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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
Angelina Carr Ribeiro Martins
No Cadinho da Reconciliação
O diálogo cristão-judaico, do Parlamento Mundial das Religiões ao Vaticano II
Mestrado em Ciência da Religião
São Paulo
2016
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
Angelina Carr Ribeiro Martins
No Cadinho da Reconciliação
O diálogo cristão-judaico, do Parlamento Mundial das Religiões ao Vaticano II
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para a obtenção do título de Mestre
em Ciência da Religião, sob a orientação
do Prof. Dr. Frank Usarski.
Mestrado em Ciência da Religião
São Paulo
2016
Banca examinadora
_______________________________
_______________________________
_______________________________
Dedico essa obra aos que buscam, na
simplicidade ou complexidade de suas
crenças mais íntimas, promover a
compreensão e o respeito a todos os seres,
mas, sobretudo, fazem da compaixão sua
arma, da humildade seu escudo, e da
memória sua sábia mestra.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à CAPES e à FUNDASP pela bolsa de estudos e pelo apoio, ambos
imprescindíveis, sem os quais eu não poderia realizar esta pesquisa.
Agradeço aos professores do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciência
da Religião pela competência, dedicação e disponibilidade, foi um privilégio;
Agradeço à secretária Andreia Bisuli de Souza por toda ajuda e simpatia, muito
obrigada;
Agradeço aos discentes do Programa, pela amizade, pelas conversas, pelos
cafezinhos, e por todo conhecimento compartilhado, sentirei saudades;
Agradeço aos professores João Décio Passos e Antônio Carlos Frizzo, que
participaram de minha banca de qualificação e deram importantes contribuições para a
continuidade desta pesquisa, por cada comentário e observação, muito obrigada;
Agradeço ao meu orientador, professor Frank Usarski, por acreditar no meu
potencial, pela direção, pela paciência, por compartilhar cada material que pudesse
enriquecer minha pesquisa, e por todas as dicas. Enfim, por dividir seu conhecimento
comigo, muito obrigada;
Agradeço à minha mãe, Ivanil, por toda ajuda durante meus estudos, pelo apoio
à minha mudança para São Paulo, por compartilhar a alegria que senti ao realizar este
projeto de vida, e por cuidar de minhas pets, Jade e Pity, muito obrigada mãe;
Agradeço ao meu querido e admirável pai, Antônio (in memoriam), sem você
este sonho não seria possível, pode ficar orgulhoso!
Finalmente, agradeço a Deus, pela sua Graça, pelo seu sim, e pelo “depois, agora
não”.
Obrigada!
“Assim, em tudo, façam aos outros o que
vocês querem que eles lhes façam; pois
esta é a Lei e os Profetas” (Mateus 7,12).
RESUMO
MARTINS, Angelina C. R; No Cadinho da Reconciliação: O diálogo cristão-judaico,
do Parlamento Mundial das Religiões ao Vaticano II. 2016.143 p. Dissertação -
Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião. Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo – PUC – SP, 2016.
No percurso histórico, as primeiras iniciativas em direção ao diálogo ocorreram no
Parlamento Mundial das Religiões, passaram pela Shoah, até o Concílio Vaticano II. A
Declaração Nostra Aetate foi um documento que marcou a abertura e a disposição da
Igreja para o diálogo inter-religioso, e foi o ponto de virada na relação com os judeus e
o Judaísmo. Foi elaborada no Vaticano II, e nas palavras do Papa João XXIII, chegara o
momento do aggiornamento, a reforma da Igreja. Neste processo, a compreensão do
conceito de diálogo, até o Vaticano II, também passou por uma evolução para que fosse
considerado um elemento fundamental nas relações inter-religiosas do século XX. Por
conseguinte, em decorrência do Concílio, a Igreja Católica rompeu com o paradigma
teológico supersessionista, ou seja, houve uma mudança do Modelo de Substituição
para o Modelo de Complementação, em uma nova postura mais liberal e flexível,
porém, com seus limites. Assim, abriu-se o caminho para a Teologia Cristã das
Religiões. No entanto, a elaboração do conteúdo da Nostra Aetate foi fruto de
pesquisas, publicações e conferências realizadas mesmo antes do Concílio, tanto por
representantes do Judaísmo, quanto por cristãos, católicos e protestantes. Neste sentido,
o contexto da Segunda Guerra Mundial, da Shoah e da criação do Estado de Israel foi
decisivo para que o tema sobre os judeus fosse inserido no Vaticano II. O argumento
mais defendido referiu-se à questão do ensino de desprezo, liderado pelo historiador
judeu francês Jules Isaac, em que a Igreja teve que lidar com o antissemitismo religioso
presente há séculos em sua liturgia. Até sua promulgação houve um intenso trabalho
desenvolvido nos bastidores do Concílio, tanto pelos que se opuseram ao tema sobre os
judeus, como a ala conservadora e as Igrejas católicas orientais, que levantaram
questões políticas envolvendo o Estado de Israel, quanto o empenho de sacerdotes,
como Agostinho Bea, John Oesterreicher e Gregory Baum, com espírito renovador, cujo
trabalho envolveu habilidade, conhecimento, diplomacia e perseverança, até que o texto
mais político do Concílio fosse concluído e aprovado, a Nostra Aetate.
Palavras-chave: Diálogo inter-religioso; Renovação; Judaísmo; Antissemitismo;
Shoah; Nostra Aetate.
ABSTRACT
MARTINS, Angelina C. R; In the Crucible of Reconciliation: The Christian-Jewish
dialogue, the World Parliament of Religions Vatican II. 2016. 143 p. Dissertation -
Graduate in Science of Religion Program. Pontifical Catholic University of São Paulo -
PUC - SP, 2016.
The Declaration Nostra Aetate was a document that marked the opening and to the
Church for interreligious dialogue, and was the turning point in relations with Jews and
Judaism. It was developed in the Vatican II, and in the words of Pope John XXIII, the
time was the aggiornamento or Church reform. In this process, understanding the
concept of dialogue, to the Vatican, also underwent an evolution that was considered a
key element in inter-religious relations of the twentieth century. Therefore, due to the
Council, the Catholic Church broke with the theological paradigm supersessionism,
there was a change Replacement Model for model Complementation in a new, more
liberal and flexible attitude. Thus opened the way for the Christian Theology of
Religions. However, the development of the content of Nostra Aetate was the result of
research, publications and conferences even before the Council, both of representatives
of Judaism, as for Christians, Catholics and Protestants. In this sense, the context of
World War II, the Shoah and the creation of the State of Israel was decisive for the
subject of the Jews were inserted in the Vatican. The most defended argument referred
to the issue of teaching of contempt, led by the French Jewish historian Jules Isaac, by
which the Church had to deal with religious anti-Semitism present for centuries in its
liturgy. Until its enactment was an intense work in the Council backstage, both by those
who opposed the theme of the Jews, as the conservative wing and the Eastern Catholic
Churches, who raised political issues involving the State of Israel, as the commitment of
priests, as Agostinho Bea, John Oesterreicher e Gregory Baum, with renovator spirit
whose work involved skill, knowledge, diplomacy and perseverance until the Council's
more political text was completed and approved, the Nostra Aetate.
Keywords: Interreligious Dialogue; Renovation; Judaism; anti-Semitism; Shoah;
Nostra Aetate.
LISTA DE IMAGENS E ILUSTRAÇÕES
Figura 01 - Modelo de Substituição....................................................................................... 16
Figura 02 - Modelo de Complementação............................................................................... 19
Figura 03 - Modelo de Mutualidade....................................................................................... 23
Figura 04 - Modelo de Aceitação........................................................................................... 25
Figura 05 - Synagoga and Ecclesia in Our Time (2015)………………………………........ 38
Figura 06 - Modalidades e Interações do Diálogo.................................................................. 42
Figura 07 - Capa do folheto Pax super-Israel. Associação Amici Israel (1925)................... 68
Figura 08 - Participantes da Conferência de Seelisberg (1947)............................................. 79
Figura 09 - A Igreja e a Sinagoga. Fachada da Catedral de Estrasburgo (ca.1230).............. 83
LISTA DE TABELAS
Tabela 01 - Modalidades de Diálogo.................................................................................... 11
Tabela 02 - Tipologia do Diálogo Inter-religioso................................................................. 39
Tabela 03 - Tipologia do Diálogo em Níveis de Leitura...................................................... 40
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
A.E.C. - antes da era comum, a.e.c.
UJA - United Jewish Appeal
At - Atos dos Apóstolos
BH - Bíblia Hebraica
CCJ - Conselho de Cristãos e Judeus
Cf – “Confira”
CJA - Comitê Judaico Americano - American Jewish Committee (AJC)
Cl - Carta aos Colossenses
CMI - Conselho Mundial de Igrejas
CMJ - Congresso Mundial Judaico - World Jewish Congress (WJC)
Conc. - Concílio
C. de J. - Companhia de Jesus (Jesuítas)
1Cor - Primeira Carta aos Coríntios
2Cor - Segunda Carta aos Coríntios
E.C - era comum, e.c.
Ef - Carta aos Efésios
Fl - Carta aos Filipenses
Gl - Carta aos Gálatas
ICCJ - International Council of Christian and Jews – Conselho Internacional de
Cristãos e Judeus
Jo - Evangelho de João
Lc - Evangelho de Lucas
Mt - Evangelho de Mateus
Mc - Evangelho de Marcos
NA - Declaração sobre a Relação da Igreja com as Religiões Não Cristãs - Nostra
Aetate
NA4 - Nostra Aetate - Capítulo referente ao Judaísmo
NCCJ - National Council of Christian and Jews - Conselho Nacional de Cristãos e
Judeus
ONU - Organização das Nações Unidas
PRM - Parlamento Mundial das Religiões
Rm - Carta aos Romanos
SUMÁRIO
Introdução............................................................................................................................
01
I O diálogo inter-religioso................................................................................................... 09
I.1 A evolução do conceito no Cristianismo e os diferentes modelos teológicos................. 10
I.1.1 Diálogo apologético...................................................................................................... 11
I.1.2 Diálogo teológico.......................................................................................................... 14
I.1.2.1 Exclusivismo - Modelo de Substituição.................................................................... 15
I.1.2.2 Inclusivismo - Modelo de Complementação............................................................. 16
I.1.2.3 Pluralismo - Modelo de Mutualidade........................................................................ 20
I.1.2.4 Modelo de Aceitação................................................................................................. 23
I.2 Aproximando as culturas................................................................................................. 25
I.2.1 O papel dos missionários.............................................................................................. 25
I.2.2 Repensar o papel missionário da Igreja........................................................................ 27
I.2.3 A contribuição do estudo das religiões......................................................................... 28
I.3 A religião como mediadora diante da diversidade cultural e religiosa............................ 32
I.4 Possibilidades de diálogo entre judeus e cristãos............................................................ 33
I.5 Tipologia para o Diálogo................................................................................................. 38
I.6 O Tipo Ideal..................................................................................................................... 43
II Do Parlamento Mundial das Religiões (1893) à Shoah: o desenvolvimento do
diálogo entre Cristãos e Judeus........................................................................................
45
II.1 Os bastidores do Parlamento Mundial das Religiões.................................................... 46
II.1.1 A participação dos Judeus no Parlamento Mundial das Religiões............................. 55
II.2 A Igreja e os Judeus....................................................................................................... 57
II.2.1 Os Semitas.................................................................................................................. 58
II.2.2 O Antissemitismo e a Shoah....................................................................................... 60
II.2.3 Antecedentes da Nostra Aetate................................................................................... 64
II.2.3.1 Comitê Judaico Americano (CJA) .......................................................................... 66
II.2.3.2 Amici Israel............................................................................................................. 67
II.2.3.3 John Oesterreicher................................................................................................... 69
II.2.3.4 Conselho Nacional de Cristãos e Judeus (NCCJ).................................................... 74
II.2.3.5 Congresso Mundial Judaico (CMJ)……..…........................................................... 74
II.2.3.6 United Jewish Appeal (UJA) .................................................................................. 75
II.2.3.7 Conselho de Cristãos e Judeus (CCJ)...................................................................... 75
II.2.3.8 Conferência de Oxford............................................................................................ 75
II.2.3.9 Conferência Internacional de Emergência sobre o Antissemitismo........................ 77
II.2.3.10 Conselho Internacional de Cristãos e Judeus (ICCJ) ……….………................... 79
II.2.3.11 Gregory Baum....................................................................................................... 80
II.2.3.12 Jules Isaac.............................................................................................................. 81
III Concílio Ecumênico Vaticano II: o processo de elaboração da Nostra Aetate........ 84
III.1 O Vaticano II (1962-1965) .......................................................................................... 87
III.1.1 João XXIII e a Segunda Guerra Mundial.................................................................. 88
III.2 Anúncio e Preparação do Concílio: (1959-1962) ........................................................ 90
III.3 Período Conciliar......................................................................................................... 105
III.3.1 Primeira Sessão - 11 de outubro a 08 de dezembro de 1962..................................... 105
III.3.2 Segunda Sessão - 29 de setembro a 04 de dezembro de 1963.................................. 105
III.3.3 Terceira Sessão - 14 de setembro a 21 de novembro de 1964.................................. 106
III.3.4 Quarta Sessão - 14 de setembro a 08 de dezembro de 1965..................................... 110
Conclusão............................................................................................................................
114
Bibliografia......................................................................................................................... 118
ANEXOS
ANEXO A - A retificação necessária no ensino cristão: Dezoito Pontos....................... 126
ANEXO B - Decreto sobre os Judeus - Decretum de Iudaeis.......................................... 130
ANEXO C - Sobre a atitude dos católicos em relação aos não cristãos e sobretudo
aos judeus............................................................................................................................
132
ANEXO D - Apêndice “Sobre os Judeus” para a “Declaração sobre o
Ecumenismo”......................................................................................................................
134
ANEXO E - Declaração a respeito dos judeus e dos não cristãos - De iudaeis et de
non christianis.....................................................................................................................
136
ANEXO F – Declaração Nostra Aetate sobre a relação da Igreja com as religiões
não cristãs...........................................................................................................................
139
1
INTRODUÇÃO
Compreender o desenvolvimento da relação entre cristãos e judeus em direção
ao diálogo requer extrair alguns aspectos da história do povo hebreu e da Igreja, e neles
identificar os elementos utilizados como ferramenta para a disseminação do
antissemitismo, e aqueles que tornaram possível abrir o caminho em direção à
reconciliação. O relacionamento com o povo Judeu insere-se no fluxo de ideias e
práticas decorrentes da percepção religiosa que permeou as comunidades cristãs, e a
sociedade, em diversos momentos da história, até o Vaticano II. Em um dado momento,
especificamente na Europa do século XX, foi difícil separar conceitos e preconceitos
provenientes do ensino da Igreja católica daqueles que emergiram de uma sociedade
secular e refletiram o pensamento moderno emoldurado por afirmações concernentes às
questões ligadas à supremacia da “razão”, das “verdades universais” e da “hierarquia
racial”. Neste sentido, a busca e a preservação da identidade pontuaram os eventos
daquele período, tanto no âmbito secular, quanto no religioso.
A complexa assimilação da modernidade pela Igreja, decorre de um processo
que ganhou força e foi percebido fortemente no final do século XIX até meados do
século XX, especialmente na década que antecedeu o Concílio Vaticano II. A
modernidade impactou não somente a Igreja, mas também o meio protestante e judaico,
os quais reagiram às grandes mudanças econômicas, sociais, políticas, científicas e
culturais. Tais tradições dividiram-se em posturas, tanto liberais, quanto conservadoras.
Isto significa que, apesar de suas diferenças, nelas houve o nascimento dos
fundamentalismos, ou seja, a volta às raízes e ao horizonte limitado da particularidade,
com o intuito de criar uma rede de proteção, principalmente contra à utilização do
método histórico-crítico na exegese dos textos sagrados.1 Dentre os pontos comuns
pelos quais estas tradições buscaram preservar sua identidade frente às grandes
transformações, ao Judaísmo acrescenta-se a dimensão étnica, em que ser
fundamentalista significa afirmar sua identidade étnica, cujo reconhecimento inclui
possuir uma pátria, um território.
1 Fundamentalismo é um conceito complexo que nasce de uma reinterpretação de uma tradição sagrada
ou doutrina, e de condições culturais, sociais e políticas específicas. O conceito de fundamentalismo
dever ser entendido no plural, em virtude da diversidade de movimentos fundamentalistas que emergiram
de diferentes contextos culturais, e, principalmente, de grandes tradições religiosas. Cf. PACE; 2002,
p.28.
2
A Igreja não mais poderia resistir à pressão imposta por tais mudanças, e delas
fez uma leitura seletiva, extraindo alguns elementos considerados positivos, rejeitando
outros considerados uma ameaça aos valores, e, à tradição da Igreja, ou seja, a
autoridade de seu magistério, em que “a verdade contida no texto sagrado é interpretada
à luz da tradição”. Na aproximação entre o pensamento moderno e a teologia houve os
que o rejeitaram radicalmente, mas também aqueles de mentalidade teológica renovada
que o recepcionaram reconhecendo seus avanços (PACE; STEFANI, 2002, p.132).
No que se refere ao Concílio, o momento em direção a uma inevitável renovação
na Igreja havia chegado, denominada por João XXIII, de atualização ou
aggiornamento2, que implicaria rever tanto questões ligadas à liturgia, à doutrina e aos
ritos, como à própria teologia, alinhá-la ao contexto da época e a uma nova forma de se
relacionar com a modernidade e a história. Neste sentido, no pacote da estrutura de
pensamento moderno, a força do transcendente perdera espaço para os processos
históricos.
As inteligências mais inquietas e atrevidas arriscaram suas
legitimidades eclesiais, colocando a fé em diálogo com o pensamento
moderno, em duas direções. A primeira submetendo às críticas dos
métodos científicos os textos das Escrituras, a história do cristianismo
e a própria Igreja. A segunda submetendo ao juízo da fé as realidades
imanentes em diálogo com as conquistas e os processos modernos: as
teologias das realidades terrestres de um modo geral. Em diversas
frentes e ângulos desenvolvem-se reflexões que buscam superar os
parâmetros teóricos e metodológicos rígidos da velha escolástica. A
história da teologia do século XX é a história desse esforço de
compreender e dialogar com o mundo moderno com suas
ambiguidades, concepções e práticas” (Verbete Processo Conciliar.
In: PASSOS; SANCHEZ, 2015, p.778).
Reagir, romper, e, sobretudo, renovar, este foi o desafio imposto à Igreja neste
período, o difícil equilíbrio entre a tradição e as demandas do mundo moderno, entre a
Palavra revelada e o papel do magistério. Neste fluxo, os leigos introduziram a Igreja na
sociedade moderna por meio da ação social e política. No entanto, as maiores barreiras a
serem superadas não estavam fora, mas dentro da própria Instituição, por isso, os
trabalhos conciliares, mais especificamente os textos que se referiam ao Judaísmo,
foram desenvolvidos em um cenário de conflitos, articulações, e negociações entre a
2 Significa, em italiano, atualização. Foi o Lema norteador do Vaticano II. Cf. Verbete Aggiornamento.
In: PASSOS, João Décio; SANCHEZ, Wagner Lopes (Coords). Dicionário do Concílio Vaticano II. 1.
ed. São Paulo: Paulos, 2015. p.8-9.
3
frente conservadora, que contava com o apoio da Cúria Romana, e a frente da
renovação, que contava com o carisma de João XXIII, e a habilidade do cardeal
Agostinho Bea.
A nova postura da Igreja a respeito das outras tradições religiosas foi um
processo construído a partir de pressões externas, condizentes com estas questões
impostas pela modernidade que nos referimos anteriormente. O avanço da ciência, o fim
do período colonial, com o respectivo declínio das missões imperialistas, e a
colaboração do estudo comparado das religiões que ampliou a visão de mundo, também
exigiram da Igreja um reposicionamento diante de tais realidades, que passaria do
confronto ao encontro. Se comparado aos demais temas abordados no Concílio, a
reflexão teológica sobre as demais religiões foi como uma pequena semente que ainda
iria desenvolver-se. Entretanto, o caminho para a Teologia das Religiões estava aberto,
assim, teólogos católicos e protestantes contribuíram para que fosse possível uma nova
postura da Igreja e do Cristianismo, sendo o Vaticano II o ínicio de uma nova etapa.
A disposição da Igreja para uma atitude de abertura com as demais religiões, e o
reconhecimento positivo da cultura moderna, produziram no Vaticano II dezesseis
documentos, dentre os quais a Declaração sobre a relação da Igreja com as religiões
não Cristãs – Nostra Aetate (NA). Estes documentos concretizaram a mudança da
Igreja em termos doutrinais, mas, principalmente, pastorais, ou seja, uma Igreja que
agora se vê como povo de Deus, solidária à humanidade, com suas alegrias, esperanças,
tristezas e angústias, em face das tragédias causadas pelas guerras e os genocídios,
especialmente o rastro deixado pela Segunda Guerra Mundial. Porém, a abertura ao
diálogo foi um processo complexo em que o ecumenismo e a diversidade religiosa
foram acolhidos com muita resistência por parte de uma minoria conservadora, posto
que foram rejeitados ou emendados diversos esquemas durante o período conciliar,
como veremos mais adiante.
O diálogo cristão-judaico insere-se em um esforço que já se desenvolvia fora da
Igreja, que trouxe mudanças significativas nas relações inter-religiosas e na teologia
romana. O Vaticano II foi um ponto de virada que marcou o século XX por sua
disposição à abertura ao diálogo, às questões e aos valores modernos, como as
diferenças culturais, religiosas, e à liberdade. A teologia se renovou nessas direções e
produziu vários modelos, que não cabe aqui explorá-los, mas destacamos uma
aproximação da Igreja com as demais religiões pelo caminho que se abriu através da
Teologia das Religiões e da teologia ecumênica. Porém, nestas mudanças houve um tipo
de relativização da própria Igreja, no sentido de que é vista como instrumento de
4
salvação em Cristo, e não mais em sua centralidade ou grandeza autossuficiente, ou
seja, a Igreja em relação com sua origem e missão no mundo (GIBELLINI, 2012, grifo
dele).
Nesta evolução, romper com o paradigma da visão teológica exclusivista
eclesiocêntrica, (Cristo como único e exclusivo mediador da salvação, e a Igreja única e
exclusiva instituição de salvação) e com a Teologia da Substituição (Supersessionismo
na relação com o Judaísmo), foi um importante avanço, mas apenas o início de um
longo debate teológico que trouxe questões sobre liberdade religiosa, graça, revelação,
cristocentrismo, teocentrismo, nisto, “o significado humano e o valor salvífico das
religiões enquanto religiões”. O resultado foi a superação da posição eclesiocêntrica,
mas ainda limitada à cristocêntrica, recepcionada no Vaticano II, e presente na Nostra
Aetate, uma nova atitude em direção à comunhão e à unidade com as outras
comunidades cristãs, e à estima e cooperação com as diferentes tradições religiosas
(GIBELLINI, 2012, p.508).
Teologia da Substituição ou Supersessionismo é uma interpretação cristã do
Primeiro3 Testamento que vê a relação de Deus com os cristãos como sendo ou a
“substituição” ou a “realização” da promessa feita aos judeus. Supersessionismo, do
latim supersedere (sentar em cima, presidir sobre), é a reivindicação teológica de que os
cristãos substituíam os judeus como povo de Deus, porque os judeus rejeitavam Jesus.
Portanto, três reivindicações são inerentes ao supersessionismo: “1. O Novo Testamento
cumpre o Antigo Testamento; 2. A Igreja substitui aos judeus como povo de Deus; 3. O
Judaísmo é obsoleto, a sua aliança ab-rogada”. 4
Desde o início do século XX, a relação entre o Judaísmo e o Cristianismo mudou
drasticamente. A aproximação e o desenvolvimento de uma nova abordagem para as
relações judaico-cristãs foram pioneiras e partiram de um pequeno número de
estudiosos e líderes religiosos, judeus e cristãos, na primeira metade do século. No
entanto, foi o impacto da Shoah, da criação do Estado de Israel, e o Concílio Vaticano
II que, combinados, romperam paradigmas enraizados na mentalidade cristã, expondo o
antissemitismo presente na Igreja, e a dificil tarefa de discernir o significado da Terra
para os judeus, e a política sionista do Estado de Israel. Contudo, um primeiro passo foi
dado, do preconceito milenar contra os judeus o Cristianismo redescobriu o respeito e a
admiração.
3 Nesta pesquisa iremos utilizar Primeiro Testamento em lugar de Velho Testamento, e Segundo
Testamento para designar o Novo Testamento. 4 Disponível em: <http://www.jcrelations.net/Home.112.0.html?&L=4> Acesso em: dez. 2015.
5
O termo Shoah (no inglês) tem substituído o de Holocausto, já que o massacre
dos campos de concentração não tem uma conotação religiosa, como Holocausto, mas
humana e secular, portanto, se identifica mais com tragédia ou catástrofe (Shoah).
No meio protestante, a modernidade e seus valores causaram diferentes reações,
como mencionamos no início desta introdução. Dentre elas, o Parlamento Mundial das
Religiões (PMR), ocorrido em 1893, que iremos explorar mais adiante, mas que a
recepcionou como o ápice do sucesso da civilização ocidental. Por outro lado, no
mesmo período surgiu o movimento fundamentalista protestante, como reação negativa
à modernidade. Nos Estados Unidos do final do século XIX nasceu como oposição à
teologia liberal que na Europa ganhava espaço defendendo a utilização das ferramentas
da ciência moderna como auxílio na interpretação Bíblica e sua desmitologização. A
certidão de nascimento do fundamentalismo protestante foi redigida em 1895, resultado
de uma conferência realizada em Niagara Falls, o manifesto de Niagara Falls.
Diante de tais fatos, nosso objetivo é reconstruir historicamente a dinâmica e a
mentalidade corrente durante o processo de desenvolvimento do diálogo entre cristãos e
judeus, passando pelas primeiras ações em sua direção, no período entre o Parlamento
Mundial das Religiões ao Concílio Vaticano II. Para tanto, iremos explorar as
perspectivas cristãs das outras tradições, o trabalho desenvolvido fora da Igreja, e os
conflitos e as motivações que permearam este processo, bem como a evolução do
conceito de diálogo inter-religioso em direção a um tipo ideal, inserido no contexto do
resultado obtido na Nostra Aetate.
Nesta busca, nos deparamos com alguns problemas centrais que pontuaram o
processo de construção do diálogo cristão-judaico e da NA, dentre os quais destacamos:
As relações inter-religiosas têm sido entendidas a partir de tipologias e conceitos
construídos dentro do universo cristão, o que obviamente contribuiu muito para o
entendimento destas relações, mas, por outro lado, têm seus limites pela dificuldade em
extrair a positividade das diferenças entre as religiões, extraindo apenas seus pontos
comuns, a partir da perspectiva que provém do campo de visão cristão.
Outro problema, é que olhando em retrospectiva, podemos verificar que a
convivência entre cristãos e judeus foi muito cedo marcada por conflitos, mútuas
desconfianças, perseguições, e períodos de aproximação e distanciamento, cuja origem
remonta desde a gênese do Cristianismo. Mesmo que os motivos que unem as duas
tradições sejam muito maiores e mais profundos que as diferenças existentes entre
ambas, o diálogo se torna ambíguo, pois o empenho na aproximação teológica se
mistura às questões políticas, e por elas é ainda mais fragilizado.
6
Uma terceira questão se refere à Segunda Guerra e à Shoah que evidenciaram o
fracasso dos esforços iniciados desde o PMR (1893) e seus desdobramentos, pois foram
ineficazes em conscientizar a sociedade, e o Cristianismo, sobre a importância e o valor
da diversidade religiosa e cultural. Ainda prevalecia o antissemitismo no ensino da
Igreja, e o foco estava na tolerância religiosa arraigada no Modelo de Substituição.
Posto isto, verifica-se que o diálogo cristão-judaico é uma necessidade que se
arrasta por séculos, e por isso é necessário esclarecer quais são os elementos
fundamentais que o compõem, sustentam e promovem seu desenvolvimento. A partir
destes esclarecimentos poderemos investigar se os aspectos que pautaram sua recepção
no Vaticano II estavam imersos em preocupações situadas somente no âmbito teológico,
como menciona a Nostra Aetate “patrimônio espiritual comum”, ou se políticos. Uma
pista se encontra no fato de que, na NA, documento mais sucinto dentre os nove
documentos conciliares, o parágrafo destinado à religião judaica, é, evidentemente,
diferenciado em conteúdo e extensão dos demais destinados ao Hinduísmo, ao Budismo
e ao Islã. (ANEXO F)
Neste contexto, apesar do Concílio ter sido uma grande conquista à causa do
diálogo, um marco histórico nas relações judaico-cristãs e com as demais tradições
mundiais, evoluiu do “Modelo de Substituição” para o “Modelo de Complementação”,
cujo valor das outras tradições é medido em função da cristã.
Diante de tais questões, nesta pesquisa levantamos algumas hipóteses que
pretendemos confirmar ou refutar. A primeira hipótese é que, apesar dos primeiros
passos em direção ao que hoje podemos compreender como diálogo inter-religioso
ocorresse ao final do século XIX, e tivesse seu ponto alto no Vaticano II, o diálogo
entre cristãos e judeus, por parte da Igreja, teve início de forma contundente somente
após a Shoah, motivado mais por razões políticas em reação às pressões externas, que
pela disposição ao encontro. Com todos os esforços, o texto final contemplou grande
parte das recomendações expostas nos inúmeros trabalhos desenvolvidos por judeus e
cristãos antes do Concílio.
Se a primeira hipótese for comprovada, a segunda hipótese é que, mesmo com o
predomínio de uma mentalidade de superioridade na tradição cristã, somada aos
fundamentos teológicos judaicos e cristãos de “Povo Eleito” e “Novo Povo de Deus”, os
avanços colocaram em cena o princípio da tolerância em direção à correção dos erros
passados, e possibilitaram valorizar o vínculo espiritual proveniente do patrimônio
comum de ambas tradições. Porém, cada tradição ainda chama para si a exclusividade.
7
Nesta perspectiva, 50 anos após o Vaticano II, o Modelo de Complementação –
Inclusivismo, ainda mina a legitimidade do diálogo e a integridade de cada tradição.
Compreender esta realidade tão complexa foi necessário escolhermos uma
metodologia que levasse em consideração tais características. Para tanto selecionamos o
método indutivo, com ampla pesquisa bibliográfica, a partir de documentos,
declarações, dicionários, livros, artigos e sites específicos, em sua maioria, na língua
inglesa.
Para responder aos questionamentos expostos anteriormente, nosso quadro
teórico foi delineado a partir de três eixos que deram suporte à nossa pesquisa. O
primeiro nos fornece a base do processo de encontro entre as religiões, a partir do
conceito de diálogo e do caminho que se abriu para a teologia cristã das religiões; o
segundo faz um link entre as primeiras iniciativas de diálogo no século XIX e sua
evolução testemunhada em documentos que registraram as ações por parte da
comunidade jucaica e de judeus convertidos ao cristianismo, antes e depois da Shoah,
no período que antecedeu o Concílio; o terceiro eixo se apoia, principalmente, em
documentos apresentados por representantes de entidades judaicas durante a fase
preparatória do Concílio, nos textos preparados pelo Secretariado para Unidade dos
Cristãos no período conciliar, e no Documento final, a Nostra Aetate. Assim, dividimos
esta pesquisa em três capítulos.
No capítulo primeiro, iremos expôr o processo histórico da evolução do
conceito de diálogo até sua categorização nas relações inter-religiosas, a partir de uma
tipologia proposta por Jean Claude Basset (1999), que nos ajudará a conhecer as
diferentes faces e possibilidades de diálogo inter-religioso, e nos fornecerá um olhar
mais detalhado de sua função, estrutura, natureza, e o compromisso dos interlocutores,
ou seja, os pré-requisitos e possíveis assuntos de um intercâmbio entre as religiões. Para
tanto, incluiremos também os modelos propostos por Paul F. Knitter (2008), e os
autores por ele citados para os respectivos modelos. Cientes de que seja um olhar a
partir da perspectiva cristã, acreditamos que nos ajudará no percurso desta pesquisa.
Pelo exposto acima, este capítulo pretende fornecer elementos que permitam
estruturar um tipo ideal de diálogo inter-religioso que nos dê elementos para
compreender o processo de construção do diálogo entre cristãos e judeus, suas
características, dificuldades, e, sobretudo, sua influência na elaboração do texto que
resultou na NA4, promulgada no Concílio Vaticano II. Nosso foco não é realizar uma
análise profunda dos diversos tipos de diálogo e suas origens em sentido amplo, mas
expor os principais eventos e conceitos contidos no processo histórico, a fim de utilizá-
8
los como referência e contextualizá-los na evolução do diálogo entre as tradições cristã
e judaica.
Portanto, o capítulo foi subdividido em vários tópicos nos quais iremos realizar
um breve levantamento histórico da evolução do conceito de diálogo; uma descrição
sistemática dos tipos existentes no âmbito da teologia cristã das religiões; as
contribuições que prepararam o caminho do diálogo; e uma descrição da tipologia do
diálogo inter-religioso. Ao final deste capítulo nosso propósito será delinear um tipo
ideal para a relação cristã-judaica, em comparação ao proposto na Declaração NA4.
No capítulo segundo, para entendermos os desdobramentos ocorridos desde o
final do século XIX, do Parlamento, passando pela Shoah, até o anúncio do Concílio
Vaticano II, nosso suporte será a obra publicada em dois volumes sobre a História do
Parlamento Mundial das Religiões, cujo autor é John Henry Barrows, na qual podemos
considerar que, fora do âmbito católico, foram semeadas as primeiras iniciativas de
aproximação em tal evento de cunho cultural, político, e, inter-religioso. Buscaremos
esclarecer as motivações que o impulsionaram, seus objetivos, a reação dos convidados,
e os discursos proferidos pelos representantes da tradição judaica.
Nas pegadas deste encontro houve um desdobramento que resultou em ações ao
longo da primeira metade do século XX, que abriram portas ao desenvolvimento do
diálogo ecumênico e com os judeus, que é fruto de uma complexa evolução no processo
de aproximação. Para entendermos estes desdobramentos iremos explorar a atuação da
comunidade judaica e seus membros em direção ao encontro com os cristãos, passando
pela questão das tensões entre a Igreja e o Judaísmo, posto que o século XX abalou as
estruturas da Igreja e do Cristianismo como um todo. Nosso foco será os efeitos da
barbárie da Segunda Guerra Mundial contra milhões de seres humanos, os quais foram
desumanizados, humilhados e assassinados, principalmente os de origem judaica, fato
que contribuiu para que a Igreja repensasse seu modelo teológico em relação aos judeus
e o Judaísmo.
Utilizaremos como suporte para a compreensão da evolução das relações cristãs-
judaicas os trabalhos de personalidades engajadas no tema com os judeus e o Judaísmo,
desenvolvidos no período que antecedeu ao Concílio, dentre os quais daremos especial
atenção aos especialistas Gregory Baum (1923), nascido de mãe judia e pai protestante,
e ao Monsenhor John Oesterreicher (1904-1993), também nascido judeu e convertido ao
catolicismo. Além destes, a contribuição da associação Amici Israel, a importância da
Conferência de Oxford, e a contribuição do historiador judeu Jules Isaac (1877-1963)
para a Conferência Internacional de Emergência sobre o Antissemitismo - Conferência
9
de Seelisberg (1947), e seu encontro com o Papa João XXIII, cujo fruto se tornaria um
dos nove Documentos conciliares classificados como “declaração”, a Nostra Aetate
(NA).
Enfim, também subdividido em diferentes tópicos, este capítulo irá explorar o
resultado da pressão exercida por judeus, convertidos ou não ao cristianismo, cujos
argumentos, estudos e propostas foram acolhidos por cristãos, protestantes e católicos,
especialmente por membros do clero que se dedicaram incansavelmente na promoção
destas mudanças antes e durante o Concílio.
No capítulo terceiro investigaremos o desenvolvimento deste tema durante o
período conciliar. Iremos constatar que no diálogo com os judeus, o marco de tais
mudanças deu-se no Vaticano II, portanto, as questões voltadas aos processos internos
desenvolvidos durante o Concílio, como o trabalho do cardeal Agostinho Bea e o
desenvolvimento do pensamento judaico, expressado em diversos documentos
preparados pelo Comitê Judaico Americano (CJA), contribuiram na elaboração da NA4.
Nesta direção, nossa intenção será entender o que esta Declaração de fato propôs, além
da mudança litúrgica, que anteriormente promovera o ensino de desprezo aos judeus.
Considerando que, naquele momento, a relação entre as duas tradições fora repensada
sob o signo do vínculo espiritual, e plantadas as sementes de um novo modo de
relacionar-se, questionaremos até onde a NA4 alcançou as expectativas dos que por ela
trabalharam, bem como seus limites e consertos.
Por tudo o que foi exposto até aqui, pretendemos verificar se as hipóteses
levantadas são corroboradas pelos fatos apresentados que pontuaram o período proposto
nesta pesquisa.
I O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO
Partimos de uma definição de diálogo que pautará o desenvolvimento e a
conclusão deste capítulo, na qual a diferença se faz presente e a igualdade existe em
oposição à ideia de superioridade. Assim o diálogo é “um encontro de debate em que
ambos os lados falam corajosamente, mas também, tanto quanto, escutam
corajosamente” (KNITTER, 2008, p.138, grifo dele).
A construção do diálogo inter-religioso representa um processo de entendimento
do que ele é de fato, por isso, iremos analisar em que bases um tipo ideal de diálogo
inter-religioso pode ser construído, considerando que os contextos, histórico, social, e
cultural moldam vivências e sentimentos religiosos que afetam a perspectiva que uma
10
tradição tem da outra. Neste sentido, ciente da influência exercida pela perspectiva
cultural, abrir as portas para o diálogo entre as religiões requer um profundo
conhecimento da própria tradição, das demais tradições, e o reconhecimento de suas
diferenças, uma necessidade imposta a todas as tradições pela diversidade cultural,
pelas migrações e pelo acesso aos meios de comunicação.
Deste modo, o diálogo inter-religioso pressupõe uma redefinição de sua visão
fixada a partir da perspectiva do cristianismo ocidental, pois o universo religioso é
suscetível à mudança de paradigma ou mudança de modelo, e, consequentemente, uma
reparação de incompreensões ocorridas em nome da “verdade” e da “supremacia”,
incluindo a desconstrução da definição negativa pela qual as religiões mundiais e seus
adeptos são mencionados, como “não cristãs” e “não cristãos”, respectivamente.
I.1 A EVOLUÇÃO DO CONCEITO NO CRISTIANISMO E OS DIFERENTES
MODELOS TEOLÓGICOS
A palavra diálogo, segundo Teixeira (2011), vem do grego “dia”, se refere ao
que separa e divide, e “logos”, que se refere de modo particular à capacidade humana de
pensamento e raciocínio, assim, podemos partir do pressuposto de que o diálogo, do
ponto de vista etimológico, alude à diferença presente na dinâmica do pensamento
humano.
Platão (428-348 a.e.c.) é considerado o mestre da investigação da verdade por
meio do debate de ideias. No entanto, a palavra foi compreendida nos séculos
posteriores como um debate ao fim do qual uma das partes envolvidas venceria a
“disputa” pelos argumentos. Deste modo, era associada às palavras dialexis (grego),
disputatio, altercatio, refutatio e reprobatio (latim).5
Segundo Basset (1999), na tradição cristã, desde os primeiros séculos de nossa
era foram difundidas três modalidades de diálogo que se caracterizam pelo aspecto
ligado ao âmbito da comunicação de ideias, mas não do encontro. São elas, o
apologético, o teológico e o espiritual:
5 Cf. BASSET; 1999. p.68.
11
Tabela 01 - Modalidades de Diálogo
1.1 O diálogo apologético 1.2 O diálogo teológico 1.3 O diálogo espiritual
Aquele em que uma
tradição se opõe a outra
tradição, mediante uma
disputa em uma relação de
forças; teve na tradição
judaica seu alvo mais
antigo registrado, como o
Diálogo com Trifão, (100-
165 e.c.)
Aquele que expõe a fé
cristã destacando um
determinado aspecto em
oposição a outras posições,
como as históricas.
Se refere à esfera da
espiritualidade individual,
uma expressão pessoal da
fé do crente em seu Deus,
ou naquele que o
representa.
I.1.1 DIÁLOGO APOLOGÉTICO
O diálogo-discussão entre o filósofo convertido ao cristianismo Justino e o judeu
Trifão, segundo Frangiotti (2006, pp.85-86), nascera como resposta às acusações que os
judeus levantavam contra os cristãos, mas também “para mostrar a caducidade da
Antiga Aliança que foi substituída pela Nova Aliança, a Lei de Cristo”, a Graça.6 Este
pensamento foi difundido e alimentou a ideia de superioridade do Cristianismo frente às
outras tradições religiosas e sistemas de crenças das diferentes culturas.
O Diálogo permite-nos apanhar os métodos e os temas da
argumentação desenvolvida pelas primeiras gerações cristãs. Trata-se,
antes de tudo de uma argumentação escriturística: pois que os cristãos
partilham com os judeus a herança da Escritura antiga [...] O
movimento real do pensamento cristão consiste, antes de tudo, em
reler os textos bíblicos à luz do acontecimento pascal e em descobrir
como os textos falavam profeticamente do Cristo. [...] os próprios
Evangelhos são, nesse sentido, uma apologia do cristianismo em
confronto com o judaísmo (FRANGIOTTI, 2006, pp.91-92).
6 Para alguns autores os destinatários do Diálogo foram os judeu-cristãos, os próprios judeus, e os
cristãos-não-judeus, para demonstrar a superioridade da fé cristã e a durável validade das Escrituras
judaicas. Trifão foi um personagem construído por Justino. Cf. FRANGIOTTI apud SIMON; 2006, p.89.
12
Na esfera do diálogo apologético é importante destacar que neste período, século
II, ocorrera a revolta judaica liderada pelo comandante Simão bar Koziba - Bar Kokhba,
filho da estrela - entre 132-135 e.c., ocasião em que a Palestina foi arrasada pelos
romanos, Jerusalém destruída, e centenas de milhares de judeus foram mortos. Segundo
Frangiotti (2006) muitos cristãos reconheceram neste evento o castigo de Deus contra
os judeus pela sua rejeição ao Messias Jesus. Podemos verificar que o gérmen que
desqualificaria o povo Judeu e o Judaísmo já estava presente, se fortaleceria e
disseminaria ao longo dos séculos seguintes, reforçada inclusive pela Homilia sobre a
Páscoa de Melitão de Sardes (ca.180), na qual foram acusados de “deicidas”.
Deste modo, a oposição ao povo Judeu, segundo Rodrigues (2009), foi uma
constante nas sociedades ao longo dos séculos que permeou o debate e os escritos,
inclusive de teólogos e sacerdotes católicos, dentre eles João Crisóstomo (ca.350-407),
Eusébio Sofrônio Jerônimo (ca.347-420), e Agostinho de Hipona (354-430), com o
Tractatus adversus Judaeos, encontramos referência aos judeus utilizando expressões
de oposição. O conteúdo da polêmica antijudaica “era o argumento profético, o fato da
existência da Igreja, a necessidade de disposições morais, o abandono da Lei, a
Trindade, o messianismo, e a vida e morte de Jesus Cristo. Encontramos frequentemente
os nomes disputatio, altercatio, refutatio, reprobatio”7 (RODRIGUES, 2009, p.50,
tradução nossa).
Em 1215, no quarto Concílio de Latrão, exigiu-se que os judeus usassem um
sinal de identificação. A referência negativa aos judeus se estendeu em dois eventos,
especificamente à Igreja Católica, o “Concílio de Florença” (1442), pelo qual a salvação
se dava somente por meio da Igreja; e o “Concílio de Trento” (1570), ocasião em que
foi introduzida na liturgia da Sexta-Feira Santa a oração pelos “pérfidos judeus”. Do
lado Protestante, a Reforma do século XVI trouxe atitudes cristãs mais positivas para
com os judeus, apesar do tratado de Lutero Sobre os Judeus e suas mentiras (1543).
