PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO … culturas; direitos humanos; interculturalismo;...

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1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE DIREITO PRISCILA FORMIGHERI FELDENS Mulheres Muçulmanas E A Efetivação Dos Direitos Humanos: Considerações Entre O Universalismo Ocidental E O Interculturalismo. Porto Alegre 2007

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL

FACULDADE DE DIREITO

PRISCILA FORMIGHERI FELDENS

Mulheres Muçulmanas E A Efetivação Dos Direitos Humanos: Considerações

Entre O Universalismo Ocidental E O Interculturalismo.

Porto Alegre

2007

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PRISCILA FORMIGHERI FELDENS

MULHERES MUÇULMANAS E A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS

HUMANOS: CONSIDERAÇÕES ENTRE O UNIVERSALISMO

OCIDENTAL E O INTERCULTURALISMO.

Projeto de pesquisa apresentado à Faculdade

de Direito da Pontifícia Universidade Católica

do Rio Grande do Sul como requisito parcial

para a obtenção do grau de especialista em

Ciências Penais, sob orientação do professor

Mestre Alexandre Wunderlich.

Porto Alegre

2007

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Ao Gilberto, à Liliani, à Patrícia e ao Joubert.

O pai que incentivou e abriu as portas para a

mudança.

A mãe que deu a base para a gradativa

evolução.

A irmã que cresce junto.

E o irmão, semblante da paz almejada.

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Agradeço à Energia Maior que me trouxe até

aqui.

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[...] apenas desde uma estrutura racional que

frutifique a partir do encontro do

propriamente outro que é possível

fundamentar ações que permitam uma radical

reconsideração da questão da justiça e da

possibilidade da ação justa.

Ricardo Timm de Souza

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SUMÁRIO

1. IDENTIFICAÇÃO DO PROJETO.....................................................................................07

1.1 TEMA...................................................................................................................................08

1.2. PROBLEMA ....................................................................................................... ................09

1.3 HIPÓTESES..........................................................................................................................10

1.4 OBJETIVOS..........................................................................................................................11

1.5. JUSTIFICATIVAS...............................................................................................................12

2. REVISÃO DE LITERATURA ........................................................................... ................13

3. METODOLOGIA.................................................................................................................57

4. REFERÊNCIAS....................................................................................................................58

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IDENTIFICAÇÃO DO PROJETO

Título Provisório: Mulheres muçulmanas e a efetivação dos direitos humanos: considerações

entre o universalismo ocidental e o interculturalismo.

Aluna: Priscila Formigheri Feldens.

Professor orientador: Alexandre Wunderlich.

Período: 03/2006 – 06/2007.

Área de Concentração: Direitos humanos, interculturalismo.

Instituição envolvida: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Palavras-chaves: culturas; direitos humanos; interculturalismo; islamismo; mulheres; violência.

Resumo: Pesquisa realizada como requisito para a aprovação no curso de especialização em

Ciências Penais, que tem como objeto a forma de tratamento concedido a muitas mulheres

islâmicas e a variação nas interpretações dos direitos humanos daquelas conforme diferentes

âmbitos culturais. Logo, analisa-se se qual ideário hermenêutico se mostra mais viável e

adequado para a peculiar realidade das muçulmanas.

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1.1. TEMA.

O tratamento dispensado a diversas mulheres muçulmanas e a efetivação de seus direitos

humanos.

1.1.2 Delimitação do tema

A forma de interpretação dos direitos humanos mais adequada à situação das mulheres

seguidoras da religião islâmica.

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1.2. PROBLEMA

O objeto de estudo deste projeto de pesquisa diz respeito à seguinte indagação:

Como deve ser interpretado os direitos humanos diante das formas de tratamento concedido à

grande parte das mulheres de religião islâmica?

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1.3 HIPÓTESES

1.3.1. O ideal é a predominância do modelo universal ocidental de interpretação dos direitos

humanos e que ele seja considerado também entre os seguidores da religião muçulmana, como

forma de efetivar os direitos humanos de todas as mulheres islâmicas.

1.3.2. Os fundamentos do relativismo cultural são os mais adequados para a análise dos direitos

humanos tendo em vista a situação das mulheres do Islã, pois permite variados entendimentos

acerca deles, conforme a cultura em que estão sendo considerados, e propicia sua efetivação

também de modos diversos.

1.3.3. Deve ser encontrada uma outra alternativa de compreensão dos direitos humanos, que

possibilite uma maior efetivação dos mesmos no tocante as mulheres muçulmanas.

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1.4 OBJETIVOS

1.4.1 Objetivo Geral

Com esse tema pretende-se verificar como devem ser compreendidos os direitos humanos para

que atinjam uma maior efetivação perante as mulheres seguidoras da religião muçulmana.

1.4.2 Objetivos específicos

- Conhecer a realidade das mulheres islâmicas e a influência cultural no modo em que são

tratadas.

- Analisar a os direitos humanos dentro da concepção muçulmana.

- Estudar o pensamento universal do Ocidente sobre os direitos humanos e as divergências

existentes entre ele e a concepção islâmica.

- Examinar a tentativa de influência ocidental sobre outras culturas, como a dos povos

muçulmanos, e os efeitos dela.

- Contribuir para a uma nova hermenêutica sobre os direitos humanos que auxiliem na sua

maior efetivação no tocante as mulheres seguidoras do Islã.

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1.5 JUSTIFICATIVA

Pretende-se desenvolver a presente pesquisa com fulcro na análise da efetivação dos

direitos humanos das mulheres seguidoras da religião islâmica. Tal intuito deve-se a fatores

que vêm chamando a atenção dos defensores dos direitos humanos no Ocidente,

correspondentes ao conservadorismo em que aquelas são tratadas, que as mantêm afastadas da

vida em sociedade e submetidas ao controle dela por meios considerados radicais perante a

visão ocidental.

Ocorre que, devido a essa forma de enxergar, o Ocidente interfere na cultura dos povos

muçulmanos e tenta impor a eles seus postulados humanísticos, sem considerar suas

peculiaridades culturais. Diante disso, torna-se importante, através desse estudo, abordar a

historicidade da intenção dominadora ocidental, para revelar que não se trata de um fenômeno

especificamente relacionado aos direitos humanos das mulheres muçulmanas e que já ocasionou

muitos malefícios às outras culturas.

Contudo, o ideário do relativismo cultural também não parece aplicável. Destarte, é de

intensa importância destacar a necessidade de um nova hermenêutica dos direitos humanos para

melhorar a situação daqueles que são oprimidos pela seu sistema social e cultural, nesse caso,

várias mulheres muçulmanas.

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2. REVISÃO DE LITERATURA

1. O tratamento dispensado a várias mulheres islâmicas diante dos defensores dos direitos

humanos universais de países do Ocidente

A forma de tratamento concedido a muitas mulheres, de religião islâmica, desde tempos

remotos até a atualidade, é tema de intenso debate entre alguns defensores dos direitos

humanos. Isso se deve a proeminente diferença existente entre as condições de vida delas e a

realidade da maioria dos países ocidentais, onde se observa que, mesmo existindo ainda

demonstrações de diferença social entre homens e mulheres, essas vêm conquistando

gradativamente uma maior participação social e efetivação de seus direitos, o que não parece

ocorrer entre as muçulmanas.

Observa-se que, no Ocidente, foi elaborada, em 1948, a Declaração Universal dos

Direitos Humanos que, conforme Mello, “[...] é considerada a consagração da Filosofia

ocidental dos direitos humanos”1 É importante lembrar que, apesar de sua catalogação ocorrer

apenas no século XX,

a luta pelos direitos humanos acompanha a humanidade ao longo de sua história. Durante a

modernidade, tornou-se espaço de reivindicações sociais, declarações universais de intenções

e parte dos princípios constitucionais dos múltiplos Estados.

A amplitude do tema e o seu significado cultural estão presentes desde as primeiras

declarações de independência das nações americanas até a declaração dos direitos do homem

da Revolução Francesa. Revigoram-se, tornando-se cada vez mais universais a partir da

Declaração Universal de 1948, chegando, mais recentemente, a declarações específicas sobre

gênero, raça e meio ambiente2.

1 MELLO, Celso Albuquerque. A proteção dos direitos humanos sociais nas Nações Unidas. In: SARLET, Ingo Wolfgang

(Org.) Direitos Fundamentais Sociais: Estudos de direito constitucional, internacional e comparado. Rio de Janeiro:

Renovar, 2003, p. 220. 2 VIOLA, Sólon Eduardo Annes. Direitos Humanos entre a regulação e a autonomia. In: KEIL, Ivete; ALBUQUERQUE,

Paulo; SOLON, Viola. Direitos Humanos: alternativas de justiça social na América Latina. São Leopoldo: Unisinos, 2002,

p. 114.

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Foi nesse âmbito de luta pelos direitos humanos que, a partir do período pós-guerra,

várias mulheres de nações do Ocidente começaram a buscar a efetivação de seus direitos de

modo organizado, inicialmente por meio de associações profissionais, com o intuito de luta

contra a discriminação dos sexos e a favor da inserção da mulher na sociedade.3

Posteriormente, na década de 1960, com a preocupação voltada a aspectos de “bem-estar”,

foram desenvolvidas expectativas em torno de programas e projetos com fulcro na auto-

suficiência, na igualdade e empoderamento das mulheres.4 Sobretudo, foi após o Ano

Internacional da Mulher, em 1975, que tais mulheres aumentaram suas conquistas.

Nesse passo, apesar de defendido pelos defensores da Declaração Universal dos

Direitos Humanos, o

[...] princípio da igualdade da mulher se expande para todas as outras sociedades como fator

da globalização modernizadora. O mundo muçulmano não está isento desta influência, e é por

isso que uma das expressões do choque entre a modernidade e a civilização muçulmana está,

justamente, na discussão sobre a mulher.

No pensamento islâmico, a posição da mulher é inferior à do homem, situação que reflete a

realidade sociológica da sociedade pré-islâmica da qual o islã emergiu, das comunidades

muçulmanas históricas e do mundo muçulmano atual. 5

Logo, denota-se que são diversas e complexas as justificativas para o modo como

muitas mulheres são tratadas no Islã, pois resulta de um longo processo cultural prolongado por

séculos, com fundo patriarcal6 praticamente imutável durante todo esse período. Nesse

contexto:

A função reprodutora da mulher ao mesmo tempo justifica sua existência e é motivo de sua

subordinação. Segue-se, presa a esses dois primeiros elos a corrente que ata as mulheres,

confinando-as à esfera doméstica e afastando-as das funções públicas; anulando ou

minimizando seus direitos à propriedade e seus direitos civis, excluindo-a de toda função civil

ou pública; relativizando e até desconhecendo sua participação na economia.7

3 PINTO, Maria Conceição Corrêa. A dimensão política da mulher. São Paulo: Edições Paulinas, 1992. P. 85, 86.

4 UNESCO. De mãos dadas com a mulher: a Unesco como agente promotor da igualdade entre gêneros. Brasília: Unesco,

2002, p. 21. 5 DEMANT, Peter. O Mundo Muçulmano. São Paulo: Contexto, 2004, p. 150.

6 No dicionário de língua portuguesa, patriarcado denomina-se o regime social em que o pai é autoridade máxima. -

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio. Curitiba: Posigraf, 2004, p. 615. 7 PINTO, Maria Conceição Corrêa. A dimensão política da mulher. São Paulo: Edições Paulinas, 1992, p. 66.

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Com efeito, nesses papéis e nas relações criadas dentro da família patriarcal podem ser

encontradas as “raízes” de inúmeros tabus e preconceitos sobre as mulheres8. Seguindo essa

linha, Flores conclui que o patriarcalismo pode ser definido através de três etapas:

[...] primera, políticamente, el patriarcalismo supone una configuración de la realidad en la

que prima lo abstracto sobre lo concreto, las funciones „prometeicas‟ sobre las relacionales y

la desigualdad sobre la igualdad; segunda, axiológicamente, el patriarcalismo impone un

conjunto de valores, creencias y actitudes no deducidas, ni deducibles, de la realidad, a partir

de las cuales un grupo humano se abroga “por naturaleza” superioridad sobre el resto; y,

tercera, sociologicamente, el patriarcalismo constituye la base de la exclusión, es decir, “ el

conjunto de mecanismos enraizados en la estructura de la sociedad a partir de los cuales

determinadas personas y grupos son rechazados o desplazados sistemáticamente de la

participación plena en la cultura, la economía y la política dominantes en esa sociedad en un

momento histórico determinado”. [...] Sin embargo, desde el patriarcalismo se vende como

tradición inamovible todo un conjunto de leyes, normas y valores, configuraciones

institucionales y culturales [...].9

Além disso, verifica-se que, devido ao grande número de países e povos islâmicos,

existem variados entendimentos acerca dos direitos e deveres e assim, “diferentes leituras do

mesmo texto produzem “fundamentalmente diferentes Islãs” para as mulheres, sendo

necessário verificar quem lê, como e em que contexto, de forma a extrair uma leitura que não

dá suporte às modernas formas de patriarcado nem à manutenção de papéis delimitados pela

biologia”10

. Essa flexibilidade na interpretação dos preceitos impostos a classe feminina se

deve ao fato de que o mundo muçulmano

[...] apresentado como um conjunto homogêneo, se constitui, na realidade, como uma área

multi-étnica e multi-linguistica que integra várias sociedades com diversas tendências e

correntes. Portanto, não se limita geograficamente ao mundo árabe, berço do Islã. Suas

fronteiras se estendem até a Ásia e a África, com uma população de um bilhão e duzentos mil

habitantes (sendo, quantitativamente, a segunda religião do mundo), e com ramificações

(aproximadamente 30 milhões de pessoas) no coração de alguns países ocidentais como

Alemanha, Espanha, França Países- Baixos, Reino Unido, Estados Unidos e América11.

8 PINTO, Maria Conceição Corrêa.Op. cit., p. 69.

9 FLORES, Joaquín Herrera. De habitaciones propias y otros espacios negados: una teoria crítica de las opresiones

patriarcales. Bilbao: Universidad de Deusto, 2005, pp. 31- 33. 10

BALDI, César Augusto. What you get is (not) what you see: para uma epistemologia não-colonial do Islã e dos direitos

das mulheres. Site <www.revistadoutrina.trf4.gov.br>. Acessado em 16/02/2007. 11

BENNANI, Aziza, Mundo latino e mundo islâmico um diálogo e uma interação imprescindíveis. In: DAL RI JÚNIOR,

Arno; ORO, Ari Pedro (Org). Islamismo e Humanismo Latino: Diálogos e desafios. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 132.

