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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Rodrigo Vieira de Almeida O conceito de imortalidade do homem na filosofia de Charles Sanders Peirce Doutorado em Filosofia São Paulo 2016

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Rodrigo Vieira de Almeida

O conceito de imortalidade do homem na filosofia de Charles Sanders Peirce

Doutorado em Filosofia

São Paulo

2016

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Rodrigo Vieira de Almeida

O conceito de imortalidade do homem na filosofia de Charles Sanders Peirce

Tese apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para obtenção do título

de Doutor em Filosofia.

Área de Concentração: Lógica e Teoria do

Conhecimento

Orientador: Prof. Dr. Ivo Assad Ibri

São Paulo

2016

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Banca Examinadora:

Orientador: _______________________________

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A maior parte dos custos desta Pesquisa foi coberta por bolsa, modalidade Taxa, recebida da Coordenação

de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), por meio do Programa de Suporte à Pós-

graduação de Instituições de Ensino Particulares (PROSUP).

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Agradecimentos

Primeiramente, gostaria de agradecer o incansável e impagável apoio, em todos

os sentidos, do meu orientador, Professor Dr. Ivo Assad Ibri. Sem ele, eu não teria

conhecido Peirce; sem ele eu não teria descoberto o quão apaixonante e gratificante é

trilhar as pegadas de um brilhante autor; sem ele, eu não poderia ter descoberto as virtudes

do pensamento científico, primeiro passo, pois sempre em desenvolvimento, mas tão

necessário como o próprio nascimento; sem ele, jamais eu teria chegado até aqui. Não

poderia ter tido um orientador melhor. Um sábio. Um mentor. Um amigo.

Agradeço à CAPES, pela Bolsa-Taxa concedida como apoio à presente pesquisa

e que me proporcionou um recurso que não teria como possuir com minhas próprias

forças.

Gostaria de agradecer também aos professores Doutores Arthur Octávio de Melo

(UFES) Araújo e José Luíz Zanette (CEP), por aceitarem fazer parte da banca de

qualificação da presente tese e pelas minuciosas leituras, correções e sugestões, que tanto

contribuíram para as lapidações que se fizeram necessárias para que esta tese pudesse ser

terminada.

Agradeço imensamente aos professores que aceitaram fazer parte da banca de

defesa da presente tese, os professores Doutores Edélcio Gonçalves de Souza (USP),

Antonio José Romera Valverde (PUCSP), Cassiano Terra Rodrigues (PUCSP), Maria

Eunice Quilici Gonzalez (UNESP), José Luiz Zanette (CEP) e Rogério da Costa

(PUCSP).

Agradeço também à Marcos Souza Barros e José Luíz Zanette pelo apoio durante

a pesquisa que originou essa tese.

Agradeço profundamente também à Villela da Matta e Flora Victória, fundadores

e presidentes da Sociedade Brasileira de Coaching, pelo apoio financeiro e motivacional

que possibilitou o término desta pesquisa.

Em especial, gostaria de agradecer a minha esposa, Dilcemara Costa de Almeida,

primeiramente, por sua inestimável ajuda profissional como Bibliotecária, mas,

principalmente, por ser a minha grande inspiração, fonte de força nas horas difíceis, por

estar ao meu lado, sempre me apoiando, me ouvindo, me ensinando a superar os

obstáculos na jornada, por dividir comigo os bons momentos, pelo carinho e atenção.

Enfim, por tudo aquilo que nos unifica no amor.

Agradeço aos meus pais, Vanderlei Lima de Almeida e Iracy Vieira de Almeida.

Por tudo que me ensinaram, por tudo que sacrificaram por mim, por serem exemplo de

humildade e simplicidade, de luta e persistência, por me darem muito amor. Agradeço ao

meu irmão, Silvio Vieira de Almeida, pelo apoio e incentivo.

Agradeço a todos os meus amigos e amigas, os atuais e os do passado, que, sem

necessariamente saberem, fazem parte de tudo o que conquistei.

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Resumo

A presente pesquisa de doutorado exibe e defende a tese de que a filosofia de Charles

Sanders Peirce reserva lugar para um conceito sui generis de imortalidade do homem no

interior de sua metafísica científica. Esse conceito de imortalidade, que pode ser

brevemente definido como a possibilidade da permanência da influência do caráter de

um homem mesmo após a dissolução do seu corpo, ou seja, mesmo após a sua morte,

acaba por implicar que a morte não necessariamente significa uma descontinuidade

absoluta do contínuo que é o homem. Trata-se, pois, de um conceito de imortalidade

profundamente enraizado no Sinequismo, e, logo, no Realismo e Idealismo Objetivo do

autor, não obstante possua também uma ligação de natureza conjectural com a sua

concepção da realidade de Deus. Assim, propomo-nos analisar como tal conceito pode

ser construído e devidamente assentado no interior da arquitetura filosófica do autor.

Palavras-chave: Charles Sanders Peirce. Imortalidade. Sinequismo. Realismo. Idealismo

Objetivo. Deus. Arquitetura filosófica. Metafísica Científica

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Abstract

This doctorate research presents and defends the thesis that Charles Sanders Peirce’s

philosophy has a place for a sui generis concept of man’s immortality within his scientific

metaphysics. This concept of immortality, which may be briefly defined as the possibility

of permanence of the influence of a man’s character, even after the dissolution of his body,

i.e., even after his death, ultimately implies that death does not necessarily mean absolute

discontinuity of the continuum that is man. It is, thus, a concept of immortality deeply

ingrained in Synechism and, hence, in the author’s Realism and Objective Idealism,

notwithstanding having also a relationship of a conjectural nature with his conception of

the reality of God. We propose, therefore, to analyze how such a concept may be

developed and effectively grounded within the author’s philosophical architecture.

Keywords: Charles Sanders Peirce. Immortality. Synechism. Realism. Objective

Idealism. God. Philosophical Architecture. Scientific Metaphysics.

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A todos os imortais da minha vida

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..........................................................................................................................10

1. CHARLES PEIRCE E UMA VISÃO SINEQUISTA DO HOMEM.................................17

1.1 O homem: um signo...............................................................................................................17

1.2 A unidade da personalidade e o conceito de pessoa...............................................................63

1.3 O lugar do homem em uma filosofia sinequista.....................................................................97

2. A IMORTALIDADE DO HOMEM NA FILOSOFIA DE CHARLES PEIRCE...........109

2.1 Escopo geral da metafísica psíquica ou religiosa de Charles Peirce....................................110

2.2 Construindo o conceito peirciano de imortalidade do homem: uma análise dos textos de

Peirce acerca do tema Imortalidade............................................................................................118

2.2.1 "Ciência e Imortalidade"...................................................................................................123

2.2.2 "Lowell Lecture XI"..........................................................................................................135

2.2.3 "A Imortalidade à luz do Sinequismo"..............................................................................148

2.3 Imortalidade: uma hipótese pragmática em um universo sinequista....................................162

3. A CONCEPÇÃO PEIRCIANA DE DEUS E A SUA LIGAÇÃO CONJECTURAL COM

POSSIBILIDADE DA IMORTALIDADE DO

HOMEM....................................................................................................................................183

3.1 O conceito de Deus na filosofia de Peirce............................................................................185

3.2 A concepção peirciana de Deus e a possibilidade da imortalidade do homem: uma ligação

conjectural..................................................................................................................................233

CONCLUSÃO...........................................................................................................................240

BIBLIOGRAFIA......................................................................................................................243

APÊNDICES.............................................................................................................................255

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INTRODUÇÃO

A presente pesquisa de doutorado pretende exibir e defender a tese de que a

filosofia de Charles Sanders Peirce reserva lugar para um conceito sui generis de

imortalidade do homem no interior de sua metafísica científica.

O conceito de imortalidade do homem de Peirce pode ser brevemente definido

como a possibilidade da permanência da influência do caráter de um homem mesmo após

a dissolução do seu corpo, ou seja, mesmo após a sua morte.

No entanto, atrás dessa aparentemente simples definição se encontram elementos

que precisam ser devidamente explicitados, de modo a deixar bem claro que o conceito

peirciano de imortalidade do homem não é uma concepção de tipo dogmático e muito

menos uma afirmação que pode ser comparada ou confundida com quaisquer

interpretações religiosas/institucionais acerca do tema. Ao contrário, esse conceito exibe,

na verdade, uma estreita ligação com toda a arquitetura filosófica do autor e, em

particular, com três doutrinas capitais de sua Metafísica Científica, a saber, o realismo, o

idealismo objetivo e o sinequismo.

Contudo, e como se verá detidamente, esse conceito de imortalidade do homem

também se encontra ligado, de maneira conjectural, com a concepção de Deus exibida

pelo autor em diversas passagens de sua obra. Desse modo, essa concepção de Deus, tal

como a concepção de imortalidade do homem, também deverá ser devidamente

conceituada para não correr o risco de ser associada a quaisquer formas de dogmatismo.

Ao contrário, o tema “Deus” também está inserido no interior da metafísica científica do

autor, obedecendo a ordem de dependência em relação às ciências1 que a precedem no

interior da classificação das ciências por ele preconizada. Portanto, esse tema se encontra,

apesar de alguns pontos problemáticos, assentado, no lugar que lhe cabe, no interior do

sinequismo de Peirce.

O realismo, o idealismo objetivo e, conjecturalmente, o conceito de Deus,

identificados no interior do sinequismo de Peirce, funcionam, portanto, como o elemento

1 Nos referimos aqui, conforme explica detalhadamente Ibri, em (IBRI, 1992, capítulo 1) e conforme

também abordamos em nossa propedêutica, em (ALMEIDA, 2014), às Ciências Normativas (Estética, Ética

e Lógica), à Fenomenologia e à Matemática.

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unificador da análise do conceito de imortalidade do homem que procuraremos levar à

cabo nas páginas que se seguem.

No entanto, e malgrado essas explicações iniciais, essa é uma tese de exposição

bem delicada. Isso porque, entre os seus leitores possíveis, teríamos o risco de nos

depararmos com duas situações iniciais eventualmente problemáticas, como a seguir

consideraremos.

De um lado, um leitor já familiarizado com a filosofia peirciana e também com

caminhos interpretativos já sedimentados de sua obra, poderia estranhar a atribuição de

tal linha de pensamento a Peirce, devido, por exemplo, às várias críticas que o próprio

autor dirige aos dogmatismos de todos os tipos e, particularmente, aos de tipo religiosos,

em diversas passagens de sua obra2; além disso, um leitor familiarizado sobretudo com a

longa tradição de estudos peircianos que insistem no caráter maduramente

fenomenológico de sua filosofia não deixando de recorrer sempre que necessário à âncora

balizadora da experiência, poderia também considerar o tema ‘imortalidade’ bem

problemático.

De outro lado, um leitor ainda não familiarizado com a filosofia peirciana,

poderia, a partir do tema dessa tese, ter uma interpretação apressada de que Peirce era

uma espécie de religioso dogmático, algo que não poderia estar mais distante do espírito

científico do autor.

Essas possíveis “primeiras impressões” no início da leitura podem resultar,

eventualmente, em abandono da leitura. Por isso, gostaríamos sinceramente de poder

evitar ambos os efeitos que acabamos de descrever, mas, por outro lado, considerando

esses tipos possíveis de leitores, trata-se, talvez, de algo realmente inevitável no início da

leitura. No entanto, mantemos a esperança de que, mesmo entre esses tipos de leitores,

aqueles que, eventualmente, não “bloquearem o caminho da investigação”3, possam

perceber, ao final, que ambas as interpretações apontadas acima não esgotam as

possibilidades de interpretação da obra de Peirce, havendo, portanto, outros caminhos que

podem ser considerados passíveis de fazer justiça ao seu pensamento. E, a presente tese

poderia ser lida, então, como um desses possíveis caminhos interpretativos.

Mas, o que nos motivou e nos levou a ideia contida nessa tese?

2 Ver, por exemplo, CP 6.428-434; CP 6.435-448. 3 CP 1.135.

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Iniciamos os nossos estudos peircianos há cerca de seis anos, no mestrado em

Filosofia da Faculdade de São Bento, sob a orientação do professor Ivo Assad Ibri, que,

aliás, orienta também a presente tese. O professor Ibri, devemos dizer, resgatou-nos de

um caminho de estudos que não traria a gratificação que hoje sentimos como estudiosos

da obra de Peirce e nos mostrou a grandeza e beleza da arquitetura filosófica do autor,

que passou a ser o nosso ponto de partida desde então.

Após frequentarmos os cursos do professor Ibri e passar certo tempo envoltos em

pesquisas para a definição do objeto da nossa dissertação de mestrado, deparamo-nos com

um texto de Peirce que se tornou muito caro para nós, a saber, a Lowell Lecture XI4, a

última de uma série de conferências sob o título geral de “A Lógica da Ciência ou Indução

e Hipóteses” proferidas por Peirce em 1866, no Lowell Institute, de Boston,

Massachusetts5.

Neste texto, Peirce, partindo de uma premissa que se tornará recorrente em seu

pensamento, a saber, a de que devemos “adotar a nossa lógica como a nossa metafísica”6,

discorre acerca do tema “O que é o homem?”, com o objetivo de tornar ainda mais clara

a importância de se estudar a lógica da ciência, tal como a vinha expondo nas Lectures

anteriores. A célebre utilização do trecho shakespeariano “Most ignorant of what he’s

most assured, his glassy essence”7 para definir o que se poderia chamar de “essência” do

homem ocorre pela primeira vez aqui, antecedendo a sua mais conhecida utilização no

texto “Algumas consequências de quatro incapacidades”8.

Esse texto chamou a nossa atenção pela primeira vez acerca da concepção

diferenciada que Peirce parecia exibir acerca do homem e sua relação com o cosmos em

que habita. Particularmente, ao final deste texto algo nos chamou ainda mais a atenção, e

foi exatamente a descrição que o autor fez, a partir da lógica objetiva que procurou ensinar

durante todas as suas Lectures, de uma possível teoria da imortalidade do homem, teoria

essa que, segundo Peirce, teria sido, a essa altura, “enunciada de maneira pobre, pensada

de maneira pobre, mas cuja fundação é a rocha da verdade.”9

4 W 1.490-504. 5 Aliás, o site da universidade, infelizmente, nem sequer menciona em sua “História”, no site oficial, as

Lectures proferidas por Peirce, embora mencione as de William James sobre Psicologia.

http://www.lowellinstitute.org/History.htm (último acesso em 20/03/2016). 6 W 1.490. 7 Em tradução livre: “Mais ignorante daquilo que está mais seguro, sua essência vítrea.” 8 W 2.211-242. 9 W 1.502. Embora nessa passagem Peirce anuncie o tema da imortalidade como configurando uma teoria,

essa teoria não foi desenvolvida como tal em posteriores textos que acabaram tocando no assunto

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Ao terminar de ler esse texto, tivemos a nítida sensação de ter encontrado o nosso

objeto de pesquisa, sobretudo porque a concepção da imortalidade do homem exibida por

Peirce não parecia ter como fim algum tipo de ambição humana de perdurar e sobreviver

à morte. Não! Em termos quase que paradoxais, o que parecia estar por detrás da exibição

do autor acerca da possibilidade da imortalidade para o homem era algo maior que as suas

individualidades perduráveis, algo cuja logicidade anunciava um projeto que,

perceberíamos um pouco mais tarde, exigiria uma compreensão aprofundada dos vários

aspectos que balizavam o pensamento do autor, para além, é claro, das outras passagens

em que tratou do assunto de maneira direta ou indireta.

Exatamente por causa disso decidimos, antes de abordar o conceito de

imortalidade do autor propriamente dito, estudar e mapear, como uma espécie de

propedêutica, as principais ciências e doutrinas que configuram a arquitetura filosófica

do autor, a qual havíamos começado a entender por meio dos cursos ministrados pelo

professor Ibri e, depois, aprofundamos por meio da leitura detida da sua obra pioneira,

Kósmos Noetós.10

Essa parte preliminar das nossas pesquisas acabou por se tornar a nossa

dissertação de mestrado11, que abordou, numa espécie de introdução à arquitetura

filosófica do autor, os seguintes temas: a Classificação das Ciências; a Filosofia, passando

pelo estudo das três ciências que a compõem, a saber, a Fenomenologia (estudando as

três categorias, primeiridade, segundidade e terceiridade), as Ciências Normativas

(estudando a concepção do autor de Estética, Ética e Lógica) e a Metafísica (estudando a

afirmação da realidade das três categorias do autor); Idealismo Objetivo, Sinequismo,

Pragmatismo e a Semiótica.

A propedêutica realizada em nosso mestrado, ofereceu-nos, assim, a oportunidade

de assentar as bases teóricas necessárias para o futuro entendimento, naquela ocasião, do

conceito de imortalidade do homem, segundo Peirce. E, a presente tese de Doutorado, é,

pois, a continuidade e realização dessa pesquisa que se iniciou há cerca de seis anos.

Visando cumprir a contento o seu propósito, a presente tese encontra-se dividida

em três capítulos:

novamente. Essa é a razão pela qual, já no título dessa tese, tomamos o tema imortalidade no interior da

filosofia peirciana como configurando mais um conceito, ou concepção, do que propriamente uma teoria. 10 (IBRI, 1992). 11 Publicada em formato de livro em (ALMEIDA, 2014).

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O capítulo um, intitulado “Charles Peirce e uma visão sinequista do homem”, tem

a missão de oferecer uma análise o máximo possível adequada do conceito peirciano de

homem. Esse primeiro passo se configura como essencial para o entendimento do tema

específico desta tese, posto que a imortalidade em questão é a imortalidade do homem.

Iniciamos essa análise abordando detidamente as passagens da Lowell Lecture XI12 nas

quais Peirce define, pela primeira vez, o homem como sendo um signo, e,

particularmente, um símbolo. Exploramos, também, algumas reflexões peircianas

contidas nos textos da chamada Série sobre a Cognição, que compreende, na verdade,

uma sequência de três artigos publicados no Journal of Speculative Philosophy, entre

1868 e186913. Eles não apenas reforçam a concepção de homem defendida na Lowell

Lecture XI, mas, também, a complementam com importantes e contundentes aspectos,

como, por exemplo, a questão, central para essa tese, da natureza contínua do

homem/símbolo (Tópico 1.1). Na sequência, num movimento necessário de

aprofundamento sobre a concepção de homem no interior da filosofia peirciana, os

fundamentais conceitos de personalidade e de pessoa serão devidamente explorados a

partir de importantes passagens da obra do autor, particularmente, passagens dos textos

The Law of Mind14 e Man’s Glassy Essence15, ambos publicados no periódico The Monist,

em 1892. A análise desses conceitos, em união com as reflexões do tópico anterior,

mostrará que o homem/símbolo possui uma essência, ou melhor, um caráter que, em

circunstâncias específicas, pode vir a ser imortal (Tópico 1.2). Finalmente, o capítulo um

se encerra com uma abordagem sobre como é possível pensar o lugar do homem no

interior da filosofia sinequista de Peirce. Essa abordagem tem como eixo uma das

consequências mais contundentes da definição do conceito de homem do autor levada a

cabo nos dois tópicos anteriores, a saber, a sua natureza inexoravelmente social (Tópico

1.3).

O segundo capítulo, intitulado “A imortalidade do homem na filosofia de Charles

Peirce”, consiste no cerne da presente tese, uma vez que tem como tarefa, partindo da

concepção de homem explorada no primeiro capítulo, analisar, com a máxima possível

fidelidade aos textos originais, o conceito de imortalidade do homem na filosofia de

Charles Peirce. Esse capítulo encontra-se dividido em três tópicos. Primeiramente, com

12 W 1.490-504. 13 Questions Concerning Certain Faculties Claimed for Man (1868), Some Consequences of Four

Incapacities (1868) e Grounds of Validity of the Laws of Logic (1869), (W 2.193-272). 14 W 8.135-157. 15 W 8.165-183.

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o objetivo de mantermos a estrutura de exposição temática da tese de acordo com a

arquitetura filosófica do autor, iniciamos com uma exposição geral da sua metafísica

psíquica ou religiosa, onde se situa o tema da imortalidade na sua Classificação das

Ciências (Tópico 2.1). Em seguida, (Tópico 2.2) procedemos a uma análise detalhada dos

três principais textos nos quais Peirce desenvolve, diretamente, as suas ideias acerca da

questão da imortalidade do homem, a saber, “Ciência e Imortalidade”16, de 1887 (Tópico

2.2.1), a continuação da Lowell Lecture XI17, de 1866 (Tópico 2.2.2), e, finalmente, o

“Imortalidade à Luz do Sinequismo”18, de 1893 (Tópico 2.2.3). Seguimos essa ordem não

exatamente cronológica de análise por um motivo estratégico bem específico, a saber, o

primeiro texto, “Ciência e Imortalidade”, de natureza mais crítica, nos oferece a

oportunidade de entender, já de início, o que o conceito de imortalidade do homem de

Peirce não é, facultando, assim, evitar mal-entendidos de interpretação logo no início.

Depois, os outros dois textos são analisados em um movimento de construção do conceito

positivo de imortalidade do autor, que se mantém ao longo de sua carreira filosófica. Por

fim, o capítulo se encerra com um exame acerca de como o conceito peirciano de

imortalidade do homem pode exibir suas credenciais pragmáticas no interior do universo

sinequista por ele preconizado (Tópico 2.3).

O terceiro, e último capítulo dessa tese, intitulado “A concepção peirciana de Deus

e a sua ligação conjectural com a possibilidade da imortalidade do homem” tem como

missão analisar, dentro de certos limites, o conceito peirciano de Deus que, conforme

adiantamos acima, possuiria uma certa ligação, de natureza conjectural, com o tema da

imortalidade do homem na filosofia do autor. (Tópico 3.1). Dizemos ‘dentro de certos

limites’, porque sabemos ser o tema “Deus”, na filosofia de Peirce, bem controverso, uma

vez que algumas passagens nas quais o autor trata o assunto nem sempre permitem o

estabelecimento de uma linha lógico-interpretativa bem definida, sendo, talvez por isso,

um dos temas que mais geram desacordo entre os próprios estudiosos da obra do autor.

Portanto, o mero descrevê-lo no interior da presente tese já foi, na verdade, um grande

desafio, o que, por sua vez, nos levou a evitar, durante a exposição, adentrar análises

detalhadas das controversas entre as diversas posições possíveis de interpretação do

conceito peirciano de Deus. Após cumprirmos a tarefa reservada ao tópico anterior,

supomos estar em condições de, finalmente, fechar o ciclo de exposição da presente tese,

16 W 6.61-64. 17 W 1.500-502. 18 EP 2.1-3.

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descrevendo, de maneira relativamente breve, como o conceito da realidade de Deus

exibido pelo autor, mesmo que eventualmente problemático, pode oferecer, a partir de

sua identificação conjectural com o real/ideal no interior do sinequismo do autor,

elementos consideráveis para um entendimento mais completo da realidade da

imortalidade do homem (Tópico 3.2).

Essa é, portanto, a exposição geral do plano da presente tese. Esperamos que por

meio dela possamos contribuir com os estudos da obra de Charles Sanders Peirce, esse

filósofo que nos deixou um amplo legado intelectual ainda muito longe de seu

esgotamento e, provavelmente, nunca o seja, posto que, ideias/símbolos que tangenciam

a evolução do real/ideal, crescem, infinitamente, e adquirem mais e mais o poder de

influenciar a nossa conduta.

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1. CHARLES PEIRCE E UMA VISÃO SINEQUISTA DO HOMEM

Uma vez que o objetivo da presente tese, como vimos na introdução, consiste em

exibir como Peirce pensou a possibilidade de um tipo de imortalidade para o homem,

qualificando esse conceito no intuito de torná-lo inteligível dentro do seu devido contexto

e expandindo-o em direção às suas relações para com algumas das principais doutrinas

da filosofia peirciana, sob um pano de fundo que assume a interpretação de que o autor

desenvolveu uma arquitetura filosófica, devemos partir de um ponto estratégico que torne

esse processo o mais compreensível possível.19 Tomando por assentados, de maneira

mínima, os elementos trabalhados em nossa propedêutica, particularmente a compreensão

da definição e classificação da Filosofia para o autor, através, sobretudo, do entendimento

do escopo atribuído às três ciências que a configuram, a saber, a Fenomenologia, as

Ciências Normativas e a Metafísica, mas também extrapolando esses elementos em

direção à exposição do Pragmatismo e da Semiótica peircianas20, julgamos que é propício

iniciar a partir de uma discussão acerca do conceito de homem em Peirce. Por que

entendemos ser essa uma estratégia adequada? Simplesmente, porque, se desejamos falar

sobre a possibilidade da imortalidade do homem em Peirce, é lícito inquirir,

primeiramente, o que o filósofo entendia por homem.

1.1 O homem: um signo

Pode-se dizer que o primeiro texto no qual Peirce se dedica a expor, descendo em

detalhes, a sua concepção acerca do que é o homem é a Lowell Lecture XI, de 1866.21

Essa é a última de uma série de conferências sob o título geral de “A Lógica da Ciência

ou Indução e Hipóteses” proferidas por Peirce no Lowell Institute, de Boston,

Massachusetts. Peirce inicia o texto falando sobre o que é a Filosofia: “A Filosofia é a

19 Esse é o ponto de partida de toda a nossa empreitada, tanto no mestrado como agora no doutorado e o

devemos aos ensinamentos do nosso orientador, o professor Ivo Assad Ibri. Para detalhes, ver a sua obra

pioneira sobre a arquitetura filosófica do autor (IBRI, 1992) e, para uma introdução de caráter bem mais

modesto à essa arquitetura, ver (ALMEIDA, 2014). Ver também (HAUSMAN, 1993), (PARKER, 1998) e

(ANDERSON, 1995). 20 Ver (ALMEIDA, 2014). Acrescentaremos durante essa tese os elementos que não foram trabalhados na

referida propedêutica e que precisam ser esclarecidos para que a tese defendida aqui seja devidamente

compreendida. 21 W 1.490-504.

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tentativa – pois, como a própria palavra implica, ela é e deve ser imperfeita – é a tentativa

de formar uma concepção geral e substancial do Todo.”22 Pela continuidade do texto,

torna-se patente que Peirce entendia ser essa missão sobretudo metafísica. Mas que tipo

de metafísica? Peirce, aqui, reitera uma das premissas que o acompanhará durante toda a

sua carreira intelectual, a saber, a de que “devemos adotar a nossa lógica como nossa

metafísica”23. E, inclusive, nos dá o motivo para isso: “Uma vez, então, que todos devem

ter concepções das coisas em geral, é muito importante que sejam construídas

cuidadosamente.”24 Construir cuidadosamente uma concepção geral, depende de uma

lógica adequada, ou seja, uma lógica que se confirma nos fatos, por estar neles presente,

objetivamente.25

A passagem que acabamos de verificar é digna de ser levada em consideração por

pelo menos dois motivos. O primeiro é que ela configura uma demonstração de que,

mesmo no início de sua carreira, com apenas 27 anos de idade, Peirce já deixava clara a

importância de balizar as proposições científicas em uma lógica objetiva. O segundo é

que o vetor de continuidade deste texto, que leva da consideração do escopo da filosofia

até o surgimento da possibilidade de uma imortalidade para o homem, está sob a égide

dessa premissa fundamental e, portanto, longe de qualquer dogmatismo logo de saída.

Mas, não apressemos as coisas. Estamos ainda no primeiro passo em direção a esse

entendimento.

Na sequência de sua Lowell Lecture XI, Peirce, logo após resumir o que havia

trabalhado na Lecture anterior, a saber, a ideia de que a lógica nos mune com uma

classificação dos elementos da consciência e que todas as modificações da consciência

são inferências e que todas as inferências são inferências válidas, e lamentar não ter mais

tempo para entrar em ainda mais detalhes acerca desses temas26, anuncia que pretende

passar a uma questão mais elevada e mais prática de metafísica, de modo a colocar em

luzes ainda mais fortes as vantagens do estudo da lógica.27 Que questão é essa?

Exatamente, “O que é o homem?” Por isso a importância de acompanhar esse texto,

22 W 1.490. 23 W 1.490. 24 Idem. 25 Para detalhes acerca da concepção da lógica objetiva desenvolvida por Peirce, incluindo a intima ligação

que essa possui com o pragmatismo do autor, queira o leitor consultar (IBRI, 1992, capítulo 6). 26 A Lowell Lecture X existe apenas de em um pequeno draft. W 1.488-490. 27 Idem, 491.

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basicamente em sua totalidade, a fim de dar o primeiro passo em direção a uma

compreensão adequada do conceito peirciano de homem.

É também nesta Lowell Lecture XI, um ano antes da publicação das famosas séries

sobre a cognição28, que Peirce inicia o seu ataque à concepção dominante do homem na

história das ideias, e mais particularmente a de Descartes, considerado por ele como o seu

principal representante.29 O próprio Peirce explica em poucos termos a essência dessa

concepção dominante de homem à sua época:

Considero que devo colocar a concepção dominante do seguinte modo:

o homem é essencialmente uma alma, ou seja, uma coisa ocupando um

ponto matemático no espaço, não em si mesmo pensamento, mas o

sujeito de inerência do pensamento, sem partes, e exercendo uma certa

força material chamada de volição. (W 1.491)

E continua:

Presumo que a maioria das pessoas considera essa crença como sendo

intuitiva, ou, pelo menos como implantada na natureza humana, e mais

ou menos mantida distintamente por todos os homens, sempre e em

todo lugar.

Mais ignorante daquilo que está mais seguro. Sua essência vítrea.

(Idem, itálicos do autor)

Em nossa opinião, essa passagem dá o tom de tudo o que está por vir nesse texto.

A frase extraída da peça de Shakespeare30 e alocada logo após a definição daquilo que

Peirce considerava ser a concepção vigente e limitada acerca do homem, não é um

preciosismo erudito. Peirce parece ter claramente o objetivo de ser provocativo ao dizer

que o homem é ignorante acerca da sua própria essência, sobretudo quando pensa estar

seguro dela ao, por exemplo, exibir, em geral, certeza intuitiva na definição mesma dessa

essência. Dizemos que essa passagem dá o tom do que está por vir exatamente porque na

sequência, Peirce irá desconstruir a concepção dominante de homem que acabara de

resumir de maneira a esclarecer o porquê da sua sugestão31 de que a essência do homem

é, na verdade, vítrea.

28 W 2.193-272. 29 Ver (SANTAELLA, 2004). Ver também (MURPHEY, 1993). 30 SHAKESPEARE, William. Measure for Measure, 2.2.119-120. 31 Dizemos ‘sugestão’ porque, na verdade, Peirce, embora exiba a sua concepção positiva do que é o homem

no decorrer do texto, não diz, exatamente, o que ele entende por essência vítrea. E mesmo se considerarmos

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Deixemos ainda mais claro, para que não se engane o leitor: o objetivo de Peirce

não é meramente o de desconstruir, ou seja, exibir, de maneira negativa, o que está

equivocado na concepção dominante. Peirce faz mais do que isso, na medida direta que

exibe, de maneira positiva, uma nova concepção de homem que, neste texto, encontra-se

baseada na sua lógica objetiva, e que será reforçada uma ano depois com a publicação

dos textos “Questões referentes a certas faculdades ditas humanas”32 e “Algumas

consequências de quatro incapacidades”33, que usam muitos elementos já adiantados

nessa Lowell Lecture XI, completando-os com a exposição da sua teoria da cognição, que

funda, de maneira contundente, o seu característico anticartesianismo.34 Voltaremos a

esses textos sobre a cognição em breve, logo após exibirmos como Peirce expõe a

concepção de homem baseado na sua lógica objetiva.

Neste texto, Peirce pretende abordar a questão “O que é o homem?” a partir de um

plano específico. Vamos entender brevemente em que consiste esse plano para que a

sequência do texto se torne mais clara. Peirce considera que uma das origens da

diversidade de opiniões acerca das teorias da alma ao longo da história das ideias seria o

desejo de uma discriminação entre as explicações indutivas e hipotéticas dos fatos da vida

humana.35 Ambas seriam indispensáveis, mas, para qualquer fato estudado, as

explicações indutivas e hipotéticas cumpririam cada qual uma função, de modo que a

tentativa de fazer com que uma apenas cumprisse as duas funções causou muitos

desacordos entre os teóricos.36 Para Peirce, então, teríamos de tomar certo cuidado para

não confundir essas duas formas de explicação no que tange à questão do homem, no final

das contas, o suposto objeto de inquirição neste texto. Assim, afirma Peirce:

A explicação hipotética nos informará acerca das causas ou

antecedentes necessários dos fenômenos da vida humana. Esses

fenômenos podem ser considerados internamente ou externamente.

Considerados internamente, eles requerem uma explicação interna por

outro texto, este bem posterior ao que estamos trabalhando agora, o texto “A Essência Vítrea do Homem”

(W 8. 165-183), Peirce também não o faz de maneira exata. De modo que fica para o leitor, a

responsabilidade de buscar entender o alcance e dimensão dessa qualificação. Voltaremos a isso no fim do

capítulo. 32 W 2.193-211. 33 W 2.211-242. 34 Ver (SANTAELLA, 2004). 35 Cf. W 1.492. 36 Cf. W.1.492-493. Peirce esclarece as funções, segundo as entendia no momento: a explicação indutiva

tinha a função de, na explicação, substituir o objeto da proposição por um mais amplo; a explicação

hipotética, de outro lado, tinha a função de, na explicação, substituir o predicado da proposição por um

mais profundo.

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antecedentes internos necessários, isto é, por premissas; e essa

explicação foi dada na última Lecture.37 Se considerados externamente

ou fisicamente, eles requerem uma explicação física, por antecedentes

físicos, e essa investigação deve ser deixada para os fisiologistas, sem

nenhuma reserva38 [...] Assim, a explicação hipotética sustenta-se a si

mesma e não apresentará nenhum tipo de contradição em relação à

explicação indutiva, que é a que desejamos quando perguntamos “o que

é o homem?”. (W 1.493-494 – itálicos do autor)

Começa, assim, a emergir a estratégia de Peirce: o que ele pretende abordar é

aquilo que ele considera ser a explicação indutiva acerca do que é o homem, ou seja,

pretende responder a seguinte pergunta: “a que tipo real pertence o ser pensante,

sentiente e volicional?”.39 Porém, tal como ocorreu na explicação hipotética, também na

explicação indutiva, a questão “o que é o homem?” pode ser considerada externa e

internamente. Considerada externamente, pode-se dizer que a explicação se resume a

isso: o homem é um ser que pertence ao reino animal, ao ramo dos vertebrados e à classe

dos mamíferos.40 Completa-se, finalmente, o plano de abordagem de Peirce: “o que

procuramos é o seu [do homem] lugar quando considerado internamente,

desconsiderando seus músculos, glândulas e nervos, e considerando apenas seus

sentimentos, esforços e concepções.”41

Se levarmos em consideração a definição de filosofia dada no início do texto por

Peirce, relembrando “A Filosofia é a tentativa – pois, como a própria palavra implica,

ela é e deve ser imperfeita – é a tentativa de formar uma concepção geral e substancial

37 Peirce se refere à Lecture X. Trata-se, exatamente, da derivação e divisão dos três elementos da

consciência em sentimentos, esforços e noções. Embora a Lecture não esteja completa, conforme já

falamos, é possível saber que Peirce fez essa derivação a partir dos três tipos de inferências, a) intelectuais

(hipóteses, induções e deduções); julgamentos de sensações, emoções e movimentos instintivos (que são

hipóteses cujos predicados são não analisados em compreensão); e hábitos (que são induções cujos sujeitos

são não analisados em extensão). 38 Neste ponto, Peirce fala sobre uma peculiaridade da explicação hipotética dos fisiologistas, a saber, que

tal explicação, sendo uma busca pelos antecedentes físicos da ação humana, acaba por remontar à questão

“Que tipo de autômato é o homem? ” uma vez que a consciência é assumida desde a partida. Acrescentando

que isso pode conflitar com a noção recorrente, tanto no mundo filosófico, quanto na esfera religiosa, do

homem como um ser responsável e imortal. No segundo capítulo trataremos da questão da possibilidade da

imortalidade propriamente dita, mas cabe aqui lembrar, tal como o próprio Peirce o faz na sequência, que

tal conflito não ocorre se tivermos por base uma lógica objetiva como sendo nossa metafísica, de modo que

seria perfeitamente possível, para Peirce, reconciliar necessidade física com as questões da responsabilidade

e imortalidade, desde que devidamente entendidas. 39 W 1.494. 40 Cf. idem. 41 Idem.

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do Todo.”42, caberia perguntar o que o autor pretende fazer com essa determinação

estratégica? Em nossa opinião, o que Peirce parece estar perseguindo é o âmbito

metafísico/ontológico, de investigação acerca do que é o homem. O que parece carregar

a hipótese de que nesse âmbito estaria uma diferença que mereceria consideração em

relação aos outros âmbitos de pesquisa que, a julgar pela definição de filosofia, teriam os

mesmos direitos enquanto generalizações do comportamento humano observável. No

final das contas, para Peirce, é a investigação metafísica/ontológica que permite

esclarecer (confirmando-se nos fatos) como a lógica objetiva permite lançar as sementes

para uma concepção sui generis do homem. Senão, vejamos o que se segue, nas palavras

do próprio Peirce:

Nós já vimos que todo estado de consciência é uma inferência; de modo

que a vida é nada além de uma sequência de inferências ou um fluxo de

pensamentos. Em qualquer instante, então, o homem é um pensamento,

e, tal como o pensamento é uma espécie de símbolo, a resposta geral

para a pergunta “o que é o homem? ” é que ele é um símbolo. (W 1.494

– itálicos nossos)

Essa é, pode-se dizer a primeira passagem da obra de Peirce em que o homem é

definido dessa maneira. O homem, para Peirce, seria um signo e um signo de um tipo

bem peculiar: o símbolo. Para muitos, reduzir o homem a um signo pode parecer bem

limitante, de modo que não surpreende que ninguém esteja disposto a aquiescer a tal

definição, apesar de eventualmente achá-la desafiadora, sem alguns bons argumentos em

seu favor. Mas, na verdade, longe de ser limitante, essa é uma complicada definição, que

carrega em seu bojo muito mais elementos do que aparenta; elementos, inclusive, que

Peirce levaria algum tempo para acomodar devidamente em sua arquitetura filosófica.43

Porém, neste texto, Peirce argumentará em favor dessa definição comparando o homem

com outro símbolo. E, nos já citados textos da série cognitiva, sobretudo nos textos

“Questões referentes a certas capacidades ditas humanas” e “Algumas consequências de

42 W 1.490. 43 Cito alguns exemplos: 1) A própria noção de signo em Peirce sofrerá consideráveis implementações,

inclusive de natureza metodológica, na sua filosofia de maturidade, não no sentido de mudança radical,

mas, exatamente, de inserção de elementos que ajudam a aprofundar cada vez mais o seu significado e

dimensão teórica. 2) O surgimento da Fenomenologia de maturidade, que configura um outro caminho,

mas que carrega de maneira inclusiva as categorias da filosofia de juventude do autor. Ver (SHORT, 2013),

para uma visão discordante. 3) O assentamento do realismo radical do autor. 4) A maturação da sua

concepção do contínuo na sua doutrina do Sinequismo. Esses quatro exemplos, entre muitos outros que

poderiam ser citados, estão de certa forma (em germe) já envolvidos na definição de homem que estamos

a considerar, e estarão mais ainda presentes no desenrolar da carreira filosófica do autor. Ver (IBRI, 1992),

(ALMEIDA, 2014), (MURPHEY, 1993) e (HAUSMAN, 1993).

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quatro incapacidades”, partindo de construções adiantadas aqui, contextualizará tal

definição no escopo da sua teoria da cognição, tal qual desenvolvida a essa época,

contextualização essa que, como veremos, complementará a análise aqui apresentada.

Vamos seguir, então, a ordem de exposição e entender como Peirce opera, nesta Lowell

Lecture XI, a sua argumentação no intuito de explicar por que o homem deve ser

considerado, essencialmente, um símbolo.

Comparando o homem a uma palavra, ou seja, a um outro símbolo, quais poderiam

ser as diferenças e semelhanças exibidas? Peirce começa pelas diferenças: “Em primeiro

lugar, o corpo de um homem é um mecanismo maravilhoso, e o da palavra, nada além

de uma linha de giz. Em segundo lugar, o significado de uma palavra é bem simples, e o

significado de homem é um verdadeiro enigma de esfinge.”44 Temos aqui duas espécies

de diferenças, uma fisiológica e outra de significado. A fisiológica é uma diferença

relacionada à consideração externa da questão indutiva acerca do que é o homem, de

modo que não seria outra a conclusão de Peirce além de que essa seria uma diferença

superficial, até mesmo óbvia.45 Mas e a diferença de significado apontada? Essa não é

externa e Peirce também a considera óbvia e superficial.46 Mas, o sentido em que Peirce

está considerando essa diferença de significado é apenas em relação ao nível de

complexidade envolvido em ambos os significados.

No entanto, o ponto que Peirce deseja realçar é que, ignorando essas duas

diferenças óbvias e superficiais, homens e símbolos seriam basicamente indistinguíveis.

Se for este o caso, ambos teriam uma natureza em comum, que se poderia chamar de

essencial. E é isso o que Peirce passa a demonstrar na sequência do texto. A estratégia de

Peirce é elencar aquelas que aparentemente seriam características internas atribuíveis

apenas aos homens e mostrar que há correlatos dessas características nas palavras, que

representam, metonimicamente, os símbolos em geral. Vejamos a sequência

argumentativa.

Peirce começa pelo elemento ‘consciência’. Certamente, o homem caracteriza-se

por possuir uma consciência. Mas, e a palavra? Pode-se dizer que uma palavra possui

algo correlato da consciência? Neste texto, Peirce, na tentativa de desambiguizar o

significado complexo de consciência, distingue quatro sentidos para esse termo.

44 W 1.494. 45 Cf. Idem. 46 Idem.

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Primeiramente, consciência significaria “aquela distinguível emoção ou sensação que

acompanha a reflexão de que temos uma vida animal.”47 Há razões para acreditar que

essa emoção/sensação depende da possessão de um corpo animal e, assim, uma palavra,

que não possui corpo animal, também não seria caracterizada por possuir consciência

nesse sentido. Então, teríamos aqui outra diferença? Para Peirce não, pois a existência

dessa emoção só é possível por causa das características sensitivas do corpo animal, de

modo que ela deve ser incluída na classe das diferenças fisiológicas, já apontada

anteriormente como sendo óbvia e externa. 48

O segundo sentido de consciência que Peirce descreve é aquele usado para se

referir ao conhecimento que temos daquilo que se encontra em nossas mentes, ou, em

outros termos, o fato de nossos pensamentos funcionarem como índices de si mesmos e

carregarem absoluta identidade consigo mesmos. Peirce argumenta que assim é com

qualquer palavra e mesmo com qualquer coisa, posto qualquer coisa também funcionar

como índice de si mesma, na medida direta que denota a si mesma, mantendo o seu

caráter/identidade.49

O termo consciência, em seu terceiro sentido, também é usado, segundo Peirce,

para denotar o eu penso, ou, em outros termos, a unidade do pensamento.50 E argumenta,

deixando claro que todas as palavras possuem um correlato desse sentido do termo

consciência: “Mas a unidade do pensamento nada mais é do que a unidade da

simbolização – consistência, em uma palavra (a implicação do ser) e pertence a qualquer

palavra.”51

O quarto, e último, sentido de consciência que Peirce explora nesse texto é o usado

para denotar aquilo que ele considera ser sentimento.52 Para Peirce, à essa época, ou seja,

1866, todo sentimento é cognitivo, na medida direta que todo sentimento é uma sensação

e uma sensação consiste em um signo mental ou palavra.53 Em um primeiro sentido do

47 W 1.494-495. 48 Idem, 495. 49 W 1.495. 50 Idem. 51 Idem. 52 O termo sentimento em Peirce é bem complexo e passa por incrementos de significado ao longo de sua

carreira. De modo que podemos dizer que Peirce acabou por corrigir esse vocabulário conforme maturou a

sua filosofia, não alterando a sua posição, pois, aqui, Peirce se refere a sentimentos inferidos, mas

encontrando um lugar mais adequado para uma visão de caráter mais ontológico e mesmo cósmico do

sentimento. Não queremos aqui problematizar essa concepção, mas sim, analisar a abordagem peirciana

acerca deste termo tal qual ele o expõe no texto ora em questão. Para detalhes acerca deste rico conceito

em Peirce, consultar, particularmente, (IBRI, 1992), (IBRI, 2009) e (IBRI, 2010a). 53 W 1.495.

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termo, o sentimento depende de um organismo animal capaz de sentir e, assim, algo que

não tenha um corpo animal não pode ter um sentimento animal. Essa diferença, conforme

já deve saber o leitor, estaria na classe das diferenças externas indutivas superficiais entre

o homem e outro símbolo qualquer, posto este não possuir um corpo animal. No entanto,

pergunta Peirce, haveria na palavra algo da natureza do sentimento? E responde: “[...]

uma palavra tem uma palavra; ela tem a si mesma; e, assim, se o homem é um sentimento

animal, a palavra é na mesma medida, um sentimento escrito.”54 No entanto, continua

Peirce, alguém poderia objetar dizendo que os sentimentos humanos são percepções, ou

seja, que ele é afetado pelos objetos na medida que ele ouve, vê, etc. e uma palavra não.

Mas essa característica, em primeiro lugar, seria também dependente do corpo animal, de

modo que também poderia ser subsumida nas diferenças superficiais. Porém, mesmo aqui

Peirce enxerga uma correspondência:

A percepção é a possibilidade de adquirir informação, de significar

mais; ora, uma palavra pode aprender. O quão mais significa a palavra

eletricidade hoje do que significava na época de Franklin; o quão mais

o termo planeta significa hoje do que significava nos tempos de

Hipparchus. Essas palavras adquiriram informação, do mesmo modo

que o pensamento de um homem adquire por meio da percepção. (W

1.496 itálicos do autor)

Além disso, mesmo se alguém viesse a argumentar que essa identificação entre

homem e palavra mediante a capacidade de adquirir informação ignora o fato de que uma

palavra não pode existir independentemente da criação humana, ou seja, é o homem que

cria a palavra, de modo que essa nada mais é além daquilo que o homem a faz ser, e

particularmente para o homem que a criou, tal objeção poderia até parecer verdadeira em

primeira instância, mas, insiste Peirce, se observarmos bem:

Uma vez que o homem pode pensar somente por meio de palavras ou

outros símbolos externos, as palavras podem replicar e dizer ‘você não

significa nada que nós não tenhamos lhe ensinado, e isso na medida em

que você visa alguma palavra como o interpretante do seu pensamento’.

(W 1.496)

Assim, para Peirce, o homem e a palavra educam um ao outro, de modo que um

acréscimo de informação no homem equivale ao acréscimo de informação em uma

54 W.495.

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palavra e vice-versa.55 Como se pode ver, mesmo aqui, para Peirce, não há diferença

essencial entre o homem e uma palavra, pois, ambos são símbolos em contínuo

crescimento e aprendizado.

Saindo do elemento ‘consciência’, Peirce ainda considera outra possível

diferença: a natureza moral do homem. Aparentemente, uma palavra não possuiria uma

natureza moral, ao passo que o homem claramente a possui. Em seu argumento, Peirce

distingue dois sentidos do termo moral.56 O primeiro sentido do termo moralidade se

refere ao que devemos (ought) fazer, de modo que, na medida direta em que uma palavra

é fisiologicamente incapaz de agir, não podemos considerar esse sentido como um ponto

separado de distinção, mas também como parte da já reconhecida diferença externa

fisiológica. O segundo sentido do termo moralidade, segundo Peirce, se refere à

conformidade que algo pode possuir a uma lei ou um princípio de adequação das coisas.

Ou seja:

[...] um princípio daquilo que é adequado no pensamento, não de modo

a torná-lo verdadeiro, mas como um pré-requisito para torná-lo

espiritual, torná-lo racional, torná-lo verdadeiramente um pensamento,

então, temos algo extremamente análogo a isso na boa gramática de

uma palavra ou sentença. A boa gramática é a excelência de uma

palavra pela qual ela passa a possuir uma boa consciência, a ser

satisfatória, não apenas em relação à referência que ela possui com o

estado atual das coisas que ela denota, nem apenas em relação às

consequências do ato, mas consigo mesma, em sua determinação

interna própria. (W 1.496)

Em outros termos, Peirce, mesmo no que se refere ao âmbito que se pode chamar

de conduta essencialmente moral do homem, encontra, não uma diferença essencial com

a palavra, mas sim um ponto de comunhão. Sendo esse ponto de comunhão a boa

gramática, ou princípio de adequação da palavra a uma lei que a torna suscetível a

representar as coisas de maneira mais razoável e satisfatória. Peirce parece ter sempre se

mantido constante ao afirmar que “beleza e verdade pertencem à mente e à palavra de

55 Idem. 56 O sentido do termo ‘moral’ é outro bem complexo na evolução do pensamento peirciano. Não caber aqui

problematizar, pois isso nos desviaria do objetivo principal desse tópico. Para detalhes acerca desse aspecto

da filosofia de Peirce, ver (ALMEIDA, 2014, capítulo 2) e (POTTER, 1997).

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igual modo”.57 Na verdade, isso pode ser considerado como um prenúncio do idealismo

objetivo do autor, devidamente assentado em sua filosofia de maturidade.58

Na sequência, Peirce considera outra possibilidade de encontrar uma diferença

essencial entre o homem e uma palavra: a capacidade de esforço e atenção que um homem

certamente possui e que seria necessário investigar se há algum equivalente a essa

capacidade na palavra. Para Peirce, a palavra possui sim algo equivalente a isso: o seu

poder de denotação.59 Uma palavra denota, em primeiro lugar, como já vimos, a si mesma,

e, depois, denota o seu objeto.

Enfim, Peirce considera uma última e interessantíssima possibilidade de

diferença: a capacidade de procriação. Um homem, tal como os animais e também as

plantas, pode procriar. E uma palavra? Estaria aí um ponto essencial de diferença entre

ambos? Do ponto de vista fisiológico, claro que há diferenças. Porém, para Peirce, mesmo

no que se refere à capacidade de procriação, a palavra mantém algo em comum com o

homem, uma capacidade de “procriar”, semelhante à relação entre pai e filho no âmbito

animal. Vejamos o argumento de Peirce:

Se escrevo “Deixe Kax denotar um forno a gás”, essa sentença é um

símbolo que está criando um outro símbolo no interior de si mesmo.

Aqui, temos uma certa analogia com a paternidade; do mesmo modo,

nem mais nem menos, que quando um autor se refere aos seus escritos

como sendo sua prole – uma expressão que não deve ser tomada como

metafórica, mas sim como geral. [...] Suponha que escrevamos o

silogismo X é assim; Isso é X. Surgindo da união entre esses dois

símbolos, que desempenham partes essencialmente diferentes, há um

outro. (W 1.497)

Em ambas as sentenças, os símbolos estão criando outros símbolos dentro de si

mesmos, na medida direta em que seus significados visam outros pensamentos que

funcionarão como seus interpretantes. Essa noção se revelará como de extrema

importância para o entendimento da natureza da imortalidade para Peirce. Mas, sem

adiantar demais as coisas, apontemos que, segundo essa noção, nenhum pensamento se

esgota em si mesmo, mas continua na medida em que cria a possibilidade de haver outros

57 W 1.495. 58 Sobre o idealismo objetivo de Peirce, consultar mais detalhes em (IBRI, 1992, capítulos 3) e (ALMEIDA,

2014, capítulo 3). Para um vislumbre de raízes ainda anteriores do idealismo objetivo do autor, ou seja, em

escritos anteriores inclusive a esse que estamos a considerar aqui, ver (ALMEIDA, 2014a, p. 218). 59 Ver W 1.496.

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pensamentos interpretantes e isso, no mundo das ideias é, para Peirce, equivalente literal

da capacidade de procriar. Voltaremos a isso em breve, quando formos completar as

conclusões deste texto com algumas reflexões sobre a teoria peirciana da cognição no que

tange à sua importância para se compreender a sua concepção de homem.

Após investigar as possíveis diferenças entre o homem e a palavra e concluir que,

na verdade, não há nenhuma diferença essencial entre ambos, exceto uma diferença

meramente fisiológica, que se configura como uma consideração apenas externa no que

tange à pergunta indutiva acerca do que é o homem60 e, eventualmente uma diferença

óbvia de complexidade de significados, Peirce movimenta o pensamento do leitor em

direção à verdadeira questão a ser respondida:

[Uma vez que] um homem denota o que quer que seja objeto da sua

atenção em um dado momento, conota o que quer que saiba ou sente

acerca deste objeto, e é a encarnação dessa forma ou espécie inteligível;

seu interpretante é a memória futura dessa cognição, seu eu futuro ou

outra pessoa a que se dirija ou uma sentença que escreve, ou um filho

que tenha. Em que consiste a identidade do homem e onde se encontra

o sítio da sua alma? (W 1.498, itálicos nossos)

Peirce é claro ao diagnosticar que essa questão tem recebido uma resposta bem

limitada. Embora neste texto Peirce não se refira diretamente à tradição cartesiana, é a

ela, principalmente, que ele está se referindo quando resume do seguinte modo a

explicação corriqueira61:

Costumávamos ler que a alma reside em um pequeno órgão do cérebro

não maior do que a cabeça de um alfinete. No entanto, a maior parte

dos antropólogos agora afirma, de uma maneira mais racional, que a

alma ou está espalhada pelo corpo inteiro ou está toda, em tudo e em

toda parte. (W 1.498)

Pois bem, “estaríamos aprisionados em caixa de carne e sangue?”62, pergunta

Peirce. Anuncia-se, assim, a resposta positiva que Peirce tem a dar para a pergunta “o que

é o homem?”, resposta que merece ser citada na íntegra:

Quando comunico meus pensamentos e meus sentimentos a um amigo

pelo qual tenho total simpatia, de modo que meus sentimentos passam

60 Rever W 1.494. 61 Ver (SANTAELLA, 2004), (MURPHEY, 1993) e (CORRINGTON, 1993). 62 W 1.498.

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para ele e eu me torno consciente daquilo que ele está sentindo, não

estou vivendo em seu cérebro do mesmo modo que no meu próprio –

quase que literalmente? É verdade, minha vida animal não está lá, mas

a minha alma, meu sentimento, pensamento e atenção estão. Se isso não

é assim, um homem não é uma palavra, é verdade, mas algo muito mais

pobre. Há uma miserável, material e barbaresca noção segundo a qual

o homem não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo, como se ele

fosse uma coisa! Uma palavra pode estar em muitos lugares ao mesmo

tempo, seis seis, porque sua essência é espiritual e acredito que o

homem é em nada inferior à uma palavra, neste aspecto. Cada homem

possui uma identidade que transcende o mero animal; - uma essência,

um significado, sutil que possa ser. (W 1.498)

Parece ser lícito dizer que a conclusão de Peirce é que aquilo que se pode chamar

de a essência do homem transcende o seu corpo animal: ela é espiritual. Tal como a

essência de qualquer palavra/símbolo. O termo “espiritual” aqui não deve ser confundido

com alguma espécie de entidade metafísico/religiosa tradicional, mas deve ser entendido

como o caráter intelectual, não corpóreo, tal como a raiz latina da palavra indica63, do

qual partilham o homem e os símbolos.

Na sequência, Peirce completa: “Ele [o homem] não pode conhecer a sua própria

significação essencial – do seu olho é o olhar.”64 Isso significa que a essência do homem

permanece sempre cognitivamente incompleta para o próprio homem. Isso ocorre porque

no coração da concepção peirciana de símbolo encontra-se o importante pensamento de

que este sempre visa um interpretante como resultado do processo de semiose. O que

aparece aqui é, na verdade, o conceito peirciano de semiose ilimitada, no qual não se pode

falar em primeiro e último signo do processo. Voltaremos a esse ponto um pouco mais

abaixo, ao abordarmos as contribuições da teoria da cognição peirciana para o

entendimento da sua concepção da essência do homem.

O próprio Peirce reconhecia que a sua exposição acerca da essência do homem

não era tão fácil de ser assumida, de modo que seria comum a exigência de uma prova

por parte de qualquer interlocutor. Peirce acreditava já ter dado a prova neste mesmo

texto, mas oferece, como que num movimento de confirmação, um resumo dos principais

lemas de sua prova, que valem a pena ser citados na sequência:

63 A raiz latina é Spirare. Dicionário Morfológico da Língua Portuguesa, volume IV, p. 3914-3915. 64 W 1.498.

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1) ‘O que é o homem?’ é uma questão indutiva em seu sentido atual. 2)

A explicação indutiva é apenas a expressão geral do fenômeno e não

faz hipóteses. 3) Seja que homem ele for, ele o é a cada instante. 4) Em

qualquer instante os únicos fenômenos internos que ele apresenta são

sentimentos, pensamentos e atenção. 5) Sentimentos, pensamentos e

atenção são todos cognitivos. 6) Toda cognição é geral, não há intuição.

7) Uma representação geral é um símbolo. 8) Todo símbolo possui uma

compreensão essencial que determina a sua identidade. A confirmação

que ofereci foi o fato de que o homem é consciente de seu interpretante,

seu próprio pensamento em outra mente – não digo imediatamente

consciente – está feliz nele e sente que em algum grau está lá. Assim,

acredito que nada exceto uma ascendência indevida da vida animal

pode impedir a percepção dessa verdade. Essa essência da qual estou

falando não é a alma inteira do homem, mas sim apenas o seu âmago,

que carrega consigo toda a informação que constitui o desenvolvimento

do homem, seus sentimentos, intenções e pensamentos totais. Quando

eu, isto é, meus pensamentos, entram em outro homem, não carrego

necessariamente meu ser total, mas carrego a semente da parte que não

levo e, se carrego a semente da minha essência completa, então, carrego

a de todo o meu ser atual e potencial. (W 1.498-499)

Essa relativamente longa citação oferece um bom resumo/conclusão do que

Peirce entendia ser a essência do homem. Ela também prepara o momento do texto em

que Peirce extrairá duas consequências importantes da teoria até aqui exposta: uma teoria

da imortalidade e uma possibilidade de se pensar uma divindade trinitária (triádica),

calcada nos conceitos de objeto, interpretante e fundamento (ground).65 Mas esse é

também o momento de abandonarmos esse texto para depois retomá-lo, exatamente de

onde paramos, em dois momentos diferentes deste trabalho: no capítulo dois para,

exatamente, iniciarmos a nossa análise de como Peirce pensou ser possível uma certa

imortalidade para o homem; e no capítulo três para, exatamente, completarmos a nossa

abordagem acerca de como e porque a concepção da imortalidade do homem de Peirce

estaria, de maneira conjectural, ligada à concepção peirciana de Deus. Por outro lado, os

itens 5 e 6 dos lemas peircianos expostos acima (Sentimentos, pensamentos e atenção são

65 Uma possível influência de caráter biográfico para o teor do final deste texto é o fato conhecido da

conversão de Peirce ao trinitarismo, por volta de 1862. A esse respeito, ver (BRENT, 1993) e (FISCH –

Introduction to Writings of Charles Sanders Peirce, volume 1).

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todos cognitivos; toda cognição é geral, não há intuição) também oferece a ocasião para

abordarmos, conforme já havíamos prometido, o papel que a teoria da cognição peirciana,

tal qual exposta nos três textos da chamada série cognitiva, publicados entre 1868 e

186966, exerce em sua concepção acerca do homem.

Peirce vinha desenvolvendo desde as suas Harvard e Lowell Lectures (1865-

1866), e passando pelo artigo “Sobre uma nova lista de categorias” (1867)67, uma

complexa teoria da cognição, que, pode-se dizer, chegou ao seu auge nos três textos

publicados no Journal of Speculative Philosophy, um importante periódico para a história

do pragmatismo, pois deu a oportunidade aos seus precursores de veicularem e debaterem

as suas ideias.68 Os três textos em questão são, como já referidos acima, Questions

Concerning Certain Faculties Claimed for Man (1868), Some Consequences of Four

Incapacities (1868) e Grounds of Validity of the Laws of Logic (1869). Para as nossas

pretensões, o primeiro e o segundo artigos possuem fundamental importância. Porém, o

que pretendemos agora não é, em hipótese alguma, proceder com uma exposição

detalhada desses artigos, pois isso exigiria basicamente um volume separado. O que

pretendemos é apenas completar a análise da concepção peirciana de homem, levando em

consideração alguns elementos da sua teoria da cognição que a influenciam de maneira

contundente.

Como já havíamos afirmado acima, Peirce exibe nestes textos sobre a cognição

uma série de reflexões que reforçam, mas também completam, a concepção de homem

defendida na Lowell Lecture XI. Assim, para verificarmos como os elementos da teoria

da cognição desenvolvidos nos textos da série cognitiva acrescentam elementos

importantes à concepção peirciana de homem, precisamos exibir tais acréscimos dentro

do contexto da série cognitiva.

No texto Questions Concerning Certain Faculties Claimed for Man, primeiro

texto da série, Peirce exibe os pilares da sua teoria da cognição por meio de uma estratégia

textual de tipo escolástico, na qual parte-se de uma pergunta que é seguida de argumentos

para uma resposta afirmativa e de uma prova da negativa, a posição de Peirce, seguida

66 W 2.193-272. 67 W 2.49-59. 68 Ver (FISCH, 1986).

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das réplicas de Peirce para os argumentos afirmativos.69 Peirce, então, considera as

seguintes sete questões:

Questão 1: Se, pela simples contemplação de uma cognição, independentemente de

qualquer conhecimento prévio e sem raciocinar por meio de signos, somos capazes de

julgar corretamente se tal cognição foi determinada por uma cognição prévia ou se ela se

refere imediatamente ao seu objeto.

Questão 2: Se possuímos uma autoconsciência intuitiva.

Questão 3: Se possuímos um poder intuitivo que nos permita distinguir os elementos

subjetivos de diferentes tipos de cognição.

Questão 4: Se possuímos algum tipo de poder de introspecção, ou se todo o nosso

conhecimento acerca do mundo interno é derivado da observação de fatos externos.

Questão 5: Se somos capazes de pensar sem signos.

Questão 6: Se um signo pode ter qualquer significado, se por definição ele for um signo

de algo absolutamente incognoscível.

Questão 7: Se pode existir qualquer cognição que não seja determinada por uma cognição

anterior.70

A discussão de Peirce acerca dessas sete questões procuram revelar uma

concepção da cognição que incorpora os elementos realistas e idealistas da sua filosofia.71

Na verdade, em nossa concepção, essas duas facetas não devem ser separadas quando se

fala da filosofia de Peirce. É sobre este pano de fundo, o de uma filosofia realista e

idealista, ao mesmo tempo, fundidas numa concepção não nomeada assim neste texto,

mas que virá a ser chamada mais tarde de sinequismo, que a sua visão de homem adquire

os contornos mais relevantes.

69 Ver a análise deste texto realizada por Ibri em (IBRI, 2012). 70 Cf. W 2.193-211. 71 Há uma certa controvérsia acerca da natureza da filosofia de Peirce na fase da série cognitiva. Alguns

autores acreditam que Peirce à essa época era um nominalista e que paulatinamente iria abandonar tal

nominalismo em favor de um realismo de tipo radical, somente alcançado na sua filosofia de maturidade,

por exemplo (FISCH, 1986) e (ATKIN, 2016). De outro lado, há alguns autores que professam que Peirce

nunca foi propriamente um nominalista, mesmo em sua juventude, por exemplo (FAIRBANKS, 1976),

(FEIBLEMAN, 1969) e (CORRINGTON, 1993). Particularmente, pensamos ser essa última visão a mais

coerente. De modo que, os elementos supostamente nominalistas/cognitivistas da filosofia de juventude do

autor são, na verdade, a própria construção de uma filosofia complexa, que lutava, no próprio processo de

construção, contra concepções pré-estabelecidas de certos conceitos, na busca de uma expressão que

pudesse conjugar realismo e idealismo. Se Peirce conseguiu lograr tal expressão com êxito, é outra questão,

que se encontra fora do escopo deste trabalho.

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Peirce responde na negativa todas as perguntas acima. O que significa o seguinte

escopo: 1) o homem não é capaz de julgar intuitivamente se uma concepção foi

determinada por cognições prévias ou se tal cognição se refere imediatamente ao seu

objeto; 2) o homem não possui uma autoconsciência intuitiva; 3) o homem não possui o

poder intuitivo de distinguir entre os elementos subjetivos de tipos diferentes de

cognições; 4) o homem não é capaz de ter uma percepção direta do seu chamado mundo

interno, ou seja, o homem não possui poder de introspeção; 5) o homem não pode pensar

exceto por meio de signos; 6) não há signo que represente o absolutamente incognoscível;

7) não há signo não determinado por cognições prévias.

Vamos adentrar cada uma dessas capacidades ditas humanas para entender um

pouco melhor o que Peirce faz ao negá-las e propor essas teses polêmicas. É claro que

não será possível, e nem sequer necessário, no espaço deste trabalho, detalhar todos os

argumentos utilizados por Peirce. Nossa estratégia será apresentar o escopo geral de cada

uma das perguntas, analisar alguns argumentos principais e depois fechar com uma

discussão sintética sobre como fica a concepção peirciana de homem a partir dessas teses.

A resposta à primeira pergunta, recordando, se pela simples contemplação de uma

cognição, independentemente de qualquer conhecimento prévio e sem raciocinar por

meio de signos, somos capazes de julgar corretamente se tal cognição foi determinada

por uma cognição prévia ou se ela se refere imediatamente ao seu objeto, consiste em

uma das mais importantes teses cognitivas peircianas. Essa tese, em conjunto com a

sétima, instaura o conceito de semiose infinita no âmbito cognitivo, sobre a qual

voltaremos mais abaixo. Para entender o contexto da questão, deve-se, primeiramente,

entender como Peirce definia o que é uma intuição: “Ao longo deste paper, o termo

‘intuição’ será considerado como uma cognição não determinada por uma cognição

prévia do mesmo objeto, mas determinada por algo fora da consciência.” (W 2.193).

Uma intuição, assim, seria uma cognição totalmente determinada pelo objeto que se

encontra fora da consciência, determinação essa de tipo absolutamente direto. De modo

que, nota Peirce, tal cognição seria algo muito próximo de uma premissa que não é ela

mesma uma conclusão.72

Tendo em mente o que Peirce considerava ser uma intuição, o escopo da primeira

pergunta começa a ser clarificado. Uma coisa é ter uma intuição, outra coisa totalmente

72 Cf. W 2.193. E, como explica Peirce, os significados apenas não se equivalem absolutamente porque

premissas e conclusões são julgamentos, ao passo que intuições, tal qual definidas, são quaisquer cognições.

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diferente é saber que se trata de uma intuição, intuitivamente. E esse é o ponto de Peirce:

a intuição e a consciência da intuição estão sempre conectadas, o que daria ao homem a

capacidade de sempre poder distinguir entre uma intuição e uma cognição determinada

por outra? Em outros termos, podemos distinguir intuitivamente entre cognições que são

intuitivas e outras cognições que não o são? É essa capacidade que é negada por Peirce:

“Não há evidencias de que temos tal capacidade, exceto a de que sentimos que a temos”

(W 2.194, realce do autor).

Peirce aduz vários argumentos para justificar a sua polêmica negação. A começar

pela quase jocosa afirmação de que a suposta capacidade de distinguir intuitivamente

intuições de outros tipos de cognições não evitou que os homens disputassem

calorosamente acerca de quais cognições devem ser consideradas intuitivas.73 A história

da filosofia nos dá vários exemplos disso. Além do exemplo dado por Peirce, do peso

dado pelos pensadores medievais à autoridade da igreja e de Deus, e que caiu por terra na

modernidade, podemos também citar exemplos ainda mais internos à própria filosofia,

como as disputas entre os racionalistas e os céticos, e, na verdade, quaisquer disputas

entre diferentes escolas. Outro argumento bem interessante colocado por Peirce, consiste

na observável dificuldade que testemunhas têm em distinguir o que elas viram do que

inferiram, como, por exemplo, no caso de descrições de performances de médiuns

espirituais, truques de mágica e sonhos.74

O aprendizado da língua-materna por uma criança, que sempre terá muita

dificuldade em explicar como a aprendeu e que, ao ser questionada a esse respeito,

responderá, quase a totalidade das vezes, que sempre a conheceu ou que a conhece desde

que passou a ter algum tipo de senso; a distinção entre diferentes texturas de tecidos por

sentimento, mas não de tipo imediato, posta a necessidade de movimentar os dedos sobre

o tecido, o que implica em comparar as sensações em diferentes instantes; a apreensão da

tonalidade, que depende da rapidez da sucessão das vibrações sob o ouvido, são, também,

bons argumentos que parecem oferecer evidências de que as cognições podem ser

explicadas como sendo de natureza inferencial, não sendo necessária a apelação para uma

capacidade intuitiva que, na verdade, como veremos, configura uma apelação a um tipo

de incognoscível.

73 Cf. W 2.194. 74 Cf. idem, 195-196.

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No entanto, um dos argumentos mais contundentes que Peirce utiliza para negar

a tese de que temos uma capacidade intuitiva de distinguir uma intuição de outras

cognições é a que se refere à natureza inferencial das dimensões do espaço. Vamos ver

como Peirce constrói esse argumento com um pouco mais de detalhe. Em um primeiro

momento, as dimensões do espaço parecem ser objeto de intuição imediata. Mas,

argumenta Peirce:

Contudo, se tivéssemos de ver uma superfície estendida imediatamente,

nossas retinas deveriam estar espalhadas pela superfície estendida. Em

vez disso, a retina consiste em inúmeras agulhas que apontam para a

luz, sendo que as distâncias entre elas são definidamente maiores do

que o mínimo visível. (W 2.197-198)

Sendo assim, continua Peirce:

Suponhamos que cada um daqueles pontos nevrálgicos transmita a

sensação de uma pequena superfície colorida. Ainda assim, o que

vemos imediatamente deve ser, não uma superfície contínua, mas um

conjunto de pontos. Quem poderia descobrir isto por mera intuição? (W

2.198)

Essa discussão, na verdade, toca diretamente a concepção de continuidade do

autor75, que mais tarde em sua carreira receberia o nome de sinequismo, doutrina sobre a

qual ainda falaremos muito no contexto deste trabalho, sobretudo, se levarmos em

consideração o próprio aponte do autor acerca de que tudo o que for dito acerca da

natureza da nossa percepção do espaço, vale também para a nossa percepção da natureza

do tempo.76 No entanto:

[...] Todas as analogias referentes ao sistema nervoso vão contra a

suposição de que a excitação de um único nervo possa produzir uma

ideia tão complicada quanto à do espaço, por menor que ela seja. Se a

excitação de nenhum desses pontos nevrálgicos pode imediatamente

transmitir a impressão de espaço, a excitação de todos eles não pode. A

75 Elencamos os principais elementos da teoria da continuidade do autor em (ALMEIDA, 2014, cap. 4).

Para detalhes, consultar (IBRI, 1992), (ROSA, 2003), (POTTER; SHIELDS, 1977) e (ZALAMEA, 2012). 76 “Que o decorrer do tempo deveria ser imediatamente sentido é obviamente impossível. Porque neste

caso, deve haver um elemento deste sentimento a cada instante. Mas, em um instante não há nenhuma

duração e por isso, não há sentimento imediato de duração. Por essa razão, nenhum destes sentimentos

elementares é um sentimento imediato de duração; e diante disso, a sua soma também não o é. Em

oposição, as impressões de quaisquer momentos são muito complicadas e compostas por todas as imagens

(ou os elementos das imagens) dos sentidos e da memória, cuja complexidade é redutível a mediar a

simplicidade por meio da concepção do tempo.” (W 2.199).

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excitação de cada um deles produz alguma impressão (segundo as

analogias do sistema nervoso), por isso, a soma dessas impressões é

uma condição necessária a qualquer percepção produzida pela

excitação de todos os pontos nevrálgicos ou, em outros termos, uma

percepção produzida pela excitação de todos eles é determinada pelas

impressões mentais produzidas pela excitação de cada um deles. (W 2.

198)

E no que se refere, particularmente, à natureza da percepção da terceira dimensão

do espaço, Peirce é também contundente ao apontar como a certeza de que tal percepção

era absolutamente explicada como consistindo em uma intuição foi jogada por terra

quando da publicação do livro de Berkeley sobre a Visão, de modo que todos estão

prontos a admitir que a terceira dimensão é conhecida apenas por inferência, tal como

demonstra o clássico exemplo do ponto cego na retina.77 Assim, o argumento acerca da

natureza inferencial da percepção do espaço é “confirmada pelo fato de que a existência

da percepção do espaço pode ser completamente explicável pelas faculdades que

sabemos existir, sem supor que ela seja uma impressão imediata.”78

A resposta à segunda pergunta, recordando, se temos uma autoconsciência

intuitiva, oferece consequências intimamente ligadas ao escopo deste trabalho. Por isso,

teremos de adentrar um pouco mais profundamente em seus aspectos e consequências.

Vamos entender, primeiramente, a natureza da pergunta a ser respondida. Peirce entende

por autoconsciência algo bem específico, a saber, um conhecimento sobre nós mesmos

que não se reduz meramente a um sentimento das condições subjetivas de algum

conhecimento, mas se estende a um conhecimento da nossa própria pessoalidade.79 Em

outros termos: trata-se de saber qual é a natureza do reconhecimento do nosso eu privado,

ou seja, do reconhecimento de que eu e não meramente o “eu” em geral existe.

Conhecemos o nosso chamado eu privado por meio de uma capacidade intuitiva especial,

ou tal conhecimento é determinado por cognições prévias?

77 Cf. W 2.196-197. 78 W 2.198. 79 Por isso, Peirce busca deixar claro que o sentido de autoconsciência sobre o qual está falando deve ser

distinguido dos conceitos de consciência em geral, de sentido interno e da pura apercepção. Consciência

em geral é qualquer consciência de um objeto representado em uma cognição e qualquer cognição é uma

consciência de um objeto representado. O sentido interno é uma consciência das condições subjetivas gerais

da consciência. A apercepção pura do ego é a auto asserção do ego e, portanto, do eu em geral. (Cf. W

2.200-201). Entenderemos melhor esse último ponto ao estudarmos a lei da mente do autor, um pouco mais

para frente neste capítulo.

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Muito bem, a própria conclusão da tese anterior, de que não temos a capacidade

de distinguir intuitivamente entre uma intuição e outros tipos de cognição, depõe contra

a segunda capacidade reivindicada para o homem. Que evidências temos para considerar

justificado apelar para uma capacidade intuitiva de autoconsciência? Para Peirce o caso é

exatamente o contrário, ou seja, o fato de que apresentamos conhecimento sobre o nosso

eu privado pode ser completamente explicado por capacidades que sabemos existir e,

portanto, não precisamos apelar para uma causa incognoscível.

Para justificar a sua tese, Peirce desenvolve um argumento que podemos

considerar de fundamental importância para o tema aqui desenvolvido. Trata-se de uma

tese que o próprio Peirce reconhece como de caráter bem especulativo80, mas que, no

entanto, é mais suportado pelos fatos do que a capacidade intuitiva requerida. Vejamos o

argumento detidamente.

Primeiramente, Peirce nos lembra de que:

É primordial observar que, conhecidamente, as crianças muito

pequenas não apresentam uma autoconsciência. Já foi apontado por

Kant que o uso tardio da palavra comum ‘eu’ pelas crianças indica uma

autoconsciência imperfeita nelas, e isso, portanto - se é que nos é

possível emitir conclusões a respeito do estado mental daqueles que são

bem pequenos - vai de encontro a ideia de que existe qualquer

autoconsciência neles. (W 2.201)

Ainda hoje, os cientistas se dividem no que se refere a como responder quando,

exatamente, se pode dizer que uma criança apresenta um conhecimento sobre si mesma.