Por outro lado, nos longos século de aversões, encontramos por parte dos judeus
atitudes semelhantes que ocorreram no início do Cristianismo. O Concílio de Jâmnia,
ocorrido no século I e.c., ocasião em que as dezenove8 orações que compõem a tefillah
foram organizadas em três grupos: as três primeiras, bênçãos de louvor; as três últimas,
bênçãos de agradecimento; e as treze bênçãos intermediárias peticionais que foram
escritas em diferentes períodos. A tefillah é o segundo momento central da oração
hebraica, composta destas 19 orações que são realizadas três vezes ao dia, recitada após
7 As palavras significam, respectivamente: debate, discussão, refutação, a desaprovação. 8 Anteriormente eram 18 orações, a décima quarta foi dividida em duas partes, aumentado mais uma.
13
a benção final do shemá. Dentre as treze bênçãos intermediárias ou centrais, havia
aquela que, de acordo com a interpretação de J. Petuchowski (Di Sante, 2012), fora
introduzida no sínodo de Jâmnia para amaldiçoar os judeus recém convertidos ao
Cristianismo.
Nesta oração o amém não poderia ser proferido pelos convertidos presentes na
sinagoga, já que estariam amaldiçoando a si mesmos. A oração proferida em repúdio
aos judeus cristãos era a décima segunda, chamada birkat ha-minim, a “bênção dos
hereges”. Nesta oração pedía-se a Deus a eliminação do mal, a saber, os caluniadores,
os hereges e os inimigos, “para os caluniadores e os hereges não há esperança [...] todos
os teus inimigos sejam imediatamente destruídos”. No entanto, não há consenso em sua
tradução, e atualmente podemos traduzí-la como “maldição dos hereges” e “oração
contra os hereges”9 (DI SANTE, 2012, p.116).
Seguindo nesta interpretação, sua origem surgiu como oração contra os judeus
convertidos ao cristianismo, por representarem uma ameaça ao Judaísmo do primeiro
século. Porém, do ponto de vista histórico, não há sentido em utilizá-la atualmente,
diante dos princípios propostos pelo diálogo inter-religioso, pela consciência do respeito
à diversidade religiosa e cultural, e diante da alteridade. Já do ponto de vista teológico,
como pedir a Deus que destrua seu inimigo?10 Existe então uma linha tênue que separa
o zelo pela tradição da apologética, na tentativa de demonstrar a superioridade de uma
tradição em relação a outra, à vontade de convencer e de converter. Ao final do século
XIX,
cristãos e judeus tinham motivos distintos para buscar o diálogo. Os
judeus queriam melhorar sua situação na sociedade e preocupavam-se
com os direitos civis. Os líderes cristãos queriam conseguir conversos
ou facilitar a assimilação do Judaísmo no Cristianismo (ICCJ, 2011, p.
34).
A partir do século XX o diálogo entre as religiões ganhou destaque, porém, os
encontros entre as tradições ocorreram fora do universo cristão, muitos séculos antes
“ainda que tais encontros tenham sido exceções. Com efeito, foram raros os diálogos
registrados por escrito; os que chegaram até nós, corresponderam ao espírito do tempo,
que era o da polêmica e da controvérsia” (BASSET, 1999, p.70, tradução nossa).11
9 Cf. DI SANTE, 2012, pp.45-149. 10 Disponível em: <https://www.jewishvirtuallibrary.org/jsource/judaica/ejud_0002_0003_0_02999.html>
Acesso em: 05 fev. 2016, tradução nossa. 11 Detalhes sobre outros encontros entre diferentes tradições religiosas, inclusive antes de Cristo. Cf.
BASSET; 1999, p.71.
14
O amor pela verdade e o zelo pela salvação dos povos fizeram com
que fosse empregada, desde o nascimento da Igreja, a arte dos
diálogos familiares para defender o sagrado depósito da fé (BASSET
apud FÉNELON, 1999, p.20, tradução nossa).
I.1.2 DIÁLOGO TEOLÓGICO
Iniciamos este tópico com o seguinte pensamento, “uma crise nasce da
contradição de um modelo, até então reconhecido, e a descoberta de novos dados
aparentemente irredutíveis” (THOMAS KUHN, 2011, pp.43-51).
O diálogo teológico evoluiu e abriu possibilidades de compreensão para além do
cristianismo, por isso, ampliaremos a análise de Basset (1999), e exploraremos o
diálogo inter-religioso com conceitos teológicos atuais, ou seja, modelos aplicáveis à
teologia cristã das religiões, sobre o modo cristão de perceber as demais tradições
mundiais: o Exclusivismo, Inclusivismo e Pluralismo, ou, segundo os quatro modelos
propostos por Knitter (2008): o Modelo de Substituição, Complementação,
Mutualidade, e Aceitação.
Ao longo da história da Igreja houve uma oscilação entre o amor “universal e o
particular”, ora “Deus ama e deseja salvar todas as pessoas”, ora “Deus salva mediante
Jesus”, interpretado como a “Igreja”. Porém, nos primeiros séculos, os cristãos, uma
minoria muitas vezes ameaçada, não lidava com “outras religiões”, mas com as questões
ligadas ao Judaísmo. Predominava entre os teólogos, os Padres da Igreja, a tradição da
vontade salvífica universal de Deus, a visão das “sementes do Verbo” presente na
história mesmo antes da manifestação de Jesus, a “Palavra ou Verbo de Deus”, que se
fez carne em Jesus, é “O Verbo do qual toda a humanidade partilha” (KNITTER, 2008,
pp.109-110).
Em complemento, destacamos dois conceitos: a revelação e o amor universal de
Deus, que ajudarão a compreender os quatro modelos teológicos mencionados
anteriormente. No conceito de revelação, a religião e o profeta, ou fundador, são
mediadores, anunciam o “Deus que já está aí”, mas a experiência é individual. O
principal é que Deus ama, e a religião é apenas mediadora deste amor (QUEIRUGA,
1997).
A partir destes dois pressupostos, o Cristianismo desenvolveu-se ao longo dos
séculos sem dar-se conta de que as outras religiões não compartilhavam dos mesmos
princípios, “Durante séculos, a teologia cristã pode passar ao lado das religiões não
15
cristãs sem notar a monstruosidade que supunha excluir seus fieis da revelação e
salvação divinas”. (QUEIRUGA, 1997, p.9)
I.1.2.1 Exclusivismo – Modelo de Substituição
Neste modelo, aplicável à Teologia das Religiões, a centralidade da verdade e
salvação encontra-se exclusivamente no Cristianismo, que não se relaciona com
nenhum outro sistema de crença ou tradição religiosa. A origem remonta desde
Orígenes (185-254), Cipriano (ca.258), Agostinho de Hipona (354-430), Fulgêncio de
Ruspe (460-533), se estendendo pelos séculos até os Concílios de Latrão IV (1215) e o
Concílio de Florença (1442), Papa Eugênio IV. O “fora da Igreja não há salvação” fez
parte da mentalidade cristã desde os primeiros séculos do Cristianismo, e permaneceu
até o Vaticano II.
Mencionamos o desenvolvimento deste modelo, principalmente na história da
Igreja, mas em Karl Barth (1886-1968), teólogo protestante suíço, o Modelo de
Substituição lançou suas raízes no pensamento protestante e sua compreensão em
relação às religiões não cristãs. Sustenta, principalmente, o pensamento de comunidades
evangélicas contemporâneas fundamentalistas (KNITTER, 2008, p.39).
Porém, a análise de Barth sobre religião, de modo geral, é que esta opõe-se à
graça, pois é obra do homem e não de Deus. Deste modo todas as religiões atrapalham o
agir de Deus, e, neste sentido, o exclusivismo do Cristianismo como religião verdadeira
aparece porque somente Jesus Cristo pode salvar o homem, e não a religião, que é falsa.
Segundo Knitter (2008, p.50) “O cristianismo é a religião verdadeira porque é a única
religião que sabe que é uma religião falsa [...] entre todas as religiões incorretas e falsas
do mundo, o cristianismo é a única falsa religião sobre a qual brilha o sol de Jesus
Cristo”. Destaca-se também a importância do Segundo Testamento na teologia de Barth.
No exclusivismo, Cristo está contra as religiões, o diálogo com as outras
comunidades de fé encontra seus limites porque não há nenhum ponto de contato,
revelação (expressão), ou salvação de Deus em outras comunidades de fé. Porém, esta
postura não é unânime. Existem posicionamentos mais flexíveis e abertos, nos quais a
substituição seria “parcial”, utilizando do mesmo modo, passagens do Segundo
Testamento para sustentar esta visão teológica cristã das religiões porém, esta abertura
limita-se à “revelação geral” de Deus em outras religiões, mas não à salvação.
16
Na Substituição Parcial, o diálogo se justifica pelo intercâmbio de informações
que ajudem a conhecer e compreender as demais tradições. Ocorre a partir de uma
tipologia que abarca, por exemplo, as questões comuns, como as sociais, ambientais e
políticas, que promovam a cooperação. Além disso, existe o pressuposto cristão do
respeito pelo ser humano, quanto “Filho de Deus”.
Enfim, no protestantismo, seja o Modelo de Substituição Total ou Parcial
exposto por Knitter (2008), podemos concluir que o “fora da Igreja não há salvação”
fora substituído pelo “fora de Cristo não há salvação”, e para conhecê-lo, a Palavra ou o
Evangelho é indispensável, assim,
a atitude mais elementar no campo inter-religioso consiste em ignorar
a existência de outras representações religiosas, em virtude de um
isolamento geográfico ou cultural. Quando as circunstâncias históricas
e políticas impõem uma coexistência, de fato, esta pode vir
acompanhada de um isolamento ideológico, que exclui todo encontro
no plano religioso (BASSET,1999, p.37, tradução nossa).
Figura 01 - Modelo de Substituição
I.1.2.2 Inclusivismo – Modelo de Complementação
O Concílio de Trento (1545-1563), décimo nono concílio ecumênico da Igreja
Católica, convocado pelo Papa Paulo III ocorrera no contexto da exploração colonial
Cristianismo:
A Salvação
Judaísmo
Budismo
Islã
As "Outras"
17
que se iniciava no continente americano, e introduziu o conceito de “batismo de desejo”
como forma de lidar com os povos indígenas, cuja “conversão” se apresentava em meio
ao hibridismo de seu sistema de crenças com o catolicismo. O “batismo de desejo”
trouxe em si o conceito de “implícito” e a ideia de “Verbo-Semente” espalhada por toda
a humanidade, e presente em todas as tradições, ou seja, a salvação estava ao alcance
dos não cristãos, por meio de suas práticas compatíveis com os critérios da moral cristã,
e da Igreja. Segundo Knitter (2008, grifo dele) foi um deslocamento de o “Fora da
Igreja não há salvação” para o “Sem a Igreja não há salvação”. De alguma forma toda
pessoa não cristã estaria “vinculada” à Igreja, porém, em uma categoria inferior, Cristo
nas religiões.
Em Karl Rahner (1904-1984), este conceito teve mais um avanço que
influenciou o Vaticano II, pois no “batismo de desejo” havia limites, não era possível
encontrar graça, revelação e salvação de Deus em outras formas de crença. Embora o
“Verbo-Semente” estivesse espalhado, as religiões não poderiam ser um campo fértil
para Ele.
Rahner revolucionou a Teologia das Religiões ao desdobrar as implicações
contidas no ponto central, de que Deus é amor, e, portanto, sua graça salvífica está
disponível “a todos e a cada um dos seres humanos”. Utilizou a doutrina da própria
Igreja para sustentar suas afirmações, a saber, “a graça de Deus age nas Religiões [...]
podem ser caminhos de salvação”, portanto, Deus age por meio das religiões mundiais.
Finalmente, cada religião teria seu próprio “batismo”. Dele vem o termo “cristãos
anônimos” (KNITTER, 2008, pp.118-119).
No Vaticano II, encontramos na Nostra Aetate - Declaração sobre a relação da
Igreja com as religiões não cristãs, afirmações em relação ao Hinduísmo e Budismo
como religiões que “refletem não raramente um raio da verdade que ilumina todos os
homens”, significando que há nelas revelação, mas não salvação. Permaneceu a ideia de
que as “sementes do Verbo estão presentes em outras tradições, mas excluiu a
possibilidade apontada por Rahner de que as religiões mundiais são caminhos pelos
quais Deus pode realizar a salvação. A Nostra Aetate demonstra a perspectiva
inclusivista da Igreja perante as demais religiões mundiais, afirmando no preâmbulo, e
ao final do penúltimo parágrafo, respectivamente, que os homens
têm também todos um só fim último, Deus, que a todos estende a sua
providência, seus testemunhos de bondade e seus desígnios de
salvação até que os eleitos se reúnam na cidade santa, iluminada pela
glória de Deus e onde todos os povos caminharão na sua luz [...] De
resto, como a Igreja sempre ensinou e ensina, Cristo sofreu
18
voluntariamente e com imenso amor, a Sua paixão e morte, pelos
pecados de todos os homens, para que todos alcancem a salvação. O
dever da Igreja, ao pregar, é, portanto, anunciar a cruz de Cristo como
sinal do amor universal de Deus e como fonte de toda a graça. (ANEXO
F)
Com relação à Igreja e o Judaísmo, o diálogo a partir do Modelo de
Complementação faz muito sentido sob a perspectiva cristã, em razão do vínculo “com
que o povo do Novo Testamento está espiritualmente ligado à descendência de Abraão”,
como cita a NA4, mas o mesmo não ocorre com o povo Judeu, para o qual o Messias
ainda não veio. Encontramos nesta Declaração, no lugar da Teologia da Substituição ou
Supersessionismo que prevaleceu por séculos na Igreja, a afirmação de um vínculo e
uma continuidade, porém, a centralidade permanece no Cristianismo, “embora a Igreja
seja o novo Povo de Deus”. (ANEXO F)
O inclusivismo ultrapassa os muros da Igreja, mas permanece na centralidade do
Cristianismo no qual Cristo é a completude das demais religiões, que sem Ele são
incompletas. Já estava presente, ainda que sem um posicionamento teológico, no
Parlamento Mundial das Religiões (1893). Ao ser adotado pela Igreja no Vaticano II
deu início a uma nova teologia cristã das religiões, cujo processo impulsionou o início
do diálogo e aproximou a Igreja, e as Igrejas cristãs, das outras religiões mundiais nas
décadas posteriores. Cabe ressaltar que o debate em torno do inclusivismo, graça,
revelação, salvação, e o papel das demais religiões mundiais, ainda permanece. Knitter
(2008) cita que, em Jacques Dupuis (1923-1984), o Modelo de Complementação
avançou para a uma proposta de Complementaridade.
Na perspectiva do jesuíta belga Jacques Dupuis, em sua obra Rumo a uma
teologia cristã do pluralismo religioso, defende que um diálogo autêntico respeita e
reconhece o valor de cada tradição. Para tanto é necessária uma complementaridade
recíproca, na qual o resultado final não objetiva a conversão, nem que a verdade cristã
leva à realização as verdades fragmentárias das outras religiões, mas o enriquecimento
mútuo. O monopólio da verdade não pertenceria aos cristãos.
O teólogo faz uma distinção entre o que o Espírito Santo realiza nas outras
tradições, e o que se encontra no Verbo de Deus, existe diferença, mas não uma
contradição ou oposição a Cristo. Assim, a pluralidade faz parte do plano de Deus, e a
plenitude não se encontra necessariamente na Igreja cristã. Neste ponto, emerge tanto o
valor das demais religiões, quanto a ideia de um relativismo, visto pelos críticos ao
modelo como algo negativo, pois a proposta se fundamenta na questão da Plenitude da
Revelação em Cristo. Esta plenitude é “qualitativa” e não “quantitativa”, não é de total
19
abrangência, mas de intensidade, portanto, relacional “os cristãos precisam relacionar o
que possuem em Jesus ao que o Espírito Santo faz nas demais religiões” (KNITTER,
2008, p.152, grifo dele).
Ainda que a ideia central de Dupuis permaneça no Modelo Inclusivista
“ampliado”, o problema está na questão do nivelamento do terreno em que ocorre o
diálogo, se a última palavra se encontra no Cristianismo, o diálogo não pode ser levado
a sério. Nesta perspectiva é possível preservar a identidade cristã e estabelecer um
diálogo mais flexível com as demais tradições mundiais. Obviamente, a centralidade
deste modelo é Cristo, porém o Espírito Santo age nas demais tradições, preservando
sua identidade e validez.
Nesta busca pelo tipo ideal e por um modelo ideal para a relação cristã-judaica, é
importante destacar a experiência dos bispos da Ásia citadas por Knitter (2008), que
afirmam, primeiramente, a busca pela harmonia criativa e não a distinção, característica
das culturas do extremo oriente. Portanto, a verdade de Cristo relaciona-se com as
outras, não as exclui nem absorve, a ênfase em Jesus como único e exclusivo salvador
fecha as portas ao diálogo. Deste modo, o diálogo é desenvolvido a partir de
“Comunidades Humanas de Base” unidas pela fé, no sentido plural, e o bem-estar de
todas. A questão se assenta em como anunciar aquele que é o Salvador do mundo,
assim, Jesus é anunciado como o servo dos pobres, e o diálogo é construído no
potencial libertador de Cristo Jesus e pela ação, ou seja, o amor que inclui o próximo
(Knitter, 2008, grifo dele).
Figura 02 - Modelo de Complementação
Cristianismo:
Salvação
Jesus
Hinduísmo:
Espírito Santo
em ação
Judaísmo:
Espírito Santo
em ação
Indígenas:
Espírito Santo
em ação
Islã:
Espírito Santo
em ação
20
I.1.2.3 Pluralismo – Modelo de Mutualidade
Iniciamos este tópico trazendo, entre outras, a contribuição do teólogo e filósofo
John Hick (1922-2012) que defende o pluralismo religioso, e propôs uma hipótese
pluralista onde defende o que chamou de revolução copernicana no Cristianismo, na
qual a centralidade não seria mais em Jesus ou no Cristianismo, mas em “Deus”, ou
seja, teocêntrica. Hick substituiu o nome “Deus” pelo termo “Real”, considerando que
poderia alcançar outras concepções, como as encontradas no Budismo. Faustino
Teixeira (2012) faz uma análise da hipótese pluralista de Hick, em que,
levar a sério o pluralismo religioso significa rever radicalmente a
estrutura tradicional da teologia cristã. Em sua visão, a doutrina da
encarnação, assim como tradicionalmente entendida, produziu na
história sérios efeitos colaterais, entre os quais o antissemitismo
cristão, a exploração colonialista ocidental, a subordinação social das
mulheres e um arrogante complexo de superioridade do cristianismo
diante das outras religiões. Para Hick, a doutrina da encarnação, por
exemplo, não pode ser compreendida em sentido literal, mas em
sentido metafórico.12
No Modelo Pluralista o diálogo é alcançado quando ouço, respeito e aprendo
com o outro. Este modelo oferece caminhos ao diálogo que promovem a igualdade, a
reciprocidade e o encontro na alteridade. A particularidade de Cristo abre espaço para o
amor universal, e a presença de “Deus” em outras religiões. Segundo Gibellini (2012,
p.513) “Cristo acima das religiões”, como expressão normativa e não constitutiva (nem
exclusiva, nem inclusiva), em que o amor salvífico de Deus desde sempre esteve em
ação no mundo. As religiões seriam vias ordinárias de salvação, e o Cristianismo a via
extraordinária (GIBELLINI apud SCHLETTE, 2012, grifo dele).
Knitter (2008) prefere referir-se a este modelo utilizando o termo Mutualidade
ao invés de Pluralismo, em razão do relacionamento e da reciprocidade que envolve as
partes. Deste modo, o acesso proposto pelo Modelo de Mutualidade, segundo Knitter
(2008, p.181), pode ocorrer em três formas: a ponte filosófico-histórica, em John Hick;
místico-religiosa, em Raimon Panikkar ou, a ético-prática.
12 Entrevista concedida à revista IHU on-line - Instituto Humanitas Unisinos em 2012, por ocasião da
morte de John Hick no mesmo ano, e da tradução brasileira do livro de autoria de John Hick. Teologia
cristã e pluralismo religioso. O arco-iris das religiões. São Paulo: PPCIR/Attar, 2005. Disponível em:
<http://www.ihu. unisinos.br/noticias/506496-john-hickeopluralismo-religioso> Acesso em: 22 set. 2015.
21
Para Hick o Divino é tão real quanto misterioso, que a verdade é infinitamente
maior que o conhecido, e que as várias religiões, de modos diferentes, experimentam,
concebem e vivem uma Realidade Divina, em razão dos filtros culturais e temporais aos
quais é submetida, ou seja, o conhecimento humano é historicamente condicionado ou
socialmente construído. Para os defensores desta abordagem, filosófíco-religiosa, a
finitude está nas religiões, posto que nenhuma delas pode pretender possuir a realidade
final acerca do Divino.
A abordagem místico-religiosa considera que “no âmago de cada religião existe
algo que excede infinitamente tudo o que um ser humano ou comunidade consegue
sentir ou exprimir [...] nenhuma religião pode conferir-nos a verdade plena e final”,
Panikkar o chama de “fato religioso único”. A finitude está na mensagem, mas não na
vivência e na experiência mística, pois “a pessoa a conhece quando a tem”. Assim, no
diálogo inter-religioso “o coração fala ao coração” (KNITTER, 2008, pp.201-202-210).
Por meio da abordagem ético-prática, os pilares são as questões éticas e a
responsabilidade ética pelas quais as religiões se aproximam e se unem, e a realidade
universal é o sofrimento. Por conseguinte, elas têm a oportunidade de aplicar os
preceitos deste modelo, ou seja, a igualdade, a reciprocidade e o encontro na alteridade.
É uma opção que percorre o caminho da dor e dos conflitos postos diante de milhões de
pessoas em todo o mundo, e, neste ponto, nos deparamos com as sequelas deixadas pelo
colonialismo, pelas missões, pela exploração econômica predatória do meio ambiente,
dos animais e dos seres humanos, para citar apenas alguns exemplos, sequelas estas que
as religiões são chamadas a agir diante do tribunal da ética.
Outra característica do Modelo de Mutualidade é o conceito de igualdade,
baseado no valor inato de cada tradição. Neste sentido Knitter (2008, pp.177-179) se
refere ao termo “terreno nivelado”, no qual o diálogo autêntico ocorre “entre iguais”13, e
em meio às diferenças. No entanto, o diálogo em meio às diferenças requer um acesso
pelo qual é possível estabelecer uma conexão entre as partes, como “algo em comum”.
Para Hick semelhanças éticas enfraquecem as diferenças doutrinárias existentes entre as
religiões. E para Panikkar, a ideia de um denominador comum “Deus” ou “Real”,
proposta por Hick, não é plausível em uma visão pluralista dada a diversidade existente
entre as religiões. Porém,
13 Expressão utilizada no Vaticano II.
22
quando as pessoas percebem situações de ganho recíproco e
consideram que podem trabalhar juntas, elas se abrem aos pontos de
vista umas das outras, e até à exigência umas das outras (WRIGTH,
2012, p.505).
Enfim, na perspectiva pluralista, uma religião não estabelece relação com as
outras religiões como ocorre no Modelo de Complementação, e não há sincretismo. O
que prevalece é a igualdade de valor entre as religiões e seus pontos comuns, dos quais
o sofrimento é um deles. “No paradigma pluralista toda religião tem sua verdade, e por
força dessa verdade abre à salvação” (GIBELLINI, 2012, p.514).
O que pretendemos extrair deste modelo foi a questão da tensão existente no
relativismo imposto a ele, visto como ameaça à identidade, cristã ou de qualquer outra
tradição, se tirarmos o foco do Cristianismo, já que o diálogo é uma via de mão dupla.
Porém, mesmo que seja um modelo em que há um esforço no sentido de abarcar todas
as formas de crença evidenciando os pontos comuns, ainda há um certo atrito
proveniente dos “filtros” culturais aos quais as tradições estão imersas, e,
principalmente, sua raiz ocidental moderna.
Quanto à aproximação judaico-cristã, a perspectiva pluralista lança algumas
possibilidades de uma aproximação, seja pela via filosófico-histórica, como foi
demonstrado a partir de John Hick, onde há uma Realidade Divina por trás de tudo,
digamos, o Deus de Abraão; seja pela conciência místico-religiosa corroborada por
Panikkar, onde o Deus é tão diverso como são as religiões; ou ainda pela via ético-
prática, que se destaca nos dias atuais.14
14 Segundo Wrigth (2012) este “algo em comum” seria uma “ordem moral” proveniente de uma força
transcendental imposta sobre nós, que dá sentido ao universo. Se fosse utilizado o termo “ordem
invisível”, estaria implícito uma fonte transcendente de significado ou de ordem moral, conceito
formulado por William James (1842-1910), autor do livro Variedades da Experiência Religiosa,
publicado em 1902. Quanto à fé religiosa ele disse que “consiste na crença de que existe uma ordem
invisível, e que nosso bem supremo reside em ajustarmos-nos harmoniosamente a ela”. O interesse de
James não estava em religiões organizadas ou instituições, mas nos sentimentos e atos que cada um
experienciava em sua relação com o que considerava divino. A obra aborda a singularidade das
experiências místicas, mencionando que seu significado era pessoal e dificilmente transferível através de
linguagem. Esta formulação é compatível com as escrituras abraâmicas. Cf. WRIGTH, 2012, pp.503-517.
23
Figura 03 - Modelo de Mutualidade
Em comum: Deus – Real único - Mistério
I.1.2.4 Modelo de Aceitação
O Modelo de Aceitação, por ser o mais recente, reflete a maneira pela qual as
pessoas da sociedade contemporânea ajustaram as abordagens anteriores a fim de
compreenderem melhor a diversidade presente no mundo. O motivo pelo qual Paul
Knitter trouxe esta abordagem foi por acreditar que os três modelos anteriores não
conseguem desempenhar o papel de um diálogo que equilibre a particularidade, que
ameaça a validade das demais crenças em relação ao Cristianismo, e a universalidade,
que retira ou, segundo o autor, obscurece as efetivas diferenças específicas que
constituem a identidade de cada tradição.
Além disso, não busca explorar pontos nem experiências comuns, a fim de
estabelecer pontes entre as religiões e crenças, muito menos levanta a questão da
superioridade cristã, mas encontra suporte no fato de que a diferença existe, e deve ser
aceita.
A aplicação deste modelo ocorre no contexto do pensamento pós-moderno, no
qual alguns elementos do pensamento moderno são vistos de forma negativa, por
exemplo, a excessiva confiança no poder da razão, que possui significados diferentes
dependendo do filtro cultural ao qual é submetida, e porque não é imune aos interesses
de quem dela quiser fazer uso para fins específicos; outro fator decorre do excesso de
confiança nos fatos, que novamente está submetido ao filtro cultural, e remete à
Deus - Real
JudaísmoDemais tradições
Cristianismo
24
necessidade de retirar da ciência o poder da última palavra, abrindo espaço para uma
abordagem que compreende o mundo não necessariamente através de seu olhar, como a
crença em mitos e a vivência da experiência mística; e, finalmente, abandonar a ideia da
busca pelas verdades universais e reconhecer as diferenças.
Este último aspecto é a base sobre a qual este modelo é construído, nele
encontramos algumas palavras-chave, como diversidade, valor, beleza, verdades, filtros,
cultura, história e julgamento. Na teologia cristã das religiões, o Modelo de Aceitação
pode ser visto a partir de fundamentos pós-liberais da religião, da teologia comparada, e
no que diz respeito à ideia de que, em consequência das várias religiões, existem várias
salvações.
Do ponto de vista da teologia pós-liberal, Knitter cita o teólogo protestante
George Lindbeck, que defende a ideia de que a religião pode ser vista “como uma
estrutura ou ambiência linguística que molda a totalidade da vida e do pensamento”, isto
significa que a linguagem precede a experiência, a ideia, a sensação “são as palavras e
as imagens a nós trazidas por nossa religião que dão forma a nossos pensamentos e
convicções religiosas”. Portanto, por meio dos filtros, não só compreendemos e
percebemos o mundo, mas o criamos, os filtros determinam e dão sentido ao que
percebemos. Dito de outro modo, como poderíamos afirmar uma vivência ou
experiência comum diante de tanta diversidade religiosa e cultural, se estamos
submetidos, vivemos e experimentamos apenas um determinado sistema simbólico?
Não se traduz a linguagem de uma tradição para outra (KNITTER, 2008, p.284).
Finalmente, há um elemento que diz respeito ao “problema” da universalidade
que se encaixa em nossa pesquisa, e para Lindbeck é a finalidade da religião, “ ‘cada
religião, apresenta uma estrutura totalmente abrangente, uma perspectiva universal’ a
partir da qual os seguidores daquela religião compreendem tudo” (LINDBECK apud
KNITTER, 2008, p.286, grifo dele).
O Modelo de Aceitação se estende de forma muito mais profunda que o exposto
neste breve tópico, aborda a questão da salvação ou salvações, expõe o lugar de Cristo,
e a importância da teologia comparada das religiões fundamentada no diálogo. Por fim,
enfatiza a harmonia em meio a uma apologética positiva, ou seja, desconstroi a ideia de
superioridade, e, como em uma engrenagem, cada religião preserva sua particularidade
e contribui com as demais.
25
Figura 04 – Modelo de Aceitação
Diferenças – Diversidade
I.2 APROXIMANDO AS CULTURAS
I.2.1 O PAPEL DOS MISSIONÁRIOS
A aproximação entre culturas se deu de diversas formas em diferentes períodos,
interligadas por interesses comerciais, por aqueles relacionados à pesquisa, pelas
guerras, em função de projetos colonialistas e seus investimentos nas grandes
expedições. Nesta mentalidade encontramos as missões católicas e protestantes
realizadas nos continentes americano, africano e asiático, cuja postura teológica
exclusivista não encontrava possibilidade de salvação fora do Cristianismo, seja por
meio da Igreja, seja pela fé em Cristo, assim, a fé cristã prevalecia sobre as demais
crenças. Por outro lado, houve importantes traduções de textos sagrados realizadas por
missionários, cujo legado contribuiu para uma aproximação, e abriu caminho para o
conhecimento das demais culturas autóctones (DOWLEY, 2009).
Na China, Índia e Japão nos séculos XVI, apesar de seu objetivo principal de
evangelizar, contribuíram no sentido de uma aproximação com outras religiões e
culturas, até então praticamente desconhecidas na Europa. Dentre eles podemos citar os
Demais Tradições
Judaísmo
Cristianismo
26
jesuítas Mateo Ricci (1552-1610) e Roberto Nobili (1577-1656) na China; Francisco
Xavier (1506-1552) no Japão e Índia.
Além destes, houve missionários protestantes que também contribuíram na
tradução da Bíblia, trabalho que exigiu grande aproximação da cultura e língua locais
para que fosse possível compreender o modo de pensamento dos possíveis leitores.
Dentre eles destacamos William Carey (1761-1834) na Índia, e Henry Martyn (1781-
1813) entre os muçulmanos, tradutor do Pirmeiro Testamento para o urdu, persa e
judaico-persa; e os Salmos para o persa (BASSET, 1999).15
Da Alemanha emerge seus maiores representantes de origem judaica como,
Herman Cohen (1842-1918), Ferdinand Ebner (1882-1931)16, Franz Rosenzweig (1886-
1929)17, e Martin Buber (1878-1965)18. A ideia de diálogo na Alemanha restringiu-se
primeiro à teologia protestante, e somente após o Vaticano II foi introduzida na Igreja
Católica.
Neste período houve uma evolução, o diálogo adquiriu uma nova concepção em
que não é somente uma comunicação verbal, mas passa a ser um dado fundamental do
pensamento que inclui possibilidades de uma relação de diálogo, e uma nova visão da
existência humana, bem como da relação com os outros e com o mundo. Neste sentido,
a verdade em um encontro não é submetida a um sistema estabelecido. “O pensamento
de Martin Buber influenciou a teologia cristã, mas não a judaica, que sempre o
considerou marginal por causa de certas posições em relação a Jesus e aos árabes”
(BASSET,1999, p.24, tradução nossa).
15 Na língua portuguesa João Ferreira de Almeida (1628-1691), pastor protestante, escritor e tradutor, foi
autor da primeira Bíblia do Novo Testamento na língua portuguesa (Amsterdam, 1681). Porém o Antigo
Testamento foi concluído somente até o último capítulo de Ezequiel devido ao seu falecimento. Coube
então ao missionário Jacobus op den Akker finalizar a tradução em 1694, que só veio a ser impressa em
dois volumes, em 1748 e 1753. A outra versão na língua portuguesa da Bíblia foi realizada por Antônio
Pereira de Figueiredo (1725-1797). 16 Ele é considerado um dos representantes mais destacados do pensamento dialógico. A filosofia de
Ebner é sobre o homem existente em um relacionamento pessoal Eu-Tu com Deus e com os outros. 17 “A estrela da Redenção” (Der Stern der Erlösung) é a obra prima de Rosenzweig, pela qual analisa a
unicidade de cada ser humano, a realidade do mundo e a transcendência de Deus que põem em xeque a
ideia de totalidade, mostrando como estas três singularidades encontram sentido, uma em relação à outra.
A criação religa o mundo a Deus, a revelação permite que o ser humano seja orientado pela Palavra
divina e a Redenção tem a tarefa de salvar o mundo, essencialmente pelo amor. Disponível em:
<https://digitalis-dsp.uc.pt/bitstream/10316.2/11963/3/02%20-%20Manuel%20Augusto%20Rodrigues.p
df?ln=pt-pt> Acesso em: 20 agosto 2015. 18 Para Buber o homem nasce com a capacidade de interrelacionamento com seu semelhante, ou seja, a
intersubjetividade. Intersubjetividade é a relação entre sujeito e sujeito e/ou sujeito e objeto. O
relacionamento, segundo o filósofo acontece entre o Eu e o Tu, e denomina-se relacionamento Eu-Tu. A
interrrelação segundo Martin Buber, envolve o diálogo, o encontro e a responsabilidade entre dois
sujeitos e/ou a relação que existe entre o sujeito e o objeto.
27
I.2.2 REPENSAR O PAPEL MISSIONÁRIO DA IGREJA
Se por um lado os missionários contribuíram para aproximar as culturas, por
outro, isso se deu em uma mentalidade na qual ainda prevalecia a postura exclusivista
da Igreja, que também alimentava as missões protestantes. Após a Segunda Guerra
Mundial, e no período anterior ao Vaticano II, ex-colônias europeias no continente
africano e asiático, ganharam sua independência, fato este que contribuiu para resgatar a
herança cultural e as tradições religiosas autóctones, subjugadas pelas missões cristãs
europeias e norte-americanas. Neste contexto “cresceu a tendência de identificar o
Cristianismo como uma força alheia que tinha pactuado com os regimes colonialistas”
(PASSOS; SANCHEZ, 2015, Verbete Nostra Aetate, p.670).
Em consequência da descolonização e do declínio do número de missionários, o
Cristianismo foi obrigado a repensar os projetos missionários, o que trouxe à Igreja o
debate sobre a necessidade de novas formas mais flexíveis e liberais de conduzir tais
projetos, resultando, como veremos mais adiante, na Declaração Nostra Aetate.
Por isso, o percurso do diálogo também pode ter grande contribuição dos estudos
pós-coloniais passando pela desconstrução do universalismo hierárquico no qual, em
uma escala evolutiva, a cultura ocidental estaria no topo. No período entreguerras do
século XX, a Europa foi obrigada a repensar criticamente seu conceito de civilização e
seus estudos relativos às religiões dos povos extraeuropeus, diante das contingências
históricas, políticas e culturais, e do processo de descolonização. Afinal, “em algumas
culturas, a razão não é a ferramenta principal para compreender nosso mundo”
(KNITTER, 2008, p.276).
Nesta lógica, chegamos ao processo de descolonização e seus efeitos que
trouxeram grandes mudanças no ideal civilizador universal moderno, a visão ocidental
cristã, em relação às outras culturas e em relação ao próprio homem, que introduziu um
novo olhar sobre a religião do “outro”.
De forma contundente, Fanon demonstra que a noção essencialista do
ser humano, uma criação das ciências hegemônicas nos impérios
coloniais, esconde uma visão hierárquica das culturas, que induz os
povos colonizados a negarem suas especificidades culturais para
aderir à suposta civilização universal (FANON apud WIRTH, 2013,
p.131).
O longo processo de descolonização e independência do domínio europeu dos
países das Américas, África e Ásia, iniciou-se no final do século XVIII, e foi finalizado
28
décadas após a Segunda Guerra Mundial. Os estudos pós-coloniais abriram um novo
caminho para um conhecimento que impactaria o desenvolvimento do diálogo inter-
religioso, principalmente no que tange às especificidades de cada tradição, em uma
mudança de paradigma relativo ao fundamento que sustentava o olhar em relação ao
outro. Como questiona Wirth (2013, p.139), “Não foi este olhar sobre a religião do
outro uma das estratégias de decifração das subjetividades e dos campos simbólicos dos
povos colonizados, para torná-los permeáveis à lógica colonial em curso?”. A visão
hegemônica é obrigada a se reinventar diante deste fato.
Neste sentido Mariátegui (2004), em seus estudos dos povos indígenas da
América Latina, propõe o que pode ser uma grande contribuição ao processo de
desenvolvimento do diálogo inter-religioso, o estudo sensível ao vínculo entre religião e
cultura no âmbito das práticas religiosas, ou seja, descolado da lógica do conquistador:
O conceito de “religião” cresceu em extensão e profundidade, não
reduzindo a religião a uma igreja e a um ritual. E reconhece às
instituições e sentimentos religiosos um significado muito diferente
daquele que ingenuamente lhe atribuíram, com radicalismo
incandescente, as pessoas que identificavam religiosidade com
“obscurantismo” (MARIÁTEGUI, 2004, p.113).
Pelo exposto neste item, podemos acrescentar que o diálogo envolve uma série
de interesses por parte dos interlocutores, explícitos ou não. Para tanto, uma série de
estratégias podem ser utilizadas se beneficiando de um tipo de conhecimento, inclusive
o da produção acadêmica, e que, no diálogo inter-religioso, pode também ocultar
relações de poder corporificadas nos interlocutores (WIRTH, 2013).
I.2.3 A CONTRIBUIÇÃO DO ESTUDO DAS RELIGIÕES
Entender o objeto religião ou as religiões, depende do contexto sociocultural e
histórico em que é elaborada a pesquisa científica e da perspectiva teórica que lhe dá
sustentação. Por isso, a importância do desenvolvimento do estudo das religiões, ou a
História das religiões, ao final do século XIX na formação dos padrões de pensamento.
Do mesmo modo, houve influência dos padrões do pensamento cristão na academia, e,
consequentemente, na relação com as demais tradições19.
19VATICANO. Pacem in terries. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/encycli
cals/docu ments/hf_ jxxiii_enc_11041963_pacem_t.html> Acesso em: 15 abril 2015.
29
O entendimento do processo de construção do diálogo insere-se nos períodos em
que foram realizados os estudos, e as respectivas epistemologias que deram suporte ao
pensamento. Assim, as tensões e as tentativas de diálogo apoiaram-se em conceitos e
pré-conceitos imersos nos contextos histórico e cultural que os produziram. Deste modo,
o estudo das religiões foi marcado por duas tendências,
a) o crescente conhecimento sobre outras culturas, inclusive suas
características religiosas; b) a crescente submissão do estudo das
religiões ao pensamento científico-racional em desfavor das
abordagens apologéticas e exigências dogmáticas (USARSKI, 2013,
p.52).
O papel da Ciência da Religião para o diálogo traz para a pesquisa uma reflexão
distanciada do objeto religião. Porém, a compreensão das especificidades do diálogo,
inclusive o que envolve cristãos e judeus, vem a partir de uma dupla contribuição: a
ciência da religião ao lado dos estudos pós-coloniais, uma vez que, na evolução do
conceito de diálogo, iremos considerar a visão das religiões e culturas cientes dos
postulados eurocêntricos que dominaram o percurso na produção de conhecimento.
Portanto, um olhar a partir das epistemologias pós-coloniais ampliará, aprofundará e
enriquecerá o entendimento deste objeto de pesquisa. Este posicionamento é essencial
para uma proposta de construção de um tipo ideal de diálogo inter-religioso, pois
segundo Wirth (2013, pp.133-141), “o ‘conhecimento e compreensão’ acadêmicos
devem ser complementados pelo ‘aprender com’ aqueles que vivem e refletem a partir
de legados coloniais e pós-coloniais”.
A aquisição de conhecimento sobre as religiões remonta a séculos anteriores ao
Cristianismo.20 Já no século XVII de nossa era, filólogos europeus trouxeram grande
contribuição por meio dos estudos filológicos, assim como da paleologia e das
descobertas arqueológicas ocorridas nos séculos XIX e XX. A História das Religiões
nasceu na segunda metade do século XIX, decorrente de um processo de
questionamento sobre a teologia cristã da revelação primordial, movimento iniciado no
século XVIII, perante a documentação etnográfica de missionários, na qual começou-se
a delinear uma atitude crítica e de investigação sobre o fato religioso, como possível
objeto de pesquisa, indagação científica, histórica, cultural e evolutiva.
A Europa decidia, em Berlim, a divisão da África (1878), e o império Britânico
tornava-se o maior império da história, e a civilização europeia era convicta de sua
20 Cf. USARSKI. In: PASSOS, João Décio; USARSKI; 2013, pp.51-61.
30
superioridade racial. Pesquisadores se interessavam pelas culturas dos outros povos, e o
termo “cultura” coincidirá com “religião”, e foi neste contexto que surgiram os
primeiros manuais de História das Religiões, porém, tendo o Cristianismo como religião
modelo.
Max Müller, linguista, orientalista e mitólogo alemão (1823-1900) pôs as bases
para os futuros manuais de História das Religiões. Com sua obra “Palestras sobre a
Ciência da Linguagem” (1861), discutiu a questão da linguagem para uma possível
interpretação dos fatos religiosos, no sentido de uma religião e linguagens primordiais.
Pautado em uma perspectiva “culturalista” afirmava que cada cultura e cada povo tem
sua própria religião, portanto, é necessário conhecer a língua de um povo para poder
explicá-lo, ser um especialista. Max Müller, considerado “pai” da Ciência da Religião,
cuja obra principal é a coleção The sacred books of the East (50 volumes de textos
sagrados-chave do Hinduísmo, Budismo, Taoísmo, Confucionismo, Zoroastrismo,
Jainismo e Islã, publicados entre 1879 a 1910), fonte essencial da história das religiões e
da mitologia comparada, sua ênfase não estava mais na “História das Religiões”, mas
em religião comparada ou ciência das religiões (USARSKI, 2013).
No final do século XIX, prevaleceu a perspectiva desistoricizante do objeto
“Religião”, a Ciência Sistemática ou Fenomenológica da Religião, que a percebe de
forma transcendente, o geral a partir do específico, uma perspectiva “objetivista” da
religião e da cultura, uma analogia universalista que busca estruturas comuns mesmo na
diversidade de fenômenos religiosos, ou ainda, sua essência, uma única religião na
origem de todas as religiões históricas, considerando o homem como essencialmente
religioso, o homo religiosus. Nesta abordagem os elementos políticos e culturais da
época estão fortemente presentes, posto que as interpretações e a compreensão da
alteridade partiam do ponto de vista Cristão Ocidental.21
Paralelamente a estes movimentos, o estudo das religiões conheceu entre 1900 e
1950 forte incremento. Em 1900, a Exposição Universal de Paris incluiu o primeiro
Congresso Internacional de História das Religiões, de uma série que ocorreria
posteriormente. A primeira cadeira sobre o tema surgiu em 1873 na faculdade de
teologia de Genebra a que se seguiram outras universidades. Entre os nomes de
professores célebres conta-se Nathan Söderblom (1866-1931) e Rudolf Otto (1869-
1937) que ensinou história das religiões na faculdade de teologia de Marburgo22.
21 Sobre o desenvolvimento do estudo das religiões. Cf. RODRIGUES, 2008/2009, pp.45-70. 22Rudolf Otto (1869-1937), teólogo luterano alemão, foi um dos mais famosos investigadores de história
comparada das religiões. A sua principal obra é Das Heilige. Über das Irrationale in der Idee des
31
Papel relevante desempenhou a International Association for the History of
Religions entre 1950 e 1970. Especialistas e interessados no assunto participavam de
congressos e sessões de estudo, e liam o que se publicava acerca das religiões e sua
importância (RODRIGUES, 2008).