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Outrossim, sendo o Islã uma religião, conseqüentemente, “não tem caráter territorial e

sua meta consiste em proporcionar um modelo para a integração final da humanidade, reunindo

seguidores de uma variedade de raças que se repelem mutuamente, transformando este

conjunto atomizado em um povo dotado de consciência de si mesmo.”12

Toda a população adepta ao islamismo tem a Chária como tradição normativa, a qual

funciona não apenas como parâmetro para a vivência adequada dos crentes, como também como

fonte primária da legislação.13

Ela tem sua base no Alcorão, livro sagrado revelado pelo profeta

Mohammad, considerada como a última palavra declarada por Deus e fonte básica de

ensinamentos e leis. Além de adoração, conhecimento, relação Deus-homem, sabedoria e

moralidade, o referido livro trata de justiça social, política e relações internacionais, legislação e

jurisprudências. 14

Ademais, além do Corão, existe a Sunna, “que é fonte secundária em relação

à primeira e significa “claro caminho” ou “prática normativa”, pode ser um bom ou mau

exemplo, dirigido ao indivíduo ou à comunidade, em geral dizendo respeito a tudo que se refira

ao Profeta, seus atos, suas palavras e aquilo que tacitamente tenha aprovado”.15

Nesse sentido, ao terem um instituidor divino para todas suas leis, os seguidores do Islã

demonstram serem orientados através de uma forma de Direito Natural. Esse é composto por

normas que espontamenamente valem ou se fazem imediatamente válidas, porque provém da

natureza. Mesmo advindas dela, estatuem uma determinada conduta como devida e há uma

vontade dirigida a um comportamento humano. Nesse sentido, tendo em vista que a natureza não

é ser inteligente, quem tem a vontade é Deus, pois a natureza foi criada por Ele.16

Dentro dessa seara de entendimento que se mantêm os seguidores islâmicos no que

concerne, especificamente, aos Direitos Humanos, pois acreditam que esses “não se radicam,

nem na idéia de pacto social, nem na idéia da limitação do poder do Estado pelas normas

jurídicas. Na visão deles, os Direitos Humanos têm sua origem na própria visão religiosa que

leveda a alma desses povos.”17

12

BALDI, César Augusto. Op. cit. 13

BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos direitos humanos. São Leopoldo: UNISINOS, 2000, p.161. 14

Revista Islamismo: As leis de Deus traduzidas pelo profeta Mohammad. São Paulo: Escala. 2006, p. 18. 15

KAMALI, Mohammad Hashim. Principles of Islamic Jurisprudence. 2.nd edit. Petaling Jaya: Ilmiah, p. 44, 2004. Apud:

BALDI, César Augusto. Op. cit. 16

KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. Porto Alegre: Fabris, 1986, pp. 7- 8. 17

HERKENHOFF, João Baptista. Direitos humanos: uma idéia, muitas vozes. São Paulo: Santuário,1998, p. 64.

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Nesse diapasão, apesar de existir a Declaração Islâmica Universal dos Direitos do

Homem, elaborada no ano de 1990, em uma Conferência no Cairo,18

ela não é uma afirmação

de Direitos Humanos no sentido jurídico ordinário, ou seja, não é uma firmação de direitos

emanada de um poder constituinte qualificado, e sim uma Declaração de Direitos no sentido de

que os enuncia reconhecidos solenemente como existentes, resultando de uma exigência

moral.19

Muitos autores islâmicos sustentam que as garantias salvaguardas nessa Declaração, já

tinham sido reconhecidas há 14 séculos atrás em legislação abrangente e profunda, por isso,

alegam que os direitos humanos foram formulados pela primeira vez através do islamismo. 20

Por sua vez, na concepção de Bielfeldt

A Declaração do Cairo evidencia ser documento político que, conscientemente, abre mão da

busca da Declaração Universal do dos Direitos Humanos das Nações Unidas em favor da

continuidade do conteúdo. Oferece, ainda, exemplo da tendência islâmica atual de

interpretação unilateral dos conceitos relativos a direitos humanos, que em nada perde para a

criticada caracterização desses direitos como sendo de “valores ocidentais” e que deixa pouco

espaço par um discurso interculturas.21

Além da Declaração Islâmica de Direitos Humanos, no próprio Corão verifica-se a

previsão dos direitos à dignidade, à honra e à impossibilidade de fazer distinção entre os

indivíduos. Baseado nisso, afirmando que Deus é o único Senhor absoluto do homem, os

defensores do Islã sustentam a existência de previsão de direitos humanos em sua cultura,

através da unificação necessária e fraterna da humanidade22

.

Todavia, diante de entendimentos como esses, Souza Santos lembra que não se deve

perder de vista a possibilidade de dois níveis de mensagem do Islão: uma do período da Meca

Antiga, que teria como mensagem fundamental islâmica a dignidade dos seres humanos

independentemente de sexo, religião e raça; e outra, da fase de Medina (séc.VII), que

18

BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos direitos humanos. São Leopoldo: UNISINOS, 2000, p. 165. 19

SINACEUR, M. Apud:

HERKENHOFF, João Baptista. Direitos humanos: uma idéia, muitas vozes. São Paulo:

Santuário,1998, p. 88. 19

Idem. 20

BIELEFELDT, Heiner. Op. cit, p. 165. 21

Ibidem, p. 143. 22

Revista Islamismo: As leis de Deus traduzidas pelo profeta Mohammad. Op. Cit. P. 38.

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considerou tal entendimento demasiadamente avançado e suspendeu sua aplicação até que

futuras circunstâncias a tornassem possível.23

Independente disso, através da compreensão islâmica de direitos humanos percebe-se

que diferentemente da cultura humanista de direito ocidental,

no Direito Islâmico, o valor do ser humano repousa na palavra de Deus (Alá) que expressa e

delimita o papel dos homens na sociedade. No sentido profético, o ser humano não dispõe de

autonomia, tampouco individualidade enquanto liberdade para exercer sua vontade a partir de

si mesmo. Na verdade, as leis e o poder são emanações do divino, do sagrado e da tradição

revelada.

A valorização do ser humano, tão cara à corrente do humanismo - principalmente de tradição

latino-ocidental- enquanto ser racional, igual e livre, não encontra paralelo na cultura

islâmica. Enquanto, nessa a formulação da dignidade humana está vinculada e submetida à

religião, a mesma concepção, na cultura ocidental, está associada à natureza racional do

homem que define os seres humanos como iguais, independente de etnia, religião, sexo e

idade, expressando uma concepção abstrata, secularizada e universal.24

(grifo do autor)

Conforme muitos pensadores do Islã, o Estado secular, base do humanismo, é entendido

como um blasfêmia e usurpação da soberania divina como despotismo de arbitrariedade

humana, que precisa portanto, ser combatido por todos os meios possíveis. 25

Compreende-se

que está, assim, tentando-se fugir da submissão a Deus, tão apregoada pelo Alcorão.

Diante do referido, pode-se constatar uma mistura de funções no Livro Sagrado

Islâmico, na medida em que seus preceitos refletem crença ao mesmo tempo em que

estabelecem leis e, principalmente, impõem moral aos indivíduos. Para muitos, os preceitos do

Alcorão tornam-se meio de justificação de vários atos e também fundamento para aceitação de

muitas condições que lhe são impostas, como podemos perceber, por exemplo, entre aqueles

que seguem o fundamentalismo islâmico.

Para Bauman,

23

SOUZA SANTOS, Boaventura de. A gramática do Tempo: para uma nova cultura política. Porto: Afrontamento, 2006, p.

418. 24

WOLMER, Antonio Carlos. Fundamentos do Direito na cultura islâmica. In: DAL RI JÚNIOR, Arno; ORO, Ari Pedro

(Org.) Islamismo e Humanismo Latino: diálogos e desafios. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 234. 25

QUTB, Sayyid. Apud: BIELEFELDT, Heiner. Op. cit., p. 237.

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O fascínio do fundamentalismo provém de sua promessa de emancipar os convertidos das

agonias da escolha. Aí a pessoa encontra, finalmente, a autoridade indubitavelmente suprema,

uma autoridade para acabar com todas as outras autoridades. A pessoa sabe para onde olhar

quando as decisões da vida devem ser tomadas, nas questões grandes e pequenas, e sabe que,

olhando para ali, ela faz a coisa certa, sendo evitado, desse modo, o pavor de correr risco. O

fundamentalismo é um remédio radical contra esse veneno da sociedade de consumo

conduzida pelo mercado - a liberdade contaminada pelo risco (um remédio que cura a

infecção amputando o órgão infeccionado – abolindo a liberdade como tal, na medida em que

não há nenhuma liberdade livre de riscos). O fundamentalismo promete desenvolver todos os

infinitos poderes do grupo que – quando plenamente disposto- compensaria a incurável

insuficiência de seus membros individuais, e justificaria, dessa maneira, a indiscutível

subordinação das escolhas individuais a normas proclamadas em nome do grupo.

O intégrisme islâmico dos aiatolás ou o estilo da Irmandade Muçulmana [...], pertencem a

uma família mais ampla de reações pós-modernas a esses medos pós-modernos que foram

infligidos aos indivíduos como indivíduos pela progressiva desregulamentação e privatizações

de todas as redes de seguro e proteção “seculares”, outrora proporcionados pelo estado por

meio das habilitações da cidadania do estado. Num mundo em que todos os meios de vida são

permitidos, mas nenhum é seguro, elas mostram coragem suficiente para dizer, aos que estão

ávidos de escutar, o que decidir de maneira que a decisão continue segura e se justifique em

todos os julgamentos a que interesse. A esse respeito, o fundamentalismo religioso pertence a

uma família mais ampla de soluções totalitárias ou protototalitárias, oferecidas a todos os que

deparam a carga da liberdade individual excessiva e insuportável. 26

Nessa linha de raciocínio, muitos pensadores tentam entender a submissão total de

muitas mulheres muçulmanas que, várias vezes tolhidas de liberdade pessoal, estariam aceitando

tal situação devido ao bem do grupo em que vivem e à segurança que obtêm diante dos grandes

“riscos” a que estão sujeitas nesse mundo. Ainda, independentemente de seguirem a linha

fundamentalista, os prefácios conservadores do Alcorão impõe a todas as muçulmanas várias

condições de vida que devem ser adotadas por elas, pois, no momento em que elas não os

obedecem, estarão fugindo do “caminho do bem” e dos ensinamentos de Deus, sendo, assim,

castigadas por ele e por toda sociedade.

Diante disso, assevera-se que os conceitos de igualdade de gênero e justiça social estão

absolutamente embebidos na tradição corânica, introduzidos para os muçulmanos catorze

séculos atrás. Trata-se, portanto, de um entendimento de ambos os conceitos a partir uma

“epistemologia corânica”, e não feminista27

.

26

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, pp. 228- 229. 27

BARLAS, Asma. Towards a theory of gender equality in muslim societies. CSID Annual Conference, Washington, May

29, 2004. Disponível em: Acesso em 29 agosto 2006 Apud: BALDI, César Augusto. What you get is (not) what you see:

para uma epistemologia não-colonial do Islã e dos direitos das mulheres.

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Desse modo, a ligação presente entre moral, leis e crenças constatada no livro divino do

islã, estaria vinculando as mulheres ao seu acatamento sem abertura para questioná-lo. Na

opinião de Manji, isso leva a uma forma de “morte cerebral” ao sufocar a possibilidade de pensar

e impossibilitar a interpretação de seus ditames, como algo que somente deve ser seguido.28

Nesse pensar, questiona-se se elas não estariam sendo “forçadas a manter a cabeça

imóvel por toda a vida”, como os habitantes da Alegoria da Caverna de Platão. De acordo com

referido texto, as pessoas pensam o que conhecem, ou seja, enxergam aquilo que lhes foi

permitido ver. Torna-se impossível expandir essa visão se não se desconfia da existência dessa

expansão. Assim, a realidade é aquela verificada através de nossas idéias, pois dependemos

dessas para compor aquela.

Platão expressa, ainda, que a realidade que as pessoas acreditam viver é parcial e

instável, sendo que ela pode ser modificada a qualquer tempo quando conhecidos outros

elementos que interferem nela ou que faziam parte de outras vidas. Através disso, é possível

obter o crescimento pessoal interior, como também uma espécie de libertação, quando os

indivíduos compreendem que seus modos de vida podem não ser os únicos corretos, e que não é

devido deixar de reconhecer a legitimidade de outras realidades simplesmente porque elas são

diferentes da vivida por eles.29

Ao impossibilitá-las dessa compreensão, muitos homens do Islã estariam impondo sua

interpretações dos versículos sagrados, como também os utilizando para exercer o controle

sobre as mulheres para mantê-las inertes, pois, caso contrário, “eles perdem suas certezas e o

domínio tradicional sem ganhos correspondentes. É verdade que os homens muçulmanos se

sentem ameaçados pelo nova onipresença feminina, pois uma mulher educada e determinada é

ainda mais ameaçadora, tanto como concorrente num mercado de empregos já estreito quanto

como desafiadora da própria estrutura de dominação.” 30

Logo, as mulheres estariam sendo excluídas do processo prático de luta pelos direitos

humanos, pois para isso se realizar, é indispensável que eles sejam conhecidos por elas de

modo livre e não manipulado a fim de que, assim, elas possam exercê-los e possam modificar

28

MANJI, Irshad. Minha briga com o Islã: O clamor de uma mulher muçulmana por liberação e mudança. São Paulo:

Francis, 2004, pp.44- 45. 29

PLATÃO. Alegoria da Caverna, VII. A República. Consultado no site: <www.colband.com.br> Acessado em:

22/01/2007. 30

DEMANT, Peter. O Mundo Muçulmano. São Paulo: Contexto, 2004, p. 156.

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21

suas realidades. Como Heidegger expressa, suas identidades passam a ser guiadas pelo comum-

pertencer (com destaque no “pertencer”e não no “comum”), ou seja, as mulheres deixam de

simplesmente integrar a ordem unitária de uma comunidade e passam a determinar a essa

comunidade por relevantemente pertencerem a ela,31

como verdadeiros seres humanos e

sujeito de direitos que são.

Daí parece-me imprescindível acrescentar que “o ser do homem é o seu dever ser”, tanto

espiritual quanto corpóreo, cumprindo dar realce ao pronome seu, uma vez que não se cuida de

determinar o significado do ser humano de maneira abstrata, mas na sua concreção, como

principal senhor de seu destino e titular dos direitos que lhe são inerentes enquanto pessoa.32

Como isso parece não acontecer, muitos estudiosos ocidentais sustentam que várias

formas de violência são cometidas contra a classe feminina islâmica, violando diversos direitos

humanos. Nesse ponto, torna-se necessário destacar que a palavra

violência, em seu significado mais freqüente, quer dizer uso da força física, psicológica ou

intelectual para obrigar uma pessoa a fazer algo que não está com vontade; é constranger, é

tolher a liberdade, é incomodar, é impedir a outra pessoa de manifestar seu desejo e sua

vontade, sob pena de viver gravemente ameaçada ou até mesmo ser espancada, lesionada ou

morta. É um meio de coagir, de submeter outrem a seu domínio, é uma violação dos direitos

do ser humano. 33

Para início da análise da violência contra muitas muçulmanas, apontam que até pouco

tempo elas eram consideradas escravas, e, ainda hoje, há teólogos sustentando que elas não

possuem alma, sem saberem para onde irão após as suas mortes.34

Ainda, como exemplos de demonstração de violência e desigualdade contra tais

mulheres no Islã referem que, no sistema jurídico, o testemunho de uma mulher muçulmana

equivale à metade do testemunho do homem, e elas tem suas penas muitas vezes executadas

antes mesmo de os processos chegarem aos tribunais.35

No que toca ao trabalho, a permanência

31

HEIDEGGER, Martin. Que é isto, a filosofia?: Identidade e diferença. Rio de Janeiro: Vozes, 2006, pp. 42- 43. 32

REALE, Miguel.O estado democrático de direito e o conflito das ideologias. São Paulo; Saraiva, 1999, p. 103. 33

TELES, Maria Amélia de Almeida; MELO, Mônica de. O que é violência contra a mulher. São Paulo: Brasiliense, 2002,

p. 15. 34

WILGES, Irineu. Cultura Religiosa: as religiões no mundo. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 63. 35

BROOKS, Geraldine. Nove partes de um desejo: o mundo secreto das mulheres islâmicas. Rio de Janeiro: Gryphus,

2002, p. 70.