Veja que a questão não é a apresentação de algum tipo de atividade mental nas crianças

muito pequenas, ou seja, de algum tipo de pensamento, mas sim do que se encontra em

questão aqui, ou seja, a capacidade de conhecer o eu privado. Dizemos isso porque Peirce

está pronto a reconhecer que as crianças manifestam poderes de pensamento muito cedo

e que, inclusive, é muito difícil assinalar um momento em que uma criança já não

manifesta atividades mentais, comportamentos da natureza do pensamento,

indispensáveis para o seu próprio bem-estar.81 Exemplos muito simples disso, são a

própria capacidade de visão e os movimentos coordenados, desenvolvidos desde muito

cedo pela criança. Porém, acrescenta Peirce:

80 Cf. W 2.203. 81 Cf. W 2.201.

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As crianças mais jovens são frequentemente vistas observando o

próprio corpo com muita atenção. Este ato faz todo o sentido já que, do

ponto de vista da criança, seu corpo é o que há de mais importante no

universo. Apenas o que este corpo toca é que terá um sentimento atual

e presente; apenas o que este corpo vê é que terá uma cor verdadeira;

apenas o que está em sua boca é que terá um sabor genuíno. (W 2.201)

A centralidade do corpo para uma criança e o seu comportamento em relação a

ele configuram aspectos que devem ser analisados com bastante cuidado, por isso

continua Peirce:

Ninguém questiona que, quando um som é ouvido por uma criança, ela

não pensa nela mesma ouvindo-o, mas no sino ou noutro objeto como

ressoando. E quando ela tem vontade de mover uma mesa? Será que ela

pensa em si mesma como desejando ou apenas na mesa como apta para

ser movida? Que ela tem o último pensamento é evidente; que ela tem

o primeiro deve, até que seja provada a existência de uma

autoconsciência intuitiva, permanecer uma suposição arbitrária e sem

fundamento. (W 2.201-202)

Assim, tentar justificar o comportamento observável das crianças muito pequenas

em relação aos seus corpos e como elas o utilizam em relação ao mundo circundante como

sendo oriundos de um desejo próprio e autorreflexivo supõem a existência da capacidade

intuitiva de autoconsciência, e, logo, consiste em uma petição de princípio. Por outro lado,

se adotarmos, provisoriamente, a hipótese de que a criança na verdade manifesta o

pensamento de que, de algum modo, a mesa, por exemplo, é um objeto apto a ser movido,

e que tal pensamento, mesmo que rudimentar, determina o seu comportamento e a

direciona a mover a mesa, não só desaparece a necessidade de apelar para uma

autoconsciência intuitiva, como somos brindados também com um bom exemplo do

pragmatismo germinal do autor.82 Assim, a hipótese adotada para explicar esse fato

explica o fato mediante comportamentos observáveis e que sabemos, exatamente pela

observação, existirem. Em outros termos, explica o fato como causado por um tipo de

82 Sobre o pragmatismo, ou melhor, pragmaticismo do autor, e sua origem germinal nos escritos de

juventude, ver (ALMEIDA, 2014a). Para um pouco mais de detalhes, ver (ALMEIDA, 2014). Para mais

detalhes ainda, consultar (IBRI, 1992, capítulo 6), (HOOKWAY, 2002), (HOOKWAY, 2005),

(HOOKWAY, 2008), (HOOKWAY, 2012) e (HOUSER, 2003).

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manifestação mental, e a presença da mente é admitida, mas a presença da manifestação

mental não precisa supor um eu privado conhecido intuitivamente.

No entanto, Peirce não se contenta em apenas apontar esse fato observável. Na

verdade, ele parte deste fato observável em busca de um mapeamento acerca de quando,

possivelmente, pode-se dizer que surge na criança a capacidade de distinguir o seu eu

privado. Vejamos a sequência argumentativa:

Contudo, a criança logo há de descobrir por observação que as coisas

que estão prontas para serem mudadas estão, em realidade, aptas a

passar por tais mudanças após o contato com aquele corpo

particularmente importante, chamado Willy ou Johnny. Esta

consideração torna este corpo ainda mais importante e central na

medida em que estabelece uma conexão entre a prontidão de um objeto

que será mudado e a tendência daquele corpo em tocar o objeto antes

que o mesmo se transforme. (W 2.202)

E ainda:

A criança aprende a compreender a linguagem; isso quer dizer, uma

conexão entre certos sons e certos fatos é estabelecida em sua mente.

Previamente, a criança notou a conexão existente entre esses sons e os

movimentos labiais de corpos semelhantes ao corpo central e tentou

colocar as mãos naqueles lábios e descobriu que o som, nesta ocasião,

foi abafado. Consequentemente, ela conecta aquela linguagem aos

outros corpos de alguma forma semelhantes ao corpo central. Por meio

de esforços de tal modo não energéticos que poderiam ser chamados

mais de instintivos do que de experimentais, a criança aprende a

produzir esses sons. Então, ela começa a falar. (W 2.202)

De modo que parece ser factualmente evidente que há uma relação contundente

entre o aprendizado da língua materna e o surgimento da autoconsciência. Ou seja, o

aprendizado da língua83, que também ainda hoje divide os cientistas quanto ao modo

como ocorre, parecia à Peirce estar na raiz do surgimento da capacidade de se conhecer

o eu próprio. Por isso, conclui Peirce:

Deve ser por volta dessa época que a criança começa a perceber que o

que aquelas pessoas dizem a respeito dela é a melhor prova fatual. Tanto

83 Acerca das teorias divergentes e convergentes acerca da aquisição da linguagem e sua relação com a

consciência, ver, por exemplo, (LEFRANÇOIS, 2008), (PIAGET, 1986) e (PIAGET, 1975).

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que testemunhos são evidências ainda mais fortes do que os fatos em si

ou do que agora deve ser pensado como as próprias aparências. [...] a

criança ouve dizer que o forno está quente. Mas ele não está, diz ela; e

de fato, aquele corpo central não está tocando no forno, e só o que a

criança toca é que está quente ou frio. Porém, a criança coloca as mãos

sobre o forno e descobre a veracidade do testemunho de maneira

surpreendente. Assim, ela se torna consciente da ignorância, e é

necessário supor um “eu” no qual essa ignorância pode ser inerente.

Assim, o testemunho promove o raiar da autoconsciência. (W 2.202)

A importância do testemunho para o aprendizado das crianças parece estar ligada,

na filosofia de Peirce, a pelo menos dois fatores muito importantes. Primeiro, e talvez

mais importante, o testemunho está ligado à âncora no real, ou seja, no conceito de real

que o autor já defendia, em nossa opinião, à época em que escrevia esse texto. Segundo,

ao aspecto comunitário e social de todo processo semiótico que vise comunicar algo sobre

esse real. Voltaremos a isso no final do capítulo.

No entanto, Peirce encerra esse importante argumento dando um passo ainda mais

surpreendente:

Todavia, mais tarde, embora as aparências sejam apenas confirmadas

ou meramente apoiadas por testemunhos, ainda assim, há uma

determinada classe de aparências notáveis que são constantemente

contrariadas por testemunho. Elas são aqueles predicados que sabemos

ser emocionais, mas os quais a criança distingue por sua conexão com

os movimentos daquela pessoa central, ela (que a mesa quer mover-se,

etc.). Esses julgamentos são geralmente negados pelos outros. Ademais,

ela tem razão suficiente para pensar que os outros também fazem os

mesmos julgamentos que são veementemente negados por todos os

outros. Desta maneira, ele associa ao conceito de aparência como a

veracidade do fato, a concepção de algo privado e válido somente para

um corpo. Em resumo, erros aparecem e podem ser explicados somente

pela suposição de um ego falível.

[...] ignorância e erro são o que distinguem nossos egos privados do

ego absoluto da pura apercepção. (W 2.202-203 – itálicos nossos)

A passagem que acabamos de citar e que, basicamente, consiste na conclusão do

argumento no qual Peirce procura defender a sua tese de como surge a noção de

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autoconsciência nas crianças, parece introduzir um importante e polêmico aspecto da

filosofia do autor. A autoconsciência é explicada por Peirce como consistindo em uma

série contínua de complexas inferências, ou seja, atividades cognitivas, da natureza do

mental, que incluem, percepções, sensações, pensamentos, etc. e cuja conclusão é a

controversa afirmação de que consistimos em um centro de ignorância e erro.

Muitos comentadores têm criticado veementemente Peirce por essa caracterização

da natureza do eu, tomando-a como essencialmente negativa. Não é o caso de descermos

nos detalhes dessas críticas, pois esse não é foco do nosso trabalho. Porém, cabe notar

que Vincent Colapietro, considerado como autoridade no que se refere ao estudo da

concepção peirciana do eu, em sua obra Peirce’s Approach to the Self84, desenvolveu o

principal capítulo de seu livro, o capítulo quatro, intitulado Peirce’s account of the self:

a Developmental Perspective, a partir da tese de que “as visões de Peirce acerca do eu

têm sido apreciadas de maneira inadequada porque elas não foram estudadas a partir

de uma perspectiva desenvolvimentista”.85 A partir desse princípio, Colapietro procura

mostrar que, embora tais críticas, sobretudo as de Richard Bernstein e Manley Thompson

(que argumentam, cada qual à sua maneira que a abordagem peirciana do eu viciaria as

suas doutrinas de maturidade, particularmente a doutrina do autocontrole), tragam

importantes elementos para a discussão, não se pode dizer que elas foram feitas de

maneira totalmente justa com a filosofia de Peirce.86

Para Colapietro, a forma de mostrar como na verdade, Peirce possui muita coisa

de positiva para dizer acerca do “eu”, consiste em mostrar como Peirce partiu de uma

aparente caracterização negativa do status do indivíduo até chegar, por meio do

desenvolvimento do seu pensamento, ao complexo fator característico do “eu” como um

centro de interioridade e autonomia. Assim, Colapietro divide as fases do

desenvolvimento do pensamento de Peirce sobre o eu nas seguintes três etapas:

No primeiro momento deste desenvolvimento, encontramos uma

interpretação semiótica da consciência humana. [...] Não apenas os

conteúdos, mas também o próprio sujeito da consciência é interpretado

como um signo. O eu, ele mesmo, é um signo. No segundo momento,

encontramos a articulação sistemática de uma cosmologia evolutiva.

[...] No contexto dessa cosmologia, Peirce elaborou uma teoria da

84 (COALPIETRO, 1989). 85 (COLAPIETRO, 1989, p. 61). 86 Cf. (Idem, p. 65-67).

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personalidade. No terceiro momento, nós assistimos ao

desenvolvimento desta cosmologia, um desenvolvimento que incorpora

em si mesmo os discernimentos mais fundamentais da transformação

da semiótica inicial de Peirce. Fundamentais para esse desenvolvimento

são: a) a insistência de que a meta imanente do processo cósmico é o

contínuo crescimento da razoabilidade concreta; b) o reconhecimento

de que, em seus mais altos estágios, o crescimento dessa razoabilidade

acontece “cada vez mais e mais amplamente por meio do autocontrole”.

(COLAPIETRO, 1989, p.68)

Em nossa interpretação, Colapietro logra sucesso em mostrar que o

desenvolvimento do pensamento de Peirce leva a uma caracterização do eu como sendo

bem mais positiva e complexa do que o seu aparente começo negativo. Ou seja,

concordamos com o aspecto geral do argumento de Colapietro, ou seja, é geralmente

fatual que as passagens mais maturas de Peirce sobre o eu são mais positivas. Porém, um

ponto deve ser observado. Colapietro argumenta que a primeira abordagem que Peirce

deu sobre o eu, e que pode ser chamada de abordagem semiótica, conflita com a

abordagem presente em sua obra um pouco mais madura (e aqui ele se refere ao texto The

Law of Mind, que abordaremos também neste capítulo), que pode ser chamada de

mentalista, e que se caracterizaria por ser não e até mesmo antissemiótica; e que, enfim,

só é possível extrair uma abordagem positiva sobre o eu de dentro da perspectiva

semiótica levando em consideração as conclusões da última fase da abordagem peirciana

do eu, ou seja, a que incorpora os elementos semióticos da primeira fase em um contexto

maior e articulado com a questão da agência autônoma.87

Porém, e curiosamente, em nossa leitura do autor, parece-nos que ele está falando

mais de uma aparente tensão na filosofia de Peirce quanto às abordagens contidas nos

textos da série cognitiva e no da série The Monist do que propriamente de contradição,

ou seja, uma abordagem semiótica no primeiro momento e antissemiótica no segundo

momento, apesar de ele ter se expressado exatamente nesses termos. Isso pode ser

claramente observado na seguinte passagem: “Em um sentido, a abordagem do eu em

“Algumas Consequências” e em “A Lei da Mente” são o lado negativo e positivo da

mesma moeda.”88 Parece-nos que o próprio Colapietro, no final, não considera

contraditórias as teses presentes nos dois primeiros momentos, mas sim como

87 (COLAPIETRO, 1989, p. 68). 88 (Idem, p. 77).

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complementares, mas, no entanto, carentes de complemento ainda mais profundo na

noção de autonomia, conquistada somente na terceira fase, a mais madura do pensamento

de Peirce.

Como já dissemos, ainda neste capítulo, mas um pouco mais para frente,

trataremos do conceito de personalidade peirciano e, então, abordaremos o texto “A Lei

da Mente”. Porém, gostaríamos de notar que, por motivos talvez um pouco diferentes do

de Colapietro, não consideramos em nenhum momento serem as abordagens presentes

em “Questões referentes a certas capacidades ditas humanas” e em “A Lei da Mente”

opostas e mesmo em tensão. Em nossa leitura, a filosofia peirciana, caracterizada, desde

o seu início89, por uma união sui generis entre idealismo (objetivo) e realismo, faz com

que ambas as abordagens sejam, apesar de seus assentos particulares, totalmente

contínuas, de modo que se torna redundante falar em complementariedade de aparentes

tensões, não pela complementariedade, mas pelo termo tensão.

Retomando agora o texto que nos concerne neste momento, e para sermos ainda

mais claros, em nossa interpretação, a abordagem peirciana do eu, presente na conclusão

da passagem acima referida, que conclui sermos um centro de ignorância e erro quando

o escopo é designar a natureza do nosso conhecimento sobre o nosso eu privado, não é,

de nenhum modo negativa, desde que tenhamos em mente a natureza abrangente que está

por trás de todo o texto Questions Concerning Certain Faculties Claimed for Man e que

se estende para o próximo texto da série Some Consequences of four Incapacities. Em

outros termos, a abordagem semiótica do eu, tal como se apresenta nesses textos, deve

ser avaliada por aquilo que ela é e pelo escopo que pretende trabalhar. Porém, se o leitor

assim o tentar fazer, verá que, na verdade, os elementos desenvolvidos nas alegadas duas

fases posteriores por Colapietro, já estavam presentes, em germe, na suposta abordagem

negativa do eu privado como conhecido por meio da ignorância e do erro.

Essa interpretação, na verdade, está ligada aos dois aspectos importantes que

apontamos mais acima, presentes em um dos passos do argumento de Peirce.

Recordemos: 1) o testemunho está ligado à âncora no real; 2) o aspecto comunitário e

social de todo processo semiótico que vise comunicar algo sobre esse real. Tentemos ser

mais explícitos. O testemunho confirma ou desconfirma fatos, que se mostram como

89 Em (ALMEIDA 2014), analisamos em detalhes o Realismo e o Idealismo objetivo de Peirce. E em

ALMEIDA, 2014a, apresentamos algumas passagens dos textos iniciais da filosofia de Peirce que

consideramos serem uma antecipação do seu Idealismo Objetivo. Ver, particularmente, p. 218-219, e a nota

de rodapé 16.

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sendo independente da vontade da criança e ela apreende essas dimensões através do

elemento experiencial; esse é, segundo Peirce, o raiar da autoconsciência na criança muito

pequena pelo simples fato de que, por causa da confirmação ou não-confirmação dos

testemunhos, algo da natureza do privado deve ser suposto de maneira rudimentar para

explicar os elementos interpretativos opostos em relação ao fato experienciado, um que

aponta para o real, outro que aponta para o erro e a ignorância, mesmo que algo da

natureza da conclusão acerca de qual dos dois seja o caso em um estado de coisas

qualquer, muitas vezes só poderá ser decidido no futuro (in the long run) ou mesmo nunca

ser decidido, o que, como bem sabe o conhecedor atento do realismo peirciano, sobretudo

em sua descrição tardia, em nada muda a natureza do real. De outro lado, a criança já se

encontra inserida em uma comunidade, com a qual interage, com a qual aprende. A

criança, por meio do testemunho, que depende da aquisição da linguagem, inicia o seu

aprendizado, que durará para o resto da vida, que toda experiência é em sua essência

dialógica e só adquire significado quando há o compartilhamento, quando há acordo. O

conceito de homem em Peirce supõe a comunidade e, não é o homem, mas sim o real que

assim o determina. Voltaremos a isso no final desse capítulo.

Essa é, em essência, a nascente de uma visão de mundo radicalmente realista, mas,

ao mesmo tempo idealista, pois, o que rege a possibilidade de apreensão do real é a sua

natureza no fundo ideal, ou seja, sua natureza prenhe de signos. Em outros termos, trata-

se de um real cuja natureza última é ideal.90

Retomemos agora a sequência de perguntas do texto. A pergunta de número três,

recordando, se temos um poder intuitivo de distinguir entre os elementos subjetivos de

diferentes tipos de cognição, também se configura como de suma importância para o

entendimento de conceito de homem peirciano. Como fizemos com as duas anteriores,

vamos começar entendendo o que a pergunta, de fato, coloca em cheque, a saber: uma

vez que é possível dividir um cognição entre os seus elementos objetivos e subjetivos,

sendo o elemento objetivo aquilo que é representado na cognição, ou, em outros termos,

aquilo de que somos conscientes e sendo o elemento subjetivo uma ação ou paixão do

self por meio do qual o objeto é representado, e tendo em conta que a cognição, ela

90 Esse é um dos aprendizados que obtive com professor Ibri que mais marcaram a minha interpretação de

Peirce. Em minha interpretação, a obra pioneira de Ibri (IBRI, 1992) é o melhor documento no mundo dos

estudos peircianos que dá conta da arquitetura filosófica de Peirce a partir dessas duas dimensões

(realismo/idealismo objetivo) que são, na verdade, a chave de leitura, junto com as categorias

fenomenológicas, da obra peirciana como um todo.

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mesma, é uma intuição do seu elemento objetivo, seria possível que uma intuição do

elemento subjetivo, ou seja, um conhecimento imediato das características do elemento

subjetivo da cognição acompanhe toda e qualquer cognição?91 Em outros termos,

podemos distinguir, de maneira imediata, ou seja, intuitiva, se estamos a sonhar, a

imaginar, a conceber, etc., enfim, entre os nossos diferentes modos de consciência, ou

essa aparente capacidade dita humana também é explicável sem a necessidade de se apelar

para uma capacidade intuitiva?

A tese de Peirce, como o leitor já pode antever, é, exatamente, que não podemos

rogar tal capacidade e que o fato de efetivamente conseguirmos distinguir

aproximadamente os elementos subjetivos das nossas cognições é resultado de um

processo inferencial. Curiosamente, para Peirce, a diferença óbvia, por exemplo entre

imaginar ou sonhar e uma experiência atual, ou mesmo entre acreditar e conceber, não

configura um argumento a favor da existência da nossa capacidade intuitiva de distinguir

intuitivamente os elementos subjetivos das nossas cognições, mas, ao contrário, configura

um poderoso argumento contra essa capacidade.92 Pois, “o próprio fato de haver uma

imensa diferença nos objetos imediatos das sensações e imaginações, dá conta, de

maneira suficiente, da distinção entre essas faculdades.”93

Na quarta pergunta, recordando, se possuímos algum poder de introspecção ou se

todo o nosso conhecimento do mundo interior é derivado da observação dos fatos

externos, Peirce coloca em cheque a rogada capacidade humana de introspecção, ou seja,

a capacidade de perceber de maneira imediata o seu próprio mundo interior, embora não

necessariamente uma percepção deste mundo interior como sendo interno. A pergunta,

então, é: uma vez que alguns fatos são tomados normalmente como sendo externos e

outros como sendo internos, podemos dizer que conhecemos os fatos internos por uma

capacidade intuitiva ou tal conhecimento só é possível por meio de inferências a partir

dos fatos externos?94

Peirce começa por explicar que, em um certo sentido, é possível dizer que há uma

percepção de objetos internos, a saber, toda sensação é parcialmente determinada por

condições internas de modo que, uma sensação de vermelho, por exemplo, é tal como é

devido a constituição da mente. Em outros termos, quando temos uma sensação de

91 Cf. W 2.204. 92 Cf. W 2.204. 93 W 2. 205. 94 Cf. W 2.205-206

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vermelho nesse sentido, podemos dizer que tal sensação é de alguma coisa interna. Porém,

quando derivamos um conhecimento acerca da mente a partir de uma sensação de

vermelho, tal cognição será uma inferência do vermelho como sendo algo externo.95

Por outro lado, além das sensações, há os sentimentos, e esses, aparentemente não

parecem surgir primeiramente de inferências, ou seja, um sentimento, por exemplo, uma

emoção qualquer, não parece surgir primeiramente como predicado e, nesse caso, seria

possível que sentimentos fossem conhecidos por uma capacidade de introspecção. Porém,

a conclusão negativa para a pergunta anterior, que concluiu não termos a capacidade

intuitiva de distinguir entre diferentes tipos subjetivos de consciência, oferece o ponto de

partida para se responder a essa quarta pergunta na negativa também, pois, chegar a uma

cognição imediata acerca de que estou tendo uma emoção ou sentimento equivale a

distinguir imediatamente que estou tendo um tipo subjetivo específico de consciência.

No entanto, Peirce ainda vai mais longe, argumentando que é quase inquestionável

que há características relativas no mundo externo que fazem surgir os sentimentos. O que

significa dizer que sentimentos, no contexto cognitivo, são sempre predicados de objetos

externos. Pois, tal como Peirce explica:

[...] deve ser admitido que se um homem está nervoso, sua fúria não

implica, em geral, nenhum caráter determinado ou constante no seu

objeto. Contudo, por outro lado, mal pode ser questionado se há um

caráter relativo no objeto externo que provoque raiva, e uma pequena

reflexão servirá para mostrar que sua raiva vem do ato de repetir para

si mesmo que “isso é repugnante, abominável, etc.” e que este é um

bom motivo para dar razão à frase “estou furioso”. Da mesma forma

que uma emoção é uma predicação de um objeto, e a principal diferença

entre isso e um julgamento intelectual objetivo reside no fato de que

enquanto o último é relativo à natureza humana ou à mente em geral, o

primeiro refere-se a circunstâncias particulares e à disposição de um

homem específico em um determinado momento. (W 2.206)

Peirce finaliza o seu argumento mostrando que o mesmo raciocínio vale para o

caso do sentido de volição, pois a volição, que se distingue do desejo, é nada mais que a

capacidade de concentrar a atenção em um objeto ou de abstração, de modo que o

conhecimento acerca desta capacidade também é explicado como sendo oriundo de

95 Cf. W 2.206.

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inferências do mundo externo ou de objetos abstratos, da mesma maneira que o poder de

ver é inferido de objetos coloridos.96 Assim, conclui Peirce: “parece, portanto, que não

há razão para supor que haja um poder de introspecção; e, consequentemente, a única

maneira de investigar uma questão psicológica seria por inferência de fatos externos.”97

Ou, em outros termos, conhecemos a nós mesmos da mesma maneira que conhecemos o

mundo externo e por meio de inferências hipotéticas oriundas do mundo externo.

Na quinta pergunta, recordando, se podemos pensar sem signos, temos uma

conclusão que configura outro pilar da teoria da cognição peirciana. Este pilar, toca, entre

outras coisas, na questão da semiose ilimitada e da continuidade. O que é questionado é

se podemos ter qualquer cognição que não seja por meio de signos. Alegadas cognições

de natureza intuitiva e imediata são o contraponto. Obviamente, a conclusão de Peirce é

negativa e o seu argumento cabal pode ser vislumbrado na seguinte passagem:

Se procurarmos à luz dos fatos externos, os únicos casos de

pensamentos que podemos encontrar são aqueles referentes a signos.

Claramente, não há outro tipo de pensamento que possa ser evidenciado

por fatos externos. Mas, vimos que somente por meio dos fatos externos

é que os pensamentos podem ser conhecidos. O único pensamento,

portanto, que pode ser conhecido é aquele que se refere aos signos. Mas

pensamentos que não podem ser conhecidos não existem. Todo

pensamento, portanto, deve necessariamente ser por signos. (W 2.207)

Toda cognição, para Peirce, é de natureza inferencial e isso implica também que

todo conhecimento envolve signos, ou seja, envolve um processo de representação

contínuo. Tais elementos, em conjunto, é claro, com todos os anteriores, possuem uma

notável implicação na visão peirciana do homem e, como pontos de costura, encontram-

se em estreita ligação com as duas próximas e últimas perguntas. Assim, vamos, antes

de amarrar o insight peirciano acerca da natureza do homem no contexto da sua teoria da

cognição, abordar as duas últimas perguntas do ensaio.

A pergunta seis, recordando se um signo pode ter qualquer significado se, por

definição, ele é signo de algo absolutamente incognoscível, traz à nota uma marca do

pensamento de Peirce, a saber, a sua recusa em admitir qualquer tipo de origem

incognoscível para o conhecimento, ou seja, a sua recusa a qualquer apelo para um objeto

96 Cf. W 2.207. 97 W 2.207.

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transcendental que vise justificar o conhecimento que podemos ter. Apesar de sua grande

admiração por Kant, algo conhecido de qualquer estudioso do autor, e de seu começo em

filosofia por assim dizer “kantiano”, Peirce muito cedo se desvencilha deste elemento do

pensamento de Kant. Não vem ao caso entrar em detalhes aqui sobre o quão cedo isso

ocorreu, mas deixemos apenas registrado que, em nossa leitura do autor, desde o início

de seus escritos filosóficos, muito embora com uma linguagem que, por vezes, sugeria

uma certa imprecisão, Peirce já iniciara uma construção que, claramente, anunciava um

direcionamento consciente de afastamento do kantismo, mas também do empirismo e do

idealismo, em suas versões puras, pois, seu pensamento continha alguns elementos de

todos, em busca de uma resposta própria, que acabaria por culminar em seu Sinequismo,

enquanto doutrina que abarca todas as outras doutrinas e ciências de sua arquitetura

filosófica.98

Com escusas da pequena digressão, voltando à pergunta seis, Peirce defende a sua

tese, a saber, que não há signo de algo absolutamente incognoscível, argumentando que

todas as nossas concepções são obtidas por abstrações e combinações de cognições que

ocorrem na experiência e, de acordo com isso, uma vez que nada da natureza do

absolutamente incognoscível ocorre na experiência, não é factível supor que tenhamos

qualquer concepção do absolutamente incognoscível.99 Por que Peirce segue esse

caminho argumentativo? Ele o segue porque os tipos de argumentos usados por aqueles

que defendem haver conhecimento do absolutamente incognoscível resumem-se em

defender que as proposições universais hipotéticas, do tipo “todos os ruminantes são

fissípedes” envolvem um elemento incognoscível, pois, não importa quantos animais

ruminantes tenhamos experienciado, sempre permanecerá um resíduo incognoscível, ou

seja, pode haver animais ruminantes que não experienciamos e que podem não possuir a

qualidade predicada na proposição hipotética. Neste caso, trata-se de mostrar que muito

embora a verdade das proposições universais hipotéticas não possa ser conhecida com

absoluta certeza, sua verdade pode ser conhecida de maneira provável, ou seja,

indutivamente.100 Assim, chega-se a uma conclusão muito importante:

[…] a ignorância e o erro somente podem ser concebidos como

correlativos a um conhecimento e uma verdade reais, que

98 Cf. MS 52(921): “Lista de coisas horríveis que eu sou – Realista, Materialista, Transcendentalista,

Idealista.”; Ver também (ALMEIDA, 2014a). 99 Cf. W 2.208. 100 Cf. W 2.208-209.

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posteriormente são de natureza das cognições. Em contraposição a

qualquer cognição, há uma realidade desconhecida, mas passível de ser

conhecida; em contraposição a qualquer cognição possível, existe

apenas a autocontradição. Em resumo, cognoscibilidade (no seu sentido

mais amplo) e ser são não apenas metafisicamente a mesma coisa, mas

também termos sinônimos. (W 2.208)

Em nossa visão, essa passagem é mais um indício de que o realismo e o idealismo

objetivo do autor caminham juntos e estão intimamente relacionados com a sua teoria da

cognição, bem como influenciam de maneira notável a sua concepção de homem.

Na sétima e última pergunta, recordando, se há alguma cognição não determinada

por uma cognição prévia, o que está em jogo é se, dada uma cognição, podemos

estabelecer uma série de cognições prévias que determinaram essa cognição até o ponto

em que encontramos, no início da série, a fonte de toda a série, ou seja, algo que estaria

fora da série de cognições e, assim, determinaria de maneira direta e imediata a primeira

cognição da série, uma vez que se assim não o fosse, uma cognição em qualquer momento

estaria completamente determinada, de acordo com leis lógicas, pelo nosso estado

cognitivo em qualquer momento passado.101

Peirce defende, como já pode antecipar o leitor, que os fatos observáveis na

experiência apontam para a conclusão de não haver necessidade de se apelar para uma

fonte de natureza intuitiva e indubitável para a série cognitiva, e, nesse sentido, a resposta

para essa pergunta sete é consequência da resposta negativa dada para a primeira questão.

Uma cognição só existe na medida direta em que é conhecida102, porém, para Peirce, tal

como vimos, não é possível saber de maneira intuitiva se uma cognição é ou não

determinada por uma anterior, pois isso seria o mesmo que saber intuitivamente que tipo

de conteúdo de consciência temos no ato de uma dada cognição; sendo assim, só podemos

saber algo sobre uma cognição por meio de inferências hipotéticas a partir de fatos

observados.

Ora, mostrar quais cognições determinam uma dada cognição, é exatamente a

única forma de explicar uma dada cognição. O primeiro termo da série, que seria

imediatamente conhecido e configuraria a fonte indubitável da série consiste exatamente

em um termo último, que não precisaria de explicação. Isso equivale a dizer que o suposto

101 Cf. W 2.209. 102 Cf. W 2.210.

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ponto de partida da cognição seria um determinante inexplicável, ou seja, quando

atingimos esse ponto discreto da série estamos diante de algo absolutamente fora da

consciência e acabamos de descobrir na pergunta anterior, que Peirce não admite haver

signo que represente algo absolutamente incognoscível.

Uma objeção que poderia ser feita a essa exposição negativa do suposto caráter

absoluto da fonte intuitiva da série de cognições seria a argumentação de que um caráter

peculiar percebido, por exemplo, o caráter peculiar de uma cor qualquer não é, no mundo

experiencial, determinado por cognições prévias. A resposta que Peirce dá a essa objeção

configura, para nós, uma interessante passagem que sugere o porquê não se pode dizer

que Peirce era um cognitivista extremo, ou se quiserem, um autor saindo, mas ainda com

o pé no nominalismo: “Eu respondo que aquele caráter não é um caráter do vermelho

como cognição; porque se há um homem para o qual as coisas vermelhas parecem azuis,

como para mim, e vice-versa, então os olhos deste homem o ensinam os mesmos fatos

que ensinariam se ele fosse como eu.”103 Parece haver nessa passagem uma indicação, se

não clara, ao menos latente, de que há uma profunda ontologia por detrás dessa teoria da

cognição, uma que reserva lugar, no interior de seu realismo e idealismo objetivo, para as

coisas que, embora sejam relativas à mente (qualquer mente e, eis o seu aspecto idealista),

são independentes da mente (e eis o seu aspecto realista) quando o foco é a sua cognição

possível.

Mas, então, como Peirce explica o processo serial da cognição? Trata-se, junto

com a tese exibida na primeira pergunta, da fundação da noção de semiose ilimitada, da

qual já havíamos falado um pouco mais acima e que agora chegou o momento de entender

um pouquinho melhor. Para isso, vale examinar o argumento de Peirce na íntegra, apesar

de ser uma passagem relativamente longa:

Se refizermos nosso caminho de volta da conclusão às premissas, ou de

cognições determinadas para aquelas que as determinam, nós

finalmente chegaremos, em todos os casos, a um ponto além do qual a

consciência da cognição determinada é mais viva do que a própria

cognição que a determina. (W 2.210)

Note o leitor que em nenhum momento Peirce se afasta do contexto cognitivo

nessa passagem. Não há objeto transcendental. A questão, assim, é de grau ou vivacidade

103 W 2.209.

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da consciência sempre inserida na série. Como se pode depreender dos exemplos dados

por Peirce e que resumem, em certa medida, pontos abordados nas perguntas anteriores:

Nós possuímos uma consciência menos viva sobre a cognição que

determina a nossa cognição da terceira dimensão do que da própria

cognição anterior; uma consciência menos viva que determina a nossa

cognição de uma superfície contínua (sem um ponto cego) do que sua

própria cognição anterior; e uma consciência menos viva das

impressões que determinam a sensação de tom do que daquela própria

sensação. De fato, quando nos aproximamos suficientemente do

exterior, esta é a regra universal. (W 2.210)

A partir desse esclarecimento, Peirce propõe um experimento para nos ajudar a

discernir se, em uma dada série cognitiva, realmente temos de chegar a um ponto

primeiro, absolutamente fora da consciência. Vejamos a passagem na íntegra:

Agora, deixemos que qualquer linha horizontal represente uma

cognição, e que tal linha sirva como medida (por assim dizer) da

vivacidade da consciência acerca daquela cognição. Um ponto, que não

tem nenhum comprimento, representará, neste princípio, um objeto

absolutamente fora da consciência. Deixemos que uma linha horizontal

abaixo de outra represente uma cognição que determina a mesma

cognição representada pela outra linha e que possui o mesmo objeto que

a anterior. Deixemos que a distância finita entre essas duas linhas

represente duas cognições diferentes. Com este auxílio, vejamos se

“deve haver uma que venha primeiro”. Suponha que um triângulo

invertido Y seja gradualmente submergido em água.

Em qualquer momento ou instante, a superfície da água forma uma

linha horizontal, transversal ao triângulo. Esta linha representa uma

cognição. Em uma data subsequente, há uma linha seccional feita acima

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do triângulo. Ela representa outra cognição do mesmo objeto

determinada pela anterior, e detém uma consciência mais viva.

O vértice do triângulo representa o objeto externo à mente que

determina ambas as cognições. O estado do triângulo antes de entrar em

contato com a água, representa um estado de cognição que não possui

nada que determine as cognições subsequentes. Desta maneira, dizer

que há um estado de cognição pelo qual todas as cognições

subsequentes de um dado objeto não são determinadas, devendo haver

posteriormente algum tipo de cognição daquele objeto que não seja

definido por cognições anteriores do mesmo é o mesmo que dizer que

quando aquele triângulo é submergido na água, deve haver uma linha

seccional, formada pela superfície da água, abaixo da qual nenhuma

superfície de linha tenha sido feita daquela maneira. Mas, desenhe a

linha horizontal onde quiser, quantas linhas quiser podem ser postas a

distâncias finitas umas das outras porque qualquer secção está a alguma

distância acima do vértice, senão não é uma linha. Chamemos esta

distância de “a”. Sendo assim, secções semelhantes existiriam nas

distâncias 1/2a, 1/4a, 1/8a, 1/16a, acima do vértice, e assim por diante

até onde você queira.

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[…] Portanto, não é verdade que deva haver uma primeira. (W 2.210-

211 – Os diagramas ilustrativos são de nossa autoria)

Isso toca o coração da teoria da continuidade de Peirce.104 Peirce não está

afirmando que não há começo da série no tempo, mas sim que a série começa

gradualmente, ou seja, ela é contínua dentro do contexto cognitivo. Por isso, continua

Peirce:

Explique as dificuldades lógicas deste paradoxo (idênticas àquelas de

Aquiles) da maneira que quiser. Estou feliz com o resultado, desde que

seus princípios sejam absolutamente aplicáveis ao caso particular das

cognições que determinam umas às outras. Negue o movimento, se

parece adequado fazê-lo; apenas então negue o processo de

determinação de uma cognição por outra. Diga que instantes e linhas

são ficções; mas também diga que estados de cognição e julgamentos

são ficções. O ponto em que se insiste aqui não é essa ou aquela solução

lógica da dificuldade, mas meramente que a cognição surge de um

processo de começar, tal como qualquer outra mudança. (W 2.210-211)

Uma vez que só podemos pensar por meio de signos e não há cognição que não

seja determinada por uma cognição anterior, a série cognitiva, requerendo o tempo, deve

ser contínua, com um começo gradual e com cada cognição sendo interpretada em outra

cognição posterior, sem um fim assinalável, exceto, talvez, a morte.105 Numa versão

lógica, trata-se de reconhecer que, ao concluirmos não haver intuições, segue-se que toda

premissa em qualquer processo de pensamento é ela mesma uma conclusão obtida por

inferências a partir de outras premissas e, assim, o conhecimento se torna uma série com

começo e fim indefinidos. Esse aspecto da teoria peirciana da cognição, comumente

referida como semiose ilimitada, se refere ao pensamento geral de Peirce que prediz não

haver exceção para a lei de que todo signo-pensamento é interpretado em um signo

subsequente.106

Essa noção de que o pensamento é um processo contínuo tem profundas

consequências para a concepção peirciana de homem e, assim, oferece a ocasião para

fazermos um movimento final de fechamento dessa nossa incursão na teoria da cognição

104 Introduzimos de maneira propedêutica o conceito de continuidade em Peirce em (ALMEIDA, 2014). 105 E isso toca a questão da imortalidade de maneira direta. Voltaremos a isso no capítulo 2. 106 Cf. W.224. Thomas Short (SHORT, 2007) disputa esse ponto, argumentando que o interpretante último

de um signo consiste em um hábito e não é necessário que haja um interpretante posterior. Acreditamos

não estar correta essa interpretação, simplesmente porque o surgimento de um hábito não anula a série,

apenas a torna habitual, por assim dizer, mantendo intacta a possibilidade de rompimento e crescimento.

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de Peirce trazendo alguns elementos presentes no texto posterior da série sobre a

cognição, o já referido “Algumas consequências de quatro incapacidades”, que

completam o que expusemos até aqui.

No texto “Algumas Consequências de quatro incapacidades”107, Peirce procura,

como o próprio nome do artigo sugere, explorar as consequências das conclusões a que

chegou em “Questões referentes à certas capacidades ditas humanas”. A estratégia aqui

não é entrar em muitos detalhes deste artigo, mas sim, ir direto, em um movimento de

fechamento, ao papel exercido pela teoria da cognição na concepção peirciana de homem.

Assim, importa-nos verificar como Peirce, a partir das conclusões que acabamos de

analisar com mais detalhes, desenvolve neste texto a sua abordagem acerca da forma de

ser da mente no que se refere ao homem, em ligação com a sua teoria da realidade. Mas,

antes de passarmos diretamente para o que nos importa aqui, convém uma brevíssima

apresentação do escopo geral do texto.

Logo no início do texto, Peirce procura efetuar uma síntese do que considerou ser

o espírito contra o qual construiu os textos da série sobre a cognição:

Descartes é o pai da filosofia moderna, e o espírito do cartesianismo –

o qual o distingue do escolasticismo que ele substituiu – pode ser

concisamente definido como se segue:

1. Ele ensina que a filosofia deve começar com a dúvida universal;

enquanto o escolasticismo nunca havia questionado seus fundamentos.

2. Ele ensina que o teste último da certeza deve ser encontrado na

consciência individual; enquanto o escolasticismo havia repousado no

testemunho dos sábios e da Igreja Católica.

3. A argumentação multiforme da Idade Média é substituída pelas

premissas.

4. A Escolástica tinha seus mistérios de fé, mas buscou explicar todas

as coisas criadas. Porém, há muitos fatos que o Cartesianismo não

apenas não explica, como também mantém absolutamente

inexplicáveis, a menos que dizer “Deus assim o fez” seja considerado

uma explicação. (W 2.211-212)

Peirce estava convicto de que a maioria dos filósofos modernos eram, na verdade,

cartesianos por adotarem um ou mais dos pilares acima expostos ou mesmo

consequências desses pilares. De outro lado, para Peirce, tratava-se de se contrapor a esses

107 W 2. 211-242.

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pilares da filosofia moderna no intuito de erguer uma base filosófica sólida sob a qual

podem se sustentar a ciência e a lógica modernas. Foi com esse intuito em mente que os

textos da série sobre a cognição foram construídos. Suas teses podem ser chamadas de

anticartesianas e, como ponto de partida, devem adotar uma perspectiva bem diferente da

do cartesianismo, que, resumindo, seria:

1) Não devemos iniciar uma filosofia, teoria ou qualquer coisa da natureza do pensamento

pela absoluta dúvida, mas sim com todos os pré-conceitos que temos no momento em que

começamos a pensar acerca de algo. Dúvidas devem ser reais e não meramente fingidas,

ou seja, no longo do caminho, se houver razão positiva para duvidar, duvidemos, em

busca da teoria que mais se aproxima do real. “Não pretendamos duvidar em filosofia do

que não duvidamos em nossos corações.”108

2) Não devemos adotar como critério que “qualquer coisa da qual estejamos claramente

convencidos, é verdadeira”, como prega o espírito do cartesianismo, pois isso equivaleria

a tornar o indivíduo juiz absoluto da verdade, o que configura para Peirce uma terrível

perniciosidade. Enquanto indivíduos, não podemos esperar razoavelmente encontrar

(attain) a filosofia última que procuramos, ao invés disso, e num espírito verdadeiramente

científico, devemos procurar (seek) por isso na comunidade de filósofos.

3) A filosofia deve procurar imitar os métodos utilizados pelas ciências bem-sucedidas,

ou seja, deve partir de premissas observáveis e que podem ser expostas a cuidadosas

análises objetivas. A filosofia deve desconfiar de conclusões últimas e únicas e favorecer

a variedade de argumentos, pois “seu raciocínio não deveria formar uma corrente que

não é mais forte do que sua ligação mais fraca, mas um cabo cujas fibras podem ser

muito finas, desde que sejam suficientemente numerosas e intimamente conectadas.”109

4) Devemos excluir da filosofia o apelo a algo absolutamente inexplicável, o que, segundo

Peirce, toda filosofia não-idealista supõe110. Pois, supor que algo que é resultado de uma

mediação, mas não é, por sua vez, susceptível de mediação só pode ser feito por meio de

raciocínio por signos, mas, uma tal suposição só possui sentido se, no final, consegue

explicar os fatos e isso é exatamente o que uma tal suposição não faz, pois, supor um fato

108 W 2.212. 109 W 2.213. 110 Cf. W 2.213. Interessante passagem que configura mais uma prova, a nosso ver, de que Peirce era, desde

sempre, um idealista objetivo e realista.

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como sendo inexplicável é não o explicar. Tal procedimento não pode ser logicamente

admitido.

Após explicar as bases de uma filosofia mais adequada ao espírito científico

moderno, Peirce sintetiza os resultados obtidos no artigo anterior:

Na última edição deste periódico será encontrado um artigo intitulado

“Questões referentes a certas faculdades ditas humanas”, que foi escrito

num espírito de oposição ao Cartesianismo. Aquela crítica a certas

faculdades resultou em quatro negações, que por conveniência, podem

ser aqui repetidas:

1. Não possuímos um poder de introspecção, mas todo o

conhecimento do mundo interno é derivado por raciocínio

hipotético do nosso conhecimento dos fatos externos.

2. Não possuímos poder de intuição, mas toda cognição é determinada

de maneira lógica por cognições prévias.

3. Não podemos pensar sem signos.

4. Não possuímos uma concepção do absolutamente incognoscível.

(W 2.213)

Essas são as quatro incapacidades que dão o tom do restante do artigo, pois, como

o próprio Peirce afirma, elas não podem ser tomadas como certas de maneira acrítica e,

assim, o artigo pretenderá, exatamente, colocá-las em teste, a partir de um processo de

explicação por séries cognitivas, exatamente como exposto no texto anterior. Peirce

propõe um processo específico, a saber, o processo de inferências válidas, pois, este é um

processo cujas leis são bem conhecidas e seguem mais de perto os fatos exteriores.111 Para

Peirce:

[O processo de inferências válidas] procede da sua premissa, A, à sua

conclusão, B, apenas se, em realidade, quando uma proposição como B

é sempre ou normalmente verdadeira quando uma proposição como A

também é verdadeira. É uma consequência, portanto, dos primeiros dois

princípios cujos resultados investigaremos, que devemos, desde que

possamos e sem que haja qualquer outra suposição além daquela que a

mente raciocina, reduzir toda a atividade mental à formula do raciocínio

válido. (W 2.214)

111 W 2.214.

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Peirce, então, tem como estratégia mostrar como é possível reduzir todas as ações

mentais à fórmula do raciocínio válido. Na verdade, Peirce mantém o pensamento de que

esse processo se encontra exemplificado à exaustão pela experiência, de modo que se

pode dizer que “algo acontece dentro do organismo que é equivalente ao processo

silogístico.”112 E, no exemplo dado por Peirce, já encontramos uma antecipação do seu

pragmatismo:

Contudo, será que a mente de fato passa por este processo silogístico?

É certamente muito duvidoso se uma conclusão – como algo que existe

na mente de maneira independente, como uma imagem – de repente

substitui duas premissas existentes na mente de maneira semelhante.

Mas é uma questão de experiência contínua o fato de que se um homem

é feito para acreditar em tais premissas, no sentido de que ele agirá a

partir delas e dirá que elas são verdadeiras, sob condições favoráveis,

ele também estará pronto para agir a partir da conclusão e dizer que ela

é verdadeira. (W 2.214)

Qualquer modificação da consciência, ocorrendo por meio de signos é, para

Peirce, obtido por um processo de inferência válido, mesmo as proposições que por

ventura sejam descobertas como sendo falsas ou falaciosas.113 O processo inferencial é

válido e isso é o que grande parte do restante do artigo busca, tecnicamente, mostrar

usando como exemplos elementos que buscam explorar e esclarecer os já anunciados no

artigo anterior, somados a uma relativamente minuciosa exposição da teoria dos signos

de Peirce, tal como pensada à época.114 Como adiantamos, não é nossa intenção descer

nos detalhes das argumentações deste artigo, de modo que podemos agora, após essa

breve apresentação do escopo geral do artigo, ir direto ao ponto que nos interessa para

fazer o fechamento da teoria da cognição e sua influência na concepção peirciana de

homem.

O movimento final do texto “Algumas consequências de quatro incapacidades”

retoma a questão acerca de como o homem deve ser considerado dentro de uma filosofia

que se encontra sustentada em uma plataforma anticartesiana. E perguntar como o homem

deve ser considerado equivale a perguntar, pragmaticamente, diria Peirce um pouco mais

112 W 2.214. 113 Para a demonstração completa de Peirce sobre a validade dos processos inferenciais, ver W 2.214-238. 114 Ver em nossa propedêutica (ALMEIDA, 2014) os elementos mais importantes da teoria semiótica

peirciana para o entendimento da presente tese. Ver também, (SANTAELLA, 2004a), (DELADELLE,

2000) e (LISZKA, 1996). Para mais detalhes, ver SS.

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tarde, como se comporta ou como se manifesta fenomenicamente neste ser a mente.

Vejamos como Peirce argumenta em favor dessa tese.

Vimos que o conteúdo da consciência, o fenômeno inteiro de

manifestação da mente, é um signo que resulta de uma inferência. Com

base neste princípio, portanto, o absolutamente incognoscível não

existe, de modo que a manifestação fenomenal de uma substância é a

própria substância, e, assim, devemos concluir que a mente é um signo

em desenvolvimento segundo as leis da inferência. (W 2.240)

Essa descrição, tal como prescreverá mais tarde o idealismo objetivo do autor,

vale para qualquer atividade mental, enquanto manifestação objetiva. No que se refere ao

homem, em particular, uma vez que todo pensamento apenas se dá por meio de signos, o

homem deve ser considerado, ele mesmo, um signo se desenvolvendo de acordo com as

leis da inferência, na medida direta que o homem é a manifestação dos seus pensamentos

no mundo externo, pois:

[…] a palavra ou signo que o homem usa é o próprio homem. Porque,

dado o fato de que todo pensamento é um signo, em conjunção com o

fato de que a vida é um fluxo de pensamentos, prova que o homem é

um signo; deste modo, o fato de que cada pensamento é um signo

externo prova que o homem é um signo externo. Isso equivale a dizer

que o homem e o signo externo são idênticos, no mesmo sentido que as

palavras “homo” e “homem” também são idênticas. Sendo assim,

minha linguagem é a soma total de mim mesmo; porque o homem é o

pensamento. (W 2.241)

Isso quer dizer que, como já vimos um pouco mais acima, para Peirce, qualquer

coisa que se apresente à nossa consciência é uma manifestação fenomênica de nós

mesmos, mas, o objeto que assim se manifesta para nós, de outro lado, possui direito

ontológico, garantido pelo realismo/idealismo objetivo do autor e pela sua recusa do

conceito de coisa-em-si kantiano, e, portanto, o fato de ser uma manifestação de nós

mesmos, não proíbe tal objeto de ser, também, algo independente dessa manifestação.

Esse posicionamento é muito bem explicado por Peirce na seguinte passagem:

A todo momento, estamos em posse de determinadas informações, ou

seja, de cognições que foram logicamente derivadas por indução e

hipótese de cognições prévias que são menos gerais, menos distintas, e

das quais temos uma consciência menos viva. Estas, por sua vez, foram

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derivadas de outras ainda menos gerais e menos vivas; e assim por

diante, até o primeiro ideal, que é quase singular, e quase fora da

consciência. O primeiro ideal é a coisa-em-si particular. Ela não existe

como tal. Ou seja, não há coisa alguma que seja nela-mesma no sentido

de não ser relativa à mente, embora coisas relacionadas à mente sejam

indubitavelmente independentes dessa relação. (W 2.238-239)

A forma como Peirce chega neste texto ao conceito de homem como um signo é,

essencialmente parecido com o desenvolvido na Lowell Lecture XI, por isso, omitimos o

processo de comparação entre o homem e a palavra, que basicamente se repetiu. No

entanto, onde naquele texto a bifurcação da definição da essência do homem levava aos

conceitos de uma possível imortalidade do homem e a uma concepção trinitária de Deus,

neste texto leva a afirmação do caráter real/ideal do universo e a noção de comunidade

como o apanágio da essência do homem em detrimento de sua individualidade, ou seja,

como o lugar onde a aproximação do real é mais razoável em relação às idiossincrasias

individuais.115 Assim, ambas as abordagens, tomadas em conjunto, se complementam.

Enfim, para entender a concepção de homem aqui exibida por Peirce, cabe reter

que o processo contínuo da manifestação cognitiva do homem equivale ao processo por

meio do qual ele pode procurar a expressão do real e do verdadeiro (proposições que

expressam de maneira aproximada o real) através de seus pensamentos e condutas no

interior de uma comunidade, ou seja, como um ser social, pois:

[Um] pensamento é o que é, apenas pela sua virtude de referir-se a um

pensamento futuro, que é, em seu valor, pensado de maneira idêntica,

porém mais desenvolvido. Desta maneira, a existência do pensamento

agora depende do que haverá no futuro; portanto, sua existência é

apenas potencial já que depende do pensamento futuro da comunidade.

(W 2.241)

Trata-se de uma concepção do homem por demais desafiadora, e Peirce estava

bem consciente disso:

É difícil para um homem entender isto porque ele insiste em identificar-

se com sua vontade, com seu poder sobre o organismo animal, com sua

força bruta. Agora, o organismo é apenas um instrumento do

pensamento. Mas a identidade de um homem consiste no que ele faz ou

115 Voltaremos a tratar com mais detalhes no fim deste capítulo do papel essencial da comunidade na

filosofia de Peirce.

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pensa, e tal consistência é o caráter intelectual de uma coisa; ou seja, é

o seu expressar algo. (W 2.241)

E se levarmos em conta a herança cartesiana, que insistia, por meio de sua

influência constante em diversas escolas de filosofia contemporâneas de Peirce, em

identificar tudo o que é da natureza do significado única e exclusivamente com a

subjetividade humana, a concepção peirciana parece ir para o outro extremo, ao tornar o

organismo um mero instrumento do pensamento, e eliminar a noção de individualidade

do homem em detrimento da comunidade. O leitor já teve a oportunidade de saber, ao

mencionarmos o estudo de Colapietro da subjetividade humana um pouco mais acima,

que até mesmo estudiosos de Peirce pensaram assim. Mas essa linha de pensamento,

configura um ledo engano. Esse é um problema que se encontra no âmago da principal

doutrina da arquitetura filosófica do autor, o Sinequismo116, pois, no interior de um

contínuo todo elemento discreto encontra-se imerso, não havendo lugar para

descontinuidades absolutas. Na verdade, o que Peirce nega não é que haja individualidade

no que se refere ao homem (ou mesmo no que se refere a qualquer outro objeto), mas sim

que tal individualidade seja absoluta e última, que é o que está implicado nas filosofias

cujo pilar se encontra na subjetividade humana e seus derivados.

Vamos entender um pouco melhor esse movimento do pensamento peirciano,

embora tal movimento configure uma espécie de digressão, envolvendo, inclusive,

desenvolvimentos posteriores da filosofia do autor, e para a qual já pedimos, de antemão,

as escusas do leitor. Peirce mostrou que “[…] em uma linha contínua não há pontos (onde

a linha é contínua), há apenas espaço para pontos, possibilidades de pontos.”117 Essa

característica, afeita à idealidade inerente ao contínuo, se refere, em geral, a qualquer

coisa que seja uma manifestação de uma continuidade que, para Peirce, é pervasiva. De

outro lado, ainda segundo Peirce, “[...] a realidade da continuidade aparece mais

claramente em referência ao fenômeno mental; e é mostrado que cada conceito geral é,

em referência aos seus individuais, estritamente um continuum.”118 Ora, sendo o homem,

conforme vimos, a qualquer momento a manifestação fenomenal do que está

continuamente em sua consciência, a forma como a mente se manifesta em sua conduta

116 Elaboramos uma introdução ao Sinequismo do autor em nossa propedêutica à essa tese (ALMEIDA,

2014), de modo que aqui apenas completaremos o que é necessário para o acompanhamento textual. 117 NEM 4.330. 118 NEM 4.358.

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é a forma como o homem deve ser conceituado, de acordo com o pragmatismo do autor.

Assim:

[…] a extraordinária disposição da mente humana em pensar tudo sob

a forma difícil e incompreensível de um continuum somente pode ser

explicada pela suposição de que cada um de nós somos em nossa

própria natureza um continuum. Não vou perturbá-los com quaisquer

discursos sobre a forma extrema de realismo que advogo acerca de que

cada continuum verdadeiramente universal é um ser vivo e consciente,

mas me contentarei em dizer que as únicas coisas de valor, mesmo nesta

vida, são as continuidades. (NEM 4.345)

A individualidade humana, depreende-se, é, tomada isoladamente, não algo a ser

negado, mas algo que deve ser pensado de maneira adequada, e, para Peirce, o lugar onde

se deve pensar a individualidade humana de maneira adequada é no interior de um

contínuo que, grosso modo, configura o que vimos conceituando como a essência

processual do homem imerso em uma comunidade. Cada indivíduo, tomado isoladamente

configura uma descontinuidade, uma determinação.119 Uma determinação, qualquer

determinação e não apenas o homem, considerada em si mesma, é uma força bruta,

atualizada no interior de um contínuo. Além disso, tal como Peirce explica:

Observe, aliás, que a determinação da qual falo não é nenhum exercício

de poder ou inteligência da parte das reações em si mesmas, que são

completamente cegas e brutas, mas são outorgadas por elas pela

continuidade, da mesma maneira em que duas qualidades não são por

si só parecidas ou não, mas somente possuem uma semelhança ou

discrepância imputadas a elas a partir de sua situação em um continuum

de qualidades possíveis. (NEM 4.138)

Ou seja, é o contínuo que confere, objetivamente, inteligência a qualquer

descontínuo. Sendo a individualidade humana, um descontínuo, ou, usando um outro

termo também caro à Peirce, um “isto”, sua acidentalidade só pode ser balanceada no

119 O que se encontra por detrás dessa exposição, como qualquer estudioso de Peirce nota, é a sua doutrina

das categorias fenomenológicas de maturidade. A descontinuidade é associada à sua categoria de

segundidade, do mesmo modo que o contínuo o é à sua categoria de terceiridade. A categoria de

primeiridade é, por sua vez, reservada às qualidades, também contínuas, mas contínuas enquanto unas de

um ponto de vista puramente interior. Para mais detalhes acerca da caracterização da primeiridade como

também contínua, ver (IBRI, 1992). Para uma análise da Fenomenologia enquanto ciência no interior da

arquitetura filosófica de Peirce, ver também (IBRI, 1992) e também nossa propedêutica (ALMEIDA, 2014).

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contínuo maior do qual faz parte, o que, também, não vale apenas para o homem, mas

para qualquer tipo de descontínuo no interior de qualquer contínuo.

A “coisitude” [thisness] do acidente do mundo da existência é

positivamente repugnante à generalidade. Ocorre desta maneira devido

à sua dualidade intrínseca; e se você a chamar de individual estará se

esquecendo de um termo do par. Por exemplo, um “isso” é um objeto,

mas ele só o é pela virtude de ser em reação com um sujeito. Um “isso”

é acidental, mas ele só o é em comparação com o continuum de

possibilidade de onde ele é arbitrariamente selecionado. Um “isso” é

algo positivo e insistente, mas somente o é ao colocar outras coisas de

lado e então achar um lugar para si próprio no universo. (NEM 4.136)

Se tal conjuntura for considerada, o Sinequismo de Peirce pode ser compreendido

como o que realmente é, ou seja, como uma doutrina que insiste, literalmente, que tudo o

que é real deve ser tomado como contínuo,120ou seja, deve ser tomado como “uma coleção

de uma multitude tão vasta que em todo o universo de possibilidades não há espaço para

eles reterem suas identidades distintas; mas eles fundem-se. Deste modo, o continuum é

tudo o que é possível, em qualquer dimensão que ele possa ser continuo.”121

Depois dessa pequena digressão, e com a consciência de que muito do que

acabamos de apontar exigiria, para adquirir uma expressão mais completa, alguns anos a

mais de reflexão do autor, bem como aprofundamentos em diversas de suas doutrinas122,

cremos ser possível, ao voltar ao “Algumas consequências de quatro incapacidades”

compreender porque o lugar ocupado pelo homem individual neste texto não deve ser

minimamente estranhado, pois, na verdade, Peirce já antecipava tudo isso em sua síntese

contundente e conclusiva, que não fez nada mais além de sugerir que o homem não deve

confundir a sua individualidade com a sua essência:

O homem individual, cuja existência separada é manifestada somente

por ignorância e erro, considerando-se que ele seja qualquer coisa para

além de seus colegas e do que ele e eles devam ser, é apenas uma

negação. Isso é o homem,

[...] homem orgulhoso, mais ignorante daquilo que mais tem certeza,

sua essência vítrea. (W 2.241-242)

120 Cf. EP 2.1. 121 NEM 343. 122 Principalmente aprofundamentos em sua já citada doutrina das categorias, tal como trouxe à tona

pioneiramente a obra de Ibri (IBRI, 1992).

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1.2 A unidade da personalidade e o conceito de pessoa

Acabamos de abordar várias teses instigantes de Peirce acerca da natureza do

homem. Vimos, ao final, que, para Peirce, a essência do homem vai muito além da sua

individualidade e subjetividade. Assim, para que possamos passar ao capítulo dois e

desenvolver o que da natureza essencial do homem tem a possibilidade de ser de algum

modo imortal e como, a nossa exposição da concepção peirciana de homem ainda precisa

passar por mais um estágio. Precisamos analisar o que o autor entendia serem os conceitos

de personalidade e pessoa no interior de sua filosofia, pois, isso lançará novas luzes na

dimensão essencial do homem que pode, eventualmente, perdurar.

Para fazer isso, buscaremos analisar algumas passagens de dois textos de suma

importância, os artigos The Law of Mind123 e Man’s Glassy Essence124, ambos publicados

em 1892 no importante periódico da época chamado The Monist125, completando com

outras importantes passagens relativas ao tema e, particularmente, uma passagem na qual

o autor estabelece uma comparação entre a consciência e um lago.126

O artigo “A Lei da Mente” é de extrema importância para a arquitetura filosófica

do autor por diversos motivos. Vamos citar os três principais dentro do contexto do nosso

trabalho. Primeiro, trata-se do texto no qual Peirce, expandido as teorias e doutrinas

necessárias para uma possível resposta ao enigma da esfinge que havia proposto alguns

123 W 8.135-157. 124 W 8.165-183. 125 Na verdade, os dois textos que mencionamos pertencem a uma série que os scholars peircianos

convencionaram chamar de The Monist Metaphysical Project. Essa série, além dos dois artigos

mencionados compreende mais três artigos: The Architeture of Theories, de 1890 (W 8.98-110), no qual

Peirce aplica os três princípios ativos, Acaso, Lei e tendência à aquisição de Hábitos, à sua construção

arquitetônica das ciências e defende que a única teoria inteligível do universo é o Idealismo Objetivo, que

assere ser a matéria mente exaurida; The Doctrine of Necessity Examined, de 1891 (W 8.111-125), no qual

Peirce desenvolve o seu Tiquismo, ou seja, a sua doutrina de que o acaso é um elemento operante e ativo

na natureza, contrastando-o com a visão de mundo que defende a existência de determinismo absoluto

governando o cosmos; e Evolutionary Love, de 1892 (W 8.184-205), no qual Peirce expõe a sua doutrina

do amor agápico como princípio evolucionário exigido pelo Sinequismo e que complementa as teorias

evolucionárias calcadas apenas nos princípios da variação fortuita e da necessidade mecânica . Entre os

textos The Doctrine of Necessity Examined e Evolutionary Love estão os dois textos cujos algumas

passagens analisaremos, The Law of Mind e Man’s Glassy Essence, nos quais Peirce desenvolve o papel do

conceito de continuidade em seu Sinequismo e a aplicação aos fenômenos mentais dos três princípios ativos

na natureza, respectivamente. Essa, então, é uma série na qual Peirce procura desenvolver suas ideias

cosmológicas e evolucionárias, a partir de sua expansão da teoria das categorias, pois os princípios ativos

dos quais Peirce fala são, em outros termos, as ideias de um, dois e três, que começara a especializar a partir

de 1886 e que um pouco mais para frente seriam ainda mais assentadas em sua Fenomenologia como

primeiridade, segundidade e terceiridade. Para detalhes acerca da metafísica evolucionária de Peirce, ver

(IBRI, 1992), (HAUSMANN, 1993) e (PARKER, 1998). Ver também a nossa propedêutica (ALMEIDA,

2014) e (ALMEIDA, 2014a) 126 O texto referido se chama Consciouness and Reasoning, (CP 7.553-558).

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anos antes, entre 1887 e 1888, em A Guess at the Riddle127, a saber, que “[...] três

elementos são ativos no mundo, primeiro, acaso, segundo, lei e, terceiro, tendência de

adquirir hábitos”128, busca mostrar de maneira detida129 como funciona a lei que define o

terceiro elemento. Segundo, trata-se do texto onde Peirce fala pela primeira vez

publicamente do seu comprometimento com o Sinequismo e busca desenvolvê-lo como

sendo uma doutrina de importância fundamental em filosofia, que exige um realismo de

tipo radical e um idealismo objetivo para que seja entendido em sua significação mais

profunda.130 Terceiro, trata-se do texto onde Peirce expõe a implicações do seu

Sinequismo para a sua concepção de homem, e isso é o que nos interessa de perto.

Não deve ser tomado como mero acaso o fato de Peirce no início do artigo e logo

após fazer uma espécie de resumo dos dois artigos anteriores da série, referir-se aos textos

da série cognitiva de 1868, que acabamos de analisar dentro do escopo deste trabalho:

Tentei, uns bons anos atrás, desenvolver uma doutrina no Journal of

Speculative Philosophy (Vol. II); mas sou capaz agora de melhorar

aquela exposição, na qual eu estava um tanto cego por preposições

nominalísticas. Refiro-me a isso porque alunos podem descobrir que

alguns pontos não explicados suficientemente no presente artigo são

esclarecidos nestes anteriores. (W 8.136)

Trata-se de uma pequena passagem que pode causar muito problema na

interpretação do pensamento do autor. Há autores que pensam ser essa passagem uma

prova declarada de que Peirce, em sua juventude, era uma espécie de nominalista e que

apenas progressivamente iria se tornar um realista. Max Fisch, em seu famoso artigo

Peirce’s Progress from Nominalism toward Realism sendo o expoente mais ilustre dessa

interpretação.131 Já expressamos anteriormente a nossa interpretação de que Peirce nunca

foi um nominalista; no máximo, poderíamos dizer que, em uma luta pela expressão

adequada de suas ideias, em alguns momentos tais expressões não podiam ser claras o

suficiente, de modo a permitir resquícios de uma linguagem um tanto inexata para o

realismo/idealismo objetivo que sempre pretendeu exprimir. Acreditamos que a passagem

127 W 69.165-210. 128 W 6.208. Para detalhes acerca da cosmologia de Peirce, consultar (IBRI, 1992), (TURLEY, 1977) e

(MURPHY, 1993). 129 Dizemos de maneira detida, pois Peirce já havia adiantado alguns elementos acerca da tendência a

adquirir hábitos, por exemplo, no já citado A Guess at The Riddle e em um texto não publicado, denominado

pelos editores do Writings of Charles Sanders Peirce de Logic and Spiritualism (W 6.380-394). 130 Para detalhes, ver (IBRI, 1992, capítulos 4, 5 e 6). 131 Ver (FISCH, 1986).

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que acabamos de citar, lida de maneira adequada, apenas expressa isso (“eu estava um

tanto cego por preposições nominalísticas” e não “totalmente cego”). Por outro lado, é

claro que concordamos plenamente com o fato de que Peirce, com o passar do tempo,

maturou e aperfeiçoou sua expressão, tal como essa passagem também deixa bem claro e

um exemplo notável disso é a própria teoria do contínuo, bem mais evoluída em 1892.132

Mas, sobretudo, o próprio Peirce mostra nessa passagem que o leitor deve ir atrás de

explicações naquele texto, que configura uma versão rudimentar do que pretende expor

em The Law of Mind e até mesmo nos outros textos da série cognitiva. É exatamente

assim que também interpretamos, e até retiraríamos o termo “rudimentar”, pois

acreditamos que aquela versão era em nada rudimentar e que, no fundo, Peirce usou aqui

uma expressão retórica.

Portanto, em nossa interpretação, tudo aquilo que Peirce mostrou no texto da série

cognitiva vale para o que irá expor aqui também, apenas o foco da exposição é diferente

e também a expressão mais evoluída, ou melhor, a expressão abarca mais elementos

teóricos e doutrinais. No entanto, o fato de o foco expositivo ser diferente não significa

em nenhuma instância que essa diferença é contraditória ou implica em algum tipo de

rejeição de aspectos explorados no texto de 1868. Por isso, como já adiantamos

anteriormente, não achamos totalmente adequada a interpretação de Colapietro133 ao dizer

que a abordagem contida em The Law of Mind é mentalista e “até mesmo

antissemiótica”.134 Ela é mentalista, é claro, pois trata-se da aplicação dos três princípios

ativos no universo aos fenômenos mentais. Mas, tal aplicação é, exatamente, semiótica,

se lida em termos peircianos. Em outros termos, a série cognitiva e o The Law of Mind, à

luz do pragmatismo do autor, tratam exatamente da mesma coisa, abordada com

diferentes acentos, a saber, a funcionalidade característica da mente em um universo

contínuo.

Se assim interpretarmos os textos, some, inclusive, a tendência, também defendida

por Colapietro, de pensar a concepção de homem na série cognitiva como negativa e a

exibida na série The Monist como positiva, ambas em um tipo de conflito apenas resolvido

com a introdução da noção de que o homem é um ser autônomo nos textos tardios do

132 Ver (ROSA, 2003), (ZALAMEA, 2012), (POTTER; SHIELDS, 1977). Mas, mesmo essa abordagem do

contínuo em 1892 ainda sofreria profundos aperfeiçoamentos. 133 Cf. (COLAPIETRO, 1989, p.68). 134 Idem, p. 68.

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autor sobre o pragmatismo.135 A filosofia de Peirce realista/idealista objetiva ao mesmo

tempo, em nossa opinião, já havia resolvido isso bem antes. Além do mais, a autonomia

do homem é real e, exatamente por ser real, o é dentro do contínuo maior em que se

encontra, de modo que não há negatividade ou positividade, mas sim uma única

constituição ontológica. A autonomia do homem, inegável, é claro, e distintiva do homem

como um ser que pode exercer o autocontrole, serve, quando em comunhão com aquilo

que é verdadeiro, ao próprio contínuo em evolução.136 Há o real, há o ideal, melhor ainda

seria dizer, e dizemos, há o real/ideal, que independe do homem e para o qual até mesmo

sua autonomia tende. E quando isso é o que rege as ações do homem como algo maior do

que sua individualidade, não há necessidade de se falar em termos negativos ou positivos,

mesmo que sejam “dois lados de uma mesma moeda.”137

Dito isso, vamos agora explorar algumas ideias que se configuram como

essenciais para a compreensão do homem que Peirce exibirá ao final do texto. Peirce

oferece, logo de início, a definição da lei da mente, objeto do artigo:

A análise lógica aplicada aos fenômenos mentais demonstra que há

apenas uma lei da mente, a saber, que ideias tendem a se espalhar

continuamente e a afetar determinadas outras que estão para com elas

em uma relação peculiar de “afetabilidade”. Neste espalhamento, elas

perdem intensidade, e em especial, o poder de afetar as outras, mas

ganham generalidade e fundem-se com outras ideias. (W 8.136)

Trata-se da definição que Peirce procurará justificar durante o restante do artigo e

que configura um dos pilares de sua arquitetura filosófica.138 O que essa lei objetiva

explicar é nada mais nada menos do que o próprio cosmos em evolução, pois, lida em

conjunto com o realismo/idealismo objetivo do autor, a natureza primária que responde

por tudo o que há é a mente. O homem é, dentro deste contexto, apenas mais um veículo

pelo qual a mente ou natureza eidética do cosmos se expressa.

O entendimento dessa lei exige a compreensão da natureza do contínuo. Por isso,

Peirce, logo após introduzir a lei propriamente dita, passa a expor a sua concepção de

contínuo à essa altura. É conhecido dos estudiosos do autor que ao escrever os textos para

o The Monist, Peirce dialogava muito com as teorias de Cantor acerca do contínuo, de

135 Ibidem. 136 Voltaremos a isso no capítulo dois. 137 Como argumentou Colapietro em (COLAPIETRO, 1989, p. 77). 138 Como bem mostrou Ibri (IBRI, 1992).

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modo que a concepção exibida por Peirce nesse texto estava profundamente marcada por

essa influência, mesmo levando em consideração o ponto de vista crítico de Peirce acerca

das deficiências do conceito cantoriano do contínuo.139 Segundo os mais renomados

estudiosos do contínuo peirciano, a concepção do contínuo de Peirce exibida à essa época

não logra deixar totalmente claro o papel da potencialidade real no interior do verdadeiro

contínuo.140 De um ponto de vista técnico, a adoção por parte de Peirce da teoria

cantoriana da correspondência um para um entre os números reais e os pontos em uma

linha, mesmo que somados ao insight de que seria necessário, conforme veremos na

sequência, conjugar as definições de Aristóteles e de Kant acerca da natureza do contínuo

para se chegar a uma definição mais adequada deste, não deu conta de mostrar a realidade

da potencialidade infinita característica da concepção madura de Peirce acerca do

contínuo, que exigiria uma visão mais emancipada e marcadamente topológica do

verdadeiro contínuo.141 No entanto, esse elemento técnico envolvido na definição

peirciana do contínuo não afeta em nada a natureza essencial da sua explicação acerca

dos fenômenos mentais, pois, a ideia da potencialidade real já estava presente, atrevo-me

a dizer, até mesmo na concepção de 1868, consistindo exatamente na noção de semiose

infinita, apenas a expressão paulatinamente se tornaria mais adequada.

Feita essa ressalva, vejamos brevemente, como Peirce pensou a natureza do

contínuo neste texto, conjugando as definições de Cantor, Aristóteles e Kant, no intuito

de exibir a sua ideia de que em um contínuo verdadeiro uma infinita potencialidade deve

ser concebida:

Agora, nós chegamos à difícil questão, o que é continuidade? Kant a

confunde com a infinita divisibilidade ao dizer que o caráter essencial

de uma série contínua consiste em que entre quaisquer dois membros

da série, um terceiro sempre pode ser encontrado. (W 8.143)

139 Ver a nossa propedêutica para uma introdução ao conceito de contínuo do autor (ALMEIDA, 2014), e,

para detalhes, os estudiosos do conceito de contínuo peirciano: (IBRI, 1992), (ROSA, 2003), (ZALAMEA,

2012), (POTTER; SHIELDS, 1977). 140 Ver particularmente (MURPHEY, 1993) e (ROSA, 2003). 141 “Nossas ideais encontrarão expressão de maneira mais conveniente se, em vez de pontos sobre uma

linha, falarmos sobre números reais. Todo número real, em um sentido, é o limite de uma série porque

pode ser indefinidamente aproximado. Se todo número real é um limite de uma série regular é uma questão

que pode estar aberta a dúvidas. Porém, a série referenciada na definição da aristotelicidade deve ser

entendida como composta por todas as séries, quer sejam regulares ou não. Consequentemente, sugere-se

que entre quaisquer dois pontos, uma inumerável série de pontos pode ser considerada.” (W 8.145). Ver

também (MURPHEY, 1993) e (ROSA, 2003).

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[…] Cantor define uma série contínua como uma série concatenada e

perfeita. Por “série concatenada”, ele se refere a uma série em que,

dados quaisquer dois pontos, e qualquer distância finita, por menor que

seja, é possível proceder do primeiro ponto ao segundo por meio de uma

sucessão de pontos da série, cada um a uma distância menor do que a

distância dada. Isto é real em relação às series de frações racionais que

variam por ordem de magnitude. Por “série perfeita”, ele se refere

àquelas que contêm cada ponto posicionado de forma que não haja

distância tão pequena que tal ponto não possa ter uma infinidade de

outros pontos dentro de cada distância. Isto se aplica à série de números

entre 0 e 1, capazes de serem expressados por decimais em que apenas

os dígitos 0 e 1 ocorrem. (W 8.143)

[…] A propriedade da aristotelicidade pode ser grosseiramente descrita

como: um continuum contém o ponto final pertencente a cada série

interminável de pontos que contém. Um corolário óbvio dessa definição

é o que diz que cada continuum contém seus limites. Todavia, ao usar

este princípio, é necessário observar que uma série pode ser contínua

exceto quando omite um ou os dois limites. (W 8.145)

[…] Esta propriedade, que pode ser chamada de aristotelicidade das

séries, juntamente com a propriedade de Kant, ou sua kanticidade,

completam a definição de uma série contínua. (W 8.144)

A definição peirciana de uma série contínua supõe a realidade dos infinitesimais,

ou seja, supõe a realidade de quantidades infinitesimais. Em outros termos, a entidade

geral designada pelo contínuo peirciano, mesmo em suas expressões não finais, consiste

em uma possibilidade inesgotável de determinação de um número de indivíduos maior

do que qualquer multitude dada, de modo que jamais ocorrerá o esgotamento da

possibilidade não importa quantos indivíduos sejam determinados em uma série contínua

qualquer. Continuidade equivale a uma conexão ininterrupta entre as partes e não a um

conjunto de partes. Em um tal contínuo, os indivíduos não possuem status absoluto, eles

estão, por assim dizer, fundidos em uma unidade, em uma generalidade; e, para respeitar

a expressão da época deste texto, mesmo se insistirmos em falarmos em termos de pontos

em uma linha, esses pontos seriam, assim, pontos possíveis e não partes últimas.142

142 Comparar com a definição em CP 6.170: “Um verdadeiro continuum é algo cujas possibilidades de

determinação nenhuma multidão de individuais pode exaurir. ” Ver também, (IBRI, 1992) e (ROSA, 2003).

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Sendo essa a natureza do contínuo peirciano, salta à vista que os fenômenos

mentais são tomados pelo autor como sendo contínuos. Estendendo esse raciocínio ao

cosmos, cuja natureza primária é mental, tal como sugerido pelo idealismo objetivo do

autor, segue-se que tudo no universo deve ser tomado, de alguma maneira, como

contínuo. Por isso Peirce via o Sinequismo como a pedra angular de sua filosofia.143 A lei

da mente, portanto, envolve uma ontologia, ou seja, uma teoria do real que Peirce

procurava desenvolver desde os textos escritos no início de sua carreira, malgrado

eventuais expressões incompletas.144 Como, então, Peirce explica o funcionamento da

grande lei da mente? É o que passamos agora, brevemente, a resumir.