Apesar da contribuição dos estudos da religião ocorridos no século XIX, os
apontamentos feitos por Wirth (2013) fornecem elementos para a reflexão de que o
diálogo inter-religioso é susceptível ao pensamento da época em que estes estudos
foram realizados, e os referenciais epistemológicos que os sustentaram. Das abordagens
pós-colonialistas podemos extrair elementos que nos ajudarão a compreender o perfil do
diálogo inter-religioso na relação judaico-cristã.
A ideia de uma relação hierárquica [...] fundamentada na suposta
superioridade racial do colonizador [...] a vinculação entre esta e o
controle das mais diversas formas de produção material e simbólica
nas regiões colonizadas [...] a repressão às formas de produção do
conhecimento [...] a imposição parcial da cultura dos dominadores [...]
de acordo com a lógica do novo padrão de poder (WIRTH, 2013,
p.134).
Na relação judaico-cristã, mesmo com a proximidade de crenças nascidas no
berço profético abraâmico, negou-se este conhecimento e semelhança em favor de suas
diferenças, sustentadas pela ideia de superioridade em relação ao “outro” e suas
práticas, e neste caso específico, gestada também pelo Primeiro Testamento ou Bíblia
Hebraica (BH), é, portanto, um componente encontrado igualmente nas duas tradições,
judaica e cristã.
Exemplos para narrativas rudimentares resultando de contatos
relativamente esporádicos entre povos interessados na delimitação do
“próprio” diante do “vizinho diferente” encontra-se no “Antigo
Testamento” no qual o discurso negativo em relação a práticas
“alheias”, revelam esforços retóricos em prol da plausibilidade da
veneração exclusiva de Yahweh. Motivos apologéticos também
predominam na maioria dos Padres da Igreja que tematizaram os
cultos “pagãos” e seus desafios para a fé cristã (USARSKI, 2013,
p.53).
Göttlichen und sein Verhältnis zum Rationalen (1917). O sagrado é o numinoso (de numen, divindade), o
que não se vê nem experimenta, que é irracional. É mistério, tremendo, fascinante. Lembra Kant com a
sua ideia de noumenon. Teve grande influência em Paul Tillich, Gustav Mensching, Mircea Eliade (Das
Heilige und das Prophane, tradução para o portugues: O sagrado e o profano), Martin Heidegger, Leo
Strauss, John A. Sanford, Hans-Georg Gadamer, Max Scheler, Ernst Jünger, Joseph Needham e Hans
Jonas. Mircea Eliade (1907-1986), historiador e romancista romeno naturalizado norte-americano, é um
dos mais importantes e influentes historiadores e filósofos das religiões da contemporaneidade. Várias
das suas obras estão traduzidas para português.
32
Apesar da distância temporal que os separa, podemos estabelecer uma conexão
entre a apologética encontrada no cristianismo primitivo, o pensamento de superioridade
cristã ocidental e as epistemologias pós-coloniais para compreendermos de que maneira
poderíamos promover o diálogo despojado de verdades absolutas entre estas tradições, e
inserí-lo nas profundas raízes que as vinculam.
I.3 A RELIGIÃO COMO MEDIADORA DIANTE DA DIVERSIDADE
CULTURAL E RELIGIOSA
A inter-religiosidade é um fenômeno social e cultural, posto que envolve a
interação entre minorias étnicas e religiosas, migrantes, refugiados, estudantes, os
matrimônios mistos, e até mesmo o uso dos meios de comunicação para fins religiosos
que afetam profundamente a vida social e individual. Assim, o contexto social e cultural
em que uma religião e seus fieis estão inseridos, nos remete ao que foi exposto em
relação ao nascimento do diálogo inter-religioso, como ferramenta de abertura e
aproximação. No entanto, desenvolveu-se em contextos de conflitos regionais e
mundiais, desigualdades sociais e regionais, imperialismo, conflitos étnicos e raciais,
ideológicos, luta de classes, totalitarismos, fundamentalismo e terrorismo; somados ao
questionamento das tradições religiosas, empoderamento das mulheres, descobertas
científicas, os direitos humanos, liberdade religiosa, ou seja, as grandes transformações
do século XX.
Tranformações estas que nenhuma religião poderia permanecer em silêncio, nem
deixar de envolver-se ou sofrer de alguma forma seus efeitos. Desse modo, seu papel e
finalidade a qualifica como mediadora, ajudando o ser humano em sua caminhada, e por
isso ganha um significado importante, pois abre mão de seu exclusivismo em favor de
ações que visem minimizar os sofrimentos impostos a toda humanidade e seu bem-estar.
A diversidade e as transformações sociais ampliaram os horizontes das religiões
institucionalizadas, inclusive pela presença de formas alternativas de crenças ou os
Novos Movimentos Religiosos. Assim, a pluralidade cultural, filosófica e política
trouxeram uma nova visão do outro e das próprias sociedades em transformação, a
realidade da diversidade cultural.23
Como vimos anteriormente há diferenças no modo como cada religião concebe o
divino, e esta diferença estende-se para a compreensão da natureza humana e do seu
23 O Termo diversidade cultural foi adotado na 31ª Sessão da Conferência Geral da UNESCO Paris, 2 de
Novembro de 2001. Cf. Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, 2002.
33
destino final, e explica a existência do pluralismo no âmbito religioso. (WOLFF, 2012).
Outra forma de pluralismo paralelo ao religioso, é o social e cultural, portanto não deixa
fora nenhum aspecto da existência humana, pois inclui a pluralidade de crenças, ideias e
valores. Neste sentido, o reconhecimento do aspecto positivo deste pluralismo pelas
instituições religiosas poderá construir as pontes ou manter a distância entre as religiões
e as culturas.
Existe pluralismo quando certa diversidade é valorizada de maneira
positiva por um indivíduo ou grupo. [...] O desenvolvimento
tecnológico torna todos os indivíduos e todas as sociedades
profundamente interdependentes; os meios de comunicação e a
mobilidade das pessoas não deixam nenhuma instituição e nenhuma
cosmovisão protegidos da concorrência (BASSET, 1999, pp.233-235,
tradução nossa).
O pluralismo deve ser entendido como uma pré-disposição interior para que
adeptos de uma tradição religiosa reconheçam a possibilidade que outras possuem uma
verdade diferente da sua, que é uma entre outras. Esta postura extrapola a ideia da
tolerância religiosa e mesmo do inclusivismo. Neste sentido, o que importa realmente é
que as religiões tenham consciência de seu papel como mediadoras, prevalecendo o
equilíbrio entre a identidade de cada tradição e a aceitação das diferenças, sem a
pretensão de uma verdade universal:
À questão da verdade das tradições religiosas tem sido dada três
respostas clássicas: a) todas são verdadeiras; b) uma só é a verdadeira;
c) todas são falsas. A primeira resposta, que se encontra na tradição
hindu, só é possível em detrimento da verdade específica de cada
tradição, em nome de uma verdade absoluta, que se situa para além de
qualquer formulação (nirguna brahaman). A segunda resposta é a que
caracteriza as tradições de origem semita, baseadas em uma revelação
de Deus que é identificada com a verdade; [...]. A terceira resposta, a
do ateísmo de todos os tempos, só é possível por conta de outra
verdade, o materialismo dialético (BASSET, 1999, p.255, tradução
nossa).
I.4 POSSIBILIDADES DE DIÁLOGO ENTRE JUDEUS E CRISTÃOS
Iniciamos este tópico com uma abordagem de Wrigth (2012) que faz o seguinte
questionamento, “Bem, não somos especiais? ”, e ainda afirma que as religiões têm
como vocação a reconciliação. Para ele, muçulmanos, cristãos e judeus têm em comum
a tendência de exagerar o que os tornou especiais no passado. Na conquista de Canaã
foram apoiados pelo único Deus, e subjugaram os “politeístas ignorantes”, embora o
34
monoteísmo hebraico não tenha predominado em Israel até o exílio babilônico no
século VI a.e.c.
Jesus nasceu judeu e pregou para judeus, sua mensagem de amor universal e
salvação pessoal, inicialmente, não incluía a abrangência transétnica. A doutrina do
Cristianismo como a conhecemos foi incluída décadas após sua morte e ressurreição, e
fora escrita em ambiente multiétnico. Feitas estas considerações, destacamos alguns
aspectos relacionados ao Judaísmo e ao Cristianismo que serão aprofundados no
decorrer desta pesquisa.
O povo Judeu tem em sua história a experiência de migrar a diferentes países, e
assimilar, ou não, a cultura e religião das sociedades onde viveram. No Judaísmo, como
foi dito anteriormente, os tempos veterotestamentários testemunharam as guerras e
conquistas em nome de Yahweh, e no Cristianismo, em nome da Igreja. Mensagens de
tolerância e beligerância, de amor e ódio, se mesclam nas escrituras de modo aleatório.
Porém, a história das duas tradições demonstra que o poder da religião fora
instrumentalizado para fins políticos, territoriais e econômicos, significando para o povo
Judeu a conquista da terra prometida, e para os cristãos o ide, a evangelização.
Neste cenário, a mentalidade de superioridade, inclusive em relação às demais
crenças, fora endossada por critérios religiosos de ambas tradições. Em um dado
momento, o Cristianismo, representado pela Igreja Católica prevaleceu, e sob a égide de
uma postura teológica exclusivista abriu caminho para que se desenvolvesse uma
cultura de desprezo pela identidade de outras tradições e culturas, neste caso específico,
os judeus.
Diante do exposto, podemos destacar algumas datas e fatos que moldaram o
pensamento sobre o diálogo com os judeus. Em 1945, ano em que emergiu a
consciência do extermínio de seis milhões de judeus na Europa pelo regime nazista, a
Shoah, assunto que será explorado de forma mais detalhada posteriormente; e junho de
1967, a Guerra dos Seis Dias, vinte anos após a fundação do Estado de Israel, ocasião
na qual a ONU aprovou o plano de partilha da Palestina, em maio de 1948, quando em
um ataque preventivo Israel impôs uma nova configuração territorial na região que
desfigurou completamente o plano proposto e assinado no acordo de 1948. Israel
conquistou Jerusalém Oriental e a Cisjordânia da Jordânia; as Colinas de Golã da Síria;
e a Faixa de Gaza e a Penísula do Sinai do Egito. Além disso, negou-se a devolver as
regiões ocupadas conforme exigia a resolução 242 da ONU, aprovada no mesmo ano,
1967 (OLIC; CANEPA, 2009).
35
Sobre a Guerra dos Seis Dias, segundo Finguerman (2012), podemos encontrar
um outro olhar deste evento, pois colaborou na transformação da postura de pensadores
judeus em relação à Shoah que, além de moralmente aceito naquela época, nutriu a
autoestima e trouxe segurança ao povo Judeu, pela primeira vez após a tragédia. Além
disso lançou fora o sentimento de culpa e humilhação dos campos de concentração.
Na evolução do conceito de diálogo, em 1947, a Igreja Reformada da Holanda
declarou que o diálogo/conversação deveria ser a relação normal entre a Igreja e a
Sinagoga, e segundo Basset (1999) o termo foi utilizado para designar uma relação
teológica com o povo Judeu. Na Declaração de 1948 do Conselho Mundial de Igrejas
(CMI) sobre The Christian Approach to the Jews24, o termo foi associado a uma
perspectiva inter-religiosa, porém, referia-se mais à ideia de diálogo ou conversação
entre cristãos e judeus, permeada pela intenção de convencê-los de que Jesus era o
Messias.
No entanto, as iniciativas de diálogo, geralmente provenientes do lado cristão,
tiveram seu ponto mais importante na Conferência de Seelisberg (1947), que
influenciou o conteúdo da Nostra Aetate. Porém, a resistência judaica ao diálogo
também encontra suas bases nas percepções diferentes que uma tradição tem da outra,
por exemplo, a assimetria histórica da dependência da tradição filha em relação à
tradição mãe; do opressor em relação ao oprimido; assim como a assimetria
sociopolítica em termos de relação numérica e de força, somadas às relações entre o
Estado e a religião.
O cristão, dada a forma como se entende pessoalmente, não pode
evitar encontrar-se confrontado com a persistência de um Judaísmo
vivo e vigoroso [...] a situação do Judaísmo é completamente
diferente. Não há nenhum elemento de sua natureza ou de sua
estrutura que necessite ser confrontado com o Cristianismo. A
existência de um Cristianismo florescente não representa aos judeus
qualquer questão da verdade (SIEGMAN 1978 apud BASSET, 1999,
p.272).
No século XVII, com a emancipação dos judeus ocorrida na Prússia, por Moses
Mendelssohn (1729-1786), foi levantada novamente a questão da verdade cristã para
alguns judeus, em decorrência do fim do isolamento dos guetos, podiam escolher entre
esquecer a herança judia e converter-se à Igreja ou a assimilação na sociedade, ou ainda
24 Cf. BROCKWAY, Allan. The Theology of the Churches and the Jewish People. Statements by the
World Council of Churches and its member churches. Geneva, WCC, 1988. p.186. Disponível em:
<http:// www.abrock.com/Assemblies.html#Amsterdam%20a> Acesso em: 20 agosto 2015.
36
o retorno às raízes judias em tensão com os pensamentos e valores vigentes. Foi no
período entreguerras, na Alemanha, que se destacaram os precursores mais influentes
entre judeus e cristãos, Franz Rosenzweig (1886-1929), que afirmou a dupla aliança de
Deus, em que cada tradição possui parte da verdade total; e Martin Buber (1878-1965)
pela sua disposição em compreender a fé cristã em Jesus como filho de Deus e
Salvador, quando declarou ser Ele um irmão mais velho, pensamento que seria utilizado
por teólogos católicos durante o período pré-conciliar, que colaboraram na reflexão e
construção de um novo relacionamento da Igreja com os judeus.
Relativamente à influência do secularismo e do pluralismo, nos
atentamos a estes processos com atenção ao reconhecimento dos
cultos judaicos (bem como das igrejas reformadas) junto aos católicos,
em 1801 e 1802, na França, como parte do processo do diálogo inter-
religioso, no sentido de reconhecimento irreversível da alteridade
presente nas sociedades modernas (BASSET, 1999, p.240).
Muitos rabinos judeus defendem uma postura que mantém a exclusividade da fé
e sua dimensão interior, sem comparações, mas que se abre ao pluralismo em outras
dimensões do diálogo. Assim, um diálogo que envolva questões culturais e não
teológicas, que articule um encontro humano e religioso, apesar das controvérsias
religiosas, são defendidas pelo rabino ortodoxo Joseph B. Soloveitchik: “Não existe
contradição alguma entre o fato de coordenar nossa atividade cultural com os outros e,
ao mesmo tempo, o fato de submetê-los à confrontação como membros de outra
comunidade de fé” (SOLOVEITCHIK, 1964 apud BASSET, 1999, p.375).
O rabino conservador Abraham Joshua Heschel (1907-1972), em relação à
postura exclusivista relativa à verdade, situa o diálogo inter-religioso na experiência
religiosa, sugerindo que no temor e tremor, na humildade e na contrição, onde os
homens de fé buscam a Deus, se encontra a base mais promissora de encontro entre
crentes de diferentes tradições. Aqui podemos encontrar um elemento que fortalece o
respeito aos demais crentes, dado o aspecto íntimo que envolve o universo da fé.
Porém, é difícil pensar em um diálogo mais profundo se o apoiarmos apenas em
bases culturais ou na experiência religiosa individual, quando as duas tradições possuem
questões teológicas tão distintas, paradoxalmente ao vínculo espiritual considerado
pelos cristãos. No entanto, uma nova proposta é defendida por André Nathan Chouraqui
(1917-2007), que nos instiga a repensar o diálogo de forma idealizada, mas ousada,
como o encontro e a reconciliação dos filhos de Abraão, não por meio de um
ecumenismo, nem pelas correções dos erros do passado, mas o diálogo pensado em um
37
nível mais profundo a partir das próprias raízes, que arranque das paredes das igrejas e
sinagogas o Deus nelas aprisionado, retirando todo tipo de fronteira construída pelo
homem. Encontraremos elementos deste pensamento nos questionamentos levantados
no período que antecedeu o Vaticano II, como será abordado mais à frente.
Para ele, a exigência Bíblica de conversão a Deus é também uma conversão ao
homem, para além das fronteiras e confissões religiosas: “O diálogo judaico-cristão se
inicia apesar da afirmação da divindade de Jesus, escândalo para o judeu, e a rejeição
dos judeus da pessoa de Jesus, não menos escandaloso para o cristão”. Acrescenta que o
diálogo inter-religioso tem a finalidade de reconciliar a humanidade e, portanto, passa
pela justiça e pela paz, entretanto, nenhuma religião manteve sua contribuição para a
justiça, a paz, a salvação e o amor, todas são chamadas a reconhecer seu fracasso:
“Todos vocês pretendem salvar o mundo, porém, quatro mil anos depois de Abraão, três
mil anos depois de Davi, dois mil anos depois de Cristo, séculos depois de Maomé, a
quem haveis salvo?” (CHOURAQUI apud BASSET, 1999, pp.382-383, tradução
nossa).
Haveria então, alguma possibilidade de romper com os preceitos bíblicos
judaico-cristãos da exclusividade de “Povo Eleito” da Antiga Aliança, e o “Novo Povo
de Deus” da Nova Aliança, como moldes de superioridade, em favor deste ideal de
unidade do ser humano que supere as diferenças teológicas?
Se eles esquecerem as diferenças que têm entre si e em relação a
outras religiões, veremos um divisor maior no pensamento moderno:
aqueles entre as pessoas que acham que existe, de alguma forma, uma
fonte divina de significado, um propósito superior neste universo, e as
pessoas que não acham isso (WRIGTH, 2012, p.505).
Concluindo o pensamento de Wrigth (2012), o caráter de Deus é resultado do
modo como judeus e cristãos o pensam. Portanto, pensá-lo como menos inclinado a
favorecer somente a eles, promoveria grandes mudanças em favor de um diálogo mais
próximo, pensar então que são um pouco menos especiais. O relacionamento de Deus
com uma tradição não diminui a sacralidade da outra.
38
O problema não está em Deus, mas sim na nossa falta em entender
que Deus ama igualmente pessoas diferentes. Aprender como ser
maduro, e como crianças saudáveis celebrar os modos únicos em que
amor está sendo dado de cima. Talvez, como no Gênesis, esse
entendimento novo só possa vir depois de rivalidades de crianças que
degenerem em fratricídio, exclusão ou abandono. Mas, depois da
Shoah [Holocausto], não estamos dispostos a reconceitualizar a nossa
família mais ampla por um paradigma mais amante. Podemos
aguentar não fazer isso? 25
Figura 05 - Synagoga and Ecclesia in Our Time. Escultor: Joshua Koffman, 2015.26
I.5 TIPOLOGIA PARA O DIÁLOGO
O diálogo inter-religioso é fruto de um longo processo que se desenvolveu à
margem de motivações provenientes de lideranças religiosas, foram mais culturais e
políticas que propriamente entre religiões. Quantitativamente, iniciou seus primeiros
passos de abertura no Parlamento Mundial das Religiões (1893), ocasião em que abriu
caminho, pelo aspecto cultural, para um crescente número de encontros, assembleias e
conferências entre várias tradições religiosas, até o Concílio Vaticano II, via religião,
que foi o marco da abertura ao diálogo no século XX. Qualitativamente, desenvolveu-se
25 Cf. BOYS, Mary. Deus Teve Uma Bênção Somente? Judaísmo como fonte de autoentendimento
cristão. In: Jewish-Christian Relations (ICCJ), 2007. 26 Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Synagoga_and_Ecclesia_in_Our_Time_b_
Joshua_Koffman_2015.jpg > Acesso em: 05 abr. 2016, tradução nossa.
39
em uma diversidade de estilos e formas de praticá-lo. Atualmente, podemos esboçar
uma tipologia que permite uma visão de sua evolução.
A construção da tipologia do diálogo inter-religioso teve a contribuição de
diferentes pesquisadores, após a promulgação da Nostra Aetate, em 1965. 27
Tabela 02 – Tipologia do Diálogo Inter-religioso
Em sua análise, considerando o referido período, Taylor argumenta que
predominava o tipo discursivo abstrato de diálogo nos planos e ações.
Sharp, insere os tipos secular e interior de diálogo, em detrimento dos tipos
socrático e pedagógico, e vê no tipo discursivo um tipo que prima pelo conhecimento
adequado das tradições, portanto, menos abstrato e analítico.
27 Cf. BASSET, 1999, p.301.
Em 1967 Richard W. Taylor deu à
palavra diálogo quatro
significados:
Em 1975, Eric John Sharp
também considerou quatro
significados:
Em 1983, Arvind
Sharma sobrepôs quatro
modelos aos de Taylor:
1 - Diálogo socrático: realizado a
partir de um questionamento mútuo
sobre um tema específico;
1- Diálogo discursivo: derivado
do debate dialético, orientado ao
conhecimento adequado das
tradições presentes;
1 - Teológico: visto a
partir de uma determinada
tradição;
2 - Diálogo no sentido de Martin
Buber: como presença existencial do
outro;
2 - Diálogo buberiano: “escutar o
outro enquanto outro [...] tal
como ele entende;
2 - Pessoal: sentido
existencial, diálogo com
Deus;
3 - Diálogo discursivo: mais abstrato
e analítico;
3 - Diálogo secular: determinado
pelos problemas sociais e
políticos que os crentes têm que
lidar;
3 - Acadêmico: que
associa o desejo científico
à sensibilidade;
4 - Diálogo pedagógico: entre
professor e alunos.
4 - Diálogo interior: enfatiza a
dimensão contemplativa e
mística das tradições religiosas.
4 - Criativo: contribuição
dos crentes para o desafio
da modernidade.
40
Por fim, Arvind Sharma também menciona quatro tipos, mas suas definições
estão entre a atitude que gera discussão acalorada e controversa, e a atitude sincrética
presente no diálogo, demonstrando assim, sua complexidade.
Na proposta seguinte, poderemos definir o diálogo inter-religioso a partir de uma
tipologia em três níveis de leitura: a forma, a natureza e o compromisso do diálogo.28
Tabela 03 – Tipologia do Diálogo em Níveis de Leitura
Forma ou estrutura do diálogo Natureza do diálogo Compromisso do
diálogo
Modalidades exteriores do diálogo em
função de dados quantificáveis. A
configuração e a organização em termos de
número de pessoas e tradições religiosas
representadas.
1ª Modalidade de diálogo:
Local: mesma realidade
sociopolítica e cultural;
Internacional: envolve
especialistas, professores,
universidades, missionários.
2ª Modalidade:
Restringido: número restrito de
participantes com vínculos de
confiança;
Ampliado: número ampliado de
participantes sem vínculos
pessoais, ênfase no tema abordado
e não nas relações pessoais.
3ª Modalidade:
Bilateral
Multilateral
Participantes:
Leigos: ação no
compromisso social,
familiar e profissional;
Sacerdotes: ênfase na
comunidade e nas
práticas religiosas;
Teólogos: ligados aos
conceitos religiosos;
Religiosos/Monges:
voltados à experiência
religiosa.
Finalidade implícita
ou explícita do
diálogo, e sua razão
de ser.
28 Este é um resumo extraído a partir da tipologia encontrada na obra de Basset (1999), o que não impede
sua ampliação e outras variações.
41
Os meios postos para a efetivação do diálogo inter-religioso são essenciais ao
seu sucesso para que determinados objetivos sejam de fato atingidos. Mesmo que seja
uma tipologia mais geral, cuja natureza não abarca a estrutura de todas as grandes
religiões mundiais, ainda é útil para nos direcionar e melhor compreender as
possiblidades existentes dentro das estruturas, natureza e compromisso do diálogo.
Diálogo local: este tipo de diálogo se caracteriza pelos encontros cuja pauta são as
questões que afligem as sociedades, o ser humano, afetam as famílias e os jovens,
por exemplo; aqui inserem crentes de diferentes tradições, inclusive de ideologias
humanistas;
Diálogo internacional: da mesma forma que o anterior, mas expande-se para
questões do meio ambiente, violação dos direitos humanos, guerras, etc.
Diálogo restringido: se apoia na confiança mútua, há compromisso pessoal
envolvendo as partes. As ideias gerais e a defesa de pontos de vista são menos
importantes, pois o compartilhar, e a compreensão que cada um tem de si mesmo, de
sua fé e do outro, são a motivação desta forma de diálogo;
Diálogo ampliado: a ênfase recai na comunicação de informações e na comparação
das práticas, ou sistemas religiosos, em detrimento do compromisso pessoal. São
realizadas sucessivas exposições e debates sobre as perspectivas de cada
representante;
Diálogo bilateral: esta modalidade que reúne duas tradições particulares favorece o
diálogo e seu desenvolvimento histórico, porém, tende a polarizar as posições com o
predomínio de uma tradição, a mais engajada e atuante, cujos representantes são
especializados, o que não permite uma visão que privilegie a pluralidade de visões
importantes às relações inter-religiosas;
Diálogo multilateral: não se apoia no conhecimento real de cada tradição pois
repousa em uma noção mal definida de homo religiosus ou humanidade comum. No
entanto, adquire todo seu sentido na pluralidade religiosa e na diversidade de
posições, não em atitudes comuns, mas por outro lado, busca respostas aos aspectos
comuns que afetam toda a humanidade, como a paz mundial, a questão da
desigualdade no desenvolvimento dos países, e a defesa dos direitos humanos.
Na combinação entre as modalidades que compõem a estrutura, insere-se a
natureza do diálogo inter-religioso, que por sua vez é impulsionada pelo compromisso e
os objetivos a que este se propõe, podendo resultar nas seguintes interações:
42
Figura 06 – Modalidades e Interações do Diálogo
O ecumenismo e o diálogo cristão-judaico, por exemplo, se inserem na combinação
entre as modalidades de diálogos local-restringido-bilateral;
Na modalidade local-restringido-multilateral: fazem parte os conselhos consultivos,
locais e regionais;
O encontro de duas tradições por ocasião de festas religiosas ou manifestações civis,
ou ainda uma conferência decorrente da visita de algum líder religioso, se encaixam
no modelo local-ampliado-bilateral;
Diálogo local-ampliado-multilateral: é um exemplo ocorre em países com forte
presença da pluralidade religiosa;
Internacional-restringido-bilateral: ocorre nas visitas ao Papa por personalidades
religiosas de todos os continentes;
O Diálogo internacional-restringido-multilateral: corresponde às iniciativas do
Conselho (Ecumênico) Mundial de Igrejas, (CMI) e o diálogo entre judeus, cristãos
e muçulmanos, por exemplo;
No Diálogo internacional-ampliado-bilateral: temos o exemplo dos congressos
internacionais entre as duas tradições religiosas;
No Diálogo internacional-ampliado-multilateral: o Parlamento Mundial das
Religiões (1893) é considerado um exemplo (BASSET, 1999, pp.304-311).
Local
AmpliadoRestringido
Internacional
AmpliadoRestringido
Bilateral Multilateral Bilateral Multilateral
Diálogo
43
Podemos ainda nos aprofundar um pouco mais, e verificar por um lado, a
espontaneidade e a informalidade destes encontros, e por outro, o aspecto mais
estruturado e formalizado. Um verdadeiro diálogo não se apoia somente em
espontaneidade, nem tampouco somente entre sistemas religiosos, mas se situa entre a
pessoa e a instituição, ou seja, não dispensa o fator pessoal nem a referência às
instituições.
De acordo com a tipologia apresentada, as relações judaico-cristãs inserem-se na
estrutura de um diálogo local ou internacional, restringido pelos vínculos de confiança,
e, bilateral. Quanto à natureza, pode ocorrer dentro das diversas esferas, das quais a
mais profunda, de acordo com a proposta de Chouraqui, seria a encabeçada pelos
sacerdotes com mentalidade voltada ao diálogo, cuja ênfase estaria nas relações
comunitárias, no respeito pela identidade e diferenças de cada comunidade, e na
mudança progressiva em direção à aceitação, ou seja, fortalecer as relações de confiança
com o objetivo de promover a reconciliação do ser humano.
I.6 O TIPO IDEAL
A partir das considerações realizadas neste capítulo, nos perguntamos então,
qual seria o tipo ideal de diálogo entre as tradições cristã e judaica? De modo geral, foi
possível entender que o sentido e a eficácia do diálogo partem do encontro das
diferenças, o reconhecimento da identidade de cada tradição, e da perspectiva que cada
uma tem em relação às questões existenciais, ao sofrimento e à concepção de “Deus”. A
afirmação da igualdade de valores e a solidariedade abrem espaço à mútua compreensão
e apreço, neste sentido, pressupõe avançar na perspectiva inclusivista, prescindindo a
lógica da comparação. Além disso, o diálogo envolve não somente indivíduos, mas
instituições, e nisto reside uma articulação equilibrada onde questões políticas podem se
infiltrar.
No mundo contemporâneo o diálogo inter-religioso é uma oportunidade de
abertura ocorrida pela mudança de atitude nas relações entre as lideranças religiosas, e
no resgate da confiança perdida nas religiões, em virtude da incapacidade de lidar com
questões emergentes na sociedade moderna, como os movimentos fundamentalistas, e,
principalmente, de evitar as duas Grandes Guerras Mundiais. Uma definição mais
moderna ampliou o conceito de diálogo e propôs um encontro construtivo de respeito
recíproco e compreensão mútua da fé de outras tradições religiosas, sem comparações,
cuja base comum partiria do sofrimento da humanidade, e a unidade pela solidariedade:
44
Empregamos o termo diálogo em seu sentido moderno de encontro
construtivo entre cristãos e muçulmanos, isento de intenções
polêmicas ou de conversão; um encontro em clima de respeito
recíproco e compreensão mútua da fé do outro, com o propósito de
encontrar uma base comum e um compromisso que favoreça o bem-
estar da sociedade como um todo (TRIMINGHAN apud BASSET,
1999, p.68, tradução nossa).
Na relação judaico-cristã, o diálogo se diferencia das demais religiões, pois os
cristãos creem no vínculo espiritual existente com a tradição judaica, embora o mesmo
não seja recíproco. O diálogo proposto a partir de elementos culturais, sociais, e da
experiência religiosa, apesar de seu valor, são um tanto superficiais dado o vínculo
espiritual entre as duas tradições. Uma relação inter-religiosa mais profunda, também
deveria ir além das reparações, portanto, parte de uma aproximação entre as
comunidades que rompa paradigmas teológicos de ambos os lados. O aprofundamento
do vínculo espiritual, já iniciado na Nostra Aetate, situa-se timidamente entre as esferas
teológica e política, cujos motivos serão compreendidos nos capítulos posteriores.
Portanto, o diálogo inter-religioso é um termo recente, tem sido utilizado a partir
da década de 1940, e é associado a uma perspectiva inter-religiosa, tanto para referir-se
às relações entre diferentes religiões, como às relações ecumênicas. Fruto da pós-
modernidade posto a todas as tradições, cujas sociedades são chamadas a conviver com
a diversidade. Neste cenário, percebemos que os modelos podem articular-se nas
relações inter-religiosas, e não podem ser mais entendidos apenas em termos de “um
modelo” ideal para todas as religiões, mas, desenvolver um tipo de habilidade, pela
qual, cuidadosamente, as diferentes posturas ou modelos teológicos, exclusivistas,
inclusivistas, pluralistas, e de aceitação, interagem diante das diferentes questões
relacionadas à identidade de cada tradição, e, obviamente, permitem um olhar de fora.
Deste modo, a partir da tipologia proposta por Knitter (2008), podemos
considerar que todas as posturas podem estar presentes em uma tradição, dependo do
que está sendo posto em diálogo. Mas dentre os Modelos, o de Aceitação abre grandes
possibilidades para o diálogo cristão-judaico, devido à sua disposição de reconhecer a
verdade de cada um, e à sua articulação em diferentes direções, que permite
aproximações mais profundas e amplas.
Ciente que estes modelos partem de lentes cristãs, não aplicáveis integralmente
às demais religiões, devem, portanto, ser entendidos como “ferramenta geral”,
respeitando as diferentes perspectivas de cada tradição religiosa. Como cita Usarski
(2009) referindo-se ao diálogo a partir do Budismo:
45
mesmo que a classificação em termos de inclusivismo, pluralismo, ou
exclusivismo seja evidente, é preciso perguntar a que dimensão
religiosa a postura se refere. Trata-se de um posicionamento diante de
um elemento doutrinário, de uma prática espiritual, ou de um objetivo
soteriológico? (USARSKI, 2009, p. 168).
Assim, a pretensão da verdade que cada religião carrega não a leva ao encontro
positivo com as demais, porém, a afirmação da identidade sim, com flexibilidade e
disposição para reconhecer as diferenças, e adequar-se a cada cultura que a recepcione.
Ir além dos limites encontrados nos modelos teológicos, significa permitir que a
perspectiva do outro seja conhecida e reconhecida, inclusive como sinal de avaliação do
modo pelo qual as tradições veem umas às outras.
Dentro de uma tipologia detalhada oferecida por Basset (1999), vimos então a
estrutura, a natureza e o compromisso do diálogo, sua forma ampla, restringida, local,
mundial, bilateral ou multilateral, que permite posicionar, frente a frente, crentes e
instituições com suas particularidades e diferenças.
Feitas estas considerações, e tomando como princípio norteador do diálogo o
que foi exposto acima, nos próximos capítulos iremos explorar os eventos que
contribuíram para o desenvolvimento do diálogo com o povo Judeu, considerando o
espaço de tempo situado em dois momentos históricos, o Parlamento Mundial das
Religiões (1893) e o Concílio Vaticano II (1962-1965).
II DO PARLAMENTO MUNDIAL DAS RELIGIÕES À SHOAH: O
DESENVOLVIMENTO DO DIÁLOGO ENTRE CRISTÃOS E JUDEUS
O Parlamento Mundial das Religiões ocorrido em Chicago (1893), entendemos
não como o marco do diálogo entre as religiões, mas como a primeira grande iniciativa
de abertura para que diferentes religiões pudessem se conhecer e reconhecer, e que, para
além da lente exclusivista cristã, e já lançando as sementes do inclusivismo, havia
outras importantes tradições religiosas que responderam ao convite a fim de serem
vistas e ouvidas, para o qual seus representantes se dispuseram a viajar milhares de
quilômetros, e mostrar uma face até então obscurecida pela “supremacia da cultura
ocidental”.
Neste capítulo iremos nos aprofundar na história deste evento, e dele extrair os
detalhes que envolveram a participação dos representantes do Judaísmo, seus discursos,
ideias, intenções, e sua visão das relações inter-religiosas. Um levantamento histórico
46
permitirá conhecer a origem e os vários atores que exerceram papel fundamental
também no seio protestante, por exemplo, o pastor presbiteriano americano John Henry
Barrows (1847–1902) se destaca por ter organizado e dirigido o PMR realizado em
Chicago, trazendo pessoas renomadas de diferentes tradições religiosas de diversas
nações, pesquisadores e eruditos, a fim de aumentar o interesse nos estudos das religiões
e esclarecer os equívocos sobre as diferentes tradições, no que diz respeito à supremacia
de uma religião em detrimento de outra. A ele é creditada a introdução de um novo
conceito de “tolerância” e “compreensão” entre todas as nações e religiões.
II.1 OS BASTIDORES DO PARLAMENTO MUNDIAL DAS RELIGIÕES
Barrows foi autor da obra que narra detalhadamente o evento em dois volumes,
dividos em cinco partes, sendo a terceira, que incluiu uma Seção Científica, foi
reservada às 190 comunicações feitas pelos representantes das diferentes tradições
religiosas, eruditos e pesquisadores. A capa da obra contém o seguinte versículo bíblico:
“ Não temos nós todos um mesmo Pai? Não nos criou um mesmo Deus? ” (Ml 2,10).29
O PMR ocorreu em setembro de 1893 às margens do Lago Michigan, em
Chicago (EUA), na ocasião do 4º centenário da chegada de Cristovão Colombo ao
continente americano, e da Exposição Mundial realizada em sua comemoração, na qual
foram apresentados os resultados do progresso tecnológico, comercial, social e
intelectual, ou seja, a expansão ocidental no mundo. Mais de cinquenta países se
prepararam para este evento, o “Festival da Paz”, às margens do Lago Michigan, em um
cenário arquitetônico espetacular, com a participação dos principais arquitetos
americanos. O Congresso das Religiões integrava a parte cultural deste evento. A
descoberta da América por Colombo, razão de ser da Exposição de comemoração, foi,
ironicamente, o início do colonialismo espanhol sobre as terras indígenas, e estes
grupos, os nativos americanos, foram sub-representados na Exposição Mundial.
Apesar disso, a influência da religião na história da humanidade foi reconhecida
pela sua contribuição na arte, arquitetura, ética, educação, literatura, e, nos governos,
que segundo o ponto de vista dos idealizadores do evento, a liberdade americana era
fruto de sua religião. A ideia de um Congresso das Religiões foi vista como uma
necessidade na época, pois as tendências da civilização moderna foram em direção à
unidade, mas também aos conflitos, em que “os seguidores do Príncipe da Paz,
29 Cf. BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Almeida Corrigida Fiel (ACF). São Paulo: Sociedade Bíblica
Trinitariana do Brasil, 2012.
47
deveriam procurar unir os homens em uma fraternidade mais ampla que a alcançada
pelas vias diplomáticas, pelo comércio ou o nacionalismo” (BARROWS, 1893, v.1, p.6,
tradução nossa).
Assim, a mentalidade que inspirava e vigorava à época era a das conquistas
comerciais via colonialismo, nas quais a expansão missionária cristã atuava, e por isso,
em relação ao Congresso Mundial da Religiões, despertou-se a ideia como segue relato,
E não deve ser o progresso intelectual e moral do homem
adequadamente estabelecido em meio a esses esplendores materiais?
Porque deveriam ser convidados para a Exposição Mundial os
caçadores de marfim nas florestas da África e os cortadores de marfim
aglomerados nas cidades do Japão e da China, os tecelões de seda de
Lyon e os fabricantes de xale da Caxemira, os designers de
Kensington, os tecelões de renda de Bruxelas e das tribos indígenas da
América do Sul, [...] da prata dos mineiros do México, os fabricantes
de navios do Clyde e os construtores de canoas do Rio Mackenzie, e
excluídos os representantes dessas forças superiores que fizeram a
civilização? (BARROWS,1893, v.1, p.4, tradução autora).
O processo de organização do Parlamento começou com Charles Carroll
Bonney (1831–1903). Foi professor, advogado, que tornou-se juiz em 1866, também
protestante, e idealizador deste evento e Presidente Geral dos Congressos ocorridos
durante a Exposição de Colombo,
Quando aprouve a Deus me dar a ideia dos Congressos de 1893, veio
com essa uma profunda convicção de que a glória de sua coroação
deveria ser uma conferência fraternal das religiões mundiais. Por
conseguinte, o anúncio do plano original do Congresso Mundial,
enviado pelo governo dos Estados Unidos para todas as outras nações,
continha entre outras grandes coisas a serem consideradas, “Os
Fundamentos para uma União Fraternal das Religiões dos diferentes
Povos” (BARROWS, 1893, v.1, pp.68-69, tradução nossa).
Bonney nomeou John Henry Barrows Presidente da Comissão Geral do
Congresso Mundial das Religiões, que ao final foi chamado Parlamento Mundial das
Religiões. Sob a liderança de Barrows, como Presidente da Comissão Organizadora, a
expectativa em relação ao Parlamento era de que seria “o mais importante, imponente,
influente, e com certeza, o fato mais fenomenal da Exposição de Colombo”.30
30 Cf. Boston Collaborative Encyclopedia of Western Theology. World Parliament of Religions, 1993.
Disponível em: <http://people.bu.edu/wwildman/bce/worldparliamentofreligions1893.htm> Acesso em:
20 jan. 2015.
48
John Henry Barrows, pastor Presbiteriano de 46 anos de idade, foi então
nomeado Presidente da Comissão Geral Organizadora, composta por dezesseis
representantes de diferentes entidades religiosas, dentre eles o rabino de Nova Iorque
Emil Gustav Hirsch (1851-1923)31, ministro da congregação Sinai, Sinagoga de
Chicago, e professor de Literatura Rabínica na Universidade de Chicago, embora, a
maioria fosse de denominações cristãs. O evento durou dezoito dias, tendo início na
manhã do dia 11 setembro, até seu encerramento no dia 28. Foram dois anos de
preparação, de maio de 1891 a setembro de 1893. A Comissão, por ser formada por
indivíduos e não por organizações, usufruia de um tipo de liberdade que tornou possível
a realização de um trabalho que dificilmente seria realizado pelas instituições.
No início, a proposta de um Congresso Mundial das Religiões, para muitos
parecia totalmente impraticável, pois achava-se que a religião era um elemento de
discórdia perpétua, e que nunca ocorreria tal encontro como propunha o Parlamento.
Dizia-se que não poderia haver Congresso das Religiões sem engendrar animosidades
que se tornaram parte do passado amargo da história do homem. O evento trazia à
mente a lembrança de uma era de perseguições e de separações entre cristãos e povos
não cristãos.
Destacamos partes do Discurso de Abertura do Congresso Mundial das
Religiões, por Charles Carroll Bonney, membro da Igreja Nova Jerusalém, que
desempenhou um papel ativo na organização do PMR. Mais de 200 “Congressos
Mundiais” foram realizados em conjunto com a Exposição de Colombo, pois além do
PMR, também houve congressos da antropologia, trabalho, medicina, comércio e
finanças, literatura, história, arte, filosofia e ciência. Eis seu discurso de abertura:
Adoradores de Deus e Amantes do Homem. Alegremo-nos que temos
vivido para ver este dia glorioso; vamos dar graças ao Deus Eterno,
cuja misericórdia dura para sempre, por sermos autorizados a tomar
parte no solene e majestoso evento do Congresso Mundial das
Religiões. [...] Se este Congresso executar fielmente os deveres que
lhe foram confiados, ele se tornará uma alegria para toda a terra, e
ficará na história da humanidade como um novo Monte Sião, coroado
de glória e que marca o início real de uma nova época de fraternidade
e da paz. Quando as crenças religiosas do mundo reconhecem uns aos
outros como irmãos, filhos do mesmo Pai, a quem todos professam
31 Hirsch atuou na política como membro do Partido Republicano e foi um expoente do pensamento
avançado e Reforma do Judaísmo. Ele também editou a Enciclopédia Judaica e contribuiu com artigos
feministas para a revista A Judia Americana (1895–1899). Hirsch escreveu estudos sobre a relação
histórica do Judaísmo e do Cristianismo, incluindo apreciações da sua fundação nas figuras de Jesus e
Paulo. De acordo com o seu interesse na educação, Hirsch aconselhou membros ricos de sua
congregação, como Julius Rosenwald, a usarem parte de sua fortuna na construção de escolas públicas
onde estudantes negros do sul segregado puderam frequentar.
49
amor e serviço, então, e somente então, virá a vontade das nações de
rendenção da terra ao espírito de concórdia e de aprendizado, e nunca
mais a guerra. [...] Neste Congresso a palavra “religião” significa o
amor e adoração a Deus e amor e serviço do homem. Nós acreditamos
na escritura que “na verdade que Deus não faz acepção de pessoas,
mas, em qualquer nação, aquele que teme a Deus e pratica a justiça é
aceito por ele.” Nós nos reunimos em confiança e respeito mútuos,
sem o mínimo de renúncia ou compromisso de qualquer coisa que,
respectivamente, acreditam ser verdade ou dever, com a esperança de
que o conhecimento mútuo, e um intercâmbio livre e sincero de
pontos de vista sobre as grandes questões da vida eterna e conduta
humana, sejam mutuamente benéficas. [...] Cada um deve ver Deus
com os olhos da sua própria alma. [...] Cada um deve recebê-lo de
acordo com sua própria capacidade de recepção. A união fraternal das
religiões do mundo virá quando cada um buscar verdadeiramente
saber como Deus revelou-se na outra, e lembra a lei inexorável que
com o juízo com que julgar ele próprio deverá ser julgado.[...] As
religiões do mundo têm seriamente incompreendido e mal interpretado
umas as outras a partir do uso de palavras com significados
radicalmente diferentes daqueles que foram destinados, e de uma
indiferença das distinções entre as aparências e os fatos; entre os
sinais e os símbolos, e as coisas significadas e representadas. Tais
erros, espera-se que o Congresso contribua muito para corrigí-los, e
tornar impossível a continuidade de tais erros (BARROWS, 1893, v.1,
p.72, tradução nossa).