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22

no lar, sugestão incisiva do Alcorão, é destacada.36

Além disso, aduzem existir várias restrições

impostas quanto à educação, que variam desde dificuldade de acesso à universidade, à uma

simples biblioteca37

. Ademais, na política,

em países como Kuwait, em que as mulheres ainda têm de conquistar o direito de voto, nem

se pensa que elas possam ocupar postos do governo. E mesmo onde o sistema é supostamente

aberto às mulheres, reivindicar um posto significa muitas vezes se sujeitar a desaforos e

ameaças de violência. Na eleição da Jordânia . de 1993, uma candidata teve que lutar até pelo

direito falar num comício, porque os muçulmanos extremistas se opunham a que o som da voz

feminina fosse ouvido numa reunião mista38

.

Os defensores dos direitos humanos universais também chamam a atenção para o fato

de que há países, como o Afeganistão, em que a própria lei estabelece que cada mulher deve se

submeter a um homem, sendo obrigada a vestir a burca, para velar totalmente o corpo e o rosto

perante outras pessoas, podendo aparecer em público somente acompanhada de um parente

masculino legalmente responsável,39

sem qualquer exercício do direito de liberdade e de

locomoção. Além de outras hipóteses, afirmam que o princípio da igualdade também não

estaria sendo considerado quando somente o homem pode ser poligâmico,40

e quando, em

caso de separação dos casais, os filhos ficam com os pais porque pertencem a ele.41

Outrossim, além da esfera simbólica da violência contra as mulheres islâmicas, argüem

a existência de violências físicas em sociedades específicas, através de penas aplicadas a elas.

Refere-se que a partir dos anos 80, houve diversos casos de desfiguração do rosto de

muçulmanas, através da utilização de ácidos, pelo simples fato de ousarem exibir o cabelo. 42

Também é tradicional em algumas sociedades islâmicas a mutilação genital, a qual ocorre para

assegurar a aceitação das mulheres pelos maridos, sendo elas orientadas, desde jovens, a

realizar tal procedimento. 43

Nessa esteira, “vários autores apontam, que no Oriente Médio, a

mulher é considerada em primeiro lugar como objeto do desejo masculino, sendo a sexualidade

36

BROOKS, Geraldine.Op. cit. p. 115. 37

Ibidem, p. 224. 38

Idem. 39

DEMANT, Peter. Op. cit. P.160. 40

RAMPAZZO, Lino. Antropologia, religiões e valores cristãos. São Paulo: Loyola, 1996, p. 137. 41

WILGES, Irineu. Op. cit., p. 66. 42

DEMANT, Peter. Op. cit., p. 159. 43

BROOKS, Geraldine.Op. cit., pp. 54- 55.

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primariamente associada ao sexo feminino. Ao contrário do cristianismo, existe no islã uma

apreciação positiva da sexualidade em si. Fontes islâmicas falam do coito como ato de

harmonia com o cosmos.”44

Contudo,

A sexualidade fora do casamento equivale à devassidão e à corrupção. Assim, o homem é

obrigado a satisfazer sua esposa, ou esposas, para manter sua virtude-caso contrário, ela

necessariamente satisfará seu desejo fora de casa, destruindo a honra da família. Em outras

palavras, a honra da família é condicionada à pureza sexual das mulheres: a virgindade das

filhas, a fidelidade das esposas e a castidade das divorciadas e viúvas. O adultério é crime

contra o islã, tradicionalmente punível com cem chicotadas ou morte por apedrejamento -

punições que os fundamentalistas tentam restaurar. A severidade da transgressão necessita,

porém, do depoimento de quatro testemunhas masculinas (ou oito femininas). Mas

comumente, a transgressão da norma de “pureza” ou mesmo a mera suspeita disto- constitui

uma desgraça social para o homem e a família que só a morte da “ criminosa” pode apagar.

Em conseqüência, até hoje ocorrem regularmente “assassinatos de honra”, que tanto a lei

quanto o costume social tendem a perdoar.45

Relevante é a observação de que muitas das entendidas violações dos direitos humanos

das mulheres se devem a rígida manutenção de costumes tradicionais no Islã desde tempos

remotos. Mais especificadamente,

[...] todas essas regras refletem, mantêm e reproduzem a situação desigual dos sexos na

sociedade árabe peninsular do século VII, berço do islã, e a partir daí elas se disseminam nas

demais sociedades que o adotaram. O problema é que a desigualdade e a divisão de funções

entre sexos se encontravam embutidas no islã, pois estavam inscritas no Alcorão e nos hadiths

do Profeta- e, para o islã normativo, o que está ordenado pela palavra divina não pode ser

mudado pelo homem.46

Por tudo isso, a existência de respeito aos direitos humanos das mulheres na cultura

muçulmana é muito questionada. É freqüente a atuação de ONG‟s nos países islâmicos

objetivando concretizar os direitos humanos, invocando padrões jurídicos internacionais e

argüindo que a religião islâmica nem sempre exerce papel fundamental para seu perfil e sua

imagem externa.47

Outrossim, no relatório de direitos humanos de 2002, a ONU censurou a

Arábia, país de maior predominância islâmica, por negligenciar metade de sua população: as

44

DEMANT, Peter. Op. cit. p. 153. 45

Ibidem, p. 154. 46

DEMANT, Peter. Op. cit., pp. 150-151. 47

BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos direitos humanos. São Leopoldo: UNISINOS, 2000, p.161.

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mulheres. Ademais, o relatório apontou o “fortalecimento” delas como um dos três déficits no

país, sendo os outros dois a “instrução” e a “liberdade”.

Como resposta às entidades protetoras dos direitos humanos, os defensores do

conservadorismo islâmico argúem o relativismo cultural, ou seja, o processo de endoculturação

que os indivíduos passam sendo condicionados a um modo de vida específico e particular,

como também adquirindo seus sistemas de valores e sua integridade cultural. Através dele,

defende-se que uma cultura, de modo geral, difere-se de outras por seus postulados básicos e é

considerada uma configuração saudável para aqueles que a praticam. Por isso, o relativismo

cultural não concorda com a idéia de normas e valores absolutos e argumentam que as

avaliações devem ser sempre relativas à própria cultura onde surgem. Logo, os padrões ou

valores de certo ou errado, dos usos e costumes, das sociedades em geral relacionam-se com a

cultura que fazem parte.48

Dessa maneira, o relativismo das culturas não estaria sendo considerado ao desejarem

que o Islã siga os termos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, até porque

Três argumentos há que, em variações sempre de novo, são apresentados para alicerçar a idéia

do caráter primordialmente ocidental dos direitos humanos e sua aplicabilidade restrita em

relação a outras culturas. Remete-se ao individualismo, bem como ao antropocentrismo desses

direitos, considerados genuína expressão da forma de viver e da cosmovisão ocidentais que,

como se diz contradizem em sua base as culturas teocêntricas ou cosmocêntrica, vigentes fora

da Europa ou da América do Norte.[...] Talvez mais importante seja a objeção de que os

direitos humanos sejam ligados aos pressupostos culturais e filosóficos de tradição ocidental,

por terem surgido nesse contexto. 49

Favorável a essa posição, na Conferência sobre a Declaração Universal dos Direitos

Humanos em Genebra, no ano de 1993, o Irã, entre outros países, argumentou que o Ocidente

impôs sua ideologia de direitos humanos, principalmente através da Declaração Universal do

Direitos Humanos, a nações cujas diferentes histórias políticas e religiosas lhes dão o direito de

escolher a sua ideologia sobre esse assunto.50

Nesse diapasão,

48

LAKATOS, Eva Maria. Sociologia geral. São Paulo: Atlas, 1986, p. 144. 49

BIELEFELDT, Heiner. Op. cit., p.141. 50

BROOKS, Geraldine. Op. cit., p. 285.

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O debate entre os universalistas e o os relativistas culturais retoma o velho dilema sobre o

alcance das normas de direitos humanos: as normas de direitos humanos podem ter um

sentido universal ou são culturalmente relativas? Esta disputa alcança novo vigor em face do

movimento internacional dos direitos humanos, na medida em que tal movimento flexibiliza

as noções de soberania nacional e jurisdição doméstica, ao consagrar um parâmetro

internacional mínimo, relativo à proteção dos direitos humanos, aos quais os Estados devem

se conformar.

Para os relativistas, a noção de direitos está estritamente relacionada ao sistema político,

econômico, cultural, social e moral vigente em determinada sociedade. Neste prisma, cada

cultura possui seu próprio discurso acerca dos direitos fundamentais, que está relacionado às

específicas circunstâncias culturais e históricas de cada sociedade 51

Por conseguinte, vê-se que a análise da situação das mulheres islâmicas, no que toca a

seus direitos humanos, é um procedimento delicado, no qual não se pode estabelecer

incisivamente uma posição teórica, à medida que ela pode ser parcial e também pode sofrer

diferentes interpretações e aplicações conforme o âmbito cultural em que tais direitos estão

sendo considerados. Desse modo, cabe entender a origem da influência do Ocidente sobre

outras culturas, como a muçulmana, e a que condições ela ocorre, para verificar a necessidade

de sua prevalência no que corresponde aos direitos humanos.

2. A tentativa de influência de países ocidentais sobre diferentes culturas e a Modernidade

Apesar da existência da posição relativista cultural, verifica-se que muitos defensores

dos direitos humanos acreditam que ensiná-los a outras culturas é uma “missão global da

civilização ocidental,” 52

para que seja possível sua efetivação. Logo, em relação ao tema ora

abordado, presume-se que as mulheres islâmicas ficam prejudicadas caso não sigam o ideário

humanístico do Ocidente. Esse modo de pensar representa claramente o fenômeno do

etnocentrismo, o qual pode ser definido como a visão de mundo de um determinado grupo que

se toma como centro de tudo, e todos os outros são pensados e sentidos através de seus valores,

51

PIOVESAN, Flávia Direitos humanos e o direito constitucional internacional.São Paulo: Max Limonad, 1996, pp. 167-

168.

52 BIELEFELDT, Heiner.Op. cit., p. 143.

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de sua definição do que é a existência, trazendo a dificuldade de pensar a diferença e entender

os mecanismos pelas quais se perpetuam as distorções que se fazem das imagens e

representações da vida daqueles que são diferentes da cultura etnocêntrica.53

Desse modo, a

diferença não aceita é vista como uma situação que deve ser modificada pela cultura centrista.

Nesse sentido, repara-se que a cultura ocidental mostra-se etnocêntrica, pois se entende

centralizada entre as demais culturas, inclusive entre a muçulmana, e, muitas vezes, tem o

intuito de compreendê-las e alterá-las conforme suas concepções. Pode-se dizer que tal

fenômeno tem sua base numa expressão que Descartes, em 1636, definia como “ego cogito”,

ou seja, o ego como origem absoluta de um discurso solipsista,54

onde se esquece da existência

do Outro no mundo e que ele possui identidade e importância próprias.

Na opinião de Bauman, através do etnocentrismo europeu,

Vemos já perfeitamente construído “o mito da Modernidade”: por um lado, se autodefine a

própria cultura como superior, mas “desenvolvida” (nem queremos negar que o seja em

muitos aspectos, embora um observador crítico deverá aceitar os critérios de tal superioridade

são sempre qualitativos, e por isso de aplicação incerta); por outro lado, a outra cultura é

determinada como inferior, rude, bárbara, sempre sujeito de uma “imaturidade” culpável. De

maneira que a dominação (guerra, violência) que é exercida sobre o Outro é, na realidade,

emancipação, “utilidade”, “bem” do bárbaro que se civiliza, que se desenvolve ou

“moderniza”. Nisto consiste o “mito da Modernidade”, em vitimizar o inocente (o Outro)

declarando-o causa de sua própria vitimização e atribuindo-se ao sujeito moderno plena

inocência com respeito ao ato sacrifical. Por último, o sofrimento do conquistado (colonizado,

subdesenvolvido) será o sacrifício ou o custo necessário da modernização. 55

A manifestação do denominado “eurocentrismo” teve sua origem no período da

colonização (final do séc. XV) no qual os países Europeus, inicialmente Espanha e Portugal, 56

passaram a dominar outras regiões territoriais e a impor seu modo de vida a essas, como a

única verdade possível de ser seguida. Assim,

53

ROCHA, Everaldo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 7-8. 54

DUSSEL, Enrique. 1942: O encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Conferências de Frankfurt. Rio de

Janeiro: Vozes, 1993, p. 53. 55

DUSSEL, Enrique. Op. cit., pp. 75, 76. 56

Ibidem, p. 15.

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A modernidade européia foi aí imposta pelos colonos e, mais tarde, pelas independências

proclamadas por eles e pelos seus descendentes ideológicos. Assim, o sistema de exclusão

começou por dominar e pela forma mais extrema, a do extermínio, das culturas que não

adoptavam as referências européias. Depois do extermínio, foi fácil segregar em reservas, sob

a forma de tribos ou assimilar as populações indígenas sobreviventes e iniciar um processo de

integração e, portanto, um sistema de desigualdade, ele próprio também incluindo formas

extremas de desigualdade, como foi a escravatura, uma instituição social híbrida, tal como a

imigração hoje, subsidiária dos dois sistemas de iniqüidade. Isto significa que o interdito

cultural da exclusão teve talvez tanto peso como a integração pelo trabalho escravo colonial.

Depois do extermínio inicial, o racismo foi, sobretudo de exploração e, portanto, parte

integrante do sistema de desigualdade.57

Perante isso, Chauí defende que não é possível enxergar essa realidade como verdade

única, pois em sociedades antigas baseadas no trabalho escravo, com vista na utilidade e

eficácia, ligadas extremamente a técnica e ao trabalho, não há a possibilidade daquela se

mostrar plausível, ou seja, se mostrar uma forma superior do espírito humano e um valor

autônomo do conhecimento enquanto pura contemplação da vida58

.

Ademais, não se pode olvidar que

No século XV, até 1492, a hoje chamada Europa Ocidental era um mundo periférico e

secundário do mundo muçulmano. A Europa Ocidental nunca fora o “centro” da história pois

não ia além de Viena, ao lado leste, já que até 1681 os turcos estiveram perto de seus muros,

e além de Sevilha em seu outro extremo [...].

