Pontivírgula nº20

40
«Não olvidemos o significado deste dia. Não nos esqueçamos o que a Mulher já sofreu. Não nos percamos nas vitórias que já foram alcançadas. Continuemos a lutar!» «Eu sou pela [concepção de feminismo] mais básica, que é aquela que eu acho que um dia vai desaparecer. Vai desaparecer porquê? Por não ser necessária. O que eu desejo é deixar de ser feminista.» » páginas 5 a 10 «Era uma opção ser perfeita! Em tudo! Com tudo! Com todos!» «Cada vez mais, vejo que nem todos somos iguais, nem todos lidamos com a nossa dor da mesma forma [...].» » página 37 «Queria crescer. Queria sair da minha zona de conforto. Queria saber os meus limi- tes, até onde não me custava ir. Quis perceber como era estar sozinha não estando e quis conhecer o outro lado da felicidade.» » páginas 21 a 23 À conversa com o Prof. Jorge Fazenda Lourenço Passou um ano. Reflexão no feminino. Entrevista: voluntária da AHEAD em São Tomé Sociedade | Lifestyle | Desporto | Moda | Séries | Cinema | Gaming | Música | Literatura | Agenda Cultural Direcção: Patrícia Fernandes e Joana Cavaleiro Edição nº20 - Março de 2015 - Publicação Mensal março: Mês das Mulheres » página 26

description

Jornal Pontivírgula nº 20, Março de 2015

Transcript of Pontivírgula nº20

Page 1: Pontivírgula nº20

«Não olvidemos o significado deste dia. Não nos esqueçamos o que a Mulher já sofreu.

Não nos percamos nas vitórias que já foram alcançadas. Continuemos a lutar!»

«Eu sou pela [concepção de feminismo] mais básica, que é aquela que eu acho que um dia vai desaparecer. Vai desaparecer porquê? Por não ser necessária. O que eu desejo é deixar de ser feminista.»

» páginas 5 a 10

«Era uma opção ser perfeita! Em tudo! Com tudo! Com todos!»«Cada vez mais, vejo que nem todos somos iguais, nem todos lidamos com a nossa dor da mesma forma [...].»

» página 37

«Queria crescer. Queria sair da minha zona de conforto. Queria saber os meus limi-tes, até onde não me custava ir. Quis perceber como era estar sozinha não estando e quis conhecer o outro lado da felicidade.»

» páginas 21 a 23

À conversa com o Prof. Jorge Fazenda Lourenço

Passou um ano. Reflexão no feminino.

Entrevista: voluntária da AHEAD em São Tomé

Sociedade | Lifestyle | Desporto | Moda | Séries | Cinema | Gaming | Música | Literatura | Agenda Cultural

Direcção: Patrícia Fernandes e Joana Cavaleiro Edição nº20 - Março de 2015 - Publicação Mensal

março: Mês das Mulheres

» página 26

Page 2: Pontivírgula nº20

A escolha desta citação de José Saramago não é, de todo, ingénua, pois, vai incidir em ideias que tenho vindo a defender nestas páginas – a importância do indivíduo para um “bem” colectivo, mas, hoje em dia, há uma moda de celebrar a mediocridade.

Vivemos numa sociedade em que há um estranho paradigma de afirmação – digo estranho no sentido em que, desde muito pequenos, somos incentiva-dos a em sermos nós próprios, a acreditar que “ser diferente é bom” e que somos importantes como indivíduos. Contudo, somos constantemente bombardeados pelo sentimento de colectividade, de saber respeitar e viver em sociedade, de subsistir em prol do outro. O melhor exemplo disso são as marcas que generalizam o consumidor (por diversas razões que não me cabe a mim mencionar por outros tantos motivos) mas que reforçam a ideia do individualismo e que alimentam a ideia de que somos todos iguais.

Num acto reflexivo, quantas vezes já demos por nós a gozar, a criticar ou a comentar alguém por ser diferente? Todos nós vivemos rodeados de estereótipos, de precon-ceitos e de ideias pré-concebidas... Todos nós, sem excepção, vivemos agarrados à ideia de que tudo o que é diferente é mau, mas, ao mesmo tempo, numa espécie de atitude masoquista, adoramos acreditar que somos diferentes dos outros e mais especiais.

Na verdade, não o somos... Hoje, há um certo “exagero” no enaltecimento do medíocre e no esquecimento daqueles que realmente são bons, e é aqui que é importante a presença do indivíduo. E, por favor, não alimentem a mediocridade!

Ficha TécnicaDirectora: Patrícia FernandesVice-Directora: Joana Cavaleiro

RedacçãoAlexandra AntunesAlexandra NogueiraCatarina FélixDina TeixeiraFrancisco Bruto da CostaGuilherme TavaresInês AmadoInês CruzInês Linhares DiasJoana ContreirasJoana FernandesJoana SantosMadalena GilManuel CavazzaMaria Manuel de SousaMariana FidalgoSara PlácidoSusana Santos

ColunistasCatarina Veloso, ModaDaniela Ribeiro de Brito, DesportoDiogo Barreto, MúsicaInês Sousa Almeida, SériesJoana Cavaleiro, LiteraturaJoão Marques da Silva, CinemaMariana Leão Costa, LifestyleMichelle Tomás, ActualidadeMitchel Martins Molinos, Gaming/InternetPedro Pereira, Literatura Contacto: [email protected]

REDES SOCIAIS

Site: www.jornalpontivirgula.wix.com/jornalpontivirgula

Facebook: www.facebook.com/pontivirgula.geral

Boas Leituras, Patricia Fernandes

“Há uma cuLtura de BanaLização. tudo é BanaL, tudo está sujeito ao consumo.”josé saramago

EDITORIAL 02

Jornal redigido com o antigo acordo ortográfico, salvo quando indicado.

A i d e i a u t ó p i c a d o medíocre leva ao esquecimento dos criativos, dos sonhadores, dos românticos; sermos nós próprios é bom, sermos diferentes e não termos vergonha disso é ainda melhor! Cada pessoa tem pensamentos diferentes, personalidades diferentes e comportamentos diferentes.

E são precisamente essas várias diferenças que nos tornam tão importantes quando se trabalha num “colectivo” ou estamos em sociedade.

É importante enaltecer o que é bom, fortalecer os criativos e respeitar os diferentes, por mais pequenos que sejam, pois são essas pequenas distinções que nos tornam elementos-chave em comunidades, colectividades ou na nossa sociedade.

E, na sociedade contemporânea, há uma (grande) tendência para nos esquecermos do indivíduo, ou, melhor, da importância de respeitar o indivíduo.

São estes indivíduos que, no seu conjunto, trazem coisas diferentes e permitem a evolução social para algo superior a nós.

Celebremos o individualismo, as opiniões contrárias, as pessoas diferentes.. . Celebremos a ideia romântica de que somos especiais, diferentes e únicos e que, em conjunto, somos melhores.

Num mês dedicado às mulheres, dedicamos algumas páginas à reflexão sobre o tema com entrevistas, artigos informati-vos e de opinião, que merecem a vossa atenção.Analisamos ainda assuntos económicos e políticos que têm preocupado o país e o mundo. Na parte cultural e social, contamos com as colunas habituais do Pontivírgula.

Page 3: Pontivírgula nº20
Page 4: Pontivírgula nº20

a academia Para a exceLência

FCH 04

A Faculdade de Ciências Humanas tem uma nova formação programada para o próximo ano letivo (2015/2016), a Academia para a Excelência, focada no desenvolvimento e sucesso estudantil ou profissional.

A formação será dirigida pelo Prof. Doutor Fernando Ilharco, responsável pela coordenação e coaching, e pelos docentes Prof. Doutor José Manuel Seruya e Profª. Doutora Joana Carneiro Pinto.

O programa destina-se a todos os jovens entre os 17 e os 21 anos de idade, funcionando de forma complementar aos estudos liceais ou universitários. As sessões são individuais (de coaching) e grupais (teórico-práticas com recurso a leituras prévias), tendo a duração de cinco meses (Março a Julho de 2015). O valor a pagar pela formação é de 835 euros, mais 50 euros no ato da inscrição.

A Academia para a Excelência é feita a pensar na possibilidade dos formandos evoluírem pessoal e profissionalmente, realçando que para alcançar o êxito é necessário focarmo-nos nos nossos objetivos, qualidades, interesses e, essencialmente, acreditar nas nossas capacidades e ter vontade de melhorá-las.

É neste sentido que o programa visa fomentar a motivação, a determinação, o esforço, a motivação, o positivismo, a autoconfiança, o bem estar pessoal, a energia, a autoconsciência e o progresso. Reúnem-se, assim, um conjunto de fatores orientados para o aumento das capacidades de aprendizagem, evolução das mentalidades, melhoria dos métodos de trabalho, maior clarificação quanto ao futuro estudantil ou profissional e a possibilidade de definição de um plano individual de melhoria contínua.

O caminho para alcançar a excelência será, deste modo, facilitado pela ajuda dos profissionais, que transmitirão aos formandos os instrumentos necessárias para o aperfeiçoamento de atitudes e comportamentos, essenciais ao sucesso estudantil e profissional.

“A Academia para a Excelência é feita a pensar na possibilidade

dos formandos evoluírem pessoal e profissionalmente.”

Programa de Mentoring

A Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa de Lisboa, em parceria com os seus ex-alunos e agora grandes profissionais, está a organizar um programa que visa o contacto entre estes e os actuais alunos de licenciatura, de forma a dar a conhecer melhor o mercado de trabalho nos dias correntes.

Este projecto tem o nome de Mentoring e, através dele, cada aluno terá um ex-aluno/actual profissional como seu mentor de forma a proporcionar-lhes um melhor conhecimento da sua actividade profissional, a explicação da realidade actual a nível de carreira e aconselhamentos possíveis para progressos na mesma através da partilha de experiências profissionais e de vida.

O mentor é alguém que terá como objectivo orientar o aluno na direcção do sucesso, mantendo com este um relacionamento “informal e aberto”. Assim, cabe a este mentor mostrar-lhe a realidade profissional, ou seja, dar a conhecer ao aluno um pouco deste mundo, orientá-lo para a acção, aconselhá-lo durante a sua progressão na carreira, partilhar com ele um pouco da sua vida pessoal e profissional e, por último, motivá-lo e mobilizá-lo para que este possa desempenhar o seu trabalho com elevada qualidade.

Os mentores também terão oportunidade de aprender algo com esta experiência. Ao participarem neste programa, ficarão a saber as motivações e os desafios dos mais jovens,

participarão como modelo de referência no desenvolvimento contínuo dos alunos, beneficiarão do potencial dos jovens, transformando-o em energia, descobrirão novos talentos, contribuindo, deste modo, para o sucesso profissional dos seus pupilos.

Os alunos, ao participarem e usufruírem deste programa, habilitam-se também profissionalmente a desenvolver certas competências, tais como a capacidade de organização, a inteligência emocional (gestão de emoções e comportamentos) e profissional (lidar com as exigências de um percurso profissional), o aumento produtivo ou a identificação e aprendizagem com modelos de excelência.

As inscrições para este projecto já se encontram encerradas (desde dia 14 deste mês), mas os alunos poderão ficar, desde já, a par desse programa, que estimulará os alunos da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa de Lisboa a desenvolverem as suas qualidades profissionais e a compreenderem como funciona o mundo do trabalho através da ajuda de um profissional na área.

Aos alunos interessados, convida-se a falarem com a coordenadora do projecto, a Professora Doutora Cristina Tavares Salgado, para mais informações.

dina teixeira

catarina FéLix e guiLHerme tavares

Texto escrito com o Novo Acordo Ortográfico

Page 5: Pontivírgula nº20

FCH05

entrevista ao ProFessor jorge Fazenda Lourenço

Humi lde de coração e discreto por natureza, um dos professores mais acarinhados pelos alunos da FCH admite que não gosta de dar entre-vistas. «São essas perguntas todas?», assusta-se imedia-tamente quando vê uma folha A4 rabiscada de cima a baixo. Este é, talvez, um dos seus traços mais marcantes e, se a “bagagem” cultural e o entusiamo nos permitem admirá-lo como professor, pode muito bem ser a sua simplicidade um dos motivos do carinho que nutrimos pelo homem que, aqui e ali, se deixa revelar. Com a obra Vigiar e Punir, de Michel Foucault, em cima da mesa, abriu-nos a porta do seu gabinete (e da sua vida!). O resultado é uma entrevista inspiradora, como o professor e o homem. Pontivírgula: A nossa primeira pergunta tem a ver com a sua formação. O professor é licenciado em Jornalismo. Alguma vez exerceu a profissão?

