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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Angelina Carr Ribeiro Martins No Cadinho da Reconciliação O diálogo cristão-judaico, do Parlamento Mundial das Religiões ao Vaticano II Mestrado em Ciência da Religião São Paulo 2016

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Angelina Carr Ribeiro Martins

No Cadinho da Reconciliação

O diálogo cristão-judaico, do Parlamento Mundial das Religiões ao Vaticano II

Mestrado em Ciência da Religião

São Paulo

2016

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Angelina Carr Ribeiro Martins

No Cadinho da Reconciliação

O diálogo cristão-judaico, do Parlamento Mundial das Religiões ao Vaticano II

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, como exigência

parcial para a obtenção do título de Mestre

em Ciência da Religião, sob a orientação

do Prof. Dr. Frank Usarski.

Mestrado em Ciência da Religião

São Paulo

2016

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Banca examinadora

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Dedico essa obra aos que buscam, na

simplicidade ou complexidade de suas

crenças mais íntimas, promover a

compreensão e o respeito a todos os seres,

mas, sobretudo, fazem da compaixão sua

arma, da humildade seu escudo, e da

memória sua sábia mestra.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à CAPES e à FUNDASP pela bolsa de estudos e pelo apoio, ambos

imprescindíveis, sem os quais eu não poderia realizar esta pesquisa.

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Agradeço aos professores do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciência

da Religião pela competência, dedicação e disponibilidade, foi um privilégio;

Agradeço à secretária Andreia Bisuli de Souza por toda ajuda e simpatia, muito

obrigada;

Agradeço aos discentes do Programa, pela amizade, pelas conversas, pelos

cafezinhos, e por todo conhecimento compartilhado, sentirei saudades;

Agradeço aos professores João Décio Passos e Antônio Carlos Frizzo, que

participaram de minha banca de qualificação e deram importantes contribuições para a

continuidade desta pesquisa, por cada comentário e observação, muito obrigada;

Agradeço ao meu orientador, professor Frank Usarski, por acreditar no meu

potencial, pela direção, pela paciência, por compartilhar cada material que pudesse

enriquecer minha pesquisa, e por todas as dicas. Enfim, por dividir seu conhecimento

comigo, muito obrigada;

Agradeço à minha mãe, Ivanil, por toda ajuda durante meus estudos, pelo apoio

à minha mudança para São Paulo, por compartilhar a alegria que senti ao realizar este

projeto de vida, e por cuidar de minhas pets, Jade e Pity, muito obrigada mãe;

Agradeço ao meu querido e admirável pai, Antônio (in memoriam), sem você

este sonho não seria possível, pode ficar orgulhoso!

Finalmente, agradeço a Deus, pela sua Graça, pelo seu sim, e pelo “depois, agora

não”.

Obrigada!

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“Assim, em tudo, façam aos outros o que

vocês querem que eles lhes façam; pois

esta é a Lei e os Profetas” (Mateus 7,12).

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RESUMO

MARTINS, Angelina C. R; No Cadinho da Reconciliação: O diálogo cristão-judaico,

do Parlamento Mundial das Religiões ao Vaticano II. 2016.143 p. Dissertação -

Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião. Pontifícia Universidade Católica

de São Paulo – PUC – SP, 2016.

No percurso histórico, as primeiras iniciativas em direção ao diálogo ocorreram no

Parlamento Mundial das Religiões, passaram pela Shoah, até o Concílio Vaticano II. A

Declaração Nostra Aetate foi um documento que marcou a abertura e a disposição da

Igreja para o diálogo inter-religioso, e foi o ponto de virada na relação com os judeus e

o Judaísmo. Foi elaborada no Vaticano II, e nas palavras do Papa João XXIII, chegara o

momento do aggiornamento, a reforma da Igreja. Neste processo, a compreensão do

conceito de diálogo, até o Vaticano II, também passou por uma evolução para que fosse

considerado um elemento fundamental nas relações inter-religiosas do século XX. Por

conseguinte, em decorrência do Concílio, a Igreja Católica rompeu com o paradigma

teológico supersessionista, ou seja, houve uma mudança do Modelo de Substituição

para o Modelo de Complementação, em uma nova postura mais liberal e flexível,

porém, com seus limites. Assim, abriu-se o caminho para a Teologia Cristã das

Religiões. No entanto, a elaboração do conteúdo da Nostra Aetate foi fruto de

pesquisas, publicações e conferências realizadas mesmo antes do Concílio, tanto por

representantes do Judaísmo, quanto por cristãos, católicos e protestantes. Neste sentido,

o contexto da Segunda Guerra Mundial, da Shoah e da criação do Estado de Israel foi

decisivo para que o tema sobre os judeus fosse inserido no Vaticano II. O argumento

mais defendido referiu-se à questão do ensino de desprezo, liderado pelo historiador

judeu francês Jules Isaac, em que a Igreja teve que lidar com o antissemitismo religioso

presente há séculos em sua liturgia. Até sua promulgação houve um intenso trabalho

desenvolvido nos bastidores do Concílio, tanto pelos que se opuseram ao tema sobre os

judeus, como a ala conservadora e as Igrejas católicas orientais, que levantaram

questões políticas envolvendo o Estado de Israel, quanto o empenho de sacerdotes,

como Agostinho Bea, John Oesterreicher e Gregory Baum, com espírito renovador, cujo

trabalho envolveu habilidade, conhecimento, diplomacia e perseverança, até que o texto

mais político do Concílio fosse concluído e aprovado, a Nostra Aetate.

Palavras-chave: Diálogo inter-religioso; Renovação; Judaísmo; Antissemitismo;

Shoah; Nostra Aetate.

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ABSTRACT

MARTINS, Angelina C. R; In the Crucible of Reconciliation: The Christian-Jewish

dialogue, the World Parliament of Religions Vatican II. 2016. 143 p. Dissertation -

Graduate in Science of Religion Program. Pontifical Catholic University of São Paulo -

PUC - SP, 2016.

The Declaration Nostra Aetate was a document that marked the opening and to the

Church for interreligious dialogue, and was the turning point in relations with Jews and

Judaism. It was developed in the Vatican II, and in the words of Pope John XXIII, the

time was the aggiornamento or Church reform. In this process, understanding the

concept of dialogue, to the Vatican, also underwent an evolution that was considered a

key element in inter-religious relations of the twentieth century. Therefore, due to the

Council, the Catholic Church broke with the theological paradigm supersessionism,

there was a change Replacement Model for model Complementation in a new, more

liberal and flexible attitude. Thus opened the way for the Christian Theology of

Religions. However, the development of the content of Nostra Aetate was the result of

research, publications and conferences even before the Council, both of representatives

of Judaism, as for Christians, Catholics and Protestants. In this sense, the context of

World War II, the Shoah and the creation of the State of Israel was decisive for the

subject of the Jews were inserted in the Vatican. The most defended argument referred

to the issue of teaching of contempt, led by the French Jewish historian Jules Isaac, by

which the Church had to deal with religious anti-Semitism present for centuries in its

liturgy. Until its enactment was an intense work in the Council backstage, both by those

who opposed the theme of the Jews, as the conservative wing and the Eastern Catholic

Churches, who raised political issues involving the State of Israel, as the commitment of

priests, as Agostinho Bea, John Oesterreicher e Gregory Baum, with renovator spirit

whose work involved skill, knowledge, diplomacy and perseverance until the Council's

more political text was completed and approved, the Nostra Aetate.

Keywords: Interreligious Dialogue; Renovation; Judaism; anti-Semitism; Shoah;

Nostra Aetate.

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LISTA DE IMAGENS E ILUSTRAÇÕES

Figura 01 - Modelo de Substituição....................................................................................... 16

Figura 02 - Modelo de Complementação............................................................................... 19

Figura 03 - Modelo de Mutualidade....................................................................................... 23

Figura 04 - Modelo de Aceitação........................................................................................... 25

Figura 05 - Synagoga and Ecclesia in Our Time (2015)………………………………........ 38

Figura 06 - Modalidades e Interações do Diálogo.................................................................. 42

Figura 07 - Capa do folheto Pax super-Israel. Associação Amici Israel (1925)................... 68

Figura 08 - Participantes da Conferência de Seelisberg (1947)............................................. 79

Figura 09 - A Igreja e a Sinagoga. Fachada da Catedral de Estrasburgo (ca.1230).............. 83

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LISTA DE TABELAS

Tabela 01 - Modalidades de Diálogo.................................................................................... 11

Tabela 02 - Tipologia do Diálogo Inter-religioso................................................................. 39

Tabela 03 - Tipologia do Diálogo em Níveis de Leitura...................................................... 40

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

A.E.C. - antes da era comum, a.e.c.

UJA - United Jewish Appeal

At - Atos dos Apóstolos

BH - Bíblia Hebraica

CCJ - Conselho de Cristãos e Judeus

Cf – “Confira”

CJA - Comitê Judaico Americano - American Jewish Committee (AJC)

Cl - Carta aos Colossenses

CMI - Conselho Mundial de Igrejas

CMJ - Congresso Mundial Judaico - World Jewish Congress (WJC)

Conc. - Concílio

C. de J. - Companhia de Jesus (Jesuítas)

1Cor - Primeira Carta aos Coríntios

2Cor - Segunda Carta aos Coríntios

E.C - era comum, e.c.

Ef - Carta aos Efésios

Fl - Carta aos Filipenses

Gl - Carta aos Gálatas

ICCJ - International Council of Christian and Jews – Conselho Internacional de

Cristãos e Judeus

Jo - Evangelho de João

Lc - Evangelho de Lucas

Mt - Evangelho de Mateus

Mc - Evangelho de Marcos

NA - Declaração sobre a Relação da Igreja com as Religiões Não Cristãs - Nostra

Aetate

NA4 - Nostra Aetate - Capítulo referente ao Judaísmo

NCCJ - National Council of Christian and Jews - Conselho Nacional de Cristãos e

Judeus

ONU - Organização das Nações Unidas

PRM - Parlamento Mundial das Religiões

Rm - Carta aos Romanos

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SUMÁRIO

Introdução............................................................................................................................

01

I O diálogo inter-religioso................................................................................................... 09

I.1 A evolução do conceito no Cristianismo e os diferentes modelos teológicos................. 10

I.1.1 Diálogo apologético...................................................................................................... 11

I.1.2 Diálogo teológico.......................................................................................................... 14

I.1.2.1 Exclusivismo - Modelo de Substituição.................................................................... 15

I.1.2.2 Inclusivismo - Modelo de Complementação............................................................. 16

I.1.2.3 Pluralismo - Modelo de Mutualidade........................................................................ 20

I.1.2.4 Modelo de Aceitação................................................................................................. 23

I.2 Aproximando as culturas................................................................................................. 25

I.2.1 O papel dos missionários.............................................................................................. 25

I.2.2 Repensar o papel missionário da Igreja........................................................................ 27

I.2.3 A contribuição do estudo das religiões......................................................................... 28

I.3 A religião como mediadora diante da diversidade cultural e religiosa............................ 32

I.4 Possibilidades de diálogo entre judeus e cristãos............................................................ 33

I.5 Tipologia para o Diálogo................................................................................................. 38

I.6 O Tipo Ideal..................................................................................................................... 43

II Do Parlamento Mundial das Religiões (1893) à Shoah: o desenvolvimento do

diálogo entre Cristãos e Judeus........................................................................................

45

II.1 Os bastidores do Parlamento Mundial das Religiões.................................................... 46

II.1.1 A participação dos Judeus no Parlamento Mundial das Religiões............................. 55

II.2 A Igreja e os Judeus....................................................................................................... 57

II.2.1 Os Semitas.................................................................................................................. 58

II.2.2 O Antissemitismo e a Shoah....................................................................................... 60

II.2.3 Antecedentes da Nostra Aetate................................................................................... 64

II.2.3.1 Comitê Judaico Americano (CJA) .......................................................................... 66

II.2.3.2 Amici Israel............................................................................................................. 67

II.2.3.3 John Oesterreicher................................................................................................... 69

II.2.3.4 Conselho Nacional de Cristãos e Judeus (NCCJ).................................................... 74

II.2.3.5 Congresso Mundial Judaico (CMJ)……..…........................................................... 74

II.2.3.6 United Jewish Appeal (UJA) .................................................................................. 75

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II.2.3.7 Conselho de Cristãos e Judeus (CCJ)...................................................................... 75

II.2.3.8 Conferência de Oxford............................................................................................ 75

II.2.3.9 Conferência Internacional de Emergência sobre o Antissemitismo........................ 77

II.2.3.10 Conselho Internacional de Cristãos e Judeus (ICCJ) ……….………................... 79

II.2.3.11 Gregory Baum....................................................................................................... 80

II.2.3.12 Jules Isaac.............................................................................................................. 81

III Concílio Ecumênico Vaticano II: o processo de elaboração da Nostra Aetate........ 84

III.1 O Vaticano II (1962-1965) .......................................................................................... 87

III.1.1 João XXIII e a Segunda Guerra Mundial.................................................................. 88

III.2 Anúncio e Preparação do Concílio: (1959-1962) ........................................................ 90

III.3 Período Conciliar......................................................................................................... 105

III.3.1 Primeira Sessão - 11 de outubro a 08 de dezembro de 1962..................................... 105

III.3.2 Segunda Sessão - 29 de setembro a 04 de dezembro de 1963.................................. 105

III.3.3 Terceira Sessão - 14 de setembro a 21 de novembro de 1964.................................. 106

III.3.4 Quarta Sessão - 14 de setembro a 08 de dezembro de 1965..................................... 110

Conclusão............................................................................................................................

114

Bibliografia......................................................................................................................... 118

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ANEXOS

ANEXO A - A retificação necessária no ensino cristão: Dezoito Pontos....................... 126

ANEXO B - Decreto sobre os Judeus - Decretum de Iudaeis.......................................... 130

ANEXO C - Sobre a atitude dos católicos em relação aos não cristãos e sobretudo

aos judeus............................................................................................................................

132

ANEXO D - Apêndice “Sobre os Judeus” para a “Declaração sobre o

Ecumenismo”......................................................................................................................

134

ANEXO E - Declaração a respeito dos judeus e dos não cristãos - De iudaeis et de

non christianis.....................................................................................................................

136

ANEXO F – Declaração Nostra Aetate sobre a relação da Igreja com as religiões

não cristãs...........................................................................................................................

139

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1

INTRODUÇÃO

Compreender o desenvolvimento da relação entre cristãos e judeus em direção

ao diálogo requer extrair alguns aspectos da história do povo hebreu e da Igreja, e neles

identificar os elementos utilizados como ferramenta para a disseminação do

antissemitismo, e aqueles que tornaram possível abrir o caminho em direção à

reconciliação. O relacionamento com o povo Judeu insere-se no fluxo de ideias e

práticas decorrentes da percepção religiosa que permeou as comunidades cristãs, e a

sociedade, em diversos momentos da história, até o Vaticano II. Em um dado momento,

especificamente na Europa do século XX, foi difícil separar conceitos e preconceitos

provenientes do ensino da Igreja católica daqueles que emergiram de uma sociedade

secular e refletiram o pensamento moderno emoldurado por afirmações concernentes às

questões ligadas à supremacia da “razão”, das “verdades universais” e da “hierarquia

racial”. Neste sentido, a busca e a preservação da identidade pontuaram os eventos

daquele período, tanto no âmbito secular, quanto no religioso.

A complexa assimilação da modernidade pela Igreja, decorre de um processo

que ganhou força e foi percebido fortemente no final do século XIX até meados do

século XX, especialmente na década que antecedeu o Concílio Vaticano II. A

modernidade impactou não somente a Igreja, mas também o meio protestante e judaico,

os quais reagiram às grandes mudanças econômicas, sociais, políticas, científicas e

culturais. Tais tradições dividiram-se em posturas, tanto liberais, quanto conservadoras.

Isto significa que, apesar de suas diferenças, nelas houve o nascimento dos

fundamentalismos, ou seja, a volta às raízes e ao horizonte limitado da particularidade,

com o intuito de criar uma rede de proteção, principalmente contra à utilização do

método histórico-crítico na exegese dos textos sagrados.1 Dentre os pontos comuns

pelos quais estas tradições buscaram preservar sua identidade frente às grandes

transformações, ao Judaísmo acrescenta-se a dimensão étnica, em que ser

fundamentalista significa afirmar sua identidade étnica, cujo reconhecimento inclui

possuir uma pátria, um território.

1 Fundamentalismo é um conceito complexo que nasce de uma reinterpretação de uma tradição sagrada

ou doutrina, e de condições culturais, sociais e políticas específicas. O conceito de fundamentalismo

dever ser entendido no plural, em virtude da diversidade de movimentos fundamentalistas que emergiram

de diferentes contextos culturais, e, principalmente, de grandes tradições religiosas. Cf. PACE; 2002,

p.28.

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A Igreja não mais poderia resistir à pressão imposta por tais mudanças, e delas

fez uma leitura seletiva, extraindo alguns elementos considerados positivos, rejeitando

outros considerados uma ameaça aos valores, e, à tradição da Igreja, ou seja, a

autoridade de seu magistério, em que “a verdade contida no texto sagrado é interpretada

à luz da tradição”. Na aproximação entre o pensamento moderno e a teologia houve os

que o rejeitaram radicalmente, mas também aqueles de mentalidade teológica renovada

que o recepcionaram reconhecendo seus avanços (PACE; STEFANI, 2002, p.132).

No que se refere ao Concílio, o momento em direção a uma inevitável renovação

na Igreja havia chegado, denominada por João XXIII, de atualização ou

aggiornamento2, que implicaria rever tanto questões ligadas à liturgia, à doutrina e aos

ritos, como à própria teologia, alinhá-la ao contexto da época e a uma nova forma de se

relacionar com a modernidade e a história. Neste sentido, no pacote da estrutura de

pensamento moderno, a força do transcendente perdera espaço para os processos

históricos.

As inteligências mais inquietas e atrevidas arriscaram suas

legitimidades eclesiais, colocando a fé em diálogo com o pensamento

moderno, em duas direções. A primeira submetendo às críticas dos

métodos científicos os textos das Escrituras, a história do cristianismo

e a própria Igreja. A segunda submetendo ao juízo da fé as realidades

imanentes em diálogo com as conquistas e os processos modernos: as

teologias das realidades terrestres de um modo geral. Em diversas

frentes e ângulos desenvolvem-se reflexões que buscam superar os

parâmetros teóricos e metodológicos rígidos da velha escolástica. A

história da teologia do século XX é a história desse esforço de

compreender e dialogar com o mundo moderno com suas

ambiguidades, concepções e práticas” (Verbete Processo Conciliar.

In: PASSOS; SANCHEZ, 2015, p.778).

Reagir, romper, e, sobretudo, renovar, este foi o desafio imposto à Igreja neste

período, o difícil equilíbrio entre a tradição e as demandas do mundo moderno, entre a

Palavra revelada e o papel do magistério. Neste fluxo, os leigos introduziram a Igreja na

sociedade moderna por meio da ação social e política. No entanto, as maiores barreiras a

serem superadas não estavam fora, mas dentro da própria Instituição, por isso, os

trabalhos conciliares, mais especificamente os textos que se referiam ao Judaísmo,

foram desenvolvidos em um cenário de conflitos, articulações, e negociações entre a

2 Significa, em italiano, atualização. Foi o Lema norteador do Vaticano II. Cf. Verbete Aggiornamento.

In: PASSOS, João Décio; SANCHEZ, Wagner Lopes (Coords). Dicionário do Concílio Vaticano II. 1.

ed. São Paulo: Paulos, 2015. p.8-9.

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3

frente conservadora, que contava com o apoio da Cúria Romana, e a frente da

renovação, que contava com o carisma de João XXIII, e a habilidade do cardeal

Agostinho Bea.

A nova postura da Igreja a respeito das outras tradições religiosas foi um

processo construído a partir de pressões externas, condizentes com estas questões

impostas pela modernidade que nos referimos anteriormente. O avanço da ciência, o fim

do período colonial, com o respectivo declínio das missões imperialistas, e a

colaboração do estudo comparado das religiões que ampliou a visão de mundo, também

exigiram da Igreja um reposicionamento diante de tais realidades, que passaria do

confronto ao encontro. Se comparado aos demais temas abordados no Concílio, a

reflexão teológica sobre as demais religiões foi como uma pequena semente que ainda

iria desenvolver-se. Entretanto, o caminho para a Teologia das Religiões estava aberto,

assim, teólogos católicos e protestantes contribuíram para que fosse possível uma nova

postura da Igreja e do Cristianismo, sendo o Vaticano II o ínicio de uma nova etapa.

A disposição da Igreja para uma atitude de abertura com as demais religiões, e o

reconhecimento positivo da cultura moderna, produziram no Vaticano II dezesseis

documentos, dentre os quais a Declaração sobre a relação da Igreja com as religiões

não Cristãs – Nostra Aetate (NA). Estes documentos concretizaram a mudança da

Igreja em termos doutrinais, mas, principalmente, pastorais, ou seja, uma Igreja que

agora se vê como povo de Deus, solidária à humanidade, com suas alegrias, esperanças,

tristezas e angústias, em face das tragédias causadas pelas guerras e os genocídios,

especialmente o rastro deixado pela Segunda Guerra Mundial. Porém, a abertura ao

diálogo foi um processo complexo em que o ecumenismo e a diversidade religiosa

foram acolhidos com muita resistência por parte de uma minoria conservadora, posto

que foram rejeitados ou emendados diversos esquemas durante o período conciliar,

como veremos mais adiante.

O diálogo cristão-judaico insere-se em um esforço que já se desenvolvia fora da

Igreja, que trouxe mudanças significativas nas relações inter-religiosas e na teologia

romana. O Vaticano II foi um ponto de virada que marcou o século XX por sua

disposição à abertura ao diálogo, às questões e aos valores modernos, como as

diferenças culturais, religiosas, e à liberdade. A teologia se renovou nessas direções e

produziu vários modelos, que não cabe aqui explorá-los, mas destacamos uma

aproximação da Igreja com as demais religiões pelo caminho que se abriu através da

Teologia das Religiões e da teologia ecumênica. Porém, nestas mudanças houve um tipo

de relativização da própria Igreja, no sentido de que é vista como instrumento de

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salvação em Cristo, e não mais em sua centralidade ou grandeza autossuficiente, ou

seja, a Igreja em relação com sua origem e missão no mundo (GIBELLINI, 2012, grifo

dele).

Nesta evolução, romper com o paradigma da visão teológica exclusivista

eclesiocêntrica, (Cristo como único e exclusivo mediador da salvação, e a Igreja única e

exclusiva instituição de salvação) e com a Teologia da Substituição (Supersessionismo

na relação com o Judaísmo), foi um importante avanço, mas apenas o início de um

longo debate teológico que trouxe questões sobre liberdade religiosa, graça, revelação,

cristocentrismo, teocentrismo, nisto, “o significado humano e o valor salvífico das

religiões enquanto religiões”. O resultado foi a superação da posição eclesiocêntrica,

mas ainda limitada à cristocêntrica, recepcionada no Vaticano II, e presente na Nostra

Aetate, uma nova atitude em direção à comunhão e à unidade com as outras

comunidades cristãs, e à estima e cooperação com as diferentes tradições religiosas

(GIBELLINI, 2012, p.508).

Teologia da Substituição ou Supersessionismo é uma interpretação cristã do

Primeiro3 Testamento que vê a relação de Deus com os cristãos como sendo ou a

“substituição” ou a “realização” da promessa feita aos judeus. Supersessionismo, do

latim supersedere (sentar em cima, presidir sobre), é a reivindicação teológica de que os

cristãos substituíam os judeus como povo de Deus, porque os judeus rejeitavam Jesus.

Portanto, três reivindicações são inerentes ao supersessionismo: “1. O Novo Testamento

cumpre o Antigo Testamento; 2. A Igreja substitui aos judeus como povo de Deus; 3. O

Judaísmo é obsoleto, a sua aliança ab-rogada”. 4

Desde o início do século XX, a relação entre o Judaísmo e o Cristianismo mudou

drasticamente. A aproximação e o desenvolvimento de uma nova abordagem para as

relações judaico-cristãs foram pioneiras e partiram de um pequeno número de

estudiosos e líderes religiosos, judeus e cristãos, na primeira metade do século. No

entanto, foi o impacto da Shoah, da criação do Estado de Israel, e o Concílio Vaticano

II que, combinados, romperam paradigmas enraizados na mentalidade cristã, expondo o

antissemitismo presente na Igreja, e a dificil tarefa de discernir o significado da Terra

para os judeus, e a política sionista do Estado de Israel. Contudo, um primeiro passo foi

dado, do preconceito milenar contra os judeus o Cristianismo redescobriu o respeito e a

admiração.

3 Nesta pesquisa iremos utilizar Primeiro Testamento em lugar de Velho Testamento, e Segundo

Testamento para designar o Novo Testamento. 4 Disponível em: <http://www.jcrelations.net/Home.112.0.html?&L=4> Acesso em: dez. 2015.

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O termo Shoah (no inglês) tem substituído o de Holocausto, já que o massacre

dos campos de concentração não tem uma conotação religiosa, como Holocausto, mas

humana e secular, portanto, se identifica mais com tragédia ou catástrofe (Shoah).

No meio protestante, a modernidade e seus valores causaram diferentes reações,

como mencionamos no início desta introdução. Dentre elas, o Parlamento Mundial das

Religiões (PMR), ocorrido em 1893, que iremos explorar mais adiante, mas que a

recepcionou como o ápice do sucesso da civilização ocidental. Por outro lado, no

mesmo período surgiu o movimento fundamentalista protestante, como reação negativa

à modernidade. Nos Estados Unidos do final do século XIX nasceu como oposição à

teologia liberal que na Europa ganhava espaço defendendo a utilização das ferramentas

da ciência moderna como auxílio na interpretação Bíblica e sua desmitologização. A

certidão de nascimento do fundamentalismo protestante foi redigida em 1895, resultado

de uma conferência realizada em Niagara Falls, o manifesto de Niagara Falls.

Diante de tais fatos, nosso objetivo é reconstruir historicamente a dinâmica e a

mentalidade corrente durante o processo de desenvolvimento do diálogo entre cristãos e

judeus, passando pelas primeiras ações em sua direção, no período entre o Parlamento

Mundial das Religiões ao Concílio Vaticano II. Para tanto, iremos explorar as

perspectivas cristãs das outras tradições, o trabalho desenvolvido fora da Igreja, e os

conflitos e as motivações que permearam este processo, bem como a evolução do

conceito de diálogo inter-religioso em direção a um tipo ideal, inserido no contexto do

resultado obtido na Nostra Aetate.

Nesta busca, nos deparamos com alguns problemas centrais que pontuaram o

processo de construção do diálogo cristão-judaico e da NA, dentre os quais destacamos:

As relações inter-religiosas têm sido entendidas a partir de tipologias e conceitos

construídos dentro do universo cristão, o que obviamente contribuiu muito para o

entendimento destas relações, mas, por outro lado, têm seus limites pela dificuldade em

extrair a positividade das diferenças entre as religiões, extraindo apenas seus pontos

comuns, a partir da perspectiva que provém do campo de visão cristão.

Outro problema, é que olhando em retrospectiva, podemos verificar que a

convivência entre cristãos e judeus foi muito cedo marcada por conflitos, mútuas

desconfianças, perseguições, e períodos de aproximação e distanciamento, cuja origem

remonta desde a gênese do Cristianismo. Mesmo que os motivos que unem as duas

tradições sejam muito maiores e mais profundos que as diferenças existentes entre

ambas, o diálogo se torna ambíguo, pois o empenho na aproximação teológica se

mistura às questões políticas, e por elas é ainda mais fragilizado.

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6

Uma terceira questão se refere à Segunda Guerra e à Shoah que evidenciaram o

fracasso dos esforços iniciados desde o PMR (1893) e seus desdobramentos, pois foram

ineficazes em conscientizar a sociedade, e o Cristianismo, sobre a importância e o valor

da diversidade religiosa e cultural. Ainda prevalecia o antissemitismo no ensino da

Igreja, e o foco estava na tolerância religiosa arraigada no Modelo de Substituição.

Posto isto, verifica-se que o diálogo cristão-judaico é uma necessidade que se

arrasta por séculos, e por isso é necessário esclarecer quais são os elementos

fundamentais que o compõem, sustentam e promovem seu desenvolvimento. A partir

destes esclarecimentos poderemos investigar se os aspectos que pautaram sua recepção

no Vaticano II estavam imersos em preocupações situadas somente no âmbito teológico,

como menciona a Nostra Aetate “patrimônio espiritual comum”, ou se políticos. Uma

pista se encontra no fato de que, na NA, documento mais sucinto dentre os nove

documentos conciliares, o parágrafo destinado à religião judaica, é, evidentemente,

diferenciado em conteúdo e extensão dos demais destinados ao Hinduísmo, ao Budismo

e ao Islã. (ANEXO F)

Neste contexto, apesar do Concílio ter sido uma grande conquista à causa do

diálogo, um marco histórico nas relações judaico-cristãs e com as demais tradições

mundiais, evoluiu do “Modelo de Substituição” para o “Modelo de Complementação”,

cujo valor das outras tradições é medido em função da cristã.

Diante de tais questões, nesta pesquisa levantamos algumas hipóteses que

pretendemos confirmar ou refutar. A primeira hipótese é que, apesar dos primeiros

passos em direção ao que hoje podemos compreender como diálogo inter-religioso

ocorresse ao final do século XIX, e tivesse seu ponto alto no Vaticano II, o diálogo

entre cristãos e judeus, por parte da Igreja, teve início de forma contundente somente

após a Shoah, motivado mais por razões políticas em reação às pressões externas, que

pela disposição ao encontro. Com todos os esforços, o texto final contemplou grande

parte das recomendações expostas nos inúmeros trabalhos desenvolvidos por judeus e

cristãos antes do Concílio.

Se a primeira hipótese for comprovada, a segunda hipótese é que, mesmo com o

predomínio de uma mentalidade de superioridade na tradição cristã, somada aos

fundamentos teológicos judaicos e cristãos de “Povo Eleito” e “Novo Povo de Deus”, os

avanços colocaram em cena o princípio da tolerância em direção à correção dos erros

passados, e possibilitaram valorizar o vínculo espiritual proveniente do patrimônio

comum de ambas tradições. Porém, cada tradição ainda chama para si a exclusividade.

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7

Nesta perspectiva, 50 anos após o Vaticano II, o Modelo de Complementação –

Inclusivismo, ainda mina a legitimidade do diálogo e a integridade de cada tradição.

Compreender esta realidade tão complexa foi necessário escolhermos uma

metodologia que levasse em consideração tais características. Para tanto selecionamos o

método indutivo, com ampla pesquisa bibliográfica, a partir de documentos,

declarações, dicionários, livros, artigos e sites específicos, em sua maioria, na língua

inglesa.

Para responder aos questionamentos expostos anteriormente, nosso quadro

teórico foi delineado a partir de três eixos que deram suporte à nossa pesquisa. O

primeiro nos fornece a base do processo de encontro entre as religiões, a partir do

conceito de diálogo e do caminho que se abriu para a teologia cristã das religiões; o

segundo faz um link entre as primeiras iniciativas de diálogo no século XIX e sua

evolução testemunhada em documentos que registraram as ações por parte da

comunidade jucaica e de judeus convertidos ao cristianismo, antes e depois da Shoah,

no período que antecedeu o Concílio; o terceiro eixo se apoia, principalmente, em

documentos apresentados por representantes de entidades judaicas durante a fase

preparatória do Concílio, nos textos preparados pelo Secretariado para Unidade dos

Cristãos no período conciliar, e no Documento final, a Nostra Aetate. Assim, dividimos

esta pesquisa em três capítulos.

No capítulo primeiro, iremos expôr o processo histórico da evolução do

conceito de diálogo até sua categorização nas relações inter-religiosas, a partir de uma

tipologia proposta por Jean Claude Basset (1999), que nos ajudará a conhecer as

diferentes faces e possibilidades de diálogo inter-religioso, e nos fornecerá um olhar

mais detalhado de sua função, estrutura, natureza, e o compromisso dos interlocutores,

ou seja, os pré-requisitos e possíveis assuntos de um intercâmbio entre as religiões. Para

tanto, incluiremos também os modelos propostos por Paul F. Knitter (2008), e os

autores por ele citados para os respectivos modelos. Cientes de que seja um olhar a

partir da perspectiva cristã, acreditamos que nos ajudará no percurso desta pesquisa.

Pelo exposto acima, este capítulo pretende fornecer elementos que permitam

estruturar um tipo ideal de diálogo inter-religioso que nos dê elementos para

compreender o processo de construção do diálogo entre cristãos e judeus, suas

características, dificuldades, e, sobretudo, sua influência na elaboração do texto que

resultou na NA4, promulgada no Concílio Vaticano II. Nosso foco não é realizar uma

análise profunda dos diversos tipos de diálogo e suas origens em sentido amplo, mas

expor os principais eventos e conceitos contidos no processo histórico, a fim de utilizá-

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8

los como referência e contextualizá-los na evolução do diálogo entre as tradições cristã

e judaica.

Portanto, o capítulo foi subdividido em vários tópicos nos quais iremos realizar

um breve levantamento histórico da evolução do conceito de diálogo; uma descrição

sistemática dos tipos existentes no âmbito da teologia cristã das religiões; as

contribuições que prepararam o caminho do diálogo; e uma descrição da tipologia do

diálogo inter-religioso. Ao final deste capítulo nosso propósito será delinear um tipo

ideal para a relação cristã-judaica, em comparação ao proposto na Declaração NA4.

No capítulo segundo, para entendermos os desdobramentos ocorridos desde o

final do século XIX, do Parlamento, passando pela Shoah, até o anúncio do Concílio

Vaticano II, nosso suporte será a obra publicada em dois volumes sobre a História do

Parlamento Mundial das Religiões, cujo autor é John Henry Barrows, na qual podemos

considerar que, fora do âmbito católico, foram semeadas as primeiras iniciativas de

aproximação em tal evento de cunho cultural, político, e, inter-religioso. Buscaremos

esclarecer as motivações que o impulsionaram, seus objetivos, a reação dos convidados,

e os discursos proferidos pelos representantes da tradição judaica.

Nas pegadas deste encontro houve um desdobramento que resultou em ações ao

longo da primeira metade do século XX, que abriram portas ao desenvolvimento do

diálogo ecumênico e com os judeus, que é fruto de uma complexa evolução no processo

de aproximação. Para entendermos estes desdobramentos iremos explorar a atuação da

comunidade judaica e seus membros em direção ao encontro com os cristãos, passando

pela questão das tensões entre a Igreja e o Judaísmo, posto que o século XX abalou as

estruturas da Igreja e do Cristianismo como um todo. Nosso foco será os efeitos da

barbárie da Segunda Guerra Mundial contra milhões de seres humanos, os quais foram

desumanizados, humilhados e assassinados, principalmente os de origem judaica, fato

que contribuiu para que a Igreja repensasse seu modelo teológico em relação aos judeus

e o Judaísmo.

Utilizaremos como suporte para a compreensão da evolução das relações cristãs-

judaicas os trabalhos de personalidades engajadas no tema com os judeus e o Judaísmo,

desenvolvidos no período que antecedeu ao Concílio, dentre os quais daremos especial

atenção aos especialistas Gregory Baum (1923), nascido de mãe judia e pai protestante,

e ao Monsenhor John Oesterreicher (1904-1993), também nascido judeu e convertido ao

catolicismo. Além destes, a contribuição da associação Amici Israel, a importância da

Conferência de Oxford, e a contribuição do historiador judeu Jules Isaac (1877-1963)

para a Conferência Internacional de Emergência sobre o Antissemitismo - Conferência

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9

de Seelisberg (1947), e seu encontro com o Papa João XXIII, cujo fruto se tornaria um

dos nove Documentos conciliares classificados como “declaração”, a Nostra Aetate

(NA).

Enfim, também subdividido em diferentes tópicos, este capítulo irá explorar o

resultado da pressão exercida por judeus, convertidos ou não ao cristianismo, cujos

argumentos, estudos e propostas foram acolhidos por cristãos, protestantes e católicos,

especialmente por membros do clero que se dedicaram incansavelmente na promoção

destas mudanças antes e durante o Concílio.

No capítulo terceiro investigaremos o desenvolvimento deste tema durante o

período conciliar. Iremos constatar que no diálogo com os judeus, o marco de tais

mudanças deu-se no Vaticano II, portanto, as questões voltadas aos processos internos

desenvolvidos durante o Concílio, como o trabalho do cardeal Agostinho Bea e o

desenvolvimento do pensamento judaico, expressado em diversos documentos

preparados pelo Comitê Judaico Americano (CJA), contribuiram na elaboração da NA4.

Nesta direção, nossa intenção será entender o que esta Declaração de fato propôs, além

da mudança litúrgica, que anteriormente promovera o ensino de desprezo aos judeus.

Considerando que, naquele momento, a relação entre as duas tradições fora repensada

sob o signo do vínculo espiritual, e plantadas as sementes de um novo modo de

relacionar-se, questionaremos até onde a NA4 alcançou as expectativas dos que por ela

trabalharam, bem como seus limites e consertos.

Por tudo o que foi exposto até aqui, pretendemos verificar se as hipóteses

levantadas são corroboradas pelos fatos apresentados que pontuaram o período proposto

nesta pesquisa.

I O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO

Partimos de uma definição de diálogo que pautará o desenvolvimento e a

conclusão deste capítulo, na qual a diferença se faz presente e a igualdade existe em

oposição à ideia de superioridade. Assim o diálogo é “um encontro de debate em que

ambos os lados falam corajosamente, mas também, tanto quanto, escutam

corajosamente” (KNITTER, 2008, p.138, grifo dele).

A construção do diálogo inter-religioso representa um processo de entendimento

do que ele é de fato, por isso, iremos analisar em que bases um tipo ideal de diálogo

inter-religioso pode ser construído, considerando que os contextos, histórico, social, e

cultural moldam vivências e sentimentos religiosos que afetam a perspectiva que uma

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10

tradição tem da outra. Neste sentido, ciente da influência exercida pela perspectiva

cultural, abrir as portas para o diálogo entre as religiões requer um profundo

conhecimento da própria tradição, das demais tradições, e o reconhecimento de suas

diferenças, uma necessidade imposta a todas as tradições pela diversidade cultural,

pelas migrações e pelo acesso aos meios de comunicação.

Deste modo, o diálogo inter-religioso pressupõe uma redefinição de sua visão

fixada a partir da perspectiva do cristianismo ocidental, pois o universo religioso é

suscetível à mudança de paradigma ou mudança de modelo, e, consequentemente, uma

reparação de incompreensões ocorridas em nome da “verdade” e da “supremacia”,

incluindo a desconstrução da definição negativa pela qual as religiões mundiais e seus

adeptos são mencionados, como “não cristãs” e “não cristãos”, respectivamente.

I.1 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO NO CRISTIANISMO E OS DIFERENTES

MODELOS TEOLÓGICOS

A palavra diálogo, segundo Teixeira (2011), vem do grego “dia”, se refere ao

que separa e divide, e “logos”, que se refere de modo particular à capacidade humana de

pensamento e raciocínio, assim, podemos partir do pressuposto de que o diálogo, do

ponto de vista etimológico, alude à diferença presente na dinâmica do pensamento

humano.

Platão (428-348 a.e.c.) é considerado o mestre da investigação da verdade por

meio do debate de ideias. No entanto, a palavra foi compreendida nos séculos

posteriores como um debate ao fim do qual uma das partes envolvidas venceria a

“disputa” pelos argumentos. Deste modo, era associada às palavras dialexis (grego),

disputatio, altercatio, refutatio e reprobatio (latim).5

Segundo Basset (1999), na tradição cristã, desde os primeiros séculos de nossa

era foram difundidas três modalidades de diálogo que se caracterizam pelo aspecto

ligado ao âmbito da comunicação de ideias, mas não do encontro. São elas, o

apologético, o teológico e o espiritual:

5 Cf. BASSET; 1999. p.68.

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11

Tabela 01 - Modalidades de Diálogo

1.1 O diálogo apologético 1.2 O diálogo teológico 1.3 O diálogo espiritual

Aquele em que uma

tradição se opõe a outra

tradição, mediante uma

disputa em uma relação de

forças; teve na tradição

judaica seu alvo mais

antigo registrado, como o

Diálogo com Trifão, (100-

165 e.c.)

Aquele que expõe a fé

cristã destacando um

determinado aspecto em

oposição a outras posições,

como as históricas.

Se refere à esfera da

espiritualidade individual,

uma expressão pessoal da

fé do crente em seu Deus,

ou naquele que o

representa.

I.1.1 DIÁLOGO APOLOGÉTICO

O diálogo-discussão entre o filósofo convertido ao cristianismo Justino e o judeu

Trifão, segundo Frangiotti (2006, pp.85-86), nascera como resposta às acusações que os

judeus levantavam contra os cristãos, mas também “para mostrar a caducidade da

Antiga Aliança que foi substituída pela Nova Aliança, a Lei de Cristo”, a Graça.6 Este

pensamento foi difundido e alimentou a ideia de superioridade do Cristianismo frente às

outras tradições religiosas e sistemas de crenças das diferentes culturas.

O Diálogo permite-nos apanhar os métodos e os temas da

argumentação desenvolvida pelas primeiras gerações cristãs. Trata-se,

antes de tudo de uma argumentação escriturística: pois que os cristãos

partilham com os judeus a herança da Escritura antiga [...] O

movimento real do pensamento cristão consiste, antes de tudo, em

reler os textos bíblicos à luz do acontecimento pascal e em descobrir

como os textos falavam profeticamente do Cristo. [...] os próprios

Evangelhos são, nesse sentido, uma apologia do cristianismo em

confronto com o judaísmo (FRANGIOTTI, 2006, pp.91-92).

6 Para alguns autores os destinatários do Diálogo foram os judeu-cristãos, os próprios judeus, e os

cristãos-não-judeus, para demonstrar a superioridade da fé cristã e a durável validade das Escrituras

judaicas. Trifão foi um personagem construído por Justino. Cf. FRANGIOTTI apud SIMON; 2006, p.89.

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12

Na esfera do diálogo apologético é importante destacar que neste período, século

II, ocorrera a revolta judaica liderada pelo comandante Simão bar Koziba - Bar Kokhba,

filho da estrela - entre 132-135 e.c., ocasião em que a Palestina foi arrasada pelos

romanos, Jerusalém destruída, e centenas de milhares de judeus foram mortos. Segundo

Frangiotti (2006) muitos cristãos reconheceram neste evento o castigo de Deus contra

os judeus pela sua rejeição ao Messias Jesus. Podemos verificar que o gérmen que

desqualificaria o povo Judeu e o Judaísmo já estava presente, se fortaleceria e

disseminaria ao longo dos séculos seguintes, reforçada inclusive pela Homilia sobre a

Páscoa de Melitão de Sardes (ca.180), na qual foram acusados de “deicidas”.

Deste modo, a oposição ao povo Judeu, segundo Rodrigues (2009), foi uma

constante nas sociedades ao longo dos séculos que permeou o debate e os escritos,

inclusive de teólogos e sacerdotes católicos, dentre eles João Crisóstomo (ca.350-407),

Eusébio Sofrônio Jerônimo (ca.347-420), e Agostinho de Hipona (354-430), com o

Tractatus adversus Judaeos, encontramos referência aos judeus utilizando expressões

de oposição. O conteúdo da polêmica antijudaica “era o argumento profético, o fato da

existência da Igreja, a necessidade de disposições morais, o abandono da Lei, a

Trindade, o messianismo, e a vida e morte de Jesus Cristo. Encontramos frequentemente

os nomes disputatio, altercatio, refutatio, reprobatio”7 (RODRIGUES, 2009, p.50,

tradução nossa).

Em 1215, no quarto Concílio de Latrão, exigiu-se que os judeus usassem um

sinal de identificação. A referência negativa aos judeus se estendeu em dois eventos,

especificamente à Igreja Católica, o “Concílio de Florença” (1442), pelo qual a salvação

se dava somente por meio da Igreja; e o “Concílio de Trento” (1570), ocasião em que

foi introduzida na liturgia da Sexta-Feira Santa a oração pelos “pérfidos judeus”. Do

lado Protestante, a Reforma do século XVI trouxe atitudes cristãs mais positivas para

com os judeus, apesar do tratado de Lutero Sobre os Judeus e suas mentiras (1543).