Nesta situação falar da Europa como começo, centro e fim da História Mundial-como era a

opinião de Hegel - era cair numa miopia eurocêntrica. A Europa Ocidental não era “centro”

nem sua história nunca fora centro da história. Será preciso esperar por 1492 para que sua

centralidade empírica constitua as outras civilizações como sua “periferia”. Este fato da

“saída” da Europa Ocidental dos estreitos limites dentro dos quais o mundo muçulmano a

prendera constitui, em nossa opinião o nascimento da modernidade. 1492 é a data de seu

nascimento, da origem da “experiência” do ego europeu de constituir os Outros sujeitos e

povos como objetos, instrumentos, que podem ser usados e controlados para seus próprios

fins europeizadores, civilizatórios, modernizadores.59

A modernidade pode ser denominada como um estilo, costume de vida ou organização

social, baseado na manufatura de bens materiais, que emergiu na Europa, se tornando,

57

SOUZA SANTOS, Boaventura de. Op. cit., p. 274. 58

CHAUÍ, Marilena. Filosofia. São Paulo: Ática, 1997, p. 106. 59

DUSSEL, Enrique. Op. cit., pp. 112- 113.

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posteriormente, mais ou menos influente no mundo.60

Como consolidação dessa época,

aproximadamente em meados do século XIX, os estudos científicos de estudiosos ocidentais

tiveram seu apogeu e aumentaram a amplitude da tentativa de dominação de alguns países

ocidentais sobre diversas culturas. Passou-se a entender “que quanto mais completa e

absolutamente o mundo esteja disponível na condição de dominado, quanto mais objetivo o

objeto parece, tanto mais subjetivo, isto é, mais impositivo erige-se o subjectum, tanto mais

irresistível transforma-se a contemplação do mundo e a teoria (Lehre) do mundo em uma teoria

sobre o homem [...].”61

Dentro desse contexto, a racionalidade humana foi supervalorizada, através da

influencia dos ideais iluministas. “Quando analisados percebe-se que os conceitos razão e

iluminismo são complexos, porque a razão apregoada pelo iluminismo não só é instrumento de

dominação tecnológica – inclusive de possível manipulação das pessoas-, mas também órgão

de orientação universal e auto-reflexão das pessoas e intermediário da responsabilidade

humana”. 62

Com fulcro na essência racional do homem, apregoou-se que ele se “desloca” de modo

cartesiano aos objetos de estudo, analisa-o, “recorta-o” e tira suas conclusões lógicas, podendo,

assim construir a “verdade” sobre as coisas. Nessa esteira, se originou, através da filosofia, a

Metafísica, o conhecimento daquilo que é condição e fundamento do que existe e pode ser

conhecido. 63

Toda a determinação da essência do homem que já pressupõe a interpretação do ente, sem a

questão da verdade do ser, e o faz sabendo ou não sabendo, é metafísica. Por isso, mostra-se,

e isto no tocante ao modo como é determinada a essência do homem, o elemento mais próprio

de toda a Metafísica, no facto de ser humanística.[...]. Metafísica representa realmente o ente

em seu ser e pensa assim o ser do ente. 64

Entreteanto, indispensável referir que, nesse período, as ciências modernas

desenvolvidas aparentavam possibilitar o conhecimento pleno e absoluto sobre o assunto que

60

BAUMAN, Zigmunt. Op. cit., p. 12. 61

HEIDEGGER, Martin. A época da imagem do mundo. Ijuí: Unijuí, 2005, p. 210. 62

BIELEFELDT, Heiner. Op. cit., p. 42. 63

BIELEFELDT, Heiner. Op. cit., p. 210. 64

HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o Humanismo. Lisboa: Guimarães editores, 1987, pp. 43- 44.

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investigavam. Logo, “a filosofia é perseguida pelo temor de perder em prestígio e importância se

não for ciência. Não ser ciência é considerado uma deficiência que é identificada como falta de

cientificidade. Na interpretação técnica do pensar, o ser é abandonado como o elemento de

pensar. A “Lógica” é a sanção desta interpretação que começa com a Sofistica e Platão.” 65

Ademais, à medida que as ciências conseguiram objetivar cada vez mais o saber,

aumentou-se o grau de importância dada a elas. Heidegger explica que tal objetivação se

tornou possível através da investigação e a consolidação do instituto da ciência sucedida pela

asseguração da primazia dos procedimentos diante dos entes analisados, a natureza ou a

história.66

Dentro desse entendimento,

O conhecimento enquanto investigação pede contas ao ente a respeito de como e até que

ponto pode ser posto à disposição do representar. A investigação dispõe do ente, quando a seu

respeito pode calcular antecipadamente seu transcurso futuro ou, como passado, por cálculo

posterior. Por assim dizer, a natureza é posta por cálculo antecipado, a História por cálculo

histórico posterior. Natureza e História tornam-se objeto do representar explicativo. Este faz

contas (rechnem auf) com a natureza e conta (rechnet mit) com a História. Apenas o que dessa

forma torna-se objeto é, vale com entitativo. Apenas se chega à ciência enquanto investigação

quando o ser do ente é procurado em tal objetividade.

Essa objetivação do ente efetua-se numa re-presentação (Vorstellne), cuja meta é trazer para

diante de si todo o ente de tal modo que o homem calculador possa estar seguro sobre o ente,

isto é, ter certeza a seu respeito. Chega-se à ciência como investigação apenas exclusivamente

quando a verdade converteu-se em certeza do representar. 67

Nesse andar, os experimentos científicos definiam seus objetos e delimitavam-nos. O

conhecimento então passou a ser visto com fulcro no determinismo,68

pretendo-se ter o controle

sobre ele. Logo, o dogmatismo se destacou, a medida em que mundo era visto como dado, feito,

pensado e transformado e a realidade natural, social, política e cultural, que seria uma simples

moldura para o quadro em que já estamos instalados e existindo.69

Nesse passo, o domínio

europeu fornecia o suporte material para a suposição de que a nova perspectiva sobre o mundo

65

HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o Humanismo. Lisboa: Guimarães editores, 1987, pp. 43- 44. 65

Ibidem, p. 35. 66

HEIDEGGER, Martin. A época da imagem do mundo. Ijuí: Unijuí, 2005, p. 201. 67

Ibidem, p. 204. 68

GAUER, Ruth Chittó M.. Conhecimento e aceleração: mito, verdade e tempo.In: GAUER, Ruth Chittó M (org)..A

qualidade do tempo: para além das aparências históricas. Rio de Janeiro,: Lúmen Júris, 1994, p. 5. 69

CHAUÍ, Marilena. Op. cit., p. 94.

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era fundamentada sobre uma base sólida, a qual tanto proporcionava segurança como oferecia

emancipação do dogma da tradição.70

Detalhadamente, pode-se dizer que em primeiro lugar surgiu a idéia de cientificidade

racionalista (século XVI), a qual sustentava ter a ciência a capacidade de provar a verdade

necessária e universal de seus enunciados e resultados sem deixar qualquer dúvida possível.

Posteriormente, originou-se a concepção empirista (séc. XIX), que entendeu ser a ciência uma

interpretação dos fatos baseada em observações e experimentos que permitem estabelecer

induções e oferecer definições do objeto, suas propriedades e suas leis de funcionamento.71

Essas duas concepções de cientificidade possuíam o mesmo pressuposto, embora se

realizassem de maneiras diferentes. Ambas consideravam que a teoria científica era uma

explicação e uma representação verdadeira da própria realidade tal como está em si mesma. A

ciência era uma espécie de raio X da realidade. A concepção racionalista era hipotético-

dedutiva, isto é definia o objeto e suas leis e disso deduzia propriedades, efeitos posteriores,

previsões. A concepção empirista era hipotético-indutiva isto é, apresentava suposições sobre

o objeto, realizava observações e experimentos e chegava à definição dos fatos, às suas leis,

suas propriedades, seus efeitos posteriores e previsões. 72

Dessa forma, objetivou-se cientificamente a subjetividade e se afastou cada vez mais da

realidade vivida e dos assuntos humanos,73

interferindo-se decisivamente na concepção de

mundo. Por isso a modernidade, originada no final do século XIX e início do século XX no

Ocidente, foi vista como um período de contraposição à ordem tradicional, que implicou numa

progressiva racionalização e diferenciação econômica e administrativa do mundo social

(Weber, Tonnies, Simmel), resultando na formação do Estado capitalista-industrial.74

Em consonância, Thompson ensina que o nascimento do Estado burocrático junto ao

capitalismo acabou por racionalizar a ação e adaptou os comportamentos humanos a critérios

referentes à eficiência e à técnica, ou seja, fez com que os elementos da ação tradicional, como

70

GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade . São Paulo: UNESP, 1991, p. 54. 71

Ibidem, p. 252. 72

Idem. 73

GAUER, Ruth Chittó M.. Conhecimento e aceleração: mito, verdade e tempo.In; GAUER, Ruth Chittó M (org). A

qualidade do tempo: para além das aparências históricas. Rio de Janeiro,: Lúmen Júris, 1994. p. 2. 74

FEATHERSTONE, Mike. Cultura de Consumo e Pós-Modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995, p. 20.

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emoção e espontaneidade, fossem limitados pelas exigências dos cálculos racionais. 75

Isso

ocorre porque

O desenvolvimento do capitalismo industrial em nível da atividade econômica,foi

acompanhado, na esfera da cultura, pela secularização das crenças e práticas pela progressiva

racionalização da vida social.

O declínio da religião e da magia preparam o campo para a emergência de sistemas de crenças

seculares ou “ideologias” que servem para mobilizar a ação política, sem referência a valores

ou seres de outro mundo. A consciência religiosa e mítica da sociedade pré-industrial foi

substituída pela consciência prática enraizada nas coletividades sociais animadas pelos

sistemas seculares de crenças.76

Denota-se que a separação entre a religião e o Estado ocorreu porque o homem tomou

para si o “centro do mundo”, o qual antes era ocupado por um ser superior, Deus.

A idéia da auto-suficiência humana minou o domínio da religião institucionalizada não

prometendo um caminho alternativo para vida eterna, mas chamando a atenção humana para

longe desse ponto; concentrando-se, em vez disso, em tarefas que os seres humanos podem

executar e cujas conseqüências eles podem experimentar enquanto ainda são “seres que

experimentam”- e isso significa aqui, nesta vida.77

Além disso, Heidegger sustenta que ocorreu o desenvolvimento de um fenômeno na

modernidade, a “desdinvinação”, ou seja, o duplo processo em que a imagem do mundo

cristianiza-se à medida que o fundamento do mundo é estipulado como infinito, incondicional,

absoluto e que por outro lado, a cristandade reinterpreta seus cristianismo numa concepção de

mundo, entrando em conformidade com a realidade. Logo, a desdivinização é a

indecidibilidade sobre o Deus e os deuses, possibilitando-se que esse vazio surgido seja

substituído pela pesquisa histórica e psicológica do mito.78

75

THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação e massa.

Petrópolis: Vozes, 1995, p. 108. 76

Ibidem, p. 106. 77

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 213. 78

HEIDEGGER, Martin. A época da imagem do mundo. Ijuí: Unijuí, 2005, p. 192.

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Dessa forma, constata-se que a modernidade ocidental afetou vários aspectos da vida

dos indivíduos, tanto religiosos e filosóficos, como econômicos e sociais. Por isso, ela pode ser

entendida como um “conjunto de idéias e atitudes específicas conotadas na nova visão de

mundo que os ocidentais ajudaram a consolidar como força dominante.”79

Através dessa visão,

os países capitalistas do Ocidente passaram a exercer forte influência sobre algumas culturas, e

por isso, ainda hoje,

as sociedades modernas recentes consomem diversidade: elas não recuam diante da diferença,

elas a reciclam e a vendem no supermercado ou na revista local. O que estão menos

inclinados a suportar é a dificuldade. A transição da modernidade para a modernidade

recente, eu gostaria de argumentar, envolve uma mudança notável: quase uma inversão das

estruturas de tolerância. O mundo moderno é intolerante com a diversidade, que ele tenta

absorver e assimilar, e relativamente tolerante com a dificuldade, dos obstinados e rebeldes

recalcitrantes, cuja reabilitação e reforma ele vê como um desafio.80

Tomando emprestados os conceitos de Lévi-Strauss, pode-se observar que duas

alternativas foram adotadas pela modernidade. Primeiramente, uma alternativa antropofágica:

transformar os estranhos num tecido indistinguível do que já havia, ou seja, tornar todos

semelhantes através de um processo de assimilação, abafando as diferenças culturais ou

lingüísticas, proibindo todas as tradições e lealdades (exceto aquelas à ordem nova),

promovendo e reforçando uma medida para a conformidade. Se isso não se verifica, a

alternativa possível é antropoêmica: “vomitar” os estranhos, bani-los dos limites do mundo

ordeiro, impedindo sua comunicação com o lado de dentro, procedendo assim sua exclusão,

inclusive com a destruição física dos mesmos, se necessário.81

Logo, intenta-se fazer com que

as outras culturas adequem-se a realidade ocidental, caso contrário, se tornam inimigas e

objetos que devem ser mudados e combatidos.

Nessa esteira, analisa-se que o fenômeno da globalização, desenvolvido a partir de

1980,82

foi um dos instrumentos utilizados para reforçar ainda mais o controle dos países mais

desenvolvidos economicamente sobre os outros, tanto em aspectos ideológicos e culturais,

79

BAUMER, Franklin L.O pensamento Europeu Moderno. Vila Nova de Gaia, Edições 70, 1990, vol. I, p. 39. 80

YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Rio de

Janeiro: Revan, 2002, p. 95. 81

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 29. 82

SAUL, Renato.Tradição Sociológica, Terceiro Caminho e Direitos Humanos. In: KEIL, Ivete; ALBUQUERQUE, Paulo.

SOLON, Viola. Op. cit., p. 40.

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como também em outros fatores, como na economia diretamente. De acordo com Arnaud, ao

mesmo tempo em que tal fenômeno se instalou no coração das nações, ele as transcendeu, de

modo que uma atenção limitada às identidades locais torna-se incompleta. 83

A globalização econômica é um processo penetrante que ultrapassa as variáveis econômicas e

afeta todas as sociedades contemporâneas. Em razão da crescente influência dos modernos

meios de comunicação e seu desenvolvimento tecnológico, as populações de diversas e

distantes áreas geográficas se encontram em condições de desenvolver uma íntima interação,

influenciando-se mutuamente. Essa influência transforma costumes sociais, culturais,

políticos e econômicos, bem como as expectativas dos seres humanos, reduzindo as fronteiras

e estreitando o sentido do Estado-nação. 84

Relevante destacar que, de acordo com Souza Santos, é definida como hegemônica a

globalização que tem fulcro neoliberal, de cima para baixo, e é o resultado mais recente do

capitalismo e imperialismo globais. Ela se subdivide em dois processos: o localismo

globalizado, onde o que se globaliza é o vencedor de um luta pela apropriação ou valorização

de recursos, pelo reconhecimento hegemônico de uma dada diferença cultural, racial, sexual,

étnica, religiosa ou regional, ou pela imposição de uma determinada (des) ordem internacional;

e o globalismo localizado, que consiste no impacto específico nas condições locais das práticas

e imperativos transnacionais que emergem dos localismos globalizados. 85

Alguns estudiosos argumentam ter sido inevitável e inexorável o processo de

globalização para a expansão global. No entanto, interessante é o exposto por Carvalho, para

quem tais argumentos são mantrams dos agentes globalizadores, que desejam fazer todos

acreditarem nessa única possibilidade de desenvolvimento. Além disso, o autor afirma que

apesar de as forças econômicas e simbólicas do capitalismo atuarem com uma agenda

rigidamente controlada, e haver certo grau de interdependência e fluxo multilateral de projetos

e recursos, não há nada de espontâneo e involuntário no processo de globalização na medida

em que grupos de instituições financeiras, industriais, militares e políticas capitalistas de

83

ARNAUD, André- Jean. O Direito entre a Modernidade e a Globalização. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 16. 84

CAPPELO, Héctor Manuel. Efeitos da Globalização Econômica sobre a identidade e o Caráter das Sociedades

Complexas. In: MENDES, Candido (coord). Pluralismo cultural, identidade e globalização. Rio de Janeiro: Record, 2001,

p. 115. 85

SANTOS, Boaventura de Souza. Op. cit., pp. 405, 406.

