é mais imediatamente acessível do que o objeto, ambíguo por causa das múltiplas interpretações divergentes à que foi submetido. Assim, devemos “reconstruir empiricamente a gênese do pensamento no sujeito, mais acessível a nosso controle”. A partir daí buscou-se analisar como a estrutura do sujeito influencia sua concepção do mundo, o que propiciou o surgimento de uma psicologia geral e do pensamento. Entretanto, quanto mais evoluía a psicologia, mais evidente ficava que o sujeito estava muito longe de ser o seguro ponto de partida para a formação de uma nova concepção de mundo. Buscou-se, então, aplicar à psique os mesmos métodos experimentais e intelectuais aplicados aos objetos do mundo exterior, não buscando a compreensão do conteúdo da psique, mas sim aproximar a psique da mecânica (“como uma situação exterior pode precipitar mecanicamente uma reação interior”?). Ocorre que, sem concepções valorativas, nada se constrói na esfera social nem na psíquica. O mundo dos objetos externos e da experiência psíquica parece estar em fluxo contínuo. Com a epistemologia focada no sujeito, o espírito individual era concebido como apartado do grupo. O método sociológico teve como mérito acabar com o mito de separação entre o indivíduo e o grupo: conhecimento é um processo cooperativo da vida grupal. Segundo Mannheim, “precisamente porque o conhecimento é fundamentalmente conhecimento coletivo (...), pressupõe uma comunidade de conhecimento nascida primariamente de uma comunidade de experiência preparada no subconsciente. Todavia, uma vez percebido o fato de que quase todo o pensamento se erige sobre um alicerce de ações coletivas, somos obrigados a reconhecer a força do inconsciente coletivo” (MANNHEIM, K., ob. cit., p. 1-29). 205 BYINGTON, Carlos Amadeu B. A ciência simbólica, p. 57. 206 Idem, ibidem, p. 59.

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Assim, no entender de Byington, “as dissociações mente-corpo, indivíduo-sociedade,

psique-natureza e racionalidade-irracionalidade (consciente-inconsciente) são conseqüências

da grande dissociação sujeito-objeto”.207

Entretanto, tal não significa dizer que tais polaridades tenham que ser eliminadas,

apenas que seus pólos não devem ser empregados de forma exclusivamente oposta, na medida

em que isso nos impediria de ver o denominado comum subjacente a tais dicotomias, o qual,

segundo o autor, deveria ser um conceito unificador das mesmas, que ele identificou como

sendo o de símbolo, desde que seu conceito tradicional fosse ampliado.208

Essa necessidade se deve ao fato de que a psicologia tradicional identificou o conceito

de símbolo unilateralmente com o subjetivo, “em razão da mesma unilateralidade cultural que

equacionou a verdade científica com o pólo objetivo do saber”.209 Ocorre que o símbolo não é

nem apenas subjetivo, nem objetivo, ele possui, concomitantemente, ambas as

características,210 já que contém significados evidentes (conscientes - objetivos) e ocultos

(inconscientes - subjetivos)211. É dizer:

“Sabemos de há muito que a consciência funciona através de polaridades. Ao descobrir que os símbolos contém as polaridades, antes de estas se separarem na consciência, eles devem ser considerados a fonte de formação e transformação da consciência. Surge assim o conceito de símbolo estruturante, pois é o símbolo que dá origem à formação da polaridade ego-outro na consciência, seja este outro natureza, corpo, sociedade ou até mesmo idéias e emoções. Assim, em função do conhecimento da estruturação da consciência, damo-nos conta de que o crescimento do conhecimento objetivo não precisa ser exclusivamente racional e pode, naturalmente, ser acompanhado do crescimento do conhecimento subjetivo, posto que ambos partem de uma raiz simbólica que os engloba e confunde em sua origem.”212

207 Idem, ibidem, p. 57. 208 BYINGTON, Carlos Amadeu Botelho. O trabalho simbólico e o Self da empresa: introdução ao estudo do trabalho pela psicologia simbólica, p. 154. 209 BYINGTON, Carlos Amadeu B. A ciência simbólica, p. 66. 210 Idem, ibidem, p. 66. 211 JUNG, Carl G. et al. O homem e seus símbolos, p. 20. 212 BYINGTON, Carlos Amadeu B. A ciência simbólica, p. 66-67. Apenas para esclarecer, ressaltamos que neste artigo, como já podemos perceber, Byington está postulando os fundamentos de uma ciência que ele chama de “ciência simbólica”, mais abrangente que a ciência objetiva, englobando-a, já que não ‘ignora’ “que o conhecimento e a criatividade científica emergem tanto de fontes misteriosas, como fantasias e sonhos, quanto da mais pura lógica formal” (Idem, ibidem, p. 67). Um de seus postulados é que “todo acontecimento humano é também simbólico”, afirmação que acolhemos sem reservas. Nesse diapasão, afirma Chevalier: “a história do símbolo atesta que todo objeto pode revestir-se de valor simbólico, seja ele natural (pedras, metais, árvores, flores, frutos, animais, fontes, rios e oceanos, montes e vales, planetas fogo, raio, etc) ou abstrato (forma

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Assim, o autor edificou o conceito de símbolo estruturante como sendo o “ponto de

união entre o subjetivo e o objetivo, viga mestra de uma teoria da ciência simbólica”. Ao fazê-

lo, abriu-se o caminho para que possamos traçar paralelos entre o desenvolvimento da cultura

e o da personalidade,213 dando espaço para que adotemos esta ampliação dos conceitos da

psicologia analítica de molde a compreender determinados fenômenos coletivos dentro deste

viés.214 É que, no entender de Byington

“Qualquer coisa pode se tornar Símbolo ao nos abrirmos para vivenciar as suas ligações com o Todo. Na dimensão simbólica, a Consciência se torna capaz de perceber a interação existente da psique individual e coletiva com o corpo, suas idéias e emoções, a sociedade e a natureza como caminhos estruturantes do seu processo de transformação.”215

Desta forma, pode-se dizer que, nesse viés, o conceito de símbolo estruturante abrange

todas as vivências das coisas, já que “cada vivência é um símbolo do todo (...) Mas por que

estruturante? Porque, ao serem vivenciados, os símbolos (...) produzem significados, que vão

formar e transformar a identidade do Eu e a do Outro”.216 Daí por que o autor considera todos

os símbolos estruturantes arquetípicos, na medida em que “toda e qualquer vivência humana

tem sempre componentes que ultrapassam as circunstâncias da vida pessoal”.217

Nesse sentido, o próprio conceito de self é ampliado pela psicologia simbólica, que

não fica adstrito à esfera individual, reunindo a interação dos fenômenos conscientes e

inconscientes, quer na esfera individual, quer na esfera cultural.218 É dizer, aqui, self significa

geométrica, número, ritmo, idéia, etc.).” (CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A., ob. cit., p. XXI). Ressalte-se, ademais, que um dos pais da simbologia, Ernst Cassirrer, afirma, já na capa da edição brasileira do seu “Ensaio sobre o homem”, que “deveríamos definir o homem como animal symbolicum e não como animal rationale” (CASSIRER, E., ob. cit.). 213 DONHA, M. C. ob. cit., p. 54. 214 Muito embora a Psicologia Simbólica opere uma aproximação entre Antropologia e psicologia, “possibilitando uma maior compreensão do processo de desenvolvimento do homem, dentro de uma perspectiva a um só tempo coletiva e individual” (idem, ibidem, p. 54), salientamos que nosso enfoque será, no mais das vezes, coletivo. 215 BYINGTON, Carlos. O desenvolvimento simbólico da personalidade, p. 9. 216 BYINGTON, Carlos Amadeu Botelho. O trabalho simbólico, p. 154. 217 Idem, ibidem, p. 157. 218 BYINGTON, Carlos Amadeu B. A ciência simbólica, p. 68. Em outra obra, Byington salienta a importância de ampliar o conceito de Self para abranger a dimensão coletiva, de forma que podemos falar, por exemplo, em Self familiar, institucional, empresarial e cultural, e “em todas as demais dimensões onde percebemos a interação

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a estrutura básica da relação do ser humano com um “todo” - o qual pode ser um “todo”

cultural, por exemplo - de forma que podemos falar em Self Cultural,219 remetendo-nos à

percepção, dentro de uma cultura, do funcionamento articulado das partes componentes da

mesma ao passo que nos permite integrá-las num todo único.220 É dizer, o self passa a ter,

nessa acepção oferecida pelo autor, inúmeras dimensões.221

Uma das finalidades da cultura, no entender do autor, é a manutenção dos caminhos

descobertos e acumulados em sua história para guiar o desenvolvimento dos seres humanos.

Para tanto, uma cultura se utiliza dos costumes, hábitos, rituais, crenças – e, acreditamos, da

Lei - expressos pelas suas instituições. Nesse sentido, essas vivências culturais acumuladas

podem ser percebidas como símbolos estruturantes, na medida em que dão sentido aos fatos

culturais, ligando-os ao Self Cultural, ao passo em que transformam e estruturam a

Consciência Coletiva através dos tempos.

significativa das partes formando um todo“ (BYINGTON, Carlos Amadeu Botelho. O trabalho simbólico, p. 155). 219 BYINGTON, Carlos. Uma teoria simbólica da história, p. 134. 220 Idem, ibidem, p. 134. 221 BYINGTON, Carlos Amadeu Botelho. Psiqiatria e política: a psicopatia individual e coletiva no nacional socialismo: um estudo de psicologia simbólica, p. 52.

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CAPÍTULO 6 - DOS CICLOS ARQUETIPICOS

Essas afirmações tornam-se mais claras se entendermos que - ao tomarmos o Self

Cultural como uma estrutura coordenadora e padronizadora do desenvolvimento coletivo -

podemos descrever quatro estruturas através das quais o Self Cultural orienta este

desenvolvimento.222 São quatro ciclos ou dinamismos arquetípicos que regem o

desenvolvimento da consciência coletiva.223 Dentro desse viés coletivo, um dinamismo deve

ser visto como um padrão de organização da cultura,224 de forma que podemos falar em

quatro padrões básicos de funcionamento da consciência, quais sejam, matriarcal, patriarcal,

alteridade e cósmico ou da totalidade.225

A cada dinamismo corresponde um Ciclo de mesmo nome, que tem a finalidade de

estruturar a Consciência Coletiva dentro de cada padrão.226 O primeiro seria, assim, a

instancia psíquica individual ou coletiva que conformaria um fenômeno pessoal ou cultural a

que chamamos de ciclo. À “ativação” do primeiro na psique coletiva corresponderia à

“implantação” do segundo na cultura. Entretanto, no mais das vezes, estes termos são usados

como sinônimos.

Para a compreensão da teoria apresentada, é necessário assinalar pelo menos três

pontos. O primeiro é que não há, dentro da teoria desenvolvida pelo autor, qualquer

preocupação em posicionar uma cultura como mais – ou menos – desenvolvida do que outra.

Evolução, nesta seara, não implica em unidirecionalidade, de forma que não se trata de

222 BYINGTON, Carlos. Uma teoria simbólica da história, p. 137. 223 Na verdade, estes ciclos regem o desenvolvimento não só do coletivo, mas também do indivíduo. Entretanto, conforme já havíamos salientado alhures, optamos por enfocar o primeiro em detrimento do segundo. 224 BYINGTON, Carlos. Uma teoria simbólica da história, p. 141. 225 BYINGTON, Carlos Amadeu B. A ciência simbólica, p. 60. 226 BYINGTON, Carlos. Uma teoria simbólica da história, p. 149.

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afirmar que uma cultura parte de um estagio inicial para nunca mais retornar ao mesmo

ponto.227

Por exemplo, o dinamismo matriarcal é o responsável pelo início da estruturação da

consciência coletiva, seguindo-se do patriarcal, da alteridade e da totalidade (ou cósmico).