Peirce sabe que a questão em jogo é explicar o funcionamento dos processos

mentais em um cosmos tal como ele supõe ser o caso, ou seja, um cosmos onde acaso,

existência e lei são operantes. Como devemos procurar explicar a natureza dos fenômenos

mentais imbuídos de um espírito científico, ou seja, perguntando aos fatos se as nossas

hipóteses são boas ou não?145

Não resta dúvida, mesmo para o senso comum, que as ideias podem ser

comunicadas de mente para mente. No entanto, um pensamento irrefletido tende, diante

desse fato, a tomar as ideias como sendo substâncias individuais ou, em outros termos,

como sendo eventos totalmente discretos no interior de uma consciência individual. Nesse

sentido, ou seja, tomada individualmente, uma ideia passada é exatamente uma ideia que

se foi para sempre e, caso haja uma recorrência de uma tal ideia, tratar-se-á de uma outra

ideia, de modo que, não estando presentes em um mesmo estado de consciência, não são

sequer passíveis de serem comparadas; na verdade, seriam mesmo incognoscíveis. 146 No

entanto, costumamos também dizer, nesses casos, que as ideias são similares. E o que isso

significa? O que significa dizer que duas ideias que já se foram podem ser pensadas por

meio de um processo mental que faz com que, de certa maneira, as ideias passadas estejam

presentes?147

143 Cf. CP 8.257. 144 Para alguns exemplos, ver (ALMEIDA, 2014a). 145 Como o professor Ibri ensina em seus cursos e em suas obras, por exemplo, (IBRI, 2012) e (IBRI,

2015a), a questão é a busca pela aderência. Nossas teorias e os fatos que elas pretendem explicar possuem

aderência? Se sim, podemos provisoriamente dizer que a teoria é boa, se não, devemos “jogar a teoria fora”

e procurar uma hipótese mais aderente e não, como os nominalistas pretendem “jogar os fatos fora” e

inventar fatos que se adequem a teoria. 146 Cf. (W 8.136). 147 Cf. (W 8.137): “Como pode uma ideia passada ser atual? Ela pode ser atual vicariamente? Até certo

ponto, talvez: mas não meramente; porque então a questão que viria à tona seria de que forma uma ideia

do passado pode estar relacionada à sua representação vicária. A relação, sendo entre ideias, somente

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Peirce sabia tratar-se de uma questão tão importante em filosofia quanto a questão

do nominalismo e realismo, pois:

Algumas mentes se precipitarão ao concluir que uma ideia passada não

pode, de nenhuma maneira, ser atual. Porém, isto é precipitado e

ilógico. É extravagância também dizer que todo o nosso conhecimento

do passado é mera ilusão! Ainda assim, parece que o passado está tão

além das fronteiras de uma experiência possível quanto uma coisa-em-

si kantiana. (W 8. 137)

Porém, exatamente por isso, Peirce também sabia que uma lógica objetiva só

poderia abraçar uma das respostas, a resposta que assume e aplica o realismo/idealismo

também aos fenômenos mentais. Assim, surge o ponto nevrálgico da questão: “Como

uma ideia passada pode ser atual? Não vicariamente […] somos, então, levados a

concluir que o presente está conectado ao passado por uma série de passos reais

infinitesimais.”148 Para Peirce, uma ideia passada está ipso facto presente para a

consciência, ou seja, estamos diretamente conscientes das ideias passadas por meio da

percepção direta delas. Em termos ainda mais precisos, uma ideia “[…] não pode ser

inteiramente passada; ela pode ser apenas contínua, infinitesimamente passada, menos

passada do que qualquer data assinalável no passado.”149

A partir dessa reflexão, Peirce pretende mostrar que a consciência cobre,

essencialmente, um intervalo temporal. O exemplo da apreensão de qualquer conceito já

é suficiente para exprimir isso, pois a apreensão de um conceito deve ocorrer em um

intervalo temporal, com um começo, um meio e um fim, posto que, se não houver um

intervalo de tempo, ou seja, se não houver um intervalo finito, não teríamos conhecimento

algum, muito menos do próprio tempo. No entanto, e esse é o ponto central, esse intervalo,

onde está contido um exemplo de fenômeno mental, é contínuo, e como tal é

potencialmente infinito. Por isso, conclui Peirce que somos forçados a dizer que “somos

imediatamente conscientes através de um intervalo infinitesimal de tempo”150

pode existir em alguma consciência: agora aquela ideia do passado não estava em nenhuma consciência

além daquela única consciência do passado que a continha; e essa não incluiu a ideia vicária.” 148 W 8.137. 149 Ibidem. 150 Ibidem.

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Na verdade, essa conclusão peirciana é uma asserção ontológica no seu sentido

mais íntimo, tal como se pode depreender com ainda mais clareza da passagem que se

segue:

Isto é tudo o que é requisitado. Porque, neste intervalo infinitesimal, a

consciência não é somente contínua em um sentido subjetivo, ou seja,

considerada como um sujeito ou substância que possui o atributo da

duração; mas também, pelo fato de ser uma consciência imediata, seu

objeto é ipso facto contínuo. De fato, essa consciência

infinitesimamente espalhada é um sentimento direto de seu conteúdo

espalhado. (W 8.138)

Ou seja, tanto a consciência, quanto o seu objeto são contínuos e, na verdade,

exatamente porque o objeto é contínuo, ele pode ser conhecido. O caráter inteligível dos

objetos está em seu comportamento redundante; ontologicamente os objetos que possuem

algum tipo de redundância são passíveis de serem inteligidos. Isso está ligado

intimamente ao pragmatismo do autor e, no fundo, tal contexto oferece a oportunidade de

exprimir o seu realismo/idealismo de maneira articulada ao Sinequismo. Neste ponto, é

como se estivéssemos vendo a arquitetura filosófica de Peirce metaforicamente “de

cima”, num ponto onde se podem notar os pontos interligados de seu sistema.151

Na sequência, Peirce esclarece ainda mais o seu posicionamento:

Em um intervalo infinitesimal, nós diretamente percebemos a sequência

temporal do seu início, meio e fim - não, evidentemente, na forma de

reconhecimento porque o reconhecimento é somente do passado, mas

em forma de sentimento imediato. Agora, após esse intervalo, segue-se

outro, cujo início é o meio do anterior, e cujo meio é o fim do anterior.

Aqui, temos uma percepção imediata da sequência temporal do seu

início, meio e fim, ou digamos, do segundo, terceiro e quarto instantes.

Essa percepção mediada é objetivamente, ou como para o objeto

representado, dispersada pelos quatro instantes; porém, subjetivamente,

ou no papel do próprio sujeito da duração, é completamente abraçada

em um segundo momento. [O leitor observará que uso a palavra

“instante” para referir-me a um ponto no tempo, e “momento” para

referir-me a uma duração infinitesimal]. (W 8. 138)

151 Sobre essa interligação entre realismo, idealismo objetivo e sinequismo, ver (IBRI, 1992, capítulos 4, 5

e 6). Ver também, (ALMEIDA, 2014).

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É curioso notar o quanto essa abordagem se assemelha à que abordamos mais

acima nos textos da série cognitiva. No entanto, não podemos deixar passar uma possível

objeção levantada por Murphey em sua importante obra de referência para os estudos

peircianos.152 Essa objeção, que veio à tona em 1961, ano da publicação do livro de

Murphey, parece estar por detrás da interpretação de que, embora haja pontos de contato

entre as teorias da cognição exibidas na série cognitiva e na série The Monist, na verdade

elas apresentam uma grande diferença. E o ponto principal de diferença, tal como

Murphey o colocou é exatamente a presença no texto “A Lei da Mente”, e particularmente

na passagem que acabamos de citar, do conceito de percepção imediata, que, segundo sua

interpretação, serviria como um datum (ou seja, algo equivalente a uma intuição) a partir

do qual as inferências seriam obtidas, o que estaria, ainda segundo Murphey, em completo

desacordo com a rejeição de qualquer coisa que funcionasse como uma intuição

característica dos textos de 1868.153

Para Murphey, Peirce em “A Lei da Mente” estaria “muito próximo da admissão

de primeiras impressões dos sentidos ou intuição direta em alguma forma”154 e, desse

modo, haveria, mesmo que sem a total consciência do autor, uma mudança de pensamento

acerca da natureza do ponto inicial de um processo cognitivo. Acreditamos que essa

questão está por detrás, inclusive, da visão de Colapietro que expomos mais acima,

embora ele não tenha, em nenhum momento, mencionado Murphey em seu texto. Por isso

é importante verificarmos em que medida não estamos de acordo com a interpretação de

Murphey, do mesmo modo que já dissemos não estarmos de acordo com a de Colapietro.

O que nos faz acreditar que na verdade não há uma diferença radical e muito

menos contradição entre as séries cognitiva e The Monist, para além da já reconhecida

maturação da expressão, é o fato de que a noção de que uma ideia tem de ser diretamente

percebida ou percebida imediatamente está baseada, conforme vimos, na concepção da

realidade dos infinitesimais, ou seja, na realidade das potencialidades infinitas e se aplica

aos intervalos, ou seja, a percepção imediata se refere aos intervalos de tempo, que,

contínuos, contém infinitas possibilidades de determinação. Assim, o que Peirce de fato

diz em “A Lei da Mente” é que estamos imediatamente conscientes da sequência temporal

(infinitesimal) de um intervalo e não de um começo puramente intuitivo deste, do mesmo

152 (MURPHEY, 1993). 153 Cf. (MURPHEY, 1993, p. 337). 154 (Idem, p. 337-338).

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modo que no texto de 1868 a ideia era a de que uma cognição sempre já surgiria em

processo de modo a não haver a necessidade de se postular um começo para este processo

em um suposto objeto transcendental à consciência. A noção de processo continua, assim,

intacta em “A Lei da Mente”, pois, havendo, por exemplo, dois intervalos que se seguem,

o começo do segundo é o meio do primeiro e o meio do segundo é o fim do primeiro,

conforme vimos mais acima. E, ainda, as inferências ocorrem também nos intervalos

contínuos, de modo que não é verdade que a percepção imediata da sequência temporal

funciona como uma intuição, tal como julga Murphey, pois, estamos a qualquer momento

dentro de um intervalo, ou seja, sempre em um processo cujo começo, percebido

diretamente, é o meio de algum intervalo anterior.

De outro lado, em “Algumas Consequências”, Peirce também tinha lugar para o

que no texto “A Lei da Mente” denomina de percepção imediata, numa passagem que

funciona quase que como um espelho para a que acabamos de apresentar:

Nenhum pensamento por si só, portanto, nenhum sentimento por si só

contém quaisquer outros, mas sim é absolutamente simples e

impossível de ser analisado; […] Cada pensamento, por mais artificial

e complexo, desde que seja imediatamente atual, é uma mera sensação

sem partes, e, portanto, nele próprio, não possui nenhuma semelhança

com qualquer outro, mas é incomparável a qualquer outro e

absolutamente sui generis. O que quer que seja inteiramente

incomparável com qualquer coisa é inteiramente inexplicável, pois a

explicação consiste em colocar as coisas sob leis gerais ou sob classes

naturais. Por isso, cada pensamento, na medida em que é um sentimento

de tipo peculiar, é simplesmente um fato simples e inexplicável.

Entretanto, isso não conflita com o meu postulado de que nenhum fato

deveria ter a permissão de permanecer inexplicável, pois, de um lado,

nunca podemos pensar “isto é presente para mim”, já que, antes de

termos tempo para fazer tal reflexão, a sensação se torna passado e, por

outro lado, uma vez que se torna passado, nunca podemos trazer de

volta a qualidade daquele sentimento da maneira como foi e para si

mesmo, ou mesmo saber como ele foi em si mesmo, ou mesmo

descobrir a existência dessa qualidade exceto por um corolário da nossa

teoria geral sobre nós mesmos, e então, não em sua idiossincrasia, mas

somente como algo presente. Todavia, como algo presente, sentimentos

são todos parecidos e não requerem nenhuma explicação, já que eles

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contêm apenas o que é universal. Assim, nada que possamos

verdadeiramente predicar acerca dos sentimentos é deixado sem

explicação, mas somente algo que não podemos reflexivamente saber.

Portanto, não caímos na contradição de tornar o mediato imediável. (W

2.226-227 – itálicos nossos).

Como o próprio Peirce esclarece em nota de rodapé desta passagem, não se trata

de negar que a sensação que uma pessoa tem hoje do vermelho é igual a sensação de

vermelho que eventualmente ela teve ontem, mas sim de se saber que a noção de

similaridade apenas pode consistir em uma força fisiológica por detrás da consciência que

nos leva a reconhecer um sentimento como sendo o mesmo que um anterior155, e, na

verdade, trata-se, como vimos, da natureza do contínuo verdadeiro. Por isso, a passagem,

se lida corretamente, reserva lugar para o imediatamente presente no interior de um

intervalo de tempo, igual ao que vimos em “A Lei da Mente”, exatamente no processo

inferencial que Peirce estava tentando explicar, para além da condição de isolamento

lógico para se pensar a ideia considerada em si mesma.

Enfim, rejeitamos a interpretação de Murphey e ressaltamos que a concepção

peirciana de percepção direta de intervalos contínuos de tempo contida em “A Lei da

Mente” exibe, no fundo, a mesma situação exposta no experimento do triângulo invertido

imergido na água, contido no “Questões referentes a certas capacidades ditas humanas”

e desenvolvido no “Algumas consequências”. Essa rejeição à interpretação de Murphey

também oferece ocasião para a rejeição também e mais uma vez da visão de Colapietro,

pois esperamos ter deixado clara a nossa visão de que não há diferença essencial entre as

abordagens dos dois textos.

Muito bem, antes de concluirmos a análise do artigo “A Lei da Mente” com a

aplicação da lei à concepção de homem de Peirce e, particularmente, à concepção de

personalidade, precisamos analisar algumas últimas e importantes características da

grande lei da mente.

Para Peirce, uma das características mais importantes da lei da mente é que ela faz

o tempo ter uma direção vetorial definida, o que a faz contrastar de maneira radical com

a lei da força física. Que direção definida é essa? Trata-se de um fluxo vetorial do passado

para o futuro. O que significa isso? Significa que, no que se refere à lei da mente, a relação

do passado para com o futuro é diferente da relação do futuro para com o passado. Em

155 Cf. W 2.226, nota de rodapé 3.

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outros termos, o fluxo do tempo é irreversível. No caso da lei da força física,

contrariamente, não existe a diferença entre a relação do passado para com o futuro e do

futuro para com o passado, ou seja, o fluxo é reversível sem prejuízo de qualquer

resultado. Assim, mais tecnicamente, pode-se dizer que, no caso da lei da mente:

Dizer que um estado está entre dois estados significa que ele afeta um

e é afetado pelo outro. Entre quaisquer dois estados neste sentido reside

uma série inumerável de estados que afetam uns aos outros; e se um

estado reside entre um dado estado e outro estado, que pode ser

alcançado pela inserção de estados entre este estado e um terceiro

estado, esses estados inseridos não afetando imediatamente ou sendo

afetados por ambos, então, o segundo estado mencionado,

imediatamente afeta ou é afetado pelo primeiro, no sentido que em um,

o outro encontra-se ipso facto presente em um grau reduzido. (W 8.146-

147)

Essa caracterização, tal como explica Peirce, envolve uma doutrina importante

para a compreensão da lei da mente, a saber, a doutrina que professa “que cada estado de

sentimento é afetável por cada estado anterior.”156 Dessa doutrina, exatamente igual à

defendida no texto “Algumas Consequências” na qual a doutrina envolvida era a de que

uma cognição é sempre determinada por outra cognição que a antecede, sem que haja a

necessidade de se postular uma primeira cognição fora da consciência, podem ser

extraídas algumas importantes consequências: primeiro, que os sentimentos possuem

continuidade intensiva, segundo, que os sentimentos possuem, literalmente, extensão

espacial, terceiro, como as ideias só podem ser conectadas, ou seja, só podem afetar uma

a outra, por meio da continuidade, segue-se que a lei da mente atua de maneira análoga

às formas lógicas e, quarto, as ações mentais possuem plasticidade. Vejamos rapidamente

a conexão entre essas consequências.

Para Peirce, o tempo é a forma universal e contínua da mudança.157 No entanto,

para que o tempo possa existir, outra forma de continuidade, que possa ser objeto da

mudança contínua trazida pela forma temporal, deve ser real. Para Peirce, essa forma de

continuidade capaz de ser afetada pelo fluxo temporal vetorial é exatamente uma

156 W 8.147. 157 W 8.147.

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continuidade de qualidades de sentimentos mutáveis. Sendo assim, dizer que os

sentimentos possuem continuidade intensiva significa dizer que:

[…] o tempo logicamente supõe uma variedade contínua de intensidade

de sentimento. Segue-se, portanto, da definição de continuidade, que

quando qualquer tipo de sentimento particular é presente, um

continuum infinitesimal de todos os sentimentos que diferem

infinitesimamente dele também é presente. (W 8.147)

Assim, a partir de um número de dimensões de sentimentos, todas as variedades

possíveis de sentimentos poderiam ser obtidas variando as intensidades dos diferentes

elementos. Por que essa afirmação parece tão excêntrica? Na verdade, esse elemento está

bem assentado na cosmologia do autor, na qual as qualidades de sentimentos possuem

um papel central desde o seu surgimento a partir do nada absoluto.158 Tendo em mente

esse pano de fundo cosmológico, Peirce sugeriu uma interessante explicação para o

estranhamento de sua tese:

Da continuidade de qualidades intrínsecas de sentimento, podemos

agora formar somente uma fraca concepção. O desenvolvimento da

mente humana praticamente extinguiu todos os sentimentos, exceto uns

poucos tipos esporádicos, sons, cores, cheiros, temperaturas, etc., que

agora parecem desconectados e díspares. No caso das cores, há um

alastramento tridimensional de sentimentos. Originalmente, todos os

sentimentos podem ter sido conectados da mesma forma, e a

pressuposição é a de que o número de dimensões era infinito, pois o

desenvolvimento essencialmente envolve uma limitação de

possibilidades. (W 8.147)

A segunda consequência é ainda mais surpreendente. Peirce a resumiu do seguinte

modo:

Uma vez que o espaço é contínuo, segue-se que deve haver uma

comunidade imediata de sentimentos entre as partes da mente

infinitesimamente próximas e juntas. Sem isto, acredito que teria sido

impossível para mentes externas umas às outras tornarem-se

coordenadas, e igualmente impossível para que qualquer coordenação

158 Ver detalhes em (IBRI, 1992, capítulo 5). Voltaremos a esse assunto no último capítulo deste trabalho.

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tenha sido estabelecida na ação do sistema nervoso de um cérebro. (W

8.148)

Para Peirce, o contínuo de qualidades de sentimentos, sofrendo mudanças

contínuas no tempo, possuem, literalmente, extensão espacial, ou seja, estão conectadas

e até mesmo coordenadas espacialmente. E mais! Tal extensão espacial é de caráter

subjetivo e não objetivo. O que significa isso? Extensão espacial subjetiva? O próprio

Peirce reconhece que essa é uma ideia difícil de se entender, mas é também a única forma

de dar conta do fato observável de que mentes externas umas às outras estejam de algum

modo conectadas, ou seja, possam se comunicar. Por isso, Peirce procura explicar, para

além dessa dificuldade, em que sentido o termo “subjetivo” deve ser entendido:

Essa é, sem dúvida, uma ideia difícil de entender, pela razão de que é

uma extensão subjetiva e não objetiva. Não é que temos um sentimento

de grandeza; embora o Professor James, talvez corretamente, ensina que

temos. É que o sentimento, como sujeito de inerência, é grande.

Ademais, nossos próprios sentimentos estão focados com atenção a tal

grau que não estamos cientes que as ideias não são levadas a uma

unidade absoluta; assim como ninguém instruído por um experimento

especial tem qualquer ideia do quão distinto é o campo da visão.

Entretanto, todos nós sabemos como a atenção vaga por nossos

sentimentos; e este fato mostra que aqueles sentimentos que não são

coordenados com atenção possuem uma externalidade recíproca,

embora estejam presentes ao mesmo tempo. (W 8.148)

Trata-se de um uso do termo “subjetivo” em completo acordo com o seu

pragmatismo, ou seja, onde a manifestação fenomênica externa é condição essencial para

o conhecimento e verificação da veracidade da hipótese. Muito próximo da ideia

defendida pelo autor desde cedo, a saber, “de que nós estamos no pensamento e não o

pensamento em nós.”159

Para Peirce, a reflexão suficiente acerca dos fenômenos que manifestam a lei da

mente leva à conclusão de que as ideias só podem afetar umas às outras por causa da

continuidade, ou seja, por causa do fluxo contínuo vetorial característico da própria lei da

mente. Assim, três elementos, segundo o autor, estão implícitos na concepção de ideia,

primeiro, a sua intrínseca qualidade de sentimento, segundo, a energia com a qual afeta

159 Por exemplo em CP 5.289 e CP 7.364.

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outras ideias160 e, terceiro, sua tendência a trazer consigo outras ideias.161 Conforme uma

ideia se espalha, seu poder de afetar outras ideias se reduz, porém, sua qualidade

intrínseca, ou seja, os sentimentos que a compõe, permanecem quase inalterados, mais

exatamente, infinitesimamente, inalterados. Inumeráveis séries de sentimentos que se

tornam associadas configuram uma ideia geral. Em outros termos, uma ideia geral,

segundo Peirce, contém três importantes características. Primeiro:

[…] é um sentimento vivo. Um continuum deste sentimento,

infinitesimal em duração, mas ainda abarcando inúmeras partes e,

também, apesar de infinitesimal, inteiramente ilimitado, é

imediatamente presente. E, em sua falta de demarcação, uma vaga

possibilidade de ser mais do que o que está presente é diretamente

sentido. (W 8.149)

Segundo, podemos inteligir com clareza que uma ideia gradualmente se modifica

e se funde com outra e isso está, inclusive presente, na comum interpretação, agora

passível de ser explicada, de que uma ideia se parece com outra, em um fluxo de

qualidades contínuas infinitas em intensidade. E, terceiro, considerando a insistência de

uma ideia: “a insistência de uma ideia passada referente ao presente é uma quantidade

menor do que a retrocedência da ideia passada, e cresce para a infinidade na medida

direta que a ideia passada é trazida a coincidir com o presente.”162

A insistência de uma ideia é a lei da mente e a influência dessa lei deve, segundo

Peirce, ser estendida ao futuro. Sendo assim,

[…] a insistência de uma ideia futura em referência ao presente é uma

quantidade afetada pelo sinal de menos; pois é o presente que afeta o

futuro, se houver qualquer efeito, e não o futuro que afeta o presente.

Em consonância, a curva de insistência é um tipo de hipérbole

equilateral. (W 8.149)

Isso quer dizer que, tal como uma curva hiperbólica que Peirce exibe como

exemplo:

160 “[…] uma energia que é infinita no aqui-e-agora da sensação imediata, finita no caráter recente do

passado.” (W 8.148) 161 Cf. W 8.148. 162 W 8.149.

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W 8.150

“[...] um sentimento que ainda não emergiu à consciência imediata é já afetável e já

afetado.”163 E o que isso é? Exatamente algo da natureza de um hábito. Ou seja, a própria

afetação de uma ideia por outra consiste em um comportamento habitual no qual uma

ideia é trazida à consciência presente por meio de um vínculo já estabelecido entre ela e

uma ideia ainda no futuro.

Uma consequência muito importante disso é o fato de que uma ideia afetada pode

ser definida como a ligação objetiva de um predicado lógico a uma ideia afetante, que

cumpre o papel de sujeito da predicação, de modo que quando “um sentimento emerge a

uma consciência imediata, ele sempre aparece como uma modificação de um objeto mais

ou menos geral já presente na mente. […] O futuro é sugerido ou influenciado por sugestões

do passado.”164 E essa linha de pensamento nos leva, finalmente, a perceber o porquê, para

Peirce, as ações mentais seguiam as leis da lógica objetiva, senão, vejamos.

Para Peirce, as três principais classes de inferências eram a Dedução, a Indução e

a Hipótese ou Abdução e correspondiam aos três principais modos de ação da alma

humana, pois, em uma dedução:

[...] a mente está sob o domínio do hábito ou associação, por virtude da

qual a uma ideia geral sugerida segue-se, em cada caso, uma reação

correspondente. Mas, uma certa sensação é vista como envolvendo

aquela ideia; consequentemente, a sensação é seguida pela reação

correspondente. (W 8.151)

163 W 8.150. 164 W 8.150.

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Por outro lado, no estado indutivo temos, exatamente o processo de

estabelecimento de um hábito, na medida direta que “[...] certas sensações, todas

envolvendo uma ideia geral, são seguidas pela mesma reação; e uma associação se

estabelece, por meio da qual aquela ideia geral passa a ser seguida uniformemente por

tal reação.”165 E, por fim, seguindo a forma do raciocínio hipotético, ou seja,

generalizando a partir de qualidades, a mente cumpre o processo pelo qual uma ideia se

torna sugestível por certas sensações, proporcionando aquilo que um hábito necessita para

poder excitar certas reações.166 Resumindo, Peirce conclui que:

Deste modo, por indução, um número de sensações seguidas por uma

reação une-se sob uma ideia geral seguida pela mesma reação; enquanto

pelo processo hipotético, um número de reações ativadas por uma

ocasião une-se em uma ideia geral, que é ativada pela mesma ocasião.

Por dedução, o hábito exerce a sua função de ativar certas reações em

certas ocasiões. (W 8.152)

Resta, enfim, considerar uma última característica da lei da mente, uma de suma

importância, a saber, o fato de que a lei do mental carrega um alto grau de incerteza, ou

seja, as ações e hábitos que ela origina não devem nunca ser considerados como

absolutamente necessários, mesmo contendo, como acabamos de descobrir, uma

característica dedutiva, que, segundo Peirce, pode ser provável ou necessária. Isso por

uma razão simples, se os hábitos originados pela ação mental fossem absolutamente

necessários, ou seja, se certas reações à certas sugestões fossem sempre determinadas, os

hábitos se tornariam totalmente rígidos e inerradicáveis, de modo que a mente cessaria de

crescer e perderia uma de suas mais notáveis características, a saber, a sua direção vetorial

de crescimento.167 De outro lado, os hábitos também se tornariam de tal modo fixos, que

não sobrariam espaços para a formação de novos hábitos e, em última instância, para a

vida. Assim, a lei da mente não deve ser lida como são lidas as leis mecânicas, que, aliás,

são meros casos ideais:

[…] a incerteza da lei mental não é um mero defeito dela, mas é, ao

contrário, da sua essência. A verdade é que a mente não está sujeita à

“lei” da mesma maneira tão rígida que a matéria está. Ela somente

165 W. 8.151. 166 Cf. W 8.151. 167 Peirce irá dedicar excelentes textos a esse assunto nas suas Conferências de Cambridge de 1898. Ver

RLT, particularmente as Lectures 6, 7 e 8.

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experiencia forças gentis que a tornam meramente mais provável de

agir de uma certa maneira do que aconteceria se fosse de outra forma.

Sempre resta uma certa quantidade de espontaneidade arbitrária em sua

ação, sem a qual estaria morta. (W 8.153)

Cabe notar também que a matéria, nesse pano de fundo, ou seja, sob à luz do

idealismo objetivo do autor, deve ser considerada como o caso onde os hábitos ficaram

mais enrijecidos, embora também não enrijecidos em absoluto, havendo, sempre, um

resquício de espontaneidade e diversificação mesmo na matéria, sendo essa a razão dos

desvios padrões nas leis mecânicas. Ou seja, Peirce mantém que mesmo a matéria não

pode ser considerada completamente morta168 e isso quer dizer, em suma, que em nenhum

lugar há espaço na filosofia de Peirce para o necessitarismo, em quaisquer de suas

vertentes.

Muito bem, após explicarmos as principais características da lei da mente de

Peirce, chegou o momento de vermos como se pode descrever a aplicação dessa grande

lei, cósmica podemos dizer, ao caso particular que vínhamos estudando, ou seja, ao

conceito de homem na filosofia do autor. Sendo assim, após mostrarmos como Peirce

aplica as características e consequências que acabamos de estudar particularmente ao

conceito de personalidade no texto “A Lei da Mente”, abordaremos a questão ontológica

da unidade da personalidade, para, depois, passar bem brevemente por uma análise das

extensões dessas reflexões no próximo texto da série The Monist, Man’s Glassy Essence,

abandonando os elementos estritamente técnicos característicos deste texto por questões

de brevidade, no intuito de darmos especial atenção ao conceito de pessoa exibido ao final

deste texto. Depois disso, estaremos em condições de mostrar em que reside a distinção

operada por Peirce entre personalidade e pessoa de modo a, enfim, concluirmos este

capítulo com uma discussão acerca do lugar e papel do homem a partir de uma filosofia

sinequista.

Como Peirce considera e define a personalidade no texto “A Lei da Mente”? É

curioso o fato de Peirce introduzir o seu foco no conceito de personalidade ao final do

texto dizendo que se trata de um “[...] fenômeno marcadamente proeminente em nossa

própria consciência.”169 Seria isso uma sugestão de que haveria o fenômeno da

168 Cf. W 8.155. 169 W 8.154, realce nosso.

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personalidade em outro lugar além da consciência humana? Verá o leitor que

surpreendentemente a resposta para essa questão é sim. Mas, vamos devagar.

Peirce define a personalidade como algum tipo de coordenação ou conexão de

ideias.170 Embora tal definição não pareça dizer muita coisa, Peirce busca qualificá-la

imediatamente do seguinte modo:

[…] de acordo com o princípio que estamos rastreando, uma conexão

entre ideias é ela mesma uma ideia geral, e uma ideia geral é um

sentimento vivo. É evidente que demos pelo menos um passo apreciável

na direção do entendimento da personalidade. Essa personalidade,

como qualquer ideia geral, não é uma coisa a ser apreendida em um

instante. Ela deve ser vivida no tempo; nenhum tempo finito pode

abraçá-la em sua plenitude. Ainda assim, em cada intervalo

infinitesimal, ela está presente e viva, embora especialmente colorida

pelo sentimento imediato daquele momento. (W 8.154)

Sendo a personalidade um tipo de ideia geral, ela deve conter todas as três

características de uma ideia geral, tal como vimos acima, ou seja, ela deve ser um

sentimento vivo, deve ser capaz de se fundir com outras ideias, e, logo, com outras

personalidades e também deve ter a capacidade de insistir, de ser um hábito. Sendo um

fenômeno que tipifica um contínuo, deve também ser capaz de infinita potencialidade e,

portanto, nunca poderá, de fato, ser captada em um instante, ou seja, num ponto discreto

do contínuo no qual flui vetorialmente, nem ser esgotada por nenhum intervalo finito.

Porém, em cada instante toda a série anterior está contida e toda a série posterior está

virtualmente presente. Por isso, “aprendida em um momento, a personalidade é a

autoconsciência imediata”171, e já vimos como e porque isso nada tem a ver com intuição,

embora seja imediata. Considerando o passado, a personalidade é a série infinita anterior

ao momento presente que a determina infinitesimamente e por isso configura matéria de

cognição e de influência tanto para o momento presente quanto para o futuro. E, do ponto

de vista do futuro, a personalidade consiste nos hábitos a que está sujeita não de maneira

absoluta, o que lhe dá a oportunidade de adquirir novos contornos, de mudar, enfim, de

crescer.

170 Cf. W 8.154. 171 W 8.155.

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Na verdade, a referência ao futuro, ou seja, ao fato de a coordenação perdurar de

uma certa maneira, expandindo em crescimento, mas persistindo vetorialmente enquanto

cresce e adquirindo maiores contornos ao se associar com outras ideias seguindo a lei da

mente, consiste em uma das características mais marcantes da personalidade. Mas isso

revela ainda mais:

[…] A palavra “coordenação” sugere mais do que isso; ela sugere uma

harmonia teleológica de ideias, e no caso da personalidade, essa

teleologia é mais do que a mera perseguição propositada de um fim

predeterminado; ela é uma teleologia desenvolvimental. Isso é um

caráter pessoal. Uma ideia geral, viva e consciente agora, já é

determinante de atos no futuro em uma medida que não está consciente

agora. (W 8.155)

Hábitos coordenados de uma maneira teleológica e desenvolvimentista formam

uma personalidade, que configura, na verdade, o caráter de um homem. Os fins de uma

personalidade, presentes em toda a sua série infinita, prenhe de possibilidades, só podem

ser conhecidos por meio das condutas à que dão luz, ou seja, por meio de suas ações, tal

como qualquer hábito, segundo o pragmatismo do autor.172 No entanto, é crucial

compreender que, de modo algum, os fins que os hábitos coordenados em uma

personalidade perseguem devem ser finais em um sentido determinista, e, exatamente por

isso, toda personalidade é um fenômeno sempre aberto. O que significa que ninguém é

capaz de ter consciência completa de seus próprios fins e, por outro lado, aí mesmo reside

a beleza da questão, pois, na medida direta em que ninguém pode estar consciente de uma

maneira completa dos próprios fins, uma personalidade pode, em seu processo de

crescimento, encontrar espaço para a autocorreção, para o aprendizado e para a mudança

de conduta, embora sempre mantendo a sua característica teleológica.173 Não fosse assim,

a própria personalidade se anularia:

Se os fins de uma pessoa já fossem explícitos, não haveria espaço para

desenvolvimento, para crescimento, para a vida; e consequentemente,

não haveria personalidade. O mero ato de carregar propósitos

predeterminados é mecânico. (W 8.155)

172 “Pragmatismo e personalidade são mais ou menos da mesma natureza.” (CP 5.16). Para detalhes ver

(IBRI, 1992, capítulo 6), (ALMEIDA, 2014). 173 No capítulo dois, teremos a oportunidade de verificar em que medida isso é justamente o elemento que

possibilita ao homem ser livre.

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Enfim, essa característica teleológica da personalidade oriunda do fato de haver

infinitas formas de coordenação entre ideias revela uma possibilidade de conexão ainda

mais surpreendente, dessa vez para a filosofia da religião:

É que uma filosofia evolucionária genuína, ou seja, uma filosofia que

torne o princípio do crescimento um elemento primordial do universo

está tão longe de ser antagonista à ideia de um criador pessoal que é

realmente inseparável daquela ideia; enquanto uma religião

“necessitarista” está toda calcada em uma posição falsa e está fadada a

desintegrar-se. Mas, um pseudo-evolucionismo, que entrona a lei

mecânica acima do princípio do crescimento, é, de uma tacada,

cientificamente insatisfatória, já que não dá conta de explicar como o

universo possivelmente surgiu, além de ser hostil a quaisquer

esperanças de relações pessoais com Deus. (W 8.155)

No terceiro capítulo deste trabalho teremos a oportunidade de investigar o que

Peirce quis dizer com isso, particularmente, teremos de entender como e em que sentido

o autor compreendia Deus, não obstante de maneira conjectural, como um ser pessoal, a

ponto de afirmar o seguinte ao final do texto:

Ao considerar a personalidade, aquela filosofia [a sua] é forçada a

aceitar a doutrina de um Deus pessoal; mas ao considerar-se a

comunicação, ela não pode senão admitir que, se há um Deus pessoal,

nós devemos ter uma percepção direta desta pessoa e entrar em contato

direto com ela. (W 8.156)

Mas, por hora, deixemos esse ponto para trás e apontemos apenas que, para Peirce,

como consequência da lei da mente, há uma possibilidade científica de “haver outros

modos de conexões contínuas entre mentes além do tempo e do espaço.”174

Muito bem, podemos dizer que encerramos a nossa incursão pelo importante texto

“A Lei da Mente” da série The Monist. Ao entender como funciona a lei do mental

pudemos evoluir em nosso entendimento do conceito de homem em Peirce e

particularmente sua concepção de personalidade. Essa concepção, toda fundamentada na

filosofia sinequista do autor, conforme pudemos ver, completa a exposição iniciada no

estudo da concepção de homem na Lowell Lecture XI e nos textos da série cognitiva.

174 W 8.156. Voltaremos a isso também no capítulo dois ao falarmos sobre a questão da possibilidade da

imortalidade do homem.

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Peirce, em verdade, possui uma concepção do homem e da personalidade profundamente

impregnada de ontologia.

Stanley Harrison, em sua brilhante tese de doutorado175, inteiramente dedicada ao

esforço de desenvolver uma teoria da pessoa baseada nos escritos de Peirce e escrita bem

antes da publicação do livro de Colapietro sobre o conceito de Self em Peirce, apontou

essa questão de maneira muito apropriada: “Na verdade, a personalidade é o resultado

de um processo vital, um processo que, continuamente, tece uma costura entre

sentimento, ações e pensamentos para formar uma unidade de hábitos”176

Essa profunda ontologia que se encontra por detrás da concepção peirciana de

homem desde os seus primeiros escritos, no texto que acabamos de estudar está

profundamente marcada pelas categorias do autor, como já havíamos adiantado um pouco

mais acima, de modo que sentimentos, ações e pensamentos, são comparáveis com as

categorias de primeiridade, segundidade e terceiridade, respectivamente. A unidade da

personalidade está, assim, relacionada com as formas de ser reais que governam os

fenômenos mentais associados às três categorias do autor.

A unidade da personalidade considerada em sua imediaticidade é,

metafisicamente, a unidade da personalidade como um sentimento, ou seja, a

personalidade em seu aspecto de primeiridade, e é tipificada no conceito de quale-

consciência enquanto unidade da consciência.177 Quale-consciência é uma consciência

que é, em sua unidade, uma qualidade. Conforme bem apontou Harrison, “em qualquer

instante, a consciência possui sua especial qualidade, uma unidade que pervade a

totalidade de tudo o que está presente e, ao fazer isso, dissolve toda multiplicidade.”178

Isso é confirmado na seguinte passagem de Peirce:

A “quale-consciência” não está circunscrita a sensações simples. Há um

“quale” peculiar à cor roxa, embora ela seja a mistura do vermelho e do

azul. Há um “quale” distinto em cada combinação de sensações, desde

que seja realmente sintetizado, um “quale” distinto para cada dia e cada

semana, um “quale” particular para toda a minha consciência pessoal.

(CP 6.223)

175 (HARRISON, 1971). 176 (HARRISON, 1971, p. 201). 177 Cf. (idem, p. 203-204). 178 (Idem, p. 208).

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A personalidade em seu aspecto de segundidade pode ser descrita como o estado

de consciência que envolve algum tipo de dualidade. Peirce tomava o conceito de

sensação como o caso tipificador desse tipo de consciência. Isso porque a sensação,

segundo Peirce, “contém dois tipos de consciência radicalmente diferentes, uma é o

sentimento e a outra é a consciência de ser compelida a sentir sob uma certa ocasião

particular.”179 Uma variedade desse tipo de consciência dual é a consciência da vontade,

ou seja, a consciência que temos ao exercer uma força em alguma coisa fora da

consciência, mas que, de certa maneira, segundo Peirce, é inseparável da consciência de

sofrer o efeito da própria força exercida, sendo, por isso mesmo, dual.180 Peirce chegou

até mesmo a inventar um nome para esse tipo de consciência:

Todavia, a consciência da compulsão na sensação, assim como a

consciência da vontade, necessariamente envolve a autoconsciência

bem como a consciência de alguma força exterior. O ego e o não-ego

são separados neste tipo de consciência. O sentido de reação ou esforço

entre o ego e o outro é apenas no que consiste essa consciência. Por

isso, para dar-lhe um nome, eu proponho que a chamemos de

“altersenso” [altersense]. Para evitar prolixidade, farei referências

sobre o elemento do altersenso da sensação como “sensação”

simplesmente. Portanto, o altersenso possui duas variedades, sensação

e vontade. A diferença entre elas é que a sensação é um evento forçado

pela mente; enquanto a vontade é um evento em que um desejo é

satisfeito, ou seja, um intenso estado de sentimento é reduzido. Na

sensação, um sentimento é forçado sobre nós; na vontade, o sentimento

é que força seu caminho para fora de nós. (CP 7.543)

No entanto, deve notar o leitor que, embora esse tipo de consciência exista na

personalidade, ela, tomada em si não é uma consciência unitária. Ela é dual, contendo um

elemento unitário que é a sua parte de sentimento (primeiridade dentro da segundidade).

Por isso, não podemos falar de unidade da personalidade em termos de segundidade, mas

sim apenas de um aspecto da personalidade que envolve a consciência de dualidade, mas,

sem a qual, a própria noção de unidade da personalidade ficaria incompleta.

A unidade da personalidade enquanto terceiridade, por outro lado, envolve a

própria definição da lei da mente, na medida direta em que, sendo tipificada, como vimos,

179 CP 7.543. 180 Cf. CP 7.543.

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pelo conceito de hábito, consiste exatamente na tendência que os sentimentos têm de se

espalhar e adquirir generalidade, e, quando o que está em cheque é a personalidade,

adquirir certa coordenação. Sendo assim, o tipo de consciência envolvido em um hábito,

prescrita na própria definição da lei da mente no fato de as ideias terem a tendência de

trazer consigo outras ideias com as quais possuem conexão, é a demonstração de que uma

mediação real é operante no fenômeno da personalidade, uma mediação real que possui

o poder de unificar o que antes estava desconexo em um fluxo contínuo coordenado

teleologicamente.

Acabamos de ver, então, que para explicar a natureza da personalidade enquanto

uma ideia geral coordenada teleologicamente de maneira adequada, é necessário levar em

consideração os aspectos ontológicos que acabamos de apontar. Harrison sintetiza muito

bem esse pensamento:

Assim, a unidade de um hábito é a unidade de um geral vivo. Trata-se

de uma unidade que envolve o futuro indefinido, no qual a quale-

consciência carrega apenas a unidade da personalidade em seu aspecto

imediatamente presente. Agora, a unidade do hábito pode ser pensada

como a unidade de uma lei. De fato, um hábito é uma lei de associação.

Assim, o mesmo princípio de generalização, que em última instância

explica a unidade de qualquer hábito pode também explicar a unidade

de um feixe de hábitos ou a unidade da personalidade como um terceiro.

(HARRISON, 1971, p. 214)

Há uma passagem de Peirce que sintetiza essa ontologia da personalidade de

maneira muito aguda e costurada com todos os textos que abordamos até agora para

refletir sobre a constituição do homem em sua filosofia. Essa passagem opera uma

comparação entre a consciência e um lago e, exatamente por esse caráter sintético, vale a

pena considera-la neste momento:

A consciência é como um lago sem fundo em que as ideias estão

suspensas em profundidades diferentes. Percepções isoladas são

reveladas pelo medium. O significado desta metáfora é que aquelas mais

profundas são apenas discerníveis por um esforço muito grande, e

controladas somente por um esforço ainda maior. Essas ideias

suspensas no meio da consciência, ou elas mesmas como partes do

fluido, são atraídas umas às outras por hábitos e disposições

associativas, a primeira em associação por contiguidade e a outra em

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associação por semelhança. Uma ideia perto da superfície atrai outra

ideia mais profunda de maneira tão leve que a ação deve continuar

durante algum tempo antes que a última seja trazida a um nível de fácil

discernimento. Neste meio tempo, a primeira afunda na obscuridade da

consciência. Parece haver um fator, tal como um momentum, em que a

ideia originalmente obscura torna-se mais vívida do que aquela que a

trouxe à tona. Além disso, a mente tem uma área finita em cada nível;

de modo que o ato de trazer uma massa de ideias à tona inevitavelmente

envolve o afundamento de outras. Entretanto, outro fator parece ser um

certo grau de flutuação ou associação com qualquer ideia que possa ser

vívida, pertencente àquelas ideias que chamamos de propósitos, por

virtude das quais são particularmente aptas a serem trazidas à tona e

mantidas perto da superfície pela captação de percepções e, assim, reter

as ideias com as quais possam estar associadas. O controle que

exercemos sobre os nossos pensamentos no ato de raciocinar consiste

em nossos propósitos agarrarem certos pensamentos para que eles

possam ser analisados. Os níveis de ideias facilmente controladas são

aqueles que estão tão próximos da superfície e são fortemente afetados

pelos propósitos presentes. A adequação desta metáfora é excelente.

(CP 7.554)

De fato, Peirce tem razão, essa metáfora é muito pertinente e envolve tanto a

semiose ilimitada exibida nos textos da série cognitiva, quanto a complexa teoria da

continuidade exibida em “A Lei da Mente” na medida direta que abarca a realidade dos

infinitesimais comum a ambas as abordagens. No fim, uma personalidade é, justamente,

o feixe de hábitos, sempre aberto e nunca esgotado em nenhum intervalo finito, que torna

efetivo ou potencialmente efetivo todo esse movimento coordenado de maneira

teleológica de modo a abarcar tanto a finalidade em evolução como as possibilidades de

aprendizado, crescimento e mudança de hábitos que, junto com o próprio cosmos,

possuem a missão inerente às suas próprias naturezas de se tornarem cada vez mais

razoáveis.

Entendido o conceito de personalidade de Peirce, é momento de falarmos um

pouco sobre uma importante distinção operada pelo autor entre os conceitos de

personalidade e pessoa. Para fazer isso adequadamente, partiremos de algumas

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considerações presentes no final do texto Man’s Glassy Essence181, texto que sucede o

The Law of Mind na série The Monist.

Dedicado, como já adiantamos acima, a aplicar os três princípios ativos na

natureza propostos em A Guess at the Ridlle, acaso, lei e tendência a aquisição de

hábitos182 aos fenômenos mentais de modo a dar uma solução ao problema da relação

mente-corpo, Man’s Glassy Essence é, assim, uma aplicação da filosofia sinequista do

autor. Peirce discorre de maneira bem técnica sobre a constituição da matéria e a teoria

molecular do protoplasma tendo como pano de fundo, exatamente, os três tipos

característicos da ação mental que acabamos de explorar. Por questões de brevidade e

também porque, para os fins deste trabalho, não é necessário descermos aos aspectos

estritamente técnicos deste texto, pularemos essa parte e iremos direto para o momento

que nos interessa dentro do nosso plano de exposição, que é o momento em que Peirce,

concluindo o seu raciocínio, mostra a que tipo de consequências o seu idealismo objetivo

leva.

A partir do seu estudo sobre a constituição da matéria e da teoria molecular do

protoplasma Peirce propõe o seguinte escopo acerca da relação entre os elementos

fundamentais da consciência e seus equivalentes físicos:

Em resumo, a diversificação é o vestígio do acaso-espontaneidade; e

onde quer que a espontaneidade cresça, lá o acaso deve ser operante.

Por outro lado, onde quer que a uniformidade cresça, o hábito deve ser

operante. Mas, onde quer que as ações ocorram sob uma uniformidade

estabelecida, lá há tanto sentimento quanto pode haver o modo de um

senso de reação. Esta é a maneira pela qual eu sou levado a definir a

relação entre os elementos fundamentais da consciência e seus

equivalentes físicos. (W 8.181)

Dessa perspectiva, Peirce extrai uma importante consequência para quem abraça,

como ele, o sinequismo, uma consequência que, como mostrei em outra ocasião, já havia

sido antecipada, de certa maneira, pelo autor em 1865, em sua Harvard Lecture I183:

181 W 8.165-183. 182 Mais agudamente, Ibri mostrou serem essas as categorias em seu viés metafísico e lidas em sua versão

definitiva como acaso (primeiridade), existência (segundidade) e lei (terceiridade). Cf. (IBRI, 1992,

capítulo 2). 183 Cf. W 1.167. Ver (ALMEIDA, 2014a, p. 218-219).

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Talvez seja adequado neste ponto refletir que se a matéria não tem

existência exceto como uma especialização da mente, segue-se que o

que quer afete a matéria de acordo com leis regulares é em si mesmo

matéria. Mas toda mente é diretamente ou indiretamente conectada à

matéria e age de maneira mais ou menos regular, portanto, toda mente,

mais ou menos, participa da natureza da matéria. Por isso, seria um erro

presumir que os aspectos físicos e psíquicos da matéria são dois

aspectos absolutamente distintos. Ao observar uma coisa pelo lado de

fora, considerando suas relações de ação e reação com outras coisas, ela

aparece como matéria. Ao observar essa mesma coisa pelo lado de

dentro, considerando o seu caráter imediato como sentimento, ela

aparece como consciência. (W 8.181)

Uma lei mecânica, assim, configura-se como uma descrição de uma forma de

aquisição de hábitos, do mesmo modo que uma regularidade mental. Ambos são, segundo

a lei da mente, formas de generalização, que são, em última instância o espalhar-se de

sentimentos que adquiriram certas conexões.184

Curiosamente, o texto Man’s Glassy Essence, apesar de seu título, não fala do

homem em quase todo o seu conteúdo, exceto nos dois últimos parágrafos. Mas, o leitor,

ao se debruçar sobre esses dois últimos parágrafos, deve perceber que tudo o que Peirce

trabalhou nos parágrafos anteriores, servia justamente para fundamentar cientificamente

as conclusões a que chegaria no fim do texto. E é ao exibir tais conclusões que Peirce se

volta para a implicação que a sua filosofia sinequista possui para com mais um importante

aspecto da sua concepção de homem, a saber, o fato de que o homem configura, de uma

maneira bem específica, e ligeiramente diferente do conceito de personalidade, uma

pessoa. Vejamos como se dá esse pensamento:

A consciência de uma ideia geral possui uma certa “unidade do ego”

que é idêntica quando passa de uma mente à outra. É, portanto, bastante

análoga a uma pessoa; e, de fato, uma pessoa é somente um tipo

particular de ideia geral. Muito tempo atrás, no periódico Journal of

Speculative Philosophy, apontei que uma pessoa não é nada além de um

símbolo que envolve uma ideia geral; mas minha visão naquela época

era demasiadamente nominalista para me permitir ver que cada ideia

geral possui o sentimento vivo e unificado de uma pessoa. (W 8.182)

184 Cf. W 8.182.

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Ao falar do Journal of Speculative Philosophy, Peirce se refere, como já sabe o

leitor, aos textos da série cognitiva. Novamente, Peirce se refere ao fato de que, àquela

época suas ideias eram demasiadamente nominalistas para que pudessem permitir que ele

se desse conta de todas as consequências que sua filosofia estava a desbravar. Novamente

também, insistimos que, na verdade, isso era uma questão de expressão. Ou seja, a

expressão das ideias ainda precisava evoluir, mas, as ideias e suas consequências, estavam

potencialmente lá, de modo que era uma questão de maturação até se chegar a uma

expressão mais adequada. Tanto é assim que essas considerações trazidas por Peirce em

Man’s Glassy Essence na verdade fecham o ciclo. Como? Vejamos, Peirce está preparado

agora, segundo sua própria expressão, para dizer que toda ideia geral possui o sentimento

vivo e unificado de uma pessoa. E anteriormente, Peirce havia definido uma pessoa como

um símbolo envolvendo uma ideia geral. Será que as duas definições são realmente

diferentes? Um símbolo envolvendo uma ideia geral, carrega o elemento de esforço e o

elemento sentimental presente, como vimos, em qualquer ideia geral, tal como, em termos

categoriais, a terceiridade carrega em seu interior, a segundidade e a primeiridade, e tal

como um hábito carrega os sentimentos que o compõem e os esforços pré-conexões das

ideias que infinitesimalmente o compõem. O ponto de unificação, atribuído em Man’s

Glassy Essence ao conceito de pessoa, na Lowell Lecture XI e na série cognitiva era a

consistência verificável em qualquer símbolo. Na verdade, a visão de Peirce continua

essencialmente a mesma. Assim, ao invés de vermos abordagens excludentes, vemos

exatamente abordagens complementares, e, na verdade, e em última instância, o

pensamento exibido por Peirce em Man’s Glassy Essence cumpre o papel de fechar o

ciclo interpretativo iniciado nas Lowell Lectures de 1865-66, passando pela série

cognitiva de 1868-69, conforme veremos logo na sequência. Como explicar, então, o dito

de Peirce de que suas ideias eram demasiadas nominalistas à época da série cognitiva?

Pensamos simplesmente que Peirce, nessa passagem, estava sendo duro consigo mesmo

em virtude de desejar acentuar a maior clarificação terminológica a que chegou em sua

filosofia mais madura; no entanto, conforme procuramos explicar, isso não altera a

dimensão realista presente em sua filosofia mesmo àquela época.

Muito bem, Harrison foi o primeiro a apontar a diferença que há, no interior da

filosofia peirciana, entre os conceitos de personalidade e pessoa.185 E, ao contrário do que

185 Cf. (HARRISON, 1971).

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alguns intérpretes de Peirce supõem186, para ele, essa diferença não se dá meramente como

uma distinção entre o geral e o particular. Ou seja, não se trata de predicar a personalidade

como geral e a pessoa como particular, aparecendo, assim, o problema do estatuto do

indivíduo na filosofia de Peirce. Patrícia Muio, um pouco depois de Harrison, também

alcançou o mesmo escopo e é, assim, a autora que mais perto chegou de Harrison, em

nossa opinião, ao trazer à tona o papel das categorias e da continuidade para mostrar o

verdadeiro, ou melhor, mais plausível lugar do indivíduo na filosofia de Peirce, evitando

concebê-lo como meramente negativo.187

Há, assim, algo um pouco mais complexo por detrás dessa distinção e, em nosso

ver, o entendimento desse elemento está ligado ao fato de que, na verdade, o problema

do individual é apenas uma questão de um elemento descontínuo (a pessoa considerada

em si mesma, somente em seu caráter de segundidade, para efeito de análise e não de fato

ou em realidade) no interior de um contínuo (o espraiar-se das ideias que, quando

coordenadas teleologicamente, formam uma personalidade somado ao fato de que, em

sua realidade, uma pessoa é um contínuo). Isso está por detrás também do fato de que as

duas séries de artigos de Peirce são em essência idênticas, inclusive no que diz respeito

ao estatuto do indivíduo.

A questão é, o fenômeno da personalidade, mesmo em sua perduração, ou seja,

em sua persistência enquanto feixe de hábitos, não explica como alguém permanece sendo

a mesma pessoa durante qualquer duração, independentemente das modificações que

venha a sofrer.188 Em suma, a unidade da personalidade, que possui a unidade de uma

ideia geral, tal como mostrou Harrison, não explica a unidade da pessoa, que implica,

além da unidade de uma ideia geral, uma unidade sucessiva de estados de consciência,

que costuma ser expressa como “eu”. 189 Por isso é necessário fazer a distinção, mas ao

186 Cito, particularmente (BURKS,1980), mas também à sua maneira (COLAPIETRO, 1989). 187 (MUIO, 1984). Muio mostra que, para entender o que é uma pessoa em Peirce, é necessário considera-

la segundo as três categorias (p.174). Harrison, que adiantou em alguns anos essa perspectiva, acrescentaria

de maneira ainda mais clara que o elemento da segunda categoria é, em verdade, uma segundidade dentro

de uma terceiridade e, assim, não totalmente um absoluto segundo (HARRISON, 1971, p. 220-230). 188 Embora Peirce não tenha dado uma resposta definitiva a questão da ocorrência de múltiplas

personalidades, a sua teoria da personalidade acomoda a possibilidade de que exista esse fenômeno.

Inclusive, trata-se de um ponto curioso de pensamento, pois, múltiplas personalidades ocorrem dentro de

uma mesma consciência, tomada enquanto unidade. O fenômeno de múltiplas personalidades mantém o

problema da distinção entre personalidade e pessoa intacto, pois, é bem possível, tal como mostrou

Harrison, que um sujeito possa exibir um infinito número de personalidades e mesmo assim permanecer o

mesmo sujeito em seus aspectos essenciais, ou seja, como uma condição de possibilidades para uma série

de manifestas e não manifestas múltiplas personalidades. Para detalhes, ver (HARRISON, 1971,

particularmente os capítulos 6 e 7). 189 Cf. (HARRISON, 1971, p. 218-219).

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mesmo tempo explicar como a pessoa também possui uma unidade e, portanto, não é um

absoluto segundo ou individual, embora a individualidade seja um elemento na

composição do seu conceito.190

Peirce afirma em Man’s Glassy Essence:

Tudo o que é necessário, com base nesta teoria, à existência de uma

pessoa é que os sentimentos dos quais ela é construída possam estar

conectados de maneira suficientemente próxima para influenciar umas

às outras. (W 8.182)

Como explicar, então, a unidade da pessoa no interior da filosofia peirciana? O

que seria a unidade de um sujeito que permanece sendo o mesmo, conforme mostram as

experiências fenomênicas de auto asserção? Vimos nos textos da série cognitiva que não

podemos ter um conhecimento intuitivo da nossa própria autoconsciência e que também

não temos o poder de conhecer a nós mesmos por meio de uma mera introspecção, no

fundo de caráter intuitivo, de modo que o nosso conhecimento do mundo interno é

derivado do nosso conhecimento dos fatos externos. Muito bem, Peirce parece manter

exatamente essa mesma posição em seus escritos mais maduros. Harrison expõe esse

movimento de maneira contundente ao exibir como Peirce procura pensar a pura

experiência do “eu” e acaba por concluir que tal experiência é a forma mais degenerada

de terceiridade191, tal como se pode extrair da seguinte passagem:

A forma mais degenerada de Terceiridade é quando concebemos uma

mera Qualidade de Sentimento, ou Primeiridade, representando a si

mesma, para si mesma, como Representação. Isto, por exemplo, seria a

Pura Autoconsciência, que pode ser grosseiramente descrita como um

mero sentimento que possui um instinto obscuro de um germe do

pensamento. (CP 5.71)

A experiência do puro eu é, assim, uma experiência de uma qualidade de

sentimento atrelada a um símbolo vivo que, em um dado momento, representa, enquanto

sentimento, a si mesmo como uma representação. Em outros termos, é a experiência de

190 Com isso, é claro, não estamos pretendendo negar o caráter individual do corpo, “este corpo” e não

“aquele corpo”, nesse sentido, um manifesto exemplo de segundidade. Esse caráter existente é assumido,

porém, não é o que está em cheque aqui, tal como não o era na Lowell Lecture XI e na série cognitiva a

explicação do homem em seu aspecto externo como um corpo animal. 191 Cf. (HARRISON, 1971, p. 220).

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um símbolo tal como esse símbolo é sentido e está intimamente ligado ao próprio poder

do símbolo de representar. Nas palavras de Harrison:

Assim, trata-se da experiência da primeiridade, possibilidade da pura

terceiridade (pensamento), sem haver nenhuma representação atual. Por

isso, Peirce chama essa experiência de pura autoconsciência de ‘um

escuro instinto de ser um germe de pensamento’ (CP 5.71). Trata-se da

consciência de um símbolo vivo como um potencial portador de

significado. (HARRISON, 1971, p. 221).

Desse modo, parece que a experiência do eu, que permanece a mesma durante

qualquer intervalo contínuo, ou seja, que permanece constante pelos feixes de hábitos que

constituem a personalidade, configura uma espécie de unidade na série contínua de um

fenômeno sob a lei da mente, que adquiriu uma certa coordenação. O puro eu é, assim,

em sua unidade, o ponto de partida e condição de possibilidade da auto asserção; mas,

sendo a auto asserção do puro eu constante, algo a mais está presente no processo. Para

explicar isso com mais acuidade, Harrison lembra como Peirce se valeu de uma

interessante metáfora, conhecida como a metáfora do mapa contínuo, que segue:

Imagine que sobre o solo de um país, com uma única linha fronteiriça

[…] há um mapa desse mesmo país. Este mapa pode alterar as

províncias diferentes deste país em qualquer proporção. Mas, eu

suponho que ele representa cada parte do país que possui uma única

fronteira, por uma parte do mapa que possui uma única fronteira; que

cada parte é representada como demarcada por tais partes como ela

verdadeiramente é demarcada; que cada ponto do país é representado

por um único ponto no mapa e que cada ponto no mapa representa um

único ponto no país. Suponhamos, além disto, que esse mapa é

infinitamente preciso em sua representação de modo que não haja

qualquer partícula em qualquer grão de areia no país que não tenha sido

representada no mapa se tivéssemos de examiná-lo por meio de um

poder magnificentemente alto de ampliação. Já que tudo sobre o solo

do país é mostrado no mapa, e já que o mapa jaz no solo do país, o mapa

em si será retratado no mapa, e nesse mapa do mapa tudo o que há no

solo deste país pode ser discernido, incluindo o mapa em si com o mapa

do mapa em sua fronteira. Assim, haverá no mapa o mapa do mapa, e

nele, um mapa do mapa do mapa, e assim por diante ad infinitum. Cada

um desses mapas estando no interior de seus precedentes na série,

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haverá um ponto contido em todos eles, e este será o mapa de si mesmo.

Cada mapa que direta ou indiretamente representa o país é em si

mapeado no próximo; ou seja, no próximo, ele será representado como

um mapa do país. Em outras palavras, cada mapa é interpretado como

tal no posterior. Podemos dizer, portanto, que cada um é a representação

do país no mapa posterior; e aquele ponto que está em todos os mapas

é em si mesmo a representação de nada além dele mesmo e para nada

além dele mesmo. É, portanto, a analogia precisa da pura

autoconsciência. (CP 5.71)

Segundo essa metáfora, a tentativa de tornar cognitiva a autoconsciência funciona

exatamente como a representação de um mapa dentro de um mapa. A série contínua de

pontos que representa os mapas infinitamente implica em um tipo de unidade, mas uma

unidade que só possui sentido representativo na sequência representativa. Obviamente, a

sequência representativa é a representação de um mapa no próximo mapa, infinitamente.

Nunca havendo término para essa série, só se pode dizer que ocorre uma representação

de uma maneira insuficiente. Do mesmo modo, o ponto que pertence a todas as

representações feitas durante um fluxo temporal, o “eu”, é, quando tomado em si,

insuficiente enquanto representação, mas, no entanto, é uma representação, uma

representação perpétua de si mesmo. Veja-se nas palavras do próprio Peirce, ao encerrar

a metáfora do mapa:

Como tal, ela [A autoconsciência] é autossuficiente. Ela é poupada de

ser insuficiente, ou seja, de ser nenhuma representação, justamente pela

circunstância de que ela não é totalmente suficiente, ou seja, não é uma

completa representação, mas somente um ponto sobre um mapa

contínuo. (CP 5.71)

Curiosamente, exatamente por ser uma representação insuficiente dentro de um

processo de representações, mais exatamente, uma representação insuficiente contínua, o

eu funciona como uma fonte de unidade da série contínua de representações que

constituem o homem e sua personalidade ou personalidades, de modo que, por isso, o

homem pode ser, e foi, definido como um signo, ou melhor dizendo, definido como um

símbolo em perpétua evolução.

Harrison, comentando a metáfora peirciana do mapa, explica o caráter desse eu

ou unidade da pessoa, de maneira esclarecedora:

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[...] o eu, o símbolo vivo [enquanto pessoa] que procura representar, é,

em qualquer instante, a representação de nada além de si mesmo e para

nada além de si mesmo. Nesse sentido, ele é puramente indexical; mas,

porque ele é um caso de um símbolo sendo um índice para si mesmo,

há uma permanente consciência do potencial de representar.

(HARRISON, 1971, p.223)

“Puramente indexical” significa, em termos categoriais, considerado apenas em

seu aspecto de segundidade. Funcionando como um índice, o eu serve apenas para apontar

para algo que funciona como um existente, no caso do homem, uma pessoa individual.

Mas, por outro lado, “[...] o eu também aponta para si mesmo como a totalidade do

símbolo vivo que é, a saber, como o processo unificador da atividade sígnica cuja função

e finalidade é representar”192, ou seja, um caso típico da ação da lei da mente. Em outros

termos, temos aqui as três categorias do autor funcionando em conjunto no interior do

homem-símbolo. O lugar próprio do indivíduo no interior da filosofia de Peirce é,

segundo essa interpretação, a de uma segundidade dentro de uma terceiridade.

Mas em que, exatamente, essa unidade da pessoa se diferencia da unidade da

personalidade? Pois, notou-se que, o próprio eu deve ser considerado como uma espécie

de símbolo que, quando se autorreferencia como pessoa, ou seja, quando procura

representar a si mesmo, pode apenas se denotar como locus de representação infinita e,

nesse sentido, carrega um forte componente individual, a saber, o objeto individual da

autorrepresentação. No entanto, esse eu não pode nunca ser esgotado por uma quantidade

finita de representações, tanto de si, quanto de qualquer fluxo de personalidade que nele

se encontrar. Depende, assim, para toda a eternidade (ou até a sua extinção com a morte?)

de uma representação subsequente, ou de um pensamento subsequente para continuar a

busca pela realização de sua finalidade; sem nunca se completar de maneira absoluta, tal

como o próprio cosmos193. Assim, para respondermos de maneira objetiva a pergunta

acima, podemos dizer que a unidade da personalidade é continuidade de um feixe de

hábitos coordenados de uma determinada maneira, ao passo que a unidade da pessoa, por

sua vez, é a unidade, de um lado, da contínua presença e consistência da pura

autoconsciência do eu e, de outro, da contínua representação desse eu como unidade

daquilo que contém; unidade de primeiridade e de terceiridade; enquanto representação,

trata-se de uma unidade sempre inferida, posto que dependente da infinita série de

192 (HARRISON, 1971, p.223). 193 Nos segundo e terceiro capítulos veremos o que isso quer dizer em relação ao cosmos.

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representações; enquanto puro eu, condição de possibilidade (unidade metafísica) de todo

o processo infinito de representações que configuram o homem em perpétua evolução.

Em outros termos, a unidade da pessoa é a condição de possibilidade de um

processo de representação coordenado teleologicamente; a unidade da personalidade é o

resultado do processo de unificação194 de uma dada coordenação teleológica de ideias. É

por meio da união dessas unidades, que configuram uma pessoa em sua realidade, que se

pode dizer e experienciar o fato de que uma pessoa pode permanecer “a mesma”

independentemente das modificações a que seja submetida durante um processo infinito

de representação.

Conclui-se, enfim, que uma pessoa, considerada em sua realidade, é também um

geral.195 Um geral cujos hábitos coordenados, ou, em outros termos, cuja personalidade

ou personalidades possuem a possibilidade de se tornarem cada vez mais autoconscientes

e objetivamente autocontroladas durante o processo de representação infinita ao qual o

homem, enquanto ser real, está sujeito. No interior dessa série valem, igualmente, tanto a

teoria exibida nos textos da série cognitiva, quanto a exibida nos textos da série The

Monist, de modo que, assim, fecha-se o ciclo da nossa estratégia de exposição do conceito

de homem em Peirce.

1.3 O lugar do homem em uma filosofia sinequista

Procuramos ao longo deste primeiro capítulo explicar, por meio de uma estratégia

de exposição específica, a concepção de homem no interior da filosofia de Peirce,

concepção essa que pode ser chamada, em última instância, de sinequista, mesmo que o

termo “sinequismo” seja apanágio da filosofia mais madura do autor, pois, a essência

deste termo, ou seja, seu comprometimento com a ideia de que a continuidade configura

um elemento pervasivo no cosmos, se faz sentir desde os seus primeiros escritos.

Como vimos já na introdução a esse trabalho, tal passo se configurava como

essencial para os objetivos da tese aqui defendida, pois, para explorarmos no próximo

capítulo o que pode possuir certo estatuto de imortalidade no homem, primeiro

194 Ou processos de unificação, no caso de múltiplas personalidades. 195 Inversamente, uma ideia geral, qualquer ideia geral, para Peirce, carrega o sentimento unitário de uma

pessoa viva: “Toda ideia geral possui o sentimento vivo e unificado de uma pessoa” (W 8.182).

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precisávamos entender como se configura o homem em geral. Ao fazê-lo, por meio de

uma análise o máximo possível adequada para o espaço disponível neste trabalho, nos

aproximamos de um entendimento daquilo que poderíamos chamar de elementos

fundamentais para a compreensão do homem na filosofia do autor. E esse era o nosso

objetivo neste primeiro capítulo: tratava-se, desde o início, de expor e analisar o que

Peirce entendia ser a essência do homem, de modo que essa compreensão funcionasse

como o ponto de partida para os nossos segundo e terceiro capítulos.

No entanto, lembremos que a estratégia de exposição que utilizamos não deve em

nenhum momento ser considerada como a única possível, mesmo para o fim que

perseguimos aqui. Ou seja, poderíamos eventualmente ter seguido outros caminhos de

exibição, de modo a trazer outros elementos dos quais, possivelmente, leitores versados

em outros aspectos da filosofia peirciana sentiram falta.196 No entanto, mesmo em um

trabalho de doutorado, caminhos de exposição devem ser definidos, não sendo nem

possível e nem sequer recomendável, buscar a ilusão de ser capaz de esgotar todos os

aspectos interpretativos possíveis em uma única exposição. O autor que acha possível

fazer isso, provavelmente se frustrará bastante ao concluir que foi incapaz de fazê-lo, mas,

ao mesmo tempo terá uma boa oportunidade de experimentar fenomenicamente o sentido

do falibilismo de Peirce.197 Enfim, desejamos que o caminho que escolhemos para exibir

o conceito de homem de Peirce, mesmo com suas inevitáveis omissões em relação à gama

de possibilidades de apresentação, tenha sido considerado plausível pelo nosso leitor,

mediante a avaliação das descrições e argumentações que utilizamos para exibi-la.

Gostaríamos, no entanto, de, a partir da abordagem do homem que acabamos de

levar a cabo, concluir esse capítulo considerando, brevemente, alguns elementos acerca

do lugar ocupado por este homem no cosmos a partir da filosofia sinequista de Peirce.

Faremos isso a partir de uma das consequências mais explicitas da concepção peirciana

do homem, a saber, a de que o homem é, em essência, um ser social.

Parece-nos ter ficado explícito que o homem, para Peirce, é, essencialmente, um

ser inacabado e, talvez, nisso mesmo resida a origem da grandeza do seu papel no cosmos,

por razões que, sabemos, só se tornarão mais claras a partir de certas conclusões a que

196 Cito, como exemplos, a possível aproximação entre as noções de “inconsciente” peirciana e freudiana

(COLAPIETRO, 2008) e a possível comparação entre as noções anticartesiana do “eu” em Peirce e Bakhtin

(SANTAELLA, 2006). 197 Sobre o Falibilismo Peirciano ver (IBRI, 1992, cap. 3).

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chegaremos no terceiro capítulo. Mas, podemos, dentro de certos limites, adiantar

algumas coisas aqui.

Para o homem peirciano, símbolo que é, só faz sentido buscar uma certa realização

em algum outro símbolo interpretante. Dizemos “uma certa realização” porque o homem,

já o sabemos, encontra-se em perpétua evolução e isso significa, como também vimos,

que ele nunca estará totalmente realizado, quaisquer que sejam as circunstâncias, tal como

um contínuo nunca é esgotado por suas instâncias ou pontos descontínuos, não importa

em que quantidade, pois, um contínuo é a possibilidade infinita de qualquer número de

atualizações.

Na verdade, a característica de insuficiência não é apanágio do homem.

Tecnicamente, não há símbolo autossuficiente, sendo ele um signo cuja razão de ser está

em determinar um interpretante.198 Ou seja, um símbolo é um signo mediador por

excelência. E da mesma forma o é o homem. Isso tem como consequência o

reconhecimento de que a descrição do homem-símbolo fundamenta o fato de Peirce

considerar o homem como sendo, essencialmente, um ser social.

O que significa isso? Sob a ótica da filosofia sinequista de Peirce, significa que,

sendo o homem um símbolo em perpétua busca por realização, seu próprio processo de

crescimento só pode se dar no interior de uma comunidade, ou seja, em conjunto com

outros homens-símbolos e não nos recônditos esconderijos de sua mera individualidade.

Na verdade, o homem está tão longe dessa certa realização quanto mais em isolamento se

encontrar.

O homem-símbolo é ele mesmo um contínuo, como esperamos ter deixado claro.

Mas, ao mesmo tempo, é um contínuo inserido em contínuos de dimensões maiores, sua

família, sua cidade, seu país, a sociedade, o cosmos, em última instância. Enquanto

contínuo (enquanto símbolo), o homem é crescimento perpétuo, com infinitas

possibilidades de realização. Enquanto inserido em um contínuo de dimensões maiores

(ou seja, enquanto indivíduo ou ponto descontínuo no interior de um contínuo), o homem

está fundido em uma rede de relações potenciais junto com outros indivíduos; nesse

último contexto, a individualidade cessa de ter significado absoluto, sendo sua distinção

apenas identificada a partir da ignorância e do erro, residindo aí, como vimos, um dos

pontos de ruptura entre a filosofia de Peirce e a tradição filosófica cartesiana e

198 Cf. (ALMEIDA, 2014). Ver também (SANTAELLA, 2004a).

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nominalista, que procuram equipar o homem com o poder de decisão absoluta a partir de

sua individualidade ou subjetividade.

O homem peirciano não possui tal poder, nem diante de si mesmo, posto estar em

perpétua realização, como procuramos esclarecer desde o início deste capítulo, e muito

menos diante do real. Portanto, é no contínuo maior no qual o homem está inserido que

se encontra a fonte independente de uma verdade também em evolução. Senão, vejamos.

O realismo radical de Peirce descreve o seu objeto, a saber, a realidade enquanto

modo de ser das coisas, como independente de qualquer subjetividade, independente de

qualquer representação particular, ou mesmo conjunto de representações particulares. 199

Porém, o seu idealismo objetivo descreve esse mesmo modo de ser das coisas como

dependente do pensamento em geral. Ao contrário do que parece, isso não configura uma

contradição. E o segredo para entender essa posição de Peirce está, exatamente, em um

dos fundamentos dessa tese, a saber, o reconhecimento de que a sua filosofia é,

estritamente falando, um sinequismo que carrega em seu bojo um realismo/idealismo-

objeto.

Desse modo, devemos entender a consideração da dependência do real em relação

ao pensamento em geral como, na verdade, uma dependência cósmica em relação ao

contínuo, de natureza ideal, e para o entendimento do qual estamos sempre em

aproximação.200 Por outro lado, a independência do real em relação ao pensamento

individual ou grupo de individuais é nada mais do que a recusa peirciana de reduzir o

contínuo a qualquer tipo de elemento discreto. Portanto, não há contradição na posição

peirciana. E, por outro lado, o homem é uma instância microcósmica dessa situação

lógico-objetiva do cosmos em geral.

199 Esse pensamento acerca do real foi, desde cedo, muito acentuado por Peirce. Um dos primeiros exemplos

onde Peirce exibe essa abordagem de maneira bem clara é a sua resenha crítica da edição de Fraser das

Obras de George Berkeley (W 2.462-487), escrita em outubro de 1871. Nesta resenha, Peirce convoca Duns

Scotus pela primeira vez como um influenciador da sua visão acerca do realismo, explorando de maneira

aguda a querela entre o nominalismo e o realismo no período medieval no intuito de extrair as

consequências dessa questão para o pensamento moderno, a partir do contexto da obra berkeleyana. Neste

texto, ao mesmo tempo uma crítica ao nominalismo e uma defesa do realismo, encontramos Peirce a

afirmar, por exemplo, o seguinte: “Objetos são divididos em ficções, sonhos, etc., de um lado, e realidades,

de outro. Os primeiros são aqueles que existem apenas na medida que você, eu ou algum homem os

imagina; os últimos são aqueles que possuem uma existência independente da sua mente, da minha ou da

de qualquer número de pessoas. O real é aquilo que não é o que venhamos, eventualmente, a pensar acerca

dele, mas sim o que permanece inalterado pelo que pensamos acerca dele.” (W 2.467). 200 Melhor seria dizer que essa é uma questão de constituição cósmica, contínua em sua essência. Para

detalhes sobre a cosmologia peirciana, consultar (IBRI, 1992, capítulos 5 e 6) e (TURLEY, 1977).

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Por isso, agora sob o viés epistemológico, a outra face dessa reflexão implica em

reconhecer que a verdade, como representação da constituição ontológica do real, se

identificaria com a opinião final a que uma comunidade de investigadores chegaria, se

tempo suficiente lhe fosse dado no processo de investigação levado a cabo de acordo com

um método científico.201 Essa verdade é, ontologicamente, de natureza ideal, tal como

tudo o que há, segundo o idealismo objetivo do autor. Por outro lado, do ponto de vista

da expressão humana, essa mesma verdade, só pode ser aproximada e nunca atingida em

caráter absoluto. Peirce é um falibilista. Mas, mais que isso, Peirce é também um

indeterminista ontológico202, e, portanto, a própria evolução do cosmos, como também

vimos acima, contém, para além da lei e da tendência à aquisição de hábitos, elementos

de acaso real, de indeterminação real, portanto.

O real pode, assim, ser definido como aquilo em que qualquer homem acreditaria

e, segundo o pragmatismo do autor, aquilo a partir do que, como crença, estaria preparado

para agir, se suas investigações fossem levadas suficientemente longe.203 Esse real

permanece independente da falsidade de qualquer representação, bem como independente

de qualquer representação verdadeira meramente atual (mais corretamente, que viesse a

ser descoberta como verdadeira no long run), mas não da verdade ontológica que é o

próprio comportamento do objeto em seu caráter cognoscível. Diante dessa

correspondência, por assim dizer, entre verdade e realidade, a opinião final a que se

chegaria no limite ideal da investigação consistiria na expressão verdadeira do modo de

ser do objeto investigado.