Por outro lado, nos longos século de aversões, encontramos por parte dos judeus

atitudes semelhantes que ocorreram no início do Cristianismo. O Concílio de Jâmnia,

ocorrido no século I e.c., ocasião em que as dezenove8 orações que compõem a tefillah

foram organizadas em três grupos: as três primeiras, bênçãos de louvor; as três últimas,

bênçãos de agradecimento; e as treze bênçãos intermediárias peticionais que foram

escritas em diferentes períodos. A tefillah é o segundo momento central da oração

hebraica, composta destas 19 orações que são realizadas três vezes ao dia, recitada após

7 As palavras significam, respectivamente: debate, discussão, refutação, a desaprovação. 8 Anteriormente eram 18 orações, a décima quarta foi dividida em duas partes, aumentado mais uma.

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a benção final do shemá. Dentre as treze bênçãos intermediárias ou centrais, havia

aquela que, de acordo com a interpretação de J. Petuchowski (Di Sante, 2012), fora

introduzida no sínodo de Jâmnia para amaldiçoar os judeus recém convertidos ao

Cristianismo.

Nesta oração o amém não poderia ser proferido pelos convertidos presentes na

sinagoga, já que estariam amaldiçoando a si mesmos. A oração proferida em repúdio

aos judeus cristãos era a décima segunda, chamada birkat ha-minim, a “bênção dos

hereges”. Nesta oração pedía-se a Deus a eliminação do mal, a saber, os caluniadores,

os hereges e os inimigos, “para os caluniadores e os hereges não há esperança [...] todos

os teus inimigos sejam imediatamente destruídos”. No entanto, não há consenso em sua

tradução, e atualmente podemos traduzí-la como “maldição dos hereges” e “oração

contra os hereges”9 (DI SANTE, 2012, p.116).

Seguindo nesta interpretação, sua origem surgiu como oração contra os judeus

convertidos ao cristianismo, por representarem uma ameaça ao Judaísmo do primeiro

século. Porém, do ponto de vista histórico, não há sentido em utilizá-la atualmente,

diante dos princípios propostos pelo diálogo inter-religioso, pela consciência do respeito

à diversidade religiosa e cultural, e diante da alteridade. Já do ponto de vista teológico,

como pedir a Deus que destrua seu inimigo?10 Existe então uma linha tênue que separa

o zelo pela tradição da apologética, na tentativa de demonstrar a superioridade de uma

tradição em relação a outra, à vontade de convencer e de converter. Ao final do século

XIX,

cristãos e judeus tinham motivos distintos para buscar o diálogo. Os

judeus queriam melhorar sua situação na sociedade e preocupavam-se

com os direitos civis. Os líderes cristãos queriam conseguir conversos

ou facilitar a assimilação do Judaísmo no Cristianismo (ICCJ, 2011, p.

34).

A partir do século XX o diálogo entre as religiões ganhou destaque, porém, os

encontros entre as tradições ocorreram fora do universo cristão, muitos séculos antes

“ainda que tais encontros tenham sido exceções. Com efeito, foram raros os diálogos

registrados por escrito; os que chegaram até nós, corresponderam ao espírito do tempo,

que era o da polêmica e da controvérsia” (BASSET, 1999, p.70, tradução nossa).11

9 Cf. DI SANTE, 2012, pp.45-149. 10 Disponível em: <https://www.jewishvirtuallibrary.org/jsource/judaica/ejud_0002_0003_0_02999.html>

Acesso em: 05 fev. 2016, tradução nossa. 11 Detalhes sobre outros encontros entre diferentes tradições religiosas, inclusive antes de Cristo. Cf.

BASSET; 1999, p.71.

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O amor pela verdade e o zelo pela salvação dos povos fizeram com

que fosse empregada, desde o nascimento da Igreja, a arte dos

diálogos familiares para defender o sagrado depósito da fé (BASSET

apud FÉNELON, 1999, p.20, tradução nossa).

I.1.2 DIÁLOGO TEOLÓGICO

Iniciamos este tópico com o seguinte pensamento, “uma crise nasce da

contradição de um modelo, até então reconhecido, e a descoberta de novos dados

aparentemente irredutíveis” (THOMAS KUHN, 2011, pp.43-51).

O diálogo teológico evoluiu e abriu possibilidades de compreensão para além do

cristianismo, por isso, ampliaremos a análise de Basset (1999), e exploraremos o

diálogo inter-religioso com conceitos teológicos atuais, ou seja, modelos aplicáveis à

teologia cristã das religiões, sobre o modo cristão de perceber as demais tradições

mundiais: o Exclusivismo, Inclusivismo e Pluralismo, ou, segundo os quatro modelos

propostos por Knitter (2008): o Modelo de Substituição, Complementação,

Mutualidade, e Aceitação.

Ao longo da história da Igreja houve uma oscilação entre o amor “universal e o

particular”, ora “Deus ama e deseja salvar todas as pessoas”, ora “Deus salva mediante

Jesus”, interpretado como a “Igreja”. Porém, nos primeiros séculos, os cristãos, uma

minoria muitas vezes ameaçada, não lidava com “outras religiões”, mas com as questões

ligadas ao Judaísmo. Predominava entre os teólogos, os Padres da Igreja, a tradição da

vontade salvífica universal de Deus, a visão das “sementes do Verbo” presente na

história mesmo antes da manifestação de Jesus, a “Palavra ou Verbo de Deus”, que se

fez carne em Jesus, é “O Verbo do qual toda a humanidade partilha” (KNITTER, 2008,

pp.109-110).

Em complemento, destacamos dois conceitos: a revelação e o amor universal de

Deus, que ajudarão a compreender os quatro modelos teológicos mencionados

anteriormente. No conceito de revelação, a religião e o profeta, ou fundador, são

mediadores, anunciam o “Deus que já está aí”, mas a experiência é individual. O

principal é que Deus ama, e a religião é apenas mediadora deste amor (QUEIRUGA,

1997).

A partir destes dois pressupostos, o Cristianismo desenvolveu-se ao longo dos

séculos sem dar-se conta de que as outras religiões não compartilhavam dos mesmos

princípios, “Durante séculos, a teologia cristã pode passar ao lado das religiões não

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cristãs sem notar a monstruosidade que supunha excluir seus fieis da revelação e

salvação divinas”. (QUEIRUGA, 1997, p.9)

I.1.2.1 Exclusivismo – Modelo de Substituição

Neste modelo, aplicável à Teologia das Religiões, a centralidade da verdade e

salvação encontra-se exclusivamente no Cristianismo, que não se relaciona com

nenhum outro sistema de crença ou tradição religiosa. A origem remonta desde

Orígenes (185-254), Cipriano (ca.258), Agostinho de Hipona (354-430), Fulgêncio de

Ruspe (460-533), se estendendo pelos séculos até os Concílios de Latrão IV (1215) e o

Concílio de Florença (1442), Papa Eugênio IV. O “fora da Igreja não há salvação” fez

parte da mentalidade cristã desde os primeiros séculos do Cristianismo, e permaneceu

até o Vaticano II.

Mencionamos o desenvolvimento deste modelo, principalmente na história da

Igreja, mas em Karl Barth (1886-1968), teólogo protestante suíço, o Modelo de

Substituição lançou suas raízes no pensamento protestante e sua compreensão em

relação às religiões não cristãs. Sustenta, principalmente, o pensamento de comunidades

evangélicas contemporâneas fundamentalistas (KNITTER, 2008, p.39).

Porém, a análise de Barth sobre religião, de modo geral, é que esta opõe-se à

graça, pois é obra do homem e não de Deus. Deste modo todas as religiões atrapalham o

agir de Deus, e, neste sentido, o exclusivismo do Cristianismo como religião verdadeira

aparece porque somente Jesus Cristo pode salvar o homem, e não a religião, que é falsa.

Segundo Knitter (2008, p.50) “O cristianismo é a religião verdadeira porque é a única

religião que sabe que é uma religião falsa [...] entre todas as religiões incorretas e falsas

do mundo, o cristianismo é a única falsa religião sobre a qual brilha o sol de Jesus

Cristo”. Destaca-se também a importância do Segundo Testamento na teologia de Barth.

No exclusivismo, Cristo está contra as religiões, o diálogo com as outras

comunidades de fé encontra seus limites porque não há nenhum ponto de contato,

revelação (expressão), ou salvação de Deus em outras comunidades de fé. Porém, esta

postura não é unânime. Existem posicionamentos mais flexíveis e abertos, nos quais a

substituição seria “parcial”, utilizando do mesmo modo, passagens do Segundo

Testamento para sustentar esta visão teológica cristã das religiões porém, esta abertura

limita-se à “revelação geral” de Deus em outras religiões, mas não à salvação.

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Na Substituição Parcial, o diálogo se justifica pelo intercâmbio de informações

que ajudem a conhecer e compreender as demais tradições. Ocorre a partir de uma

tipologia que abarca, por exemplo, as questões comuns, como as sociais, ambientais e

políticas, que promovam a cooperação. Além disso, existe o pressuposto cristão do

respeito pelo ser humano, quanto “Filho de Deus”.

Enfim, no protestantismo, seja o Modelo de Substituição Total ou Parcial

exposto por Knitter (2008), podemos concluir que o “fora da Igreja não há salvação”

fora substituído pelo “fora de Cristo não há salvação”, e para conhecê-lo, a Palavra ou o

Evangelho é indispensável, assim,

a atitude mais elementar no campo inter-religioso consiste em ignorar

a existência de outras representações religiosas, em virtude de um

isolamento geográfico ou cultural. Quando as circunstâncias históricas

e políticas impõem uma coexistência, de fato, esta pode vir

acompanhada de um isolamento ideológico, que exclui todo encontro

no plano religioso (BASSET,1999, p.37, tradução nossa).

Figura 01 - Modelo de Substituição

I.1.2.2 Inclusivismo – Modelo de Complementação

O Concílio de Trento (1545-1563), décimo nono concílio ecumênico da Igreja

Católica, convocado pelo Papa Paulo III ocorrera no contexto da exploração colonial

Cristianismo:

A Salvação

Judaísmo

Budismo

Islã

As "Outras"

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que se iniciava no continente americano, e introduziu o conceito de “batismo de desejo”

como forma de lidar com os povos indígenas, cuja “conversão” se apresentava em meio

ao hibridismo de seu sistema de crenças com o catolicismo. O “batismo de desejo”

trouxe em si o conceito de “implícito” e a ideia de “Verbo-Semente” espalhada por toda

a humanidade, e presente em todas as tradições, ou seja, a salvação estava ao alcance

dos não cristãos, por meio de suas práticas compatíveis com os critérios da moral cristã,

e da Igreja. Segundo Knitter (2008, grifo dele) foi um deslocamento de o “Fora da

Igreja não há salvação” para o “Sem a Igreja não há salvação”. De alguma forma toda

pessoa não cristã estaria “vinculada” à Igreja, porém, em uma categoria inferior, Cristo

nas religiões.

Em Karl Rahner (1904-1984), este conceito teve mais um avanço que

influenciou o Vaticano II, pois no “batismo de desejo” havia limites, não era possível

encontrar graça, revelação e salvação de Deus em outras formas de crença. Embora o

“Verbo-Semente” estivesse espalhado, as religiões não poderiam ser um campo fértil

para Ele.

Rahner revolucionou a Teologia das Religiões ao desdobrar as implicações

contidas no ponto central, de que Deus é amor, e, portanto, sua graça salvífica está

disponível “a todos e a cada um dos seres humanos”. Utilizou a doutrina da própria

Igreja para sustentar suas afirmações, a saber, “a graça de Deus age nas Religiões [...]

podem ser caminhos de salvação”, portanto, Deus age por meio das religiões mundiais.

Finalmente, cada religião teria seu próprio “batismo”. Dele vem o termo “cristãos

anônimos” (KNITTER, 2008, pp.118-119).

No Vaticano II, encontramos na Nostra Aetate - Declaração sobre a relação da

Igreja com as religiões não cristãs, afirmações em relação ao Hinduísmo e Budismo

como religiões que “refletem não raramente um raio da verdade que ilumina todos os

homens”, significando que há nelas revelação, mas não salvação. Permaneceu a ideia de

que as “sementes do Verbo estão presentes em outras tradições, mas excluiu a

possibilidade apontada por Rahner de que as religiões mundiais são caminhos pelos

quais Deus pode realizar a salvação. A Nostra Aetate demonstra a perspectiva

inclusivista da Igreja perante as demais religiões mundiais, afirmando no preâmbulo, e

ao final do penúltimo parágrafo, respectivamente, que os homens

têm também todos um só fim último, Deus, que a todos estende a sua

providência, seus testemunhos de bondade e seus desígnios de

salvação até que os eleitos se reúnam na cidade santa, iluminada pela

glória de Deus e onde todos os povos caminharão na sua luz [...] De

resto, como a Igreja sempre ensinou e ensina, Cristo sofreu

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18

voluntariamente e com imenso amor, a Sua paixão e morte, pelos

pecados de todos os homens, para que todos alcancem a salvação. O

dever da Igreja, ao pregar, é, portanto, anunciar a cruz de Cristo como

sinal do amor universal de Deus e como fonte de toda a graça. (ANEXO

F)

Com relação à Igreja e o Judaísmo, o diálogo a partir do Modelo de

Complementação faz muito sentido sob a perspectiva cristã, em razão do vínculo “com

que o povo do Novo Testamento está espiritualmente ligado à descendência de Abraão”,

como cita a NA4, mas o mesmo não ocorre com o povo Judeu, para o qual o Messias

ainda não veio. Encontramos nesta Declaração, no lugar da Teologia da Substituição ou

Supersessionismo que prevaleceu por séculos na Igreja, a afirmação de um vínculo e

uma continuidade, porém, a centralidade permanece no Cristianismo, “embora a Igreja

seja o novo Povo de Deus”. (ANEXO F)

O inclusivismo ultrapassa os muros da Igreja, mas permanece na centralidade do

Cristianismo no qual Cristo é a completude das demais religiões, que sem Ele são

incompletas. Já estava presente, ainda que sem um posicionamento teológico, no

Parlamento Mundial das Religiões (1893). Ao ser adotado pela Igreja no Vaticano II

deu início a uma nova teologia cristã das religiões, cujo processo impulsionou o início

do diálogo e aproximou a Igreja, e as Igrejas cristãs, das outras religiões mundiais nas

décadas posteriores. Cabe ressaltar que o debate em torno do inclusivismo, graça,

revelação, salvação, e o papel das demais religiões mundiais, ainda permanece. Knitter

(2008) cita que, em Jacques Dupuis (1923-1984), o Modelo de Complementação

avançou para a uma proposta de Complementaridade.

Na perspectiva do jesuíta belga Jacques Dupuis, em sua obra Rumo a uma

teologia cristã do pluralismo religioso, defende que um diálogo autêntico respeita e

reconhece o valor de cada tradição. Para tanto é necessária uma complementaridade

recíproca, na qual o resultado final não objetiva a conversão, nem que a verdade cristã

leva à realização as verdades fragmentárias das outras religiões, mas o enriquecimento

mútuo. O monopólio da verdade não pertenceria aos cristãos.

O teólogo faz uma distinção entre o que o Espírito Santo realiza nas outras

tradições, e o que se encontra no Verbo de Deus, existe diferença, mas não uma

contradição ou oposição a Cristo. Assim, a pluralidade faz parte do plano de Deus, e a

plenitude não se encontra necessariamente na Igreja cristã. Neste ponto, emerge tanto o

valor das demais religiões, quanto a ideia de um relativismo, visto pelos críticos ao

modelo como algo negativo, pois a proposta se fundamenta na questão da Plenitude da

Revelação em Cristo. Esta plenitude é “qualitativa” e não “quantitativa”, não é de total

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abrangência, mas de intensidade, portanto, relacional “os cristãos precisam relacionar o

que possuem em Jesus ao que o Espírito Santo faz nas demais religiões” (KNITTER,

2008, p.152, grifo dele).

Ainda que a ideia central de Dupuis permaneça no Modelo Inclusivista

“ampliado”, o problema está na questão do nivelamento do terreno em que ocorre o

diálogo, se a última palavra se encontra no Cristianismo, o diálogo não pode ser levado

a sério. Nesta perspectiva é possível preservar a identidade cristã e estabelecer um

diálogo mais flexível com as demais tradições mundiais. Obviamente, a centralidade

deste modelo é Cristo, porém o Espírito Santo age nas demais tradições, preservando

sua identidade e validez.

Nesta busca pelo tipo ideal e por um modelo ideal para a relação cristã-judaica, é

importante destacar a experiência dos bispos da Ásia citadas por Knitter (2008), que

afirmam, primeiramente, a busca pela harmonia criativa e não a distinção, característica

das culturas do extremo oriente. Portanto, a verdade de Cristo relaciona-se com as

outras, não as exclui nem absorve, a ênfase em Jesus como único e exclusivo salvador

fecha as portas ao diálogo. Deste modo, o diálogo é desenvolvido a partir de

“Comunidades Humanas de Base” unidas pela fé, no sentido plural, e o bem-estar de

todas. A questão se assenta em como anunciar aquele que é o Salvador do mundo,

assim, Jesus é anunciado como o servo dos pobres, e o diálogo é construído no

potencial libertador de Cristo Jesus e pela ação, ou seja, o amor que inclui o próximo

(Knitter, 2008, grifo dele).

Figura 02 - Modelo de Complementação

Cristianismo:

Salvação

Jesus

Hinduísmo:

Espírito Santo

em ação

Judaísmo:

Espírito Santo

em ação

Indígenas:

Espírito Santo

em ação

Islã:

Espírito Santo

em ação

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I.1.2.3 Pluralismo – Modelo de Mutualidade

Iniciamos este tópico trazendo, entre outras, a contribuição do teólogo e filósofo

John Hick (1922-2012) que defende o pluralismo religioso, e propôs uma hipótese

pluralista onde defende o que chamou de revolução copernicana no Cristianismo, na

qual a centralidade não seria mais em Jesus ou no Cristianismo, mas em “Deus”, ou

seja, teocêntrica. Hick substituiu o nome “Deus” pelo termo “Real”, considerando que

poderia alcançar outras concepções, como as encontradas no Budismo. Faustino

Teixeira (2012) faz uma análise da hipótese pluralista de Hick, em que,

levar a sério o pluralismo religioso significa rever radicalmente a

estrutura tradicional da teologia cristã. Em sua visão, a doutrina da

encarnação, assim como tradicionalmente entendida, produziu na

história sérios efeitos colaterais, entre os quais o antissemitismo

cristão, a exploração colonialista ocidental, a subordinação social das

mulheres e um arrogante complexo de superioridade do cristianismo

diante das outras religiões. Para Hick, a doutrina da encarnação, por

exemplo, não pode ser compreendida em sentido literal, mas em

sentido metafórico.12

No Modelo Pluralista o diálogo é alcançado quando ouço, respeito e aprendo

com o outro. Este modelo oferece caminhos ao diálogo que promovem a igualdade, a

reciprocidade e o encontro na alteridade. A particularidade de Cristo abre espaço para o

amor universal, e a presença de “Deus” em outras religiões. Segundo Gibellini (2012,

p.513) “Cristo acima das religiões”, como expressão normativa e não constitutiva (nem

exclusiva, nem inclusiva), em que o amor salvífico de Deus desde sempre esteve em

ação no mundo. As religiões seriam vias ordinárias de salvação, e o Cristianismo a via

extraordinária (GIBELLINI apud SCHLETTE, 2012, grifo dele).

Knitter (2008) prefere referir-se a este modelo utilizando o termo Mutualidade

ao invés de Pluralismo, em razão do relacionamento e da reciprocidade que envolve as

partes. Deste modo, o acesso proposto pelo Modelo de Mutualidade, segundo Knitter

(2008, p.181), pode ocorrer em três formas: a ponte filosófico-histórica, em John Hick;

místico-religiosa, em Raimon Panikkar ou, a ético-prática.

12 Entrevista concedida à revista IHU on-line - Instituto Humanitas Unisinos em 2012, por ocasião da

morte de John Hick no mesmo ano, e da tradução brasileira do livro de autoria de John Hick. Teologia

cristã e pluralismo religioso. O arco-iris das religiões. São Paulo: PPCIR/Attar, 2005. Disponível em:

<http://www.ihu. unisinos.br/noticias/506496-john-hickeopluralismo-religioso> Acesso em: 22 set. 2015.

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Para Hick o Divino é tão real quanto misterioso, que a verdade é infinitamente

maior que o conhecido, e que as várias religiões, de modos diferentes, experimentam,

concebem e vivem uma Realidade Divina, em razão dos filtros culturais e temporais aos

quais é submetida, ou seja, o conhecimento humano é historicamente condicionado ou

socialmente construído. Para os defensores desta abordagem, filosófíco-religiosa, a

finitude está nas religiões, posto que nenhuma delas pode pretender possuir a realidade

final acerca do Divino.

A abordagem místico-religiosa considera que “no âmago de cada religião existe

algo que excede infinitamente tudo o que um ser humano ou comunidade consegue

sentir ou exprimir [...] nenhuma religião pode conferir-nos a verdade plena e final”,

Panikkar o chama de “fato religioso único”. A finitude está na mensagem, mas não na

vivência e na experiência mística, pois “a pessoa a conhece quando a tem”. Assim, no

diálogo inter-religioso “o coração fala ao coração” (KNITTER, 2008, pp.201-202-210).

Por meio da abordagem ético-prática, os pilares são as questões éticas e a

responsabilidade ética pelas quais as religiões se aproximam e se unem, e a realidade

universal é o sofrimento. Por conseguinte, elas têm a oportunidade de aplicar os

preceitos deste modelo, ou seja, a igualdade, a reciprocidade e o encontro na alteridade.

É uma opção que percorre o caminho da dor e dos conflitos postos diante de milhões de

pessoas em todo o mundo, e, neste ponto, nos deparamos com as sequelas deixadas pelo

colonialismo, pelas missões, pela exploração econômica predatória do meio ambiente,

dos animais e dos seres humanos, para citar apenas alguns exemplos, sequelas estas que

as religiões são chamadas a agir diante do tribunal da ética.

Outra característica do Modelo de Mutualidade é o conceito de igualdade,

baseado no valor inato de cada tradição. Neste sentido Knitter (2008, pp.177-179) se

refere ao termo “terreno nivelado”, no qual o diálogo autêntico ocorre “entre iguais”13, e

em meio às diferenças. No entanto, o diálogo em meio às diferenças requer um acesso

pelo qual é possível estabelecer uma conexão entre as partes, como “algo em comum”.

Para Hick semelhanças éticas enfraquecem as diferenças doutrinárias existentes entre as

religiões. E para Panikkar, a ideia de um denominador comum “Deus” ou “Real”,

proposta por Hick, não é plausível em uma visão pluralista dada a diversidade existente

entre as religiões. Porém,

13 Expressão utilizada no Vaticano II.

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quando as pessoas percebem situações de ganho recíproco e

consideram que podem trabalhar juntas, elas se abrem aos pontos de

vista umas das outras, e até à exigência umas das outras (WRIGTH,

2012, p.505).

Enfim, na perspectiva pluralista, uma religião não estabelece relação com as

outras religiões como ocorre no Modelo de Complementação, e não há sincretismo. O

que prevalece é a igualdade de valor entre as religiões e seus pontos comuns, dos quais

o sofrimento é um deles. “No paradigma pluralista toda religião tem sua verdade, e por

força dessa verdade abre à salvação” (GIBELLINI, 2012, p.514).

O que pretendemos extrair deste modelo foi a questão da tensão existente no

relativismo imposto a ele, visto como ameaça à identidade, cristã ou de qualquer outra

tradição, se tirarmos o foco do Cristianismo, já que o diálogo é uma via de mão dupla.

Porém, mesmo que seja um modelo em que há um esforço no sentido de abarcar todas

as formas de crença evidenciando os pontos comuns, ainda há um certo atrito

proveniente dos “filtros” culturais aos quais as tradições estão imersas, e,

principalmente, sua raiz ocidental moderna.

Quanto à aproximação judaico-cristã, a perspectiva pluralista lança algumas

possibilidades de uma aproximação, seja pela via filosófico-histórica, como foi

demonstrado a partir de John Hick, onde há uma Realidade Divina por trás de tudo,

digamos, o Deus de Abraão; seja pela conciência místico-religiosa corroborada por

Panikkar, onde o Deus é tão diverso como são as religiões; ou ainda pela via ético-

prática, que se destaca nos dias atuais.14

14 Segundo Wrigth (2012) este “algo em comum” seria uma “ordem moral” proveniente de uma força

transcendental imposta sobre nós, que dá sentido ao universo. Se fosse utilizado o termo “ordem

invisível”, estaria implícito uma fonte transcendente de significado ou de ordem moral, conceito

formulado por William James (1842-1910), autor do livro Variedades da Experiência Religiosa,

publicado em 1902. Quanto à fé religiosa ele disse que “consiste na crença de que existe uma ordem

invisível, e que nosso bem supremo reside em ajustarmos-nos harmoniosamente a ela”. O interesse de

James não estava em religiões organizadas ou instituições, mas nos sentimentos e atos que cada um

experienciava em sua relação com o que considerava divino. A obra aborda a singularidade das

experiências místicas, mencionando que seu significado era pessoal e dificilmente transferível através de

linguagem. Esta formulação é compatível com as escrituras abraâmicas. Cf. WRIGTH, 2012, pp.503-517.

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Figura 03 - Modelo de Mutualidade

Em comum: Deus – Real único - Mistério

I.1.2.4 Modelo de Aceitação

O Modelo de Aceitação, por ser o mais recente, reflete a maneira pela qual as

pessoas da sociedade contemporânea ajustaram as abordagens anteriores a fim de

compreenderem melhor a diversidade presente no mundo. O motivo pelo qual Paul

Knitter trouxe esta abordagem foi por acreditar que os três modelos anteriores não

conseguem desempenhar o papel de um diálogo que equilibre a particularidade, que

ameaça a validade das demais crenças em relação ao Cristianismo, e a universalidade,

que retira ou, segundo o autor, obscurece as efetivas diferenças específicas que

constituem a identidade de cada tradição.

Além disso, não busca explorar pontos nem experiências comuns, a fim de

estabelecer pontes entre as religiões e crenças, muito menos levanta a questão da

superioridade cristã, mas encontra suporte no fato de que a diferença existe, e deve ser

aceita.

A aplicação deste modelo ocorre no contexto do pensamento pós-moderno, no

qual alguns elementos do pensamento moderno são vistos de forma negativa, por

exemplo, a excessiva confiança no poder da razão, que possui significados diferentes

dependendo do filtro cultural ao qual é submetida, e porque não é imune aos interesses

de quem dela quiser fazer uso para fins específicos; outro fator decorre do excesso de

confiança nos fatos, que novamente está submetido ao filtro cultural, e remete à

Deus - Real

JudaísmoDemais tradições

Cristianismo

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necessidade de retirar da ciência o poder da última palavra, abrindo espaço para uma

abordagem que compreende o mundo não necessariamente através de seu olhar, como a

crença em mitos e a vivência da experiência mística; e, finalmente, abandonar a ideia da

busca pelas verdades universais e reconhecer as diferenças.

Este último aspecto é a base sobre a qual este modelo é construído, nele

encontramos algumas palavras-chave, como diversidade, valor, beleza, verdades, filtros,

cultura, história e julgamento. Na teologia cristã das religiões, o Modelo de Aceitação

pode ser visto a partir de fundamentos pós-liberais da religião, da teologia comparada, e

no que diz respeito à ideia de que, em consequência das várias religiões, existem várias

salvações.

Do ponto de vista da teologia pós-liberal, Knitter cita o teólogo protestante

George Lindbeck, que defende a ideia de que a religião pode ser vista “como uma

estrutura ou ambiência linguística que molda a totalidade da vida e do pensamento”, isto

significa que a linguagem precede a experiência, a ideia, a sensação “são as palavras e

as imagens a nós trazidas por nossa religião que dão forma a nossos pensamentos e

convicções religiosas”. Portanto, por meio dos filtros, não só compreendemos e

percebemos o mundo, mas o criamos, os filtros determinam e dão sentido ao que

percebemos. Dito de outro modo, como poderíamos afirmar uma vivência ou

experiência comum diante de tanta diversidade religiosa e cultural, se estamos

submetidos, vivemos e experimentamos apenas um determinado sistema simbólico?

Não se traduz a linguagem de uma tradição para outra (KNITTER, 2008, p.284).

Finalmente, há um elemento que diz respeito ao “problema” da universalidade

que se encaixa em nossa pesquisa, e para Lindbeck é a finalidade da religião, “ ‘cada

religião, apresenta uma estrutura totalmente abrangente, uma perspectiva universal’ a

partir da qual os seguidores daquela religião compreendem tudo” (LINDBECK apud

KNITTER, 2008, p.286, grifo dele).

O Modelo de Aceitação se estende de forma muito mais profunda que o exposto

neste breve tópico, aborda a questão da salvação ou salvações, expõe o lugar de Cristo,

e a importância da teologia comparada das religiões fundamentada no diálogo. Por fim,

enfatiza a harmonia em meio a uma apologética positiva, ou seja, desconstroi a ideia de

superioridade, e, como em uma engrenagem, cada religião preserva sua particularidade

e contribui com as demais.

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Figura 04 – Modelo de Aceitação

Diferenças – Diversidade

I.2 APROXIMANDO AS CULTURAS

I.2.1 O PAPEL DOS MISSIONÁRIOS

A aproximação entre culturas se deu de diversas formas em diferentes períodos,

interligadas por interesses comerciais, por aqueles relacionados à pesquisa, pelas

guerras, em função de projetos colonialistas e seus investimentos nas grandes

expedições. Nesta mentalidade encontramos as missões católicas e protestantes

realizadas nos continentes americano, africano e asiático, cuja postura teológica

exclusivista não encontrava possibilidade de salvação fora do Cristianismo, seja por

meio da Igreja, seja pela fé em Cristo, assim, a fé cristã prevalecia sobre as demais

crenças. Por outro lado, houve importantes traduções de textos sagrados realizadas por

missionários, cujo legado contribuiu para uma aproximação, e abriu caminho para o

conhecimento das demais culturas autóctones (DOWLEY, 2009).

Na China, Índia e Japão nos séculos XVI, apesar de seu objetivo principal de

evangelizar, contribuíram no sentido de uma aproximação com outras religiões e

culturas, até então praticamente desconhecidas na Europa. Dentre eles podemos citar os

Demais Tradições

Judaísmo

Cristianismo

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jesuítas Mateo Ricci (1552-1610) e Roberto Nobili (1577-1656) na China; Francisco

Xavier (1506-1552) no Japão e Índia.

Além destes, houve missionários protestantes que também contribuíram na

tradução da Bíblia, trabalho que exigiu grande aproximação da cultura e língua locais

para que fosse possível compreender o modo de pensamento dos possíveis leitores.

Dentre eles destacamos William Carey (1761-1834) na Índia, e Henry Martyn (1781-

1813) entre os muçulmanos, tradutor do Pirmeiro Testamento para o urdu, persa e

judaico-persa; e os Salmos para o persa (BASSET, 1999).15

Da Alemanha emerge seus maiores representantes de origem judaica como,

Herman Cohen (1842-1918), Ferdinand Ebner (1882-1931)16, Franz Rosenzweig (1886-

1929)17, e Martin Buber (1878-1965)18. A ideia de diálogo na Alemanha restringiu-se

primeiro à teologia protestante, e somente após o Vaticano II foi introduzida na Igreja

Católica.

Neste período houve uma evolução, o diálogo adquiriu uma nova concepção em

que não é somente uma comunicação verbal, mas passa a ser um dado fundamental do

pensamento que inclui possibilidades de uma relação de diálogo, e uma nova visão da

existência humana, bem como da relação com os outros e com o mundo. Neste sentido,

a verdade em um encontro não é submetida a um sistema estabelecido. “O pensamento

de Martin Buber influenciou a teologia cristã, mas não a judaica, que sempre o

considerou marginal por causa de certas posições em relação a Jesus e aos árabes”

(BASSET,1999, p.24, tradução nossa).

15 Na língua portuguesa João Ferreira de Almeida (1628-1691), pastor protestante, escritor e tradutor, foi

autor da primeira Bíblia do Novo Testamento na língua portuguesa (Amsterdam, 1681). Porém o Antigo

Testamento foi concluído somente até o último capítulo de Ezequiel devido ao seu falecimento. Coube

então ao missionário Jacobus op den Akker finalizar a tradução em 1694, que só veio a ser impressa em

dois volumes, em 1748 e 1753. A outra versão na língua portuguesa da Bíblia foi realizada por Antônio

Pereira de Figueiredo (1725-1797). 16 Ele é considerado um dos representantes mais destacados do pensamento dialógico. A filosofia de

Ebner é sobre o homem existente em um relacionamento pessoal Eu-Tu com Deus e com os outros. 17 “A estrela da Redenção” (Der Stern der Erlösung) é a obra prima de Rosenzweig, pela qual analisa a

unicidade de cada ser humano, a realidade do mundo e a transcendência de Deus que põem em xeque a

ideia de totalidade, mostrando como estas três singularidades encontram sentido, uma em relação à outra.

A criação religa o mundo a Deus, a revelação permite que o ser humano seja orientado pela Palavra

divina e a Redenção tem a tarefa de salvar o mundo, essencialmente pelo amor. Disponível em:

<https://digitalis-dsp.uc.pt/bitstream/10316.2/11963/3/02%20-%20Manuel%20Augusto%20Rodrigues.p

df?ln=pt-pt> Acesso em: 20 agosto 2015. 18 Para Buber o homem nasce com a capacidade de interrelacionamento com seu semelhante, ou seja, a

intersubjetividade. Intersubjetividade é a relação entre sujeito e sujeito e/ou sujeito e objeto. O

relacionamento, segundo o filósofo acontece entre o Eu e o Tu, e denomina-se relacionamento Eu-Tu. A

interrrelação segundo Martin Buber, envolve o diálogo, o encontro e a responsabilidade entre dois

sujeitos e/ou a relação que existe entre o sujeito e o objeto.

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I.2.2 REPENSAR O PAPEL MISSIONÁRIO DA IGREJA

Se por um lado os missionários contribuíram para aproximar as culturas, por

outro, isso se deu em uma mentalidade na qual ainda prevalecia a postura exclusivista

da Igreja, que também alimentava as missões protestantes. Após a Segunda Guerra

Mundial, e no período anterior ao Vaticano II, ex-colônias europeias no continente

africano e asiático, ganharam sua independência, fato este que contribuiu para resgatar a

herança cultural e as tradições religiosas autóctones, subjugadas pelas missões cristãs

europeias e norte-americanas. Neste contexto “cresceu a tendência de identificar o

Cristianismo como uma força alheia que tinha pactuado com os regimes colonialistas”

(PASSOS; SANCHEZ, 2015, Verbete Nostra Aetate, p.670).

Em consequência da descolonização e do declínio do número de missionários, o

Cristianismo foi obrigado a repensar os projetos missionários, o que trouxe à Igreja o

debate sobre a necessidade de novas formas mais flexíveis e liberais de conduzir tais

projetos, resultando, como veremos mais adiante, na Declaração Nostra Aetate.

Por isso, o percurso do diálogo também pode ter grande contribuição dos estudos

pós-coloniais passando pela desconstrução do universalismo hierárquico no qual, em

uma escala evolutiva, a cultura ocidental estaria no topo. No período entreguerras do

século XX, a Europa foi obrigada a repensar criticamente seu conceito de civilização e

seus estudos relativos às religiões dos povos extraeuropeus, diante das contingências

históricas, políticas e culturais, e do processo de descolonização. Afinal, “em algumas

culturas, a razão não é a ferramenta principal para compreender nosso mundo”

(KNITTER, 2008, p.276).

Nesta lógica, chegamos ao processo de descolonização e seus efeitos que

trouxeram grandes mudanças no ideal civilizador universal moderno, a visão ocidental

cristã, em relação às outras culturas e em relação ao próprio homem, que introduziu um

novo olhar sobre a religião do “outro”.

De forma contundente, Fanon demonstra que a noção essencialista do

ser humano, uma criação das ciências hegemônicas nos impérios

coloniais, esconde uma visão hierárquica das culturas, que induz os

povos colonizados a negarem suas especificidades culturais para

aderir à suposta civilização universal (FANON apud WIRTH, 2013,

p.131).

O longo processo de descolonização e independência do domínio europeu dos

países das Américas, África e Ásia, iniciou-se no final do século XVIII, e foi finalizado

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décadas após a Segunda Guerra Mundial. Os estudos pós-coloniais abriram um novo

caminho para um conhecimento que impactaria o desenvolvimento do diálogo inter-

religioso, principalmente no que tange às especificidades de cada tradição, em uma

mudança de paradigma relativo ao fundamento que sustentava o olhar em relação ao

outro. Como questiona Wirth (2013, p.139), “Não foi este olhar sobre a religião do

outro uma das estratégias de decifração das subjetividades e dos campos simbólicos dos

povos colonizados, para torná-los permeáveis à lógica colonial em curso?”. A visão

hegemônica é obrigada a se reinventar diante deste fato.

Neste sentido Mariátegui (2004), em seus estudos dos povos indígenas da

América Latina, propõe o que pode ser uma grande contribuição ao processo de

desenvolvimento do diálogo inter-religioso, o estudo sensível ao vínculo entre religião e

cultura no âmbito das práticas religiosas, ou seja, descolado da lógica do conquistador:

O conceito de “religião” cresceu em extensão e profundidade, não

reduzindo a religião a uma igreja e a um ritual. E reconhece às

instituições e sentimentos religiosos um significado muito diferente

daquele que ingenuamente lhe atribuíram, com radicalismo

incandescente, as pessoas que identificavam religiosidade com

“obscurantismo” (MARIÁTEGUI, 2004, p.113).

Pelo exposto neste item, podemos acrescentar que o diálogo envolve uma série

de interesses por parte dos interlocutores, explícitos ou não. Para tanto, uma série de

estratégias podem ser utilizadas se beneficiando de um tipo de conhecimento, inclusive

o da produção acadêmica, e que, no diálogo inter-religioso, pode também ocultar

relações de poder corporificadas nos interlocutores (WIRTH, 2013).

I.2.3 A CONTRIBUIÇÃO DO ESTUDO DAS RELIGIÕES

Entender o objeto religião ou as religiões, depende do contexto sociocultural e

histórico em que é elaborada a pesquisa científica e da perspectiva teórica que lhe dá

sustentação. Por isso, a importância do desenvolvimento do estudo das religiões, ou a

História das religiões, ao final do século XIX na formação dos padrões de pensamento.

Do mesmo modo, houve influência dos padrões do pensamento cristão na academia, e,

consequentemente, na relação com as demais tradições19.

19VATICANO. Pacem in terries. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/encycli

cals/docu ments/hf_ jxxiii_enc_11041963_pacem_t.html> Acesso em: 15 abril 2015.

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29

O entendimento do processo de construção do diálogo insere-se nos períodos em

que foram realizados os estudos, e as respectivas epistemologias que deram suporte ao

pensamento. Assim, as tensões e as tentativas de diálogo apoiaram-se em conceitos e

pré-conceitos imersos nos contextos histórico e cultural que os produziram. Deste modo,

o estudo das religiões foi marcado por duas tendências,

a) o crescente conhecimento sobre outras culturas, inclusive suas

características religiosas; b) a crescente submissão do estudo das

religiões ao pensamento científico-racional em desfavor das

abordagens apologéticas e exigências dogmáticas (USARSKI, 2013,

p.52).

O papel da Ciência da Religião para o diálogo traz para a pesquisa uma reflexão

distanciada do objeto religião. Porém, a compreensão das especificidades do diálogo,

inclusive o que envolve cristãos e judeus, vem a partir de uma dupla contribuição: a

ciência da religião ao lado dos estudos pós-coloniais, uma vez que, na evolução do

conceito de diálogo, iremos considerar a visão das religiões e culturas cientes dos

postulados eurocêntricos que dominaram o percurso na produção de conhecimento.

Portanto, um olhar a partir das epistemologias pós-coloniais ampliará, aprofundará e

enriquecerá o entendimento deste objeto de pesquisa. Este posicionamento é essencial

para uma proposta de construção de um tipo ideal de diálogo inter-religioso, pois

segundo Wirth (2013, pp.133-141), “o ‘conhecimento e compreensão’ acadêmicos

devem ser complementados pelo ‘aprender com’ aqueles que vivem e refletem a partir

de legados coloniais e pós-coloniais”.

A aquisição de conhecimento sobre as religiões remonta a séculos anteriores ao

Cristianismo.20 Já no século XVII de nossa era, filólogos europeus trouxeram grande

contribuição por meio dos estudos filológicos, assim como da paleologia e das

descobertas arqueológicas ocorridas nos séculos XIX e XX. A História das Religiões

nasceu na segunda metade do século XIX, decorrente de um processo de

questionamento sobre a teologia cristã da revelação primordial, movimento iniciado no

século XVIII, perante a documentação etnográfica de missionários, na qual começou-se

a delinear uma atitude crítica e de investigação sobre o fato religioso, como possível

objeto de pesquisa, indagação científica, histórica, cultural e evolutiva.

A Europa decidia, em Berlim, a divisão da África (1878), e o império Britânico

tornava-se o maior império da história, e a civilização europeia era convicta de sua

20 Cf. USARSKI. In: PASSOS, João Décio; USARSKI; 2013, pp.51-61.

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superioridade racial. Pesquisadores se interessavam pelas culturas dos outros povos, e o

termo “cultura” coincidirá com “religião”, e foi neste contexto que surgiram os

primeiros manuais de História das Religiões, porém, tendo o Cristianismo como religião

modelo.

Max Müller, linguista, orientalista e mitólogo alemão (1823-1900) pôs as bases

para os futuros manuais de História das Religiões. Com sua obra “Palestras sobre a

Ciência da Linguagem” (1861), discutiu a questão da linguagem para uma possível

interpretação dos fatos religiosos, no sentido de uma religião e linguagens primordiais.

Pautado em uma perspectiva “culturalista” afirmava que cada cultura e cada povo tem

sua própria religião, portanto, é necessário conhecer a língua de um povo para poder

explicá-lo, ser um especialista. Max Müller, considerado “pai” da Ciência da Religião,

cuja obra principal é a coleção The sacred books of the East (50 volumes de textos

sagrados-chave do Hinduísmo, Budismo, Taoísmo, Confucionismo, Zoroastrismo,

Jainismo e Islã, publicados entre 1879 a 1910), fonte essencial da história das religiões e

da mitologia comparada, sua ênfase não estava mais na “História das Religiões”, mas

em religião comparada ou ciência das religiões (USARSKI, 2013).

No final do século XIX, prevaleceu a perspectiva desistoricizante do objeto

“Religião”, a Ciência Sistemática ou Fenomenológica da Religião, que a percebe de

forma transcendente, o geral a partir do específico, uma perspectiva “objetivista” da

religião e da cultura, uma analogia universalista que busca estruturas comuns mesmo na

diversidade de fenômenos religiosos, ou ainda, sua essência, uma única religião na

origem de todas as religiões históricas, considerando o homem como essencialmente

religioso, o homo religiosus. Nesta abordagem os elementos políticos e culturais da

época estão fortemente presentes, posto que as interpretações e a compreensão da

alteridade partiam do ponto de vista Cristão Ocidental.21

Paralelamente a estes movimentos, o estudo das religiões conheceu entre 1900 e

1950 forte incremento. Em 1900, a Exposição Universal de Paris incluiu o primeiro

Congresso Internacional de História das Religiões, de uma série que ocorreria

posteriormente. A primeira cadeira sobre o tema surgiu em 1873 na faculdade de

teologia de Genebra a que se seguiram outras universidades. Entre os nomes de

professores célebres conta-se Nathan Söderblom (1866-1931) e Rudolf Otto (1869-

1937) que ensinou história das religiões na faculdade de teologia de Marburgo22.