Uma cultura não passa do ciclo matriarcal para o cósmico sem passar pelo patriarcal e o da

alteridade, mas se encontrarmos nesta cultura o dinamismo matriarcal dominante, tal não nos

autoriza a afirmar que ela “ainda” está no ciclo matriarcal.228 Esta postura é chamada pelo

autor de “perspectiva evolutivo-estrutural”,229 de forma a que a incidência de um padrão

matriarcal dentro do patriarcalismo não pode ser rotulada de “regressiva”, na medida em que

possui legítimo valor estruturante.230

O segundo é que tais ciclos sucedem um ao outro, tanto no que diz respeito ao seu

aparecimento quanto a sua dominância, mas uma vez constelados, desempenham lado a lado

227 BYINGTON, Carlos. Uma teoria simbólica da história, p. 130. O autor salienta: “(...) precisamos nos resguardar do redutivismo do matriarcal ao ‘primitivo’, quando comparamos os dinamismos e nos damos conta que o matriarcal é mais próximo da vida inconsciente e vegetativa, o patriarcal mais abstrato que ele, o de alteridade mais capaz de diferenciar o padrão de relacionamento Eu – Outro que os outros, e o dinamismo de totalidade, mais capaz de perceber o todo que os demais. Essas características podem e devem ser usadas em cada indivíduo e cultura e, até mesmo comparativamente para receber o grau de diferenciação de cada função ou símbolo. Nunca, no entanto, pode se chegar a usar estas características para situar um indivíduo ou uma cultura acima ou abaixo, melhor ou pior que outra, por apresentar mais exuberantemente um ou outro dinamismo arquetípico” (BYINGTON, Carlos Amadeu B. A democracia e o arquétipo da alteridade, p. 98-99). 228 BYINGTON, Carlos. Uma teoria simbólica da história, p. 140. Nesse diapasão, afirma, ainda, Byington: “A pior conseqüência deste emprego redutivo dos dinamismos matriarcal e patriarcal, foi o redutivismo evolucionista que ocorre a partir da obra de Bachofen. Como sabemos, em sua obra ‘O Direito Materno’, de 1870, Bachofen publicou a importantíssima teoria, segundo a qual, a descendência matrilineal havia precedido a patrilineal na humanidade. Esse fato foi usado pelo etnocentrismo patriarcal para situar-se de forma mais evoluída que a matriarcal e contribuiu para a desvalorização dessa grande descoberta (...) O fato de o dinamismo matriarcal ser o mais básico, na vida psíquica individual e muito provavelmente também na coletiva, faz com que ele corra o perigo de ser considerado o mais ‘primitivo’ e, logo, inferior ao patriarcal (...)” (BYINGTON, Carlos Amadeu B. A democracia e o arquétipo da alteridade, p. 98). 229 O autor adota esta perspectiva “para evitar o grande viés da perspectiva evolucionista que é a perda da dimensão estrutural-arquetípica ao descrever fases que, uma vez ultrapassadas não podem mais reaparecer sob pena de serem rotuladas de regressão” e por que considera que “os arquétipos tem ciclos estruturantes da consciência que permanecem ativos durante toda a vida. Nessa perspectiva, a consciência tem uma evolução, mas ela é relativa, pois os arquétipos nunca são ultrapassados e nunca se tornam imprescindíveis” (BYINGTON, Carlos. A identidade pós-patriarcal do homem e da mulher e a estruturação quaternária do padrão de alteridade da consciência pelos arquétipos da anima e do animus, p. 13). 230 LIMA FILHO, A. P., ob, cit., p. 29.

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sua função.231 Os ciclos e seus dinamismos nunca são definitivamente ultrapassados, por isso

não podemos limitá-los a determinadas fases histórico-culturais.232

O terceiro é que o fato de um dinamismo ter atingido um determinado estágio não faz

com que ele se torne permanente nem que se sobreponha aos demais: os dinamismos

continuam presentes e estruturantes, de forma que se o padrão da totalidade for atingido -

como já o foi nas culturas antigas como a Hindu e a Chinesa - todos os outros dinamismos

continuam operantes, “inclusive com muitos problemas de estruturação pendentes”, de molde

que, em qualquer momento histórico do desenvolvimento da cultura, os demais dinamismos

podem se tornar dominantes outra vez em razão de determinados aspectos tangentes ao

desenvolvimento econômico, político ou religioso.233

Com estes detalhes, segue o exame dos ciclos, com ênfase nos dinamismos matriarcal,

patriarcal e da alteridade, mais adequados para o estudo da realidade jurídica brasileira, que

encontra-se justamente no problemático período de transição da dominância patriarcal para a

da alteridade, conforme veremos.

6.1. Do ciclo matriarcal

Ao ciclo matriarcal corresponde o dinamismo matriarcal, que é considerado o mais

básico.234 Ele é regido pelo arquétipo da Grande Mãe, que se orienta pelo desejo e pela

fertilidadade, exacerbando a criatividade e a capacidade de adaptação às necessidades básicas

231 BYINGTON, Carlos. O desenvolvimento simbólico da personalidade, p. 21. 232 Idem, ibidem, p. 51. 233 Idem, ibidem, p. 19. 234 BYINGTON, Carlos Amadeu B. A democracia e o arquétipo da alteridade, p. 100. Entretanto, mais uma vez ressaltamos o cuidado que devemos ter em não associar “básico” com “primitivo”. Assim, conforme já afirmamos na nota 57, ”o fato de o dinamismo matriarcal ser o mais básico, na vida psíquica individual e muito provavelmente também na coletiva, faz com que ele corra o perigo de ser considerado o mais ‘primitivo’ e, logo, inferior ao patriarcal (...)” (p. 98). De acordo com Neumann, “nos termos da energia psicológica, o caráter elementar do Feminino e seu simbolismo expressam a situação original da psique, a qual podemos portanto designar por matriarcal” (NEUMANN, E., ob. cit., p. 38).

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de sobrevivência. Ela se manifesta como provedora de alimento, proteção e calor.235 Um

grande exemplo de constelação deste arquétipo no Brasil é o herói matriarcal Macunaíma, que

orienta sua identidade pela sensualidade e pelo prazer.236 Outros exemplos seriam as culturas

afro-brasileira e índias.237

Este dinamismo não se exprime por meio de polaridades (eu – outro, certo – errado,

etc.). Na verdade, o padrão de consciência matriarcal caracteriza-se por uma grande

proximidade da relação Eu – Outro,238 de forma que suas discriminações não são rígidas,

sendo, de fato, essencialmente pragmáticas na medida em que possui baixa capacidade de

construir um dogmatismo abstrato (daí por que preservam grande capacidade de se

transformarem em função das necessidades do momento),239 estando mais ligado “à lei

espontaneamente amadurecida e tradicionalmente criada pelo hábito que à lei imposta pela

abstração e dogmatização, a partir de novos fatos e costumes”.240

235 NEUMANN, E., ob. cit., p. 36. Para Jung, “seus atributos são o ‘maternal’: simplesmente a mágica autoridade do feminino; a sabedoria e a elevação espiritual além da razão; o bondoso, o que cuida, o que sustenta, o que proporciona as condições de crescimento, fertilidade e alimento; o lugar da transformação mágica do renascimento; o instinto e o impulso favoráveis; o secreto, o oculto, o obscuro, o abissal, o mundo dos mortos, o devorador, sedutor e venenoso, o apavorante e fatal”, sendo que, num sentido mais amplo, ”a Igreja, a Universidade, a cidade ou país” (JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo, p. 92). Saliente-se, contudo, que todo arquétipo tem dois aspectos, um “bom” e outro “terrível”. O aspecto bom da grande mãe já apresentamos. No seu aspecto terrível, contudo, ele encarna o repudio e privação, ceifando a autonomia do indivíduo (NEUMANN, E. ob. cit., p. 36; 43). 236 BYINGTON, Carlos. O desenvolvimento simbólico da personalidade, p. 23. Na obra do etnógrafo naturalista alemão Theodor Koch-Grünberg, “Do Roraima ao Arenoco”, que reproduz lendas indígenas brasileiras, encontrava-se a história de Macunaíma, que, segundo o próprio estudioso, “ainda era menino, porém mais safado que todos os outros irmãos”. Inspirado por esta leitura, paradoxal e antropofagicamente (é dizer, consumindo apenas o que valia a pena ser consumido numa obra estrangeira) Mario de Andrade adotou Macunaíma como “herói de nossa gente”, o “herói sem nenhum caráter” (eis que, no seu entender “o brasileiro não tem caráter por que não possui nem civilização própria nem consciência tradicional”). Na obra do próprio Koch-Grünberg já se encontravam ressaltados a ambigüidade, os poderes criativos e transformadores deste herói, seu caráter nutridor por excelência, bem como sua malícia (ANDRADE, Mário. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter, p. 165-72). 237 Sobre tais culturas, afirma o autor: “(...) apresentam grande exuberância do dinamismo matriarcal, o que contribuiu muito para serem consideradas inferiores pelo etnocentrismo europeu. Assim, o resgate do dinamismo matriarcal reprimido, junto com o reconhecimento do seu importantíssimo papel na vida individual e social são uma parte essencial da implantação da Democracia no terceiro Mundo, através do dinamismo de alteridade” (BYINGTON, Carlos Amadeu B. A democracia e o arquétipo da alteridade, p. 101). 238 BYINGTON, Carlos Amadeu B. A democracia e o arquétipo da alteridade, p. 100. 239 BYINGTON, Carlos. Uma teoria simbólica da história, p. 141. 240 BYINGTON, Carlos. À psicose matriarcal, p. 5

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Não há que se confundir nem comparar, contudo, o dinamismo matriarcal com a

família matrilinear ou matrilocal, apesar deles, de fato, estarem relacionados.241 Fazendo uma

analogia, é como se afirmássemos que, nos contextos onde a chefia da família couber a uma

mulher, estaríamos diante de uma dominância matriarcal: para Byington, não podemos fazer

tal correlação na medida em que a mãe pode estar educando os filhos dentro de um padrão

patriarcal, de forma que não há que se confundir mulher com o matriarcal e homem com o

patriarcal.242 Assim, afirma o autor:

“Emprego o adjetivo matriarcal para designar fenômenos psíquicos ligados a um padrão de funcionamento característico do Arquétipo da Grande Mãe. Devemos diferenciá-lo da noção de matriarcado, comumente usado para designar sociedades nas quais o direito materno de morar, casar, dar nome e herdar se sobrepõe ao direito paterno. O adjetivo matriarcal engloba o substantivo matriarcado e vai muito além deste, pois se refere às manifestações do Arquétipo da Grande Mãe, que (...) está sempre presente, ainda que outro arquétipo como, por exemplo, o do Pai, esteja naquele momento dominando a Consciência Individual ou Coletiva.”243

O dinamismo matriarcal é geralmente considerado como mera etapa primitiva,

selvagem, infantil ou regressiva244- longe de ser percebido em sua natureza estrutural,

redundando na desvalorização das culturas que o expressam245- especialmente na vigência de

um ciclo patriarcal radical, onde normalmente tem-se a impressão de que o matriarcal

desapareceu.246

241 BYINGTON, Carlos. Uma teoria simbólica da história, p. 141. 242 Idem, Ibidem, p. 154. 243 BYINGTON, Carlos. À psicose matriarcal, p. 4 244 Nesse sentido, afirma Byington: “Um dos símbolos matriarcais mais importantes e descuidados da vida moderna é a Ecologia, nossa relação com a natureza que poderá ser decisiva na sobrevivência de nossa espécie. Pode-se rotular uma preocupação de tal importância como regressiva?” (BYINGTON, Carlos. A identidade pós-patriarcal, p. 13). 245 BYINGTON, Carlos. Uma teoria simbólica da história, p. 142. 246 Idem, Ibidem, p. 154.

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6.2. Do ciclo patriarcal

Este ciclo é ativado pelo dinamismo patriarcal, regido pelo arquétipo do Pai, que tem

como centro o fator diretor da tradição, da cultura e do desenvolvimento.247 Neste dinamismo,

este arquétipo acabou por se manifestar como “um deus unívoco da razão legisladora e

ordenadora, um representante do ‘bem’, do ‘verdadeiro’, e do ‘justo’”.248 Assim:

“O polivalente arquétipo do pai é, em grande parte, reduzido ao nível de um deus legislador e, como sua contraparte na consciência individual, o superego, com suas injunções e proibições, torna-se um componente dos valores conscientes tradicionais da coletividade. A unidade do deus legislador e do superego torna-se a autoridade máxima da consciência coletiva, expressando a imersão da personalidade em seu cânon cultural particular. Assim, à medida que o mundo patriarcal vai se desenvolvendo, a experiência do social interpõe-se entre a experiência direta do homem e a natureza dentro e fora dele. O dever individual deixa de ser primariamente aquilo que a natureza ou a sua psique dele requerem, mas aquilo que é imposto pelas solicitações do coletivo. Cada vez mais o coletivo alivia o indivíduo da necessidade de confronto direto com a natureza, mas o preço a pagar por esse alivio é o da sua confrontação com seus semelhantes tornar-se mais difícil por ser governada pela moralidade coletiva. Os deveres e obrigações desse mundo cultural são representados pelo superego que promove a cultura. Agora, para o pior ou para o melhor, seus instintos naturais deixam de ser o guia do homem, que passa a ser guiado pelas tradições sociais do país.”249

Essa redução, muitas vezes, se torna a estratégia do poder e da dominação, que não

raro deságua na intolerância, no dogmatismo e na opressão,250 sendo, por exemplo, o

dinamismo menos adequado para equacionar tensões onde uma polaridade não pode dominar

a outra.251

Aqui, operam-se as polarizações bem-mal, certo-errado, permitido-não-permitido,

cultivando o dogma, a tradição, a justiça, a palavra dada, a ordem, o dever e a propriedade

247 NEUMANN, Erich. A criança: estrutura e dinâmica da personalidade em desenvolvimento desde o inicio de sua formação, p. 156. 248 Idem, Ibidem, p. 157. Segundo Neumann, “o arquétipo do pai (...) no começo não é, de forma alguma, o mesmo que o deus legislador do cânon patriarcal (...). Mais antigo que o aspecto legislador do arquétipo do pai é a figura oniabrangente do Deus-Pai, cujas características não são sempre exclusivamente masculinas (...). Mas no curso do seu desenvolvimento patriarcal, essa figura (...) do arquétipo do pai, ainda portando traços femininos, diminui de importância. O ser feminino que existe no ser masculino diminui. O aspecto ligado à natureza do arquétipo do pai cede lugar, e seu significado cultural, ético, sociológico e político vêm para o primeiro plano” (p. 156). 249 Idem, Ibidem, p. 156. 250 BYINGTON, Carlos Amadeu B. A democracia e o arquétipo da alteridade, p. 105. 251 Tal como ocorreu durante o período da guerra fria, no que dizia respeito à ameaça atômica.