Jorge Fazenda Lourenço: Não. Bem, não e sim. Tenho de vos

contar um bocadinho para trás. Eu fiz três anos em Medicina. Isto ainda antes do 25 de abril, numa altura em que não era muito fácil mudar de curso. Enfim, é uma explicação um pouco

complicada, mas no liceu havia alíneas e nós fazíamos deter-minadas alíneas para determinados ramos profissionais, diga-mos assim. Letras, Ciências, Arquitectura, etc. E, depois, para mudar de um ramo para o outro, tinha de se repetir o chamado sétimo ano, que equivale ao vosso décimo segundo. Eu resolvi não fazer isso, repetir de novo o sétimo ano era andar para trás. Esta mudança ainda foi antes do 25 de abril, embora depois tenha terminado o curso de Jornalismo já depois do 25 de abril. Na altura, havia uma escola privada que tinha o primeiro curso de Jornalismo em Portugal. Era uma escola que não é muito conhecida, talvez por ser privada, creio que era do Banco Totta e Açores, financiada por esse banco, que tinha professores como o Francisco Sarsfield Cabral – depois do 25 de abril, já que antes não seria possível –, o Avelino Gomes, enfim, jornalistas que hoje já são assim da velha guarda. E então licenciei-me em Jornalismo. De algum modo, eu já estava a pensar numa espécie de transição para um curso de Letras, mas como era uma escola privada, não me exigia voltar atrás no ensino secundário. A minha experiência foi, como hoje se chama, de freelancer.

Colaborei em vários jornais, mais com funções de jornalista num semanário que também hoje não é conhecido e que exis-tiu durante pouco tempo, chamado O Ponto, que era feito por jornalistas do Diário Popular: o Jacinto Baptista, por exemplo, que é um jornalista muito conhecido, ou era, e que também era historiador, o Baptista Bastos, que ainda é vivo, etc. E eu cola-borei como freelancer nesse jornal.Fazia entrevistas, reporta-gens, mas isso já depois do 25 de abril, depois de ter terminado a licenciatura. Depois, continuei a colaborar na imprensa, mas aí já mais como crítico literário, portanto a minha ligação com a imprensa é realmente ténue; não foi assim uma carreira profis-sional. Mas, continuando a contar a história, como os meus interesses sempre foram muito do lado da literatura e comecei a fazer crítica literária e também comecei a estudar, por mim próprio, sem qualquer enquadramento, a obra do Jorge de Sena e a escrever, isso é que me deu possibilidade de ir para os E.U.A. Pontivírgula: O professor esteve cinco anos nos E.U.A. a estudar. A escolha da Universidade de Santa Bárbara, na Califórnia, prendeu-se com o facto de Jorge de Sena ter sido lá professor?

Jorge Fazenda Lourenço: Sim, de ter sido lá professor e de, na altura – aliás, a viúva ainda é viva, fez agora, no dia 16, 95 anos –, todo o espólio do Jorge de Sena, portanto, todos os papéis, livros, etc., estarem lá em Santa Bárbara. Agora, uma boa parte já está aqui e o espólio está a começar a ser tratado pela Biblioteca Nacional. Mas, na altura, quem queria estudar o Jorge de Sena tinha, forçosamente, de ir para Santa Bárbara, para os E.U.A. E, portanto, foi isso que aconteceu. Fui para lá, fiz lá o mestrado, dei aulas lá na universidade também, de língua portuguesa, aos Americanos que queriam aprender português, que ainda eram alguns. Nessa altura, nem sequer tive bolsa, vivia só das aulas. Depois do mestrado, consegui então uma bolsa daquilo que é agora a FCT , que se chamava outra coisa, para fazer o doutoramento. Portanto, estive lá cinco anos. Foi uma experiência muito boa mesmo. Posso contar mais coisas, se quiserem…

Pontivírgula: Sobre o que foi o seu doutoramento?

Jorge Fazenda Lourenço: Sobre a poesia de Jorge de Sena, que dá depois a minha tese de doutoramento, que foi editada primeiro pela Gulbenkian, em Paris, e que agora tem uma edição verde que anda por aí. Um livro pequenino, que ficou assim com uma letrinha pequenina. Para mim, foi fantástico, primeiro porque estava numa espécie de beco sem saída cá em Portugal. Queria dedicar-me a estudar Literatura, mas transitar para a Faculdade de Letras, mesmo depois do 25 de abril, era difícil por causa das habilitações e os Ameri-canos tinham um sistema ainda mais aberto do que é o nosso

“A minha ligação com a imprensa é ténue. A minha experiência foi de freelancer, não foi assim uma carreira profissional.”

“Nos E.U.A., se não fosse também o eu dar aulas e ter

o apoio da viúva do Jorge de Sena – quando tínhamos fome,

eu e a minha mulher íamos lá comer –, teria sido realmente

muito difícil. Mas foi uma experiência fantástica.”

© Dani Trony

Page 6: Pontivírgula nº20

FCH 06

atualmente, que fazia a junção de todas as disciplinas que eu tinha tirado, ou seja, desde Medicina, mais as disciplinas de Jornalismo, mais as outras coisas que eu tinha feito – um curso aqui e ali –, etc. Eles somaram tudo, não dividiram. E somaram mais os artigos que eu tinha escrito nos jornais, mais um livrinho que eu já tinha publicado, sobre o Jorge de Sena, uma coleção chamada “O Essencial”, uma coleção pequenina que ainda existe na imprensa nacional, portanto somaram isso tudo e disseram: “Sim, sim, este rapaz é capaz de ser interessante. Admitimo-lo, desde que seja capaz de pagar as propinas.” Caríssimas! Se não fosse também o eu dar aulas e ter o apoio da viúva do Jorge de Sena, da D. Mécia de Sena – quando tínhamos fome, eu e a minha mulher íamos lá comer –, teria sido realmente muito difícil. Mas foi uma experiência fantástica.

Pontivírgula: Neste momento, está a editar a obra completa de Jorge de Sena, com a Guimarães Editores, sob o selo da Babel. O que é que o levou a abraçar este projeto? E em que é que ele difere das edições prévias?

Jorge Fazenda Lourenço: Bom, por um lado, a obra era anterior-mente editada, sobretudo, pelas Edições 70, mas as Edições 70 entraram numa espécie de falência, embora ainda sobrevi-vam. Está aqui este livro (Vigiar e Punir, de Michel Foucault) que faz parte da coleção da editora. Mas a D. Mécia de Sena, num período de maior crise, resolveu arranjar outra editora. Nesse período em que decidiu arranjar outra editora – nem sequer fui eu que intermediei a ida para a Guimarães Editores, para o grupo Babel –, ela também decidiu, até pela idade avançada e por termos já os dois uma colaboração muito grande, pedir a minha colaboração neste projeto. Embora o meu nome como organizador da obra só comece a aparecer agora, já colaborava com ela na organização da obra desde 1984, ainda mesmo antes de ir para Santa Bárbara. E ela disse-me: “Bom, eu já estou com uma idade avançada, está na altura de ser substituída.” Portanto, foi também uma forma de reconhecimento para mim, pelo tra-balho que já tinha feito e, bom, a promessa da editora – promessas de editora são por vezes piores do que promes-sas de primeiro-ministro (risos) – é reeditar toda a obra do Jorge de Sena, que são muitos livros! São para aí uns 80 volumes! Nós ainda só vamos em onze ou doze, creio. Claro, estamos primeiro a reeditar, ou editar coisas novas, aquilo que consideramos o essencial: a poesia – vai sair

agora o segundo volume de poesia e fica a poesia comple-ta –, vão também começar a sair este ano os dois volumes de contos, para complemen-tar o Físico Prodigioso e os Sinais de Fogo, portanto a ficção fica também completa. E depois de a poesia e a ficção estarem completas,

passamos para outros géneros. Mas também editámos outras obras que eram inéditas e que foi preciso organizar, como o volume das entrevistas, por exemplo, ou o volume dos artigos que ele tem sobre Portugal, que eram escritos por ele no exílio. Portanto, estou à frente da coordenação das obras completas.

Pontivírgula: Professor, o que é que o apaixona tanto em Jorge de Sena?

Jorge Fazenda Lourenço: (sorriso de satisfação) É difícil responder assim de uma maneira simples, embora também possa ser simples. Eu acho que é um complexo de coisas. Primeiro, a energia que há na sua obra literária, sobretudo na poesia e na ficção; a vastidão da obra em termos temáticos e de preocupações em relação ao mundo em que ele viveu; o tipo de abordagens, também vastíssimo, em termos de diálogo quer com a sociedade, quer com as outras artes: poesia sobre pintura, poesia sobre música, poesia de viagem – não no sentido turístico, mas no sentido em que viajava, visitava um monumento e escrevia um poema sobre o significado daquele monumento para ele –; e também uma grande diversidade em termos de estilos – é um autor que tanto tem sonetos como poesia de vanguarda, poesia visual. Portanto, Jorge de Sena é um mundo. Ele próprio é uma espécie de universo vastíssimo, mas não nego que há outra parte que eu também valorizo bastante com o tempo e que é sempre muito importante na nossa relação com os escritores: uma ligação afetiva que é inexplicável. Há qualquer coisa que nós lemos que nos diz alguma coisa em particular e que, muitas vezes, até é difícil de transmitir a terceiros ou, por exemplo, numa sala de aula. Tem que ver com sensações, uma sensibilidade, uma maneira de ver o mundo, de às vezes até ser satírico ou – porque não dizer? – até cruel com algu-mas situações e nós identificarmo-nos com essa maneira de escrever e de ver as coisas.

Pontivírgula: Como é que vê o panorama da literatura portuguesa na atualidade?

Jorge Fazenda Lourenço: (longa pausa) Não me identifico muito com o panorama da literatura portuguesa atual. Isto parece conversa de velho. A gente vai para velho e acontece um fenómeno curioso, que eu pensei que não aconteceria comigo: gostamos mais de reler coisas. Isso é interessante! Por vezes, até gostamos de reler coisas do passado que na altura nos passaram ao lado, que achámos que não eram tão importantes. Portanto, com o tempo de leitura – que, apesar de tudo, não é ilimitado –, a tendên-cia é um pouco para desvalorizar as coisas que estão a surgir hoje em dia, ao passo que aqui há vinte ou trinta anos – e isso vê-se na b ib l io teca lá de casa! – eu e a minha mulher estávamos sempre a com-prar os romances e os poemas que acabavam de sair. De qualquer maneira, eu penso que há pessoas muito interessantes a escrever. Homens e mulheres. Pessoas muito interessantes a escrever, mais na ficção do que na poesia, para a minha sensibilidade, ao contrário do que acontecia, por exemplo, no tempo em que eu comecei a ler (anos 60), em que a poesia era muito forte em Portugal.

“Jorge de Sena é uma espécie de universo vastíssimo, mas há outra parte que é sempre muito importante na nossa relação com os escritores: uma ligação afetiva que é inexplicável.”

“Não me identifico muito com o panorama da literatura portuguesa atual. A gente vai

para velho e acontece um fenómeno curioso: gostamos

mais de reler coisas.”

Page 7: Pontivírgula nº20

FCH07

E com uma qualidade! Pelo menos, a meu ver, porque tínha-mos o Jorge de Sena, o Eugénio de Andrade, o Ruy Belo, o próprio Carlos de Oliveira, o Herberto Hélder...

Pontivírgula: Esses são alguns dos seus autores de eleição?

Jorge Fazenda Lourenço: Sim. Não são todos, mas são alguns. E, portanto, mesmo na ficção, havia autores muito fortes. E ainda existem. Eu acho que o romance está num melhor momento do que está a poesia, o que não quer dizer que não haja poemas ou poetas interessantes hoje-em-dia. Mas, sei lá, o Herberto Hélder já não é um poeta atual, no sentido de ser novo [Nota: Já não era... À data da entrevista, o poeta era vivo. Infelizmente, faleceu entretanto, no dia 23 de março, aos 84 anos.]

Pontivírgula: O professor prefere ler ou escrever? Prefere a crítica ou a criação literária?

Jorge Fazenda Lourenço: Bom, não sei. Eu leio mais, também por obrigações profissionais da fac-uldade, não é? Pelas disciplinas que eu leciono. Mas, de qualquer maneira, a experiência que eu tenho é que quem escreve – há pessoas que dizem o contrário do

que eu vou dizer – lê sempre mais do que escreve. É a minha experiência, embora haja pessoas que digam: “Eu, quando escrevo, não leio nada! Para não ser contaminado, para não ser influenciado.” Não sei… Mas eu também não escrevo muito.

Pontivírgula: Gostava de escrever mais?

Jorge Fazenda Lourenço: Não. Neste momento, já não. Já houve um período em que não escrever com muita frequência, não direi me angustiasse, mas me preocupava. Hoje já percebi que é uma espécie de ritmo que cada um tem. Uns escrevem mais, outros escrevem menos.

Pontivírgula: Quando lê, há algum tema que o entusiasme mais?