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países ricos e poderosos articulam conscientemente para beneficiarem-se sobre aqueles que

são dominados por eles, com um incrível desequilíbrio geral de poder e controle86

.

Nessa linha, Giddens sustenta que o processo globalizador, além de fragmentar e

coordenar, introduz novas formas de interdependência mundial, nas quais não há “outros”.87

Hodiernamente, é possível presenciar claramente esse modo de operação por parte dos países

ocidentais, pois “cada vez que um país torna-se mais semelhante ao Oriente, passa a ser, então,

um concorrente a ser destruído. O país que mais se diferenciar e se afastar do paradigma de

definições ocidentais terá, conseqüentemente, restrições do mercado e recursos a menos que

para sua economia. Qualquer tentativa de um país sair do circuito econômico e político do

Ocidente provoca ira e retaliações, já que isso põe em risco sua dominação [...].”88

Isso tem

origem no período colonial, pois sobre os povos do Oriente a colonização européia foi mais

fragmentária, e os países dominadores ocidentais tiveram mais dificuldade para se impor como

paradigma cultural. Por isso, a integração mundial dos países orientais sofre forte interdição e

exclusão cultural até os dias de hoje. 89

Além da exclusão de outras culturas, deve-se atentar para outro malefício resultante da

globalização hegemônica; a cultura de consumo, a qual proliferada por todo o mundo é vista

por muitos pensadores, como “alimentadores da capacidade de manipulação ideológica e

controle “sedutor” da população, prevenindo qualquer alternativa “melhor” de organização das

relações sociais”. 90

Ocorre que essa espécie de cultura é utilizada como um instrumento de

uniformização dos seres humanos, onde se objetiva que determinados padrões de beleza, modo

de vestir-se, portar-se e conseqüentemente, pensar e agir, sejam adotados por todos os tipos

sociais. “É como se existisse uma mágica do poder que tende a atrofiar a vigilância crítica dos

indivíduos, desviando as atenções do que realmente deve ser discutido - eu tenho direito a ser e

cumprir seu destino de humanidade autônoma-, sacralizando processos de exclusão social que

achamos cada vez mais normais”.91

86

CARVALHO, José Jorge de. Globalizações, Tradições, Simultaneidade de Presenças. In: MENDES, Candido (coord).Op.

Cit., p. 432. 87

GIDDENS, Anthony. Op. cit., p. 174. 88

ZAOUAL, Hassan. Op. cit., p. 88. 89

SOUZA SANTOS, Boaventura.Op. cit., p. 275. 90

FEATHERSTONE, Mike. Op. cit., p. 31. 91

ALBUQUERQUE. Paulo Peixoto. Trabalho, exclusão social e direitos humanos. In: KEIL, Ivete; ALBUQUERQUE,

Paulo. SOLON, Viola. Op. cit., p. 106.

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Por isso, “Nietzsche acredita ver na era moderna tendência ao desfiguramento e

apequenamento do ser humano como perfeito animal de rebanho”.92

Já, em outras palavras,

Châtelet assevera que na atual sociedade de consumo

[...] nos tornamos seres cibernéticos que pastam mansamente os seres e as mercadorias

ofertadas. Por ela nos distanciamos da ação política autêntica e fascinados nos deleitamos

com a fluidificação absoluta das fronteiras, dos mercados, das informações. O homem médio

sintetiza-se como átomo produtor-consumidor de bens e serviços. Vive com gozo a

volatização do capital, dos serviços, do trabalho e dele mesmo. O homem fluido, o trabalho

flexível, o capital volátil, a democracia tecnopopulista - eis o resultado de nossa fabulosa

engenharia social.93

Nesse diapasão, são oportunos os ensinamentos de Popper ao afirmar que “o

desenvolvimento, a modernização ou a globalização encimam as “totalidades concretas”. Mas

ao mesmo tempo, tais categorias remetem ao jogo de distintas interfaces com a subjetividade,

pelo modo com que interferem na dita realidade objetiva”94

Nesse sentido, quem não se enquadra em tais modelos importados através do processo

globalizador acaba por sofrer determinada opressão por não estar inserido na “normalidade”

que foi estabelecida. Isso se deve a intensa disputa e competitividade, na vida econômica, na

ordem política, na ordem dos territórios, na relação social e afetiva, criando-se subjetividades

muito perversas e eticamente fracassadas no meio social capazes de tudo pela conquista de

poder e dinheiro. Nesse passo, os comportamentos de exclusão e inclusão social são cada vez

mais interiorizados pelos sujeitos, tornando-se inquestionáveis,95

o que vem a interferir

drasticamente na personalidade e auto-estima dos mesmos, alimentando a sensação de que

nada se pode fazer para mudar tal situação.

Por isso,

92

Apud. BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos direitos humanos. São Leopoldo: UNISINOS, 2000, p. 43. 93

P. CHÂTELET, Gilles. Apud. KEIL, Ivete Manetzeder. O paradoxo dos direitos humanos no capitalismo contemporâneo.

VIOLA, Sólon Eduardo Annes. Direitos humanos entre a regulação e a autonomia. In: KEIL, Ivete; ALBUQUERQUE,

Paulo. SOLON, Viola. Op. cit., p .83. 94

POPPER, Karl. Apud: MENDES, Candido. Desenvolvimento, Modernização, Globalização: a Construção

Contemporânea da Subjetividade. In: MENDES, Candido. (cood.). Pluralismo Cultural, Identidade e Globalização. Rio de

Janeiro: Record, 2001, p. 30. 95

ZAOUAL, Hassan. Globalização e diversidade cultural. São Paulo: Cortez, 2003, p. 91.

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A globalização tornou-se uma “máquina incontrolável e excludente” já que é governada por

mecanismos econômicos culturalmente anônimos. Todos sabemos que a economia não tem

memória . Ela é antípoda à memória histórica e à ecológica. Para se instituir como ciência e

como prática se distancia da ética das culturas. O projeto de extermínio da diversidade

culturalesa no centro dos postulados fundadores. Inspirando-se ao darwinismo, apesar de

recentes descobertas sobre o caráter cooperativo das espécies animais e vegetais em biologia,

a economia fica apegada a concorrência vital entre homens, as organizações e as nações. O

desabamento dos sistemas baseados no marxismo só contribui para fortalecer a idéia de um

modelo único em escala planetária.96

Desse modo, no caso específico dos direitos humanos, não ocorre diferente, pois a

prevalência de um modelo único de interpretação dos mesmos também tenta ser imposta. É

visível a desconsideração por parte de pensadores e entidades do Ocidente no tocante a

peculiares entendimentos e aplicações dos direitos humanos em outras culturas, como também

seu objetivo em adaptar os cidadãos daquelas a sua forma de compreender tais direitos. Nesse

aspecto, se enquadra perfeitamente a reação dos ocidentais perante o tratamento concedido às

mulheres da religião islâmica, ao afirmar o desrespeito dos direitos humanos dessas, sem

analisar sua realidade cultural.

Primeiramente, percebe-se que a própria definição ocidental de direitos humanos -

poderes verdadeiramente legítimos, que estariam acima do direito positivo, como um direito

superior- facilita a idéia de um “novo poder” a ser utilizado pelos países que almejam aumentar

seu controle sobre os demais97

. Outrossim,

A marca ocidental, ou melhor, a marca ocidental liberal do discurso dominante dos direitos

humanos pode ser facilmente identificada na Declaração Universal de 1948, elaborada sem a

participação da maioria dos povos do mundo; no reconhecimento exclusivo do direitos

individuais, com a única excepção do direito colectivo à autodeterminação, o qual no entanto,

foi restringido aos povos subjugados pelo colonialismo europeu; na prioridade concedia aos

direitos cívicos e políticos sobre os direitos econômicos, sociais e culturais; e no

reconhecimento de direito de propriedade como o primeiro, e durante muitos anos, o único

direito econômico.

Se observarmos a história dos direitos humanos no período imediatamente a seguir à Segunda

Grande Guerra, não é difícil concluir que as políticas de direitos humanos estiveram em geral

ao serviço dos interesses econômicos e geopolíticos dos Estados capitalistas hegemónicos.98

96

ZAOUAL, Hassan. Op. cit., pp. 97- 98. 97

KEIL, Ivete Manetzeder. O paradoxo dos direitos humanos no capitalismo contemporâneo. VIOLA, Sólon Eduardo

Annes. Direitos humanos entre a regulação e a autonomia. In: KEIL, Ivete; ALBUQUERQUE, Paulo. SOLON, Viola. Op.

cit., p. 92. 98

SOUZA SANTOS, Boaventura de. Op. cit., p. 411.

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Dessa forma, os direitos humanos que deveriam ser instrumento para a promoção da

igualdade e da luta para o bem estar dos cidadãos, acaba por ter efeito contrário, “alimentam a

mão invisível do mercado mundial, produzindo um imaginário de paz universal” 99

e, assim,

são utilizados como artifício para aumentar o poder daqueles que o detém e, conseqüentemente,

maximizar as desigualdades advindas do capitalismo em nossa realidade atual. Nesse

raciocínio, torna-se evidente a ambigüidade dos direitos humanos, pois surgem da luta contra

as injustiças na sociedade moderna, mas, ao mesmo tempo são ethos políticos e jurídicos da

própria modernidade. 100

Em consonância, Keil afirma que, com a consolidação do processo de modernização

capitalista da economia e da sociedade, com base na produtividade, competitividade e

lucratividade extrema, os modernos direitos humanos povoam os discursos políticos

midiáticos, sociológicos e tantos outros, como se por se estarem todos fatigados de injustiças e

sofrimento, quisessem conjurar a vergonha ou responder ao intolerável. Contudo, isso não

deixa de ser apenas uma miragem neoliberal, pois os direitos humanos são propagados como

valores e praticas éticas indiscutíveis, mas não são efetivados.101

Ainda, como fator agravante,

99

KEIL, Ivete Manetzeder. O paradoxo dos direitos humanos no capitalismo contemporâneo. VIOLA, Sólon Eduardo

Annes. Direitos humanos entre a regulação e a autonomia. In: KEIL, Ivete; ALBUQUERQUE, Paulo. SOLON, Viola. Op.

cit , p. 83. 100

BIELEFELDT, Heiner. Op. Cit., p. 41. 101

KEIL, Ivete Manetzeder. O paradoxo dos direitos humanos no capitalismo contemporâneo. VIOLA, Sólon Eduardo

Annes. Direitos humanos entre a regulação e a autonomia. In: KEIL, Ivete; ALBUQUERQUE, Paulo. SOLON, Viola. Op.

cit., p.82.

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os direitos humanos institucionalizados (declarações, pactos e tratados) não problematizam

os fundamentos do capitalismo nem as produções capitalistas, e muito menos suas nefastas

conseqüências. Falar nisso nos suscita a pergunta que não é de hoje, certamente, mas que

ganho uma especial urgência diante da problemática da conjuntura de desigualdades

exclusões que desafia as agenda clássica da universalização dos direitos humanos, isto é: onde

estão as reais ações das instituições que dizem promover os direitos humanos contra essa

economia predadora e selvagem que leva o poder público a e misturar (confundindo-se) com

o capital transnacional, a ponto de financiá-lo em detrimento das igualdades econômicas e

sociais? Ora, os direitos humanos sempre agem a favor do capitalismo, legitimando-o,

sobretudo, quando não se opõe de fato às violações dos direitos econômicos, políticos e

sociais.

Na nova ordem mundial, as subjetividades que estão sendo produzidas tendem ao narcisismo

e ao individualismo exacerbados. A rigor, não há lugar para um modo solitário, fraterno e

coletivo de vida. A nova ordem mundial, fecundada pelo capitalismo pós-industrial- com

muito mais tenacidade do que desejava o capitalismo industrial e a ordem por ele produzida-,

parece querer bloquear qualquer política de liberação. Evidentemente, os direitos humanos

enquanto política de sustentação e legitimação materializam a unidade primordial que

possibilita essa relação entre indivíduos (enquanto sociedade civil) e o mercado, e tornam

possível esse bloqueio. 102

.

Enfim, a tentativa de ocidentalização do mundo é presenciada desde o período colonial,

consagrada na modernidade e presente em nosso cotidiano até os dias de hoje. O interesse dos

países desenvolvidos do Ocidente em dominar outros povos se alastra cada vez mais,

impulsionado pela ambição de maior crescimento econômico e acumulação de riquezas. Nesse

sentido, a globalização é processada em consonância com essa proposta, estimulando a

abrangência do sistema capitalista e a dissipação dos valores ocidentais para as demais regiões

e culturas. Logo, a visão sobre os direitos humanos, preceitos básicos de proteção aos cidadãos,

também tenta ser imposta como maneira de ampliação de poderes dos países dominantes, como

ocorre no caso das mulheres muçulmanas. Porém, indispensável referir que os paradigmas

modernos não se mantêm prevalentes e inquestionáveis até a atualidade, e nesse passo não só a

modernidade entra em crise como também o forte controle exercido pelo ocidentais sobre os

outros povos.

102

KEIL, Ivete Manetzeder.Op. cit. 98-99.