21 Sobre o desenvolvimento do estudo das religiões. Cf. RODRIGUES, 2008/2009, pp.45-70. 22Rudolf Otto (1869-1937), teólogo luterano alemão, foi um dos mais famosos investigadores de história

comparada das religiões. A sua principal obra é Das Heilige. Über das Irrationale in der Idee des

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Papel relevante desempenhou a International Association for the History of

Religions entre 1950 e 1970. Especialistas e interessados no assunto participavam de

congressos e sessões de estudo, e liam o que se publicava acerca das religiões e sua

importância (RODRIGUES, 2008).

Apesar da contribuição dos estudos da religião ocorridos no século XIX, os

apontamentos feitos por Wirth (2013) fornecem elementos para a reflexão de que o

diálogo inter-religioso é susceptível ao pensamento da época em que estes estudos

foram realizados, e os referenciais epistemológicos que os sustentaram. Das abordagens

pós-colonialistas podemos extrair elementos que nos ajudarão a compreender o perfil do

diálogo inter-religioso na relação judaico-cristã.

A ideia de uma relação hierárquica [...] fundamentada na suposta

superioridade racial do colonizador [...] a vinculação entre esta e o

controle das mais diversas formas de produção material e simbólica

nas regiões colonizadas [...] a repressão às formas de produção do

conhecimento [...] a imposição parcial da cultura dos dominadores [...]

de acordo com a lógica do novo padrão de poder (WIRTH, 2013,

p.134).

Na relação judaico-cristã, mesmo com a proximidade de crenças nascidas no

berço profético abraâmico, negou-se este conhecimento e semelhança em favor de suas

diferenças, sustentadas pela ideia de superioridade em relação ao “outro” e suas

práticas, e neste caso específico, gestada também pelo Primeiro Testamento ou Bíblia

Hebraica (BH), é, portanto, um componente encontrado igualmente nas duas tradições,

judaica e cristã.

Exemplos para narrativas rudimentares resultando de contatos

relativamente esporádicos entre povos interessados na delimitação do

“próprio” diante do “vizinho diferente” encontra-se no “Antigo

Testamento” no qual o discurso negativo em relação a práticas

“alheias”, revelam esforços retóricos em prol da plausibilidade da

veneração exclusiva de Yahweh. Motivos apologéticos também

predominam na maioria dos Padres da Igreja que tematizaram os

cultos “pagãos” e seus desafios para a fé cristã (USARSKI, 2013,

p.53).

Göttlichen und sein Verhältnis zum Rationalen (1917). O sagrado é o numinoso (de numen, divindade), o

que não se vê nem experimenta, que é irracional. É mistério, tremendo, fascinante. Lembra Kant com a

sua ideia de noumenon. Teve grande influência em Paul Tillich, Gustav Mensching, Mircea Eliade (Das

Heilige und das Prophane, tradução para o portugues: O sagrado e o profano), Martin Heidegger, Leo

Strauss, John A. Sanford, Hans-Georg Gadamer, Max Scheler, Ernst Jünger, Joseph Needham e Hans

Jonas. Mircea Eliade (1907-1986), historiador e romancista romeno naturalizado norte-americano, é um

dos mais importantes e influentes historiadores e filósofos das religiões da contemporaneidade. Várias

das suas obras estão traduzidas para português.

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Apesar da distância temporal que os separa, podemos estabelecer uma conexão

entre a apologética encontrada no cristianismo primitivo, o pensamento de superioridade

cristã ocidental e as epistemologias pós-coloniais para compreendermos de que maneira

poderíamos promover o diálogo despojado de verdades absolutas entre estas tradições, e

inserí-lo nas profundas raízes que as vinculam.

I.3 A RELIGIÃO COMO MEDIADORA DIANTE DA DIVERSIDADE

CULTURAL E RELIGIOSA

A inter-religiosidade é um fenômeno social e cultural, posto que envolve a

interação entre minorias étnicas e religiosas, migrantes, refugiados, estudantes, os

matrimônios mistos, e até mesmo o uso dos meios de comunicação para fins religiosos

que afetam profundamente a vida social e individual. Assim, o contexto social e cultural

em que uma religião e seus fieis estão inseridos, nos remete ao que foi exposto em

relação ao nascimento do diálogo inter-religioso, como ferramenta de abertura e

aproximação. No entanto, desenvolveu-se em contextos de conflitos regionais e

mundiais, desigualdades sociais e regionais, imperialismo, conflitos étnicos e raciais,

ideológicos, luta de classes, totalitarismos, fundamentalismo e terrorismo; somados ao

questionamento das tradições religiosas, empoderamento das mulheres, descobertas

científicas, os direitos humanos, liberdade religiosa, ou seja, as grandes transformações

do século XX.

Tranformações estas que nenhuma religião poderia permanecer em silêncio, nem

deixar de envolver-se ou sofrer de alguma forma seus efeitos. Desse modo, seu papel e

finalidade a qualifica como mediadora, ajudando o ser humano em sua caminhada, e por

isso ganha um significado importante, pois abre mão de seu exclusivismo em favor de

ações que visem minimizar os sofrimentos impostos a toda humanidade e seu bem-estar.

A diversidade e as transformações sociais ampliaram os horizontes das religiões

institucionalizadas, inclusive pela presença de formas alternativas de crenças ou os

Novos Movimentos Religiosos. Assim, a pluralidade cultural, filosófica e política

trouxeram uma nova visão do outro e das próprias sociedades em transformação, a

realidade da diversidade cultural.23

Como vimos anteriormente há diferenças no modo como cada religião concebe o

divino, e esta diferença estende-se para a compreensão da natureza humana e do seu

23 O Termo diversidade cultural foi adotado na 31ª Sessão da Conferência Geral da UNESCO Paris, 2 de

Novembro de 2001. Cf. Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, 2002.

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destino final, e explica a existência do pluralismo no âmbito religioso. (WOLFF, 2012).

Outra forma de pluralismo paralelo ao religioso, é o social e cultural, portanto não deixa

fora nenhum aspecto da existência humana, pois inclui a pluralidade de crenças, ideias e

valores. Neste sentido, o reconhecimento do aspecto positivo deste pluralismo pelas

instituições religiosas poderá construir as pontes ou manter a distância entre as religiões

e as culturas.

Existe pluralismo quando certa diversidade é valorizada de maneira

positiva por um indivíduo ou grupo. [...] O desenvolvimento

tecnológico torna todos os indivíduos e todas as sociedades

profundamente interdependentes; os meios de comunicação e a

mobilidade das pessoas não deixam nenhuma instituição e nenhuma

cosmovisão protegidos da concorrência (BASSET, 1999, pp.233-235,

tradução nossa).

O pluralismo deve ser entendido como uma pré-disposição interior para que

adeptos de uma tradição religiosa reconheçam a possibilidade que outras possuem uma

verdade diferente da sua, que é uma entre outras. Esta postura extrapola a ideia da

tolerância religiosa e mesmo do inclusivismo. Neste sentido, o que importa realmente é

que as religiões tenham consciência de seu papel como mediadoras, prevalecendo o

equilíbrio entre a identidade de cada tradição e a aceitação das diferenças, sem a

pretensão de uma verdade universal:

À questão da verdade das tradições religiosas tem sido dada três

respostas clássicas: a) todas são verdadeiras; b) uma só é a verdadeira;

c) todas são falsas. A primeira resposta, que se encontra na tradição

hindu, só é possível em detrimento da verdade específica de cada

tradição, em nome de uma verdade absoluta, que se situa para além de

qualquer formulação (nirguna brahaman). A segunda resposta é a que

caracteriza as tradições de origem semita, baseadas em uma revelação

de Deus que é identificada com a verdade; [...]. A terceira resposta, a

do ateísmo de todos os tempos, só é possível por conta de outra

verdade, o materialismo dialético (BASSET, 1999, p.255, tradução

nossa).

I.4 POSSIBILIDADES DE DIÁLOGO ENTRE JUDEUS E CRISTÃOS

Iniciamos este tópico com uma abordagem de Wrigth (2012) que faz o seguinte

questionamento, “Bem, não somos especiais? ”, e ainda afirma que as religiões têm

como vocação a reconciliação. Para ele, muçulmanos, cristãos e judeus têm em comum

a tendência de exagerar o que os tornou especiais no passado. Na conquista de Canaã

foram apoiados pelo único Deus, e subjugaram os “politeístas ignorantes”, embora o

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monoteísmo hebraico não tenha predominado em Israel até o exílio babilônico no

século VI a.e.c.

Jesus nasceu judeu e pregou para judeus, sua mensagem de amor universal e

salvação pessoal, inicialmente, não incluía a abrangência transétnica. A doutrina do

Cristianismo como a conhecemos foi incluída décadas após sua morte e ressurreição, e

fora escrita em ambiente multiétnico. Feitas estas considerações, destacamos alguns

aspectos relacionados ao Judaísmo e ao Cristianismo que serão aprofundados no

decorrer desta pesquisa.

O povo Judeu tem em sua história a experiência de migrar a diferentes países, e

assimilar, ou não, a cultura e religião das sociedades onde viveram. No Judaísmo, como

foi dito anteriormente, os tempos veterotestamentários testemunharam as guerras e

conquistas em nome de Yahweh, e no Cristianismo, em nome da Igreja. Mensagens de

tolerância e beligerância, de amor e ódio, se mesclam nas escrituras de modo aleatório.

Porém, a história das duas tradições demonstra que o poder da religião fora

instrumentalizado para fins políticos, territoriais e econômicos, significando para o povo

Judeu a conquista da terra prometida, e para os cristãos o ide, a evangelização.

Neste cenário, a mentalidade de superioridade, inclusive em relação às demais

crenças, fora endossada por critérios religiosos de ambas tradições. Em um dado

momento, o Cristianismo, representado pela Igreja Católica prevaleceu, e sob a égide de

uma postura teológica exclusivista abriu caminho para que se desenvolvesse uma

cultura de desprezo pela identidade de outras tradições e culturas, neste caso específico,

os judeus.

Diante do exposto, podemos destacar algumas datas e fatos que moldaram o

pensamento sobre o diálogo com os judeus. Em 1945, ano em que emergiu a

consciência do extermínio de seis milhões de judeus na Europa pelo regime nazista, a

Shoah, assunto que será explorado de forma mais detalhada posteriormente; e junho de

1967, a Guerra dos Seis Dias, vinte anos após a fundação do Estado de Israel, ocasião

na qual a ONU aprovou o plano de partilha da Palestina, em maio de 1948, quando em

um ataque preventivo Israel impôs uma nova configuração territorial na região que

desfigurou completamente o plano proposto e assinado no acordo de 1948. Israel

conquistou Jerusalém Oriental e a Cisjordânia da Jordânia; as Colinas de Golã da Síria;

e a Faixa de Gaza e a Penísula do Sinai do Egito. Além disso, negou-se a devolver as

regiões ocupadas conforme exigia a resolução 242 da ONU, aprovada no mesmo ano,

1967 (OLIC; CANEPA, 2009).

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Sobre a Guerra dos Seis Dias, segundo Finguerman (2012), podemos encontrar

um outro olhar deste evento, pois colaborou na transformação da postura de pensadores

judeus em relação à Shoah que, além de moralmente aceito naquela época, nutriu a

autoestima e trouxe segurança ao povo Judeu, pela primeira vez após a tragédia. Além

disso lançou fora o sentimento de culpa e humilhação dos campos de concentração.

Na evolução do conceito de diálogo, em 1947, a Igreja Reformada da Holanda

declarou que o diálogo/conversação deveria ser a relação normal entre a Igreja e a

Sinagoga, e segundo Basset (1999) o termo foi utilizado para designar uma relação

teológica com o povo Judeu. Na Declaração de 1948 do Conselho Mundial de Igrejas

(CMI) sobre The Christian Approach to the Jews24, o termo foi associado a uma

perspectiva inter-religiosa, porém, referia-se mais à ideia de diálogo ou conversação

entre cristãos e judeus, permeada pela intenção de convencê-los de que Jesus era o

Messias.

No entanto, as iniciativas de diálogo, geralmente provenientes do lado cristão,

tiveram seu ponto mais importante na Conferência de Seelisberg (1947), que

influenciou o conteúdo da Nostra Aetate. Porém, a resistência judaica ao diálogo

também encontra suas bases nas percepções diferentes que uma tradição tem da outra,

por exemplo, a assimetria histórica da dependência da tradição filha em relação à

tradição mãe; do opressor em relação ao oprimido; assim como a assimetria

sociopolítica em termos de relação numérica e de força, somadas às relações entre o

Estado e a religião.

O cristão, dada a forma como se entende pessoalmente, não pode

evitar encontrar-se confrontado com a persistência de um Judaísmo

vivo e vigoroso [...] a situação do Judaísmo é completamente

diferente. Não há nenhum elemento de sua natureza ou de sua

estrutura que necessite ser confrontado com o Cristianismo. A

existência de um Cristianismo florescente não representa aos judeus

qualquer questão da verdade (SIEGMAN 1978 apud BASSET, 1999,

p.272).

No século XVII, com a emancipação dos judeus ocorrida na Prússia, por Moses

Mendelssohn (1729-1786), foi levantada novamente a questão da verdade cristã para

alguns judeus, em decorrência do fim do isolamento dos guetos, podiam escolher entre

esquecer a herança judia e converter-se à Igreja ou a assimilação na sociedade, ou ainda

24 Cf. BROCKWAY, Allan. The Theology of the Churches and the Jewish People. Statements by the

World Council of Churches and its member churches. Geneva, WCC, 1988. p.186. Disponível em:

<http:// www.abrock.com/Assemblies.html#Amsterdam%20a> Acesso em: 20 agosto 2015.

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o retorno às raízes judias em tensão com os pensamentos e valores vigentes. Foi no

período entreguerras, na Alemanha, que se destacaram os precursores mais influentes

entre judeus e cristãos, Franz Rosenzweig (1886-1929), que afirmou a dupla aliança de

Deus, em que cada tradição possui parte da verdade total; e Martin Buber (1878-1965)

pela sua disposição em compreender a fé cristã em Jesus como filho de Deus e

Salvador, quando declarou ser Ele um irmão mais velho, pensamento que seria utilizado

por teólogos católicos durante o período pré-conciliar, que colaboraram na reflexão e

construção de um novo relacionamento da Igreja com os judeus.

Relativamente à influência do secularismo e do pluralismo, nos

atentamos a estes processos com atenção ao reconhecimento dos

cultos judaicos (bem como das igrejas reformadas) junto aos católicos,

em 1801 e 1802, na França, como parte do processo do diálogo inter-

religioso, no sentido de reconhecimento irreversível da alteridade

presente nas sociedades modernas (BASSET, 1999, p.240).

Muitos rabinos judeus defendem uma postura que mantém a exclusividade da fé

e sua dimensão interior, sem comparações, mas que se abre ao pluralismo em outras

dimensões do diálogo. Assim, um diálogo que envolva questões culturais e não

teológicas, que articule um encontro humano e religioso, apesar das controvérsias

religiosas, são defendidas pelo rabino ortodoxo Joseph B. Soloveitchik: “Não existe

contradição alguma entre o fato de coordenar nossa atividade cultural com os outros e,

ao mesmo tempo, o fato de submetê-los à confrontação como membros de outra

comunidade de fé” (SOLOVEITCHIK, 1964 apud BASSET, 1999, p.375).

O rabino conservador Abraham Joshua Heschel (1907-1972), em relação à

postura exclusivista relativa à verdade, situa o diálogo inter-religioso na experiência

religiosa, sugerindo que no temor e tremor, na humildade e na contrição, onde os

homens de fé buscam a Deus, se encontra a base mais promissora de encontro entre

crentes de diferentes tradições. Aqui podemos encontrar um elemento que fortalece o

respeito aos demais crentes, dado o aspecto íntimo que envolve o universo da fé.

Porém, é difícil pensar em um diálogo mais profundo se o apoiarmos apenas em

bases culturais ou na experiência religiosa individual, quando as duas tradições possuem

questões teológicas tão distintas, paradoxalmente ao vínculo espiritual considerado

pelos cristãos. No entanto, uma nova proposta é defendida por André Nathan Chouraqui

(1917-2007), que nos instiga a repensar o diálogo de forma idealizada, mas ousada,

como o encontro e a reconciliação dos filhos de Abraão, não por meio de um

ecumenismo, nem pelas correções dos erros do passado, mas o diálogo pensado em um

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nível mais profundo a partir das próprias raízes, que arranque das paredes das igrejas e

sinagogas o Deus nelas aprisionado, retirando todo tipo de fronteira construída pelo

homem. Encontraremos elementos deste pensamento nos questionamentos levantados

no período que antecedeu o Vaticano II, como será abordado mais à frente.

Para ele, a exigência Bíblica de conversão a Deus é também uma conversão ao

homem, para além das fronteiras e confissões religiosas: “O diálogo judaico-cristão se

inicia apesar da afirmação da divindade de Jesus, escândalo para o judeu, e a rejeição

dos judeus da pessoa de Jesus, não menos escandaloso para o cristão”. Acrescenta que o

diálogo inter-religioso tem a finalidade de reconciliar a humanidade e, portanto, passa

pela justiça e pela paz, entretanto, nenhuma religião manteve sua contribuição para a

justiça, a paz, a salvação e o amor, todas são chamadas a reconhecer seu fracasso:

“Todos vocês pretendem salvar o mundo, porém, quatro mil anos depois de Abraão, três

mil anos depois de Davi, dois mil anos depois de Cristo, séculos depois de Maomé, a

quem haveis salvo?” (CHOURAQUI apud BASSET, 1999, pp.382-383, tradução

nossa).

Haveria então, alguma possibilidade de romper com os preceitos bíblicos

judaico-cristãos da exclusividade de “Povo Eleito” da Antiga Aliança, e o “Novo Povo

de Deus” da Nova Aliança, como moldes de superioridade, em favor deste ideal de

unidade do ser humano que supere as diferenças teológicas?

Se eles esquecerem as diferenças que têm entre si e em relação a

outras religiões, veremos um divisor maior no pensamento moderno:

aqueles entre as pessoas que acham que existe, de alguma forma, uma

fonte divina de significado, um propósito superior neste universo, e as

pessoas que não acham isso (WRIGTH, 2012, p.505).

Concluindo o pensamento de Wrigth (2012), o caráter de Deus é resultado do

modo como judeus e cristãos o pensam. Portanto, pensá-lo como menos inclinado a

favorecer somente a eles, promoveria grandes mudanças em favor de um diálogo mais

próximo, pensar então que são um pouco menos especiais. O relacionamento de Deus

com uma tradição não diminui a sacralidade da outra.

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O problema não está em Deus, mas sim na nossa falta em entender

que Deus ama igualmente pessoas diferentes. Aprender como ser

maduro, e como crianças saudáveis celebrar os modos únicos em que

amor está sendo dado de cima. Talvez, como no Gênesis, esse

entendimento novo só possa vir depois de rivalidades de crianças que

degenerem em fratricídio, exclusão ou abandono. Mas, depois da

Shoah [Holocausto], não estamos dispostos a reconceitualizar a nossa

família mais ampla por um paradigma mais amante. Podemos

aguentar não fazer isso? 25

Figura 05 - Synagoga and Ecclesia in Our Time. Escultor: Joshua Koffman, 2015.26

I.5 TIPOLOGIA PARA O DIÁLOGO

O diálogo inter-religioso é fruto de um longo processo que se desenvolveu à

margem de motivações provenientes de lideranças religiosas, foram mais culturais e

políticas que propriamente entre religiões. Quantitativamente, iniciou seus primeiros

passos de abertura no Parlamento Mundial das Religiões (1893), ocasião em que abriu

caminho, pelo aspecto cultural, para um crescente número de encontros, assembleias e

conferências entre várias tradições religiosas, até o Concílio Vaticano II, via religião,

que foi o marco da abertura ao diálogo no século XX. Qualitativamente, desenvolveu-se

25 Cf. BOYS, Mary. Deus Teve Uma Bênção Somente? Judaísmo como fonte de autoentendimento

cristão. In: Jewish-Christian Relations (ICCJ), 2007. 26 Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Synagoga_and_Ecclesia_in_Our_Time_b_

Joshua_Koffman_2015.jpg > Acesso em: 05 abr. 2016, tradução nossa.

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em uma diversidade de estilos e formas de praticá-lo. Atualmente, podemos esboçar

uma tipologia que permite uma visão de sua evolução.

A construção da tipologia do diálogo inter-religioso teve a contribuição de

diferentes pesquisadores, após a promulgação da Nostra Aetate, em 1965. 27

Tabela 02 – Tipologia do Diálogo Inter-religioso

Em sua análise, considerando o referido período, Taylor argumenta que

predominava o tipo discursivo abstrato de diálogo nos planos e ações.

Sharp, insere os tipos secular e interior de diálogo, em detrimento dos tipos

socrático e pedagógico, e vê no tipo discursivo um tipo que prima pelo conhecimento

adequado das tradições, portanto, menos abstrato e analítico.

27 Cf. BASSET, 1999, p.301.

Em 1967 Richard W. Taylor deu à

palavra diálogo quatro

significados:

Em 1975, Eric John Sharp

também considerou quatro

significados:

Em 1983, Arvind

Sharma sobrepôs quatro

modelos aos de Taylor:

1 - Diálogo socrático: realizado a

partir de um questionamento mútuo

sobre um tema específico;

1- Diálogo discursivo: derivado

do debate dialético, orientado ao

conhecimento adequado das

tradições presentes;

1 - Teológico: visto a

partir de uma determinada

tradição;

2 - Diálogo no sentido de Martin

Buber: como presença existencial do

outro;

2 - Diálogo buberiano: “escutar o

outro enquanto outro [...] tal

como ele entende;

2 - Pessoal: sentido

existencial, diálogo com

Deus;

3 - Diálogo discursivo: mais abstrato

e analítico;

3 - Diálogo secular: determinado

pelos problemas sociais e

políticos que os crentes têm que

lidar;

3 - Acadêmico: que

associa o desejo científico

à sensibilidade;

4 - Diálogo pedagógico: entre

professor e alunos.

4 - Diálogo interior: enfatiza a

dimensão contemplativa e

mística das tradições religiosas.

4 - Criativo: contribuição

dos crentes para o desafio

da modernidade.

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Por fim, Arvind Sharma também menciona quatro tipos, mas suas definições

estão entre a atitude que gera discussão acalorada e controversa, e a atitude sincrética

presente no diálogo, demonstrando assim, sua complexidade.

Na proposta seguinte, poderemos definir o diálogo inter-religioso a partir de uma

tipologia em três níveis de leitura: a forma, a natureza e o compromisso do diálogo.28

Tabela 03 – Tipologia do Diálogo em Níveis de Leitura

Forma ou estrutura do diálogo Natureza do diálogo Compromisso do

diálogo

Modalidades exteriores do diálogo em

função de dados quantificáveis. A

configuração e a organização em termos de

número de pessoas e tradições religiosas

representadas.

1ª Modalidade de diálogo:

Local: mesma realidade

sociopolítica e cultural;

Internacional: envolve

especialistas, professores,

universidades, missionários.

2ª Modalidade:

Restringido: número restrito de

participantes com vínculos de

confiança;

Ampliado: número ampliado de

participantes sem vínculos

pessoais, ênfase no tema abordado

e não nas relações pessoais.

3ª Modalidade:

Bilateral

Multilateral

Participantes:

Leigos: ação no

compromisso social,

familiar e profissional;

Sacerdotes: ênfase na

comunidade e nas

práticas religiosas;

Teólogos: ligados aos

conceitos religiosos;

Religiosos/Monges:

voltados à experiência

religiosa.

Finalidade implícita

ou explícita do

diálogo, e sua razão

de ser.

28 Este é um resumo extraído a partir da tipologia encontrada na obra de Basset (1999), o que não impede

sua ampliação e outras variações.

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41

Os meios postos para a efetivação do diálogo inter-religioso são essenciais ao

seu sucesso para que determinados objetivos sejam de fato atingidos. Mesmo que seja

uma tipologia mais geral, cuja natureza não abarca a estrutura de todas as grandes

religiões mundiais, ainda é útil para nos direcionar e melhor compreender as

possiblidades existentes dentro das estruturas, natureza e compromisso do diálogo.

Diálogo local: este tipo de diálogo se caracteriza pelos encontros cuja pauta são as

questões que afligem as sociedades, o ser humano, afetam as famílias e os jovens,

por exemplo; aqui inserem crentes de diferentes tradições, inclusive de ideologias

humanistas;

Diálogo internacional: da mesma forma que o anterior, mas expande-se para

questões do meio ambiente, violação dos direitos humanos, guerras, etc.

Diálogo restringido: se apoia na confiança mútua, há compromisso pessoal

envolvendo as partes. As ideias gerais e a defesa de pontos de vista são menos

importantes, pois o compartilhar, e a compreensão que cada um tem de si mesmo, de

sua fé e do outro, são a motivação desta forma de diálogo;

Diálogo ampliado: a ênfase recai na comunicação de informações e na comparação

das práticas, ou sistemas religiosos, em detrimento do compromisso pessoal. São

realizadas sucessivas exposições e debates sobre as perspectivas de cada

representante;

Diálogo bilateral: esta modalidade que reúne duas tradições particulares favorece o

diálogo e seu desenvolvimento histórico, porém, tende a polarizar as posições com o

predomínio de uma tradição, a mais engajada e atuante, cujos representantes são

especializados, o que não permite uma visão que privilegie a pluralidade de visões

importantes às relações inter-religiosas;

Diálogo multilateral: não se apoia no conhecimento real de cada tradição pois

repousa em uma noção mal definida de homo religiosus ou humanidade comum. No

entanto, adquire todo seu sentido na pluralidade religiosa e na diversidade de

posições, não em atitudes comuns, mas por outro lado, busca respostas aos aspectos

comuns que afetam toda a humanidade, como a paz mundial, a questão da

desigualdade no desenvolvimento dos países, e a defesa dos direitos humanos.

Na combinação entre as modalidades que compõem a estrutura, insere-se a

natureza do diálogo inter-religioso, que por sua vez é impulsionada pelo compromisso e

os objetivos a que este se propõe, podendo resultar nas seguintes interações:

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42

Figura 06 – Modalidades e Interações do Diálogo

O ecumenismo e o diálogo cristão-judaico, por exemplo, se inserem na combinação

entre as modalidades de diálogos local-restringido-bilateral;

Na modalidade local-restringido-multilateral: fazem parte os conselhos consultivos,

locais e regionais;

O encontro de duas tradições por ocasião de festas religiosas ou manifestações civis,

ou ainda uma conferência decorrente da visita de algum líder religioso, se encaixam

no modelo local-ampliado-bilateral;

Diálogo local-ampliado-multilateral: é um exemplo ocorre em países com forte

presença da pluralidade religiosa;

Internacional-restringido-bilateral: ocorre nas visitas ao Papa por personalidades

religiosas de todos os continentes;

O Diálogo internacional-restringido-multilateral: corresponde às iniciativas do

Conselho (Ecumênico) Mundial de Igrejas, (CMI) e o diálogo entre judeus, cristãos

e muçulmanos, por exemplo;

No Diálogo internacional-ampliado-bilateral: temos o exemplo dos congressos

internacionais entre as duas tradições religiosas;

No Diálogo internacional-ampliado-multilateral: o Parlamento Mundial das

Religiões (1893) é considerado um exemplo (BASSET, 1999, pp.304-311).

Local

AmpliadoRestringido

Internacional

AmpliadoRestringido

Bilateral Multilateral Bilateral Multilateral

Diálogo

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Podemos ainda nos aprofundar um pouco mais, e verificar por um lado, a

espontaneidade e a informalidade destes encontros, e por outro, o aspecto mais

estruturado e formalizado. Um verdadeiro diálogo não se apoia somente em

espontaneidade, nem tampouco somente entre sistemas religiosos, mas se situa entre a

pessoa e a instituição, ou seja, não dispensa o fator pessoal nem a referência às

instituições.

De acordo com a tipologia apresentada, as relações judaico-cristãs inserem-se na

estrutura de um diálogo local ou internacional, restringido pelos vínculos de confiança,

e, bilateral. Quanto à natureza, pode ocorrer dentro das diversas esferas, das quais a

mais profunda, de acordo com a proposta de Chouraqui, seria a encabeçada pelos

sacerdotes com mentalidade voltada ao diálogo, cuja ênfase estaria nas relações

comunitárias, no respeito pela identidade e diferenças de cada comunidade, e na

mudança progressiva em direção à aceitação, ou seja, fortalecer as relações de confiança

com o objetivo de promover a reconciliação do ser humano.

I.6 O TIPO IDEAL

A partir das considerações realizadas neste capítulo, nos perguntamos então,

qual seria o tipo ideal de diálogo entre as tradições cristã e judaica? De modo geral, foi

possível entender que o sentido e a eficácia do diálogo partem do encontro das

diferenças, o reconhecimento da identidade de cada tradição, e da perspectiva que cada

uma tem em relação às questões existenciais, ao sofrimento e à concepção de “Deus”. A

afirmação da igualdade de valores e a solidariedade abrem espaço à mútua compreensão

e apreço, neste sentido, pressupõe avançar na perspectiva inclusivista, prescindindo a

lógica da comparação. Além disso, o diálogo envolve não somente indivíduos, mas

instituições, e nisto reside uma articulação equilibrada onde questões políticas podem se

infiltrar.

No mundo contemporâneo o diálogo inter-religioso é uma oportunidade de

abertura ocorrida pela mudança de atitude nas relações entre as lideranças religiosas, e

no resgate da confiança perdida nas religiões, em virtude da incapacidade de lidar com

questões emergentes na sociedade moderna, como os movimentos fundamentalistas, e,

principalmente, de evitar as duas Grandes Guerras Mundiais. Uma definição mais

moderna ampliou o conceito de diálogo e propôs um encontro construtivo de respeito

recíproco e compreensão mútua da fé de outras tradições religiosas, sem comparações,

cuja base comum partiria do sofrimento da humanidade, e a unidade pela solidariedade:

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Empregamos o termo diálogo em seu sentido moderno de encontro

construtivo entre cristãos e muçulmanos, isento de intenções

polêmicas ou de conversão; um encontro em clima de respeito

recíproco e compreensão mútua da fé do outro, com o propósito de

encontrar uma base comum e um compromisso que favoreça o bem-

estar da sociedade como um todo (TRIMINGHAN apud BASSET,

1999, p.68, tradução nossa).

Na relação judaico-cristã, o diálogo se diferencia das demais religiões, pois os

cristãos creem no vínculo espiritual existente com a tradição judaica, embora o mesmo

não seja recíproco. O diálogo proposto a partir de elementos culturais, sociais, e da

experiência religiosa, apesar de seu valor, são um tanto superficiais dado o vínculo

espiritual entre as duas tradições. Uma relação inter-religiosa mais profunda, também

deveria ir além das reparações, portanto, parte de uma aproximação entre as

comunidades que rompa paradigmas teológicos de ambos os lados. O aprofundamento

do vínculo espiritual, já iniciado na Nostra Aetate, situa-se timidamente entre as esferas

teológica e política, cujos motivos serão compreendidos nos capítulos posteriores.

Portanto, o diálogo inter-religioso é um termo recente, tem sido utilizado a partir

da década de 1940, e é associado a uma perspectiva inter-religiosa, tanto para referir-se

às relações entre diferentes religiões, como às relações ecumênicas. Fruto da pós-

modernidade posto a todas as tradições, cujas sociedades são chamadas a conviver com

a diversidade. Neste cenário, percebemos que os modelos podem articular-se nas

relações inter-religiosas, e não podem ser mais entendidos apenas em termos de “um

modelo” ideal para todas as religiões, mas, desenvolver um tipo de habilidade, pela

qual, cuidadosamente, as diferentes posturas ou modelos teológicos, exclusivistas,

inclusivistas, pluralistas, e de aceitação, interagem diante das diferentes questões

relacionadas à identidade de cada tradição, e, obviamente, permitem um olhar de fora.

Deste modo, a partir da tipologia proposta por Knitter (2008), podemos

considerar que todas as posturas podem estar presentes em uma tradição, dependo do

que está sendo posto em diálogo. Mas dentre os Modelos, o de Aceitação abre grandes

possibilidades para o diálogo cristão-judaico, devido à sua disposição de reconhecer a

verdade de cada um, e à sua articulação em diferentes direções, que permite

aproximações mais profundas e amplas.

Ciente que estes modelos partem de lentes cristãs, não aplicáveis integralmente

às demais religiões, devem, portanto, ser entendidos como “ferramenta geral”,

respeitando as diferentes perspectivas de cada tradição religiosa. Como cita Usarski

(2009) referindo-se ao diálogo a partir do Budismo:

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45

mesmo que a classificação em termos de inclusivismo, pluralismo, ou

exclusivismo seja evidente, é preciso perguntar a que dimensão

religiosa a postura se refere. Trata-se de um posicionamento diante de

um elemento doutrinário, de uma prática espiritual, ou de um objetivo

soteriológico? (USARSKI, 2009, p. 168).

Assim, a pretensão da verdade que cada religião carrega não a leva ao encontro

positivo com as demais, porém, a afirmação da identidade sim, com flexibilidade e

disposição para reconhecer as diferenças, e adequar-se a cada cultura que a recepcione.

Ir além dos limites encontrados nos modelos teológicos, significa permitir que a

perspectiva do outro seja conhecida e reconhecida, inclusive como sinal de avaliação do

modo pelo qual as tradições veem umas às outras.

Dentro de uma tipologia detalhada oferecida por Basset (1999), vimos então a

estrutura, a natureza e o compromisso do diálogo, sua forma ampla, restringida, local,

mundial, bilateral ou multilateral, que permite posicionar, frente a frente, crentes e

instituições com suas particularidades e diferenças.

Feitas estas considerações, e tomando como princípio norteador do diálogo o

que foi exposto acima, nos próximos capítulos iremos explorar os eventos que

contribuíram para o desenvolvimento do diálogo com o povo Judeu, considerando o

espaço de tempo situado em dois momentos históricos, o Parlamento Mundial das

Religiões (1893) e o Concílio Vaticano II (1962-1965).

II DO PARLAMENTO MUNDIAL DAS RELIGIÕES À SHOAH: O

DESENVOLVIMENTO DO DIÁLOGO ENTRE CRISTÃOS E JUDEUS

O Parlamento Mundial das Religiões ocorrido em Chicago (1893), entendemos

não como o marco do diálogo entre as religiões, mas como a primeira grande iniciativa

de abertura para que diferentes religiões pudessem se conhecer e reconhecer, e que, para

além da lente exclusivista cristã, e já lançando as sementes do inclusivismo, havia

outras importantes tradições religiosas que responderam ao convite a fim de serem

vistas e ouvidas, para o qual seus representantes se dispuseram a viajar milhares de

quilômetros, e mostrar uma face até então obscurecida pela “supremacia da cultura

ocidental”.

Neste capítulo iremos nos aprofundar na história deste evento, e dele extrair os

detalhes que envolveram a participação dos representantes do Judaísmo, seus discursos,

ideias, intenções, e sua visão das relações inter-religiosas. Um levantamento histórico

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permitirá conhecer a origem e os vários atores que exerceram papel fundamental

também no seio protestante, por exemplo, o pastor presbiteriano americano John Henry

Barrows (1847–1902) se destaca por ter organizado e dirigido o PMR realizado em

Chicago, trazendo pessoas renomadas de diferentes tradições religiosas de diversas

nações, pesquisadores e eruditos, a fim de aumentar o interesse nos estudos das religiões

e esclarecer os equívocos sobre as diferentes tradições, no que diz respeito à supremacia

de uma religião em detrimento de outra. A ele é creditada a introdução de um novo

conceito de “tolerância” e “compreensão” entre todas as nações e religiões.

II.1 OS BASTIDORES DO PARLAMENTO MUNDIAL DAS RELIGIÕES

Barrows foi autor da obra que narra detalhadamente o evento em dois volumes,

dividos em cinco partes, sendo a terceira, que incluiu uma Seção Científica, foi

reservada às 190 comunicações feitas pelos representantes das diferentes tradições

religiosas, eruditos e pesquisadores. A capa da obra contém o seguinte versículo bíblico:

“ Não temos nós todos um mesmo Pai? Não nos criou um mesmo Deus? ” (Ml 2,10).29

O PMR ocorreu em setembro de 1893 às margens do Lago Michigan, em

Chicago (EUA), na ocasião do 4º centenário da chegada de Cristovão Colombo ao

continente americano, e da Exposição Mundial realizada em sua comemoração, na qual

foram apresentados os resultados do progresso tecnológico, comercial, social e

intelectual, ou seja, a expansão ocidental no mundo. Mais de cinquenta países se

prepararam para este evento, o “Festival da Paz”, às margens do Lago Michigan, em um

cenário arquitetônico espetacular, com a participação dos principais arquitetos

americanos. O Congresso das Religiões integrava a parte cultural deste evento. A

descoberta da América por Colombo, razão de ser da Exposição de comemoração, foi,

ironicamente, o início do colonialismo espanhol sobre as terras indígenas, e estes

grupos, os nativos americanos, foram sub-representados na Exposição Mundial.

Apesar disso, a influência da religião na história da humanidade foi reconhecida

pela sua contribuição na arte, arquitetura, ética, educação, literatura, e, nos governos,

que segundo o ponto de vista dos idealizadores do evento, a liberdade americana era

fruto de sua religião. A ideia de um Congresso das Religiões foi vista como uma

necessidade na época, pois as tendências da civilização moderna foram em direção à

unidade, mas também aos conflitos, em que “os seguidores do Príncipe da Paz,

29 Cf. BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Almeida Corrigida Fiel (ACF). São Paulo: Sociedade Bíblica

Trinitariana do Brasil, 2012.

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deveriam procurar unir os homens em uma fraternidade mais ampla que a alcançada

pelas vias diplomáticas, pelo comércio ou o nacionalismo” (BARROWS, 1893, v.1, p.6,

tradução nossa).

Assim, a mentalidade que inspirava e vigorava à época era a das conquistas

comerciais via colonialismo, nas quais a expansão missionária cristã atuava, e por isso,

em relação ao Congresso Mundial da Religiões, despertou-se a ideia como segue relato,

E não deve ser o progresso intelectual e moral do homem

adequadamente estabelecido em meio a esses esplendores materiais?

Porque deveriam ser convidados para a Exposição Mundial os

caçadores de marfim nas florestas da África e os cortadores de marfim

aglomerados nas cidades do Japão e da China, os tecelões de seda de

Lyon e os fabricantes de xale da Caxemira, os designers de

Kensington, os tecelões de renda de Bruxelas e das tribos indígenas da

América do Sul, [...] da prata dos mineiros do México, os fabricantes

de navios do Clyde e os construtores de canoas do Rio Mackenzie, e

excluídos os representantes dessas forças superiores que fizeram a

civilização? (BARROWS,1893, v.1, p.4, tradução autora).

O processo de organização do Parlamento começou com Charles Carroll

Bonney (1831–1903). Foi professor, advogado, que tornou-se juiz em 1866, também

protestante, e idealizador deste evento e Presidente Geral dos Congressos ocorridos

durante a Exposição de Colombo,

Quando aprouve a Deus me dar a ideia dos Congressos de 1893, veio

com essa uma profunda convicção de que a glória de sua coroação

deveria ser uma conferência fraternal das religiões mundiais. Por

conseguinte, o anúncio do plano original do Congresso Mundial,

enviado pelo governo dos Estados Unidos para todas as outras nações,

continha entre outras grandes coisas a serem consideradas, “Os

Fundamentos para uma União Fraternal das Religiões dos diferentes

Povos” (BARROWS, 1893, v.1, pp.68-69, tradução nossa).

Bonney nomeou John Henry Barrows Presidente da Comissão Geral do

Congresso Mundial das Religiões, que ao final foi chamado Parlamento Mundial das

Religiões. Sob a liderança de Barrows, como Presidente da Comissão Organizadora, a

expectativa em relação ao Parlamento era de que seria “o mais importante, imponente,

influente, e com certeza, o fato mais fenomenal da Exposição de Colombo”.30

30 Cf. Boston Collaborative Encyclopedia of Western Theology. World Parliament of Religions, 1993.

Disponível em: <http://people.bu.edu/wwildman/bce/worldparliamentofreligions1893.htm> Acesso em:

20 jan. 2015.

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48

John Henry Barrows, pastor Presbiteriano de 46 anos de idade, foi então

nomeado Presidente da Comissão Geral Organizadora, composta por dezesseis

representantes de diferentes entidades religiosas, dentre eles o rabino de Nova Iorque

Emil Gustav Hirsch (1851-1923)31, ministro da congregação Sinai, Sinagoga de

Chicago, e professor de Literatura Rabínica na Universidade de Chicago, embora, a

maioria fosse de denominações cristãs. O evento durou dezoito dias, tendo início na

manhã do dia 11 setembro, até seu encerramento no dia 28. Foram dois anos de

preparação, de maio de 1891 a setembro de 1893. A Comissão, por ser formada por

indivíduos e não por organizações, usufruia de um tipo de liberdade que tornou possível

a realização de um trabalho que dificilmente seria realizado pelas instituições.

No início, a proposta de um Congresso Mundial das Religiões, para muitos

parecia totalmente impraticável, pois achava-se que a religião era um elemento de

discórdia perpétua, e que nunca ocorreria tal encontro como propunha o Parlamento.

Dizia-se que não poderia haver Congresso das Religiões sem engendrar animosidades

que se tornaram parte do passado amargo da história do homem. O evento trazia à

mente a lembrança de uma era de perseguições e de separações entre cristãos e povos

não cristãos.

Destacamos partes do Discurso de Abertura do Congresso Mundial das

Religiões, por Charles Carroll Bonney, membro da Igreja Nova Jerusalém, que

desempenhou um papel ativo na organização do PMR. Mais de 200 “Congressos

Mundiais” foram realizados em conjunto com a Exposição de Colombo, pois além do

PMR, também houve congressos da antropologia, trabalho, medicina, comércio e

finanças, literatura, história, arte, filosofia e ciência. Eis seu discurso de abertura:

Adoradores de Deus e Amantes do Homem. Alegremo-nos que temos

vivido para ver este dia glorioso; vamos dar graças ao Deus Eterno,

cuja misericórdia dura para sempre, por sermos autorizados a tomar

parte no solene e majestoso evento do Congresso Mundial das

Religiões. [...] Se este Congresso executar fielmente os deveres que

lhe foram confiados, ele se tornará uma alegria para toda a terra, e

ficará na história da humanidade como um novo Monte Sião, coroado

de glória e que marca o início real de uma nova época de fraternidade

e da paz. Quando as crenças religiosas do mundo reconhecem uns aos

outros como irmãos, filhos do mesmo Pai, a quem todos professam

31 Hirsch atuou na política como membro do Partido Republicano e foi um expoente do pensamento

avançado e Reforma do Judaísmo. Ele também editou a Enciclopédia Judaica e contribuiu com artigos

feministas para a revista A Judia Americana (1895–1899). Hirsch escreveu estudos sobre a relação

histórica do Judaísmo e do Cristianismo, incluindo apreciações da sua fundação nas figuras de Jesus e

Paulo. De acordo com o seu interesse na educação, Hirsch aconselhou membros ricos de sua

congregação, como Julius Rosenwald, a usarem parte de sua fortuna na construção de escolas públicas

onde estudantes negros do sul segregado puderam frequentar.