A partir do Parlamento uma nova forma até então desconhecida de ser religioso
emergiu, havia muitas novas maneiras de ser religioso. O pluralismo cultural, e o ideal
de coexistência pacífica diante da diversidade foram experimentados nas semanas do
evento, apesar dos esforços de Barrows, a ideia central do modelo inclusivista cristão
prevaleceu. O Parlamento, uma organização internacional não governamental de
diálogo inter-religioso e ecumênico, iniciou então, pela primeira vez na história, um
foro de diálogo entre todas as religiões mundiais. Além disso marcou o início de uma
dinâmica entre as religiões.
Mesmo que, de acordo com pesquisas historiográficas, a origem do movimento
ecumênico seja em 1805, por iniciativa do missionário batista William Carey,
desenvolveu-se ao longo do século XIX. Mas, somente em 1910 houve a Assembleia de
Edimburgo, Escócia, que foi o marco do início oficial do movimento ecumênico
(GIBELLINI, 2012).
O acontecimento foi inédito, pois além do caráter ecumênico, as outras religiões
compreendidas até então como uma síntese do cristianismo, teriam oportunidade de
mostrar sua verdadeira cultura, fé, e, portanto, sua identidade. As respostas positivas dos
diversos representantes e líderanças religiosas deste Congresso ao convite de Barrows,
foram também uma confirmação da necessidade e da vontade de aprofundar os laços
através do que se tornaria nas décadas seguintes o diálogo inter-religioso. Foi a
50
primeira vez que um evento conseguiu, ao mesmo tempo, reunir um grande número de
representantes e líderes de diversas tradições, para pôr em evidência o papel da religião
no desenvolvimento social e cultural (BARROWS, 1893, v.1).
É importante destacarmos, como citamos na introdução desta pesquisa, que na
mesma época ocorria a primeira reunião de teólogos conservadores protestantes (1883),
que resultou no manifesto de Niagara falls (1895), ocorrida nos Estados Unidos, em
oposição à teologia liberal emergente na Europa. Reunidos em Niagara Falls, o debate
da Conferência trouxe um documento que constituia o nascimento do fundamentalismo
prostestante (PACE; STEFANI, 2002).
A Direção Preparatória obteve grande auxilio do Bispo Keane de Washington.
Barrows procurou obter por meio de cartas pessoais a cooperação de muitos líderes
religiosos de todo o mundo. Em junho de 1891, mais de três mil cópias da Direção
Preparatória foram enviadas, informando o plano para o Parlamento que ocorreria em
1893, convidando líderes religiosos de todo o mundo.
No inverno de 1892, mais de dez mil cartas e quarenta mil documentos foram
enviados para trinta países, conforme mencionado no livro, a fim de consultá-los e
receber críticas e sugestões, e do enorme trabalho do programa final de introduzir os
tópicos que seriam abordados pelos palestrantes convidados. A lista dos Conselheiros
Consultivos passou de três mil eruditos.
Não foi uma tarefa fácil selecionar e assegurar os que representariam as dez
religiões diferentes, e o momento em que as igrejas cristãs deveriam tratar
adequadamente do mais importante de todos os temas, que ao final resultaria em 197
comunicações feitas por oradores, dos quais, 152 eram cristãos. No dia primeiro de
março de 1893 foi publicado o segundo relatório da Comissão Geral, com o programa
dos 17 dias do Parlamento, mais um para o encerramento, indicando o progresso imenso
ocorrido a fim de garantir a cooperação de homens religiosos.
Chamaram a atenção para o poder criativo e regulador da religião
como fator de desenvolvimento humano. Expressaram um desejo de
cooperação dos representantes de todas as grandes religiões históricas;
acreditavam que o momento era propício para novas manifestações de
fraternidade humana. A humanidade, embora separada por oceanos e
línguas, e uma grande diversidade de formas de religião, estava unida
na esperança. O relatório analisou o fato de que as literaturas das
grandes religiões históricas eram cada vez mais estudadas nem
espírito de sinceridade e fraternidade. Negando qualquer finalidade de
criar um clima de indiferença, o Comitê instou que uma conferência
amigável de homens eminentes, firmes em suas convicções pessoais,
seria útil para mostrar quais são as verdades supremas, e que a religião
daria luz aos grandes problemas da época (BARROWS, 1893, p.70,
tradução nossa).
51
Barrows incluiu no volume I as respostas enviadas que foram variadas e bem
documentadas em relatórios escritos por ele, tanto as de reprovação como as de apoio ao
evento. Além disso, Barrows decidiu não responder publicamente às críticas contidas
nas respostas negativas ao Parlamento. Os que manifestaram apoio e cordialidade ao
empreendimento, dentro do cristianismo, foram fortemente motivados pelas
possibilidades de aproximação e unidade dos cristãos, a paz mundial, e o
reconhecimento das outras tradições.
Consequentemente, o evento também influenciou missionários cristãos a
trabalharem no exterior, tornando-os mais sensíveis a outras culturas e religiões, e foi
visto como uma oportunidade de aprimorar os métodos das missões cristãs espalhadas
pelo mundo, garantindo seu sucesso a partir de um conhecimento mais profundo das
outras religiões e culturas que o Parlamento proporcionaria. O contrário também, pois
abriu portas para que líderes das demais tradições tivessem a oportunidade de fazer suas
“missões” no Ocidente (RODRIGUES, 1999).
Houve aqueles que reprovaram o Parlamento, por exemplo, a Igreja
Presbiteriana dos Estados Unidos da América, casa de Barrows, aprovou uma resolução
contra esta convenção. A assembleia da igreja reunida em Portland (1892), aprovou uma
resolução desaprovando enfaticamente o Parlamento. No entanto, o fato desta resolução
ter sido aprovada às pressas nas horas finais da Assembleia Geral (1892), não produziu
voz unificada entre os Presbiterianos, dividindo opiniões. Os principais periódicos
Presbiterianos dos Estados Unidos aprovaram cordialmente o Parlamento, e outras
revistas cristãs nos Estados Unidos, ao contrário, se oporam ao evento.
Em Barrows (1893) vemos que a oposição vinda do Arcebispo de Canterbury,
dizendo em sua carta que a sua desaprovação repousava sobre “o fato de que a religião
Cristã é a religião. Eu não entendo como que a religião pode ser considerada como um
membro de um Parlamento das Religiões, sem assumir a igualdade dos outros membros
a que se destina, e a paridade de sua posição e reivindicações”. A esta negativa, o pastor
inglês Frances Herbert Stead (1857-1928), membro do Conselho Consultivo, respondeu
que “não espera-se ou supõe-se de um homem que participe do Parlamento ‘considerar
todas as outras religiões como iguais a sua’”. O caso é precisamente o contrário. Mais
uma vez, “O Parlamento das Religiões simplesmente reconhece o fato, incontestável, de
que existe neste planeta um número de religiões, entre as quais, o Cristianismo é uma
delas” (BARROWS, 1893, v.1. pp.19-22, tradução nossa).
52
O sultão da Turquia e a hierarquia Católica Romana europeia também se
opuseram a esta convenção. O Papa Leão XIII (1878-1903) censurou oficialmente os
oradores católicos romanos no Parlamento e proibiu a participação em “futuras
convenções promíscuas”.
Barrows também foi confrontado desde o início com a questão de saber se os
representantes das religiões não cristãs abandonariam seus medos, preconceitos, e suas
atividades locais, para enfrentar uma cara e longa viagem a fim de encontrar, no coração
de um país predominantemente cristão, os mais hábeis estudiosos da cristandade,
mestres do idioma Inglês, com os quais não eram familiarizados. Porém, o apoio de
tradições não cristãs e suas expectativas se concetravam no encontro, e na necessidade
de buscar reconhecimento e esclarecimento de seus pontos de vista. O tom principal foi
o do benefício à humanidade e às religiões, provenientes da “liberdade intelectual e
política encontrada no Ocidente” (BARROWS, 1893, v.1; tradução nossa).
Dentre os apoiadores mais sinceros que o Parlamento conquistara estavam
eruditos Judeus provenientes da Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos. O rabino-chefe
de H. Adler da Inglaterra foi quem sugeriu o texto bíblico com as palavras do profeta
hebreu do livro de Malaquias para o Parlamento, “Não temos nós todos um mesmo Pai?
Não nos criou um mesmo Deus? ”. O evento contou também com o apoio de eruditos
representantes de grandes universidades.32
Friedrich Max Müller (1823-1900)33, considerado o pai da Ciência da Religião
Moderna, fora convidado para o evento, embora tenha se lamentado profundamente por
não poder comparecer, expressou sua esperança de que o Parlamento iria aumentar o
interesse nos estudos das religiões. Para ele, a proposta “era original e sem precedentes
em toda a história do mundo” (SEAGER apud BOSTON, 1993, p.154).
A cerimônia de abertura na manhã de uma segunda-feira, 11 de setembro de
1893, ocorreu com a presença de quatro mil pessoas reunidas no Salão de Colombo.
Dez horas da manhã, representantes de diferentes religiões marcharam de braços dados
pelo salão, em meio a aplausos entusiasmados do público que acenava com bandeiras de
muitas nações. Ao mesmo tempo, o sino do Columbian Liberty soou dez vezes no
Tribunal de Honra, homenageando as dez grandes religiões mundiais, Confucionismo,
Taoísmo, Xintoismo, Hinduísmo, Budismo, Jainismo, Zoroastrismo, Judaísmo,
32 A lista dos principais apoiadores e membros do Conselho Consultivo destacados por Barrows. Cf.
BARROWS, 1893, v.1. pp.51-52. 33Cf. USARSKI. In: PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank (Orgs), 2013. p.56.
53
Cristianismo e Islã34. A cerimônia inaugural começou com “um ato de adoração comum
a Deus Todo-Poderoso”, liderada pelo Cardeal Gibbons, do mais alto prelado da Igreja
nos Estados Unidos, que abriu a reunião com uma oração e o cântico do Salmo 100
realizado por Isaac Watts (BARROWS, 1893, v.1, p.62).
O objetivo principal, à época, foi a unidade das religiões contra todas as formas
contrárias aos princípios da religião, fazendo valer a regra de ouro: “Portanto, tudo o
que vós quereis que os homens vos façam, fazei-o também vós a eles; porque esta é a lei
e os profetas”35, e a unidade das religiões nas boas ações. Os objetivos propostos para o
Parlamento, em princípio, visavam conquistar a aprovação de todos os homens de
mente aberta, em atitude voltada ao pluralismo, mas não no sentido teológico:
1. Reunir em uma conferência, pela primeira vez na história, os
principais representantes das grandes religiões históricas do mundo.
2. Mostrar aos homens, da forma mais impressionante, quais e quantas
verdades importantes as diversas religiões têm em comum a ensinar.
3. Promover e aprofundar o espírito de fraternidade humana entre os
homens religiosos de diversas crenças, através de conferências, ideais
e bom entendimento mútuo, embora, não procurando promover o
temperamento da indiferença, e não se esforçando para alcançar
qualquer unidade formal.
4. Estabelecer, pelos mais competentes oradores, o que são
consideradas as importantes verdades mantidas e ensinadas por cada
religião, e pelas principais ramificações do cristianismo.
5. Indicar os fundamentos inexpugnáveis do teísmo, e as razões para a
fé do homem na imortalidade, e, portanto, para unir e fortalecer as
forças que são adversas a uma filosofia materialista do universo.
6. Garantir aos eruditos as principais declarações, completas e
precisas, que representam Brahman, Budistas, Confucionistas, Parses,
Muçulmanos, Judeus e outras religiões, e de representantes das várias
Igrejas cristãs, sobre os efeitos espirituais, e outros, que as religiões
têm dado à Literatura, Arte, Comércio, Governo, à vida doméstica e
social dos povos entre os quais essas religiões têm prevalecido.
7. Saber, à luz de cada religião, o que podem proporcionar ou
contribuir para as outras religiões do mundo.
8. Estabelecer um registro permanente para ser anunciado ao mundo,
um relato preciso e com autoridade da condição atual e as perspectivas
da Religião entre as principais nações da terra.
9. Descobrir, a partir de homens competentes, o que à luz da religião,
têm a lançar sobre os grandes problemas da época presente,
especialmente as questões importantes relacionadas com o Equilíbrio,
Trabalho, Educação, Riqueza e Pobreza.
10. Trazer as nações da terra para uma comunhão mais amigável, na
esperança de assegurar a paz internacional permanente (BARROWS,
1893. v.1, p.19, tradução nossa).
34 Na tradução original o termo utilizado foi “maometanos”. Porém este termo não é correto uma vez que
para o Islã o centro é o Corão e não o profeta Maomé. Cf. SAID; 2007. 35 Cf. Evangelho segundo Mateus 7, 12.
54
Esses objetivos oficialmente declarados pareciam evitar qualquer tentativa de
provar a supremacia de uma religião em particular sobre as demais. A ênfase foi
colocada mais na busca de pontos comuns e a construção de “fraternidade humana”.
Porém, durante o evento, nem todos os oradores cristãos compreenderam as motivações
de Barrows e outros “inclusivistas”. Por outro lado, para Barrows, toda ideia
proveniente de oradores de outras tradições voltada ao que seria uma “religião
universal”, como expôs Vivekananda (1863-1902)36, também fora entendida como uma
ameaça à supremacia cristã.
Porém, o que Vivekananda entendia por “religião universal” não era que todas as
tradições religiosas desapareceriam e seriam substituídas por uma nova e única religião.
Em vez disso, seria uma autêntica união de todas as religiões, em que “cada um deveria
assimilar os outros, preservar sua individualidade e crescer de acordo com a sua lei do
crescimento”. A necessidade de “assimilar os outros” foi expressa por Vivekananda, no
sentido de evitar o triunfo de qualquer uma das religiões em detrimento de outras. Ele
afirmou: “Eu desejo que um cristão se torne Hindu? Deus me livre. Eu desejo que o
hindu ou budista se torne um cristão? Deus me livre”. (BARROWS, 1893 v.1, p.170)
Enfim, o programa geral representou diretamente a Inglaterra, Escócia, Suécia,
Suíça, França, Alemanha, Rússia, Turquia, Grécia, Egito, Síria, Índia, Japão, China,
Ceilão, Nova Zelândia, Brasil, Canadá, e a América do Norte, e, indiretamente, incluiu
muitos outros países. Durante os 17 dias que se seguiram, o programa foi dividido em 4
sessões.
A primeira parte do programa geral (a segunda parte da obra) foi dividida em 14
capítulos, nos quais considerou-se, respectivamente, o estudo das religiões mundiais, e
o que cada religião tinha a dizer sobre Deus e sobre a natureza do homem; a importância
da religião em muitas formas; o que eruditos tinham a dizer sobre os vários sistemas
religiosos; a contribuição dos Livros Sagrados; o papel da religião na vida familiar; aos
líderes religiosos da humanidade; a relação entre religião, ciência e arte; o que as
religiões tinham a dizer sobre sua relação entre religião e moral; religião e os problemas
sociais modernos; a história da religião e a sociedade civil; a relação da religião com o
amor da humanidade; e o que dizer sobre a atual condição da religião Cristã.
36 Swami Vivekananda, nascido Narendranath Dutta, monge, iogue e filósofo hindu, é considerado um
dos mais célebres e influentes líderes espirituais do hinduísmo moderno, sobretudo da filosofia Veda. Ele
foi pioneiro da sua divulgação no Ocidente e inspirador do movimento do espiritualismo universalista.
Principal discípulo de Ramakrishna Paramahamsa, foi o fundador da Ordem Ramakrishna e da
organização monástica Sri Ramakrishna Math. Cf. RODRIGUES; 2008/2009 p.61.
55
A segunda parte do programa (terceira da obra) consistiu em apresentações das
distintas crenças e suas realizações, onde todos estavam convidados a participar. A
terceira parte do programa geral (quarta da obra) consistiu em congressos separados e
independentes das diferentes denominações religiosas cristãs, com o propósito de
definir mais detalhadamente suas doutrinas e o serviço que têm prestado à humanidade.
O objetivo especial dos congressos denominacionais foi proporcionar oportunidades de
obter mais informações. Estes congressos foram realizados entre o final do Parlamento
das Religiões e 15 de Outubro, e incluiu temas como missões, ética, descanso
dominical, Aliança Evangélica e associações similares. A quarta parte do programa do
Congresso (quinta da obra) foi reservada à revisão e resumo do espírito e influência do
Parlamento.
O Parlamento foi oficialmente encerrado com a oração do Senhor liderado por
Emil G. Hirsch, rabino em Chicago. Mais de sete mil pessoas assistiram à sessão de
encerramento no dia dezessete. Vários hinos cristãos foram cantados antes que Bonney
e Barrows fizessem seus discursos de conclusão. O Hallelujah Chorus do Messias de
Handel foi então cantado.
II.1.1 A PARTICIPAÇÃO DOS JUDEUS NO PARLAMENTO MUNDIAL DAS
RELIGIÕES
Durante o Parlamento Mundial das Religiões, a religião hebraica teve
oportunidade de realizar comunicações em vários dias, por diferentes oradores, homens
e mulheres, cujos temas foram como segue: “Teologia do Judaísmo”, abordado no
segundo dia do Parlamento, pelo Rabino Isaac Mayer Wise (1819-1900); terceiro dia
“Judaísmo e o Estado Moderno”, Rabino David Philipson (1862-1949), e no mesmo dia
o tema a “Fraternidade Humana Ensinada pelas Religiões Bíblicas”, Rabino Kaufmann
Kohler (1846-1926); “Judaísmo Ortodoxo ou Histórico”, Rabino Henry Pereira Mendes
(1852-1937) foi o tema do quarto dia; no sexto dia foram abordados os seguintes temas
“A influência e Grandeza de Moisés”, pelo Rabino Gustav Gottheil (1827-1903),
“Perspectivas do Judaísmo” por Josephine Lazarus (1846-1910), e “O que a Escritura
Hebraica tem feito pela Humanidade”, pelo Rabino Alexander Kohut (1842-1894); no
oitavo dia o Professor David Gordon Lyon (1852-1935) falou sobre as “Contribuições
do Judaísmo para a Civilização”; no décimo primeiro dia Henrietta Szold (1860-1945)
“O que o Judaísmo tem feito pela Mulher?”; e no décimo terceiro dia o Rabino Joseph
Silverman (1860-1930) tratou dos “Erros Comuns sobre os Judeus”, ainda neste dia, o
56
Rabino Henry Berkowitz (1857-1924) apresentou o tema “A voz da Mãe das Religiões
sobre a Questão Social: Socialismo Judeu”.37
Na apresentação do Rabino Joseph Silverman e de Josephine Lazarus, como os
outros oradores judeus no Congresso, destacaram a identidade espiritual do Judaísmo, e
apresentaram sua visão de combinar as verdades do Judaísmo e do Cristianismo em um
monoteísmo ético não sectário. Escritores cristãos liberais contemporâneos
influenciaram o pensamento de Lazarus, tanto que ela propôs a adoção de um
humanismo universal, fora de todos os guetos e de toda forma de isolamento espiritual,
o judeu deveria mudar sua atitude diante do mundo e entrar em comunhão espiritual
com aqueles que o rodeiam. Como muitos de seus contemporâneos, Lazarus foi
profundamente afetada pelo antissemitismo generalizado desmascarado durante o Caso
Dreyfus38, e começou a considerar o Sionismo político como uma opção viável para os
judeus da Europa.
O último ensaio publicado durante a sua vida reflete sua luta para reunir sua
profunda preocupação com a segurança judia, e sua forte crença no poder de uma fé
universal transcendente. Esclarece que o Judaísmo sempre foi mal compreendido pela
sua crença em um Deus indivisível e invisível, mesmo nos tempos modernos, e que
acredita-se que todo judeu tem a mesma crença, desconhecendo os cismas ocorridos no
Judaísmo moderno dividindo-o em diferentes grupos como ortodoxos, conservadores,
refomadores e radicais. Para ela não há qualquer desejo geral de voltar à Palestina e
ressuscitar a antiga nacionalidade, porém são fortemente unidos pelo espírito de clã.
Lazarus afimava que os judeus formavam apenas uma comunidade religiosa
independente, e que se sentiam profundamente injustiçados sempre que sua religião era
acusada pelo delito de um cidadão. Finalmente defendia que o judeu não deveria ser
comparado ao alemão, inglês ou americano, mas com Cristão, Católico, Protestante,
Budista, Muçulmano ou Ateu. Os cristãos, bem como judeus, precisavam de uma
unidade maior que abraçasse a todos, uma unidade de espírito, e não de doutrina.
Pelo exposto neste capítulo pudemos conhecer, com maior profundidade, que
dentre as motivações de Barrows a aproximação entre a religiões mundiais e a
fraternidade universal foram seus principais objetivos. Dentro de uma postura
timidamente inclusivista, o evento abriu as portas e a mentalidade ocidentais para o fato
37 O acesso a cada comunicação conferir; In: BARROWS, 1893, v.1, v.2, pp.290-360-366-527-673-705-
724-817-1052-1120-1150. 38 A Descrição detalhada. Cf. ARENDT, 2012, p.139.
57
de que, para além do universo cristão, havia uma pluralidade de culturas e religiões que
muito tinham a dizer.
Muitos apoiadores do evento captaram a intenção de Barrows, porém, durante o
evento prevaleceu o pensamento missionário, colonialista e exclusivista cristão, afinal,
Barrows idealizou um encontro, mas a maioria dos oradores estava fortemente arraigada
em suas perspectivas cristãs, e foram confrontados pela diversidade religiosa. Em
sentido ecumênico gerou grandes frutos nas décadas posteriores.
Mesmo assim, o evento obteve grande êxito, o diálogo fora estruturado em um
tipo de encontro internacional, ampliado e multilateral. A natureza desse diálogo foi
abrangente, pois foram propostas diversas abordagens para o papel da religião, como
em questões sociais, sobre a vida das comunidades, práticas religiosas, experiência
religiosa, conceitos teológicos e culturais.
Em relação à participação de representantes do Judaísmo pudemos perceber que
houve um interesse em apresentar os judeus e o Judaísmo no contexto da sociedade
moderna, esclarecer os erros sobre o pensamento em relação aos judeus, lembrar o valor
de seus ensinamentos, sua teologia, e sua contribuição para a civilização, mas também
foram abordadas questões sociais e políticas. Enfim, percebe-se uma sede de
reconhecimento de sua fé, de seu povo e de sua identidade.
II.2 A IGREJA E OS JUDEUS
A Nostra Aetate representou mais que uma reviravolta histórica, pois obrigou o
Cristianismo histórico a rever sua cosmovisão e repensar sua teologia, ao redescobrir as
categorias hebraicas, das quais nasceu e fundamentam o Cristianismo e a experiência
cristã, ou seja, dar ouvido à voz das origens. Segundo Di Sante (2004):
Significa que Jesus foi um “rabi” e não um “padre”, como L. Swilder
escreveu, um “mestre” e não um “reverendo”; que foi um judeu e não
um cristão, que frequentou a sinagoga e não uma igreja; que celebrou
o sábado e não o domingo; que pregou em aramaico e não em grego
nem latim; que leu o Antigo Testamento e não o Novo; que recitou os
salmos e não o rosário; que festejou o pesah (a páscoa hebraica),
shavu’ot (o pentecostes judeu) e sukkot (tabernáculos) e não o Natal
ou a Quaresma (DI SANTE, 2004, p.12).
58
Estas categorias das quais o Cristianismo se alimenta devem ser entendidas em
sentido existencial, de experiência profunda e do encontro com Deus, e não no sentido
lógico-racional, são elas: a fé, a eleição, a vocação, o povo, a escravidão, o Segundo
Testamento, a Aliança, a raiz, a paz e a reconciliação. Deste modo, o Cristianismo
insere-se em um vínculo profundo da fé e eleição, segundo o mistério salvífico de Deus,
pois se alimenta da “raíz da oliveira mansa [...] Sondando o mistério da Igreja, este
sagrado Concílio recorda o vínculo pelo qual o povo do Novo Testamento está
espiritualmente ligado à descendência de Abraão”. (ANEXO F)
Portanto, há um espaço teológico comum, e segundo Di Sante (2004), as origens
dos sacramentos cristãos estão na tradição bíblico-hebraica, que é considerada o
contexto ou o lugar de origem da liturgia cristã. O problema, segundo Di Sante (2004,
p.16, grifo dela) encontra-se justamente em que são “aceitos como fundo provisório,
polêmico e secundário, e não como húmus positivo, vital e substancial”. O Judaísmo,
sob este olhar, é considerado a partir de um ponto de vista lógico, obsoleto, e até
caricaturado, e não em sua essência, como uma realidade autônoma e viva.
É a partir deste aspecto que faremos uma exposição do desenvolvimento do
diálogo judaico-cristão, antes do Vaticano II, época em que a liturgia da Igreja foi
exposta e confrontada por cristãos e não cristãos, sacerdotes e leigos, e período no qual
a mentalidade racista e antissemita estava fortemente presente na Europa religiosa e
secular. Entretanto, antes de abordarmos este assunto iremos realizar uma breve, mas
importante explanação da origem dos Povos Semitas, do Antissemitismo, e do
significado da Shoah, para que possamos contextualizar e entender a importância da
Declaração Nostra Aetate e as dificuldades enfrentadas durante sua elaboração.
II.2.1 OS SEMITAS
O termo Semita vem do hebraico Sem, que faz referência ao nome do filho mais
velho de Noé. Noé ou Noach significa “descanso, alívio, conforto”, heroi bíblico que
recebeu ordens de Deus para a construção de uma arca, pela qual a Criação seria salva
do Dilúvio. Noé gerou Sem, Cam e Jafet, assim, por semitas podemos entender todos os
descendentes de Sem. Dos Povos Semitas decorre o nome hebreus, do hebraico Ivrim,
que significa “descendentes de Héber” da linhagem de Sem filho de Noé, (Noé gerou a
Sem; que gerou a Arfaxade; que gerou Salá; que gerou Héber; que gerou a Joctã e
Pelegue; que gerou Reú; que gerou Serugue; que gerou Naor; que gerou Tera, que então
gerou a Abrão). Os principais povos de origem semita foram os Acadianos, Assírios,
59
Amorreus, Arameus, Fenícios, Árabes, Cananeus, Hebreus, Etíopes e Ugaríticos.
Portanto, o termo semita tem como principal designação o conjunto linguístico
composto por uma família desses povos, entre os quais se destacam os árabes e hebreus,
que compartilham as mesmas origens culturais.
Deus se revelou a Abrão, que significa no hebraico “pai exaltado”, mas teve seu
nome mudado para Abraão, que significa “pai de muitas nações”, um sumério da cidade
de Ur (atual Iraque). Com ele conclui uma aliança de fidelidade, promete-lhe uma
grande descendência, e a terra de Canaã. Esta aliança é renovada em Isaac seu filho e
Jacó, filho de Isaac, o qual tem o nome mudado para Israel. Dele descende as doze
tribos de Israel, o povo de Israel. Declarado o Pai da fé, porque confiou em Deus, o
traço mais importante da vida de Abraão é sua experiência religiosa. É sobre este fato
que se apoia a tradição judaico-cristã. Deus “falou” a Abraão, se revelou a ele. Abraão
descobriu um deus que entra em relação amiga, que “faz aliança” com ele, com seu clã
para acompanhá-lo e atuar em seu favor, mas também com um prolongamento em favor
de todos os homens. A palavra El aparece em diversas línguas semíticas como o fenício,
aramaico e o acadiano. No hebraico significa acima, elevado, alto, e é utilizado tanto
para os deuses Cananeus El, como para o Criador de Israel. Também é utilizado como
sufixo de nomes hebraicos como Gabriel, Daniel, Rafael e outros.
Após o tempo da escravidão no Egito Deus se manifesta a Moisés na Sarça
Ardente, e guia os hebreus à Terra Prometida. Mas este Deus que se compadece do
povo, também mostra sua Face irada, e é o Deus da Lei. Diferente do El de Abraão, é
distante e inspirava o terror. “Não se aproxime. Tira as sandálias dos pés, pois o lugar
em que você está é terra santa [...] Eu Sou o Deus de seu pai, o Deus de Abraão, o Deus
de Isaac e o Deus de Jacó” (Ex 3,5-6). Durante o período em que permaneceram no
deserto, 40 anos, receberam por meio de Moisés, que considerado o fundador da religião
hebraica, o Decálogo, as prescrições religiosas (templo, culto, leis, proibições, funções
sacerdotais) e civis, o Código da Aliança. O Eu Sou, Yahweh (YHWH) reinou desde
sempre, e a importância colocada na frase, como ela é usada por Deus para se identificar
na Sarça Ardente, decorre a concepção hebraica do monoteísmo, que Deus existe por si
mesmo, para si mesmo, é o Criador incriado, e independente de qualquer conceito, força
ou entidade (LAMBERT, 2011).
A história do povo Judeu, os Filhos de Israel, Hebreus ou, o “povo do Livro”, é
citada nas Escrituras hebraicas. Quanto à expressão judeu, sua origem pode estar
associada a divisão do reino de Israel ocorrida após a morte do rei Salomão, e em
consequência de sua morte, as dez tribos do Norte criaram o Reino de Israel, a capital
60
em Samaria, e as duas tribos ao Sul, o Reino de Judá, tendo Jerusalém como sua capital,
e seus habitantes tornaram-se conhecidos como judeus. De acordo com a visão religiosa,
o Judaísmo é uma religião ordenada pelo Criador através de um pacto eterno com o
patriarca Abraão e sua descendência. O Judaísmo e as sinagogas surgiram após o
cativeiro babilônico em que houve a deportação em massa dos judeus do antigo Reino
de Judá para a Babilônia, por Nabucodonosor II em 597 a.e.c. Onze anos depois ocorreu
a segunda deportação, de 587 a 539 a.e.c., a destruição de Jerusalém e do Templo. No
ano 539 a.e.c., Ciro II, imperador persa, os libertou e receberam permissão para
reconstruir o Templo. Porém, no ano 70 e.c., houve a destruição do Segundo Templo
pelos romanos, e neste período emerge o monoteísmo, e o Judaísmo propriamente dito é
criado.
Dada a complexidade deste tema, nos restringimos a um breve panorama, com a
intenção de resgatar, em parte, a história do povo Judeu e sua religião.
II.2.2 O ANTISSEMITISMO E A SHOAH
A abordagem do tema sobre o antissemitismo39 e a Shoah também é muito
complexa, e requer mergulhar em um universo cujas reflexões trouxeram a contribuição
de diferentes linhas de pesquisa na tentativa de entender os motivos que desencadearam
tanto o antissemitismo, como a extrema violência contra os judeus na Segunda Guerra
Mundial. A Shoah é considerada, dentre uma ampla discussão do termo “genocídio”40,
como uma forma extrema deste, por combinar três elementos nunca encontrados ao
mesmo tempo em outros genocídios: a intencionalidade puramente ideológica dos nazis,
a universalidade potencial da Solução Final, e a busca de um extermínio total. Seu
destaque dos demais genocídios ocorridos no século XX deve-se também ao dedicado
trabalho de preservação de sua memória. Para os judeus, esta tragédia foi tanto uma
ameaça à sua existência física, quanto à sua religião, e dela foram vítimas cinco milhões
e duzentos mil judeus europeus, entre os anos 1941 e 1945. “Muito mais que um
acontecimento sem precedentes, Auschwitz constitui uma síntese única de diferentes
39 O termo antissemitismo é designação racista, cunhado no fim do século dezenove, 1881, pelo Alemão
Friedrich Wilhelm Adolph Marr (1819-1904), como eufemismo da palavra Judenhass, para denotar o
ódio e a hostilidade aos judeus de forma mais suave, já que eram considerados como um grupo étnico
semita inferior. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Wilhelm_Marr> Acesso em: mai. 2016. 40 O termo provém da palavra grega genos (raça, povo) e do sufixo latino cide (de caedere, matar), criado
pelo judeu americano de origem polaca, Raphael Lemkin, professor de direito internacional, após a
Segunda Guerra Mundial. O desenvolvimento e a aplicabilidade do termo são descritos cf:
BRUNETEAU, Bernard. O século dos genocídios. Lisboa: Instituto Piaget, 2004, pp.13-30.
61
elementos que encontramos noutros crimes ou genocídios” (BRUNETEAU apud
TRAVERSO, 2004, p.179, grifo dele).
Dentre os esforços a fim de compreender o por quê desta extrema violência
contra os judeus, Finguerman (2012) cita as reflexões que desafiam os conceitos: no
tocante à Aliança de Deus com o povo Judeu, ao plano de Deus na História de Israel, o
livre-arbítrio, o martírio, se Deus “ocultou sua face”, se foi uma punição divina em
decorrência dos pecados, e até mesmo por causa do significado religioso do Estado de
Israel, e, o debate sobre a sua singularidade, como mencionamos em Bruneteau (2004).
Entretanto, neste debate podemos ainda utilizar diferentes teorias que trazem outras
razões pelas quais o antissemitismo desenvolveu-se em um longo e complexo processo
histórico, seja por razões sociais, econômicas, políticas, de fundo ideológico ou,
religioso, interesse de nossa pesquisa, que se entrecruzaram em diferentes períodos e
sociedades onde os judeus foram assimilados.
A palavra de origem grega, Holocausto, provém da palavra hebraica olá, e
designa na história religiosa judaica um sacrifício pelo fogo, um tipo de oferenda a Deus
realizada no Templo de Jerusalém, que deveria ser queimada integralmente com a
finalidade de expiar um pecado, conforme citado no livro de Levítico 1,1-10. Na
Septuaginta (LXX), denominação dada à Bíblia hebraica traduzida para o grego entre os
séculos III e I a.e.c., a palavra olá foi traduzida como holokaustos, holos (inteiro) e
kaustos (queimado), servindo de ponto de referência no mundo anglo-saxão quando a
Bílbia foi traduzida para o inglês, na versão King James, que o manteve como
holocaust41 (FINGUERMAN, 2012).
Porém, a palavra hebraica Shoah encerra o sentido de catástrofe, aniquilamento,
destruição total que sobrevém repentinamente a um grupo ou indivíduo. Todavia, por
questões teológicas, o termo Shoah tem substituído o de Holocausto, já que o massacre
dos campos de concentração não tem uma conotação religiosa, mas humana e secular.
Escolhida por David Ben Gurion pela sua dimensão laica para
designar o genocídio e definir o dia de sua comemoração no
calendário israelita (Yom Ha-Shoah), o termo tende a substituir o de
Holocausto no espaço francófono, sobretudo depois da exibição do
filme Shoah, de Claude Lanzmann (1985) (BRUNETEAU, 2004,
p.133).
41 Em relação ao massacre da Segunda Guerra Mundial, o escritor Elie Wiesel é apontado como um dos
responsáveis pela utilização deste termo nos anos 1950, em sua obra publicada em francês A Noite
(1958). Cf. FINGUERMAN, 2012.
62
O antissemitismo religioso traz em seu encalço o mito da dispersão, pelo qual
acreditou-se que a dispersão judaica, iniciada no ano 70 e.c., como vimos anteriormente,
teria sido consequência de sua rejeição a Jesus como o Messias. Neste ano, houve a
destruição do Templo de Jerusalém, e foi considerado o marco da Diáspora Judaica. O
Exílio Babilônico, em 587 a.e.c., trouxe o conceito de “Sião”, o desejo de redenção
nacional e espiritual da vida Judaica na Eretz Israel (Terra de Israel), e tem sido uma
parte integrante da autoidentidade Judaica desde então. A partir de sua dispersão, o
retorno à sua pátria ancestral tem sido um tema central nos pensamentos, orações e
sonhos do povo Judeu. O Salmo 147 fala do Senhor reconstruir Jerusalém, onde os
dispersos de Israel seriam reunidos; “No próximo ano em Jerusalém” foi o grito de
esperança expressa na liturgia (seder) da Páscoa e no Dia do Perdão (Yom Kippur) por
séculos (JOHNSON, 2001, tradução nossa).
Segundo Armstrong (2009, p.26) “o exílio é um deslocamento físico e espiritual
[...] arranca-nos de lugares repletos de lembranças cruciais para nossa identidade”. Os
judeus viveram períodos de dissolução espiritual e religiosa, sem Messias e um solo
próprio, em que a importância dos laços de sangue, ou seja, o círculo interno da família,
tornou-se um fator de preservação e resistência à assimilação e à dissolução. Por outro
lado, contribuiu para delinear um estereótipo, aceito inclusive pelos judeus, além de
ajustá-los às ideologias e doutrinas que definiam grupos humanos por características
genéticas e laços de sangue (ARENDT, 2012).
Outro momento importante relativo à diáspora ocorreu no ano de 1492, na
Espanha42, quando em 31 de março o Édito de Expulsão dos judeus foi assinado por
Fernando e Isabel, quase dez anos após a instituição da Inquisição espanhola, em 1483.
Neste período os judeus convertidos ao Cristianismo, denominados “conversos” e
chamados de “marranos” pelos cristãos espanhois, já viviam uma história de
perseguição, violência e morte, tanto na Espanha quanto em outros locais da Europa
onde eram assimilados, e não raro, obrigados a converter-se ao Cristianismo. Segundo a
análise de Arendt (2012), neste período havia um ódio religioso antijudaico diferente do
antissemitismo moderno. No final do século XIX, por exemplo, sofreram violentos
ataques na Rússia conhecidos como pogroms, com a destruição simultânea do seu
ambiente, casas, negócios e centros religiosos.
É justamente nos momentos dolorosos, como a perda de identidade e a crise
existencial, que a religião é utilizada como meio para realizar o resgate da identidade e
42 Os judeus a chamavam de Sefarad, daí decorre o nome dos judeus provenientes da Espanha, os
sefardins.
63
oferecer respostas, como as razões para o exílio. Embora a tradição religiosa judaica
tenha se diluído em razão das diásporas e das perseguições que impediam sua prática,
pouco a pouco a identidade religiosa foi resgatada dentro de uma concepção onde
“tinham que inventar novas formas de fé para que as velhas tradições se adequassem a
suas circunstâncias radicalmente modificadas” (ARMSTRONG, 2009, p.27).
Contudo, muitos judeus tornaram-se céticos e racionalistas, especialmente os
marranos, houve um choque entre a tradição religiosa mítica, a revelação, e a razão
proveniente do estilo de vida secular e moderno, que fez emergir diferentes correntes
dentro do Judaísmo. No século XVIII muitos líderes foram impulsionados
principalmente por sua convicção religiosa de que a hora marcada para o retorno dos
exilados Judeus a Sião havia chegado, promoveram e apoiaram o reassentamento de
Judeus na Palestina.
Já o nascimento do movimento Sionista ao final do século XIX, surgiu como
uma reação ao antissemitismo e às perseguições, e foi entendido como a consumação da
história Judaica em circunstâncias propícias muito aguardadas oferecidas pela idade do
liberalismo e do nacionalismo. No entanto, a concretização deste anseio tornou Eretz
Israel um dos símbolos mais sagrados do Judaísmo, uma realidade racional, terrena e
concreta, ocuparam-na não apoiados na perspectiva mística de grupos que surgiram
antes ou contemporâneos ao Sionismo, mas material, estratégica e militarmente, e,
obviamente, o anseio inerente ao símbolo da Terra foi explorado. Foi um projeto secular
que dependeu de um alto investimento aplicado na compra de terras na Palestina
pertencentes aos árabes e turcos, embora não houvesse a intenção de constituir um
Estado-nação. Porém, no âmbito religioso, inicialmente, houve os que opuseram-se ao
projeto, como os judeus ortodoxos, que viram-no como uma abominação que desafiava
séculos de tradição religiosa43 (ARMSTRONG, 2009).
Diante do exposto nesta breve síntese, nossa intenção foi demonstrar a ligação
destes fatos às dificuldades encontradas na elaboração da Nostra Aetate, posto que são
questões cujos paradigmas teológicos estão diretamente relacionados com questões
políticas à época do Concílio. Deste modo será possível identificar que, nas décadas que
antecederam o Vaticano II havia o antissemitismo impregnado nos ensinamentos da
Igreja permeado por estas questões ligadas ao Estado Judeu, e, por conseguinte,
influenciavam tanto o modo como os cristãos daquele período percebiam os judeus,
quanto a relação da Igreja com o Judaísmo.
43 Theodor Herzl (1860-1904) foi o fundador da Organização Sionista Mundial.
64
II.2.3 ANTECEDENTES DA NOSTRA AETATE
A relação inter-religiosa com os judeus insere-se na questão das minorias étnicas
e religiosas em que cristãos e judeus fizeram parte, em diferentes momentos históricos.
Também diz respeito à possibilidade de coexistir pacificamente respeitando a cultura do
local de acolhida, e do mesmo modo, ter sua cultura e religião respeitadas. Neste
sentido, o antissemitismo teve duas faces entrelaçadas que adquiriram forte penetração
na sociedade, principalmente europeia, e na Igreja, até a Shoah: o antissemitismo racista
e o religioso.
No ambiente secular, considerando o fracasso dos Tratados Internacionais de paz
então vigentes, como o Tratado de Versalhes (1919), ratificado pela da Liga das Nações
(1920)44, uma das consequências da Primeira Guerra Mundial foi o remapeamento
político europeu, com a formação de novos Estados constituídos por uma grande
variedade de grupos étnicos, linguísticos e religiosos, inclusive as comunidades judaicas
espalhadas pela Europa. A partir daí, firmava-se a necessidade da conclusão de tratados
especiais destinados à proteção das minorias. Alguns destes tratados estabeleceram o
direito a usar a língua da minoria na vida privada e pública, contendo também cláusulas
de não discriminação. Porém, ainda não existia um quadro específico de direitos
humanos e a ideia de direitos de grupo era contestada.
Ao longo do século XX, a ordem social passou então do modelo da assimilação,
que estigmatizava as pessoas em categorias minoritárias, para o modelo entendido como
multiculturalismo. No multiculturalismo o sistema de valores das comunidades
minoritárias era reconhecido politicamente ao mesmo nível do sistema de valores da
maioria, porém, prevalecia a ideia de oposição e a diferença dos valores. Este paradigma
foi substituído na Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural45, que definiu o
termo diversidade cultural, conceito que não se aplica à “maioria” ou “minoria”.
44Ao final da Primeira Guerra Mundial, em 1918, na Europa Central emergiu o princípio da
autodeterminação nacional. A Liga das Nações, criada após a Primeira Guerra, tinha por finalidade
promover a cooperação, paz e segurança internacionais, e condenar as agressões externas contra seus
membros. A Convenção da Liga das Nações, de 1920, apresentava preceitos genéricos referentes aos
direitos humanos, no tocante ao sistema das minorias e aos parâmetros internacionais do direito ao
trabalho, pelos quais os Estados comprometiam-se a assegurar condições dignas de trabalho para homens,
mulheres e crianças, incorporando obrigações de repercussão internacional, sob pena de incorrerem em
sanções econômicas e militares impostas pela comunidade externa. A Liga das Nações passou a ser a
guardiã dos compromissos assumidos pelos líderes dos Estados signatários dos tratados, exercendo essa
função a partir de um sistema de petições a ser utilizado por membros dos grupos minoritários quando da
violação de seus direitos. 45 UNESCO. Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, 2002.
65
A categoria minoria é utilizada no Direito como reforço
argumentativo para a defesa de direitos fundamentais, e destina-se a
grupos que, historicamente marginalizados, reivindicam no espaço
público o reconhecimento de suas peculiaridades e a proteção de
direitos. Essa categoria, que surgiu atrelada à ideia de Estado,
nacionalidades e soberania, hoje, se estende às demandas antes
ignoradas.46
Antes das convenções firmadas no século XX, os assuntos relativos às minorias
estavam ligados às liberdades religiosas. No século XVII, por exemplo, a “proteção de
minorias” refería-se especialmente às minorias religiosas. Lembrando que foi a partir do
século XVIII que as hierarquias raciais apareceram.