Jorge Fazenda Lourenço: Eu não sei se aquilo que vou dizer pode ser considerado um assunto, mas eu gosto de literatura, quer em poesia, quer em ficção. Muitas vezes, as leituras são feitas por necessidade de esclarecimento de alguma coisa, ou de aprofundamento de um escritor, ou de uma obra. Portanto, se eu estou a ler qualquer coisa do Vergílio Ferreira, que é outro autor muitíssimo importante, e há um novo estudo que saiu sobre um romance do Vergílio Ferreira, procuro comprar e ler. Mas também sou uma pessoa muito dispersa nos meus interesses. Gosto de ler sobre história de Portugal, história da Idade Média, história do Renascimento, artes plásticas, música, o que seja.

Sou um bocadinho dispersivo, mas o tipo de literatura que, apesar de tudo, ainda me encanta mais e que pode parecer um pouco paradoxal, porque é um tipo de literatura conotada com não ter nenhum encantamento – para mim, bem pelo contrário... –, é a literatura realista.

Porque o realismo é uma invenção da realidade. Não é a realidade.

E essa capacidade de invenção, a mim, atinge-me mais e até me comove mais do que um tipo de literatura, por exemplo, deliberadamente fora de qualquer referência em relação ao mundo que nos rodeia.

Desde sempre tentava ler literatura fantástica e – vou dizer uma coisa terrível! – aborrecia-me. A literatura fantástica aborrecia-me! (risos) E eu via isso em comparação com as pessoas da minha idade. Quando tinha a vossa idade, toda a gente estava muito mais interessada em literatura fantástica, aquele tipo de literatura especulativa de como é que será o Homem a viver no espaço daqui a cem anos, a fazer uma colónia em Marte… E isso para mim era um aborrecimento. Não é que não queira saber como é que vai ser a vida em Marte, se um dia for possível, mas parece que isso não me diz imediatamente respeito e não me inquieta da maneira que a literatura dita realista, que tem uma má imprensa, diríamos nós, uma má crítica, o faz. E vocês veem isso nas obras que eu procuro que nós leiamos nas aulas. São obras que têm alguma coisa que ver com crítica social, com crítica política, com inquietações de outra natureza individual, que nos fazem pensar em como é que o destino de cada um pode ser transformado, como é que a vida pode ser diferente ou não, que ilusões e desilusões posso encontrar acerca disso, etc., e não uma literatura que pode ser muito mais interessante para evasão. Mas posso começar a usar termos e adjetivos que possam ser pejorativos para a literatura fantástica injustamente.

Pontivírgula: É professor há cerca de 40 anos. Que diferença nota entre os alunos do pós-25 de abril e os alunos do século XXI?

Jorge Fazenda Lourenço: Já é há 40 anos?! Vocês fizeram bem as contas? (risos) É assim: nos dias mais pessimistas, penso que há algumas diferenças con-sideráveis, mas noutros dias não vejo grandes alte-rações, sinceramente. As diferenças são um pouco de contexto. E o con-texto, claro, afeta as pessoas. É sabido de toda a gente: hoje estamos numa cultura que apela mais ao lado visual, ao lado imediato do conhecimento – que não é propriamente do saber ou que nem é do conhecimento, é só da informação. Temos mais informação disponível, mas temos menos tempo para tra-balhar essa informação. E o trabalhar a informação é que a transforma em conhecimento. Por isso é que a Internet pode ser perigosa.

Não porque tenha lá erros, mas porque eu fico com a ilusão de que conheço alguma coisa quando ainda não pensei sobre ela, ainda não refleti sobre ela. E é o acto de pensar e de refletir sobre as coisas que transforma a informação em conhecimento. Qual é a diferença então para trás?

“Sou um bocadinho dispersivo, mas o tipo de literatura que me encanta mais é a litera-tura realista. Porque o realismo é uma invenção da realidade. Não é a realidade.”

“O entusiasmo alimenta o entusiasmo. O professor

é tanto aquele que inspira como aquele que é

inspirado. Eu também estou a “sugar” muito das

vossas energias.”

Page 8: Pontivírgula nº20

FCH 08

Para trás, como não havia tanto acesso à informação, o que se procurava tinha por base mais tempo de elaboração em termos de possibilidade de pensar mais demoradamente sobre as coisas. Nesse sentido, também, as pessoas liam mais, porque não tinham outros meios de informação. Temos de pensar que, a seguir ao 25 de abril, só tínhamos uma estação de televisão, só tínhamos uma ou duas estações de rádio, não havia Internet – a Internet só apareceu um ano ou dois antes de eu ir para os E.U.A., em 1988. Portanto, toda a formação das pessoas anteriormente era feita com base em material impresso: jornais, revistas, livros… Não se digitalizava coisas. As sebentas com fotocópias eram muito incipientes, ainda com fotocópias em que, passados quinze dias, desaparecia a tinta. Realmente, toda a informação – já nem falo em conhecimento e em saber – tinha de ser procurada em livros, revistas e jornais. Não havia outra maneira.

Pontivírgula: No papel de professor, sente que é fonte de inspiração para os seus alunos? Sente que o seu trabalho é reconhecido pelos alunos?

Jorge Fazenda Lourenço: Essa pergunta não devia ser feita ao professor, não é? (risos)

Pontivírgula: Mas nós sabemos a resposta.

Jorge Fazenda Lourenço: (risos) Eu sinto que sim. Pronto, não tenho jeito para estar a fazer autoapreciação, mas sinto que sim, senão, não direi que já tivesse deixado de ser

professor, mas já tinha feito alguma reflexão pro-funda acerca de me manter ou não como professor. O que eu posso dizer é que gosto muito da pro-fissão de professor, tenho entusiasmo em ser profes-sor, mesmo nos dias em que estou mais cansado. Mas isso

também depende muito de encontrar “boas” turmas – muitas vezes, a relação não é com pessoas individualmente mas com turmas, porque os grupos têm uma dinâmica própria. Já tenho tido anos, como é natural, em que tenho tido dificuldade em inspirar pessoas e turmas. Já tem havido anos mesmo terríveis.

De certo modo, esse feedback, como se costuma dizer, é também o que me vai alimentando o entusiasmo. O entusiasmo alimenta o entusiasmo. Portanto, a ideia de inspirar é também a de ser inspirado. O professor é tanto aquele que inspira como aquele que é inspirado, porque nós estamos ali numa situação em que nos estamos a alimentar mutuamente, mesmo quando as pessoas não têm consciência disso. E eu também estou a “sugar” muito das vossas energias. Aliás, o que é muito interessante em ser professor – e isto é para vos entusiasmar a ser professores algum dia – é estar em contacto com pessoas mais novas, com mais energia do que nós, com mais disponibilidade, em princípio, do que nós.

“Só lamento que essa disponibilidade não seja manifestada pelos estu-dantes de uma maneira mais crítica, no sentido de intervirem mais, de porem mais em questão o que o professor diz.”

E eu por vezes só lamento que essa disponibilidade não seja manifestada pelos estudantes de uma maneira mais crítica, no sentido de intervirem mais, de porem mais em questão o que o professor diz, não no sentido de serem mal-educados, mas no sentido de se interrogarem e interrogarem o professor sobre as razões do que está a dizer e até ler outras coisas. “Mas eu também li alguma coisa e isso vai contra…” Esse é o tipo de inspiração que nós, alguns de nós, professores, queremos instilar nos alunos. É o despertar de um espírito crítico.

Pontivírgula: Nas suas aulas, a posição da mulher na socie-dade e o feminismo são temas recorrentes. Considera-se um feminista?

Jorge Fazenda Lourenço: Sim. Bom, o interesse por falar dessas questões do feminismo ou da condição das mulheres tem bastante que ver com a minha formação, com a minha história de vida, no sentido em que as coisas podem ter a ver com a nossa história de vida. Tem que ver com a rapariga com quem eu namorei, com o tipo de casal que nós formámos, com esses anos 70 em que era cultivado, embora de uma maneira deficiente por nós, rapazes, a ideia de que respeitávamos a autonomia e víamos as mulheres também como pessoas com cabeça, tronco e membros e não apenas do ponto de vista sensual e sexual. Ou seja, ver as pessoas como pessoas e formar uma espécie de par, embora com muitas deficiências.

Levei muito na cabeça por não estar a fazer isto e não estar a participar naquilo e não partilhar, etc. Mas havia esse impulso – que era também um impulso um pouco de época – de os jovens rapazes da época se preocupa-rem por serem diferentes do que tinham sido os pais, não por culpa dos pais, mas por causa da tal educação patriarcal. E então sempre me preocupou, tendo eu alunos, além da filha que tive, tratar esse tema e, de certo modo, despertar consciências para a questão da relação que ainda continuamos a estabelecer entre homens e mulheres, muito ditada por normas e regras patriarcais. Nem todos os semestres tenho sido muito bem-sucedido. Em alguns casos talvez tenha sido bem-sucedido, por aceitação da turma, mas, por exemplo, tenho tido turmas terrivelmente adversas a este tema. Isto merece ser registado no vosso jornal. Por exemplo, tenho tido turmas com raparigas – que são praticamente mulheres quando entram aqui, com 18 anos, enfim, jovens mulheres – a dizerem-me: “Não, não, o professor está enganado. Já não se passa nada disso. As mulheres já são completamente iguais aos homens, já fazem tudo o que querem.”

Portanto, aquilo que são fenómenos como salário diferente para trabalho igual – que ainda se continua a verificar, como sabemos, e esse fosso, em momentos de crise económica, até se vai aprofundado –, ou a violência doméstica ou a violência no namoro, que são coisas de pessoas que são perturbadas ou que têm doenças, são fenómenos que têm raízes profundas.

“Tenho tido turmas com raparigas a

dizerem-me: “Não, não, o professor está

enganado. As mulheres já são completamente

iguais aos homens, já fazem tudo o que

querem.”

Page 9: Pontivírgula nº20

FCH09

Aquilo que eu procuro dar a perceber quando dou um curso à volta do feminismo – nem sempre dou, às vezes descanso, porque são cursos que dão muita luta (risos) – é que esses fenómenos têm raízes mais profundas na nossa cultura e, muitas vezes, têm raízes na nossa cultura que ultrapassam a consciência que nós temos da maneira como estamos a agir e até a pensar.

E, por isso, é impor-tante vermos um con-junto de obras que falam dessas raízes da sociedade patriarcal ou que as contestam diretamente, como foi o caso das Novas Cartas

Portuguesas, que nós demos. Isto quer dizer o quê? Que eu considero – isto é uma afirmação importante para o jornal e que no contexto desta Universidade é arriscada – que a atividade de professor é uma atividade política, não por estar inscrita num partido A, B ou C, mas porque tem que ver com a cidadania e com a formação de cidadãos.

Qualquer disciplina, para mim, tem esta componente política: as que eu dou de uma maneira que considero privilegiada, na medida em que estamos a mexer diretamente com a cultura, mas Matemática, para mim, também é uma disciplina de formação da cidadania, porque podem pôr-se, por analogia, problemas semelhantes – saber fazer estatísticas, por exemplo. Por isso, também acho que as minhas aulas passam um bocadinho esse aspeto do apelo à crítica, à cidadania, a pensar sobre a situação das pessoas no mundo.

Pontivírgula: Porque é que se considera feminista?

Jorge Fazenda Lourenço: Porque é que me considero feminista? Há diversas conceções de feminismo.

Eu considero-me feminista no sentido mais descomprometido da palavra, e isto não tem nada em contradição com o que eu disse de ter uma atitude de cidadania. No sentido daquela definição básica que nós também vimos, o feminista é aquele que promove os direitos da mulher em termos de igualdade de oportunidades com os homens. Pura e simplesmente. E depois há outras conceções de feminismo, menos radicais, mais radicais, mais radicais ainda. Há algumas feministas tão radicais, tão radicais, que “porque não elimi-nar mesmo os homens e fazer uma espécie de reprodução através de sistemas artificiais?” (risos)

Portanto, há muitas conceções de feminismo. Mas eu sou pela mais básica, que é aquela que eu acho que um dia vai desaparecer. Vai desaparecer porquê? Por não ser necessária. O que eu desejo é deixar de ser feminista, no sentido em que tal já não seja necessário, pelo menos ao nível das coisas básicas: igualdade no salário, igualdade de oportunidades, etc.

Porque é que há mais mulheres hoje-em-dia – no meu tempo até nem era assim, era ao contrário – a estudar, a ser licencia-das e doutoradas, mas depois há menos a chefiar empresas ou em cargos de topo? Porque, realmente, continua a haver o peso da vida doméstica e do cuidar dos filhos e do marido.