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amor e serviço, então, e somente então, virá a vontade das nações de

rendenção da terra ao espírito de concórdia e de aprendizado, e nunca

mais a guerra. [...] Neste Congresso a palavra “religião” significa o

amor e adoração a Deus e amor e serviço do homem. Nós acreditamos

na escritura que “na verdade que Deus não faz acepção de pessoas,

mas, em qualquer nação, aquele que teme a Deus e pratica a justiça é

aceito por ele.” Nós nos reunimos em confiança e respeito mútuos,

sem o mínimo de renúncia ou compromisso de qualquer coisa que,

respectivamente, acreditam ser verdade ou dever, com a esperança de

que o conhecimento mútuo, e um intercâmbio livre e sincero de

pontos de vista sobre as grandes questões da vida eterna e conduta

humana, sejam mutuamente benéficas. [...] Cada um deve ver Deus

com os olhos da sua própria alma. [...] Cada um deve recebê-lo de

acordo com sua própria capacidade de recepção. A união fraternal das

religiões do mundo virá quando cada um buscar verdadeiramente

saber como Deus revelou-se na outra, e lembra a lei inexorável que

com o juízo com que julgar ele próprio deverá ser julgado.[...] As

religiões do mundo têm seriamente incompreendido e mal interpretado

umas as outras a partir do uso de palavras com significados

radicalmente diferentes daqueles que foram destinados, e de uma

indiferença das distinções entre as aparências e os fatos; entre os

sinais e os símbolos, e as coisas significadas e representadas. Tais

erros, espera-se que o Congresso contribua muito para corrigí-los, e

tornar impossível a continuidade de tais erros (BARROWS, 1893, v.1,

p.72, tradução nossa).

A partir do Parlamento uma nova forma até então desconhecida de ser religioso

emergiu, havia muitas novas maneiras de ser religioso. O pluralismo cultural, e o ideal

de coexistência pacífica diante da diversidade foram experimentados nas semanas do

evento, apesar dos esforços de Barrows, a ideia central do modelo inclusivista cristão

prevaleceu. O Parlamento, uma organização internacional não governamental de

diálogo inter-religioso e ecumênico, iniciou então, pela primeira vez na história, um

foro de diálogo entre todas as religiões mundiais. Além disso marcou o início de uma

dinâmica entre as religiões.

Mesmo que, de acordo com pesquisas historiográficas, a origem do movimento

ecumênico seja em 1805, por iniciativa do missionário batista William Carey,

desenvolveu-se ao longo do século XIX. Mas, somente em 1910 houve a Assembleia de

Edimburgo, Escócia, que foi o marco do início oficial do movimento ecumênico

(GIBELLINI, 2012).

O acontecimento foi inédito, pois além do caráter ecumênico, as outras religiões

compreendidas até então como uma síntese do cristianismo, teriam oportunidade de

mostrar sua verdadeira cultura, fé, e, portanto, sua identidade. As respostas positivas dos

diversos representantes e líderanças religiosas deste Congresso ao convite de Barrows,

foram também uma confirmação da necessidade e da vontade de aprofundar os laços

através do que se tornaria nas décadas seguintes o diálogo inter-religioso. Foi a

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primeira vez que um evento conseguiu, ao mesmo tempo, reunir um grande número de

representantes e líderes de diversas tradições, para pôr em evidência o papel da religião

no desenvolvimento social e cultural (BARROWS, 1893, v.1).

É importante destacarmos, como citamos na introdução desta pesquisa, que na

mesma época ocorria a primeira reunião de teólogos conservadores protestantes (1883),

que resultou no manifesto de Niagara falls (1895), ocorrida nos Estados Unidos, em

oposição à teologia liberal emergente na Europa. Reunidos em Niagara Falls, o debate

da Conferência trouxe um documento que constituia o nascimento do fundamentalismo

prostestante (PACE; STEFANI, 2002).

A Direção Preparatória obteve grande auxilio do Bispo Keane de Washington.

Barrows procurou obter por meio de cartas pessoais a cooperação de muitos líderes

religiosos de todo o mundo. Em junho de 1891, mais de três mil cópias da Direção

Preparatória foram enviadas, informando o plano para o Parlamento que ocorreria em

1893, convidando líderes religiosos de todo o mundo.

No inverno de 1892, mais de dez mil cartas e quarenta mil documentos foram

enviados para trinta países, conforme mencionado no livro, a fim de consultá-los e

receber críticas e sugestões, e do enorme trabalho do programa final de introduzir os

tópicos que seriam abordados pelos palestrantes convidados. A lista dos Conselheiros

Consultivos passou de três mil eruditos.

Não foi uma tarefa fácil selecionar e assegurar os que representariam as dez

religiões diferentes, e o momento em que as igrejas cristãs deveriam tratar

adequadamente do mais importante de todos os temas, que ao final resultaria em 197

comunicações feitas por oradores, dos quais, 152 eram cristãos. No dia primeiro de

março de 1893 foi publicado o segundo relatório da Comissão Geral, com o programa

dos 17 dias do Parlamento, mais um para o encerramento, indicando o progresso imenso

ocorrido a fim de garantir a cooperação de homens religiosos.

Chamaram a atenção para o poder criativo e regulador da religião

como fator de desenvolvimento humano. Expressaram um desejo de

cooperação dos representantes de todas as grandes religiões históricas;

acreditavam que o momento era propício para novas manifestações de

fraternidade humana. A humanidade, embora separada por oceanos e

línguas, e uma grande diversidade de formas de religião, estava unida

na esperança. O relatório analisou o fato de que as literaturas das

grandes religiões históricas eram cada vez mais estudadas nem

espírito de sinceridade e fraternidade. Negando qualquer finalidade de

criar um clima de indiferença, o Comitê instou que uma conferência

amigável de homens eminentes, firmes em suas convicções pessoais,

seria útil para mostrar quais são as verdades supremas, e que a religião

daria luz aos grandes problemas da época (BARROWS, 1893, p.70,

tradução nossa).

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51

Barrows incluiu no volume I as respostas enviadas que foram variadas e bem

documentadas em relatórios escritos por ele, tanto as de reprovação como as de apoio ao

evento. Além disso, Barrows decidiu não responder publicamente às críticas contidas

nas respostas negativas ao Parlamento. Os que manifestaram apoio e cordialidade ao

empreendimento, dentro do cristianismo, foram fortemente motivados pelas

possibilidades de aproximação e unidade dos cristãos, a paz mundial, e o

reconhecimento das outras tradições.

Consequentemente, o evento também influenciou missionários cristãos a

trabalharem no exterior, tornando-os mais sensíveis a outras culturas e religiões, e foi

visto como uma oportunidade de aprimorar os métodos das missões cristãs espalhadas

pelo mundo, garantindo seu sucesso a partir de um conhecimento mais profundo das

outras religiões e culturas que o Parlamento proporcionaria. O contrário também, pois

abriu portas para que líderes das demais tradições tivessem a oportunidade de fazer suas

“missões” no Ocidente (RODRIGUES, 1999).

Houve aqueles que reprovaram o Parlamento, por exemplo, a Igreja

Presbiteriana dos Estados Unidos da América, casa de Barrows, aprovou uma resolução

contra esta convenção. A assembleia da igreja reunida em Portland (1892), aprovou uma

resolução desaprovando enfaticamente o Parlamento. No entanto, o fato desta resolução

ter sido aprovada às pressas nas horas finais da Assembleia Geral (1892), não produziu

voz unificada entre os Presbiterianos, dividindo opiniões. Os principais periódicos

Presbiterianos dos Estados Unidos aprovaram cordialmente o Parlamento, e outras

revistas cristãs nos Estados Unidos, ao contrário, se oporam ao evento.

Em Barrows (1893) vemos que a oposição vinda do Arcebispo de Canterbury,

dizendo em sua carta que a sua desaprovação repousava sobre “o fato de que a religião

Cristã é a religião. Eu não entendo como que a religião pode ser considerada como um

membro de um Parlamento das Religiões, sem assumir a igualdade dos outros membros

a que se destina, e a paridade de sua posição e reivindicações”. A esta negativa, o pastor

inglês Frances Herbert Stead (1857-1928), membro do Conselho Consultivo, respondeu

que “não espera-se ou supõe-se de um homem que participe do Parlamento ‘considerar

todas as outras religiões como iguais a sua’”. O caso é precisamente o contrário. Mais

uma vez, “O Parlamento das Religiões simplesmente reconhece o fato, incontestável, de

que existe neste planeta um número de religiões, entre as quais, o Cristianismo é uma

delas” (BARROWS, 1893, v.1. pp.19-22, tradução nossa).

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O sultão da Turquia e a hierarquia Católica Romana europeia também se

opuseram a esta convenção. O Papa Leão XIII (1878-1903) censurou oficialmente os

oradores católicos romanos no Parlamento e proibiu a participação em “futuras

convenções promíscuas”.

Barrows também foi confrontado desde o início com a questão de saber se os

representantes das religiões não cristãs abandonariam seus medos, preconceitos, e suas

atividades locais, para enfrentar uma cara e longa viagem a fim de encontrar, no coração

de um país predominantemente cristão, os mais hábeis estudiosos da cristandade,

mestres do idioma Inglês, com os quais não eram familiarizados. Porém, o apoio de

tradições não cristãs e suas expectativas se concetravam no encontro, e na necessidade

de buscar reconhecimento e esclarecimento de seus pontos de vista. O tom principal foi

o do benefício à humanidade e às religiões, provenientes da “liberdade intelectual e

política encontrada no Ocidente” (BARROWS, 1893, v.1; tradução nossa).

Dentre os apoiadores mais sinceros que o Parlamento conquistara estavam

eruditos Judeus provenientes da Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos. O rabino-chefe

de H. Adler da Inglaterra foi quem sugeriu o texto bíblico com as palavras do profeta

hebreu do livro de Malaquias para o Parlamento, “Não temos nós todos um mesmo Pai?

Não nos criou um mesmo Deus? ”. O evento contou também com o apoio de eruditos

representantes de grandes universidades.32

Friedrich Max Müller (1823-1900)33, considerado o pai da Ciência da Religião

Moderna, fora convidado para o evento, embora tenha se lamentado profundamente por

não poder comparecer, expressou sua esperança de que o Parlamento iria aumentar o

interesse nos estudos das religiões. Para ele, a proposta “era original e sem precedentes

em toda a história do mundo” (SEAGER apud BOSTON, 1993, p.154).

A cerimônia de abertura na manhã de uma segunda-feira, 11 de setembro de

1893, ocorreu com a presença de quatro mil pessoas reunidas no Salão de Colombo.

Dez horas da manhã, representantes de diferentes religiões marcharam de braços dados

pelo salão, em meio a aplausos entusiasmados do público que acenava com bandeiras de

muitas nações. Ao mesmo tempo, o sino do Columbian Liberty soou dez vezes no

Tribunal de Honra, homenageando as dez grandes religiões mundiais, Confucionismo,

Taoísmo, Xintoismo, Hinduísmo, Budismo, Jainismo, Zoroastrismo, Judaísmo,

32 A lista dos principais apoiadores e membros do Conselho Consultivo destacados por Barrows. Cf.

BARROWS, 1893, v.1. pp.51-52. 33Cf. USARSKI. In: PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank (Orgs), 2013. p.56.

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Cristianismo e Islã34. A cerimônia inaugural começou com “um ato de adoração comum

a Deus Todo-Poderoso”, liderada pelo Cardeal Gibbons, do mais alto prelado da Igreja

nos Estados Unidos, que abriu a reunião com uma oração e o cântico do Salmo 100

realizado por Isaac Watts (BARROWS, 1893, v.1, p.62).

O objetivo principal, à época, foi a unidade das religiões contra todas as formas

contrárias aos princípios da religião, fazendo valer a regra de ouro: “Portanto, tudo o

que vós quereis que os homens vos façam, fazei-o também vós a eles; porque esta é a lei

e os profetas”35, e a unidade das religiões nas boas ações. Os objetivos propostos para o

Parlamento, em princípio, visavam conquistar a aprovação de todos os homens de

mente aberta, em atitude voltada ao pluralismo, mas não no sentido teológico:

1. Reunir em uma conferência, pela primeira vez na história, os

principais representantes das grandes religiões históricas do mundo.

2. Mostrar aos homens, da forma mais impressionante, quais e quantas

verdades importantes as diversas religiões têm em comum a ensinar.

3. Promover e aprofundar o espírito de fraternidade humana entre os

homens religiosos de diversas crenças, através de conferências, ideais

e bom entendimento mútuo, embora, não procurando promover o

temperamento da indiferença, e não se esforçando para alcançar

qualquer unidade formal.

4. Estabelecer, pelos mais competentes oradores, o que são

consideradas as importantes verdades mantidas e ensinadas por cada

religião, e pelas principais ramificações do cristianismo.

5. Indicar os fundamentos inexpugnáveis do teísmo, e as razões para a

fé do homem na imortalidade, e, portanto, para unir e fortalecer as

forças que são adversas a uma filosofia materialista do universo.

6. Garantir aos eruditos as principais declarações, completas e

precisas, que representam Brahman, Budistas, Confucionistas, Parses,

Muçulmanos, Judeus e outras religiões, e de representantes das várias

Igrejas cristãs, sobre os efeitos espirituais, e outros, que as religiões

têm dado à Literatura, Arte, Comércio, Governo, à vida doméstica e

social dos povos entre os quais essas religiões têm prevalecido.

7. Saber, à luz de cada religião, o que podem proporcionar ou

contribuir para as outras religiões do mundo.

8. Estabelecer um registro permanente para ser anunciado ao mundo,

um relato preciso e com autoridade da condição atual e as perspectivas

da Religião entre as principais nações da terra.

9. Descobrir, a partir de homens competentes, o que à luz da religião,

têm a lançar sobre os grandes problemas da época presente,

especialmente as questões importantes relacionadas com o Equilíbrio,

Trabalho, Educação, Riqueza e Pobreza.

10. Trazer as nações da terra para uma comunhão mais amigável, na

esperança de assegurar a paz internacional permanente (BARROWS,

1893. v.1, p.19, tradução nossa).

34 Na tradução original o termo utilizado foi “maometanos”. Porém este termo não é correto uma vez que

para o Islã o centro é o Corão e não o profeta Maomé. Cf. SAID; 2007. 35 Cf. Evangelho segundo Mateus 7, 12.

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Esses objetivos oficialmente declarados pareciam evitar qualquer tentativa de

provar a supremacia de uma religião em particular sobre as demais. A ênfase foi

colocada mais na busca de pontos comuns e a construção de “fraternidade humana”.

Porém, durante o evento, nem todos os oradores cristãos compreenderam as motivações

de Barrows e outros “inclusivistas”. Por outro lado, para Barrows, toda ideia

proveniente de oradores de outras tradições voltada ao que seria uma “religião

universal”, como expôs Vivekananda (1863-1902)36, também fora entendida como uma

ameaça à supremacia cristã.

Porém, o que Vivekananda entendia por “religião universal” não era que todas as

tradições religiosas desapareceriam e seriam substituídas por uma nova e única religião.

Em vez disso, seria uma autêntica união de todas as religiões, em que “cada um deveria

assimilar os outros, preservar sua individualidade e crescer de acordo com a sua lei do

crescimento”. A necessidade de “assimilar os outros” foi expressa por Vivekananda, no

sentido de evitar o triunfo de qualquer uma das religiões em detrimento de outras. Ele

afirmou: “Eu desejo que um cristão se torne Hindu? Deus me livre. Eu desejo que o

hindu ou budista se torne um cristão? Deus me livre”. (BARROWS, 1893 v.1, p.170)

Enfim, o programa geral representou diretamente a Inglaterra, Escócia, Suécia,

Suíça, França, Alemanha, Rússia, Turquia, Grécia, Egito, Síria, Índia, Japão, China,

Ceilão, Nova Zelândia, Brasil, Canadá, e a América do Norte, e, indiretamente, incluiu

muitos outros países. Durante os 17 dias que se seguiram, o programa foi dividido em 4

sessões.

A primeira parte do programa geral (a segunda parte da obra) foi dividida em 14

capítulos, nos quais considerou-se, respectivamente, o estudo das religiões mundiais, e

o que cada religião tinha a dizer sobre Deus e sobre a natureza do homem; a importância

da religião em muitas formas; o que eruditos tinham a dizer sobre os vários sistemas

religiosos; a contribuição dos Livros Sagrados; o papel da religião na vida familiar; aos

líderes religiosos da humanidade; a relação entre religião, ciência e arte; o que as

religiões tinham a dizer sobre sua relação entre religião e moral; religião e os problemas

sociais modernos; a história da religião e a sociedade civil; a relação da religião com o

amor da humanidade; e o que dizer sobre a atual condição da religião Cristã.

36 Swami Vivekananda, nascido Narendranath Dutta, monge, iogue e filósofo hindu, é considerado um

dos mais célebres e influentes líderes espirituais do hinduísmo moderno, sobretudo da filosofia Veda. Ele

foi pioneiro da sua divulgação no Ocidente e inspirador do movimento do espiritualismo universalista.

Principal discípulo de Ramakrishna Paramahamsa, foi o fundador da Ordem Ramakrishna e da

organização monástica Sri Ramakrishna Math. Cf. RODRIGUES; 2008/2009 p.61.

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A segunda parte do programa (terceira da obra) consistiu em apresentações das

distintas crenças e suas realizações, onde todos estavam convidados a participar. A

terceira parte do programa geral (quarta da obra) consistiu em congressos separados e

independentes das diferentes denominações religiosas cristãs, com o propósito de

definir mais detalhadamente suas doutrinas e o serviço que têm prestado à humanidade.

O objetivo especial dos congressos denominacionais foi proporcionar oportunidades de

obter mais informações. Estes congressos foram realizados entre o final do Parlamento

das Religiões e 15 de Outubro, e incluiu temas como missões, ética, descanso

dominical, Aliança Evangélica e associações similares. A quarta parte do programa do

Congresso (quinta da obra) foi reservada à revisão e resumo do espírito e influência do

Parlamento.

O Parlamento foi oficialmente encerrado com a oração do Senhor liderado por

Emil G. Hirsch, rabino em Chicago. Mais de sete mil pessoas assistiram à sessão de

encerramento no dia dezessete. Vários hinos cristãos foram cantados antes que Bonney

e Barrows fizessem seus discursos de conclusão. O Hallelujah Chorus do Messias de

Handel foi então cantado.

II.1.1 A PARTICIPAÇÃO DOS JUDEUS NO PARLAMENTO MUNDIAL DAS

RELIGIÕES

Durante o Parlamento Mundial das Religiões, a religião hebraica teve

oportunidade de realizar comunicações em vários dias, por diferentes oradores, homens

e mulheres, cujos temas foram como segue: “Teologia do Judaísmo”, abordado no

segundo dia do Parlamento, pelo Rabino Isaac Mayer Wise (1819-1900); terceiro dia

“Judaísmo e o Estado Moderno”, Rabino David Philipson (1862-1949), e no mesmo dia

o tema a “Fraternidade Humana Ensinada pelas Religiões Bíblicas”, Rabino Kaufmann

Kohler (1846-1926); “Judaísmo Ortodoxo ou Histórico”, Rabino Henry Pereira Mendes

(1852-1937) foi o tema do quarto dia; no sexto dia foram abordados os seguintes temas

“A influência e Grandeza de Moisés”, pelo Rabino Gustav Gottheil (1827-1903),

“Perspectivas do Judaísmo” por Josephine Lazarus (1846-1910), e “O que a Escritura

Hebraica tem feito pela Humanidade”, pelo Rabino Alexander Kohut (1842-1894); no

oitavo dia o Professor David Gordon Lyon (1852-1935) falou sobre as “Contribuições

do Judaísmo para a Civilização”; no décimo primeiro dia Henrietta Szold (1860-1945)

“O que o Judaísmo tem feito pela Mulher?”; e no décimo terceiro dia o Rabino Joseph

Silverman (1860-1930) tratou dos “Erros Comuns sobre os Judeus”, ainda neste dia, o

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Rabino Henry Berkowitz (1857-1924) apresentou o tema “A voz da Mãe das Religiões

sobre a Questão Social: Socialismo Judeu”.37

Na apresentação do Rabino Joseph Silverman e de Josephine Lazarus, como os

outros oradores judeus no Congresso, destacaram a identidade espiritual do Judaísmo, e

apresentaram sua visão de combinar as verdades do Judaísmo e do Cristianismo em um

monoteísmo ético não sectário. Escritores cristãos liberais contemporâneos

influenciaram o pensamento de Lazarus, tanto que ela propôs a adoção de um

humanismo universal, fora de todos os guetos e de toda forma de isolamento espiritual,

o judeu deveria mudar sua atitude diante do mundo e entrar em comunhão espiritual

com aqueles que o rodeiam. Como muitos de seus contemporâneos, Lazarus foi

profundamente afetada pelo antissemitismo generalizado desmascarado durante o Caso

Dreyfus38, e começou a considerar o Sionismo político como uma opção viável para os

judeus da Europa.

O último ensaio publicado durante a sua vida reflete sua luta para reunir sua

profunda preocupação com a segurança judia, e sua forte crença no poder de uma fé

universal transcendente. Esclarece que o Judaísmo sempre foi mal compreendido pela

sua crença em um Deus indivisível e invisível, mesmo nos tempos modernos, e que

acredita-se que todo judeu tem a mesma crença, desconhecendo os cismas ocorridos no

Judaísmo moderno dividindo-o em diferentes grupos como ortodoxos, conservadores,

refomadores e radicais. Para ela não há qualquer desejo geral de voltar à Palestina e

ressuscitar a antiga nacionalidade, porém são fortemente unidos pelo espírito de clã.

Lazarus afimava que os judeus formavam apenas uma comunidade religiosa

independente, e que se sentiam profundamente injustiçados sempre que sua religião era

acusada pelo delito de um cidadão. Finalmente defendia que o judeu não deveria ser

comparado ao alemão, inglês ou americano, mas com Cristão, Católico, Protestante,

Budista, Muçulmano ou Ateu. Os cristãos, bem como judeus, precisavam de uma

unidade maior que abraçasse a todos, uma unidade de espírito, e não de doutrina.

Pelo exposto neste capítulo pudemos conhecer, com maior profundidade, que

dentre as motivações de Barrows a aproximação entre a religiões mundiais e a

fraternidade universal foram seus principais objetivos. Dentro de uma postura

timidamente inclusivista, o evento abriu as portas e a mentalidade ocidentais para o fato

37 O acesso a cada comunicação conferir; In: BARROWS, 1893, v.1, v.2, pp.290-360-366-527-673-705-

724-817-1052-1120-1150. 38 A Descrição detalhada. Cf. ARENDT, 2012, p.139.

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de que, para além do universo cristão, havia uma pluralidade de culturas e religiões que

muito tinham a dizer.

Muitos apoiadores do evento captaram a intenção de Barrows, porém, durante o

evento prevaleceu o pensamento missionário, colonialista e exclusivista cristão, afinal,

Barrows idealizou um encontro, mas a maioria dos oradores estava fortemente arraigada

em suas perspectivas cristãs, e foram confrontados pela diversidade religiosa. Em

sentido ecumênico gerou grandes frutos nas décadas posteriores.

Mesmo assim, o evento obteve grande êxito, o diálogo fora estruturado em um

tipo de encontro internacional, ampliado e multilateral. A natureza desse diálogo foi

abrangente, pois foram propostas diversas abordagens para o papel da religião, como

em questões sociais, sobre a vida das comunidades, práticas religiosas, experiência

religiosa, conceitos teológicos e culturais.

Em relação à participação de representantes do Judaísmo pudemos perceber que

houve um interesse em apresentar os judeus e o Judaísmo no contexto da sociedade

moderna, esclarecer os erros sobre o pensamento em relação aos judeus, lembrar o valor

de seus ensinamentos, sua teologia, e sua contribuição para a civilização, mas também

foram abordadas questões sociais e políticas. Enfim, percebe-se uma sede de

reconhecimento de sua fé, de seu povo e de sua identidade.

II.2 A IGREJA E OS JUDEUS

A Nostra Aetate representou mais que uma reviravolta histórica, pois obrigou o

Cristianismo histórico a rever sua cosmovisão e repensar sua teologia, ao redescobrir as

categorias hebraicas, das quais nasceu e fundamentam o Cristianismo e a experiência

cristã, ou seja, dar ouvido à voz das origens. Segundo Di Sante (2004):

Significa que Jesus foi um “rabi” e não um “padre”, como L. Swilder

escreveu, um “mestre” e não um “reverendo”; que foi um judeu e não

um cristão, que frequentou a sinagoga e não uma igreja; que celebrou

o sábado e não o domingo; que pregou em aramaico e não em grego

nem latim; que leu o Antigo Testamento e não o Novo; que recitou os

salmos e não o rosário; que festejou o pesah (a páscoa hebraica),

shavu’ot (o pentecostes judeu) e sukkot (tabernáculos) e não o Natal

ou a Quaresma (DI SANTE, 2004, p.12).

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Estas categorias das quais o Cristianismo se alimenta devem ser entendidas em

sentido existencial, de experiência profunda e do encontro com Deus, e não no sentido

lógico-racional, são elas: a fé, a eleição, a vocação, o povo, a escravidão, o Segundo

Testamento, a Aliança, a raiz, a paz e a reconciliação. Deste modo, o Cristianismo

insere-se em um vínculo profundo da fé e eleição, segundo o mistério salvífico de Deus,

pois se alimenta da “raíz da oliveira mansa [...] Sondando o mistério da Igreja, este

sagrado Concílio recorda o vínculo pelo qual o povo do Novo Testamento está

espiritualmente ligado à descendência de Abraão”. (ANEXO F)

Portanto, há um espaço teológico comum, e segundo Di Sante (2004), as origens

dos sacramentos cristãos estão na tradição bíblico-hebraica, que é considerada o

contexto ou o lugar de origem da liturgia cristã. O problema, segundo Di Sante (2004,

p.16, grifo dela) encontra-se justamente em que são “aceitos como fundo provisório,

polêmico e secundário, e não como húmus positivo, vital e substancial”. O Judaísmo,

sob este olhar, é considerado a partir de um ponto de vista lógico, obsoleto, e até

caricaturado, e não em sua essência, como uma realidade autônoma e viva.

É a partir deste aspecto que faremos uma exposição do desenvolvimento do

diálogo judaico-cristão, antes do Vaticano II, época em que a liturgia da Igreja foi

exposta e confrontada por cristãos e não cristãos, sacerdotes e leigos, e período no qual

a mentalidade racista e antissemita estava fortemente presente na Europa religiosa e

secular. Entretanto, antes de abordarmos este assunto iremos realizar uma breve, mas

importante explanação da origem dos Povos Semitas, do Antissemitismo, e do

significado da Shoah, para que possamos contextualizar e entender a importância da

Declaração Nostra Aetate e as dificuldades enfrentadas durante sua elaboração.

II.2.1 OS SEMITAS

O termo Semita vem do hebraico Sem, que faz referência ao nome do filho mais

velho de Noé. Noé ou Noach significa “descanso, alívio, conforto”, heroi bíblico que

recebeu ordens de Deus para a construção de uma arca, pela qual a Criação seria salva

do Dilúvio. Noé gerou Sem, Cam e Jafet, assim, por semitas podemos entender todos os

descendentes de Sem. Dos Povos Semitas decorre o nome hebreus, do hebraico Ivrim,

que significa “descendentes de Héber” da linhagem de Sem filho de Noé, (Noé gerou a

Sem; que gerou a Arfaxade; que gerou Salá; que gerou Héber; que gerou a Joctã e

Pelegue; que gerou Reú; que gerou Serugue; que gerou Naor; que gerou Tera, que então

gerou a Abrão). Os principais povos de origem semita foram os Acadianos, Assírios,

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Amorreus, Arameus, Fenícios, Árabes, Cananeus, Hebreus, Etíopes e Ugaríticos.

Portanto, o termo semita tem como principal designação o conjunto linguístico

composto por uma família desses povos, entre os quais se destacam os árabes e hebreus,

que compartilham as mesmas origens culturais.

Deus se revelou a Abrão, que significa no hebraico “pai exaltado”, mas teve seu

nome mudado para Abraão, que significa “pai de muitas nações”, um sumério da cidade

de Ur (atual Iraque). Com ele conclui uma aliança de fidelidade, promete-lhe uma

grande descendência, e a terra de Canaã. Esta aliança é renovada em Isaac seu filho e

Jacó, filho de Isaac, o qual tem o nome mudado para Israel. Dele descende as doze

tribos de Israel, o povo de Israel. Declarado o Pai da fé, porque confiou em Deus, o

traço mais importante da vida de Abraão é sua experiência religiosa. É sobre este fato

que se apoia a tradição judaico-cristã. Deus “falou” a Abraão, se revelou a ele. Abraão

descobriu um deus que entra em relação amiga, que “faz aliança” com ele, com seu clã

para acompanhá-lo e atuar em seu favor, mas também com um prolongamento em favor

de todos os homens. A palavra El aparece em diversas línguas semíticas como o fenício,

aramaico e o acadiano. No hebraico significa acima, elevado, alto, e é utilizado tanto

para os deuses Cananeus El, como para o Criador de Israel. Também é utilizado como

sufixo de nomes hebraicos como Gabriel, Daniel, Rafael e outros.

Após o tempo da escravidão no Egito Deus se manifesta a Moisés na Sarça

Ardente, e guia os hebreus à Terra Prometida. Mas este Deus que se compadece do

povo, também mostra sua Face irada, e é o Deus da Lei. Diferente do El de Abraão, é

distante e inspirava o terror. “Não se aproxime. Tira as sandálias dos pés, pois o lugar

em que você está é terra santa [...] Eu Sou o Deus de seu pai, o Deus de Abraão, o Deus

de Isaac e o Deus de Jacó” (Ex 3,5-6). Durante o período em que permaneceram no

deserto, 40 anos, receberam por meio de Moisés, que considerado o fundador da religião

hebraica, o Decálogo, as prescrições religiosas (templo, culto, leis, proibições, funções

sacerdotais) e civis, o Código da Aliança. O Eu Sou, Yahweh (YHWH) reinou desde

sempre, e a importância colocada na frase, como ela é usada por Deus para se identificar

na Sarça Ardente, decorre a concepção hebraica do monoteísmo, que Deus existe por si

mesmo, para si mesmo, é o Criador incriado, e independente de qualquer conceito, força

ou entidade (LAMBERT, 2011).

A história do povo Judeu, os Filhos de Israel, Hebreus ou, o “povo do Livro”, é

citada nas Escrituras hebraicas. Quanto à expressão judeu, sua origem pode estar

associada a divisão do reino de Israel ocorrida após a morte do rei Salomão, e em

consequência de sua morte, as dez tribos do Norte criaram o Reino de Israel, a capital

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em Samaria, e as duas tribos ao Sul, o Reino de Judá, tendo Jerusalém como sua capital,

e seus habitantes tornaram-se conhecidos como judeus. De acordo com a visão religiosa,

o Judaísmo é uma religião ordenada pelo Criador através de um pacto eterno com o

patriarca Abraão e sua descendência. O Judaísmo e as sinagogas surgiram após o

cativeiro babilônico em que houve a deportação em massa dos judeus do antigo Reino

de Judá para a Babilônia, por Nabucodonosor II em 597 a.e.c. Onze anos depois ocorreu

a segunda deportação, de 587 a 539 a.e.c., a destruição de Jerusalém e do Templo. No

ano 539 a.e.c., Ciro II, imperador persa, os libertou e receberam permissão para

reconstruir o Templo. Porém, no ano 70 e.c., houve a destruição do Segundo Templo

pelos romanos, e neste período emerge o monoteísmo, e o Judaísmo propriamente dito é

criado.

Dada a complexidade deste tema, nos restringimos a um breve panorama, com a

intenção de resgatar, em parte, a história do povo Judeu e sua religião.

II.2.2 O ANTISSEMITISMO E A SHOAH

A abordagem do tema sobre o antissemitismo39 e a Shoah também é muito

complexa, e requer mergulhar em um universo cujas reflexões trouxeram a contribuição

de diferentes linhas de pesquisa na tentativa de entender os motivos que desencadearam

tanto o antissemitismo, como a extrema violência contra os judeus na Segunda Guerra

Mundial. A Shoah é considerada, dentre uma ampla discussão do termo “genocídio”40,

como uma forma extrema deste, por combinar três elementos nunca encontrados ao

mesmo tempo em outros genocídios: a intencionalidade puramente ideológica dos nazis,

a universalidade potencial da Solução Final, e a busca de um extermínio total. Seu

destaque dos demais genocídios ocorridos no século XX deve-se também ao dedicado

trabalho de preservação de sua memória. Para os judeus, esta tragédia foi tanto uma

ameaça à sua existência física, quanto à sua religião, e dela foram vítimas cinco milhões

e duzentos mil judeus europeus, entre os anos 1941 e 1945. “Muito mais que um

acontecimento sem precedentes, Auschwitz constitui uma síntese única de diferentes

39 O termo antissemitismo é designação racista, cunhado no fim do século dezenove, 1881, pelo Alemão

Friedrich Wilhelm Adolph Marr (1819-1904), como eufemismo da palavra Judenhass, para denotar o

ódio e a hostilidade aos judeus de forma mais suave, já que eram considerados como um grupo étnico

semita inferior. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Wilhelm_Marr> Acesso em: mai. 2016. 40 O termo provém da palavra grega genos (raça, povo) e do sufixo latino cide (de caedere, matar), criado

pelo judeu americano de origem polaca, Raphael Lemkin, professor de direito internacional, após a

Segunda Guerra Mundial. O desenvolvimento e a aplicabilidade do termo são descritos cf:

BRUNETEAU, Bernard. O século dos genocídios. Lisboa: Instituto Piaget, 2004, pp.13-30.

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elementos que encontramos noutros crimes ou genocídios” (BRUNETEAU apud

TRAVERSO, 2004, p.179, grifo dele).

Dentre os esforços a fim de compreender o por quê desta extrema violência

contra os judeus, Finguerman (2012) cita as reflexões que desafiam os conceitos: no

tocante à Aliança de Deus com o povo Judeu, ao plano de Deus na História de Israel, o

livre-arbítrio, o martírio, se Deus “ocultou sua face”, se foi uma punição divina em

decorrência dos pecados, e até mesmo por causa do significado religioso do Estado de

Israel, e, o debate sobre a sua singularidade, como mencionamos em Bruneteau (2004).

Entretanto, neste debate podemos ainda utilizar diferentes teorias que trazem outras

razões pelas quais o antissemitismo desenvolveu-se em um longo e complexo processo

histórico, seja por razões sociais, econômicas, políticas, de fundo ideológico ou,

religioso, interesse de nossa pesquisa, que se entrecruzaram em diferentes períodos e

sociedades onde os judeus foram assimilados.

A palavra de origem grega, Holocausto, provém da palavra hebraica olá, e

designa na história religiosa judaica um sacrifício pelo fogo, um tipo de oferenda a Deus

realizada no Templo de Jerusalém, que deveria ser queimada integralmente com a

finalidade de expiar um pecado, conforme citado no livro de Levítico 1,1-10. Na

Septuaginta (LXX), denominação dada à Bíblia hebraica traduzida para o grego entre os

séculos III e I a.e.c., a palavra olá foi traduzida como holokaustos, holos (inteiro) e

kaustos (queimado), servindo de ponto de referência no mundo anglo-saxão quando a

Bílbia foi traduzida para o inglês, na versão King James, que o manteve como

holocaust41 (FINGUERMAN, 2012).

Porém, a palavra hebraica Shoah encerra o sentido de catástrofe, aniquilamento,

destruição total que sobrevém repentinamente a um grupo ou indivíduo. Todavia, por

questões teológicas, o termo Shoah tem substituído o de Holocausto, já que o massacre

dos campos de concentração não tem uma conotação religiosa, mas humana e secular.

Escolhida por David Ben Gurion pela sua dimensão laica para

designar o genocídio e definir o dia de sua comemoração no

calendário israelita (Yom Ha-Shoah), o termo tende a substituir o de

Holocausto no espaço francófono, sobretudo depois da exibição do

filme Shoah, de Claude Lanzmann (1985) (BRUNETEAU, 2004,

p.133).

41 Em relação ao massacre da Segunda Guerra Mundial, o escritor Elie Wiesel é apontado como um dos

responsáveis pela utilização deste termo nos anos 1950, em sua obra publicada em francês A Noite

(1958). Cf. FINGUERMAN, 2012.

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O antissemitismo religioso traz em seu encalço o mito da dispersão, pelo qual

acreditou-se que a dispersão judaica, iniciada no ano 70 e.c., como vimos anteriormente,

teria sido consequência de sua rejeição a Jesus como o Messias. Neste ano, houve a

destruição do Templo de Jerusalém, e foi considerado o marco da Diáspora Judaica. O

Exílio Babilônico, em 587 a.e.c., trouxe o conceito de “Sião”, o desejo de redenção

nacional e espiritual da vida Judaica na Eretz Israel (Terra de Israel), e tem sido uma

parte integrante da autoidentidade Judaica desde então. A partir de sua dispersão, o

retorno à sua pátria ancestral tem sido um tema central nos pensamentos, orações e

sonhos do povo Judeu. O Salmo 147 fala do Senhor reconstruir Jerusalém, onde os

dispersos de Israel seriam reunidos; “No próximo ano em Jerusalém” foi o grito de

esperança expressa na liturgia (seder) da Páscoa e no Dia do Perdão (Yom Kippur) por

séculos (JOHNSON, 2001, tradução nossa).

Segundo Armstrong (2009, p.26) “o exílio é um deslocamento físico e espiritual

[...] arranca-nos de lugares repletos de lembranças cruciais para nossa identidade”. Os

judeus viveram períodos de dissolução espiritual e religiosa, sem Messias e um solo

próprio, em que a importância dos laços de sangue, ou seja, o círculo interno da família,

tornou-se um fator de preservação e resistência à assimilação e à dissolução. Por outro

lado, contribuiu para delinear um estereótipo, aceito inclusive pelos judeus, além de

ajustá-los às ideologias e doutrinas que definiam grupos humanos por características

genéticas e laços de sangue (ARENDT, 2012).

Outro momento importante relativo à diáspora ocorreu no ano de 1492, na

Espanha42, quando em 31 de março o Édito de Expulsão dos judeus foi assinado por

Fernando e Isabel, quase dez anos após a instituição da Inquisição espanhola, em 1483.

Neste período os judeus convertidos ao Cristianismo, denominados “conversos” e

chamados de “marranos” pelos cristãos espanhois, já viviam uma história de

perseguição, violência e morte, tanto na Espanha quanto em outros locais da Europa

onde eram assimilados, e não raro, obrigados a converter-se ao Cristianismo. Segundo a

análise de Arendt (2012), neste período havia um ódio religioso antijudaico diferente do

antissemitismo moderno. No final do século XIX, por exemplo, sofreram violentos

ataques na Rússia conhecidos como pogroms, com a destruição simultânea do seu

ambiente, casas, negócios e centros religiosos.

É justamente nos momentos dolorosos, como a perda de identidade e a crise

existencial, que a religião é utilizada como meio para realizar o resgate da identidade e

42 Os judeus a chamavam de Sefarad, daí decorre o nome dos judeus provenientes da Espanha, os

sefardins.

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oferecer respostas, como as razões para o exílio. Embora a tradição religiosa judaica

tenha se diluído em razão das diásporas e das perseguições que impediam sua prática,

pouco a pouco a identidade religiosa foi resgatada dentro de uma concepção onde

“tinham que inventar novas formas de fé para que as velhas tradições se adequassem a

suas circunstâncias radicalmente modificadas” (ARMSTRONG, 2009, p.27).

Contudo, muitos judeus tornaram-se céticos e racionalistas, especialmente os

marranos, houve um choque entre a tradição religiosa mítica, a revelação, e a razão

proveniente do estilo de vida secular e moderno, que fez emergir diferentes correntes

dentro do Judaísmo. No século XVIII muitos líderes foram impulsionados

principalmente por sua convicção religiosa de que a hora marcada para o retorno dos

exilados Judeus a Sião havia chegado, promoveram e apoiaram o reassentamento de

Judeus na Palestina.

Já o nascimento do movimento Sionista ao final do século XIX, surgiu como

uma reação ao antissemitismo e às perseguições, e foi entendido como a consumação da

história Judaica em circunstâncias propícias muito aguardadas oferecidas pela idade do

liberalismo e do nacionalismo. No entanto, a concretização deste anseio tornou Eretz

Israel um dos símbolos mais sagrados do Judaísmo, uma realidade racional, terrena e

concreta, ocuparam-na não apoiados na perspectiva mística de grupos que surgiram

antes ou contemporâneos ao Sionismo, mas material, estratégica e militarmente, e,

obviamente, o anseio inerente ao símbolo da Terra foi explorado. Foi um projeto secular

que dependeu de um alto investimento aplicado na compra de terras na Palestina

pertencentes aos árabes e turcos, embora não houvesse a intenção de constituir um

Estado-nação. Porém, no âmbito religioso, inicialmente, houve os que opuseram-se ao

projeto, como os judeus ortodoxos, que viram-no como uma abominação que desafiava

séculos de tradição religiosa43 (ARMSTRONG, 2009).

Diante do exposto nesta breve síntese, nossa intenção foi demonstrar a ligação

destes fatos às dificuldades encontradas na elaboração da Nostra Aetate, posto que são

questões cujos paradigmas teológicos estão diretamente relacionados com questões

políticas à época do Concílio. Deste modo será possível identificar que, nas décadas que

antecederam o Vaticano II havia o antissemitismo impregnado nos ensinamentos da

Igreja permeado por estas questões ligadas ao Estado Judeu, e, por conseguinte,

influenciavam tanto o modo como os cristãos daquele período percebiam os judeus,

quanto a relação da Igreja com o Judaísmo.

43 Theodor Herzl (1860-1904) foi o fundador da Organização Sionista Mundial.

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II.2.3 ANTECEDENTES DA NOSTRA AETATE

A relação inter-religiosa com os judeus insere-se na questão das minorias étnicas

e religiosas em que cristãos e judeus fizeram parte, em diferentes momentos históricos.

Também diz respeito à possibilidade de coexistir pacificamente respeitando a cultura do

local de acolhida, e do mesmo modo, ter sua cultura e religião respeitadas. Neste

sentido, o antissemitismo teve duas faces entrelaçadas que adquiriram forte penetração

na sociedade, principalmente europeia, e na Igreja, até a Shoah: o antissemitismo racista

e o religioso.

No ambiente secular, considerando o fracasso dos Tratados Internacionais de paz

então vigentes, como o Tratado de Versalhes (1919), ratificado pela da Liga das Nações

(1920)44, uma das consequências da Primeira Guerra Mundial foi o remapeamento

político europeu, com a formação de novos Estados constituídos por uma grande

variedade de grupos étnicos, linguísticos e religiosos, inclusive as comunidades judaicas

espalhadas pela Europa. A partir daí, firmava-se a necessidade da conclusão de tratados

especiais destinados à proteção das minorias. Alguns destes tratados estabeleceram o

direito a usar a língua da minoria na vida privada e pública, contendo também cláusulas

de não discriminação. Porém, ainda não existia um quadro específico de direitos

humanos e a ideia de direitos de grupo era contestada.

Ao longo do século XX, a ordem social passou então do modelo da assimilação,

que estigmatizava as pessoas em categorias minoritárias, para o modelo entendido como

multiculturalismo. No multiculturalismo o sistema de valores das comunidades

minoritárias era reconhecido politicamente ao mesmo nível do sistema de valores da

maioria, porém, prevalecia a ideia de oposição e a diferença dos valores. Este paradigma

foi substituído na Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural45, que definiu o

termo diversidade cultural, conceito que não se aplica à “maioria” ou “minoria”.

44Ao final da Primeira Guerra Mundial, em 1918, na Europa Central emergiu o princípio da

autodeterminação nacional. A Liga das Nações, criada após a Primeira Guerra, tinha por finalidade

promover a cooperação, paz e segurança internacionais, e condenar as agressões externas contra seus

membros. A Convenção da Liga das Nações, de 1920, apresentava preceitos genéricos referentes aos

direitos humanos, no tocante ao sistema das minorias e aos parâmetros internacionais do direito ao

trabalho, pelos quais os Estados comprometiam-se a assegurar condições dignas de trabalho para homens,

mulheres e crianças, incorporando obrigações de repercussão internacional, sob pena de incorrerem em

sanções econômicas e militares impostas pela comunidade externa. A Liga das Nações passou a ser a

guardiã dos compromissos assumidos pelos líderes dos Estados signatários dos tratados, exercendo essa

função a partir de um sistema de petições a ser utilizado por membros dos grupos minoritários quando da

violação de seus direitos. 45 UNESCO. Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, 2002.