Muito bem, o método científico, que se caracteriza exatamente por levar em conta

esse real como independente do pensamento particular ou conjunto de pensamentos,

configura-se como o método capaz de levar à representação desse mesmo real, de um lado

de maneira aproximada em qualquer ponto assinalável no tempo e, de outro,

adequadamente no longo tempo (long run). No entanto, não importa se isso ocorrerá ou

não no universo da expressão humana. Em Peirce, o homem não possui privilégios:

[...] embora o objeto da opinião final dependa do que a opinião é, ainda

assim, o que tal opinião é não depende do que você ou eu ou qualquer

homem pensa. A nossa perversidade e a de outros pode até,

indefinidamente, atrasar o estabelecimento da opinião; pode até mesmo,

201 Ver, por exemplo, W 3.273. 202 Sobre o falibilismo e o indeterminismo ontológico de Peirce, ver (IBRI, 1992, capítulos 3 e 4). 203 Cf. CP 8.41.

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concebivelmente, fazer com que uma proposição arbitrária seja aceita

universalmente, enquanto a raça humana durar. Mesmo assim, isso não

mudaria a natureza da única crença que resultaria da investigação

carregada o suficientemente longe. E se, após a extinção da nossa raça,

outra surgisse com as faculdades e a disposição para a investigação,

aquela opinião verdadeira deve ser aquela a que chegariam (CP 5.408).

Se por um lado, o homem não possui privilégio diante do real, de outro, a sua

possibilidade de exprimir de maneira aproximadamente verdadeira uma realidade

independente passa, necessariamente, pela própria existência de uma comunidade de

investigação. Senão, vejamos nas palavras do próprio Peirce:

As cognições que, deste modo, nos alcançam por essa série infinita de

induções e hipóteses (que, embora infinita a parte ante logice, ainda é

como um processo contínuo não sem um início no tempo) são de dois

tipos, a verdadeira e a falsa, ou cognições cujos objetos são reais e

aquelas cujos objetos são irreais. E ao que nos referimos por real? É

uma concepção que devemos primeiramente ter tido quando

descobrimos que existia um irreal, uma ilusão; ou seja, quando nós nos

corrigimos pela primeira vez. Agora a única distinção que esse fato

logicamente reclama é a distinção entre um ens relativo a determinações

internas privadas, ou seja, a negações pertencentes a idiossincrasia, e

um ens tal como permaneceria no longo prazo. O real, então, é aquilo a

que, mais cedo ou mais tarde, a informação e o raciocínio finalmente

resultariam, e que é, portanto, independente dos caprichos de mim e de

você. Assim, a própria origem da concepção da realidade mostra que

essa concepção envolve essencialmente a noção de uma

COMUNIDADE, sem limites definidos, e capaz de um aumento

indefinido de conhecimento. E então, aquelas duas séries de cognições

– a real e a irreal – consistem daquelas que, em um tempo

suficientemente futuro, a comunidade sempre continuará a reafirmar; e

daquelas que, sob as mesmas condições, serão sempre negadas. (W

2.239)

Assim, o método científico exige a partilha de opiniões no processo de

aproximação da opinião final ideal, pois, tal como reafirma Peirce “[...] o que qualquer

coisa realmente é, é como ela será finalmente conhecida no estado ideal de informação

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completa, de modo que a realidade depende da decisão última da comunidade.”204 É essa

partilha que promove, semioticamente, a correção e o aprendizado comunitário que tira o

homem de seu mero status individual e o coloca em condições de crescer e evoluir junto

com o cosmos. Mas, que fique ainda mais claro, essa possibilidade não é oriunda do

homem e nem sequer da comunidade, mas sim do próprio contínuo de significado no qual

estão inseridos.

Por outro lado, o que expusemos até aqui não pretende significar que o homem

não possui um papel importante no processo de evolução no qual está inserido. Ao

contrário, de maneira quase paradoxal, esse ser perpetuamente inacabado, cuja finalidade

é representar, não sendo o ponto final para a compreensão do real, tem na busca

comunitária algo que descreve o seu lugar. É um lugar que não configura o ponto final,

mas que pode, humildemente, no interior da comunidade ilimitada, reconhecer o real

como sendo muito maior do que ele enquanto indivíduo. Assim, como já adiantamos

acima, o homem possui certa possibilidade de autocontrole na dimensão normativa de sua

vida. Esse autocontrole, embora apenas possível porque há um mundo real no qual certa

normatividade é possível, configura, na verdade, o fundamento de sua liberdade.

Sim, o homem-símbolo, autoconsciente, pode exercer o autocontrole e lapidar

seus hábitos de conduta, de modo que, sendo definido por sua conduta, seu caráter ou

personalidade pode crescer por meio do que aprende em conjunto com outros homens-

símbolos, em comunidade, como um ser social. Dada a natureza ontológica do real, essa

linha de pensamento nos leva a perceber que, mesmo no fundamento da sua liberdade, o

homem só pode realizar a virtude do seu crescimento como um possível membro de uma

comunidade.

Isso significa que, individualmente, um homem é tal como um discreto no interior

de um contínuo, mas, fundido com outros homens, imerso no contínuo de infinitas

possibilidades realizam-se continuidades de relações entre diversos contínuos no interior

de um contínuo maior. Por isso, Peirce disse o que segue em Man’s Glassy Essence:

[…] deve haver algo como uma consciência pessoal nos corpos dos

homens que estão em íntima e intensa comunhão solidária. [...]

Orgulho, sentimento nacional, empatia, não são meras metáforas.

Nenhum de nós pode saber completamente o que as mentes das

corporações são, não mais do que as minhas células cerebrais podem

204 W 2.241.

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saber o que o cérebro inteiro está pensando. Contudo, a lei da mente

claramente aponta para a existência de tais personalidades, e há muitas

observações ordinárias que, se fossem criticamente examinadas e

suplementadas por experimentos especiais, poderiam, como as

primeiras aparências prometem, fornecer evidência da influência dessas

pessoas grandiosas sobre os indivíduos. É frequentemente observado

que em um dia, meia-dúzia de pessoas, estranhas umas às outras,

colocarão em suas cabeças que devem fazer um e o mesmo feito

estranho, seja um experimento físico, um crime, ou um ato virtuoso. (W

8.182-183)

Essa passagem mostra claramente que Peirce estende as suas noções de

personalidade e pessoa para grupos, entidades e sociedade em geral. Esse ponto da

filosofia de Peirce está longe de estar acordado entre os estudiosos do autor.205 Sem entrar

em detalhes de contenda, nossa interpretação é a de que essa extensão faz todo sentido,

desde que levemos em consideração, novamente, o pano de fundo proporcionado pelo

idealismo objetivo e o realismo radical do autor.

No fim das contas, como seres capazes de autocontrole, os homens-símbolos estão

desde sempre inseridos em um contexto evolutivo e normativo.206 Isso significa que há

certas condições que devem ser satisfeitas para que o homem possa atingir a excelência

parcial como um símbolo, ou seja, atingir a sua excelência possível. Em outros termos,

para que o homem seja um bom símbolo, ele deve desenvolver de maneira apropriada as

suas potencialidades. Que condições são essas?

Para Peirce, o homem, tal como tudo o que há no cosmos, caminha em direção

àquilo que chamou, no alto de seu melhorismo, de crescimento da razoabilidade

concreta. A abordagem do conceito de razoabilidade concreta, relacionado ao tema desta

tese, está designada ao segundo capítulo, com impacto também no terceiro capítulo, pois,

essa noção também possui íntima conexão com a concepção peirciana de Deus. Assim,

para os propósitos da conclusão deste primeiro capítulo, basta retermos algo que já

havíamos adiantado em nossa propedêutica:

205 Arthur Burks (BURKS, 1980) e, sobretudo, Robert Lane, por exemplo, discordam totalmente dessa

extensão operada por Peirce (cf. LANE, 1983). Por outro lado, Cornelis De Waal (WAAL, 2006) e M.

Fairbanks (FAIRBANKS, 1976), por exemplo, concordam. 206 Para uma Introdução às Ciências Normativas do autor, ver a nossa propedêutica (ALMEIDA, 2014).

Para um estudo aprofundado, ver, sobretudo, (POTTER, 1997).

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O admirável em si, o supremo bem para o qual todos os ideais tendem

a se conformar, para Peirce, consiste na Razão, ou melhor, no

crescimento da razoabilidade concreta. Esse ideal dos ideais seria

buscado sobre todas as circunstâncias e sem relação com nada mais, e

consiste na interação de todas as coisas em direção à evolução razoável

do universo. [...] Para Peirce, a Razão assim explicitada, seria a única

coisa que é desejável sem necessidade de nenhuma espécie de

explicação ulterior (embora possamos dar razões para pensar assim, e

nisso consiste, por exemplo, a própria explicação peirciana das Ciências

Normativas).207

O homem-símbolo deve, assim, buscar realizar o seu propósito no universo com

excelência; o seu propósito é participar do crescimento da razoabilidade com aquilo que

lhe é distinto, ou seja, participar por meio da sua capacidade de autocontrole do

desenvolvimento da razoabilidade, ou seja, do crescimento da terceiridade, incorporando

hábitos de pensamento, ações e sentimentos por meio de infinitas possibilidades de

incorporação:

[…] é pela replicação indefinida do autocontrole sobre o autocontrole

que o homem [vir] é gerado, e pela ação, através do pensamento, ele

forma uma estética ideal, não para o mero proveito da sua miserável

massa encefálica, mas como participação concedida por Deus na obra

da criação. (CP 5.402n3)

Poder-se-ia tomar o final dessa passagem como uma espécie de ironia da parte de

Peirce, mais uma de suas ferrenhas críticas relacionadas a uma inserção ingênua e

dogmática de uma certa concepção de Deus no discurso filosófico. No entanto, não

acreditamos ser este o caso. Em nossa interpretação, a passagem não é irônica e parece,

ao contrário, exibir um pensamento constante, embora conjectural, do autor, que teremos

a oportunidade de entender um pouco melhor no terceiro capítulo. Veja-se a recorrência,

por exemplo, na passagem seguinte:

Dizer que o homem não realiza nada além daquilo para que os seus

esforços são direcionados seria uma condenação cruel da grande

capacidade dos homens, que nunca descansam de trabalhar para atender

às suas necessidades vitais e as de suas famílias. Mas, sem se esforçar

diretamente para isso, e muito menos compreendê-lo, eles praticam

207 (ALMEIDA, 2014, p. 34).

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tudo aquilo que a civilização requer, e dão à luz uma outra geração para

avançar a História mais um passo. Seu fruto é, portanto, coletivo; é a

realização do povo inteiro. O que é isso, então, que todo o povo é, o que

é esta civilização, que é o resultado da história, mas que nunca é

concluída? Não podemos esperar atingir uma concepção completa

disso, mas podemos ver que se trata de um processo gradual, que

envolve uma realização de ideias na consciência do homem e em suas

obras, e que se realiza em virtude da capacidade do homem de aprender,

e pela experiência que continuamente derrama sobre ele ideias que ele

ainda não adquiriu. Podemos dizer que este é o processo pelo qual o

homem, com toda a sua miserável pequenez, torna-se gradualmente

mais e mais imbuído do espírito de Deus, no qual a Natureza e a História

estão difundidos. (CP 5.402 Fn P2, Cross-Ref:††)

Pode-se dizer, então, que o homem-símbolo, em seu papel, e tal como qualquer

outro ser vivo ou “coisa”, é parte do processo evolucionário por meio do qual a

razoabilidade se torna mais manifesta no universo.208

Enfim, é momento de encerrarmos esse capítulo. A partir de uma estratégia

específica de apresentação, levamos a cabo uma análise possível da concepção peirciana

de homem. Essa análise foi feita por meio da abordagem de importantes textos,

pertencentes à diferentes fazes do pensamento do autor; o fio condutor dessa análise

estava balizado em uma interpretação do pensamento do autor como abarcando uma

síntese de realismo e idealismo objetivo, no bojo do seu sinequismo.

Caracterizada dessa forma, conforme vimos, a visão peirciana exibe uma

constante inserção do homem, ele mesmo um contínuo, no interior de contínuos ainda

maiores, chegando, em última instância, ao próprio processo evolucionário cósmico.

Assim, uma vez que é característico do homem, no interior desses contínuos maiores, o

inacabamento e a incompletude, e que a sua personalidade, na unidade pessoal, está

sempre em crescimento e evolução, tal como o próprio universo, não se pode falar, em

208 Embora essa oração possa parecer, à primeira vista, um tanto hegeliana, a filosofia de Peirce não deve

ser com ela equacionada. O próprio Peirce, embora reconheça a sua importância, fez questão de se

diferenciar de Hegel, por exemplo, na seguinte passagem: “Agora, surge a questão, o que resultou

necessariamente deste estado de coisas? [o estado de coisas evolucionário] Mas, a única resposta lúcida

para essa questão é que, onde a liberdade era ilimitada, nada em particular necessariamente resultou.”

(CP 6.218). E, como o próprio Peirce explica na sequência: “Nessa proposição reside a principal diferença

entre a minha lógica objetiva e aquela de Hegel.” (Idem). A evolução peirciana não preconiza um resultado

necessário, mas sim um crescimento da razoabilidade concreta que acolhe em seu seio as leis, mas também

a liberdade e a variedade, primeiridade, em termos categoriais. Voltaremos a isso em outras ocasiões.

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nenhum momento, de alguma configuração absoluta ao seu respeito. Isso traz à tona, mais

uma vez, o tema da essência vítrea do homem.

Dissemos no início deste capítulo que Peirce não definira de maneira positiva e

clara o que ele entendia por essência vítrea do homem, de modo que, sob certo aspecto,

ficaria sob a responsabilidade do intérprete de sua obra tentar responder a essa questão a

partir das pistas por ele deixadas.

Para Cornelis De Waal, por exemplo, a metáfora shakespeariana utilizada por

Peirce significa, simplesmente, que o homem não possui essência.209 Essa é uma forma

interessante de interpretação, sobretudo se levarmos em consideração as concepções

tradicionais do termo “essência”210 como algo acabado e imutável que responderia pelo

que o objeto é, distinguido de como ele é.211 A concepção peirciana estaria, de fato, em

completa oposição pragmaticista a essa caracterização tradicional, que, pode-se dizer,

também se encontra relativamente ultrapassada. No entanto, não nos parece que Peirce

esteja negando que haja uma essência do homem. Ou seja, para Peirce, não é descabido

falar em essência do homem, desde que esse termo seja entendido de maneira bem

qualificada, maneira essa que consiste exatamente no que procuramos expor durante esse

capítulo.

Assim, Stanley Harrison, parece dar um passo além de De Waal, quando, ao se

perguntar sobre a mesma questão, primeiro explora a possibilidade de a metáfora

significar, tal como a substância vítrea, que o homem possa ser moldado de diversas

formas, sem haver uma forma única e definidora que o captura, e sendo essa, exatamente,

a sua essência. Mais ainda, Harrison acaba por concluir que seria melhor, para além da

possibilidade anterior, que o termo “vítreo” fosse tomado como significando algo quase

que indiscernível, tal como a natureza transparente do vidro, pivô da metáfora.212 Harrison

assim justifica a sua conclusão:

O homem é um símbolo vivo cuja essência é o poder de representar; e

tal atividade de representação não pode ser capturada do modo como

ocorre em nenhuma de suas manifestações atuais. É nesse contexto que

Peirce diz acerca da identidade do homem, “do teu olho sou o olhar”.

Sendo assim, da mesma forma que um símbolo não pode conhecer a si

209 Cf. (DE WAAL, 2001, nota 62). 210 Cf. (Vocabulário Técnico de Filosofia, verbete, p. 338-339). 211 Cf. (The Cambridge Dictionary of Philosophy, verbete, p. 281). 212 Cf. (HARRISON, 1971, p. 367).

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mesmo como realmente é, nem uma pessoa (como um símbolo vivo)

pode pensar nossa essência viva como ela realmente é; ainda assim, tal

essência está sempre diante de nós como condição de possibilidade da

nossa realidade enquanto símbolos. (HARRISON, 1971, p. 367)

Essa parece ser, pensamos nós, uma interpretação mais adequada da metáfora

essência vítrea em relação à concepção de homem exibida por Peirce, que, salvo engano,

nunca pretendeu negar uma certa essência do homem, mas apenas qualificá-la de uma

maneira diferente das noções mais tradicionais e nominalistas, que, longe de pensarem o

mundo levando em consideração um real independente da mente humana, mas ao mesmo

tempo de natureza ideal, ao atribuírem o predicado essência quer ao particular, quer ao

geral, sucumbem à tentação de tomar a linguagem humana como medida da própria

essência, uma vez que, mesmo no último caso, tal essência não passaria de um elemento

conceitual meramente imputado.

Em contraponto, a filosofia sinequista de Peirce, apoiada pelo seu

realismo/idealismo objetivo, parece reservar lugar para uma noção de essência do homem

que, se entendida adequadamente, a partir do que procuramos analisar neste capítulo,

pode até, de certa forma, ser imortal.

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2. A IMORTALIDADE DO HOMEM NA FILOSOFIA DE CHARLES PEIRCE

No capítulo anterior tivemos a oportunidade de explorar o que significa o conceito

de homem na filosofia de Charles Peirce. Vimos, mesmo circunscritos a uma estratégia

de exposição definida, que o significado de homem na filosofia de Peirce é rico em

nuances e em possibilidades heurísticas, particularmente no que se refere à forma como

se pode argumentar que o homem possui uma certa essência, não em sentido fixo e

substancial, mas em um sentido que podemos chamar de pragmaticista, ou seja, no qual,

a partir da realidade da manifestação das três categorias preconizadas pelo autor, o

homem se revela, como um ser dotado de sentimento, volição e pensamento. Esse sentido

funda-se no modo como se comporta e em como está preparado para agir caso certas

circunstâncias se façam presentes tal que atualizem hábitos de conduta sedimentados,

porém mutáveis e caracterizados por uma certa plasticidade, por isso sendo capaz de

crescimento.

Essa essência pragmaticista do homem é marcadamente sinequista, ou seja, exige

a apropriação do conceito de continuidade como uma característica pervasiva da

caracterização geral do homem e do seu papel no cosmos, respeitando em seu bojo, ao

mesmo tempo, a independência e a natureza ideal do real em relação a qualquer

manifestação mental. Isso define o homem como um ser processual e inacabado por

excelência, conforme vimos em detalhes no capítulo anterior. Em outros termos, o

homem não é, em nenhum momento, um ser inteiramente definido, e sua essência nunca

é um estado acabado ou definitivo. Ao contrário, o homem se encontra em infinito

crescimento e evolução, tal como o próprio cosmos no qual está inserido e sua própria

essência é de natureza infinitesimal.

Uma vez que já estamos de posse de uma certa caracterização de como se

configura o homem e sua essência na filosofia de Peirce, é momento de nos remetermos

ao âmago da presente tese e analisar o conceito de imortalidade do homem, propriamente

dito, no interior da sua filosofia. Para fazer isso de maneira adequada, entendemos que é

recomendável, antes de explorarmos em detalhes e diretamente os textos de Peirce que

abordam a questão da imortalidade, proceder com uma breve exposição do escopo geral

da chamada metafísica psíquica ou religiosa do autor.

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Isso é necessário como um procedimento de exposição porque na Classificação

das Ciências do autor, o tema imortalidade está inserido no interior dessa chamada

metafísica psíquica ou religiosa, de modo que, uma vez que partimos, como já afirmado

desde a introdução, da interpretação de que a filosofia de Peirce configura uma arquitetura

filosófica, consideramos ser mais acertado mantermos essa posição e partir do

entendimento do lugar e papel do tema imortalidade no interior do esquema classificatório

do autor em direção à exploração dos seus detalhes nos textos específicos.

2.1 Escopo da metafísica psíquica ou religiosa de Charles Peirce

Charles Peirce desenvolveu ao longo da sua carreira um tipo sui generis de

metafísica, que pode com justa razão receber o epíteto de científica. Em Kósmos Noétos,

Ibri mostrou de maneira arquitetônica como se dava a passagem da fenomenologia do

autor para a sua ontologia realista.213 Essa passagem, como bem mostrou Ibri, implica no

entendimento da indiferenciação entre mundos interno e externo na filosofia do autor, o

que é revelado pela homogeneidade das categorias, ou seja, pela aplicação das categorias

tanto no âmbito fenomenológico quanto no ontológico.214 Assim, explica Ibri, a

Fenomenologia ensina para a Metafísica peirciana que “a totalidade da existência é a

totalidade do aparecer.”215 Por isso mesmo, “o pragmaticista realista verá, no fenômeno,

pensamento vivo, idealidade figurada como expressão legítima de revelação da

interioridade, seja ela humana, seja ela do Universo.”216 Ibri chamou essa conaturalidade

ou aplicação das categorias, indiferenciadamente, tanto ao mundo fenomênico como ao

mundo real de simetria das categorias217:

[…] o conceito de conaturalidade encontra-se harmonicamente presente

no que chamo de simetria de categorias. [...] Considero a

213 (IBRI, 1992, capítulos 1, 2 e 3). 214 Cf. Idem. 215 (IBRI, 2001, p. 74). 216 (IBRI, 2001, p. 74). 217 Na Apresentação à recente (2015) reedição do seu pioneiro livro, o Kosmos Noétos, publicado

originalmente em 1992, edição amplamente utilizada neste trabalho, Ibri ressalta o espírito no qual, a partir

das reflexões desenvolvidas nesta obra, forjou em obras subsequentes, o conceito de simetria das

categorias, uma das suas principais chaves originais de leitura da obra peirciana, para, exatamente, explicar

como a passagem da fenomenologia à ontologia realista do autor configura a marca pragmática para o

entendimento da cientificidade da metafísica do autor. Cf. (IBRI, 2015, p. 7-10). Sobre o conceito de

simetria das categorias, ver: (IBRI, 2009), (IBRI, 2010), (IBRI, 2011) e (IBRI, 2014a).

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conaturalidade um conceito importante. Abre muitas portas para

reflexões ontológicas, as quais não mais podemos evitar se

verdadeiramente desejamos entender o que Peirce pretendia com sua

filosofia. Contudo, como estudioso de Kant, Peirce não proporia uma

metafísica mal construída, mas sim uma metafísica no estilo kantiano,

rigidamente fundamentada em uma Fenomenologia, com o cuidado de

manter o amplo conceito do fenômeno por ele proposto. (IBRI, 2014a,

p. 40)

Em sua pesquisa da obra peirciana, Ibri, ao introduzir essa chave de leitura,

intencionou resolver o problema de harmonizar os escritos de Peirce que tocam os temas

de metafísica com os outros aspectos de seu pensamento, como, por exemplo, sua

filosofia da ciência e semiótica.218 Na verdade, Ibri mostrou que todos os aspectos da

filosofia do autor estão arquitetonicamente relacionados sob a égide das categorias; cada

ciência no interior do sistema peirciano buscará observar metodologicamente seus objetos

específicos a partir das categorias como modos de aparecer e de ser.

Assim, podemos entender a partir dessa importante passagem extraída da obra de

Ibri que a metafísica peirciana busca explicar, a partir de uma fenomenologia bem

estabelecida pelas suas três categorias, como o mundo real deve ser para que ele apareça

fenomenologicamente do modo como aparece219, ou seja, busca responder à pergunta

como deve ser o mundo para que ele apareça assim?220 A filosofia de Peirce, assim,

configurar-se-ia como uma ciência de caráter profundamente conjectural e heurístico.

Por outro lado, e pelo mesmo motivo, a metafísica peirciana é também uma ciência

positiva, ou seja, uma ciência que, marcadamente, se volta para os fatos, tal como

aparecem e estão disponíveis para qualquer mente, e não possui, assim, caráter

218 Alguns comentadores, por exemplo, (GALLIE, 1952), (SHORT, 2007), (SHORT, 2010) e (ATKIN,

2016), possuem uma leitura da obra peirciana na qual esses aspectos são considerados como absolutamente

não harmonizáveis. 219 Em (ALMEIDA, 2014, capítulos 1 e 2) descrevemos as experiências tipificadoras de cada uma das três

categorias fenomenológicas. Aqui, podemos, para efeito de brevidade, resumir essa descrição ao essencial

do seguinte modo: a primeiridade é tipificada por experiências caracterizadas pela novidade, frescor,

espontaneidade, livres e plenas de frescor, experiências que não possuem relação com nada mais; a

segundidade é, por sua vez, tipificada por experiências de esforço, luta, reação, ou seja, que envolvem,

essencialmente a alteridade e a dualidade; a terceiridade, enfim, é tipificada por experiências que envolvem

mediação, aprendizado, representação, generalização, ou seja, que envolvem, essencialmente, a

continuidade e a presença de um terceiro mediando entre um primeiro e um segundo. 220 (IBRI, 1992, p. 21). Como revelou Ibri, o mundo real deve configurar um misto de primeiridade,

segundidade e terceiridade nas suas formas ontológicas de acaso, existência e lei, respectivamente (Idem,

p. 38).

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fundacional, ou, em outros termos, não se funda em argumentações de tipo dogmático a

partir de instâncias meramente a priori, incognoscíveis em última medida.

Porém, a realidade que a metafísica peirciana, enquanto ciência heurística e

positiva, pretende explicar é, exatamente, aquilo que, como vimos, possui independência

em relação à mente ou conjunto de mentes, sendo, porém, de natureza eidética. Temos de

manter isso sempre em mente para não confundir o caráter epistemológico e conjectural

das proposições metafísicas, provisórias por natureza e tendentes, no longo caminho (long

run) a chegar a um eventual estado de informação satisfatório, com a natureza do próprio

real, seu objeto, que permanece sendo o que é, independentemente de qualquer

representação.

Feita essa importante consideração acerca da natureza geral da metafísica

científica peirciana, podemos nos voltar ao escopo a ser particularmente desenvolvido

neste capítulo: o lugar ocupado pelo tema imortalidade no interior de tal metafísica.

No texto “Um Esboço de uma Classificação das Ciências”221, Peirce caracterizou

brevemente as divisões da metafísica da seguinte forma:

A metafísica deve ser dividida em (i) metafísica geral ou ontologia; (ii)

metafísica psíquica ou religiosa, que aborda principalmente as questões

de (1) Deus, (2) Liberdade e (3) Imortalidade; (iii) metafísica física, que

discute a natureza real do Tempo, Espaço, Leis da Natureza, Matéria etc.

(CP 1.192)

O lugar que o objeto da nossa tese, o conceito de imortalidade do homem, ocupa

no interior da divisão da metafísica do autor parece ficar claro nessa passagem. Ele

encontra-se no interior da segunda subdivisão da metafísica científica do autor, junto com

as questões de Deus e da Liberdade do homem.

Algo muito importante a ser mencionado é que Peirce nunca desenvolveu explicita

e sistematicamente aquilo que descreveu nessa passagem como configurando a metafísica

psíquica ou religiosa. Por isso, todos os textos que analisaremos neste e também no

próximo capítulo devem ser considerados como uma espécie de reconstrução temática da

metafísica psíquica ou religiosa de Peirce e não como uma abordagem ou exploração

sistemática promulgada e sistematizada pelo próprio autor. Sendo essa também a razão

pela qual alguns aspectos dessa reconstrução, sobretudo os que estão reservados ao

221 CP 1.180-202.

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capítulo três, possuem uma natureza claramente conjectural. Por outro lado, a passagem

citada acima, escrita por volta de 1903, ou seja, já em sua maturidade, sugere que ele

reconhecia a legitimidade da divisão, de modo que é cabível dizer que tudo o que

eventualmente foi por ele escrito no tocante a esses temas, direta ou indiretamente222,

poderia ser encaixado nessa subdivisão.223

Outro ponto de extrema importância a ser apontado é que a metafísica psíquica ou

religiosa, ocupando o segundo posto na subdivisão da metafísica científica do autor,

segundo a natureza da própria classificação das ciências, a saber, uma natureza que

prescreve uma relação de dependência entre todas as ciências, das mais gerais para as

mais específicas224, encontra-se em estrita dependência para com todas as ciências que a

antecedem na classificação. Em nossa propedêutica225, onde analisamos com mais

detalhes a classificação das ciências de Peirce, fizemos uso de um diagrama que convém

trazer mais uma vez aqui:

222 Apenas como exemplificação, citemos alguns textos: W 1:37-44 (Three Essays on Infinity and God;

Proof of the Infinite Nature of the Creator); W 1:490-503 (Lowell Lecture XI); W 1:57-94 (A Treatise on

Metaphysics; Analysis of Creation; SPQR); CP 6.428-434 (The Marriage of Religion and Science); CP

6.435-451 (What is Christian Faith; The Church), EP 2:1-3 (Immortality in the light of Synechism); EP

2.434-450 (A Neglected Argument for the Reality of God); W 6:167 (Contents – esboço de A Guess at the

Riddle: The triad in Theology). Acerca deste ponto, ver também (ANDERSON, 1995), (RAPOSA, 1989),

(ORANGE, 1984). 223 Em 1995, Herman Deuser publicou uma coletânea em alemão dos escritos de Peirce sobre religião

(DEUSER, 1995), contendo muitos textos importantes da chamada metafísica psíquica ou religiosa. Até

onde pude pesquisar, essa é a única coletânea inteiramente dedicada aos escritos sobre religião de Charles

Peirce. Além dessa coletânea, o que temos são textos publicados em conjunto com outras partes da filosofia

do autor. No entanto, a primeira compilação de alguns dos escritos sobre religião de Peirce encontra-se no

Collected Papers, volume 6, livro dois e, para a qual os editores aduziram a seguinte nota editorial: “O

segundo livro deste volume, devotado à religião ou ‘metafísica psíquica’ possui apenas tênues conexões

com o resto do sistema, oferecendo, aparte de escassos flashes de insights, visões que possuem mais caráter

sociológico ou biográfico do que propriamente um interesse fundamentalmente sistemático.” (CP 6, p. v).

Essa nota parece ter ditado o tom com que grande parte dos comentadores ainda tratam os escritos sobre

metafísica psíquica ou religiosa de Peirce. Desnecessário dizer que estamos, tal como a maioria dos autores

que utilizamos como suporte para a presente tese, na linha contrária. Ou seja, para nós, os escritos sobre

metafísica psíquica ou religiosa possuem ligações notáveis com as outras facetas do pensamento do autor,

conforme procuraremos evidenciar ao longo deste e do próximo capítulo. 224 Para mais detalhes acerca dessa classificação, (PARKER, 1998) e (LUCAS, 2003). 225 (ALMEIDA, 2014, capítulo 1).

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Fonte EP 2.258

O que pode ser visualizado a partir do diagrama, é que aquilo que Peirce chamou

de metafísica psíquica ou religiosa não é um ramo independente de ciência; ao contrário,

qualquer investigação que venha a ocorrer em seu interior responde para um grupo já

consolidado de resultados obtidos pelas ciências precedentes. Vamos entender a que isso

levará trazendo um pouco mais de detalhes.

A primeira ciência que precede a metafísica psíquica ou religiosa na classificação

das ciências é a metafísica ontológica, o que significa que aquela depende direta e

primeiramente desta. Em outros termos, quaisquer conjecturas que possam ser tecidas no

interior da metafísica psíquica ou religiosa sobre a realidade de Deus, da liberdade e da

imortalidade só podem ocorrer na medida direta em que tais conjecturas correspondam,

em suas respectivas especificações, coerentemente aos resultados mais gerais a que

chegou a metafísica ontológica.

É muito importante lembrar que os resultados obtidos pela metafísica ontológica

se referem à configuração do real a partir das três categorias, acaso, existência e lei226

consideradas como modos de ser operantes na natureza e em todo o universo. Isso quer

dizer que, na metafísica psíquica ou religiosa de Peirce, os objetos Deus, liberdade e

imortalidade, embora sejam sequenciados como se fossem uma concessão à abordagem

metafísica tradicional, não são abordados dessa maneira, ou seja, não são explicados

como deduções racionais necessárias que revelam os três elementos incondicionados

estudados por uma filosofia de caráter, no fundo, teológico; tal perspectiva revelaria, no

fim das contas, meras afirmações de coisas-em-si-mesmas, que, segundo vimos no

primeiro capítulo, configuram, para Peirce, meros incognoscíveis e, portanto, afirmações

226 Ibri propõe essa tríade em (IBRI, 1992, p. 38).

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autocontraditórias, justamente por não possuírem uma âncora no mundo fenomênico e

real. Deixemos bem claro, Peirce rejeita tal abordagem teológica tradicional de maneira

por vezes até ríspida e irônica, e há diversos textos do autor que podem comprovar essa

rejeição, na verdade bem conhecida pelos seus estudiosos.227

Mas, por outro lado, os objetos Deus, liberdade e imortalidade também não

funcionam como meros objetos postulados pela razão prática como sendo apenas pré-

condições para as nossas ações morais, recurso introduzido a partir da interpretação de

que tais objetos não se encontram no campo da experiência possível apreensível pela

razão teórica.228 Ao contrário, em Peirce, tais objetos devem, pragmaticamente, aparecer

de algum modo perscrutável no mundo real investigado pela ontologia.

No entanto, uma ressalva muito importante deve ser feita. Evidentemente, não

estamos a sugerir que Peirce pensava que Deus, a liberdade e a imortalidade aparecem de

modo direto para observação no mundo real. A observação, ou, em outros termos, a

experiência possível desses objetos, nomeados assim por conjectura, ocorre de maneira

indireta, aliás, como ocorre com qualquer objeto da metafísica, a exemplo de qualquer lei

natural, mas nem por isso o seu estudo, propriamente desenvolvido, deixa de possuir

caráter científico, no sentido amplo que Peirce imputa a esse termo.229 As evidências

indiretas de como os objetos Deus, liberdade e imortalidade aparecem no mundo são, em

grande parte, exatamente, o campo de investigação da ciência denominada metafísica

psíquica ou religiosa, conforme veremos ao longo deste e do próximo capítulo.

227 Ver, por exemplo, CP 1.140; CP 5.406; CP 6.3; CP 6.361, nota 2; CP 8.109. 228 A referência aqui é claramente Kant e seus postulados da razão prática, a existência de Deus, a Liberdade

do homem e a imortalidade da alma. Esses três postulados da razão prática em Kant estão curiosamente

fundados na premissa de que a moralidade nos direciona a buscar o bem supremo, algo não muito diferente

da linha peirciana, conforme veremos. Outro ponto de contato interessante é o fato apontado por

comentadores de que, para Kant, o atingimento de uma certa felicidade durante a busca do bem se dá a

partir da ação moral e é proporcional às virtudes do homem. (Cf. KRUEGER; LIPSCOMB, 2010, p. 10).

Porém, Deus, a liberdade e a imortalidade funcionam, em Kant, como pré-condições para a ação moral, e,

portanto, possuem um caráter fundante, procedimento decididamente distante do de Peirce. Esse caráter

fundante é postulado justamente porque tais objetos não pertencem ao mundo fenomênico, nos termos da

filosofia do próprio Kant e, por isso, devem ser trazidos à tona meramente como pressuposições práticas e

nunca como doutrinas teoréticas. Além do mais, essas pressuposições nunca devem ser consideradas como

elementos motivadores para sermos morais, pois, se assim procedessem, minariam a pureza da motivação,

desvirtuando-a. O seu procedimento deve ser o de aperfeiçoar as condições pressupostas pela racionalidade

da ação moral, permitindo assim que possamos agir com base na motivação pura, sem ameaça de

autocontradição. (Cf. GUYER, 2006, p. 19-20). 229 Ver, por exemplo, CP 6.428 e CP 7.49-58.

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Ressalta-se, assim, que, para que possamos entender o que Peirce tem a dizer a

partir dos textos em que discorre sobre temas da sua chamada metafísica psíquica ou

religiosa, devemos estar preparados para seguir o caminho sui generis que ele mesmo

seguiu, abandonando tanto a abordagem tradicional desses temas, quanto a perspectiva

da filosofia crítica, que parece também ter sido abandonada por Peirce, embora o seu

caminho próprio tenha sido, de certa forma, construído a partir dos resultados por ela

trazidos, e que não podem ser ignorados por quem quer que vise estudar seriamente

filosofia.230

Mas, por outro lado, a metafísica ontológica chegou aos seus resultados

conjecturais a partir das duas ciências que a precedem na classificação, a saber, as ciências

normativas e a fenomenologia, no âmbito da Filosofia e, extrapolando esse âmbito, a

partir da matemática, a primeira ciência da classificação das ciências do autor, da qual

todas as outras dependem e que não depende de nenhuma outra ciência.231 Assim, a

metafísica psíquica ou religiosa depende também das ciências normativas (lógica, ética e

estética), da fenomenologia e da matemática, pois, ela supõe o fim último, as formas como

o real aparece e o raciocínio geral e diagramático necessário para pensar os seus objetos.

Esse movimento de pensamento, evidenciado no diagrama acima, significa, em

um esforço de síntese, que as conjecturas a serem feitas pela metafísica psíquica ou

religiosa acerca de Deus, da liberdade e da imortalidade devem estar ancoradas em um

mundo real inteligível (âmbito da ontologia) de modo a permitir que esses objetos se

configurem como aspectos cognoscíveis e representativos de um fim a ser perseguido.

Esse fim a ser perseguido se inicia como um fim de uma ciência da descoberta e cada

ciência teria o seu fim ou os seus fins próprios, os seus objetos próprios. Porém, em uma

filosofia arquitetônica, tal como é a de Peirce, pode-se dizer que o conjunto de ciências,

das mais gerais às mais particulares e com a influência que tal diferença entre geral e

particular exerce, persegue, em última instância, o conhecimento possível e bem

representado, embora falível, de um fim último, que não depende de nenhum outro fim,

230 O que significa dizer que, embora Peirce rejeite os limites impostos por Kant de maneira teorética, não

de se pode inferir daí que Peirce ignorou a monumental influência de Kant, sobretudo de sua Crítica da

Razão Pura, obra que mostrou os limites do conhecimento dito científico e se tornou, merecidamente, uma

das obras mais influentes da história da filosofia. Ver para aprofundamento, (FERNANDO; MARKET; et

al, 1992); (LEBRUN, 2010) e (Cf. GUYER, 2006). 231 Ver a nossa propedêutica para detalhes acerca de como essa relação de dependência se constrói

(ALMEIDA, 2014). Ver para ainda mais detalhes (PARKER, 1998).

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chamado pelo autor de o summum bonum232 no âmbito das ciências normativas: lógica,

ética e estética.

Qualquer fim, e mais ainda esse fim último, perseguido por toda mente que

pretende conhecer, não pode, no interior de uma filosofia de caráter positivo, ser definido

aprioristicamente; por isso, exige-se que, para que se configure um bem representar dos

objetos de uma ciência, seja possível operar-se uma confirmação de toda e qualquer

conjectura feita no interior dessas ciências nas formas como o mundo aparece; isso faz

com que a metafísica psíquica ou religiosa, como uma das ciências que perseguem a

aproximação assintótica do fim último por meio de uma descrição adequada de seus

objetos próprios, recorra, tal como o faz qualquer ciência da arquitetura filosófica de

Peirce, ao mundo fenomênico em busca da confirmação da plausibilidade de suas

conjecturas. Esse movimento de confirmação exige uma ciência primeira capaz de

inventariar os modos de ser da experiência (âmbito da fenomenologia), e que o fez a partir

da definição e descrição das três categorias (primeiridade, segundidade e terceiridade)

tipificadas por experiências disponíveis para qualquer mente, ou seja, experiências livres

e espontâneas (que tipificam a primeiridade), de alteridade e esforço (que tipificam a

segundidade) e de mediação e pensamento (que tipificam a terceiridade).

Enfim, como a fenomenologia depende da matemática para que os raciocínios

empregados no inventário e descrição das categorias sejam realizados com o máximo

possível de rigor, pode-se dizer que a metafísica psíquica ou religiosa também depende,

em última instância, dos raciocínios matemáticos, como demonstra o próprio conceito de

contínuo que exploramos no capítulo anterior e acerca do qual voltaremos a tratar neste e

no próximo capítulo, circunscritos ao seu aspecto filosófico.

O que essa relação de dependência entre a metafísica psíquica ou religiosa e as

ciências que a antecedem na classificação começa a revelar? A resposta é: que as

descobertas e resultados conjecturais feitos pela metafísica psíquica ou religiosa foram

atingidos por Peirce a partir do método científico, cujo caráter está fundado em um

profundo diálogo semiótico com o mundo fenomênico, com os fatos, com o real

inteligível. Isso permite entender também o quão distante a metafísica psíquica ou

232 Summum bonum é, em Peirce, o bem supremo, que não depende de nenhum outro bem e de nada mais,

para o qual todos os ideais tendem a se conformar. Voltaremos a esse ponto durante esse e o próximo

capítulo. Consultar (ALMEIDA, 2014). Ver, para mais detalhes (POTTER, 1997).

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religiosa de Peirce se encontra de qualquer tipo de dogmatismo apriorístico, apesar de

seus objetos, em suas nomeações, aparentarem certa carga tradicional.

Enfim, Deus, a liberdade e a imortalidade podem ser objetos de cognição em

Peirce e, embora em alguns momentos as proposições acerca desses objetos possam

possuir uma natureza mais conjectural, não há contradição essencial entre tais objetos e a

visão científica do mundo, segundo o nosso autor. Na verdade, os objetos da metafísica

ontológica e da metafísica psíquica ou religiosa e mesmo do terceiro ramo de divisão da

metafísica descrito por Peirce, a saber, a que investiga a natureza das leis naturais, do

tempo e do espaço, encontram-se em íntima ligação no interior de sua arquitetura

filosófica.

O que estamos afirmando se tornará mais claro na continuidade da presente tese,

na medida direta em que operarmos a análise de como se configura o conceito de

imortalidade na filosofia do autor. Teremos também a oportunidade de verificar, ao longo

do caminho, porque tal conceito possui sentido pragmático e, portanto, não se refere a um

postulado teológico apriorístico sobre a natureza da alma, mas sim a um conceito pensado

e caracterizado como algo bem diferente da concepção dogmática da imortalidade

propugnada por diversas religiões institucionais.

É hora de testar o resultado deste esclarecimento preliminar com o objeto

específico de nossa tese. Ou seja, é hora de nos voltarmos a análise, propriamente dita,

do conceito de imortalidade no interior da filosofia do autor. Para bem realizar essa tarefa,

analisaremos detalhadamente os textos em que o autor aborda o tema da imortalidade,

primeiro de uma maneira crítica e, depois, de uma maneira positiva e, após fazê-lo,

realizaremos, no último movimento deste capítulo, o esforço de confirmar, junto com o

autor, o lugar e dimensão deste conceito no mundo real e inteligível.

2.2 Construindo o conceito peirciano de imortalidade do homem: uma análise dos

textos de Peirce acerca do tema “imortalidade”

O conceito de imortalidade do homem surge, textualmente, relativamente cedo na

filosofia de Peirce; para ser mais exato, em 1866.233 Trata-se de um conceito que, para

233 W 1.500-502

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ser bem entendido, deve ser inteiramente construído junto com o autor, a partir de seus

textos. Portanto, não se trata de defini-lo desde o início e operar uma dedução de

consequências dessa definição, malgrado se possa com isso frustrar a expectativa de que

assim fossemos proceder.

Por outro lado, devemos adiantar que esse conceito de imortalidade se encontra

estritamente ligado à uma visão de mundo na qual o universo é considerado como uma

grande harmonia em expansão, ou seja, como um universo continuamente evoluindo e se

tornando um palco de criação e espontaneidade, palco no qual tudo o que surge, atingindo

a existência, e permanecendo, tende a adquirir hábitos e caminhar em direção a uma

razoabilidade, que, por outro lado, não exige a necessidade estrita em suas

manifestações.234

Peirce parece ter exibido esse pensamento desde sua juventude:

Ah! Que harmonia celestial será quando todas as ciências, uma como

violino, outra como flauta, outra como um trombeta ressoarem na

sinfonia majestosa da qual o nobre órgão da astronomia soa

eternamente o tema. (W 1.114)235

No interior dessa visão, quando Peirce contava apenas vinte e quatro anos, três

anos antes de escrever o texto onde introduziria o seu conceito de imortalidade, parecia

já ecoar um certo melhorismo que associava o pregresso da civilização ao corpo de

descobertas atingido pelo pensamento científico.236

Esse progresso, também ele de caráter evolutivo, estaria ligado ao papel exercido

pelo conhecimento científico no processo de emancipação, não só do próprio sistema

filosófico, que deveria adequar-se, em seu campo de estudo, ao método e às descobertas

operadas pelas grandes ciências, mas também à emancipação das ordens políticas e

234 O fato de estar descartada, no pensamento de Peirce, a necessidade enquanto resultado irremediável do

processo de expansão evolucionário afasta toda e qualquer tentativa de se pensar Peirce como abraçando,

em alguma instância, o pensamento de Hegel. Voltaremos a isso no capítulo três. 235 Essa passagem é retirada de uma oração proferida por Peirce na Cambridge High School Association

em 1863, chamada The Place of Our Age in the History of Civilization. 236 Brent e Murphey, por exemplo, mostraram como esse pensamento foi, em muitos sentidos, herdado por

Peirce da atmosfera cultural em que nasceu e foi criado, bem como pela grande influência que seu pai,

Benjamin Peirce, reconhecido homem de ciências já em seu próprio tempo, exerceu sobre ele. Ver

(MURPHEY, 1993, 9-19) e (BRENT, 1993, 26-81).

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religiosas em relação a fundações de tipo autoritário e absolutista ou em relação a

explicações supersticiosas e apriorísticas.237

Peirce parece ter mantido esse pensamento ao longo de toda a sua carreira. Em

1903, por exemplo, aos sessenta e quatro anos, encontramos Peirce afirmando o seguinte,

no contexto de sua semiótica:

[...] o universo é um vasto representamen, um grande símbolo do

propósito de Deus, que elabora suas conclusões em realidades vivas.

Agora, todo símbolo deve ter, organicamente agregado a si, seus Índices

de Reações e Ícones de Qualidade; e o papel que essas reações e essas

qualidades exercem em um argumento e que, certamente, exercem no

universo – sendo o Universo precisamente um argumento. […] O

Universo como argumento é necessariamente uma grande obra de arte,

um grande poema – porque todo argumento refinado é um poema e uma

sinfonia – assim como todo poema verdadeiro é um argumento perfeito.

(CP 5.119)

Tal atribuição ao papel da ciência para o progresso da humanidade está

diretamente ligada à visão experimental e autocorretiva que Peirce defendia estar por

detrás da forma como podemos, em nosso falibilismo, saber que a ciência pode exibir

alguma forma eficaz de atingir a verdade acerca das coisas em suas predições acerca da

natureza a partir do seu método, calcado em uma lógica objetiva238:

Para nós, a Ciência deve significar um estilo de vida, cujo único

propósito animador é encontrar a verdade real, que persegue este

propósito por meio de um método bem-ponderado, arraigado em uma

completa familiarização com tais resultados científicos já averiguados

por outras pessoas como possivelmente fiáveis, em busca de

cooperação na esperança de que a verdade seja descoberta, se não por

quaisquer atuais inquiridores, então ultimamente por aqueles que os

sucedem e que devem utilizar seus resultados. Não faz diferença o grau

de imperfeição do conhecimento de um homem, nem seus erros e

237 Talvez esteja aí parte da explicação do fato de Peirce, durante basicamente toda a sua vida, ter tido

consideráveis problemas com representantes não só do conhecimento secular, mas também das religiões

institucionais, que não estavam preparados para exibir a abertura de pensamento necessária para

compreender o que Peirce estava dizendo. Ver (BRENT, 1998). 238 Para mais detalhes acerca do conceito de ciência em Peirce, consultar (RESCHER, 1978). Ver também

a conhecida série Ilustrações da Lógica da Ciência, W 3.242-338.

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preconceitos; a partir do momento em que ele se engaja em uma

inquirição no espírito descrito, aquilo que o ocupa é a ciência. (CP 7.54)

Sendo a realidade da imortalidade, na medida em que se configura como um

cognoscível para Peirce, objeto de uma ciência específica no interior da sua classificação

das ciências, o processo de inquirição que pode revelar um estado de conhecimento

possível acerca deste tema encontra-se, tal como ocorre com todo e qualquer objeto a ser

compreendido por meio do método científico, e, dentro dos seus limites e contexto, em

estrita ligação com a concepção geral de Ciência exibida pelo autor desde a sua juventude.

Assim sendo, Peirce buscará se afastar de maneira muito clara de qualquer

concepção da imortalidade baseada em dados apriorísticos elaborados por uma filosofia

de base no fundo teológica, que faz as suas proposições lógicas dependerem de um

método de fixação de crenças fundamentado na autoridade de um Deus em particular ou

no que é apenas agradável à razão.

Essa situação, porém, revela uma peculiaridade no tratamento que devemos dar a

esse tema no interior do pensamento do autor, que é importante deixar claro desde o

início. Trata-se de realizar uma dupla tarefa expositiva:

Em um primeiro momento, iremos abordar o tema da imortalidade a partir de um

viés crítico exibido pelo autor. Ou seja, seguiremos o caminho de um Peirce preocupado

em refutar qualquer pretensão pseudocientífica de tornar o conceito de imortalidade, em

seu sentido tradicional, objeto de afirmações categóricas baseadas em observações

imprecisas conduzidas a partir de hipóteses de início dogmáticas. Essa faceta do

tratamento que Peirce dá ao tema ‘imortalidade’ será trabalhada na análise de um texto

que recebeu o nome editorial de “Ciência e Imortalidade.”239 Esse primeiro momento,

assim, nos ajudará a compreender o que o conceito de imortalidade de Peirce não é.

Em um segundo momento, abordaremos dois textos que, exibindo um caráter mais

especulativo e positivo, nos conduzirão a um processo de construção do conceito de

imortalidade exibido pelo autor no interior de sua semiótica e classificação das ciências

como objeto de sua metafísica psíquica ou religiosa. Neste segundo momento, o primeiro

texto que analisaremos é, exatamente, a continuidade da Lowell Lecture XI240, de 1866,

que já tivemos a oportunidade de conhecer em nosso primeiro capítulo, onde o analisamos

239 W 6.61-64. 240 W 1.490-504.

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até o momento em que o raciocínio nele desenvolvido por Peirce chegou à um ponto no

qual duas consequências se fizeram notáveis, uma primeira consequência, que levava a

uma concepção sui generis da imortalidade do homem, e uma segunda consequência que

explorava uma possível leitura trinitária/triádica da concepção de Deus, que abordaremos

no próximo capítulo. Retomaremos, pois, esse texto exatamente de onde paramos e

examinaremos detalhadamente a passagem em que o conceito de imortalidade é definido,

pela primeira vez, positivamente, pelo autor.

O outro texto que iremos analisar no contexto representado pelo segundo

momento de nossa tarefa expositiva é um texto relativamente curto, porém denso em

consequências, escrito em 1893. Esse texto, não intitulado à época em que foi escrito,

mas que recebeu, posteriormente, o título editorial de “A imortalidade à luz do

Sinequismo”241 complementa, em pleno escopo do sinequismo do autor, à essa altura mais

desenvolvido e amadurecido, o que o anterior exibe nos termos e contexto da sua primeira

abordagem da semiótica, ou doutrina geral dos signos, com uma concepção de

continuidade ainda incipiente.

A partir desse duplo movimento de pensamento, veremos como Peirce entendia

ser a imortalidade, abordada de maneira bem diferente da tradicional, um conceito que

dialoga semioticamente com sua visão sinequista do universo. Essa visão sinequista, já

pudemos vislumbrar no primeiro capítulo, abarca e mesmo exige todas as doutrinas da

arquitetura filosófica do autor, particularmente o seu realismo e idealismo objetivo. Por

isso, a análise dos três textos que efetuaremos preparará também o próximo e último

movimento do capítulo, no qual procuraremos exibir as ligações que o conceito de

imortalidade do autor mantém, de maneira especial, com o seu realismo radical e com o

seu idealismo objetivo no intuito de mostrar como este conceito possui caráter

pragmático, ou seja, os fenômenos que confirmam a plausibilidade da hipótese aparecem

para a análise de uma comunidade de investigadores e mesmo para qualquer mente que

os queira conhecer.

241 EP 2.1-3.

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2.2.1 “Ciência e Imortalidade”

No início da década de 80 do século XIX, Peirce se encontrava em pleno debate

com os representantes da filosofia determinista de sua época, impulsionado pelas

descobertas que o levaram, entre 1883 e 1884 a escrever o texto para uma conferência

intitulada Design and Chance242, na qual primeiramente falou sobre o papel do acaso na

origem e evolução das leis da natureza.243 O engajamento de Peirce com esse debate foi

bastante notável entre essa e a década seguinte. Neste contexto, Peirce procurava deixar

clara a sua concepção de que a filosofia determinista trabalhava em conjunto com o

nominalismo, doutrina a qual vinha se opondo há ainda mais tempo, para o

estabelecimento de uma visão de mundo calcada no individualismo, ou seja, no

descontínuo; visão contrária ao seu sinequismo, que via não ruptura, mas continuidade

em todas as coisas e que, embora tomasse todas as coisas como sendo explicáveis de uma

maneira geral, não precisava postular para isso algum tipo de necessitarismo estrito, nem

epistemologicamente e muito menos ontologicamente.244

Em sua luta para exibir as falhas que encontrava no nominalismo e no

determinismo, Peirce procurava evidenciar em seus textos, em diversas dimensões, as

contradições ou contrariedade aos fatos observáveis exibidas por tais doutrinas. Essa rota

de pensamento, que se iniciou muito cedo em sua carreira, acabou por culminar em seu

conhecido texto A Guess at the Riddle245 e na série cosmológica The Monist246. Já vimos,

no capítulo anterior, brevemente, que Peirce expos nestes textos a sua explicação acerca

de como as leis evoluíram de um estado caótico onde não havia lei alguma, a partir de

uma tendência à aquisição de hábitos, que é a grande lei da mente, preconizando um

cosmos onde lei e acaso convivem e operam na evolução expansiva do universo.247

O texto denominado “Ciência e Imortalidade”248, que passaremos agora a analisar,

foi escrito em abril de 1887, um pouco antes do texto A Guess at the Ridlle, escrito entre

os invernos de 1887 e 1888, e quatro anos antes da série cosmológica The Monist, que

242 W 5.545-552. 243 Ver (HOUZER, Introduction to the Writings of Charles Sanders Peirce, v. 5, p. lxviii-lxx). 244 Cf. Idem. 245 W 6.166-210. 246 W 8.98-205. 247 Ver (IBRI, 1992, capítulos 3, 4 e 5). Veremos que essa explicação cosmológica está estritamente ligada

à concepção que o autor exibia acerca de Deus, tal como, por exemplo, Orange (1984) ressaltou. Por isso,

voltaremos a esse ponto no capítulo três. 248 W 6.61-64.

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como vimos, foi escrita entre 1891 e 1893. Esse texto foi uma contribuição de Peirce,

junto com outros proeminentes cientistas americanos249, para o Christian Register

Symposium, que publicou os textos dos autores no mesmo ano, sob o título editorial geral

homônimo “Ciência e Imortalidade”.250 Todos os convidados escreveram acerca do tema

proposto, expondo suas visões acerca de como a ciência via a crença em uma vida futura.

Peirce inicia o seu texto definindo o escopo da questão configurada pelo tema

proposto pelos organizadores do Simpósio: “O que sustenta os fatos positivamente

verificados a respeito da doutrina de uma vida futura?”251 Com isso, mais do que afirmar

apenas uma perspectiva, Peirce opera, logo de início, um processo lógico de circunscrição

temática. Ou seja, o que está em cheque é o que pode ser dito acerca do tema “crença em

uma vida futura” do ponto de vista científico, ou seja, a partir de fatos positivamente

observados.

Ao falar sobre isso de maneira lógica, Peirce também deixa claro o que ele entende

por “crença em uma vida futura”. Significa a crença na doutrina que afirma que:

[...] após a morte, retemos ou recuperamos nossa consciência

individual, bem como o sentimento, a vontade, a memória, e,

resumidamente (exceto por uma contingência infeliz), todos os nossos

poderes mentais em perfeito estado”252

Trata-se, exatamente, da doutrina tradicional de que a alma é imortal, propugnada

por grande parte das religiões antigas e modernas, somada a um elemento particular, a

saber, a recuperação do total estado mental anterior à morte. Essa é uma definição bem

geral, é claro, mas suficiente para os propósitos de Peirce.253 O artigo de Peirce buscará,

249 Entre eles: William James, Herbert Spencer (uma página comunicada por um orador e publicada uma

posição antes da contribuição de Peirce), Thomas Henry Huxley, Alexander Grahan Bell, entre outros. 250 The Christian Register Symposium: Revised and Enlarged, edited by S. Barrows; Geo. H. Ellis, Boston,

1887. A contribuição de Peirce foi publicada entre as páginas 69-75 da edição original do Simpósio. 251 W6.61. 252 W 6.61. 253 Na verdade, a crença na imortalidade da alma, nesse sentido tradicional, é bastante antiga. Segundo o

historiador grego Heródoto, os egípcios foram os primeiros a mantê-la. Os gregos também acreditavam na

imortalidade da alma, bem como outros povos antigos, como, por exemplo, os Persas, os Sumérios, os

Hindus e os Chineses. De modo que tal crença pode inclusive ter precedido a versão egípcia. Assim, tal

concepção certamente não é característica apenas da crença cristã. Há, é claro, diversas idiossincrasias em

cada concepção exibida por esses e outros povos que acreditavam ou acreditam na imortalidade da alma.

Essa tese não pretende ser uma investigação histórica sobre tal concepção, portanto, basta retermos aqui o

seu sentido geral, tal como Peirce o fez em seu texto.

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então, “julgar [a proposição da doutrina] da mesma maneira rigorosa com a qual se deve

julgar uma proposição da física, quais fatos nos levariam a nela crer ou não?”254

Peirce, inclusive, chega a ser irônico ao dizer que para se chegar a esse julgamento

é necessário “deixar de lado todos os altos aspectos dessa doutrina, sua sacralidade e

sentimento, aspectos acerca dos quais um homem de ciência, como tal, não está

autorizado a exibir alguma opinião.”255 E o que isso quer dizer? Por que o homem de

ciência não está autorizado a asserir proposições acerca dos aspectos “sacros” da vida

futura? Neste ponto, Peirce está de pleno acordo com Kant. Os “altos aspectos” da

doutrina tradicional da imortalidade da alma não são objeto de experiência em nenhum

sentido. Portanto, não pode ser objeto de ciência em seu sentido estrito. Em outros termos,

isso que Peirce denominou de “altos” ou “sagrados” aspectos da doutrina tradicional da

imortalidade não aparecem em nenhuma forma categorial no mundo (primeiridade,

segundidade ou terceiridade), de modo que não é possível ancorar uma afirmação positiva

a seu respeito em nenhum fenômeno e menos ainda em alguma inferência confirmável na

realidade (da natureza do acaso, existência ou lei). Por outro lado, veremos ao final deste

mesmo texto e nos dois posteriores que estudaremos, que Peirce exibe um elemento

específico de afastamento da doutrina kantiana no que se refere à circunscrição dos limites

do conhecimento humano em geral, e também no tocante ao tema em discussão nesse

capítulo, embora em uma esfera totalmente diferente da tradicional.

No entanto, à época de Peirce ainda havia alguns pensadores que tentavam falar

em termos positivos sobre algumas evidências para se chegar à conclusão de que é

possível manter uma opinião afirmativa acerca dessa visão tradicional de imortalidade.

Peirce estava ciente desse tipo de abordagem, conforme se pode notar na passagem que

se segue: “Por trás das mais proeminentes evidências positivas estariam os milagres de

cunho religioso, as maravilhas espiritualistas, os fantasmas, e etc.”256 Mas, mais do que

isso, embora Peirce tenha escrito na sequência, um tanto jocosamente, “tenho pouco a

dizer acerca de tudo isso”257, na verdade ele estava mesmo engajado em refutar tais

tentativas pseudocientíficas de justificar a imortalidade em seu sentido tradicional.

Por exemplo, uma dessas ditas evidencias de que há uma vida futura, a questão da

possibilidade da existência de fantasmas, foi objeto de uma disputa pública entre Peirce

254 W.6.61. 255 Idem. 256 W 6.61. 257 Idem.

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e os autores de um curioso livro chamado Phantasms of the Living,258 que afirmavam ter

encontrado evidências empíricas de que pessoas mortas podiam produzir alucinações de

sua presença em pessoas vivas, do mesmo modo que quaisquer duas pessoas, em um

diálogo, veiculam pensamentos uma para a outra por meio de transferência de

pensamentos.

No texto que estamos analisando detidamente, Peirce cita, particularmente, esse

livro Phantasms of the Living, o que indica que já havia trabalhado com grande parte da

análise de dados que abordaria com muito mais detalhes em seu texto crítico publicado

um pouco depois, em dezembro do mesmo ano:

Três membros da Sociedade Inglesa de Pesquisas Psíquicas, English

Psychical Research Society, publicaram recentemente um vasto livro

de 1400 páginas, um octavo maior, intitulado “Os Fantasmas dos

Vivos”, (The Phantasms of the Living). Esse trabalho relata cerca de 7

mil aparições de pessoas mortas para outra pessoa a certa distância. O

fenômeno da telepatia ou a percepção sob condições que proíbem

percepções ordinárias, apesar de não totalmente convencionada, é

abalizada por observações notáveis. Contudo, os autores do livro do

qual falo – Messrs, Gurney, Myers e Podmore – acreditam que

comprovaram a existência de um tipo de telepatia pela qual pessoas

mortas aparecem para pessoas vivas a grandes distâncias. Seus mais

contundentes argumentos são baseados na doutrina das probabilidades,

a qual examinei com muita cautela, e estou absolutamente certo de que

tais argumentos são inúteis, em parte devido à incerteza e ao erro dos

dados numéricos, mas também devido ao fato de que os autores foram

espantosamente descuidados no tocante à admissão de casos

descartados pelas próprias condições de argumentação. (W 6.61-62)

No entanto, observa Peirce, mesmo que não fossem levados em consideração os

erros probabilísticos e metodológicos contidos nas análises dos dados das pesquisas dos

autores, e fossem tomadas, em um exercício meramente hipotético, como coerentes todas

258 (GURNEY; MYERS e PODMORE, 1886). A disputa está registrada no Writings of Charles Sanders

Peirce, volume 6, p. 73-154, onde estão incluídas as críticas de Peirce e as respostas de Gurney et al. Peirce,

basicamente, mina os argumentos dos autores atacando diretamente as falhas lógicas das análises indutivas

e probabilísticas, que suportam o tipo de telepatia ocorrida entre pessoas vivas e mortas que pretenderam

veicular a partir dos dados coletados em suas pesquisas. Trata-se, assim, de um exemplo claro de que Peirce

estava realmente engajado em refutar as aspirações de alguns cientistas em demonstrar positiva e

categoricamente a existência de uma vida futura em sentido tradicional.

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as estórias de fantasmas já contadas, bem como a realidade das manifestações espirituais,

o que elas provariam? Peirce deixa clara a sua visão:

Esses fantasmas e espíritos demonstram nada mais que um resquício da

mente; são como animais inferiores. Se neles acreditasse, eu concluiria

que enquanto a alma não fosse completamente extinta com a morte do

corpo, seria então reduzida a uma sombra lastimável, um mero fantasma

do seu “eu” prévio, como dizemos. E, por isso, esses espíritos e

aparições seriam tão dolorosamente solenes. (W 6.62)

Tais fantasmas, mesmo se admitíssemos provisoriamente a sua existência, a partir

dos fatos observados e veiculados como evidência de sua existência, seriam, na verdade,

existências bem distantes daquilo que a doutrina tradicional da imortalidade preconiza

como desejável. Nada de recuperação da consciência individual, dos sentimentos,

volições e poderes mentais em todo o seu poder em vida, mas sim, apenas a sombra

patética desses elementos. De modo que, mesmo para os que buscam na doutrina

tradicional uma forma de consolação em relação à finitude da existência, tal estado estaria

bem longe de satisfazer os seus anseios. Novamente, Peirce se faz bem irônico ao

comentar:

Eu posso, inclusive, até imaginar uma situação em que eu fosse

repentinamente liberto de todos os julgamentos e responsabilidades

desta vida; minha provação terminada e meu destino posto além de

qualquer coisa, eu me sentiria assim como em um veleiro em alto mar,

sabendo que por dez dias nenhum negócio apareceria e nada mais

aconteceria. Eu julgaria tal situação estupendamente divertida, seria o

ápice da alegria e eu me sentiria totalmente satisfeito por deixar o vale

das lágrimas para trás. Mas, em vez disso, essas pobres almas voltam

aos seus locais habituais para chorar pelo leite derramado. (W 6.62)

Por outro lado, ao se analisar as evidências positivas que levam à tendência de ser

não favorável à doutrina tradicional da imortalidade recorre-se, por exemplo, à aparente

dependência do estado do corpo em relação à ação mental saudável.259 Qualquer que seja

a conclusão científica acerca dessa questão, que nem mesmo Peirce tomava como

resolvida260, as evidências observáveis levam à tendência de se tomar ambos como

dependentes em alguma medida muito notável, embora não absoluta, o que seria uma

259 Cf. W 6.62. 260 Ver a esse respeito (RAPOSA, 1989, p. 110-112).

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evidência de que a alma não poderia possuir as mesmas faculdades, eternamente, de

maneira absolutamente independente da ação vital.

Ainda nesse contexto, há também, segundo Peirce:

[…] aqueles casos raros de dupla consciência em que a identidade

pessoal é completamente destruída ou modificada até mesmo nesta

vida. Se uma mulher ou um homem, que é um dia uma pessoa e, no dia

seguinte, outra, há de viver após a morte, por favor, peço que me digam

qual das duas pessoas que habitam o mesmo corpo estará destinada a

sobreviver? (W 6.62)

Esses fatos, observáveis empiricamente, parecem indicar que é, no mínimo

problemático, se não totalmente absurdo, defender a tese de que há evidências de que a

alma, após a morte, é imortal, no sentido tradicional, e mais ainda que recupera a sua

mesma condição quando em vida. No entanto, cabe aqui lembrar que Peirce, um pouco

mais tarde, em 1892, daria a sua explicação, como vimos no primeiro capítulo, acerca de

como é possível a comunicação entre mentes, de modo a incluir nessa explicação,

inclusive o fenômeno da múltipla personalidade.261 A explicação peirciana estaria

totalmente calcada em seu sinequismo e, como se pode antever, estará ligada ao aspecto

em que é possível falar em um tipo de imortalidade para Peirce. Mas, não apressemos as

coisas e continuemos a nossa análise do texto “Ciência e imortalidade”.

Seguindo o raciocínio de Peirce, à luz das descobertas científicas, parece haver

uma tendência muita clara a tomar a crença em uma vida futura desfavoravelmente, da

mesma forma que ocorre com outros objetos que são unanimemente tomados como

puramente imaginários. Assim, Peirce não deixa passar a oportunidade para fazer uma

comparação de caráter bem irônico:

Nós julgamos a possibilidade do invisível com base no que é visível.

Sorrimos diante da lâmpada de Aladim e do elixir da vida, pois ambos

são extremamente improváveis mediante ao que já passou por nossa

observação. Aqueles de nós que nunca viram um espírito ou qualquer

fato análogo à imortalidade entre as coisas que indubitavelmente

conhecemos, devem ser desculpados se desprezarmos essa doutrina.

(W 6.62)

261 Ver novamente a análise do texto “A Lei da Mente” que fizemos em nosso primeiro capítulo.

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Baseado nessas considerações, Peirce adianta a conclusão a que chegará ao final

do texto:

Além disso, estudos científicos nos ensinaram que o testemunho do

homem, quando não elaborado, é uma fraca evidência. Resumidamente,

a total improbabilidade de uma alma imortal comparada a qualquer

coisa de que não possamos duvidar, bem como a leveza de todos os

velhos argumentos para a sua existência parecem-me bastante incisivos.

(W 6.63)

Peirce simplesmente não levou à sério os argumentos usados pelo grupo de

cientistas que rogavam possuir base positiva para afirmar a existência de uma vida futura,

assumindo ser desfavorável à tal crença com base na observação e análise dos fatos

trazidos à tona nas discussões propostas inclusive por quem defende,

pseudocientificamente, tal concepção tradicional; a leveza dos argumentos e o caráter dos

fenômenos, tomados hipoteticamente como reais e partilháveis, não deixam dúvidas para

Peirce.

No entanto, de maneira até certo ponto surpreendente para quem o acompanhou

até este ponto, Peirce não encerra a questão. Ao contrário, parece querer utilizar esse tema

como quem recebe uma oportunidade, uma bem-vinda ocasião para a abordagem de

alguns aspectos que considerava importantes para se chegar a uma visão filosófica mais

acurada sobre a ciência. Vejamos:

Por outro lado, a teoria sobre outra vida pode muito bem ser reforçada,

junto com outras visões espiritualistas gerais, quando a falsidade

palpável daquela filosofia mecânica do universo que domina o mundo

moderno for reconhecida. (W 6.63)

Aqui, encontramos Peirce se colocando claramente em oposição ao mecanicismo

ou determinismo. Segundo Max Fisch, esse foi o primeiro texto de caráter público em

que Peirce se posicionou contra a doutrina da necessidade.262 Peirce, parece, assim, ter

aproveitado a ocasião para falar sobre uma de suas ideias mais importantes, que se seguirá

mais abaixo de outra igualmente importante. Essa ideia, a de que a variedade do universo

não pode ser resultado de mera aderência a leis mecânicas e que aparece aqui

publicamente pela primeira vez se tornará uma constante em seu pensamento.

262 Cf. (FISCH, 1986, p. 229).

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Na verdade, a sua oposição ao determinismo, em qualquer uma de suas formas, é

igualável à sua oposição ao nominalismo, posto envolverem uma oposição ao seu

pensamento sinequista, conforme já havíamos observado anteriormente. Para Peirce, “é

suficiente mergulhar no ar e, então, abrir os olhos e ver que o mundo não é governado

por mecanismos, como Spencer e outras mentes superiores nos fariam crer.”263

A hipótese promulgada pelo determinismo, a de que tudo no universo ocorre sob

a forma de leis determinadas ou determináveis não é uma hipótese com o poder

explanatório exigido por Peirce. Para Peirce, uma hipótese deve explicar os fatos, e a

hipótese determinista não explica fenômenos notáveis que se encontram presentes no

universo. Vejamos as palavras do próprio Peirce:

A infinita variedade no mundo não foi criada por lei. Não é da natureza

da uniformidade criar variações, e nem da lei gerar circunstâncias.

Quando observamos a diversidade da natureza, encaramos diretamente

uma espontaneidade viva. (W 6.63)

Para Peirce, o determinismo é incapaz de explicar a variedade do universo, pois,

nenhuma lei pode produzir variação, mas somente redundância. A própria lei é um hábito

de comportamento da natureza, que cosmicamente evoluiu a partir da não lei, já o vimos

tanto em nossa propedêutica como em nosso primeiro capítulo.264 Ibri foi mais uma vez

pioneiro ao trazer à tona e explicar de maneira contundente como essa posição de Peirce

se caracteriza como um tipo sui generis de indeterminismo ontológico que, de um lado,

acomoda a presença e crescimento das leis em suas categorias de terceiridade e

segundidade e, de outro, conclui que as próprias leis estão em um processo de evolução

onde o acaso se faz também presente, sendo esse o espaço da categoria da primeiridade,

de modo que qualquer conhecimento da lei que se possa ter é destituído de determinação

final pela própria natureza objetiva do universo.265 Essa é uma questão de ontologia,

mostrou Ibri, além de uma questão de epistemologia, porque, lembremos, acaso,

existência e lei são, na filosofia de Peirce, reais.266

263 W 6.63. 264 (ALMEIDA, 2014). Os detalhes dessa cosmologia devem ser consultados em (IBRI, 1992, capítulo 5). 265 Ver (IBRI, 1992, particularmente as páginas 50-51, mas, de preferência, o capítulo três completo). 266 Idem. Ver também (IBRI, 2015c) para detalhes acerca da irreversibilidade dos processos naturais.

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Peirce aduz ainda outro argumento contra a visão determinista do mundo: a

questão do crescimento. Segundo Peirce, o governo absoluto da lei não poderia explicar

os fenômenos observáveis que são caracterizados pelo crescimento:

E é aí que reside o grande fato do crescimento e da evolução. Sei que

Herbert Spencer se empenha em mostrar que a evolução é uma

consequência do princípio mecânico da conservação de energia. Porém,

seu capítulo sobre o assunto é matematicamente absurdo, e o condena

a ser um homem que fala pretensiosamente sobre o que não conhece. O

princípio da conservação de energia, como é bem conhecido, pode ser

descrito da seguinte forma: qualquer coisa que se modifique pode ser

trazida à tona por forças que podem igualmente ocorrer na ordem

reversa (todos os movimentos ocorrendo na mesma velocidade, mas em

direções reversas) sob o governo das mesmas forças. Entretanto, o

essencial acerca do crescimento é que ele ocorre em uma determinada

direção, que não é reversível. Por exemplo, meninos se tornam homens

e não homens meninos. Este é, portanto, um corolário primordial da

doutrina da conservação de energia: o crescimento não é o efeito da

força unicamente. (W 6.63)

O crescimento vetorial que podemos observar no universo em diversas formas não

pode, segundo Peirce, ser explicado de maneira puramente mecânica. Isso porque os

fenômenos que apresentam um vetor de crescimento são fenômenos não reversíveis, ou

seja, não-conservativos, o que contradiz um dos principais pressupostos do determinismo,

a saber, a reversibilidade das leis mecânicas. Sem entrar em muitos detalhes neste texto267,

Peirce conclui a partir dessas reflexões que o mundo:

[…] evidentemente não é governado por lei cega. Suas principais

características são absolutamente incompatíveis com esta visão.

Quando o homem da ciência começou a compreender a dinâmica, e a

aplicou com êxito à explicação de alguns fenômenos, logo se antecipou

ao dizer que o mundo poderia ser explicado daquela maneira também,

e foi então que a Filosofia Mecânica se estabeleceu. Contudo, um

estudo posterior sobre a natureza da força mostrou que seu caráter

267 Peirce, no entanto, o faz em suas famosas Conferência de Cambridge de 1898, ver (RLT),

particularmente as Lectures VI e VII.

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conservador refuta completamente a noção mecânica sobre o universo.

(W 6.63-64)

E a que tal conclusão leva? Peirce parece preconizar a completa ultrapassagem do

pensamento necessitarista e de toda sua metafísica determinista: “Assim como posso ler

os signos do tempo, a condenação da metafísica necessitarista está selada. O mundo

acabou com ela.”268 O próprio mundo, ou seja, os fatos observáveis, o levaram ao ocaso.

No entanto, Peirce tira uma consequência aparentemente estranha dessa conclusão:

“Agora ela deve abrir alas para visões mais espiritualistas, e é muito natural esperar

que um estudo posterior a respeito da natureza possa estabelecer a realidade de uma

vida futura.”269

Surpreendentemente, Peirce parece, a partir da passagem acima, deixar uma porta

aberta para alguma possibilidade de confirmação, a partir de estudos de objetos e

fenômenos observáveis na natureza, da realidade de uma vida futura. Essa possibilidade

parece compreender um contexto de uma visão de mundo e uma filosofia não antagônica

a um tipo de espiritualismo polido, que, talvez, mesmo homens de ciência poderiam

manter, e, segundo alguns comentadores, parece ter sido esse o caso do próprio Peirce.270

Na sequência, Peirce expõe, como uma espécie de justificativa por ter deixado

essa possibilidade aberta, a segunda de suas principais ideias publicadas nesse artigo,

ideia essa que na verdade já exibia desde a sua juventude271, e que configura um ponto de

divergência bem notável com o pensamento kantiano:

De minha parte, não posso admitir a proposição de Kant – que haja

certas barreiras intransponíveis ao conhecimento humano, e mesmo que

existam barreiras em relação ao infinito e ao absoluto, a questão de uma

vida futura, distinta da questão da imortalidade, não as transcende. (W

6.64)

Peirce aqui defende a sua concepção de que não há limites definidos para o

conhecimento possível, desde que tal conhecimento se ancore em um real cognoscível.

Qualquer expressão desse real será falível, ou seja, configurará, na verdade, uma

268 W 6.64. 269 W 6.64. 270 Ver, por exemplo, (BRENT, 1998), (MURPHEY, 1993), (RAPOSA, 1989), (ORANGE, 1984),

(CORRINGTON, 1993), (POTTER, 1997) e (ANDERSON, 1995), entre outros. 271 Ver (ALMEIDA, 2014a, p. 285). Ver também o primeiro capítulo, onde abordamos essa questão no

contexto da concepção peirciana de homem.