Teremos o caso de uma primeira-ministra – e parece que isso se passava até com uma primeira-ministra de direita, que era a Margaret Thatcher – que chegava a casa e ainda fazia os ovos mexidos para o marido. Quer dizer…

Pontivírgula: Ela própria o admite na sua autobiografia, que chegava a casa e que gostava de preparar as coisas para o marido…

Jorge Fazenda Lourenço: É, não é? É claro que aí poder-emos sempre dizer que ela, como era uma mulher conser-vadora, achava que isso era uma função que ela devia des-empenhar. Mas, realmente, a dificuldade está aí.

Por exemplo, a questão dos horários, que é um exemplo que eu dou sempre nas aulas. Diz-se muito: “Sim, sim, os horários da vida laboral não permitem à mulher assumir certo tipo de cargos e responsabili-dades, porque ela tem de ir buscar as crianças, voltar para casa e dar-lhes alimentação. O marido lá pode fazer isso alguma vez, quando ela não pode.” Mas então porque é que não organizamos a sociedade mudando os horários? Se eu, mulher, não posso estar numa reunião até às oito, nove ou dez da noite, porque não começamos a reunião às duas da tarde e acabamos às sete da tarde? Porque é que todas as reuniões dos conselhos de administração hão-de começar às cinco da tarde para acabar às nove da noite? Isso quer dizer que há uma organização da sociedade que precisa de ser revista. As questões do feminismo não têm que ver só com certas conceções mais radicais de superiorização, ou não, da mulher em relação ao homem. Têm que ver, também, com questões mais vastas de organização do mundo em que vivemos e, às vezes, coisas muito práticas. Nesse sentido é que eu sou feminista. Isso pode ser entendido num sentido abusivo, paternalista. “Ah, lá está o homem, mesmo através de ser feminista, a querer orientar ou guiar o que as mulheres devem pensar.” Não é nesse sentido, claro.

Pontivírgula: Com quase 60 anos completados ou já comple-tados, não conseguimos saber…

Jorge Fazenda Lourenço: Ah, vocês têm aí alguma ficha? (risos) Não, faço em setembro 60 anos.

Pontivírgula: (risos) Com quase 60 anos completados, quais são os problemas sociais que ainda espera ver resolvidos?

Jorge Fazenda Lourenço: Neste momento, são mais do que eu pensava, sinceramente, porque tivemos um retrocesso social nestes últimos quatro ou cinco anos.

“Eu considero que a atividade de professor é uma atividade política, não por estar inscrita num partido, mas porque tem que ver com a formação de cidadãos.”

“Eu sou pela [conceção de feminismo] mais básica, que é

aquela que eu acho que um dia vai desaparecer.

Vai desaparecer porquê? Por não ser necessária. O que eu

desejo é deixar de ser feminista.”

“Nos momentos mais pessimistas, a ideia que eu

tenho é que, afinal, ainda está tudo por resolver: a questão do trabalho

igual para salário igual, as questões do desemprego, a emigração em massa…”

Page 10: Pontivírgula nº20

FCH 10

E digo isto sem qualquer conotação partidária em relação a quem é que teve a culpa, a responsabilidade. Esse retro-cesso veio repor problemas que a minha geração entendia que já deveriam estar resolvidos.

Por exemplo, esta questão do trabalho igual para salário igual, as questões do desemprego, a emigração em massa, que se tornou a verificar ao nível dos anos 60, a que eu assisti na minha juventude – nos anos 60, com a guerra em África, por um lado, e com a falta de oportunidades aqui em termos económicos, por outro lado, o país ficou sangrado. Uns iam para a guerra e os outros, que queriam fugir ou às dificuldades económicas ou também à guerra, iam para fora, emigravam. Nos momentos mais pessimistas, a ideia que eu tenho é que, afinal, ainda está tudo por resolver outra vez.

E, de certo modo, essa ideia de que o mundo anda para trás de vez em quando, que a roda da História de vez em quando tem uns solavancos e parece que anda para trás, mesmo que seja uma ilusão, é uma aprendizagem um bocado cruel para quem vai fazer 60 anos.

Pontivírgula: O professor é muito pessimista?

Jorge Fazenda Lourenço: Não. Mas, ao contrário, não sou muito pessimista, porque senão não conseguia ser

professor, também vos digo. (risos) Hoje estáva-mos a falar de uma per-sonagem, que é o Horácio d’A Lã e a Neve (romance de Ferreira de Castro) , como uma espécie de personagem que encarna a esperança, apesar de todas as dificuldades.

E só se consegue ser professor com uma grande pilha de esperança, digamos assim, mesmo que a pilha de vez em quando vá abaixo.

Depois temos de a recarregar de alguma maneira. Um problema principal que eu vejo é, por exemplo, a questão da intolerância, que passa pela relação dos povos entre si. E nós não podemos só atribuir as culpas a uns, dizer: “Ah, sim, sim, a questão dos Islâmicos, que são uns fundamen-talistas.”

Temos de arranjar maneira de nos relacionarmos com essas culturas para que haja mais tolerância entre elas. E, também, as relações humanas, que deveriam ser mais próximas, mais chegadas. Não me parece que estejam a evoluir nesse sentido da igualdade, da solidariedade.

“Ainda não me sinto realizado, esperando sentir-me um dia realizado. Mas acho que sou uma pessoa feliz. A felici-dade pode ser às vezes uma palavra exagerada, mas sinto-me sempre muito satisfeito de vir dar aulas.”

diogo Barreto e joana cavaLeiroTexto escrito com o Novo Acordo Ortográfico

Pontivírgula: O professor sente-se realizado? Sente-se um homem feliz?

Jorge Fazenda Lourenço: Vou pôr a questão nestes termos. Ainda não me sinto realizado, esperando sentir-me um dia realizado. Porque se já me sentisse realizado…

Pontivírgula: … já não tinha nada para fazer.

Jorge Fazenda Lourenço: Exatamente, já não tinha nada para fazer. Em relação à felicidade, (longa pausa) sim, sinto-me um homem feliz.

Pontivírgula: Ainda tem algum projeto por cumprir?

Jorge Fazenda Lourenço: Tenho, muitos. (risos) Escrever mais, coisas minhas, escrever mais sobre o Jorge de Sena – ainda gostaria de escrever um livro sobre a questão do amor e do erotismo na obra do Jorge de Sena, é um pro-jeto meu de há muito tempo. E também viajar mais, essas coisas comuns que todos gostaríamos de fazer. Mas acho que sim, que sou uma pessoa feliz. Gosto muito da mulher com quem vivo, da filha que tenho, do neto que tenho, dos alunos que tenho. Em geral, gosto muito dos meus alunos, independentemente de A, B ou C. Mesmo quando estou cansado, sinto-me contente, satisfeito. Enfim, a felicidade pode ser às vezes uma palavra exagerada, mas sinto-me sempre muito satisfeito de vir dar aulas.

© Dani Trony

Page 11: Pontivírgula nº20

CHEGA! Chega de fazer as coisas sempre da mesma forma. Está na hora de mudar e começar a inovar. Fazer sempre o mesmo cansa, não só a nós, mas também aos outros que vêem o nosso trabalho. É sempre bom ser o único a fazer as coisas de determinada maneira. Quem não gosta?!

O mundo precisa de pessoas criativas, que consigam fazer coisas novas, que consigam mudar a utilidade de um objeto como, por exemplo, uma cadeira onde uma pessoa se senta, para uma coisa completamente diferente. Por vezes, o mundo só precisa de pessoas que simplesmente consigam fazer um trabalho da universidade parecer uma obra de arte. Achas impossível?! Acredita que não é!

Nem todas as pessoas são criativas, isto porque nem todas as pessoas fazem por ser. Claro que não é fácil, exige trabalho, mas o que é que não exige trabalho hoje em dia?! A criatividade é algo pelo qual vale a pena nos esforçarmos, até porque vale pontos (vale mesmo pontos – é um dos parâmetros da avaliação de trabalhos na universidade –, por isso, se fosse a ti, prestava atenção).

Há coisas que podes fazer todos os dias para conseguires aumentar a tua criatividade. Por exemplo, podes pensar em várias formas de poderes responder a uma pergunta, pensar em soluções diferentes para os problemas, pensar no porquê das coisas serem como são e como seriam se fossem de outra forma. Parar um bocado quando se está a trabalhar também ajuda a aumentar a criatividade, tal como se distorceres um pouco as coisas. Sai um pouco da tua zona de conforto e procura novos ambientes, onde aprendas coisas novas que te ajudem a inovar nos teus trabalhos. Mas o mais importante de tudo é não pensares nas coisas apenas de uma determinada maneira. Não podes pensar através das regras, através daquilo que estás habituado a ver. Tens de pensar de forma diferente. Isso, sim, é criatividade.

Não basta fazer as coisas da forma mais rápida que conseguires. Por vezes, é necessário um pouco de criatividade para o teu trabalho alcançar outro nível. Se não o conseguires sozinho, qual é o problema? Pede ajuda aos teus amigos, troquem ideias. Não custa tentar. Só ganhas pontos.

PSICOLOGIA dá asas à tua imaginação

maria manueL de sousa

Texto escrito com o Novo Acordo Ortográfico

FCH11

SERVIÇO SOCIALa arte e o serviço sociaL

Dados os contextos sociais atuais que acompanham as transformações impostas pelas sociedades e pelos vários setores que interferem nas dinâmicas familiares e comunitárias, como a saúde, a economia e a educação, a intervenção social encontrou a necessidade de ajustar as abordagens ao campo de atuação e às alterações que este impunha, resgatando técnicas e instrumentos que cultivem o interesse e envolvimento das pessoas e comunidades onde estão inseridas.

A intervenção pela arte, o recurso à música, ao teatro e ainda ao desporto são caminhos para o envolvimento interpessoal e para o desenvolvimento de redes de suporte, habilidades e respostas que podem contribuir para o processo de integração social que está tantas vezes na base dos objetivos de projetos sociais interventivos.

A arte tem um papel importante na construção de um futuro sustentável, dado que se traduz num campo de conhecimento que possibilita o cultivo da criatividade, inovação e pensamento crítico, capacidades, essas, fundamentais para uma cultura emancipadora de igualde e responsabilidade social. Desta forma, a arte é reconhecida como um forte potencial de intervenção para a mudança dos percursos de vida.

A expressão artística que advém do contacto com as mais diversas formas de arte é um instrumento utilizado para envolver os indivíduos e potenciar a manifestação e partilha em contexto social.

Muitos dos projetos que se desenvolvem em Portugal, e que encontram na arte um instrumento de intervenção, partem do trabalho em grupo para potenciar o desenvolvimento de várias competências, quer pessoais, quer sociais.

A arte no grupo permite que um interesse comum sirva de pretexto para a integração participativa dos indivíduos, ao mesmo tempo que trabalha competências essenciais para a vida em sociedade, potenciando um processo adequado de inclusão/promoção social.

Texto escrito com o Novo Acordo Ortográfico

inês cruz

Page 12: Pontivírgula nº20

corresPondência erasmusum oLHar soBre saLzBurgo

Este semestre decidi concretizar o meu sonho de fazer Erasmus e é com orgulho que escrevo que já estou em Salzburgo há mais de um mês.

Esta cidade pequena e pitoresca, retrato de todos os contos de fada que nos levam para um universo sombrio e mágico, é o centro da Europa e acordar todos os dias e dizer “estou em Salzburgo” ainda não perdeu o seu impacto.

Por aqui, já me apercebi de muitos costumes austríacos, sendo o mais importante o facto de as pessoas jantarem às 17h, o que me atormenta todos os dias. O jantar é o lanche? É suposto fazermos muita massa ao almoço para depois não termos fome à noite? Todo um dilema diário que se torna problemático quando temos aulas entre as 15 e as 19 horas do dia.

Também já me perco por Salzburgo como me perco em Lisboa, e a familiaridade que me acompanha nesta cidade consegue prender qualquer um ao silêncio que nos visita durante a noite. Perder-me e passear pela cidade velha, ver a fortaleza, subir montanhas e ter o prazer de ter uma vista panorâmica da cidade é algo que nunca vou esquecer.

As viagens diárias a cidades austríacas, como Linz e Innsbruck, ou até a Munique, na Alemanha, são um hobby recorrente e é impossível parar de conhecer novas culturas sempre que existem jantares internacionais. Até agora já tive o prazer de comer comida grega e sushi, e este último é estranhamente fácil de executar.

Sim, porque estes meses são para se aproveitar e fazer o máximo de coisas que nunca fizemos, nem que sejam as mais pirosas, como ver o pôr-do-sol em Munique e subir a Gaisberg até ao topo no Dia Interna-cional da Mulher. Ainda por cima, com duas semanas de férias da Páscoa, é impossível não as aproveitar para realizar mais uns desejos, como comer algum doce na Demel.

Agora, para os que não sabem, Salzburgo é a cidade natal do famoso Wolfgang Amadeus Mozart e, como esperado, ruas com o seu nome não faltam, nem lojas que vendem Mozartkugel. Fenómeno igualmente pre-sente em Munique. Além disso, a cidade é dividida em dois pelo Salzach, rio cujas margens são fortemente habitadas quando o sol se apresenta. É verdade, por aqui também existe sol, se bem que é muito tempera-mental, e a neve já derreteu, mesmo a tempo para a Primavera.