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A categoria minoria é utilizada no Direito como reforço

argumentativo para a defesa de direitos fundamentais, e destina-se a

grupos que, historicamente marginalizados, reivindicam no espaço

público o reconhecimento de suas peculiaridades e a proteção de

direitos. Essa categoria, que surgiu atrelada à ideia de Estado,

nacionalidades e soberania, hoje, se estende às demandas antes

ignoradas.46

Antes das convenções firmadas no século XX, os assuntos relativos às minorias

estavam ligados às liberdades religiosas. No século XVII, por exemplo, a “proteção de

minorias” refería-se especialmente às minorias religiosas. Lembrando que foi a partir do

século XVIII que as hierarquias raciais apareceram.

Com as grandes mudanças ocorridas na primeira metade do século XX, somadas

ao advento da Segunda Guerra Mundial e a Shoah, evidenciou-se a necessidade de

privilegiar uma aproximação entre as religiões, principalmente a partir da Igreja

Católica. Assim, o diálogo inter-religioso tornou-se um fator presente nas complexas

relações entre religiões, povos e Estados. Neste cenário, os judeus reivindicaram o

reconhecimento do Judaísmo quanto religião autônoma, e de uma nação para o povo

Judeu.

Nos bastidores deste processo encontramos detalhes dos trabalhos desenvolvidos

e articulados anos antes da realização do Concílio, seja por grupos isolados ou pela

cooperação entre organizações judaicas e cristãs. Com este complexo pano de fundo,

nos deparamos com as aspirações dos representantes do Judaísmo, e do Catolicismo,

mas especialmente a atuação de convertidos do Judaísmo para o Catolicismo, nos

primeiros passos em direção às relações inter-religiosas. Dentre muitos movimentos

organizados, destacaremos aquelas que tiveram uma influência mais direta sobre o

Vaticano II, cujos desdobramentos envolveram comunidades judaicas e católicas em

direção ao encontro. Um ambiente permeado por tensões e reparações com a Igreja, mas

que abriu caminho para a elaboração da NA4 no Vaticano II.

Dentre os muito atores, homens e mulheres, que dedicaram seu amor, energia e

esperança, não haverá espaço suficiente para explorar sua história como merecem, por

isso, nos deteremos na contribuição do historiador e rabino francês Jules Isaac (1877-

1963) e seus Dezoito Pontos sobre o ensino cristão47 para a Conferência Internacional

realizada em Seelisberg, na Suíça, (1947), seu encontro com o Papa João XXIII, e o que

46 MARTINS, Argemiro C. M.; MITUZANI, Larissa. Direito das Minorias Interpretado: o compromisso

democrático do direito brasileiro. Publicação de Programa de Pós-graduação em Direito da UFSC,

Florianóplis, v. 32 n. 63, 2011. Disponível em: <https://www.journal.ufsc.br/index.php/sequencia/article/

view/21777055.2011v32n6p319/21068> Acesso em: 25 jul. 2014. 47 Cf. A retificação necessária no ensino cristão: Dezoito Pontos. ANEXO A.

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se tornaria um dos nove documentos conciliares classificados como “declaração”, a

Nostra Aetate. E também a participação dos especialistas Gregory Baum (1923),

nascido de mãe judia e pai Protestante, e o Monsenhor John Maria Oesterreicher (1904-

1993), também nascido judeu, convertido ao catolicismo em 1924.

Em 1870, ocasião do Concílio Vaticano I, os irmãos judeus Le'mann convertidos

ao catolicismo, e sacerdotes, apresentaram um projeto de declaração sobre as relações

entre a Igreja e os judeus, no qual afirmavam que os judeus “são muito queridos por

Deus por causa de seus pais e porque Cristo nasceu do povo Judeu, segundo a carne”.

Segundo Connelly (2007) esta foi uma iniciativa sem precedentes, uma pequena

semente lançada quase um século antes do Vativano II.

II.2.3.1 Comitê Judaico Americano (CJA) – American Jewish Committee (AJC)

O Comitê Judaico Americano foi criado em 1906 por judeus Norte Americanos

preocupados com os ataques violentos conhecidos como os pogroms48 dirigidos à

população judaica da Rússia. Louis B. Marshall (1856-1929) foi um dos fundadores e

presidente (1912-1929). A declaração oficial da comissão tinha por objetivo evitar a

violação dos direitos civis e religiosos dos judeus e atenuar as consequências da

perseguição. No período referente ao Vaticano II, o presidente foi Louis Caplan (1886-

1978).49

Através do diálogo direto com a Igreja Católica, o Comitê desempenhou um

papel de liderança preparando o caminho para uma recuperação significativa nas

relações judaico-cristãs nos anos que antecederam a Nostra Aetate, e nos anos seguintes.

Os memorandos serão analisados mais à frente.

48 Um pogrom é um ataque violento que visa o massacre ou a perseguição de um grupo étnico ou

religioso, especialmente contra os judeus. O termo entrou originalmente no idioma Inglês para descrever

ataques dos séculos XIX e XX contra os judeus no Império Russo. Ataques semelhantes ocorridos em

outros tempos e locais também tornaram-se, retrospectivamente, conhecidos como pogroms. 49 Antes da Guerra dos Seis Dias, em 1967, o CJA foi oficialmente “não-sionista”. Tinha sido muito

ambivalente sobre o Sionismo como possível abertura à acusação dos judeus de dupla lealdade, mas

apoiou a criação de Israel em 1947-48, depois do apoio norte americano à divisão da Palestina. Foi a

primeira organização judaica americana a abrir um escritório permanente em Israel.

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II.2.3.2 Amici Israel

Anos antes do Concílio já havia uma certa articulação em prol de um novo olhar

e uma nova postura por parte de muitos clérigos e leigos católicos, que confrontou a

tradicional postura convercionista e supersessionista. Dentre os defensores estava a

Opus Sacerdotale Amici Israel – Amigos de Israel, uma associação internacional

Católica Romana fundada em Roma, no dia 24 de fevereiro de 192650 por padres

holandeses, como o teólogo franciscano Laetus Himmelreich [187-?], a leiga Sophie

Franziska51 van Leer (1892-1953), judia convertida ao catolicismo em 1919, aluna de

Laetus, e o padre Anton van Asseldonk (1892-1973). Em 1928, a Associação contava

com milhares de membros de todo o mundo, incluindo cerca de 300 arcebispos, 3.000

sacerdotes, e 19 cardeais. Sua força alarmou os membros do Santo Ofício e sua

supressão foi recomendada.

A proposta do Amici Israel centrava-se em promover a reconciliação entre

judeus e católicos, procurando aprofundar a compreensão do Judaísmo. Para isso

utilizaram uma série de folhetos através dos quais explicavam seu programa que

abordava os problemas fundamentais da teologia do antissemitismo. Dentre suas

principais preocupações destacamos: eliminar as referências negativas sobre os judeus

na pregação e na liturgia, por meio de um ensino de estima ao povo Judeu; abster-se de

acusá-los de deicídio; de “Libelo de Sangue”52; evitar falar sem respeito de suas

cerimônias; enfatizar o amor Divino pelos judeus; e evitar falar em conversão, mas

preferir o termo retorno dos judeus. Note-se que este trabalho ocorrera cerca de 40 anos

antes da promulgação da Nostra Aetate, e para ela abriu caminho. Além disso,

promoveu, por razões teológicas, o Sionismo, que o Vaticano enfrentou de forma hostil.

No entanto, em seus primeiros anos a Associação encorajou a oração para a conversão

dos judeus, exortou os fieis para que orassem e trabalhassem pela conversão dos judeus

ao reinado de Cristo. Porém, a Amici Israel mudou o caminho da busca pelas

conversões, uma virada que se tornou um padrão entre muitos promotores de uma nova

relação com o povo Judeu.

50 Disponível em: <https://googleweblight.com/?lite_url=https://messianicjewishhistory.wordpress.com

/2015/03/25/25-march-1928-pius-xi-condemns-antisemitism-but-suppresses-amici-israel-friends-of-israel

-otdimjh/&ei=Wkjs6m2c&lc=ptBR&geid=10&s=1&m=300&host=www.google.com.br&ts=145581316

2&sig=ALL1Aj6PnDsB HdLymEXcPYTZoYpwsLTHrA> Acesso em: 10 fev. 2016, tradução nossa. 51 Francisca Maria van Leer foi o nome adotado após seu batismo, em 15 de junho de 1919, em Munique. 52 Os judeus eram acusados de realizar sacrifícios, geralmente de crianças, e utilizar seu sangue em

supostos rituais. Uma forma comum de antissemitismo praticado na Idade Média.

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Figura 07 - Capa do folheto Pax super-Israel. Associação Amici Israel (1925)53

Em 02 janeiro de 1928, a Associação apelou ao Papa Pio XI que modificasse a

oração da Sexta-Feira Santa sobre os judeus, removesse os termos perfidis e perfidiam,

“Oremos pelos pérfidos judeus” e “Ouve, Deus, nossa oração pela obcecação desse

povo para que seja libertado das trevas”, e ainda recomendou que fosse abolida o prática

que determinava que não se ajoelhasse para os judeus durante a oração da Sexta-Feira,

adotada quando o Papa Pio V criou o Missal Romano em 1570, Missa Tridentida

(Concílio de Trento 1545-1563).

O pedido foi encaminhado à Congregação dos Ritos que apoiou e autorizou a

reforma. No entanto, o Santo Ofício opôs-se ao pedido e concluiu haver base bíblica

para a infidelidade judaica, que não justificava uma reforma na liturgia da Sexta-Feira

Santa.54 Além disso, em 21 de março de 1928 decretou que a Associação deveria ser

suprimida, apenas dois anos após sua fundação, e não mais seria permitido a ninguém

escrever ou editar livros e folhetos com a finalidade de promover tais iniciativas,

consideradas “errôneas”. A informação que chegou ao público foi apenas que o grupo

havia adotado uma forma de agir e pensar contrária ao sentido e espírito da Igreja. Por

conseguinte, em 25 de março de 1928, o Papa Pio XI ordenou a publicação de seu apoio

ao argumento em favor dos adversários da reforma da oração da Sexta-Feira, manteve a

crença no Supersessionismo, todavia, condenou o antissemitismo racista declarando:

53 Pax Super Israel significa: A paz esteja com Israel. 54 Cf. Biblia Sagrada. At 7,51 “Homens de dura cerviz”; e Mt 27,25 “O seu sangue caia sobre nós e

nossos filhos”.

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A Igreja Católica sempre foi acostumada a orar para o povo judeu, os

destinatários das promessas divinas da vinda de Jesus Cristo, apesar

da cegueira das pessoas. Mais do que isso, ela tem feito isso por conta

de tal cegueira. Governada pela mesma caridade, a Sé Apostólica

protegeu este povo contra vexames injustos, e da mesma forma que

reprova todo o ódio entre os povos, condena o ódio contra as pessoas

anteriormente escolhidas por Deus, o ódio que hoje habitualmente

atende pelo nome de antissemitismo (BOYS, 2013, p.77, tradução

nossa).

Uma especificação da Sagrada Congregação dos Ritos em 1948, de que as

palavras “Perfidi Judaei” e “Perfidia Judaica” referiam-se a uma expressão, que no

latim medieval, significava apenas “não crentes”, ou seja, significando simplesmente

falta de fé na Revelação Cristã. Em 1955, houve a remoção da rúbrica especial que fazia

dos judeus a única exceção do Flectamus Genua55, durante o serviço da Sexta-feira

Santa, um ato ofensivo e humilhante. Somente após o Vaticano II a oração seria então

reformulada, até lá, o silêncio da Igreja permaneceu como veremos mais adiante.

Portanto, a “questão judaica” era vista pela Igreja como religiosa, e não se estendia para

uma compreensão mais profunda sobre o povo, a nação, e o próprio Judaísmo quanto

religião autêntica e viva.

Enfim, a extinção da Amici Israel é compreendida por alguns pesquisadores sob

diferentes pontos de vista: medo de pretensões políticas; uma organização cujos ideais e

convicção de seus fundadores manifestaram-se muito cedo; que estavam à frente de seu

tempo; que não tinham experiência suficiente; e até pela indisciplina e desobediência de

Anton van Asseldonk. No entanto, todos concordam que não existem provas suficientes

para explicar os reais motivos que levaram o Santo Ofício a decretar sua extinção

(MACINA, 2015).56

II.2.3.3 John Oesterreicher

No mesmo período, seguimos para a contribuição de dois padres católicos no

desenvolvimento desta nova visão a respeito do povo Judeu e do Judaísmo, e seus

esforços para alcançar a reconciliação. Os argumentos teológicos de John Oesterreicher

(1904-1993), e aqui acrescentamos a contribuição de Karl Thieme (1902-1963), foram

55 Ato de ajoelhar-se. 56 Artigo completo do autor francês Menahem R. Macina: Réévaluation des motifs invoqués par le Saint-

Office pour abolir Amici Israel (1926-1928). Disponível em: <https://www.academia.edu/8392562

/R%C3%A9%C3%A9valuation_des_motifs_invoqu%C3%A9s_par_le_Saint-Si%C3%A8ge_pour_justif

ier_la_suppression_de_lassociation_philojuda%C3%AFque_Amici_Israel_1926-1928_> Acesso em: 15

fev. 2016, tradução nossa.

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significativos. Connelly (2007) os identifica como aqueles, dentro de um grupo de

homens e mulheres, que “atravessaram a fronteira”, pois não eram somente convertidos

ao catolicismo, mas também cruzaram fronteiras europeias e foram capazes de

transcender as limitações de uma única cultura.

Oesterreicher, de origem judaica, nasceu em 1904, na Morávia, converteu-se ao

catolicismo em 1924, foi ordenado padre em 1927, e em 1930 foi pároco da diocese de

Viena. Sua conversão sofreu influência de leituras do Cardeal John Newman,

Kierkegaard e dos Evangelhos. O conteúdo antijudaico dos textos cristãos o

assombrava, pois neste período prevalecia entre os cristãos, a ideia da necessidade da

conversão dos judeus para a realização das promessas bíblicas.

No ano de 1937, o padre Oesterreicher, o filósofo Waldemar Gurian –

de origem judaica – e o teólogo Karl Thieme escreveram uma

declaração [de 40 páginas] sobre os judeus, contra o racismo na Igreja

e na sociedade, e salientando a santidade do povo de Israel. Mas,

quando os nazistas entraram na Áustria, em 1938, os seus autores

foram obrigados a fugir para Paris onde deram continuidade ao

trabalho através do rádio. Em sermões transmitidos em língua alemã

chamavam Hitler de “espírito imundo” além de denunciar os crimes

praticados pelos nazistas na Polônia contra judeus e poloneses. Após

maio de 1940, com a ocupação germânica da França, Oesterreicher

escapou para Lisboa e, por fim, chegou aos Estados Unidos,

trabalhando na Universidade Seton-Hall University, New Jersey EUA,

como especialista nas relações entre judeus e a Igreja Católica na

América. Foi um dos pioneiros no Diálogo Judaico-Católico nos

Estados Unidos (COELHO, 2012, p.94).

A declaração foi escrita em um contexto no qual a sociedade católica acreditava

que as leis raciais nazistas estavam de acordo com a vontade de Deus, houve portanto,

uma penetração do racismo de forma profunda no pensamento católico durante os anos

1930. Além disso, pensadores católicos na Europa Central deste período, apoiados em

uma visão moderna de mundo racista, acreditavam que os judeus eram um grupo

biológico, bem como cultural/religioso. Neste sentido questionaram o poder do

sacramento do batismo para alterar o que era determinado hereditariamente, ou seja,

nem o batismo poderia curar os defeitos morais dos judeus por causa de seu “material

genético ruim”, e desfazer os males supostamente herdados do caráter judaico. A

consequência desta linha de pensamento foi a inevitável afirmação de que os judeus

eram diferentes dos não judeus, e que essa diferença representava uma ameaça, apesar

de sua inferioridade, e esta afirmação misturou-se à alegação de superioridade espiritual

católica, sugerindo que o espiritual e o biológico poderiam estar ligados. A rejeição dos

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judeus a Cristo, por exemplo, era vista como uma falha espiritual, com efeitos

biológicos, pois qualquer tipo de “transgressão” a Deus teria consequências terrenas

(CONNELLY, 2007, tradução nossa).

Por conseguinte, tais pensadores desencadearam uma forte oposição à

Oesterreicher e seus amigos, muitos dos quais eram judeus. Por causa do confronto com

o racismo Católico, Oesterreicher chegou a acreditar que o antissemitismo somente

religioso não poderia existir, e concluiu que o racismo e o antissemitismo eram

inseparáveis.

Um certo número de intelectuais católicos, incluindo Jacques Maritain e Dietrich

von Hildebrand, apoiaram a declaração de 1937, mas nenhum dos bispos europeus iria

assiná-la. Apesar da falta de apoio, Oesterreicher e Thieme procuraram, sem sucesso,

encontrar-se com o Papa Pio XI, em dezembro de 1938, na esperança de encorajá-lo a

falar contra o antissemitismo em seu discurso de Natal. No mesmo ano, Pio XI emitiu

um conjunto de instruções sobre os perigos do racismo que são frequentemente citados,

no entanto, estas instruções proibiram o “extremo racismo”, mas não o reconhecimento

da existência de raças ou avaliações relativas ao seu valor. As nações eram vistas como

um aspecto inegável da criação e do plano de Deus para a salvação, por isso eram raças.

Em 1940, escrevendo de Paris, Oesterreicher publicou Racismo, antissemitismo,

anticristianismo: Documentos e crítica, que levou muitos católicos a uma nova direção

(CONNELLY, 2007, tradução nossa).

No entanto, mesmo que ambos, Oesterreicher e Thieme, condenassem o racismo

existente entre os católicos, ainda assim, acreditavam na necessidade de conversão dos

judeus. Eles acreditavam que os judeus continuariam a sofrer até que reconhecessem

Jesus Cristo como o Messias; uma vez que os judeus se voltassem para Jesus, sua

conversão em massa iria inaugurar a era messiânica. Porém, esta posição não pôde mais

ser sustentada e foi repensada após as experiências da Shoah, na qual a mãe de

Oesterreicher perdera a vida em Auschwitz, e o pai em Theresienstadt.

Martin Buber foi o interlocutor mais importante de Thieme, por meio do qual

compreendeu os efeitos de sua linguagem conversionista aos ouvidos dos judeus, como

o termo “inimigos do nome Cristão” utilizado em seu livro Igreja e Sinagoga de 1945.

Assim, percebeu o quanto seria problemática uma missão cristã aos judeus após

Auschwitz. Ele então questionou a ética de sua perspectiva escatológia de que o

mandamento de amar os vizinhos implica amá-los como são, ou seja, isso inclui os

judeus, quanto judeus. Além disso, desafiou a acusação de deicídio, e em 1950 publicou

uma carta na qual anunciou estar convicto de que um judeu, como tal, pode ser

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agradável a Deus, e que as promessas ainda são válidas, pois gozam da especial

orientação e graça, de acordo com a carta de Paulo aos Romanos 11,28. Deste modo,

sua qualidade de povo escolhido não fora abolida, mas suspensa em alguns de seus

efeitos.

Na Segunda Assembleia do CMI, em Evanston, Illinois, 1954, Thieme referiu-se

repetidamente aos judeus como “irmãos mais velhos”, ideia proveniente de Martin

Buber. Na compreensão de Thieme chegaria o dia em que haveria “Um só rebanho e um

só Pastor”, conforme João 10,16, até lá acreditava na importância da cooperação

fraternal entre cristãos e judeus. O desenvolvimento da relação com os judeus, com a

colaboração desses teólogos, Oesterreicher e Thieme, não teria mais um sentido de

“missão”, mas de “ministério da reconciliação”. Seus argumentos lançaram a base

teológica para a NA4 (BOYS, 2013, tradução nossa).

O pensador mais ousado e original entre os católicos antinazistas deste período,

Dietrich von Hildebrand (1889-1977), de ascendência judaica, trouxe para o universo

teológico racista esclarecimentos que questionaram a legitimidade deste pensamento.

Connelly (2007) citando Hildebrand escreveu que,

“características raciais não podem ser mostradas para ter efeitos claros

sobre o intelecto”. O racismo tornou-se possível somente por causa da

tendência moderna de “negar a essência espiritual/intelectual da

pessoa.” Na sua opinião, “graça” foi o fator decisivo na formação da

personalidade humana. Qual era a relação entre raças e povos? Qual

categoria foi mais substancial? [...] e que as comunidades nacionais

tem “outras raízes que não apenas raça” (CONNELLY apud

HILDEBRAND, 2007, p.827, tradução nossa).

Este raciocínio foi ampliado por Ferdinand Frodl57 em 1933, no sentido de que

pouco se conhecia sobre “raças” e muito menos sobre a relação das diferentes

características raciais com as peculiaridades psíquicas. Portanto, “raça” e “povo”

deveriam ser vistos de forma distinta, e não caberia nenhuma generalização sobre o

povo Judeu, mas incluí-los na humanidade, já que foram postos de lado desde os tempos

bílbicos. Já Hildebrand trouxe a realidade espiritual deste povo, e foi além ao concluir

que qualquer outro grupo teria rejeitado a Cristo, teria zombado, apedrejado, e o teria

crucificado. Ser antissemita significava, portanto, ser contra a própria humanidade. No

entanto, esta “missão” coube aos judeus, e foi precisamente esta ideia que desmontou o

antissemitismo cristão.

57 Sócio de Hildebrand na revista de publicação semanal Der Christliche Ständestaat – O Estado

Corporativo Cristão.

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Ainda no debate sobre a presença do antissemitismo racista na Igreja e na

sociedade, pesquisadores afirmam que, analisando os séculos anteriores, a forma racista

presente na sociedade não influenciou a forma de racismo posterior, presente no século

XX. Estas leis de “pureza de sangue” dos séculos XVI e XVII, da Espanha e Itália,

respectivamente, restringiam o acesso de judeus convertidos a cargos públicos, mas

foram revogadas. Assim, antes do século XX, existiram manifestações desse tipo

espalhadas ao longo do tempo que apontam tanto para leigos, como padres que

enfatizavam tal pensamento, inclusive casos de padres que, por sua origem judaica,

eram convidados a demitir-se58.

Na década de 1930, período entreguerras (1918-1939), antropólogos e eugenistas

católicos contribuíram com autoridade científica para o pensamento racista dentro da

Igreja, são eles o professor vienense de antropologia Wilhelm Schmidt (1868-1954) e o

professor de eugenia Hermann Muckermann (1877-1962) de Berlim, ambos sacerdotes.

Schmidt pertencia à ordem missionária Verbo Divino, e Muckermann era Jesuíta.

Schmidt acreditava que a rejeição a Cristo resultou em um tipo de distorção espiritual e

moral muito profunda no povo Judeu, porque traíram sua vocação, além disso, foram

expulsos de sua terra natal. Somando estes dois fatores, as consequências físicas devido

ao tempo em que permaneceram longe de suas raízes se instalaram, por isso, nem o

batismo seria capaz de neutralizar tais distorções. Assim, as diferentes interpretações

sobre “raça”, “cultura”, ou “sangue”, caminhavam juntamente com o antissemitismo de

fundo religioso, que apontava para um destino de sofrimento, crença esta que incentivou

a passividade cristã durante a Shoah, além do desprezo pelo ser humano (CONNELLY,

2007, tradução nossa).

O empenho de Hildebrand e de Oesterreicher na luta contra o antissemitismo

esbarrava em um tipo de tensão que consistia na hesitação em abandonar o termo

“raça”, apesar do conhecimento que se tinha desse termo, e a convicção de que os

judeus não deveriam ser submetidos às generalizações de ódio, e a hipótese,

aparentemente inevitável, de que o povo Judeu sofrera historicamente por recusar-se em

receber a salvação por meio Cristo. Porém, como veremos, este aspecto seria superado

na Nostra Aetate 4, que condenaria o antissemitismo, o racismo, e afirmaria o amor de

Deus por este povo, “os judeus continuam ainda, por causa dos patriarcas, a ser muito

amados de Deus, cujos dons e vocação não conhecem arrependimento”. (ANEXO F)

Porém, anos antes do Vaticano II, e diante de tal desafio, foi no próprio

argumento racista de seus adversários que Oesterreicher encontrou a resposta que traria

58 Cf. A obra de David Kertzer: Os Papas contra os judeus.

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uma nova visão bíblica do povo judeu, o “povo escolhido”, e que também iria

desmontar o componente principal do antissemitismo religioso, a noção de que os

judeus foram amaldiçoados por “sua responsabilidade” na morte de Cristo.

II.2.3.4 Conselho Nacional de Cristãos e Judeus - National Council of Christian and

Jews (NCCJ) 59

O Conselho Nacional de Cristãos e Judeus foi outra organização americana,

sinal de uma tentativa de renovação no nível sócio-político da relação entre a população

em geral. O National Council of Christian and Jews (NCCJ) fundada em 1927, no

Estados Unidos, como Conselho Nacional de Cristãos e Judeus, em resposta ao

sentimento anti-católico expressado contra o primeiro candidato democrata católico à

presidência dos Estados Unidos, Al Smith, em 1928. Dentre seus fundadores estavam

ativistas sociais, como Jane Addams e Charles Evans Hughes, do Supremo Tribunal de

Justiça americano, que se dedicaram à organização no sentido de trazer diversas pessoas

que pudessem contribuir nas questões relacionadas às divisões inter-religiosas.

O NCCJ teve pouco tempo depois uma base semelhante na África do Sul. O

esforço de ambos países foi para combater grupos hostis a minorias por razões raciais

ou religiosas, como a Ku Klux Klan nos Estados Unidos, que ameaçava tanto católicos

como judeus. Nesse sentido, o Nacional Socialismo era apenas a forma mais extrema

deste aumento de tensão racial religiosamente motivado dentro dos estados nacionais

durante o período entreguerras. Em resposta a esse clima social, grupos de trabalho

judaico-cristãos foram estabelecidos na Inglaterra, Austrália, Canadá e Suíça.

II.2.3.5 Congresso Mundial Judaico (CMJ) - World Jewish Congress (WJC)

O Congresso Mundial Judaico foi estabelecido em Genebra, Suíça, em agosto de

1936, em reação à ascensão do nazismo e da crescente onda de antissemitismo europeu.

Desde a sua fundação tem sido um órgão permanente, com escritórios ao redor do

mundo. Os principais objetivos da organização foram mobilizar os judeus e as forças

democráticas contra a investida nazista, lutar pelos direitos políticos e econômicos

iguais em todos os lugares e, particularmente, das minorias judaicas na Europa central e

59 A sigla NCCJ foi modificada nos anos de 1990 e significa atualmente: Conferência Nacional

[americana] de Comunidade e Justiça, mas originou-se sob o nome: National Council of Christians and

Jews.

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oriental, apoiar a estabelecimento de Lar Nacional Judeu na Palestina, e criar um órgão

representativo judaico em todo o mundo com base no conceito da unidade do povo

Judeu, democraticamente organizado, e capaz de agir em questões de interesse comum.

II.2.3.6 United Jewish Appeal (UJA)

A United Jewish Appeal foi uma organização judaica fundada em janeiro de

1939 sob as bases da filantrópia. A UJA empenhou-se, juntamente com outras

organizações judaicas, no trabalho em conjunto a fim de arrecadar fundos para o auxílio

de refugiados e necessitados no exterior. Seus esforços combinados apoiaram os judeus

na Europa, ajudaram a comunidade judaica na Palestina, incluindo o auxílio a

refugiados da Europa para que conseguissem chegar na Palestina e nos Estado Unidos.

Em 1999, a UJA fundiu-se com o Conselho das Federações Judaicas e a United Israel

Appeal para formar uma entidade combinada que seria chamada de Comunidades

Judaicas Unidas.

II.2.3.7 Conselho de Cristãos e Judeus (CCJ)

O Conselho de Cristãos e Judeus é uma organização voluntária no Reino Unido.

Composta de cristãos e judeus que trabalham em conjunto para combater o

antissemitismo e outras formas de intolerância na Inglaterra. Seu patrono é a Rainha

Elizabeth II. A CCJ foi fundada, em 1942, pelo rabino-chefe Joseph H. Hertz e

arcebispo William Temple, durante a Segunda Guerra, contra a perseguição nazista aos

judeus. No final de 1954, refletindo a teologia da época, o Vaticano instruiu os chefes

católicos ingleses a demitir-se da CCJ devido a sua indiferença para com os católicos, e

não retornaram até as reformas introduzidas pelo Concílio Vaticano II.

II.2.3.8 Conferência de Oxford

Desde o início do século XX, pensadores judeus e cristãos tentaram formular

uma nova percepção desta relação que incluisse as diferenças, bem como o

autoentendimento das duas comunidades de fé, priorizando um aspecto positivo desta

relação. Em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, a Conferência Americana de

Cristãos e Judeus (NCCJ) teve a iniciativa de realizar uma reunião, para a qual

representantes dos vários grupos internacionais de cristãos e judeus, (católicos,

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ortodoxos e protestantes) foram convidados, mas somente em agosto de 1946 esta

Conferência ocorreu na cidade de Oxford, Inglaterra. A Conferência teve como objetivo

a definição dos direitos fundamentais e as obrigações de cada ser humano,

independentemente de religião e “raça”. As palavras-chave que resumiram seu foco

principal foram: paz, justiça e responsabilidade, considerando que cada comunidade

representada já sofrera algum tipo de perseguição ou restrição de direitos, em diferentes

graus, em diferentes partes do mundo.

De todas as várias tensões de grupo, o conhecido como antissemitismo

diz respeito ao mundo inteiro e exige um tratamento especial. A

história recente mostra que um ataque contra os judeus é um ataque

contra os princípios fundamentais do Judaísmo e do Cristianismo

sobre os quais nossa sociedade humana ordenada depende. Por

conseguinte, é aconselhável tratar o antissemitismo como um caso

especial que necessita de tratamento especial, apesar de que, sugestões

para lidar com o antissemitismo possam ser aplicáveis a outros tipos

de tensões de grupo.60

Esta Conferência lançou as bases para o que viria a ser a Conferência mais

importante sobre a relação Judaico-Cristã, a de Seelisberg. Podemos citar entre os

convidados o filósofo Judeu, Franz Rosenzweig, em sua Estrela da Redenção (1921),

Martin Buber, e o livro de Leo Baeck als Das Evangelium Urkunde derüdischen

Glaubensgeschichte (1938)61. Gerhart Riegner, associado ao Conselho Mundial Judaico

por mais de 60 anos; e entre os Cristãos, James Parkes, da igreja Anglicana, o alemão

Karl Thieme, o francês Paul Deman, e o teólogo católico Malcolm Hay, cujos trabalhos

contribuiram, e são considerados precursores dos princípios expressados em Seelisberg.

Portanto, a Conferência de Oxford exigiu a convocação de uma conferência de

emergência para tratar especificamente do antissemitismo, o que trouxe também a

fundação de um Conselho Internacional de Judeus e Cristãos (ICCJ), uma organização

que iria ligar os esforços Judaico-Cristãos oriundos de vários países.

60RUTISHAUSER, Christian. The 1947 Seelisberg Conference: The Foundation of the Jewish-Christian

Dialogue. Studies in Christian-Jewish Relations. v.2, n., pp. 34-53, 2008. Disponível em:

<http://ejournals.bc.edu /ojs/index.php/scjr/issue/archive> Acesso em: ago. 2014, tradução nossa. 61 “O Evangelho como um registro da história judaica”, tradução nossa.

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II.2.3.9 Conferência Internacional de Emergência sobre o Antissemitismo -

International Emergency Conference on Anti-Semitism

A Conferência Internacional de Emergência sobre o Antissemitismo, promovida

pelo Conselho Internacional de Cristãos e Judeus (ICCJ), cujo foco foi a relação entre o

Judaísmo e o Cristianismo, ocorreu em Seelisberg, na Suíça, de 30 de julho até 5 de

agosto de 1947. As atitudes das Igrejas Reformadas e da Igreja Católica Romana para

com o Judaísmo deram passos significativos para uma mudança, de uma relação de

ambivalência e desconfiança ou de inimizade, para uma relação de convivência e

cooperação. Dentre os quase 70 participantes de 17, estavam presentes na Conferência

28 Judeus, 23 Protestantes e 9 Católicos, que falaram em seus próprios nomes, e não

como representantes oficiais de suas comunidades de fé, foram capazes de contribuir

para o tema por sua experiência e conhecimento. A Conferência foi organizada em

cinco Comissões, cujos trabalhos desenvolvidos foram direcionados para os seguintes

objetivos: I – A cooperação judaico-cristã em relação ao combate do antissemitismo; II

- Oportunidades de educação nas escolas e universidades; III – O papel das igrejas; IV -

Deveres cívicos e sociais; V - Relações com os Governos.

Dada a importância colocada ao caráter internacional da Conferência, foi

assegurada a representação de todos os países europeus e dos Estados Unidos. Os

presidentes das organizações judaico-cristãs nacionais estiveram presentes, assim como

os representantes do CMI. Até o Concílio Vaticano II foi o único documento

internacional de que os cristãos poderiam referir-se a fim de criar uma nova relação

entre cristãos e judeus. O trabalho desenvolvido pela Comissão III, a qual Jules Isaac

integrou, contribuiu significativamente para o diálogo judaico-cristão. Enfim, os Dez

Pontos do Documento são:

1. Lembre-se que um Único Deus fala a todos, através do Antigo e

Novo Testamentos;

2. Lembre-se que Jesus nasceu de uma mãe Judia da descendência de

Davi do povo de Israel, e que Seu amor e perdão eternos abraçam seu

próprio povo e o mundo inteiro;

3. Lembre-se que os primeiros discípulos, os apóstolos, e os primeiros

mártires eram judeus;

4. Lembre-se que o mandamento fundamental do Cristianismo, amar a

Deus e ao próximo, proclamado no Antigo Testamento e confirmado

por Jesus, é vinculado para ambos, Cristãos e Judeus, em todas as

relações humanas, sem qualquer exceção;

5. Evite depreciar Judaísmo bíblico e pós-bíblico com o objetivo de

exaltar o Cristianismo;

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6. Evite usar a palavra Judeus no sentido exclusivo de inimigos de

Jesus, e as palavras inimigos de Jesus para designar todo o povo

Judeu;

7. Evite apresentar a Paixão de tal forma a trazer o ódio da morte de

Jesus apenas sobre os judeus. Na verdade, não eram todos os judeus

que exigiam a morte de Jesus, nem foram apenas os judeus

responsáveis por ela. A Cruz, que a todos salva, revela que é pelos

pecados de todos que Cristo morreu. Relembre todos os cristãos e

professores, da responsabilidade que assumem, particularmente

quando apresentam a história da Paixão de forma brutal. Ao fazê-lo

correm o risco de implantar uma aversão na mente consciente ou

subconsciente de seus filhos ou ouvintes, intencionalmente ou não.

Psicologicamente falando, no caso de mentes simples, movidas por

um amor apaixonado, e pela compaixão para com o Salvador

crucificado, o horror que eles sentem dos perseguidores de Jesus será

facilmente transformado em ódio indiscriminado contra judeus de

todos os tempos;

8. Evite, referindo-se às maldições bíblicas, ou o grito de uma

multidão em fúria: O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos

(Mt 27,25), sem lembrar-se que este grito não anulou as palavras,

incomparavelmente maiores do Senhor: Pai, perdoa-lhes, porque não

sabem o que fazem (Lc 23,25);

9. Evite promover a noção supersticiosa de que o povo Judeu é

reprovado, maldito, destinado a um destino de sofrimento;

10. Evite falar dos judeus como se os primeiros membros da Igreja

não fossem judeus (RUTISHAUSER, Christian, 2008, p.44, tradução

nossa, grifo dele).

Outros participantes incluíram professores, rabinos, mas o destaque é o

historiador francês de ascendência judaica, Jules Isaac, que foi um protagonista

significante nesta Conferência. O americano Willard E. Goslin, da Igreja tradicional

Reformada, atuante no sistema educacional, presidiu a Conferência auxiliado pelo judeu

britânico Neville Laski, e o frade franciscano Calliste Lopinot. 62

62 Os Dez Pontos de Seelisberg foram relembrados nos 12 Pontos de Berlim, pelo International Council

of Christians and Jews, ICCJ, documento aprovado e assinado por ocasião da Conferência Internacional e

Assembleia Geral deste Conselho e suas organizações-membro, em julho de 2009, em Berlim, Alemanha.

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Figura 08 - Participantes da Conferência de Seelisberg, 1947.63

II.2.3.10 Conselho Internacional de Cristãos e Judeus - International Council of

Christians and Jews (ICCJ) 64

A ideia da criação do Conselho Internacional de Cristãos e Judeus ocorreu em

julho de 1946, na Conferência de Oxfrod, com a finalidade criar uma conexão dos

esforços entre judeus e cristãos, juntamente com a ideia de uma Conferência específica

para tratar do antissemitismo. Foi então fundado em 1948, como uma reação à Shoah, e,

portanto, da necessidade de encontrar meios para examinar as raízes profundamente

arraigadas de desconfiança, ódio e medo, que culminou com um dos piores males da

história da humanidade. As organizações-membro do ICCJ em todo o mundo nas

últimas cinco décadas têm se empenhado com êxito na renovação histórica das relações

judaico-cristãs.

No entanto a Associação Americana retirou-se de sua função de

liderança desta “fraternidade mundial” e o Vaticano expressou suas

reservas sobre o perigo do relativismo religioso. No final, apenas um

Comitê Consultivo Internacional foi formado. Enquanto isso não

impediu que Conselhos adicionais de cristãos e judeus se formassem a

nível nacional, e em maio de 1974 que o Conselho Internacional de

Cristãos e Judeus ( ICCJ ) foi realmente criado. Este foi , em grande

parte devido ao envolvimento renovado do poderoso Conselho

Nacional Americano de cristãos e judeus, com a colaboração do

Vaticano, que, por necessidade, a partir de 1965, o Documento do

Concílio Vaticano II, Nostra Aetate, abriu suas portas para o diálogo

inter-religioso (RUTISHAUSER, Christian. 2008, p.37, tradução

nossa).

63 RUTISHAUSER, Christian. 2008, p.50. 64 Disponível em: <http://www.iccj.org/About-us.2.0.html> Acesso em: 05 set. 2015, tradução nossa.

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II.2.3.11 Gregory Baum

Acadêmico e teólogo canadense, nasceu em 1923 em Berlim, Alemanha, sua

mãe era judia e o pai protestante. Na Segunda Guerra mudou-se para o Canadá, em

1940, com outros alemães, a maioria deles judeus, e foram alojados em campos de

refugiados, sob controle militar. Depois de algumas transferências entre Quebec, Trois-

Rivières, Nova Brunswick e Farnham, finalmente foi para Sherbrooke, na época Baum

tinha 17 anos. Entre os refugiados havia alguns intelectuais que apressaram-se em criar,

dentro dos campos, sistemas de ensino dos quais ele se aproveitou. Embora o Canadá

não tivesse lei para os refugiados, neste momento o governo canadense fora pressionado

para que alguns deles pudessem completar seus estudos fora dos campos, com a ajuda

financeira arrecada pelos próprios refugiados, destinada às bolsas de estudo.

Baum tornou-se conhecido na América do Norte e na Europa na década de 1960

por seu trabalho sobre o ecumenismo, o diálogo inter-religioso, e as relações entre a

Igreja Católica e os judeus. Na década de 1960 tornou sociólogo pela Nova Escola de

Teoria Social em Nova York, o que o levou ao seu trabalho na criação de um diálogo

entre a sociologia clássica e a teologia Cristã.

Duranto o Vaticano II foi convidado como perito ou consultor teológico no

Secretariado para Promoção da Unidade dos Cristãos, comissão responsável por três

documentos conciliares, sobre a liberdade religiosa – Dignitatis Humanae (DH), sobre o

Ecumenismo – Unitatis Redintegratio (UR) e sobre a relação da Igreja com as religiões

não cristãs – Nostra Aetate (NA).

Como resposta à Shoah, defendeu a posição do rabino e filósofo Emil

Fackenheim sobre a cessação dos esforços de converter os judeus, em que afirmou

“Depois de Auschwitz as igrejas cristãs não mais desejarão converter os judeus.

Enquanto não têm certeza dos motivos teológicos que eles dispensam a partir desta

missão, as igrejas devem ter consciência de que a conversão dos judeus é uma maneira

espiritual de apagá-los de sua existência, e, portanto, só reforça os efeitos do

Holocausto.”65 Por conseguinte, Baum empenhou-se para que o Judaísmo fosse

reconhecido como religião autêntica.

Enfim, Baum compôs a primeira versão do documento conciliar que ao final

seria promulgado como Nostra Aetate: a Declaração sobre a relação da Igreja com as

religiões não cristãs, e que mais tarde foi ampliada para atender todas as religiões do

65 Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Gregory_Baum> Acesso em: fev. 2016.

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mundo, como veremos mais à frente. Dentre suas obras destacamos The Jews and the

Gospel: A Reexamination of the New Testament, 1961.

II.2.3.12 Jules Isaac

Jules Isaac (1877-1963), cuja família foi assassinada pelos nazistas durante a

Shoah66, preparou um memorando, resultado de suas investigações sobre as causas do

antissemitismo presente na Igreja, para que o tema fosse considerado no Concílio, e que

fosse aprovada uma declaração oficial combatendo o “ensino do desprezo” 67 em relação

aos judeus e a acusação de deicídio. Após a Segunda Guerra Mundial, Jules Isaac

dedicou-se a investigar as origens do antissemitismo cultural e religioso.68 Notas escritas

por Isaac logo após a audiência com o Papa João XXIII em 13 de junho de 1960:

Eu não fui para este encontro cegamente. Estudei a fundo e descobri

tudo o que pude, e elaborei um Memorando antes do encontro com o

Papa, com um dossiê de programas para reformar o ensino cristão

sobre Israel, como o exemplo de um mito teológico da “Dispersão -

castigo divino pela crucificação”, e trechos do Conselho do Catecismo

de Trento de que a acusação de deicídio é contra a verdadeira doutrina

da Igreja [...] Mas deve-se levar em conta o quão difícil e corajoso foi

este projeto. O problema do ensino católico que eu ataquei é

infinitamente mais complexo do que o da liturgia. [...] Eu estava

plenamente consciente de que se tratava de uma verdadeira façanha -

tour-de-force, e que eu teria, em certos casos, que transpor um abismo

[...] Domingo, 12 de junho. No final do dia, uma carta da embaixada

me informou que a audiência seria na manhã seguinte. Dormi pouco

naquela noite; ficaram prontas as Notas adicional e conclusiva, a fim

de ter a máxima eficácia em sua breve forma. Também preparei os

temas essenciais, os mais importantes. Segunda-feira, 13 junho, nos

dirigimos até o último quarto antes da biblioteca-escritório. Longa

espera. Alguém nos adverte que Sua Santidade está cansada, esteve

acordada desde a meia-noite, e que haveria um grande número de

audiências, o que significa que o nosso tempo seria contado.

66 Sua esposa conseguiu transmitir uma última mensagem para ele: “terminar o trabalho que o mundo

estava esperando dele”. Este refería-se à edição de seu livro “Jesus e Israel”, em que sua esposa havia

demonstrado muito interesse desde o início. Disponível em: <http://www.notredamedesion.org/en/

dialogue_docs.php ?a=3b&id =567> Acesso em: 20 fev. 2016, tradução nossa. 67 Monsenhor Michael L. Fitzgerald. A Declaração Nostra Aetate: o respeito da Igreja pelos valores

religiosos. Disponível em: <http://revistas.pucsp.br/index.php/culturateo/article/viewFile/14956/11152>

Acesso em: 25 jul. 2015. 68 Jules Isaac, ex-Superintendente da Instrução Pública na França (1936), depois da Primeira Guerra

Mundial procurou usar livros de história para promover a paz entre a França e a Alemanha. Publicou duas

obras Jesús e Israel (1949), e Genèse de l’antisémitisme (1956), que inspiraram a Declaração de

Seelisberg. Dedicou-se particularmente à luta contra as origens cristãs do antissemitismo. Em 1949

aconselhou o Papa Pio XII a rever a oração Sexta-Feira Santa, que anteriormente continha referências

ofensivas aos judeus, como a expressão “pérfidos judeus”. Ele também observou que os católicos não se

ajoelhavam quando oravam pelos os judeus na Sexta-feira Santa, embora se ajoelhassem para todas as

outras petições. Pio XII modificou a linguagem, embora somente mais tarde João XXIII tenha retirado a

linguagem negativa sobre os judeus em geral, e implementou uma postura ajoelhada como Isaac havia

sugerido.