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aproximação, mas, no entanto, é conhecimento. Não se deve “bloquear o caminho da

investigação”272, dirá Peirce contundentemente em outra ocasião. Para demonstrar o que

quer dizer com isso, Peirce fornece alguns exemplos:

A história da ciência fornece ilustrações suficientes sobre a insensatez

em dizer que isso ou aquilo nunca poderá ser descoberto. Auguste

Comte, por exemplo, dizia ser impossível que o homem pudesse

aprender qualquer coisa a respeito da constituição química das estrelas

fixas, contudo, antes que seu livro chegasse à mão dos seus leitores, a

descoberta em questão foi feita. Legendre, por sua vez, falou sobre uma

certa proposição a respeito da teoria dos números que, enquanto parecia

verdadeira, estava, em contrapartida, além dos poderes da mente

humana prová-la. No entanto, o próximo a escrever sobre o assunto

forneceu seis demonstrações diferentes de tal teorema. (W 6.64)

Lembremos que estamos no interior de um texto que pretende responder à

pergunta “o que a ciência tem a dizer sobre a questão da imortalidade?”. Peirce está

propondo que há a hipótese de surgir alguma evidência científica, ou seja, ancorada nos

fenômenos, de que há uma vida futura real, como nos exemplos que ele acabou de dar

para confutar a circunscrição radical de Kant? Parece que sim: “não vejo porque os

cidadãos da Terra não poderiam, algum dia, descobrir se de fato há vida futura ou

não.”273 E o próprio Peirce já havia falado sobre isso anos atrás, em 1866, conforme

veremos no próximo tópico, e falará depois, em 1893, conforme também veremos em

seguida. Mas, dada essa constatação, a pergunta residirá, na verdade, em que tipo de vida

futura é razoável se pensar? Ou, em outros termos: qual tipo de vida futura seria aceitável

em termos lógicos e observáveis publicamente? E, nesse sentido, Peirce sempre manteve

a posição totalmente desfavorável à abordagem tradicional da imortalidade. Por isso, e

como esse texto partiu da crítica à ideia tradicional da ideia de imortalidade, Peirce

conclui do seguinte modo o seu texto:

Porém, no presente, entendo que não temos fatos suficientes para

concluir qualquer coisa a respeito desta questão. Se há pessoas que

creem numa vida futura, seja por afeição à venerável crença da

cristandade ou para o seu próprio consolo, elas fazem muito bem.

Contudo, não acho sábio extrair quaisquer deduções práticas a partir de

272 CP 1.135. 273 W 6.64.

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proposições religiosas ou sentimentais – como, por exemplo, que a

felicidade e os direitos humanos são pouco importantes; que os nossos

pensamentos devem ser isolados das coisas mundanas, e etc. – a menos

que tais deduções passem pela sanção do bom senso. (W 6.64)

O que é objeto de um quase agnosticismo da parte de Peirce nesta conclusão,

sugerimos, é apenas a versão tradicional da doutrina da imortalidade, que não permite a

extração de nenhuma consequência prática, tal como exige o pragmatismo, de sua

admissibilidade em termos científicos. Assim, dentro dessa perspectiva, exigida de todos

os que contribuíram com o Simpósio, não se pode concluir outra coisa senão a total

impossibilidade de se afirmar, baseado no estado atual de conhecimento, que a vida

futura, em sentido tradicional, é real. Mas isso, por outro lado, não quer dizer que se deve

bloquear o caminho da investigação. Parece ser isso o que Peirce está sugerindo.

Por outro lado, essa reflexão pode também explicar a ambiguidade terminológica

presente em uma das passagens acima, na qual Peirce fala “sobre a questão da vida futura

como distinta da questão da imortalidade”, como se estivesse a sugerir que a primeira

poderia ser um dia confirmada como possibilidade e a segunda não, por estar além da

observação. Isso é ambíguo em relação ao fato de que, como já adiantamos, ele mesmo

falará sobre a possibilidade da vida futura em outros textos usando, ele mesmo e para

além dos títulos editoriais, o termo imortalidade, sem fazer diferenciação. Portanto, aqui,

deve-se entender que a passagem faz apenas uma distinção hipotética, que não muda a

essência do que Peirce pretendeu veicular, tanto acerca do que sempre pensou ser nada

mais que uma questão de fé e não passível de opinião da parte do cientista, ou seja, a

visão tradicional, como também acerca do que parece ter sempre mantido como

possibilidade aberta da realidade de algum tipo de vida futura ou imortalidade, uma

conciliável com as exigências e metodologia científica, conforme estamos prestes a

começar a investigar.

Enfim, antes de encerrarmos esse primeiro movimento de exposição, que analisou

o texto de caráter mais crítico de Peirce sobre a questão da imortalidade, gostaríamos de

evidenciar que, segundo o editor do Christian Register Symposium de 1887, Samuel

Barrows, houve uma concessão geral entre os cientistas que contribuíram com o evento.

Tal como se pode observar no comentário editorial geral que se segue acerca dos

testemunhos publicados dos colaboradores:

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[...] esses artigos, em sua maioria, chegaram na concessão geral de que

a ciência não pode mostrar que a imortalidade é impossível. Isto é,

naturalmente, apenas uma prova negativa; mas mostra que a ciência é

tão impotente para refutar a doutrina como a religião o é para a

demonstrar. Muitas vezes tem sido assumido nas discussões modernas

que a ciência tem fatos ou provas em sua posse que tornam uma crença

na imortalidade racionalmente impossível. O testemunho deste júri de

cientistas mostra que esse não é o caso.274

Tal conclusão geral foi atingida, no entanto, por uma miscelânea de

argumentações curiosas. Algumas argumentações evidenciavam, diretamente, posições

agnósticas da parte de seus autores, outras argumentações revelavam autores mais

tendentes a serem favoráveis e, mesmo entre esses mais tendentes a serem favoráveis,

diversos eram os motivos, de modo que podemos encontrar nos registros, nessa linha de

argumentação, desde justificativas baseadas nas evidências que os proponentes julgavam

serem positivas (as mesmas que Peirce refutou e outras) até justificativas que beiravam

uma espécie de conflito, onde, cientificamente parecia haver um posicionamento próximo

de um agnosticismo, mas, do ponto de vista prático, uma adesão. E por que evidenciamos

isso? Apenas para que fique claro, dentro do escopo da nossa tese, que Peirce estava

inserido neste contexto com uma dimensão própria de abordagem e que tal debate não era

absurdo à essa época, mesmo após a chamada revolução kantiana.

2.2.2 “Lowell Lecture XI” (excerto)

Que tipo de imortalidade, então, é cabível pensar a partir da arquitetura filosófica

de Peirce? Em que sentido Peirce falou acerca de uma possível vida futura para o homem?

Para responder a essas perguntas vamos começar agora o segundo movimento de

exposição e construir, junto com Peirce, o seu conceito positivo de imortalidade.

Conforme adiantamos um pouco mais acima, isso será feito a partir da análise de

dois textos, o primeiro deles, que analisaremos agora é exatamente a continuação do texto

Lowell Lecture XI, de 1866275, onde Peirce anunciou aquilo que chamou de teoria da

274 The Christian Register Symposium, 1887, p.104. 275 W 1. 490-504.

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imortalidade. Vamos, conforme também já havíamos adiantado, retomar o texto

exatamente de onde o paramos, no primeiro capítulo, ou seja, a partir do momento em

que Peirce tinha acabado de concluir que o homem possui uma essência que não se

encontra aprisionada em uma caixa de carne e sangue e que essa essência é espiritual, ou

seja, de caráter intelectual.

Vimos também no primeiro capítulo que o fato de o homem ser incapaz de

conhecer tal essência de qualquer maneira dita ou interpretada como completa, o coloca

em um perpétuo estado de inacabamento, mas, ao mesmo tempo, de crescimento e

evolução que, em última instância, possui caráter social e contínuo. Recordemos um

pequeno trecho que servirá como ponto de ligação:

Essa essência da qual estou falando não é a alma inteira do homem, mas

sim apenas o seu âmago, que carrega consigo toda a informação que

constitui o desenvolvimento do homem, seus sentimentos, intenções e

pensamentos totais. Quando eu, isto é, meus pensamentos, entram em

outro homem, não carrego necessariamente meu ser total, mas carrego

a semente da parte que não levo e, se carrego a semente da minha

essência completa, então, carrego a de todo o meu ser atual e potencial.

(W 1.499)

Essa essência espiritual do homem é, tal como qualquer caráter inteligível e real

presente no universo, de natureza formal e não material. Ou seja, trata-se do fundo

eidético primordial presente em tudo o que é, segundo o realismo/idealismo objetivo do

autor. Peirce ligou esse caráter formal do universo à sua ideia de símbolo, único signo

capaz de representar as relações reais, ou seja, a terceiridade real.276 Por isso, uma

276 Terceiridade real é um vocabulário utilizado por Peirce em sua filosofia mais madura e se refere a uma

abordagem do real que envolve a aceitação da realidade das três categorias como princípios atuantes no

universo. Essa é uma passagem de extrema importância na filosofia do autor, significando o cume da sua

posição radical acerca do realismo. No momento em que Peirce deixa clara a sua visão acerca da

terceiridade real, como uma realidade de caráter contínuo, observável e dada, inclusive, na própria

percepção direta, anteriormente a qualquer crítica lógica, todas as possíveis dúvidas acerca da sua posição

como realista são extirpadas. Acerca dessa passagem, um texto muito importante é o “Os sete sistemas da

Metafísica”, de 1903 (EP 2.179-195), uma das suas famosas Conferências de Harvard sobre o

Pragmatismo. Neste texto Peirce descreve as sete classes possíveis de abordagem metafísica a partir da

admissão das três categorias (primeiridade, segundidade e terceiridade) como constituintes reais da

natureza: 1) Admissão da primeira categoria apenas: nihilismo ou idealismo sensualista; 2) Admissão da

segunda categoria apenas: individualismo estrito; 3) Admissão da terceira categoria apenas: hegelianismo;

4) Admissão da segunda e terceira categorias: cartesianismos de todos os tipos, leibnizianismo, spinozismo

e a metafísica dos físicos em geral; 5) Admissão da primeira e terceira categorias: berkeleyanismo; 6)

Admissão da primeira e segunda categorias: nominalismo; 7) Admissão das três categorias: kantismo,

reidmismo, platonismo, aristotelismo e, é claro, a própria forma peirciana de aceitação das três categorias

como reais e operantes (Cf. EP 2.180). O texto de Peirce opera, assim, uma defesa da sua forma de aceitação

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pequena digressão acerca de alguns elementos essenciais do símbolo, sobretudo em seu

aspecto ontológico277, se faz necessária antes de retomarmos o texto da Lowell Lecture

XI.

O texto que iremos analisar é de 1866, e, sabe-se que a semiótica de Peirce,

embora tenha começado a ser desenvolvida por essa época, chegou a um maior

aprimoramento em sua filosofia mais madura.278 No entanto, alguns elementos dessa

ciência mantiveram uma interpretação relativamente constante ao longo da carreira

filosófica do autor e, entre esses elementos, pode-se incluir o conceito e o papel do

símbolo como representativo de um modo de ser real e contínuo, sendo esse o seu caráter

ontológico.279 Por isso, é possível, no intuito de esclarecer alguns elementos importantes

para o devido entendimento da ideia que estamos prestes à veicular acerca da imortalidade

do homem segundo Peirce, mesclar elementos de diversas fazes da sua obra em relação

ao conceito de símbolo.280

Em 1865, em sua Harvard Lecture I, encontramos Peirce definindo um símbolo

como um “[...] tipo de verdade ou conformidade de uma representação com o seu

objeto”, a saber, uma conformidade ou capacidade de representar que “pertence à própria

natureza da representação, seja ela original ou adquirida.”281 Tal definição estava

estritamente ligada ao conceito de Lógica do autor exibido à essa época, que a tomava

como a ciência da representação considerada a partir da relação que o símbolo mantém

para com os objetos que ele representa, ou seja, como ciência que estuda as regras gerais

que determinam a verdade ou falsidade objetiva da representação simbólica em relação

das três categorias no intuito de assentar uma ontologia adequada para a fundamentação do seu

pragmatismo. Detalhes acerca do conceito de terceiridade real em Peirce podem ser consultados em (IBRI,

1992) e (ROSA, 2003). Ver também os textos de Peirce de 1905-1907 sobre o Pragmatismo, (EP 2.331-

433) e (ALMEIDA, 2014, p. 37-56). 277 Ver novamente o primeiro capítulo. Ver também (ALMEIDA, 2014a). 278 Ver (FISCH, 1986, p. 321-355). 279 Em (ALMEIDA, 2014a, p. 215-228) discutimos como essa concepção ontológica do símbolo pode ser

traçada na filosofia de Peirce desde as suas Harvard Lectures, proferidas em 1865 (W 1.162-302) até a sua

fase mais madura, como, por exemplo, no texto “Novos Elementos” (EP 2.300-324), escrito

aproximadamente em 1904. 280 Em nossa propedêutica exploramos a Semiótica de Peirce de maneira sistemática e geral no intuito de,

exatamente, definir os elementos necessários referentes à tal ciência a serem aplicados no escopo da

presente tese. De modo que não tomamos como necessário repetir aqui a análise sistemática da semiótica

peirciana já realizada, mas sim retomar apenas o elemento essencial construído acerca da natureza do

símbolo, no intuito de tornar inteligível o que se seguirá na análise do texto proposto. Para mais detalhes,

ver (ALMEIDA, 2014, capítulo 6). Informações ainda mais completas sobre a Semiótica peirciana podem

ser encontradas em obras cujo foco principal é essa ciência, por exemplo, (DELADALLE, 2000), (LISZKA,

1996), (SANTAELLA, 2004a) e (SHORT, 2007). 281 W 1. 170.

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ao objeto. Em outros termos, a Lógica estudaria apenas os símbolos considerados a partir

dessa relação para com o objeto.282

A ampliação do escopo da Lógica que Peirce levou à cabo em sua filosofia de

maturidade, expandindo o seu alcance para muito além do estudo apenas dos símbolos, e

não apenas incluindo o estudo de ícones e índices, mas também dos tipos de raciocínios

e suas influências em relação aos diversos tipos de interpretantes, dando luz à uma nova

concepção dessa ciência que, em seu programa completo, tornou-se equivalente à

Semiótica, ou teoria geral dos signos, não mudou, em essência, as peculiaridades

significativas do símbolo, embora tenha acrescentado nuances enriquecedoras para a sua

análise.

Assim, uma definição tardia de símbolo em seu significado geral que pode ser

muito esclarecedora é a que se segue:

Um Símbolo é um signo que se refere ao objeto que denota em virtude

de uma lei, normalmente uma associação de ideias gerais que opera no

sentido de fazer com que o símbolo seja interpretado como se referindo

àquele Objeto. Desse modo, um símbolo é, em si mesmo, uma lei ou

tipo geral, ou seja, é um legissigno [signo de lei, considerado em si

mesmo]. Como tal, atua através de uma réplica. Não apenas é ele

mesmo um geral, mas também o objeto ao qual se refere possui uma

natureza geral. (CP 2.249 – itálicos meus)

É importante ressaltar que em sentido estreito, o caráter significativo do símbolo

consiste em sua capacidade de representar o objeto para o seu interpretante.283 Em outros

termos, a sua natureza como signo de lei está no interpretante que ele determina.284 No

entanto, a razão de ser do interpretante de um símbolo consiste em sua capacidade de

veicular informação sobre o objeto dinâmico285 representado pelo símbolo por meio da

regra geral que está contida no próprio símbolo, quando considerado ontologicamente.

282 Ver, para mais detalhes, (ALMEIDA, 2014a). 283 Algo muito importante de ser lembrado neste ponto é que, segundo Santaella, “o interpretante é uma

propriedade objetiva que o signo possui em si mesmo, haja um ato interpretativo particular que o atualize

ou não”, ver (SANTAELLA, 2004a, p. 63). O interpretante pode, assim, ser lido como o efeito virtual ou

atual de todo processo de semiose. Interpretado desse modo, fica claro que o caráter significativo do

símbolo está totalmente atrelado à uma terceiridade real que dá conta da potencialidade futura de toda e

qualquer lei. 284 Conferir (SANTAELLA, 2004a, p. 132). 285 Para que não ocorra algum desvio interpretativo, apenas lembremos o significado geral de “objeto

dinâmico”: “Quanto ao objeto, este pode ser o objeto tal como é conhecido pelo signo, e, portanto, consiste

em uma ideia, ou pode ser o objeto tal como é, independentemente de qualquer aspecto particular que

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Vamos entender um pouco melhor: o objeto dinâmico, cuja natureza eidética é

geral, possui os seus predicados permanentes conectados ao símbolo por força de alguma

lei real (na natureza) ou convencional (na cultura). Mas, mesmo quando a ligação é

convencional, essa convencionalidade se deve à redundância comportamental nomeável

do objeto, que, assim, é real em alguma medida.286 É exatamente por causa disso que o

símbolo pode representar o objeto para o seu interpretante. Os hábitos constituem a razão

imediata de ser do símbolo e na razão mediata de ser do interpretante. Isso equivale a

dizer que toda e qualquer informação veiculada por um símbolo é determinada,

irrevogavelmente, pelo objeto. Por isso, pode-se dizer que:

Signo do pensamento e de objetos da natureza do pensamento, o

símbolo carrega a propriedade de representar aquilo que no objeto

dinâmico de qualquer natureza possui permanência e, portanto, pode ser

explicitado na forma de um conceito ou regra geral. Representa,

portanto, aquilo que se encontra presente no mundo sob uma forma de

terceiridade. (ALMEIDA, 2014, p. 107)

Um símbolo, considerado ontologicamente é uma representação de uma

terceiridade real, ou seja, uma representação de uma relação real atuante no universo. Isso

equivale a dizer que a regra geral está contida no próprio objeto representado pelo

símbolo, sendo esse o fundamento da representação. E, por isso, pode-se dizer também

que a própria terceiridade real, se atuar como signo, é também um símbolo, ou seja, que

toda lei é um símbolo de si mesma.

Por outro lado, enquanto signo e enquanto modo de ser, o símbolo também deve

ser lido de acordo com o evolucionismo do autor. Isso revela outro aspecto do símbolo

que pode temperar eventuais exageros de interpretação, sobretudo, conforme veremos, no

momento de entender em que sentido o símbolo se liga com a questão da imortalidade.

Portanto, vale a pena acrescentar mais essa nuance de leitura.

possa ter; ou seja, o objeto em relações do modo como seria mostrado por um estudo ilimitado e definitivo.

Ao primeiro denomino objeto imediato, ao último, objeto dinâmico.” (CP 8.183). Vale lembrar também que

não se tratam de dois objetos, mas sim de dois aspectos de um e mesmo objeto. Ver (ALMEIDA, 2014, p.

98). 286 Em outros termos, a ordem que possibilita a criação de uma lei convencional deve se encontrar de alguma

forma presente no mundo fenomênico, imaginário ou fatual, e deve ser revelado parcialmente pelo objeto

dinâmico.

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Lembremos que a propriedade de crescimento não deve ser tomada como uma

característica isolada, mas sim determinante dos símbolos.287 No primeiro capítulo

pudemos estudar, inclusive, como essa é uma característica que unifica homem e símbolo.

Pois bem, à luz do evolucionismo do autor, essa propriedade pode ser lida como

significando que qualquer símbolo é também uma instância por meio das quais o

crescimento da representação das leis ocorre, impulsionado pelo crescimento das próprias

leis.

Já evidenciamos que o universo, para Peirce, encontra-se em evolução, da qual

tudo faz parte. Nesse caminho evolutivo, o erro é um elemento real tanto das

representações como do próprio universo. O indeterminismo ontológico de Peirce

implica, como vimos, na presença de um acaso real, ou seja, atuante no universo.

Portanto, estamos em um universo em constante crescimento que também “erra”,

conforme apontou Ibri, pioneiramente.288

Por que as observações indicam que o universo é assim, nenhuma representação

das leis pode possuir status de completude absoluta, e, portanto, toda representação dos

objetos para um interpretante é parcial. Isso é o mesmo que dizer que não há símbolo

completo e de caráter final. Ou seja, todo símbolo, como tivemos a oportunidade de

verificar no capítulo um, está também em um caminho de crescimento, em um processo,

cujo objeto é a realidade, ela mesma tendendo a ser cada vez mais razoável.

Desse ponto de vista, embora, devido ao escopo dessa tese, iremos seguir o

caminho de mostrar o aspecto em que o símbolo pode ser lido como imortal, não podemos

deixar de pontuar que um símbolo também pode simplesmente “morrer”. Pode ser dito

que um símbolo morre quando a sua capacidade de representar os objetos para um

interpretante se estingue, ou quando representa falsamente a lei ou hábito real, ou mesmo

quando é interpretado como um particular ou atua como tal, a saber, de modo

degenerado.289

Por outro lado, os símbolos que crescem junto com o universo, tendendo a serem

cada vez mais razoáveis e se concretizando razoavelmente em cada oportunidade que

287 Ver (ALMEIDA, 2014). 288 Conferir, (IBRI, 1992, p. 51). Evidentemente, o termo ‘errar’ atribuído aos fenômenos naturais, tem em

Ibri um caráter metafórico, aproximando a erraticidade da atuação do Acaso aos nossos humanos erros de

previsão e conduta. 289 O que mostrará a falsidade de um símbolo é a experiência, ou seja, o objeto dinâmico. Um símbolo que

não tem aderência, ou seja, que não representa uma terceiridade real, tende ao desaparecimento.

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ocorre para incorporar uma verdade que para nós sempre será parcial, esses símbolos,

dizíamos, possuem a peculiar característica ontológica de tenderem a uma certa

imortalidade.

Para entender essa última afirmação, é momento de, a partir dessa pequena

digressão que se fez necessária, retomarmos, de fato, a Lowell Lecture XI de onde

paramos. Lá encontramos Peirce afirmando o seguinte:

O princípio de que a essência de um símbolo é formal, não material,

tem uma ou duas consequências importantes. Suponhamos que eu

apague esta palavra “seis” e escreva “seis”. Aqui, não haverá uma

segunda palavra, mas a mesma palavra novamente; elas são idênticas.

Agora, pode a identidade ser interrompida, ou podemos dizer que a

palavra existia apesar de não ter sido escrita? (W 1.500)

A primeira consequência a que Peirce se refere é um corolário da sua definição de

símbolo como um signo de caráter ontológico, cujo modo de ser consiste na permanência

da sua identidade simbólica, ou seja, de sua capacidade de representar o seu objeto para

um interpretante, independentemente de qualquer réplica que o incorpore, ou, em outros

termos, independentemente de qualquer atualização ou conjunto de atualizações. A partir

dessa concepção da natureza do símbolo, sua identidade não pode ser interrompida posto

ser ela contínua, ou seja, real mesmo que não haja sequer um individual que a esteja

incorporando em um dado momento do espaço e do tempo. Por isso mesmo, insistimos,

o símbolo pode representar adequadamente uma terceiridade real, que consiste

exatamente em uma permanência objetiva contínua.

A palavra “seis” sugere que duas vezes três é igual a cinco mais um.

Essa é uma verdade eterna; uma verdade que é e sempre há de ser; e

que seria igualmente verdadeira mesmo que não houvesse seis coisas

enumeráveis no universo, uma vez que permanecerá sendo verdade que

cinco mais um seria duas vezes três. Agora, essa verdade é a palavra

“seis”, se por seis não significarmos essa linha de giz, mas sim aquilo

em que seis, sex, e4c, sechs, zes, six e sei concordam.

Peirce, assim, sugere como exemplo a representação simbólica de uma verdade

permanente. Essa representação é o símbolo ‘seis’, que veicula o interpretante de uma

regra geral do universo com a qual concordariam também os símbolos cinco mais um,

duas vezes três ou sete menos um. Seus interpretantes equivalem. O estado de coisas

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representado pelo símbolo seis é contínuo, portanto, geral e possível em qualquer réplica

que o represente adequadamente.

Por outro lado, a verdade que esse símbolo representa não depende de que haja

um estado de coisas particular, como, por exemplo, cinco mais um ou duas vezes três

objetos para se contar em um dado momento. Essa seria uma visão nominalista do mundo.

Para Peirce, realista que é, ao contrário, seis, cinco mais um ou duas vezes três

permanecem símbolos verdadeiros porque representam adequadamente os estados de

coisas que podem ser representados por estes símbolos e, quando o são, produzem

interpretantes que serão sempre idênticos onde quer e como quer que as réplicas dos

símbolos em questão ocorram. Sendo assim, Peirce anuncia

[...] o verdadeiro símbolo possui um interpretante, na medida em que é

verdadeiro. E, por ser idêntico ao seu interpretante, ele sempre existe.

Portanto, o símbolo necessário e verdadeiro é imortal. (W 1.500)

O símbolo necessário290 e verdadeiro é, para Peirce, imortal. Isso porque os

interpretantes de símbolos que representam verdades necessárias serão sempre idênticos

aos próprios símbolos. Se os símbolos crescem, os interpretantes crescem. E isso

epistemológica e ontologicamente. Isso quer dizer que os símbolos que representam

verdadeiramente os seus objetos para os seus interpretantes sempre existirão, crescendo

em significado na medida mesma em que os objetos adquirem novos significados,

oriundos de suas infinitas possibilidades e incorporações em casos particulares ou réplicas

das mesmas regras gerais, ontologicamente simbólicas em suas naturezas, que constituem

a unidade dos símbolos.

Como um exemplo dessa linha de raciocínio, continuemos com o dado pelo

próprio Peirce na passagem acima: cinco mais um, duas vezes três, dez menos quatro etc.

sempre gerarão um mesmo interpretante referindo-se sempre ao mesmo real representado,

em suas possíveis réplicas. Estes símbolos, representando verdadeiramente o seu objeto

geral, muito embora do ponto de vista epistêmico parcialmente, existirão para sempre em

infinitas réplicas e através de seus interpretantes sempre idênticos a, por exemplo, ‘seis’.

Em outros termos, um símbolo verdadeiro é idêntico, formalmente e realmente, à verdade,

seu objeto. E a verdade, para Peirce, embora evolua, ou seja, cresça, jamais perece.

290 Lembremos mais uma vez que esse ‘necessário’ aqui não possui uma significação determinista.

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Mas, em nosso primeiro capítulo, recordemos, acompanhamos Peirce chegar,

nesse mesmo texto, à conclusão de que o homem é um símbolo: “Em qualquer instante,

então, o homem é um pensamento, e, tal como o pensamento é uma espécie de símbolo,

a resposta geral para a pergunta ‘o que é o homem?’ é que ele é um símbolo.”291 Assim,

o próximo passo de Peirce, a segunda consequência importante extraída da constatação

de que a essência do símbolo é formal e não material, não se torna uma surpresa: da

mesma forma que um símbolo necessário e verdadeiro é imortal, “o homem também deve

ser, desde que seja vivificado pela verdade.”292

Esse é o ponto em que finalmente temos Peirce a anunciar que a imortalidade do

homem é possível, positivamente. Trata-se, é claro, de um tipo bem diferente da

imortalidade em seu sentido tradicional, e Peirce estava bem ciente disso, embora

curiosamente afirme que essa imortalidade que acaba de anunciar não conflite com a

tradicional: “Esta é uma imortalidade muito diferente daquela que as pessoas esperam,

embora não conflite com a outra.”293 Na verdade, essa afirmação de que não há conflito

só faz sentido se for entendida de maneira bem geral ou se for circunscrita a esse texto de

juventude, pois, conforme acabamos de ver no tópico anterior, posteriormente, não seria

coerente essa afirmação de Peirce, pois, claramente há sim um conflito entre ambas as

noções de imortalidade. Uma, a tradicional, não toma parte da experiência possível e, por

isso mesmo, não pode nem ser afirmada e nem ser refutada de um ponto de vista

científico.294 A outra, por outro lado, pode ser objeto de experiência, pois é uma

imortalidade calcada em uma permanência real e verdadeira, conforme exploraremos

ainda mais na sequência.

Por que Peirce pode afirmar que o homem vivificado pela verdade é imortal tal

como um símbolo necessário e verdadeiro também o é? Em nosso primeiro capítulo,

abordamos em detalhes o conceito de homem do autor. Vimos que a personalidade pode

ser equacionada com a unidade da simbolização, uma unidade da generalização de hábitos

coordenados, segundo a grande lei da mente. Essa coordenação de hábitos é, conforme

vimos, teleológica e desenvolvimentista e configura o caráter de um homem. Durante o

seu processo de crescimento e expansão, que, frisemos mais uma vez, envolve as três

291 W 1.494. 292 W 1.500. 293 W 1.500. 294 E neste texto, Peirce já parecia ter isso bem claro. Veja-se a afirmação feita logo na sequência: “Eu não

conheço se o paraíso mohamediano não é verdadeiro, apenas não tenho evidências de que é.” (W 1.500).

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categorias do autor295, os fins de uma personalidade, infinitesimalmente presentes em

cada instante de uma série infinita, e, portanto, potencial em um sentido real, se dão a

conhecer por meio das condutas que encarnam as ideias coordenadas que formam o

caráter. 296

É essa complexa equação que permite a afirmação peirciana de que o homem-

símbolo, tal como qualquer outro símbolo necessário e verdadeiro, pode ser considerado

imortal na medida direta em que seus hábitos coordenados teleologicamente, ou seja, seu

caráter, encarna uma verdade em consonância com o real/ideal em evolução297 e adquire

a capacidade de influenciar continuamente o significado de qualquer número de

interpretantes para o futuro indefinido; influência comunicável para qualquer mente capaz

de entrar em relação semiótica com suas manifestações:

A existência espiritual, como o homem a tem dentro de si, a qual ele

carrega consigo em suas opiniões e sentimentos, simpatia e amor, serve

como evidência do valor absoluto do homem – e essa é a existência que

a lógica diz ser certamente imortal. Não é uma existência impessoal

porque a personalidade reside na unidade do “eu penso” – que é a

unidade da simbolização – a unidade da consistência – e pertence a todo

símbolo. (W 1.500)

Uma vez que o caráter do homem vivificado pela verdade equivale a uma essência

espiritual, ou seja, formal, tal como a unidade do símbolo necessário, não depende do

corpo para a sua permanência, embora tenha sido construído a partir de incorporações em

réplicas que permitiram o hábito se manifestar de alguma maneira no mundo exterior e

com isso se adequar mais propriamente, por meio de aprendizado, à verdade maior que

representa ou encarna. Por isso, Peirce pode dizer que a essência espiritual do homem,

que permanece mesmo após a morte:

Não é [...] alheia ao mundo externo porque o sentimento e a atenção são

elementos essenciais do próprio símbolo. Todavia, é uma existência

modificada, uma em que não há mais as glórias da audição e da visão,

295 Primeiridade e segundidade, dentro de uma terceiridade, que é o homem, propriamente dito. E essa

presença das categorias deve ser entendida tanto em seu aspecto fenomenológico quanto ontológico. 296 Ver capítulo 1, sobretudo as páginas 77-93. 297 Portanto, a própria verdade também está em evolução, o que permite acomodar o falibilismo e o

indeterminismo peirciano de maneira apropriada ao discurso acerca da imortalidade tanto do símbolo

quanto do homem-símbolo.

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pois os sons e as cores requerem o olho animal; e da mesma forma,

todos os sentimentos serão diferentes. (W 1.500)

Essa existência, melhor ainda seria dizer realidade, modificada após a morte de

maneira a se desprender totalmente do meio corporal de veiculação dos seus hábitos

coordenados, pode encontrar, por outro lado, outros meios de mediação, como uma obra

de arte, o devir da história, uma mídia cultural ou mesmo outras mentes que deem

continuidade a sua influência, etc.; e, assim, continuar crescendo e realizando as suas

potencialidades, evoluindo em uma palavra, tal como a verdade imperecível298 que

representa porque dela faz parte.299

Por outro lado, cabe ressaltar, brevemente, um aspecto muito importante que está

implícito no raciocínio acima e que é uma consequência do conceito de imortalidade de

Peirce. Parece haver uma gradação no interior da possibilidade da imortalidade. Isso quer

dizer que nem todo o homem alcançará a imortalidade e, talvez, haja inclusive graus de

permanência do caráter:

A existência animal é certamente prazerosa, apesar de algumas pessoas

estarem cansadas dela, mas penso que as pessoas mais educadas dizem

que ela não é imortal, do contrário, elas considerariam os brutos

imortais. (W 1.500)

Parece estar implícita nessa passagem a visão de que um homem bruto, ou seja,

um homem que não desenvolveu as suas potencialidades em consonância com o que é

razoável, ou seja, com o que é real, inteligível e dotado de propósito, não conseguiria ter

um caráter capaz de permanecer e influenciar interpretantes no futuro indefinido e, desse

modo, jamais atingiria a imortalidade reservada apenas para os homens que foram capazes

de diluir as suas individualidades em um fluxo contínuo e verdadeiro maior do que

qualquer uma de suas atualizações. Em outros termos, a imortalidade que Peirce considera

pensável de maneira lógica:

298 Essa verdade imperecível representada equivale ao próprio processo do crescimento da razoabilidade

concreta, ou seja, a evolução concreta daquilo que possui natureza inteligível e real, em nível cósmico.

Voltaremos a esse ponto em outras ocasiões, pois esse é um conceito-chave na ética e metafísica científica

peirciana. Trata-se de uma verdade imperecível porque, sempre verdadeira, embora em evolução, sempre

terá um interpretante e, assim, jamais deixará de existir. 299 Voltaremos a esse ponto ao tratarmos do caráter pragmático da imortalidade em Peirce. Veremos que,

realmente, o caráter de um homem morto pode influenciar a conduta de outros homens e, com isso,

contribuir com o crescimento da razoabilidade concreta.

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[...] é uma imortalidade que depende de o homem ser um símbolo

verdadeiro. Se, em vez de “seis”, tivéssemos escrito “Jove”, teríamos,

então, um símbolo que possui nada mais que uma existência

contingente, que não possui uma testemunha eterna na natureza das

coisas e morrerá ou permanecerá vivo apenas na memória dos homens,

sem despertar qualquer resposta em seus corações. É, entretanto,

verdadeiro uma vez que significa um ser supremo; sua alma genérica é

verdadeira e eterna, mas sua alma específica e individual é nada mais

do que uma sombra. (W 1.500-501)

O universo, como tivemos a oportunidade de vislumbrar no capítulo um, encontra-

se em um estado de evolução em direção a uma razoabilidade concreta e, sendo assim, o

homem que se torna imortal, representa verdadeiramente, em seu caráter, elementos

contínuos que estão realmente nesse processo evolutivo, uníssono com o cosmos. Por

outro lado, personalidades e caráteres, que nunca foram ou que em um dado momento se

tornaram incapazes de representar de maneira adequada a verdade, ou seja, generalidades

verdadeiras, acabam por perecer. Não podem perdurar porque não são verdadeiros, no

sentido peirciano, ou seja, não correspondem ao que é real e, portanto, são apenas

contingentes. Por isso, conclui Peirce:

Todo homem possui seu próprio caráter peculiar, que está presente em

tudo o que ele faz. Este caráter está em sua consciência, não sendo,

assim, um mero truque mecânico; e deste modo, é pelo princípio da

última Lecture300, uma cognição. Mas, por estar presente em toda a sua

cognição, é uma cognição das coisas em geral. É, portanto, a filosofia

do homem, a sua maneira de se referir às coisas; não uma filosofia da

mente apenas – mas uma filosofia que pervarde a totalidade do homem.

Essa idiossincrasia é a ideia do homem, e, se esta ideia é verdadeira, ele

viverá para sempre; se for falsa, sua alma individual terá nada mais que

uma existência contingente. (W 1.501)

A análise deste importante trecho sobre o tema da imortalidade, extraído da Lowell

Lecture XI, escrita e proferida por Peirce quando tinha apenas vinte e sete anos de idade,

parece deixar claro que o nosso autor não estava em momento algum sendo metafórico

ao dizer que a permanência do caráter de um homem após a sua morte é a imortalidade

que lhe cabe, desde que esteja vivificado pela verdade. Com isso, concordam todos os

300 Peirce se refere à Lowell Lecture X (W 1.488-490), da qual só existe um pequeno fragmento em texto.

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comentadores que tive a oportunidade de pesquisar nesta tese e que reconheceram ser

esse um tema legítimo na filosofia de Peirce.301 O próprio Peirce sabia que pontos

obscuros poderiam permanecer após um anúncio dessa natureza:

Senhoras e senhores, eu vos anuncio esta teoria da imortalidade pela

primeira vez. Foi dita e pensada de maneira pobre, mas sua base é a

rocha da verdade. E, pelo menos, servirá para ilustrar o uso que pode

ser feito por mãos mais poderosas desta ciência injuriada, a lógica, nec

ad melius vivendum, nec ad commodius disserendum.302 (W 1.502)

Lembremos que esse trecho é, basicamente, a finalização da última Lecture de

1866 proferida por Peirce no Lowell Institute, de Boston, Massachusetts. Conforme já

havíamos afirmado no capítulo um, o título geral dessas Lectures era “A Lógica da

Ciência ou Indução e Hipóteses”. O que Peirce pretendia ensinar com a série de Lectures

é que a Lógica deveria ser estudada como a ciência que permite o uso de uma metodologia

de raciocínio que torna as conclusões a que se chega utilizando-a mais científicas, ou seja,

explicativas de uma regularidade presente objetivamente no mundo. Assim, a Lógica teria

muito a contribuir com todas as ciências e, particularmente, seria uma grande aliada e

mesmo a base para a Filosofia, cuja missão consiste em construir uma concepção do

Todo303 baseada na objetividade do mundo e não em uma metafísica dogmática e

apriorística. Essa missão da Filosofia é, no entanto, também metafísica em última

instância, posto ser uma concepção das coisas em geral, mas uma metafísica baseada em

301 Por exemplo, Raposa, que dedica quatro páginas de seu livro, Peirce Philosophy of Religion para abordar

o tema da imortalidade no interior da Filosofia da Religião de Peirce, diz “Reconheça que tais asserções

claramente não são metafóricas para Peirce. Dizer que a influência que o caráter de um homem deixa atrás

dele é viva e pessoal é descrever o fenômeno de maneira literal e acurada.” (RAPOSA, 1989, p. 113 –

itálicos meus). Muio, em seu artigo Peirce on the Person, também reconheceu, na única passagem em que

fala da questão da imortalidade em Peirce no interior da sua teoria da pessoa, que “Como pensamento, o

homem atinge não apenas a continuidade com os seus companheiros homens, mas também um grau de

imortalidade. Ele vive como pensamento muito após ter morrido fisicamente.” (MUIO, 1984, p. 179 – realce

nosso). Anderson, em seu livro, Strands of System, afirmou “Peirce não acreditava em nenhuma espécie

de imortalidade física. No entanto, a possibilidade de uma imortalidade através do desenvolvimento e

espraiamento das ideias de uma pessoa é um resultado natural da sua lei da mente e teoria da

investigação.” (ANDERSON, 1995, p. 62). Enfim, Harrison, em Man’s Glassy Essence, dedicou também

três páginas para o tema da imortalidade, pois, conforme afirma “Finalmente há um assunto que talvez

mereça alguma menção, tanto porque Peirce tinha alguns apontes para fazer acerca dele, como porque tal

tema possui ligações intrínsecas com a sua teoria da pessoa. Falamos, aqui, da imortalidade. Embora não

tenhamos espaço para tratar deste tema em profundidade, o reconhecemos como um assunto genuíno.”

(HARRISON, 1971, p. 265 – realce nosso). Até onde pudemos pesquisar, esses foram os autores que

tocaram diretamente, embora brevemente, o assunto “imortalidade” na filosofia de Peirce e parecem

concordar que o assunto é legítimo, tal como nós. 302 Do latim: Não faz o homem viver melhor, nem falar melhor. 303 “A Filosofia é a tentativa – pois, como a própria palavra implica, ela é e deve ser imperfeita – é a

tentativa de formar uma concepção geral e substancial do Todo.” (W 1.490).

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uma lógica objetiva, ontológica; essa metafísica é, portanto, científica, no sentido

peirciano do termo. Após maturar a sua filosofia, conforme tivemos a oportunidade de

verificar no início deste segundo capítulo, Peirce apenas acrescentará, com uma

linguagem mais depurada, que, para que a metafísica possa ser realmente objetiva, as suas

conjecturas atingidas pelo uso de um raciocínio lógico-objetivo devem ser confirmadas

no mundo fenomênico, inventariado pelas suas três categorias. Assim, o vetor textual das

Lectures de 1866, que acabou culminando em uma teoria da imortalidade se faz, desde

aquele momento, livre de dogmatismos de qualquer tipo.

2.2.3 “A Imortalidade à luz do Sinequismo”

O nosso segundo movimento expositivo chega agora ao seu final, com a análise

de um último texto no qual Peirce fala diretamente sobre o tema da imortalidade. Trata-

se do texto de um artigo escrito por Peirce por volta de 1893, portanto, vinte e sete anos

após o texto anterior que acabamos de analisar e seis anos após o primeiro texto que

analisamos, no movimento um de exposição. O texto em questão foi elaborado com a

intenção de ser enviado para o periódico The Open Court, mas foi, no entanto, aprovado

para publicação em outro periódico, o The Monist. Porém, mesmo tendo sido aprovado,

o artigo acabou por não ser publicado, devido a um desentendimento entre Peirce e o

editor do The Monist à época, Paul Carus. Esse artigo acabou recebendo o título editorial

de “A imortalidade à luz do sinequismo”.304

Neste texto, Peirce aplica, literalmente, a sua doutrina do sinequismo a questões

ditas religiosas e, particularmente, ao caso da imortalidade do homem. De modo que a

partir de sua análise teremos a oportunidade de adicionar à construção do conceito de

imortalidade do autor importantes elementos que só se tornaram inteligíveis a partir da

sua reflexão mais madura. Ao escrever esse texto, Peirce, então com cinquenta e quatro

anos, havia acabado de assentar as bases de sua cosmologia nos artigos elaborados para

a série The Monist, mostrando como a origem das leis da natureza só podem ser

explicadas como tendo surgido de uma ausência de leis, um nada primordial, e evoluído

a partir de uma tendência a aquisição de hábitos, a grande lei da mente.305 No interior

304 EP 2.1-3. Ver também (HOUSER, 1998, Introdução ao Essential Peirce 2). 305 Ver também (IBRI, 2015c) para uma profunda reflexão sobre essa temática no contexto da VII

Conferência de Cambridge, proferida por Peirce em 1898.

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dessa explicação cosmológica, Peirce reservou lugar especial para a principal doutrina da

sua metafísica científica, o sinequismo. É sob esse pano de fundo que o texto se inicia, na

verdade com uma explicação resumida do que é, exatamente, o sinequismo:

A palavra sinequismo é a forma portuguesa do grego sunexismo/v de

sune/xhv, continuidade. Por dois séculos temos afixado ista e ismo às

palavras, com o objetivo de assinalar as doutrinas que exaltam a

importância daqueles elementos que a palavra raiz significa. Assim,

materialismo é a doutrina de que tudo é matéria; idealismo é a doutrina

de que tudo são ideias; dualismo a filosofia que divide tudo em dois. Da

mesma maneira, eu propus fazer sinequismo significar a tendência de

tomar tudo como contínuo. (EP 2.1)

Em outra ocasião, Peirce chamará essa doutrina de a “pedra angular do arco”306,

querendo dizer com isso que aquilo se configura como a sua arquitetura filosófica

depende em grande parte dessa doutrina. Peirce, em ainda outra ocasião, também se refere

a essa doutrina como a “tendência do pensamento filosófico que insiste na ideia de

continuidade como sendo de prima importância na filosofia e, em particular, sobre a

necessidade de hipóteses envolvendo o verdadeiro contínuo”307. Já tratamos disso em

nosso capítulo um, mas cabe retomar brevemente o elemento essencial desse conceito, de

modo que recorremos a uma interessante passagem de Rosa, que resume bem o que seria

um verdadeiro contínuo para Peirce:

[O verdadeiro contínuo peirciano seria uma] espécie de amálgama

(mas, que não é uma reunião de conjuntos) [no qual] os indivíduos

cessam de possuir existência individual e ficam fundidos. Deixamos de

poder inserir qualquer coleção de indivíduos por estes já estarem todos

inseridos [...]. É uma espécie de cardinal limite, mas que não forma um

conjunto. Ora, se não se trata de um conjunto, o contínuo deve ser algo

de potencial ou possível: ele é a possibilidade de inserir uma qualquer

multitude a partir de uma multitude dada. É um geral, pois há sempre

a possibilidade de determinar um número de indivíduos maior que não

importa que número de indivíduos dados.308

306 CP 8.257. 307 CP 6.169. Convidamos o leitor a retomar a leitura da nossa análise do texto “A Lei da Mente”, no

capítulo um. 308 (ROSA, 2003, p. 223).

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Assim, o sinequismo pode ser definido como a doutrina que tende a tomar todas

as coisas como contínuas de algum modo, estendendo, assim, o sentido forte do conceito

de verdadeiro contínuo peirciano a todo o universo. Neste conceito, não há a presença de

indivíduos absolutamente determinados, eles estão todos fundidos e são potencialmente

infinitos. Com isso, evidentemente, Peirce não está negando que existam

descontinuidades, pois isso seria negar a sua categoria de segundidade, que, como vimos,

também é um modo de ser presente e atuante no universo. O que Peirce pretende é

veicular a importante ideia de que quaisquer descontinuidades estão presentes em um

contínuo, sendo em verdade atualizações de potencialidades do contínuo e exercendo,

exatamente por isso, um indispensável papel em seu processo de expansão e evolução.

Como também vimos no primeiro capítulo, o conceito de continuidade esteve

presente na filosofia de Peirce desde os seus primeiros escritos, tendo sido maturado ao

longo de suas reflexões para chegar até o momento do presente texto a servir como base

para uma doutrina metafísico-científica onde sua ideia se apresenta como de primordial

importância. Ainda acerca deste ponto, Peirce afirma:

Levo a doutrina tão longe a ponto de sustentar que a continuidade

governa todo o domínio da experiência, em cada um de seus elementos.

De acordo com isso, cada proposição, exceto quando se relaciona com

um limite irrealizável da experiência (que chamo de Absoluto), deve ser

tomada como uma qualificação indefinida; pois uma proposição que

não tem qualquer relação com a experiência é totalmente desprovida de

significado. (EP 2.1 – itálicos nossos)

Nessa passagem, encontra-se explicitamente a radicalidade com que Peirce

considerava estar o contínuo presente em toda a realidade. O que essa passagem exprime

é a consideração de que a continuidade abarca toda a experiência e, portanto, como uma

forma de terceiridade, que abarca em seu bojo a segundidade e a primeiridade, é dada na

percepção. Ou seja, a continuidade é uma terceiridade real que pode ser experienciada,

sendo, na verdade, a própria forma da terceiridade. Uma vez que este ponto é muito

importante para a verificação da pragmaticidade do conceito de imortalidade, teremos de

voltar a ele no próximo e último tópico deste capítulo dois.

Considere-se, também, que os limites ideais irrealizáveis da experiência, ou seja,

o absoluto começo e o absoluto fim, não significam uma permissividade de uma espécie

de incognoscível, mas apenas um limite da nossa experiência da realidade. Tais limites

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são cognoscíveis, e, como veremos no terceiro capítulo, Peirce normalmente usa esses

limites associados, de maneira conjectural, com aquilo que entendia ser possível dizer

acerca de Deus. Ao afirmar que toda e qualquer proposição que possa ser asserida entre

esses dois limites irrealizáveis da experiência são qualificações indefinidas, Peirce não

está fazendo outra coisa além de reafirmar a falibilidade de todo e qualquer conhecimento

possível, inclusive o científico e, ao mesmo tempo, mostrando que o contínuo nunca será

totalmente definido, ou seja, esgotado em nenhuma experiência ou conjunto de

experiências atuais.309 No entanto, alguma experiência de algo de natureza inteligível

deve haver para que haja conhecimento. Por isso, o pragmatismo peirciano depende e é

sustentado pelo sinequismo, que, como vimos, exige um realismo e idealismo objetivo

radicais.

Uma vez que a doutrina do sinequismo possui tal importância, Peirce propõe o

escopo do restante do texto do seguinte modo: “Proponho aqui, sem chegar até a questão

extremamente dificultosa das evidências dessa doutrina, dar uma amostra da maneira

como ela pode ser aplicada a questões religiosas. Não posso aqui esgotar o método dessa

aplicação.”310 O que Peirce parece querer indicar com essa passagem é justamente que

algumas evidências da plausibilidade da doutrina do sinequismo pode oferecer uma

oportunidade de aplicação da mesma a questões ditas religiosas. No entanto,

evidentemente, o termo ‘religiosas’ aqui não deve ser entendido em sentido tradicional,

mas sim em um sentido alargado:

De imediato isso produz corolários que parecem, em princípio,

altamente enigmáticos. Mas os seus significados são clarificados por

meio de uma aplicação mais profunda do princípio. Esse princípio deve,

é claro, ser entendido em um sentido sinequista em si mesmo; e, assim

entendido, não se contradiz a si próprio de nenhum modo.

Consequentemente, ele deve levar a resultados definidos, se as

deduções forem realizadas cuidadosamente. (EP 2.1)

Essa passagem indica que Peirce parecia estar ciente das dificuldades que tal

caminho poderia provocar caso não entendessem os seus leitores que, ao propor tal

aplicação do sinequismo a questões de caráter dito religioso, não estaria autorizando uma

invasão indevida da religião no âmbito exclusivo da ciência. A questão é que Peirce não

309 O que também está ligado à crítica que o autor dirige ao positivismo. Ver a esse respeito (IBRI, 1992,

capítulo 3). 310 EP 2.1.

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enxergava uma separação radical entre os passos em direção à verdade dados pela ciência

e os dados pela religião, devidamente esclarecidas e semioticamente abertas311; e, se o

sinequismo pretende ser uma hipótese correta, ela deve ser aplicável a todo o âmbito

considerado pelo autor como explicável por meio da hipótese em questão. Por isso, dentro

dessa perspectiva, o que Peirce faz é movimentar o pensamento do seu leitor à um

aprofundamento no interior do significado real do princípio do sinequismo:

O sinequismo em sentido profundo não nos permitirá dizer que a soma

dos ângulos de um triângulo equivale exatamente a dois ângulos retos,

mas somente que essa quantidade equivale a mais ou menos alguma

quantidade excessivamente pequena para todos os triângulos que

possamos medir. Nós não podemos aceitar a proposição de que o espaço

possui três dimensões como estritamente correta; somente podemos

dizer que quaisquer movimentos de corpos fora das três dimensões são

muito pequenos. Não podemos dizer que os fenômenos são

perfeitamente regulares, mas somente que o grau das suas regularidades

é efetivamente alto. (EP 2.2)

Esses corolários da doutrina do sinequismo aplicada à realidade como um todo

parecem soar estranhas somente a quem ainda não dedicou a atenção necessária ao

entendimento do evolucionismo peirciano. Em um texto da série cosmológica publicada

no The Monist, “A Doutrina da Necessidade Examinada”312, anterior ao que estudamos

em detalhes no primeiro capítulo, “A Lei da Mente”, Peirce analisou detidamente os

principais argumentos em favor do determinismo, a doutrina de que tudo no universo é

determinado por leis absolutas, chegando à conclusão de que todos eles deveriam ser

rejeitados, particularmente após serem confrontados com as evidências oferecidas pelo

universo observacional, juiz de todas as hipóteses científicas. As observações mostram

que há um elemento de acaso presente e operante no universo; e essa presença do acaso

real, observável em diversos fenômenos, o determinismo é incapaz de explicar

adequadamente.

Já sabemos que Peirce chamou a doutrina que abraça essa presença de um acaso

real no universo de tiquismo313 e que essa doutrina é muito importante no interior de seu

projeto cosmológico exatamente porque tal doutrina, conforme o autor afirmou em “A

311 Ver, por exemplo, as reflexões de Peirce em The Marriage of Religion and Science (CP 6.428-434). 312 W 8.111-125. 313 Da palavra grega tu9xh, que significa “acaso”. Ver (IBRI, 1992, capítulo 3).

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Lei da Mente” “[...] deve dar à luz uma cosmologia evolucionária na qual todas as

regularidades da natureza e da mente são tomadas como produtos do crescimento.”314

Como evidências para a manutenção da hipótese propugnada pelo seu tiquismo, Peirce

trazia à tona, como já tivemos a oportunidade de discutir, os fenômenos caracterizados

pela espontaneidade, a variedade e a complexidade presentes na natureza, e os fenômenos

irreversíveis, como o crescimento.315 Em um universo onde tais fenômenos são

observados, permitindo a hipótese de uma doutrina que prediz ser o acaso um princípio

ativo e real, não faz sentido abraçar a ideia de que tudo se encontra absolutamente

determinado por leis (versão mais forte do determinismo, carregado de ontologia) ou

absolutamente determinável (versão menos forte, de cunho mais epistemológico, mas de

igual consequência prática). Assim, as próprias regularidades possuem limites reais e,

portanto, não podem ser objetos de proposições infalíveis e absolutamente determinadas.

Mais ainda, as regularidades possuem, segundo Peirce imperfeição e existência

qualificadas, conforme podemos claramente depreender da seguinte passagem:

Agora, como nenhuma questão experiencial pode ser respondida com

certeza absoluta, então nós nunca podemos ter razão para pensar que

qualquer ideia dada será estabelecida de forma irrevogável ou ser

refutada para sempre. Mas dizer que nenhum desses dois eventos se

dará definitivamente é dizer que o objeto tem uma imperfeição e

existência qualificada. (EP 2. 2)

Em última instância, o próprio processo evolutivo significa crescimento e

expansão, infinitamente acolhendo em seu seio a novidade, a variedade e a

complexificação. É esse processo que se encontra imerso no contínuo maior, que abarca

todas as outras dimensões contínuas.316 Para um sinequista, o potencial é tão real quanto

o atual e o potencial é real exatamente por estar no contínuo. Portanto, a passagem do não

ser ao ser não é uma questão de uma passagem de algo absolutamente descontínuo para

algo permanente no espaço e no tempo, mas sim um processo de atualização de

potencialidades no interior do contínuo. O comentário de Peirce acerca deste ponto é

esclarecedor:

Há um famoso dito de Parmênides, “e1sti ga0r ei]nai mhde0n d 0ou0k

e1stin”, “o ser é, e o não ser é nada”. Isso soa plausível; porém o

314 W 8.135. 315 Acerca da presença do acaso nos processos irreversíveis, ver RLT 197-241. 316 Ver CP 6.203.

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sinequismo o nega terminantemente, declarando que o ser é assunto de

mais ou menos, até fundir-se insensivelmente no nada. Isto se torna

nítido quando consideramos que dizer que uma coisa é equivale a dizer

que, ao final do progresso intelectual, isso irá adquirir um estado de

permanência no reino das ideias.

Aquilo que é real, permanecerá. E mesmo a novidade, apanágio da ação do acaso,

uma vez surgindo, se não se tratar de um fenômeno totalmente evanescente, e a filosofia

de Peirce permite isso, também permanecerá, adquirindo hábitos e influenciando a

conduta de tudo o que com ela se relacionar no interior do contínuo. Esse é o significado

da evolução no interior do sinequismo de Peirce. Esse processo acolhe em seu seio o

acaso, a regularidade e a permanência dessa por um princípio cósmico de aglutinação que

Peirce denominava de ágape.317

O sinequismo, assim, é um princípio pervasivo para Peirce. Para expor esse ponto,

Peirce passa a explicar porque o sinequismo e sua negação de quaisquer descontinuidades

absolutas pode e deve ser aplicado para além das questões envolvendo a ontologia da

matéria:

Certamente, nenhum leitor irá supor que esse princípio intenciona ser

aplicado somente a certos fenômenos e não a outros, por exemplo,

somente a pequena província da matéria e não ao resto do grande

império das ideias. Tampouco deve ser entendido como se referindo

apenas aos fenômenos, excluindo os seus substratos subjacentes. (EP

2.2)

O sinequismo deve abarcar, conforme essa passagem deixa bem claro, todo o

império das ideias. Isso é exatamente o idealismo objetivo do autor que, como vimos,

afirma ser tudo, inclusive a matéria, da natureza do mental, ou seja, de natureza

eidética.318 E o que Peirce quer dizer com a terminologia aparentemente obscura

“substratos subjacentes dos fenômenos”. Nada de incompreensível em termos científicos,

pois “o sinequismo certamente não tem nada a ver com qualquer incognoscível; mas não

admitiria uma acentuada separação entre fenômenos e substratos”319 O que significa,

então, substratos subjacentes dos fenômenos? Significa algo bem conhecido de qualquer

317 Do grego a0ga/ph, que significa “amor”. Trataremos do princípio cósmico denominado por Peirce de

Ágape no terceiro capítulo. 318 Para mais detalhes, ver (IBRI, 1992, capítulos 4 e 5). 319 EP 2.2.

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estudioso da obra de Peirce, nada mais nada menos que os fundamentos categorizados

dos fenômenos possíveis como primeiridade, segundidade e terceiridade, que expressam,

na verdade, uma natureza ontológica conhecida exatamente por aparecer em algum

momento como fenômeno. Por isso, Peirce pode completar a passagem,

pragmaticamente, dizendo: “Aquilo que subjaz ao fenômeno e o determina, é desse modo,

em si mesmo, um fenômeno.”320

No interior do sinequismo, fenomenologia e ontologia estão intimamente fundidos

em uma filosofia que não pode aceitar dualismos absolutos entre o que aparece e o que é,

entre o que é mental e o que é material, entre o que se diz sobre um objeto e a forma como

ele se comporta. Discurso e comportamento devem espelhar um ao outro, posto se

referirem ao mesmo processo contínuo inteligível.321 No texto que estamos analisando,

Peirce deixa esse aspecto de sua filosofia muito claro:

O sinequismo, mesmo em sua forma menos forte, não pode tolerar o

dualismo propriamente dito. Não deseja exterminar a concepção de

dualidade, nem nenhuma dessas caprichosas filosofias que proclamam

cruzadas contra essa ou aquela concepção fundamental podem

encontrar o menor conforto nessa doutrina. Mas, o dualismo em seu

sentido mais amplo e legítimo, como uma filosofia que realiza suas

análises com um machado, deixando, como elementos últimos, pedaços

desconexos de ser, é totalmente hostil ao sinequismo. (EP 2.2)

Essa passagem também torna evidente que as diferenças entre o sinequismo e

dualismos de quaisquer tipos são, na verdade, questões de hostilidade mútua. A visão de

mundo sinequista nunca poderá se harmonizar com a visão de mundo dualista, tal como

não pode se harmonizar com a determinista. Trata-se na verdade de uma escolha de

caráter filosófico. O sinequista escolhe o seu lado baseado em uma âncora no real, por

isso depende tanto de um realismo de tipo radical, tal como Peirce fez questão de frisar.

Mas também o faz baseado na natureza inteligível desse real, por isso o seu caráter

profundamente idealista. Sendo assim:

Em particular, o sinequista não admitirá que fenômenos físicos e

psíquicos sejam inteiramente distintos, tanto pertencendo a diferentes

320 EP 2.2. 321 Ibri, em suas obras, mostra com riqueza de detalhes, diversas aplicações desse princípio condutor do

pragmatismo peirciano. Ver (IBRI, 1992), (IBRI, 2000a), (IBRI, 2000b), (IBRI, 2004), (IBRI, 2006a),

(IBRI, 2010), (IBRI, 2014) e (IBRI, 2015a).

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categorias de substância, como sendo dois lados totalmente separados

de um mesmo anteparo, mas insistirá que todos os fenômenos são de

um mesmo caráter, embora alguns sejam mais mentais e espontâneos,

e outros mais materiais e regulares. Ainda, os dois juntos mostram a

mistura de liberdade e coação, que permite que sejam, ou melhor, faz

com que sejam teleológicos, ou dotados de propósito. (EP 2.2)322

O vetor evolucionário que, como vimos, abarca a ação do acaso e da lei em

contínuo crescimento e expansão é, para Peirce, um processo de caráter teleológico, ou

seja, um processo dotado de propósito. Em última instância, o propósito perseguido por

tudo o que se encontra no interior do contínuo maior é tornar-se mais razoável. No nosso

terceiro capítulo entenderemos um pouco melhor o que isso significa e como, de uma

maneira conjectural, porém profunda, isso está ligado à concepção peirciana de Deus.

Uma vez que o sinequismo não pode tolerar nenhum tipo de separação absoluta,

nenhum tipo de descontinuidade absoluta, também não deve haver algo absolutamente

individual, a ponto de não possuir sequer a possibilidade ou potencialidade de relação

com algo outro, imerso no contínuo. Um exemplo claro disso é a própria condição

humana. E esse é o próximo passo de Peirce no texto:

O sinequista também não pode dizer: “eu sou inteiramente eu mesmo e

de maneira nenhuma tu.” Se abraçares o sinequismo, deves abandonar

essa metafísica perversa. Em primeiro lugar, teus vizinhos são, em certa

medida, tu mesmo, de maneira muito mais ampla do que, sem

profundos estudos em psicologia, acreditarias. Realmente, a identidade

que gostarias de atribuir a ti mesmo é, em sua maior parte, o mais vulgar

delírio da vaidade. Em segundo lugar, todos os homens que se

assemelham a ti e se encontram em circunstâncias similares são, em

certa medida, tu mesmo, embora não exatamente da mesma maneira

que teus vizinhos são tu. (EP 2.2)

Essa passagem pode ser considerada um resumo das conclusões a que Peirce

chegou nos textos que estudamos no capítulo um. Símbolo que é, o homem peirciano só

pode chegar a uma certa realização em outros símbolos, seus interpretantes. Portanto, para

o seu próprio crescimento, o homem peirciano depende dos seus companheiros homens

322 Ver a análise de Ibri dessa passagem em (IBRI, 1992, p. 62-64).

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e nunca pode se intitular autossuficiente em sua própria individualidade, da mesma forma

que nenhum símbolo o pode.

Cada homem está inserido no contínuo, fundido com outros homens. O homem é

um ser social, já o vimos. De outro lado, a passagem também indica que para Peirce

poder-se-ia falar de uma certa graduação de proximidade ou afetabilidade de ideias nas

redes de relações humanas. Em outros termos, os seres humanos mais próximos uns dos

outros são mais afetados por suas interações de ideias do que o são os mais distantes,

porém igualmente semelhantes. Tal conclusão está fundada na lei da mente, de modo que

o homem espelha o cosmos em mais essa dimensão.

Em última instância, a identidade é, se tomada em termos absolutos, mera vaidade

e delírio para Peirce e, mais ainda, é a causa da estagnação do processo de realização e

aprendizado em uma esfera subjetiva. Dizemos esfera subjetiva porque, em termos

peircianos, mesmo que um homem tente se isolar em sua mera individualidade, o poder

de alcance deste isolamento não afeta em nada o caráter social e contínuo da condição

humana como um todo e nem sequer a consistência simbólica essencial do próprio

indivíduo que “acha” que consegue se isolar, mas apenas bloqueia, até certo ponto, a sua

capacidade de aprendizado e crescimento. Portanto, o completo isolamento é, segundo a

visão sinequista, no fundo uma mera ilusão, um delírio de vaidade. Tal como vimos, o

homem é, ele mesmo, um contínuo. Por isso, observa Peirce:

Há ainda outra direção na qual a concepção barbaresca da identidade

pessoal deve ser ampliada. Um hino Bramânico começa da seguinte

forma: “Eu sou aquele puro e infinito Eu, bem-aventurado, eterno,

evidente, onipresente, e que é substrato de tudo o que possui nome e

forma.” Isso expressa, mais do que humilhação, uma total dissolução

do pobre eu individual no espírito de oração. (EP 2.3)

E o que estará o nosso autor querendo dizer com essa aparentemente misteriosa

passagem? Simplesmente que podemos encontrar dimensões que oferecem evidencias da

completa ilusão do eu tomado como identidade absoluta. Uma dessas dimensões é a

dimensão da investigação científica no interior de uma comunidade de investigadores,

que estudamos detalhadamente no primeiro capítulo e que está ligada à possibilidade

epistemológica de se chegar, no longo e indefinido caminho, a uma representação que

poder-se-ia intitular de adequada acerca do real. Uma outra dimensão é a religiosa. Nessa

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dimensão, o indivíduo pode experimentar o efeito prático da dissolução do eu em um

processo de mergulho na oração.

Insistimos novamente que ao falar em ‘espírito de oração’, Peirce não está

convocando nenhuma espécie de religiosismo institucionalizado e petrificado, mas sim

uma dimensão prática, cujo sentido pragmático está em sua capacidade de gerar efeito na

conduta, mas, ao mesmo tempo, espiritual, dimensão a qual Peirce nunca negou lugar em

sua filosofia, desde que bem entendida. Essa dimensão da religiosidade, lapidada por uma

postura de abertura e diálogo semiótico pode inclusive ser reconciliada com a ciência. Na

verdade, ambas exprimem a mesma verdade, o real/ideal.323 Ao estar aberto, para além

de sua individualidade, ao partilhamento semiótico com os seus semelhantes e com o

próprio universo em suas dimensões de contato possíveis, o homem poderá realizar a sua

excelência normativa em direção ao crescimento da razoabilidade concreta:

Toda comunicação de mente para mente se dá através da continuidade

do ser. Um homem é capaz de ter conseguido para ele um papel no

drama da criação; e quanto mais ele perde a si mesmo nesse papel, não

importa quão modesto isso possa ser, mais ele identifica a si mesmo

com seu Autor. (EP 2.3)324

Essa abertura semiótica é uma inserção que o homem pode fazer, em sua

liberdade, no contínuo maior do que ele mesmo e, quanto mais o faz, quanto mais se funde

com outros que também estão engajados e abertos nesse processo, mais ele se torna um

veículo de concretização de ideias verdadeiras e reais, muito maiores que quaisquer

elementos egoístas e privados que possam eventualmente surgir. Assim, o homem pode

ser vivificado pela verdade na medida direta em que sai de si e se identifica com o próprio

processo evolucionário do qual é apenas uma parte.

Mas, por mais surpreendentes que tenham sido as conclusões de Peirce até aqui

visando explicar, de maneira geral, as consequências do seu sinequismo, o seu último

passo no texto o é ainda mais. Esse último passo da aplicação do seu sinequismo consiste,

exatamente, na questão da imortalidade:

O sinequismo se recusa a acreditar que quando chega a morte, mesmo

a consciência carnal cessa rapidamente. Como isso se dá é difícil de

323 Ver CP 6.216. 324 Ibri analisa a relação que essa linha de pensamento de Peirce mantém para com a filosofia de Schelling

em (IBRI, 2015b).

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dizer, devido à completa falta de dados observacionais. Aqui, como em

outros lugares, o oráculo sinequista é enigmático. (EP 2.3)

Peirce mantém a constatação sóbria a que chegou no texto “Ciência e

Imortalidade” a respeito da ausência de dados observacionais que permitam dizer como

exatamente se daria uma possível vida após a morte para o homem. Porém, isso não o

impede de, no mesmo espírito científico-especulativo, afirmar que o sinequista parece

não ter razão para considerar a morte como uma descontinuidade absoluta, ou seja, uma

descontinuidade que quebra definitivamente o contínuo que é o homem e muito menos o

contínuo ainda maior de interações entre os homens e mais ainda entre os homens e o

universo. Certamente, a morte é, em algum sentido, a dissolução de um hábito, mas isso

não quer dizer que ela é uma ruptura absoluta desse hábito:

Indo mais longe ainda, o sinequismo reconhece que a consciência carnal

não é mais do que uma pequena parte do homem. Em segundo lugar, há

a consciência social, pela qual o espírito do homem se incorpora aos

outros, e que continua vivendo e respirando e mantendo o seu ser muito

além do que observadores superficiais pensam. (EP 2.3)

A morte dissolve uma coordenação de hábitos, que, como vimos é um fluxo

contínuo e vivo de sentimentos, volições e pensamentos, ou seja, uma personalidade em

seus aspectos contingentes, que exercem um papel, é claro, oferecendo exatamente as

possibilidades de atualizações que permitem o crescimento do homem-símbolo, mas que

não esgota o contínuo que ele é. A essência do homem, seu caráter, como vimos

anteriormente, se estiver vivificado pela verdade, permanece para além da morte, de uma

maneira alterada, mas semioticamente viva o suficiente para influenciar a conduta de

outras pessoas e, fundida no contínuo maior de ideias a ela afeitas pode inclusive

continuar crescendo, dependendo de quão próxima da razoabilidade tal essência é. Peirce

parece tentando a chamar essa possibilidade de amalgamar-se com o próprio fluxo de

ideias do universo de consciência espiritual:

Um homem é capaz de consciência espiritual, que constitui para ele

uma das verdades eternas, que se incorpora no universo como um todo.

Isso, enquanto uma ideia arquetípica, não pode nunca se enfraquecer; e

num futuro próximo está destinada a uma especial incorporação

espiritual. (EP 2.3)

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Essa essência do homem, conforme definida no texto da Lowell Lecture XI e

desenvolvida em “A Lei da Mente”, essa conaturalidade, de caráter espiritual, que já

vimos ser na verdade sinônimo de formal, que o homem pode possuir com as verdades

eternas325 que, apesar de serem eternas, evoluem no próprio universo, é o cerne da

possibilidade da imortalidade mais uma vez reafirmada por Peirce.

Peirce, perto do final do texto, oferece um exemplo que pretende ser uma

evidência fenomênica da realidade da consciência espiritual, mas, ao mesmo tempo, por

implicação, de tudo o que disse sobre o sinequismo:

Um amigo meu, em consequência de uma febre, perdeu totalmente o

sentido da audição. Ele sempre teve um grande apreço pela música,

antes de seu acidente; e, estranho dizer, mesmo depois disso, adorava

ficar ao piano quando algum bom intérprete tocava. Disse-lhe uma vez:

“Então, depois de tudo ainda podes ouvir um pouquinho.” “Em

absoluto”, replicou-me, “porém, posso sentir a música por todo o meu

corpo.” “O que!”, exclamei, “como é possível que se desenvolva um

outro sentido em tão poucos meses?” “Não é um novo sentido”,

respondeu-me ele, “agora que minha audição se foi, posso reconhecer

que sempre possuí esse modo de consciência, que, anteriormente, assim

como outras pessoas, confundia com a audição.” (EP 2.3)

Trata-se de uma passagem que nos oferece a ocasião de pensar o radicalismo com

que Peirce tomava o sinequismo. Alguém teria o direito de questionar se o depoimento

do amigo de Peirce não passou de uma interpretação sem fundamento da sua parte, uma

mera idiossincrasia, pois, a mera descrição do ocorrido por parte de Peirce não prova

absolutamente nada acerca da verdade do depoimento. Como uma concessão a essa

objeção, tratemos, então, esse depoimento como uma ideia veiculada, mas acrescentemos:

uma ideia no sentido peirciano nunca terá ao seu lado o adjetivo “mera”.

Essa ideia é a de que a perda da audição não se configurou como uma

descontinuidade absoluta no que se refere à possibilidade de apreensão semiótica da

música. Pelo contrário, a perda da audição acabou por aguçar uma consciência afinada da

325 O termo ‘verdades eternas’ neste contexto deve ser também reportado ao texto da Lowell Lecture XI, de

1866, ou seja, trata-se do conceito, apresentado nessa Lecture, da verdade imperecível, no fundo a própria

realidade em seu caráter evolucionário que gera interpretantes sempre verdadeiros. Ver, W 1.500.

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apreensão da melodia, que na verdade se pervardia, como sentimento, por todo o corpo,

mas que anteriormente era interpretada como circunscrita à audição.

O ponto a se observar é que houve um processo de semiose ocasionado pela

apreensão da música; portanto, o piano e o intérprete, fundidos na música, funcionaram

como signo pelo qual o amigo de Peirce chegou a um interpretante das ideias contidas na

música, sem a necessidade do sentido da audição, em um processo de comunicação entre

mentes. De modo que cabe perguntar: sem a audição, sentido que fisicamente pode

capturar os sons produzidos por um instrumento musical no espaço e no tempo, como foi

possível sentir a música por todo o corpo? Esse depoimento, pois, parece oferecer a Peirce

uma oportunidade de expor adequadamente o seu pensamento sinequista de que “deve

haver outros modos de conexões contínuas entre mentes além do tempo e do espaço.”326

Parece ser plausível dizer que, para Peirce, uma forma de comunicação entre

mentes, além do tempo e do espaço, consiste justamente na possibilidade aberta por aquilo

que ele chamou de consciência espiritual. O que o levou a concluir que “quando a

consciência carnal desaparecer com a morte, perceberemos finalmente que sempre

tivemos uma consciência espiritual, que confundíamos com algo diferente.”327

Um último ponto a ser observado, e que Peirce faz questão de deixar claro ao

encerrar o texto, é que essa aplicação do sinequismo a questões ditas religiosas que

acabara de ser efetuada neste texto não deve levar em nenhum momento a confusão entre

o sinequismo e algum tipo de religião. No entanto, seu fundamento filosófico-científico

que atribui o predicado da continuidade a todas as coisas também acabará por não

enxergar completa descontinuidade até mesmo entre ciência e religião:

Já disse o suficiente, penso, para mostrar que, embora o sinequismo não

seja uma religião, muito pelo contrário, é uma filosofia puramente

científica, deveríamos aceitar, de maneira geral e como antecipei com

confiança, que ela pode exercer um importante papel na reconciliação

entre religião e ciência. (EP 2.3)

Ciência e religião, segundo Peirce, podem ser reconciliadas. Mas, para que tal

reconciliação seja possível, nem uma e nem a outra devem ser definidas e vividas de

maneira dogmática.

326 W 8.156. 327 EP 2.3.

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2.3 Imortalidade: uma hipótese pragmática

As análises dos textos “Ciência e imortalidade”, Lowell Lecture XI e “A

imortalidade à luz do sinequismo” que acabamos de levar a cabo parecem legitimar a

interpretação de que, para Peirce, uma certa concepção de imortalidade do homem pode

ser considerada como logicamente aceitável e coerente com a sua arquitetura filosófica.

Essa concepção peirciana da imortalidade, que chamamos de positiva em relação à

concepção crítica que o autor também exibiu acerca do mesmo tema visto

tradicionalmente, parece ter um escopo bem claro. Qual seria a essência dessa concepção

positiva da imortalidade do autor? Ao final de “Respostas a questões referentes a minha

crença em Deus”328, texto que também utilizaremos no capítulo três, Peirce nos oferece a

resposta:

“Você acredita em uma vida futura?”. Não restam dúvidas de que

algum tipo de vida futura existe. Um homem de caráter deixa um legado

de influências atrás dele – que é vivo: é pessoal. Em minha opinião, é

muito apropriado chamar isso de vida futura. [...] É, de certa maneira,

mais adequado tornar-se o sujeito de uma promessa do que viver

qualquer outro tipo de vida futura. Pois, isso é algo que todos nós

desejamos; ao passo que outros tipos de vida futura mostram,

sedutoramente, nada que não seja excessivamente vago, prejudicial e

impraticável. Ademais, sua vivacidade e durabilidade são

proporcionais à espiritualidade do homem. E quantos exemplos já

vimos! (CP 6.519 –itálicos nossos)

Essa passagem parece funcionar como um bom resumo do escopo da imortalidade

do homem na filosofia de Peirce, conforme a analisamos no tópico anterior. Trata-se de

uma imortalidade que implica na continuidade da personalidade, ou melhor, da essência

ou caráter do homem vivificado pela verdade em uma forma espiritual, ou seja, formal,

tal como representado, ontologicamente, pelo símbolo, segundo pudemos verificar no

primeiro capítulo. Essa permanência do caráter e, sobretudo, a extensão da sua

durabilidade são, segundo Peirce, proporcionais à espiritualidade do homem, ou seja, são

proporcionais ao grau de aderência da essência do homem a formas verdadeiras, conforme

iremos explorar a seguir.

328 CP 6.494-521.

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No começo deste capítulo dois, discorremos sobre o caráter científico de toda a

metafísica peirciana e apontamos que o seu caráter distintivo consiste exatamente na

âncora no mundo fenomênico que todas as proposições que ocorrem em seu anterior

devem exibir ao procurar descrever adequadamente a realidade. Conforme também

vimos, a imortalidade é um tema que está inserido no interior dessa metafísica científica

do autor, mais exatamente, a por ele denominada de psíquica ou religiosa. Desse modo,

deve-se procurar entender como é possível exibir as credenciais pragmáticas do conceito

peirciano de imortalidade do homem. Por isso, cabe agora, neste último movimento do

capítulo dois, responder à pergunta: de que modo a imortalidade do homem pode ser,

indiretamente, observável e, portanto, ser declarada como ancorada no mundo

fenomênico, tal como exigido pelo metafísica científica do autor?