Relativamente às aulas – porque não podemos fugir de todas as responsabilidades –, é definitivamente sur-preendente ter o prazer de ir a duas sinfonias numa das cidades mais conceituadas quando se trata de música clássica. Ter o Mozarteum, universidade de escolha para os interessados em música, a Groβes Festspielhaus, a Felsenreitschule e ver variados posters sobre festivais de música clássica conseguem aumentar o interesse de qualquer um, principalmente quando a maioria dos Aus-tríacos reúne um impressionante conhecimento sobre este tipo de música, o pão e a manteiga desta cidade. E é verdade, a família Von Trapp cantou no festival da Páscoa. Postais kitsch com a cara da Julie Andrews e calendários temáticos da Música no Coração também não faltam.

O interessante desta experiência? Conseguirmos, em menos de um mês, conhecer pessoas e formar uma nova família. O ideal do cosmopolita sente-se em cada conversa e testemunhar estereótipos em primeira mão, ou então a falta deles, é sempre refrescante. Dizem por aí que ver é conhecer, e não estão errados.

Sei que vou levar muitas coisas para Lisboa quando voltar, e os convites para visitar todas as cidades europeias não param de aumentar. Mas, cá para nós, o meu maior desejo é ser convidada para um casamento grego.

FCH 12

GaisberG © MaDalena Gil

madaLena giL

Pôr-Do-sol eM Munique © MaDalena Gil

Page 13: Pontivírgula nº20

FCH13

ex-aLunos: exPeriências

inês rodrigues

Trabalhar vs. Estudar: cansaço mas complemento

Um dos problemas de se começar a trabalhar quando ainda se estuda é que ganhamos demasiada autonomia e independência e a faculdade parece-nos já um sítio distante e pouco prático.

Terminei a minha licenciatura e, em outubro, mal comecei o mestrado nesta mesma faculdade, aceitei o estágio no MSN Microsoft Portugal. Estou lá há cinco meses e parece que, de repente, o tempo voou.

A experiência tem sido francamente positiva – apesar do cansaço! – e muito enriquecedora.Mais enriquecedora tem sido a experiência de trabalhar e estudar ao mesmo tempo. É muito difícil, requer muita organização e noites bem dormidas. Conciliar trabalhos com “o” trabalho tem sido esgotante mas também muito interessante, quer a nível pessoal, quer a nível profissional.

De facto, tenho-me apercebido que, quanto mais atividades e responsabilidades temos, mais isso nos impele a organizarmo-nos e a arranjarmos tempo para tudo e melhor, para querer fazer mais, crescer profissionalmente, alargar horizontes, ganhar skills e ter um maior conhecimento da área.

A faculdade tem sido um complemento interessante às funções que exerço no MSN, até porque escolhi a vertente de Internet e Novos Media no Mestrado em Ciências da Comunicação e, assim, o meu dia-a-dia divide-se entre o trabalho de editora de conteúdos e saber que posicionamento devo adotar nas redes sociais, por exemplo.

Como esta é uma área ainda “em construção”, servem as unidades curriculares como espaço de debate e complemento e ainda como área onde posso fazer pontes e dar exemplos reais com que me deparo diariamente no ambiente laboral.

Apesar da dificuldade em conciliar horários e momentos de estudo, tive muita sorte com a organização onde iniciei o meu primeiro estágio. É, de facto, uma empresa muito aberta e descontraída e, ao mesmo tempo, exigente e competitiva, que me tem permitido também evoluir e alargar horizontes.

Acho derradeiramente importante ter uma experiência profissional e não estudar anos e anos a fio sem saber o que é “pôr” as mãos na massa. E digo isto porque este foi o meu primeiro estágio e, pessoalmente, senti que não basta estudar, ler ou saber a teoria, é importante envolvermo-nos e pormos em prática o que fomos “bebendo” nas aulas.

Não obstante todo o esforço e capacidade de organização que ser trabalhador-estudante requer, aconselho-o vivamente a quem está a fazer o mestrado ou a licenciatura. É cansativo e o tempo é escasso, mas parece que se estica e, no fim, sentimo-nos preenchidos.

© inês roDriGues/Facebook

Texto escrito com o Novo Acordo Ortográfico

Page 14: Pontivírgula nº20

14ACTUALIDADE

A Grécia, tal como muitos outros países, tinha uma grande dívida, repartida entre o sector público e o privado. E tudo corria normalmente... Até que, um dia, rebentou a crise do subprime, nos Estados Unidos, que minou o sector financeiro global. Ao verem o sector financeiro em apuros, os Estados acorreram a auxiliá-lo, comprando às empresas e instituições títulos de dívida soberana que estas detinham, incluindo títulos de dívida grega.

Antes, a Grécia devia a outros países, é certo, mas devia, maioritariamente, a bancos e outras instituições financeiras. Depois, passaria a ficar nas mãos de outros Estados. Com esta transferência de titularidade da dívida grega o país vê-se subi-tamente confrontado com uma menor flexibilidade nos termos de pagamento. Começa então um duro jogo político, justificado pelos países credores com o facto de a dívida estar agora a ser suportada pelos contribuintes.

E assim chegamos a um dos principais problemas que a Grécia enfrenta hoje: o confronto entre a vontade soberana do país e a intransigência da União Europeia, que insiste em impor duras condições para a concessão de mais crédito ou para que sejam renegociados os termos de pagamento da dívida.

Em relação a esta questão, há dois pontos essenciais a ter em conta:

O primeiro é que o Syriza foi eleito democraticamente, para pôr em prática as medidas que apresentou durante a campanha eleitoral e, até agora, tem demonstrado todo o interesse em cumpri-las. A União Europeia foi

construída com o intuito de ser uma união de democracias. Nunca ambicionou constituir-se como uma supremacia que ditasse o que cada país devia fazer. É, pois, muito grave que um órgão que deveria respeitar a democracia, acima de tudo, bloqueie de forma tão veemente o seu exercício. Se o povo grego escolheu esta política, a União Europeia não tem o direito de a vetar, a qualquer preço.

O segundo ponto é que, em 2005, a Grécia não cumpria os requisitos necessários para estar na União Europeia (e talvez nunca os tenha cumprido…) e os relatórios foram “maquilhados” pela Goldman Sachs, cujo vice-presidente era, na altura, Mario Draghi, o actual presidente do Banco Central Europeu. Nada disto foi feito às escondidas da União Europeia e, no entanto, a Grécia continua a ser condenada por uma inevitabilidade que foi mantida por toda a gente, desde “O Governo Sachs” até ao próprio Governo da Grécia e tudo, claro, com aprovação da União Europeia.

A Grécia votou pela mudança nas últimas eleições e foi Alexis Tsipras, líder do partido Syriza (esquerda radical) que venceu. Tsipras prometeu renegociar uma nova solução para o nível da dívida grega com a Europa, afirmando estar “pronto para cooperar e negociar (…) uma solução justa, viável e que beneficie todos”.

A 20 de Fevereiro foi realizado um acordo no Eurogrupo, uma reunião que junta os vários ministros das Finanças que pertencem à Zona Euro, permitindo a extensão do empréstimo à Grécia até ao final do mês de Junho. Contudo, um mês após o acordo ter sido realizado, Jeroen Dijsselbloem, presidente do Eurogrupo e ministro das Finanças holandês, indicou que ainda não se fizeram muitos progressos e que “(...) é preciso deixar de perder tempo e começar a discutir de forma séria”.

Foi para debater a situação grega que os chefes de Estado e de Governo da União Europeia se reuniram na Cimeira Europeia em Bruxelas na passada quinta-feira, dia 19 de Março, focando-se no crescente aumento das dificul-

dades financeiras de Atenas e da possível saída da Grécia do euro. A reunião de três horas contou com a presença de Angela Merkel (chanceler alemã), François Hollande (presidente francês), Jean-Claude Juncker (líder da Comissão Europeia), Jeroen Disselbloem (chefe do Eurogrupo), Donald Tusk (líder do Conselho Europeu) e Mario Draghi (líder do Banco Central Europeu), mantendo de parte os outros Estados-membros. Esta foi concluída com uma mensagem clara ao primeiro-ministro da Grécia: “Deem-nos uma lista rapidamente, e o dinheiro chegará rapidamente.” Tsipras ficou, assim, com a responsabilidade de elaborar uma lista de reformas completa, tendo já confirmado que esta poderá ser antecipada dentro de sete a dez dias.

O tempo de realização destas novas reformas continua a ser um alvo de preocupação para as várias capitais europeias, discutindo-se a saída da Grécia do euro, denominada por Grexit (a pala-vra exit em inglês significa saída). No entanto, a chanceler alemã reforça que todas as ações tomadas até à data têm sido com o objetivo de manter a Grécia como membro integrante da zona euro e que se recusa a participar em debates que apoiem o contrário.“Não entrei nesse debate antes e não o vou fazer agora. (…) Tudo o que fazemos tem como objetivo apontar o caminho para manter a Grécia com parte do euro, como fizemos com sucesso nos anos mais recentes”, afirmou.

Com as eventuais mudanças provocadas pela nova lista de reformas do Governo grego, poderá ser convocado um novo encontro do Eurogrupo para que este tenha a possibilidade de a analisar e, posteriormente tomar decisões em relação aos pagamentos de ajuda à Grécia. Entretanto, a União Europeia irá disponibilizar à Grécia cerca de dois milhões de euros em fundos europeus após Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia, ter reconhecido que o país sofre de “uma crise humanitária”. Os fundos terão em vista “reforçar os esforços a favor do crescimento e da coesão social”.

A próxima reunião sobre a dívida grega ficou (na altura já vai ter passado) marcada para dia 23 de Março, com a visita do primeiro-ministro grego a Berlim. mariana FidaLgo

Texto escrito com o Novo Acordo Ortográfico

grécia é o centro das atenções na cimeira euroPeia

© EuropEan CounCil / François HollandE, angEla MErkEl E alExis Tsipras

“Os fundos terão em vista ‘reforçar os esforços a

favor do crescimento e da coesão social.”

“O tempo de realização destas novas reformas continua a ser um alvo de preocupação para as várias capitais europeias.”

oPinião: viram-se gregos Para negociar

inês LinHares dias

“Um dos problemas que a Grécia enfrenta hoje: confronto entre a vontade soberana do país e a intransigência da União Europeia.”

Page 15: Pontivírgula nº20

ACTUALIDADEBoris nemtsov, um dos PrinciPais oPositores de Putin, Foi aBatido no centro de moscovo

Passava pouco da meia-noite quando Boris Nemtsov, um dos maiores críticos ao presidente russo, Vladimir Putin, foi baleado perto da Praça Vermelha, no dia 27 de Fevereiro.

Boris Nemtsov tinha 55 anos e passeava, acompanhado por uma jovem, perto do Kremlin, quando foi alvo de quatro balas que o atin-giram nas costas. O opositor de Putin e deputado morreria no local.

O ataque aconteceu dois dias antes de uma manifestação agen-dada por Nemtsov, em que o russo iria discursar contra as políticas do actual presidente russo. Minutos antes de ser baleado, o antigo vice-primeiro-ministro discursara na rádio Eco de Moscovo, tendo apelado para a participação na manifestação contra a guerra na Ucrânia.

Para o presidente ucraniano, Petro Poroshenko, o homicídio prendeu-se com a intenção de Nemtsov de revelar provas sobre o envolvimento russo na Ucrânia.

Putin, num comunicado, apresentou as suas condolências, fazendo um elogio fúnebre em que referiu o espírito crítico e aberto do seu opositor, afirmando ainda que seriam feitos todos os possíveis para que se encontrassem os culpados do crime perpetuado contra o homem que “deixará a sua marca na história da Rússia”.

Líderes mundiais como François Hollande, Angela Merkel e Barack Obama demonstraram o seu pesar pela morte de Boris Nemtsov, zelando que seja feita uma investigação para determinar os culpados do crime.

No dia em que estava marcada a manifestação contra as políticas do governo russo – convocada por Nemtsov –, dezenas de milhares de pessoas ocuparam as ruas de Moscovo em sinal de protesto e homenagem ao opositor do regime. Nos cartazes empunhados podiam ler-se palavras de ordem como “Não temos medo” e “Je suis Boris Nemtsov”. A marcha terminou na ponte Bolshoi Kammeny, local onde o homicídio foi cometido.

Muitos foram os que culparam o presidente russo por este assas-sinato, mesmo que tenha sido de forma indirecta. Putin chamou mais do que uma vez “traidores” aos seus opositores, levando a “uma atmosfera de intolerância”, segundo Ilia Iashin, co-presidente do partido de Nemtsov.