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privada.252 Sua freqüente rigidez na colocação de limites e unilateralidade o impede muitas

vezes de atender à situações humanas como um todo.253 Nesse sentido, Alberto Pereira Lima

Filho afirma que “a ameaça de dominação pelo Grande Pai seria melhor descrita como

ameaça de sanção”, já que, no seu entender, “o que leva o filho a aderir ao arquétipo do Pai

não são apenas suas esperanças progressivas e seu amor pela ordem, mas também o temor de

ser atingido por cruéis punições”, que o autor chama de “sonegação da benção paterna”.254

Assim é que, neste dinamismo, a estruturação da Consciência Coletiva se faz sempre

em nome de uma repressão efetivada em nome de uma lei e de uma ordem abstratas, como as

das religiões institucionalizadas ou do sistema jurídico.

É dizer, se no padrão matriarcal o assenhoramento de coisas alheias pode possuir

conotações simbólicas variadas, dentro de um dinamismo patriarcal este mesmo ato tende a

ser considerado, quase sempre, um delito a ser punido.255

A mãe particulariza, o pai (em suas manifestações arquetípicas) é coletivo, uniformiza

e normatiza, zelando pela inserção das normas e valores no universo humano – e o faz a partir

do Logos e do Nomos, isto é, da palavra e da lei. Assim, em nível arquetípico, “mais

importante do que a figura pessoal do presidente da república é a carta de princípios

(Constituição) pela qual ele zela. Ela é anterior e independente do zelador”.256

Desta forma, poderíamos sustentar que um dos símbolos estruturantes mais

exemplificativos do dinamismo patriarcal seria a Lei, na medida em que expressa uma

discriminação de opostos na Consciência Coletiva típica da estruturação efetuada pelo

Arquétipo do Pai, caracterizada pela grande abstração, generalização, repressão, abrangência

252 BYINGTON, Carlos. O desenvolvimento simbólico da personalidade, p. 23-24. 253 BYINGTON, Carlos. Uma teoria simbólica da história, p. 145. 254 LIMA FILHO, A. P., ob. cit., p. 42. 255 BYINGTON, Carlos. Uma teoria simbólica da história, p. 149. 256 LIMA FILHO, A. P., ob. cit., p. 73; 171.

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temporal e elitização.257 No entender de Byington, a Lei de Talião (“olho por olho, dente por

dente”), dentro do patriarcalismo radical não apenas serve para punir, “mas é a própria

essência de funcionamento repressivo do dinamismo do padrão patriarcal”.258 Nesse sentido,

“Devido à capacidade de abstração do dinamismo patriarcal, ele é o principal arquétipo organizador dos limites, das leis, dos deveres e metas da vida individual e social. Esta característica advém do fato dele proporcionar um acentuado afastamento entre o Eu e o Outro e entre as polaridades em geral (...). O Eu opera com o Outro em função de polaridades. Ao posicionar-se de um lado, o Eu se preocupa em justificar por que não está do outro. O certo é adotado com a mesma preocupação com que o errado é definido e proibido. O mesmo ocorre com a polaridade justiça – injustiça, bom – mau, feio – bonito e todas as demais.(...) essa maior capacidade (...) de abstração do dinamismo patriarcal lhe permite um enorme apego à organização e ao poder de controle sobre o corpo, as pessoas, as emoções e a natureza. O Eu e o Outro (...) podem se associar em grandes cadeias lógicas e formar sistemas muito abrangentes de rotulação, planejamento e execução. Isto faz com que o dinamismo patriarcal compita, antagonize e tenda a bitolar permanentemente o dinamismo matriarcal. É que o matriarcal, pelo próprio imediatismo da força da vida, tende a contrariar o planejamento patriarcal, que passa a lhe temer e rotular preconceituosa e pejorativamente."259

Ao não poder expressar seu poder repressor estruturante, este dinamismo passa a ser

vítima de seus próprios símbolos estruturantes, levando este dinamismo a auto implosão,

gerando caos e revoluções.260

6.3. Do ciclo da alteridade

Este ciclo é estruturado pelo dinamismo da alteridade, que busca estabelecer a

capacidade de estabelecermos relações sociais em igualdade de condições. Essa igualdade

inclui tanto o eixo Eu - Outro como o das grandes polaridades, inclusive, e principalmente, o

257 BYINGTON, Carlos. Uma teoria simbólica da história, p. 149-150. Byington exemplifica por meio das Tábuas da Lei do Velho Testamento: “A grande abstração nos fala, por exemplo, de ‘Amar a Deus sobre todas as coisas’. Não especifica que coisas. São coisas de um modo geral (abstração) e sem qualquer exceção (generalização). A característica repressiva emana da conotação imperativa de toda generalização, das proibições e da denominação de ‘mandamentos’ dadas às discriminações. A abrangência temporal vem do infinitivo e da generalização. Não é preciso especificar, por quanto tempo. Em nenhum mandamento figura a palavra sempre, porém ninguém tem a menor dúvida, ao lê-los, que se trata de dogmas para todo o sempre. A elitização na discriminação resulta na própria codificação repressiva que engloba a codificação ética e dogmática, pré-estabelecendo que muitas polaridades devem ser favorecidas e outras tantas desfavorecidas” (p. 150). 258 Idem, Ibidem, p. 160. 259 BYINGTON, Carlos Amadeu B. A democracia e o arquétipo da alteridade, p. 100-101. 260 BYINGTON, Carlos. Uma teoria simbólica da história, p. 162.

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eixo matriarcal – patriarcal.261 Consubstancia-se num processo de livre interação das

polaridades em função do todo, que não pode se identificar com apenas um dos lados de

qualquer polaridade,262 é dizer, ele se esforça para vivenciar a sensualidade matriarcal e a

organização patriarcal, mas sem se identificar ou ser dominado por elas.263 Desta forma:

“O ciclo da alteridade tem como finalidade a busca do encontro igualitário dialético e criativo entre as polaridades e, por isso, sua força arquetípica estruturante é altamente conflitante com os dinamismos parentais. Ao mesmo tempo, consiste da própria essência da alteridade o reconhecimento da importância estruturante dos ciclos parentais e o equilíbrio no funcionamento matriarcal-patriarcal. Assim sendo, é comum presenciarmos os arquétipos da alteridade atuarem junto com os símbolos propiciadores do resgate do dinamismo matriarcal ou patriarcal historicamente marginalizados por circunstâncias diversas.”264

Assim, muito embora o ocidente como um todo viva a problemática transição da

dominância patriarcal para a da alteridade265- pelo fato de nossa cultura assentar-se

predominantemente dentro do padrão patriarcal - uma das mais relevantes tarefas do ciclo da

alteridade passa a ser o resgate do dinamismo matriarcal.266

Não se trata, de fato, de uma liberação sem os limites estabelecidos pelo patriarcado, e

- como sabemos que as estruturas não desaparecem, mas convivem lado a lado - a alteridade

só funciona plenamente a partir da estruturação patriarcal. Tal não significa, entretanto,

repressão e elitismo, mas sim “a busca da manutenção da discriminação clara do Eu e do

261 Idem, Ibidem, p. 146. 262 BYINGTON, Carlos Amadeu B. A democracia e o arquétipo da alteridade, p. 95. 263 Idem, Ibidem, p. 101. 264 BYINGTON, Carlos. A identidade pós-patriarcal do homem e da mulher, p. 16. 265 BYINGTON, Carlos. Uma teoria simbólica da história, p. 148. 266 BYINGTON, Carlos. O desenvolvimento simbólico da personalidade, p. 55. Byington exemplifica: “a Cultura Hindu tem na divisão social das castas, por exemplo, uma ilha patriarcal, onde o padrão de alteridade ainda pouco penetrou. As transformações sócio-econômicas intensas, porém, tendem sempre a ativar esse dinamismo, que vai assim, aos poucos, sendo elaborado. O problema do crescimento populacional na China Continental, por exemplo, ultimamente reintensificou muito o dinamismo patriarcal, a tal ponto, que tornou a legislação da permissão de casamento e do nascimento de filhos um problema de segurança nacional, controlado policialmente, algo dificilmente encontrado na tradição da família patriarcal de qualquer cultura, por mais radical que seja ou tenha sido. No entanto, isso não fará desaparecer tudo o que já foi constelado nos seus dinamismos de alteridade e cósmico, dinamismos estes que continuarão estruturantes na Cultura Chinesa, ainda que possam não estar tão dominantes no momento quanto o dinamismo patriarcal” (p. 23).

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Outro, ou seja da sua identidade e conseqüente sendo de responsabilidade igualmente face ao

Eu quanto face ao Outro”,267 obtidas na estruturação patriarcal.

6.4. Do ciclo da totalidade

Finalmente, temos que o padrão da totalidade é um dinamismo não polarizado, que

vivencia o todo diretamente, transcendendo as polaridades, que passam a não mais estar no

primeiro plano.268 Coletivamente, este dinamismo é conhecido nas civilizações mais antigas e

sábias como as da Índia e as da China.

Entretanto, para que possamos atingir esse padrão, temos que ter passado pelos outros

três, na medida que são eles que preparam o terreno para a emergência do ciclo em tela, deles

dependendo para “funcionar” corretamente. Na verdade, como já vimos, mesmo que o padrão

da totalidade tenha sido atingido, todos os outros dinamismos continuam operantes. Assim,

como bem assevera Byington, “louvar o padrão cósmico e menosprezar os dinamismos

matriarcal, patriarcal e de alteridade é como desejar os frutos de uma árvore e desprezar as

raízes, o tronco e os galhos que lhes permitirão amadurecer”.269

267 BYINGTON, Carlos. Uma teoria simbólica da história, p. 172. 268 BYINGTON, Carlos. A identidade pós-patriarcal do homem e da mulher, p. 17. 269 BYINGTON, Carlos. O desenvolvimento simbólico da personalidade, p. 30-31.

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CAPÍTULO 7 - DA ESTRUTURAÇÃO SOCIAL DA ALTERIDADE NO

BRASIL

As influências estruturantes do arquétipo do Pai são elementos fundantes e

constituintes do que chamamos de “cultura ocidental”, que podem ser observadas em diversas

esferas que vão desde a religião até o Estado, dos costumes às leis, representando um “dever-

ser” cultural que se exerce por meio da interdição, da censura, da fiscalização e do governo.270

Nosso País vive, juntamente, com a civilização ocidental a árdua passagem do padrão

patriarcal – dinamismo onde nos fundamentamos e nos fixamos – para o da alteridade. É

dizer, “em grande parte, as funções chamadas paternas encontram-se em estado disfuncional,

tanto na cultura quanto na psique coletiva (...) estão em crise, o que seria esperado para o

término de um ciclo histórico da humanidade”.271

Ocorre que, muito embora tenhamos vivido com base em valores patriarcais, o

dinamismo matriarcal, por mais reprimido que tenha sido, não foi abolido da consciência

coletiva. Ao contrário, continua a mostrar sua força, em especial no que se refere à

emergência de uma série de mecanismos compensatórios, como o “jeitinho”.272

Esta é uma prova de criatividade que reside na tentativa de não se submeter, de não se

deixar tragar pela civilização patriarcal ocidental dominante. É a manutenção do dinamismo

matriarcal, exacerbando sua grande capacidade transformação em função das necessidades do

momento, ainda que ao preço da marginalidade e da ilegalidade.273

270 LIMA FILHO, A. P., ob. cit., p. 11-12. 271 LIMA FILHO, A. P., ob. cit., p. 17. Nesse sentido, afirma Byington: “Compreende-se, assim, que a mulher lidere o movimento em direção à alteridade, como pólo assimetricamente inferiorizado na polaridade homem-mulher, paralelamente a luta da comunidade homossexual, das comunidades raciais discriminadas e das classes sociais menos favorecidas. A perspectiva arquetípica abrange todo este movimento em direção à busca de alteridade e em cada caso, estudos minuciosos e especializados dessa transformação só ajudam a compreender e confirmar a tese da transformação do mundo moderno como um todo” (BYINGTON, Carlos. A identidade pós-patriarcal do homem e da mulher, p. 28). 272 PENNA, Eloisa M. Damasco. Sobre o terceiro mundo, p. 68. 273 Idem, ibidem, p. 69.

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Entretanto, ao passo que nossos atos mantêm operantes o dinamismo matriarcal,

somos compelidos ao pensamento patriarcal polarizador: se somos matriarcais não seremos

aceitos no mundo patriarcal. Ocorre que esse pensar faz com que não cogitemos a

possibilidade de conciliação dessas duas polaridades dentro de um padrão de alteridade.274

Contudo - e tendo em vista que, como já afirmamos, a alteridade só funciona

plenamente a partir da estruturação patriarcal - como fazer essa passagem sem nem ao menos

ter estruturado de fato um padrão patriarcal? A transição do patriarcado para a alteridade não

se opera sem a preservação do senso de Lei – considerado o mais positivo e justo legado deste

dinamismo, responsável em grande parte por nosso processo de humanização - que é ainda

mais amplo do que a adesão à manifestação humana da lei como norma jurídica.275

Histórica e psicologicamente, a Revolução Francesa, com seu ideal de “Liberdade,

Igualdade e Fraternidade” foi, no entender de Byington, um passo dado pela Consciência

Coletiva em direção ao padrão de alteridade na dimensão social, anunciando o surgimento da

República em direção à busca democrática do Estado Moderno.276 Inspirado neste ideário, o

autor afirma serem três os componentes básicos da alteridade, quais sejam, igualdade,

liberdade e totalidade. Para ele, a primeira implica, preservando-se as diferenças, no

estabelecimento de iguais oportunidades para a expressividade do Eu e do Outro; a segunda,

por sua vez, significa a possibilidade de plena expressão na interação dialética do Eu e do

Outro; ao passo que a terceira retrataria o fato de que a busca de expressividade acaba por

impulsionar o Eu e o Outro “a uma realidade que os transcende e os abrange”.277 Desses

componentes decorre a grande capacidade que este ciclo possui no sentido de garantir a

realização plena do ser humano tanto na esfera individual quanto na cultural, já que é nele que

se exacerba a capacidade que tanto a cultura quanto a personalidade possui de perceber a

274 Idem, ibidem, p. 70. 275 LIMA FILHO, A. P., ob. cit., p. 18. 276 BYINGTON, Carlos. O desenvolvimento simbólico da personalidade, p. 28. 277 BYINGTON, Carlos Amadeu B. A democracia e o arquétipo da alteridade, p. 101.