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Finalmente 01:15 chega a nossa vez. O Papa nos recebe diante das

portas abertas. Eu me curvo e João XXIII me dá sua mão. Eu me

apresento como um não cristão, promotor da Amizade Judaico-Cristã

Francesa, e como um homem velho muito surdo. Estou ao lado do

Papa, a própria simplicidade, um forte contraste com a pompa da

decoração e cerimônia anterior. Ele não parece cansado. Um homem

simples, muito sorridente,com uma relação transparente, um pouco

travesso, mas onde há uma bondade evidente que inspira confiança.

Ele inicia uma conversa animada, falando de sua devoção ao Antigo

Testamento, aos Salmos, aos profetas, ao livro da Sabedoria. Ele fala

do seu nome, como ele tinha escolhido pensando na França; ele me

pergunta onde nasci, e eu procuro uma maneira de fazer a transição

para o objeto desejado. Digo-lhe sobre a grande esperança de que suas

medidas despertaram no coração do povo do Antigo Testamento, e

que se espera ainda mais dele, afinal, não é ele mesmo o responsável

por essa grande bondade? Isso o fez rir. Então, eu tento expor meu

pedido relativo ao ensino, e antes de tudo, sua base histórica. Mas

como fazer alguém entender, em poucos minutos, o que este gueto

espiritual tem sido, no qual a Igreja tem progressivamente incluído o

antigo Israel juntamente com o gueto físico? Hoje existe uma

purificação contra-corrente que cresce cada dia mais forte. No entanto,

investigações recentes têm mostrado que “o ensino de desdém” ainda

permanece. Estas duas tendências contrárias dividem a opinião

católica que permanece instável. É por isso que é indispensável que se

levante uma voz de alto nível, a partir da “cúpula” - a voz do chefe da

Igreja - para apontar a direção certa a todos, e solenemente condenar

“o ensino do desprezo” em sua essência anti-cristã [...] Então eu

apresentei minha Nota conclusiva e a sugestão para criar uma

subcomissão a fim de estudar a questão. O Papa imediatamente

respondeu: “Desde o início da nossa conversa eu tenho pensado

nisso.” Várias vezes ele demonstrou sua compreensão [...] E dizendo-

lhe com toda a minha gratidão por sua acolhida, perguntei se poderia

levar comigo um pouco de esperança. Ele disse: “Você tem o direito a

mais que esperança!” Sorrindo, ele acrescentou: “Eu sou o chefe, mas

eu também devo consultar, há escritórios que estudarão as questões

levantadas. Aqui, não é uma monarquia absolutista.” Nos despedimos,

e, novamente, apertamos as mãos.69

Considerando o desenvolvimento do antissemitismo e sua penetração no

pensamento católico, bem como sua desconstrução, muitos autores defendem que a

mudança da atitude da Igreja foi por causa da Shoah, outros acreditam que a Igreja

considerou seu papel impecável durante a Segunda Guerra Mundial, portanto, somente

em João XXIII a mudança de fato ocorreria, que obrigou uma reavaliação das relações

da Igreja com as outras religiões (CONNELLY, 2007).

Como demonstramos neste capítulo, houve dois tipos de antissemitismo na

sociedade e na Igreja, um reforçado pelo outro, o racista e o religioso. Enfim, foi o

69 Notas foram publicadas no The Journal SIDIC 1968/3 e são cortesia disponibilizada pelas Irmãs de

Notre Dame de Sion. Disponível em: <http://www.ccjr.us/dialogika-resources/documents-and-statements

/jewish /1123-isaac19 60> Acesso em: 25 julho 2015, tradução nossa, grifo dele.

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empenho dos que trabalharam, pesquisaram e proporcionaram a virada no

relacionamento da Igreja, e do Cristianismo, na relação com o povo Judeu, oferecendo

material suficiente para que houvesse condições de elaborar uma declaração específica

no Vaticano II, “os judeus não deveriam ser apresentados como rejeitados ou

amaldiçoados por Deus”, que o sofrimento e a morte de Cristo “não pode ser imputada a

todos os judeus, sem distinção, então vivos, nem contra os judeus de hoje”, e que “Deus

tem os judeus mais caros por causa de seus pais”. Assim, foi aberto o caminho a partir

do qual ampliou-se a compreensão que a Igreja tem do Judaísmo, dos judeus e das

demais formas de crenças e religiões. (ANEXO F)

Figura 09 - A Igreja e a Sinagoga. Catedral de Estrasburgo. Autor desconhecido,

(ca.1230).

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A Igreja Triunfante sonda a Sinagoga caída e cega. A Sinagoga de

olhos vendados, recusa-se a ver a verdade. Tem junto de si um bastão

quebrado, que já não lhe poderá servir nem para o mando, nem para o

caminhar. Cegueira, invalidez: características lamentáveis de uma

decrepitude que também ela não está nos acidentes, mas na própria

alma da Sinagoga. Toda a hediondez da filha de Satanás resulta de seu

interior, poder-se-ia dizer dela, ao contrário do que da Santa Igreja diz

o Salmista. O erro só tem a perder quando com tanta clareza se lhe

manifesta a natureza íntima. O Apóstolo diz da Esposa de Cristo que

Ela não tem mácula nem ruga. Sua formosura lhe vem da doutrina

perfeita, da santidade constante, da autoridade infalível. As misérias

do tempo podem, por vezes, impregnar em larga medida seus

elementos humanos, sem, contudo, atingir sua imortal perfeição. E

que a beleza da Igreja é o mais límpido reflexo da própria beleza de

Deus, e por isso nada tem Ela a perder com a manifestação plena da

verdade. 70

III CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II: O PROCESSO DE

ELABORAÇÃO DA NOSTRA AETATE

Nos anos que se seguiram ao Parlamento várias iniciativas eclodiram no

desenvolvimento das relações entre as diferentes religiões, com o desenvolvimento de

movimentos e conferências que fortaleceram os laços entre os cristãos, e entre o

Cristianismo e as outras religiões. No entanto, somente após a Segunda Guerra Mundial

e a Shoah, ocasião em que foi criada a Organização das Nações Unidas (ONU), vários

documentos internacionais foram assinados a fim de que a paz e o respeito aos Direitos

Humanos prevalecessem nas relações futuras entre os Estados e os povos. A Igreja

Católica precisava, portanto, posicionar-se em resposta aos eventos que já envolviam

uma grande mobilização pró-diálogo no seio protestante em relação às demais religiões,

e romper com o paradigma da Supersessionista - Teologia da Substituição em relação

aos judeus, como resposta à Shoah e à Conferência realizada em Seelisberg (1947),

decorrente da Conferência de Oxford.

Neste sentido, o significado da Nostra Aetate manifesta-se apenas quando a

situamos na complexa história da compreensão da Igreja deste tema, os séculos de

ensinamentos que distorceram o Judaísmo, como vimos anteriormente, e os debates

controversos ocorridos durante o Vaticano II, que precederam a elaboração desta

Declaração. Como cita Boys,

70 Disponível em: <http://www.pliniocorreadeoliveira.info/1956_071_CAT_Razoes_e_contra-razoes.htm

> Acesso em: 10 fev. 2016.

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85

a Declaração pode ser melhor entendida como uma conversão ao

“mistério providencial da alteridade” para a vida da Igreja, e como um

chamado a fim de ampliar e aprofundar essa conversão. Pela primeira

vez na história, um concílio ecumênico falou positivamente de outras

religiões das quais as pessoas esperam uma “resposta para os enigmas

não solucionados da existência humana”. Enquanto a tradição católica

difere em muitas particularidades, essas religiões “no entanto, muitas

vezes refletem um raio da verdade que ilumina todos os homens [e

mulheres].” Assim, o Concílio incentivou a “discussão e a

colaboração com os seguidores de outras religiões” (BOYS, 2013,

p.73, tradução nossa, acréscimo da autora).

No período que antecedeu o anúncio do Concílio Vaticano II, desde o final do

século XIX, a Igreja Católica Romana não participava ativamente nas questões voltadas

ao ecumenismo e ao diálogo inter-religioso, como já o faziam as Igrejas Reformadas,

entretanto, já haviam novas experiências pastorais em ação na própria Igreja. O espírito

fraterno para com todos os homens e mulheres de diferentes confissões religiosas não

foi o principal fator que moveu a realização deste Concílio e da Nostra Aetate, ainda

que em muitos sacerdotes houvesse um desejo latente, todavia, questões que passam

pela pressão externa, levaram a Igreja romana a uma atitude reativa frente aos

acontecimentos do período.

A maioria dos católicos geralmente era alheia à longa e amarga história da Igreja

em relação aos judeus. Como a maioria dos cristãos no final dos anos 1950 e início de

1960, os católicos criam que a Igreja havia substituído o Judaísmo. Outros católicos

opunham-se em considerar uma relação da Igreja com o povo Judeu. E muitos bispos

orientais, particularmente em países árabes muçulmanos, temiam que sua condição de

minoria pudesse ser ainda mais perigosa, como veremos mais adiante.

Desde o início havia um princípio norteador para a construção do texto até o

resultado final, a Nostra Aetate. Sua essência seria encontrada já na introdução do

Documento, apoiado sobre quatro perguntas, segundo Bea (1968, p.20), “Qual é o

objetivo exato da Declaração? Quais as bases que fundamentam a ação visada pela

Declaração? Qual é a atitude da Igreja? E qual deve ser a dos fieis em relação às

religiões não cristãs? ”. Na resposta a estas perguntas identificamos as razões que as

motivaram, seus avanços e limites, e o difícil esforço do Cardeal no sentido de

desvincular o Documento de questões políticas.

O antissemitismo racial, mas principalmente o religioso, foi definitivamente

confrontado no Vaticano II, superando séculos de desprezo, distorção e incompreensão.

No entanto, outro obstáculo apresentou-se no processo de elaboraração do documento

referente às relações com os judeus, a questão política.

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Quanto ao objetivo, a Igreja propôs o diálogo, e como fundamento do diálogo

apoiou-se no que os homens têm em comum, o vínculo no sentido geral, exluindo

convergências e divergências específicas da Igreja em relação às demais religiões. Por

isso, se propôs em favorecer a unidade da família humana, pois reconhece as mudanças

pelas quais passaram as sociedades e a interdependência decorrente de tais mudanças.

Neste sentido, a Igreja se colocou na incumbência de promovê-la.

O Documento destacou como bases da unidade, a origem comum enquanto

criaturas de Deus, a universalidade da Graça pela qual a salvação abarca toda

humanidade em um destino comum. Todos os povos são incluídos na vocação de Israel,

cuja meta é o próprio Deus, revelado sobretudo no Segundo Testamento, pois neste se

revela sua Plenitude, ou seja, o Cristo. É importante notar que o Documento destacou a

diferença entre os meios e caminhos pelos quais a Igreja trabalha para a salvação das

almas, e o modo pelo qual Deus atua, não sendo dependente da Igreja. Deste modo, o

próprio Concílio procurou transpor os limites visíveis da Igreja, sem deixar de incluir o

fluxo da graça divina presente na vida de bilhões de homens e mulheres de outras

crenças.

Por fim, a busca comum das respostas aos enigmas da vida e da nossa existência,

por meio da religião, como o sofrimento, a felicidade, a morte, o pecado, o juízo e a

retribuição71. A Declaração reconheceu que nos diversos povos existe uma “certa

percepção daquela força oculta presente no curso das coisas e dos acontecimentos

humanos” da qual emerge “um profundo sentido religioso”, e esta percepção é a base

comum sobre a qual o diálogo inter-religioso se fundamenta e desenvolve.

Porém, outro fator importante e desafiador, ainda na questão da religião como

base espiritual para a unidade e o encontro, foi o papel da própria religião no transcurso

da história, posto que fora instrumento de guerras, perseguições, discórdias e

intolerâncias. Mesmo assim, o Documento apostou na religião como um fator que

favorece a unidade dos povos. A partir deste ponto, a Nostra Aetate propôs a atitude da

Igreja em relação às demais religiões. No entanto, o Cristianismo foi o referencial, a

partir do qual as outras religiões “refletem não raramente um raio da verdade”.

(ANEXO F)

Assim, o texto relativo ao povo Judeu, segundo as palavras de Bea, foi como um

grão de mostarda que se tornou uma árvore na qual as demais religiões também

encontrariam apoio, ou seja, no Documento final intitulado Nostra Aetate. Seu conteúdo

incluiu uma breve apreciação do Hinduísmo, Budismo e do Islã, mas não houve menção

71 Pecado e Juízo segundo a tradição judaico-cristã.

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das demais religiões, como as de matriz africana e indígena, para citar apenas alguns

exemplos. O quarto parágrafo da Nostra Aetate, o mais extenso da Declaração, incluiu,

em parte, uma resposta aos Dez Pontos de Seelisberg (1947), e seria o marco para um

novo relacionamento da Igreja com os judeus, cuja complexa recepção e seus efeitos

seriam percebidos ao longo dos anos posteriores em que este Documento fosse

divulgado, compreendido, assimilado e posto em prática.

III.1 O VATICANO II (1962-1965)

Sobre os concílios, é importante considerarmos que são concluídos com a

promulgação de Documentos resultantes das decisões debatidas em assembleias,

durante as Sessões conciliares, por meio de Comissões, Subcomissões, e dos

Secretariados estabelecidos com auxílio de peritos convidados. No Concílio Vaticano II

houve quatro Sessões, nas quais foram debatidos temas amplos e complexos que

redirecionaram a vida interna da Igreja e de sua missão no mundo, no sentido de um

aggiornamento. Foram promulgados neste Concílio quatro Constituições, nove

Decretos, e três Declarações72, dentre elas a Nostra Aetate. Houve a participação de

3.060 Padres conciliares, participantes diretos do Concílio; 480 Peritos convidados

oficialmente; 29 Auditores; 23 Auditoras; e 168 Observadores Delegados e Hóspedes

do Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos.73 As Declarações conciliares

são “um gênero criado pelo Vaticano II; revestidas de autoridade conciliar, dirigem-se a

toda a humanidade, e não somente aos católicos” (Verbete Documentos Conciliares. In:

PASSOS; SANCHEZ, 2015, p.299).

João XXIII, o italiano Angelo Giuseppe Roncalli (25 de novembro de 1881 – 3

de junho 1963) nasceu em Sotto il Monte, Bérgamo. Antes de ser eleito Papa fora

enviado por Pio XI como delegado apostólico na Bulgária e em Istambul, no momento

em que passava pelo processo de secularização após a Proclamação da República, em

1923, e à Atenas, centro da Igreja Ortodoxa Grega. Posteriormente, em 1944, fora

nomeado por Pio XII embaixador (núncio apostólico) da Santa Sé, em Paris, e,

72 Foram promulgadas as Constituições: Lumen Gentium e Dei Verbum (Dogmáticas); Gaudium et Spes

(Pastoral); Sacrosanctum (designada apenas Constituição). Os nove Decretos foram: Inter Marifica;

Orientalium Ecclesiarum; Unitatis Redintegratio; Christus Dominus; Perfectae Caritatis; Optatam

Totius; Apostolicam Actuositatem; Ad Gentes; e Presbyterorum Ordinis. As três Declarações

promulgadas foram: Gravissimum Educationis; Dignitatis Humanae; e Nostra Aetate. Cf. Verbete

Documentos Conciliares. In: PASSOS, João Décio; SANCHEZ, Wagner Lopes (Coords). Dicionário do

Concílio Vaticano II. 1. ed. São Paulo: Paulinas/Paulus, 2015. pp.298-300. 73 Cf. Verbete Infraestrutura Conciliar. In: PASSOS, João Décio; SANCHEZ, Wagner Lopes (Coords).

Dicionário do Concílio Vaticano II. 1. ed. São Paulo: Paulinas/Paulus, 2015. pp.471-474.

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finalmente, Patriarca de Veneza, em 1952. Para ele fé e razão, apesar de distintas

caminhavam juntas, pois segundo Alberigo (1996, p.27) “é diferente o que a fé deve

aceitar sem reservas e o que a razão pode analisar, porque produto contingente da

evolução história”, e com relação ao Concílio, Roncalli compôs uma dupla

responsabilidade, a de bispo de Roma e Pastor da Igreja Universal. Acreditava que

dentre os objetivos do Concílio haveria a contribuição para a paz mundial. Além disso,

relatou que sua motivação para o convocar havia sido inspirada por Deus, e não fora

planejada anteriormente. Segundo suas palavras,

há quem espera do pontífice o homem de Estado, o diplomata, o

cientista, o organizador da vida coletiva, ou aquele que tenha o

espírito aberto a todas as normas de progresso da vida moderna, sem

nenhuma exceção (ALBERIGO,1996, p.29).

III.1.1 João XXIII e a Segunda Guerra Mundial

Antes de adentrarmos nos fatos ocorridos no período conciliar, iremos expôr

alguns dados de pesquisas realizadas pela International Raoul Wallenberg Foundation

(IRWF), com base na coleta de obras de historiadores e jornalistas que dedicaram-se à

análise de documentos, relatórios e telegramas, principalmente do Vaticano, contendo

informações sobre a participação de Angelo Giuseppe Roncalli, na condição de

delegado apostólico em Ancara (1934-1944), Turquia, no que concerne às intervenções

e ações humanitárias em favor dos judeus da Europa oriental durante a perseguição

nazista. Sua atuação não fora isolada, dentro e fora da Igreja, pois atuou, inclusive, em

colaboração com o delegado da Agência Judaica na Turquia, Chaim Barlas.

Roncalli, ‘contrabandista de judeus’ [...] em Istambul, multiplicava os

falsos certificados de batismo, organizava as filas de passagem,

coletava alimentos e roupas, mobilizava as seções da Cruz Vermelha,

escrevia ardentes súplicas aos poderosos, e detalhadas cartas ao

Vaticano [...] Quando Barlas evocava o destino desastroso das

crianças judias na Eslováquia, Roncalli, pálido, de repente se

levantou, e colocando-se diante de um ícone de Cristo começou a

recitar os primeiros versículos do livro de Ezequiel sobre os ossos

secos e sobre o retorno de Israel à vida. Outra vez, durante um

encontro, depois de ter acabado de ler os Protocolos de Auschwitz, um

testemunho sobre aquele campo de morte, ele explodiu em lágrimas”. 74

74 Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/530747-a-rede-turca-de-joao-xxiii-e-o-salvame

nto-dos-judeus> Acesso em: abr. 2016.

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Historiadores e testemunhas que viveram naquele período, contribuíram com

detalhes que permitem perceber o que de fato Roncalli enfrentou ao utilizar sua

habilidade diplomática, e atuar como facilitador da evacuação de milhares de judeus

com destino à Palestina, em que a Turquia tornou-se a principal rota para travessia.

Alguns resultados apontados por historiadores são:

1. Refugiados judeus que chegaram a Istambul e receberam assistência

para irem à Palestina ou outros destinos, pela emissão de “certificados

de imigração” para a Palestina através do serviço postal diplomático

do Vaticano;

2. Crianças eslovacas e croatas que conseguiram deixar o país como

resultado de suas intervenções junto ao Vaticano e chegaram à

Palestina;

3. Refugiados judeus cujos nomes foram incluídos em uma lista feita

pelo rabino Ashkenazi de Istambul, pedindo intervenção papal em seu

favor foi apresentada pelo rabino Markus ao delegado;

4. Judeus detidos no campo de concentração Jenovats, foram

libertados graças à sua intervenção;

5. Judeus búlgaros que deixaram o país, graças ao pedido de Roncalli

ao rei Boris da Bulgária, com que mantinha excelente relação;

6. Judeus romenos da Transnístria que deixaram a Romênia por causa

de sua intervenção;

7. Judeus italianos ajudados pelo Vaticano como resultado das

intervenções do núncio Roncalli.

8. Crianças órfãs de Transnístria a bordo de um navio de refugiados

ancorado da costa da Turquia, que iria para a Palestina, também por

causa de sua intervenção;

9. Judeus detidos no campo de concentração Serede, que foram

poupados da deportação para os campos de concentração poloneses

por sua causa;

10. Judeus húngaros que conseguiram salvar-se graças aos certificados

de batismo enviados por Roncalli para o núncio Húngaro Dom Angelo

Rotta;

11. Sua intervenção junto ao Papa Pio XII para que usasse sua

influência a fim de proteger os judeus da Hungria;

12. A alusão de Roncalli à intervenção do Vaticano para permitir a

saída dos judeus da Alemanha;

13. O Grande Rabino Herzog da Palestina reconhece os esforços feitos

por Roncalli em favor dos refugiados judeus. 75

75 Para mais informações, resultado de pesquisas realizadas por muitos historiadores que se dedicaram a

este tema: Disponível em: <http://www.raoulwallenberg.net/category/holocau st/> Acesso em: 20 fev.

2016.

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90

III.2 ANÚNCIO E PREPARAÇÃO DO CONCÍLIO: 09 DE JANEIRO DE 1959 A

28 DE SETEMBRO DE 1962

Em 28 de outubro de 1958 João XXIII fora eleito sucessor de Pio XII, e em 02

de novembro de 1958 comunica, em audiência privada com o Cardeal Rufini, sua

intenção de convocar um Concílio. Em 25 de janeiro de 1959, passados quase 90 dias de

sua eleição, aos 77 anos de idade, na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, o Papa

anuncia a um grupo de cardeais a decisão de realizar a convocação para um Sínodo

diocesano para a cidade de Roma, e um Concílio geral para a Igreja universal. Neste

ponto pode-se perceber o primeiro sinal de tensão interna, a saber, este Papa fora eleito

para um pontificado de transição, portanto, não se esperava grandes mudanças internas,

o que os cardeais acolheram, como cita Alberigo (1996, p.22) “com impressionante e

devoto silêncio”, sendo sugerido no ano seguinte, que não havia necessidade de realizar

um novo Concílio Ecumênico.

Naquele momento, os cardeais da Igreja ainda não haviam percebido a

necessidade de renovação, aggiornamento, pelo atraso da Instituição em relação à

questão que há décadas desenvolvia-se no seio protestante, o encontro, e em

consequência, a evolução do diálogo com outras confissões religiosas, inclusive com os

judeus, que mais tarde resultaria na promulgação da Nostra Aetate, como reação da

Igreja a este atraso.

Se a Igreja ainda não tinha a visão da necessidade de mudanças frente à

sociedade moderna, também não poderia compreender amplamente as mudanças que

um novo Concílio implicaria, de caráter pastoral e não doutrinal, foi uma mudança

súbita e irreversível, porém tardia, que não tinha a intenção de concluir o Concílio

prorrogado de 1870. O anúncio do Vaticano II, 21º na série dos concílios considerados

ecumênicos pela Igreja, gerou reações positivas fora da Igreja Católica, pois envolveu

diversos grupos sociais e culturais com alcance intercontinental. Diante da iminência do

Concílio, o prefeito de Florença G. La Pira declara:

O concílio é propriamente o fato ‘político’ essencial do qual depende

a paz dos povos e sua futura nova estruturação política, social, cultural

e religiosa (ALBERIGO, 1996, p.43).

A hegemonia ocidental foi o tom inicial deste Concílio, mas posteriormente

perdeu força, e a chave de leitura passou a ser a questão ecumênica e pastoral, no

sentido de um “Novo Pentecostes” renovador, que ajudaria a Igreja a dar um salto à

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91

frente, condizente com um novo período histórico, e retirá-la do atraso frente aos

tempos modernos (ALBERIGO, 1996).

Em decorrência do intenso trabalho da comunidade judaica em prol de melhores

relações entre a Igreja, os judeus e o Judaísmo, algumas atitudes contribuiram para o

avanço da Igreja em direção à eliminação do preconceito e da intolerância da Igreja

presentes na liturgia, mesmo antes do Concílio, como foi descrito anteriormente. Em

1959 o Papa João XXIII ordenou que as referências aos judeus como “pérfidos” e

“perfídia” fossem retiradas da oração da Sexta-feira Santa. João XXIII também

determinou a retirada dos livros litúrgicos todas as referências que pudessem soar

ofensivas aos judeus, muçulmanos, protestantes e demais crenças, gesto este saudado

pela comunidade judaica. Em 1959 a seguinte frase foi retirada do Ato de Consagração

da Raça Humana (celebrado como parte da Missa do Sagrado Coração, a Bênção do

Santíssimo Sacramento, a Festa de Cristo Rei, e na primeira sexta-feira de cada mês):

Olhe, finalmente, com os olhos de piedade sobre os filhos daquela

raça, que por muito tempo foi o teu povo escolhido; e que o teu

Sangue, que já foi invocado sobre eles em vingança, agora desça sobre

eles também em uma inundação de limpeza redentora e vida eterna

(HERSHCOPF, 1961, p.24, tradução nossa, grifo meu).

Finalmente, em 1960 esta frase também foi retirada do Batismo de Conversão:

“Horresce Judaicam perfidiam, respue Hebraicam superstitionem”76. Paulo VI,

sucessor de João XXIII, tirou também a oração para que os “cegos judeus” se

convertessem à fé. (BEA, 1968, p.15).

Em 11 de março de 1960 o Cardeal Bea entregou a João XXIII o projeto de

criação de uma Comissão para a unidade dos cristãos, e em 30 de maio de 1960

confirmou o nome oficial do Concílio como Vaticano II (11 de outubro de 1962 a 8 de

dezembro de 1965)77. A atitude de João XXIII marcou a abertura do caminho para que o

diálogo se desenvolvesse a partir do catolicismo, além disso, segundo as palavras de

Faggioli (2013, p.26) “os protagonistas do Vaticano II viveram-no como uma

experiência que influenciou, às vezes de maneira dramática, o seu modo de conceber a

relação entre a Igreja e a tradição, Igreja e cultura, e Igreja e mundo moderno”. O

Concílio durou sete anos desde o seu anúncio até sua conclusão.

76 Significa: “Abomino a infidelidade Judaica, renuncio à superstição Hebraica”. 77 De especial importância para o ecumenismo católico moderno é a encíclica de Pio XII Mystici Corporis

– Corpo Místico (1943) que trata do mistério da Igreja, visível e invisível, do amor e do direito. Em 25 de

Maio de 1995 João Paulo II assinou a encíclica Ut unum sint – Que eles possam ser um - que teve grande

eco nos meios ecumênicos.

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Em 5 de junho de 1960, na Carta Apostólica Motu Proprio Superno Dei nutu –

instituiu o Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos78, para o qual o

jesuíta alemão, padre Agostinho Bea (1881-1968), João XXIII o tornou cardeal-diácono

em 14 de dezembro de 1959, e convidou para ser o primeiro presidente (1960-1968).

Em 1962 foi consagrado bispo. Agostinho Bea nasceu na Alemanha, ordenou-se padre

pela Companhia de Jesus em 1912. Especializou-se em Ciências Bíblicas, e dentre suas

pesquisas dedicou-se ao estudos e ao contato com o mundo Judaico e com os

protestantes. Fora reitor do Instituto Bíblico de Roma e confessor de Pio XII.79

Em 13 de junho de 1960 o Papa recebeu Jules Isaac em uma audiência privada, e

por sua sugestão o texto sobre os judeus foi então solicitado por João XXIII, que

decidiu incluir o tema na pauta conciliar. O dossiê entregue por ele fora encaminhado ao

Cardeal Bea e ao Secretariado e em audiência realizada no dia 18 de setembro de 1960,

o Papa o encarregou de preparar um projeto para o Concílio sobre a relação da Igreja

com o Judaísmo, a Comissão para as relações religiosas com o Judaísmo (BEA, 1966).

Seu texto abordou os Dezoito pontos relativos aos ensinamentos da Igreja Católica que

deveriam ser retificados. (ANEXO A)

Um mês após o encontro com Bea, em 17 de outubro de 1960, João XXIII

recebeu 130 membros do grupo United Jewish Appeal.80

Nesta ocasião, ao encontrar com a comitiva, abriu os braços, num

gesto acolhedor e exclamou: “Sou eu, José, o vosso irmão” – a

expressão remetia ao encontro de José e seus irmãos no Egito. Dois

anos após, em 17 de maio de 1962, cinco meses antes de iniciar o

Concílio, aconteceu um episódio que ficou marcado na história dos

judeus romanos. O Papa, passando pela avenida ao longo do Tibre,

encontrou-se diante da Sinagoga de Roma. Fez parar o carro. Abriu a

capota e abençoou um grupo de judeus que saia do edifício. O Rabino

Elio Toaff testemunhou o fato e recordou que após um estranhamento

compreensível daquelas pessoas, o grupo cercou o automóvel do Papa

78 Foi confirmado pelo Papa Paulo VI como organismo permanente da Santa Sé no dia 3 de janeiro de

1966, (ainda sob o pontificado de Paulo VI, 22 de outubro de 1974 foi fundada a Comissão para as

Relações Religiosas com o Judaísmo), e em continuidade aos trabalhos de João XXIII, publica a Carta

Apostólica Motu Proprio Finis Concilio Oecumenico Vaticano II e amplia o Secretariado para outros

dois: O Secretariado para os Não Crentes (09/04/1965), e o Secretariado para os Não Cristãos

(19/05/1964), que em 28 de junho de 1988, com a publicação da Constituição Apostólica Pastor Bonus,

foi elevado à categoria de Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso e passou a ser a

organização central da Igreja para a animação e a coordenação das iniciativas de diálogo com as outras

religiões. Este Conselho elaborou dois documentos que tratam de aspectos específicos que marcaram o

caminho do diálogo, são eles: Diálogo e Missão (10 de junho de 1984), e Diálogo e Anúncio (1991), em

conjunto com a Congregação para a Evangelização dos Povos. Além destes houve outras iniciativas

decorrentes da Declaração, O Cristianismo e as religiões (1997) da Comissão Teológica Internacional, e

as referências implícitas feitas pelo Papa João Paulo II na Encíclica Redemptor hominis (1979). Cf.

Verbete Nostra Aetate. In: PASSOS, João Décio; SANCHEZ, Wagner Lopes (Coords). Dicionário do

Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulos, 2015. pp.666-671. 79 Cf. Verbete Bea, Agostinho. In: PASSOS; SANCHEZ, 2015, pp.51-52. 80 Cf.Verbete Comissões e Grupos Informais de Trabalho. In: PASSOS; SANCHEZ, 2015, p.154.

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aplaudindo-o entusiasticamente. Aquela tinha sido a primeira vez na

história que um Papa abençoava os judeus, e talvez fosse – segundo

Toaff – o primeiro gesto de reconciliação (COELHO, 2012, p.97).

O Cardeal Bea esteve envolvido na preparação do esquema que serviria como

base para a subcomissão criada com a participação dos especialistas que contribuiriam

na apresentação, de forma mais aprofundada, dos temas propostos. Portanto, Bea foi o

responsável pelo grupo de trabalho que no desenvolvimento dos esquemas criou uma

rede de contatos, inclusive com as comunidades judaicas e suas principais associações

na França, Estados Unidos e Israel. Dentre elas o Comitê Judaico Americano (CJA),

cujos representantes reuniram-se com o Cardeal em 13 julho de 1961. A reunião de

1961 foi realizada em Roma, ocasião em que o Cardeal encontrou-se com membros do

Comitê,81

solicitando um posicionamento diante de efeitos da Doutrina e

Liturgia católica sobre o antijudaísmo. Esta conversa resultou em três

textos consecutivos que destacaram a urgência do combate contra o

antissemitismo e da conscientização pelo impacto das referências

pejorativas aos judeus em discursos e ritos católicos do passado

(Verbete Judaísmo. In: PASSOS; SANCHEZ, 2015, p.506).

Os três textos resultantes deste encontro foram enviados ao Cardeal como

Memorandos. O primeiro “A Imagem dos Judeus no Ensino Católico”, elaborado por

Judith Hershcopf Banki, datado de 22 de junho de 1961, mas submetido ao Secretariado

em 13 de julho de 1961, ocasião em que representantes do Comitê encontraram-se com

o Cardeal Bea em Roma; o segundo “Elementos Antijudaicos na Liturgia Católica” foi

submetido em 17 de novembro do mesmo ano pelo presidente do Comitê Louis Caplan,

como um complemento do texto anterior; o último “Sobre a Melhoria nas Relações

Católico-Judaicas” foi elaborado por Abraham Joshua Heschel (1907-1972), e

submetido ao Secretariado em 22 de maio de 1962.

O Memorando “A Imagem dos Judeus no Ensino Católico” inicia com uma

explanação sobre o valor do ser humano e indaga a respeito das razões que levaram à

indiferença cristã diante da perseguição aos judeus ao longo da história, mas

principalmente em relação ao extermínio de milhões pelo regime nazista, ainda que o

reconheça como um movimento secular e econômico, e não religioso. Porém, afirma

81 O Secretariado também foi encarregado da prepar os convites aos representantes das igrejas “não

católicas”, ou seja, líderes das Igrejas históricas: anglicana, ortodoxas e protestantes; líderes das

comunidades e federações eclesiais; e dos observadores delegados. Estíma-se que em junho de 1959

foram enviadas 2.594 cartas-convite, das quais 1.998 foram respondidas.

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que a hostilidade e a indiferença por parte dos cristãos poderiam ser decorrentes de uma

cultura de desprezo semeada em países de tradição cristã, que anestesiara a consciência

dos cristãos. Mesmo assim, o texto reconhece que no percurso histórico houve também

a proteção da Igreja aos judeus, no entanto, caracteriza a atitude do mundo cristão em

direção aos judeus como ambígua, e que a mesma persistiu em nosso próprio tempo.

Assim destaca que,

hoje, o preconceito contra qualquer grupo religioso inevitavelmente

enfraquece todo o tecido da sociedade, degrada tanto os inimigos

como as vítimas, e tira a força espiritual de toda a humanidade.

Hostilidade entre fieis de diferentes credos serve apenas para avançar

a causa das forças antirreligiosas. Nesta hora de perigo, todos aqueles

que partilham a herança espiritual da Bíblia devem estar unidos se a

humanidade sobreviver (HERSHCOPF, 1961, p.2, tradução nossa).

Por outro lado expõe uma preocupação em relação à persistência do preconceito

religioso, permeado por fatores sociais, econômicos e políticos, mesmo após a Shoah.

Neste ponto o texto torna-se incisivo em relação à ambiguidade da Igreja que contradiz

seus preceitos de amor e caridade. Por um lado condena o antissemitismo, mas por

outro, seus ensinamentos tanto distorcem quanto difamam o Judaísmo e os judeus,

podendo novamente levar à hostilidade e ao desprezo, por serem disseminados com a

aprovação da mais alta autoridade moral e espiritual, a Igreja.

Nesta direção, o texto afirma que as omissões, tudo o que é deixado de

mencionar sobre o Judaísmo e como ele é representado nos ensinamentos da Igreja, são

tão prejudiciais quanto as afirmações distorcidas ou incorretas, e as comparações

injustas ou imprecisas. Além disso, a ênfase dada “aos judeus” no sentido pejorativo,

define as atitudes e os valores em relação aos judeus, e favorce o preconceito e a

intolerância. Nisto importa discernir os judeus, e os representantes da religião judaica

que foram hostis a Cristo e incitaram o ódio, daqueles que em sua maioria vivia na

mesma época, criam em Jesus Cristo e o seguiam, ou, nem mesmo o haviam conhecido.

Cabe entender, portanto, que havia tanto os inimigos, como os amigos de Jesus Cristo

dentre os judeus daquele tempo.

Isto estende-se a uma nova percepção do Judaísmo vivido naquela época que

valorize a religião dos Filhos de Israel, o Povo Hebreu, e não apresentá-la somente

como uma religião legalista, preocupada apenas com observâncias externas, desprovida

de amor, misericórdia e compaixão. E ainda lembrar que o Cristianismo tem suas raízes

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no Judaísmo, mas não o substituiu, pois este não deixou de existir com a fundação do

Cristianismo, nem devido à destruição do Templo, mas permanece uma fé viva.

Enfim, o texto afirmou que seria incorreto transferir qualquer ação injusta, como

a crucificação de Jesus, a todo povo Judeu daquele tempo, como das gerações

porteriores, de forma generalizada, simplificada e parcial, que caracterize uma culpa

coletiva, e, consequentemente, os estigmatize como um povo rejeitado e amaldiçoado

por Deus.

O segundo Memorando sobre os “Elementos Antijudaicos na Liturgia Católica”,

submetido em 17 de novembro de 1961 pelo presidente do CJA Louis Caplan,

complementa o Memorando anterior, e na mesma linha de melhorar as relações entre

católicos e judeus, enfatizou as passagens mencionadas na liturgia católica romana que

são hostis aos judeus, assim como os comentários tradicionalmente evocados

contribuem para atitudes e comportamentos antijudaicos.

A nossa esperança é que o presente documento, que incide sobre

certas passagens da liturgia católica, as quais consideramos

prejudiciais aos judeus, será aceito pela Secretaria como uma tentativa

construtiva de enfrentar fontes de incompreensão e hostilidade entre

católicos e judeus (CJA, 1961, p.1, tradução nossa).

O Memorando concentrou-se nos livros litúrgicos da Igreja, que servem ao culto

público em igrejas paroquiais e catedrais; e nas homilias e comentários oficialmente

aprovados para a liturgia pública que orientam e informam os sacerdotes na preparação

dos sermões, mas, sobretudo, a liturgia realizada na Semana Santa, o Tríduo Pascal, e a

relação entre esta e os maus-tratos aos judeus.

O quarto Evangelho, de João, destacou-se por seu impacto sobre os sentimentos

e as atitudes dos católicos em relação aos judeus. O termo “os judeus” é utilizado para

designar somente os inimigos de Jesus, e os comentários negativos sobre os judeus

podem ser estimulados quando passagens isoladas do Evangelho foram inseridas na

liturgia da Igreja na Sexta-feira Santa, na qual os judeus, como povo, são retratados

como impiedosos, vingativos, e são mantidos coletivamente como responsáveis pela

crucificação de Jesus, e, consequentemente, estigmatizados como “deicidas”.

O Memorando também abordou a questão de que o povo Judeu é visto como

destinado ao “cálice da ira Divina”, amaldiçoado, e infieis. Destacou-se por fim os

estereótipos mais comuns encontrados na liturgia católica:

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1. Se os judeus prosperam em um país durante um certo tempo, isto é

interpretado como indicação de que eles são materialistas pouco

escrupuloso e adoradores do Bezerro de Ouro.

2. Se os judeus são oprimidos ou suas vidas tornam-se miseráveis pelo

poder temporal, isto é interpretado como prova de que eles são um

povo desprezado, fugitivos e errantes até o fim dos tempos. O

sofrimento do povo Judeu é visto, não como uma indicação da

brutalidade do homem e desumanidade para com o seu semelhante,

mas como prova de que os judeus são um povo amaldiçoado: “[...] é a

partir da condição inferior, infligida aos Judeus por Cristãos, que os

mesmos Cristãos, em seguida, fingem provar a vitória da Igreja

através da Sinagoga e a superioridade da fé Cristã” (BAUM, Gregory,

O.S.A., The Jews and the Gospel: A Reexamination of the New

Testament, Westminster, Md., Newman Press, 1961, p.7).

3. A língua do Antigo Testamento e seu senso de justiça é, em geral,

criticada como colérica, de pouca piedade, severa e implacável. No

entanto, quando esta língua se volta contra os judeus, como na

literatura profética, os teólogos cristãos a consideram eminentemente

apropriada e adequada. Em vez de adotar uma perspectiva autocrítica

e de autocorreção consubstanciada nos Escritos proféticos, e aplicando

os mesmos padrões para a comunidade cristã, a grande maioria dos

comentaristas usa essas passagens como uma polêmica contra os

judeus.

4. Quase todas as homilias ressaltam o fato de que os judeus são um

povo disperso e que não possui Jerusalém, a Cidade Santa. Tais

comentários não são apenas anacrônicos à luz dos acontecimentos

mundiais recentes, mas eles dão a impressão lamentável de que os

comentaristas fazem um julgamento político sobre o eventos atuais.

(Na verdade, a mentalidade formada por estas interpretações podem

predispor um escritor a ver a história atual com os olhos

preconceituosos) (CJA, 1961, pp.18-19, tradução nossa).

Finalmente é encerrado afirmando que a maioria dos judeus está profundamente

convencida de que a acusação de “deicídio”, proferida ao longo dos séculos, tem sido

um fator central para a persistência do antissemitismo na civilização ocidental. Por isso

solicita que a liturgia da Igreja, especialmente o Tríduo Pascal, seja retificado

considerando que, mesmo após 1945 e os horrores dos campos de concentração, a

mesma persistia na liturgia da Igreja.

O último texto “Sobre a Melhoria nas Relações Católico-Judaicas”, elaborado

por Abraham Joshua Heschel (1907-1972), foi submetido ao Secretariado em 22 de

maio de 1962. As primeiras considerações de Heschel dizem respeito à origem comum

do Judaísmo e do Cristianismo, a crença no Deus criador que está envolvido na história

humana, e que o homem é um instrumento em Suas mãos; a necessidade da redenção

final; a crença nos profetas, através dos quais a vontade de Deus tornou-se conhecida. O

Memorando destaca a questão da justiça e da misericórdia de Deus agindo na história

através do homem, como uma missão confiada ao ser humano.

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Em nenhum momento a terra tem sido tão encharcada com sangue; em

nenhum momento o homem foi menos sensível à Deus. Uma era de

suprema angústia e horror extremos pede palavras de suprema

grandeza espiritual e ações de força moral que purificarão a vida de

muitas gerações que virão (HESCHEL, 1962, p.5, tradução nossa).

O texto segue afirmando que o Concílio Ecumênico é uma oportunidade

excepcional para que a Igreja possa exercer sua influência moral, e reafirmar sua

oposição à perseguição e à intolerância, condenando o pecado do antissemitismo, e

emitindo uma declaração salientando a gravidade deste pecado, e sua incompatibilidade

com o Catolicismo e a moralidade. Para tanto, o autor volta-se novamente para a

necessidade de uma rejeição do falso ensino religioso propagado ao longo da história.

Na mesma linha dos memorandos anteriores, os pontos centrais convergem para

a acusação coletiva da crucificação de Cristo, “deicício”; por considerar o povo Judeu

amaldiçoado; e condenado a sofrer privação e vagar em um estado permanente de

exílio. Portanto, todos os que estão encarregados da missão de pregar e ensinar na Igreja

são responsáveis pela orientação espiritual correta de seus fieis. O texto lembra que no

próprio ensinamento da Igreja a morte de Jesus faz parte do plano redentor de Deus,

para qual Jesus Cristo fora predestinado a fim de redimir toda a humanidade.

O genuíno amor consiste em que os judeus sejam aceitos como judeus, e para

tanto seria necessário um conhecimento que contemple aspectos positivos, sem

distorção, sobre a vida e a espiritualidade judaicas, a dimensão moral de sua existência,

e assim, eliminar os estereótipos depreciativos e abusivos. Desta forma, o conhecimento

proposto por Heschel é mútuo, assim ele propõe dois níveis para que ambas

comunidades de fé atuem juntas em cooperação e aproximação, para que por outro lado,

os judeus também tenham acesso e conhecimento das lutas travadas pela Igreja em sua

defesa: “Assim, mais conhecimento e troca de informações são necessários em dois

níveis; conhecimento e compreensão do Judaísmo como uma religião viva; e uma visão

honesta, sem rancor das relações entre Católicos e Judeus no passado e no presente”

(HESCHEL,1962, p.9, tradução nossa).

Por tudo o que foi exposto no texto, Herschel acrescenta ainda uma reflexão

sobre a justiça e a injustiça, em que a primeira deve ser a suprema preocupação do

homem. Quando o mal é tolerado, algo muito pior se manifesta: a indiferença em

relação ao mal e à injustiça, quando o ser humano permanece neutro ou imparcial.