O processo de investigação encontrou seis suspeitos, tendo apenas sido dois formalmente acusados e um outro suicidou-se num ataque bombista, quando se viu cercado pela polícia.

Zaur Dadayey admitiu em tribunal ter sido um dos responsáveis pelo homicídio, tendo assinado uma confissão declarando-se culpado. Segundo o presidente tchetcheno, Ramzan Kadiroy, Dadayey era membro de um batalhão policial ao seu serviço e considera que o ataque terá sido motivado pelas opiniões de Nemtsov relativamente ao ataque ao semanário Charlie Hebdo. De acordo com o presidente, Dadayey é extremamente religioso, tendo ficado chocado com os comentários de apoio proferidos relativamente à publicação das caricaturas.

Para Iashin, esta teoria do homicídio ter conotações religiosas serve apenas como engodo para tirar do foco a suposta implicação do Kremlin e de Putin. Um dos argumentos usados pelos opositores ao regime foi o de que a confissão fora conseguida através de coação.

diogo Barreto

israeL: Ficou tudo na mesma?

A (re)eleição de Netanyahu como Primeiro-Ministro de Israel, nas eleições de 17 de Março, revela que a escolha dos Israelitas foi para que tudo se mantivesse na mesma, face aos desafios que o país enfrenta e perante a manifestação clara das intenções do candidato reeleito. As eleições foram convocadas em Dezembro por Netanyahu, que ia no segundo ano de um mandato de 4 anos, por razões que ainda não foram reveladas. A expectativa do Primeiro-Ministro em exercício, de ganhar tranquilamente as eleições, foi rapidamente contrariada pelas sondagens, que projectavam uma luta renhida entre o Likud, partido do governo, e Isaac Herzog, líder da União Sionista, uma coligação de centro-esquerda. A contagem

dos votos acabou por revelar que o Likud conseguiu 30 lugares no parlamento israelita (Knesset) e a União Sionista teve apenas 24.

Apesar de o partido Likud ter obtido a maioria dos votos, cabe agora a Reuven Rivlin, presidente israelita, decidir qual dos dois líderes tem o direito a formar uma coligação que virá a formar o governo.

Netanyahu, numa tentativa desesperada de ganhar vantagem sobre Herzog, incitou os apoiantes de Bennett, líder do partido Jewish Home, a votarem no Likud e prometeu a Bennett um lugar de destaque no seu governo, caso

fosse eleito. Os apoiantes de Bennett responderam ao pedido, possibilitando assim uma maior vantagem do Likud em relação à União Sionista.

Durante a campanha, Netanyahu mostrou claramente que a solução de dois Estados, que passa por reconhecer direitos à Palestina, é uma opção que não pensa tomar e, pior ainda, que há muito pouco espaço para cidadãos árabes em Israel. Afirmações como a de que nunca haveria um Estado Palestiniano, enquanto o país estivesse sob a sua alçada, ou os comentários depreciativos feitos à adesão em massa às urnas de cidadãos árabes são um claro exemplo disso.

“Netanyahu mostrou claramente que há muito pouco espaço para

cidadãos árabes em Israel.”

ManiFEsTação a Favor dE Boris nEMTsov © WikipEdia

15

Page 16: Pontivírgula nº20

16ACTUALIDADE

inês LinHares dias

guerra cometidos, nos últimos anos, na faixa de Gaza.

Sob a ameaça de uma acusação, Israel pediu ao Canadá, Austrália e Alemanha para deixarem de financiar o TPI. Em

resposta ao apelo, a França, Ale-manha, Inglaterra e Itália anunciaram que iam ignorar o pedido israelita.

Israel está cada vez mais isolado e, sem o apoio internacional, perde a força de que precisa para manter a supremacia sobre a Palestina.

Os Israelitas optaram por manter o status quo político. Mas... Ficou tudo na mesma? Não creio.

“O problema nas relações israelo-palestinianas

não parece ter um fim diferente à vista.”

noivas jiHadistas – vítimas ou Potenciais terroristas?“A grandeza da sua posição, o propósito da sua

existência é o dever da maternidade divina. (...) Este é o papel fundamental e lugar de direito da mulher.”

Este é um excerto de um documento publicado pelas apoiantes femininas do Estado Islâmico (EI) no Iraque e na Síria, em que divulgam um manifesto sobre a conduta da mulher jihadista. O objetivo da Brigada Al-Khansaa, brigada feminina do EI, é desmistificar mitos, recrutar novas apoiantes e, simul-taneamente, fazer valer as regras dos radicais entre as demais mulheres na cidade de Al Raqqa, na Síria.

O documento, traduzido para inglês e publicado no site anti-extremismo Quilliam, está divido em três partes. A primeira nega a civilização ocidental, particularmente em temas relacionados com feminismo e educação. Na segunda parte, fazem uma descrição da vida em territórios controlados pelo Estado Islâmico, nomeadamente nas cidades de Mosul, no Iraque, e de Ragga, na Síria. Por último, o grupo faz uma comparação das vidas das mulheres que seguem as regras jihadistas e das que habitam a Arábia Saudita.

Embora seja desconhecido o número de adeptas da organização, as ativistas de Al Raqqa acreditam que sejam cerca de 200 mil. Nestes milhares, acredita-se que a maior parte das integrantes são estrangeiras, sobretudo britânicas.

Agora, a questão que se coloca é: quem é a vítima? Quem as obriga a filiar-se na organização e a submeter-se a esta infe-riorização? Resposta fria e crua... Ninguém. A triste verdade é que ninguém comprou as viagens às 550 mulheres que viajaram para o Iraque e para a Síria para se casarem, serem donas-de- -casa e terem filhos. Será que as alicia o facto de terem de viver sob as ordens do “chefe da família”, do homem? Ou será que o “relógio biológico” começou a contar mais cedo? Só para isto: lavar, submeter-se, procriar, arrumar, submeter-se, procriar novamente. É tão simples quanto isto? Não. Na verdade, as noivas jihadistas, as que escolhem este rumo, não só se deixam inferiorizar como, apesar de serem impedidas de combater, muitas são ativas propagandistas da causa nas redes sociais, festejando a brutal violência dos militantes do Estado Islâmico,

atuando como sargentos recrutadores e mesmo encorajando ataques no estrangeiro:

“Quem me dera ter sido eu a fazê-lo”, disse uma delas depois de o jornalista norte-americano Steven Sotloff ter sido morto.

“A minha melhor amiga é uma granada... E, ainda por cima, é americana. Que Alá permita que eu mate os soldados Kanzeer (porcos) com as suas próprias armas”, disse outra.

Agora vocês pensam: “Sim, as noivas jihadistas podem estar a fazer propaganda, mas elas apenas ladram, não mordem.” Na realidade, segundo afirma Ross Frenett, um especialista em extremismo, a maior preocupação é que, “à medida que o EI perca terreno, como toda a gente espera que aconteça, cada vez mais estas mulheres se transferirão do mundo doméstico em que estão agora para um mais violento.”

Este ângulo-cego, esta ideia de que as noivas jihadistas são apenas vítimas de uma lavagem cerebral, leva a que estas potências terroristas, a cada dia, hora, minuto e segundo, enco-rajem outras mulheres que estejam a pensar em juntar-se ao EI. O seu papel é, fundamentalmente, transmitir ao mundo exterior uma espécie de utopia do quotidiano sob o poder do Estado Islâmico. Estas mulheres são a ponte de ligação para este grupo terrorista, abrindo portas a novos adeptos e a novos terroristas. São o ponto fulcral deste ciclo vicioso.

Todavia, as noivas jihadistas, por muito que sejam senhoras do seu nariz, não são as únicas culpadas das suas ações. As restrições, feitas por muitos países ocidentais, à liberdade de praticarem a sua fé leva a que estas mulheres sintam a neces-sidade de procurar algo que as liberte e entusiasme. É esta falha que o EI as preenche, atraindo-as para esta imagem desse mundo (des)encantado.

Por esta razão, é necessário não só criar um sistema de apoio aos familiares destas jovens, como, principalmente, oferecer uma saída àquelas que se desiludem, que tomaram consciência da realidade.

Sendo assim, mais do que tudo, são os países ocidentais que têm a última palavra e são eles que devem agir já, uma vez que ou “falam agora ou calam-se para sempre”.

susana santosTexto escrito com o Novo Acordo Ortográfico

Ficou tudo na mesma?Aparentemente, o problema nas

relações israelo-palestinianas não parece ter um fim diferente à vista, pelo menos, não no que depender do governo israelita. Mas até que ponto é que esperávamos que o reconhecimento do Estado da Palestina viesse de Israel?

Infelizmente, a única espe-rança para os Palestinianos parece vir da pressão interna-cional e, felizmente, as atitudes radicais de Netanyahu têm captado a atenção dos líderes mundiais. A relação diplomática de Israel com os Estados Unidos fragilizou- -se durante o mandato anterior de Netanyahu.

A administração Obama deixou claro, aquando da reeleição do líder do Likud, que é imperativo que Israel se mova no sentido de estabelecer a paz com a Palestina e de reconhecê-la como um Estado. A União Europeia reiterou esta opinião. A campanha de boicote, desinvestimento e sanções dirigida a Israel intensificou-se durante a administração de Netanyahu. A Palestina está a ganhar força, o que é comprovado pela sua recente adesão como membro do Tribunal Penal Internacional (TPI), tendo permitido à Palestina apresentar queixa contra Israel pelos crimes de

Page 17: Pontivírgula nº20

17 ACTUALIDADEas dívidas de Passos coeLHo - a resPosta do Primeiro-ministro

O primeiro-ministro foi acusado de cinco processos no fisco, num total de quase seis mil euros. Passos Coelho admite atrasos na entrega de declara-ções às Finanças, mas insiste que não mantém nenhuma dívida atual.

O mês de março começa com uma nova polémica para o primeiro- -ministro português. Além das dívidas à Segurança Social, Passos Coelho é acusado pelo semanário Expresso de ser alvo de cinco processos instruídos pelo fisco entre 2003 e 2007 com um

valor aproximado de seis mil euros.

O presidente do PSD recusou fazer comentários sobre a veracidade das acusações e do valor da dívida que consta nos documentos revelados ao Expresso. Porém, aproveitou a sessão de encerramento das Jornadas Parlamentares do PSD, dia 3 de março, para denunciar as notícias do seu cadastro fiscal como ataques ad hominem.

O primeiro-ministro considera que se trata de uma estratégia de ataque pessoal de adversários sem projeto político definido para as legislativas.

As respostas de Passos Coelho

A oposição não ficou esclarecida com o discurso e tanto o PS como o PCP elaboraram 9 perguntas cada, acerca da carreira contributiva do líder do PSP.

A explicação chegou dia 6 de março e por entre as respostas Passos Coelho admitiu que se atrasou em pagamentos ao fisco, mas que não tem dívidas. “Nunca deixei de solver as minhas responsabilidades,” diz o primeiro-ministro ao confessar que desconhecia da regra, em vigor desde 1982, que o obrigava a fazer descontos para a Segurança Social durante o período em que foi trabalhador independente.

Contudo, Passos Coelho insiste que “quando assumi a liderança do meu partido em 2010 tive a preocupação de verificar que não tinha qualquer obrigação por cumprir.” e que não foi notificado de nenhuma falha pela Segurança Social.

A oposição considera as respostas do primeiro-ministro insatisfatórias. Vieira da Silva, vice-presidente da bancada socialista diz que o primeiro-ministro teve um “comporta-mento incompreensível e inaceitável” que espera ver refletido no resultado das eleições.

KarLa PequeninoTexto escrito com o Novo Acordo Ortográfico

reFLexão: consciência sociaL em temPos de crise e o PaPeL da comunicação

Os recursos diminuem, as necessidades aumentam. Assim vão não apenas as finanças, mas também as pessoas e, con-sequentemente, as instituições sociais. Ao longo dos últimos anos, têm sido cada vez mais os que recorrem à solidariedade

de alguém para (sobre)viver, como indicam dados recolhidos recentemente. Felizmente, ao mesmo tempo são também mais os que se prestam a ajudar o

próximo e que, muitas vezes, dispõem do seu tempo livre para partilhar algo diferente com quem não conhecem – aprendiza-gens, estudos, histórias. A par disto, o voluntariado começou a entrar pela janela de cada um de nós e a despertar uma consciência para os episódios humanamente menos dignos com que nos cruzamos no dia-a-dia.

Apesar de não incluir benefícios financeiros, não nos enganemos: o voluntariado não é uma actividade que tenha vantagens unilaterais. Segundo vários estudos, as motiva-ções podem ir desde a necessidade de um sentimento de pertença à de reconhecimento social – o que não significa, nestes casos, que o benefício pessoal seja colocado em primeiro lugar. Portugal, apesar de estar ainda abaixo da média europeia, apresenta uma subida considerável no número de pessoas que já desempenharam (e desempenham) trabalho em regime voluntário. Não é ao acaso que, por exemplo, o Banco Alimentar tem mais força desde 2010.