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3. A crise do Universalismo Ocidental e a Pós- Modernidade

Com o passar dos tempos e percepção dos intensos malefícios e danos ocasionados

pelo intuito de influência ocidental sobre diversas culturas, novas formas de pensamento foram

se desenvolvendo, como também aumentou o número de críticos aos postulados da

modernidade. Entre os problemas identificados nela, aponta-se que ela foi construída a partir de

um “universalismo” que era apenas um disfarce de monocultura sob os traços de um simulacro

de humanidade incrivelmente branca e européia e estruturada a partir de um espaço público

“igualitário” que na verdade fechava as portas a numerosos grupos sociais. Também, diz-se que

ela foi fundamentada sobre uma noção de indivíduo abstrata e redutora submissa à experiência

real da diversidade. Além disso, a modernidade enfrenta reivindicações de reconhecimento

radicais, sofrendo tensões pelas pressões exercidas nos limites do espaço público, sendo, por

conseguinte, fragilizada pelas mudanças ocorridas no coração desse mesmo espaço.103

Nesse âmbito, desenvolveu-se uma desconfiança sobre o que realmente se sabe sobre o

mundo. As “verdades” universais passaram a perder sua credibilidade, entendendo-se, portanto,

que podem ser meras perspectivas ou verdades parciais. Algumas ciências entraram em crise

quando se constatou que suas conclusões não eram absolutas. Nessa esteira, percebeu-se que “

a produção do conhecimento, privado da verdade universal, somente pode ser apoiada

mediante uma postura de conhecimento provisório. À idealizada objetividade do conhecimento

científico sobrepõe o pluralismo de verdades, à necessidade de regras do método junta-se a

necessidade de uma mediação jurídico-política.”104

Marcando esse contexto e

partindo da premissa de que todo saber é datado, Einstein distingue uma teoria verdadeira de

uma falsa a partir do seu prazo de validade: maior tempo para a primeira, tal como décadas ou

anos; já para a desmistificação da segunda batam apenas dias ou instantes.

Nesse ínterim, somente há uma verdade científica até que outra venha a se descoberta para

contradizer a anterior. Caso contrário, a vida se resumiria em reproduzir o acontecimento

científico dos antepassados, assim como não haveria motivo para a ciência buscar novas

fronteiras.

Em síntese, a ciência estrutura-se a partir do princípio da incerteza. E por causa dele não

haverá apenas uma história do universo contendo vida inteligente.105

103

SEMPRINI, Andréa. Multiculturalismo. Bauru: EDUSC, 1999, p.160. 104

GAUER, Ruth Chittó M.. Conhecimento e aceleração: mito, verdade e tempo.In: GAUER, Ruth Chittó M (org)..Op. cit.,

p. 6. 105

LOPES JÚNIOR. Aury. ( Des)Velando o risco e o tempo no Processo Penal. In: In: GAUER, Ruth Chittó M (org). Op.

cit., p. 149.

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Nesse passo, a incerteza tornou-se constantemente presente no cotidiano das pessoas e

Bauman acrescenta algumas razões: primeiramente, deve-se ao enfraquecimento e

desintegração das redes de segurança tecidas pessoalmente (família e vizinhança) como

também pelas mensagens indeterminadas e maleáveis do mundo que se está passando às

pessoas de acordo com os interesses predominantes. Resulta também da nova desordem

existente no mundo, tendo em vista que as divisões de blocos econômicos bem definidas no

passado não existem mais, mas sim em torno de vinte países, aflitos e incertos de si próprio que

enfrentam o resto do mundo, que não mais os inclina a venerá-los. Ademais, a incerteza

provém da desregulamentação universal, ou seja, da desatada liberdade concedida ao capital e

às finanças, como também o repúdio a todas as razões não econômicas que acabam por levar ao

desvio do projeto da comunidade como defensora do direito universal e à vida decente e

dignificada. 106

Nesse sentido, deve-se referir ainda que o controle de alguns países sobre outros,

através da globalização, “ não só focalizou o olhar do mundo na reestruturação econômica

global e seus pressupostos ideológicos, como também trouxe à luz uma série de conflitos

aparentemente novos: o despertar de nacionalismos religiosos e étnicos e a determinação de

redesenhar fronteiras geopolíticas como resposta. 107

Diante de tudo isso, questiona-se as vantagens advindas do desenvolvimento

ocasionado pela modernidade e se ela “ trouxe incremento e humanismo, pois esse progresso

científico e tecnológico propiciou novas descobertas e gerou uma diversidade nas formas do

viver humano, mas criou também dinâmica própria, que dificilmente ainda pode ser dirigida

pela política e, por isso mesmo, transformou-se fonte de temores e preocupações.108

Destarte, o poderio ocidental começa a se desestabilizar e os problemas gerados por ele

se destacam, cada vez mais, entre as pessoas. Inicialmente, percebe-se os grandes prejuízos

ocasionados pela globalização sendo que, por exemplo, o simples “fato de transferir os

modelos econômicos e as instituições, sem a menor consideração das particularidades locais,

106

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, pp.32-36. 107

YÚDICE. George. A conveniência da cultura: Usos da cultura na era global. Belo Horizonte: UFMG, 2006, p.124. 108 BIELEFELDT, Heiner. Op. cit., p. 40.

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leva inelutavelmente ao fracasso, apesar da ajuda e da transferência de fábricas prontas para

funcionar.”109

Constata-se que os benefícios resultantes da inter-relação global entre países acabam

sendo irrisórios diante da desconsideração das particularidades de cada um deles e da opressão

sofrida por aqueles de menor capacidade econômica. Ainda, vê-se que o “ocidente não pode

propor uma “cultura” da técnica e da industrialização que reencante o mundo, conferindo-lhe

sentido. Também não pode cumprir suas promessas de abundância. Esse duplo fracasso

alimenta a resistência “cultural” ao Ocidente. O rolo compressor ocidental aparentemente

nivela tudo, mas o relevo das culturas esmagadas se reduz a pó; ele está apenas enterrado num

solo elástico.”110

Diante disso, presencia-se um paradoxo na modernidade, pois, conforme Souza Santos

salienta, tanto os “outros” como a “exterioridade colonial” foram elementos constitutivos

originários da modernidade européia, no entanto, a própria exclusão desses “outros” da

dialética regulação/emancipação, confinada somente às sociedades européias, co-determinou o

fracasso daquela.111

Nesse diapasão, pode-se afirmar que

O fracasso da ocidentalização é também o fracasso de não haver outra alternativa ao

crescimento material a ser proposto no plano do imaginário. O Ocidente encanta o mundo

apenas pela técnica e o bem estar. Isto não é pouco, mas não basta. A necessidade de

identidade não pode se nutrir apenas de referências quantitativas que ocupam o lugar de

sistemas de sentidos. A crise do Ocidente nem é a destruição da máquina técnica, mais sólida

que nunca, nem o esgotamento de seus efeitos sempre devastadores. A crise do Ocidente antes

tem a ver com a destruição do social capaz de cuidar das condições de bom funcionamento da

máquina. O fim da Europa conquistadora é, apesar de tudo, um sinal crepuscular. Mesmo que

surjam outros deuses em conseqüência do declínio das divindades antigas, o Valhalla como

um todo está ameaçado de ruir. (110)

109

ZAOUAUL, Hassan. Globalização e diversidade cultural. São Paulo: Cortez, 2003, p. 87. 110

LATOUCHE, Serge. A ocidentalização do mundo: ensaio sobre a significação, o alcance e os limites da uniformização

planetária. Petrópolis: Vozes, 1994. pp. 108- 109. 111

SOUZA SANTOS, Boaventura de.Op. cit., p. 259.

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A princípio, sustenta-se que a primeira Guerra Mundial foi o marco em que se percebeu

tremer os alicereces da vida e do pensamento europeu, afetando tanto psiquiatras quanto

teólogos e dando ensejo a novos movimentos da arte, como dadaísmo e o surrealismo. Freud

escreveu sobre a desilusão provocada pela guerra e sobre a mudança de atitude para com a

morte, que se impôs a todos, incluindo ele próprio, eis que revelou a natureza primitiva do

homem.112

A guerra era o momento existencial em que o homem se debatia com a realidade, fértil

em morte, violência e dor. Junger via os anos de 1914 a 1918 como uma linha divisória muito

clara entre duas culturas, que marcava uma ruptura com a cultura brilhante, leve e super-

intelectualizada da Alemanha imperial e anunciava uma nova geração, com uma nova

ideologia.113

Tal tendência leva o sistema a sua queda, devido às leis econômicas que o movem e, por

natureza, geram concorrência vital entre homens, desigualdades, degradações dos

ecossistemas e mercantilização do mundo. Assim, essa uniformização em torno dos únicos

critérios econômicos desencadeia a destruição da diversidade estabilizadora do nosso mundo.

No entanto, o mesmo movimento que se pode denominar de ocidentalização do mundo,

entendida como projeto de domínio e acumulação, a diversidade de situações da “gente de

baixo” (gens d’em bas), de dentro e de fora do sistema, ressurge e resiste ao aniquilamento.

Tais choques desnorteiam o paradigma econômico e geram, em profundidade, uma grande

variedade cuja complexidade só pode ser interpretada a partir de um novo olhar, o do

paradigma, para pensar o diverso, o múltiplo o movente, o contraditório. Com a ajuda das

crises internas de modelo, impões-se a necessidade de uma civilização baseada na

diversidade.114

Logo, passa-se a viver “num período de mudanças dramáticas; estruturas que se

mantiveram durante gerações estão a ser deitadas abaixo. Em mutação estão também as noções

do eu e do outro, de classe de etnia e de nação, embora a natureza e profundidade destas

mutações seja ainda objecto de debate. Está a formar-se a noção de que podemos estar a entrar

numa fase distinta da história humana, tentativamente chamada “pós-moderna”.115

112

BAUMER, Franklin. O Pensamento Europeu Moderno, Volume II, Séculos XIX e XX, Vila Nova de Gaia: Edições 70,

1990, p. 74. 113

Idem. 114

ZAOUAL, Hassan. Op. cit., pp .60, 61. 115

AHMED, Akbar S. Pós-Modernismo e Islão: situação presente e futura. Lisboa: Crença e razão, 1992, p. 19.

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43

A Pós-modernidade pode ser definida como o questionamento ou a perda da fé na

modernidade, através de um espírito de pluralismo e um elevado ceticismo relativamente às

ortodoxias tradicionais. É a rejeição de uma visão do mundo como totalidade universal e da

expectativa de soluções finais e respostas completas. 116

Ademais, analisando a terminologia

“Pós-modernidade” denota-se que

[...] afora o sentido geral de estar vivendo um período de nítida disparidade do passado, o

termo com freqüência tem um ou mais dos seguintes significados: descobrimos que nada pode

ser conhecido com alguma certeza, desde que todos os “fundamentos” preexistentes da

epistemologia se revelaram sem credibilidade; que a “história” é destituída da teleologia e

consequentemente nenhuma versão de “progresso” pode ser plausivelmente defendida; e que

uma nova agenda social e política surgiu com a crescente proeminência de preocupações

ecológicas e talvez de novos movimentos sociais em geral.117

Interessante é que com a constante insegurança e dúvidas presentes,

[...] ao lado do colapso da oposição entre a realidade e sua simulação, entre a verdade e suas

representações, vêm o anuviamento e a diluição da diferença entre normal e o anormal, o

esperável e o inesperado, o comum e o bizarro, o domesticado e o selvagem- o familiar e o

estranho, “nós” e os estranhos. Os estranhos já não são autoritariamente pré-selecionados,

definidos e separados,como costumavam ser nos tempos dos coerentes e duráveis programas

de constituição da ordem administrados pelo estado. Agora , ele são tão instáveis e protéicos

como a própria identidade alguém, e tão pobremente baseados, tão erráticos e voláteis.

L’ipséité, essa diferença que coloca o eu separado do não-eu e “nós” separados d “eles”, já

não é apresentada pela forma pré-ordenada do mundo, nem por um comando vindo das

alturas. 118

Nesse sentido, Bauman sustenta que a diferença existente entre as modalidades de

“estranhos” modernos e pós-modernos é que, enquanto os primeiros tinham a marca do gado da

aniquilação e serviam como divisórias para a progressão da ordem a ser constituída, os

segundos servem para marcar a fronteira da progressão que deve ser constituída e, por

116

AHMED, Akbar S. Op. cit. p. 26. 117

GIDDENS, Anthony. Op. Cit., p. 52. 118

GIDDENS, Anthony. Op. Cit., p. 37.

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consenso unânime ou resignação, estão aqui para ficar por serem úteis na sua qualidade de

estranhos numa interminável busca de si mesmos. 119

Logo, a diferença firma sua utilidade positiva na construção das identidades que se

mostram passíveis de mudanças quando em contato com aquela. “O Ocidente descobrira a que

ponto podia chegar o ódio à diferença e a busca pela pureza, entendida como homogeneidade

absoluta. Em seguida, o respeito e a valorização da diferença tornaram-se dimensões

estruturadoras da cultura política, como antídoto contra a eventualidade de um retorno a

barbárie”.120

Destaca-se, dessa forma, a importância da existência e do reconhecimento do

Outro:

[...] o “Outro” é por nós compreendido como aquele que nunca antes esteve presente ao nosso

encontro, ou seja, aquele que inelutavelmente rompe meu solipsismo, na medida em que

chega de fora, foram do âmbito dilatado do meu poder intelectual e de sua tendência de

considerá-lo nada mais do que uma representação lógica do meu intelecto.[...] O que o outro

representa originalmente frente a mim é um problema não apenas filosófico, mas um

acontecimento incisivamente traumático; eu não posso de forma nenhuma, determinar aquilo

que o outro é enquanto tal; o único enunciado que posso ousar é determinado justamente pelo

Outro; que ele é de outro modo- outramente - que eu, ou seja, que entre nós uma verdadeira e

irredutível diferença tem lugar.121

(grifo do autor)

Denota-se que o contato com o Outro também acaba influenciando decisivamente o

entendimento das pessoas sobre outras culturas pois “quando dois ou mais grupos humanos

entram em contato direto e contínuo, geralmente ocorrem mudanças culturais de uma sociedade

para outra. Alguns traços são rejeitados e outros são aceitos, incorporando-se, frequentemente

com alterações significativas, à cultura resultante.”122

A cultura, que passou por várias definições ao longo dos tempos tem seu significado

baseado em vários elementos: idéias, crenças, valores, normas, atitudes, padrões de conduta,

abstração do comportamento, instituições, técnicas e artefatos.123

Por outro lado, “Constitui o

campo simultaneamente simbólico e material das atividades humanas,124

ou seja, “[...] a maneira

119

BAUMAN, Zygmunt. Op. cit., p. 43. 120

SEMPRINI, Andréa. Op. cit., p. 158 121

SOUZA, Ricardo Timm de. A racionalidade ética como fundamento de uma sociedade viável: reflexões sobre suas

condições de possibilidade desde a crítica filosófica o fenômeno da “corrupção”. In; GAUER, Op. cit., pp. 120,121. 122

OLIVEIRA, Pérsio Santos de. Introdução à Sociologia. São Paulo: Ática, 1995, p. 97. 123

LAKATOS, Eva Maria. Op, cit.,p. 137. 124

TOMAZI, Nelson Dácio. Iniciação à Sociologia. São Paulo: Atual, 1993, p. 164.

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de viver total de um grupo, sociedade, país ou pessoas [...], um código através do qual as pessoas

de um dado grupo pensam, classificam estudam e modificam o mundo e a si mesmas.”125

Nessa linha, é possível visualizar como os aspectos culturais formam e integram a

identidade de cada pessoa e determinam seus modos de vida.