Assim, cientes da complexidade das questões envolvidas no Memorando, o texto

é encerrado sob uma perspectiva positiva e revolucionária, na expectativa de uma

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declaração proveniente do Concílio Ecumênico, e o que poderia representar no longo

prazo. E ainda fez dois pedidos, que uma comissão permanente fosse estabelecida no

Vaticano a fim de eliminar o preconceito e cuidar das relações Cristãs-Judaicas em todo

lugar; e que cada diocese estabelecesse uma comisssão semelhante, com a finalidade de

promover as exigências da justiça e do amor (HESCHEL,1962, tradução nossa).

Em 6 de agosto de 1962, o Secretariado foi confirmado como Comissão

Conciliar. Durante sete meses, de 7 de novembro de 1961 a junho de 1962, a Comissão

preparatória Central do Concílio examinou mais de setenta esquemas preparados pelas

diversas Comissões preparatórias, dentre os quais, o que fora preparado pelo

Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos, que trataria, também, da atitude

em relação às demais religiões.

Para se chegar ao texto final, um intenso trabalho desenvolveu-se nos bastidores

do Concílio, e mesmo antes do Concílio, envolvendo uma série de atores que

contribuiriam para sua construção, pois o texto fora articulado, pensado, trabalhado,

antes e durante as Sessões Conciliares, até que fosse aprovado.

O especialista, Cardeal John M. Oesterreicher, por seu profundo conhecimento,

iria escrever o documento sobre a relação da Igreja com o povo Judeu durante a

preparação do Concílio Vaticano II. Sua contribuição na preparação do texto serviria de

base para o desenvolvimento deste tema e a futura Declaração Nostra Aetate.

O Instituto para Estudos Judaico-Cristãos da Seton-Hall University, fundado por

John M. Oesterreicher, enviou a João XXIII, com a data de 8 de junho de 1960, suas

sugestões sobre o tema da natureza da Igreja em relação aos judeus, elaboradas por

Oesterreicher e demais signatários. Oesterreicher mais tarde descreveu esta “petição”

como “pedidos mínimos [...] limitados a certos pontos essenciais”, já que a natureza e o

âmbito do Concílio ainda não eram conhecidos. 82

As sugestões concentraram-se em alguns aspectos principais nos quais o

Concílio deveria investigar e anunciar, por exemplo: o Documento referiu-se à vocação

de Abraão e à libertação de Israel do Egito como parte da gênese da Igreja, para que ela

pudesse dignamente e com razão ser chamada de “o Israel de Deus” (Gl 6,16), o Israel

renovado e exaltado pela palavra e pelo sangue de Cristo. Nisto consistia a maneira

82 Os signatários incluíram o futuro Bispo John J. Dougherty, e Revs. Gregory Baum, Myles M. Bourke,

Joseph Brennan, J. Edgar Bruns, Edward H. Flannery (futuro especialista em relações católico-judaicas

para os Bispos dos EUA), Isaac Jacob, Edward G. Murray, William Ryan, Ambrose Shaeffer, Quentin L .

Schaut. O Documento na íntegra: Disponível em: <http://www.ccjr.us/dialogika-resources/documents-

and-statements/roman-catholic/second-vatican-council/naprecursors> Acesso em: 20 dez. 2015, tradução

nossa.

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como a Igreja veria a si mesma, ou seja, por meio de um novo olhar sobre os atos que

acompanharam o Êxodo de Israel, tornando-se consciente da história ininterrupta de

salvação, a Graça de Deus presente orientando a humanidade.

Deste modo foi sugerido que a Igreja desse maior expressão litúrgica para a

unidade da história da salvação, no sentido de renová-la, especialmente na

administração das orações dos sacramentos, reconhecendo na Vigília Pascal que Deus

salvou Israel da perseguição Egípcia, e agora extendia a salvação a todas as nações

através das águas da regeneração, e formara um só Povo. Neste espírito, a oração

pronunciada na Vigília Pascal deveria terminar com um pedido, que é característica da

compreensão da Igreja de si mesma: “Fazei com que o mundo inteiro possa

compartilhar a dignidade de Israel e todos tornem-se filhos de Abraão”.

O caminho para se alcançar a consciência de tal unidade ininterrupta de salvação

seria por meio das Missas e também por meio de festas comemorativas, como a festa

dos Justos do Primeiro Testamento, que já era praticada pelo Patriarcado de Jerusalém.

Os signatários destas recomendações acreditaram que muito poderia ser adquirido pela

introdução e expansão destas festas em toda a Igreja, pelas quais os fieis aprenderiam,

não de forma mecânica, pois seria parte de suas vidas, assim como o relacionamento

entre cristãos e judeus. A renovação litúrgica ao longo destas linhas certamente levaria

ao crescimento no amor e gratidão entre os fieis, “pelo amor que Cristo teve por seus

parentes”.

Finalmente, sugeriram que o Concílio voltasse sua atenção aos problemas do

nosso tempo, que a Igreja denunciasse, como fez no passado, o ódio às pessoas por

motivo de “raça”, (Rm 9,5), a partir dos quais (os judeus) Cristo veio, segundo a carne,

Ele que é Deus. E que frases enganosas que distorcem o verdadeiro ensinamento da

Igreja e sua real atitude para com os judeus deveriam ser alteradas, em especial nas

lições do Ofício Divino (Liturgia das Horas).

A apresentação dos esquemas foi realizada em quatro etapas ou assembleias

durante a fase preparatória do Concílio. A primeira assembleia do Secretariado ocorreu

em novembro de 1960, sob os cuidados dos especialistas Gregory Baum (1923) e John

Oesterreicher (1904-1993), escolhidos por Bea como peritos conciliares.

Gregory Baum elaborou uma primeira reflexão discutida na segunda assembleia

geral do Secretariado realizada entre 6 e 9 de fevereiro de 1961, que resultou em um

pedido ao Cardeal Oesterreicher para que elaborasse mais um estudo sobre o tema. As

palavras de Baum sinalizam a pressão exercida sobre a Igreja.

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Temos aqui um caso, frequentemente encontrado na história da Igreja,

em que uma decisão prática da parte das Igrejas, em resposta a um

evento significativo, precede a reflexão dogmática e, de fato, torna-se

guia para um futuro desenvolvimento doutrinal (BAUM, G. In:

FLEISCHNER, 1977, p.113, tradução nossa)

O texto foi apresentado na terceira assembleia geral realizada entre os dias 16 e

21 de abril do mesmo ano. Os estudos levantados por Baum e Oesterreicher resultaram

no Documento Quaestiones de Judaeis, aprovado pelo Secretariado em maio de 1961,

apresentado e debatido em sua quarta assembleia geral, ao final de agosto de 1961,

ainda na fase preparatória do Concílio. Após a assembleia foi necessário realizar alguns

ajustes, que ao final de novembro ficaram prontos. O resultado foi o esquema nomeado

Decretum de Iudaeis83 (Verbete Judaísmo. In: PASSOS; SANCHEZ, 2015, p. 505).

O Decretum de Iudaeis foi submetido à Comissão Central do Concílio em maio

de 1962, porém, devido às pressões externas em decorrência da presença de um

observador judeu no Concílio, o presidente da Comissão Central, Amleto Giovanni

Cicognani (1883-1973) o rejeitou, fato que ficou conhecido pelas questões ligadas ao

“caso Wardi” (Chaim Wardi), em que o Conselho Mundial Judaico (CMJ) escolheu um

funcionário do ministério para questões religiosas do Estado de Israel como observador

não oficial do Concílio, o que causou protestos por parte do Judaísmo Ortodoxo que

preferiu manter-se longe das questões da Igreja, e também dos países árabes que temiam

uma aproximação entre o Vaticano e Israel, prenunciando o reconhecimento do Estado.

Tal preocupação deu início ao lobby árabe junto às secretarias do

Vaticano, bem como foram encaminhados pedidos de intervenção a

diferentes países. O objetivo era desencorajar os conciliares a dar

sequência ao trabalho de aproximação dos católicos aos judeus

(COELHO, 2012, p.98).

Além disso, diante da oposição e preocupação dos bispos de origem árabe

temendo pelas muitas comunidades cristãs que viviam em terras do Islã, principalmente

as existentes em países vizinhos a Israel, e da interpretação política que se desenvolveu,

o Cardeal Bea suspendeu, pelo menos publicamente, os trabalhos do seu Secretariado.

Diante destes fatos, o esquema sobre os judeus foi cortado da agenda do Concílio. De

acordo com Alberigo (1996) as polêmicas se tornaram mais vívidas e públicas em

83 Disponível em: <http://www.ccjr.us/dialogika-resources/documents-and-statements/roman-catholic/se

cond-vatican-council/na-drafts> Acesso em: 15 nov. 2015. ANEXO B.

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seguida à gafe cometida pelo CMJ fundado em 1936, quando em 12 de junho de 1962

anunciou Dr. Chaim Wardi como observador não oficial no Concílio.84

O Decretum de Iudaeis, de acordo com as explicações do Cardeal Bea, não

tratava de abordar um problema nacional nem político, posto que a Santa Sé ainda não

havia reconhecido o Estado de Israel. Por isso, cinco pontos desvinculados de qualquer

conotação política foram essenciais neste texto. Neles, a Igreja: 1. Reconheceu que os

judeus eram amados de Deus; 2. Reconheceu a herança que a Igreja de Cristo havia

recebido do povo de Israel; 3. Trabalhou para desconstruir a ideia dos judeus como um

povo maldito e rejeitado por Deus por não terem reconhecido Jesus como o Cristo; 4.

Rejeitou o antissemitismo e o ensino de desprezo sobre os judeus presentes na Igreja; 5.

Buscou discernir que a crucificação de Cristo fora perpetrada por uma pequena parte

dos judeus, os quais viviam especificamente naquela época. Finalmente, segundo suas

palavras, lembrou que a Igreja deveria conformar-se com o exemplo de Cristo e dos

Apóstolos.

Portanto, em relação aos judeus, a preocupação do Cardeal foi elaborar um texto

de conteúdo simplesmente religioso, sem dar qualquer margem à interpretações

políticas, cuidado este que, segundo Bea (1968), permitiu um conteúdo isento de

intenção política, e trouxe à Declaração um equilíbrio frente às demais religiões. Neste

sentido, podemos destacar algumas características do Documento no qual o termo

“Povo Judeu”, por exemplo, aparece, apenas uma vez como “povo judaico”, e refere-se

à descendência de Abraão, ou seja, no sentido religioso, por meio do qual os cristãos

possuem um vínculo. Deste modo, a Declaração “expressa sua convicção de que não há

uma ruptura entre a Antiga e a Nova Aliança, mas que ambas compartilham o mesmo

patrimônio espiritual” (Verbete Judaísmo. In: PASSOS; SANCHEZ, 2015, p.505).

Outro aspecto do Documento conciliar é que as Sagradas Escrituras não foram

referidas como escritos puramente históricos, mas como a escritos religiosos. Esta visão

iria proporcionar o encontro entre cristãos e judeus.

É sabido que durante a preparação deste documento conciliar, muito

cuidado se teve de nele pôr em relevo, de modo que, por todos os

meios, fosse fechado o caminho a toda interpretação política, ou, ao

menos, fosse manifesta a sua falsidade (BEA, 1968, p.7).

84 Cf. Coelho (2012, p.98) que, “Chaim Wardi, havia feito intervenções no Conselho Ecumênico das

Igrejas em Nova Déhli, em 1961, participando da elaboração de uma declaração contra o antissemitismo.

Dr. Wardi morava em Israel e teve sua indicação tanto do Congresso Judaico Mundial como dos

Ministérios do Exterior e dos Assuntos Religiosos, o que deu uma conotação fortemente política na sua

indicação como representante judaico junto ao Concílio”.

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A esse respeito é importante esclarecer que o Tratado de Latrão, assinado em 11

de fevereiro de 1929, entre o Papa Pio XI e o Governo italiano de Benito Mussolini,

concedeu ao chefe da Igreja a soberania territorial sobre a Cidade do Vaticano e pleno

direito de engajar-se na diplomacia intemacional. O artigo 24 do Tratado descreve a

postura internacional da Santa Sé.

No que diz respeito à soberania que lhe pertence em matéria

international, a Santa Sé declara que mantém e deve permanecer fora

das rivalidades temporais entre outros Estados e não deve tomar parte

em congressos intemacionais convocados para resolver tais questões,

salvo se as partes em disputa fizerem um apelo conjunto à sua missão

de paz; em qualquer caso, no entanto, a Santa Sé se reserva ao direito

de exercer o seu poder moral e espiritual (JOHNSON, 2001, p.6,

tradução nossa).

Mesmo assim, não podemos afirmar que a motivação para a recepção do tema

sobre os judeus no Vaticano II fosse isenta de uma postura política por parte da Igreja.

Pois a Shoah e a fundação do Estado de Israel em 1948, obrigaram-na a repensar sua

compreensão dos judeus, deste modo, a postura da Igreja só pode ser entendida à luz

destes dois eventos. Ainda como analisa Johnson (2001), a relação entre a Santa Sé e a

Igreja é interdependente, na qual uma não pode funcionar plenamente sem a outra.

Assim, falar de uma função estritamente política ou governamental da Santa Sé,

particularmente nos assuntos internacionais, como oposta à autoridade religiosa da

Igreja, como o Direito Canônico sugere, é uma afirmação sem fundamento que

significaria separar a Santa Sé a partir do corpo ao qual ela representa.

No mesmo dia da declaração de independencia de Israel, um artigo

publicado no Vaticano pelo, L’Osservaiore Romano, articulava em

termos inequívocos a Teologia da Substituição subjacente da Santa Sé

em oposição à soberania judaica na Terra Santa: “Sionismo Moderno

não é o verdadeiro herdeiro do Israel bíblico, mas um Estado secular

[...] portanto, a Terra Santa e seus locais sagrados pertencem ao

Cristianismo, o verdadeiro Israel” (JOHNSON, 2001, p.20, tradução

nossa).

O conflito relativo à Igreja e o movimento Sionista nos remete a algumas

décadas antes da declaração de independência de Israel, em que população Árabe da

Palestina, dentre os quais haviam muitos fieis católicos, manifestou sua preocupação e

já pressionava a Igreja a posicionar-se contra o movimento. Assim, os argumentos

usados pelo Vaticano para combater o Sionismo foram apropriados dos líderes árabes

locais.

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Minerbi apropriadamente resume esses argumentos em quatro pontos

principais que o Vaticano realizou sobre o Sionismo, de 1895 até

meados da década de 1920:

1. Os sionistas não eram religiosos e foram ainda antirreligiosos.

Portanto, eles não foram cumpridores da profecia bíblica e não

tinham nada a ver com o retorno prometido para a Terra Santa;

2. A imigração Sionista poderia varrer os Cristãos para fora da

Palestina e poderia destruir o caráter Cristão do país;

3. A possibilidade de que um Governo Judeu pudesse ser formado era

intolerável;

4. Os judeus estavam causando mudanças radicais no estilo de vida

tradicional da população local. E a modernização acelerada que

induziam foi muitas vezes prejudicial para os valores morais

(JOHNSON apud MINERBI, 2001, p.17, tradução nossa).

Além disso, separar a relação única entre dois irmãos antigos na fé, católicos e

judeus por um lado, e as duas forças políticas poderosas, por outro, a Santa Sé e o

Sionismo, não foi uma tarefa fácil, por sua interseção muitas vezes indistinguível da

motivação religiosa e política dentro da diplomacia do Vaticano, e o movimento

Sionista. Enquanto a Igreja tentou manter a sua posição em relação aos judeus separada

de sua posição sobre o Estado de Israel, na Nostra Aetate a posição política do Vaticano

esteve intimamente ligada à teologia subjacente,

esta complexa mistura de doutrina teológica e preocupações com

política internacional torna difícil separar políticas públicas da Santa

Sé, a partir de ensinamentos teológicos da Igreja Católica em relação

aos judeus e ao Judaísmo (JOHNSON, 2001, p.5, tradução nossa).

Nesta direção, é importante compreender que o vínculo que a espiritualidade

judaica mantém entre o povo, a Torá e a terra (Eretz Israel) é um aspecto que diz

respeito ao diálogo judaico-cristão de difícil compreensão para os cristãos. A Nostra

Aetate reconheceu a fidelidade de Deus e sua aliança com o povo Judeu, em que a posse

da Eretz Israel é central, e isto proporcionou uma oportunidade clara para uma

interpretação teológica positiva do novo Estado Judeu, o que poderia levar ao apoio

político explícito.

Tradicionalmente, o Cristianismo compreendeu-se como uma religião universal,

em que uma geografia terrestre particular é reconhecida nos fatos históricos da vida de

Jesus, durante sua vida e ministério. Ainda que os primeiros cristãos tivessem suas

raízes no Judaísmo, muito cedo, na evolução do Cristianismo, qualquer identificação

com a Eretz Israel como elemento fundante em sua relação com Deus foi por eles

abandonada. Isto ocorre porque a relação do Segundo Testamento com a terra é

diferente das Escrituras Hebraicas. No Segundo Testamento o sagrado não é associado

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ao espaço físico, mas a uma pessoa, o Cristo, que por sua Divindade não está restrito a

este espaço, pois é livre. No entanto, quando considera-se sob uma perspectiva histórica,

a terra onde Jesus Cristo viveu e exerceu seu ministério, há uma relação do sagrado com

a terra, que é vista como cenário para a história da salvação,

esta espiritualização se deve, em parte, ao fato de que a maioria do

público, para o qual os escritos do Novo Testamento foram

endereçados, era Gentil. Esses novos cristãos estavam distantes tanto

da terra como da história da fé de Israel, “uma comunidade para a qual

Jesus Cristo foi a nova Lei e os Profetas, que resume o passado, enche

o presente, e lidera o caminho para o futuro. Para tais cristãos,

portanto, futuras esperanças e expectativas estavam ligadas à figura do

messias martirizado e ressuscitado, e não à promessa da terra”

(JOHNSON apud DAVIS, 2001, p.43, tradução nossa).

Outro fator que contribuiu para o distanciamento dos cristãos em compreender a

autoidentidade do povo Judeu com a Terra foi a tendência da teologia cristã tradicional

de interpretar de forma alegórica as Escrituras Hebraicas, espiritualizando a Terra, os

símbolos, a literalidade das palavras e narrativas provenientes de uma tradição religiosa

que, para os judeus, sempre foi viva e atual.

O Papa Paulo VI (1963-1978), enquanto manteve políticas tradicionais do

Vaticano para eventos na Terra Santa, sua visita ao território de Israel durante a

peregrinação, em janeiro de 1964, (período intervalar após a segunda Sessão, antes da

Nostra Aetate ser adotada), foi um passo significativo em direção à reconciliação,

apesar do não reconhecimento de Israel até aquele momento, da ajuda humanitária aos

refugiados árabes e às comunidades cristãs locais, e da ênfase especial sobre a proteção

dos lugares santos para os cristãos. Vale a pena mencionar que em dezembro de 1969, o

Secretariado divulgou um documento de apoio à melhoria das relações cristãs-judaicas,

reconhecendo a importância do Estado de Israel para os judeus, seu apego a ela que fora

prometida aos seus antepassados, e que o Estado de Israel não deveria ser separado

dessa perspectiva.

Enfim, a formalização de relações diplomáticas entre a Santa Sé e o Estado de

Israel, em 30 de dezembro de 1993, ocorreu décadas após o Concílio. Estas

considerações não têm a intenção de abonar a política colonialista israelense na

Palestina, nem o imenso sofrimento causado a este povo, agora sem a sua terra e sem

pátria, que se esforça por juntar os cacos de sua história, como em um mosaico, a fim de

manter sua identidade.

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105

III.3 PERÍODO CONCILIAR

III.3.1 PRIMEIRA SESSÃO – 11 DE OUTUBRO A 08 DE DEZEMBRO DE 1962

(Período intervalar - 06 de janeiro a 26 de setembro de 1963)

O Concílio foi organizado em 04 Sessões Públicas (com os respectivos

encerramentos públicos) distribuídas ao longo de 03 anos. A primeira Sessão do

Concílio foi realizada entre os dias 11 de outubro e 08 de dezembro de 1962. Nesta

Sessão nenhum documento foi aprovado, e os esquemas preparados pelas comissões

foram rejeitados, porém, foi criada a Comissão Mista (Comissão Doutrinal e o

Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos). No dia 13 dezembro de 1962 o

esquema foi novamente exposto ao Papa e teve sua aprovação, cinco meses antes de sua

morte. A versão revisada, decorrente dos problemas causados pelo então “caso Wardi”,

fora preparada ainda antes da morte do Papa, entre fevereiro e março de 1963, e incluiu

uma breve apreciação de outras religiões (BEA, 1968).

III.3.2 SEGUNDA SESSÃO - 29 DE SETEMBRO A 04 DE DEZEMBRO DE 1963

(Período intervalar – 04 de janeiro a 13 de setembro de 1964)

A nova versão chegou aos Padres conciliares em 8 de novembro de 1963, com

mais de dois anos de preparação, nesta ocasião foi sugerido como quarto capítulo

suplementar ao esquema sobre o ecumenismo, porém, em 21 de outubro de 1963 o texto

foi desvinculado do esquema, pois sua pertinência foi questionada. Sobre isto o Cardeal

esclareceu que o tema deveria ser tratado separadamente uma vez que “é menos estreito

o vínculo entre os cristãos e o Povo Judeu do que as relações que ligam os próprios

cristãos entre si” (BEA, 1968, p.132).

No dia 19 de novembro foi apresentado o esquema ao sucessor de João XXIII,

Paulo VI, sob o título De catholicorum habitudine ad non christianos et máxime ad

iudaeos: A atitude dos católicos em relação aos não cristãos e sobretudo aos judeus85

incluindo os judeus e a liberdade religiosa. O esquema proposto considerou que as

raízes do antissemitismo foram de natureza muito mais ampla e complexa, e abarcavam

questões políticas, sociais, e econômicas, além da religiosa. (Verbete Nostra Aetate. In:

PASSOS; SANCHEZ, 2015, p.668). Apesar de ter sido discutida informalmente, sem

votos, o debate formal foi adiado até a Terceira Sessão.

85 Cf. ANEXO C.

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No entanto, apenas 3 linhas sobre os não cristãos em geral constou no texto, e o

restante referiu-se ao Judaísmo causando algumas reações por parte dos Bispos do

Oriente Médio, que solicitaram a inclusão do Islã; os Bispos da Ásia pediram um

tratamento de modo que incluísse uma reflexão das demais religiões não monoteístas; e

uma minoria de Padres que negou a pertinência de uma declaração sobre os judeus.

Além disso, nesta versão o documento havia incluído a afirmação de que é

errado considerar o povo Judeu como um povo maldito e “deicida”. Porém, na versão

final, apesar de ter sido confirmado que os judeus ali não foram responsáveis pela morte

de Cristo, a palavra que impõe a culpa de “deicídio” foi omitida devido à pressão de

representantes da Igreja de nações muçulmanas e do clero mais teologicamente

conservador, que argumentaram o peso teológico positivo em favor do Estado de Israel

se os judeus fossem absolvidos explicitamente da culpa de “deicídio”.

Em dezembro de 1963 por meio de discussões informais foi produzido um

Apêndice Sobre os Judeus. O Cardeal Bea e seu comitê de redação realizaram uma

revisão que foi apresentada à Secretaria em março 1964 e posteriormente à Comissão de

Coordenação do Conselho. Neste Apêndice enfatizou-se que, de fato, a Igreja acreditava

que “Cristo havia enfrentado livremente sua paixão e morte, por causa dos pecados de

todas as pessoas” e que todos deveriam assegurar que na catequese como na pregação

jamais o povo Judeu fosse apresentado como um povo rejeitado, amaldiçoado, ou

culpado de “deicídio”, nem que fosse ensinado tudo o que poderia dar origem ao ódio

ou desprezo dos judeus nos corações de cristãos.”86

III.3.3 TERCEIRA SESSÃO – 14 DE SETEMBRO A 21 DE NOVEMBRO DE

1964 (Período intervalar - 07 de março a 03 de setembro de 1965)

Alguns meses depois, na medida em que a essência do texto fosse mantida,

levou-se em consideração os demais pareceres dos Padres conciliares, à exceção da

exclusão do texto sobre os judeus. Este foi cuidadosa e novamente revisado, resultando

em um esquema mais amplo. Foi dado um novo nome ao Documento, Declaratio

altera, De iudaeis et de non christianis: Declaração a respeito dos judeus e dos não

cristãos. 87 Este texto foi apresentado ao Conselho em setembro de 1964 pela Comissão

de Coordenação do Conselho. Esta interação fora discutida publicamente nos meios de

comunicação como uma versão “diluída” do projeto anterior não debatido, mas

86 Cf. ANEXO D. 87 Cf. ANEXO E.

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disseminado. Ele também foi oferecido como um apêndice do projeto “Sobre o

Ecumenismo”. O novo material versou sobre os crentes de outras religiões do mundo,

especialmente os muçulmanos; a implicação de que a culpa pela crucificação pode ser

atribuída aos judeus da geração de Jesus; e a reformulação de um parágrafo que na

época foi amplamente interpretado para pedir a conversão dos judeus ao cristianismo.

Ao introduzi-lo em 25 de setembro, o Cardeal Bea deixou claro que sua Secretaria não

era responsável por esta revisão e incentivou os Padres conciliares para fortalecê-la.

Vejamos de forma mais detalhada.

O esquema foi dividido em duas partes iguais, diferentemente do esquema

anterior, na primeira sobre os judeus, deu-se maior ênfase nas prerrogativas do povo

eleito e na esperança da reunião de ambos os povos, do Primeiro e Segundo

Testamentos, conforme dois textos da carta aos Romanos 9, 4 e 11, 25, respectivamente.

Que são israelitas, dos quais é a adoção de filhos, e a glória, e as

alianças, e a lei, e o culto, e as promessas; [...] porque não quero,

irmãos, que ignoreis este segredo (para que não presumais de vós

mesmos): que o endurecimento veio em parte sobre Israel, até que a

plenitude dos gentios haja entrado.88

Ainda em relação aos judeus, retirar a acusação de “deicídio” que para muitos

judeus é a raiz do antissemitismo, e consequentemente das demais perseguições, foi o

ponto central deste texto. Embora este tema tenha sido abordado no esquema anterior,

pesou esclarecê-lo melhor, haja vista o impacto na opinião pública e a expectativa da

comunidade judaica para que neste Concílio houvesse uma declaração pública retirando

tal acusação. Deste modo, nela, deveria haver a justa medida entre não negar os relatos

dos Evangelhos referentes aos atos praticados pela autoridade judaica da época, os

chefes do Sinédrio, e considerar que a condenação e morte de Jesus Cristo fora

praticada, justamente pela falta de consciência de tais Chefes a respeito de quem era

Jesus, e, por conseguinte, de Sua divindade. Além disso, considerar que tal ato fora

praticado por parte dos judeus que viviam naquele tempo, em um contexto social,

político e religioso específico daquele período.

Na segunda parte da Declaração sobre a atitude em relação às religiões não

cristãs, destacamos que não havia Comissão ou Secretariado que pudesse assumir tal

tema até 19 maio de 1964, ocasião em que fora estabelecido o Secretariado para as

88Cf. BÍBLIA. Bíblia Sagrada. Almeida Corrigida Fiel (ACF). São Paulo: Sociedade Bíblica Trinitariana

do Brasil, 2012.

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religiões não cristãs. Segundo Bea (1968) foi a primeira vez na História da Igreja, que

um Concílio expôs os princípios com tanta solenidade, daí sua importância para que se

desse conta, plenamente, do peso que tal questão assumiu.

Deste modo, o Secretariado assumiu a tarefa, e com a ajuda de peritos elaborou

um esquema contendo três eixos principais. Após o esquema ter sido submetido ao

exame da Comissão Coordenadora dos trabalhos conciliares, esta solicitou que fossem

destacadas principalmente três ideias. A primeira referiu-se à irmandade universal,

considerando Deus como Pai de todos os homens; a segunda, de que nenhuma

justificativa haveria para qualquer tipo de discriminação, perseguição e violência por

razões que envolvam questões nacionais ou de “raça”. E, finalmente, acrescentou-se ao

esquema uma menção explícita aos muçulmanos, cujo conteúdo foi aprovado pelas

maiores autoridades no assunto. Tal pedido fora realizado por carta, em 18 de abril de

1964. “A esta decisão procurou o Secretariado obedecer segundo suas forças” (BEA,

1968, p.131).

Como todas os demais assuntos referentes ao esquema já haviam sido discutidos

pelo Secretariado em reunião realizada no mês de março, e diante da complexidade de

tais reflexões que demandaram muito tempo, o esquema da Declaração fora submetido

ao exame e discussão dos Padres Conciliares para que dessem seus pareceres, sem nova

convocação do Secretariado.

Porém, em 3 setembro de 1964, Abraham Joshua Heschel dirigiu-se ao Conselho

de Padres, por meio de um memorando, no qual referia-se à intenção conversionista

contida no texto: “Também é bom lembrar que a união do povo Judeu com a Igreja é

uma parte da esperança cristã”, e fez a seguinte declaração:

Uma mensagem que diz respeito aos judeus como candidatos à

conversão, e proclama que o destino do Judaísmo é o de desaparecer,

será abominado pelos judeus em todo o mundo, e promove,

obrigatoriamente, a desconfiança recíproca, bem como a amargura e o

ressentimento. Estou pronto para ir a Auschwitz a qualquer momento,

se confrontado com a alternativa de conversão ou morte (BOYS,

2013, p.85, tradução nossa).

Entre 25 e 30 de setembro o esquema foi avaliado e debatido pelos Padres

conciliares. Novamente foram feitas mais intervenções, cujas observações foram

consideradas pelo Secretariado de forma imparcial. Desta vez foram apontadas

“supostas conotações políticas em favor do Estado de Israel, a extensão insuficiente

sobre o islã, e a falta de citação explícita de outras religiões como o animismo, o

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budismo e o hinduísmo”, e teve seu título alterado novamente para De Ecclesiae

habitudine ad religiones non christianis – Nostra Aetae: A relação da Igreja com as

religiões não cristãs – Em Nossa Época, já estruturado em cinco parágrafos. Em 7 de

outubro de 1964 foi então sugerido, em uma reunião com a Comissão Coordenadora dos

Trabalhos Conciliares, que o Documento fosse incorporado como décimo sexto artigo

do segundo capítulo do esquema De Ecclesia, por se tratar da atitude da Igreja perante

as demais religiões (Verbete Nostra Aetate. In: PASSOS; SANCHEZ, 2015, p.668).

Em 18 de novembro de 1964, o texto da Declaração foi apresentado aos Padres

conciliares, no dia 20 do mesmo mês tornou-se uma declaração autônoma, e com as

devidas emendas foi submetida à votação em primeira leitura, dividida em três

momentos. No primeiro houve a votação dos três primeiros parágrafos, posteriormente,

votou-se os dois últimos parágrafos (4º e 5º), e finalmente votou-se na Declaração como

um todo, com 1.651 votos positivos dos 1.996 votantes; 99 negativos; 14 inválidos.

Nos meses de março e maio de 1965, período intervalar, o texto foi examinado

novamente devido aos 242 votos “sim, com reserva”, incorporados aos 1.651 positivos,

de acordo com o regulamento do Concílio. As dificuldades ainda não haviam

terminado, e a versão foi novamente apresentada com algumas considerações

importantes para o resultado final.

Alguns pontos foram cruciais nesta última revisão, que para Bea (1968, p.139,

grifo dele) houve a preocupação no sentido de que o texto “fosse quanto à substância

fielmente conservado”. Primeiramente, esclareceu que, quanto aos três primeiros

parágrafos, uma descrição que exponha as características de cada religião, a diferença

entre elas, e em relação à religião católica, não fazia parte do objetivo da Declaração,

mas sim o vínculo, aquele elemento que as une e fundamenta o diálogo, a comunicação

e a colaboração entre elas.

Em relação ao quarto parágrafo, sobre a relação com os judeus, muitas

observações foram postas, o que o tornou um texto complexo, articulado e de grande

relevância não só para católicos e judeus. Viagens foram realizadas a fim de estabelecer

contato com hierarquias católicas e não católicas, das quais vieram as maiores

dificuldades em relação ao texto. Neste sentido, o texto destacou que o repúdio a

quaisquer perseguições, e ao racismo, que estendia-se a todos os homens e ao povo

Judeu, e que, portanto, a Igreja fora motivada não por razões políticas, mas, pelo amor

evangélico.

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110

III.3.4 QUARTA SESSÃO – 14 DE SETEMBRO A 08 DE DEZEMBRO DE 1965

Após estas etapas a versão final aperfeiçoada da Declaração foi apresentada,

debatida e votada em outubro de 1965, ocasião em que aos bispos do Concílio o Cardeal

Bea explicitou as características do Documento e seu objetivo. O resultado foi o texto

final submetido à votação nos dias 14 e 15 de outubro de 1965. Houve 1.763 votos

positivos; 250 negativos; 10 nulos, dos 2.023 votantes.

A Nostra Aetate situou-se em um determinado contexto histórico, político e

teológico, nos quais a Declaração foi elaborada sob os efeitos da Segunda Guerra

Mundial, do genocídio dos campos de concentração, da criação do Estado de Israel, e,

do Vaticano II. A criação do Estado de Israel, como vimos, desempenhou um enorme

papel na elaboração da Declaração, especialmente nos bastidores, liderada pelos bispos

católicos árabes. Por causa de sua pressão optou-se por referir-se aos Judeus, em sentido

religioso, quanto povo, e a palavra Israel, foi omitida deliberadamente pela proximidade

com o Estado, para que não justificasse qualquer intenção política no Documento

conciliar. Nisto consiste o conteúdo proposto pela Nostra Aetate na relação com o

Judaísmo, um texto politicamente articulado, em que a Shoah e o Estado de Israel

estiveram, ao mesmo tempo, ausentes e presentes no Vaticano II.

Após três anos de luta e oposição processual e política, a Declaração foi

finalmente aprovada e promulgada. Na última votação realizada em 28 de outubro de

1965, a Declaração obteve 2.221 votos positivos; 88 negativos; 1 nulo; e 2 “com

reserva”, não admitidos dos 2.312 votantes, superando a votação de 1964. É um

documento de cinco parágrafos, o mais breve do Concílio, e, dentre as religiões

mencionadas, como vimos, um espaço maior foi dedicado à judaica. O Documento se

insere no desafio de uma convivência harmônica diante da pluralidade das culturas e

religiões mundiais. E neste contexto, a Igreja se vê na função de promover esta

harmonia, além de “considerar sua relação com outras religiões não cristãs” 89(BEA,

1968, pp.17-18). 90

A Declaratio de ecclesiae habitudine ad religiones non christianas - Nostra

Aetate, dentre os nove Documentos conciliares aprovados foi a que abordou a relação da

Igreja com as religiões não cristãs, pelo qual dá se especial ênfase ao Hinduísmo, ao

Budismo, ao Islã, e ao Judaísmo, mas não menciona outras tantas religiões mundiais. O

89Declaração Nostra Aetate. Disponível em: <http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_cou

ncil/ documents/vat-ii_decl_19651028_nostra-aetate_po.html> Acesso em 20 julho de 2015. ANEXO F. 90 Para mais detalhes da Cronologia Geral do Concílio Vaticano II. In: PASSOS, João Décio; SANCHEZ,

Wagner Lopes (Coords). Dicionário do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulinas/Paulus, 2015.

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termo colloquium aparece várias vezes nos textos conciliares. Porém, este Documento

foi “classificado como ‘declaração’, categoria mais baixa na Hierarquia compromissal

estabelecida pelos 16 resultados oficiais promulgados no decorrer do Vaticano II”,

como mencionamos anteriormente, é um ponto de partida, um referencial básico para

inúmeros estudos acadêmicos relacionados à Teologia das Religiões e para católicos

engajados nas questões que envolvem o diálogo inter-religioso, ou seja, um texto que

expressa a disposição da Igreja para que ocorra o diálogo (Verbete Nostra Aetate. In:

PASSOS; SANCHEZ, 2015, p.666).

Assim, o parágrafo quarto foi aprovado em determinados eixos que

corresponderam aos trabalhos desenvolvidos no período anterior ao Concílio, e em certa

medida, redefinidos. Resumidamente são: 1. O vínculo espiritual, a relação entre Israel e

o mistério da Igreja pelo qual os cristãos estão ligados espiritualmente a Abraão como

filhos, e à salvação prefigurada no êxodo; 2. A relação de continuidade da história da

salvação trouxe à lembrança que o Cristianismo tem suas raízes no povo Judeu e no

Judaísmo, como a origem judaica dos Apóstolos, de Maria, e de Jesus. Assim a Aliança

e o amor de Deus pelos judeus trouxeram uma nova compreensão da relação entre a

Igreja e esta Aliança com o povo Judeu, embora, a Igreja seja o novo Povo de Deus; 4.

A “deploração” do antissemitismo, que reprova toda perseguição e ódio aos judeus, na

versão inicial pode-se ler que a Igreja “condena” o ódio e as perseguições, enquanto que

no texto final encontramos “deplora ou reprova”, uma clara atenuação; 5. A afirmação

de que a condenação de Cristo fora perpetrada por uma minoria específica daquele

tempo, e que sua Paixão foi um ato voluntário, motivado por Seu amor, para remissão

dos pecados e salvação de toda humanidade. A palavra “deicídio” sequer apareceu na

versão final; 6. O cumprimento escatológico da salvação universal em Cristo; 7. A

prática da estima e da colaboração mútua por meio dos estudos e do diálogo, em que a

nova relação entre judeus e cristãos deveria ser fruto de uma experiência para que

pudesse ser compreendida teologicamente, também foi um alerta para que não haja um

retorno ao ensino de desprezo.

Enfim, a Declaração Nostra Aetate é um texto que diz respeito a um tópico

particular, endereçado não à Igreja, mas aos de fora dela, e a parte que se refere aos

Judeus sobreviveu às inúmeras tentativas de excluí-la da pauta do Vaticano II. Além

disso, todas as citações são das Escrituras, sola Scriptura, sem a tradição. O tom de

reparação expressou-se no quarto e mais extenso parágrafo destinado ao Judaísmo, e

nele houve a busca pelos aspectos comuns, ou melhor, o “patrimônio comum com os

judeus”, uma expressão da reforma litúrgica realizada neste Concílio. Nas palavras de

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Gregory Baum, foi a mudança mais radical no magistério ordinário da Igreja Católica,

pois alterou substancialmente a tradição anterior referente aos judeus. Eis a Nostra

Aetate, quarto parágrafo referente à religião judaica:

Sondando o mistério da Igreja, este sagrado Concílio recorda o

vínculo com que o povo do Novo Testamento está espiritualmente

ligado à descendência de Abraão.

Com efeito, a Igreja de Cristo reconhece que os primórdios da sua fé e

eleição já se encontram, segundo o mistério divino da salvação, nos

patriarcas, em Moisés e nos profetas. Professa que todos os cristãos,

filhos de Abraão segundo a fé (Gl 3,7), estão incluídos na vocação

deste patriarca e que a salvação da Igreja foi misticamente prefigurada

no êxodo do povo escolhido da terra da escravidão. A Igreja não pode,

por isso, esquecer que foi por meio desse povo, com o qual Deus se

dignou, na sua inefável misericórdia, estabelecer a antiga Aliança, que

ela recebeu a revelação do Antigo Testamento e se alimenta da raiz da

oliveira mansa, na qual foram enxertados os ramos da oliveira brava,

os gentios (Rm 11,17-24). Com efeito, a Igreja acredita que Cristo,

nossa paz, reconciliou pela cruz os judeus e os gentios, de ambos

fazendo um só, em Si mesmo (Ef 2,14-16).

Também tem sempre diante dos olhos as palavras do Apóstolo Paulo a

respeito dos seus compatriotas: “Deles é a adoção filial e a glória, a

aliança e a legislação, o culto e as promessas; deles os patriarcas, e

deles nasceu, segundo a carne, Cristo” (Rm 9,4-5), filho da Virgem

Maria. Recorda ainda a Igreja que os Apóstolos, fundamentos e

colunas da Igreja, nasceram do povo judaico, bem como muitos

daqueles primeiros discípulos, que anunciaram ao mundo o Evangelho

de Cristo.

Segundo o testemunho da Sagrada Escritura, Jerusalém não conheceu

o tempo em que foi visitada (Lc 19,44); e os judeus, em grande parte,

não receberam o Evangelho; antes, não poucos se opuseram à sua

difusão (Rm 11,28). No entanto, segundo o Apóstolo, os judeus

continuam ainda, por causa dos patriarcas, a ser muito amados de

Deus, cujos dons e vocação não conhecem arrependimento (Rm

11,28-29). Com os profetas e o mesmo Apóstolo, a Igreja espera por

aquele dia, só de Deus conhecido, em que todos os povos invocarão a

Deus com uma só voz e “o servirão debaixo dum mesmo jugo” (Sf

3,9; Is 66,23; Sl 65,4; Rm 11,11-32).

Sendo assim tão grande patrimônio espiritual comum aos cristãos e

aos judeus, este sagrado Concílio quer fomentar e recomendar entre

eles o mútuo conhecimento e estima, os quais se alcançarão sobretudo

por meio dos estudos bíblicos e teológicos e com os diálogos

fraternos.

Ainda que as autoridades dos judeus e os seus sequazes urgiram a

condenação de Cristo à morte (Jo 19,6) não se pode, todavia, imputar

indistintamente a todos os judeus que então viviam, nem aos judeus do

nosso tempo, o que na Sua Paixão se perpetrou. E embora a Igreja

seja o novo Povo de Deus, nem por isso os judeus devem ser

apresentados como reprovados por Deus e malditos, como se tal coisa

se concluísse da Sagrada Escritura. Procurem todos, evitar que, tanto

na catequese como na pregação da palavra de Deus, se ensine seja o

que for que não esteja conforme com a verdade evangélica e com o

espírito de Cristo.

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Além disso, a Igreja, que reprova quaisquer perseguições contra

quaisquer homens, lembrada do seu comum patrimônio com os

judeus, e levada não por razões políticas mas pela religiosa caridade

evangélica, deplora todos os ódios, perseguições e manifestações de

antissemitismo, seja qual for o tempo em que isso sucedeu e seja

quem for a pessoa que isso promoveu contra os judeus.

De resto, como a Igreja sempre ensinou e ensina, Cristo sofreu,

voluntariamente e com imenso amor, a Sua paixão e morte, pelos

pecados de todos os homens, para que todos alcancem a salvação. O

dever da Igreja, ao pregar, é portanto anunciar a cruz de Cristo como

sinal do amor universal de Deus e como fonte de toda a graça (NA4;

ANEXO F).

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CONCLUSÃO

Extrair os componentes que favoreceram a reconciliação entre cristãos e judeus,

e deles forjar uma nova atitude, foi uma tarefa que requereu um longo esforço,

pesquisas, contatos e articulações entre representantes de ambas comunidades. Porém,

os apelos à mudança só foram de fato ouvidos após a Shoah, que forçou a Igreja a

reposicionar-se teologicamente em direção à abertura ao diálogo. Tal qual o trabalho

desenvolvido pelo artífice que utiliza o cadinho para purificar o ouro, esses homens e

mulheres, judeus e cristãos, contribuíram corajosamente para trazer à memória e extrair

o que de mais precioso há entre as duas tradições. Juntos, romperam séculos de

separação, indiferença, desprezo e ódio.

Ao longo desta pesquisa pudemos verificar os principais elementos que deram

forma ao amplo processo de aproximação judaico-cristão, e à sua reconciliação até o

Vaticano II. Houve o despertar da Igreja frente à necessidade de abrir-se ao mundo

moderno, aos irmãos cristãos e judeus, e às demais religiões mundiais. Como foi dito,

reagir, romper e renovar, resumem a importância deste evento e de seus protagonistas, o

Papa João XXIII, com 81 anos, o Cardeal Agostinho Bea, também com 81 anos, e o

historiador judeu francês Jules Isaac, com 85 anos de idade, na ocasião em que houve a

abertura do Vaticano II, em 1962.