A resposta para essa pergunta exige que efetuemos uma costura entre o realismo,

o idealismo objetivo e o sinequismo do autor à medida que exploramos algumas

dimensões nas quais podemos observar, indiretamente, no mundo fenomênico e real, a

imortalidade do homem por ele preconizada. E porque essa costura é exigida? Por que,

se a imortalidade do homem consiste na influência deixada por homens de caráter na

conduta de outros homens, essa influência deve, além de aparecer como fenômeno,

consistir em uma influência real, cuja forma ou essência, sendo encarnações de ideias no

sentido peirciano, é também independente de suas atualizações existenciais em quaisquer

mentes ou conjunto de mentes; em outros termos, o contínuo que o caráter representa,

enquanto hábito de conduta, não se esgota nas manifestações da influência deste caráter

em qualquer homem ou conjunto de homens, embora dependa dessas manifestações para

aparecer pelo lado de fora, tornando-se objeto de conhecimento pragmático. Isso, por

outro viés, também revela, como se fosse o outro lado da mesma moeda, o caráter ideal

dessa influência, inteligível e teleológica em seu crescimento infinito em direção a

razoabilidade concreta.

Em última instância, o real/ideal evolui e se revela, por meio dos fenômenos, na

natureza sinequista do universo peirciano. Por isso, o sistema metafísico peirciano deve

ser considerado como uma teoria sinequista do real/ideal, conforme o próprio Peirce fez

questão de esclarecer:

Permita-me ainda dizer que eu me oponho a ter o meu sistema

metafísico como um todo chamado de Tiquismo. Pois, embora o

Tiquismo nele esteja contido, ele só o está de maneira subsidiária ao

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que considero realmente a característica de minha doutrina, a saber, que

eu insisto incisivamente na continuidade, ou terceiridade; e, de modo a

garantir à Terceiridade a sua função realmente dominante, considero

indispensável reconhecer plenamente que se trata de um terceiro, e que

a Primeiridade, ou acaso, e a Segundidade, ou reação bruta, são outros

elementos, sem a independência dos quais a terceiridade não teria nada

sobre o que operar. Assim, eu gosto de chamar a minha teoria de

Sinequismo, porque se baseia no estudo de continuidade. (CP 6.202)329

Ideias, segundo a lei da mente, tendem a se espalhar continuamente e a afetar

outras ideias que a elas são afeitas.330 Ideias fundem-se com outras ideias, a despeito da

perda de intensidade implicada neste processo de fusão. Mas a fusão gera hábitos que,

coordenados, tornam-se condutas propositais, personalidade, em última instância. Esse é

um processo cósmico e não está circunscrito ao âmbito humano, fazemos questão de

insistir, pois essa é uma característica distintiva do pensamento peirciano. Assim, a

expansão das galáxias, a formação de cristais e leitos de rios, as espécies animais e

vegetais são exemplos de resultados desse processo, tanto quanto o é homem. Na

expectativa de ter deixado claro uma vez mais esse ponto, por uma questão de

afunilamento temático, a partir de agora voltar-nos-emos mais ao âmbito humano deste

processo, exceto quando for apropriado expandir um pouco, pois o tema dessa tese é a

imortalidade do homem e cabe verificar como esse processo pode ter significado

pragmático.

A natureza eidética do cosmos está em constante expressão e o homem, como

tivemos a oportunidade de discutir no primeiro capítulo, é uma parte, um veículo desse

infinito processo de expressão. A essência do idealismo objetivo do autor é a proposição

de que tudo no universo é da natureza da mente. Vale a pena lembrar, neste ponto, a

definição do idealismo objetivo do próprio Peirce, antes de prosseguirmos com a

explicação de como a imortalidade do homem se insere nesse quadro:

A antiga noção dualista de mente e matéria, tão proeminente no

cartesianismo, como dois tipos radicalmente diferentes de substância,

dificilmente encontrará defensores nos dias atuais. Rejeitando essa

329 Essa passagem parece deixar claro que Peirce considerava a continuidade equivalente a terceiridade. No

entanto, deve-se observar que ela também parece revelar um certo elemento valorativo da parte de Peirce,

pois, conforme mostrou Ibri, a primeira categoria, a das possibilidades, também é contínua. Ver (IBRI,

1992, capítulos 4 e 5). 330 Cf. W 8.136.

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doutrina, chegaremos a um tipo de hilozoísmo também chamado de

monismo. Então surge a questão de saber se, de um lado, as leis físicas

ou, de outro lado, as leis psíquicas devem ser tomadas: a) como

independentes, uma doutrina usualmente chamada de Monismo, mas que

eu chamarei de Neutralismo; b) a lei psíquica como derivada e especial,

a lei física sendo, sozinha, primordial, o que é Materialismo; ou, c) a lei

física como derivada e especial, sendo a lei psíquica, sozinha, primordial,

o que é Idealismo. A doutrina materialista parece, para mim, tão

repugnante para uma lógica científica quanto para o senso comum; uma

vez que ela exige de nós que suponhamos que uma espécie de

mecanicismo sempre se faria sentir, o que seria uma hipótese

absolutamente irredutível à razão, em última instância, uma regularidade

inexplicável; ao passo que a única justificativa de qualquer teoria é tornar

as coisas claras e razoáveis. O neutralismo é suficientemente condenado

pela máxima lógica conhecida como a navalha de Ockham, a saber, que

não devemos supor mais elementos independentes do que o necessário.

Ao colocar os aspectos internos e externos da substância em pé de

igualdade, essa doutrina parece manter que as duas são primordiais. A

única teoria inteligível do Universo é aquela do Idealismo Objetivo, que

a matéria é mente esgotada, hábitos arraigados se tornando leis físicas.

(W 8.105-106)331

Para Peirce, o idealismo objetivo seria a única teoria plausível para explicar o

universo a partir de uma lógica objetiva. Essa teoria consiste, exatamente, em tomar a lei

psíquica como primordial e a lei física como derivada. Mente e matéria não se

configuram, no interior dessa teoria, como substâncias estranhas, mas sim, como

possuindo uma e mesma natureza, a inteligível ou eidética. Há, então, uma conaturalidade

entre mente e matéria, conforme buscamos expor desde o primeiro capítulo, seguindo os

ensinamentos do professor Ibri.332

O conceito de mente em Peirce não se encontra, de nenhuma maneira, circunscrita

ao âmbito humano e menos ainda é sinônimo de cérebro. A mente é pervasiva e atua em

331 Para análises profundas do idealismo objetivo de Peirce, ver (IBRI, 1992, capítulo 4) e (IBRI, 2014a).

Para uma breve discussão acerca das controvérsias entre os comentadores de Peirce acerca deste tema, que

não configura um ponto pacífico entre os estudiosos, ver (ALMEIDA, 2014, p. 57, nota 182). 332 (IBRI, 1992, capítulo 4).

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todo o universo, podendo ser observada em diversos lugares.333 A sua característica

principal, também já o vimos, é a tendência a adquirir hábitos, o que explica o vetor que

acaba redundando no surgimento da matéria e das leis físicas. Mas, por outro lado, a

mente pervasiva se caracteriza também por uma abertura à ação do princípio que promove

os desvios dos hábitos arraigados, a saber, o acaso, surgindo, assim, o vetor do

aprendizado e mudança de conduta, que também são observáveis na ação da mente.

O universo real, em Peirce, é um universo inteligível, e é, assim, uma questão de

terceiridade, que abarca segundidade e primeiridade. Vejamos a seguinte passagem, na

qual Peirce deixa isso bem claro:

A Realidade é uma questão de Terceiridade enquanto Terceiridade, isto

é, na sua mediação entre Segundidade e Primeiridade. A maioria de

vocês, se não todos, são, não duvido, Nominalistas; e peço que não se

ofendam com uma verdade que é tão clara e inegável para mim como o é

a verdade que as crianças não entendem a vida humana. Ser um

nominalista consiste no estado não desenvolvido de uma mente no que se

refere a apreensão da Terceiridade como Terceiridade. [...] A Metafísica

é a ciência da Realidade. A Realidade consiste na regularidade.

Regularidade real é lei ativa. Lei ativa é razoabilidade eficiente, ou em

outras palavras é a razoabilidade verdadeiramente razoável.

Razoabilidade razoável é Terceiridade como Terceiridade. (CP 5.121,

Cross-Ref:††)334

É assim que realismo e idealismo objetivo se unem de maneira inextrincável no

interior da filosofia sinequista de Peirce. A realidade é independente do pensamento, mas

é pensável em sua continuidade, exatamente porque ela é da natureza do pensamento, ou

seja, objetivamente inteligível. Por isso, o adjetivo ‘objetivo’ alocado após idealismo no

caso particular da filosofia de Peirce. A natureza da realidade enquanto razoabilidade

razoável não se perfaz como um caminho onde a lei possui ou chegará a possuir caráter

absoluto, como seria um sistema hegeliano ou determinista, mas sim um caráter

333 “[A mente] aparece no trabalho das abelhas, dos cristais, e em todo o mundo puramente físico. Ninguém

pode negar que ela está realmente ali, mais do que as cores, as formas, etc. dos objetos realmente se

encontram.” (CP 4.551) 334 Devemos observar que essa passagem em nenhum momento se encontra a sugerir que a terceiridade

esgota a realidade, conforme explica o próprio Peirce, em outra ocasião: “A terceira categoria [...] é um

ingrediente essencial da realidade, porém, apenas por si mesma, não constitui a realidade, uma vez que

essa categoria (que [...] aparece como o elemento do hábito) não pode possuir um ser concreto sem alguma

ação, funcionando como um objeto separado, sobre o qual possa exercer o seu governo, do mesmo modo

que uma ação não pode existir sem o ser imediato de um sentimento sobre o qual agir.” (CP 5.436)

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evolutivo, expansivo e aberto à diversificação, conforme também já apontamos em outras

ocasiões no decorrer desta tese.

E qual a consequência dessa reflexão para o caso da imortalidade do homem, tal

qual estamos a analisar? Quando os hábitos teleologicamente coordenados de conduta de

um homem, ou melhor, seu caráter, encontra uma permanência, ou seja, uma

regularidade, para além da sua existência e morte, pode-se dizer que tal caráter adquiriu

um certo grau de imortalidade, de modo que os fenômenos observáveis de sua influência

na conduta de outros homens funcionam como ocasiões por meio das quais o símbolo

vivo que ele é, representado para os outros homens por signos do seu caráter, continua o

seu processo de crescimento infinito, vivificado em certo grau pela verdade, que, no

fundo, é o real/ideal.

Sendo assim, qualquer exemplo dessa influência configura uma manifestação

pragmática dos conceitos peircianos de personalidade, caráter e imortalidade em seus

sentidos gerais. Essa interpretação também é legitimada pela concepção de pragmatismo

do autor, que se afasta profundamente dos outros tipos de interpretação do princípio do

pragmatismo desenvolvidos por outros autores.335 Em nossa propedêutica336 tivemos a

oportunidade de exibir o desenvolvimento do pragmatismo peirciano, explorando a sua

proposição, a despeito da ausência do termo propriamente dito, na série “Ilustrações da

Lógica da Ciência”, de 1878337, particularmente no texto “Como tornar as nossas ideias

335 Ver, por exemplo em CP 5.494-496 a revisão que o próprio Peirce fez da sua versão do pragmatismo

em relação a outros proeminentes reivindicadores do termo. Se tomarmos, por exemplo, James e Dewey,

respeitando os seus respectivos pensamentos, bem como suas respectivas influências na história do

pragmatismo, podemos, em um esforço de comparação, notar que as versões do pragmatismo desses autores

tendem a um certo nominalismo e psicologismo, ao passo que a versão peirciana, ao contrário, se

caracteriza, exatamente, por exibir um viés antipsicologista e antinominalista. Para James, as consequências

práticas de uma concepção devem ser tomadas em um sentido singular, sempre referidas à experiências,

práticas e ações concretas e particulares. Dewey, por sua vez, parece ter exibido uma concepção do real

como sendo algo relativo ao homem, o que o levava a tomar as consequências práticas dos conceitos,

preconizadas pela sua versão do pragmatismo, como instrumentos de adaptação e transformação da conduta

humana. Para Dewey, os instrumentos devem procurar ser bem-sucedidos, ou seja, úteis e eficazes para o

processo de adaptação humano e, assim, o correto conhecimento de um conceito equivaleria a fazer e ser

assertivo na ação. Cf. (CALCATERRA, 2015), (HOUSER, 2003) e (MISAK, 2004). Para Peirce, de outro

lado, o pragmatismo está fundado em uma lógica objetiva, prenhe de ontologia, que se perfaz a partir de

uma relação entre o geral e o particular, com ênfase no geral, de modo que o hábito ou conceito é

invariavelmente representativo de relações gerais reais. Cf. (IBRI, 2000). (IBRI, 1992), (PAPE, 2009) e

(PIETARINEN, 2008). 336 Ver (ALMEIDA, 2014, capítulo 5). 337 W 3.242-337.

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claras”338 e, depois, a sua maturação na filosofia mais madura do autor, onde a ligação da

máxima com a generalidade ou terceiridade real se tornou mais explícita, exibindo,

conforme mostrou Ibri de maneira clara, contornos profundamente ontológicos.339 Não é

necessário aqui exibir novamente os detalhes desse desenvolvimento, porém, cabe

relembrar alguns pontos essenciais da visão final que o autor exibiu sobre o pragmatismo

no intuito de cumprir a missão deste último tópico do capítulo dois, a saber, mostrar como

e porque o conceito de imortalidade positivo de Peirce possui significado pragmático.

Em um texto de 1905, intitulado “O que é Pragmatismo”340, Peirce reformulou a

sua máxima pragmática de 1878 de uma maneira esclarecedora, enfatizando a atitude

científica e experimental que a distancia fundamentalmente de qualquer abordagem que

a tome como um procedimento meramente instrumental ou calcado na ação pela ação:

[...] Uma concepção, ou seja, o significado racional de uma palavra ou

alguma outra expressão se encontra, exclusivamente, na concepção da

sua influência concebível sobre a conduta da vida; assim, uma vez que é

óbvio que algo que não resulte de um experimento possa exercer qualquer

influência direta sobre a conduta, se alguém for capaz de definir, com

exatidão, todos os experimentos fenomênicos concebíveis que a

afirmação ou negação de um conceito possa implicar, teria, então, a

definição completa do conceito. (EP 2.332)

O que Peirce pretendia com essa reformulação era deixar bem claro que o

proposital termo concebível, presente desde a primeira formulação da máxima, mas talvez

não devidamente explicitado naquela ocasião, possui importância capital para o

entendimento do real alcance do seu pragmatismo. Por que? Porque esse termo designa

não um simples conceito, um simples nome predicável de um processo abstrativo, como

diria um nominalista, mas sim uma esquematização que se inicia na imaginação das

consequências práticas envolvidas em uma determinada representação e se dirige, depois

de devidamente esquematizada, ao mundo fenomênico, em busca de confirmação. Trata-

se de um experimento mental calcado na continuidade daquilo que é real e inteligível e,

portanto, cognoscível em alguma medida.

338 W 3. 257-276. Neste texto, aquilo que ficou conhecido como a máxima pragmática, foi enunciada do

seguinte modo: “Considere quais efeitos, que, concebivelmente, poderiam ter consequências práticas,

concebemos ter o objeto de nossa concepção. Então, a concepção destes efeitos é a totalidade de nossa

concepção sobre o objeto.” (W 3.266). 339 Ver (IBRI, 1992, capítulo 6). 340 EP 2.331-345.

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Ao mesmo tempo, o concebível também está fundado na ideia de que há

experiência possível acerca do objeto conceituado.341 Isso revela o caráter geral de todo

conceito, que passa a ser concebido como aplicável ao contínuo de possibilidades reais e

não aos meros casos particulares de suas instanciações. Um conceito é o resultado de um

processo de esquematização experimental aplicado ao que possui ordem e redundância,

ou seja, ao que aparece sob uma forma de terceiridade no mundo.

Ocorre que, por outro lado, o que um conceito representa são as regras gerais que

governam o comportamento do objeto representado no mundo fenomênico e real. Ou, em

outros termos, um conceito é representação da permanência de certos predicados

presentes objetivamente no objeto. Essa redundância comportamental dos objetos é,

exatamente, o seu caráter inteligível, os hábitos reais do objeto. Por isso, a confirmação

da aderência342 do conceito, no pragmatismo peirciano, deve ser impreterivelmente

realizada no mundo: o objeto se comporta ou não conforme o esquema mental concebido

para prever a sua conduta? Somente o próprio objeto poderá confirmar, não obstante

parcialmente, a verdade da representação.343

O pragmatismo é, assim, uma teoria do significado de um conceito no interior de

uma concepção sinequista do universo, pois, essa teoria depende de as coisas serem

contínuas e inteligíveis. E, na medida direta em que essa continuidade é real,

independente da representação, ela tem o poder de influenciar verdadeiramente a conduta,

de modo que uma representação incorreta terá de ser paulatinamente ajustada até que a

sua aderência ao comportamento real do objeto seja aproximada a ponto de exibir um

grau relativamente alto de assertividade.

Um conceito tem o poder de influenciar a conduta porque representar equivale a

fazer uma previsão. Ou seja, o caráter mediador do conceito passa pela assertividade da

previsão ocorrendo efetivamente no mundo, tal como a concepção a desenhou no

esquema mental que originou o processo de conceituação. Conhecer é prever a conduta

do objeto, não apenas agora, mas no futuro indefinido. Ou seja, trata-se de um processo

contínuo, fundado na permanência real dos predicados representados como pertencentes

341 Ver (IBRI, 2000a). 342 O conceito de “aderência” foi criado por Ibri para explorar essa dimensão do pragmatismo peirciano a

qual nos referimos nessa passagem. Ver, por exemplo, (IBRI, 2012) e (IBRI, 2015a). 343 Ver, para mais detalhes, (IBRI, 2004) e (IBRI, 2006a).

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a um determinado objeto. Ao saber como um objeto se comporta, sabemos também como

nos comportar diante dele em qualquer ocasião em que estivermos em relação com ele.344

Por meio dessa breve reflexão podemos ver claramente por que a noção de hábito

é tão fundamental para o entendimento do verdadeiro significado do pragmatismo de

Peirce. Uma vez que o comportamento de um objeto é o seu hábito de conduta, conhecer

um objeto é ser influenciado por sua inteligibilidade, o que permite, por sua vez, que

venhamos a saber nos comportar diante dele. Essa relação semiótica com o objeto também

se configura como um hábito de conduta a que chegamos por meio do aprendizado

contínuo proporcionado pela experiência de relação com o objeto. Sendo assim, é lícito

dizer que um hábito humano345 é o resultado interpretado dos significados dos conceitos

aprendidos diante da necessidade de mediar as segundidades ou ocorrências brutas com

as quais se depara, segundidade essas que, após se tornarem objeto de conhecimento,

deixam de objetar. O significado de qualquer conceito é, do ponto de vista ontológico,

um hábito.346 E um hábito, por sua vez, consiste em uma tendência geral a agir segundo

uma certa regra, quando as ocasiões surgirem.

Isso também quer dizer que um hábito, tal como um conceito, também se refere a

ideia de futuro, pois, como uma forma geral de conduta ele não se encontra circunscrito

a esta ou aquela circunstância, mas se espalha durante toda uma continuidade futura,

embora indefinida, abarcando todas as possibilidades realizáveis no futuro que estiverem

relacionadas às relações reais que ele próprio, enquanto forma de terceiridade, medeia.

Até onde o hábito for assertivo e aderente ao real, ele permanecerá como uma regra a ser

seguida para se atingir um certo fim. Isso também é garantido pela natureza inteligível do

real, de modo que parece ficar bem claro que o pragmatismo também se coaduna com o

idealismo objetivo e o realismo do autor, no interior de seu sinequismo.

Em outros termos, segundo a lógica objetiva propugnada por Peirce um hábito

pode ser definido como resultado de um processo indutivo, constituindo-se em uma

generalização de condutas estáveis. Nessa filosofia, hábitos de conduta e conceitos

espelham e estão fundados na inteligibilidade do mundo. Em sua essência, o pragmatismo

peirciano é a teoria que afirma que o significado de um conceito deve aparecer nos hábitos

344 Ver (IBRI, 2000a), (IBRI, 2004) e (IBRI, 2006a). 345 Poder-se-ia dizer que os hábitos dos animais, vegetais, minerais, etc., são resultado de um processo

semiótico semelhante ao processo de interpretação humano, ou seja, são resultado dos interpretantes a que

chegaram por meio da assertividade da sua conduta durante o processo evolutivo. 346 Cf. (ROSENTHAL, 1994, p. 21).

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que ele representa, formando crenças de que certas condutas serão assertivas no mundo

real.347 Por isso, pode-se afirmar, também, que o pragmatismo peirciano:

[...] faz o sentido intelectual último do que quer que você deseje

considerar, ou sua substância, consistir em resoluções condicionais

concebidas; e, portanto, as proposições condicionais, com suas

antecedentes hipotéticas, em que tais resoluções consistem, sendo da

natureza última do significado, devem ser capazes de ser verdadeiras, isto

é, de expressar o que quer que seja tal como a proposição expressa,

independentemente de serem pensadas como sendo assim em qualquer

julgamento, ou de serem representadas assim em qualquer outro símbolo

de qualquer homem ou homens. Mas isso equivale a dizer que uma

possibilidade é, por vezes, de um tipo real. (CP 5.453)348

Como um último ponto a se retomar acerca do pragmatismo do autor, gostaríamos

de chamar a atenção para o fato de que o esforço de Peirce em tornar a generalidade da

máxima pragmática mais clara em textos de sua filosofia de maturidade em relação à sua

primeira formulação de 1878 não deve em nenhum momento obnubilar o outro aspecto

fundamental do seu pragmatismo que consiste, como vimos, na necessidade de

confirmação do conceito nos casos fenomênicos particulares que incorporam as regras

gerais descritas pelo conceito, pois esse é o verdadeiro teste que indicará se o dito conceito

possui significado pragmático ou não. Ou seja, como bem lembra Ibri, o significado geral

de qualquer conceito deve sempre ser procurado nas consequências práticas dele

decorrentes, e tais consequência devem ser associadas ao particular.349

Ao aplicarmos essas reflexões sobre o pragmatismo ao tema específico da

presente tese, pode-se dizer que a permanência do caráter de um homem deve, de um

lado, aparecer em algum tipo de fenômeno para poder, de fato, influenciar a conduta de

outros homens, mas, por outro lado, deve ultrapassar quaisquer números de incorporações

para ser realmente imortal. Como podemos observar isso no mundo?

Já vimos que o conceito positivo de imortalidade de Peirce parece implicar em

uma espécie de gradação de durações relativa e proporcional à espiritualidade do homem.

Isso quer dizer, primeiro, que nem todo homem alcança a imortalidade tal como descrita

347 “[...] o significado racional de uma palavra ou alguma outra expressão se encontra, exclusivamente,

na concepção da sua influência concebível sobre a conduta da vida.” (EP 2.232). 348 Ver também, (ALMEIDA, 2014, p. 86). 349 Cf. (IBRI, 2000a, p. 31).

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pelo autor e, segundo, que podemos encontrar dimensões de durabilidade entre os homens

que alcançam essa imortalidade. É necessário entender o fundamento dessa graduação

com um pouco mais de detalhes, a fim de compreender as dimensões em que podemos

observar a permanência imortal de certos caráteres.

Todo homem possui uma personalidade, ou seja, hábitos coordenados

teleologicamente, e está inserido em algum mundo onde esses hábitos podem aparecer

por meio de sua conduta. O homem é, ele próprio, um contínuo, conforme vimos no

primeiro capítulo; no entanto, é um contínuo inserido em contínuos maiores, como, por

exemplo, a família, uma determinada comunidade, uma nação, etc. No interior desses

contínuos, o contínuo homem encontra-se em contato com outros homens, com animais,

objetos, etc. Encontra-se, por assim dizer, em contínuas relações. É neste contexto que

um homem, o ser dotado de sentimento, volição e pensamento, pode, justamente, sentir,

querer e mediar. Esse contexto é o locus das ações humanas em geral.

A partir deste ponto de vista, estamos diante de uma dimensão marcadamente

normativa, no sentido definido que as três ciências que a compõem, a Estética, a Ética e

a Lógica exibem no interior da arquitetura filosófica de Peirce. As ciências normativas

foram objeto de estudo detido em nossa propedêutica350 e, mais uma vez, não se trata, no

contexto dessa tese, de repetir a abordagem detalhada que fizemos naquela ocasião, mas

sim de trazer à tona alguns elementos importantes para o entendimento da ação humana

e da autonomia envolvida no desenvolvimento de seus hábitos de conduta, de acordo com

os fins passíveis de serem buscados e, enfim, para o entendimento de como isso pode nos

ajudar a compreender porque, a partir deste processo, alguns hábitos de conduta tendem

a permanecer e até mesmo a adquirir notória durabilidade e outros a serem limitados a

uma esfera mais contingente.

As Ciências Normativas peircianas são ciências que procuram investigar as leis

universais que caracterizam as relações dos fenômenos com os seus fins.351 Esses fins

estão diretamente ligados à conduta. Vimos, no início deste capítulo, que essas ciências

são, no interior da Filosofia, dependentes da Fenomenologia, o que equivale a dizer que

as investigações próprias de cada uma delas iniciam a partir do escopo dado por essa

ciência, ou seja, a partir dos modos de aparecer dos fenômenos como primeiridade,

350 Ver (ALMEIDA, 2014, capítulo 2). 351 Ver, por exemplo, CP 1.573-615 e CP 5.120-150.

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segundidade e terceiridade.352 Em outros termos, essas ciências seguem o método de

confirmação na experiência preconizado pelo método científico peirciano em geral.

Estética, Ética e Lógica terão, assim, a missão geral de explicar a relação dos

fenômenos com os fins que lhes são próprios, ou seja, com os fins que motivam as suas

condutas e, no caso do homem, a conduta deliberada.353 Mas, o que quer dizer, em geral,

que o homem, no interior de uma dimensão normativa, possui fins que lhes são próprios

de modo a ter a sua conduta influenciada por tais fins? Significa que a conduta do homem

é dotada de propósitos que lhes são próprios, embora não sejam a ele imanentes, e, por

isso mesmo, devem ser perseguidos em todo o seu processo de crescimento, enquanto

símbolo que é.

Esses propósitos, de natureza geral e não particular, podem ser descritos pelas

Ciências Normativas como tipos e não graus de bens; e consistem, grosso modo, no bem

representar (propósito descrito pela Lógica), nas escolhas de fins apropriados (propósito

descrito pela Ética) e na busca de um bem de natureza admirável que, no fundo, conforme

veremos, equivale à perseguição de uma razoabilidade cósmica figurada na forma como

as coisas podem aparecer sob à luz de uma totalidade bela (propósito descrito e definido

pela Estética).

Cada um desses tipos de bem deve aparecer de algum modo na conduta do homem

de modo que essa possa ser adequada aos fins que escolheu. Por isso, a observação da

conduta é o campo de investigação primordial das Ciências Normativas. O que nos

permite dizer que:

[...] a visão das Ciências Normativas oferecida por Peirce não diz que

existem regras a priori que são consideradas corretas e, partindo delas,

devemos classificar se uma determinada ação está em concordância com

tais regras e por isso deve ser chamada de ação [normativamente] correta.

O movimento é na verdade oposto a esse: observam-se os fenômenos que

aparecem ligados às ações, esses não sendo outros que não a conduta e

hábitos humanos, e, partindo deles, vê-se que possuem formas gerais e

352 Por isso, Peirce afirma: “Essa ciência, Fenomenologia, então, deve ser tomada como a base sobre a

qual as Ciências Normativas devem ser erguidas.” (CP 5.39). 353 Dizemos “no caso do homem” porque, embora estejamos neste passo da tese restringidos ao âmbito

mais humano, conforme anunciamos mais acima, o escopo das ciências normativas de Peirce não o está. O

movimento de descrição normativa é estendido por Peirce a todo o universo. Ver, por exemplo, (CP 5.128),

onde Peirce declara que “uma súbita e inerradicável estreiteza na concepção de Ciência Normativa se faz

presente em quase toda a filosofia moderna ao relacioná-la exclusivamente à mente humana.”

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relacionais, passíveis de serem descritas pelas ciências ditas normativas,

ou seja, que descrevem (e não impõem) a forma como geralmente agimos

em direção aos fins que admiramos, quaisquer que sejam eles.354

Há, portanto, uma relação entre as Ciências Normativas. Uma relação de

dependência entre a Lógica, a Ética e a Estética: a Lógica, para bem representar um fim,

depende da Ética, que escolhe um fim adequado; mas, um fim adequado só pode ser

escolhido na medida direta que se configura como admirável, de modo que a Ética

depende da Estética para definir o que é admirável.355 Exploremos essa linha de

pensamento um pouco mais.

A relação de dependência entre as ciências normativas se reflete na forma como

se dá a ação humana autocontrolada. A ação humana controlada, portanto, depende de

um fim tomado como um ideal, ou seja, como algo admirável; ao perseguir esse fim, o

homem procurará, por meio da Lógica, representar bem, não só o próprio ideal, como

também as ações que o levará a chegar até esse ideal. Esse processo de bem representar

possibilita ao homem o alicerce que lhe permite deliberar corretamente acerca de quais

condutas deve adotar objetivando atingir o fim procurado. Cabe ressaltar também que,

durante esse processo, a experiência e o aprendizado podem gerar mudanças de hábitos e

ajustes de conduta, de modo que a plasticidade da mente, característica partilhada com o

cosmos, é preservada.

Por outro lado, definir o fim a ser perseguido é o papel da Ética, e esse fim envolve

e deve ser pensado em termos de condutas que estamos deliberadamente preparados para

adotar, em geral, ou seja, onde quer que as circunstâncias exigirem.356 Esse fim, em última

instância, e para que seja adequadamente geral, deve possuir um aspecto de fim último,

um fim onde queremos chegar exatamente porque o admiramos. Esse admirável é dado

pela Estética e consiste, primeiramente nas qualidades tomadas pelo agente como valores.

Essas qualidades, no entanto, se tomadas em si, são puramente livres de qualquer

atribuição de valor, são primeiridades, mas, ao serem tomadas como um valor, tornam-se

fins admiráveis no interior de um processo normativo.357 Sendo assim:

354 (ALMEIDA, 2014, p. 36). Para mais detalhes, ver (POTTER, 1997). 355 Cf. CP 5.131. “Os três tipos de bem” e CP 5.36. Ver (ALMEIDA, 2014) para mais detalhes. Para um

estudo aprofundado da relação entre as três Ciências Normativas em Peirce, ver (POTTER, 1997, parte I). 356 “A Ética é o estudo de quais fins de ação estamos deliberadamente preparados para adotar. Isto é,

ações corretas que estão em conformidade com os fins que estamos preparados para adotar.” (CP 5.130) 357 Conforme apontamos em (ALMEIDA, 2014, p. 33): “Poder-se-ia objetar dizendo: mas o valor não é

uma atribuição somente moral? Responder-se-ia: o bem estético é uma qualidade ou sentimento que

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[...] um fim último da ação deliberadamente adotado, ou seja,

razoavelmente adotado, deve ser um estado de coisas que recomenda a

si mesmo em si mesmo, de maneira razoável, e independentemente de

qualquer consideração ulterior. Portanto, deve ser um ideal admirável,

tendo o único tipo de bem que um tal ideal pode ter, ou seja, o bem

estético. (CP 5.130)

Porém, a Estética vai além das questões de admirabilidade de fins em geral e se

pergunta se existe um fim que é admirável como sendo um bem último, que não precisa

de justificativa alguma, um bem supremo ao qual todos os outros fins definidos pela Ética

e representados pela Lógica buscariam se conformar. A resposta é sim, para Peirce há um

tal bem, ao qual denominou de summum bonum ou sumo bem e que consiste, exatamente,

no crescimento da razoabilidade concreta, um ideal dos ideais, que seria buscado sob

todas as circunstâncias por ser uma interação admirável de todas as coisas em direção à

evolução razoável de um universo sinequista em seu âmago.

Enfim, a partir dessa reflexão, pode-se assentar o fato de que, na filosofia de

Peirce:

[...] as ciências normativas devem formar um todo contínuo, que move

o pensamento e a ação em direção a algo que se apresente como um

bem e que, em última instância equivale, para o autor, ao crescimento

da razoabilidade concreta no universo. Ao todo desse movimento

relacional, Peirce chamou de estética total (CP 5.136), o que indica o

primordial papel exercido pela estética na construção das Ciências

Normativas: ela é a base sobre a qual se funda as outras duas, ética e

lógica. Assim o bem ético seria o bem estético especialmente

determinado por um elemento peculiar que se lhe acrescentou, a saber,

o fato de o bem estético, o admirável em si, ser tomado como um ideal

ou fim; o bem lógico, por sua vez, seria o bem moral especialmente

determinado por um elemento especial que se lhe acrescentou, a saber,

o fato de um bem estético, funcionando como um fim, ser bem

funciona como um valor, melhor dizendo, aparece pelo lado de fora como valor; considerada enquanto

qualidade pertence ao mundo interior e não necessita de justificativa, considerada enquanto valor surge

pelo lado de fora, ou seja, na experiência e pode ser tomada como objeto de uma descrição científica e

colocada em termos de proposições categóricas. Considerado assim, o bem estético ou valor é condição

de possibilidade de qualquer atribuição moral e não ele mesmo uma atribuição moral.”

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representado e chegar a uma verdade que moverá a ação como um

todo.358

Hábitos de conduta, assim, são sujeitos a críticas e podem ser autocontrolados, ou

seja, ajustados ao longo do caminho. Por isso a necessidade de se pensar as Ciências

Normativas. Em outros termos, do mesmo modo que não há homem/símbolo

absolutamente determinado, também não há conduta humana absolutamente determinada.

Todo hábito de conduta pode ser modificado e ajustado. Esse ajustamento pode ocorrer

pelo surgimento de novos ideais, lapidações de representações de fins admirados

proporcionados pela experiência reflexiva ou colateral, abertura ao diálogo semiótico,

enfim, por qualquer inserção de informação proporcionada pela própria

realidade/idealidade.

Em sentido último, o processo de relação entre os tipos de bens, no âmbito da

conduta humana, tende a redundar na formação de hábitos de sentimentos que crescem

sob a influência de um curso de autocrítica da parte do agente à luz de ideais de conduta

adotados como um valor.359 Esse processo de generalização de hábitos de conduta é o

processo de formação do caráter.

O caráter de um homem, como vimos no primeiro capítulo, consiste em hábitos

coordenados de uma maneira teleológica e desenvolvimentista. Quando esse caráter é

continua e deliberadamente aperfeiçoado de modo a buscar a expressão harmoniosa de

ideias por meio de bons hábitos de conduta, o expressar algo do homem se torna

consistente à luz dos ideais que tomou por valor e cada uma de suas expressões carregará

a sua essência, de natureza contínua. Portanto, se os ideais expressos por seus hábitos de

conduta se direcionam a uma admirabilidade que vai além de seus apetites e desejos

individuais, ou seja, se os seus hábitos de conduta procuram exprimir, ou melhor, são

veículos de expressão da razoabilidade em crescimento do cosmos, então, temos um

exemplo de um caráter que contribui, deliberadamente, com o crescimento ou evolução

da razoabilidade concreta no universo. No entanto, esse processo só é possível em virtude

da inteligibilidade e realidade das ideias que configuram os próprios ideais, pois, tal como

Peirce fez questão de esclarecer:

O ser próprio da lei, verdade geral, razão, chame do que quiser, consiste

em expressar a si mesma em um cosmos e em intelectos que a refletem,

358 (ALMEIDA, 2014, p. 35-36). 359 Ver, para mais detalhes, (POTTER, 1997, p. 49-51).

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e em fazer isso progressivamente; e o que faz a criação progressiva

valer a pena [...] é, precisamente, a razão, a lei, a verdade geral por meio

da qual ela ocorre. (CP 8.136)

Na verdade, Peirce concebia a própria evolução cósmica em direção ao summum

bonum como uma incorporação e expressão da Razão “cuja essência é tal que jamais

poderia ser completamente aperfeiçoada, que estaria sempre em um estado de

incipiência, de crescimento.”360 Essa evolução ou crescimento da expressão da Razão,

entendida em termos peircianos é:

[...] como o caráter de um homem, que consiste nas ideias que ele

conceberá, bem como nos esforços que fará, e que apenas desenvolver-

se-á na medida em que as ocasiões ocorrerem. Ainda assim, durante

todo o curso da vida, nenhum filho de Adão manifestou completamente

o que nele havia. Desta forma, o desenvolvimento da Razão requer,

como parte própria, a ocorrência de mais eventos que de fato podem

ocorrer. Ela requer, também, todas as nuances de todas as qualidades de

sentimento, inclusive o prazer no seu devido lugar entre todos os outros.

Esse desenvolvimento da Razão consiste, como você poderá observar,

em uma incorporação, isto é, manifestação. A criação do universo, que

não ocorreu durante uma semana turbulenta no ano 4004 A.C., mas que

ainda está a ocorrer hoje e nunca acabará, é o exato desenvolvimento

da Razão. Eu não vejo de que maneira alguém possa ter um ideal mais

satisfatório do admirável do que o desenvolvimento da Razão assim

entendido. A única coisa cuja admirabilidade não é devida a uma razão

ulterior é a própria Razão, compreendida em toda a sua completude, até

onde podemos compreendê-la. Com base nesta concepção, o ideal de

conduta será exercer nossa pequena função na operação da criação por

meio da contribuição para tornar o mundo mais razoável, sempre que

esta possibilidade estiver em nossas mãos. (CP 1.615)

Parece ser lícito dizer que, na filosofia de Peirce, o homem é chamado por uma

lógica objetiva, a mesma que está presente em todo o cosmos, a cultivar bons hábitos de

conduta. Esse parece ser o seu propósito, ou causa final, enquanto ser capaz de

autocontrole, no processo de crescimento da razoabilidade concreta. E essa é, também, a

essência de sua liberdade:

360 CP 1.615.

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A minha explicação dos fatos, certamente você irá notar, deixa o

homem em plena liberdade, não importa se admitimos tudo o que os

necessitaristas pedem que o façamos. Isto é, o homem pode, ou se

quiser, é compelido a tornar sua vida mais razoável. Que outra ideia

mais distinta do que essa, gostaria eu de saber, poderia ser imputada à

palavra liberdade? (CP 1.602)

Agora, enfim, estamos munidos com elementos suficientes para entender porque,

no âmbito da imortalidade do homem, há o aspecto de gradação ao qual nos referimos

mais acima. Ora, hábitos de conduta que estão de acordo com o crescimento da

razoabilidade concreta tendem, tanto em vida, como após a morte, a permanecer e formar

parte do próprio processo de concreção da razoabilidade, na forma de caráteres

admiráveis. A intensidade com que um caráter se encontra em comunhão com a

razoabilidade determina a durabilidade da sua permanência, podendo ser apenas uma

permanência diminuta e contingente ou chegar ao ponto em que pode ser chamada, em

termos peircianos, de uma permanência imortal.

Em termos mais concretos, hábitos de conduta que, por algum motivo se

encontram distantes do que é razoável, e, por isso, acabam por se prender a uma esfera

demasiadamente individual, tendem a desaparecer no universo da contingência e a não

permanecerem enquanto caráteres para além da memória de pessoas muito próximas. Os

homens que desenvolvem tais hábitos de conduta terão a influência de seus caráteres

limitada à uma esfera pouco abrangente, suficiente para operar mediações apenas em suas

próprias dimensões existenciais ou, no máximo, em um pequeno espectro de relações,

tanto em vida e mais ainda após a morte.

Neste contexto, pode ser dito que esses homens são, eles próprios, símbolos

contingentes, ou seja, representam um aspecto ou parcela diminuta da verdade real e

necessária, embora essa verdade, lembremos mais uma vez, também se encontre em

perpétua evolução. Em outros termos, os caráteres desses homens são como o símbolo

Jove, no exemplo dado por Peirce em sua Lowell Lecture XI, que analisamos mais

acima.361 Assim, a duração de suas influências, será também diminuta, e provavelmente

desaparecerá junto com a memória corporal dos seus entes mais próximos, que carregarão

consigo as últimas lembranças das ações que instanciavam os seus caráteres. Em tais

361 Ver, W 1.500-501.

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casos, de acordo com a teoria peirciana, tais hábitos de conduta, ou tais homens, não

alcançarão a imortalidade.

Por outro lado, homens que desenvolvem hábitos de conduta em consonância com

o que é razoável e admirável, não apenas para essa ou aquela pessoa, ou grupo de pessoas,

mas, tendendo, de um ponto de vista epistemológico, a uma universalidade ou acordo

ideal de opiniões no longo caminho, e, de um ponto de vista ontológico, a concreção da

razoabilidade, esses homens, dizíamos, tornam-se imortais, de acordo com o conceito de

Peirce, uma vez que a influência de seus caráteres permanece afetando a conduta de outros

homens, levando-os também a agir em consonância com os ideais que foram perseguidos

e expressos pelas suas condutas.

Essa influência se expande para além das dimensões meramente existenciais, tanto

dos homens cujas condutas são influenciadas como pelo próprio caráter influenciador.

Indo além da dimensão contingente, essa influência ou permanência pode se estender para

uma família, para uma comunidade, para um Estado, país e até mesmo para o mundo, etc.

Trata-se, realmente, de uma gradação, ou seja, quanto maior a amplitude e intensidade da

influência do caráter permanente, mais se pode dizer que se alcançou uma imortalidade

objetiva.

O homem que, nesses termos, se torna imortal passa, então, pragmaticamente, a

comunicar a sua mente, ou sua essência, a outras mentes por uma forma que se pode dizer

espiritual, no sentido peirciano do termo, de modo que o seu caráter instancia em cada

uma de suas incorporações contínuas um aspecto necessário da verdade real. Em outros

termos, uma verdade real e imortal é uma verdade representada em sua generalidade por

um caráter também imortal, que sempre se confirmará pragmaticamente mesmo após a

dissolução do corpo individual que era apenas um veículo de suas instanciações em vida,

ou seja, sempre aparecerá pelo lado de fora como uma influência a ser buscada, um valor.

Essa permanência contínua jamais terá a sua generalidade espiritual e real esgotada em

quaisquer de suas instâncias particulares.

Na verdade, no ponto mais alto da gradação, as influências dos caráteres se tornam

tão fortes que se pode mesmo dizer que perderam totalmente o elemento individual que

um dia possuíram, a segundidade dentro da terceiridade, tornando-se basicamente puras

terceiridades, ideias tão potentes que podem, inclusive, “usar” outros homens como seus

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defensores,362 pois, para Peirce, as ideias utilizam o homem como veículo de expressão,

e não o homem as ideias, ou, em outros termos, igualmente peircianos, o homem está no

pensamento e não o pensamento no homem.363

Enfim, o homem, como um símbolo em perpétuo crescimento, é compelido a

realizar o seu propósito em alguma forma de conduta de modo que as ideias que

configuram esse propósito venham a possuir significado pragmático. No interior desse

processo o homem pode, inclusive, inserir novidade no mundo por meio da sua

criatividade. Essa é uma característica da forma humana de contribuição em direção ao

crescimento da razoabilidade concreta, pois o homem, como um ser livre e capaz de

autocontrole, pode ser criador de ideias novas, em diversas formas, como, por exemplo,

a ciência e a arte364, ideias que, uma vez inseridas no universo podem permanecer e se

tornar parte de um processo cada vez mais adequado e semioticamente aprofundado de

expressão do real/ideal.365 Trata-se, mais uma vez, de um grande espelho do que ocorre

no cosmos, onde a variedade e a expansão da natureza são a inserção contínua de

processos abdutivos no processo evolutivo.366

Desse modo, as realizações de um homem são ocasiões em que as ideias que o

símbolo/homem representa aparecem pelo lado de fora, revelando o seu aspecto interior,

362 Acerca deste ponto, ver, por exemplo, EP 2.308 onde encontramos Peirce a argumentar que ideias ou,

em outros termos, símbolos poderosos “[…] criam os seus defensores e os animam com força. Isso não é

retórica ou metáfora: é um grande e sólido fato do qual o lógico deve dar conta.” Ver também

(SKAGESTAD, 1999) e (SKAGESTAD, 2004). 363 Nas palavras do próprio Peirce: “Nós estamos no pensamento e não o pensamento em nós” (CP 5.289;

CP 7.364). “[…] a ideia não pertence ao espírito; é o espírito que pertence à ideia.” (CP 1.216). 364 Detalhes acerca da capacidade humana, ligada a figura lógica da abdução e a uma profunda ontologia

de caráter cósmico, de inserir novidade no universo por meio de suas obras e criatividade devem ser

consultados em (IBRI, 2006), (IBRI, 2009), (IBRI, 2010a) e (ANDERSON, 1987). 365 A influência de um caráter imortal, como já sugerimos, se dá a partir de processos semióticos, de modo

que toda a teoria semiótica de Peirce poderia ser convocada para mostrar como os signos operam nas

diversas dimensões em que a imortalidade pode aparecer de algum modo para um interpretante. Por isso,

efetuamos em nossa propedêutica (ALMEIDA, 2014, capítulo 6) uma análise dos principais aspectos da

Semiótica peirciana. Embora a aplicação da semiótica ao contexto da imortalidade não seja necessária para

o entendimento do seu papel e escopo geral, motivo pelo qual a deixaremos em aberto no contexto da

presente tese, tal aplicação é prenhe de possibilidades de exploração, de modo que pretendemos retomar

essa possibilidade em uma futura pesquisa de pós-doutorado. No entanto, cabe deixar registrado que,

embora o que se configura como imortal no caráter de um homem seja da natureza do símbolo, lembremos

que este carrega em seu seio, índices e ícones. Assim, a presença do caráter imortal de um homem também

se mostra, no processo de semiose, além de por meio de símbolos, também por meio de índices e ícones,

qualquer que seja a gradação e extensão da influência permanente na conduta. A partir dessa constatação,

podemos dizer que, da mesma forma que existe uma gradação da imortalidade, conforme vimos, há também

uma gradação, ou melhor, intensidade sígnica de interpretantes emocionais, energéticos e lógicos

proporcionada pelo caráter de um homem que alcançou a imortalidade no interior do processo de semiose

que envolve interpretantes imediatos, dinâmicos e finais, cuja tendência é expressar o mesmo real/ideal que

o caráter do homem também representa enquanto símbolo vivificado pela verdade. 366 Para uma análise detalhada desse processo cósmico criativo, ver (IBRI, 2014a) e (IBRI, 2015a).

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ou ideal. Se o homem/símbolo representa em sua conduta um aspecto não meramente

contingente da verdade cósmica em perpétua evolução, ou seja, se ele se encontra

vivificado pela verdade necessária e real em seu caráter e, se essa representação

verdadeira permanece em contínua incorporação, unindo-se a outras ideias com ela afeita,

expandindo-se em outras ações e caráteres por ela influenciada, ou seja, se se torna

imortal, tal como a verdade eterna e em expansão que representa, então, entendemos,

enfim, porque Peirce disse que “a verdade nunca deixará de ter uma testemunha.”367

A partir dessa reflexão, parece ser lícito dizer que a morte, em termos peircianos,

embora possa ser tomada como a dissolução de hábitos relacionados a uma dependência

corporal, não se configura, no entanto, como uma descontinuidade absoluta dos hábitos

que configuram a personalidade ou caráter de um homem.368 Ela não é capaz de pôr

termos finais e absolutos na continuidade do crescimento do símbolo que é o caráter de

um homem vivificado pela verdade. Uma essência eterna e simbólica pode permanecer e

continuar o seu processo de crescimento.

“E quantos exemplos já vimos!369”, disse Peirce na passagem com a qual iniciamos

esse tópico. E parece-nos que ele estava correto ao exclamar isso. Certamente, a própria

sequência de construção do conceito na filosofia do autor já incitou diversos exemplos de

instanciações da influência de caráteres de certo modo imortais em nossas mentes,

provavelmente em diversas dimensões e gradações. Afinal, a ideia da influência

permanente de um caráter, em si, não é estranha a nossa vida cotidiana. Muitos, inclusive,

concordariam sem necessidade de maiores provas, com a proposição que cada ser humano

na terra é, de certa forma, influenciado em seus ideais por algum tipo de caráter imortal.

De fato, quantos exemplos poderíamos citar da permanência de caráteres

admiráveis no seio de nossas famílias, amigos e pessoas próximas, numa dimensão talvez

contingente, e de autores de grandes obras arquitetônicas, esculturas admiráveis, pinturas

memoráveis, belas sinfonias e músicas, romances épicos, poesias profundas, filosofias

transformadoras, etc., em uma dimensão gradativa talvez maior. Homens/símbolos cujos

caráteres permanecem influenciando a nossa conduta mesmo após as suas mortes. Platão,

Aristóteles, Michelangelo, Da Vinci, Bach, Mozart, Baudelaire, Shakespeare, Dante,

Peirce (!).... Cada um de nós poderia, certamente, estender essa lista por muitas páginas,

367 W 1.500. 368 Para mais detalhes acerca de como a morte pode ser pensada semioticamente a partir da filosofia de

Peirce, consultar o instigante artigo Living signs of the deads, de Kieran Cashell, (CASHELL, 2007). 369 CP 6.519.

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uma vez que os feitos e obras que instanciaram os caráteres admirados influenciam e

continuarão a influenciar a nossa conduta e a de muitos outros, em diversas dimensões e

em uma polissemia infinita, poderíamos dizer.370 Todos os nomes escolhidos se

encaixariam de algum modo no que procuramos esclarecer, do ponto de vista formal e

pragmático, nas páginas antecedentes e estariam, assim, em contínua contribuição com o

crescimento da razoabilidade concreta no universo, do qual nós também formamos parte.

Seriam, pois, exemplos de imortais.

Por fim, o pano de fundo proporcionado pelo entendimento de como se articulam

o pragmatismo, o processo normativo de formação de hábitos de conduta humanos e a

possibilidade de uma imortalidade reservada aos homens cujos caráteres se encontram

em comunhão com uma verdade necessária, porém não absolutamente determinada,

expressa em um universo sinequista, acolhedor da diversidade e da novidade, onde o

real/ideal tende, evolucionariamente, a crescer em uma razoabilidade concreta, oferece a

ocasião para encerrarmos este segundo capítulo com uma importante observação que, na

verdade, estabelece uma ligação entre este e o próximo, e também último, capítulo da

presente tese: a imortalidade do homem, acabamos de ver, é o seu tornar-se um poderoso

símbolo real, objetivo e, bem entendido, necessário, tal como o próprio cosmos; porém,

mesmo com sua importante contribuição criativa no interior do processo evolucionário,

não podemos nunca nos esquecer que essa possível imortalidade não se deve e não ocorre

em virtude do próprio homem, mas sim em virtude da consistência real e inteligível que

se figurou no seu caráter, exatamente por este ter se desenvolvido, por meio de bons

hábitos de conduta, em uníssono com uma verdade maior que o seu mero eu individual;

essa verdade consiste na evolução e expansão eterna da realidade representável pelo seu

caráter inteligível por meio de símbolos verdadeiros, e o homem que alcançou a

imortalidade é apenas mais um desses símbolos; todo esse processo, já o adiantamos em

algumas ocasiões, possui uma ligação conjectural com o modo como o autor concebia o

conceito de Deus no interior de sua filosofia; ao adentrarmos, agora, no próximo capítulo,

esperamos ter a oportunidade de mostrar, nos limites dessa tese, como e por quê.

370 Curiosamente (ou não!), o próprio Peirce estudou metodologicamente alguns caráteres ao longo da

história, em diversas áreas da cultura, e chegou a esboçar aquilo que chamou de sua Lista de Grandes

Homens (W 5.32-34) Ver a versão completa em: “Estudo de grandes homens” (W 5.26-106) e também a

lista “Os grandes homens da história” (W 8.258-266). Ver também (HOUSER, 2013).

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3. A CONCEPÇÃO PEIRCIANA DE DEUS E A SUA LIGAÇÃO CONJECTURAL

COM A POSSIBILIDADE DA IMORTALIDADE DO HOMEM

No capítulo anterior, tivemos a oportunidade de entender e refletir acerca de um

conceito de imortalidade do homem que se mostrasse possível e coerente com a

arquitetura filosófica de Charles Sanders Peirce. Tivemos de construir esse conceito de

imortalidade junto com o autor, pois, se este não fosse bem entendido, poderia ser

confundido com alguma espécie de concessão da parte de Peirce a um tipo de

tradicionalismo religioso e dogmático que, na verdade, estaria bem longe de sua filosofia,

conforme o próprio Peirce fez questão de deixar claro em passagens que procuramos

analisar detidamente.

Ao contrário da concepção dogmática da imortalidade que, sem exibir nenhuma

credencial científica, estrita ou ampliada, preconiza a imortalidade da alma recuperando

as mesmas propriedades mentais, intactas, exibidas em vida, a concepção peirciana da

imortalidade do homem, como vimos, consiste na permanência da influência do caráter

de homens/símbolos vivificados por uma verdade em consonância com a evolução do

real/ideal, exibida e representada por meio de símbolos verdadeiros, tal como ela mesma

o é, mesmo após as suas mortes, com intensidade proporcional a suas espiritualidades;

sendo que esse processo, também ao contrário da concepção tradicional, pode ser

confirmado na experiência fenomênica, de modo a exibir suas credenciais pragmáticas.

Essa concepção da imortalidade, como a permanência do caráter vivificado por

uma ideia pragmática de verdade, está fundada no idealismo objetivo e realismo do autor,

no interior de sua filosofia sinequista, de modo que nela também está reservado lugar para

a imputação da criatividade humana, espaço de sua liberdade, como contribuição para o

crescimento da razoabilidade concreta no universo, que consiste na expressão da Razão

por meio de uma concreção razoável, que ocorre no universo como um todo e para o qual

cada ser contribui à sua maneira, cumprindo e desenvolvendo os seus respectivos

propósitos.

Terminamos o capítulo anterior apontando que tal imortalidade não se deve e não

ocorre em virtude do próprio homem, mas sim em virtude da consistência real e inteligível

que se figurou em seu caráter. O que significa que o homem que desenvolve bons hábitos

de conduta, ultrapassando a sua mera individualidade, de modo a, na medida que lhe cabe,

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participar e, de certo modo, até mesmo se unificar com a verdade maior371, real e

inteligível, insistimos, que se expande e evolui em um processo de ordem cósmica, torna-

se um símbolo vivificado pela verdade, e, por isso, a sua influência na conduta de outros

homens continua o processo de contribuição com o crescimento dessa razoabilidade

concreta incorporável e representável em símbolos verdadeiros.

Esse processo cósmico, do qual o homem faz parte, tal como qualquer outro ser e

mesmo matéria, posto ser essa um tipo de mente, segundo o idealismo objetivo de Peirce,

possui, conforme veremos neste capítulo, uma ligação conjectural com a concepção que

o autor mantinha acerca de Deus. Assim, ainda é necessário retomarmos alguns aspectos

desse processo, adiantados nos dois capítulos anteriores, mas que ainda carecem de alguns

complementos, agora em outro contexto da metafísica psíquica ou religiosa de Peirce.

Nosso objetivo neste capítulo, portanto, é analisar como se configura a concepção

peirciana de Deus no intuito de mostrar como tal concepção possibilita, conjecturalmente,

um entendimento mais adequado da imortalidade do homem no contexto próprio dessa

filosofia. Para cumprir adequadamente esse objetivo, dividiremos esse capítulo em duas

partes:

Na primeira parte, buscaremos chegar, dentro de certos limites, a um

entendimento suficiente acerca de como se configura a concepção peirciana de Deus.

Dizemos ‘dentro de certos limites’ porque sabemos ser o tema Deus, no interior da

filosofia de Peirce, uma questão bem delicada e longe de consenso entre os estudiosos,

de modo que seria um mero e injustificado pretenciosismo ter a ilusão de ser capaz de

abordar as diversas dimensões, nuances e pontos de discussão proporcionados por esse

tema em apenas uma tese de Doutorado. Nosso propósito, ao contrário, é bem mais

modesto. O que pretendemos é explorar algumas passagens da obra do autor que nos

permitam entender, em linhas gerais, como ele concebia, filosoficamente, o conceito de

Deus, pois, conforme adiantamos desde a introdução, este é um aspecto central da

presente tese.

371 Esclareçamos mais uma vez que o uso do termo “verdade”, que temos usado de maneira recorrente nessa

tese, se refere ao uso que dela faz o próprio Peirce em diversas passagens que procuramos analisar. O seu

significado se encontra bem distante de qualquer concepção teológica da palavra, mas também distante de

um significado determinado e acabado. Em outros termos, o significado do termo “verdade” tal como

utilizado por Peirce é, insistimos, o significado pragmático do termo, que, em Peirce, adquire uma

proporção cósmica, identificada ao real/ideal, por isso também, essa palavra é às vezes adjetiva de ‘maior’,

posto se referir a algo que ultrapassa a individualidade humana.

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A segunda parte deste capítulo terá, por sua vez, a missão de fechar o ciclo

explicativo da pesquisa ao mostrar, tomando como assentado tudo o que fora abordado

nas páginas anteriores, como e em que sentido a possibilidade da imortalidade do homem

encontra-se ligada, de certo modo, à concepção de Deus exibida pelo autor, de modo que

o entendimento da realidade deste último, mesmo com alguns pontos problemáticos e de

certo modo inconclusivos, pode ajudar a se atingir um entendimento mais completo da

realidade do primeiro, desde que fique bem claro que tal ligação deve ficar circunscrita,

nesses pontos problemáticos, a uma esfera conjectural.

3.1 O conceito de Deus na filosofia de Peirce

Trata-se de um grande desafio abordar a concepção peirciana de Deus em um

espaço relativamente limitado, ao menos por dois motivos gerais. O primeiro está

relacionado com o próprio Peirce, que, de um lado, dirigiu severas críticas a quaisquer

tipos de intromissões de elementos religiosos em filosofia372 e, de outro, em muitas

passagens, falou sobre Deus de maneira um tanto obscura, gerando, eventualmente, uma

certa aparência de inconsistência373. Outrossim, em sua longa carreira filosófica, Peirce

exibiu algumas relativas transformações na sua forma de exprimir a concepção de

Deus374, não obstante tenha mantido sempre a opinião de que Deus não era incognoscível,

que colaboram para complexificar a exposição do tema.

O segundo motivo geral, talvez uma consequência do primeiro375, envolve os

comentadores da obra de Peirce. Alguns comentadores não admitem ou olham com

372 Em passagens como: CP 5.107, CP 6.216 e CP 5.379. Essas críticas peircianas, se lidas fora de contexto,

ou se não trabalhadas à luz de uma perspectiva mais ampla, que leve em consideração a sua arquitetura

filosófica, pode levar, como inclusive levou, a se pensar que Peirce não levava à sério questões que se

podem chamar de ‘religiosas’. Isso estaria bem distante do projeto arquitetônico de Peirce que, como vimos,

separou um ramo das ciências para tratar, filosoficamente, dessas questões e que também via em seu

sinequismo, por exemplo, uma doutrina que exerce um importante papel na reconciliação entre Ciência e

Religião. (Cf. EP 2.3)

373 Essas passagens, algumas das quais teremos a oportunidade de explorar mais abaixo, podem levar, por

outro lado, exatamente a uma tendência interpretativa contrária à anterior, ou seja, pode levar a se pensar

que Peirce, não conseguindo manter consistência filosófica no que tange à sua concepção de Deus, acabou

por incorrer em dogmatismo ao afirmar a sua realidade sem a devida credencial científica. 374 Uma vez que no contexto desta tese não entraremos em detalhes acerca dessas relativas transformações

na forma como Peirce exprimiu o seu conceito de Deus ao longo da sua carreira, indicamos veementemente

o livro de Orange sobre a concepção peirciana de Deus (ORANGE, 1984), estruturado cronologicamente,

como fonte para o preenchimento desta lacuna. 375 Dizemos ‘talvez uma consequência do primeiro’ porque em alguns casos, as discordâncias parecem ser

devidas, puramente, a algum tipo de preconceito intelectual acerca do tema, quer chamem esse tema

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desconfiança todo o projeto metafísico-científico do autor, chegando muitas vezes a

considerá-lo em contradição ou ao menos dificilmente harmonizável com o restante de

sua filosofia e, no tocante ao conceito de Deus, que se encontra dentro desse projeto

metafísico, logicamente a mesma dificuldade se manteria e até se tornaria mais

complexa.376 Por outro lado, os comentadores que concordam ser Deus, no interior da

metafísica científica peirciana, um tema legítimo, possuem, naturalmente, diversas

formas de interpretação acerca de como seria adequado tratá-lo de maneira inteligível e

consistente.377 Esse fato, ao mesmo tempo em que enriquece a discussão acerca do tema,

torna-a difícil de ser trazida a uma espécie de consenso.

Nossa intenção nessa tese não é descrever, analisar detidamente e muito menos

entrar em contenda com nenhuma linha de interpretação específica do conceito de Deus

na filosofia de Peirce. Tampouco pretendemos oferecer uma espécie de resolução, difícil,

senão impossível, para esses dois motivos gerais para a dificuldade em lidar com o tema

Deus na filosofia de Peirce. O que procuraremos fazer é, simplesmente, analisar algumas

passagens da obra do autor nas quais o tema ‘Deus’ é tratado, trazendo, quando for

apropriado, as contribuições de alguns comentadores que refletiram sobre o tema, visando

obter um referencial teórico adequado para explicarmos, na segunda parte deste capítulo,

a razão pela qual mantemos que o completo entendimento do conceito de imortalidade do

homem de Peirce está ligado ao seu conceito de Deus, não obstante de maneira

conjectural.

Sendo assim, diante dos muitos caminhos legítimos por meio dos quais seria

possível abordar o conceito de Deus na filosofia de Peirce378, escolheremos uma rota que

consideramos ser a mais adequada em relação ao escopo da presente tese, a saber,

diretamente de ‘Deus’ ou de ‘metafísica’, como se suas abordagens fossem, na contemporaneidade,

verdadeiras heresias filosóficas. Cito um exemplo desse tipo de leitura, ou talvez ‘des-leitura’, o artigo de

Ciro Marcondes Filho, “Esquecer Peirce? Dificuldades de uma teoria da comunicação que se apoia no

modelo lógico e na religião”, publicado em duas partes (MARCONDES FILHO, 2012 e 2013), que, sem

explicar em nenhum momento porque ter uma abordagem filosófica rotulada de ‘metafisica’ é ‘incorreto’,

condena a filosofia de Peirce sem se preocupar em primeiro entendê-la a partir da leitura dos textos próprios

do autor, valendo-se, segundo qualquer um de nós pode confirmar ao ler os artigos, mas também segundo

a resenha crítica que Winfried Nöth fez dos mesmos (NÖTH, 2013), de fontes textuais insuficientes e até

mesmo não qualificadas na esmagadora maioria de seus comentários. 376 Exemplos de comentadores que seguem essa linha podem ser encontrados em (BUCHLER, 1939),

(GALLIE, 1952), (THOMPSON, 1953), (SHORT, 2010), (CLANTON, 2014) e (ATKIN, 2016). 377 Por exemplo, (ORANGE, 1984), (RAPOSA, 1989), (CORRINGTON, 1993 e 1994),

(NIEMOCZYNSKI, 2011), (ANDERSON, 1995), (POTTER, 1993 e 1997), (EJSING, 2007),

(ROBINSON, 2010), (GELPI, 2001), (HARTSHORNE; REESE, 1976) e (NEVILLE, 2001). 378 Apenas como exemplos, citamos o caminho da Teosemiótica, de (RAPOSA, 1989) e o caminho

Naturalista Ecstático, de (CORRINGTON, 1994).

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analisaremos, primeiramente, a resposta à primeira pergunta do texto “Respostas a

questões referentes a minha crença em Deus”379, onde Peirce discorre diretamente sobre

a sua crença na realidade de Deus. Essa estratégia nos permitirá iniciar uma abordagem

também direta, que evite digressões desnecessárias, ao mesmo tempo em que

proporcionará refletirmos sobre algumas passagens do texto “Um Argumento

Negligenciado para a Realidade de Deus”380 que complementarão a análise do texto

anterior de maneira, esperamos, adequada. Após isso, abordaremos a relação entre o

conceito peirciano de Deus e a concepção ontológica do símbolo exibida pelo autor desde

seus textos de juventude, como, por exemplo, a parte final da Lowell Lecture XI381, de

1866, texto cuja maior parte já foi analisada nos dois capítulos anteriores. Essa relação

entre o conceito de Deus e o aspecto ontológico do símbolo se revela de maneira ainda

mais completa em um dos textos de maturidade do autor que versa sobre aspectos da sua

cosmologia, o texto Καινὰ στοιχεῑα382, escrito provavelmente em 1904. Neste segundo

movimento do tópico, passagens deste e de outros textos, com contextos pertinentes,

serão analisadas e conectadas, quando couber, com outras passagens do “Respostas a

questões referentes a minha crença em Deus”. Tais análises nos permitirão verificar como

a filosofia de Peirce acaba por, de certo modo, identificar Deus com a própria evolução

cósmica do real/ideal, mantendo, curiosa e idiossincraticamente uma certa terminologia

tradicional transfigurada pelo seu sinequismo.

O texto “Respostas a questões referentes a minha crença em Deus” contém

reflexões de Peirce escritas por volta de 1906, período no qual grande parte das ideias de

base da sua arquitetura filosófica já havia sido assentada383 e muito da linguagem

aparentemente confusa de alguns textos de juventude, sobretudo quando o que estava em

379 CP 6.494-521. 380 EP 2.434-450. 381 W 1.502-503. 382 EP 2.300-324. 383 Por exemplo, a sua doutrina das categorias ou Fenomenologia (EP 2.145-195); as conjecturas acerca da

origem das leis da natureza a partir da grande lei da mente (EP 1.285-371); o assentamento de seu

pragmatismo em bases metafísico-científicas, qualificando ainda mais a sua formulação inicial

aparentemente circunscrita apenas a uma regra de lógica (EP 2.133-241 e EP 2.331-397); o seu

posicionamento como um realista que professa a realidade operante e irredutível das três categorias não só

como modos do aparecer, mas também como modos de ser (EP 2.180 e EP 2.179-195); a sua classificação

das ciências a partir das noções de classes naturais e de causa final (EP 2.115-132, EP 2258-262 e CP 1.203-

283); a definição do papel e escopo das Ciências Normativas, incluindo a noção de summum bonum e do

crescimento da razoabilidade concreta (EP 2.196-207 e CP 5.120-150); as definições basicamente decisivas

acerca do seu conceito de continuidade e, logo, do seu sinequismo, realismo e idealismo objetivo (RLT,

242-268, CP 6.189-237, NEM 4.127-147) e, enfim, parte da expansão de sua teoria geral do signos, ou

semiótica, ampliando o escopo até certo modo limitado de sua abordagem em textos mais juvenis (SS.1-

57), sendo que o restante dessa ampliação ocorreu após 1906 (SS 58-153).

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pauta era esse tema, também já havia sido devidamente aprimorada.384 Nesse conjunto de

respostas que Peirce nos oferece acerca de temas relativos à sua crença, como cientista e

filósofo, na realidade de Deus, podemos encontrar diversos elementos que nos permitirão

refletir, com a ajuda de comentadores e de algumas outras passagens de Peirce

pertencentes a outros contextos, mas que, no entanto, serão referenciadas para efeito de

clarificação, sobre importantes pontos pertinentes ao que nos concerne nesta tese.

A pergunta principal a ser respondida por Peirce no texto é “Você acredita na

existência de um ser supremo?”385Peirce inicia a usa resposta com uma afirmação que

poderia surpreender a muitos: “Deus” é uma palavra vernácula e, como todas essas

palavras, mas talvez mais do que qualquer uma, é vaga.”386 A palavra Deus, para Peirce

consistia em um signo essencialmente vago, o mais vago de todos. O que isso quer dizer?

Sabe o estudioso de Peirce que, ao chamar um conceito de vago, Peirce não está a exprimir

alguma espécie de crítica, mas sim se referindo a um elemento técnico específico e de

grande significado em sua cosmologia, algo que compreenderemos mais adequadamente

no decorrer de todo esse capítulo. Por isso, vejamos brevemente o que um termo vago

significa para Peirce.

Peirce insistia que a definição de termo vago se torna mais compreensível quando

pensada em conjunto com a noção de termo geral. Um signo, segundo Peirce, “é

objetivamente geral na medida direta que estende ao intérprete o privilégio de levar a

sua determinação adiante, por exemplo, ‘O homem é mortal’.”387 Esse privilégio do

intérprete se deve ao fato de que a resposta para a eventual pergunta ‘que homem?’ fica

totalmente a seu encargo, incluindo quaisquer aplicações. Por outro lado, ainda segundo

Peirce, um termo “é objetivamente vago na medida que deixa a sua ulterior determinação

a cargo de outro signo concebível [...], por exemplo: um homem que eu poderia

mencionar parece ser um pouco pretensioso.”388 Aqui temos uma situação diferente, pois,

384 Por exemplo, a forma como o ainda jovem Peirce procurava exprimir a sua concepção da

cognoscibilidade de Deus, a despeito da proibição de seu mestre de juventude, Kant, em textos como “Três

Ensaios acerca do Infinito e de Deus” (W 1.37-43), “Prova da Natureza Infinita do Criador” (W 1.44), “Um

Tratado de Metafísica” (W 1.57-84), “Análise da Criação” (W 1.85-90) e “SPQR” (W 1.91-94). Embora

não trataremos desses textos no contexto desta tese, não podemos deixar de ressaltar que tais textos

configuram interessantíssimos pontos para uma análise completa da complexa concepção de Deus exibida

por Peirce ao longo da sua vasta carreira filosófica. Aos interessados, ver a análise que fizemos em outra

ocasião de um dos principais conceitos que costuram estes textos de juventude do autor, a saber, o conceito

de influxo, em (ALMEIDA, 2014a, p. 230-235). 385 CP 6.494. 386 CP 6.494. Itálicos nossos. 387 CP 5.447. 388 CP 5.447.

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embora haja também a ausência de uma determinação acerca de que homem está em

questão, não é dado ao intérprete o privilégio de determinar que homem é esse e muito

menos lhe dá o direito de aplicar o conteúdo da proposição a qualquer homem que ele

queira, pois, o enunciador poderia, mesmo diante de um eventual acerto por parte do

intérprete, dizer que ele não intencionou se referir à pessoa apontada pelo intérprete. No

entanto, permanece a possibilidade de futura determinação por algum signo concebível.

Ou seja, o homem que poderia ter sido especificado pelo enunciador poderia ser x. E x

poderia ser qualquer homem, e eis o seu aspecto indeterminado. Porém, esse x carrega

potencialmente a possibilidade de ser determinado por um signo posterior, o que equivale

a dizer que algum outro signo poderá ser colocado no lugar desse x, em algum momento,

por alguma mente, de modo que ele é um termo especificável no futuro indefinido.

Em outras palavras, um termo vago é, para Peirce, aquele que deixa a sua

interpretação sempre mais ou menos indeterminada, como fica claro na seguinte

passagem: “[...] qualquer coisa é geral na medida que o princípio do terceiro excluído a

ele não se aplica, e é vago na medida que o princípio de contradição a ele não se

aplica.”389 Ou seja, uma vez que o princípio de contradição não se aplica aos termos

vagos, então, um signo vago qualquer, diga-se y, poderá ter como predicados elementos

contraditórios, como ter a propriedade de ser w e não w, no que se refere aos pontos em

que são vagos, indefinidamente.

O que Peirce pretendia colocando os termos gerais e os termos vagos em um par

era tornar claro que um signo não pode ser vago e geral ao mesmo tempo e no mesmo

respeito, pois, se a função de determinar o significado do signo não ficar a cargo do

intérprete, então será uma função do enunciador do signo.390 De outro lado, um signo só

pode escapar de ser ou geral ou vago não sendo de algum modo indeterminado. Porém,

tal como nota Peirce:

Nenhuma comunicação entre duas pessoas pode ser inteiramente

definitiva, isto é, não vaga. [...] Contudo, onde quer que haja algum grau

ou qualquer outra possibilidade de variação contínua, torna-se

impossível uma precisão absoluta. E outras tantas coisas serão vagas

porque nenhuma interpretação das palavras de um homem baseia-se nas

mesmas experiências vividas pelo outro. Até mesmo nas nossas

389 CP 5.448. 390 Cf. CP 5.506.

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concepções mais intelectuais – quanto mais nos esforçamos na direção

da precisão, mais inalcançável ela nos parece. Nunca deve ser

esquecido que o nosso próprio pensamento se dá como um diálogo, e,

embora em menor grau, está suscetível a quase toda imperfeição

linguística. (CP 5.506)

Assim, a indeterminação dos termos vagos, que para muitos poderia resultar em

um estado insuportável de imprecisão, para Peirce, consiste justamente no motivo pelo

qual as palavras em vernáculo, exatamente por serem vagas, cumprem muito bem os seus

propósitos de expressar objetos reais vagos. Por isso, qualquer tentativa de as tornar

menos vagas redunda em fracasso, pois os seus próprios objetos são indeterminados.

Assim, quando Peirce diz ser o termo Deus um termo muito bem entendido em vernáculo,

porém, invariavelmente vago, o que ele está querendo dizer é exatamente que os mais

variados predicados são a ele atribuídos, todos mais ou menos entendidos, ou seja,

vagamente entendidos, mas sem a menor possibilidade de precisão absoluta:

Por um lado, não há palavras mais bem compreendidas do que as

vernáculas. No entanto, essas palavras são invariavelmente vagas, e a

respeito de muitas delas, é verdade que – deixem os lógicos fazerem

seu melhor para substituí-las por seus equivalentes exatos –, ainda

assim, as palavras vernáculas isoladas, mesmo com toda a sua vagueza,

respondem aos principais propósitos. Este é o caso enfático da palavra

“Deus”, que não se torna menos vaga ao se dizer que ela significa

“infinidade”, etc., já que tais atributos são, no mínimo, igualmente

vagos. Devo, portanto, substituir “Deus” por “Ser Supremo” nesta

questão. (CP 6.494)

Na verdade, conforme exploraremos mais abaixo, essa lógica da vagueza, segundo

Peirce, é uma lógica que se encontra presente na evolução do universo e, por isso, se

refere ao que abordamos nos capítulos anteriores acerca do real/ideal e do sinequismo do

autor. Ou seja, a vagueza, tal como a generalidade não é apenas uma característica do

signo, mas também de seus objetos e, portanto, trata-se de uma característica do próprio

universo contínuo. Veja-se, no entanto, a seguinte esclarecedora passagem:

Observando o curso da lógica como um todo, percebemos que ela

acontece da pergunta à resposta – ou seja, do vago ao definido. E

igualmente, toda a evolução que conhecemos ocorre desta maneira, do

vago ao definido. O futuro indeterminado se torna o passado

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irrevogável. Nas palavras de Spencer, o indiferenciável diferencia-se.

O homogêneo torna-se heterogêneo. Todavia, em casos especiais,

portanto, devemos supor que, via de regra, o continuum deriva-se de um

continuum ainda mais geral – um continuum de maior generalidade. (CP

6.191)

Não à toa, Peirce, ao continuar com a sua resposta acerca de sua crença em Deus,

faz questão de operar uma diferenciação importante, a saber, a distinção entre os usos dos

termos existente e real. O termo existente e o seu derivado existência, no vocabulário

peirciano, estão sempre atrelados à categoria de segundidade, de modo a se referirem às

reações que as coisas possuem umas para com as outras, ao choque bruto, a

individualidade de um objeto considerado em si. Peirce é bem claro ao dizer que

“certamente, nesse sentido, seria fetichismo dizer que Deus existe.”391 Por outro lado, o

termo real, conforme trabalhamos exaustivamente em nossa propedêutica392 e nos dois

capítulos anteriores, significa, no vocabulário peirciano, aquilo cujas características

permanecem absolutamente intactas independentemente de quaisquer pensamentos que

um homem ou conjunto de homens ou mesmo todos os homens têm, tiveram ou ainda

terão acerca dele.393

Após fazer essa importante definição, Peirce, sem rodeios, afirma: “Assim, então,

acerca da questão se eu acredito na realidade de Deus, respondo, Sim.”394 E é aqui que

devemos fazer algumas observações importantes. Do mesmo modo que tivemos de ter

cuidado, no segundo capítulo, ao tratar de como se configurava o conceito de imortalidade

de Peirce de modo a deixar claro porque a sua concepção dessa imortalidade não

configurava nenhuma espécie de concessão a alguma espécie de religiosismo cego e

dogmático, também aqui, não devemos nos apressar em concluir que esse enfático “Sim”

de Peirce em relação à sua crença em Deus seja uma manifestação meramente de fé e, do

ponto de vista filosófico-científico, dogmática. Assim, é lícito hipotetizar que, do mesmo

modo que a concepção de imortalidade do homem de Peirce estava alicerçada pela

confirmação nos fatos, ou seja, no mundo da experiência preconizado pela sua

Fenomenologia, o seu conceito de Deus também pode estar. Senão vejamos.