Com isto, passamos já do plano epistemológico para um plano claramente antropológico,

pois, quando se trata de pensar a realização do homem como ser de cultura na abertura e no

acolhimento que faz às outras culturas e na sua própria transformação implicada nessa atitude

dialógica, o que está em questão já não é apenas a noção de verdade, de conhecimento e de

saber, mas a concepção de natureza humana: o caráter dinâmico do próprio homem que

indissociável do carácter dinâmico da cultura. Ou seja, é a questão da identidade da natureza

(e também da sua unidade) que aqui se joga na questão da identidade (e também da respectiva

unidade) da ou das culturas.126

Nesse diapasão, tanto o reconhecimento da cultura como elemento definidor e

transformador do modo de ser e viver dos seres humanos, como o entendimento que ela

apresenta diferentes caracteres dependendo do local do mundo, possibilitam a compreensão dos

motivos que fazem muitas pessoas a aceitarem certas condições de vida, como é o caso das

mulheres muçulmanas que estão inseridas num sistema cultural milenar e estão adaptadas a ele.

Ademais, isso se mostra um grande salto para a aceitação e o respeito do “Outro”.

Por isso,

A idéia da diferença não cessou de conquistar terreno até chegar a ser um valor em si, um

ponto “marcante” da cultura ocidental.

Isto é particularmente evidente no universo do conhecimento. A filosofia, as ciências da

linguagem, a biologia, a ecologia colocaram o conceito de diferença no centro de suas

epistemologias, demonstraram que nem a evolução humana, nem o pensamento, nem o

sentido são concebíveis sem a diferença, a mistura, os efeitos combinatórios que só a

diferença torna possíveis. David Goldberg identifica no sucesso da idéia de diferença um dos

fatores de emergência do multiculturalismo.127

Ressalta-se que o multiculturalismo é uma forma de pensamento que reconhece a

existência de diferentes culturas num mesmo espaço e se situa no entendimento das relações

125

DAMATTA, Roberto. Explorações: Ensaios de Sociologia Interpretativa. Rio de Janeiro: Racco, 1986, p. 123. 126

ANDRÉ, João Maria, Interculturalidade, Comunicação e Educação para a Diferença. In: RIBEIRO, Maria Manuela

Tavares. Identidade Européia e Multiculturalismo. Coimbra: Quarteto, 2002, p. 264. 127

SEMPRINI, Andréa. Op. cit., p. 158.

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produzidas por essa diferença. A partir disso, ele eleva a alteridade a um paradigma de

organização social, pois agencia formas de regular referidas relações, colocando em cheque as

identidades tradicionais homogeneizadoras.128

Desse modo, “o multiculturalismo enquanto

movimento de idéias resulta de um tipo de consciência coletiva, para a qual as orientações do

agir humano se oporiam a toda forma de “centrismos” culturais, ou seja, de etnocentrismos. Em

outros termos, seu ponto de partida é a pluralidade de experiências culturais, que moldam as

interações sociais por inteiro”.129

Logo,

Deste ponto de vista, o multiculturalismo pode ser considerado como revelador da profunda

crise – de legitimidade, de eficácia, de perspectiva- que sacode o paradigma políticos nas

sociedades ocidentais.

Frente a uma modificação do espaço público que ele não consegue compreender e muito

menos gerir, frente à crise da utopia universalista, frente à transformação dos cidadãos em

indivíduos, frente à “tomada de poder” da diferença sobre a igualdade, frente enfim ao

desenvolvimento, ou ao revigoramento de outros paradigmas- econômico, cultural, étnico,

nacionalista, religioso-, o político não consegue mais legitimar seu papel e justificar sua

ambição de exercer uma função dominante no espaço social. 130

Todavia, deve-se atentar para algumas questões críticas concernentes ao

multiculturalismo. Averigua-se que suas perspectivas

[...] descrevem com uma freqüência surpreendente o relacionamento entre identidades

coletivas (e individuais) supostamente diferentes. Quer dizer, oferece, sugestões sobre modos

de convivência possíveis na mesma sociedade entre pessoas diferentes, cores, raças, religiões,

etnias ou orientação sexual. Mas tomam como pressuposto que essas etiquetas definem os

grupos sociais significativos, que os membros desses grupos aceitam a preponderância de uma

única etiqueta para as suas identidades e, ainda, que essas identidades estão relativamente

consolidadas. As perspectivas multiculturalistas simplistas têm em comum com as

perspectivas monoculturalistas a idéia de que o mundo pode ser claramente dividido em

categorias nas quais os indivíduos se assemelham bastante, em virtude dos traços de

identidade que compartilham, e de que entre as diferentes categorias há diferenças

consistentes e significativas. A especificidade dos multiculturalistas, então, estaria

simplesmente na afirmação de que pessoas de culturas diferentes podem viver juntas em

harmonia, e para mútuo benefício, em um mesmo país. Essa posição oferece muito pouco

lastro para desafiar ou mesmo analisar criticamente a idéia subjacente da existência de

culturas diferentes e internamente homogêneas, que se espalhou de modo impressionante e

pernicioso ao longo da era moderna.131

128

SILVA, Mozart. Linhares da. Educação Intercultural, narrativas identitárias e alteridade: problematizações. In: GAUER,

Ruth (org). Op. cit., p. 283. 129

GONÇALVES, Luiz Alberto Oliveira. O jogo das diferenças: o multiculturalismo e seus contextos. Belo

Horizonte : Autêntica, 2004, p. 14. 130

SEMPRINI, Andréa. Op. cit., p. 159. 131

CALHOUN, Craig. Multiculturalismo e Nacionalismo, ou por que Sentir-se em Casa não substitui o Espaço Público. IN:

MENDES, Op. cit., pp. 204- 205.

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Em consonância, Silva aduz que a ênfase à diversidade cultural dada pelo

multiculturalismo pode levar a percepção da cultura como algo fixo, fechado, substancializado,

fazendo com que se enxergue a irredutibilidade da cultura através de uma diferença absoluta

que propicie um relativismo radical que pode impedir a intertextualidades interculturais.132

Se a realidade e a verdade são sempre relativas a um contexto, a um grupo social ou sistema de

poder, qualquer critério universal e indiscutível sobre o qual basear um conhecimento objetivo

do mundo torna-se teoricamente impossível. [...] Tornaria impossível o estabelecimento de

qualquer ponto de referência, de qualquer norma independente das partes envolvidas.

Rigorosamente falando, isso tornaria impossível qualquer forma de troca de socialização. 133

Ainda, o referido autor assevera que, ao conceber a cultura como algo essencialista, o

multiculturalismo preoselitiza a convivência e não permite à crítica a pureza identitária, cuja

lógica discursiva segue a tradição dos Estados-nação e possui corolários binários como

“igualdade x diferença” ou “Eu x outro” .134

Por fim, afirma que

Uma concepção estática das culturas em sociedades multiculturais evidentemente não permite

a reflexão acerca da interculturalidade, como fenômeno que produz o que Bhabha chama de

terceiro espaço, não permite observar as zonas intervalares, onde novos significantes são

produzidos, abrindo as possibilidades criadoras típicas de processos híbridos. Para tanto, é

necessário romper com as concepções binárias e monolíticas da cultura. Deslocar a análise

dos signos para os significantes o que significa dizer que a cultura é pensada em sua dinâmica,

em sua abertura.135

Em suma, a crise da ocidentalização interligada ao advento da pós-modernidade

mostram-se um marco de modificações no mundo e na relação inter-humanos. Paradigmas são

quebrados e a diversidade nos modos de ser e viver passa a ser interpretada por um outro viés:

a valorização do “Outro”. Ocorre, no entanto, que a teoria multiculturalista, muito usada para a

defesa da diferença cultural, sofre grandes críticas, com o apontamento de algumas falhas em

132

SILVA, Mozart. Op. cit., pp. 283-284. 133

SEMPRINI, Andréa. Op. cit., pp. 166- 167. 134

SILVA, Mozart. Op. cit., p. 285. 135

Idem.

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seus postulados. Destarte, verifica-se, ainda, a existência de outras idéias teóricas capazes de

abordar o tema do respeito a diferença e que cabem ser analisadas para uma possível conclusão

sobre o tema, como também especificamente, no tocante às mulheres islâmicas e suas formas

de vida.

4. A hermenêutica intercultural dos Direitos Humanos e as mulheres muçulmanas

Conforme o abordado nos outros capítulos, pode-se verificar que, ao representar

premissas básicas para a consolidação da vida social, os direitos humanos acompanharam a

evolução do homem e o entendimento desse sobre o “Outro”. Com o tempo, verificou-se que

tais direitos sofreram e ainda sofrem mutações em suas interpretações conforme o período

histórico, a sociedade e a cultura em que estão sendo analisados.

Diante disso, compreende-se o peculiar tratamento concedido à muitas mulheres

islâmicas e a forma como são considerados seus direitos humanos. Logo, aceita-se a assertiva

de que o Ocidente não pode interferir incisivamente em tais questões tentando determinar

modificações culturais na realidade daquelas, tendo em vista que são inaptos para dizer o que

se deve fazer ou como se deve pensar em um âmbito cultural no qual não estão inseridos.

No entanto, apesar de surgirem propostas multiculturais abrindo horizontes para o

respeito às diversas culturas, essas propostas não se mostram suficientes para uma resposta

plausível às diferentes interpretações dos direitos humanos e para sua aplicação coerente,

independentemente do lugar de análise, pois ainda mantém divisões classificatórias e binárias

em seus postulados capazes de gerar discriminações, como no caso das mulheres que são

diferenciadas por sexo e gênero.

Nesse passo, torna-se necessário abordar uma nova concepção de relações entre

culturas: a interculturalidade. “Se no multiculturalismo, como o colocamos, as culturas na sua

essencialidade apenas revelavam o encontro das diferenças, na interculturalidade, baseada na

dinâmica da hybris, não é apenas o encontro de culturas que é mensurado, mas a invenção da

cultura, o que remete a criações temporais novas, que não se remetem a uma origem ou

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genealogia pois resultado do hibridismo, de tradições diferentes"136

Em outros palavras, as

diferenças são reconhecidas, sem manterem-se estanques e são passíveis de mútua

interferência, onde a “hybris, ou melhor o hibridismo permite vislumbrar não um terceiro

momento (síntese) da relação binária entre duas culturas ou mais, ao contrário, o hibridismo ao

negar o essencialismo permite pensar a “hibridação” como terceiro espaço, onde outras

posições pode emergir.”137

Tal fenômeno é possível porque

[...] todas as tradições culturais hoje estão em contato mais ou menos direto com tradições

alternativas. A segregação só é uma possibilidade no curto prazo, como já vimos, mas não é

uma opção viável em la longue durée. Por conseguinte, as tradições são como áreas de

construção, sempre sendo construídas e reconstruídas, quer os indivíduos e os grupos que

fazem parte destas tradições se dêem ou não conta disto.138

Nesse sentido, entende-se que é difícil defender o purismo das culturas e acreditar que

essas não foram ou serão influenciadas por outras, pois

toda a cultura, nesses termos é mestiça, a estabilização não deixa de constituir um recorte

político, a definir um problemático (e ficcional) carácter nacional. O diferencial que hoje se

verifica, quando se comparam as configurações históricas do passado com as da atualidade, é

mais de ordem quantitativa, decorrente da intensificação dos contatos humanos. São contatos

múltiplos que reagem entre si, trazendo num ritmo nunca visto novos amalgamentos capazes

de dar rapidamente início a interações produtivas, que podem vir a e distanciar muitas vezes

das situações de origem que constituíram suas fontes primárias. Dessa forma, os modelos

biológicos e suas previsibilidades sistêmicas acabam por explicar muito pouco a

complexidade da dinâmica dos grupos humanos e suas culturas. 139

Conforme tal entendimento, a universalização da cultura, pretendida pelo Ocidente, se

mostra utópica à medida que nem mesmo ela é construída individualmente e integrada por

elementos totalmente particulares. Na verdade, “as culturas devem aprender umas com as

outras, e a orgulhosa cultura ocidental, que se colocou como cultura-mestra, deve-se tornar

136

SILVA, Mozart Linhares. Op. cit., p.287. 137

Ibidem, p. 286. 138

BURKE. Peter. Hibridismo cultural. São Leopoldo: Unisinos, 2003, p. 102. 139

ABDALA JÚNIOR, Benjamin. Fronteiras múltiplas, identidades plurais: um ensaio sobre mestiçagem e hibridismo

cultural. São Paulo: SENAC, 2002, p. 21.

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também uma cultura aprendiz.”140

Nesse sentido, a hierarquia não se estabelece pois todas as

sociedades culturais têm o mesmo valor e interagem mutuamente.

Interessante é que

A abertura da cultura ocidental pode parecer para alguns ao mesmo tempo não-compreensiva

e incompreensível. Mas a racionalidade aberta e autocrítica decorrente da cultura européia

permite a compreensão e a integração do que outras culturas desenvolveram e que ela atrofiou

. O Ocidente deve também incorporar virtudes das outras culturas, a fim de corrigir o

ativismo, o pragmatismo, o “quantitativismo”, o consumismo desenfreados, o pragmatismo, o

“quantitativismo”, o consumismo desenfreados, desencadeados dentro e fora dele. Mas deve

também salvaguardar, regenerar e propagar o melhor de sua cultura, que produziu a

democracia, os direitos humanos, a proteção da esfera privada do cidadão. 141

Desse modo, como todas as outras, a concepção cultural ocidental também possui seus

valores e, apesar de não ser universal, não pode ser desconsiderada totalmente. Portanto, não

aprender com ela, ou com outras culturas, através de um ”fechamento” absoluto, como

defendem os comunitaristas, também não parece o mais adequado.

A comunitarização pode ser definida como um movimento cultural, ou mais amiúde,

uma força política que cria, de maneira voluntarista, uma comunidade eliminando os que

pertencem a uma outra cultura ou a uma outra sociedade, ou ainda aceitam o poder da elite

dirigente. 142 Outrossim, trata-se da “fragmentação do mundo em espaços culturais, nacionais

ou regionais estranhos uns aos outros, obsediados por um ideal de homogeneidade e de pureza

que os sufoca e, sobretudo, substitui a unidade de determinada cultura pela unidade dum poder

comunitário, as instituições por um comando, uma tradição por um livrinho desta ou daquela

cor, imperativamente ensinado e citado a cada instante.”143

Nesta esteira, averigua-se que

140

MORIN, Edgar. Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro. São Paulo; Cortez; Brasília: UNESCO, 2000, p.

102. 141

Ibidem, p. 104. 142

TOURAINE, Alain. Poderemos viver juntos? Iguais e diferentes. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 196. 143

TOURAINE, Alain. Op. Cit., pp. 196- 197.

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o universalismo ocidental vê-se confrontado com um universalismo também forte e reativo.

Não se trata, porém de um caminho verdadeiramente diferente; o antiocidentalismo dessa

corrente é mais ostentado do que profundo. O funcionamento totalitário da religião é uma

perversão da modernidade maior que o outro. Ele implica uma rejeição da metafísica

materialista do Ocidente mas precisa conservar a base material e, em particular, a técnica.

Esse formidável desvio exerce uma função não menos corrosiva sobre a ocidentalização e

pode desaguar em movimentos espantosos, inclusive formas muito inquietantes do ponto de

vista dos valores do universalismo ocidental. 144

Tal fenômeno é facilmente identificado entre muitas comunidades islâmicas, muitas

vezes, posto que são as maiores responsáveis pelo conservadorismo imposto sobre as mulheres

devido a perpetuação inalterável de algumas espécies de tradições e costumes.