Com as grandes mudanças ocorridas na primeira metade do século XX, somadas
ao advento da Segunda Guerra Mundial e a Shoah, evidenciou-se a necessidade de
privilegiar uma aproximação entre as religiões, principalmente a partir da Igreja
Católica. Assim, o diálogo inter-religioso tornou-se um fator presente nas complexas
relações entre religiões, povos e Estados. Neste cenário, os judeus reivindicaram o
reconhecimento do Judaísmo quanto religião autônoma, e de uma nação para o povo
Judeu.
Nos bastidores deste processo encontramos detalhes dos trabalhos desenvolvidos
e articulados anos antes da realização do Concílio, seja por grupos isolados ou pela
cooperação entre organizações judaicas e cristãs. Com este complexo pano de fundo,
nos deparamos com as aspirações dos representantes do Judaísmo, e do Catolicismo,
mas especialmente a atuação de convertidos do Judaísmo para o Catolicismo, nos
primeiros passos em direção às relações inter-religiosas. Dentre muitos movimentos
organizados, destacaremos aquelas que tiveram uma influência mais direta sobre o
Vaticano II, cujos desdobramentos envolveram comunidades judaicas e católicas em
direção ao encontro. Um ambiente permeado por tensões e reparações com a Igreja, mas
que abriu caminho para a elaboração da NA4 no Vaticano II.
Dentre os muito atores, homens e mulheres, que dedicaram seu amor, energia e
esperança, não haverá espaço suficiente para explorar sua história como merecem, por
isso, nos deteremos na contribuição do historiador e rabino francês Jules Isaac (1877-
1963) e seus Dezoito Pontos sobre o ensino cristão47 para a Conferência Internacional
realizada em Seelisberg, na Suíça, (1947), seu encontro com o Papa João XXIII, e o que
46 MARTINS, Argemiro C. M.; MITUZANI, Larissa. Direito das Minorias Interpretado: o compromisso
democrático do direito brasileiro. Publicação de Programa de Pós-graduação em Direito da UFSC,
Florianóplis, v. 32 n. 63, 2011. Disponível em: <https://www.journal.ufsc.br/index.php/sequencia/article/
view/21777055.2011v32n6p319/21068> Acesso em: 25 jul. 2014. 47 Cf. A retificação necessária no ensino cristão: Dezoito Pontos. ANEXO A.
66
se tornaria um dos nove documentos conciliares classificados como “declaração”, a
Nostra Aetate. E também a participação dos especialistas Gregory Baum (1923),
nascido de mãe judia e pai Protestante, e o Monsenhor John Maria Oesterreicher (1904-
1993), também nascido judeu, convertido ao catolicismo em 1924.
Em 1870, ocasião do Concílio Vaticano I, os irmãos judeus Le'mann convertidos
ao catolicismo, e sacerdotes, apresentaram um projeto de declaração sobre as relações
entre a Igreja e os judeus, no qual afirmavam que os judeus “são muito queridos por
Deus por causa de seus pais e porque Cristo nasceu do povo Judeu, segundo a carne”.
Segundo Connelly (2007) esta foi uma iniciativa sem precedentes, uma pequena
semente lançada quase um século antes do Vativano II.
II.2.3.1 Comitê Judaico Americano (CJA) – American Jewish Committee (AJC)
O Comitê Judaico Americano foi criado em 1906 por judeus Norte Americanos
preocupados com os ataques violentos conhecidos como os pogroms48 dirigidos à
população judaica da Rússia. Louis B. Marshall (1856-1929) foi um dos fundadores e
presidente (1912-1929). A declaração oficial da comissão tinha por objetivo evitar a
violação dos direitos civis e religiosos dos judeus e atenuar as consequências da
perseguição. No período referente ao Vaticano II, o presidente foi Louis Caplan (1886-
1978).49
Através do diálogo direto com a Igreja Católica, o Comitê desempenhou um
papel de liderança preparando o caminho para uma recuperação significativa nas
relações judaico-cristãs nos anos que antecederam a Nostra Aetate, e nos anos seguintes.
Os memorandos serão analisados mais à frente.
48 Um pogrom é um ataque violento que visa o massacre ou a perseguição de um grupo étnico ou
religioso, especialmente contra os judeus. O termo entrou originalmente no idioma Inglês para descrever
ataques dos séculos XIX e XX contra os judeus no Império Russo. Ataques semelhantes ocorridos em
outros tempos e locais também tornaram-se, retrospectivamente, conhecidos como pogroms. 49 Antes da Guerra dos Seis Dias, em 1967, o CJA foi oficialmente “não-sionista”. Tinha sido muito
ambivalente sobre o Sionismo como possível abertura à acusação dos judeus de dupla lealdade, mas
apoiou a criação de Israel em 1947-48, depois do apoio norte americano à divisão da Palestina. Foi a
primeira organização judaica americana a abrir um escritório permanente em Israel.
67
II.2.3.2 Amici Israel
Anos antes do Concílio já havia uma certa articulação em prol de um novo olhar
e uma nova postura por parte de muitos clérigos e leigos católicos, que confrontou a
tradicional postura convercionista e supersessionista. Dentre os defensores estava a
Opus Sacerdotale Amici Israel – Amigos de Israel, uma associação internacional
Católica Romana fundada em Roma, no dia 24 de fevereiro de 192650 por padres
holandeses, como o teólogo franciscano Laetus Himmelreich [187-?], a leiga Sophie
Franziska51 van Leer (1892-1953), judia convertida ao catolicismo em 1919, aluna de
Laetus, e o padre Anton van Asseldonk (1892-1973). Em 1928, a Associação contava
com milhares de membros de todo o mundo, incluindo cerca de 300 arcebispos, 3.000
sacerdotes, e 19 cardeais. Sua força alarmou os membros do Santo Ofício e sua
supressão foi recomendada.
A proposta do Amici Israel centrava-se em promover a reconciliação entre
judeus e católicos, procurando aprofundar a compreensão do Judaísmo. Para isso
utilizaram uma série de folhetos através dos quais explicavam seu programa que
abordava os problemas fundamentais da teologia do antissemitismo. Dentre suas
principais preocupações destacamos: eliminar as referências negativas sobre os judeus
na pregação e na liturgia, por meio de um ensino de estima ao povo Judeu; abster-se de
acusá-los de deicídio; de “Libelo de Sangue”52; evitar falar sem respeito de suas
cerimônias; enfatizar o amor Divino pelos judeus; e evitar falar em conversão, mas
preferir o termo retorno dos judeus. Note-se que este trabalho ocorrera cerca de 40 anos
antes da promulgação da Nostra Aetate, e para ela abriu caminho. Além disso,
promoveu, por razões teológicas, o Sionismo, que o Vaticano enfrentou de forma hostil.
No entanto, em seus primeiros anos a Associação encorajou a oração para a conversão
dos judeus, exortou os fieis para que orassem e trabalhassem pela conversão dos judeus
ao reinado de Cristo. Porém, a Amici Israel mudou o caminho da busca pelas
conversões, uma virada que se tornou um padrão entre muitos promotores de uma nova
relação com o povo Judeu.
50 Disponível em: <https://googleweblight.com/?lite_url=https://messianicjewishhistory.wordpress.com
/2015/03/25/25-march-1928-pius-xi-condemns-antisemitism-but-suppresses-amici-israel-friends-of-israel
-otdimjh/&ei=Wkjs6m2c&lc=ptBR&geid=10&s=1&m=300&host=www.google.com.br&ts=145581316
2&sig=ALL1Aj6PnDsB HdLymEXcPYTZoYpwsLTHrA> Acesso em: 10 fev. 2016, tradução nossa. 51 Francisca Maria van Leer foi o nome adotado após seu batismo, em 15 de junho de 1919, em Munique. 52 Os judeus eram acusados de realizar sacrifícios, geralmente de crianças, e utilizar seu sangue em
supostos rituais. Uma forma comum de antissemitismo praticado na Idade Média.
68
Figura 07 - Capa do folheto Pax super-Israel. Associação Amici Israel (1925)53
Em 02 janeiro de 1928, a Associação apelou ao Papa Pio XI que modificasse a
oração da Sexta-Feira Santa sobre os judeus, removesse os termos perfidis e perfidiam,
“Oremos pelos pérfidos judeus” e “Ouve, Deus, nossa oração pela obcecação desse
povo para que seja libertado das trevas”, e ainda recomendou que fosse abolida o prática
que determinava que não se ajoelhasse para os judeus durante a oração da Sexta-Feira,
adotada quando o Papa Pio V criou o Missal Romano em 1570, Missa Tridentida
(Concílio de Trento 1545-1563).
O pedido foi encaminhado à Congregação dos Ritos que apoiou e autorizou a
reforma. No entanto, o Santo Ofício opôs-se ao pedido e concluiu haver base bíblica
para a infidelidade judaica, que não justificava uma reforma na liturgia da Sexta-Feira
Santa.54 Além disso, em 21 de março de 1928 decretou que a Associação deveria ser
suprimida, apenas dois anos após sua fundação, e não mais seria permitido a ninguém
escrever ou editar livros e folhetos com a finalidade de promover tais iniciativas,
consideradas “errôneas”. A informação que chegou ao público foi apenas que o grupo
havia adotado uma forma de agir e pensar contrária ao sentido e espírito da Igreja. Por
conseguinte, em 25 de março de 1928, o Papa Pio XI ordenou a publicação de seu apoio
ao argumento em favor dos adversários da reforma da oração da Sexta-Feira, manteve a
crença no Supersessionismo, todavia, condenou o antissemitismo racista declarando:
53 Pax Super Israel significa: A paz esteja com Israel. 54 Cf. Biblia Sagrada. At 7,51 “Homens de dura cerviz”; e Mt 27,25 “O seu sangue caia sobre nós e
nossos filhos”.
69
A Igreja Católica sempre foi acostumada a orar para o povo judeu, os
destinatários das promessas divinas da vinda de Jesus Cristo, apesar
da cegueira das pessoas. Mais do que isso, ela tem feito isso por conta
de tal cegueira. Governada pela mesma caridade, a Sé Apostólica
protegeu este povo contra vexames injustos, e da mesma forma que
reprova todo o ódio entre os povos, condena o ódio contra as pessoas
anteriormente escolhidas por Deus, o ódio que hoje habitualmente
atende pelo nome de antissemitismo (BOYS, 2013, p.77, tradução
nossa).
Uma especificação da Sagrada Congregação dos Ritos em 1948, de que as
palavras “Perfidi Judaei” e “Perfidia Judaica” referiam-se a uma expressão, que no
latim medieval, significava apenas “não crentes”, ou seja, significando simplesmente
falta de fé na Revelação Cristã. Em 1955, houve a remoção da rúbrica especial que fazia
dos judeus a única exceção do Flectamus Genua55, durante o serviço da Sexta-feira
Santa, um ato ofensivo e humilhante. Somente após o Vaticano II a oração seria então
reformulada, até lá, o silêncio da Igreja permaneceu como veremos mais adiante.
Portanto, a “questão judaica” era vista pela Igreja como religiosa, e não se estendia para
uma compreensão mais profunda sobre o povo, a nação, e o próprio Judaísmo quanto
religião autêntica e viva.
Enfim, a extinção da Amici Israel é compreendida por alguns pesquisadores sob
diferentes pontos de vista: medo de pretensões políticas; uma organização cujos ideais e
convicção de seus fundadores manifestaram-se muito cedo; que estavam à frente de seu
tempo; que não tinham experiência suficiente; e até pela indisciplina e desobediência de
Anton van Asseldonk. No entanto, todos concordam que não existem provas suficientes
para explicar os reais motivos que levaram o Santo Ofício a decretar sua extinção
(MACINA, 2015).56
II.2.3.3 John Oesterreicher
No mesmo período, seguimos para a contribuição de dois padres católicos no
desenvolvimento desta nova visão a respeito do povo Judeu e do Judaísmo, e seus
esforços para alcançar a reconciliação. Os argumentos teológicos de John Oesterreicher
(1904-1993), e aqui acrescentamos a contribuição de Karl Thieme (1902-1963), foram
55 Ato de ajoelhar-se. 56 Artigo completo do autor francês Menahem R. Macina: Réévaluation des motifs invoqués par le Saint-
Office pour abolir Amici Israel (1926-1928). Disponível em: <https://www.academia.edu/8392562
/R%C3%A9%C3%A9valuation_des_motifs_invoqu%C3%A9s_par_le_Saint-Si%C3%A8ge_pour_justif
ier_la_suppression_de_lassociation_philojuda%C3%AFque_Amici_Israel_1926-1928_> Acesso em: 15
fev. 2016, tradução nossa.
70
significativos. Connelly (2007) os identifica como aqueles, dentro de um grupo de
homens e mulheres, que “atravessaram a fronteira”, pois não eram somente convertidos
ao catolicismo, mas também cruzaram fronteiras europeias e foram capazes de
transcender as limitações de uma única cultura.
Oesterreicher, de origem judaica, nasceu em 1904, na Morávia, converteu-se ao
catolicismo em 1924, foi ordenado padre em 1927, e em 1930 foi pároco da diocese de
Viena. Sua conversão sofreu influência de leituras do Cardeal John Newman,
Kierkegaard e dos Evangelhos. O conteúdo antijudaico dos textos cristãos o
assombrava, pois neste período prevalecia entre os cristãos, a ideia da necessidade da
conversão dos judeus para a realização das promessas bíblicas.
No ano de 1937, o padre Oesterreicher, o filósofo Waldemar Gurian –
de origem judaica – e o teólogo Karl Thieme escreveram uma
declaração [de 40 páginas] sobre os judeus, contra o racismo na Igreja
e na sociedade, e salientando a santidade do povo de Israel. Mas,
quando os nazistas entraram na Áustria, em 1938, os seus autores
foram obrigados a fugir para Paris onde deram continuidade ao
trabalho através do rádio. Em sermões transmitidos em língua alemã
chamavam Hitler de “espírito imundo” além de denunciar os crimes
praticados pelos nazistas na Polônia contra judeus e poloneses. Após
maio de 1940, com a ocupação germânica da França, Oesterreicher
escapou para Lisboa e, por fim, chegou aos Estados Unidos,
trabalhando na Universidade Seton-Hall University, New Jersey EUA,
como especialista nas relações entre judeus e a Igreja Católica na
América. Foi um dos pioneiros no Diálogo Judaico-Católico nos
Estados Unidos (COELHO, 2012, p.94).
A declaração foi escrita em um contexto no qual a sociedade católica acreditava
que as leis raciais nazistas estavam de acordo com a vontade de Deus, houve portanto,
uma penetração do racismo de forma profunda no pensamento católico durante os anos
1930. Além disso, pensadores católicos na Europa Central deste período, apoiados em
uma visão moderna de mundo racista, acreditavam que os judeus eram um grupo
biológico, bem como cultural/religioso. Neste sentido questionaram o poder do
sacramento do batismo para alterar o que era determinado hereditariamente, ou seja,
nem o batismo poderia curar os defeitos morais dos judeus por causa de seu “material
genético ruim”, e desfazer os males supostamente herdados do caráter judaico. A
consequência desta linha de pensamento foi a inevitável afirmação de que os judeus
eram diferentes dos não judeus, e que essa diferença representava uma ameaça, apesar
de sua inferioridade, e esta afirmação misturou-se à alegação de superioridade espiritual
católica, sugerindo que o espiritual e o biológico poderiam estar ligados. A rejeição dos
71
judeus a Cristo, por exemplo, era vista como uma falha espiritual, com efeitos
biológicos, pois qualquer tipo de “transgressão” a Deus teria consequências terrenas
(CONNELLY, 2007, tradução nossa).
Por conseguinte, tais pensadores desencadearam uma forte oposição à
Oesterreicher e seus amigos, muitos dos quais eram judeus. Por causa do confronto com
o racismo Católico, Oesterreicher chegou a acreditar que o antissemitismo somente
religioso não poderia existir, e concluiu que o racismo e o antissemitismo eram
inseparáveis.
Um certo número de intelectuais católicos, incluindo Jacques Maritain e Dietrich
von Hildebrand, apoiaram a declaração de 1937, mas nenhum dos bispos europeus iria
assiná-la. Apesar da falta de apoio, Oesterreicher e Thieme procuraram, sem sucesso,
encontrar-se com o Papa Pio XI, em dezembro de 1938, na esperança de encorajá-lo a
falar contra o antissemitismo em seu discurso de Natal. No mesmo ano, Pio XI emitiu
um conjunto de instruções sobre os perigos do racismo que são frequentemente citados,
no entanto, estas instruções proibiram o “extremo racismo”, mas não o reconhecimento
da existência de raças ou avaliações relativas ao seu valor. As nações eram vistas como
um aspecto inegável da criação e do plano de Deus para a salvação, por isso eram raças.
Em 1940, escrevendo de Paris, Oesterreicher publicou Racismo, antissemitismo,
anticristianismo: Documentos e crítica, que levou muitos católicos a uma nova direção
(CONNELLY, 2007, tradução nossa).
No entanto, mesmo que ambos, Oesterreicher e Thieme, condenassem o racismo
existente entre os católicos, ainda assim, acreditavam na necessidade de conversão dos
judeus. Eles acreditavam que os judeus continuariam a sofrer até que reconhecessem
Jesus Cristo como o Messias; uma vez que os judeus se voltassem para Jesus, sua
conversão em massa iria inaugurar a era messiânica. Porém, esta posição não pôde mais
ser sustentada e foi repensada após as experiências da Shoah, na qual a mãe de
Oesterreicher perdera a vida em Auschwitz, e o pai em Theresienstadt.
Martin Buber foi o interlocutor mais importante de Thieme, por meio do qual
compreendeu os efeitos de sua linguagem conversionista aos ouvidos dos judeus, como
o termo “inimigos do nome Cristão” utilizado em seu livro Igreja e Sinagoga de 1945.
Assim, percebeu o quanto seria problemática uma missão cristã aos judeus após
Auschwitz. Ele então questionou a ética de sua perspectiva escatológia de que o
mandamento de amar os vizinhos implica amá-los como são, ou seja, isso inclui os
judeus, quanto judeus. Além disso, desafiou a acusação de deicídio, e em 1950 publicou
uma carta na qual anunciou estar convicto de que um judeu, como tal, pode ser
72
agradável a Deus, e que as promessas ainda são válidas, pois gozam da especial
orientação e graça, de acordo com a carta de Paulo aos Romanos 11,28. Deste modo,
sua qualidade de povo escolhido não fora abolida, mas suspensa em alguns de seus
efeitos.
Na Segunda Assembleia do CMI, em Evanston, Illinois, 1954, Thieme referiu-se
repetidamente aos judeus como “irmãos mais velhos”, ideia proveniente de Martin
Buber. Na compreensão de Thieme chegaria o dia em que haveria “Um só rebanho e um
só Pastor”, conforme João 10,16, até lá acreditava na importância da cooperação
fraternal entre cristãos e judeus. O desenvolvimento da relação com os judeus, com a
colaboração desses teólogos, Oesterreicher e Thieme, não teria mais um sentido de
“missão”, mas de “ministério da reconciliação”. Seus argumentos lançaram a base
teológica para a NA4 (BOYS, 2013, tradução nossa).
O pensador mais ousado e original entre os católicos antinazistas deste período,
Dietrich von Hildebrand (1889-1977), de ascendência judaica, trouxe para o universo
teológico racista esclarecimentos que questionaram a legitimidade deste pensamento.
Connelly (2007) citando Hildebrand escreveu que,
“características raciais não podem ser mostradas para ter efeitos claros
sobre o intelecto”. O racismo tornou-se possível somente por causa da
tendência moderna de “negar a essência espiritual/intelectual da
pessoa.” Na sua opinião, “graça” foi o fator decisivo na formação da
personalidade humana. Qual era a relação entre raças e povos? Qual
categoria foi mais substancial? [...] e que as comunidades nacionais
tem “outras raízes que não apenas raça” (CONNELLY apud
HILDEBRAND, 2007, p.827, tradução nossa).
Este raciocínio foi ampliado por Ferdinand Frodl57 em 1933, no sentido de que
pouco se conhecia sobre “raças” e muito menos sobre a relação das diferentes
características raciais com as peculiaridades psíquicas. Portanto, “raça” e “povo”
deveriam ser vistos de forma distinta, e não caberia nenhuma generalização sobre o
povo Judeu, mas incluí-los na humanidade, já que foram postos de lado desde os tempos
bílbicos. Já Hildebrand trouxe a realidade espiritual deste povo, e foi além ao concluir
que qualquer outro grupo teria rejeitado a Cristo, teria zombado, apedrejado, e o teria
crucificado. Ser antissemita significava, portanto, ser contra a própria humanidade. No
entanto, esta “missão” coube aos judeus, e foi precisamente esta ideia que desmontou o
antissemitismo cristão.
57 Sócio de Hildebrand na revista de publicação semanal Der Christliche Ständestaat – O Estado
Corporativo Cristão.
73
Ainda no debate sobre a presença do antissemitismo racista na Igreja e na
sociedade, pesquisadores afirmam que, analisando os séculos anteriores, a forma racista
presente na sociedade não influenciou a forma de racismo posterior, presente no século
XX. Estas leis de “pureza de sangue” dos séculos XVI e XVII, da Espanha e Itália,
respectivamente, restringiam o acesso de judeus convertidos a cargos públicos, mas
foram revogadas. Assim, antes do século XX, existiram manifestações desse tipo
espalhadas ao longo do tempo que apontam tanto para leigos, como padres que
enfatizavam tal pensamento, inclusive casos de padres que, por sua origem judaica,
eram convidados a demitir-se58.
Na década de 1930, período entreguerras (1918-1939), antropólogos e eugenistas
católicos contribuíram com autoridade científica para o pensamento racista dentro da
Igreja, são eles o professor vienense de antropologia Wilhelm Schmidt (1868-1954) e o
professor de eugenia Hermann Muckermann (1877-1962) de Berlim, ambos sacerdotes.
Schmidt pertencia à ordem missionária Verbo Divino, e Muckermann era Jesuíta.
Schmidt acreditava que a rejeição a Cristo resultou em um tipo de distorção espiritual e
moral muito profunda no povo Judeu, porque traíram sua vocação, além disso, foram
expulsos de sua terra natal. Somando estes dois fatores, as consequências físicas devido
ao tempo em que permaneceram longe de suas raízes se instalaram, por isso, nem o
batismo seria capaz de neutralizar tais distorções. Assim, as diferentes interpretações
sobre “raça”, “cultura”, ou “sangue”, caminhavam juntamente com o antissemitismo de
fundo religioso, que apontava para um destino de sofrimento, crença esta que incentivou
a passividade cristã durante a Shoah, além do desprezo pelo ser humano (CONNELLY,
2007, tradução nossa).
O empenho de Hildebrand e de Oesterreicher na luta contra o antissemitismo
esbarrava em um tipo de tensão que consistia na hesitação em abandonar o termo
“raça”, apesar do conhecimento que se tinha desse termo, e a convicção de que os
judeus não deveriam ser submetidos às generalizações de ódio, e a hipótese,
aparentemente inevitável, de que o povo Judeu sofrera historicamente por recusar-se em
receber a salvação por meio Cristo. Porém, como veremos, este aspecto seria superado
na Nostra Aetate 4, que condenaria o antissemitismo, o racismo, e afirmaria o amor de
Deus por este povo, “os judeus continuam ainda, por causa dos patriarcas, a ser muito
amados de Deus, cujos dons e vocação não conhecem arrependimento”. (ANEXO F)
Porém, anos antes do Vaticano II, e diante de tal desafio, foi no próprio
argumento racista de seus adversários que Oesterreicher encontrou a resposta que traria
58 Cf. A obra de David Kertzer: Os Papas contra os judeus.
74
uma nova visão bíblica do povo judeu, o “povo escolhido”, e que também iria
desmontar o componente principal do antissemitismo religioso, a noção de que os
judeus foram amaldiçoados por “sua responsabilidade” na morte de Cristo.
II.2.3.4 Conselho Nacional de Cristãos e Judeus - National Council of Christian and
Jews (NCCJ) 59
O Conselho Nacional de Cristãos e Judeus foi outra organização americana,
sinal de uma tentativa de renovação no nível sócio-político da relação entre a população
em geral. O National Council of Christian and Jews (NCCJ) fundada em 1927, no
Estados Unidos, como Conselho Nacional de Cristãos e Judeus, em resposta ao
sentimento anti-católico expressado contra o primeiro candidato democrata católico à
presidência dos Estados Unidos, Al Smith, em 1928. Dentre seus fundadores estavam
ativistas sociais, como Jane Addams e Charles Evans Hughes, do Supremo Tribunal de
Justiça americano, que se dedicaram à organização no sentido de trazer diversas pessoas
que pudessem contribuir nas questões relacionadas às divisões inter-religiosas.
O NCCJ teve pouco tempo depois uma base semelhante na África do Sul. O
esforço de ambos países foi para combater grupos hostis a minorias por razões raciais
ou religiosas, como a Ku Klux Klan nos Estados Unidos, que ameaçava tanto católicos
como judeus. Nesse sentido, o Nacional Socialismo era apenas a forma mais extrema
deste aumento de tensão racial religiosamente motivado dentro dos estados nacionais
durante o período entreguerras. Em resposta a esse clima social, grupos de trabalho
judaico-cristãos foram estabelecidos na Inglaterra, Austrália, Canadá e Suíça.
II.2.3.5 Congresso Mundial Judaico (CMJ) - World Jewish Congress (WJC)
O Congresso Mundial Judaico foi estabelecido em Genebra, Suíça, em agosto de
1936, em reação à ascensão do nazismo e da crescente onda de antissemitismo europeu.
Desde a sua fundação tem sido um órgão permanente, com escritórios ao redor do
mundo. Os principais objetivos da organização foram mobilizar os judeus e as forças
democráticas contra a investida nazista, lutar pelos direitos políticos e econômicos
iguais em todos os lugares e, particularmente, das minorias judaicas na Europa central e
59 A sigla NCCJ foi modificada nos anos de 1990 e significa atualmente: Conferência Nacional
[americana] de Comunidade e Justiça, mas originou-se sob o nome: National Council of Christians and
Jews.
75
oriental, apoiar a estabelecimento de Lar Nacional Judeu na Palestina, e criar um órgão
representativo judaico em todo o mundo com base no conceito da unidade do povo
Judeu, democraticamente organizado, e capaz de agir em questões de interesse comum.
II.2.3.6 United Jewish Appeal (UJA)
A United Jewish Appeal foi uma organização judaica fundada em janeiro de
1939 sob as bases da filantrópia. A UJA empenhou-se, juntamente com outras
organizações judaicas, no trabalho em conjunto a fim de arrecadar fundos para o auxílio
de refugiados e necessitados no exterior. Seus esforços combinados apoiaram os judeus
na Europa, ajudaram a comunidade judaica na Palestina, incluindo o auxílio a
refugiados da Europa para que conseguissem chegar na Palestina e nos Estado Unidos.
Em 1999, a UJA fundiu-se com o Conselho das Federações Judaicas e a United Israel
Appeal para formar uma entidade combinada que seria chamada de Comunidades
Judaicas Unidas.
II.2.3.7 Conselho de Cristãos e Judeus (CCJ)
O Conselho de Cristãos e Judeus é uma organização voluntária no Reino Unido.
Composta de cristãos e judeus que trabalham em conjunto para combater o
antissemitismo e outras formas de intolerância na Inglaterra. Seu patrono é a Rainha
Elizabeth II. A CCJ foi fundada, em 1942, pelo rabino-chefe Joseph H. Hertz e
arcebispo William Temple, durante a Segunda Guerra, contra a perseguição nazista aos
judeus. No final de 1954, refletindo a teologia da época, o Vaticano instruiu os chefes
católicos ingleses a demitir-se da CCJ devido a sua indiferença para com os católicos, e
não retornaram até as reformas introduzidas pelo Concílio Vaticano II.
II.2.3.8 Conferência de Oxford
Desde o início do século XX, pensadores judeus e cristãos tentaram formular
uma nova percepção desta relação que incluisse as diferenças, bem como o
autoentendimento das duas comunidades de fé, priorizando um aspecto positivo desta
relação. Em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, a Conferência Americana de
Cristãos e Judeus (NCCJ) teve a iniciativa de realizar uma reunião, para a qual
representantes dos vários grupos internacionais de cristãos e judeus, (católicos,
76
ortodoxos e protestantes) foram convidados, mas somente em agosto de 1946 esta
Conferência ocorreu na cidade de Oxford, Inglaterra. A Conferência teve como objetivo
a definição dos direitos fundamentais e as obrigações de cada ser humano,
independentemente de religião e “raça”. As palavras-chave que resumiram seu foco
principal foram: paz, justiça e responsabilidade, considerando que cada comunidade
representada já sofrera algum tipo de perseguição ou restrição de direitos, em diferentes
graus, em diferentes partes do mundo.
De todas as várias tensões de grupo, o conhecido como antissemitismo
diz respeito ao mundo inteiro e exige um tratamento especial. A
história recente mostra que um ataque contra os judeus é um ataque
contra os princípios fundamentais do Judaísmo e do Cristianismo
sobre os quais nossa sociedade humana ordenada depende. Por
conseguinte, é aconselhável tratar o antissemitismo como um caso
especial que necessita de tratamento especial, apesar de que, sugestões
para lidar com o antissemitismo possam ser aplicáveis a outros tipos
de tensões de grupo.60
Esta Conferência lançou as bases para o que viria a ser a Conferência mais
importante sobre a relação Judaico-Cristã, a de Seelisberg. Podemos citar entre os
convidados o filósofo Judeu, Franz Rosenzweig, em sua Estrela da Redenção (1921),
Martin Buber, e o livro de Leo Baeck als Das Evangelium Urkunde derüdischen
Glaubensgeschichte (1938)61. Gerhart Riegner, associado ao Conselho Mundial Judaico
por mais de 60 anos; e entre os Cristãos, James Parkes, da igreja Anglicana, o alemão
Karl Thieme, o francês Paul Deman, e o teólogo católico Malcolm Hay, cujos trabalhos
contribuiram, e são considerados precursores dos princípios expressados em Seelisberg.
Portanto, a Conferência de Oxford exigiu a convocação de uma conferência de
emergência para tratar especificamente do antissemitismo, o que trouxe também a
fundação de um Conselho Internacional de Judeus e Cristãos (ICCJ), uma organização
que iria ligar os esforços Judaico-Cristãos oriundos de vários países.
60RUTISHAUSER, Christian. The 1947 Seelisberg Conference: The Foundation of the Jewish-Christian
Dialogue. Studies in Christian-Jewish Relations. v.2, n., pp. 34-53, 2008. Disponível em:
<http://ejournals.bc.edu /ojs/index.php/scjr/issue/archive> Acesso em: ago. 2014, tradução nossa. 61 “O Evangelho como um registro da história judaica”, tradução nossa.
77
II.2.3.9 Conferência Internacional de Emergência sobre o Antissemitismo -
International Emergency Conference on Anti-Semitism
A Conferência Internacional de Emergência sobre o Antissemitismo, promovida
pelo Conselho Internacional de Cristãos e Judeus (ICCJ), cujo foco foi a relação entre o
Judaísmo e o Cristianismo, ocorreu em Seelisberg, na Suíça, de 30 de julho até 5 de
agosto de 1947. As atitudes das Igrejas Reformadas e da Igreja Católica Romana para
com o Judaísmo deram passos significativos para uma mudança, de uma relação de
ambivalência e desconfiança ou de inimizade, para uma relação de convivência e
cooperação. Dentre os quase 70 participantes de 17, estavam presentes na Conferência
28 Judeus, 23 Protestantes e 9 Católicos, que falaram em seus próprios nomes, e não
como representantes oficiais de suas comunidades de fé, foram capazes de contribuir
para o tema por sua experiência e conhecimento. A Conferência foi organizada em
cinco Comissões, cujos trabalhos desenvolvidos foram direcionados para os seguintes
objetivos: I – A cooperação judaico-cristã em relação ao combate do antissemitismo; II
- Oportunidades de educação nas escolas e universidades; III – O papel das igrejas; IV -
Deveres cívicos e sociais; V - Relações com os Governos.
Dada a importância colocada ao caráter internacional da Conferência, foi
assegurada a representação de todos os países europeus e dos Estados Unidos. Os
presidentes das organizações judaico-cristãs nacionais estiveram presentes, assim como
os representantes do CMI. Até o Concílio Vaticano II foi o único documento
internacional de que os cristãos poderiam referir-se a fim de criar uma nova relação
entre cristãos e judeus. O trabalho desenvolvido pela Comissão III, a qual Jules Isaac
integrou, contribuiu significativamente para o diálogo judaico-cristão. Enfim, os Dez
Pontos do Documento são:
1. Lembre-se que um Único Deus fala a todos, através do Antigo e
Novo Testamentos;
2. Lembre-se que Jesus nasceu de uma mãe Judia da descendência de
Davi do povo de Israel, e que Seu amor e perdão eternos abraçam seu
próprio povo e o mundo inteiro;
3. Lembre-se que os primeiros discípulos, os apóstolos, e os primeiros
mártires eram judeus;
4. Lembre-se que o mandamento fundamental do Cristianismo, amar a
Deus e ao próximo, proclamado no Antigo Testamento e confirmado
por Jesus, é vinculado para ambos, Cristãos e Judeus, em todas as
relações humanas, sem qualquer exceção;
5. Evite depreciar Judaísmo bíblico e pós-bíblico com o objetivo de
exaltar o Cristianismo;
78
6. Evite usar a palavra Judeus no sentido exclusivo de inimigos de
Jesus, e as palavras inimigos de Jesus para designar todo o povo
Judeu;
7. Evite apresentar a Paixão de tal forma a trazer o ódio da morte de
Jesus apenas sobre os judeus. Na verdade, não eram todos os judeus
que exigiam a morte de Jesus, nem foram apenas os judeus
responsáveis por ela. A Cruz, que a todos salva, revela que é pelos
pecados de todos que Cristo morreu. Relembre todos os cristãos e
professores, da responsabilidade que assumem, particularmente
quando apresentam a história da Paixão de forma brutal. Ao fazê-lo
correm o risco de implantar uma aversão na mente consciente ou
subconsciente de seus filhos ou ouvintes, intencionalmente ou não.
Psicologicamente falando, no caso de mentes simples, movidas por
um amor apaixonado, e pela compaixão para com o Salvador
crucificado, o horror que eles sentem dos perseguidores de Jesus será
facilmente transformado em ódio indiscriminado contra judeus de
todos os tempos;
8. Evite, referindo-se às maldições bíblicas, ou o grito de uma
multidão em fúria: O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos
(Mt 27,25), sem lembrar-se que este grito não anulou as palavras,
incomparavelmente maiores do Senhor: Pai, perdoa-lhes, porque não
sabem o que fazem (Lc 23,25);
9. Evite promover a noção supersticiosa de que o povo Judeu é
reprovado, maldito, destinado a um destino de sofrimento;
10. Evite falar dos judeus como se os primeiros membros da Igreja
não fossem judeus (RUTISHAUSER, Christian, 2008, p.44, tradução
nossa, grifo dele).
Outros participantes incluíram professores, rabinos, mas o destaque é o
historiador francês de ascendência judaica, Jules Isaac, que foi um protagonista
significante nesta Conferência. O americano Willard E. Goslin, da Igreja tradicional
Reformada, atuante no sistema educacional, presidiu a Conferência auxiliado pelo judeu
britânico Neville Laski, e o frade franciscano Calliste Lopinot. 62
62 Os Dez Pontos de Seelisberg foram relembrados nos 12 Pontos de Berlim, pelo International Council
of Christians and Jews, ICCJ, documento aprovado e assinado por ocasião da Conferência Internacional e
Assembleia Geral deste Conselho e suas organizações-membro, em julho de 2009, em Berlim, Alemanha.
79
Figura 08 - Participantes da Conferência de Seelisberg, 1947.63
II.2.3.10 Conselho Internacional de Cristãos e Judeus - International Council of
Christians and Jews (ICCJ) 64
A ideia da criação do Conselho Internacional de Cristãos e Judeus ocorreu em
julho de 1946, na Conferência de Oxfrod, com a finalidade criar uma conexão dos
esforços entre judeus e cristãos, juntamente com a ideia de uma Conferência específica
para tratar do antissemitismo. Foi então fundado em 1948, como uma reação à Shoah, e,
portanto, da necessidade de encontrar meios para examinar as raízes profundamente
arraigadas de desconfiança, ódio e medo, que culminou com um dos piores males da
história da humanidade. As organizações-membro do ICCJ em todo o mundo nas
últimas cinco décadas têm se empenhado com êxito na renovação histórica das relações
judaico-cristãs.
No entanto a Associação Americana retirou-se de sua função de
liderança desta “fraternidade mundial” e o Vaticano expressou suas
reservas sobre o perigo do relativismo religioso. No final, apenas um
Comitê Consultivo Internacional foi formado. Enquanto isso não
impediu que Conselhos adicionais de cristãos e judeus se formassem a
nível nacional, e em maio de 1974 que o Conselho Internacional de
Cristãos e Judeus ( ICCJ ) foi realmente criado. Este foi , em grande
parte devido ao envolvimento renovado do poderoso Conselho
Nacional Americano de cristãos e judeus, com a colaboração do
Vaticano, que, por necessidade, a partir de 1965, o Documento do
Concílio Vaticano II, Nostra Aetate, abriu suas portas para o diálogo
inter-religioso (RUTISHAUSER, Christian. 2008, p.37, tradução
nossa).
63 RUTISHAUSER, Christian. 2008, p.50. 64 Disponível em: <http://www.iccj.org/About-us.2.0.html> Acesso em: 05 set. 2015, tradução nossa.
80
II.2.3.11 Gregory Baum
Acadêmico e teólogo canadense, nasceu em 1923 em Berlim, Alemanha, sua
mãe era judia e o pai protestante. Na Segunda Guerra mudou-se para o Canadá, em
1940, com outros alemães, a maioria deles judeus, e foram alojados em campos de
refugiados, sob controle militar. Depois de algumas transferências entre Quebec, Trois-
Rivières, Nova Brunswick e Farnham, finalmente foi para Sherbrooke, na época Baum
tinha 17 anos. Entre os refugiados havia alguns intelectuais que apressaram-se em criar,
dentro dos campos, sistemas de ensino dos quais ele se aproveitou. Embora o Canadá
não tivesse lei para os refugiados, neste momento o governo canadense fora pressionado
para que alguns deles pudessem completar seus estudos fora dos campos, com a ajuda
financeira arrecada pelos próprios refugiados, destinada às bolsas de estudo.
Baum tornou-se conhecido na América do Norte e na Europa na década de 1960
por seu trabalho sobre o ecumenismo, o diálogo inter-religioso, e as relações entre a
Igreja Católica e os judeus. Na década de 1960 tornou sociólogo pela Nova Escola de
Teoria Social em Nova York, o que o levou ao seu trabalho na criação de um diálogo
entre a sociologia clássica e a teologia Cristã.
Duranto o Vaticano II foi convidado como perito ou consultor teológico no
Secretariado para Promoção da Unidade dos Cristãos, comissão responsável por três
documentos conciliares, sobre a liberdade religiosa – Dignitatis Humanae (DH), sobre o
Ecumenismo – Unitatis Redintegratio (UR) e sobre a relação da Igreja com as religiões
não cristãs – Nostra Aetate (NA).
Como resposta à Shoah, defendeu a posição do rabino e filósofo Emil
Fackenheim sobre a cessação dos esforços de converter os judeus, em que afirmou
“Depois de Auschwitz as igrejas cristãs não mais desejarão converter os judeus.
Enquanto não têm certeza dos motivos teológicos que eles dispensam a partir desta
missão, as igrejas devem ter consciência de que a conversão dos judeus é uma maneira
espiritual de apagá-los de sua existência, e, portanto, só reforça os efeitos do
Holocausto.”65 Por conseguinte, Baum empenhou-se para que o Judaísmo fosse
reconhecido como religião autêntica.
Enfim, Baum compôs a primeira versão do documento conciliar que ao final
seria promulgado como Nostra Aetate: a Declaração sobre a relação da Igreja com as
religiões não cristãs, e que mais tarde foi ampliada para atender todas as religiões do
65 Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Gregory_Baum> Acesso em: fev. 2016.
81
mundo, como veremos mais à frente. Dentre suas obras destacamos The Jews and the
Gospel: A Reexamination of the New Testament, 1961.
II.2.3.12 Jules Isaac
Jules Isaac (1877-1963), cuja família foi assassinada pelos nazistas durante a
Shoah66, preparou um memorando, resultado de suas investigações sobre as causas do
antissemitismo presente na Igreja, para que o tema fosse considerado no Concílio, e que
fosse aprovada uma declaração oficial combatendo o “ensino do desprezo” 67 em relação
aos judeus e a acusação de deicídio. Após a Segunda Guerra Mundial, Jules Isaac
dedicou-se a investigar as origens do antissemitismo cultural e religioso.68 Notas escritas
por Isaac logo após a audiência com o Papa João XXIII em 13 de junho de 1960:
Eu não fui para este encontro cegamente. Estudei a fundo e descobri
tudo o que pude, e elaborei um Memorando antes do encontro com o
Papa, com um dossiê de programas para reformar o ensino cristão
sobre Israel, como o exemplo de um mito teológico da “Dispersão -
castigo divino pela crucificação”, e trechos do Conselho do Catecismo
de Trento de que a acusação de deicídio é contra a verdadeira doutrina
da Igreja [...] Mas deve-se levar em conta o quão difícil e corajoso foi
este projeto. O problema do ensino católico que eu ataquei é
infinitamente mais complexo do que o da liturgia. [...] Eu estava
plenamente consciente de que se tratava de uma verdadeira façanha -
tour-de-force, e que eu teria, em certos casos, que transpor um abismo
[...] Domingo, 12 de junho. No final do dia, uma carta da embaixada
me informou que a audiência seria na manhã seguinte. Dormi pouco
naquela noite; ficaram prontas as Notas adicional e conclusiva, a fim
de ter a máxima eficácia em sua breve forma. Também preparei os
temas essenciais, os mais importantes. Segunda-feira, 13 junho, nos
dirigimos até o último quarto antes da biblioteca-escritório. Longa
espera. Alguém nos adverte que Sua Santidade está cansada, esteve
acordada desde a meia-noite, e que haveria um grande número de
audiências, o que significa que o nosso tempo seria contado.
66 Sua esposa conseguiu transmitir uma última mensagem para ele: “terminar o trabalho que o mundo
estava esperando dele”. Este refería-se à edição de seu livro “Jesus e Israel”, em que sua esposa havia
demonstrado muito interesse desde o início. Disponível em: <http://www.notredamedesion.org/en/
dialogue_docs.php ?a=3b&id =567> Acesso em: 20 fev. 2016, tradução nossa. 67 Monsenhor Michael L. Fitzgerald. A Declaração Nostra Aetate: o respeito da Igreja pelos valores
religiosos. Disponível em: <http://revistas.pucsp.br/index.php/culturateo/article/viewFile/14956/11152>
Acesso em: 25 jul. 2015. 68 Jules Isaac, ex-Superintendente da Instrução Pública na França (1936), depois da Primeira Guerra
Mundial procurou usar livros de história para promover a paz entre a França e a Alemanha. Publicou duas
obras Jesús e Israel (1949), e Genèse de l’antisémitisme (1956), que inspiraram a Declaração de
Seelisberg. Dedicou-se particularmente à luta contra as origens cristãs do antissemitismo. Em 1949
aconselhou o Papa Pio XII a rever a oração Sexta-Feira Santa, que anteriormente continha referências
ofensivas aos judeus, como a expressão “pérfidos judeus”. Ele também observou que os católicos não se
ajoelhavam quando oravam pelos os judeus na Sexta-feira Santa, embora se ajoelhassem para todas as
outras petições. Pio XII modificou a linguagem, embora somente mais tarde João XXIII tenha retirado a
linguagem negativa sobre os judeus em geral, e implementou uma postura ajoelhada como Isaac havia
sugerido.