Numa situação de emergência social e insuficiência das instituições de solidariedade, as pessoas aperceberam-se da necessidade de intervir civicamente e da responsabilidade que podem ter no apoio ao próximo.

Também a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa regis-tou um disparo no número de candidaturas a voluntariado desde 2012 – mas será esta “procura” originada apenas pela situação actual? Não. O papel da comunicação, tra-duzido no mediatismo, tem sido fulcral para despertar consciências.

O desenvolvimento do digital, que está ao alcance de todos, permitiu às organizações posicionar-em-se e potenciarem-se com recurso à criatividade. Criar uma imagem, uma página, uma rede ou conseguir divulgar informação através de um press release é hoje mais simples, e a pró-activi-dade das instituições para as relações públicas é a chave para a captação de recursos humanos valiosos.

Por estes e outros motivos, a capacidade comunicativa das organizações ligadas à solidariedade social é hoje – e será cada vez mais – um elemento diferenciador para obter resultados, afirmar posição e criar valor corporativo.

“Felizmente, ao mesmo tempo são também mais o que se prestam a ajudar o próximo.”

“Numa situação de emergência social e insuficiência das insti-

tuições de solidariedade, as pessoas apercebem-se da

necessidade de intervir civica-mente e da responsabilidade

que podem ter no apoio ao próximo.”

pEdro passos CoElHo © WikiMEdia

inês madeira santos

Page 18: Pontivírgula nº20

ACTUALIDADE 18

uma máquina Fria

A lei que estabelece a cobrança coerciva nas porta-gens das ex-Scut já vem de 2006. Se é violenta e abusiva a cobrança coerciva nos moldes e montantes que conhecemos, o que dizer da penhora de bens alimentares doados a uma instituição?

Tal como tantas outras pelo país, a instituição

Coração da Cidade luta diariamente para assegurar refeições a milhares de pessoas. Mães, pais, filhos que não têm como fugir à situação aflitiva em que se encontram. Ao contrário do que o Português se habituou a dizer do Português, nem sempre o esforço é compensador.

A instituição do Porto comprometeu-se a ajudar cerca de 600 famílias, o que se traduz em mais de 2.000 pessoas todos os dias. Por elas são distribuídos à volta

de 2.500 quilos de alimentos. No final de fevereiro, a Coração da Cidade teve uma surpresa desagradável, um enorme contratempo no trabalho que desenvolve. O serviço de Finanças do Porto ordenou a penhora de alimentos destinados às famílias que deles necessitavam por uma dívida da instituição de 4.500 euros relativa a portagens das ex-Scut.

A presidente da associação – que não tem ajudas do Estado, vive da ajuda dos voluntários e de doações materiais e monetárias –, ao que parece, recusou saldar a dívida, visto que era um valor insuportável. Ainda assim, já tinha cumprido um plano de pagamento de 2.000 euros. A responsável pela instituição faz parte do grupo de pessoas que cumpre, naturalmente, com as suas obrigações, mas que não compactua com a perversão coerciva deste sistema que mina sem olhar a meios. Seria esta a prática usada por crianças a brincar aos agentes fiscais da Autoridade Tributária e Aduaneira da Kidzania? Nem pensar. O que dizer da ordem de penhora, de quem ordena, deste farejo? É impensável, desumano. Parece surreal, mas aconteceu. Acusaram as máquinas, o sistema informático foi responsabilizado.

No próprio dia, a Autoridade Tributária e Aduaneira teve a bondade de ordenar o levantamento da penhora, mas com cautela. Confirmou com a associação, primeiro, se os alimentos em questão se destinavam à causa de utili-dade pública que defende.

É uma questão intemporal. A das coimas, a das taxas e subtaxas, das custas processuais e juros abusivos. Há anos que ouvimos testemunhos de casos particu-lares, queixas, milhares de ocorrências que resultaram em verdadeiras dores de cabeça para quem recebe a notificação.

Em alguns casos, uma notificação em estádio avançado. O valor não cessa, a soma continua até que o contribuinte decida ou consiga pagar. Ao contrário do que o Português diz do Português, este último sabe que tem de pagar e cumpre, o que não implica ter de compactuar com este sistema fétido.

Vivemos sob o controlo de uma máquina complacente com os poderosos e implacável com os que pouco ou nada têm. Uma máquina do Estado, paga pelos contribuintes, a cobrar em proveito de privados. São férteis, para a máquina fiscal desapiedada, os métodos utilizados na caça aos utentes pelo incumprimento no pagamento das portagens.

Recordo uma notícia de 2014. Com contornos semelhantes, não posso deixar de a associar a este caso. Uma família esteve em risco de perder a sua casa, no valor de 19.500 euros, por uma dívida de 1.900 euros. O fisco preparava-se para leiloar a casa daquelas seis pessoas, uma senhora de 52 anos, viúva, com três filhos e dois netos.

Houve, contudo, uma

mobilização social notável. A senhora, com o ordenado penhorado há vários meses, tinha-se comprometido a entregar semanalmente 50 ou 100 euros na repartição de Finanças da sua área de

residência. E isto diz tudo. É bárbaro. É inaceitável. Aqui a questão é a do abuso, do furto premeditado e consciente.

É frequente depararmo-nos com um “não é possível, não existe outra forma”. Será realmente assim?

Recapitulando, uma dívida de mais de 4.000 euros, já por si só de existência questionável, leva a uma penhora de massa, arroz, bananas e outros alimentos doados, com curto prazo de validade.

O que foi aquilo? O estrondo de um país que bateu no fundo.

“Ao contrário do que o Português se habituou a dizer do Português, nem sempre o esforço é compensador.”

“O valor não cessa, a soma continua até que o

contribuinte decida ou consiga pagar.”

“Vivemos sob o controlo de uma máquina complacente com os poderosos e implacável com os que pouco ou nada têm.”

inês amadoTexto escrito com o Novo Acordo Ortográfico

Page 19: Pontivírgula nº20

ACTUALIDADE19

Dos Estados Unidos da América a Portugal: pobreza, preconceito, violência e forças de segurança

O abuso da autoridade por parte das forças policiais continua a gerar manchetes a nível nacional e internacional. Recorrer desnecessariamente à violência, deter indivíduos arbitrariamente com base na aparência física e intimidar suspeitos de crimes para obter confissões à força são exemplos dos excessos. Os casos tendem a envolver racismo e xenofobia e a ser protagonizados por autoridades que dizem atacar primeiro por medo de serem atacadas.

Michael Brown, o jovem negro que foi morto a tiro por suspeita de roubo em Ferguson, um subúrbio pobre nos Estados Unidos, tornou-se símbolo mundial da luta contra os abusos policiais. Apesar do agente responsável afirmar que disparou em defesa pessoal, testemunhas oculares dizem que foi desnecessário pois o jovem estava desarmado e pronto a entregar-se. A decisão do júri de não processar o polícia, Darren Wilson, originou uma onda de protestos violentos, manifestações e debates no país e no mundo. Quais devem ser os limites da autoridade? As denúncias são legítimas? É preferível uma polícia mais eficaz mas mais repressiva?

Em Portugal, a história de Brown tem despertado interesse dada à semelhança com as situações que se vivem nos bairros desfavorecidos. No Código Deontológico do Serviço Policial Português lê-se que os agentes têm o dever de “em qualquer circunstância, não infligir, instigar ou tolerar atos cruéis, desumanos ou degradantes.” (artigo 3º). No entanto, as acusações de abusos por parte da polícia feitas por portugueses a viver em zonas empobrecidas são frequentes e muitas das operações policiais parecem causar mortes desnecessárias.

Em 2010, o rapper Nuno Rodrigues, mais conhecido pelo nome artístico de MC Snake, não parou numa operação Stop e foi mortalmente baleado pelas costas durante a

perseguição. A polícia foi acusada de agir desproporcio-nalmente perante o comportamento desviante do rapper, mas não existiram mais consequências. Outro exemplo é a morte de Rúben Marques, em 2013. O jovem do bairro da Bela Vista seguia de motociclo sem capacete e despistou-se ao ser atingido com balas de borracha. A Polícia de Segurança Pública (PSP) admitiu à Lusa que foram feitos dois tiros de intimidação por o jovem ter desobedecido a uma ordem policial para parar. Os habitantes destas áreas dizem que as ações da PSP são fruto de preconceito e o mais recente conflito no bairro da Cova da Moura, em fevereiro de 2015, reacendeu o debate do abuso de autoridade e de agentes da PSP racistas em regiões degradadas.

Para Pensar: aBuso à/da autoridade em zonas desFavorecidas

2015: Excessos da autoridade na Cova da Moura

A 5 de fevereiro de 2015, confrontações entre agentes da PSP e um grupo de jovens no bairro da Cova da Moura, em Lisboa, levaram uma mulher de 35 anos a ser acidentalmente baleada pela polícia e jovens a serem alegadamente tortura-dos na esquadra após uma suposta tentativa de invasão da mesma. O relato dos acontecimentos varia consoante a fonte e é difícil perceber o motivo inicial do conflito.

Hugo Abreu, porta-voz do Comando Metropolitano de Lisboa, explicou à agência Lusa que tudo começou com o apedrejamento de uma carrinha policial por um membro de um grupo de jovens, obrigando os agentes a disparar para o ar para afastar os juvenis hostis, atingindo acidentalmente uma mulher. Os moradores contrariam esta versão e dizem, em entrevistas feitas pelo jornal Público, que a PSP iniciou a agressão. O jovem de 24 anos acusado de provocar a situação foi levado para a esquadra de Alfragide que terá tentado ser invadida por um grupo de amigos do detido. Porém, dois dos ditos agressores são funcionários da associação Moinho da Juventude, um projeto comunitário que recebeu o prémio de Direitos Humanos da Assembleia da República e apenas terão ido à esquadra pedir informa-ções. O protocolo Polícia de Proximidade, entre a PSP e a associação, pretende resolver situações de tensão e faz com que deslocações à esquadra sejam habituais.

Flávio Almada, membro da direção do Moinho da Juven-tude, conta ao audioblog AfroLis que a confusão com inva-sores era impossível e que foi “brutalizado pela equipa de intervenção rápida da PSP” e apelidado de “pretoguês”. O ativista social de 28 anos, formado em tradução e escrita criativa, diz que atitudes racistas da polícia são comuns e que verdadeiros casos de desrespeito à autoridade no bairro são raros. Para ele é algo que “ ninguém, principalmente quem vive neste bairro, pensa em fazer, porque sabe quais são as consequências” que incluem ataques físicos e verbais.

Novos protestos, velhas reclamações, «coisas que acontecem por aqui»

A revelação de imagens das agressões sofridas pelos jovens pelo Observatório de Controlo e Repressão levou a que muitos portugueses se manifestassem no passado dia 12 de fevereiro diante do Parlamento para exigir investigações sobre o que se terá passado na esquadra. Contudo, Flávio Almada não compreende a surpresa da sociedade portuguesa. “Isto são coisas que acontecem por aqui”, são as suas palavras para a AfroLis ao explicar que muitas vezes não se fala dos casos de abuso da autoridade porque se fecha os olhos ao preconceito que existe em Portugal.

“As acusações de abusos por parte da polícia feita por

portugueses a viver em zonas empobrecidas são frequentes.”

“As acusações de abusos por parte da polícia feita por portugueses a viver em zonas empobrecidas são frequentes.”

Page 20: Pontivírgula nº20

ACTUALIDADE 20

De facto, o Ministério da Administração Interna (MAI) já tinha sido notificado de comportamentos “indignos de seres humanos”, por parte dos agentes da PSP, numa carta redigida pela associação cultural Moinho da Juventude em 2013. Segundo um despacho do Ministério Público revelado ao jornal Sol, as acusações não foram consideradas relevantes pois o comportamento dos agentes terá sido proporcional embora “no meio da confusão (…), poderão ter ocorrido situações em que um ou outro agente se tenha excedido na utilização da força (…)”.

Sugestões de Boaventura de Sousa Santos

Um dos partici-pantes nos recentes protestos antirracistas contra o abuso do poder policial foi o sociólogo Boaventura de Sousa Santos que está a traba-

lhar com Flávio Almada num dos seus projetos académicos. O sociólogo disse ao jornal Público que não tem dúvidas de que as queixas dos habitantes de Cova da Moura correspondem à realidade e que a melhor forma de erradicar comporta-mentos abusivos da polícia é reconhecer que estes existem. O professor de Sociologia vai ainda avançar com uma petição para que questões de violência policial baseadas em racismo sejam debatidas no plenário da Assembleia República. Boaventura de Sousa Santos afirma que a educação é essencial e sugere que a PSP submeta os seus membros a cursos intensivos de direitos humanos, feitos em parceria com as universidades.