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interação Eu “versus” Outro, propiciando a aceitação das diferenças e o confronto

democrático.278

É que a democracia pode ser entendida como fundamentada na livre interação das

polaridades em função do todo, e é para que se opere esta interação povo – governo que se

torna necessária a representatividade eleitoral e a sua periódica renovação.279

Desta forma, podemos dizer que o dinamismo da alteridade é característico da

Democracia,280 especialmente se lembrarmos que a democracia nasceu destinada a

acompanhar períodos de crise, de dúvida, de reconstruções e de relativismos, sendo,

caracteristicamente um regime de que favorece a discussão, a busca do equilíbrio.281

A Constituição Brasileira de 1988, em especial, se pretende um marco de alteridade

num país de fortes tendências matriarcais, com deficiências na estruturação social do

dinamismo paterno. Essa deficiente estruturação social do dinamismo paterno pode ser

apontada sem grande dificuldade por nós, haja vista o grau de impunidade com o qual

aprendemos a conviver, que se estende das camadas mais pobres até as mais abastadas (muito

embora acreditemos que esta situação esteja se modificando), a existência do “jeitinho” como

fator de identidade nacional, bem como pela cultura do “sabe com quem está falando?”282

Mas onde encontraríamos alteridade numa Constituição? Acreditamos que nos

dispositivos garantidores de direitos à semelhança da Declaração Francesa de 1789,283 bem

como nos direitos sociais. Materialmente muito semelhantes entre si, tais disposições, de fato,

278 BYINGTON, Carlos Amadeu B. A missão de Seu Gabriel e o arquétipo do chamado: um estudo de psicologia simbólica, p. 115. 279 BYINGTON, Carlos Amadeu B. A democracia e o arquétipo da alteridade, p. 95. 280 Idem, ibidem, p. 96. 281 SALDANHA, Nelson. O poder constituinte, p. 75. 282 VARGAS, Nairo de Souza. Impunidade-Imunidade e o arquétipo do pai entre nós, p. 107-108. 283 A Constituição de 1824 traz no Título 8º: “Das Disposições Gerais e Garantias dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brasileiros” (art. 173 a 179 e incisos); a de 1891, no Título IV, Sessão II: “Declaração de direitos” (art. 72 a 78), a de 1934, no Título III, Capítulo II: “Dos Direitos e das Garantias Individuais” (art. 113 a 114), a de 1937: “Dos Direitos e Garantias Individuais” (art. 122 a 123), a de 1946 no Título IV, Capítulo II: “Dos Direitos e das Garantias Individuais” (art. 141 a 144), a de 1967, no Título II, Capítulo IV: “Dos Direitos e Garantias Individuais” (art. 150 a 151), a de 1969, no Título II, Capítulo IV: “Dos Direitos e Garantias Individuais” (art. 153 a 154), a de 1988, no Título II, Capítulo I: “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos” (art. 5º e incisos)

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não poderiam aspirar à efetividade imediata, por estarem demasiado distantes de nossa

realidade.

Na verdade, toda nossa história constitucional parece demonstrar que nossas

Constituições acabam sempre por encampar preceitos de inspiração claramente fundamentada

num ideal de alteridade, como num movimento compensatório de nossas deficiências

coletivas no que se refere à estruturação e conciliação dos ciclos materno e paterno no Brasil.

7.1. As Constituições brasileiras: tentativas de instauração do ciclo da alteridade no

Brasil

Marcadamente influenciada pelo modelo constitucional francês e inglês do século

XIX,284 a Constituição de 1824 consagrou a igualdade em seu artigo 179, inciso XIII, ao

afirmar que “a lei será igual par todos, quer proteja, quer castigue e recompensará em

proporção dos merecimentos de cada um”.285 Entretanto, conforme já salientamos,286

convivíamos cotidianamente com a escravidão.

Ademais, uma Carta de Direitos concebida sob o ideário liberal seria, em tese,

fundamentalmente incompatível com a monarquia, especialmente se lembrarmos que nosso

modelo de “monarquia constitucional” ainda reservava, sob a alcunha de “moderador”, grande

poder à figura do Imperador. Nesse sentido, vejamos o entendimento de Celso Bastos:

“A Constituição outorgada de 1824, embora sem deixar de trazer consigo características que hoje não seriam aceitáveis como democráticas, era marcada, sem dúvida, por um grande liberalismo que se retratava, sobretudo, no rol dos direitos individuais que era praticamente o

284 Paulo Bonavides distingue três fases históricas identificáveis “em relação aos valores políticos, jurídicos e ideológicos que tiveram influxo preponderante na obra de caracterização formal das instituições: a primeira, vinculada ao modelo constitucional francês e inglês do século XIX; a segunda, representando já uma ruptura, atada ao modelo norte-americano e, finalmente, a terceira, em curso, em que se percebe com toda a evidência, a presença de traços fundamentais presos ao constitucionalismo alemão do corrente século“ (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 361). 285 BECKER, Antonio. Constituições Brasileiras de 1824 a 1988, p. 21. 286 Vide Parte II, item 2.1.3.

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que havia de mais moderno na época, como também na adoção da separação de poderes que, além dos três clássicos, acrescentava um quarto: o Poder Moderador. É preciso, contudo, reconhecer que, se este constitucionalismo liberal encontrava plena consonância com as idéias dominantes à época e mesmo com as de uma elite do País, não deixava, contudo, de encontrar toda sorte de dificuldades para se tornar eficaz: o pequeno desenvolvimento econômico do País; a falta de participação política; as grandes distâncias e a precariedade dos transportes e das comunicações.”287

Ainda nessa direção, o autor afirma que “se cotejarmos o Texto de 1824 com as

efetivas práticas constitucionais, vamos notar um acentuado divórcio. Com efeito, não era

possível ao Brasil da época praticar na sua pureza todos os institutos previstos na Lei

Maior”.288

A Constituição de 1891, de influencia claramente norte-americana, teve como marca a

tentativa de instauração de um estado federativo e republicano. Por este último, o que se

pretendia era a supressão, politicamente, de privilégios quanto à hereditariedade e,

juridicamente, quanto ao status pessoal, de forma que “as autoridades tornam-se

representativas do povo e investidas de mandato por prazo certo”,289 o que poderia ter

fortalecido sobremaneira os alicerces da alteridade no Brasil, não fosse o fato desses

privilégios continuarem existindo nas diversas alçadas da vida social brasileira.290

Ademais, este Texto continuou a dar destaque à Declaração de Direitos, herança da

Constituição anterior, trazendo como novidade o fato de alçar o Habeas Corpus à categoria de

garantia constitucional.

Entretanto, conforme Celso Bastos, “a Constituição de 1891 recebeu um duro golpe

provindo da própria realidade que ela pretendia regulamentar (...) os próprios teóricos não

acreditavam nas suas virtudes”, o que fez com que tal carta não pudesse reunir força

normativa suficiente para evitar a radical modificação que sofreu na reforma de 1926,

287 BASTOS, C. R., ob. cit., p. 98. 288 Idem, ibidem, p. 103. 289 Idem, ibidem, p. 109. 290 Conforme demonstramos na Parte II.

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marcada por uma conotação “nitidamente racionalista, autoritária”.291 Segundo Paulo

Bonavides,

“Com efeito, os princípios chaves que faziam a estrutura do novo Estado diametralmente oposta àquela vigente no Império eram doravante: o sistema republicano, a forma presidencial de governo, a forma federativa de Estado e o funcionamento de uma suprema corte, apta a decretar a inconstitucionalidade dos atos de poder; enfim, todas aquelas técnicas de exercício da autoridade preconizadas na época pelo chamado ideal de democracia republicana imperante nos Estados Unidos e dali importadas para coroar uma certa modalidade de Estado liberal, que representava a ruptura com o modelo autocrático do absolutismo monárquico e se inspirava em valores de estabilidade jurídica vinculados ao conceito individualista de liberdade. Essa concepção política e doutrinária de um Estado Liberal com todo o alcance dos valores republicanos do século chegava assim dos Estados Unidos ao Brasil de maneira um tanto retardada, mas aqui iria dominar formalmente durante o período constitucional que se dilata de 24 de fevereiro de 1891, até o Dec. não 19.398, de 11 de novembro de 1930, que marcou juridicamente o fim da chamada Primeira República e consagrou o exercício discricionário do poder pelos titulares do Governo Provisório. Um espaço intermediário de autoritarismo e ditadura se seguiu a 1930 e durou quatro anos, até que, enfim, uma assembléia constituinte, convocada e eleita, fez a reorganização constitucional do país. Durante cerca de 40 anos o Brasil republicano e constitucional perfilhou, exterior e formalmente, na doutrina um constitucionalismo de raízes norte-americanas com a fachada teórica quase perfeita do chamado Estado liberal de Direito. A Constituição republicana de 1891 recebeu uma única revisão, aquela promulgada em 1926. Veio ela, 1.2)porém, com grande atraso, não preenchendo as finalidades previstas, nem impedindo que a primeira República (1891-1930) se desmoronasse por efeito da desmoralização oligárquica dos poderes.”292 (Grifamos)

A Constituição de 1934, de inspiração nitidamente alemã, é considerada um marco de

instituição da democracia social. Nessa Carta de Direitos, mais uma vez, podemos vislumbrar

as tentativas de instauração de um padrão de alteridade - tendo em mente que este dinamismo

estrutura a capacidade de estabelecermos relações sociais em igualdade de condições -

especialmente no que se refere ao reconhecimento do direito de sufrágio feminino e a

importância dada aos direitos sociais293 (sindicalização e Previdência Social, por exemplo),

fruto da inserção de uma corrente de princípios que consagravam o aspecto social dos direitos

291 BASTOS, C. R., ob. cit., p. 109. 292 BONAVIDES, P., ob. cit., p. 365-6. 293 Segundo José Afonso, podemos dizer que os direitos sociais, “como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais” (SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 289).

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fundamentais da pessoa humana”294 (cujo rol continuava presente no Título III, Capítulo II,

denominado “Dos Direitos e das Garantias Individuais”), notadamente no que tange

“a subordinação do direito de propriedade do interesse social ou coletivo (...), a instituição da Justiça do Trabalho, o salário mínimo, as férias anuais do trabalhador obrigatoriamente remuneradas, a indenização ao trabalhador dispensado sem justa causa, o amparo à maternidade e à infância, o socorro às famílias de prole numerosa (...).”295

Seu caráter conciliatório (“totalizante”, de acordo com o ideal do dinamismo da

alteridade) era evidente, na medida em que “procurou-se conciliar a democracia liberal com o

socialismo, no domínio econômico-social; o federalismo com o unitarismo; o

presidencialismo com o parlamentarismo, na esfera governamental”.296

Ocorre que essa tentativa de instauração de um Estado social permaneceu uma utopia,

tendo em vista “os abalos ideológicos e pressões não menos graves de interesses

contraditórios ou hostis, conducentes a enfraquecer a eficácia e a juridicidade dos direitos

sociais na esfera objetiva de concretizações”.297 Daí por que Celso Bastos alerta:

“Do ponto de vista histórico, a Constituição de 1934 não apresenta relevância. É, no fundo, um instrumento circunstancial que reflete os antagonismos, as aspirações e os conflitos da sociedade naquele momento, mas que estava fadada a ter uma curta duração, abolida que foi pelo golpe de 1937.”298

A Constituição outorgada de 1937, fruto de um golpe, possuía um viés marcadamente

autoritário, destinando-se unicamente a institucionalizar o regime que a concebeu. Ocorre

que, de fato, o que prevaleceu nesta época foi o Estado Novo, arbitrário e sem amarras

jurídicas de quaisquer espécie, onde valia apenas a vontade de Getúlio Vargas. Ademais, no

entender de Celso Bastos, tal Carta nem chegou a viger, na medida em que, para tanto,

deveria ter-se submetido a um plebiscito que jamais se realizou.299

294 Idem, ibidem, p. 366. 295 Idem, ibidem, p. 369. 296 BASTOS, C. R., ob. cit., p. 115. 297 BONAVIDES, P., ob. cit., p. 368. 298 BASTOS, C. R., ob. cit., p. 115. 299 Idem, ibidem, p. 125.