82
Finalmente 01:15 chega a nossa vez. O Papa nos recebe diante das
portas abertas. Eu me curvo e João XXIII me dá sua mão. Eu me
apresento como um não cristão, promotor da Amizade Judaico-Cristã
Francesa, e como um homem velho muito surdo. Estou ao lado do
Papa, a própria simplicidade, um forte contraste com a pompa da
decoração e cerimônia anterior. Ele não parece cansado. Um homem
simples, muito sorridente,com uma relação transparente, um pouco
travesso, mas onde há uma bondade evidente que inspira confiança.
Ele inicia uma conversa animada, falando de sua devoção ao Antigo
Testamento, aos Salmos, aos profetas, ao livro da Sabedoria. Ele fala
do seu nome, como ele tinha escolhido pensando na França; ele me
pergunta onde nasci, e eu procuro uma maneira de fazer a transição
para o objeto desejado. Digo-lhe sobre a grande esperança de que suas
medidas despertaram no coração do povo do Antigo Testamento, e
que se espera ainda mais dele, afinal, não é ele mesmo o responsável
por essa grande bondade? Isso o fez rir. Então, eu tento expor meu
pedido relativo ao ensino, e antes de tudo, sua base histórica. Mas
como fazer alguém entender, em poucos minutos, o que este gueto
espiritual tem sido, no qual a Igreja tem progressivamente incluído o
antigo Israel juntamente com o gueto físico? Hoje existe uma
purificação contra-corrente que cresce cada dia mais forte. No entanto,
investigações recentes têm mostrado que “o ensino de desdém” ainda
permanece. Estas duas tendências contrárias dividem a opinião
católica que permanece instável. É por isso que é indispensável que se
levante uma voz de alto nível, a partir da “cúpula” - a voz do chefe da
Igreja - para apontar a direção certa a todos, e solenemente condenar
“o ensino do desprezo” em sua essência anti-cristã [...] Então eu
apresentei minha Nota conclusiva e a sugestão para criar uma
subcomissão a fim de estudar a questão. O Papa imediatamente
respondeu: “Desde o início da nossa conversa eu tenho pensado
nisso.” Várias vezes ele demonstrou sua compreensão [...] E dizendo-
lhe com toda a minha gratidão por sua acolhida, perguntei se poderia
levar comigo um pouco de esperança. Ele disse: “Você tem o direito a
mais que esperança!” Sorrindo, ele acrescentou: “Eu sou o chefe, mas
eu também devo consultar, há escritórios que estudarão as questões
levantadas. Aqui, não é uma monarquia absolutista.” Nos despedimos,
e, novamente, apertamos as mãos.69
Considerando o desenvolvimento do antissemitismo e sua penetração no
pensamento católico, bem como sua desconstrução, muitos autores defendem que a
mudança da atitude da Igreja foi por causa da Shoah, outros acreditam que a Igreja
considerou seu papel impecável durante a Segunda Guerra Mundial, portanto, somente
em João XXIII a mudança de fato ocorreria, que obrigou uma reavaliação das relações
da Igreja com as outras religiões (CONNELLY, 2007).
Como demonstramos neste capítulo, houve dois tipos de antissemitismo na
sociedade e na Igreja, um reforçado pelo outro, o racista e o religioso. Enfim, foi o
69 Notas foram publicadas no The Journal SIDIC 1968/3 e são cortesia disponibilizada pelas Irmãs de
Notre Dame de Sion. Disponível em: <http://www.ccjr.us/dialogika-resources/documents-and-statements
/jewish /1123-isaac19 60> Acesso em: 25 julho 2015, tradução nossa, grifo dele.
83
empenho dos que trabalharam, pesquisaram e proporcionaram a virada no
relacionamento da Igreja, e do Cristianismo, na relação com o povo Judeu, oferecendo
material suficiente para que houvesse condições de elaborar uma declaração específica
no Vaticano II, “os judeus não deveriam ser apresentados como rejeitados ou
amaldiçoados por Deus”, que o sofrimento e a morte de Cristo “não pode ser imputada a
todos os judeus, sem distinção, então vivos, nem contra os judeus de hoje”, e que “Deus
tem os judeus mais caros por causa de seus pais”. Assim, foi aberto o caminho a partir
do qual ampliou-se a compreensão que a Igreja tem do Judaísmo, dos judeus e das
demais formas de crenças e religiões. (ANEXO F)
Figura 09 - A Igreja e a Sinagoga. Catedral de Estrasburgo. Autor desconhecido,
(ca.1230).
84
A Igreja Triunfante sonda a Sinagoga caída e cega. A Sinagoga de
olhos vendados, recusa-se a ver a verdade. Tem junto de si um bastão
quebrado, que já não lhe poderá servir nem para o mando, nem para o
caminhar. Cegueira, invalidez: características lamentáveis de uma
decrepitude que também ela não está nos acidentes, mas na própria
alma da Sinagoga. Toda a hediondez da filha de Satanás resulta de seu
interior, poder-se-ia dizer dela, ao contrário do que da Santa Igreja diz
o Salmista. O erro só tem a perder quando com tanta clareza se lhe
manifesta a natureza íntima. O Apóstolo diz da Esposa de Cristo que
Ela não tem mácula nem ruga. Sua formosura lhe vem da doutrina
perfeita, da santidade constante, da autoridade infalível. As misérias
do tempo podem, por vezes, impregnar em larga medida seus
elementos humanos, sem, contudo, atingir sua imortal perfeição. E
que a beleza da Igreja é o mais límpido reflexo da própria beleza de
Deus, e por isso nada tem Ela a perder com a manifestação plena da
verdade. 70
III CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II: O PROCESSO DE
ELABORAÇÃO DA NOSTRA AETATE
Nos anos que se seguiram ao Parlamento várias iniciativas eclodiram no
desenvolvimento das relações entre as diferentes religiões, com o desenvolvimento de
movimentos e conferências que fortaleceram os laços entre os cristãos, e entre o
Cristianismo e as outras religiões. No entanto, somente após a Segunda Guerra Mundial
e a Shoah, ocasião em que foi criada a Organização das Nações Unidas (ONU), vários
documentos internacionais foram assinados a fim de que a paz e o respeito aos Direitos
Humanos prevalecessem nas relações futuras entre os Estados e os povos. A Igreja
Católica precisava, portanto, posicionar-se em resposta aos eventos que já envolviam
uma grande mobilização pró-diálogo no seio protestante em relação às demais religiões,
e romper com o paradigma da Supersessionista - Teologia da Substituição em relação
aos judeus, como resposta à Shoah e à Conferência realizada em Seelisberg (1947),
decorrente da Conferência de Oxford.
Neste sentido, o significado da Nostra Aetate manifesta-se apenas quando a
situamos na complexa história da compreensão da Igreja deste tema, os séculos de
ensinamentos que distorceram o Judaísmo, como vimos anteriormente, e os debates
controversos ocorridos durante o Vaticano II, que precederam a elaboração desta
Declaração. Como cita Boys,
70 Disponível em: <http://www.pliniocorreadeoliveira.info/1956_071_CAT_Razoes_e_contra-razoes.htm
> Acesso em: 10 fev. 2016.
85
a Declaração pode ser melhor entendida como uma conversão ao
“mistério providencial da alteridade” para a vida da Igreja, e como um
chamado a fim de ampliar e aprofundar essa conversão. Pela primeira
vez na história, um concílio ecumênico falou positivamente de outras
religiões das quais as pessoas esperam uma “resposta para os enigmas
não solucionados da existência humana”. Enquanto a tradição católica
difere em muitas particularidades, essas religiões “no entanto, muitas
vezes refletem um raio da verdade que ilumina todos os homens [e
mulheres].” Assim, o Concílio incentivou a “discussão e a
colaboração com os seguidores de outras religiões” (BOYS, 2013,
p.73, tradução nossa, acréscimo da autora).
No período que antecedeu o anúncio do Concílio Vaticano II, desde o final do
século XIX, a Igreja Católica Romana não participava ativamente nas questões voltadas
ao ecumenismo e ao diálogo inter-religioso, como já o faziam as Igrejas Reformadas,
entretanto, já haviam novas experiências pastorais em ação na própria Igreja. O espírito
fraterno para com todos os homens e mulheres de diferentes confissões religiosas não
foi o principal fator que moveu a realização deste Concílio e da Nostra Aetate, ainda
que em muitos sacerdotes houvesse um desejo latente, todavia, questões que passam
pela pressão externa, levaram a Igreja romana a uma atitude reativa frente aos
acontecimentos do período.
A maioria dos católicos geralmente era alheia à longa e amarga história da Igreja
em relação aos judeus. Como a maioria dos cristãos no final dos anos 1950 e início de
1960, os católicos criam que a Igreja havia substituído o Judaísmo. Outros católicos
opunham-se em considerar uma relação da Igreja com o povo Judeu. E muitos bispos
orientais, particularmente em países árabes muçulmanos, temiam que sua condição de
minoria pudesse ser ainda mais perigosa, como veremos mais adiante.
Desde o início havia um princípio norteador para a construção do texto até o
resultado final, a Nostra Aetate. Sua essência seria encontrada já na introdução do
Documento, apoiado sobre quatro perguntas, segundo Bea (1968, p.20), “Qual é o
objetivo exato da Declaração? Quais as bases que fundamentam a ação visada pela
Declaração? Qual é a atitude da Igreja? E qual deve ser a dos fieis em relação às
religiões não cristãs? ”. Na resposta a estas perguntas identificamos as razões que as
motivaram, seus avanços e limites, e o difícil esforço do Cardeal no sentido de
desvincular o Documento de questões políticas.
O antissemitismo racial, mas principalmente o religioso, foi definitivamente
confrontado no Vaticano II, superando séculos de desprezo, distorção e incompreensão.
No entanto, outro obstáculo apresentou-se no processo de elaboraração do documento
referente às relações com os judeus, a questão política.
86
Quanto ao objetivo, a Igreja propôs o diálogo, e como fundamento do diálogo
apoiou-se no que os homens têm em comum, o vínculo no sentido geral, exluindo
convergências e divergências específicas da Igreja em relação às demais religiões. Por
isso, se propôs em favorecer a unidade da família humana, pois reconhece as mudanças
pelas quais passaram as sociedades e a interdependência decorrente de tais mudanças.
Neste sentido, a Igreja se colocou na incumbência de promovê-la.
O Documento destacou como bases da unidade, a origem comum enquanto
criaturas de Deus, a universalidade da Graça pela qual a salvação abarca toda
humanidade em um destino comum. Todos os povos são incluídos na vocação de Israel,
cuja meta é o próprio Deus, revelado sobretudo no Segundo Testamento, pois neste se
revela sua Plenitude, ou seja, o Cristo. É importante notar que o Documento destacou a
diferença entre os meios e caminhos pelos quais a Igreja trabalha para a salvação das
almas, e o modo pelo qual Deus atua, não sendo dependente da Igreja. Deste modo, o
próprio Concílio procurou transpor os limites visíveis da Igreja, sem deixar de incluir o
fluxo da graça divina presente na vida de bilhões de homens e mulheres de outras
crenças.
Por fim, a busca comum das respostas aos enigmas da vida e da nossa existência,
por meio da religião, como o sofrimento, a felicidade, a morte, o pecado, o juízo e a
retribuição71. A Declaração reconheceu que nos diversos povos existe uma “certa
percepção daquela força oculta presente no curso das coisas e dos acontecimentos
humanos” da qual emerge “um profundo sentido religioso”, e esta percepção é a base
comum sobre a qual o diálogo inter-religioso se fundamenta e desenvolve.
Porém, outro fator importante e desafiador, ainda na questão da religião como
base espiritual para a unidade e o encontro, foi o papel da própria religião no transcurso
da história, posto que fora instrumento de guerras, perseguições, discórdias e
intolerâncias. Mesmo assim, o Documento apostou na religião como um fator que
favorece a unidade dos povos. A partir deste ponto, a Nostra Aetate propôs a atitude da
Igreja em relação às demais religiões. No entanto, o Cristianismo foi o referencial, a
partir do qual as outras religiões “refletem não raramente um raio da verdade”.
(ANEXO F)
Assim, o texto relativo ao povo Judeu, segundo as palavras de Bea, foi como um
grão de mostarda que se tornou uma árvore na qual as demais religiões também
encontrariam apoio, ou seja, no Documento final intitulado Nostra Aetate. Seu conteúdo
incluiu uma breve apreciação do Hinduísmo, Budismo e do Islã, mas não houve menção
71 Pecado e Juízo segundo a tradição judaico-cristã.
87
das demais religiões, como as de matriz africana e indígena, para citar apenas alguns
exemplos. O quarto parágrafo da Nostra Aetate, o mais extenso da Declaração, incluiu,
em parte, uma resposta aos Dez Pontos de Seelisberg (1947), e seria o marco para um
novo relacionamento da Igreja com os judeus, cuja complexa recepção e seus efeitos
seriam percebidos ao longo dos anos posteriores em que este Documento fosse
divulgado, compreendido, assimilado e posto em prática.
III.1 O VATICANO II (1962-1965)
Sobre os concílios, é importante considerarmos que são concluídos com a
promulgação de Documentos resultantes das decisões debatidas em assembleias,
durante as Sessões conciliares, por meio de Comissões, Subcomissões, e dos
Secretariados estabelecidos com auxílio de peritos convidados. No Concílio Vaticano II
houve quatro Sessões, nas quais foram debatidos temas amplos e complexos que
redirecionaram a vida interna da Igreja e de sua missão no mundo, no sentido de um
aggiornamento. Foram promulgados neste Concílio quatro Constituições, nove
Decretos, e três Declarações72, dentre elas a Nostra Aetate. Houve a participação de
3.060 Padres conciliares, participantes diretos do Concílio; 480 Peritos convidados
oficialmente; 29 Auditores; 23 Auditoras; e 168 Observadores Delegados e Hóspedes
do Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos.73 As Declarações conciliares
são “um gênero criado pelo Vaticano II; revestidas de autoridade conciliar, dirigem-se a
toda a humanidade, e não somente aos católicos” (Verbete Documentos Conciliares. In:
PASSOS; SANCHEZ, 2015, p.299).
João XXIII, o italiano Angelo Giuseppe Roncalli (25 de novembro de 1881 – 3
de junho 1963) nasceu em Sotto il Monte, Bérgamo. Antes de ser eleito Papa fora
enviado por Pio XI como delegado apostólico na Bulgária e em Istambul, no momento
em que passava pelo processo de secularização após a Proclamação da República, em
1923, e à Atenas, centro da Igreja Ortodoxa Grega. Posteriormente, em 1944, fora
nomeado por Pio XII embaixador (núncio apostólico) da Santa Sé, em Paris, e,
72 Foram promulgadas as Constituições: Lumen Gentium e Dei Verbum (Dogmáticas); Gaudium et Spes
(Pastoral); Sacrosanctum (designada apenas Constituição). Os nove Decretos foram: Inter Marifica;
Orientalium Ecclesiarum; Unitatis Redintegratio; Christus Dominus; Perfectae Caritatis; Optatam
Totius; Apostolicam Actuositatem; Ad Gentes; e Presbyterorum Ordinis. As três Declarações
promulgadas foram: Gravissimum Educationis; Dignitatis Humanae; e Nostra Aetate. Cf. Verbete
Documentos Conciliares. In: PASSOS, João Décio; SANCHEZ, Wagner Lopes (Coords). Dicionário do
Concílio Vaticano II. 1. ed. São Paulo: Paulinas/Paulus, 2015. pp.298-300. 73 Cf. Verbete Infraestrutura Conciliar. In: PASSOS, João Décio; SANCHEZ, Wagner Lopes (Coords).
Dicionário do Concílio Vaticano II. 1. ed. São Paulo: Paulinas/Paulus, 2015. pp.471-474.
88
finalmente, Patriarca de Veneza, em 1952. Para ele fé e razão, apesar de distintas
caminhavam juntas, pois segundo Alberigo (1996, p.27) “é diferente o que a fé deve
aceitar sem reservas e o que a razão pode analisar, porque produto contingente da
evolução história”, e com relação ao Concílio, Roncalli compôs uma dupla
responsabilidade, a de bispo de Roma e Pastor da Igreja Universal. Acreditava que
dentre os objetivos do Concílio haveria a contribuição para a paz mundial. Além disso,
relatou que sua motivação para o convocar havia sido inspirada por Deus, e não fora
planejada anteriormente. Segundo suas palavras,
há quem espera do pontífice o homem de Estado, o diplomata, o
cientista, o organizador da vida coletiva, ou aquele que tenha o
espírito aberto a todas as normas de progresso da vida moderna, sem
nenhuma exceção (ALBERIGO,1996, p.29).
III.1.1 João XXIII e a Segunda Guerra Mundial
Antes de adentrarmos nos fatos ocorridos no período conciliar, iremos expôr
alguns dados de pesquisas realizadas pela International Raoul Wallenberg Foundation
(IRWF), com base na coleta de obras de historiadores e jornalistas que dedicaram-se à
análise de documentos, relatórios e telegramas, principalmente do Vaticano, contendo
informações sobre a participação de Angelo Giuseppe Roncalli, na condição de
delegado apostólico em Ancara (1934-1944), Turquia, no que concerne às intervenções
e ações humanitárias em favor dos judeus da Europa oriental durante a perseguição
nazista. Sua atuação não fora isolada, dentro e fora da Igreja, pois atuou, inclusive, em
colaboração com o delegado da Agência Judaica na Turquia, Chaim Barlas.
Roncalli, ‘contrabandista de judeus’ [...] em Istambul, multiplicava os
falsos certificados de batismo, organizava as filas de passagem,
coletava alimentos e roupas, mobilizava as seções da Cruz Vermelha,
escrevia ardentes súplicas aos poderosos, e detalhadas cartas ao
Vaticano [...] Quando Barlas evocava o destino desastroso das
crianças judias na Eslováquia, Roncalli, pálido, de repente se
levantou, e colocando-se diante de um ícone de Cristo começou a
recitar os primeiros versículos do livro de Ezequiel sobre os ossos
secos e sobre o retorno de Israel à vida. Outra vez, durante um
encontro, depois de ter acabado de ler os Protocolos de Auschwitz, um
testemunho sobre aquele campo de morte, ele explodiu em lágrimas”. 74
74 Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/530747-a-rede-turca-de-joao-xxiii-e-o-salvame
nto-dos-judeus> Acesso em: abr. 2016.
89
Historiadores e testemunhas que viveram naquele período, contribuíram com
detalhes que permitem perceber o que de fato Roncalli enfrentou ao utilizar sua
habilidade diplomática, e atuar como facilitador da evacuação de milhares de judeus
com destino à Palestina, em que a Turquia tornou-se a principal rota para travessia.
Alguns resultados apontados por historiadores são:
1. Refugiados judeus que chegaram a Istambul e receberam assistência
para irem à Palestina ou outros destinos, pela emissão de “certificados
de imigração” para a Palestina através do serviço postal diplomático
do Vaticano;
2. Crianças eslovacas e croatas que conseguiram deixar o país como
resultado de suas intervenções junto ao Vaticano e chegaram à
Palestina;
3. Refugiados judeus cujos nomes foram incluídos em uma lista feita
pelo rabino Ashkenazi de Istambul, pedindo intervenção papal em seu
favor foi apresentada pelo rabino Markus ao delegado;
4. Judeus detidos no campo de concentração Jenovats, foram
libertados graças à sua intervenção;
5. Judeus búlgaros que deixaram o país, graças ao pedido de Roncalli
ao rei Boris da Bulgária, com que mantinha excelente relação;
6. Judeus romenos da Transnístria que deixaram a Romênia por causa
de sua intervenção;
7. Judeus italianos ajudados pelo Vaticano como resultado das
intervenções do núncio Roncalli.
8. Crianças órfãs de Transnístria a bordo de um navio de refugiados
ancorado da costa da Turquia, que iria para a Palestina, também por
causa de sua intervenção;
9. Judeus detidos no campo de concentração Serede, que foram
poupados da deportação para os campos de concentração poloneses
por sua causa;
10. Judeus húngaros que conseguiram salvar-se graças aos certificados
de batismo enviados por Roncalli para o núncio Húngaro Dom Angelo
Rotta;
11. Sua intervenção junto ao Papa Pio XII para que usasse sua
influência a fim de proteger os judeus da Hungria;
12. A alusão de Roncalli à intervenção do Vaticano para permitir a
saída dos judeus da Alemanha;
13. O Grande Rabino Herzog da Palestina reconhece os esforços feitos
por Roncalli em favor dos refugiados judeus. 75
75 Para mais informações, resultado de pesquisas realizadas por muitos historiadores que se dedicaram a
este tema: Disponível em: <http://www.raoulwallenberg.net/category/holocau st/> Acesso em: 20 fev.
2016.
90
III.2 ANÚNCIO E PREPARAÇÃO DO CONCÍLIO: 09 DE JANEIRO DE 1959 A
28 DE SETEMBRO DE 1962
Em 28 de outubro de 1958 João XXIII fora eleito sucessor de Pio XII, e em 02
de novembro de 1958 comunica, em audiência privada com o Cardeal Rufini, sua
intenção de convocar um Concílio. Em 25 de janeiro de 1959, passados quase 90 dias de
sua eleição, aos 77 anos de idade, na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, o Papa
anuncia a um grupo de cardeais a decisão de realizar a convocação para um Sínodo
diocesano para a cidade de Roma, e um Concílio geral para a Igreja universal. Neste
ponto pode-se perceber o primeiro sinal de tensão interna, a saber, este Papa fora eleito
para um pontificado de transição, portanto, não se esperava grandes mudanças internas,
o que os cardeais acolheram, como cita Alberigo (1996, p.22) “com impressionante e
devoto silêncio”, sendo sugerido no ano seguinte, que não havia necessidade de realizar
um novo Concílio Ecumênico.
Naquele momento, os cardeais da Igreja ainda não haviam percebido a
necessidade de renovação, aggiornamento, pelo atraso da Instituição em relação à
questão que há décadas desenvolvia-se no seio protestante, o encontro, e em
consequência, a evolução do diálogo com outras confissões religiosas, inclusive com os
judeus, que mais tarde resultaria na promulgação da Nostra Aetate, como reação da
Igreja a este atraso.
Se a Igreja ainda não tinha a visão da necessidade de mudanças frente à
sociedade moderna, também não poderia compreender amplamente as mudanças que
um novo Concílio implicaria, de caráter pastoral e não doutrinal, foi uma mudança
súbita e irreversível, porém tardia, que não tinha a intenção de concluir o Concílio
prorrogado de 1870. O anúncio do Vaticano II, 21º na série dos concílios considerados
ecumênicos pela Igreja, gerou reações positivas fora da Igreja Católica, pois envolveu
diversos grupos sociais e culturais com alcance intercontinental. Diante da iminência do
Concílio, o prefeito de Florença G. La Pira declara:
O concílio é propriamente o fato ‘político’ essencial do qual depende
a paz dos povos e sua futura nova estruturação política, social, cultural
e religiosa (ALBERIGO, 1996, p.43).
A hegemonia ocidental foi o tom inicial deste Concílio, mas posteriormente
perdeu força, e a chave de leitura passou a ser a questão ecumênica e pastoral, no
sentido de um “Novo Pentecostes” renovador, que ajudaria a Igreja a dar um salto à
91
frente, condizente com um novo período histórico, e retirá-la do atraso frente aos
tempos modernos (ALBERIGO, 1996).
Em decorrência do intenso trabalho da comunidade judaica em prol de melhores
relações entre a Igreja, os judeus e o Judaísmo, algumas atitudes contribuiram para o
avanço da Igreja em direção à eliminação do preconceito e da intolerância da Igreja
presentes na liturgia, mesmo antes do Concílio, como foi descrito anteriormente. Em
1959 o Papa João XXIII ordenou que as referências aos judeus como “pérfidos” e
“perfídia” fossem retiradas da oração da Sexta-feira Santa. João XXIII também
determinou a retirada dos livros litúrgicos todas as referências que pudessem soar
ofensivas aos judeus, muçulmanos, protestantes e demais crenças, gesto este saudado
pela comunidade judaica. Em 1959 a seguinte frase foi retirada do Ato de Consagração
da Raça Humana (celebrado como parte da Missa do Sagrado Coração, a Bênção do
Santíssimo Sacramento, a Festa de Cristo Rei, e na primeira sexta-feira de cada mês):
Olhe, finalmente, com os olhos de piedade sobre os filhos daquela
raça, que por muito tempo foi o teu povo escolhido; e que o teu
Sangue, que já foi invocado sobre eles em vingança, agora desça sobre
eles também em uma inundação de limpeza redentora e vida eterna
(HERSHCOPF, 1961, p.24, tradução nossa, grifo meu).
Finalmente, em 1960 esta frase também foi retirada do Batismo de Conversão:
“Horresce Judaicam perfidiam, respue Hebraicam superstitionem”76. Paulo VI,
sucessor de João XXIII, tirou também a oração para que os “cegos judeus” se
convertessem à fé. (BEA, 1968, p.15).
Em 11 de março de 1960 o Cardeal Bea entregou a João XXIII o projeto de
criação de uma Comissão para a unidade dos cristãos, e em 30 de maio de 1960
confirmou o nome oficial do Concílio como Vaticano II (11 de outubro de 1962 a 8 de
dezembro de 1965)77. A atitude de João XXIII marcou a abertura do caminho para que o
diálogo se desenvolvesse a partir do catolicismo, além disso, segundo as palavras de
Faggioli (2013, p.26) “os protagonistas do Vaticano II viveram-no como uma
experiência que influenciou, às vezes de maneira dramática, o seu modo de conceber a
relação entre a Igreja e a tradição, Igreja e cultura, e Igreja e mundo moderno”. O
Concílio durou sete anos desde o seu anúncio até sua conclusão.
76 Significa: “Abomino a infidelidade Judaica, renuncio à superstição Hebraica”. 77 De especial importância para o ecumenismo católico moderno é a encíclica de Pio XII Mystici Corporis
– Corpo Místico (1943) que trata do mistério da Igreja, visível e invisível, do amor e do direito. Em 25 de
Maio de 1995 João Paulo II assinou a encíclica Ut unum sint – Que eles possam ser um - que teve grande
eco nos meios ecumênicos.
92
Em 5 de junho de 1960, na Carta Apostólica Motu Proprio Superno Dei nutu –
instituiu o Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos78, para o qual o
jesuíta alemão, padre Agostinho Bea (1881-1968), João XXIII o tornou cardeal-diácono
em 14 de dezembro de 1959, e convidou para ser o primeiro presidente (1960-1968).
Em 1962 foi consagrado bispo. Agostinho Bea nasceu na Alemanha, ordenou-se padre
pela Companhia de Jesus em 1912. Especializou-se em Ciências Bíblicas, e dentre suas
pesquisas dedicou-se ao estudos e ao contato com o mundo Judaico e com os
protestantes. Fora reitor do Instituto Bíblico de Roma e confessor de Pio XII.79
Em 13 de junho de 1960 o Papa recebeu Jules Isaac em uma audiência privada, e
por sua sugestão o texto sobre os judeus foi então solicitado por João XXIII, que
decidiu incluir o tema na pauta conciliar. O dossiê entregue por ele fora encaminhado ao
Cardeal Bea e ao Secretariado e em audiência realizada no dia 18 de setembro de 1960,
o Papa o encarregou de preparar um projeto para o Concílio sobre a relação da Igreja
com o Judaísmo, a Comissão para as relações religiosas com o Judaísmo (BEA, 1966).
Seu texto abordou os Dezoito pontos relativos aos ensinamentos da Igreja Católica que
deveriam ser retificados. (ANEXO A)
Um mês após o encontro com Bea, em 17 de outubro de 1960, João XXIII
recebeu 130 membros do grupo United Jewish Appeal.80
Nesta ocasião, ao encontrar com a comitiva, abriu os braços, num
gesto acolhedor e exclamou: “Sou eu, José, o vosso irmão” – a
expressão remetia ao encontro de José e seus irmãos no Egito. Dois
anos após, em 17 de maio de 1962, cinco meses antes de iniciar o
Concílio, aconteceu um episódio que ficou marcado na história dos
judeus romanos. O Papa, passando pela avenida ao longo do Tibre,
encontrou-se diante da Sinagoga de Roma. Fez parar o carro. Abriu a
capota e abençoou um grupo de judeus que saia do edifício. O Rabino
Elio Toaff testemunhou o fato e recordou que após um estranhamento
compreensível daquelas pessoas, o grupo cercou o automóvel do Papa
78 Foi confirmado pelo Papa Paulo VI como organismo permanente da Santa Sé no dia 3 de janeiro de
1966, (ainda sob o pontificado de Paulo VI, 22 de outubro de 1974 foi fundada a Comissão para as
Relações Religiosas com o Judaísmo), e em continuidade aos trabalhos de João XXIII, publica a Carta
Apostólica Motu Proprio Finis Concilio Oecumenico Vaticano II e amplia o Secretariado para outros
dois: O Secretariado para os Não Crentes (09/04/1965), e o Secretariado para os Não Cristãos
(19/05/1964), que em 28 de junho de 1988, com a publicação da Constituição Apostólica Pastor Bonus,
foi elevado à categoria de Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso e passou a ser a
organização central da Igreja para a animação e a coordenação das iniciativas de diálogo com as outras
religiões. Este Conselho elaborou dois documentos que tratam de aspectos específicos que marcaram o
caminho do diálogo, são eles: Diálogo e Missão (10 de junho de 1984), e Diálogo e Anúncio (1991), em
conjunto com a Congregação para a Evangelização dos Povos. Além destes houve outras iniciativas
decorrentes da Declaração, O Cristianismo e as religiões (1997) da Comissão Teológica Internacional, e
as referências implícitas feitas pelo Papa João Paulo II na Encíclica Redemptor hominis (1979). Cf.
Verbete Nostra Aetate. In: PASSOS, João Décio; SANCHEZ, Wagner Lopes (Coords). Dicionário do
Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulos, 2015. pp.666-671. 79 Cf. Verbete Bea, Agostinho. In: PASSOS; SANCHEZ, 2015, pp.51-52. 80 Cf.Verbete Comissões e Grupos Informais de Trabalho. In: PASSOS; SANCHEZ, 2015, p.154.
93
aplaudindo-o entusiasticamente. Aquela tinha sido a primeira vez na
história que um Papa abençoava os judeus, e talvez fosse – segundo
Toaff – o primeiro gesto de reconciliação (COELHO, 2012, p.97).
O Cardeal Bea esteve envolvido na preparação do esquema que serviria como
base para a subcomissão criada com a participação dos especialistas que contribuiriam
na apresentação, de forma mais aprofundada, dos temas propostos. Portanto, Bea foi o
responsável pelo grupo de trabalho que no desenvolvimento dos esquemas criou uma
rede de contatos, inclusive com as comunidades judaicas e suas principais associações
na França, Estados Unidos e Israel. Dentre elas o Comitê Judaico Americano (CJA),
cujos representantes reuniram-se com o Cardeal em 13 julho de 1961. A reunião de
1961 foi realizada em Roma, ocasião em que o Cardeal encontrou-se com membros do
Comitê,81
solicitando um posicionamento diante de efeitos da Doutrina e
Liturgia católica sobre o antijudaísmo. Esta conversa resultou em três
textos consecutivos que destacaram a urgência do combate contra o
antissemitismo e da conscientização pelo impacto das referências
pejorativas aos judeus em discursos e ritos católicos do passado
(Verbete Judaísmo. In: PASSOS; SANCHEZ, 2015, p.506).
Os três textos resultantes deste encontro foram enviados ao Cardeal como
Memorandos. O primeiro “A Imagem dos Judeus no Ensino Católico”, elaborado por
Judith Hershcopf Banki, datado de 22 de junho de 1961, mas submetido ao Secretariado
em 13 de julho de 1961, ocasião em que representantes do Comitê encontraram-se com
o Cardeal Bea em Roma; o segundo “Elementos Antijudaicos na Liturgia Católica” foi
submetido em 17 de novembro do mesmo ano pelo presidente do Comitê Louis Caplan,
como um complemento do texto anterior; o último “Sobre a Melhoria nas Relações
Católico-Judaicas” foi elaborado por Abraham Joshua Heschel (1907-1972), e
submetido ao Secretariado em 22 de maio de 1962.
O Memorando “A Imagem dos Judeus no Ensino Católico” inicia com uma
explanação sobre o valor do ser humano e indaga a respeito das razões que levaram à
indiferença cristã diante da perseguição aos judeus ao longo da história, mas
principalmente em relação ao extermínio de milhões pelo regime nazista, ainda que o
reconheça como um movimento secular e econômico, e não religioso. Porém, afirma
81 O Secretariado também foi encarregado da prepar os convites aos representantes das igrejas “não
católicas”, ou seja, líderes das Igrejas históricas: anglicana, ortodoxas e protestantes; líderes das
comunidades e federações eclesiais; e dos observadores delegados. Estíma-se que em junho de 1959
foram enviadas 2.594 cartas-convite, das quais 1.998 foram respondidas.
94
que a hostilidade e a indiferença por parte dos cristãos poderiam ser decorrentes de uma
cultura de desprezo semeada em países de tradição cristã, que anestesiara a consciência
dos cristãos. Mesmo assim, o texto reconhece que no percurso histórico houve também
a proteção da Igreja aos judeus, no entanto, caracteriza a atitude do mundo cristão em
direção aos judeus como ambígua, e que a mesma persistiu em nosso próprio tempo.
Assim destaca que,
hoje, o preconceito contra qualquer grupo religioso inevitavelmente
enfraquece todo o tecido da sociedade, degrada tanto os inimigos
como as vítimas, e tira a força espiritual de toda a humanidade.
Hostilidade entre fieis de diferentes credos serve apenas para avançar
a causa das forças antirreligiosas. Nesta hora de perigo, todos aqueles
que partilham a herança espiritual da Bíblia devem estar unidos se a
humanidade sobreviver (HERSHCOPF, 1961, p.2, tradução nossa).
Por outro lado expõe uma preocupação em relação à persistência do preconceito
religioso, permeado por fatores sociais, econômicos e políticos, mesmo após a Shoah.
Neste ponto o texto torna-se incisivo em relação à ambiguidade da Igreja que contradiz
seus preceitos de amor e caridade. Por um lado condena o antissemitismo, mas por
outro, seus ensinamentos tanto distorcem quanto difamam o Judaísmo e os judeus,
podendo novamente levar à hostilidade e ao desprezo, por serem disseminados com a
aprovação da mais alta autoridade moral e espiritual, a Igreja.
Nesta direção, o texto afirma que as omissões, tudo o que é deixado de
mencionar sobre o Judaísmo e como ele é representado nos ensinamentos da Igreja, são
tão prejudiciais quanto as afirmações distorcidas ou incorretas, e as comparações
injustas ou imprecisas. Além disso, a ênfase dada “aos judeus” no sentido pejorativo,
define as atitudes e os valores em relação aos judeus, e favorce o preconceito e a
intolerância. Nisto importa discernir os judeus, e os representantes da religião judaica
que foram hostis a Cristo e incitaram o ódio, daqueles que em sua maioria vivia na
mesma época, criam em Jesus Cristo e o seguiam, ou, nem mesmo o haviam conhecido.
Cabe entender, portanto, que havia tanto os inimigos, como os amigos de Jesus Cristo
dentre os judeus daquele tempo.
Isto estende-se a uma nova percepção do Judaísmo vivido naquela época que
valorize a religião dos Filhos de Israel, o Povo Hebreu, e não apresentá-la somente
como uma religião legalista, preocupada apenas com observâncias externas, desprovida
de amor, misericórdia e compaixão. E ainda lembrar que o Cristianismo tem suas raízes
95
no Judaísmo, mas não o substituiu, pois este não deixou de existir com a fundação do
Cristianismo, nem devido à destruição do Templo, mas permanece uma fé viva.
Enfim, o texto afirmou que seria incorreto transferir qualquer ação injusta, como
a crucificação de Jesus, a todo povo Judeu daquele tempo, como das gerações
porteriores, de forma generalizada, simplificada e parcial, que caracterize uma culpa
coletiva, e, consequentemente, os estigmatize como um povo rejeitado e amaldiçoado
por Deus.
O segundo Memorando sobre os “Elementos Antijudaicos na Liturgia Católica”,
submetido em 17 de novembro de 1961 pelo presidente do CJA Louis Caplan,
complementa o Memorando anterior, e na mesma linha de melhorar as relações entre
católicos e judeus, enfatizou as passagens mencionadas na liturgia católica romana que
são hostis aos judeus, assim como os comentários tradicionalmente evocados
contribuem para atitudes e comportamentos antijudaicos.
A nossa esperança é que o presente documento, que incide sobre
certas passagens da liturgia católica, as quais consideramos
prejudiciais aos judeus, será aceito pela Secretaria como uma tentativa
construtiva de enfrentar fontes de incompreensão e hostilidade entre
católicos e judeus (CJA, 1961, p.1, tradução nossa).
O Memorando concentrou-se nos livros litúrgicos da Igreja, que servem ao culto
público em igrejas paroquiais e catedrais; e nas homilias e comentários oficialmente
aprovados para a liturgia pública que orientam e informam os sacerdotes na preparação
dos sermões, mas, sobretudo, a liturgia realizada na Semana Santa, o Tríduo Pascal, e a
relação entre esta e os maus-tratos aos judeus.
O quarto Evangelho, de João, destacou-se por seu impacto sobre os sentimentos
e as atitudes dos católicos em relação aos judeus. O termo “os judeus” é utilizado para
designar somente os inimigos de Jesus, e os comentários negativos sobre os judeus
podem ser estimulados quando passagens isoladas do Evangelho foram inseridas na
liturgia da Igreja na Sexta-feira Santa, na qual os judeus, como povo, são retratados
como impiedosos, vingativos, e são mantidos coletivamente como responsáveis pela
crucificação de Jesus, e, consequentemente, estigmatizados como “deicidas”.
O Memorando também abordou a questão de que o povo Judeu é visto como
destinado ao “cálice da ira Divina”, amaldiçoado, e infieis. Destacou-se por fim os
estereótipos mais comuns encontrados na liturgia católica:
96
1. Se os judeus prosperam em um país durante um certo tempo, isto é
interpretado como indicação de que eles são materialistas pouco
escrupuloso e adoradores do Bezerro de Ouro.
2. Se os judeus são oprimidos ou suas vidas tornam-se miseráveis pelo
poder temporal, isto é interpretado como prova de que eles são um
povo desprezado, fugitivos e errantes até o fim dos tempos. O
sofrimento do povo Judeu é visto, não como uma indicação da
brutalidade do homem e desumanidade para com o seu semelhante,
mas como prova de que os judeus são um povo amaldiçoado: “[...] é a
partir da condição inferior, infligida aos Judeus por Cristãos, que os
mesmos Cristãos, em seguida, fingem provar a vitória da Igreja
através da Sinagoga e a superioridade da fé Cristã” (BAUM, Gregory,
O.S.A., The Jews and the Gospel: A Reexamination of the New
Testament, Westminster, Md., Newman Press, 1961, p.7).
3. A língua do Antigo Testamento e seu senso de justiça é, em geral,
criticada como colérica, de pouca piedade, severa e implacável. No
entanto, quando esta língua se volta contra os judeus, como na
literatura profética, os teólogos cristãos a consideram eminentemente
apropriada e adequada. Em vez de adotar uma perspectiva autocrítica
e de autocorreção consubstanciada nos Escritos proféticos, e aplicando
os mesmos padrões para a comunidade cristã, a grande maioria dos
comentaristas usa essas passagens como uma polêmica contra os
judeus.
4. Quase todas as homilias ressaltam o fato de que os judeus são um
povo disperso e que não possui Jerusalém, a Cidade Santa. Tais
comentários não são apenas anacrônicos à luz dos acontecimentos
mundiais recentes, mas eles dão a impressão lamentável de que os
comentaristas fazem um julgamento político sobre o eventos atuais.
(Na verdade, a mentalidade formada por estas interpretações podem
predispor um escritor a ver a história atual com os olhos
preconceituosos) (CJA, 1961, pp.18-19, tradução nossa).
Finalmente é encerrado afirmando que a maioria dos judeus está profundamente
convencida de que a acusação de “deicídio”, proferida ao longo dos séculos, tem sido
um fator central para a persistência do antissemitismo na civilização ocidental. Por isso
solicita que a liturgia da Igreja, especialmente o Tríduo Pascal, seja retificado
considerando que, mesmo após 1945 e os horrores dos campos de concentração, a
mesma persistia na liturgia da Igreja.
O último texto “Sobre a Melhoria nas Relações Católico-Judaicas”, elaborado
por Abraham Joshua Heschel (1907-1972), foi submetido ao Secretariado em 22 de
maio de 1962. As primeiras considerações de Heschel dizem respeito à origem comum
do Judaísmo e do Cristianismo, a crença no Deus criador que está envolvido na história
humana, e que o homem é um instrumento em Suas mãos; a necessidade da redenção
final; a crença nos profetas, através dos quais a vontade de Deus tornou-se conhecida. O
Memorando destaca a questão da justiça e da misericórdia de Deus agindo na história
através do homem, como uma missão confiada ao ser humano.
97
Em nenhum momento a terra tem sido tão encharcada com sangue; em
nenhum momento o homem foi menos sensível à Deus. Uma era de
suprema angústia e horror extremos pede palavras de suprema
grandeza espiritual e ações de força moral que purificarão a vida de
muitas gerações que virão (HESCHEL, 1962, p.5, tradução nossa).
O texto segue afirmando que o Concílio Ecumênico é uma oportunidade
excepcional para que a Igreja possa exercer sua influência moral, e reafirmar sua
oposição à perseguição e à intolerância, condenando o pecado do antissemitismo, e
emitindo uma declaração salientando a gravidade deste pecado, e sua incompatibilidade
com o Catolicismo e a moralidade. Para tanto, o autor volta-se novamente para a
necessidade de uma rejeição do falso ensino religioso propagado ao longo da história.
Na mesma linha dos memorandos anteriores, os pontos centrais convergem para
a acusação coletiva da crucificação de Cristo, “deicício”; por considerar o povo Judeu
amaldiçoado; e condenado a sofrer privação e vagar em um estado permanente de
exílio. Portanto, todos os que estão encarregados da missão de pregar e ensinar na Igreja
são responsáveis pela orientação espiritual correta de seus fieis. O texto lembra que no
próprio ensinamento da Igreja a morte de Jesus faz parte do plano redentor de Deus,
para qual Jesus Cristo fora predestinado a fim de redimir toda a humanidade.
O genuíno amor consiste em que os judeus sejam aceitos como judeus, e para
tanto seria necessário um conhecimento que contemple aspectos positivos, sem
distorção, sobre a vida e a espiritualidade judaicas, a dimensão moral de sua existência,
e assim, eliminar os estereótipos depreciativos e abusivos. Desta forma, o conhecimento
proposto por Heschel é mútuo, assim ele propõe dois níveis para que ambas
comunidades de fé atuem juntas em cooperação e aproximação, para que por outro lado,
os judeus também tenham acesso e conhecimento das lutas travadas pela Igreja em sua
defesa: “Assim, mais conhecimento e troca de informações são necessários em dois
níveis; conhecimento e compreensão do Judaísmo como uma religião viva; e uma visão
honesta, sem rancor das relações entre Católicos e Judeus no passado e no presente”
(HESCHEL,1962, p.9, tradução nossa).
Por tudo o que foi exposto no texto, Herschel acrescenta ainda uma reflexão
sobre a justiça e a injustiça, em que a primeira deve ser a suprema preocupação do
homem. Quando o mal é tolerado, algo muito pior se manifesta: a indiferença em
relação ao mal e à injustiça, quando o ser humano permanece neutro ou imparcial.
Assim, cientes da complexidade das questões envolvidas no Memorando, o texto
é encerrado sob uma perspectiva positiva e revolucionária, na expectativa de uma
98
declaração proveniente do Concílio Ecumênico, e o que poderia representar no longo
prazo. E ainda fez dois pedidos, que uma comissão permanente fosse estabelecida no
Vaticano a fim de eliminar o preconceito e cuidar das relações Cristãs-Judaicas em todo
lugar; e que cada diocese estabelecesse uma comisssão semelhante, com a finalidade de
promover as exigências da justiça e do amor (HESCHEL,1962, tradução nossa).