Especificamente,

os movimentos “identitários” cujo fundamentalismo islâmico, tomando em seu conjunto, é a

ilustração atual mais típica, são mais complexos. A espetacular ascensão dessa corrente não

deve esconder outros fenômenos do mesmo tipo, com o extremismo bramânico na Índia, ou as

reivindicações identitárias diferentes como a ascensão do regionalismo (inclusive nos velhos

países da Europa). Todos esses movimentos são suscitados pelo fracasso. As massas árabes,

sensibilizadas atualmente pelos irmãos muçulmanos ou pelos movimentos xiitas, eram

nasserianas ou baasistas há vinte anos, isto é, elas depositavam então suas esperanças no

modernismo e acreditavam em uma síntese possível da herança árabe e da modernidade. Seu

fanatismo atual permite medir a amplitude de sua decepção. Esta corrente certamente é

portadora de numerosas ambigüidades. Alimenta-se das formidáveis sobrevivências religiosas

e culturais sem as quais ela jamais teria nascido. Encontra na nostalgia de um passado

histórico glorioso, em parte mítico, uma força de resistência e de expansão. Constitui uma

tentativa ambígua de conciliação da industrialização e da técnica com o Corão, uma

modernização sem a modernidade. Este desvio é problemático. 145

Indispensável destacar, porém, que não se está dizendo que, como Touraine aduz, um

povo não tenha o direito de lutar por sua independência nacional e que esta luta, realmente, é

mais forte quando se apóia numa identidade cultural, lingüística e histórica. O que se sustenta é

a catástrofe da construção de soberanias nacionais baseadas na rejeição das minorias e na

“preferência nacional”, porque a comunidade não passa de instrumento a serviço de um poder

absoluto, de uma ditadura comunitarista ou nacionalista, que, ao se fechar num relativismo

144

LATOUCHE, Serge. A ocidentalização do mundo: ensaio sobre a significação, o alcance e os limites da uniformização

planetária. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 115. 145

Ibidem, p. 114.

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cultural extremo, é levado a desejar a separação das culturas definidas por usar particularidades

e desejar a construção de sociedades homogêneas.146

Acaba que os movimentos comunitaristas incidem no mesmo erro dos ocidentais

universalistas ao não reconhecer a interligação que em algum momento já realizaram com

outras culturas e as alterações que elas podem ter ocasionado em suas identidades. Assim,

“hoje é mais urgente criticar o comunitarismo, que invade tudo e está presente em toda a parte,

do que o sonho de sociedade racional que provocou desastres tão dramáticos mas que se

dissolveu diversidade cintilante da sociedade de consumo. É mais importante ainda, no entanto,

criticar o que estas duas concepções têm em comum: a idéia de que a sociedade deve ter uma

unidade cultural, seja ela a da razão, duma religião ou etnia.” 147

Nesse ponto, cabível observar a importância de as mulheres do Islã decidirem sobre

seus direitos, sem a “instrução” de uma cultura universalista ocidental, como, também, sem a

imposição da comunidade em que estão inseridas. Toca, exclusivamente, a elas compreender e

efetivar seus direitos, e, à sociedade em que vivem reconhecer a possibilidade de elas

realizarem tal compreensão individualmente. Através de uma análise intercultural, “o

reconhecimento do outro só é possível a partir da afirmação que cada um faz de seu direito de

ser sujeito. Complementarmente, o sujeito não pode ser afirmar como tal sem reconhecer o

outro como sujeito e, em primeiro lugar, sem se livrar do medo do outro, que leva à sua

exclusão.148

O apelo à livre construção da vida pessoal é o único princípio universalista que não impõe

nenhuma forma de organização social e de praticas culturais. Não se reduz ao laisser-faire ou

a pura tolerância, primeiro, porque impõe o respeito a liberdade de cada um e, por isso, a

recusa da exclusão; em seguida, porque exige que toda a referência a uma identidade cultural

se legitime pelo recurso à liberdade e à igualdade de todos os indivíduos e não por um apelo a

uma ordem social, a uma tradição ou às exigências da ordem pública.149

Para que isso seja realizável, Souza Santos propõe a transformação dos direitos

humanos em um projeto cosmopolita insurgente, através de algumas premissas a serem

146

TOURAINE, Alain. Op. cit. p. 201. 147

Ibidem, p. 200. 148

Ibidem, p. 203. 149

Ibidem, p. 200.

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seguidas. Primeiramente, ele sustenta a superação do debate sobre universalismo e relativismo

cultural. Nas palavras do autor,

Trata-se de um debate intrinsecamente falso, cujos conceitos polares são igualmente

prejudiciais para uma concepção emancipatória de direitos humanos. Todas as culturas são

relativas, mas o relativismo cultural, enquanto posição filosófica, é incorrecto. Mesmo que

todas as culturas aspirem a preocupações e valores cuja validade depende do contexto da sua

enunciação, o universalismo cultural, enquanto posição filosófica, é, precisamente, por isso,

incorrecto. Contra o universalismo, há que propor diálogos interculturais sobre preocupações

isomórficas, isto é, sobre preocupações convergentes ainda que expressas em linguagens

distintas e a partir de universos culturais diferentes. Contra o relativismo, há que desenvolver

critérios que permitam distinguir uma política progressista de uma política conservadora de

direitos humanos, uma política de capacitação, de uma política de desarme, uma política

emancipatória, de uma política regulatória.150

A segunda premissa da referida transformação dos direitos humanos consiste em

identificar as preocupações isomórficas, porque muitas vezes as aspirações são as mesmas ou

mutuamente inteligíveis, mas possuem termos diversos. A terceira premissa, por sua vez,

importa em aumentar a consciência da incompletude cultural nas concepções de dignidade

humana, enxergada mais facilmente do exterior, através de outra cultura. Já a “quarta premissa

postula que nenhuma cultura é monolítica. Todas a culturas comportam versões diferentes da

dignidade humana, algumas mais amplas do que outras, algumas com um círculo de

reciprocidade mais largo do que outras, algumas mais abertas a outras culturas do que

outras.”151

E

Por último a quinta premissa é que todas as culturas tendem a distribuir as pessoas e os

grupos sociais entre dois princípios competitivos de pertença hierárquica. Um – o princípio da

igualdade - opera através de hierarquias entre unidades homogêneas (a hierarquia entre

estratos socioeconômicos). O outro - o princípio da diferença - opera através da hierarquia

entre identidades e diferenças consideradas únicas (a hierarquia entre etnias ou raças, entre

sexos, entre religiões, entre orientações sexuais). Os dois princípios não se sobrepõe

necessariamente e, por esse motivo, nem todas as igualdades são idênticas e nem todas as

diferenças são desiguais. Daí que uma política emancipatória de direitos humanos deva saber

distinguir entre a luta pela igualdade e a luta pelo reconhecimento igualitário das diferenças a

fim de poder travar ambas as lutas eficazmente.152

150

SOUZA SANTOS, Boaventura de. Op. Cit. P. 412. 151

Ibidem, p. 413. 152

Idem.

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54

Além das premissas citadas, o autor defende, ainda, uma hermenêutica diatópica para a

promoção dos direitos humanos, a qual tem como instrumento de análise os topoi, lugares não

discutidos e comuns retóricos mais abrangentes de determinada cultura. Nesse diapasão, a

hermenêutica diatópica revela que até mesmo os topoi são incompletos, como as próprias

culturas as quais fazem parte. Mas essa incompletude não é percebida dentro daquelas, pois a

intenção de totalidade acaba por induzir todos a ver a parte como um todo. Logo, o processo

hermenêutico não deve, e nem conseguirá, alcançar a completude, mas objetiva ampliar ao

máximo a consciência cultural sobre suas incompletudes através de um diálogo com “um pé

numa cultura e outro, noutra.”153

Dessa maneira,

a hermenêutica diatópica mostra-nos que a fraqueza fundamental da cultura ocidental

consiste em estabelecer dicotomias demasiado rígidas entre o indivíduo e a sociedade,

tornando-se assim vulnerável ao individualismo possessivo, ao narcisismo, a alienação e à

anomia. De igual modo, a fraqueza fundamental das culturas hindu e islâmica deve ao facto

de nenhuma delas reconhecer que o sofrimento humano tem uma dimensão individual

irredutível, a qual só pode ser adequadamente considerada numa sociedade não

hierarquicamente organizada.

O reconhecimento de incompletudes mútuas é condição sine qua non de um diálogo

intercultural. A hermenêutica diatópica desenvolve-se tanto na identificação local como na

inteligibilidade translocadas incompletudes. Recentemente, vários exercícios de hermenêutica

diatópica, muitos diferenciados entre si, têm sido propostos na área dos direitos humanos

entre as culturas islâmicas e as culturas ocidentais. Alguns dos exemplos mais notáveis são

dados por Abdullahi Na-na1im (1990,1992) Tariq Ramadan (2000,2003) e Ebrahim Moosa

(2004).154

Denota-se, assim, que o primeiro passo já foi dado e que tal estratégia pode vir a

propiciar efetivas mudanças no mundo islâmico e na vida de quem é mais oprimido nele, as

mulheres. Para tanto, Bielefeldt adverte que a diferença deve ser transmitida

comunicativamente através do poder de seus argumentos e com regular continuidade. Ademais,

deve haver por todas as culturas disposição para a autocrítica e para superar as diversidades

culturais, religiosas e de cosmovisões.155

153

SOUZA SANTOS, Boaventura de. Op. cit, p. 414. 154

Ibidem, p. 417. 155

BIELEFELDT, Heiner. Op. cit., p. 33.

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55

Nesse sentido, a mudança não deve ser imposta e sim aceita pela cultura muçulmana, ao

passo em que reconheça suas possíveis falhas na efetivação dos direitos humanos das mulheres e

trabalhem conjuntamente para isso. Todavia, tal voluntariedade em aceitar um diálogo

intercultural não retira a importância e a obrigatoriedade que todos têm em respeitar os direitos

humanos tendo em vista que são invioláveis e inalienáveis.156

Ademais, apesar da subjetividade dos valores culturais, não é possível entender os

direitos humanos como subjetivos e variáveis de acordo com seus titulares, até mesmo porque,

como Hubmann coleciona, a razão também tem uma via de acesso aos valores, que devem ser

vistos como objetivos (no sentido de ter uma validade geral) sempre que não surjam como

valiosos apenas aos indivíduos particularmente considerados, e sim para todos, como normas

de moral social. 157

Portanto, os direitos humanos existem, as mulheres muçulmanas são titulares legítimas

deles e não precisam abnegá-los por qualquer motivo, sejam eles, valores, costumes, tradição,

interesses de quem detém o poder, entre vários outros aspectos. Independentemente da

aculturação que elas sofreram, há elementos imutáveis no núcleo da dignidade humana que

nunca poderão ser relativizados pois, como Perelman ensina, o abandono

das garantias absolutas para o conhecimento verdadeiro –sejam teológicas, sejam positivistas-

não nos deve conduzir ao ceticismo radical ou reduzir ao silêncio. Especialmente nas áreas em

que a carência de garantias se faz sentir mais intensamente, como na ética e no direito. Por

nos faltarem pontos fixos, bases sólidas, por serem os princípios todos discutíveis, nem por

isso perdemos toda a possibilidade de sermos racionais.158

Nunca dispensável lembrar, todavia, que dependem das mulheres muçulmanas

entenderem-se livres para interpretar seus direitos e reivindicá-los, pois eles

156

BIELEFELDT, Heiner. Op. cit. p. 246. 157

HUBMAN, Heinrich. Apud: LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Fundação Calouste Gulbenkian , 1992.

p.150 158

PERELMAN, C. Apud. SOARES. Luiz Eduardo. Hermenêutica e Ciências Humanas. In: GAUER, Ruth (org) Op. Cit. P.

64.

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56

[...] possibilitam a livre comunhão das pessoas, justamente por proporcionarem a cada

indivíduo opções de isolar ou distanciar-se da sociedade. Nos direitos humanos não interessa

a preferência abstrata de cada indivíduo em relação à comunidade ou até a dissolução da

solidariedade comunitária em uma sociedade atomística, mas interessa, isso sim, a coerente

imposição da liberdade política e jurídica. A reivindicação por liberdade dos direitos humanos

refere-se tanto contra as imposições estatais e comunitárias, como contra a involuntária

exclusão da sociedade. Assim, os direitos humanos comprovam ser parte integrante de uma

ética social política e jurídica, voltada para a liberdade, na qual os direitos de cada indivíduo

são reconhecidos [...]. A ética de responsabilidade autônoma, que embasa os direitos

humanos, implica, de um lado, um antropocentrismo político e jurídico, visto que apenas o ser

humano pode ser sujeito responsável na política e no Direito. Restringir essa responsabilidade

incondicional por pretensa primazia de direitos divinos, seria contradizer a reivindicação por

liberdade defendida pelo pensamento acerca dos direitos humanos.159

Enfim, a condição em que se encontram muitas das mulheres seguidoras da religião

islâmica, dificilmente deixará de chocar muitos integrantes da cultura ocidental na medida em

que as mulheres do Ocidente vêm participando cada vez mais da sociedade e exigindo,

cotidianamente, seus direitos realizados. Entretanto, não se mostra adequado uma intervenção

na cultura muçulmana sem respeitar a suas peculiaridades e tradições. Por isso, se propõe um

diálogo intercultural sobre os direitos humanos, que beneficie todas as culturas, tendo em vista

que todas são incompletas e nenhuma representa a verdade absoluta sobre tais direitos. Desse

modo, quiçá seja possível a revisão de alguns valores imbutidos na cultura muçulmana, que

podem estar prejudicando a efetivação dos direitos humanos das suas mulheres, ou que, pelo

menos, possibilite que todas possam ter liberdade de escolher seus modos de vida.

159

BIELFELDT, Heiner. Op. cit., pp. 247-248.

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METODOLOGIA

Para a elaboração do presente trabalho será utilizado o método da transdisciplinaridade,

ou seja, para alcançar a resposta mais adequada ao problema proposto, além do direito, serão

empregados, de modo não departamentalizado, conhecimentos de diversas áreas do saber,

como a antropologia, filosofia, psicologia, sociologia, história, etc.

Outrossim, para o desenvolvimento de uma pesquisa de campo complementar, será

utilizado o método qualitativo etnográfico com fulcro na vida de determinadas mulheres

submetidas à cultura islâmica, para examinar seus entendimentos sobre os direitos humanos e

o que elas fazem para os verem realizados. Logo, será feita uma análise microssociológica do

cotidiano dessas mulheres, verificando como cada uma interage dentro do sistema de valores

embutidos em suas personalidades através da cultura que seguem. Com isso, será possível

entender o quanto os elementos culturais influenciam no conhecimento real dos direitos

humanos por parte das mulheres, fator que é de intensa relevância para a nova teoria dos

direitos humanos, pois nesse passo torna-se possível a luta pela realização dos mesmos por

meio de ações concretas.

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58

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