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Entretanto, a presente Carta ainda assim apresentava o rol de direitos e garantias

individuais, o qual, entretanto, não passava de um conjunto de dispositivos isentos de

qualquer repercussão na realidade.300

A Constituição de 1946 representava a saída deste período autoritário, rumo à tentativa

de se instituir um Estado democrático por meio de medidas asseguradoras dos direitos

individuais, buscando operacionalizar uma síntese (novamente a busca da totalidade, um dos

componentes básicos da alteridade) entre o pensamento político libertário e a abertura para

um Estado social, bem como entre o princípio da liberdade de iniciativa com o princípio da

justiça social. Ademais, retomou-se o rol de direitos e garantias individuais do Texto de

1934.301

Entretanto, em que pese tais dispositivos, Meirelles Teixeira afirma que esta

Constituição, em grande parte, não chegou a vigorar, eis que sua efetiva aplicação dependia

de mais de uma centena de leis complementares, lamentando a inércia do Poder Legislativo

nesse sentido, pelo fato de que a maioria dessas leis serviriam justamente para possibilitar a

realização da política social delineada no texto constitucional em tela, de molde a realizar os

fins sociais a que o estado brasileiro se houvera proposto a colimar.302 E arremata:

“E o povo brasileiro, apesar dos governos ditos sociais, trabalhistas, populistas, etc., desde 1934 está a espera de risonhas promessas constitucionais, como a repressão aos abusos do poder econômico (...), da justa distribuição de propriedade (...), a efetivação de numerosos princípios de Direito do Trabalho (...), proteção efetiva da família e assistência à maternidade e à infância (...), amparo efetivo à cultura (...). Eis aí o vastíssimo programa de realizações no campo econômico, social e cultural, inscrito solenemente nas Constituições brasileiras desde 1934, e, não obstante, até hoje simples retórica constitucional, mercê da inércia do Poder Legislativo e dos próprios órgãos governamentais.”303

300 Idem, ibidem, p. 121. 301 Idem, ibidem, p. 129-130. 302 TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de direito constitucional, p. 307. 303 Idem, ibidem, p. 308.

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Por sua vez, a Constituição de 1967, seguida da emenda de 1969304 foi confeccionada

num período da história do Brasil onde “prevaleceram os rótulos e as fórmulas, com total

descaso pela substância”.305 Preocupada fundamentalmente com a segurança nacional,306

ainda assim buscou “agasalhar princípios de uma Constituição democrática, conferindo um

rol de direitos individuais, liberdade de iniciativa, mas onde a todo instante se sente a mão do

Estado autoritário que a editou”.307

É dizer, inclusive durante a ditadura - que se utiliza da e estratégia do poder, da

dominação, da intolerância, do dogmatismo e da opressão308, típico da ativação do arquétipo

do Pai em seu aspecto negativo – encontramos o apelo à alteridade.

Tal não implica em afirma que esta carta não tenha vindo para satisfazer e realizar o

autoritarismo, especialmente no que se refere à implantação de institutos como o decreto-

lei.309 O que queremos afirmar é que, ainda que formalmente, o apelo à alteridade - sob a

304 Foge dos nossos propósitos, aqui, discutir se a emenda de 1969 é de fato uma emenda ou uma nova Constituição. Optou-se por tratar concomitantemente de ambos os diplomas pelo fato de que eles guardam a óbvia semelhança de terem sido outorgados um em seguida ao outro por forças autoritárias. 305 BASTOS, C. R., ob. cit., p. 139. 306 SILVA, J. A., ob. cit., p. 89. 307 BASTOS, C. R., ob. cit., p. 135. 308 BYINGTON, Carlos Amadeu B. A democracia e o arquétipo da alteridade, p. 105. 309MELLO, Celso Antonio Bandeira de et al. Poder constituinte, p. 81. O artigo 55 da Constituição de 1967-69 dispõe: “O Presidente da República, em casos de urgência ou de interesse público relevante, e desde que não haja aumento de despesa, poderá expedir decretos-leis sobre as seguintes matérias: I – segurança nacional; II – finanças públicas, inclusive normas tributárias; e III – criação de cargos públicos e fixação de vencimentos. Par. 1º - Publicado o texto, que terá vigência imediata, o decreto-lei será submetido pelo Presidente da República ao Congresso Nacional, que o aprovará ou rejeitará dentro de sessenta dias a contar do seu recebimento, não podendo emendá-lo, se, nesse prazo, não houver deliberação, aplicar-seá o disposto no art. 3º do art. 51” (BECKER, A., ob. cit., p. 224). Segundo Celso Bastos, “em matéria legislativa, o Executivo tornou-se praticamente todo-poderoso, facultando-se-lhe uma iniciativa de lei em um campo reservado, é dizer: no qual só ele poderia dar início sem que, por isso, estivesse proibido de deflagrar o processo legislativo de iniciativa de quaisquer dos outros órgãos. As leis delegadas que recebeu, praticamente delas não necessitou, tais eram os poderes de que estava investido. Os decretos-leis se tornaram uma arma poderosíssima diante de expressões vagas como: urgência e interesse público relevante, assim como em matéria de segurança nacional. A conjugação desses conceitos permitia que se levasse a extremos insuspeitáveis a competência do Executivo para editar normas” (BASTOS, C. R., ob. cit., p. 135). Para Lúcia do Valle Figueiredo, “é evidente que o decreto-lei é um instrumento que todos nós temos por odioso, e por quê? Porque, normalmente, ele tem desbordado dos limites constitucionais, e se o decreto-lei já seria um recurso extremo, o problema maior do decreto-lei não é o que está na Constituição. É o desbordamento que se faz do decreto-lei. Isto é, mais ou menos como se querer tirar o competência discricionária, por que com a competência discricionária, acaba havendo um desbordamento e se tende à arbitrariedade. Quero aqui deixar bem clara a minha posição com relação ao decreto-lei. Eu, absolutamente, não apoio o decreto-lei. Se o decreto-lei fosse usado num estreito limite, por exemplo, na segurança nacional, mas não com um conceito elástico que se tem de segurança nacional. (...) Segurança nacional tem que ter uma determinada conotação. Então, que se usasse o decreto-lei para legislar sobre

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forma de dispositivos que deveriam assegurar direitos e garantias individuais e sociais - se fez

presente.

Isso porque, acreditamos, ao mesmo tempo que os militares mostravam seu desprezo

pelo direito constitucional - por que o poder por eles exercido neste período não conhecia

limites – buscavam sempre dar uma aparência de legitimidade por meio da invocação de

preceitos legais que, supostamente, embasariam seus atos de força.310

Nesse sentido, Celso Antonio Bandeira de Mello afirma que mesmo os textos

constitucionais outorgados por ditadores possuem o que ele chama de “fulgurações

progressistas”, quer seja por “mera reprodução do que consta dos dispositivos constitucionais

dos países mais avançados”, quer seja pelo fato desses governos não quererem correr o risco

da omissão “de dizer aquilo que de algum modo é patrimônio cultural da humanidade, de uma

certa época”, quer seja “como meio de captar as simpatias da comunidade”.311

Concebida como símbolo do fim do mais longo período de instabilidade política da

história republicana brasileira,312 a Constituição de 1988 ficou conhecida como a

segurança nacional. Então, não vejo, realmente, a a necessidade de um expurgo completo do decreto-lei, mas sim o controle. Mas um controle realmente eficaz. Quer dizer, essa Constituição em de ser obedecida. (...) Embora ela seja outorgada, mesmo aquele que outorgaram devem obedecê-la. Mas como ela foi outorgada, ninguém se vê na obrigação de obedecê-la, ou por outra, todo mundo acha que não é para ser obedecida. Quer dizer, é falta de seriedade mesmo!” (MELLO, C. A. B. et al., ob. cit., p. 83-4). 310 BASTOS, C. R., ob. cit., p. 138. 311 MELLO, C. A. B. et al., ob. cit., p. 76. O autor exemplifica fazendo uso do art. 160 da carta de 1967-1969, que dispunha: “A ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base nos seguintes princípios: I – liberdade de iniciativa; II – valorização do trabalho como condição da dignidade humana; III – função social da propriedade; IV – harmonia e solidariedade entre as categorias sociais de produção; V – repressão ao abuso de poder econômico, caracterizado pelo domínio dos mercados, a eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros; VI – expansão das oportunidades de emprego produtivo”. Segundo o jurista, “esse texto constitucional, outorgado, embora, como todos o sabemos, tem disposições desse teor. Eu diria, disposições mais ricas em matéria de programa social do que se encontrou na maior parte das Constituições de países mais avançados que nós” (p. 77). Tal, no seu entender, ocorre tendo em vista que “(...) dificilmente se encontra uma Constituição claramente retrograda. Os ditadores, por piores que sejam, não editam Constituições, salvo alguma exceção raríssima, claramente retrogradas. Pelo contrário. Editam Constituições que ao ler-se o que dispõem, estão marcadas por cintilações, fulgurações as mais generosas. Este dado, este fato, que é muito mais um fato social que jurídico, ganha juridicidade na medida em que se traduz num regramento constitucional, e este fato deveria ser aproveitado pelos juristas. Desgraçadamente, não costuma ser. O que com freqüência os juristas fazem é amaldiçoar aquelas regras produzidas em regime de exceção, em vez de sacar delas todo o proveito que poderiam sacar.” (p. 75). 312 MARTINEZ, Paulo. Constituição: legalidade versus realidade, p. 9.

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“Constituição Cidadã”. Sua confecção, inclusive, foi permeada de tentativas de se ampliar ao

máximo a participação popular.313

Considera-se, assim, a Carta de Direitos de 1988 como sendo uma Constituição

“Social”, “Dirigente”, “Compromissária”, nota comum das Constituições modernas.314

A Constituição de 1988, igualmente, encampa preceitos de feição claramente

inspiradas num ideal de alteridade, como os direitos e garantias fundamentais individuais, que

foi ampliado para acomodar os direitos sociais e econômicos.315

Vai, entretanto, além do que se espera nesse sentido, quando declara ter como

fundamento, dentre outros, “a cidadania”, “a dignidade da pessoa humana” e “o pluralismo

político”; e por objetivo “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “erradicar a

pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “promover o bem

de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de

discriminação”.

Apenas para ficar nos três fundamentos elencados, temos que o primeiro, de acordo

com Celso Bastos, é condição para que se possa falar em democracia, eis que é a cidadania

que garante a participação política do indivíduo nos negócios do Estado e em outras áreas do

313 Durante os anos de 1986 e 1987, o Centro de Processamento de Dados do Senado (Prodasen) elaborou um formulário-padrão que possibilitava aos cidadãos brasileiros enviar sugestões do próprio punho para a nova Constituição brasileira. Cinco milhões de formulários foram distribuídos pelos Correios em todo o País. Apenas 72.719 brasileiros acreditaram na proposta de participação popular e enviaram suas sugestões para a Assembléia Nacional Constituinte, formando o Saic, sistema de apoio informático à Constituinte. Por outro lado, há que se ressaltar que essa contribuição popular foi relegada pela maioria dos constituintes da época. Um dos poucos que recorreram às cartas para apresentar sugestões foi um senador do Espírito Santo chamado José Inácio Ferreira. “As sugestões seguramente não tiveram o devido tratamento”, afirma Antônio Augusto de Queiroz, diretor do Diap (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar) (MARQUES, Hugo. Cartas da Esperança. Disponível em: <http://www.terra.com.br/istoe/edicoes/1980/artigo63277-1.htm>. Acesso em 24 de outubro de 2007). 314 TEIXEIRA, J. H. M., ob. cit., p. 298. Ressalte-se que, com exceção das Constituições de 1824 e 1891, que foram liberais, todas as demais, inclusive a Constituição de 1967-69, são consideradas Constituições sociais, tendo recebido o influxo da Constituição alemã de Weimar, de 1919 (CUNHA JR., Dirley da. O Controle Judicial das Omissões do Poder Público, p. 8; 68), bem como da Constituição mexicana de 1917 (SILVA, J. A. ob. cit., p. 288). 315 CUNHA JR., D., ob. cit., p. 70.

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interesse público316. O segundo, em consonância com o mesmo autor, visa proporcionar

condições para que as pessoas tenham uma vida digna, quer seja oferecendo condições

econômicas para tanto, quer seja condenando a tortura e o racismo, colocando a pessoa

humana “como fim último de nossa sociedade e não como simples meio para alcançar certos

objetivos, como por exemplo, o econômico”.317 Por sua vez, temos que o último é,

igualmente, uma imposição da democracia, que exige formas plurais de organização da

sociedade em suas diversas instancias (partidos, religiões, escolas, empresas, sindicatos,

organizações culturais), de forma a agasalhar aqueles que possuem visões e interesses

distintos dos adotados pelo Estado. Assim, “o pluralismo é a possibilidade de oposição e

controle do estado”.318

Ademais, o Texto de 1988 dedica um Titulo (o VIII) exclusivo à ordem social - eis

que, mesmo presente nas nossas Constituições desde 1934, só com o advento da Constituição

de 1988 é que esses direitos passaram a ser tratados de forma separada da ordem econômica319

- impressionando “o grande número de matérias disciplinadas que têm por finalidade atender

a vários segmentos da vida social”.320 Entretanto,

“Nota-se que todos os preceitos reguladores da ordem social asseguram direitos extremamente generosos, porém, como se tratam daqueles direitos à prestação e não à atuação específica do Estado, estes ficam na dependência da votação que, por via de regra, os orçamentos aprovados não contemplam as verbas necessárias para a satisfação de todos esses direitos, o que gera, portanto, uma certa contradição entre o que está dito no Texto Constitucional e o que é efetivamente fruível pelos cidadãos”321.