Em 6 de agosto de 1962, o Secretariado foi confirmado como Comissão
Conciliar. Durante sete meses, de 7 de novembro de 1961 a junho de 1962, a Comissão
preparatória Central do Concílio examinou mais de setenta esquemas preparados pelas
diversas Comissões preparatórias, dentre os quais, o que fora preparado pelo
Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos, que trataria, também, da atitude
em relação às demais religiões.
Para se chegar ao texto final, um intenso trabalho desenvolveu-se nos bastidores
do Concílio, e mesmo antes do Concílio, envolvendo uma série de atores que
contribuiriam para sua construção, pois o texto fora articulado, pensado, trabalhado,
antes e durante as Sessões Conciliares, até que fosse aprovado.
O especialista, Cardeal John M. Oesterreicher, por seu profundo conhecimento,
iria escrever o documento sobre a relação da Igreja com o povo Judeu durante a
preparação do Concílio Vaticano II. Sua contribuição na preparação do texto serviria de
base para o desenvolvimento deste tema e a futura Declaração Nostra Aetate.
O Instituto para Estudos Judaico-Cristãos da Seton-Hall University, fundado por
John M. Oesterreicher, enviou a João XXIII, com a data de 8 de junho de 1960, suas
sugestões sobre o tema da natureza da Igreja em relação aos judeus, elaboradas por
Oesterreicher e demais signatários. Oesterreicher mais tarde descreveu esta “petição”
como “pedidos mínimos [...] limitados a certos pontos essenciais”, já que a natureza e o
âmbito do Concílio ainda não eram conhecidos. 82
As sugestões concentraram-se em alguns aspectos principais nos quais o
Concílio deveria investigar e anunciar, por exemplo: o Documento referiu-se à vocação
de Abraão e à libertação de Israel do Egito como parte da gênese da Igreja, para que ela
pudesse dignamente e com razão ser chamada de “o Israel de Deus” (Gl 6,16), o Israel
renovado e exaltado pela palavra e pelo sangue de Cristo. Nisto consistia a maneira
82 Os signatários incluíram o futuro Bispo John J. Dougherty, e Revs. Gregory Baum, Myles M. Bourke,
Joseph Brennan, J. Edgar Bruns, Edward H. Flannery (futuro especialista em relações católico-judaicas
para os Bispos dos EUA), Isaac Jacob, Edward G. Murray, William Ryan, Ambrose Shaeffer, Quentin L .
Schaut. O Documento na íntegra: Disponível em: <http://www.ccjr.us/dialogika-resources/documents-
and-statements/roman-catholic/second-vatican-council/naprecursors> Acesso em: 20 dez. 2015, tradução
nossa.
99
como a Igreja veria a si mesma, ou seja, por meio de um novo olhar sobre os atos que
acompanharam o Êxodo de Israel, tornando-se consciente da história ininterrupta de
salvação, a Graça de Deus presente orientando a humanidade.
Deste modo foi sugerido que a Igreja desse maior expressão litúrgica para a
unidade da história da salvação, no sentido de renová-la, especialmente na
administração das orações dos sacramentos, reconhecendo na Vigília Pascal que Deus
salvou Israel da perseguição Egípcia, e agora extendia a salvação a todas as nações
através das águas da regeneração, e formara um só Povo. Neste espírito, a oração
pronunciada na Vigília Pascal deveria terminar com um pedido, que é característica da
compreensão da Igreja de si mesma: “Fazei com que o mundo inteiro possa
compartilhar a dignidade de Israel e todos tornem-se filhos de Abraão”.
O caminho para se alcançar a consciência de tal unidade ininterrupta de salvação
seria por meio das Missas e também por meio de festas comemorativas, como a festa
dos Justos do Primeiro Testamento, que já era praticada pelo Patriarcado de Jerusalém.
Os signatários destas recomendações acreditaram que muito poderia ser adquirido pela
introdução e expansão destas festas em toda a Igreja, pelas quais os fieis aprenderiam,
não de forma mecânica, pois seria parte de suas vidas, assim como o relacionamento
entre cristãos e judeus. A renovação litúrgica ao longo destas linhas certamente levaria
ao crescimento no amor e gratidão entre os fieis, “pelo amor que Cristo teve por seus
parentes”.
Finalmente, sugeriram que o Concílio voltasse sua atenção aos problemas do
nosso tempo, que a Igreja denunciasse, como fez no passado, o ódio às pessoas por
motivo de “raça”, (Rm 9,5), a partir dos quais (os judeus) Cristo veio, segundo a carne,
Ele que é Deus. E que frases enganosas que distorcem o verdadeiro ensinamento da
Igreja e sua real atitude para com os judeus deveriam ser alteradas, em especial nas
lições do Ofício Divino (Liturgia das Horas).
A apresentação dos esquemas foi realizada em quatro etapas ou assembleias
durante a fase preparatória do Concílio. A primeira assembleia do Secretariado ocorreu
em novembro de 1960, sob os cuidados dos especialistas Gregory Baum (1923) e John
Oesterreicher (1904-1993), escolhidos por Bea como peritos conciliares.
Gregory Baum elaborou uma primeira reflexão discutida na segunda assembleia
geral do Secretariado realizada entre 6 e 9 de fevereiro de 1961, que resultou em um
pedido ao Cardeal Oesterreicher para que elaborasse mais um estudo sobre o tema. As
palavras de Baum sinalizam a pressão exercida sobre a Igreja.
100
Temos aqui um caso, frequentemente encontrado na história da Igreja,
em que uma decisão prática da parte das Igrejas, em resposta a um
evento significativo, precede a reflexão dogmática e, de fato, torna-se
guia para um futuro desenvolvimento doutrinal (BAUM, G. In:
FLEISCHNER, 1977, p.113, tradução nossa)
O texto foi apresentado na terceira assembleia geral realizada entre os dias 16 e
21 de abril do mesmo ano. Os estudos levantados por Baum e Oesterreicher resultaram
no Documento Quaestiones de Judaeis, aprovado pelo Secretariado em maio de 1961,
apresentado e debatido em sua quarta assembleia geral, ao final de agosto de 1961,
ainda na fase preparatória do Concílio. Após a assembleia foi necessário realizar alguns
ajustes, que ao final de novembro ficaram prontos. O resultado foi o esquema nomeado
Decretum de Iudaeis83 (Verbete Judaísmo. In: PASSOS; SANCHEZ, 2015, p. 505).
O Decretum de Iudaeis foi submetido à Comissão Central do Concílio em maio
de 1962, porém, devido às pressões externas em decorrência da presença de um
observador judeu no Concílio, o presidente da Comissão Central, Amleto Giovanni
Cicognani (1883-1973) o rejeitou, fato que ficou conhecido pelas questões ligadas ao
“caso Wardi” (Chaim Wardi), em que o Conselho Mundial Judaico (CMJ) escolheu um
funcionário do ministério para questões religiosas do Estado de Israel como observador
não oficial do Concílio, o que causou protestos por parte do Judaísmo Ortodoxo que
preferiu manter-se longe das questões da Igreja, e também dos países árabes que temiam
uma aproximação entre o Vaticano e Israel, prenunciando o reconhecimento do Estado.
Tal preocupação deu início ao lobby árabe junto às secretarias do
Vaticano, bem como foram encaminhados pedidos de intervenção a
diferentes países. O objetivo era desencorajar os conciliares a dar
sequência ao trabalho de aproximação dos católicos aos judeus
(COELHO, 2012, p.98).
Além disso, diante da oposição e preocupação dos bispos de origem árabe
temendo pelas muitas comunidades cristãs que viviam em terras do Islã, principalmente
as existentes em países vizinhos a Israel, e da interpretação política que se desenvolveu,
o Cardeal Bea suspendeu, pelo menos publicamente, os trabalhos do seu Secretariado.
Diante destes fatos, o esquema sobre os judeus foi cortado da agenda do Concílio. De
acordo com Alberigo (1996) as polêmicas se tornaram mais vívidas e públicas em
83 Disponível em: <http://www.ccjr.us/dialogika-resources/documents-and-statements/roman-catholic/se
cond-vatican-council/na-drafts> Acesso em: 15 nov. 2015. ANEXO B.
101
seguida à gafe cometida pelo CMJ fundado em 1936, quando em 12 de junho de 1962
anunciou Dr. Chaim Wardi como observador não oficial no Concílio.84
O Decretum de Iudaeis, de acordo com as explicações do Cardeal Bea, não
tratava de abordar um problema nacional nem político, posto que a Santa Sé ainda não
havia reconhecido o Estado de Israel. Por isso, cinco pontos desvinculados de qualquer
conotação política foram essenciais neste texto. Neles, a Igreja: 1. Reconheceu que os
judeus eram amados de Deus; 2. Reconheceu a herança que a Igreja de Cristo havia
recebido do povo de Israel; 3. Trabalhou para desconstruir a ideia dos judeus como um
povo maldito e rejeitado por Deus por não terem reconhecido Jesus como o Cristo; 4.
Rejeitou o antissemitismo e o ensino de desprezo sobre os judeus presentes na Igreja; 5.
Buscou discernir que a crucificação de Cristo fora perpetrada por uma pequena parte
dos judeus, os quais viviam especificamente naquela época. Finalmente, segundo suas
palavras, lembrou que a Igreja deveria conformar-se com o exemplo de Cristo e dos
Apóstolos.
Portanto, em relação aos judeus, a preocupação do Cardeal foi elaborar um texto
de conteúdo simplesmente religioso, sem dar qualquer margem à interpretações
políticas, cuidado este que, segundo Bea (1968), permitiu um conteúdo isento de
intenção política, e trouxe à Declaração um equilíbrio frente às demais religiões. Neste
sentido, podemos destacar algumas características do Documento no qual o termo
“Povo Judeu”, por exemplo, aparece, apenas uma vez como “povo judaico”, e refere-se
à descendência de Abraão, ou seja, no sentido religioso, por meio do qual os cristãos
possuem um vínculo. Deste modo, a Declaração “expressa sua convicção de que não há
uma ruptura entre a Antiga e a Nova Aliança, mas que ambas compartilham o mesmo
patrimônio espiritual” (Verbete Judaísmo. In: PASSOS; SANCHEZ, 2015, p.505).
Outro aspecto do Documento conciliar é que as Sagradas Escrituras não foram
referidas como escritos puramente históricos, mas como a escritos religiosos. Esta visão
iria proporcionar o encontro entre cristãos e judeus.
É sabido que durante a preparação deste documento conciliar, muito
cuidado se teve de nele pôr em relevo, de modo que, por todos os
meios, fosse fechado o caminho a toda interpretação política, ou, ao
menos, fosse manifesta a sua falsidade (BEA, 1968, p.7).
84 Cf. Coelho (2012, p.98) que, “Chaim Wardi, havia feito intervenções no Conselho Ecumênico das
Igrejas em Nova Déhli, em 1961, participando da elaboração de uma declaração contra o antissemitismo.
Dr. Wardi morava em Israel e teve sua indicação tanto do Congresso Judaico Mundial como dos
Ministérios do Exterior e dos Assuntos Religiosos, o que deu uma conotação fortemente política na sua
indicação como representante judaico junto ao Concílio”.
102
A esse respeito é importante esclarecer que o Tratado de Latrão, assinado em 11
de fevereiro de 1929, entre o Papa Pio XI e o Governo italiano de Benito Mussolini,
concedeu ao chefe da Igreja a soberania territorial sobre a Cidade do Vaticano e pleno
direito de engajar-se na diplomacia intemacional. O artigo 24 do Tratado descreve a
postura internacional da Santa Sé.
No que diz respeito à soberania que lhe pertence em matéria
international, a Santa Sé declara que mantém e deve permanecer fora
das rivalidades temporais entre outros Estados e não deve tomar parte
em congressos intemacionais convocados para resolver tais questões,
salvo se as partes em disputa fizerem um apelo conjunto à sua missão
de paz; em qualquer caso, no entanto, a Santa Sé se reserva ao direito
de exercer o seu poder moral e espiritual (JOHNSON, 2001, p.6,
tradução nossa).
Mesmo assim, não podemos afirmar que a motivação para a recepção do tema
sobre os judeus no Vaticano II fosse isenta de uma postura política por parte da Igreja.
Pois a Shoah e a fundação do Estado de Israel em 1948, obrigaram-na a repensar sua
compreensão dos judeus, deste modo, a postura da Igreja só pode ser entendida à luz
destes dois eventos. Ainda como analisa Johnson (2001), a relação entre a Santa Sé e a
Igreja é interdependente, na qual uma não pode funcionar plenamente sem a outra.
Assim, falar de uma função estritamente política ou governamental da Santa Sé,
particularmente nos assuntos internacionais, como oposta à autoridade religiosa da
Igreja, como o Direito Canônico sugere, é uma afirmação sem fundamento que
significaria separar a Santa Sé a partir do corpo ao qual ela representa.
No mesmo dia da declaração de independencia de Israel, um artigo
publicado no Vaticano pelo, L’Osservaiore Romano, articulava em
termos inequívocos a Teologia da Substituição subjacente da Santa Sé
em oposição à soberania judaica na Terra Santa: “Sionismo Moderno
não é o verdadeiro herdeiro do Israel bíblico, mas um Estado secular
[...] portanto, a Terra Santa e seus locais sagrados pertencem ao
Cristianismo, o verdadeiro Israel” (JOHNSON, 2001, p.20, tradução
nossa).
O conflito relativo à Igreja e o movimento Sionista nos remete a algumas
décadas antes da declaração de independência de Israel, em que população Árabe da
Palestina, dentre os quais haviam muitos fieis católicos, manifestou sua preocupação e
já pressionava a Igreja a posicionar-se contra o movimento. Assim, os argumentos
usados pelo Vaticano para combater o Sionismo foram apropriados dos líderes árabes
locais.
103
Minerbi apropriadamente resume esses argumentos em quatro pontos
principais que o Vaticano realizou sobre o Sionismo, de 1895 até
meados da década de 1920:
1. Os sionistas não eram religiosos e foram ainda antirreligiosos.
Portanto, eles não foram cumpridores da profecia bíblica e não
tinham nada a ver com o retorno prometido para a Terra Santa;
2. A imigração Sionista poderia varrer os Cristãos para fora da
Palestina e poderia destruir o caráter Cristão do país;
3. A possibilidade de que um Governo Judeu pudesse ser formado era
intolerável;
4. Os judeus estavam causando mudanças radicais no estilo de vida
tradicional da população local. E a modernização acelerada que
induziam foi muitas vezes prejudicial para os valores morais
(JOHNSON apud MINERBI, 2001, p.17, tradução nossa).
Além disso, separar a relação única entre dois irmãos antigos na fé, católicos e
judeus por um lado, e as duas forças políticas poderosas, por outro, a Santa Sé e o
Sionismo, não foi uma tarefa fácil, por sua interseção muitas vezes indistinguível da
motivação religiosa e política dentro da diplomacia do Vaticano, e o movimento
Sionista. Enquanto a Igreja tentou manter a sua posição em relação aos judeus separada
de sua posição sobre o Estado de Israel, na Nostra Aetate a posição política do Vaticano
esteve intimamente ligada à teologia subjacente,
esta complexa mistura de doutrina teológica e preocupações com
política internacional torna difícil separar políticas públicas da Santa
Sé, a partir de ensinamentos teológicos da Igreja Católica em relação
aos judeus e ao Judaísmo (JOHNSON, 2001, p.5, tradução nossa).
Nesta direção, é importante compreender que o vínculo que a espiritualidade
judaica mantém entre o povo, a Torá e a terra (Eretz Israel) é um aspecto que diz
respeito ao diálogo judaico-cristão de difícil compreensão para os cristãos. A Nostra
Aetate reconheceu a fidelidade de Deus e sua aliança com o povo Judeu, em que a posse
da Eretz Israel é central, e isto proporcionou uma oportunidade clara para uma
interpretação teológica positiva do novo Estado Judeu, o que poderia levar ao apoio
político explícito.
Tradicionalmente, o Cristianismo compreendeu-se como uma religião universal,
em que uma geografia terrestre particular é reconhecida nos fatos históricos da vida de
Jesus, durante sua vida e ministério. Ainda que os primeiros cristãos tivessem suas
raízes no Judaísmo, muito cedo, na evolução do Cristianismo, qualquer identificação
com a Eretz Israel como elemento fundante em sua relação com Deus foi por eles
abandonada. Isto ocorre porque a relação do Segundo Testamento com a terra é
diferente das Escrituras Hebraicas. No Segundo Testamento o sagrado não é associado
104
ao espaço físico, mas a uma pessoa, o Cristo, que por sua Divindade não está restrito a
este espaço, pois é livre. No entanto, quando considera-se sob uma perspectiva histórica,
a terra onde Jesus Cristo viveu e exerceu seu ministério, há uma relação do sagrado com
a terra, que é vista como cenário para a história da salvação,
esta espiritualização se deve, em parte, ao fato de que a maioria do
público, para o qual os escritos do Novo Testamento foram
endereçados, era Gentil. Esses novos cristãos estavam distantes tanto
da terra como da história da fé de Israel, “uma comunidade para a qual
Jesus Cristo foi a nova Lei e os Profetas, que resume o passado, enche
o presente, e lidera o caminho para o futuro. Para tais cristãos,
portanto, futuras esperanças e expectativas estavam ligadas à figura do
messias martirizado e ressuscitado, e não à promessa da terra”
(JOHNSON apud DAVIS, 2001, p.43, tradução nossa).
Outro fator que contribuiu para o distanciamento dos cristãos em compreender a
autoidentidade do povo Judeu com a Terra foi a tendência da teologia cristã tradicional
de interpretar de forma alegórica as Escrituras Hebraicas, espiritualizando a Terra, os
símbolos, a literalidade das palavras e narrativas provenientes de uma tradição religiosa
que, para os judeus, sempre foi viva e atual.
O Papa Paulo VI (1963-1978), enquanto manteve políticas tradicionais do
Vaticano para eventos na Terra Santa, sua visita ao território de Israel durante a
peregrinação, em janeiro de 1964, (período intervalar após a segunda Sessão, antes da
Nostra Aetate ser adotada), foi um passo significativo em direção à reconciliação,
apesar do não reconhecimento de Israel até aquele momento, da ajuda humanitária aos
refugiados árabes e às comunidades cristãs locais, e da ênfase especial sobre a proteção
dos lugares santos para os cristãos. Vale a pena mencionar que em dezembro de 1969, o
Secretariado divulgou um documento de apoio à melhoria das relações cristãs-judaicas,
reconhecendo a importância do Estado de Israel para os judeus, seu apego a ela que fora
prometida aos seus antepassados, e que o Estado de Israel não deveria ser separado
dessa perspectiva.
Enfim, a formalização de relações diplomáticas entre a Santa Sé e o Estado de
Israel, em 30 de dezembro de 1993, ocorreu décadas após o Concílio. Estas
considerações não têm a intenção de abonar a política colonialista israelense na
Palestina, nem o imenso sofrimento causado a este povo, agora sem a sua terra e sem
pátria, que se esforça por juntar os cacos de sua história, como em um mosaico, a fim de
manter sua identidade.
105
III.3 PERÍODO CONCILIAR
III.3.1 PRIMEIRA SESSÃO – 11 DE OUTUBRO A 08 DE DEZEMBRO DE 1962
(Período intervalar - 06 de janeiro a 26 de setembro de 1963)
O Concílio foi organizado em 04 Sessões Públicas (com os respectivos
encerramentos públicos) distribuídas ao longo de 03 anos. A primeira Sessão do
Concílio foi realizada entre os dias 11 de outubro e 08 de dezembro de 1962. Nesta
Sessão nenhum documento foi aprovado, e os esquemas preparados pelas comissões
foram rejeitados, porém, foi criada a Comissão Mista (Comissão Doutrinal e o
Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos). No dia 13 dezembro de 1962 o
esquema foi novamente exposto ao Papa e teve sua aprovação, cinco meses antes de sua
morte. A versão revisada, decorrente dos problemas causados pelo então “caso Wardi”,
fora preparada ainda antes da morte do Papa, entre fevereiro e março de 1963, e incluiu
uma breve apreciação de outras religiões (BEA, 1968).
III.3.2 SEGUNDA SESSÃO - 29 DE SETEMBRO A 04 DE DEZEMBRO DE 1963
(Período intervalar – 04 de janeiro a 13 de setembro de 1964)
A nova versão chegou aos Padres conciliares em 8 de novembro de 1963, com
mais de dois anos de preparação, nesta ocasião foi sugerido como quarto capítulo
suplementar ao esquema sobre o ecumenismo, porém, em 21 de outubro de 1963 o texto
foi desvinculado do esquema, pois sua pertinência foi questionada. Sobre isto o Cardeal
esclareceu que o tema deveria ser tratado separadamente uma vez que “é menos estreito
o vínculo entre os cristãos e o Povo Judeu do que as relações que ligam os próprios
cristãos entre si” (BEA, 1968, p.132).
No dia 19 de novembro foi apresentado o esquema ao sucessor de João XXIII,
Paulo VI, sob o título De catholicorum habitudine ad non christianos et máxime ad
iudaeos: A atitude dos católicos em relação aos não cristãos e sobretudo aos judeus85
incluindo os judeus e a liberdade religiosa. O esquema proposto considerou que as
raízes do antissemitismo foram de natureza muito mais ampla e complexa, e abarcavam
questões políticas, sociais, e econômicas, além da religiosa. (Verbete Nostra Aetate. In:
PASSOS; SANCHEZ, 2015, p.668). Apesar de ter sido discutida informalmente, sem
votos, o debate formal foi adiado até a Terceira Sessão.
85 Cf. ANEXO C.
106
No entanto, apenas 3 linhas sobre os não cristãos em geral constou no texto, e o
restante referiu-se ao Judaísmo causando algumas reações por parte dos Bispos do
Oriente Médio, que solicitaram a inclusão do Islã; os Bispos da Ásia pediram um
tratamento de modo que incluísse uma reflexão das demais religiões não monoteístas; e
uma minoria de Padres que negou a pertinência de uma declaração sobre os judeus.
Além disso, nesta versão o documento havia incluído a afirmação de que é
errado considerar o povo Judeu como um povo maldito e “deicida”. Porém, na versão
final, apesar de ter sido confirmado que os judeus ali não foram responsáveis pela morte
de Cristo, a palavra que impõe a culpa de “deicídio” foi omitida devido à pressão de
representantes da Igreja de nações muçulmanas e do clero mais teologicamente
conservador, que argumentaram o peso teológico positivo em favor do Estado de Israel
se os judeus fossem absolvidos explicitamente da culpa de “deicídio”.
Em dezembro de 1963 por meio de discussões informais foi produzido um
Apêndice Sobre os Judeus. O Cardeal Bea e seu comitê de redação realizaram uma
revisão que foi apresentada à Secretaria em março 1964 e posteriormente à Comissão de
Coordenação do Conselho. Neste Apêndice enfatizou-se que, de fato, a Igreja acreditava
que “Cristo havia enfrentado livremente sua paixão e morte, por causa dos pecados de
todas as pessoas” e que todos deveriam assegurar que na catequese como na pregação
jamais o povo Judeu fosse apresentado como um povo rejeitado, amaldiçoado, ou
culpado de “deicídio”, nem que fosse ensinado tudo o que poderia dar origem ao ódio
ou desprezo dos judeus nos corações de cristãos.”86
III.3.3 TERCEIRA SESSÃO – 14 DE SETEMBRO A 21 DE NOVEMBRO DE
1964 (Período intervalar - 07 de março a 03 de setembro de 1965)
Alguns meses depois, na medida em que a essência do texto fosse mantida,
levou-se em consideração os demais pareceres dos Padres conciliares, à exceção da
exclusão do texto sobre os judeus. Este foi cuidadosa e novamente revisado, resultando
em um esquema mais amplo. Foi dado um novo nome ao Documento, Declaratio
altera, De iudaeis et de non christianis: Declaração a respeito dos judeus e dos não
cristãos. 87 Este texto foi apresentado ao Conselho em setembro de 1964 pela Comissão
de Coordenação do Conselho. Esta interação fora discutida publicamente nos meios de
comunicação como uma versão “diluída” do projeto anterior não debatido, mas
86 Cf. ANEXO D. 87 Cf. ANEXO E.
107
disseminado. Ele também foi oferecido como um apêndice do projeto “Sobre o
Ecumenismo”. O novo material versou sobre os crentes de outras religiões do mundo,
especialmente os muçulmanos; a implicação de que a culpa pela crucificação pode ser
atribuída aos judeus da geração de Jesus; e a reformulação de um parágrafo que na
época foi amplamente interpretado para pedir a conversão dos judeus ao cristianismo.
Ao introduzi-lo em 25 de setembro, o Cardeal Bea deixou claro que sua Secretaria não
era responsável por esta revisão e incentivou os Padres conciliares para fortalecê-la.
Vejamos de forma mais detalhada.
O esquema foi dividido em duas partes iguais, diferentemente do esquema
anterior, na primeira sobre os judeus, deu-se maior ênfase nas prerrogativas do povo
eleito e na esperança da reunião de ambos os povos, do Primeiro e Segundo
Testamentos, conforme dois textos da carta aos Romanos 9, 4 e 11, 25, respectivamente.
Que são israelitas, dos quais é a adoção de filhos, e a glória, e as
alianças, e a lei, e o culto, e as promessas; [...] porque não quero,
irmãos, que ignoreis este segredo (para que não presumais de vós
mesmos): que o endurecimento veio em parte sobre Israel, até que a
plenitude dos gentios haja entrado.88
Ainda em relação aos judeus, retirar a acusação de “deicídio” que para muitos
judeus é a raiz do antissemitismo, e consequentemente das demais perseguições, foi o
ponto central deste texto. Embora este tema tenha sido abordado no esquema anterior,
pesou esclarecê-lo melhor, haja vista o impacto na opinião pública e a expectativa da
comunidade judaica para que neste Concílio houvesse uma declaração pública retirando
tal acusação. Deste modo, nela, deveria haver a justa medida entre não negar os relatos
dos Evangelhos referentes aos atos praticados pela autoridade judaica da época, os
chefes do Sinédrio, e considerar que a condenação e morte de Jesus Cristo fora
praticada, justamente pela falta de consciência de tais Chefes a respeito de quem era
Jesus, e, por conseguinte, de Sua divindade. Além disso, considerar que tal ato fora
praticado por parte dos judeus que viviam naquele tempo, em um contexto social,
político e religioso específico daquele período.
Na segunda parte da Declaração sobre a atitude em relação às religiões não
cristãs, destacamos que não havia Comissão ou Secretariado que pudesse assumir tal
tema até 19 maio de 1964, ocasião em que fora estabelecido o Secretariado para as
88Cf. BÍBLIA. Bíblia Sagrada. Almeida Corrigida Fiel (ACF). São Paulo: Sociedade Bíblica Trinitariana
do Brasil, 2012.
108
religiões não cristãs. Segundo Bea (1968) foi a primeira vez na História da Igreja, que
um Concílio expôs os princípios com tanta solenidade, daí sua importância para que se
desse conta, plenamente, do peso que tal questão assumiu.
Deste modo, o Secretariado assumiu a tarefa, e com a ajuda de peritos elaborou
um esquema contendo três eixos principais. Após o esquema ter sido submetido ao
exame da Comissão Coordenadora dos trabalhos conciliares, esta solicitou que fossem
destacadas principalmente três ideias. A primeira referiu-se à irmandade universal,
considerando Deus como Pai de todos os homens; a segunda, de que nenhuma
justificativa haveria para qualquer tipo de discriminação, perseguição e violência por
razões que envolvam questões nacionais ou de “raça”. E, finalmente, acrescentou-se ao
esquema uma menção explícita aos muçulmanos, cujo conteúdo foi aprovado pelas
maiores autoridades no assunto. Tal pedido fora realizado por carta, em 18 de abril de
1964. “A esta decisão procurou o Secretariado obedecer segundo suas forças” (BEA,
1968, p.131).
Como todas os demais assuntos referentes ao esquema já haviam sido discutidos
pelo Secretariado em reunião realizada no mês de março, e diante da complexidade de
tais reflexões que demandaram muito tempo, o esquema da Declaração fora submetido
ao exame e discussão dos Padres Conciliares para que dessem seus pareceres, sem nova
convocação do Secretariado.
Porém, em 3 setembro de 1964, Abraham Joshua Heschel dirigiu-se ao Conselho
de Padres, por meio de um memorando, no qual referia-se à intenção conversionista
contida no texto: “Também é bom lembrar que a união do povo Judeu com a Igreja é
uma parte da esperança cristã”, e fez a seguinte declaração:
Uma mensagem que diz respeito aos judeus como candidatos à
conversão, e proclama que o destino do Judaísmo é o de desaparecer,
será abominado pelos judeus em todo o mundo, e promove,
obrigatoriamente, a desconfiança recíproca, bem como a amargura e o
ressentimento. Estou pronto para ir a Auschwitz a qualquer momento,
se confrontado com a alternativa de conversão ou morte (BOYS,
2013, p.85, tradução nossa).
Entre 25 e 30 de setembro o esquema foi avaliado e debatido pelos Padres
conciliares. Novamente foram feitas mais intervenções, cujas observações foram
consideradas pelo Secretariado de forma imparcial. Desta vez foram apontadas
“supostas conotações políticas em favor do Estado de Israel, a extensão insuficiente
sobre o islã, e a falta de citação explícita de outras religiões como o animismo, o
109
budismo e o hinduísmo”, e teve seu título alterado novamente para De Ecclesiae
habitudine ad religiones non christianis – Nostra Aetae: A relação da Igreja com as
religiões não cristãs – Em Nossa Época, já estruturado em cinco parágrafos. Em 7 de
outubro de 1964 foi então sugerido, em uma reunião com a Comissão Coordenadora dos
Trabalhos Conciliares, que o Documento fosse incorporado como décimo sexto artigo
do segundo capítulo do esquema De Ecclesia, por se tratar da atitude da Igreja perante
as demais religiões (Verbete Nostra Aetate. In: PASSOS; SANCHEZ, 2015, p.668).
Em 18 de novembro de 1964, o texto da Declaração foi apresentado aos Padres
conciliares, no dia 20 do mesmo mês tornou-se uma declaração autônoma, e com as
devidas emendas foi submetida à votação em primeira leitura, dividida em três
momentos. No primeiro houve a votação dos três primeiros parágrafos, posteriormente,
votou-se os dois últimos parágrafos (4º e 5º), e finalmente votou-se na Declaração como
um todo, com 1.651 votos positivos dos 1.996 votantes; 99 negativos; 14 inválidos.
Nos meses de março e maio de 1965, período intervalar, o texto foi examinado
novamente devido aos 242 votos “sim, com reserva”, incorporados aos 1.651 positivos,
de acordo com o regulamento do Concílio. As dificuldades ainda não haviam
terminado, e a versão foi novamente apresentada com algumas considerações
importantes para o resultado final.
Alguns pontos foram cruciais nesta última revisão, que para Bea (1968, p.139,
grifo dele) houve a preocupação no sentido de que o texto “fosse quanto à substância
fielmente conservado”. Primeiramente, esclareceu que, quanto aos três primeiros
parágrafos, uma descrição que exponha as características de cada religião, a diferença
entre elas, e em relação à religião católica, não fazia parte do objetivo da Declaração,
mas sim o vínculo, aquele elemento que as une e fundamenta o diálogo, a comunicação
e a colaboração entre elas.
Em relação ao quarto parágrafo, sobre a relação com os judeus, muitas
observações foram postas, o que o tornou um texto complexo, articulado e de grande
relevância não só para católicos e judeus. Viagens foram realizadas a fim de estabelecer
contato com hierarquias católicas e não católicas, das quais vieram as maiores
dificuldades em relação ao texto. Neste sentido, o texto destacou que o repúdio a
quaisquer perseguições, e ao racismo, que estendia-se a todos os homens e ao povo
Judeu, e que, portanto, a Igreja fora motivada não por razões políticas, mas, pelo amor
evangélico.
110
III.3.4 QUARTA SESSÃO – 14 DE SETEMBRO A 08 DE DEZEMBRO DE 1965
Após estas etapas a versão final aperfeiçoada da Declaração foi apresentada,
debatida e votada em outubro de 1965, ocasião em que aos bispos do Concílio o Cardeal
Bea explicitou as características do Documento e seu objetivo. O resultado foi o texto
final submetido à votação nos dias 14 e 15 de outubro de 1965. Houve 1.763 votos
positivos; 250 negativos; 10 nulos, dos 2.023 votantes.
A Nostra Aetate situou-se em um determinado contexto histórico, político e
teológico, nos quais a Declaração foi elaborada sob os efeitos da Segunda Guerra
Mundial, do genocídio dos campos de concentração, da criação do Estado de Israel, e,
do Vaticano II. A criação do Estado de Israel, como vimos, desempenhou um enorme
papel na elaboração da Declaração, especialmente nos bastidores, liderada pelos bispos
católicos árabes. Por causa de sua pressão optou-se por referir-se aos Judeus, em sentido
religioso, quanto povo, e a palavra Israel, foi omitida deliberadamente pela proximidade
com o Estado, para que não justificasse qualquer intenção política no Documento
conciliar. Nisto consiste o conteúdo proposto pela Nostra Aetate na relação com o
Judaísmo, um texto politicamente articulado, em que a Shoah e o Estado de Israel
estiveram, ao mesmo tempo, ausentes e presentes no Vaticano II.
Após três anos de luta e oposição processual e política, a Declaração foi
finalmente aprovada e promulgada. Na última votação realizada em 28 de outubro de
1965, a Declaração obteve 2.221 votos positivos; 88 negativos; 1 nulo; e 2 “com
reserva”, não admitidos dos 2.312 votantes, superando a votação de 1964. É um
documento de cinco parágrafos, o mais breve do Concílio, e, dentre as religiões
mencionadas, como vimos, um espaço maior foi dedicado à judaica. O Documento se
insere no desafio de uma convivência harmônica diante da pluralidade das culturas e
religiões mundiais. E neste contexto, a Igreja se vê na função de promover esta
harmonia, além de “considerar sua relação com outras religiões não cristãs” 89(BEA,
1968, pp.17-18). 90
A Declaratio de ecclesiae habitudine ad religiones non christianas - Nostra
Aetate, dentre os nove Documentos conciliares aprovados foi a que abordou a relação da
Igreja com as religiões não cristãs, pelo qual dá se especial ênfase ao Hinduísmo, ao
Budismo, ao Islã, e ao Judaísmo, mas não menciona outras tantas religiões mundiais. O
89Declaração Nostra Aetate. Disponível em: <http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_cou
ncil/ documents/vat-ii_decl_19651028_nostra-aetate_po.html> Acesso em 20 julho de 2015. ANEXO F. 90 Para mais detalhes da Cronologia Geral do Concílio Vaticano II. In: PASSOS, João Décio; SANCHEZ,
Wagner Lopes (Coords). Dicionário do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulinas/Paulus, 2015.
111
termo colloquium aparece várias vezes nos textos conciliares. Porém, este Documento
foi “classificado como ‘declaração’, categoria mais baixa na Hierarquia compromissal
estabelecida pelos 16 resultados oficiais promulgados no decorrer do Vaticano II”,
como mencionamos anteriormente, é um ponto de partida, um referencial básico para
inúmeros estudos acadêmicos relacionados à Teologia das Religiões e para católicos
engajados nas questões que envolvem o diálogo inter-religioso, ou seja, um texto que
expressa a disposição da Igreja para que ocorra o diálogo (Verbete Nostra Aetate. In:
PASSOS; SANCHEZ, 2015, p.666).
Assim, o parágrafo quarto foi aprovado em determinados eixos que
corresponderam aos trabalhos desenvolvidos no período anterior ao Concílio, e em certa
medida, redefinidos. Resumidamente são: 1. O vínculo espiritual, a relação entre Israel e
o mistério da Igreja pelo qual os cristãos estão ligados espiritualmente a Abraão como
filhos, e à salvação prefigurada no êxodo; 2. A relação de continuidade da história da
salvação trouxe à lembrança que o Cristianismo tem suas raízes no povo Judeu e no
Judaísmo, como a origem judaica dos Apóstolos, de Maria, e de Jesus. Assim a Aliança
e o amor de Deus pelos judeus trouxeram uma nova compreensão da relação entre a
Igreja e esta Aliança com o povo Judeu, embora, a Igreja seja o novo Povo de Deus; 4.
A “deploração” do antissemitismo, que reprova toda perseguição e ódio aos judeus, na
versão inicial pode-se ler que a Igreja “condena” o ódio e as perseguições, enquanto que
no texto final encontramos “deplora ou reprova”, uma clara atenuação; 5. A afirmação
de que a condenação de Cristo fora perpetrada por uma minoria específica daquele
tempo, e que sua Paixão foi um ato voluntário, motivado por Seu amor, para remissão
dos pecados e salvação de toda humanidade. A palavra “deicídio” sequer apareceu na
versão final; 6. O cumprimento escatológico da salvação universal em Cristo; 7. A
prática da estima e da colaboração mútua por meio dos estudos e do diálogo, em que a
nova relação entre judeus e cristãos deveria ser fruto de uma experiência para que
pudesse ser compreendida teologicamente, também foi um alerta para que não haja um
retorno ao ensino de desprezo.
Enfim, a Declaração Nostra Aetate é um texto que diz respeito a um tópico
particular, endereçado não à Igreja, mas aos de fora dela, e a parte que se refere aos
Judeus sobreviveu às inúmeras tentativas de excluí-la da pauta do Vaticano II. Além
disso, todas as citações são das Escrituras, sola Scriptura, sem a tradição. O tom de
reparação expressou-se no quarto e mais extenso parágrafo destinado ao Judaísmo, e
nele houve a busca pelos aspectos comuns, ou melhor, o “patrimônio comum com os
judeus”, uma expressão da reforma litúrgica realizada neste Concílio. Nas palavras de
112
Gregory Baum, foi a mudança mais radical no magistério ordinário da Igreja Católica,
pois alterou substancialmente a tradição anterior referente aos judeus. Eis a Nostra
Aetate, quarto parágrafo referente à religião judaica:
Sondando o mistério da Igreja, este sagrado Concílio recorda o
vínculo com que o povo do Novo Testamento está espiritualmente
ligado à descendência de Abraão.
Com efeito, a Igreja de Cristo reconhece que os primórdios da sua fé e
eleição já se encontram, segundo o mistério divino da salvação, nos
patriarcas, em Moisés e nos profetas. Professa que todos os cristãos,
filhos de Abraão segundo a fé (Gl 3,7), estão incluídos na vocação
deste patriarca e que a salvação da Igreja foi misticamente prefigurada
no êxodo do povo escolhido da terra da escravidão. A Igreja não pode,
por isso, esquecer que foi por meio desse povo, com o qual Deus se
dignou, na sua inefável misericórdia, estabelecer a antiga Aliança, que
ela recebeu a revelação do Antigo Testamento e se alimenta da raiz da
oliveira mansa, na qual foram enxertados os ramos da oliveira brava,
os gentios (Rm 11,17-24). Com efeito, a Igreja acredita que Cristo,
nossa paz, reconciliou pela cruz os judeus e os gentios, de ambos
fazendo um só, em Si mesmo (Ef 2,14-16).
Também tem sempre diante dos olhos as palavras do Apóstolo Paulo a
respeito dos seus compatriotas: “Deles é a adoção filial e a glória, a
aliança e a legislação, o culto e as promessas; deles os patriarcas, e
deles nasceu, segundo a carne, Cristo” (Rm 9,4-5), filho da Virgem
Maria. Recorda ainda a Igreja que os Apóstolos, fundamentos e
colunas da Igreja, nasceram do povo judaico, bem como muitos
daqueles primeiros discípulos, que anunciaram ao mundo o Evangelho
de Cristo.
Segundo o testemunho da Sagrada Escritura, Jerusalém não conheceu
o tempo em que foi visitada (Lc 19,44); e os judeus, em grande parte,
não receberam o Evangelho; antes, não poucos se opuseram à sua
difusão (Rm 11,28). No entanto, segundo o Apóstolo, os judeus
continuam ainda, por causa dos patriarcas, a ser muito amados de
Deus, cujos dons e vocação não conhecem arrependimento (Rm
11,28-29). Com os profetas e o mesmo Apóstolo, a Igreja espera por
aquele dia, só de Deus conhecido, em que todos os povos invocarão a
Deus com uma só voz e “o servirão debaixo dum mesmo jugo” (Sf
3,9; Is 66,23; Sl 65,4; Rm 11,11-32).
Sendo assim tão grande patrimônio espiritual comum aos cristãos e
aos judeus, este sagrado Concílio quer fomentar e recomendar entre
eles o mútuo conhecimento e estima, os quais se alcançarão sobretudo
por meio dos estudos bíblicos e teológicos e com os diálogos
fraternos.
Ainda que as autoridades dos judeus e os seus sequazes urgiram a
condenação de Cristo à morte (Jo 19,6) não se pode, todavia, imputar
indistintamente a todos os judeus que então viviam, nem aos judeus do
nosso tempo, o que na Sua Paixão se perpetrou. E embora a Igreja
seja o novo Povo de Deus, nem por isso os judeus devem ser
apresentados como reprovados por Deus e malditos, como se tal coisa
se concluísse da Sagrada Escritura. Procurem todos, evitar que, tanto
na catequese como na pregação da palavra de Deus, se ensine seja o
que for que não esteja conforme com a verdade evangélica e com o
espírito de Cristo.
113
Além disso, a Igreja, que reprova quaisquer perseguições contra
quaisquer homens, lembrada do seu comum patrimônio com os
judeus, e levada não por razões políticas mas pela religiosa caridade
evangélica, deplora todos os ódios, perseguições e manifestações de
antissemitismo, seja qual for o tempo em que isso sucedeu e seja
quem for a pessoa que isso promoveu contra os judeus.
De resto, como a Igreja sempre ensinou e ensina, Cristo sofreu,
voluntariamente e com imenso amor, a Sua paixão e morte, pelos
pecados de todos os homens, para que todos alcancem a salvação. O
dever da Igreja, ao pregar, é portanto anunciar a cruz de Cristo como
sinal do amor universal de Deus e como fonte de toda a graça (NA4;
ANEXO F).
114
CONCLUSÃO
Extrair os componentes que favoreceram a reconciliação entre cristãos e judeus,
e deles forjar uma nova atitude, foi uma tarefa que requereu um longo esforço,
pesquisas, contatos e articulações entre representantes de ambas comunidades. Porém,
os apelos à mudança só foram de fato ouvidos após a Shoah, que forçou a Igreja a
reposicionar-se teologicamente em direção à abertura ao diálogo. Tal qual o trabalho
desenvolvido pelo artífice que utiliza o cadinho para purificar o ouro, esses homens e
mulheres, judeus e cristãos, contribuíram corajosamente para trazer à memória e extrair
o que de mais precioso há entre as duas tradições. Juntos, romperam séculos de
separação, indiferença, desprezo e ódio.
Ao longo desta pesquisa pudemos verificar os principais elementos que deram
forma ao amplo processo de aproximação judaico-cristão, e à sua reconciliação até o
Vaticano II. Houve o despertar da Igreja frente à necessidade de abrir-se ao mundo
moderno, aos irmãos cristãos e judeus, e às demais religiões mundiais. Como foi dito,
reagir, romper e renovar, resumem a importância deste evento e de seus protagonistas, o
Papa João XXIII, com 81 anos, o Cardeal Agostinho Bea, também com 81 anos, e o
historiador judeu francês Jules Isaac, com 85 anos de idade, na ocasião em que houve a
abertura do Vaticano II, em 1962.
Em resposta aos nossos questionamentos, concluímos que nossas hipóteses
foram confirmadas pelas seguintes razões: devido à pressão externa que a pauta sobre os
judeus fora incluída no Concílio, sendo o parágrafo mais extenso da Nostra Aetate.
Constatamos que a NA4 foi elaborada em meio à oposição de uma minoria
conservadora da Igreja e dos questionamentos levantados pelo clero das Igrejas
católicas orientais em relação ao Estado de Israel, e sua influência na elaboração do
Documento, por esta razão, a Nostra Aetate foi o documento mais político do Vaticano
II. E em decorrência destes fatos, a teologia católica também seguiu o fluxo de tais
mudanças. Do mesmo modo, reconhecemos o grande avanço no diálogo cristão-judaico
e concordamos que as recomendações feitas pelos representantes da Religião Judaica,
foram, em sua maioria, contempladas no Documento, embora tenha permanecido a
tensão quanto aos elementos proselitistas, por exemplo, “Com efeito, a Igreja acredita
que Cristo, nossa paz, reconciliou pela cruz os judeus e os gentios, de ambos fazendo
um só, em Si mesmo” (NA4).