391 CP 6.495. 392 Cf. (ALMEIDA, 2014, capítulo 2). 393 Cf. Idem. 394 CP 6.496.

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‘Deus’ é um tema, conforme vimos, inserido no interior da metafísica psíquica ou

religiosa do autor, junto com os temas ‘imortalidade’ e ‘liberdade’. Como tal, também

conforme já tivemos a oportunidade de verificar no segundo capítulo, qualquer

proposição que se faça acerca deste objeto depende, segundo a classificação das ciências

do autor, da metafísica ontológica, das Ciências Normativas, da Fenomenologia e da

Matemática. Portanto, teremos de fazer um esforço de construir o conceito peirciano de

Deus junto com ele, do mesmo modo que fizemos com o seu conceito de imortalidade do

homem. Veja-se, por exemplo, a seguinte passagem:

[...] não creio que o homem possa ter a ideia de qualquer causa ou

agência tão extraordinária que não haja uma maneira mais adequada de

concebê-la a não ser de uma maneira tão vaga como o homem. Portanto,

quem não pode olhar para o céu estrelado sem pensar que todo este

universo deve ter tido uma causa adequada, também não pode, em

minha opinião, pensar nessa causa mais justificadamente do que pensar

que ela é Deus. (CP 5.536)

Aparentemente, nas passagens que estamos considerando, Peirce usa formas de

certo modo tradicionais ao falar de Deus, que poderiam até passar a impressão de um

certo dogmatismo. Peirce escreveu essas passagens já no século XX e, portanto, estaria

ele ignorando a demolição da fé na necessidade da ideia de causa e efeito baseada na

razão absoluta levada à cabo por Hume e também a restrição do uso da razão efetuada por

Kant em sua Crítica da Razão Pura?

Certamente, no momento em que escreveu esse texto, Peirce já havia dado uma

resposta suficiente, dentro de sua concepção de filosofia, para eliminar o chamado

problema humeano.395 A noção de causa e efeito não é, para Peirce, um problema que

exige a aderência a uma visão de mundo onde opera a necessidade estrita; ao contrário, é

simplesmente uma questão de natureza indutiva, cuja validade consiste em seu poder

autocorretivo, derivada, aliás, das próprias relações reais, uma vez que o mundo, para

Peirce, é um misto de ordem e desordem. O próprio realismo peirciano é uma resposta a

Hume e a explicação do surgimento das leis da natureza na filosofia peirciana, que

estudamos nos capítulos anteriores dentro do contexto da presente tese, também não deixa

dúvidas a esse respeito.

395 Para detalhes acerca da resposta de Peirce ao problema da indução de Hume, ver (BACHA, 2002).

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Por outro lado, esse mesmo raciocínio se aplica ao fato de Peirce, em 1906, já ter

ultrapassado completamente os seus começos filosóficos kantianos.396 Na verdade, pelo

menos desde os seus escritos sobre cognição397, que estudamos em nosso primeiro

capítulo, Peirce já havia repudiado a noção kantiana de incognoscível e, em 1906, já havia

mostrado como não só o pragmatismo, mas também qualquer filosofia que se pretenda

genética, deve envolver a noção de terceiridade real, conceito fundamentalmente oposto

à noção kantiana da coisa-em-si. Mas, dizer que Peirce deu respostas ou ultrapassou as

posturas de Hume e Kant, equivale a dizer que com eles dialogou, de modo que não é

correto afirmar que Peirce ignorou os legados de Hume e Kant ao afirmar a sua crença na

realidade de Deus. Inclusive, porque a grande influência desses pensadores se faz presente

em seus pares, embora curiosamente Peirce, logo na sequência de sua própria afirmação,

acrescente o que se segue:

Penso, ademais, que quase todo mundo acredita nisso em maior ou

menor escala, inclusive muitos cientistas da minha geração, que estão

acostumados a pensar que tal crença é completamente infundada. A

razão pela qual eles caem nesse terrível erro no tocante às próprias

crenças reside no fato de que eles precisam (ou, tornam precisa) a

concepção, e ao fazê-lo, inevitavelmente a modificam; e tal concepção

precisa logo se torna despropositada, mesmo que não possa ser

totalmente refutada. (CP 6.496)

Deus, para Peirce, decididamente não é um incognoscível ou um mero postulado

necessário para garantir as nossas ações morais. Na verdade, trata-se exatamente do

contrário disso. Pois, o que Peirce procura mostrar é que a proposição que afirma ser o

objeto que se pode chamar vagamente de Deus real é uma proposição até certo ponto

indubitável. No entanto, deve-se entender corretamente essa afirmação, de modo que um

esclarecedor comentário de Raposa se torna pertinente neste momento:

Certamente, a realidade de Deus é “indubitável, somente em um sentido

bem especial em Peirce. Uma crença em Deus fundamentada em uma

experiência religiosa vital impossibilita uma dúvida genuína acerca

dessa realidade, ou seja, qualquer coisa outra que não uma dúvida

fingida ou dúvida apenas no papel. Em qualquer evento, Peirce

396 Para uma análise da grande influência de Kant nos primeiros escritos de Peirce, ver (ESPOSITO, 1980)

e (APEL, 1995). 397 Em (ALMEIDA, 2014a) tecemos algumas reflexões no intuito de mostrar que isso ocorreu até mesmo

antes de 1868-69, anos em que os textos sobre cognição de Peirce foram publicados.

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argumenta que essa indubitabilidade está necessariamente relacionada

à vagueza da ideia. Assim, ela pode ser ameaçada pela tentativa de

tornar a concepção de Deus mais precisa na forma de uma noção

filosoficamente desenvolvida como a noção de “Absoluto”. Mas, essa

afirmação é o elemento chave para o entendimento da idiossincrática

versão peirciana da prova ontológica.398

Peirce, ao dizer que a crença na realidade de Deus é quase indubitável, não está a

negar o seu falibilismo, ou seja, a noção de que nenhuma proposição pode rogar absoluta

certeza. Nem também está a negar a presença do acaso no universo, como se Deus

funcionasse como uma causa que responde por tudo aquilo que não é ele mesmo, de modo

a não restar qualquer resíduo onde possa operar o princípio de liberdade e espontaneidade

que, como o próprio Peirce observou, também é pervasivo no universo. Ao contrário,

Peirce está apenas preparando o caminho para aquilo que, como bem viu Raposa, mas

também Corrington e Niemczynsky, e conforme veremos mais abaixo, seria o seu convite

para observarmos, no mundo fenomênico, a manifestação indireta399 do objeto que se

pode vagamente chamar de Deus.400 Não há razão, argumenta Peirce, para fingirmos

duvidar de algo que nosso senso comum não duvida. Duvidar, segundo o pragmatismo

de Peirce, é coisa muito séria:

Muitos e muitos filósofos parecem pensar que tomar uma folha de papel

e escrever nela “Eu duvido que” é duvidar de fato; ou que duvidar é

algo que pode ser feito em um minuto, tão logo decida o que quer

duvidar. [...] O pragmatista sabe que duvidar é uma arte que deve ser

aprendida com muita dificuldade, e suas dúvidas genuínas vão muito

além das de qualquer cartesiano.”401 (CP 6.498)

398 (RAPOSA, 1989, p. 58) 399 Usamos aqui a ideia de que a observação fenomênica daquilo que hipoteticamente poderia ser chamado

vagamente de Deus deve ser, como ocorre com qualquer objeto da metafísica científica do autor, indireta,

em concordância com o que ocorreu em nosso segundo capítulo acerca do tema imortalidade. No entanto,

deve-se apontar que em seu Aditamento ao texto “Um Argumento Negligenciado para a Realidade de

Deus”, texto que exploraremos mais abaixo, Peirce expressa a seguinte visão: “De onde viria uma tal ideia

como a de Deus, senão da experiência direta? […] Acerca de Deus, abra os seus olhos e o seu coração,

que também é um órgão perceptivo, e você o verá.” (CP 6.493). Percepcionamos diretamente os fenômenos

e suas relações, inclusive a terceiridade real, porém, os referentes das hipóteses que explicam o modo de

ser da realidade, ou seja, as leis, as ideias, etc. e, em última instância, algum Deus hipotético, são inferidos.

Por exemplo, experienciamos diretamente a ação de uma lei, não a própria lei; por isso a inferimos a partir

de sua manifestação real. 400 Cf. (RAPOSA, 1989), (CORRINGTON, 1993) e (NIEMOCZYNSKY, 2011). 401 CP 6.498.

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Se a realidade de Deus é, de um modo vago, indubitável, como Peirce pretende

nos fazer entender em que consistiria tal crença? A crença na realidade de Deus parece

ser, para o Peirce maduro, uma crença instintiva. O instinto, explica Peirce:

[…] é a grande fonte interna de toda a sabedoria e todo o conhecimento;

os “triunfos da ciência”, dos quais o pobre século XIX costumava ser

tão vaidoso, foram circunscritos em duas direções. Ou consistem em

explicações físicas dos fenômenos – ou seja, derradeiramente

dinâmicas –, ou então, em explicações sobre as coisas com base no

nosso senso comum sobre a natureza humana. No entanto, a dinâmica

não passa de uma elaboração do senso comum, seus experimentos são

meramente imaginários. Portanto, isso tudo se resume ao senso comum

em ambas as vertentes: uma, fundada sobre os instintos acerca das

forças físicas, que são requeridas pelo impulso alimentar, e a outra,

fundada nos instintos acerca de nossos iguais, que são requeridos para

a satisfação do impulso reprodutivo. Com base nisso, a ciência nada

mais é do que um fruto derivado desses instintos. […] a razão é, então,

mera substituta a ser usada quando o instinto bem quiser. (CP 6.500)

Assim, Peirce procura deixar muito claro que a sua intenção não é proceder com

algum tipo de argumentação para a aceitação lógica da realidade de Deus, mas sim fazer

“uma apologia para se assentar tal crença sob o instinto como a própria base sobre a

qual todo o raciocínio deve ser construído.”402 Peirce parece manter que a capacidade

instintiva humana possui analogia com os padrões de comportamento desenvolvidos por

alguns animais no intuito de se adaptarem e sobreviverem no mundo. Sobre esse ponto,

explica Raposa:

Os instintos humanos possuem uma função adaptativa comparável [a

dos animais]. Trata-se da necessidade de sobreviver e prosperar no

mundo natural e social que engendra o desenvolvimento de crenças

específicas do “senso comum”. [...] Tendo evoluído sob a contínua

influência de certas forças, a mente humana é adaptada aos seus efeitos,

aprendendo institivamente as leis que governam tais forças.403

Os instintos humanos são, assim, produtos da própria evolução e, no interior do

sinequismo de Peirce, não é de se surpreender que não haja descontinuidade entre a

402 CP 6.500. 403 (RAPOSA, 1989, p. 97).

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expansão do universo, a evolução das leis, o crescimento da razoabilidade, a mente

humana e, inclui-se agora, um objeto real que se pode chamar Deus. No interior desse

processo evolucionário, e uma vez que o homem dele faz parte, Peirce pode dizer:

Permita que o homem beba destes pensamentos da maneira que eles

vêm por meio da contemplação do universo físico-psíquico sem que ele

tenha um propósito especial; especialmente o universo da mente que

coincide com o universo da matéria. A ideia de que há um Deus atrás

de tudo isso será frequentemente sugerida; e quanto mais ele a

considerar, mais será envolvido pelo Amor a essa ideia. (CP 6.501)

Segundo Peirce, ao contemplar desinteressadamente404 o universo psíquico-físico,

ambos de natureza eidética, conforme vimos anteriormente e conforme o autor faz, mais

uma vez, questão de deixar bem claro405, parece ser inevitável ver surgir a ideia de um

Deus por detrás de tudo. Essa constatação, aparentemente nem um pouco científica,

parece ser, ainda segundo o nosso autor, cada vez mais reforçada por considerações

ulteriores baseadas em observações similares. Assim, continua Peirce: “Ele [o

contemplador] perguntará a si mesmo se realmente há ou não um Deus. E, se ele permitir

que o instinto fale, e procurar em seu próprio coração, descobrirá, por fim, que não pode

evitar acreditar.”406

Essas passagens parecem sugerir que Peirce era uma espécie de teísta. Aplicar

esse rótulo à Peirce é, no entanto, uma questão bem problemática.407 Teremos de voltar a

404 A ideia de contemplação desinteressada foi analisada com riqueza de detalhes por Ibri no contexto da

ontologia da arte, possível de ser obtida a partir da filosofia de Charles Peirce. Ibri mostrou como nem

sequer o próprio Peirce extraiu todas as consequências da sua arquitetura filosófica, particularmente no que

se refere à questão da arte muito para além de questões de nomenclaturas. Ver, particularmente, (IBRI,

2009) e (IBRI, 2010a). 405 Contrariando a posição de alguns comentadores que afirmam que o termo idealismo objetivo desaparece

nas obras posteriores aos textos da série cosmológica do The Monist, particularmente (SHORT, 2010). O

termo pode até não ter sido mais usado, mas a ideia veiculada e a sua influência na conduta, que no fim é o

que pragmaticamente importa, claramente reaparece em várias outras passagens, como essa que acabamos

de citar. 406 CP 6.501 – itálicos nossos. 407 Embora tenhamos dito, e reafirmemos agora, que não pretendemos entrar em nenhuma contenda acerca

das múltiplas e, por vezes, díspares interpretações dos comentadores de Peirce, estudiosos da sua filosofia

da religião e, particularmente, do seu conceito de Deus, é importante observar que este é um dos pontos em

que mais ocorrem discordâncias. Raposa, por exemplo, define a perspectiva geral de Peirce como sendo

um teísta científico, negando, veementemente a possibilidade de Peirce ser um panteísta, e argumentando

ser uma Teosemiótica, a melhor forma de explicar a abordagem peirciana sobre Deus (RAPOSA, 1989, p.

49-50); Ejsing e Potter parecem também concordar com a constatação geral de que Peirce seria um teísta,

porém, cada um à sua maneira, procura distinguir as particularidades do alegado teísmo peirciano. Ejsing

a partir de uma abordagem que considera a concepção peirciana de Deus como uma espécie de teologia

antecipatória efetuada a partir de encontros abdutivos e experienciais com o Deus judaico-cristão de

promessas (EJSING, 2007, p. 8). Potter, por sua vez, argumenta que o teísmo de Peirce está fundado em

uma forma de argumento ontológico e antropomórfico (POTTER, 1993). Mesmo Orange, em sua profunda

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esse ponto em breve, mas por hora, vamos deixá-lo em aberto, pois precisamos evoluir

um pouco mais na construção do conceito peirciano de Deus, no intuito de reunir alguns

elementos que nos ajudarão a ‘começar’ a entender que, embora, conforme veremos, o

próprio Peirce tenha se definido como um teísta408, na verdade, a manutenção deste rótulo

torna-se coerente apenas se entendermos o quanto ele se encontra transfigurado pela

filosofia sinequista do autor.

Para Peirce, um pragmatista não teria maiores problemas ao explicar o que

entende pelo vago termo ‘Deus’:

Se um pragmático for questionado quanto ao significado da palavra

“Deus”, ele somente poderá responder que, assim como uma

familiarização com um homem de caráter extraordinário pode

influenciar profundamente toda a forma de conduta de outro homem,

de maneira que uma simples olhadela em seu retrato venha a fazer a

diferença, ou a convivência com Dr. Johnson permitiu que o pobre

Boswell escrevesse um livro imortal e realmente sublime, ou a

familiarização com os estudos das obras de Aristóteles o tornam

conhecido, do mesmo modo, se a contemplação e o estudo do universo

físico-psíquico são capazes de imbuir um indivíduo com princípios de

conduta análogos à influência das obras ou palavras de um grande

homem, então, aquele análogo a uma mente – já que é impossível dizer

que qualquer atributo humano seja literalmente aplicável – é o que ele

quer dizer com a palavra “Deus”. (CP 6.502)

e arguta análise histórica acerca da concepção peirciana de Deus, no fim, concorda que Peirce seria, de fato,

uma espécie de teísta, de maneira bem diferente, conforme veremos, de um tradicional (Cf. ORANGE,

1984, p. 89-94). Hartshorne e Reese, em sua Antologia Philosophers Speak of God, tomam as reflexões de

Peirce sobre Deus, “fragmentárias”, segundo eles, como imbuídas de elementos panenteístas que o afastam

tanto do teísmo clássico como do panteísmo clássico, mas, exatamente por serem as reflexões de Peirce

fragmentárias, elas não chegam a configurar propriamente um tipo de panenteísmo moderno, mas apenas

uma espécie de aproximação (HARTSHORNE; RESSE, 1976, p. 269). Corrington, avança essa linha

interpretativa e caracteriza Peirce como um “panenteísta radical” (CORRINGTON, 1993, p. 203),

argumentando ser a noção de potencialidades divinas operando uma espécie de revelação da diferença

ontológica entre natura-naturata e natura-naturans no próprio universo, a melhor forma de abordar o

conceito peirciano de Deus. Niemoczynski, partindo das reflexões de Corrington, defende que a melhor

perspectiva para se abordar a concepção peirciana de Deus é a possibilitada pela escola chamada de

naturalismo ecstatico (ecstatic naturalism), criada pelo próprio Corrington, e que se funda na ideia de que

a natureza possui um potencial autotransformador que ultrapassa a finitude em direção a uma contínua

criatividade cuja origem pode ser dita divina, sendo Peirce, segundo o autor, um precursor dessa escola, o

que coloca Peirce entre uma espécie de panenteísmo ou panteísmo qualificado (NIEMOCZYNSKI, 2011,

p. x). 408 Por exemplo, em CP 8.262.

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O conceito de Deus, para quem abraça o pragmatismo, possui uma influência

legítima sobre a conduta, tal como vimos ser também operante acerca do conceito de

imortalidade como permanência do caráter vivificado pela verdade. Tal ideia, em

consonância com o pragmatismo em sua mais profunda articulação, possui uma estrita

ligação com a própria evolução do cosmos, por isso Peirce pôde afirmar:

Sendo essa a resposta pragmática à pergunta sobre o significado da

palavra “Deus”, questionar se realmente existe tal ser é o mesmo que

perguntar se toda a ciência física é meramente a invenção – arbitrária –

dos estudantes que investigam a natureza ou, mais ainda, se a lição de

Gautama Buda, Confúcio, Sócrates, e todos aqueles cujos pontos de

vista sobre as formas de conduta tenham sido determinados pela

meditação em relação ao universo físico-psíquico são somente uma

noção arbitrária ou são a Verdade por trás das aparências sobre a qual

o homem frívolo não reflete. (CP 6.503)

Essa “Verdade” que continuamente estamos tendendo a exprimir de maneira

aproximadamente adequada por meio de inquirições que seguem o método científico

autocorretivo, e cuja expressão, no longo caminho e fosse dado tempo suficiente, seria o

próprio real/ideal, parece possuir uma ligação com a concepção peirciana de Deus, o que

fundamenta a relação efetuada pelo autor. Essa relação, insistimos, não é feita por meio

do que se poderia chamar de uma “argumentação”, mas sim, é deixada ao instinto,

conforme se depreende do último movimento peirciano no intuito de responder a primeira

e direta pergunta acerca de sua crença em Deus:

[...] Agora, a única orientação para a resposta a essa pergunta reside no

poder da paixão pelo amor, que mais ou menos domina todo cientista

agnóstico e todo mundo que séria e profundamente considera o

universo. No entanto, seja qual for o argumento que exista em tudo isso,

é como o nada, o mais puro nada, em comparação com sua força como

um apelo para o próprio instinto de um indivíduo – o que está para o

argumento como a substância está para a sombra, o que a rocha sólida

representa para a fundação de uma catedral. (CP 6.503)

Essa linha de pensamento parece se repetir naquele que, pode-se dizer, consiste

em seu mais conhecido texto sobre a questão de Deus, o “Um Argumento Negligenciado

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para a Realidade de Deus”409, escrito em 1908, de modo que cabe aqui nos determos um

pouco nesse texto objetivando complementar alguns pontos de nossa reflexão sobre a

concepção peirciana de Deus.

Em “Um Argumento Negligenciado para a Realidade de Deus”, Peirce pretende

exibir ao seu leitor um argumento, definido, em comparação com uma argumentação, nos

seguintes termos: “Um ‘Argumento’ é qualquer processo de pensamento razoavelmente

tendente a produzir uma crença definida. Uma ‘Argumentação’ é um Argumento

procedente de premissas precisamente formuladas.”410 Segundo Peirce, tratar-se-ia de

algo natural esperarmos que haja um argumento assim definido acerca da realidade de

Deus, um argumento que seja aceito por todas as mentes, “altas e baixas”411, como algo

óbvio, de modo que, se essas mentes se empenhassem em encontrar a verdade sobre o

assunto, certamente chegariam a mesma conclusão acerca da realidade do objeto Deus.

Este argumento, ainda segundo Peirce:

[...] deveria apresentar sua conclusão não como uma proposição de

teologia metafísica, mas em uma forma diretamente aplicável à conduta

da vida, e plena de nutrição para o mais alto crescimento do homem.

Aquilo a que me referirei como o A. N. – o Argumento Negligenciado

– parece-me preencher melhor essa condição, e eu não deveria me

admirar se a maioria daqueles cujas próprias reflexões cegaram a crença

em Deus devesse abençoar a radiância do A. N. por aquela riqueza. Sua

persuasividade é não menos do que extraordinária; simultaneamente,

não é desconhecido de ninguém. (CP 6.457 – Tradução de Cassiano

Terra Rodrigues)

Em que consiste, então, o argumento negligenciado para a realidade de Deus de

Peirce? Na verdade, explica Peirce em seu Aditamento que o Argumento Negligenciado

consiste em um ninho de três argumentos, embora seja, estritamente falando, o segundo

deles, conforme veremos.412

Peirce assim inicia a sua exposição do primeiro momento do seu Argumento:

Há uma certa ocupação mental aprazível que, por não possuir nome

distintivo, infiro que não seja tão comumente praticada quanto merece;

409 EP 2.434-450. 410 CP 6.456, tradução de Cassiano Terra Rodrigues. 411 CP 6.456. 412 Cf. CP 6.486.

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200

De fato, é Puro Jogo. Ora, Jogo é, todos sabemos, um exercício vívido

das forças de alguém. O Puro Jogo não tem regras, exceto esta própria

lei de liberdade. [...] Não possui propósito, a não ser a recreação. A

ocupação particular que quero dizer, – uma petite bouchée dos

Universos, – pode tomar ou a forma de contemplação estética, ou aquela

de construir castelos distantes (seja na Espanha ou dentro do próprio

treino moral de alguém), ou aquela de considerar alguma maravilha em

um dos Universos, ou alguma conexão entre dois dos três, especulando

acerca de sua causa. É esta última espécie – chamá-la-ei, no geral,

“Devaneio” [musement]. – que eu particularmente recomendo, porque

florescerá em tempo no Argumento Negligenciado. (CP 6.458 –

tradução de Cassiano Terra Rodrigues)

Esse puro jogo do devaneio, um estado mental livre, despreocupado e

despropositado, ou seja, um estado mental que não se propõe mediar alguma coisa por

meio do pensamento controlado, embora seja marcadamente heurístico413, pode resultar

no sentimento de estar diante de alguma maravilha em um dos três universos da

experiência.

Esses três universos, já o sabemos, consistem nas formas de aparecer e de ser da

primeiridade, segundidade e terceiridade. O estado de devaneio, então, permite o eventual

vislumbre de conexões entre esses mundos e, não menos eventualmente, o súbito

especular sobre a sua causa. Esse processo de pura contemplação, longe de resultar no

convencimento de qualquer verdade dogmática, acabará, segundo Peirce, resultando no

argumento negligenciado.

Esse primeiro momento do chamado Argumento Negligenciado, denominado de

Argumento Humilde, foi explicado pelo próprio Peirce como:

[...] aquela meditação sobre a ideia de Deus, inteiramente honesta,

sincera e não afetada. Porquanto não premeditada, à qual o Jogo do

Devaneio, mais cedo ou mais tarde, levará, e que produzirá, pelo

desenvolvimento de um sentido profundo da adorabilidade daquela

Ideia, uma Crença Verdadeiramente religiosa em Sua Realidade e Sua

proximidade. É um argumento razoável, porque resulta naturalmente na

mais intensa e vívida determinação da alma na direção de moldar toda

413 Ver (IBRI, 2006). Ver também as explicações de Ibri acerca do papel fundamental que esse devaneio

ou puro jogo exerce no tocante à ontologia da arte, (IBRI, 2009) e (IBRI, 2010a).

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a conduta do Devaneador em conformidade com a hipótese de que Deus

é Real e muito próximo; e tal determinação da alma com relação a

qualquer proposição é a própria essência de uma Crença vívida em tal

proposição. Este é aquele “argumento humilde”, aberto a todo homem

honesto, que eu suspeito haver feito mais veneradores de Deus do que

qualquer outro. (CP 6.486 – Tradução de Cassiano Terra Rodrigues)

Segundo Anderson, a emergência da atratividade da ideia da realidade de Deus

constitui o argumento humilde de Peirce e tal emergência traz à tona um Deus, não de

uma religião em particular, mas o de uma fé puramente religiosa cujas raízes são

anteriores a qualquer tipo de pensamento acerca dessa crença.414

O segundo momento do Argumento Negligenciado, é exatamente aquilo que,

segundo Peirce, tem sido negligenciado por escritores de teologia natural.415 Trata-se de

um argumento cuja função “consiste em mostrar que o argumento humilde é o fruto

natural de meditação livre, já que cada coração será arrebatado pela beleza e pela

adorabilidade da ideia, quando então for possuído”416 e, portanto, equivale ao “[...]

precipitado natural da meditação sobre a origem dos Três Universos”417 Peirce parece

ter claro que tal argumento não se parece nem um pouco com as argumentações levadas

à cabo por teólogos que se esforçam em provar de maneira necessária a existência de

Deus.

Certamente, no que se refere a essa tentativa teológica, Peirce estaria de pleno

acordo com Hume e Kant, de modo que seria impossível chegar a uma prova necessária

de Deus pelo simples fato de que aquilo que se configura como o pilar das argumentações

não poder ser, sequer indiretamente, objeto de confirmação fenomênica.418 No entanto,

tal é o esforço de muitos teólogos, reconhecendo apenas argumentações, que, segundo

Peirce419, poucos chegam a mencionar a possibilidade daquilo que Peirce denomina de

argumento negligenciado, propriamente dito.

414 Cf. (ANDERSON, 1995, p. 150). 415 Cf. CP 6.487. 416 CP 6.487 – Tradução de Cassiano Terra Rodrigues. 417 CP 6.487 – Tradução de Cassiano Terra Rodrigues. 418 Por outro lado, deixando de lado esse ponto de concordância, em (Almeida, 2014a, p. 229-235 e nota de

rodapé 71) mostramos como Peirce se afasta, no contexto de suas reflexões sobre a natureza de Deus, tanto

do transcendentalismo kantiano como do ceticismo humano desde muito cedo, por exemplo, com sua

concepção de Influxo, que dependia de uma Fé em sentido lógico, ou seja, algo próximo de sua posterior

conceituação do senso comum. Ver, W 1.42. 419 Cf. CP 6.457.

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Como se dá, exatamente, esse segundo momento do Argumento Negligenciado?

Vejamos como Peirce o descreve, em uma relativamente longa, mas importante

passagem, que merece ser citada na íntegra:

Deixe o Devaneador, por exemplo, depois de bem apreciar, em sua

extensão e profundidade, a inefável variedade de cada Universo, voltar-

se a tais fenômenos que, em cada um deles, são da natureza de

homogeneidades de conectividade; e que espetáculo se desdobrará! [...]

Das especulações sobre as homogeneidades de cada Universo, o

Devaneador passará naturalmente à consideração de homogeneidades e

conexões entre dois Universos diferentes, ou todos os três.

Especialmente, neles todos encontramos um tipo de ocorrência, aquela

do crescimento, ela mesma consistindo nas homogeneidades de partes

pequenas. Isso é evidente no crescimento de movimento em

deslocamento e no crescimento de força em movimento. No

crescimento também encontramos que os três Universos conspiram; e

um traço universal disso é a preparação para estágios tardios em

estágios mais precoces. Este é um espécime de certas linhas de reflexão

que inevitavelmente sugerirão a hipótese da Realidade de Deus. [...]

Mas, entretanto, seja como for, no Puro Jogo de Devaneio a ideia da

Realidade de Deus deverá ser certamente considerada, mais cedo ou

mais tarde, como uma fantasia atraente que o Devaneador desenvolverá

de várias maneiras. Quanto mais a pondere, mais ela encontrará

resposta em cada parte de sua mente, pela sua beleza, por suprir um

ideal de vida e pela sua explicação completamente satisfatória de todo

seu tríplice meio-ambiente. (CP 6.464-465 – Tradução de Cassiano

Terra Rodrigues)

Deve-se notar que a vagueza do conceito de Deus permanece absolutamente

intocada pelo Argumento Negligenciado de Peirce. Este não pretende ser um movimento

de precisão. Ao menos não em um sentido atual, pois, por outro lado, a natureza do

Argumento que se configura pelo resultado da especulação heurística proporcionada pelo

devaneio implica na contínua tendência a definição, no entanto essa tendência,

indeterminada, se dirige ao infinito. Esse ponto é crucial, e, a partir dele, temos também

a oportunidade de voltar mais uma vez à questão do auto alegado teísmo de Peirce.

Orange, profunda estudiosa da concepção peirciana de Deus, concorda com a ideia

de que a melhor forma de classificar a concepção de Deus do autor, seria a de que ele é

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um teísta.420 Conforme já adiantamos mais acima, o próprio Peirce se definia, em seus

textos mais maduros, como um teísta, e esse fato deve ser levado em consideração.

Vejam-se as seguintes passagens:

O Deus do meu teísmo não é finito (CP 8.262)

Eu olho para a criação como algo que ainda está ocorrendo e eu acredito

que uma ideia assim tão vaga, como a que podemos ter do poder da

criação, é melhor identificada com a ideia de teísmo. (CP 8.138)

Se você adotar uma hipótese teística, você deve ou dizer que Deus não

pensa e, portanto, não planeja, ou, então, que seu pensamento resultará

na evolução do mesmo modo como os pensamentos de um autor de um

livro dão ao livro um desenvolvimento gradual (NEM 4.140)

[...] Eu sou um teísta, não um pagão como você. (MS L224 apud

ORANGE, 1984, p. 72 - trecho de uma carta de Peirce à William James)

À essas passagens citadas ainda podemos somar também o planejamento dos

capítulos do One, Two, Three, que, se tivesse sido concluído por Peirce, findaria,

exatamente, com um capítulo intitulado “Teísmo”421 e também uma instigante

continuação do “Respostas a questões referentes a minha crença em Deus”, que teremos

a oportunidade de analisar mais abaixo.422 A questão é, como devemos entender essa

afirmação do teísmo por parte de Peirce? Orange nos fornece uma pista para iniciarmos

uma maneira de acomodar esse talvez incômodo rótulo:

O Deus do seu teísmo [de Peirce] é estritamente hipotético. Há duas

formas de entender esse “estritamente hipotético”: como “nada além

de” ou como “falando cientificamente e não religiosamente”. Porque

Peirce muitas vezes disse que nós temos certeza prática no que se refere

às nossas crenças atuais, inclino-me a tomar a segunda interpretação.

[...] A grande vantagem de um Deus “hipotético” é manter o crente

intelectualmente honesto.423

420 (ORANGE, 1984, p. 82). 421 “Um, Dois, Três – Índice: I. As concepções descritas. Aparência em Filosofia. II. Na lógica formal.

Ila. Na metafísica. III. Na psicologia. IV. Na fisiologia. V. Na biologia. VI. Na física. A. Estado atual da

teoria molecular.VII. B. Sem a suposição de lógicos últimos. VIII. C. Axiomas. IX. A teoria física. X. O

absoluto. XI. Leis da natureza. XII. Consciência e Inteligência. XIII. Teísmo.” (W 5.294 – realce nosso) 422 CP 6.505-506. 423 (ORANGE, 1984, p. 92).

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Em outros termos, se tomarmos a definição tradicional de teísmo como

configurando a doutrina que admite a existência de um Deus pessoal, causa do mundo,

ou, como quer Kant, a doutrina que crê poder determinar por analogia a natureza de

Deus424, notamos, e notaremos ainda mais no decorrer deste capítulo, que o teísmo de

Peirce exibe, de fato, proximidades com tais definições.

Porém, tal como ocorreu com o seu conceito de imortalidade, o seu teísmo não

deve ser tomado como uma crença dogmática e tradicional que simplesmente afirma, sem

exibir suas credenciais, que existe um Deus criador. Por que? Porque, conforme podemos

extrair das considerações de Orange, a afirmação peirciana da realidade de Deus, e não

existência, lembremos, é, primeiramente, uma afirmação hipotética, surgida, como vimos,

a partir de um livre jogo do devaneio, que leva o devaneador que se deixar guiar pelos

seus instintos, quase que inevitavelmente, à ideia de que Deus é real.

Depois, trata-se de uma hipótese que não impõe, mas convida o devaneador a

continuar, honestamente, a sua contemplação e inquirição no mundo fenomênico,

disponível para qualquer mente, de modo que tal hipótese acaba por adquirir suas

credenciais científicas, não por configurar uma conclusão argumentativa, como

desejariam os teólogos ou, paradoxalmente, aqueles que se apressam em atribuir

inconsistência à essa faceta do pensamento de Peirce, mas, exatamente por permanecer

estritamente uma hipótese direcionada a um processo de contínua definição parcial até o

infinito.425

Por outro lado, essa concepção de um Deus estritamente hipotético de Peirce

possui a característica de influenciar a conduta, mesmo que qualquer tentativa de falar

sobre ele permaneça vaga e falível, sendo que, exatamente por isso, é também efetiva.

Peirce parece dar razão a essa linha de pensamento, por exemplo, na seguinte passagem:

[...] qualquer homem normal que considere os três Universos à luz da

hipótese da Realidade de Deus e persiga esta linha de reflexão com

singeleza científica de coração, virá a ser excitado nas profundezas de

sua natureza pela beleza da ideia e pela sua augusta praticidade, mesmo

424 Ver o verbete correspondente em (LALANDE, 1996, p. 1111). 425 Em outros termos, nunca foi a intenção de Peirce, cientista que era, provar ou demonstrar a realidade

de Deus, no sentido estrito do termo demonstração (ou seja, no sentido em que opera uma lógica

necessitarista), mas sim apenas sugerir tal Deus como hipótese e como vagamente cognoscível. Muitos

comentadores acabam por “gastar bastante papel” mostrando com rigorosas análises de linguagem que

Peirce não foi bem-sucedido em demonstrar a realidade de Deus (ver, por exemplo, CLANTON, 2014).

Porém, parece que a patente intenção lógica de Peirce, diferençável, até podemos conceder, de sua alegável

adesão pessoal, foi de certo modo perdida por essa linha interpretativa.

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a ponto de amar e adorar sinceramente seu Deus estritamente hipotético

e de desejar sobre todas as coisas moldar toda a conduta da vida e todas

as fontes de ação em conformidade com aquela hipótese. Agora, estar

deliberada e completamente preparado para moldar a conduta em

conformidade com uma proposição não é nem mais, nem menos do que

o estado mental chamado Acreditar em tal proposição, não importa o

quanto seja posposta a sua classificação consciente sob tal caput. (CP

6.467 – Tradução de Cassiano Terra Rodrigues)

Portanto, a hipótese da realidade de Deus preconizada por Peirce, possui também

caráter pragmático, embora, tal caráter pragmático difira, em certa medida, daquele que

podemos encontrar, estritamente, em uma concepção intelectual propriamente dita.426

Esse aspecto também se deve, segundo Orange, à vagueza da concepção de Deus, que,

portanto, influenciará a conduta cada vez mais intensamente na medida direta que for se

tornando parcialmente clara no futuro indefinido. Portanto, essa é uma questão que,

incluindo em seu bojo as anteriores, envolve, essencialmente, a ideia da continuidade

como sendo de prima importância em filosofia, de modo que, em última instância, o

autointitulado teísmo de Peirce se encontra totalmente transfigurado pelo seu sinequismo,

diferenciando-se patentemente das abordagens e adesões tradicionais a tal doutrina.

Por isso, também, há a necessidade de um terceiro, e último, movimento do

Argumento Negligenciado, que Peirce explica como consistindo em um estudo de

metodêutica lógica427, ou seja, esta é a parte do argumento que se pode chamar de

estritamente científica, calcada no papel exercido pelas formas de raciocínio, abdução (ou

retrodução), dedução e indução na justificação da hipótese de Deus.428

Não é necessário adentrarmos em questões técnicas acerca da metodêutica no

contexto dessa tese.429 Cabe apenas apontar a intenção final de Peirce no que se refere a

esse terceiro movimento do Argumento Negligenciado, a saber, mostrar que a abdução

426 Cf. (ORANGE, 1984, p. 75, citando MS 288). 427 Cf. CP 6.488. 428 Cabe ressaltar que o aparente assentamento do auto alegado teísmo de Peirce a partir dos argumentos

acima não deve passar a impressão de que se chegou a algum tipo de conclusão. O que fizemos foi apenas

uma abordagem possível de um tema que, conforme frisamos acima, se configura como controverso na

filosofia do autor. Cabe dizer que as passagens textuais de Peirce acerca desse tema são relativamente

obscuras, e, portanto, inconclusivas. Seria o auto alegado teísmo uma resolução conjectural do problema

da natureza de Deus coerente com a sua própria filosofia? Ainda teremos algo a dizer sobre isso até a

conclusão dessa tese. 429 Detalhes sobre a Metodêutica peirciana podem ser consultados em (SANTAELLA, 2004) e (LISZKA,

1996).

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ou retrodução se configura como o único tipo de raciocínio que realmente promove um

avanço no conhecimento. Segundo Peirce, “a metodêutica possui um interesse especial

na Abdução [ou Retrodução no contexto do Argumento Negligenciado] ou inferência que

inicia uma hipótese científica. Pois, não é suficiente que uma hipótese seja justificável.

Qualquer hipótese que explica os fatos está justificada criticamente.”430 Esse é mais um

argumento aduzido por Peirce para justificar o seu teísmo que, desse modo, pode ser

adjetivado de científico.431 Peirce coloca esse ponto nos seguintes termos:

[...] nem a Dedução nem a Indução contribuem [sic: com] o menor item

positivo para a conclusão final da inquirição. Elas tornam o indefinido

definido: a Dedução Explica; a Indução avalia: isso é tudo. Até agora,

cada plataforma de seu avanço é primeiro assentada somente pela

Retrodução, isto quer dizer, pelas conjeturas espontâneas da razão

instintiva. (CP 6.475 – Tradução de Cassiano Terra Rodrigues)

Temos, aqui, uma vez mais o retorno da ideia de que a crença na realidade de Deus

deve remontar mais ao instinto do que à razão, pois, uma possível justificativa para a sua

validade lógica está assentada na validade da retrodução ou abdução, de modo que Peirce

acaba por concluir que “o Argumento Negligenciado é o Primeiro Estágio de uma

inquirição científica, que resulta em uma hipótese da mais alta plausibilidade, cujo

último teste deve residir, em seu valor, no crescimento autocontrolado da conduta da

vida do homem.”432

Essa conclusão de Peirce nos oferece também a ocasião para darmos, conforme o

nosso plano para esse tópico, o segundo passo no entendimento do papel exercido pela

concepção peirciana de Deus em sua arquitetura filosófica, que consiste em refletir um

pouco sobre a cognoscibilidade desse objeto no interior da filosofia do autor.

Faremos isso a partir do seguinte fundamento: muito embora, o instinto responda,

conforme vimos, pelo assentamento da hipótese da realidade de Deus, por outro lado isso

não significa que a razão não exerça um importante, embora ulterior papel no processo

da cognição desse objeto; a razão é uma parte da mente humana e, ter um conhecimento

possível e filosófico, não obstante falível, do tipo de Deus coerente com uma certa visão

de mundo, no caso, coerente com aquilo que foi desenhado pela metafísica ontológica, as

430 NEM, 4.45. 431 Ver (RAPOSA, 1989, capítulo um). 432 CP 6.480 – Tradução de Cassiano Terra Rodrigues.

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Ciências Normativas e a Fenomenologia do autor, também é uma forma de influência

sobre a conduta. Como bem comenta Orange, a realidade infinita é cognoscível,

diretamente pelo instinto e vagamente pela razão.433 No fim, essa linha de reflexão pode

redundar em um aprendizado que possa ter algum valor para o processo de formação

autocontrolado do caráter do homem, que, conforme vimos, se estiver vivificado pela

verdade, pode, inclusive, ser imortal.

A partir dessas reflexões, parece que uma forma plausível de lidar com a hipótese

peirciana da realidade de Deus é tomá-la como um convite para perguntarmos, de diversas

maneiras, ao mundo fenomênico, com o mesmo espírito científico que fizemos com a

questão da imortalidade no segundo capítulo, como se manifestaria indiretamente o objeto

a que se pode chamar vagamente de Deus. Aceitar esse convite de Peirce é educar o

espírito a estar em harmonia com a evolução e crescimento da razoabilidade concreta, ou

seja, é adquirir condições de desenvolver bons hábitos de conduta e contribuir com o que

nos cabe nesse processo.

Por isso, diante das múltiplas possibilidades de abordarmos a questão da

cognoscibilidade de Deus em Peirce, gostaríamos de trabalhar com aquilo que se pode

chamar de concepção ontológica do símbolo em sua filosofia, pois, ao fazê-lo, teremos

condições de entender outros aspectos que estão envolvidos na concepção de Deus do

autor, aspectos esses que, por sua vez, nos proporcionarão meios para amarrar os pontos

necessários para realizar a contento, na segunda parte deste capítulo, a nossa tarefa de

apontar porque a sua concepção de Deus fundamenta, conjecturalmente, um

entendimento mais substancial do seu conceito de imortalidade do homem.

Peirce parece ter exibido aquilo que se pode chamar de concepção ontológica do

símbolo desde os seus textos de juventude, conforme procuramos exibir em nosso artigo

“Algumas reflexões sobre o aspecto ontológico do símbolo e sua relação com a

cognoscibilidade de Deus no interior da metafísica religiosa de Charles Sanders

Peirce.”434 Neste artigo, trabalhamos com o texto “Conferência de Harvard I”, de 1865435,

como exemplo de um texto de juventude do autor que exibia essa concepção. Sem que

haja necessidade de adentrarmos novamente nos detalhes de como esse conceito foi

desenvolvido neste texto em particular, cabe trazer mais uma vez a forma como tal

433 Cf. (ORANGE, 1984, p. 73). 434 (ALMEIDA, 2014a). 435 W 1.162-175. Ver a análise que efetuamos em (ALMEIDA, 2014a, p. 215-220).

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concepção ontológica do símbolo foi concebida à essa altura por Peirce, uma vez que tal

procedimento servirá como ponto de partida para entendermos esse conceito e sua relação

com o conceito peirciano de Deus com mais profundidade em algumas passagens de sua

filosofia mais madura:

O caráter ontológico do símbolo [...] consiste justamente em que, numa

representação, o símbolo deve sempre incorporar uma forma e, ao fazê-

lo, representar o objeto de maneira a expor a sua cognoscibilidade, ou

seja, o fato de o objeto possuir um modo de ser cognoscível. [...] Em

última instância, para Peirce, o símbolo em seu caráter ontológico

estava assentado no fato de que, além do mundo interno (o mundo da

memória) e o mundo externo (o mundo dos objetos e fatual) existia o

mundo lógico, coextensivo com os outros dois, de modo a não haver

nenhum tipo de separação.436

Essa consideração peirciana decorre da forma como concebia a Lógica à essa

época, a saber, “a ciência das leis da experiência em virtude de estas serem uma

determinação da ideia, ou, em outras palavras, como a ciência formal do mundo

lógico.”437 Por isso:

[...] como tais leis são leis da experiência, o estudo de suas

características internas, ou seja, um estudo que visaria exibir como o

intelecto trabalha ao pensar, seria nada mais que uma investigação de

suas características externas. [...] Esse é o ponto crucial: um símbolo

pode, ontologicamente, exibir o modo de ser da realidade. Ou seja, o

símbolo pode exibir a verdade acerca do seu objeto real (o seu modo de

ser no mundo lógico, coextensivo com os mundos interno e externo,

que esgotam a experiência possível).438

O símbolo, ontologicamente considerado é, assim, um veículo apropriado de

expressão de uma ideia, devido a sua generalidade real, e Peirce exibiu essa concepção

marcante sobre a relação entre semiótica e filosofia desde os seus primeiros textos. Um

dos textos em que tal concepção ontológica se faz sentir de maneira intensa é a nossa já

conhecida Lowell Lecture XI, de 1866, cuja maior parte já analisamos no primeiro e

segundo capítulos desta tese. Na verdade, por trás da ideia peirciana que identificou o

436 (ALMEIDA, 2014a, p. 217-218). 437 W 1.169. 438 (ALMEIDA, 2014a, p. 219).

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homem a um símbolo, encontrava-se exatamente essa concepção ontológica, do mesmo

modo que também se encontrava por trás da possibilidade de o caráter do homem poder

ser vivificado por uma verdade de natureza real/ideal e, com isso, adquirir um certo grau

de imortalidade proporcional à intensidade da identificação do seu caráter com essa

verdade.

Na Lowell Lecture XI, lembremos, Peirce havia preconizado, além da

possibilidade de uma teoria da imortalidade, uma segunda consequência do fato de a

essência do símbolo ser formal e não material. Essa segunda consequência consiste no

breve trecho dessa Lecture que ainda nos resta analisar e que, além de servir como mais

um exemplo de como a concepção ontológica do símbolo foi desenvolvida desde os textos

de juventude do autor, também servirá para entendermos como tal concepção se relaciona

diretamente com a concepção de Deus exibida pelo autor. Senão vejamos:

Há outro importante corolário que pode ser extraído da lei dos símbolos.

Do mesmo modo que cada coisa tem seu símbolo, assim, todas as coisas

possuem os seus símbolos. Não me refiro à concepção vazia do ser, o

interpretante do sentimento absolutamente indeterminado cuja

compreensão é nula, nem à cega concepção de substância, o

interpretante da atenção absolutamente indeterminada. Mas sim ao

símbolo cuja informação tudo abarca, que significa cada fato acerca de

todas as coisas, não de maneira contingente, mas necessariamente. Tal

como cada alma do homem é uma relativa filosofia, esse símbolo é a

filosofia absolutamente inatingível. Este é o Criador do Mundo uma vez

que tudo a ele está conformado. Um ser pessoal pela mesma razão que

todos os símbolos são pessoais, mas também a fonte de toda

personalidade, posto que somente por virtude dessa Lei a unidade da

consistência se torna parte do símbolo finito. Esse símbolo infinito

denota necessariamente não os fatos contingentes do universo, mas a

lei absoluta em todos os seus detalhes e a unidade à qual o universo é

sujeito, mas essa lei é essencialmente idêntica ao Símbolo, uma vez que

é, como cada fato, o símbolo de si mesma. (W 1.502-503)

Se compararmos a forma como Peirce exprimiu a sua concepção de Deus em suas

“Respostas a questões referentes a minha crença em Deus” e também no “Um Argumento

Negligenciado para a Realidade de Deus” com essa passagem, escrita cerca de quarenta

anos antes, notamos uma certa diferença, não de essência, diríamos, mas de intensidade

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ou ímpeto de expressão. O que queremos dizer com isso? A importância e papel exercido

pelo símbolo Deus, como um objeto cognoscível, infinito, limite inatingível (precursor

da concepção de vagueza), Criador, etc. permanece em seu sentido estrito o mesmo,

conforme se pode notar na citação, porém, o uso de expressões aparentemente exageradas

como “lei absoluta” e “em todos os seus detalhes”, seria devida e maduramente

trabalhado em escritos ulteriores, conforme pudemos verificar em nossas análises

anteriores. Enfim, sugerimos também que uma forma de unificar, a despeito dessas

diferenças de intensidade de linguagem, as formas com que Peirce exprimiu a sua

hipótese da realidade de Deus é, justamente, a sua concepção ontológica do símbolo.

Nessa linha de pensamento, também não deveria causar estranheza o uso do termo

“necessariamente” que aqui se faz presente, pois, esse termo, longe de ser uma espécie

de concessão a algum tipo de determinismo de um Peirce ainda em formação, seria, na

verdade, uma expressão do caráter geral que o Deus peirciano possui e mesmo aqui não

excluiria, salvo talvez o ímpeto com que foi dito, a noção de que a necessidade da lei é

um aspecto do mundo em evolução e não o seu único definidor.

Nesse sentido, a referência a Deus como um ser necessário se repetiria, inclusive,

no “Um argumento Negligenciado”: “A palavra ‘Deus’, assim ‘em maiúscula’ [...] é o

nome próprio definível, significando Ens Necessarium [ente necessário]: segundo minha

crença, Realmente criador de todos os três Universos da Experiência.”439

Por outro lado, um elemento que também chama a atenção nessa passagem é a

afirmação de que o símbolo Deus é pessoal. Pessoal, neste contexto, certamente não deve

ser entendido como ‘individual’, o que seria o mesmo que dizer que o Deus peirciano

seria um existente (em termos fenomenológicos, ligado à segunda categoria). Estudamos

detidamente no primeiro capítulo que o conceito de personalidade consiste na

coordenação teleológica e desenvolvimentista de hábitos440, acrescida de uma unidade,

ou melhor, consistência da unidade da representação, a pessoa. Essas características estão

presentes em todo símbolo e um símbolo infinito por excelência, ou seja, Deus, não seria

439 CP 6.452 – Tradução de Cassiano Terra Rodrigues. No entanto, tal como ocorreu com o auto alegado

teísmo de Peirce, esse uso do termo “necessário” ao se falar de Deus, mesmo hipoteticamente, está longe

de configurar alguma espécie de conclusão. Novamente, a análise que efetuamos dessas passagens oferece

apenas um caminho interpretativo que deve permanecer conjectural. 440 “Fossem os fins de uma pessoa já explícitos, não haveria lugar para o desenvolvimento, para o

crescimento, para a vida; e, consequentemente, não haveria personalidade. […] A mera realização de fins

pré-determinados é mecânica. Essa observação possui aplicações notáveis na filosofia da religião.” (CP

6.157)

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diferente em sua infinita potencialidade, uma vez que também exibe propósito e se

mantém, contínuo dos contínuos que é, constante, ao mesmo tempo que em perpétua

evolução e crescimento. Estaria Peirce querendo dizer que esse conceito geral de pessoa

serial atribuível ao seu Deus hipotético? Mantemos, conjecturalmente, que sim.

Mas, seguindo essa linha descritiva, como Peirce explicaria aquilo que chamou de

o propósito de Deus? Descobrimos na resposta à terceira pergunta do texto “Respostas a

questões referentes a minha crença em Deus”:

“E o que você imagina ser as funções atuais deste Ser Supremo em

relação ao universo?” Criação, tal como afirmado. […] Em geral, Deus

está perpetuamente nos criando, isto é, desenvolvendo a nossa real

humanidade, nossa realidade espiritual. Como um bom professor, Ele

está engajado em nos libertar de uma Falsa dependência em relação a

Ele. (CP 6.507)

Isso significaria que, ao atribuir pessoalidade ao símbolo Deus, Peirce estaria

dizendo que ele é um geral, ou melhor, um contínuo real teleologicamente coordenado

cuja expressão concreta é a própria natureza441 (e, em termos fenomenológicos estaria

ligado à terceiridade). O Deus peirciano é, assim, um ser dotado de personalidade, no

sentido estrito que essa palavra tem na filosofia do autor, e também é, infinitamente, a

fonte de toda personalidade.

Se, não obstante a problematicidade dessa questão, seguíssemos essa linha de

raciocínio, poder-se-ia, conjecturalmente, apontar que a atribuição de um propósito à

Deus, de um lado, e o conceito de personalidade, tal como acabamos de relembrar acima,

de outro, faria com que entendêssemos porque, conforme apontamos no primeiro

capítulo, Peirce disse ser a sua filosofia sinequista “[...] forçada a aceitar a doutrina de

um Deus pessoal.”442 Essa constatação seria um corolário do sinequismo do autor, tal

como argumentado em “A Lei da Mente”?: “[...] uma filosofia evolucionária genuína, ou

seja, uma filosofia que torne o princípio do crescimento um elemento primordial do

441 Cf. (ORANGE, 1984, p. 57). Veja-se, no entanto, que essa caracterização aproximaria Peirce de uma

espécie de panteísmo, no qual Deus precisaria de um Mundo onde possa passar da potência a ato

indefinidamente. E, assim, novamente: como explicar o seu auto alegado teísmo de maneira coerente com

a sua filosofia? Assim, vê-se retornar o problema, que já apontamos diversas vezes, dos pontos

problemáticos e muitas vezes inconclusivos da exposição de Peirce do seu conceito de Deus. Devemos essa

importante e arguta observação ao professor Ibri. 442 W 8.156.

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universo está tão longe de ser antagonista à ideia de um criador pessoal que é realmente

inseparável daquela ideia.”443

No entanto, a reflexão peirciana sobre a relação entre o aspecto ontológico do

símbolo e Deus na Lowell Lecture XI ainda não chegou ao fim:

O interpretante do símbolo, como todo interpretante, é também

essencialmente idêntico ao símbolo; e, finalmente, o fundamento

(ground) da simbolização ou a compreensão do símbolo, uma vez que

determina completamente o símbolo em todos os seus aspectos, é,

também, idêntico a ele. Aqui temos, então, uma divindade trinitária do

objeto, interpretante e fundamento (ground). Cada um constitui

totalmente o símbolo, no entanto, são todos essenciais a ele. Nem são

eles a mesma coisa sobre diferentes pontos de vista, mas sim três coisas

que alcançam a identidade quando o símbolo alcança informação

infinita.

Peirce leva a sério o elemento triádico envolvido nas ideias de objeto, interpretante

e fundamento (ground), que caracterizam a sua filosofia da lógica à época em que proferiu

as suas Conferências em Lowell. Essa tríade de conceitos forma, literalmente, uma

trindade no interior da conjectura que Peirce está levando a acabo como uma

consequência do princípio de que a essência do símbolo é formal. Sendo assim, o símbolo

Deus reúne em si, infinitamente, os três aspectos envolvidos em um processo de

representação, dos quais conhecemos as figurações finitas. A partir dessa reflexão, Peirce

opera uma última e curiosa comparação:

Em muitos aspectos, essa trindade concorda com a trindade Cristã; na

verdade, não estou consciente de haver quaisquer pontos de

discordância. O interpretante é, evidentemente, o Logos Divino ou

palavra; e, se a nossa conjectura anterior, sobre a Referência de um

interpretante ser a sua Paternidade, estiver correta, este será também o

Filho de Deus. O fundamento (ground), sendo aquilo cujo

partilhamento é requisito para qualquer comunicação com o Símbolo,

corresponde, em sua função, ao Espírito Santo. (W 1.502-503)

443 W 8.155. Rever o tópico dois do primeiro capítulo desta tese. Não obstante, ressaltemos que, malgrado

a aceitação expressamente conjectural dessa linha de pensamento, esse é outro ponto relativamente obscuro

no discurso peirciano sobre Deus, de modo que ele se encontra longe de alguma espécie de assentamento

conclusivo.

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Embora Peirce afirme não estar consciente de nenhum ponto de discordância entre

a trindade constituída pelos seus conceitos de objeto, interpretante e fundamento

(ground), no interior da sua concepção do símbolo Deus, e a trindade cristã constituída

pelo Pai, Filho e Espírito Santo, acreditamos que esse movimento de Peirce não passa de,

literalmente, uma mera comparação. Levando em consideração a passagem que se segue

imediatamente à essa comparação, parece ficar bem claro que o que importava para Peirce

era, simplesmente, a ocasião oferecida para exemplificar o sistema de lógica sob o qual

essa conjectura estava assentada444:

Não levarei essa especulação mais adiante, uma vez que ela pode ser

ofensiva aos preceitos de alguns que estão aqui presentes. Somente direi

que, se alguém quiser usar essa especulação como um argumento para

a Divina Trindade, deve lembra-se de que o Sistema de lógica sob o

qual essa especulação se funda deve ser aceito primeiro. Isso pode

conflitar com algo mais que ele deseje descobrir ser verdade. (W

1.503)445

Deixando de lado agora a Lowell Lecture XI, gostaríamos de avançar em nossa

reflexão acerca da relação entre o aspecto ontológico do símbolo e a concepção peirciana

de Deus refletindo um pouco, seguindo um importante insight de Orange446, sobre como

a concepção peirciana de Deus cada vez mais se exprimiu de maneira relacionada com as

suas reflexões sobre cosmologia construídas em sua filosofia mais madura, sobretudo a

partir do texto “A Guess at the Riddle”447 e dos desenvolvimentos acerca desse tema

publicados no The Monist448, a partir de 1890, sobre os quais já tratamos no primeiro

capítulo. Essa ligação entre a cosmologia e o conceito de Deus peirciano não é um mero

acaso, mas sim o resultado de uma filosofia que se pretende, desde o início, genética.449

E essa rota também redundará, conforme veremos na última parte deste capítulo, e

carregando tudo o que refletimos até aqui, na ligação entre o conceito peirciano de Deus

e o tema específico da nossa tese, a imortalidade do homem.

444 Lembremos que um dos fundamentos de todas as Conferências de Lowell era, justamente, o fato de que

devemos tomar a nossa lógica como sendo a nossa metafísica. Cf. W 1.490. 445 No entanto, Robinson, por exemplo, pensa de maneira bem diferente, levando bem à sério a comparação

elaborada por Peirce nessa passagem. Ver (ROBINSON, 2010, particularmente, o capítulo cinco: “Vestígio

da Trindade na Criação”). 446 Cf. (ORANGE, 1984). 447 W 6.166-210. 448 W 8.84-205. 449 Ver (IBRI, 1992, capítulo 5).

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Para isso, é recomendável trazer à tona, seguindo o nosso plano para esse tópico,

alguns pontos de reflexão acerca de um importante texto de Peirce no qual a ligação entre

elementos da sua cosmologia e da sua concepção de Deus se apresenta de maneira bem

clara e ao mesmo tempo instigante. Esse texto é o Καινὰ στοιχεῑα450 (Novos Elementos),

escrito aproximadamente em 1904. Analisamos esse texto em nosso já mencionado

artigo451, de modo que aqui retomaremos, dentro do contexto de nossa tese, as passagens

e os elementos essenciais para o seu entendimento, completando, quando pertinente, com

passagens de outros textos. Esse procedimento nos oferecerá a oportunidade de trabalhar

alguns aspectos importantes que ainda necessitam ser trabalhados para que possamos

finalizar adequadamente a nossa análise da concepção peirciana de Deus.

Peirce inicia as suas reflexões acerca da natureza do signo dizendo que este

“encontra-se conectado com a ‘Verdade’452, isto é, o Universo inteiro do ser, ou como

alguns dizem, o absoluto, de três maneiras distintas”453, a saber, ao denotar o seu objeto,

ao significar caracteres ou qualidades do seu objeto e ao determinar o interpretante ou

interpretantes do seu objeto. Cada uma dessas três maneiras de conexão do signo com a

Verdade é associada, por Peirce, aos conceitos aristotélicos de matéria, forma e

enteléquia, respectivamente.454 Uma vez que o propósito do signo e, portanto, a sua

própria essência e modo de ser consiste no fato de ser uma representação, um signo nunca

pode ser confundido com o objeto que representa, portanto, conclui Peirce, “[...] todo

signo significa a ‘Verdade’. Mas é apenas a Forma aristotélica do universo que um signo

significa.” 455

A seguinte e importante passagem deixa isso bem claro:

O propósito de todo signo é expressar os “fatos” e, ao se juntar com

outros signos, aproximar-se o máximo possível de determinar um

interpretante que seria [would be] a Verdade perfeita, a Verdade

absoluta, e, como tal (à medida em podemos usar tal linguagem) seria

[would be] o próprio Universo. Aristóteles procurou por uma concepção

da perfeição, ou enteléquia, a qual nunca logrou tornar clara. Podemos

450 EP 2.300-324. 451 (ALMEIDA, 2014a). 452 Relembramos, para evitar mal-entendidos, que ao usar o termo “Verdade”, Peirce se refere ao significado

pragmático dessa palavra, que, em sua filosofia, adquire proporções de natureza cósmica. Ver as passagens

que se seguirão, particularmente, EP 2.304, para uma clarificação adequada da expressão. 453 EP 2.303. 454 Ver, EP 2.304. 455 EP 2.304.

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adotar a palavra como significando o próprio fato, ou seja, o signo ideal

que poderia ser quase perfeito e, desse modo, idêntico – com o tipo de

identidade que um signo pode ter – à própria matéria denotada, em

união com a própria forma significada. (EP 2.304) [itálicos do autor].

A “Verdade perfeita” a que Peirce se refere nessa passagem é um limite ideal,

inatingível, a qual todo processo de representação tende, considerando o longo caminho.

Essa Verdade, conforme fica claro na passagem, coincidiria como próprio Universo.456 O

símbolo, para Peirce, é o único tipo de signo capaz de realizar essa representação da

Verdade, exatamente porque símbolos possuem o poder de representar a continuidade

real que configura a enteléquia do Universo. É exatamente nessa capacidade que consiste,

como já observamos mais acima, no contexto de um dos textos de juventude do autor, o

aspecto ontológico do símbolo.

O símbolo é, para Peirce, o único signo capaz não só de exprimir leis, como

também de ser o modelo de sua razoabilidade.457Veja-se como essa concepção se desenha

de maneira clara em sua definição pragmaticista de lei:

O que é, então, uma lei? É uma fórmula à qual eventos reais

verdadeiramente se conformam. Por ‘conformar’, entendo que,

tomando uma fórmula como um princípio geral, se a experiência mostra

que a fórmula se aplica a um dado evento, então o resultado será

confirmado pela experiência. Que tal fórmula geral é um símbolo e,

mais particularmente, uma proposição asserida simbolicamente, é

evidente […] a verdade da fórmula, isto é, a lei, é, no sentido estrito, a

causa definidora de fatos reais individuais. Mas a fórmula, no caso de

ser um símbolo, é um símbolo do objeto que ela indica como sendo seu

objeto. Portanto, a sua verdade consiste na fórmula ser um símbolo.

Assim, um símbolo pode ser a causa de fatos e coisas reais e individuais.

(EP 2.314).

Essa ontologia do símbolo implica também que este signo é dotado de propósito,

portanto, ele mesmo é um propósito e, por isso, pode, quando em um processo de semiose,

representar uma realidade inteligível, ou seja, que também funciona como uma causa

456 “A enteléquia do Universo do ser, então, o universo enquanto fato [qua fact], será o Universo em seu

aspecto de signo, a ‘Verdade’ do ser.” (EP 2.304). 457 Cf. EP 2.307-308.

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final.458 Em outros termos, o propósito do símbolo é o propósito da realidade que ele

representa:

Qualquer símbolo suficientemente completo é uma causa final de, e

influencia eventos reais, precisamente da mesma maneira que o meu

desejo de ter a janela aberta, isto é, o símbolo na minha mente da

agradabilidade disso, influencia o fato físico de me levantar da minha

cadeira, ir até a janela e abri-la. (EP 2.317)

Em última instância, o propósito de um símbolo é exprimir-se em interpretantes

cada vez mais determinados da Verdade que representa, e isso até o limite ideal

inatingível, de modo que “o seu significado é aquilo para que ele tende.”459A partir dessa

reflexão, pode-se extrair uma notável consequência:

[...] Aquilo que uma ideia possui de verdade é o que, sendo

simbolizável, se exprime no mundo por meio dos interpretantes

contínuos dessa mesma ideia, revelando a sua força evolucionaria em

direção ao crescimento da razoabilidade concreta. As expressões das

ideias, por meio dos símbolos, no mundo real, que é a contínua

mediação da terceiridade entre a primeiridade e a segundidade, revela a

tangência das ideias em relação à ‘Verdade’ ideal, limite da

cognoscibilidade.460

Essa interpretação é confirmada por Peirce na seguinte afirmação: “A ‘Verdade’,

o fato de ela não ser abstraída, mas completa, é o interpretante último de qualquer

signo.”461 Devemos notar, no entanto, que essa ‘Verdade’, equivalendo, como vimos, ao

limite ideal, configura-se como o interpretante último de um signo e permanece

inatingível epistemologicamente, ou seja, qualquer estado de conhecimento é um estágio,

uma tendência a ela chegar no longo caminho. Ao utilizar o limite ideal como forma de

análise e não como uma pretensão determinística, Peirce mantém o seu falibilismo de

maneira coerente.

Mas Peirce poderia fornecer credenciais pragmáticas para a ideia de que um

símbolo, considerado ontologicamente, pode exprimir e ser o modelo de uma lei em sua

razoabilidade? Veja-se a seguinte passagem: “As palavras justiça e verdade, em meio a

458 Mais precisamente, para Peirce “[…] na verdade, um propósito é precisamente o interpretante de um

símbolo.” (EP 2.308). Propósito e causa final são termos equivalentes na filosofia de Peirce. 459 EP 2.308. 460 (ALMEIDA, 2014a, p. 223). 461 EP 2.304.

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um mundo que habitualmente negligencia essas coisas e ridiculariza as palavras, estão,

entretanto, entre os maiores poderes que o mundo contém.”462 Os exemplos peircianos

são exemplos pragmáticos confirmáveis pela experiência de qualquer um. Embora,

certamente, deva haver discussões acerca do que se deve entender por justiça e verdade,

ou seja, tentativas de relativização desses conceitos, o que Peirce quer dizer é que, em

seus sentidos gerais, essas palavras moverão a conduta das pessoas que as consideram

sempre que as devidas circunstâncias para isso surgirem.

O caráter ontológico do símbolo é, portanto, uma expressão objetiva da

inteligibilidade das leis. E, uma vez que nenhuma lei se esgota em suas réplicas ou

manifestações, esse poder do símbolo de exprimir uma lei não equivale a simplesmente

exercer um tipo de força atual, mas sim a um poder de governar as coisas que estão sob

uma lei de maneira geral. Trata-se de um causar fatos reais no sentido geral, ou seja, afeito

à categoria de terceiridade e não no sentido particular, atrelado à categoria de

segundidade, conforme se pode depreender da seguinte passagem: “contudo, mantenho

que qualquer símbolo completo governa coisas e que apenas os símbolos o fazem. Com

o que quero significar que, embora ele não seja uma força, ele é uma lei.”463

Assim, em termos peircianos, exprimir ontologicamente uma lei em sua

razoabilidade equivale a ser um veículo de manifestação de um processo que se encontra

em crescimento e não finalizado. Trata-se de uma razoabilidade e não de uma razão estrita

e mecânica. Ou seja, o contínuo manifestar e se desenvolver de uma lei envolve, assim,

um processo de crescimento. Conforme comenta Orange, Peirce relaciona intimamente a

sua concepção da realidade de Deus com a sua ideia de crescimento da razoabilidade

concreta, ou seja, o summum bonum464, de modo que já se pode antever aonde essa linha

de raciocínio levaria. Mas, exploremos um pouco mais a forma como esse processo ocorre

no universo, ou seja, cosmologicamente.

A importância de se levar em consideração o caráter ontológico do símbolo no

interior da arquitetura filosófica de Peirce é bem evidenciada no texto Καινὰ στοιχεῑα. O

que Peirce procura fazer nesse texto é utilizar a sua ontologia do símbolo para explicar a

origem do universo. Ou seja, Peirce aplica a sua concepção ontológica do símbolo à sua

462 EP 2.308. 463 EP 2.313. 464 Cf. (ORANGE, 1984, p. 65).

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cosmologia465 no ponto culminante do seu texto. Nesse processo, Peirce, conforme

veremos, parece indicar, de maneira especulativa que o símbolo, em seu caráter

ontológico, exerce um papel importante em sua cosmologia. Porém, a análise detida desse

papel parece conter um ponto de atenção, que não permite uma conclusão final a seu

respeito.

Vejamos como esse movimento do pensamento de Peirce se dá:

Se quisermos explicar o universo, devemos assumir que, no início,

havia um estado de coisas no qual não havia nada, nem reações, nem

qualidades, nem matéria, nem consciência, nem espaço e nem tempo,

mas apenas nada. Não um determinadamente nada. Pois, aquilo que é

determinadamente não A supõe o ser do A de algum modo. Mas

absoluta indeterminação. Ora, apenas um símbolo é indeterminado.

Assim, o Nada, o indeterminado do começo absoluto, é um símbolo.

(EP 2:322).466

Peirce deixa claro nessa passagem que, para que tenhamos uma explicação que

torna inteligível a origem do universo, devemos supor que em tal origem havia um estado

de coisas no qual nada havia, ou seja, nenhuma reação, qualidade, matéria, espaço, tempo

e muito menos as leis naturais. Nada! Absoluta indeterminação! Partindo de sua

concepção ontológica do símbolo, Peirce argumenta que, conforme exibiu durante todo o

seu texto, a indeterminação é uma característica que apenas o símbolo possui, o que o

leva a concluir que o Nada, o indeterminado do começo absoluto do universo, é um

símbolo:

[…] o universo é inteligível e, portanto, é possível dar uma descrição

geral dele e da sua origem. E essa descrição geral é um símbolo, e a

partir da natureza do símbolo, deve-se começar com a asserção formal

de que havia um nada indeterminado da natureza de um símbolo. (EP

2.323)

A conclusão de que o Nada do começo absoluto é um símbolo deveria, talvez, ter

sido efetuada por Peirce com uma certa cautela. Essa é uma afirmação que se pode

chamar, certamente, de enigmática, pois, como todo o estudioso da semiótica do autor

465 Evidentemente, não é nossa intenção analisar na presente tese a cosmologia peirciana em toda a sua

complexidade e riqueza. Para uma análise detalhada da cosmologia peirciana, ver (IBRI, 1992, capítulo 5,

p. 71-91). 466 Ver o detalhado comentário de Ibri sobre o Nada inicial propugnado pela cosmologia peirciana, (IBRI,

1992, p. 73-75. Ver também (TURLEY, 1977).

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sabe, o símbolo é um vocabulário técnico que invariavelmente é associado à

terceiridade467, o que causaria um problema para explicar essa presença no Nada original,

constituído, segundo o próprio Peirce, de pura liberdade e indeterminação. Esse fato

torna, no mínimo problemática essa conclusão. No entanto, sem abandonar a linha de

exposição do próprio texto, ressaltemos que as reflexões peircianas que se seguem acerca

dessa questão devem ser mantidas em um plano conjectural, pois, a expressão peirciana

ao longo do texto não permite o estabelecimento de uma linha lógico-interpretativa que

se possa chamar de conclusiva.

Se o começo absoluto do universo é, conforme conjectura Peirce, um estado

original da natureza de um símbolo, tudo o que se seguiu e ainda se segue na evolução

contínua do universo poderia ser lido como a sua infinita determinação. Não será outra a

consequência extraída por Peirce de sua linha de pensamento nesse texto, que, segundo

entendemos, devemos respeitar, após termos cumprido o nosso papel de apontar o seu

elemento eventualmente problemático:

Como um símbolo, ele (o universo) produziu a sua série infinita de

interpretantes, que no começo eram absolutamente vagos como ele

mesmo […] Então, o interpretante imediato desse Nada vago não era

nem sequer determinadamente vago, mas apenas vagamente pairava

entre a determinação e a vagueza; e seus interpretantes imediatos

estavam vagamente pairando entre vagamente pairando entre a vagueza

e a determinação e a vaguidade determinada ou determinação, e assim

por diante, ad infinitum. (EP 2.323)

Qualquer semelhança desse processo com a descrição do Deus estritamente

hipotético de Peirce não seria, portanto, mera coincidência, conforme poderemos

confirmar no que se segue.

O símbolo inicial absolutamente vago, descrito por Peirce na passagem acima,

teria dado origem a uma série infinita de interpretantes que representaria, nessa mesma

série infinita, a si mesmo enquanto processo. Sabemos, da análise dos textos sobre

cosmologia que estudamos no capítulo um, que tal início da série de interpretantes se deu

a partir de uma tendência à aquisição de hábitos presente em germe nesse estado inicial

absolutamente vago. Esse teria sido o passo inicial, a origem, portanto, daquilo que hoje

podemos experienciar no mundo real a partir das três categorias.

467 Ver a esse respeito, (SANTAELLA, 2004a) e (LISZKA, 1996).

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No entanto, isso faz surgir algumas possíveis questões que temos de considerar,

mesmo que brevemente. Se o Nada inicial do começo absoluto do universo é, conforme

conjectura Peirce, um símbolo, está ele dizendo que o universo surgiu de uma

terceiridade, uma vez que o símbolo é uma forma de terceiridade? Estaria esse problema

também por detrás da aparente incerteza de Peirce quando, ao identificar diretamente a

origem do universo como sendo uma criação de Deus, vagamente considerado, afirmou

que o seu argumento negligenciado para a realidade de Deus consistia “naquele curso de

meditação sobre os Três Universos que engendra a hipótese e, ultimamente a crença de

que eles ou, de qualquer modo, dois dos três, têm um Criador independente deles.”468?

Nesse caso, qual dos três Universos não teria um Criador independente?

Pelo menos duas interpretações parecem ser possíveis nesse caso. De um lado,

temos a possibilidade, muito bem argumentada por Anderson em seu comentário sobre o

texto “Um Argumento Negligenciado para a Realidade de Deus”, de que:

[...] um dos três universos é, em parte, livre das mãos do criador. A

defesa de Peirce do Tiquismo [...] demanda um elemento de acaso ou

espontaneidade no cosmos. Se seguirmos a cosmogonia peirciana,

observamos que existe pelo menos uma tensão na natureza criativa de

Deus; se o Deus peirciano for definido com a roupagem de um

dominador Calvinista, o efeito temperador do tiquismo no

evolucionismo agapista de Peirce se perde. Isso oferece razão para

supor que o Deus peirciano deve conceder às primeiridades, ou seja, às

puras possibilidades iniciais, uma Primeiridade ou liberdade.469

Segundo a leitura de Anderson, portanto, o universo da primeiridade seria aquele

que não teria um criador independente. De outro lado, temos a possibilidade da

interpretação de Orange, que argumenta do seguinte modo:

Porque Peirce frequentemente identificava Deus, Inteligência, Razão e

Mente, assumo que ele estava seguro de que Deus é ao menos

parcialmente outro que os mundos das possibilidades ideais e fatos

físicos. Agora, possibilidades ideais e fatos brutos, Primeiridade e

Segundidade, poderiam dar conta da experiência apenas de maneira

incompleta, então, poderiam, seguramente, não ser idênticos a Deus. De

modo que, mesmo o mundo das mentes finitas requer uma mente

468 CP 6.483 – Tradução de Cassiano Terra Rodrigues (realces nossos). 469 (ANDERSON, 1995, p. 176).

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infinita como fonte. Apenas a totalidade ideal da Razão poderia ser

completamente real.470

O próprio Anderson reconhece a plausibilidade da interpretação de Orange ao

comentar, a nosso ver acertadamente, que, segundo tal interpretação [a de Orange],

“mesmo se Deus for auto-criativo, Deus enquanto Terceiridade não tem um criador

independente.”471 No que nos concerne, deve-se dizer que ambas as interpretações são

muito fortes e apoiadas em elementos textuais, de modo que, no mínimo, devemos

reconhecer que há, de fato, uma tensão e uma certa inconclusividade na descrição

peirciana de Deus no que se refere ao seu papel como criador dos universos da

experiência. No entanto, estamos mais propensos a concordar com Orange, embora

façamos questão de ressaltar que esse “concordar” possui o estatuto conjectural que vêm

caracterizando grande parte desse capítulo três. E o motivo que temos para isso é,

justamente, a concepção ontológica do símbolo exibido no Καινὰ στοιχεῑα. Expliquemos.