316 Saliente-se que o puralismo político representa muito bem o ideal da alteridade na medida em que “a democracia pluralista não tem por escopo a unanimidade. Sua finalidade é promover uma institucionalização da divergência, isto é, permitir que representantes dos diferentes interesses gozem de liberdade para fomentar sua causa, desde que em consonância com os meios legais e democráticos” (EMERIQUE, Lilian Márcia Balmant. Democracia e o direito de oposição política, p. 200). 317 BASTOS, C. R., ob. cit., p. 158-9. 318 Idem, ibidem, p. 159. 319 SILVA, J. A., ob. cit., p. 288. Salientando que o capitulo dos direitos sociais está no Título II, o que não significa dizer que eles não sejam ínsitos na ordem social (idem, ibidem, p. 288). 320 BASTOS, C. R. ob. cit., p. 475. Segundo o autor, “esse é um dos pontos em que nossa Constituição mais demonstra o seu caráter analítico e abrangente” (p. 475). 321 Idem, ibidem, p. 476.

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Sabemos das dificuldades que estes direitos encontram para afirmar-se, entretanto, o

que estamos pondo em relevo é a existência dos mesmos dentro das Constituições brasileiras,

a despeito destas dificuldades, como forma de tentativa de instauração de um dinamismo de

alteridade. Na verdade, podemos afirmar que “cada nova Carta tem sido anunciada como a

consolidação da democracia e o instrumento mais eficaz das grandes mudanças que seriam

introduzidas no país daí em diante”.322

Que reste claro, contudo, que essa explanação implica em afirmar que apenas nossa

história constitucional serve como exemplo de tentativa de implantação do ciclo de alteridade

no Brasil. Na verdade, todos os grandes movimentos sociais - como as reivindicações das

minorias, a liberação feminina, o reconhecimento da homossexualidade – exemplificam a

implantação institucional da ação dos símbolos estruturantes da alteridade.323 A própria busca

da identidade nacional, no entender de Carlos Byington, se desenrola nesse terreno:

“Um dos grandes empreendimentos em curso nos países do terceiro Mundo é a busca da Identidade Nacional dentro de uma realidade pluricultural. Está aí algo que temos construir por nós mesmos e que nenhum ensinamento importado poderá nos trazer. Um francês ou um alemão tem muitos séculos de história do seu povo se comportando como um todo único para referenciar a sua identidade (...) Esta imensa tarefa, que mal começamos a empreender, envolve a construção desta identidade dentro de uma relação social onde a identidade social do Outro seja tão fundamental quanto a do Eu, de forma que o terreno apropriado para que a mesma se desenrole é o do dinamismo da alteridade.”324

322 MARTINEZ, P. ob. cit., p. 5. 323 BYINGTON, Carlos. Uma teoria simbólica da história, p. 159. 324 BYINGTON, Carlos. O desenvolvimento simbólico da personalidade, p. 121.

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PARTE IV - SISTEMATIZAÇÕES

CAPÍTULO 8 - ENFIM, COMO DESCOBRIR (CONSTRUIR) O FUTURO ?

8.1. Sintetizando para uma interrupção provisória

Pretendendo uma interrupção provisória, para que novos processos de reflexão possam

dar continuidade ao construído nesta “aventura intelectual” em relato, podemos afirmar que

não há que se falar em legitimidade sem que se sobreponham (harmonicamente) as esferas

jurídica, social e psíquica coletiva.

É dizer, se não existir força jurídica-normativa (caracterizada pela submissão na forma

de obediência ética a uma norma jurídica) o que impera é o desconhecimento da lei; em não

havendo apoio sócio-cultural (cuja marca é a alta probabilidade de que os outros ajam

socialmente de um modo que corresponde à expectativas de um primeiro agente) o que existe

é a falta adequação entre nosso “ser” e nosso “dever-ser” jurisdicizado; sem respaldo

psíquico-coletivo (caracterizado pelo comportamento impulsionado psicologicamente) o que

há é uma realidade que pode ser chamada de “macunaímica”.

Em nenhum dos casos, isoladamente considerados, poderia se falar legitimidade de um

ordenamento ou de uma Constituição. A existência desta tríade é fundamental, o que não

significa dizer que a legitimidade exija força idêntica de todos os três aspectos da questão, que

podem ser mais ou menos fracos que os outros. Quanto maior o nível de presença dos três

elementos componentes da tríade, e quanto mais equilíbrio existir entre eles, maior será a

adesão espontânea à normatividade jurídica.

Qualquer quantificação nesta seara será imprecisa, mas será tanto mais acurada quanto

maior o conhecimento sobre as particularidades jurídicas, sócio-culturais e psíquicas coletivas

de um País para que se possa elaborar determinados indicadores.

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Por exemplo, a relação entre o público e o privado operante em um país exerce grande

influencia na configuração da tríade, e ela se revela nas mais quotidianas situações. Assim,

quem oferece uma festa em sua própria casa que se estende madrugada adentro sem se

preocupar com o incômodo dos vizinhos revela desprezo pelo espaço público, já que “para

quem dá uma festa, o espaço público é determinado pelo bem-estar dos vizinhos.

Desconsiderar isso é tratar o público como se fosse privado”.325

A situação apresentada, assim, afronta as normas civis relativas ao direito de

vizinhança (desconhecimento do jurídico), revela a face de um país que privilegia o

personalismo (do dono da festa) e relega o indivíduo (vizinho) ao patamar de “mero”

indivíduo (relações sociais pautadas pelo carisma ou pela tradição, onde o racionalismo legal

se concretiza apenas na presença de uma autoridade, dificilmente espontaneamente), bem

como indica uma sociedade deficitária na estruturação do ciclo patriarcal (dificuldade na

passagem para o ciclo da alteridade, que busca estabelecer a capacidade de estabelecermos

relações sociais em igualdade de condições).

Estas foram as respostas encontradas por esta investigação. Entretanto, acredita-se ser

importante discutir ainda duas variáveis: a chamada “consciência jurídica” e o papel da

educação formal nesse processo legitimador, que acreditamos estar superestimado.

O período que antecedeu a Constituição de 1988 foi farto em discussões acerca

da importância de se formar uma “consciência jurídica”, que deveria insculpir na mentalidade

nacional a adesão espontânea à normatividade jurídica:

(...) Porque o direito não se aplica, sabemos nós, pela força, a cada momento (...), o direito não teria como se aplicar se na verdade não existisse uma noção totalmente diversa, que é o que funda o direito, que não é a coação, é a coercibilidade, é a possibilidade da coação. Logo ele se aplica geralmente pela convicção das pessoas de que aquelas regras devem ser cumpridas. Então, a formação de uma consciência jurídica é um trabalho importantíssimo”326

325 ALMEIDA, Alberto Carlos. A cabeça do brasileiro, p. 100. 326 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Poder Constituinte. In: MELLO, Celso Antonio Bandeira de; TEMER, Michel; et. all, p. 75-6.

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É dizer, as regras jurídicas não se aplicam por que constam de um dado diploma, mas

sim por que existe uma consciência social de sua obrigatoriedade327. O motor principal da

formação desta consciência seria o trabalho do jurista, que deveria “procurar fixar, transitar

insistentemente sobre aqueles dispositivos (legais) que permitem extrair certos valores”.328

Nesse sentido, perguntou-se:

“Em nosso caso (juristas), que consciência social podemos formar? É no meio dos que trabalham com as regras do Direito, os advogados, a própria administração pública e os juízes. Se esta tríade estiver convencida de que certas regras são para valer, as aplicará. E nós iremos ver, depois, se a realidade social subjacente, infraestrutural, está ou não afinada com aquela aplicação. Se houver uma revolução, se houver um golpe, será sinal de que não está afinada. Mas nem ao menos esse teste nós fazemos por que por enquanto nós não trabalhamos no sentido de disseminar a convicção de que aqueles dispositivos são obrigatórios e, enquanto não existir esta convicção, toda mudança de texto constitucional, mesmo que em assembléia nacional constituinte, será inócua e persistiremos na mesma situação. (...) Menos importante que a mudança de um texto constitucional, menos importante que uma Assembléia Nacional Constituinte, é uma consciência jurídica nacional a começar pelas pessoas que são obrigadas a aplicar o Direito a todo o instante – juízes, advogados, administradores públicos – a começar dessas pessoas”329.

Caberia, no entender do autor em tela, à classe média – que inclui os próprios juristas

– operar essa modificação na consciência jurídica, eis que seria esta classe que deveria

elaborar o novo texto constitucional e que “queira ou não fará por condicionamentos culturais

e sócio-psicológicos um texto constitucional inspirado em modelos externos”, de forma que

haveria alta probabilidade de que os ideais que inspirassem a confecção do novo texto não

coincidisse com o atual estado da realidade brasileira, gerando um descompasso. E continua:

“O que nós juristas podemos fazer nesta área? Creio muito mais... num instrumento de transformação jurídica, na mudança de uma consciência jurídica e na disseminação dela. E não tenho esperanças de que esta consciência vá se disseminar lá no seio dos flagelados, mas ela pode se disseminar no seio dos administradores públicos que são classe media e no seio dos advogados, dos juízes e promotores. Se ela se dissemina (...) ela terminará por impor padrões que serão socialmente úteis. Quer dizer, inspirado no texto constitucional, se esta consciência se disseminar nós vamos ter transformações e se ela não se disseminar, pode-se mudar o texto constitucional, mas não vamos ter transformações. (...) Então temos o dever de formar uma consciência jurídica, pela mesma razão que a classe média, na verdade, acaba formando a opinião pública. Então, vamos formar a opinião pública jurídica, nos meios jurídicos. Isto vai

327 Idem, ibidem, p. 77 328 Idem, ibidem, p. 76. 329 Idem, ibidem, p. 77-8.

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provocar uma transformação. Não vão ser novas leis que vão mudar a consciência social, mas sim a interpretação sistemática do Direito é que pode criar uma consciência jurídica”330.

Esta última ressalva foi feita tendo em vista que, segundo o autor, sempre que se

operou uma mudança social num país bacharelesco como o Brasil, o primeiro raciocínio é

modificar as leis, e, no seu entender, não é o direito que modifica a realidade:

O Direito é um instrumento, modesto instrumento, de transformação da sociedade. O direito é acima de tudo um instrumento de consagração de uma dada realidade (...). Como o direito não é o grande fator de transformação, as leis, as normas não são fator social de alto poder. Que podemos nós da área jurídica esperar no ângulo político? Acho que podemos esperar a mudança da consciência jurídica”331.

Muito embora concorde-se com o posicionamento do autor em linhas gerais,

acreditamos que ele é incompleto, parcial, por que, ainda assim, põe nas mãos do Judiciário a

responsabilidade de efetuar uma transformação que está além de sua capacidade operacional.

Isto não significa dizer que este Poder não deve fazer cumprir as leis e zelar pela Constituição,

e que ao fazer isto não se estaria ajudando na criação desta consciência. Apenas acredita-se

que a criação desta é matéria estranha a suas atribuições e possibilidades, eis que se trata de

fenômeno extra judicial.

Saliente-se, contudo, que, para os fins desta investigação, dizer que algo está no plano

da extrajudicialidade, não significa dizer que este algo está relegado à irrelevância no âmbito

do direito, apenas que o Poder Judiciário não tem possibilidade de captar tal fenômeno, seja

por que este é alicerce daquele, seja por extrapolar suas possibilidades de atuação.

A “crença” na Constituição, por exemplo, não é matéria da qual o Poder Judiciário

pode tratar. Ele deve partir do pressuposto de que todos “acreditam”. Esta “crença” é fruto da

legitimidade de uma Constituição. É, portanto, matéria extra judicial. Entretanto, não é tema a

ser descartado pelos juristas:

330 Idem, ibidem, p. 98-99. 331 Idem, ibidem, p. 97.

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“A grande verdade, agora sob o foco político, é que ninguém acredita na Constituição. E a única forma de se acreditar na Constituição (...) é fazer a mobilização popular em torno da criação de um novo estado que virá corporificado numa nova Constituição”332.

“(...) a Constituição é respeitada na medida em que o povo acredita nela”333.

Quem melhor sintetiza esta problemática é Celso Bastos:

“(...) nós, muitas vezes, nos torturamos com o seguinte tipo de confrontação: nós tentamos estudar o Direito Constitucional Brasileiro à luz do Direito Constitucional Americano, Inglês, Francês. Eu já perdi completamente a pretensão de fazer isso, porque já me convenci que o constitucionalismo, realmente, é um privilégio de um país desenvolvido. Quer dizer, ele é fruto de um desenvolvimento, de um estágio sócio-econômico-cultural que permite que realmente o país tenha Constituições estáveis e permanentes. Os países sulamericanos, para não falarmos em africanos, asiáticos, salvo raríssimas exceções, têm esse denominador comum, que é uma instabilidade constitucional pronunciada. Quer dizer, como que se a Constituição não se coadunasse com as estruturas sócio-econômicas desse país. E as próprias diferenças na estrutura da pirâmide sócio-econômica do país dificulta o tipo de Constituição. Porque nós temos de imaginar que a Constituição há de ser um texto que consagre um consenso nacional. E é muito difícil de ter um consenso nacional quando o país registra disparidade de riqueza, como é o caso, por exemplo, brasileiro. Então é evidente que de uma forma ou de outra o texto constitucional não consegue ser a expressão da realidade nacional. Então, quando nós criticamos o povo por não ter consciência constitucional, nós também podemos ver a mesma realidade de um ângulo diverso. O povo não tem consciência constitucional por que ele não se identifica com aquela Constituição, porque não foi feita por ele nem para ele. Correto? Portanto, é um ato perfeitamente legítimo nós imaginarmos, por exemplo, que um flagelado do nordeste não tenha realmente consciência constitucional. (...) Então, realmente, há um problema, que é o de nós encontrarmos formas constitucionais que de alguma maneira tentassem à realidade de países como o nosso. (...) essa característica que os países sul-americanos apresentam, de um ideário, digamos assim, político muito alto, colocado nas Constituições e uma realidade da vida prática muito abaixo desse ideário. Então, creio que, na verdade, a perspectiva nossa é de encontrar formas, talvez, que não sejam tão bonitas quanto as já atingidas por países desenvolvidos, mas que seja aquelas que se adaptam à realidade brasileira” 334.