Em resposta aos nossos questionamentos, concluímos que nossas hipóteses

foram confirmadas pelas seguintes razões: devido à pressão externa que a pauta sobre os

judeus fora incluída no Concílio, sendo o parágrafo mais extenso da Nostra Aetate.

Constatamos que a NA4 foi elaborada em meio à oposição de uma minoria

conservadora da Igreja e dos questionamentos levantados pelo clero das Igrejas

católicas orientais em relação ao Estado de Israel, e sua influência na elaboração do

Documento, por esta razão, a Nostra Aetate foi o documento mais político do Vaticano

II. E em decorrência destes fatos, a teologia católica também seguiu o fluxo de tais

mudanças. Do mesmo modo, reconhecemos o grande avanço no diálogo cristão-judaico

e concordamos que as recomendações feitas pelos representantes da Religião Judaica,

foram, em sua maioria, contempladas no Documento, embora tenha permanecido a

tensão quanto aos elementos proselitistas, por exemplo, “Com efeito, a Igreja acredita

que Cristo, nossa paz, reconciliou pela cruz os judeus e os gentios, de ambos fazendo

um só, em Si mesmo” (NA4).

Expondo nossa conclusão de forma mais detalhada, em nossa explanação sobre a

evolução do conceito de diálogo e as novas possibilidades trazidas pela teologia cristã

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das religiões, foi possível constatar que o princípio do diálogo foi recepcionado no

Concílio por força das diferenças, e sobre tais realidades amadureceu. Isto significa que

o diálogo foi trabalhado no âmbito interno da Igreja, entre os cristãos, na alteridade

frente às demais tradições, e aos valores modernos, em particular, a ciência e a

democracia, que, somados, confrontaram a atitude histórica autoritária da Igreja. Por

conseguinte, o entendimento do conceito de diálogo inter-religioso no Vaticano II

aplicou-se, sobretudo, à própria Igreja. Durante o período conciliar, a consciência de sua

necessidade e importância foi ampliada e compreendida progressivamente, um caminho

percorrido ao longo daqueles seis anos, desde seu anúncio até o encerramento (1959-

1965).

No entanto, mesmo que a lógica inclusivista, ou o Modelo de Complementação

tenha rompido com a apologética autoritária do Modelo de Substituição ou

Supersessionismo, e aprofundado o significado do traço judaico de Jesus, verificamos

que persistir na ideia do inclusivismo seria manter o Judaísmo refém da perspectiva

Cristã, e do apelo conversionista, não o reconhecendo a partir de sua autocompreensão.

Ao afirmar que “embora a Igreja seja o novo Povo de Deus”, fica clara a ambiguidade

da NA4. Este foi o limite do Modelo de Complementação.

Assim, verificamos que, se cada tradição chamar para si a exclusividade ou se

considerar a complementação ou o acabamento da outra, a legitimidade do diálogo não

se sustentará, e a integridade de cada tradição perderá sua força. Haveria então, alguma

possibilidade de romper com os preceitos bíblicos judaico-cristãos da exclusividade de

“Povo Eleito da Antiga Aliança”, e o “Novo Povo de Deus da Nova Aliança”, em favor

de um ideal reconciliador, no qual o ser humano supere as diferenças teológicas? Sim, o

Modelo de Aceitação nos aponta este caminho, posto que as diferenças cultural e

religiosa são reais e profundas, cada tradição possui sua autocompreensão. Deste modo,

o Modelo de Aceitação, quanto tipo ideal, pode ser pensado como um próximo passo,

outro paradigma a ser superado, e um ideal almejado, quem sabe nos desdobramentos

do Vaticano II.

Do ponto de vista judaico, as possibilidades de diálogo são construídas de

diferentes formas, sem adentrar necessariamente em questões teológicas. Isto sugere que

o diálogo pode ser articulado em diferentes direções e interpretações, ora com contornos

exclusivistas, ora situando o diálogo inter-religioso em uma profunda abertura ao

pluralismo pela via da experiência religiosa, cultural e ética. O encontro entre os filhos

de Abraão é uma possibilidade idealizada, mais próxima aos cristãos, pela ideia de

continuidade entre as duas Alianças, que aos judeus. Para estes a Terra e a Torá contém

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a força e o sentido de suas raízes e identidade religiosa, em consequência, o significado

do Estado de Israel para o povo Judeu é singular, e para os Cristãos, a dimensão

geográfica não tem o mesmo sentido. No entanto, a partir da proposta de Chouraqui

temos o diálogo pensado em um nível mais profundo a partir das próprias raízes, ou

seja, o diálogo inter-religioso tem a finalidade de reconciliar a humanidade, em que a

exigência Bíblica de conversão a Deus é também uma conversão ao homem, assim, o

foco não está na religião.

A questão de iudaeis fora entendida por João XXIIII não como novidade, pois,

sua experiência e intervenção em favor dos judeus durante a Segunda Guerra, enquanto

delegado apostólico na Turquia, evidenciaram que a situação era tanto conhecida quanto

latente, daí decorre sua abertura ao pedido de Jules Isaac de incluir o tema sobre os

judeus no Concílio. No que se refere às forças conservadoras da Igreja, ao nomear

Agostinho Bea, sabia que nele ancorava-se conhecimento e diplomacia suficientes para

lidar com os componentes necessários às mudanças pretendidas.

Posto isso, confirmamos que a inclusão da questão de iudaeis na pauta conciliar,

e a afirmação da autenticidade da religião judaica, fora motivada por razões políticas em

resposta à Shoah, como citamos anteriomente, neste cenário, foi o intenso trabalho

desenvolvido pelo cardeal Bea e os sacerdotes Gregory Baum e John Oesterreicher,

durante o período conciliar, que deu voz ao apelo do povo judeu. O texto final

contemplou grande parte das recomendações expostas nos inúmeros trabalhos e

memorandos desenvolvidos por judeus e cristãos, antes e durante o Concílio. Assim, a

NA4 utilizou o termo vínculo, e neste ponto fica implícita a tentativa de considerar o

Judaísmo uma religião viva e de grande valor pela relação de continuidade, no entanto a

vocação de Abraão e a libertação de Israel do Egito, como parte da gênese da Igreja,

seria transmitida de forma renovada. Finalmente, para que o Concílio voltasse sua

atenção aos problemas do nosso tempo, denunciou o ódio por motivos de “raça” ou cor,

condição social ou religião. Deste modo, o combate ao antissemitismo religioso

enraizado no ensino de desprezo destacou-se na elaboração da NA4.

Em relação à perspectiva encontrada no Parlamento Mundial das Religiões na

América do Norte, e no Vaticano II, na Europa, no primeiro caso a diferença não fora

discutida, mas admirada como um espetáculo, uma agradável descoberta na qual se

reconhecia a existência do outro, apoiada na mentalidade de superioridade dos valores

ocidentais cristãos, em um ambiente capitalista onde comemorava-se as grandes

conquistas, a tecnologia, o projeto colonial e as riquezas dele provenientes. Não houve

diálogo, mas política, tolerância e gentileza.

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Dadas as devidas diferenças entre o PMR e o Vaticano II, no que tange à

profundidade teológica, e à repercussão de cada evento, na intenção do pastor John

Henry Barrows houve uma grande disposição para a escuta, que não fora compreendida

pela maioria dos líderes cristãos ali presentes, a saber, o gérmen do lado positivo da

diferença, assim como a profundidade da proposta de um aggiornamento feita por João

XXIII, também não o fora.

Enfim, as mudanças iniciadas no Vaticano II não podem ficar somente na

memória do que foi o Concílio e a Declaração, embora seja difícil para os católicos

apreciarem a mudança dela decorrente, ainda é necessário digerir sua intenção mais

profunda. Apesar da dificuldade de se chegar a um consenso sobre o conteúdo do texto

final, particularmente a NA4, demonstrou que a reflexão dogmática e a mudança de

paradigma estão em descontinuidade inegável com a tradição passada. De fato,

seguiram o curso dos eventos externos, ou seja, foi um documento político elaborado

em resposta à tragédia dos campos de concentração, e não uma disposição ao encontro,

que, no entanto, iniciou uma profunda revisão na postura teológica da Igreja. Portanto,

na relação com os judeus e o Judaísmo, o Vaticano II, dentro de seus limites, articulou

as questões políticas e teológicas em favor de uma abertura, e de um primeiro passo

rumo ao diálogo.

Se tirássemos a Nostra Aetate do Vaticano II, seria impensável o catolicismo no

século XXI, ou seja, uma teologia que ignoraria as transformações ocorridas no século

XX, como os valores modernos que foram relevantes para a teologia católica, e

trouxeram o debate acerca da descolonização, da democracia, da importância da

liberdade religiosa, e das consequências das duas Grandes Guerras e da Shoah. Do

mesmo modo que o pensamento se insere no contexto de cada época, a teologia católica

também foi redimensionada pelo fluxo dos fatores inerentes à sociedade daquele

período, portanto, a responsabilidade por sua influência no processo de construção do

diálogo, dos conceitos e preconceitos, é patente.

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Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Statues_'L'%C3%89glise'_

et_'La_Synagogue'_de_la_Cath%C3%A9drale_de_Strasbourg_original_gothique_conse

rv%C3%A9_au_Mus%C3%A9e_de_l'Oeuvre_Notre-Dame.JPG#filehistory> Acesso

em: 10 fev. 2016.

Disponível em: <http://www.pliniocorreadeoliveira.info/1956_071_CAT_Razoes_e_

contra-razoes. htm > Acesso em: 10 fev. 2016.

Disponível em: <http://www.notredamedesion.org/en/dialogue_docs.php?a=3b&id=

567> Acesso em: 15 fev. 2016.

Disponível em: <https://www.academia.edu/8392562/R%C3%A9%C3%A9valuation_

des_motifs_invoqu%C3%A9s_par_le_Saint-Si%C3%A8ge_pour_justifier_la_suppre

ssion_de_lassociation_phil ojuda%C3%AFque_Amici _Israel_1926-1928_> Acesso

em: 15 fev. 2016, tradução nossa.

Disponível em: <http://www.portal.ecclesia.pt/catolicopedia/siglas_abreviaturas.asp>

Acesso em: 20 fev. 2016.

Disponível em: <https://www.parliamentofreligions.org/> Acesso em: 20 fev. 2016.

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126

ANEXO A

A retificação necessária no ensino cristão: Dezoito Pontos

Escrito por Jules Isaac em 1946.

Antes da Segunda Guerra Mundial, o historiador judeu francês Jules Isaac tinha

sido o Superintendente da Instrução Pública na França. No rescaldo dos campos de

extermínio da Primeira Guerra Mundial, ele procurou usar livros de história para

promover a paz entre a França e a Alemanha. No entanto, a maioria de sua família havia

sido morta pelos nazistas durante a Shoah. Depois disso, ele se dedicou a investigar as

origens do antissemitismo cultural e religioso. Em seu livro Jesus e Israel: Um

Chamado para correções necessárias na doutrina cristã sobre os judeus, publicado em

1948, ele propôs que os seguintes pontos deveriam tornar-se parte da educação cristã.

Ele já os havia apresentado na Conferência de Emergência sobre o Antissemitismo,

realizada em Seelisberg, Suíça de 30 Julho a 05 agosto de 1947, formando a base da

Conferência “Uma direção para as Igrejas”, ou seja, Os Dez Pontos de Seelisberg. “Para

fins de maior clareza, gostaria de ser autorizado a apresentar para exame dos cristãos

que de boa vontade concordaram, em princípio, com a necessidade de retificação dos

seguintes Dezoito Pontos com a intenção de servir pelo menos como base para

discussão”.

Ensinamento cristão digno deste nome deve:

1. Dar a todos os cristãos, pelo menos, um conhecimento elementar do Antigo

Testamento; com ênfase no fato de que o Velho Testamento, essencialmente

semita em forma e substância, é a Sagrada Escritura dos judeus antes de tornar-

se a Sagrada Escritura dos cristãos;

2. Lembrar que uma grande parte da liturgia cristã é emprestada a partir dele, e que

o Antigo Testamento, o trabalho de gênios judaicos (iluminados por Deus), tem

sido em nossos dias uma perene fonte de inspiração para o pensamento,

literatura e a arte cristã;

3. Tomar cuidado para não passar por cima do fato singularmente importante que,

foi para o povo Judeu, por Ele escolhido, a quem Deus primeiro se revelou em

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Sua onipotência; e que o povo Judeu garantiu a crença fundamental em Deus, e

então enviou-a ao mundo cristão;

4. Reconhecer e declarar abertamente, inspirando-se na pesquisa histórica mais

confiável, que o Cristianismo nasceu de um vivo, e não um degenerado

Judaísmo, como é provado pela riqueza da literatura judaica, resistência

indomável do Judaísmo ao paganismo, à espiritualização do culto nas sinagogas,

à propagação de proselitismo, à multiplicidade de seitas e tendências religiosas,

à ampliação de crenças; tomar cuidado para não desenhar uma simples

caricatura do farisaísmo histórico;

5. Levar em conta o fato de que a história contradiz categoricamente o mito

teológico da Dispersão como castigo providencial pela crucificação, uma vez

que a dispersão do povo Judeu foi um fato consumado no tempo de Jesus e uma

vez que, naquela época, de acordo com toda a evidência, a maioria do povo

Judeu não estava vivendo na Palestina; mesmo após as duas grandes guerras da

Judeia (primeiro e segundo séculos), não houve dispersão dos judeus da

Palestina;

6. Alertar os fieis contra certas tendências estilísticas nos Evangelhos,

nomeadamente o uso frequente no quarto Evangelho, do termo coletivo “os

judeus” em um sentido restrito e pejorativo para significar os inimigos de Jesus,

a fariseus, procedendo dos principais sacerdotes, escribas, e que resulta não só

em distorcer as perspectivas históricas, mas em inspirar horror e desprezo do

povo Judeu como um todo, ao passo que, na realidade, este povo não está

envolvido de nenhuma maneira;

7. Estar ciente, de forma muito explícita, de modo que nenhum cristão seja

ignorante sobre isso, que Jesus era judeu, de uma antiga família judaica, que ele

foi circuncidado (de acordo com a lei judaica) oito dias após o seu nascimento;

que o nome de Jesus é um nome judeu, Yeshua, helenizado, e Cristo o

equivalente grego do termo Messias; que Jesus falou uma língua semítica,

aramaico, como todos os judeus da Palestina; e que a menos que leia-se nos

Evangelhos em seu texto mais antigo, que é na língua grega, sabe-se da Palavra

somente através da tradução de uma tradução;

8. Reconhecer nas Escrituras de que Jesus, “nascido sob a lei [judaica]” (Gl 4,4),

viveu “sob a lei”; que ele não parou de praticar ritos básicos do Judaísmo até o

último dia; que ele não parou de pregar seu Evangelho nas sinagogas e no

Templo até o último dia;

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128

9. Não deixar de observar que, durante sua vida humana, Jesus era exclusivamente

“um servo para os circuncidados” (Rom 15,8); ele estava em Israel quando

recrutou seus discípulos; todos os apóstolos eram judeus como seu mestre;

10. Mostrar claramente, a partir dos textos do Evangelho, que até o último dia,

exceto em raras ocasiões, Jesus não parou de obter as simpatias entusiastas das

massas judaicas em Jerusalém, bem como na Galileia;

11. Tomar cuidado para não afirmar que Jesus foi pessoalmente rejeitado pelo povo

Judeu, que se recusou a reconhecê-lo como Messias e Deus, por duas razões, que

a maioria do povo Judeu nem sabia quem ele era, e que Jesus nunca se

apresentou como tal explícita e publicamente ao segmento das pessoas que o

conheciam; reconhecer que, com toda a probabilidade, o caráter messiânico da

entrada em Jerusalém na véspera da Paixão só poderia ter sido percebida por um

número pequeno;

12. Tomar cuidado para não afirmar que Jesus foi, no mínimo, rejeitado pelos

líderes qualificados e representantes do povo Judeu; quem mandou prendê-lo e

condená-lo, os príncipes dos sacerdotes, eram representantes de uma casta

oligárquica subjugada a Roma e detestada pelo povo; como os doutores e os

fariseus, que emerge dos próprios textos evangélicos [Evangelho], não foram

unanimemente contra Jesus; nada prova que a elite espiritual do Judaísmo estava

envolvida na trama;

13. Tomar cuidado de não forçar os textos para encontrar neles uma reprovação

universal de Israel ou uma maldição que não está explicitamente expressa em

nenhuma parte dos Evangelhos; levar em conta o fato de que Jesus sempre

demonstrou sentimentos de compaixão e amor pelas massas;

14. Cuidar acima de tudo para não fazer a afirmação atual e tradicional que o povo

Judeu cometeu o crime inexpiável de deicídio; e que levou a total

responsabilidade sobre si como um todo; tome o cuidado de evitar tal afirmação

não só porque é venenosa, gerando ódio e crime, mas também porque é

radicalmente falsa;

15. Destacar o fato, enfatizado nos quatro Evangelhos, que os sumos sacerdotes e os

seus cúmplices agiram contra Jesus sem o conhecimento das pessoas e até

mesmo com medo do povo;

16. Sobre a trama judaica, reconhecer que o povo Judeu não estava de nenhum

modo nela envolvido, não desempenhou nenhum papel na trama, e

provavelmente nada sabia sobre isso; que os insultos e as brutalidades que lhes

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são atribuídos foram atos dos soldados ou de alguns membros da oligarquia; que

não há nenhuma menção de um julgamento Judeu, de uma reunião do Sinédrio

no quarto Evangelho;

17. Sobre a trama Romana, reconhecer que o procurador Pôncio Pilatos tinha o

comando total sobre a vida e morte de Jesus; que Jesus foi condenado por

pretensões messiânicas, que foi um crime aos olhos dos romanos, não dos

judeus; que pendurá-lo na cruz foi um castigo especificamente romano; tomar

cuidado para não imputar ao povo Judeu a coroação com os espinhos, que nos

relatos do Evangelho era uma brincadeira cruel dos soldados romanos; tomar

cuidado para não identificar a multidão instigada pelos principais sacerdotes,

com todo do povo Judeu da Palestina, cujo sentimento anti-Romano estava além

de qualquer dúvida; note que o quarto Evangelho implica exclusivamente os

príncipes dos sacerdotes e os seus homens;

18. Finalmente, não esquecer de que o grito monstruoso, “O seu sangue caia sobre

nós e sobre nossos filhos!” (Mt 27,25), não poderia prevalecer sobre a Palavra:

“Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34).91

91 Anexo do livro: Jesus e Israel, pp. 575-578. Disponível em: <http://www.dialogue-jca.org/18_proposi

tions_ jules_isaac.htm> Acesso em: jan. 2016, tradução nossa.

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ANEXO B

Decreto sobre os Judeus - Decretum de Iudaeis

Criado em: 01 de novembro de 1961

Escrito pelo Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos

Em 18 de setembro de 1960, o Papa João XXIII havia dirigido o cardeal

Agostinho Bea, chefe do Secretariado para a Unidade dos Cristãos, a fim de que

preparasse para o próximo Concílio Vaticano II um rascunho de uma declaração

projetada sobre a relação da Igreja com o povo Judeu. Este primeiro projeto foi

concluído em novembro de 1961, por peritos que colaboram com Bea. Ele nunca foi

apresentado ao Conselho.

A Igreja, a Noiva de Cristo, reconhece com um coração cheio de gratidão que,

de acordo com o misterioso projeto de Deus, os primórdios de sua fé e eleição já se

encontram nos Patriarcas e nos Profetas. Assim, ela reconhece que todos os crentes

cristãos, filhos de Abraão pela fé (Gal 3,7), estão incluídos em sua vocação. Da mesma

forma, sua salvação está prefigurada na libertação do povo eleito do Egito, como em um

sinal sacramental (Liturgia da Vigília Pascal). E a Igreja, uma nova criação em Cristo

(Ef 2,15), nunca pode esquecer que ela é a continuação espiritual das pessoas com as

quais, em sua misericórdia e condescendência da graça, Deus fez a Antiga Aliança.

A Igreja, de fato, acredita que Cristo, que “é a nossa paz”, abraçou judeus e

gentios, com um mesmo amor e que Ele fez dos dois um (Ef 2,14). Ela se alegra da

união destes dois “em um só corpo” (Ef 2,16) proclama a reconciliação de todo o

mundo em Cristo. Mesmo que a maior parte do povo Judeu permaneceu separada de

Cristo, seria uma injustiça chamar este povo de amaldiçoado, já que são muito amados

por causa dos Santos Patriarcas e pelas promessas feitas a eles (Rm 11,28 ). A Igreja

ama este povo. A partir dele nasceu Cristo, o Senhor, que reina em glória no céu; a

partir dele nasceu a Virgem Maria, mãe de todos os cristãos; a partir dele vieram os

Apóstolos, os pilares e baluarte da Igreja (1Tm 3,15).

Além disso, a Igreja acredita na união do povo Judeu consigo como parte

integrante da esperança cristã. Com fé inabalável e profundo anseio a Igreja aguarda sua

união com este povo. Na época da vinda de Cristo, “um remanescente escolhido pela

graça” (Rm 11,5), os primeiros frutos da Igreja que aceitaram a Palavra Eterna. A Igreja

acredita, no entanto, segundo o apóstolo, que na hora marcada, a plenitude dos filhos de

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Abraão, segundo a carne, irá abraçá-lo, esta é a salvação (Rm 11,12-26). A sua

aceitação será a vida dos mortos (Rm 11,15).

A Igreja, como uma mãe, condena mais severamente injustiças cometidas contra

pessoas inocentes em todos os lugares, então ela levanta sua voz em protesto

ruidosamente contra todas as injustiças cometidas contra os judeus, seja no passado ou

em nosso tempo. Quem despreza ou persegue este povo faz mal à Igreja Católica.92

92 Disponível em: <http://www.ccjr.us/dialogika-resources/documents-and-statements/roman-catholic/se

cond-vatican-council/na-drafts> Acesso em: 30 jan. 2016, tradução nossa.

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ANEXO C

Sobre a atitude dos católicos em relação aos não cristãos e sobretudo aos judeus

Criado em: 08 de novembro de 1963

Escrito pelo Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristão

Agora que temos lidado com os princípios do ecumenismo católico, nós não

queremos deixar passar em silêncio o fato de que os mesmos princípios devem ser

aplicados, tendo em conta as devidas diferenças, na questão de falar e de cooperar com

as pessoas que não são cristãs, no entanto, adoram a Deus, ou, pelo menos, em um

espírito de boa vontade conscienciosamente esforçam-se por observar a lei moral inata

na natureza humana. Isto aplica-se especialmente no caso dos judeus, que, como povo,

está ligado com a Igreja de Cristo em uma relação especial.

A Igreja de Cristo reconhece com um coração agradecido que os primórdios da

fé e da sua eleição, juntamente com o mistério salvífico de Deus, já podem ser

encontrados entre os Patriarcas e Profetas. Todos os crentes em Cristo, filhos de Abraão

segundo a fé (Gal 3,7), estão incluídos na vocação do mesmo Patriarca, e que a salvação

da Igreja é misticamente prefigurada no êxodo dos Escolhidos, aqueles da terra da

escravidão. A Igreja, uma nova criatura em Cristo (Ef 2,15), não pode esquecer que é

uma continuação do povo com quem Deus, em sua inefável misericórdia, teve o prazer

de estabelecer a sua Antiga Aliança.

Além disso, a Igreja acredita que Cristo, nossa Paz, abraçou judeus e gentios em

um único amor e deles fez um (Ef 2,4), e pela união de ambos em um só corpo (Ef

2,17) anunciou a reconciliação de todo o mundo em Cristo. Embora uma grande parte

do povo escolhido ainda esteja longe de Cristo, é errado chamá-los de povo maldito,

uma vez que continuam a ser muito queridos por Deus por causa dos Patriarcas e dos

dons dados a eles (Rm 11, 28), ou chamá-los de povo deicida, desde que o Senhor, por

sua paixão e morte, lava os pecados de todos os homens, e que esses pecados foram a

causa da paixão e morte de Jesus Cristo (Lc 23,34; At 3,17; 1Cor 2,8). A morte de

Cristo não deve ser atribuída a um povo inteiro, que viva naquela época, e ainda menos

ao povo de hoje. Portanto, os sacerdotes devem ter o cuidado para não falar, na

catequese ou na pregação, nada que possa dar origem ao ódio ou ao desprezo dos judeus

no coração dos seus ouvintes. A Igreja também não deve esquecer que Cristo Jesus

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nasceu desse povo, segundo a carne, assim como a Virgem Maria, Mãe de Cristo, e os

Apóstolos, fundação e colunas da Igreja.

Portanto, uma vez que a Igreja tem tão amplo patrimônio comum com a

Sinagoga, este Santo Sínodo pretende em todos os sentidos promover e aprofundar o

conhecimento mútuo e estima obtidos por estudos teológicos e discussões fraternas; e,

além disso, uma vez que repreende severamente agressões às pessoas em qualquer

lugar, mais o faz, deplora e condena, com coração materno, o ódio e a perseguição aos

judeus, cometida anteriormente ou em nosso tempo.93

93 Disponível em: <http://www.ccjr.us/dialogika-resources/documents-and-statements/roman-catholic/se

cond-vatican-council/na-drafts> Acesso em: 30 jan. 2016, tradução nossa.

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ANEXO D

Apêndice “Sobre os Judeus” para a “Declaração sobre o Ecumenismo”

Criado em: 01 de março de 1964

Escrito pelo Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos

À luz das discussões informais de dezembro de 1963, o Cardeal Bea e seu

comitê de redação produziu o seguinte revisão que foi apresentada à Secretaria pela

Unidade dos Cristãos, em março 1964 e daí para a Comissão de Coordenação do

Conselho.

Com um coração cheio de gratidão, a Igreja de Cristo reconhece que, de acordo

com o misterioso projeto de Deus, os primórdios da sua fé e eleição já podem ser

encontrados entre os Patriarcas e Profetas. Todos os crentes cristãos, filhos de Abraão

pela fé (Gal 3,7), estão incluídos na chamada do mesmo Patriarca, e a salvação da Igreja

está misteriosamente prefigurada na libertação do povo eleito da terra da escravidão. A

Igreja, uma nova criação em Cristo (Ef 2,15) e o povo da Nova Aliança, nunca podem

esquecer que esta é uma continuação daquela feita por Deus, em Sua misericórdia

indizível com o povo com quem Ele teve o prazer de fazer Antigo Pacto, e os escolheu a

fim de confiar a revelação contida nos livros do Antigo Testamento. De fato, a Igreja

acredita que Cristo, nossa Paz, enfrentou livremente sua paixão e morte por causa dos

pecados de todas as pessoas. A Igreja também não se esquece de que Cristo nasceu do

povo Judeu, segundo a carne, assim como a Virgem Maria, Mãe de Cristo, e os

Apóstolos, que são o baluarte e os pilares da Igreja.

Uma vez que o patrimônio comum, tanto para cristãos e judeus é de tal

magnitude, o Sagrado Concílio quer fomentar e recomendar, em todos os sentidos, a

compreensão e o respeito mútuos que são, acima de tudo, fruto dos estudos bíblicos e

teológicos, e dos diálogos fraternos. Além disso, em sua rejeição a qualquer tipo

injustiça, e onde quer que seja infligida às pessoas, deplora e condena o ódio e a

perseguição aos judeus, tenha ela surgido no passado ou em nossos tempos. Que todos,

portanto, assegurarem que, em sua catequese como na sua pregação nunca o povo Judeu

seja apresentado como um povo rejeitado, amaldiçoado, ou culpado de deicídio, nem

seja ensinado tudo o que poderia dar origem ao ódio ou desprezo dos judeus nos

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corações dos cristãos. Todas essas palavras ou ações seriam contrárias à vontade de

Jesus Cristo, que abraça os judeus e gentios com um mesmo amor.94

94 Disponível em: <http://www.ccjr.us/dialogika-resources/documents-and-statements/roman-catholic/se

cond-vatican-council/na-drafts> Acesso em: 30 jan. 2016, tradução nossa.

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ANEXO E

Declaração a respeito dos judeus e dos não cristãos - De iudaeis et de non

christianis

Criado em: 25 de setembro de 1964

Escrito por Vaticano II Comissão de Coordenação do Conselho

Sobre a herança comum aos cristãos e judeus

A Igreja de Cristo de bom grado reconhece que os primórdios de sua fé e

eleição, em conformidade com o mistério da salvação de Deus, já são encontrados entre

os Patriarcas e Profetas. Na verdade, todos os cristãos acreditam que, como filhos de

Abraão pela fé (Gal 3,7), eles estão incluídos na vocação deste patriarca, e que a

salvação da Igreja é misticamente prefigurada no êxodo do Povo Eleito da terra da

escravidão. A Igreja, como uma nova criação em Cristo (Ef 2,15) e como o povo da

Nova Aliança, nunca pode esquecer que provém de uma continuação do que Deus, em

sua inefável misericórdia, se dignou em realizar na Antiga Aliança com aquele povo, os

quais Ele escolheu a fim de confiar a revelação contida nos livros do Antigo

Testamento.

Além disso, a Igreja não se esqueçe de que foi a partir do povo Judeu nasceu

Cristo, a Virgem Maria, assim como os apóstolos, a fundação e os pilares da Igreja.

Além disso, a Igreja está sempre atenta e nunca irá esquecer as palavras do

Apóstolo Paulo referente aos judeus, a quem pertencem “a adoção de filhos e a glória,

os pactos e a promulgação da lei, o culto e as promessas” ( Rm 9,4).

Uma vez que essa é a herança dos judeus aceita pelos cristãos, este Santo

Conselho resolve expressamente recomendar a compreensão e apreciação mútua, a ser

obtida pelo estudo teológico e discussão fraterna, e, além disso, da mesma maneira que

gravemente desaprova qualquer dano infligido aos seres humanos em todos os lugares,

também deplora e condena o ódio e maus-tratos aos judeus.

Ainda lembramos que a união do povo Judeu com a Igreja é uma parte da

esperança cristã. Deste modo, e seguindo o ensinamento do Apóstolo Paulo (Rm 11,25),

a Igreja espera com fé inabalável e com o desejo ardente, a entrada desse povo à

plenitude do povo de Deus estabelecida por Cristo.

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Todos devem ter cuidado, portanto, de não apresentar o povo Judeu como uma

nação rejeitada, seja na catequese, na pregação da Palavra de Deus ou na conversação

diária. Nem deve ser dito ou feito nada que possa alienar as mentes humanas dos

Judeus. De igual modo, todos devem estar alertas para não imputar aos Judeus do nosso

tempo o que fora perpetrado na Paixão de Cristo.

Todas as pessoas têm Deus como Pai

O Senhor Jesus confirmou claramente que Deus é o Pai de toda a humanidade,

pois isso já foi afirmado nas Escrituras do Antigo Testamento e é sugerido pela própria

razão. Mas nós certamente não podemos apelar ou rezar a Deus como o Pai de todos, se

negamos um comportamento fraternal a algumas pessoas que são do mesmo modo

criadas à imagem de Deus. A atitude da humanidade em direção a Deus como Pai, e a

atitude das pessoas em relação aos seus irmãos e irmãs está estreitamente ligada, e negar

a fraternidade humana carrega com ela ou conduz à negação do próprio Deus, em quem

não pode haver favoritismo (2Cr 19,7; Rm 2,11; Ef 6,9; Cl 3,25; 1Pd 1,17). O primeiro

mandamento é, de fato, tão entrelaçado com o segundo que não podemos ser perdoados

dos pecados cometidos, a menos que nós mesmos sinceramente perdoemos aqueles que

nos ofenderam. Com efeito, já foi dito na Antiga Lei: “Não temos nós todos um mesmo

Pai? Não nos criou o mesmo Deus? Por que cada um de nós é desleal com seu irmão?”

(Ml 2,10); o mesmo é ainda mais claramente reafirmado na Nova Lei: “Aquele que não

ama a seu irmão, a quem viu, não pode amar a Deus, a quem não viu. E este é o

mandamento que temos de Deus, que quem ama a Deus ame o seu irmão também” (1

Jo 4,20-21).

Impelido por esse amor por nossos irmãos, vamos considerar com diligência e

excelente doutrina que, embora em muitos pontos difere da nossa, de tantas maneiras,

no entanto, leva o raio daquela verdade que ilumina a cada pessoa que nasce neste

mundo. Assim, nós também abraçamos aqueles que através de muitos canais da cultura

humana se chegam a nós, e em primeiro lugar, os muçulmanos que adoram um Deus

pessoal que recompensa o sentimento religioso.

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Qualquer tipo de discriminação deve ser condenada

Em consequência, qualquer teoria ou prática que conduz a uma discriminação

entre os indivíduos ou entre nação e nação, na medida em que a dignidade como ser

humano e os direitos daí decorrentes estão em causa, é desprovida de fundamento.

É imperativo, portanto, que todas as pessoas de boa vontade e os cristãos, em

particular, abstenham-se de qualquer discriminação ou abuso de seres humanos em

razão da sua raça, cor, condição social ou religião. Pelo contrário, este Santo Concílio

roga solenemente aos crentes cristãos que “mantenham relações de amizade entre os

gentios” (1 Ped 2,12) e, se possível e na medida em que deles depender, mantenham a

paz com todos os homens (Rm 12,18); ele ordena-lhes, além disso, a amar não apenas o

vizinho, mas até mesmo os inimigos, eles devem pensar que têm alguma, e para que

sejam, na verdade, os filhos do Pai que está no céu e que faz nascer o seu sol sobre tudo

(Mt 5,44-45).95

95 Disponível em: <http://www.ccjr.us/dialogika-resources/documents-and-statements/roman-catholic/se

cond-vatican-council/na-drafts> Acesso em: 30 jan. 2016, tradução nossa.

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ANEXO F

Declaração Nostra Aetate sobre a relação da Igreja com as religiões não cristãs96

Promulgada: 28 de outubro de 1965

Escrito pelo Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos

Preâmbulo

Hoje, que o gênero humano se torna cada vez mais unido, e aumentam as

relações entre os vários povos, a Igreja considera mais atentamente qual a sua relação

com as religiões não cristãs. E, na sua função de fomentar a união e a caridade entre os

homens e até entre os povos, considera primeiramente tudo aquilo que os homens têm

de comum e os leva à convivência.

Com efeito, os homens constituem todos uma só comunidade; todos têm a

mesma origem, pois foi Deus quem fez habitar em toda a terra o inteiro gênero humano

(At 17,26); Têm também todos um só fim último, Deus, que a todos estende a sua

providência, seus testemunhos de bondade e seus desígnios de salvação até que os

eleitos se reúnam na cidade santa, iluminada pela glória de Deus e onde todos os povos

caminharão na sua luz (Sb 8; At 14, 17; Rm 2,6-7, 1Tm 2,4, Ap 21,23-24).

Os homens esperam das diversas religiões resposta para os enigmas da condição

humana, os quais hoje e ontem, profundamente preocupam seus corações: Que é o

homem? Qual é o sentido e a finalidade da vida? Que é o pecado? Donde provém o

sentimento, e para que serve? Qual o caminho para alcançar a verdadeira felicidade?

Que é a morte, o juízo e a retribuição depois da morte? Finalmente, que mistério último

e inefável envolve a nossa existência, do qual vimos e para onde vamos?

96 Cf. WOLFF, Elias. Unitatis Redintegratio, Dignitatis Humanae, Nostra Aetate. Textos e comentários.

São Paulo: Paulinas, 2012, pp. 155-165. Original está disponível em: <http://www.vatican.va/archive

/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decl_19651028_nostra-aetate_po.html> Acesso em:

10 jan. 2016.

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2. Hinduísmo e Budismo

Desde os tempos mais remotos até aos nossos dias, encontra-se nos diversos

povos certa percepção daquela força oculta presente no curso das coisas e

acontecimentos humanos; encontra-se por vezes até o conhecimento da divindade

suprema ou mesmo de Deus Pai. Percepção e conhecimento esses que penetram as suas

vidas de profundo sentido religioso. Por sua vez, as religiões ligadas ao progresso da

cultura procuram responder às mesmas questões com noções mais apuradas e uma

linguagem elaborada.

Assim, no Hinduísmo, os homens perscrutam o mistério divino e exprimem-no

com a fecundidade inexaurível dos mitos e os esforços da penetração filosófica,

buscando a libertação das angústias da nossa condição quer por meio de certas formas

de ascetismo, quer por uma profunda meditação, quer, finalmente, pelo refúgio amoroso

e confiante em Deus.

No Budismo, segundo as suas várias formas, reconhece-se a radical insuficiência

deste mundo mutável, e propõe-se o caminho pelo qual os homens, com espírito devoto

e confiante, possam alcançar o estado de libertação perfeita ou atingir, pelos próprios

esforços ou ajudados do alto a suprema iluminação. De igual modo, as outras religiões

que existem no mundo procuram de vários modos ir ao encontro das inquietações do

coração humano, propondo caminhos, isto é, doutrinas e normas de vida e também ritos

sagrados.

A Igreja Católica nada rejeita do que nessas religiões existe de verdadeiro e

santo. Olha com sincero respeito esses modos de agir e viver, esses preceitos e doutrinas

que, embora se afastem em muitos pontos daqueles que ela própria segue e propõe,

todavia refletem não raramente um raio da verdade que ilumina todos os homens. No

entanto, ela anuncia, e tem mesmo obrigação de anunciar incessantemente, Cristo,

“caminho, verdade e vida” (Jo 14,6), em quem os homens encontram a plenitude da

vida religiosa e no qual Deus reconciliou consigo todas as coisas (2 Cor 5,18-19).

A Igreja, portanto, exorta os seus filhos a que, com prudência e caridade, pelo

diálogo e colaboração com os membros das outras religiões, dando testemunho da vida

e fé cristãs, reconheçam, conservem e promovam os bens espirituais e morais e os

valores socio-culturais que entre eles se encontram.

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3. A religião do Islã

A Igreja olha também com estima os muçulmanos. Adoram eles o Deus Único,

vivo subsistente, misericordioso e onipotente, criador do céu e da terra, que falou aos

homens e a cujos decretos, mesmo ocultos, procuraram submeter-se de todo o coração,

como a Deus se submeteu Abraão, que a fé islâmica de bom grado evoca. Embora sem o

reconhecerem como Deus, veneram Jesus como profeta, e honram Maria, sua mãe

virginal, à qual por vezes invocam devotamente. Esperam pelo dia do juízo, no qual

Deus remunerará todos os homens, uma vez ressuscitado. Têm, por isso, em apreço a

vida moral e prestam culto a Deus, sobretudo com oração, a esmola e o jejum.

E se é verdade que, no decurso dos séculos, surgiram entre cristãos e

muçulmanos não poucas discórdias e ódios, este sagrado Concílio exorta todos a que,

esquecendo o passado, sinceramente se exercitem na compreensão mútua e juntos

defendam e promovam a justiça social, os bens morais e a paz e liberdade para todos os

homens.

4. A religião Judaica

Sondando o mistério da Igreja, este sagrado Concílio recorda o vínculo com que

o povo do Novo Testamento está espiritualmente ligado à descendência de Abraão.

Com efeito, a Igreja de Cristo reconhece que os primórdios da sua fé e eleição já

se encontram, segundo o mistério divino da salvação, nos patriarcas, em Moisés e nos

profetas. Professa que todos os cristãos, filhos de Abraão segundo a fé (Gl 3,7), estão

incluídos na vocação deste patriarca e que a salvação da Igreja foi misticamente

prefigurada no êxodo do povo escolhido da terra da escravidão. A Igreja não pode, por

isso, esquecer que foi por meio desse povo, com o qual Deus se dignou, na sua inefável

misericórdia, estabelecer a antiga Aliança, que ela recebeu a revelação do Antigo

Testamento e se alimenta da raiz da oliveira mansa, na qual foram enxertados os ramos

da oliveira brava, os gentios (Rm 11,17-24). Com efeito, a Igreja acredita que Cristo,

nossa paz, reconciliou pela cruz os judeus e os gentios, de ambos fazendo um só, em Si

mesmo (Ef 2,14-16).

Também tem sempre diante dos olhos as palavras do Apóstolo Paulo a respeito

dos seus compatriotas: “Deles é a adoção filial e a glória, a aliança e a legislação, o

culto e as promessas; deles os patriarcas, e deles nasceu, segundo a carne, Cristo” (Rm

9,4-5), filho da Virgem Maria. Recorda ainda a Igreja que os Apóstolos, fundamentos e

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colunas da Igreja, nasceram do povo judaico, bem como muitos daqueles primeiros

discípulos, que anunciaram ao mundo o Evangelho de Cristo.

Segundo o testemunho da Sagrada Escritura, Jerusalém não conheceu o tempo

em que foi visitada (Lc 19,44); e os judeus, em grande parte, não receberam o

Evangelho; antes, não poucos se opuseram à sua difusão (Rm 11,28). No entanto,

segundo o Apóstolo, os judeus continuam ainda, por causa dos patriarcas, a ser muito

amados de Deus, cujos dons e vocação não conhecem arrependimento (Rm 11,28-29).

Com os profetas e o mesmo Apóstolo, a Igreja espera por aquele dia, só de Deus

conhecido, em que todos os povos invocarão a Deus com uma só voz e “o servirão

debaixo dum mesmo jugo” (Sf 3,9; Is 66,23; Sl 65,4; Rm 11,11-32).

Sendo assim tão grande patrimônio espiritual comum aos cristãos e aos judeus,

este sagrado Concílio quer fomentar e recomendar entre eles o mútuo conhecimento e

estima, os quais se alcançarão sobretudo por meio dos estudos bíblicos e teológicos e

com os diálogos fraternos.

Ainda que as autoridades dos judeus e os seus sequazes urgiram a condenação de

Cristo à morte (Jo 19,6) não se pode, todavia, imputar indistintamente a todos os judeus

que então viviam, nem aos judeus do nosso tempo, o que na Sua Paixão se perpetrou. E

embora a Igreja seja o novo Povo de Deus, nem por isso os judeus devem ser

apresentados como reprovados por Deus e malditos, como se tal coisa se concluísse da

Sagrada Escritura. Procurem todos, evitar que, tanto na catequese como na pregação da

palavra de Deus, se ensine seja o que for que não esteja conforme com a verdade

evangélica e com o espírito de Cristo.

Além disso, a Igreja, que reprova quaisquer perseguições contra quaisquer

homens, lembrada do seu comum patrimônio com os judeus, e levada não por razões

políticas mas pela religiosa caridade evangélica, deplora todos os ódios, perseguições e

manifestações de antissemitismo, seja qual for o tempo em que isso sucedeu e seja

quem for a pessoa que isso promoveu contra os judeus.

De resto, como a Igreja sempre ensinou e ensina, Cristo sofreu, voluntariamente

e com imenso amor, a Sua paixão e morte, pelos pecados de todos os homens, para que

todos alcancem a salvação. O dever da Igreja, ao pregar, é, portanto, anunciar a cruz de

Cristo como sinal do amor universal de Deus e como fonte de toda a graça.

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5. A fraternidade universal e a reprovação de toda discriminação racial e religiosa

Não podemos, porém, invocar Deus como Pai comum de todos, se nos

recusamos a tratar como irmãos alguns homens, criados à Sua imagem. De tal maneira

estão ligadas a relação do homem a Deus Pai e a sua relação aos outros homens seus

irmãos, que a Escritura afirma: “Quem não ama, não conhece a Deus” (1Jo 4,8).

Carece, portanto, de fundamento toda a teoria ou modo de proceder que

introduza entre homem e homem ou entre povo e povo qualquer discriminação quanto à

dignidade humana e aos direitos que dela derivam.

A Igreja reprova, por isso, como contrária ao espírito de Cristo, toda e qualquer

discriminação ou violência praticada por motivos de raça ou cor, condição social ou

religião. Consequentemente, o sagrado Concílio, seguindo o exemplo dos santos

Apóstolos Pedro e Paulo, pede ardentemente aos cristãos que, “observando uma boa

conduta no meio dos homens” (1Pd 2,12), se possível, tenham paz com todos os homens

(Rm 12,18), quanto deles depende, de modo que sejam na verdade filhos do Pai que está

nos céus (Mt 5,45).