Segundo a relação entre a concepção ontológica do símbolo e a cosmologia de

Peirce que estávamos a expor, seria lícito observar que:

[...] o próprio processo evolucionário consiste, exatamente, na contínua

e infinita determinação do símbolo inicial vago, ou seja, o tornar-se

cada vez mais determinado daquele símbolo primordial. No entanto, o

caráter evolutivo do cosmos, tal qual Peirce o concebeu, mostra que

essa infinita determinação não deve ser pensada como reduzida à

expressão lógica da dedução. Pelo contrário, a evolução cósmica,

operando o propósito contido no símbolo originário, compreende

também as expressões lógicas da indução e da abdução, por isso, o

resultado da evolução, em seu limite ideal será um estado diferente do

estado inicial.472

Atrás dessa interpretação encontrar-se-ia, inclusive, a concepção lógico-

metafísica da teoria hiperbólica defendida por Peirce em mais de uma oportunidade.473

Essa comparação entre as propriedades da hipérbole e a origem e evolução do cosmos

tem no fundo raízes no conceito peirciano de continuidade, que cada vez mais se

470 (ORANGE, 1984, p. 80). 471 (ANDERSON, 1995, p. 176). 472 (ALMEIDA, 2014a, p. 227). 473 Por exemplo, em: CP 1.249, CP 4.368, CP 6.582, CP 7.482-483 e, particularmente, CP 6.585, CP 8.317

e NEM 4.127-147.

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aproximou de uma expressão topológica.474 Assim, segundo a filosofia hiperbólica de

Peirce, do mesmo modo que, ao traçarmos a figura geométrica de uma hipérbole, sempre

estamos a nos aproximar das suas duas assíntotas, mas nunca nelas encostamos realmente,

assim também os limites ideias, que consistem no começo e no fim do universo nunca

serão atingíveis de fato, embora possam ser pensáveis por meio de símbolos parciais.

Isso equivale a dizer que a evolução “procede de um estado de coisas no infinito

passado em direção a um estado diferente de coisas no infinito futuro”475, ou, em outros

termos, “do vago para o definido”.476 Ou seja, há, a partir da criação hipotética e

vagamente atribuída a Deus, a presença de um processo de crescimento e expansão

atribuíveis não só aos símbolos, ontologicamente considerados, mas também ao próprio

Deus hipotético477, sendo que, conforme vimos mais acima, essa é a razão pela qual Peirce

teria afirmado ser esse Deus uma realidade à que se poderia atribuir, não sem problemas,

lembremos, o epíteto de pessoal.

Segundo essa linha de pensamento, Deus, hipoteticamente considerado como um

símbolo, ou seja, como terceiridade, e identificado com o próprio crescimento da

razoabilidade concreta, ou summum bonum478, acolheria em si o acaso e a espontaneidade

como elementos de seu próprio processo de crescimento. Isso é o que, conforme vimos,

preconizaria o sinequismo de Peirce.

Portanto, uma vez admitido, conjecturalmente, que o Deus peirciano, vagamente

concebido, seria dotado de propósito e pessoalidade, poder-se-ia dizer, “concordando”

com a interpretação de Orange, que esse Deus também é a fonte criativa independente

dos Universos da primeiridade e segundidade, mas não da terceiridade. Essa criação, no

474 Ver a esse respeito (ROSA, 2003). 475 CP 8.317. 476 Ver (IBRI, 1992, p. 72). 477 Veja-se, por exemplo, a seguinte passagem do “Um Argumento Negligenciado para a Realidade de

deus”: “A hipótese [de Deus], estando assim ela mesma inevitavelmente sujeita à lei do crescimento, parece

em sua vagueza representar Deus como tal, embora isto seja contraditado diretamente na hipótese desde

sua primeiríssima fase. Mas esta aparente atribuição de crescimento a Deus, já que é inerradicável da

hipótese, não pode, de acordo com a hipótese, ser completamente falsa. Suas implicações concernentes

aos Universos serão mantidas na hipótese, enquanto suas implicações concernentes a Deus serão

parcialmente desautorizadas, e ainda serão sustentadas como menos falsas do que seria sua negação.

Assim, a hipótese nos levará a conceber traços de cada Universo como propositais; e isto permanecerá ou

cairá com a hipótese. Contudo, um propósito envolve essencialmente crescimento e, dessa forma, não pode

ser atribuído a Deus. De acordo com a hipótese, ainda será menos falso falar assim do que representar

Deus como sem propósito.” (CP 6.466 – Tradução de Cassiano Terra Rodrigues) 478 “Deus como summum bonum emerge do crescimento da razoabilidade, ou, mais acuradamente, é este

crescimento. [...] As leis da natureza são as ideias de Deus.” (ORANGE, 1984, p. 67 – itálicos da autora)

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entanto, não é um ato, mas sim um processo gradual, uma contínua e infinita

determinação do símbolo inicial vago.479

Segundo Ibri, tal processo, tendo se iniciado a partir de um estado de possibilidade

absolutamente indefinida e ilimitada, não poderia ter engendrado nada que fosse de

natureza absolutamente necessária.480 Veja-se a aguda análise de Ibri na seguinte

passagem:

A necessidade lógica requer, de fato, alguma forma de regra que

constranja o próximo ser na sequência, ou seja, obrigue-o a um modo

ontológico inscrito no antecedente. Certamente nada deste caráter pode

derivar de um estado de coisas absolutamente livre. Onde não há lei,

não há constrição. Um modo constritivo é um modo de argumento

dedutivo; de duas premissas extrai-se uma conclusão necessária. Ora,

não é outra coisa que irá Peirce anunciar em sua cosmogênese: um

universo ilimitado de possibilidades não poderá ser trabalhado ao nível

da necessidade dedutiva. Esboçam-se os traços ontológicos de uma

Lógica da ontogênese das leis, ou indutiva. Não obstante, no realismo

radical de Peirce, estas formas lógicas fundam-se no mundo, isto é,

objetivamente.481

Desse modo, seguindo a linha interpretativa conjectural de Καινὰ στοιχεῑα, o

símbolo absolutamente vago e indeterminado que se encontraria, segundo Peirce, na

origem do cosmos não seria um símbolo em seu caráter de lei operante, pois um símbolo

neste sentido seria também um resultado da evolução482, mas sim um símbolo em um

sentido originário, infinitesimal, contínuo e direcionado ao futuro, do qual, também como

479 Por isso, mesmo se admitirmos a problemática autoafirmação de Peirce como sendo um teísta, tal teísmo

peirciano estaria muito longe do teísmo tradicional, sobretudo no que se refere ao elemento ‘criação’, uma

vez que a descrição do processo criativo de Deus na filosofia de Peirce difere patentemente das afirmações

preconizadas por religiões e teologias institucionalizadas. A criação, em Peirce, não é um ato, mas sim um

processo. 480 Cf. (IBRI, 1992, p. 73). 481 (IBRI, 1992, p. 74). Conferir também a passagem da obra de Peirce citada e traduzida por Ibri nessa

passagem, CP 6.218: “Agora surge a questão sobre o que resultou necessariamente deste estado de coisas?

Mas a única resposta sã é que onde a liberdade foi sem fronteiras nada em particular necessariamente

resultou.” 482 Por isso, a posição que estamos a expor, de maneira conjectural, não contraditaria a passagem do

Argumento Negligenciado, já citada, “A palavra ‘Deus’, assim ‘em maiúscula’ [...] é o nome próprio

definível, significando Ens Necessarium: segundo minha crença, Realmente criador de todos os três

Universos da Experiência” (CP 6.452), uma vez que o terceiro universo, nessa passagem, significa,

exatamente, o universo da terceiridade considerada como lei operante e, por isso mesmo, experienciável.

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possibilidades, puderam surgir todas as qualidades, existentes e leis que hoje observamos,

nessa ordem, conforme descreveu minuciosamente Ibri em sua obra pioneira.483

Assim, finalmente respondendo à primeira das perguntas com as quais iniciamos

esse movimento do tópico, não é que Peirce consideraria, nesse texto, ter o cosmos

surgido de uma terceiridade, como uma categoria de lei já operante, mas sim de uma

terceiridade em germe na pura potencialidade ilimitada do Nada original, e é nesses

termos que poderia ser entendida, conjecturalmente, a afirmação peirciana de que, para

darmos uma descrição adequada da origem do universo, devemos começar com a asserção

formal de que havia um nada indeterminado da natureza de um símbolo484 e que, desse

símbolo vago e indeterminado teria partido todo processo evolucionário:

Nossas concepções dos primeiros estágios de desenvolvimento, antes

mesmo de o tempo existir, devem ser tão vagas e figurativas como as

expressões do primeiro capítulo do Genesis. Do útero da

indeterminação485 é preciso dizer que teria havido alguma coisa, pelo

princípio de Primeiridade, o que podemos chamar de um flash. Em

seguida, pelo princípio do hábito, teria havido um segundo flash.

Embora o tempo ainda não existisse, este segundo flash ocorreu, em

certo sentido, após o primeiro, porque resultante dele. Então teria

havido outras sucessões cada vez mais e mais conectadas, os hábitos e

a tendência a adquiri-los sempre se fortalecendo, até que os eventos

teriam sido ligados em algo como um fluxo contínuo. (CP 1.412 –

Itálicos nossos)486

Por isso também, não deveríamos nos surpreender ao ler Peirce responder do

seguinte modo a segunda pergunta em “Respostas a questões referentes a minha crença

em Deus”:

“Você acredita que esse Ser Supremo criou o universo?” Não só criou,

como está agora criando o universo; acerca disso, veja os meus artigos

no The Monist. [...] Eu acho que, apesar de ser vã toda tentativa de

trazer à luz qualquer significado definido acerca dessa ideia, é, no

entanto, verdade que toda a realidade se deve ao poder criativo de Deus.

483 Cf. (IBRI, 1992, p. 75-88). 484 Cf. EP 2.323. 485 Esse útero da indeterminação é, justamente, o símbolo vago original. 486 Para uma explicação detalhada de todo o processo de surgimento do universo, veja-se a análise de Ibri,

em (IBRI, 1992, p. 75-88).

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[...] Eu acho que devemos considerar a criatividade como um atributo

inseparável de Deus (CP 6.505-506)

Ressaltamos, enfim, que essa interpretação conjectural, inclusive, concordaria

com a descrição peirciana do papel da tendência à aquisição de hábitos, presente em

germe na origem do cosmos, ou seja, com o papel exercido pela grande lei da mente na

explicação do surgimento das leis da natureza, tal como abordamos no capítulo um. A

tendência à aquisição de hábitos estava em germe porque o Nada original (ou o processo

originário criador, no sentido peirciano, de Deus) era um símbolo, um contínuo, prenhe

de possibilidades infinitas.

Uma vez respondidas, de maneira conjectural, ressaltemos mais uma vez, essas

importantes e legítimas questões, surgidas no contexto da análise do papel atribuído ao

Deus hipotético peirciano, podemos, finalmente, acompanhar o autor, no encerramento

do seu texto Καινὰ στοιχεῑα, chegando a uma conclusão extremamente instigante acerca

do papel ontológico do símbolo:

Que um objeto tenha absolutamente um caráter, somente pode consistir

em uma representação de que assim o é, – uma representação que tem

o poder de superar toda oposição. […] A própria enteléquia do ser

reside em ser representável. [...] Um símbolo é uma realidade

embrionária dotada do poder de crescer até a verdade mesma, a própria

enteléquia da realidade. Isto parece ser místico e misterioso, somente

porque insistimos em permanecer cegos acerca daquilo que é claro, a

saber, que não pode haver realidade que não tenha a vida de um

símbolo. (EP 2:324).

Essa conclusão peirciana é, a nosso ver, uma reafirmação de seu realismo e

também de seu idealismo objetivo, embora esse último não apareça nomeado de maneira

específica. Isso porque nela encontra-se explicitamente a ideia de base de toda a

metafísica científica peirciana, ou seja, a ideia de que tudo o que é real é de natureza

inteligível, ou seja, eidética ou, em outra variação, da natureza da mente.

Ora, sendo Deus, segundo Peirce, real e não meramente um existente, segue-se

que a sua cognoscibilidade deve também ser assumida. No entanto, tal cognição será

sempre vaga, insistia Peirce e insistimos nós. Por outro lado, essa cognição, esperamos

ter deixado explícito, não deve ser confundida com uma afirmação dogmática, mesmo

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que, em alguns momentos, a inevitável forma antropomórfica487 com que somos

obrigados a falar acerca deste tema possa gerar tal impressão. Ela está, tal como ocorreu

com a questão da imortalidade, calcada na observação indireta possibilitada pela nossa

experiência fenomenológica do universo. Talvez seja exatamente por isso que Peirce

passou a falar cada vez mais sobre a sua concepção de Deus a partir de uma roupagem

cosmológica. O cosmos é o lugar onde se pode observar a ação contínua de uma lógica

objetiva de caráter evolutivo.488 Isso fica muito claro em uma passagem relativamente

longa que, no entanto, devido a sua importância conclusiva, merece ser citada

integralmente:

Tudo o que eu tenho dito sobre o início da criação parece totalmente

confuso. Agora, deixe-me dar-lhes uma ligeira indicação, com escusas

de brevidade, acerca da pista que, acredito, pode nos guiar através do

labirinto. Deixe o quadro negro, limpo, ser uma espécie de diagrama da

potencialidade vaga original, ou pelo menos de algum estágio inicial de

sua determinação. Isso é algo mais do que uma mera figura de

linguagem; afinal de contas, continuidade é generalidade. Este quadro

é um continuum de duas dimensões, enquanto que o que ele representa

é um continuum de alguma multidão indefinida de dimensões. Este

quadro é um continuum de pontos possíveis; enquanto aquele é um

continuum de possíveis dimensões de qualidade, ou é um continuum de

possíveis dimensões de um continuum de possíveis dimensões de

qualidade, ou algo desse tipo. Não há pontos neste quadro negro. Não

existem dimensões naquela continuidade. Eu desenho, com um giz,

uma linha no quadro. Esta descontinuidade é um desses atos brutais

pelos quais, só assim, a vagueza original poderia ter dado um passo em

direção à definição. Há um certo elemento de continuidade nesta linha.

487 A ideia de que a forma de falar sobre Deus possui validade cognitiva exatamente pelo fato de ser

antropomórfica é outra característica importante da reflexão peirciana sobre o assunto. A esse respeito, ver

(ORANGE, 1984), (RAPOSA, 1989), (ANDERSON, 1995) e, particularmente, (POTTER, 1993). Uma vez

que esse rótulo pode causar estranheza, cabe trazer aqui um comentário esclarecedor de Potter, de certa

forma também recorrente em todos os outros comentadores citados: “Todas as concepções do homem,

então, são antropomórficas no sentido de serem dependentes do limite de sua experiência possível. [...]

Além do mais, Peirce repetidamente recordou que a única explicação satisfatória da habilidade do homem

para formar qualquer hipótese aplicável ao universo é a sua afinidade com o universo. O antropomorfismo

de Peirce, portanto, é nada mais que o seu realismo metafísico.” (POTTER, 1993, p. 160). Ver também,

CP 5.47). 488 Veja-se, também, a seguinte passagem: “[…] O universo tornar-se cada vez mais um espelho perfeito

daquele sistema de ideias que resultaria da ação indefinidamente continuada de uma lógica objetiva. O

universo é, por assim dizer, uma mente desperta.” (NEM 4, p. XIV).

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De onde é que essa continuidade vem? Essa continuidade não é nada

mais que a continuidade original do quadro negro, que faz contínuo

tudo o que está sob ele. O que eu realmente desenhei no quadro negro

é uma linha oval. Pois, essa marca branca de giz não é uma linha, mas

sim uma figura plana em sentido euclidiano, ou seja, uma superfície, ao

passo que a única linha de lá, é a linha que forma o limite entre a

superfície negra e a superfície branca. Assim, a descontinuidade só

pode ser produzida no quadro negro pela reação entre duas superfícies

contínuas dentro das quais estão separadas a superfície branca e a

superfície preta. A brancura é uma Primeiridade – o surgimento de algo

novo. Mas, a fronteira entre o preto e branco não é nem preta, nem

branca, nem nenhum dos dois, nem ambas. É o emparelhamento dos

dois. É, para o branco, a segundidade ativa do preto; para o preto, a

segundidade ativa do branco. (CP 6.203).

[...]

Uma vez que a linha irá permanecer um pouco, depois de ter sido

marcada, outra linha pode ser traçada ao lado. Muito em breve, o nosso

olho nos persuade de que há uma nova linha, o envelope das outras. Isso

ilustra muito bem o processo lógico que podemos supor acontece nas

coisas, em que a tendência generalizadora constrói novos hábitos a

partir do acaso. A nova curva, embora seja nova em seu caráter

distintivo, ainda deriva a sua continuidade a partir da continuidade do

próprio quadro negro. (CP 6.206).

Essa lógica objetiva489 presente, pragmaticamente, no próprio universo permite a

possibilidade de se pensar o conceito de Deus, de modo que Peirce pode, finalmente,

identificar o seu Deus estritamente hipotético com a própria evolução do real/ideal no

interior de sua filosofia sinequista, ao dizer, por exemplo, que “o ponto inicial do

universo, Deus o Criador, é o Absoluto Primeiro; o término do universo, Deus

completamente revelado, é o Absoluto segundo; qualquer estado do universo em um

ponto mensurável do tempo é o terceiro”490

489 Sobre a lógica objetiva na totalidade da cosmologia peirciana, consultar (IBRI, 1992, capítulo 6). 490 CP 1.362. Cabe lembrar, conforme comentei em (ALMEIDA, 2014a, p. 238), ao analisar essa mesma

passagem que “[...] Peirce não afirma, em nenhum momento, serem esse absoluto primeiro e absoluto

término do universo, objetos de experiência em qualquer sentido, porém, ambos servem como limites ideais

acerca dos quais podemos pensar (por exemplo, em um ramo das ciências chamado de metafísica religiosa

ou psíquica), do mesmo modo que ocorre com qualquer ponto mensurável da evolução em sua terceiridade,

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Por fim, cientes de que, devido à rota de exposição que escolhemos, muitas

possibilidades e subtemas ligados à concepção peirciana de Deus acabaram ficando de

fora, inevitavelmente, cremos que resta apenas um elemento, ligado ao contexto dessa

tese, sobre o qual precisamos tecer alguns breves comentários, antes de encerrarmos

definitivamente esse tópico e passarmos para o próximo e último deste capítulo e também

desta tese. Trata-se do princípio cósmico chamado pelo autor de ágape.

Ibri, em um artigo dedicado a explorar como o conceito de amor agápico funciona

como um princípio heurístico na filosofia de Peirce491, opera uma análise detida do texto

de Peirce que explica como funciona esse princípio cósmico no universo, o texto “Amor

Evolucionário”492, escrito em 1892, e que configura, conforme já observamos, parte dos

textos publicados no The Monist Metaphysical Project, nos quais o autor procura explicar

como entendia ser o processo que explicava a origem e evolução do cosmos.

Ibri explica que o exame que Peirce faz em seu texto “Amor Evolucionário” das

teorias evolucionárias até então vigentes estão atreladas às suas categorias

fenomenológicas e, embora não chegue a recusar essas teorias, a saber, as teorias

ticásticas e anancásticas, ou seja as teorias que fazem do princípio evolucionário

unicamente a ação do acaso493 ou unicamente a ação determinadamente mecânica das leis

naturais494, respectivamente, mostra a necessidade de se pensar em um princípio

evolucionário mais adequado para explicar, a partir de fenômenos observáveis, a origem

e evolução do cosmos.495

Esse princípio evolucionário, “mais elevado [e] coagulante, no sentido de

promover a reunião de elementos afins, estimulando aquela expansão contínua

direcionada ao crescimento”496, foi chamado por Peirce de Ágape, do grego a0ga/ph497,

que significa “amor”, um amor na verdade intransitivo, diferentemente de e1rov498 (Eros),

que é papel da matemática, da filosofia e das ciências especiais pensar em suas nuances.” Por outro lado,

cabe também ressaltar que a passagem da obra de Peirce citada se harmonizaria tranquilamente com um

panteísmo qualificado, como o de Schelling, de modo que esse ponto revelaria uma vez mais a

problematicidade e o caráter conjectural da linha interpretativa que fora descrita acima. (Devemos essa

importante observação a Ibri). 491 (IBRI, 2005). 492 W 8.184-205. 493 Sendo, obviamente, Charles Darwin a principal referência aqui. 494 Visão que inclui as teorias de Herbert Spencer, determinista, e Clarence King, evolução por cataclismos.

Ver (REYNOLDS, 2002, p. 106-108). A análise detalhada de cada uma das teorias evolucionárias vigentes

pelo próprio Peirce encontra-se em W 8.190-195. 495 Cf. (IBRI, 2005, p. 195). 496 (IBRI, 2005, p. 195). 497 Ver o verbete correspondente no Diccionario Griego-Español Florencio, p. 6. 498 Ver o verbete correspondente no Diccionario Griego-Español Florencio, p. 569).

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que também significa em grego “amor”, mas um amor violento, ardente, ligado ao desejo,

ou seja, um amor de tipo transitivo.499

Tendo em mente, conforme comenta Ibri, um conceito de harmonia500, Peirce

definiu o movimento desse princípio amoroso nos seguintes termos: “O movimento do

amor é circular, em um e mesmo impulso projetando as criações até a independência e

trazendo-as à harmonia.”501 O próprio Peirce comentou o que seria esse princípio agápico

de uma forma bem eloquente. Vejamos a passagem na tradução de Ibri:

Todos podem ver que o enunciado de São João é a fórmula de uma

filosofia evolucionária, que ensina que o crescimento vem apenas do

amor, não digo do auto-sacrifício, mas do impulso ardente de preencher

o mais alto impulso do outro. Suponha, por exemplo, que eu tenha uma

ideia que me interessa. É minha criação. É minha criatura, pois como

mostrei no último Monist, de julho502, ela é uma pequena pessoa. Eu a

amo, e aprofundar-me-ei para aperfeiçoá-la. Não é por aplicar justiça

fria ao círculo de minhas ideias que eu posso fazê-las crescer, mas por

acarinhá-las e zelar por elas como faço com as flores do meu jardim. A

filosofia que traço do evangelho de João é que esse é o modo pelo qual

a mente se desenvolve; o mesmo é válido para o cosmos, e à medida

que ele ainda é mente e por isso tem vida, ele é capaz de futura

evolução. O amor, reconhecendo os germes da amabilidade no ódio,

gradualmente aquece-o para a vida e torna-o amável. Esse é o tipo de

evolução que todo estudioso cuidadoso de meu ensaio The Law of Mind

deve perceber como requerido pelo sinequismo. (W 8.185-186 –

Tradução de Ivo Assad Ibri [Itálicos nossos]).

O princípio cósmico do amor agápico inclui, no interior de seu movimento

circular, tanto a evolução ticástica como a anancástica, embora apenas como elementos

incompletos de uma evolução vista, na verdade, como um processo de crescimento que

procura aglutinar todas as coisas, harmoniosamente, inclusive elementos opostos, e, por

isso, é melhor expressada pelo agapismo, baseado que está nas três categorias

preconizadas fenomenológica e metafisicamente pelo autor.503

499 Ver (IBRI, 2005). 500 Cf. (IBRI, 2005, p. 195). 501 W 8.185. 502 Peirce se refere aqui ao texto “A Essência Vítrea do Homem” (W 8.165-183). 503 Por isso, Ibri comenta: “o tiquismo associa-se à primeira categoria de Peirce, a primeiridade; o

anancismo, como regra da necessidade mecânica, à segundidade. Reserva-se, assim, ao agapismo, uma

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Esse princípio do amor, que pode ser dito criativo na medida direta que “causa as

coisas a serem e a estarem em relação”504, também é, conforme a passagem acima deixa

claro, exigido pela filosofia sinequista do autor, uma vez que expressa mais

adequadamente a continuidade, a afinidade entre as ideias e a intencionalidade

(purposefulness) que, conforme vimos no primeiro capítulo, são por ela preconizadas.

Por isso, Peirce pôde complementar esse raciocínio do seguinte modo:

O desenvolvimento agapástico do pensamento deve, se existe, ser

distinguido pelo seu caráter proposital, esse propósito consistindo no

desenvolvimento de uma ideia. Nós devemos ter um reconhecimento e

uma compreensão agápica ou congenial direta disso, por virtude da

continuidade do pensamento. (W 8.203)

Segundo Raposa, comentando o papel fundamental da noção de propósito na

filosofia peirciana, “o desenvolvimento do cosmos como um todo, toda a evolução,

representa nada mais que a teleologia do amor”505.

Assim, essa característica proposital marcadamente presente no princípio agápico

sustentado por Peirce em “Amor Evolucionário” também nos leva, quase que

instantaneamente, a associá-lo ao seu conceito de Deus, tal como exploramos acima. Na

verdade, segundo Raposa, essa associação se torna tão patente que pode-se dizer que

“aqui se encontra o fundamento para a elaboração de uma verdadeira filosofia

evolucionária: a dupla convicção de que Deus é amor e que o crescimento vem apenas

do amor.”506 Portanto, tudo o que dissemos acerca do conceito de Deus em Peirce nas

páginas anteriores são complementadas, finalmente, por essa identificação. Além disso,

essa interpretação parece ser confirmada por Peirce quando, em outra ocasião, afirmou

que “o universo é um vasto representamen, um grande símbolo do propósito de Deus,

elaborando suas conclusões em realidades vivas”507

Por outro lado, conforme comenta Ibri, o amor agápico como princípio

evolucionário também responde pelo desenvolvimento do próprio pensamento, entendido

vinculação à terceiridade, que, lembremos, cumpre um papel mediador, generalizador e redutor da força

bruta do particular à unidade de um continuum cósmico que indiferencia interioridade e exterioridade nas

formas a lei e do pensamento.” (IBRI, 2005, p. 196). 504 (RAPOSA, 1989, p. 77). 505 (RAPOSA, 1989, p. 79). 506 (RAPOSA, 1989, p. 75 – realces nossos). 507 CP 6.119.

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tanto no âmbito humano, quanto no cósmico.508 Nesse sentido, poder-se-ia dizer que, na

filosofia de Peirce, o agapismo promove um processo de adoção de certas tendências

mentais devido a uma imediata atração pela ideia em si mesma.509 A natureza dessa

atração:

[...] é pressentida antes que a mente a possua, pelo poder de simpatia,

isto é, por virtude da continuidade da mente; [...] ela pode [inclusive]

afetar um conjunto de pessoas ou comunidade na sua personalidade

coletiva, e ser por isso comunicada a indivíduos que estão em poderosa

conexão simpática com a coletividade, embora eles possam ser

intelectualmente incapazes de atingir a ideia por meio do próprio

entendimento ou, mesmo, talvez, de conscientemente apreendê-la. (W

8.196 – Tradução de Ivo Assad Ibri)

Essa aplicação do princípio cósmico do amor evolucionário a uma dimensão que

vai muito além da mera individualidade, se estendo à toda uma comunidade de homens

que, segundo a teoria de Peirce, também se configura como possuidora de uma

personalidade510, parecia já estar por detrás do comentário de Peirce feito no início de seu

texto, logo após definir o que era e como, exatamente, operava o movimento circular do

amor evolucionário:

Isso [o princípio agápico] parece complicado quando afirmado desse

modo; no entanto, ele pode ser totalmente resumido na simples fórmula

que chamamos de a Regra de Ouro. Ela não diz, é claro, “faça todo o

possível para satisfazer os impulsos egoístas dos outros”, mas sim diz,

“sacrifique a sua própria perfeição em função do aperfeiçoamento de

seu vizinho”. Nem deve, em momento algum ser confundida com o

mote, Benthamita, Helvetiano ou Beccariano, “aja em prol do maior

bem para o maior número”. O amor não é dirigido a abstrações, mas a

pessoas; não a pessoas que não conhecemos, nem a números de pessoas,

mas para os nossos próprios entes queridos, a nossa família e vizinhos.

“O nosso vizinho”, lembremos, é aquele de quem vivemos perto, não

localmente, talvez, mas na vida e sentimento. (W 8.185)

Esse comentário de Peirce se configura como uma ótima ocasião para retomarmos

o tema específico da nossa tese, a imortalidade do homem, como último tópico que a

508 Cf. (IBRI, 2005). 509 Cf. W 8.196. 510 Ver a análise feita no primeiro capítulo dos textos da chamada Série sobre a Cognição.

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finaliza. Portanto, gostaríamos agora de encerrar este tópico com um importante e

sintetizador comentário de Ibri:

O agapismo [...] constitui uma explicação a respeito da estrutura do

universo que tem correlação com a heurística de Peirce. Tal heurística

não apenas perpassa nossas formas de conjecturar, de encontrar

representações verdadeiras, mas, também, o seu plano mais geral, a

saber, a formação e o crescimento da terceiridade como um todo, como

uma tendência do Universo. Essa consequência se associa a uma

doutrina pouco mencionada pelos comentaristas da obra peirciana, o

idealismo objetivo, a qual afirma que no universo há uma única

substância primordial, a idealidade, um substrato eidético que faz da

matéria uma forma de eidos especial, tornando suas leis de caráter físico

casos especiais de leis de natureza mental, isto é, observáveis no âmbito

psíquico. Associado a esse idealismo está o sinequismo do autor,

asseverando que fundamentalmente se devem supor continuidades na

Natureza e, mais que isso, continuidade entre mente e matéria, tese

essencial daquele mesmo idealismo. Cria-se com essas doutrinas o pano

de fundo para que o realismo do autor seja entendido em suas

verdadeiras concepção e dimensão, sem quaisquer oposições teóricas

ao idealismo, como, a propósito, supõem alguns comentaristas da obra

do autor. Ambas apregoam que algo da natureza da idealidade é

essencial no universo: o realismo afirma a realidade dos continua, a

saber, em última análise, a realidade da terceiridade; o idealismo

garante a natureza eidética de toda continuidade, e cria a ambientação

substancial onde o realismo pode ser.511

Esse comentário de Ibri mostra, finalmente, como estão intimamente relacionados

no interior de uma cosmologia rigorosamente desenvolvida512, o realismo e o idealismo

objetivo de Peirce. Essa relação é um dos pilares, senão o pilar, da presente tese, unindo

os nossos capítulos um, dois e três. Ele envolve também, podemos agora afirmar, a ideia

de que o real/ideal em infinita evolução é, de certo modo, identificado por Peirce com o

seu próprio Deus estritamente hipotético.

511 (IBRI, 2005, p. 198). 512 O que inclui as suas doutrinas de base, ou seja, o tiquismo e o agapismo.

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3.2 A concepção peirciana de Deus e a possibilidade da imortalidade do homem: uma

ligação conjectural

Resta-nos neste último tópico do capítulo três, mas também da presente tese,

cumprir o objetivo específico a ele destinado, a saber, mostrar em que sentido é lícito

dizer que a possibilidade da imortalidade do homem preconizada por Peirce encontra-se,

de uma maneira conjectural, ligada à sua concepção da realidade de Deus, de modo que,

a partir de um entendimento desse último, não obstante os seus pontos problemáticos,

conforme vimos no tópico anterior, poder-se-ia chegar a um entendimento mais completo

do primeiro.

Poderemos fazer isso de maneira relativamente breve, uma vez que os detalhes

que explicam os motivos da ligação entre os conceitos de Deus e imortalidade peircianos

que iremos analisar consistem, exatamente, em tudo o que escrevemos nas páginas

antecedentes, de modo que o que temos neste tópico é, em verdade, apenas o fechamento

especulativo de um ciclo de interpretação. Senão vejamos no que se segue:

Ao término do tópico anterior, sugerimos que a aplicação do princípio cósmico do

amor agápico, via continuidade da mente, a dimensões de desenvolvimento do

pensamento que transcendem a mera individualidade humana oferecia uma ótima ocasião

para fazermos a passagem de tópico e retomar o tema específico desta tese.

Fizemos essa sugestão porque o mote peirciano que se ofereceu como uma

variação da Regra de Ouro, que resume de maneira inteligível a sua concepção de amor

agápico como o princípio cósmico mais adequado para explicar a origem e a evolução do

universo, a saber, “sacrifique a sua própria perfeição em função do aperfeiçoamento de

seu vizinho”, traz à tona, em princípio a partir de um âmbito humano, o elemento central

que permeia toda essa tese. Expliquemos.

Sacrificar o próprio aperfeiçoamento em função do aperfeiçoamento do vizinho

significa um movimento de afastamento da individualidade ou subjetivismo em direção

a um movimento de conexão, de contribuição, por meio da própria conduta, ou seja,

pragmaticamente, com um processo de continuidade e afinidade entre ideias. É um

convite para que os homens realizem, em seu âmbito, o mesmo que o amor agápico realiza

em âmbito cósmico, ou seja, aglutinar, projetando para a independência e trazendo para

uma harmonia em um único e mesmo impulso. No entanto, tal movimento de afastamento

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da individualidade só é possível porque existe um real de natureza inteligível,

independente do próprio homem. A esse real de natureza inteligível, vimos chamando de

real/ideal, por se tratar, conforme explicamos em diversos momentos dessa tese, não de

um real e um ideal, mas de uma e mesma coisa no interior do sinequismo de Peirce.

Esse real/ideal, de natureza contínua, é, portanto, o ponto unificador de toda a

nossa tese. Por isso, procuramos, ao longo de nosso primeiro e segundo capítulos, tornar

explícito como essa concepção peirciana do real/ideal influenciou profundamente as suas

concepções de homem e imortalidade.

Contudo, o tópico anterior acrescentou, de uma maneira conjectural, um novo

elemento a essa abordagem, ao sugerir que o real/ideal é, de certo modo, identificado por

Peirce com o seu Deus hipotético. Esse movimento nos autorizaria também a conjecturar

que o conceito de Deus em Peirce, assim identificado ao real/ideal, é, agora, parte do

elemento unificador da presente tese, no que se refere à análise do seu tema específico,

ou seja, a imortalidade do homem. Isso posto, o elemento unificador da nossa tese passa,

agora, a ser a concepção do real/ideal/Deus. Veja-se, além de tudo o que já estudamos no

tópico anterior, a seguinte afirmação de Peirce, contundente em seus próprios termos: “Eu

acredito que nada, exceto Deus, cumpra completamente a ideia do real.”513

No entanto, introduzimos essa ideia a partir da necessidade de afastamento da

individualidade autocentrada, do egoísmo, apregoada por Peirce porque esse movimento

é algo que, conforme tivemos a oportunidade de verificar com detalhes em nosso primeiro

capítulo, Peirce procurou mostrar desde os seus primeiros textos, ou seja, mesmo antes

de assentar de maneira mais precisa o seu sinequismo. Por exemplo, na seguinte passagem

de um dos seus textos sobre a cognição, o “Graus de Validade das Leis da Lógica”514,

encontramos Peirce afirmando que:

[…] quem reconhece a necessidade lógica da total autoidentificação dos

próprios interesses com aqueles da comunidade, e sua potencial

existência no homem, mesmo que não a tenha, perceberá que somente

as inferências daquele homem que a tem são lógicas, e então, enxerga

as próprias inferências como válidas apenas na medida em que sejam

aceitas por aquele homem. Porém, desde que possua esta crença, ele se

identifica com aquele homem. E aquela perfeição ideal do

513 CP 2.532. Desnecessário dizer que essa afirmação de Peirce acerca de Deus também deve ser lida com

uma certa cautela, ou seja, de maneira conjectural. 514 W 2.242-272.

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conhecimento pela qual vimos que a realidade é constituída deve, pois,

pertencer a uma comunidade em que esta identificação seja completa.

(W 2.271 – Itálicos nossos)

Essa passagem deixa claro, entre outras coisas, que, para Peirce o ideal de

aperfeiçoamento do conhecimento pertence a um processo não de natureza individual,

mas sim comunitária, que se expande de maneira ilimitada. A noção de longo caminho

(long run) é uma noção que se relaciona intimamente com os conceitos de limites ideais,

ou seja, com as ideias do absoluto começo e do absoluto fim, que, como vimos, é uma

questão cosmológica, mas também uma questão que está ligada à concepção que o autor

exibiu acerca de Deus.

Em outros termos, o processo de aperfeiçoamento do conhecimento possui um

aspecto ilimitado, ou seja, não se trata de pensar em como se dá o seu estado final, que

seria, exatamente o atingimento do limite ideal. Esse limite é, como vimos, inatingível.

Portanto, o que importa é, de um lado, o processo e, de outro, como este processo se

daria, dentro de uma lógica objetiva, no futuro indefinido. Trata-se, portanto, de uma

questão de continuidade e, logo, de inteligibilidade.

Porém, trata-se, também, de uma realidade, que é independente de uma mente ou

conjunto de mentes, mas, no entanto, cognoscível, e, inclusive, cognoscível em sua

verdade, fosse dado tempo suficiente para a inquirição, possível para qualquer mente que

a deseje realizar.515 Aqui temos uma unificação entre os conceitos de realismo, idealismo

objetivo, verdade e pragmatismo do autor, proporcionados pelo seu sinequismo, tal como

estudamos nos capítulos anteriores. Por isso, mesmo tendo um longo caminho a percorrer

em sua carreira filosófica Peirce pôde afirmar, em 1869, que:

[…] o que qualquer coisa realmente é consiste no que pode finalmente

tornar-se conhecido no estado ideal de informação completa, de modo

que a realidade depende da decisão derradeira da comunidade516;

portanto, o pensamento é o que é somente em virtude de endereçar o

pensamento futuro, que é, em seu valor, idêntico a ele, embora mais

desenvolvido. Desta maneira, a existência do pensamento de agora

515 Acerca desse ponto, rever o capítulo um. 516 Lembremos que, conforme vimos no capítulo um, o realismo de Peirce deve ser entendido como aquilo

que é independente de uma mente ou conjunto de mentes, mas, ao mesmo dependente da mente em geral,

o que explica porque Peirce, ao afirmar que a realidade depende da decisão derradeira da comunidade nessa

passagem, não está desconsiderando o aspecto da alteridade do real, mas apenas acentuando, em um

contexto aparentemente epistemológico, o seu elemento contínuo, que inclui a alteridade.

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depende do que acontecerá futuramente; de modo que ele possui uma

existência potencial que depende do pensamento futuro da comunidade.

(W 2.241)

Seguindo essa linha de pensamento, não faz sentido algum, para Peirce, que o

homem esteja amarrado à sua individualidade, pois, tal individualidade não passa de uma

ilusão, calcada, conforme vimos no primeiro capítulo, na ignorância e no erro517:

[…] a lógica requer estritamente, antes de tudo, que nenhum fato

determinado, nada que possa ocorrer com o “eu” de um indivíduo,

ofereça maiores consequências a ele do que qualquer outra coisa.

Aquele que não sacrificaria sua própria alma para salvar o mundo é

ilógico em todas as suas inferências, coletivamente. Desta forma, o

princípio social está arraigado intrinsecamente na lógica. (W 2.270-

271)

A conclusão peirciana de que o princípio social está intrinsicamente enraizado na

lógica, exibida com detalhes em seus textos sobre a cognição518, é a própria questão da

continuidade, que acabará redundando, conforme também vimos, nas suas reflexões sobre

a lei da mente e o seu papel na origem e evolução do cosmos.

Contudo, gostaríamos de sugerir que esse movimento de afastamento do elemento

individual parece possuir raízes profundas na própria natureza do real/ideal/Deus, e tais

raízes estariam ligadas, diretamente, à uma fundamentação razoável da ação humana

deliberada. Conforme Peirce deixou bem claro:

A questão se o gênero homo possui qualquer existência exceto enquanto

indivíduos, é a questão de se há qualquer coisa de maior dignidade,

valor e importância do que a felicidade individual, as aspirações

individuais e a vida individual. (W 2.487)

E ainda:

[…] a questão é única e suprema, e TUDO está em jogo no que diz

respeito a ela. Nós estamos na mesma condição de um homem em um

combate de vida ou morte; se ele não tem força suficiente, a maneira

como ele age é, para ele, completamente indiferente, dado que a única

suposição em relação à qual ele pode agir de maneira racional é a

esperança do êxito. Portanto, este sentimento é rigorosamente

517 Cf. W 2.241-242. 518 W 2.193-272.

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reivindicado pela lógica. Se seu objeto fosse qualquer fato determinado,

qualquer interesse privado, este poderia conflitar com os resultados do

conhecimento e, então, com ele mesmo. Contudo, quando seu objeto é

de natureza tão ampla quanto a comunidade pode ser, é sempre uma

hipótese não contraditada pelos fatos e justificada por sua

indispensabilidade em tornar qualquer ação racional. (W 2.272)

Conforme procuramos explicar nas páginas anteriores, a natureza ideal do

universo, para Peirce, se encontra em constante expressão, contínua que é, e o homem faz

parte desse processo de expressão. Uma vez que a filosofia peirciana oferece, por meio

da identificação conjectural entre real/ideal/Deus, um alicerce para que o homem

reconheça que o seu papel, ou melhor, o seu propósito, neste processo contínuo de

expressão cósmica não é satisfazer os seus prazeres individuais, mas sim, desenvolver

bons hábitos de conduta de modo a ultrapassar a sua mera individualidade e alcançar um

bem razoável, que impacte também os seus “vizinhos”519, pode-se dizer que começa a

emergir, enfim, o ponto que clarifica porque o entendimento mais completo da

possibilidade da imortalidade do homem na filosofia de Peirce se encontraria, de certo

modo, ligado à concepção peirciana de Deus, identificado ao real/ideal.

E que ponto seria esse? As reflexões que fizemos durante toda essa tese nos

permite sugerir, finalmente, que os homens que se tornam imortais, de acordo com o que

analisamos detalhadamente no capítulo dois, encontram-se unificados ao próprio

processo de evolução que seria, podemos agora conjecturar, a própria expressão da

realidade do Deus hipotético de Peirce. Portanto, a realidade da imortalidade do homem

não seria algo que depende do homem em sentido absoluto, mas sim, que depende da

relação do homem, em sua liberdade, com o real/ideal/Deus.

Exprimindo essa conjectura em outros termos, poder-se-ia dizer que, ao se

identificar com a expressão do real/ideal/Deus, a realidade da imortalidade do homem

atinge a sua máxima possibilidade sígnica, pois, por meio dessa identificação torna-se

claro que a verdade pragmática que configuraria o real/ideal/Deus, segundo a conjectura

de Peirce, seria um contínuo maior, do qual o homem é apenas uma parte, mesmo quando

atinge a sua maior grandeza, ou seja, mesmo quando se torna imortal. Ou seja, mesmo o

homem imortal encontrar-se-ia imerso no geral cósmico cujas origens remontam ao Nada

519 “O nosso vizinho”, lembremos, é aquele de quem vivemos perto, não localmente, talvez, mas na vida e

sentimento. (W 8.185)

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germinal indeterminado e, ainda de acordo com a conjectura de Peirce, de natureza

simbólica, que deu início ao processo de determinação contínua e infinita que estamos

exatamente agora presenciando acontecer.

Por isso, essa significação última da imortalidade do homem, imersa num

contínuo maior que seria o próprio real/ideal/Deus, configurar-se-ia, também, como uma

lição de humildade, que justifica, por exemplo, a seguinte afirmação peirciana: “o cuidado

que os homens têm em relação ao que vai acontecer após a sua morte não pode ser

egoísta.”520

Para entender um pouco melhor a natureza dessa afirmação peirciana, lembremos

que, em nosso segundo capítulo tivemos a oportunidade de acompanhar Peirce refletindo

sobre a ideia de que o homem possui consciência espiritual. Essa ideia, aparentemente

intrusa no universo filosófico-científico que se sabe ser característico do autor, na verdade

se fez claramente inteligível como consistindo na possibilidade de o homem, por meio de

sua essência espiritual, ou seja, intelectual, se amalgamar com o próprio fluxo de ideias

do universo.521 Esse amalgamar-se com o universo é, precisamente, o processo pelo qual

o homem se desprenderia de sua mera individualidade e se identificaria com algo maior

que qualquer elemento atual ou descontínuo.

Esse movimento, no entanto, só pode ser realizado pelo homem por meio de sua

conduta, pois, segundo o pragmatismo de Peirce, a conduta é o meio pelo qual o homem

pode manifestar o seu propósito e desenvolver o seu caráter. O seu modo de ser, e sua

liberdade, envolvem a possibilidade do autocontrole, o que significa, conforme também

abordamos no capítulo dois, que o homem pode se educar e desenvolver bons hábitos de

conduta, em consonância com ideais de conduta admirados até o ponto de a sua conduta

se tornar admirável. Lembremos mais uma vez da importante passagem: “[...] é pela

replicação indefinida do autocontrole sobre o autocontrole que o homem (vir) é gerado,

e pela ação, através do pensamento, ele forma uma estética total.”522 Essa estética total,

portanto, jamais estará resumida a algum elemento individual. Ela é contínua, tal como a

própria essência espiritual do homem.

Portanto, conforme vimos, caráteres de homens que se encontram mais próximos

dos elementos contingentes, que também fazem parte do processo evolucionário do

520 W 2.271. 521 Ver capítulo dois. 522 CP 5.402n3

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real/ideal/Deus, tendem a desaparecer em sua própria contingência e individualidade e,

após a dissolução do corpo, ou seja, após as suas mortes, as ideias contingentes que

veicularam continuamente não passarão de meras lembranças, com duração limitada.

Por outro lado, os caráteres de homens que desenvolveram hábitos de conduta em

consonância com o que é razoável e admirável, não para essa ou aquela pessoa, nem

mesmo para um grupo de pessoas determinado ou determinável, mas, admirável sob

quaisquer circunstâncias no futuro indefinido, de modo que tal admirabilidade seria

aquilo em que concordariam quaisquer mentes, acabam por se identificar com as próprias

ideias admiráveis que exprimiram em sua conduta. Quando essas ideias admiráveis

ultrapassam as razoabilidades e admirabilidades do âmbito humano em direção a uma

razoabilidade e admirabilidade de ordem cósmica, ou seja, quando, estão de acordo e,

com isso, participam da evolução do real/ideal/Deus, estaríamos, então, diante de

caráteres verdadeiramente imortais.

Enfim, seguindo as sugestões hipotéticas de Peirce, podemos dizer que quando

essa condição é atingida, o homem, o real/ideal e Deus formam uma e mesma coisa em

um processo contínuo de evolução infinita, cuja expressão permanecerá, para sempre,

gerando interpretantes verdadeiros.

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CONCLUSÃO

Algumas considerações finais se fazem necessárias no intuito de apresentarmos

alguns resultados que supomos ter atingido por meio da presente pesquisa.

O trabalho procurou defender a tese de que filosofia de Charles Sanders Peirce

reservou lugar para um conceito sui generis de imortalidade do homem no interior de sua

metafísica científica, conceito que pode ser brevemente definido como a possibilidade da

permanência da influência do caráter de um homem mesmo após a dissolução do seu

corpo, ou seja, mesmo após a sua morte.

O ponto de partida estrutural da presente tese foi, conforme explicamos na

Introdução, o de que a filosofia peirciana se configuraria como uma arquitetura filosófica.

Desse modo, procuramos analisar, com o máximo possível de rigor, como o conceito de

imortalidade do homem do autor foi construído e assentado no interior dessa arquitetura

filosófica.

Para fazermos isso de modo minimamente adequado, consideramos ser

necessário, antes de adentrar o conceito de imortalidade do autor propriamente dito,

conduzir uma análise, a mais detalhada possível, de como se configuraria o conceito de

homem na filosofia do autor, uma vez que a imortalidade em questão nessa tese estaria

referida ao homem. Essa missão ficou à cargo do primeiro capítulo que, além de expor o

conceito de homem, também procurou explicar como este conceito estaria

fundamentalmente ligado ao realismo e ao idealismo objetivo do autor, doutrinas

unificadas em seu sinequismo.

O capítulo dois, que se configurou como o cerne da tese, procurou realizar a tarefa

de analisar, detalhadamente, como o conceito de imortalidade do homem foi construído

pelo autor no interior de sua arquitetura filosófica. Buscamos explorar, de maneira detida,

os textos em que Peirce tratou diretamente do tema, primeiramente, de um ponto de vista

crítico, o que acabou por revelar o que o seu conceito de imortalidade do homem não era,

a saber, uma concepção associável a quaisquer formas de dogmatismo e, depois, de um

ponto de vista positivo, ou seja, explicando o conceito também de acordo com o seu

realismo e idealismo objetivo, no interior do seu sinequismo.

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Outrossim, os resultados da análise do conceito de homem do autor obtidos no

capítulo um tornaram possível que o vetor da abordagem do conceito de imortalidade no

capítulo dois estivesse orientado para o que, exatamente, poderia ser imortal no homem,

a saber, o seu caráter.

Por isso, entendemos que o resultado do movimento de união entre o primeiro e o

segundo capítulo foi, exatamente, a exposição pragmática do conceito de imortalidade do

homem como a permanente influência de seu caráter na conduta de outros homens,

individualmente, mas, sobretudo, comunitariamente.

Essa imortalidade se revelou possível para o homem porque, conforme se viu, este

é capaz de realizar o seu propósito, desenvolvendo hábitos de conduta em consonância

com ideais admiráveis perseguidos como fins, até o ponto de identificar o seu caráter com

esses próprios ideais admiráveis.

Por outro lado, uma vez que essa identificação não se configura como necessária,

e nem o poderia, no interior de uma filosofia cujo vetor vai de encontro a qualquer tipo

de necessitarismo, a imortalidade do homem foi também descrita como sendo

proporcional ao grau de consonância do caráter do homem, em sua liberdade, com a

evolução do universo, operando, em seu caráter real e inteligível, o crescimento da

razoabilidade concreta, definido por Peirce como o ideal dos ideais, a admirabilidade

última ou summum bonum, que não precisaria de nenhuma justificativa ulterior para ser

perseguida como admirável.

Assim, no interior da exposição do conceito de imortalidade do homem na

filosofia de Peirce, se desenhou um movimento essencial de ultrapassamento da mera

individualidade humana em direção a uma “verdade” de natureza cósmica, que deve ser

entendida, pragmaticamente, como a própria enteléquia da realidade, de acordo com

Peirce.

Essa seria, propriamente falando, a descrição geral dos resultados específicos da

presente pesquisa.

No entanto, no terceiro capítulo, entendemos ser conveniente analisar como se

daria uma possível ligação entre o conceito de imortalidade do homem de Peirce e a sua

concepção da realidade de Deus, uma vez que ambos os temas estão inseridos,

arquitetonicamente, no interior daquilo que denominou de metafísica psíquica ou

religiosa.

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Essa análise buscou uma linha expositiva de caráter acentuadamente conjectural,

tendo em vista a natureza dos próprios textos de Peirce que versam sobre a questão de

Deus, que, em muitos pontos, os quais procuramos apontar, não permitem o

estabelecimento de uma linha lógico-interpretativa bem definida. Entre esses pontos, os

mais fragrantes, conforme fizemos questão de frisar, são o auto alegado teísmo do autor,

a sugestão de que Deus poderia ser vagamente definido como um ente necessário e,

sobretudo, a afirmação enigmática de que o Nada originário do cosmos poderia ser

interpretado como um símbolo.

Assim, ao optarmos por incluir no terceiro capítulo as conjecturas de Peirce sobre

a realidade de Deus, relacionando-as ao tema imortalidade do homem, estávamos cientes

de que o tema era particularmente controverso, como exibe o desacordo interpretativo

verificável entre os próprios estudiosos da obra do autor. Não obstante, desde que

entendidas de maneira conjectural, as reflexões peircianas sobre a natureza de Deus

poderiam oferecer, a partir de sua identificação com o real/ideal no interior do sinequismo

do autor, elementos consideráveis, embora especulativos, para um entendimento mais

completo do conceito de imortalidade do homem.

Assim, esse entendimento mais completo do conceito de imortalidade do homem

significaria que o caráter do homem imortal, a consistência real e inteligível de natureza

cósmica e, conjecturalmente, o Deus hipotético de Peirce, estariam de certo modo

identificados, configurando uma e mesma coisa, de modo que a verdade pragmática

contida nesse processo, embora evolutiva, para sempre produziria interpretantes

verdadeiros de si mesma.

Podemos dizer, então, que o terceiro capítulo dessa tese foi uma inclusão de

reflexões cujos resultados não devem ser tomados em nenhuma instância como

conclusivos. Suas conjecturas e, particularmente, os seus pontos problemáticos, podem

ser, e esperamos que sejam, objetos de pesquisas futuras, realizáveis por qualquer mente

que a elas queira se dedicar.

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APÊNDICES

I – Tradução integral do texto “Ciência e Imortalidade”523

O que sustenta os fatos positivamente verificados a respeito da doutrina de uma vida

futura? Por “doutrina de uma vida futura”, entendo a proposição de que, após a morte,

retemos ou recuperamos nossa consciência individual, bem como o sentimento, a

vontade, a memória, e, resumidamente (exceto por uma contingência infeliz), todos os

nossos poderes mentais em perfeito estado. A questão é, colocando-se de lado todos os

aspectos superiores concernentes a essa doutrina, sua sacralidade e seu sentimento –

acerca dos quais um homem da ciência não tem autoridade para emitir uma opinião – e

julgando-a da mesma maneira rigorosa com a qual se deve julgar uma proposição da

física, quais fatos nos levariam a nela crer ou não?

Por trás das mais proeminentes evidências positivas estariam os milagres de cunho

religioso, as maravilhas espiritualistas, os fantasmas, e etc. A respeito disso, tenho

pouquíssimo a dizer. Tomo os milagres modernos da Igreja Católica como as melhores

confirmações. Três membros da Sociedade Inglesa de Pesquisas Psíquicas, English

Psychical Research Society, publicaram recentemente um vasto livro de 1400 páginas,

um octavo maior, intitulado “Os Fantasmas dos Vivos”, The Phantasms of the Living.

Esse trabalho relata cerca de 7 mil aparições de pessoas mortas para outra pessoa a certa

distância. O fenômeno da telepatia ou a percepção sob condições que proíbem percepções

ordinárias, apesar de não totalmente convencionada, é abalizada por observações

notáveis. Contudo, os autores do livro do qual falo – Messrs, Gurney, Myers e Podmore

– acreditam que comprovaram a existência de um tipo de telepatia pela qual pessoas

mortas aparecem para pessoas vivas a grandes distâncias. Seus mais contundentes

argumentos são baseados na doutrina das probabilidades, a qual examinei com muita

cautela, e estou absolutamente certo de que tais argumentos são inúteis, em parte devido

à incerteza e ao erro dos dados numéricos, mas também devido ao fato de que os autores

foram espantosamente descuidados no tocante à admissão de casos descartados pelas

próprias condições de argumentação.

523 W 6.61-64.

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Todavia, admitindo-se todas as histórias de fantasmas já contadas, bem como a realidade

de toda manifestação espiritual, o que elas provariam? Esses fantasmas e espíritos

demonstram nada mais que um resquício da mente; são como animais inferiores. Se neles

acreditasse, eu concluiria que enquanto a alma não fosse completamente extinta com a

morte do corpo, seria então reduzida a uma sombra lastimável, um mero fantasma do seu

“eu” prévio, como dizemos. E, por isso, esses espíritos e aparições seriam tão

dolorosamente solenes. Eu posso, inclusive, até imaginar uma situação em que eu fosse

repentinamente liberto de todos os julgamentos e responsabilidades desta vida; minha

provação terminada e meu destino posto além de qualquer coisa, eu me sentiria assim

como em um veleiro em alto mar, sabendo que por dez dias nenhum negócio apareceria

e nada mais aconteceria. Eu julgaria tal situação estupendamente divertida, seria o ápice

da alegria e eu me sentiria totalmente satisfeito por deixar o vale das lágrimas para trás.

Mas, em vez disso, essas pobres almas voltam aos seus locais habituais para chorar pelo

leite derramado.

Sob a égide das evidências aparentemente desfavoráveis a essa doutrina, podemos

considerar as observações ordinárias a respeito da dependência da ação mental saudável

em relação ao estado do corpo. Também há aqueles casos raros de dupla consciência em

que a identidade pessoal é completamente destruída ou modificada até mesmo nesta vida.

Se uma mulher ou um homem, que é um dia uma pessoa e, no dia seguinte, outra, há de

viver após a morte, por favor, peço que me digam qual das duas pessoas que habitam o

mesmo corpo estará destinada a sobreviver?

Há, certamente, um enorme e formidável número de fatos que, apesar de não fornecerem

suporte à questão da vida futura diretamente, nos guiam a uma concepção geral sobre o

universo que não coaduna com tal crença. Nós julgamos a possibilidade do invisível com

base no que é visível. Sorrimos diante da lâmpada de Aladim e do elixir da vida, pois

ambos são extremamente improváveis mediante ao que já passou por nossa observação.

Aqueles de nós que nunca viram um espírito ou qualquer fato análogo à imortalidade

entre as coisas que indubitavelmente conhecemos, devem ser desculpados se

desprezarmos a essa doutrina. Até onde podemos ver, formas de beleza, de sentimento e

de inteligência são os fenômenos mais evanescentes.

“A flor que nasceu, para sempre, há de morrer.”

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Além disso, estudos científicos nos ensinaram que o testemunho do homem, quando não

elaborado, é uma fraca evidência. Resumidamente, a total improbabilidade de uma alma

imortal comparada a qualquer coisa de que não possamos duvidar, bem como a leveza de

todos os velhos argumentos para a sua existência parecem-me bastante incisivos.

Por outro lado, a teoria sobre outra vida pode muito bem ser reforçada, junto com outras

visões espiritualistas gerais, quando a falsidade palpável daquela filosofia mecânica do

universo que domina o mundo moderno for reconhecida. É suficiente mergulhar no ar e,

então, abrir os olhos e ver que o mundo não é governado por mecanismos, como Spencer

e outras mentes superiores nos fariam crer.

A infinita variedade no mundo não foi criada por lei. Não é da natureza da uniformidade

criar variações, e nem da lei gerar circunstâncias. Quando observamos a diversidade da

natureza, encaramos diretamente uma espontaneidade viva. “Um dia de caminhada pelo

interior nos levará à nossa casa.”

E é aí que reside o grande fato do crescimento e da evolução. Sei que Herbert Spencer se

empenha em mostrar que a evolução é uma consequência do princípio mecânico da

conservação de energia. Porém, seu capítulo sobre o assunto é matematicamente absurdo,

e o condena a ser um homem que fala pretensiosamente sobre o que não conhece. O

princípio da conservação de energia, como é bem conhecido, pode ser descrito da seguinte

forma: qualquer coisa que se modifique pode ser trazida à tona por forças que podem

igualmente ocorrer na ordem reversa (todos os movimentos ocorrendo na mesma

velocidade, mas em direções reversas) sob o governo das mesmas forças. Entretanto, o

essencial acerca do crescimento é que ele ocorre em uma determinada direção, que não é

reversível. Por exemplo, meninos se tornam homens e não homens meninos. Este é,

portanto, um corolário primordial da doutrina da conservação de energia: o crescimento

não é o efeito da força unicamente.

O mundo, portanto, evidentemente não é governado por lei cega. Suas principais

características são absolutamente incompatíveis com esta visão. Quando o homem da

ciência começou a compreender a dinâmica, e a aplicou com êxito à explicação de alguns

fenômenos, logo se antecipou ao dizer que o mundo poderia ser explicado daquela

maneira também, e foi então que a Filosofia Mecânica se estabeleceu. Contudo, um

estudo posterior sobre a natureza da força mostrou que seu caráter conservador refuta

completamente a noção mecânica sobre o universo. Assim como posso ler os signos do

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tempo, a condenação da metafísica necessitarista está selada. O mundo acabou com ela.

Agora ela deve abrir alas para visões mais espiritualistas, e é muito natural esperar que

um estudo posterior a respeito da natureza possa estabelecer a realidade de uma vida

futura.

De minha parte, não posso admitir a proposição de Kant – que haja certas barreiras

intransponíveis ao conhecimento humano, e mesmo que existam barreiras em relação ao

infinito e ao absoluto, a questão de uma vida futura, distinta da questão da imortalidade,

não as transcende. A história da ciência fornece ilustrações suficientes sobre a insensatez

em dizer que isso ou aquilo nunca poderá ser descoberto. Auguste Comte, por exemplo,

dizia ser impossível que o homem pudesse aprender qualquer coisa a respeito da

constituição química das estrelas fixas, contudo, antes que seu livro chegasse à mão dos

seus leitores, a descoberta em questão foi feita. Lengendre, por sua vez, falou sobre uma

certa proposição a respeito da teoria dos números que, enquanto parecia verdadeira,

estava, em contrapartida, além dos poderes da mente humana prová-la. No entanto, o

próximo a escrever sobre o assunto forneceu seis demonstrações diferentes de tal teorema.

Dentro desta perspectiva, não vejo porque os cidadãos da Terra não poderiam, algum dia,

descobrir se de fato há vida futura ou não. Porém, no presente, entendo que não temos

fatos suficientes para concluir qualquer coisa a respeito desta questão. Se há pessoas que

creem numa vida futura, seja por afeição à venerável crença da cristandade ou para o seu

próprio consolo, elas fazem muito bem. Contudo, não acho sábio extrair quaisquer

deduções práticas a partir de proposições religiosas ou sentimentais – como, por exemplo,

que a felicidade e os direitos humanos são pouco importantes; que os nossos pensamentos

devem ser isolados das coisas mundanas, e etc. – a menos que tais deduções passem pela

sanção do bom senso.

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II – Tradução do texto Lowell XI (excerto sobre a imortalidade)524

O princípio de que a essência de um símbolo é formal, não material, tem uma ou duas

consequências importantes. Suponhamos que eu apague esta palavra “seis” e escreva

“seis”. Aqui, não haverá uma segunda palavra, mas a mesma palavra novamente; elas são

idênticas. Agora, pode a identidade ser interrompida, ou podemos dizer que a palavra

existia apesar de não ter sido escrita? A palavra “seis” sugere que duas vezes três é igual

a cinco mais um. Essa é uma verdade eterna; uma verdade que é e sempre há de ser; e que

seria igualmente verdadeira mesmo que não houvesse seis coisas enumeráveis no

universo, uma vez que permanecerá sendo verdade que cinco mais um seria duas vezes

três. Agora, essa verdade é a palavra “seis”, se por seis não significarmos essa linha de

giz, mas sim aquilo em que seis, sex, e4c, sechs, zes, six e sei concordam. Diz-se que a

verdade nunca fica sem uma testemunha, e realmente, o fato por si só – o estado das coisas

– é um símbolo do fato geral segundo os princípios da indução, de modo que o verdadeiro

símbolo possui um interpretante, na medida em que é verdadeiro. E, por ser idêntico ao

seu interpretante, ele sempre existe. Portanto, o símbolo necessário e verdadeiro é imortal.

E o homem também deve ser, desde que seja vivificado pela verdade. Esta é uma

imortalidade muito diferente daquela que as pessoas esperam, embora não conflite com a

outra. Eu não conheço se o paraíso mohamediano não é verdadeiro, apenas não tenho

evidências de que é. A existência animal é certamente prazerosa, apesar de algumas

pessoas estarem cansadas dela, mas penso que as pessoas mais educadas dizem que ela

não é imortal, do contrário, elas considerariam os brutos imortais. A existência espiritual,

como o homem a tem dentro de si, a qual ele carrega consigo em suas opiniões e

sentimentos, simpatia e amor, serve como evidência do valor absoluto do homem – e essa

é a existência que a lógica diz ser certamente imortal. Não é uma existência impessoal

porque a personalidade reside na unidade do “eu penso” – que é a unidade da

simbolização – a unidade da consistência – e pertence a todo símbolo. Não é uma

existência alheia ao mundo externo porque o sentimento e a atenção são elementos

essenciais do próprio símbolo. Todavia, é uma existência modificada, uma em que não

há mais as glórias da audição e da visão, pois os sons e as cores requerem o olho animal;

e da mesma forma, todos os sentimentos serão diferentes.

524 W 1.500-502.

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Essa é uma imortalidade que depende de o homem ser um símbolo verdadeiro. Se, em

vez de “seis”, tivéssemos escrito “Jove”, teríamos, então, um símbolo que possui nada

mais que uma existência contingente, que não possui uma testemunha eterna na natureza

das coisas e morrerá ou permanecerá vivo apenas na memória dos homens, sem despertar

qualquer resposta em seus corações. É, entretanto, verdadeiro uma vez que significa um

ser supremo; sua alma genérica é verdadeira e eterna, mas sua alma específica e individual

é nada mais do que uma sombra.

Todo homem possui seu próprio caráter peculiar, que está presente em tudo o que ele faz.

Este caráter está em sua consciência, não sendo, assim, um mero truque mecânico; e deste

modo, é pelo princípio da última Lecture, uma cognição. Mas, por estar presente em toda

a sua cognição, é uma cognição das coisas em geral. É, portanto, a filosofia do homem, a

sua maneira de se referir às coisas; não uma filosofia da mente apenas – mas uma filosofia

que pervarde a totalidade do homem. Essa idiossincrasia é a ideia do homem, e, se esta

ideia é verdadeira, ele viverá para sempre; se for falsa, sua alma individual terá nada mais

que uma existência contingente.

Senhoras e senhores, eu vos anuncio esta teoria da imortalidade pela primeira vez. Foi

dita e pensada de maneira pobre, mas sua base é a rocha da verdade. E, pelo menos, servirá

para ilustrar o uso que pode ser feito por mãos mais poderosas desta ciência injuriada, a

lógica, nec ad melius vivendum, nec ad commodius disserendum.525

525 Do latim: Não faz o homem viver melhor, nem falar melhor.

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III – Tradução integral do texto “A Imortalidade à luz do Sinequismo”526

A palavra sinequismo é a forma portuguesa do grego sunexismo/v de sune/xhv,

continuidade. Por dois séculos temos afixado ista e ismo às palavras, com o objetivo de

assinalar as doutrinas que exaltam a importância daqueles elementos que a palavra raiz

significa. Assim, materialismo é a doutrina de que tudo é matéria; idealismo é a doutrina

de que tudo são ideias; dualismo a filosofia que divide tudo em dois. Da mesma maneira,

eu propus fazer sinequismo significar a tendência de tomar tudo como contínuo.527

Por muitos anos eu tenho me esforçado em desenvolver essa ideia, e, por fim, pude

oferecer alguns de meus resultados no The Monist.528 Levo a doutrina tão longe a ponto

de sustentar que a continuidade governa todo o domínio da experiência, em cada um de

seus elementos. De acordo com isso, cada proposição, exceto quando se relaciona com

um limite irrealizável da experiência (que chamo de Absoluto), deve ser tomada como

uma qualificação indefinida; pois uma proposição que não tem qualquer relação com a

experiência é totalmente desprovida de significado.529

Proponho aqui, sem chegar até a questão extremamente dificultosa das evidências

dessa doutrina, dar uma amostra da maneira como ela pode ser aplicada à questões

religiosas. Não posso aqui esgotar o método dessa aplicação. De imediato isso produz

corolários que parecem, em princípio, altamente enigmáticos. Mas os seus significados

são clarificados por meio de uma aplicação mais profunda do princípio. Esse princípio

deve, é claro, ser entendido em um sentido sinequista em si mesmo; e, assim entendido,

não se contradiz a si próprio de nenhum modo. Consequentemente, ele deve levar a

resultados definidos, se as deduções forem realizadas cuidadosamente.

526 Tradução publicada integralmente em Cognitio-Estudos, volume 8, número 2, julho-dezembro de 2011,

p. 149-152. Agradeço a autorização do Editor da Revista, que autorizou a reprodução do seu conteúdo como

Apêndice para a presente tese de doutorado. 527 N.A.: [A palavra grega significa continuidade das partes, causadas por cirurgia] N.E.: O verbo raiz de

sunexismov é sunexw, segurar ou manter junto, continuar, preservar. A etimologia cirúrgica de Peirce não

aparece no Liddell and Scott Greek-English Lexicon, que dá muitos exemplos relacionados com a

continuidade do espaço, tempo, números e argumentos. A edição do Lexicon que Peirce muito

provavelmente usou somente indica que o9 sunexismo/v é a forma de h9 sune/xeia, encontrada em escritores

médicos (uma edição mais recente identifica dois autores, porém sem especificar o contexto).

Aparentemente, essa é a única base da afirmação de Peirce de que a palavra significaria, como escreveu em

um esboço, “o estabelecimento da continuidade em um sentido cirúrgico” (MS 946.5). 528 N.E.: “A Lei da Mente” (The Law of Mind), The Monist 2 (julho de 1892): 533-59; EP1.312-33. 529 N.E.: Isto é uma paráfrase da máxima pragmática de Peirce, expressada de forma impressa pela primeira

vez em 1878, no seu artigo “Como tornar nossas ideias claras” (How to make our ideas clear; EP1.132),

mas antecipada em publicações anteriores, incluindo a série de artigos sobre cognição de 1868 (“Cognition

series”; EP1.1ff).

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O sinequismo em sentido profundo não nos permitirá dizer que a soma dos

ângulos de um triângulo equivale exatamente a dois ângulos retos, mas somente que essa

quantidade equivale a mais ou menos alguma quantidade excessivamente pequena para

todos os triângulos que possamos medir. Nós não podemos aceitar a proposição de que o

espaço possui três dimensões como estritamente correta; somente podemos dizer que

quaisquer movimentos de corpos fora das três dimensões são muito pequenos. Não

podemos dizer que os fenômenos são perfeitamente regulares, mas somente que o grau

das suas regularidades é efetivamente alto.

Há um famoso dito de Parmênides, “e1sti ga0r ei]nai mhde0n d 0ou0k e1stin”, “o ser

é, e o não ser é nada”530. Isso soa plausível; porém o sinequismo o nega terminantemente,

declarando que o ser é assunto de mais ou menos, até fundir-se insensivelmente no nada.

Isto se torna nítido quando consideramos que dizer que uma coisa é equivale a dizer que,

ao final do progresso intelectual, isso irá adquirir um estado de permanência no reino das

ideias. Agora, como nenhuma questão experiencial pode ser respondida com certeza

absoluta, então nós nunca podemos ter razão para pensar que qualquer ideia dada será

estabelecida de forma irrevogável ou ser refutada para sempre. Mas dizer que nenhum

desses dois eventos se dará definitivamente é dizer que o objeto tem uma imperfeição e

existência qualificada. Certamente, nenhum leitor irá supor que esse princípio intenciona

ser aplicado somente a certos fenômenos e não a outros, por exemplo, somente a pequena

província da matéria e não ao resto do grande império das ideias. Tampouco deve ser

entendido como se referindo apenas aos fenômenos, excluindo os seus substratos

subjacentes. O sinequismo certamente não tem nada a ver com qualquer incognoscível;

mas não admitiria uma acentuada separação entre fenômenos e substratos. Aquilo que

subjaz ao fenômeno e o determina, é desse modo, em si mesmo, um fenômeno.

O sinequismo, mesmo em sua forma menos forte, não pode tolerar o dualismo

propriamente dito. Não deseja exterminar a concepção de dualidade, nem nenhuma dessas

caprichosas filosofias que proclamam cruzadas contra essa ou aquela concepção

fundamental podem encontrar o menor conforto nessa doutrina. Mas, o dualismo em seu

sentido mais amplo e legítimo, como uma filosofia que realiza suas análises com um

machado, deixando, como elementos últimos, pedaços desconexos de ser, é totalmente

hostil ao sinequismo. Em particular, o sinequista não admitirá que fenômenos físicos e

psíquicos sejam inteiramente distintos, tanto pertencendo a diferentes categorias de

530 N.E.: Do poema de Parmênides Peri/ fu/sewv, fragmento 6, linhas 1-2.

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substância, como sendo dois lados totalmente separados de um mesmo anteparo, mas

insistirá que todos os fenômenos são de um mesmo caráter, embora alguns sejam mais

mentais e espontâneos, e outros mais materiais e regulares. Ainda, os dois juntos mostram

a mistura de liberdade e coação, que permite que sejam, ou melhor, faz com que sejam

teleológicos, ou dotados de propósito.

O sinequista também não pode dizer: “eu sou inteiramente eu mesmo e de maneira

nenhuma tu.” Se abraçares o sinequismo, deves abandonar essa metafísica perversa. Em

primeiro lugar, teus vizinhos são, em certa medida, tu mesmo, de maneira muito mais

ampla do que, sem profundos estudos em psicologia, acreditarias. Realmente, a

identidade que gostarias de atribuir a ti mesmo é, em sua maior parte, o mais vulgar delírio

da vaidade. Em segundo lugar, todos os homens que se assemelham a ti e se encontram

em circunstâncias similares são, em certa medida, tu mesmo, embora não exatamente da

mesma maneira que teus vizinhos são tu.

Há ainda outra direção na qual a concepção barbaresca da identidade pessoal deve

ser ampliada. Um hino Bramânico começa da seguinte forma: “Eu sou aquele puro e

infinito Eu, bem-aventurado, eterno, evidente, onipresente, e que é substrato de tudo o

que possui nome e forma.”531 Isso expressa, mais do que humilhação, uma total

dissolução do pobre eu individual no espírito de oração. Toda comunicação de mente para

mente se dá através da continuidade do ser. Um homem é capaz de ter conseguido para

ele um papel no drama da criação; e quanto mais ele perde a si mesmo nesse papel, não

importa quão modesto isso possa ser, mais ele identifica a si mesmo com seu Autor.

O sinequismo nega que haja qualquer diferença imensurável entre fenômenos; e

pelo mesmo argumento, não pode haver nenhuma imensurável diferença entre vigília e

sono. Quando estás dormindo, não estás tão profundamente adormecido quanto pensas

estar.

O sinequismo se recusa a acreditar que quando chega a morte, mesmo a

consciência carnal cessa rapidamente. Como isso se dá é difícil de dizer, devido à

completa falta de dados observacionais. Aqui, como em outros lugares, o oráculo

531 N.E.: O hino, de acordo com MS S70: 7, é, em princípio, do The Metaphysics of the Upanishads, or

Vichar Sagar, uma obra de Niscaladasa (d.c 1863), originalmente intitulado Vicarasagara, traduzido por

Lala Sreeram (Calcutta: Heeralal Dhole, 1885; New Delhi: Asian Publication Services, 1979).

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sinequista é enigmático. Possivelmente a sugestão daquela poderosa ficção ‘Sonhos dos

Mortos’, recentemente publicada532, deva ser verdade.

Indo mais longe ainda, o sinequismo reconhece que a consciência carnal não é

mais do que uma pequena parte do homem. Em segundo lugar, há a consciência social,

pela qual o espírito do homem se incorpora aos outros, e que continua vivendo e

respirando e mantendo o seu ser muito além do que observadores superficiais pensam.

Nossos leitores não precisam ser avisados sobre como isso está soberbamente exposto no

Manuscrito perdido de Freytag.533

Nem é isso, de maneira alguma, tudo. Um homem é capaz de consciência

espiritual, que constitui para ele uma das verdades eternas, que se incorpora no universo

como um todo. Isso, enquanto uma ideia arquetípica, não pode nunca se enfraquecer; e

num futuro próximo está destinada a uma especial incorporação espiritual.

Um amigo meu, em consequência de uma febre, perdeu totalmente o sentido da

audição. Ele sempre teve um grande apreço pela música, antes de sua calamidade; e,

estranho dizer, mesmo depois disso, adorava ficar ao piano quando algum bom intérprete

tocava. Disse-lhe uma vez: “Então, depois de tudo ainda podes ouvir um pouquinho.”

“Em absoluto”, replicou-me, “porém, posso sentir a música por todo o meu corpo.” “O

que!”, exclamei, “como é possível que se desenvolva um outro sentido em tão poucos

meses?” “Não é um novo sentido”, respondeu-me ele, “agora que minha audição se foi,

posso reconhecer que sempre possui esse modo de consciência, que, anteriormente, assim

como outras pessoas, confundia com a audição.” Da mesma maneira, quando a

consciência carnal desaparecer com a morte, perceberemos finalmente que sempre

tivemos uma consciência espiritual, que confundíamos com algo diferente.

Já disse o suficiente, penso, para mostrar que, embora o sinequismo não seja uma

religião, muito pelo contrário, é uma filosofia puramente científica, deveríamos aceitar,

de maneira geral e como antecipei com confiança, que ela pode exercer um importante

papel na reconciliação entre religião e ciência.

532 N.E.: Edward Stanton Huntington (1841-1895) escreveu, sob o pseudônimo de Edward Stanton, Dreams

of Dead (Boston 1892). The Nation publicou uma resenha de Peirce em 8 de setembro de 1892: ver CN

1:165-66 (um esboço parcial se encontra em MS 1515). 533 N.E.: Gustav Freytag (1816-1895), escritor alemão, publicou Die verlorene Handschrift, uma novela

sobre a vida universitária, em 1864. A novela foi traduzida e publicada em série no The Open Court, no

final dos anos 1880, e publicada em forma de livro como O Manuscrito Perdido (The Lost Manuscript: A

Novel, Chicago: Open Court Pub. Co., 1890).