332 TEMER, Michel. Poder Constituinte. In: MELLO, Celso Antonio Bandeira de; TEMER, Michel; et. all., p. 85. 333 BUENO FILHO, Edgar Silveira. Poder Constituinte. In: MELLO, Celso Antonio Bandeira de; TEMER, Michel; et. all., p. 87. Este mesmo autor questiona: “Será que estas regras constitucionais avançadas não foram colocadas no texto constitucional com o deliberado propósito de não serem cumpridas e de desacreditar a Constituição para que mais tarde, em outras oportunidades, regras constitucionais possíveis de serem cumpridas não fossem cumpridas também por que já outras anteriormente não o foram, com a desculpa de que eram impossíveis de serem cumpridas? (...) Talvez o constituinte ao outorgar esta Carta [a de 1967-69] tenha tido o propósito de desprestigiar a Constituição colocando regras impossíveis de serem cumpridas num sistema hermético e ditatorial como o nosso” (p. 87). 334 BASTOS, Celso. Poder Constituinte. In: MELLO, Celso Antonio Bandeira de; TEMER, Michel; et. all., p. 91-2). Ronaldo França salientou: “Talvez um dia o país (Brasil) possa deixar de caber na seguinte descrição do escritor Paulo Mendes Campos: ‘Imaginemos um ser humano monstruoso que tivesse a metade da cabeça tomada por um tumor, mas o cérebro funcionando bem; um pulmão sadio, o outro comido pela tísica; um braço ressequido, o outro vigoroso; uma orelha lesada, a outra perfeita; o estômago em ótimas condições, o intestino carcomido de vermes. Esse monstro é o Brasil: falta-lhe alarmantemente o mínimo de uniformidade social’” (FRANÇA, Ronaldo. Como pensam os brasileiros. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/220807/p_086.shtml>).

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É que, conforme bem assevera Paulo Martinez, “(...) é na maior ou menor coerência

dos textos legais com a realidade dos costumes e as condições objetivas da existência que

reside o grau de saúde das instituições políticas”.335

A problemática brasileira, assim colocada, é mais próxima de uma questão de

legitimidade do que de legalidade, no sentido de que falta, à parcela significativa da

população “um grau de consenso capaz de assegurar a obediência sem a necessidade de

recorrer ao uso da força”, de forma que se possa obter obediência, mas não adesão. Por isso,

“a crença da legitimidade é, pois, o elemento integrador na relação de poder que se verifica no

âmbito do Estado”.336

A força ou fraqueza de uma Constituição ou de um ordenamento jurídico assenta-se

muito mais numa “crença” - é dizer, numa “questão de fé” - do que em critérios objetivamente

traçados, daí a relevância de se discutir quais são as variáveis que devem co-incidir para

embasar esta crença, de forma que possamos falar em legitimidade nesta seara.

Assim, não importa se a Constituição está embasada na tradição (como acreditam os

ingleses), na vontade popular (como crêem os norte-americanos), ou nos valores históricos e

políticos de uma sociedade (conforme acreditam os franceses)337: existe sempre uma questão

de “crença” subjazendo.

335 MARTINEZ, P., ob. cit., p 8. 336 BOBBIO, N; MATTEUCCI, N; PASQUINO, G. ob. cit., p. 675. Por consenso, entende-se “a existência de um acordo entre os membros de uma determinada unidade social em relação a princípios, valores, normas, bem como quanto aos objetivos almejados pela comunidade aos meios para os alcançar. O consenso se expressa, portanto, na existência de crenças que são mais ou menos partilhadas pelos membros de uma sociedade. (...) um consenso total é um tanto improvável, mesmo em pequenas unidades sociais, sendo totalmente impensável em sociedades complexas. Portanto, o termo consenso tem um sentido relativo: mais que de existência ou falta de consenso, dever-se-ia falar em graus de consenso existentes em uma determinada sociedade ou subunidades. É evidente, além disso, que se deveria atender principalmente às questões relativamente mais importantes, e não a aspectos de pormenor” (p. 240). Ademais, é importante salientar ainda que “apenas através dela [a legitimidade] se pode (...) lograr que a organização política produza decisões eficientes, capazes de levar à superação dos entraves econômicos, administrativos e sócio-culturais ao atendimento das demandas da sociedade. Em última análise: a crise de governabilidade, onde ocorra, é sempre, fundamentalmente, embora possa não sê-lo totalmente, uma crise de legitimidade” (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Crise política, ingovernabilidade e revisão constitucional. In: Revista de Informação Legislativa p. 49). 337 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 69. Afirma o autor: “(...) os ingleses compreendem o poder constituinte como um processo histórico de revelação da ‘Constituição da Inglaterra’; os americanos dizem num texto escrito, produzido por um poder constituinte ‘the fundamental and

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É dizer, para que seja legítima, para que haja adesão à normatividade jurídica, e não

mera obediência ou submissão, há sempre presente a necessidade de se “acreditar” que uma

ordem jurídica é “boa” ou “desejável”. Ora, tal implica em trazer para o seio do império da lei

justamente o que este buscou expurgar: os valores (por serem subjetivos)338. Nesse sentido,

temos que:

“Em grande medida, e ordinariamente, as interações sociais ocorrem muito mais pela crença na sua correção/verdade que pelo temor de uma sanção (poder de coerção). Acontece que o ‘senso comum teórico’ afasta a possibilidade de que se produza e se afirme que o fundamento de um Estado (instituição política legitimada por intermédio da Constituição) e de todas as interações sociais que nele se encerram tenham por base a fé (crença). Soa cru até mesmo aos ouvidos de quem acolhe esta visão. Realmente, mostra-se remota a possibilidade de que, num curso de Direito, um professor da Cadeira de Teoria do Estado ou Direito Constitucional (...) inicie seus ensinamentos conclamando que é necessário manter a função simbólica da Constituição. Noutras palavras: ‘É preciso ter fé na Constituição!’. É a crença, portanto, estabelecedora de uma força coercitiva mítica: a de que a Constituição corresponde ao contexto cultural, a visão de mundo da sociedade”339.

Saliente-se que a visão mítica de que fala o autor é uma visão do mito como veículo de

transmissão de uma significação ou verdade, de um discurso simbólico que dimensiona as

questões essenciais da humanidade em toda sua complexidade e completude, acolhendo suas

antinomias340.

No seu entender, “a função simbólica do poder (integração), nos Estados modernos, se

faz por meio da edição de constituições que contêm a mesma estrutura normativa. Trata-se de

um mero discurso simbólico, porquanto cada Estado, em que pese serem estruturalmente

paramount law of the nation’; os franceses criam uma nova ordem jurídico-política através da ‘destruição’ do antigo e da ‘construção do novo’, traçando a arquitectura da nova ‘cidade política’ num texto escrito – a Constituição. Revelar, dizer e criar uma Constituição são modi operandi das três experiências constituintes”. 338 ARAUJO, C., ob. cit., p. 159. 339 NADAL, Fábio. A Constituição como mito, p. 70. 340 Idem, ibidem, p. 73-88. A base do autor em comento é o estruturalismo de Levi-Strauss, e não as abordagens psicológicas de Freud e Jung. O mito, no primeiro caso, seria fruto da própria estrutura do cérebro, que, por ser a mesma em todos os seres humanos, acabaria gerando os mesmos mecanismos básicos de pensamento. No segundo caso, o mito é fruto do inconsciente (p. 86). O mesmo autor aproxima ainda mais a Constituição do mito dentro do estruturalismo: tudo pode acontecer dentro de um mito; eles se reproduzem com os mesmos caracteres em diferentes regiões do globo; antinomia é de sua natureza; está na linguagem e além dela refere-se ao passado, mas sua estrutura abarca passado, presente e futuro. “Esta concepção estrutural do mito-constitucional é adotada pela quase totalidade dos estados ocidentais, tanto na forma (escrita) como em conteúdo (organização nacional, representação política, separação dos poderes, direitos e garantias individuais, direitos sociais e econômicos e etc.)” (p. 89-90).

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semelhantes, vivenciam realidades absolutamente distintas”.341 Isto permite analisar a

Constituição

“como um núcleo de condensamento de valores de uma determinada comunidade cultural (...). E, neste processo cultural, a indicação/realização destes valores ‘não obedece a um ter-de-ser necessário (...), mas um ter-de-ser ideal (...). É através deste dever-ser que o processo cultural assume um sentido (...) mas um tal dever-ser não é, por sua vez, senão o apelo que os valores dirigem ao homem e que este tem de realizar, se quiser obedecer à lei da sua própria regulação’”342.

E conclui: “Entendemos, repita-se, que a legitimidade de uma Constituição baseie-se

em uma crença ou em um conjunto de crenças (base irracional – a fé na Constituição) que

propicia o urdimento do sistema normativo (base racional), de acordo com um discurso

competente (ideológico) com a finalidade (telos) de alcançar e manter sua funcionalidade”.343

Esta investigação foi buscar o fundamento desta “crença”. É dizer, para esta

investigação, a “crença“ na Constituição precisa possuir alicerces psíquico-sociais, sócio-

culturais e jurídicos.

Saliente-se, contudo, que toda esta discussão efetivada sobre consciência jurídica é

muito semelhante àquela já travada em prol da influência da educação no cumprimento das

leis. Assim, seguindo esta corrente, sempre muito bem embasada e defendida, Alberto Carlos

Almeida realizou ampla pesquisa quantitativa, publicada posteriormente em livro intitulado

“A cabeça do brasileiro” para demonstrar que “o país está em transformação e que ela

depende das salas de aula (...) O Brasil continua em sua trajetória de ampliar a educação

formal. Portanto, segue rumo a uma mentalidade mais moderna”344. A revista Veja chegou a

afirmar:

341 Idem, ibidem, p. 90. 342 HESSEN, Johannes apud NADAL, Fábio. A constituição como mito, p. 91. 343 NADAL, F., ob. cit., p. 129. 344 ALMEIDA, A. C., ob. cit., p. 21.

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“O livro traz os resultados da Pesquisa Social Brasileira, um levantamento no qual se investigaram os principais valores presentes no cotidiano social, econômico e político nacional. Enfim, o que se pode denominar de ‘o pensamento do brasileiro’. O que se tem ali é uma radiografia de nitidez impressionante, que afirma principalmente como o papel da elite na construção de um Brasil moderno é crucial. A parcela mais educada da população é menos preconceituosa, menos estatizante e tem valores sociais mais sólidos. Se todas as pessoas em idade escolar estivessem em sala de aula hoje, a pleno vapor, o Brasil acordaria uma nação moderna no dia 1º de janeiro de 2025 – depois de um ciclo completo de educação. Os brasileiros passariam a ter baixíssima tolerância à corrupção e esperariam menos benesses de um estado protetor. Funcionários públicos ineficientes e aproveitadores seriam uma raça em extinção. Os cidadãos lutariam mais por seu futuro, em vez de se entregar distraidamente à loteria do destino. Nesse país, as pessoas de qualquer credo ou classe social se veriam como portadoras de direitos iguais”345.

Não podemos, contudo, aceitar o argumento acriticamente. Afirmar que as

dificuldades do brasileiro referentes à lei e à adesão espontânea à normatividade são fruto da

falta de escolaridade - como se o simples fato de freqüentar uma escola nos outorgasse,

automaticamente, a qualidade de cidadão - não parece a resposta mais acertada. Entretanto,

certamente não se está afirmando que a (falta de) educação não tem relação alguma com os

problemas aqui apresentados. Apenas que não se pode a ela atribuir toda a responsabilidade

pelos citados fenômenos.

Isto por que ser cidadão é também sentir-se cidadão, um estado de espírito que se

conforma por meio de conteúdos afetivos que brotam, especialmente, da noção originária de

pátria, que não necessariamente são cultivados nas escolas. Assim, ao invés de afirmarmos

que esta problemática deve ser atenuada por meio da escolaridade, talvez fosse mais coerente

afirmar que o que falta é cultura cívica, eis que fica muito mais simples visualizar, nessa

afirmação, a importância dos conteúdos afetivos supracitados.

345 FRANÇA, R., ob. cit. A reportagem ainda salienta: "‘Hoje, a maioria dos brasileiros ainda tem baixa escolarização e, portanto, uma visão mais arcaica da sociedade’, afirma Almeida. ‘Mas é evidente que a educação tornará majoritária no país a parcela da população que tem uma visão mais moderna. O processo é irreversível.’ A divisão entre arcaico e moderno, embora em desuso por boa parte dos cientistas sociais, é a que define com mais clareza o abismo entre as duas visões de mundo. Para verificar a profundidade dessas diferenças, o autor de A Cabeça do Brasileiro não recorreu a nenhum expediente extraordinário. Apenas aferiu, por meio de perguntas, a indulgência com situações cotidianas. Sua pesquisa tem o poder de iluminar os principais aspectos da vida nacional. Os dados obtidos reforçam o que o imperador dom Pedro II já sabia: sem um esforço para universalizar a educação, a sociedade brasileira continuará patinando material e moralmente. Como nota Almeida, num país mais escolarizado a cena de um Severino Cavalcanti sentado na cadeira de presidente da Câmara dos Deputados nunca teria ocorrido. ‘Os eleitores de Severino, em sua maioria de baixa escolaridade e residentes em cidades pequenas do interior do Nordeste, tendem a não condenar o comportamento desse político, que defendia abertamente a contratação de parentes’, constata o autor”.