Expondo nossa conclusão de forma mais detalhada, em nossa explanação sobre a
evolução do conceito de diálogo e as novas possibilidades trazidas pela teologia cristã
115
das religiões, foi possível constatar que o princípio do diálogo foi recepcionado no
Concílio por força das diferenças, e sobre tais realidades amadureceu. Isto significa que
o diálogo foi trabalhado no âmbito interno da Igreja, entre os cristãos, na alteridade
frente às demais tradições, e aos valores modernos, em particular, a ciência e a
democracia, que, somados, confrontaram a atitude histórica autoritária da Igreja. Por
conseguinte, o entendimento do conceito de diálogo inter-religioso no Vaticano II
aplicou-se, sobretudo, à própria Igreja. Durante o período conciliar, a consciência de sua
necessidade e importância foi ampliada e compreendida progressivamente, um caminho
percorrido ao longo daqueles seis anos, desde seu anúncio até o encerramento (1959-
1965).
No entanto, mesmo que a lógica inclusivista, ou o Modelo de Complementação
tenha rompido com a apologética autoritária do Modelo de Substituição ou
Supersessionismo, e aprofundado o significado do traço judaico de Jesus, verificamos
que persistir na ideia do inclusivismo seria manter o Judaísmo refém da perspectiva
Cristã, e do apelo conversionista, não o reconhecendo a partir de sua autocompreensão.
Ao afirmar que “embora a Igreja seja o novo Povo de Deus”, fica clara a ambiguidade
da NA4. Este foi o limite do Modelo de Complementação.
Assim, verificamos que, se cada tradição chamar para si a exclusividade ou se
considerar a complementação ou o acabamento da outra, a legitimidade do diálogo não
se sustentará, e a integridade de cada tradição perderá sua força. Haveria então, alguma
possibilidade de romper com os preceitos bíblicos judaico-cristãos da exclusividade de
“Povo Eleito da Antiga Aliança”, e o “Novo Povo de Deus da Nova Aliança”, em favor
de um ideal reconciliador, no qual o ser humano supere as diferenças teológicas? Sim, o
Modelo de Aceitação nos aponta este caminho, posto que as diferenças cultural e
religiosa são reais e profundas, cada tradição possui sua autocompreensão. Deste modo,
o Modelo de Aceitação, quanto tipo ideal, pode ser pensado como um próximo passo,
outro paradigma a ser superado, e um ideal almejado, quem sabe nos desdobramentos
do Vaticano II.
Do ponto de vista judaico, as possibilidades de diálogo são construídas de
diferentes formas, sem adentrar necessariamente em questões teológicas. Isto sugere que
o diálogo pode ser articulado em diferentes direções e interpretações, ora com contornos
exclusivistas, ora situando o diálogo inter-religioso em uma profunda abertura ao
pluralismo pela via da experiência religiosa, cultural e ética. O encontro entre os filhos
de Abraão é uma possibilidade idealizada, mais próxima aos cristãos, pela ideia de
continuidade entre as duas Alianças, que aos judeus. Para estes a Terra e a Torá contém
116
a força e o sentido de suas raízes e identidade religiosa, em consequência, o significado
do Estado de Israel para o povo Judeu é singular, e para os Cristãos, a dimensão
geográfica não tem o mesmo sentido. No entanto, a partir da proposta de Chouraqui
temos o diálogo pensado em um nível mais profundo a partir das próprias raízes, ou
seja, o diálogo inter-religioso tem a finalidade de reconciliar a humanidade, em que a
exigência Bíblica de conversão a Deus é também uma conversão ao homem, assim, o
foco não está na religião.
A questão de iudaeis fora entendida por João XXIIII não como novidade, pois,
sua experiência e intervenção em favor dos judeus durante a Segunda Guerra, enquanto
delegado apostólico na Turquia, evidenciaram que a situação era tanto conhecida quanto
latente, daí decorre sua abertura ao pedido de Jules Isaac de incluir o tema sobre os
judeus no Concílio. No que se refere às forças conservadoras da Igreja, ao nomear
Agostinho Bea, sabia que nele ancorava-se conhecimento e diplomacia suficientes para
lidar com os componentes necessários às mudanças pretendidas.
Posto isso, confirmamos que a inclusão da questão de iudaeis na pauta conciliar,
e a afirmação da autenticidade da religião judaica, fora motivada por razões políticas em
resposta à Shoah, como citamos anteriomente, neste cenário, foi o intenso trabalho
desenvolvido pelo cardeal Bea e os sacerdotes Gregory Baum e John Oesterreicher,
durante o período conciliar, que deu voz ao apelo do povo judeu. O texto final
contemplou grande parte das recomendações expostas nos inúmeros trabalhos e
memorandos desenvolvidos por judeus e cristãos, antes e durante o Concílio. Assim, a
NA4 utilizou o termo vínculo, e neste ponto fica implícita a tentativa de considerar o
Judaísmo uma religião viva e de grande valor pela relação de continuidade, no entanto a
vocação de Abraão e a libertação de Israel do Egito, como parte da gênese da Igreja,
seria transmitida de forma renovada. Finalmente, para que o Concílio voltasse sua
atenção aos problemas do nosso tempo, denunciou o ódio por motivos de “raça” ou cor,
condição social ou religião. Deste modo, o combate ao antissemitismo religioso
enraizado no ensino de desprezo destacou-se na elaboração da NA4.
Em relação à perspectiva encontrada no Parlamento Mundial das Religiões na
América do Norte, e no Vaticano II, na Europa, no primeiro caso a diferença não fora
discutida, mas admirada como um espetáculo, uma agradável descoberta na qual se
reconhecia a existência do outro, apoiada na mentalidade de superioridade dos valores
ocidentais cristãos, em um ambiente capitalista onde comemorava-se as grandes
conquistas, a tecnologia, o projeto colonial e as riquezas dele provenientes. Não houve
diálogo, mas política, tolerância e gentileza.
117
Dadas as devidas diferenças entre o PMR e o Vaticano II, no que tange à
profundidade teológica, e à repercussão de cada evento, na intenção do pastor John
Henry Barrows houve uma grande disposição para a escuta, que não fora compreendida
pela maioria dos líderes cristãos ali presentes, a saber, o gérmen do lado positivo da
diferença, assim como a profundidade da proposta de um aggiornamento feita por João
XXIII, também não o fora.
Enfim, as mudanças iniciadas no Vaticano II não podem ficar somente na
memória do que foi o Concílio e a Declaração, embora seja difícil para os católicos
apreciarem a mudança dela decorrente, ainda é necessário digerir sua intenção mais
profunda. Apesar da dificuldade de se chegar a um consenso sobre o conteúdo do texto
final, particularmente a NA4, demonstrou que a reflexão dogmática e a mudança de
paradigma estão em descontinuidade inegável com a tradição passada. De fato,
seguiram o curso dos eventos externos, ou seja, foi um documento político elaborado
em resposta à tragédia dos campos de concentração, e não uma disposição ao encontro,
que, no entanto, iniciou uma profunda revisão na postura teológica da Igreja. Portanto,
na relação com os judeus e o Judaísmo, o Vaticano II, dentro de seus limites, articulou
as questões políticas e teológicas em favor de uma abertura, e de um primeiro passo
rumo ao diálogo.
Se tirássemos a Nostra Aetate do Vaticano II, seria impensável o catolicismo no
século XXI, ou seja, uma teologia que ignoraria as transformações ocorridas no século
XX, como os valores modernos que foram relevantes para a teologia católica, e
trouxeram o debate acerca da descolonização, da democracia, da importância da
liberdade religiosa, e das consequências das duas Grandes Guerras e da Shoah. Do
mesmo modo que o pensamento se insere no contexto de cada época, a teologia católica
também foi redimensionada pelo fluxo dos fatores inerentes à sociedade daquele
período, portanto, a responsabilidade por sua influência no processo de construção do
diálogo, dos conceitos e preconceitos, é patente.
118
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124
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view= artic le&id=549&catid=38&Itemid=5> Acesso em: 15 mai. 2015.
Disponível em: <http://www.oikoumene.org/en/about-us> Acesso em: 15 mai. 2015.
Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Willem_Visser_%27t_Hoof> Acesso em:
15 mai. 2015.
Disponível em: <http://www.ccjr.us/dialogika-resources/primary-texts-from-the-history
-of-the -relationship/1253-herzl1904> Acesso em: 15 maio 2015.
Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Jules_Isaac> Acesso em: 25 jul. 2015,
tradução nossa.
Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/506496-john-hickeopluralismo-
religioso > Acesso em: 22 set. 2015.
125
Disponível em: <http://www.dialogue-jca.org/18_propositions_jules_isaac.htm> Acesso
em: jan. 2016.
Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Statues_'L'%C3%89glise'_
et_'La_Synagogue'_de_la_Cath%C3%A9drale_de_Strasbourg_original_gothique_conse
rv%C3%A9_au_Mus%C3%A9e_de_l'Oeuvre_Notre-Dame.JPG#filehistory> Acesso
em: 10 fev. 2016.
Disponível em: <http://www.pliniocorreadeoliveira.info/1956_071_CAT_Razoes_e_
contra-razoes. htm > Acesso em: 10 fev. 2016.
Disponível em: <http://www.notredamedesion.org/en/dialogue_docs.php?a=3b&id=
567> Acesso em: 15 fev. 2016.
Disponível em: <https://www.academia.edu/8392562/R%C3%A9%C3%A9valuation_
des_motifs_invoqu%C3%A9s_par_le_Saint-Si%C3%A8ge_pour_justifier_la_suppre
ssion_de_lassociation_phil ojuda%C3%AFque_Amici _Israel_1926-1928_> Acesso
em: 15 fev. 2016, tradução nossa.
Disponível em: <http://www.portal.ecclesia.pt/catolicopedia/siglas_abreviaturas.asp>
Acesso em: 20 fev. 2016.
Disponível em: <https://www.parliamentofreligions.org/> Acesso em: 20 fev. 2016.
126
ANEXO A
A retificação necessária no ensino cristão: Dezoito Pontos
Escrito por Jules Isaac em 1946.
Antes da Segunda Guerra Mundial, o historiador judeu francês Jules Isaac tinha
sido o Superintendente da Instrução Pública na França. No rescaldo dos campos de
extermínio da Primeira Guerra Mundial, ele procurou usar livros de história para
promover a paz entre a França e a Alemanha. No entanto, a maioria de sua família havia
sido morta pelos nazistas durante a Shoah. Depois disso, ele se dedicou a investigar as
origens do antissemitismo cultural e religioso. Em seu livro Jesus e Israel: Um
Chamado para correções necessárias na doutrina cristã sobre os judeus, publicado em
1948, ele propôs que os seguintes pontos deveriam tornar-se parte da educação cristã.
Ele já os havia apresentado na Conferência de Emergência sobre o Antissemitismo,
realizada em Seelisberg, Suíça de 30 Julho a 05 agosto de 1947, formando a base da
Conferência “Uma direção para as Igrejas”, ou seja, Os Dez Pontos de Seelisberg. “Para
fins de maior clareza, gostaria de ser autorizado a apresentar para exame dos cristãos
que de boa vontade concordaram, em princípio, com a necessidade de retificação dos
seguintes Dezoito Pontos com a intenção de servir pelo menos como base para
discussão”.
Ensinamento cristão digno deste nome deve:
1. Dar a todos os cristãos, pelo menos, um conhecimento elementar do Antigo
Testamento; com ênfase no fato de que o Velho Testamento, essencialmente
semita em forma e substância, é a Sagrada Escritura dos judeus antes de tornar-
se a Sagrada Escritura dos cristãos;
2. Lembrar que uma grande parte da liturgia cristã é emprestada a partir dele, e que
o Antigo Testamento, o trabalho de gênios judaicos (iluminados por Deus), tem
sido em nossos dias uma perene fonte de inspiração para o pensamento,
literatura e a arte cristã;
3. Tomar cuidado para não passar por cima do fato singularmente importante que,
foi para o povo Judeu, por Ele escolhido, a quem Deus primeiro se revelou em
127
Sua onipotência; e que o povo Judeu garantiu a crença fundamental em Deus, e
então enviou-a ao mundo cristão;
4. Reconhecer e declarar abertamente, inspirando-se na pesquisa histórica mais
confiável, que o Cristianismo nasceu de um vivo, e não um degenerado
Judaísmo, como é provado pela riqueza da literatura judaica, resistência
indomável do Judaísmo ao paganismo, à espiritualização do culto nas sinagogas,
à propagação de proselitismo, à multiplicidade de seitas e tendências religiosas,
à ampliação de crenças; tomar cuidado para não desenhar uma simples
caricatura do farisaísmo histórico;
5. Levar em conta o fato de que a história contradiz categoricamente o mito
teológico da Dispersão como castigo providencial pela crucificação, uma vez
que a dispersão do povo Judeu foi um fato consumado no tempo de Jesus e uma
vez que, naquela época, de acordo com toda a evidência, a maioria do povo
Judeu não estava vivendo na Palestina; mesmo após as duas grandes guerras da
Judeia (primeiro e segundo séculos), não houve dispersão dos judeus da
Palestina;
6. Alertar os fieis contra certas tendências estilísticas nos Evangelhos,
nomeadamente o uso frequente no quarto Evangelho, do termo coletivo “os
judeus” em um sentido restrito e pejorativo para significar os inimigos de Jesus,
a fariseus, procedendo dos principais sacerdotes, escribas, e que resulta não só
em distorcer as perspectivas históricas, mas em inspirar horror e desprezo do
povo Judeu como um todo, ao passo que, na realidade, este povo não está
envolvido de nenhuma maneira;
7. Estar ciente, de forma muito explícita, de modo que nenhum cristão seja
ignorante sobre isso, que Jesus era judeu, de uma antiga família judaica, que ele
foi circuncidado (de acordo com a lei judaica) oito dias após o seu nascimento;
que o nome de Jesus é um nome judeu, Yeshua, helenizado, e Cristo o
equivalente grego do termo Messias; que Jesus falou uma língua semítica,
aramaico, como todos os judeus da Palestina; e que a menos que leia-se nos
Evangelhos em seu texto mais antigo, que é na língua grega, sabe-se da Palavra
somente através da tradução de uma tradução;
8. Reconhecer nas Escrituras de que Jesus, “nascido sob a lei [judaica]” (Gl 4,4),
viveu “sob a lei”; que ele não parou de praticar ritos básicos do Judaísmo até o
último dia; que ele não parou de pregar seu Evangelho nas sinagogas e no
Templo até o último dia;
128
9. Não deixar de observar que, durante sua vida humana, Jesus era exclusivamente
“um servo para os circuncidados” (Rom 15,8); ele estava em Israel quando
recrutou seus discípulos; todos os apóstolos eram judeus como seu mestre;
10. Mostrar claramente, a partir dos textos do Evangelho, que até o último dia,
exceto em raras ocasiões, Jesus não parou de obter as simpatias entusiastas das
massas judaicas em Jerusalém, bem como na Galileia;
11. Tomar cuidado para não afirmar que Jesus foi pessoalmente rejeitado pelo povo
Judeu, que se recusou a reconhecê-lo como Messias e Deus, por duas razões, que
a maioria do povo Judeu nem sabia quem ele era, e que Jesus nunca se
apresentou como tal explícita e publicamente ao segmento das pessoas que o
conheciam; reconhecer que, com toda a probabilidade, o caráter messiânico da
entrada em Jerusalém na véspera da Paixão só poderia ter sido percebida por um
número pequeno;
12. Tomar cuidado para não afirmar que Jesus foi, no mínimo, rejeitado pelos
líderes qualificados e representantes do povo Judeu; quem mandou prendê-lo e
condená-lo, os príncipes dos sacerdotes, eram representantes de uma casta
oligárquica subjugada a Roma e detestada pelo povo; como os doutores e os
fariseus, que emerge dos próprios textos evangélicos [Evangelho], não foram
unanimemente contra Jesus; nada prova que a elite espiritual do Judaísmo estava
envolvida na trama;
13. Tomar cuidado de não forçar os textos para encontrar neles uma reprovação
universal de Israel ou uma maldição que não está explicitamente expressa em
nenhuma parte dos Evangelhos; levar em conta o fato de que Jesus sempre
demonstrou sentimentos de compaixão e amor pelas massas;
14. Cuidar acima de tudo para não fazer a afirmação atual e tradicional que o povo
Judeu cometeu o crime inexpiável de deicídio; e que levou a total
responsabilidade sobre si como um todo; tome o cuidado de evitar tal afirmação
não só porque é venenosa, gerando ódio e crime, mas também porque é
radicalmente falsa;
15. Destacar o fato, enfatizado nos quatro Evangelhos, que os sumos sacerdotes e os
seus cúmplices agiram contra Jesus sem o conhecimento das pessoas e até
mesmo com medo do povo;
16. Sobre a trama judaica, reconhecer que o povo Judeu não estava de nenhum
modo nela envolvido, não desempenhou nenhum papel na trama, e
provavelmente nada sabia sobre isso; que os insultos e as brutalidades que lhes
129
são atribuídos foram atos dos soldados ou de alguns membros da oligarquia; que
não há nenhuma menção de um julgamento Judeu, de uma reunião do Sinédrio
no quarto Evangelho;
17. Sobre a trama Romana, reconhecer que o procurador Pôncio Pilatos tinha o
comando total sobre a vida e morte de Jesus; que Jesus foi condenado por
pretensões messiânicas, que foi um crime aos olhos dos romanos, não dos
judeus; que pendurá-lo na cruz foi um castigo especificamente romano; tomar
cuidado para não imputar ao povo Judeu a coroação com os espinhos, que nos
relatos do Evangelho era uma brincadeira cruel dos soldados romanos; tomar
cuidado para não identificar a multidão instigada pelos principais sacerdotes,
com todo do povo Judeu da Palestina, cujo sentimento anti-Romano estava além
de qualquer dúvida; note que o quarto Evangelho implica exclusivamente os
príncipes dos sacerdotes e os seus homens;
18. Finalmente, não esquecer de que o grito monstruoso, “O seu sangue caia sobre
nós e sobre nossos filhos!” (Mt 27,25), não poderia prevalecer sobre a Palavra:
“Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34).91
91 Anexo do livro: Jesus e Israel, pp. 575-578. Disponível em: <http://www.dialogue-jca.org/18_proposi
tions_ jules_isaac.htm> Acesso em: jan. 2016, tradução nossa.
130
ANEXO B
Decreto sobre os Judeus - Decretum de Iudaeis
Criado em: 01 de novembro de 1961
Escrito pelo Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos
Em 18 de setembro de 1960, o Papa João XXIII havia dirigido o cardeal
Agostinho Bea, chefe do Secretariado para a Unidade dos Cristãos, a fim de que
preparasse para o próximo Concílio Vaticano II um rascunho de uma declaração
projetada sobre a relação da Igreja com o povo Judeu. Este primeiro projeto foi
concluído em novembro de 1961, por peritos que colaboram com Bea. Ele nunca foi
apresentado ao Conselho.
A Igreja, a Noiva de Cristo, reconhece com um coração cheio de gratidão que,
de acordo com o misterioso projeto de Deus, os primórdios de sua fé e eleição já se
encontram nos Patriarcas e nos Profetas. Assim, ela reconhece que todos os crentes
cristãos, filhos de Abraão pela fé (Gal 3,7), estão incluídos em sua vocação. Da mesma
forma, sua salvação está prefigurada na libertação do povo eleito do Egito, como em um
sinal sacramental (Liturgia da Vigília Pascal). E a Igreja, uma nova criação em Cristo
(Ef 2,15), nunca pode esquecer que ela é a continuação espiritual das pessoas com as
quais, em sua misericórdia e condescendência da graça, Deus fez a Antiga Aliança.
A Igreja, de fato, acredita que Cristo, que “é a nossa paz”, abraçou judeus e
gentios, com um mesmo amor e que Ele fez dos dois um (Ef 2,14). Ela se alegra da
união destes dois “em um só corpo” (Ef 2,16) proclama a reconciliação de todo o
mundo em Cristo. Mesmo que a maior parte do povo Judeu permaneceu separada de
Cristo, seria uma injustiça chamar este povo de amaldiçoado, já que são muito amados
por causa dos Santos Patriarcas e pelas promessas feitas a eles (Rm 11,28 ). A Igreja
ama este povo. A partir dele nasceu Cristo, o Senhor, que reina em glória no céu; a
partir dele nasceu a Virgem Maria, mãe de todos os cristãos; a partir dele vieram os
Apóstolos, os pilares e baluarte da Igreja (1Tm 3,15).
Além disso, a Igreja acredita na união do povo Judeu consigo como parte
integrante da esperança cristã. Com fé inabalável e profundo anseio a Igreja aguarda sua
união com este povo. Na época da vinda de Cristo, “um remanescente escolhido pela
graça” (Rm 11,5), os primeiros frutos da Igreja que aceitaram a Palavra Eterna. A Igreja
acredita, no entanto, segundo o apóstolo, que na hora marcada, a plenitude dos filhos de
131
Abraão, segundo a carne, irá abraçá-lo, esta é a salvação (Rm 11,12-26). A sua
aceitação será a vida dos mortos (Rm 11,15).
A Igreja, como uma mãe, condena mais severamente injustiças cometidas contra
pessoas inocentes em todos os lugares, então ela levanta sua voz em protesto
ruidosamente contra todas as injustiças cometidas contra os judeus, seja no passado ou
em nosso tempo. Quem despreza ou persegue este povo faz mal à Igreja Católica.92
92 Disponível em: <http://www.ccjr.us/dialogika-resources/documents-and-statements/roman-catholic/se
cond-vatican-council/na-drafts> Acesso em: 30 jan. 2016, tradução nossa.
132
ANEXO C
Sobre a atitude dos católicos em relação aos não cristãos e sobretudo aos judeus
Criado em: 08 de novembro de 1963
Escrito pelo Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristão
Agora que temos lidado com os princípios do ecumenismo católico, nós não
queremos deixar passar em silêncio o fato de que os mesmos princípios devem ser
aplicados, tendo em conta as devidas diferenças, na questão de falar e de cooperar com
as pessoas que não são cristãs, no entanto, adoram a Deus, ou, pelo menos, em um
espírito de boa vontade conscienciosamente esforçam-se por observar a lei moral inata
na natureza humana. Isto aplica-se especialmente no caso dos judeus, que, como povo,
está ligado com a Igreja de Cristo em uma relação especial.
A Igreja de Cristo reconhece com um coração agradecido que os primórdios da
fé e da sua eleição, juntamente com o mistério salvífico de Deus, já podem ser
encontrados entre os Patriarcas e Profetas. Todos os crentes em Cristo, filhos de Abraão
segundo a fé (Gal 3,7), estão incluídos na vocação do mesmo Patriarca, e que a salvação
da Igreja é misticamente prefigurada no êxodo dos Escolhidos, aqueles da terra da
escravidão. A Igreja, uma nova criatura em Cristo (Ef 2,15), não pode esquecer que é
uma continuação do povo com quem Deus, em sua inefável misericórdia, teve o prazer
de estabelecer a sua Antiga Aliança.
Além disso, a Igreja acredita que Cristo, nossa Paz, abraçou judeus e gentios em
um único amor e deles fez um (Ef 2,4), e pela união de ambos em um só corpo (Ef
2,17) anunciou a reconciliação de todo o mundo em Cristo. Embora uma grande parte
do povo escolhido ainda esteja longe de Cristo, é errado chamá-los de povo maldito,
uma vez que continuam a ser muito queridos por Deus por causa dos Patriarcas e dos
dons dados a eles (Rm 11, 28), ou chamá-los de povo deicida, desde que o Senhor, por
sua paixão e morte, lava os pecados de todos os homens, e que esses pecados foram a
causa da paixão e morte de Jesus Cristo (Lc 23,34; At 3,17; 1Cor 2,8). A morte de
Cristo não deve ser atribuída a um povo inteiro, que viva naquela época, e ainda menos
ao povo de hoje. Portanto, os sacerdotes devem ter o cuidado para não falar, na
catequese ou na pregação, nada que possa dar origem ao ódio ou ao desprezo dos judeus
no coração dos seus ouvintes. A Igreja também não deve esquecer que Cristo Jesus
133
nasceu desse povo, segundo a carne, assim como a Virgem Maria, Mãe de Cristo, e os
Apóstolos, fundação e colunas da Igreja.
Portanto, uma vez que a Igreja tem tão amplo patrimônio comum com a
Sinagoga, este Santo Sínodo pretende em todos os sentidos promover e aprofundar o
conhecimento mútuo e estima obtidos por estudos teológicos e discussões fraternas; e,
além disso, uma vez que repreende severamente agressões às pessoas em qualquer
lugar, mais o faz, deplora e condena, com coração materno, o ódio e a perseguição aos
judeus, cometida anteriormente ou em nosso tempo.93
93 Disponível em: <http://www.ccjr.us/dialogika-resources/documents-and-statements/roman-catholic/se
cond-vatican-council/na-drafts> Acesso em: 30 jan. 2016, tradução nossa.
134
ANEXO D
Apêndice “Sobre os Judeus” para a “Declaração sobre o Ecumenismo”
Criado em: 01 de março de 1964
Escrito pelo Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos
À luz das discussões informais de dezembro de 1963, o Cardeal Bea e seu
comitê de redação produziu o seguinte revisão que foi apresentada à Secretaria pela
Unidade dos Cristãos, em março 1964 e daí para a Comissão de Coordenação do
Conselho.
Com um coração cheio de gratidão, a Igreja de Cristo reconhece que, de acordo
com o misterioso projeto de Deus, os primórdios da sua fé e eleição já podem ser
encontrados entre os Patriarcas e Profetas. Todos os crentes cristãos, filhos de Abraão
pela fé (Gal 3,7), estão incluídos na chamada do mesmo Patriarca, e a salvação da Igreja
está misteriosamente prefigurada na libertação do povo eleito da terra da escravidão. A
Igreja, uma nova criação em Cristo (Ef 2,15) e o povo da Nova Aliança, nunca podem
esquecer que esta é uma continuação daquela feita por Deus, em Sua misericórdia
indizível com o povo com quem Ele teve o prazer de fazer Antigo Pacto, e os escolheu a
fim de confiar a revelação contida nos livros do Antigo Testamento. De fato, a Igreja
acredita que Cristo, nossa Paz, enfrentou livremente sua paixão e morte por causa dos
pecados de todas as pessoas. A Igreja também não se esquece de que Cristo nasceu do
povo Judeu, segundo a carne, assim como a Virgem Maria, Mãe de Cristo, e os
Apóstolos, que são o baluarte e os pilares da Igreja.
Uma vez que o patrimônio comum, tanto para cristãos e judeus é de tal
magnitude, o Sagrado Concílio quer fomentar e recomendar, em todos os sentidos, a
compreensão e o respeito mútuos que são, acima de tudo, fruto dos estudos bíblicos e
teológicos, e dos diálogos fraternos. Além disso, em sua rejeição a qualquer tipo
injustiça, e onde quer que seja infligida às pessoas, deplora e condena o ódio e a
perseguição aos judeus, tenha ela surgido no passado ou em nossos tempos. Que todos,
portanto, assegurarem que, em sua catequese como na sua pregação nunca o povo Judeu
seja apresentado como um povo rejeitado, amaldiçoado, ou culpado de deicídio, nem
seja ensinado tudo o que poderia dar origem ao ódio ou desprezo dos judeus nos
135
corações dos cristãos. Todas essas palavras ou ações seriam contrárias à vontade de
Jesus Cristo, que abraça os judeus e gentios com um mesmo amor.94
94 Disponível em: <http://www.ccjr.us/dialogika-resources/documents-and-statements/roman-catholic/se
cond-vatican-council/na-drafts> Acesso em: 30 jan. 2016, tradução nossa.
136
ANEXO E
Declaração a respeito dos judeus e dos não cristãos - De iudaeis et de non
christianis
Criado em: 25 de setembro de 1964
Escrito por Vaticano II Comissão de Coordenação do Conselho
Sobre a herança comum aos cristãos e judeus
A Igreja de Cristo de bom grado reconhece que os primórdios de sua fé e
eleição, em conformidade com o mistério da salvação de Deus, já são encontrados entre
os Patriarcas e Profetas. Na verdade, todos os cristãos acreditam que, como filhos de
Abraão pela fé (Gal 3,7), eles estão incluídos na vocação deste patriarca, e que a
salvação da Igreja é misticamente prefigurada no êxodo do Povo Eleito da terra da
escravidão. A Igreja, como uma nova criação em Cristo (Ef 2,15) e como o povo da
Nova Aliança, nunca pode esquecer que provém de uma continuação do que Deus, em
sua inefável misericórdia, se dignou em realizar na Antiga Aliança com aquele povo, os
quais Ele escolheu a fim de confiar a revelação contida nos livros do Antigo
Testamento.
Além disso, a Igreja não se esqueçe de que foi a partir do povo Judeu nasceu
Cristo, a Virgem Maria, assim como os apóstolos, a fundação e os pilares da Igreja.
Além disso, a Igreja está sempre atenta e nunca irá esquecer as palavras do
Apóstolo Paulo referente aos judeus, a quem pertencem “a adoção de filhos e a glória,
os pactos e a promulgação da lei, o culto e as promessas” ( Rm 9,4).
Uma vez que essa é a herança dos judeus aceita pelos cristãos, este Santo
Conselho resolve expressamente recomendar a compreensão e apreciação mútua, a ser
obtida pelo estudo teológico e discussão fraterna, e, além disso, da mesma maneira que
gravemente desaprova qualquer dano infligido aos seres humanos em todos os lugares,
também deplora e condena o ódio e maus-tratos aos judeus.
Ainda lembramos que a união do povo Judeu com a Igreja é uma parte da
esperança cristã. Deste modo, e seguindo o ensinamento do Apóstolo Paulo (Rm 11,25),
a Igreja espera com fé inabalável e com o desejo ardente, a entrada desse povo à
plenitude do povo de Deus estabelecida por Cristo.
137
Todos devem ter cuidado, portanto, de não apresentar o povo Judeu como uma
nação rejeitada, seja na catequese, na pregação da Palavra de Deus ou na conversação
diária. Nem deve ser dito ou feito nada que possa alienar as mentes humanas dos
Judeus. De igual modo, todos devem estar alertas para não imputar aos Judeus do nosso
tempo o que fora perpetrado na Paixão de Cristo.
Todas as pessoas têm Deus como Pai
O Senhor Jesus confirmou claramente que Deus é o Pai de toda a humanidade,
pois isso já foi afirmado nas Escrituras do Antigo Testamento e é sugerido pela própria
razão. Mas nós certamente não podemos apelar ou rezar a Deus como o Pai de todos, se
negamos um comportamento fraternal a algumas pessoas que são do mesmo modo
criadas à imagem de Deus. A atitude da humanidade em direção a Deus como Pai, e a
atitude das pessoas em relação aos seus irmãos e irmãs está estreitamente ligada, e negar
a fraternidade humana carrega com ela ou conduz à negação do próprio Deus, em quem
não pode haver favoritismo (2Cr 19,7; Rm 2,11; Ef 6,9; Cl 3,25; 1Pd 1,17). O primeiro
mandamento é, de fato, tão entrelaçado com o segundo que não podemos ser perdoados
dos pecados cometidos, a menos que nós mesmos sinceramente perdoemos aqueles que
nos ofenderam. Com efeito, já foi dito na Antiga Lei: “Não temos nós todos um mesmo
Pai? Não nos criou o mesmo Deus? Por que cada um de nós é desleal com seu irmão?”
(Ml 2,10); o mesmo é ainda mais claramente reafirmado na Nova Lei: “Aquele que não
ama a seu irmão, a quem viu, não pode amar a Deus, a quem não viu. E este é o
mandamento que temos de Deus, que quem ama a Deus ame o seu irmão também” (1
Jo 4,20-21).
Impelido por esse amor por nossos irmãos, vamos considerar com diligência e
excelente doutrina que, embora em muitos pontos difere da nossa, de tantas maneiras,
no entanto, leva o raio daquela verdade que ilumina a cada pessoa que nasce neste
mundo. Assim, nós também abraçamos aqueles que através de muitos canais da cultura
humana se chegam a nós, e em primeiro lugar, os muçulmanos que adoram um Deus
pessoal que recompensa o sentimento religioso.
138
Qualquer tipo de discriminação deve ser condenada
Em consequência, qualquer teoria ou prática que conduz a uma discriminação
entre os indivíduos ou entre nação e nação, na medida em que a dignidade como ser
humano e os direitos daí decorrentes estão em causa, é desprovida de fundamento.
É imperativo, portanto, que todas as pessoas de boa vontade e os cristãos, em
particular, abstenham-se de qualquer discriminação ou abuso de seres humanos em
razão da sua raça, cor, condição social ou religião. Pelo contrário, este Santo Concílio
roga solenemente aos crentes cristãos que “mantenham relações de amizade entre os
gentios” (1 Ped 2,12) e, se possível e na medida em que deles depender, mantenham a
paz com todos os homens (Rm 12,18); ele ordena-lhes, além disso, a amar não apenas o
vizinho, mas até mesmo os inimigos, eles devem pensar que têm alguma, e para que
sejam, na verdade, os filhos do Pai que está no céu e que faz nascer o seu sol sobre tudo
(Mt 5,44-45).95
95 Disponível em: <http://www.ccjr.us/dialogika-resources/documents-and-statements/roman-catholic/se
cond-vatican-council/na-drafts> Acesso em: 30 jan. 2016, tradução nossa.
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ANEXO F
Declaração Nostra Aetate sobre a relação da Igreja com as religiões não cristãs96
Promulgada: 28 de outubro de 1965
Escrito pelo Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos
Preâmbulo
Hoje, que o gênero humano se torna cada vez mais unido, e aumentam as
relações entre os vários povos, a Igreja considera mais atentamente qual a sua relação
com as religiões não cristãs. E, na sua função de fomentar a união e a caridade entre os
homens e até entre os povos, considera primeiramente tudo aquilo que os homens têm
de comum e os leva à convivência.
Com efeito, os homens constituem todos uma só comunidade; todos têm a
mesma origem, pois foi Deus quem fez habitar em toda a terra o inteiro gênero humano
(At 17,26); Têm também todos um só fim último, Deus, que a todos estende a sua
providência, seus testemunhos de bondade e seus desígnios de salvação até que os
eleitos se reúnam na cidade santa, iluminada pela glória de Deus e onde todos os povos
caminharão na sua luz (Sb 8; At 14, 17; Rm 2,6-7, 1Tm 2,4, Ap 21,23-24).
Os homens esperam das diversas religiões resposta para os enigmas da condição
humana, os quais hoje e ontem, profundamente preocupam seus corações: Que é o
homem? Qual é o sentido e a finalidade da vida? Que é o pecado? Donde provém o
sentimento, e para que serve? Qual o caminho para alcançar a verdadeira felicidade?
Que é a morte, o juízo e a retribuição depois da morte? Finalmente, que mistério último
e inefável envolve a nossa existência, do qual vimos e para onde vamos?
96 Cf. WOLFF, Elias. Unitatis Redintegratio, Dignitatis Humanae, Nostra Aetate. Textos e comentários.
São Paulo: Paulinas, 2012, pp. 155-165. Original está disponível em: <http://www.vatican.va/archive
/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decl_19651028_nostra-aetate_po.html> Acesso em:
10 jan. 2016.
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2. Hinduísmo e Budismo
Desde os tempos mais remotos até aos nossos dias, encontra-se nos diversos
povos certa percepção daquela força oculta presente no curso das coisas e
acontecimentos humanos; encontra-se por vezes até o conhecimento da divindade
suprema ou mesmo de Deus Pai. Percepção e conhecimento esses que penetram as suas
vidas de profundo sentido religioso. Por sua vez, as religiões ligadas ao progresso da
cultura procuram responder às mesmas questões com noções mais apuradas e uma
linguagem elaborada.
Assim, no Hinduísmo, os homens perscrutam o mistério divino e exprimem-no
com a fecundidade inexaurível dos mitos e os esforços da penetração filosófica,
buscando a libertação das angústias da nossa condição quer por meio de certas formas
de ascetismo, quer por uma profunda meditação, quer, finalmente, pelo refúgio amoroso
e confiante em Deus.
No Budismo, segundo as suas várias formas, reconhece-se a radical insuficiência
deste mundo mutável, e propõe-se o caminho pelo qual os homens, com espírito devoto
e confiante, possam alcançar o estado de libertação perfeita ou atingir, pelos próprios
esforços ou ajudados do alto a suprema iluminação. De igual modo, as outras religiões
que existem no mundo procuram de vários modos ir ao encontro das inquietações do
coração humano, propondo caminhos, isto é, doutrinas e normas de vida e também ritos
sagrados.
A Igreja Católica nada rejeita do que nessas religiões existe de verdadeiro e
santo. Olha com sincero respeito esses modos de agir e viver, esses preceitos e doutrinas
que, embora se afastem em muitos pontos daqueles que ela própria segue e propõe,
todavia refletem não raramente um raio da verdade que ilumina todos os homens. No
entanto, ela anuncia, e tem mesmo obrigação de anunciar incessantemente, Cristo,
“caminho, verdade e vida” (Jo 14,6), em quem os homens encontram a plenitude da
vida religiosa e no qual Deus reconciliou consigo todas as coisas (2 Cor 5,18-19).
A Igreja, portanto, exorta os seus filhos a que, com prudência e caridade, pelo
diálogo e colaboração com os membros das outras religiões, dando testemunho da vida
e fé cristãs, reconheçam, conservem e promovam os bens espirituais e morais e os
valores socio-culturais que entre eles se encontram.
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3. A religião do Islã
A Igreja olha também com estima os muçulmanos. Adoram eles o Deus Único,
vivo subsistente, misericordioso e onipotente, criador do céu e da terra, que falou aos
homens e a cujos decretos, mesmo ocultos, procuraram submeter-se de todo o coração,
como a Deus se submeteu Abraão, que a fé islâmica de bom grado evoca. Embora sem o
reconhecerem como Deus, veneram Jesus como profeta, e honram Maria, sua mãe
virginal, à qual por vezes invocam devotamente. Esperam pelo dia do juízo, no qual
Deus remunerará todos os homens, uma vez ressuscitado. Têm, por isso, em apreço a
vida moral e prestam culto a Deus, sobretudo com oração, a esmola e o jejum.
E se é verdade que, no decurso dos séculos, surgiram entre cristãos e
muçulmanos não poucas discórdias e ódios, este sagrado Concílio exorta todos a que,
esquecendo o passado, sinceramente se exercitem na compreensão mútua e juntos
defendam e promovam a justiça social, os bens morais e a paz e liberdade para todos os
homens.
4. A religião Judaica
Sondando o mistério da Igreja, este sagrado Concílio recorda o vínculo com que
o povo do Novo Testamento está espiritualmente ligado à descendência de Abraão.
Com efeito, a Igreja de Cristo reconhece que os primórdios da sua fé e eleição já
se encontram, segundo o mistério divino da salvação, nos patriarcas, em Moisés e nos
profetas. Professa que todos os cristãos, filhos de Abraão segundo a fé (Gl 3,7), estão
incluídos na vocação deste patriarca e que a salvação da Igreja foi misticamente
prefigurada no êxodo do povo escolhido da terra da escravidão. A Igreja não pode, por
isso, esquecer que foi por meio desse povo, com o qual Deus se dignou, na sua inefável
misericórdia, estabelecer a antiga Aliança, que ela recebeu a revelação do Antigo
Testamento e se alimenta da raiz da oliveira mansa, na qual foram enxertados os ramos
da oliveira brava, os gentios (Rm 11,17-24). Com efeito, a Igreja acredita que Cristo,
nossa paz, reconciliou pela cruz os judeus e os gentios, de ambos fazendo um só, em Si
mesmo (Ef 2,14-16).
Também tem sempre diante dos olhos as palavras do Apóstolo Paulo a respeito
dos seus compatriotas: “Deles é a adoção filial e a glória, a aliança e a legislação, o
culto e as promessas; deles os patriarcas, e deles nasceu, segundo a carne, Cristo” (Rm
9,4-5), filho da Virgem Maria. Recorda ainda a Igreja que os Apóstolos, fundamentos e
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colunas da Igreja, nasceram do povo judaico, bem como muitos daqueles primeiros
discípulos, que anunciaram ao mundo o Evangelho de Cristo.
Segundo o testemunho da Sagrada Escritura, Jerusalém não conheceu o tempo
em que foi visitada (Lc 19,44); e os judeus, em grande parte, não receberam o
Evangelho; antes, não poucos se opuseram à sua difusão (Rm 11,28). No entanto,
segundo o Apóstolo, os judeus continuam ainda, por causa dos patriarcas, a ser muito
amados de Deus, cujos dons e vocação não conhecem arrependimento (Rm 11,28-29).
Com os profetas e o mesmo Apóstolo, a Igreja espera por aquele dia, só de Deus
conhecido, em que todos os povos invocarão a Deus com uma só voz e “o servirão
debaixo dum mesmo jugo” (Sf 3,9; Is 66,23; Sl 65,4; Rm 11,11-32).
Sendo assim tão grande patrimônio espiritual comum aos cristãos e aos judeus,
este sagrado Concílio quer fomentar e recomendar entre eles o mútuo conhecimento e
estima, os quais se alcançarão sobretudo por meio dos estudos bíblicos e teológicos e
com os diálogos fraternos.
Ainda que as autoridades dos judeus e os seus sequazes urgiram a condenação de
Cristo à morte (Jo 19,6) não se pode, todavia, imputar indistintamente a todos os judeus
que então viviam, nem aos judeus do nosso tempo, o que na Sua Paixão se perpetrou. E
embora a Igreja seja o novo Povo de Deus, nem por isso os judeus devem ser
apresentados como reprovados por Deus e malditos, como se tal coisa se concluísse da
Sagrada Escritura. Procurem todos, evitar que, tanto na catequese como na pregação da
palavra de Deus, se ensine seja o que for que não esteja conforme com a verdade
evangélica e com o espírito de Cristo.
Além disso, a Igreja, que reprova quaisquer perseguições contra quaisquer
homens, lembrada do seu comum patrimônio com os judeus, e levada não por razões
políticas mas pela religiosa caridade evangélica, deplora todos os ódios, perseguições e
manifestações de antissemitismo, seja qual for o tempo em que isso sucedeu e seja
quem for a pessoa que isso promoveu contra os judeus.
De resto, como a Igreja sempre ensinou e ensina, Cristo sofreu, voluntariamente
e com imenso amor, a Sua paixão e morte, pelos pecados de todos os homens, para que
todos alcancem a salvação. O dever da Igreja, ao pregar, é, portanto, anunciar a cruz de
Cristo como sinal do amor universal de Deus e como fonte de toda a graça.
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5. A fraternidade universal e a reprovação de toda discriminação racial e religiosa
Não podemos, porém, invocar Deus como Pai comum de todos, se nos
recusamos a tratar como irmãos alguns homens, criados à Sua imagem. De tal maneira
estão ligadas a relação do homem a Deus Pai e a sua relação aos outros homens seus
irmãos, que a Escritura afirma: “Quem não ama, não conhece a Deus” (1Jo 4,8).
Carece, portanto, de fundamento toda a teoria ou modo de proceder que
introduza entre homem e homem ou entre povo e povo qualquer discriminação quanto à
dignidade humana e aos direitos que dela derivam.
A Igreja reprova, por isso, como contrária ao espírito de Cristo, toda e qualquer
discriminação ou violência praticada por motivos de raça ou cor, condição social ou
religião. Consequentemente, o sagrado Concílio, seguindo o exemplo dos santos
Apóstolos Pedro e Paulo, pede ardentemente aos cristãos que, “observando uma boa
conduta no meio dos homens” (1Pd 2,12), se possível, tenham paz com todos os homens
(Rm 12,18), quanto deles depende, de modo que sejam na verdade filhos do Pai que está
nos céus (Mt 5,45).