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Ademais, a própria pesquisa elaborada por Alberto Carlos Almeida afirma: “jeitinho”

não se combate simplesmente com a elevação do nível de escolaridade da população

brasileira. A porcentagem dos que detém nível superior que o chancela como válido é de 30%

(entre os analfabetos o índice é de 60%). Assim:

“Pelo que os dados indicam, o aumento da escolaridade certamente levará as pessoas a se oporem mais ao jeitinho. Porém, os mesmos dados mostram que há limites para isso e que esses limites estão justamente na faixa mais elevada de educação”346.

O mesmo autor afirma, adiante: “Os resultados da pesquisa indicam que se a sociedade brasileira continuar a expandir seu sistema educacional e a massificar o ensino superior, à medida que as gerações mais velhas forem sendo substituídas pelas gerações mais novas, haverá uma forte rejeição tanto do jeitinho quanto da corrupção. Há, porém, uma ressalva importante: o ponto principal de inflexão nesse julgamento está no nível mais elevado de escolaridade, o superior. Isso revela o quão forte é o jeitinho na sociedade brasileira, e, consequentemente, mostra a enorme dificuldade que terão de enfrentar aqueles que o consideram um inimigo da cidadania”347.

Entretanto, na interpretação do autor em tela, quem completou o curso superior tende a

ser impessoal e a posicionar-se contra o “jeitinho” e contra punições ilegais (linchamento).

Acredita-se, contudo, que quanto maior a escolaridade, maior será a facilidade em

detectar a finalidade de uma pergunta no questionário, bem como de esquivar-se dela. O

próprio autor admite esta possibilidade ao fazer a análise dos questionários que versam sobre

o racismo: “ (...) esses 13% podem ser aqueles que não têm nenhum tipo de preconceito, mas

também podem ser uma mistura dos que não têm preconceito e dos que perceberam que a

pesquisa objetivava captar o preconceito e o ‘esconderam’ nas respostas”.348 (grifou-se).

Todavia, haverá de se refletir com profundidade a respeito da escolaridade que deverá

ser proposta porque a educação da mesma forma, pode libertar, modificar, como também

pode escravizar, conservar.

Eventualmente oportuna a lição weberiana:

346 ALMEIDA, A. C., ob. cit., p. 66. 347 Idem, ibidem, p. 69 348 Idem, ibidem, p, 227.

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8.2. A questão da legitimidade em Weber: ação social, relação social e dominação

Max Weber define ação social como sendo aquela cujo sentido refere-se à conduta de

outros, orientando-se por ela em seu desenvolvimento349. Se, quando agirem, os seres

humanos levarem em conta “a probabilidade de que o outro ou os outros agirão socialmente

de um modo que corresponde à expectativas do primeiro agente”, estaremos diante de uma

relação social350. Quanto mais racionais forem tais relações, mais facilmente as mesmas

poderão ser expressas na forma de máximas (normas)351:

É dizer, a relação social pode orientar-se por uma ordem legítima, cuja validade

decorre da probabilidade de que tal ordem de fato oriente a citada relação352, cuja garantia

pode se dar com base na convenção ou no direito:

Um orden debe llamar-se: a) Convención: cuando su validez está garantizada externamente por la probabilidade de que, dentro de um determinado círculo de hombres, uma conducta discordante habrá de tropezar com uma (relativa) reprobación general y practicamente sensible. b) Derecho cuando está garantizada externamente por la probabilidad de la coacción (física o psíquica) ejercida por um cuadro de indivíduos instituídos com la misión de obligar a la observância de esse orden o de castigar su transgresión.353

349 WEBER, Max. Economía y sociedad. Trad. José Medina Echavarría et. al. 2. ed. México: FCE, 2004 , p. 5. Imaginemos a cena de dois ciclistas que passeiam num parque, um sem notar a existência do outro. Suponhamos, ainda, que seus caminhos estão prestes a colidir, já que suas rotas são opostas. O choque ocorre. Trata-se de um fenômeno social? Não no entender de Weber. Para ele, nem toda classe de contato entre os homens possui caráter social. O caso apresentado, na verdade, trata-se de um fenômeno natural (dois corpos em movimento em direções contrárias no mesmo sentido hão de colidir, a não ser que outra força os impeça, assim diz a física). Esse choque somente se “converterá” em ação social se os ciclistas tivessem tentado desviar um do outro momentos antes do choque ou se, após ele, algum deles se desculpar com o outro (WEBER, Max, Economia y sociedad, p.19). 350 QUINTANEIRO, Tania; BARBOSA, Maria Lígia de Oliveira; OLIVEIRA, Maria Gardênia Monteiro de. Um toque de clássicos: Marx, Durkheim, Weber. 2. ed. rev. ampl. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 118. Saliente-se, contudo, que: “O conteúdo das relações é diverso: prestação de serviços, conflito, poder, amor, respeito, etc. e existe nelas um caráter recíproco, embora essa reciprocidade não se encontre necessáriamente no conteúdo de sentidoque cada agente lhe atribui, mas na capacidade de cada um compreender o sentido da ação dos outros. (...) O caráter recíproco da relação social não significa uma atuação do mesmo tipo por parte de cada um dos agentes envolvidos. Apenas quer dizer que uns e outros partilham a compreensão do sentido das ações, todos sabem do que se trata, mesmo que não haja correspondência” (p. 119). 351 WEBER, M. ob. cit., p. 23. 352 “Os agentes podem guiar-se pelas suas crenças na validez de uma ordem que lhes apresenta obrigações ou modelos de conduta (...). Ao adquirir o prestígio da legitimidade, ou seja, quando a ordem se torna válida para um ou mais agentes, ‘aumenta a probabilidade de que a ação se oriente por ela em uma grau considerável’, tanto mais quanto mais ampla for sua validez”. QUINTANEIRO, T., ob. cit., p. 121. 353 WEBER, M., ob. cit., p. 27.

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Ainda no que tange às relações sociais, temos que uma questão relevante é justamente

aquela que se refere à sua persistência: o que as mantêm, ou, o que garantiria a regularização

espaço-temporal do sentido que os seres humanos ofereçam a suas ações?354

No intuito de dar cabo de tais questões, Weber encontra a resposta no fundamento da

organização social, que, no seu entender, corresponderia “a dominação, a produção da

legitimidade, da submissão de um grupo a uma mandato”355, definindo-a como um caso

especial do poder356:

Por dominação, entendemos, então, aqui, uma situação de fato, em que uma vontade manifesta (‘mandato’) do ‘dominador’ ou dos ‘dominadores’ quer influenciar as ações de outras pessoas (do ‘dominado’ ou dos ‘dominados’), e de fato as influencia de tal modo que estas ações, num grau socialmente relevante, se realizam como se os dominados tivessem feito do próprio conteúdo do mandato a máxima de suas ações (‘obediência’)357.

Toda dominação, no seu entender, subsiste, em última instância, da autojustificação,

apelando-se, nesse sentido, para três princípios de legitimação (ou princípios de autoridade),

que ele chama de racional-legal, tradicional e carismático (sendo que a primeira opõe-se à

segunda e à terceira)358, ressaltando-se que cada uma dessas formas de dominação legítima

define os conteúdos considerados válidos pelos participantes das relações sociais359.

A dominação racional-legal é aquela que se expressa num sistema de regras racionais

estatuídas, de forma que o portador individual do poder de mando legitima-se por meio

destas, “sendo seu poder legítimo na medida em que é exercido de acordo com aquelas

regras”. É dizer, “obedece-se às regras, e não à pessoa”.

Quando o mando encontra-se baseado na autoridade pessoal do portador individual do

poder, com fundamento no habitual (sagrado, ou “tem sido assim desde sempre”), estamos

354 QUINTANEIRO, T., ob. cit., p. 128. 355 QUINTANEIRO, T., idem, ibidem, p. 128. 356 WEBER, Max. Economia e sociedade, vol. 2. Trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. São Paulo: UnB, Imprensa Oficial, 2004. 357 Idem, ibidem, p. 191. 358 Idem, ibidem, p. 197. 359 QUINTANEIRO, T., ob. cit., p.130.

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diante da dominação tradicional, “que prescreve obediência diante de determinadas

pessoas”360.

A dominação carismática também está assentada sobre a autoridade pessoal,

entretanto, seu fundamento baseia-se na crença no carisma, “isto é, na revelação atual ou na

graça concedida a determinada pessoa – em redentores, profetas e heroísmos de qualquer

espécie”361. Este tipo de dominação representa a possibilidade de rompimento das outras duas

formas de dominação. Entretanto, tal rompimento é temporário, na medida em que, para

perpetuar-se no tempo, o carisma deve ser rotinizado (ou cotidianizado), o que faz com que a

dominação carismática tenda a tornar-se racional-legal ou tradicional362.

Ademais, segundo Weber:

“A estas situações correspondem os tipos fundamentais ‘puros’ da estrutura da dominação, de cuja combinação, mistura, adaptação e transformação resultam as formas que encontramos na realidade histórica. Quando a ação social de uma formação de dominação se baseia numa relação associativa racional, encontra seu tipo específico na ‘burocracia’. A ação social, numa situação vinculada a relações de autoridade tradicionais está tipicamente representada pelo ‘patriarcalismo’. A formação de dominação ‘carismática’ apóia-se na autoridade não racionalmente nem tradicionalmente fundamentada de personalidades concretas.”363

Ressalte-se, ainda, que cada forma de dominação legítima estabelece uma “luta” pelo

seu estabelecimento em detrimento das demais, de forma que “as atitudes subjetivas de cada

indivíduo que é parte dessa ordem passam a orientar-se pela crença numa ordem legítima, a

qual acaba por corresponder ao interesse e vontade do dominante”364.

Assim, nesse sentido:

“(...) é a dominação o que mantém a coesão social, garante a permanência das relações sociais e a existência da própria sociedade. Ela se manifesta sob diversas formas: a interpretação da história de acordo com a visão do grupo dominante numa certa época, a imposição de normas de etiqueta e de convivência social consideradas adequadas, e a organização das regras para a

360 WEBER, Max. Economia e sociedade, p. 198. 361 Idem, ibidem, p. 198. 362 QUINTANEIRO, T., ob. cit., p.131. 363 WEBER, Max. Economia e sociedade, p. 198. 364 QUINTANEIRO, T., ob. cit., p.130.

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vida política. É importante ressaltar que a dominação não é um fenômeno exclusivo da esfera política, mas um elemento essencial que percorre todas as instâncias da vida coletiva.”365

Um tipo de dominação só será estável quando, na média, obtém a lealdade dos

dominados, “o que requer a crença dos mesmos na legitimidade dos dominantes”, exigência

que contém um alto nível de subjetividade366. Assim, no caso das dominações tradicional e

carismática, a legitimidade não se mostra tão problemática tendo em vista que “a

subjetividade já está suposta neles”, eis que estas “são tipos de dominação eminentemente

pessoais: na medida em que há um compartilhamento de sentimentos e valores entre

dominantes e dominados”367. A comunidade dos dominados, nas sociedades submetidas a

estes dois tipos de dominação, “é fortemente homogênea neste aspecto”368.

O mesmo não ocorre com a comunidade dos dominados no tipo racional-legal: “as

sociedades que tornaram possível a emergência desse tipo não são homogêneas”, reinando o

que Weber chama de “politeísmo de valores”, e cuja estabilidade deve-se à crença na sua

legitimidade. Assim, “aqui é difícil evitar a interpretação de que a crença na legitimidade é

uma crença de que o domínio da norma geral e abstrata é ‘bom’ ou ‘desejável’”369. Estas

questões, decorrentes da legitimidade e da estabilidade da dominação parecem reintroduzir a

subjetividade no império da lei, que, por sua vez, requer justamente o expurgo da mesma.

Nesse momento, podemos afirmar que nossa investigação buscou compreender a

tensão existente no Brasil no que tange à dominação, é dizer, como um país cuja sociedade

possui um viés marcadamente tradicional e carismático lida com a imperatividade de uma

ordem jurídica que está assentada numa forma de dominação racional-legal, a qual, por sua

365 QUINTANEIRO, T., ob. cit., p.131. 366 Essa subjetividade a qual estamos nos refereindo aqui trata-se do “caráter de todos os fenômenos psíquicos, enquanto fenômenos da consciência, que o sujeito relaciona consigo mesmo e chama de ‘meus’” (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfredo Bosi. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 922), não coincidindo, portanto, com a noção de subjetividade que apresentaremos quando estivermos analisando os processos de subjetivação do Brasil e a lei. 367 ARAUJO, Cícero. Império da lei e subjetividade. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 54, p. 157-167, 1999, p. 159. 368 ARAUJO, C., idem, ibidem. 369 ARAUJO, C., idem, ibidem.

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vez, tem sua legitimidade posta a prova e questionada com grande freqüência por suas

práticas sociais.

Mas, se a ciência deve dizer o que é e não como deve ser, a tarefa está completa, salvo

se, ainda fosse possível dar conta das conseqüências dos fins que estão sendo propostos....

E, com certeza, é possível dar conta das conseqüências dos fins que estão sendo

propostos.

Está, porém, será a promessa para outra empreitada.

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