“‘no meio da confusão (...), poderão ter ocorrido situações em que um ou outro agente se tenha excedido na utilização da força (...).”

Atualmente, a linha entre o que é necessário para manter a segurança e o abuso de autoridade tende a ser ultrapassada, especialmente em regiões desfavorecidas com altos níveis de delinquência. É importante informar sobre a ocorrência destes casos e procurar sempre os dois lados da história. Contudo, os habitantes de Cova da Moura acusam o jornalismo por-tuguês de parcialidade e de compactar com as autoridades no silenciamento dos abusos policiais. Apontam o dedo às primeiras notícias publicadas sobre o dia 15 de fevereiro que chamaram “gangue” aos jovens que se dirigiram à esquadra de Alfragide. O semanário Sol é um dos jornais que corrigiu o termo para “grupo” após receber informações da associação Moinho da Juventude.

Um debate inacabado e o papel da comunicação social

As denúncias de abuso de autoridade em bairros periféricos têm de ser investigadas sem partir do pressuposto que são sempre consequência da marginalidade dessas populações. Porém, também não se pode perpetuar o receio à autoridade e não é positivo associar uma farda da polícia ao inimigo. Cada caso é único e a segurança pública não deve arcar com o peso de polícias receosos que têm ati-tudes excessivas devido a um sistema que não os questiona. Tem de se promover a educação sobre os direitos humanos, reconhecer erros e insistir no debate, caso contrário, pegando nas palavras de Flávio Almada, vai continuar a existir “um problema que eu não sei como se vai resolver”.

KarLa Pequenino

Texto escrito com o Novo Acordo Ortográfico

Portugueses a correr

Quantas vezes não estamos a tomar um café na esplanada ou a caminhar apres- sados para qual-quer lado e quase “esbarramos” com algum desportista

que vem a correr na nossa direção? Pois é. Parece que as corridas ao ar livre fazem cada vez mais parte do quotidi-ano de inúmeros Portugueses que não dispensam espaços abertos para fazer exercício físico.

Os treinos “outdoor” têm vindo a ganhar cada vez mais admiradores entre a população portuguesa. Trata-se de uma verdadeira batalha contra o sedentarismo e pela obtenção de um estilo de vida mais saudável. No entanto, os Portugueses continuam a não dispensar as idas ao ginásio e, contra-riando as expectativas face a uma crise financeira que teima em não desaparecer, as inscrições nos ginásios não têm sofrido grandes alterações, o que mostra que cada vez mais a população mantém a prática de atividade física no topo da sua lista de prioridades.

A motivação e vontade de tantas pessoas por esta prática desportiva levou a que muitos personal trainers tenham começado já a investir em treinos ao ar livre, especialmente nos dias de sol e de calor.

Com vista a motivar os Portugueses a continuarem a fazer exercício físico e a conseguir mais adeptos de um estilo de vida saudável, Bruno Claro, mentor da “Correr Lisboa”, lançou uma nova plataforma gratuita, chamada Move Bonus, no dia 19 de março, que se pode sincronizar com qualquer aplicação de um smartphone ou até mesmo de um relógio. A partir dessa plataforma, todo o exercício físico que uma pessoa fizer vai traduzir-se em pontos e, por sua vez, esses pontos darão lugar a descontos. Até o simples facto de escolher ir pelas escadas ao invés do elevador pode dar descontos aos menos preguiçosos! As parcerias com esta plataforma, até agora, passam pelos hotéis Tivoli, pelas lojas Running 7, Holmes Place, My Protein, Clínicas da Foz, 4 moove, Puma e Salming. Se algumas pessoas acharem, ainda assim, que não precisam de nada para as motivar a fazer desporto, podem doar os seus pontos a uma instituição, que se poderão traduzir em alimentos ou brinquedos.

Dentro de dois meses, a plataforma chegará também a Espanha, para motivar os turistas espanhóis a aproveitarem descontos em Portugal. A partir de agora os Portugueses poderão usufruir das suas tão desejadas corridas ao ar livre e ainda obter descontos com isso, o que só torna a prática de atividade física duplamente melhor.

joana santos

© googlE iMagEs

Texto escrito com o Novo Acordo Ortográfico

Page 21: Pontivírgula nº20
Page 22: Pontivírgula nº20

ACTUALIDADE 22

inês segurado marques: voLuntariado através da aHead

Em 2014, a Inês teve a oportunidade de fazer voluntariado na ex-colónia portuguesa, S. Tomé e Príncipe. Conversámos com a voluntária sobre esta marcante jornada e sobre a organização à qual pertence.

O que te motivou a ir para São Tomé fazer voluntariado?

Até ao ano de 2013 o voluntariado internacional nunca me tinha passado pela cabeça. Foi quando comecei a fazer “Bairros” na Ameixoeira (o programada nacional da AHEAD, Associação Humanitária de Educação e Apoio ao Desenvolvimento) que o “bichinho deu de si” e essa hipótese me começou a passar pela cabeça.

Demorei algum tempo até decidir se me havia de inscrever ou não e não foi um processo muito fácil, porque sabia que, mesmo passando as primeiras fases de seleção, podia não ser escolhida para o grupo dos

cinco! Contudo, nunca fui uma pessoa de desistir ou de gostar de pensar “como seria se o tivesse feito?” e arrisquei.

Desde esse momento, a AHEAD tornou-se uma “obsessão”, mas uma “obsessão” boa. Adormecia todos os dias a pensar como seria quando sentisse o cheiro daquela terra! Como seria quando lá estivesse! Aquilo que me motivava era muito simples… Dar. Dar. Dar. Sempre fui assim! Desde miúda que me lembro de me sentir muito mais entusiasmada a dar prendas de natal do que a receber (risos), mas também não vou ser hipócrita! Queria crescer. Queria sair da minha zona de conforto. Queria saber os meus limites, até onde não me custava ir. Quis perceber como era estar sozinha não estando e quis conhecer o outro lado da felicidade – aquele do não ter nada mas ter tudo. Se algum dia pensei que passar por uma experiência destas era um investimento no curriculum, por exemplo, ao longo dos meses de recrutamento (aqueles cinco meses antes de ser escolhida) essa ideia foi desaparecendo… O foco muda. O objetivo altera-se. Queremos ir porque queremos fazer a diferença, porque começamos a acreditar que somos capazes e mais de metade do medo inicial desaparece – aumenta apenas o medo de não ir.

Todos os dias me surgiam motivações diferentes, mas, ainda que também tenha feito isto por mim, nunca perdi a vontade de fazer isto pela ilha em si. Pelo direito à Educação, pelo direito à Igualdade. Pelo direito à Existência, ao Carinho, ao Amor.

Qual a experiência que nunca vais esquecer?

São muitas. Vivi um dia de cada vez e fui-me adaptando todos os dias, por isso até a forma como vivenciei as situações era diferente. Posso dizer que me lembro, como se fosse ontem de manhã, do momento em que aterrei em São Tomé. Lembro-me de chegar e sentir o bafo quente, de olhar em volta, entrar numa hiace e de passar uma placa que dizia “Bem-vindo a São Tome”.

Perfil: Inês Segurado Marques, antiga voluntária Rumos São Tomé 14 e atual coordenadora Rumos São Tomé 15.

Data de partida: 12 de julho de 2014.Data de regresso: 6 de setembro de 2014.

“Queria crescer. Queria sair da minha zona de conforto. Queria saber os meus limites, até onde não me custava ir. Quis perceber como era estar sozinha não estand e quis conhecer o outro lado da felicidade.”

Nesse exato momento, caíram-me as lágrimas e eu pensei que já não havia volta a dar! Eu estava lá, era real. Todo o esforço ao longo dos meses de recrutamento tinha realmente valido a pena e eu estava lá, aquilo estava a acontecer!

Eu sei que me estou a repetir um bocado, mas eu esforcei-me tanto para conseguir um lugar no grupo final dos cinco que cheguei a um ponto em que se não fosse escolhida, provavelmente tinha um colapso. Nessa manhã, a da chegada, após trocarmos dinheiro, fomos tomar o pequeno-almoço à Padaria Miguel Bernardo e, coincidência das coincidências, comi um croissant com fiambre e bebi um Compal de pêra! Eu estava em casa. Não existiam dúvidas. Durante dois meses, aquela foi a minha casa, onde eu construí a minha família – da qual eu me lembro todos os dias.

Posso contar também que, uma semana antes de me ir embora, despedi-me de Água Izé (na minha opinião, é

a Roça – grande propriedade rural, plantação – mais bonita daquela Terra), onde, dia sim, dia não, eu dava ATL aos mais pequenos. Nesse dia tive de me despedir da Serena. A Serena tinha três ou quatro anos (ela nunca soube dar a certeza) e era a miúda mais bonita que

ali andava – para mim. As lágrimas escorriam- -me rosto abaixo antes de chegar à porta da sala de aula. Despedi-me. Com sacrifício. A minha cara estava inchada da dor do adeus, que durante aquele dia inteiro se transformou em lágrimas que insistiam em não parar de correr. Eu ia-me embora na sexta-feira seguinte, mas tinha de me despedir, porque o projeto tinha chegado ao fim e porque eu queria aproveitar a minha última semana na ilha para estudar para três cadeiras da faculdade que ia fazer quando chegasse a Portugal.

Estudei a semana inteira e, sim, foi horrível, mas no dia da partida, na sexta-feira em que ia voar para o meu país, fiz todo o percurso que fazia ao longo de uma semana de trabalho.Reuni todos os sítios onde eu trabalhava num dia só e voltei. Por uns minutos ou poucas horas, tinha de voltar a olhar tudo de novo.

Quando subi Água Izé, encontrei a Serena, e quando a mãe dela a chamou para ir tomar banho, ela respondeu “Espera, mãe! A Inês voltou!”Aí eu soube. Não foi só ela que me tocou a mim, eu também a toquei a ela e não havia dúvidas de que a minha estadia lá tinha valido a pena para ambos os lados.

“Aí eu soube. Não foi só ela que me tocou a mim, eu também a toquei a ela e não havia dúvidas de que a minha estadia lá tinha valido a pena para ambos os lados.”

“O foco muda. O objetivo altera-se. Queremos ir porque

queremos fazer a diferença, porque começamos a acreditar que somos capazes e mais de

metade do medo inicial desaparece.”

Page 23: Pontivírgula nº20

ACTUALIDADE23

Qual foi a pessoa que mais te tocou?

Todos tocaram de um forma ou de outra. Já falei da Serena, mas os adolescentes a quem eu dava aulas de inglês e português e outras formações também me enchiam o coração todos os dias a partir do momento em que estavam sempre 30 minutos ou uma hora antes à porta da sala de aula, à espera que eu chegasse.São muitos nomes, não consigo escolher um e, sinceramente, também não me parece justo! Ia estar a “ignorar” nomes que têm importância. Todos têm. Todos marcam.

Muito resumidamente, o que fizeste no destino? O que é que pensas que foi mais recompensador?

A AHEAD tem uma parceria com a Santa Casa da Misericórdia e normalmente eles escolhem dois ou três voluntários dos cinco para desempenhar certas funções em certos sítios. Eu fui uma das NÃO escolhidas. Confesso que ao início isso me afetou um pouco, uma vez que eles nos escolhem pelos nossos currículos apenas, mas, quando me apercebi que isso não mudava nada, a frustração inicial de não ter sido escolhida passou (risos).

Eu sou estudante do curso de Psicologia com Mestrado Integrado em Psicologia Social e das Organizações e, por isso, quando me perguntaram o que mais gostava de fazer lá, e dado o trabalho em que a AHEAD se foca, assumi

rapidamente que era dar aulas e formações.

Trabalhei os dois meses inteiros com uma outra voluntária – a Isabel Costa, licenciada em Ciências da Educação – e juntas começámos por dar formação de professores aos professores do 1º

ciclo. Quando essa formação acabou (foram apenas duas semanas), demos início aos ATLs e às aulas e formações para jovens. Dia sim, dia não, íamos a Agua Izé e Ribeira Afonso dar aulas, formação a jovens e adolescentes.

A minha preocupação, e a da Isabel, foi sempre tocar em temas que achávamos que se adequavam à vida ou ao meio deles. Temas como o empreendedorismo, verbo to be e a diferença entre à, há e á foram abordados, entre muitos outros! Quando soubemos o que íamos fazer, decidimos em conjunto que não íamos complicar. Para nós era mais fácil começar pelo mais básico, sabíamos que íamos ter mais sucesso se começássemos pelas bases iniciais, ainda que eles tivessem (porque têm) muita vontade de aprender, como no inglês, por exemplo. Tínhamos duas manhãs e uma tarde livres, porque trazíamos para casa muitos e muitos trabalhos de casa para corrigir e porque tínhamos as atividades lúdico-pedagógicas para preparar. Contudo, dividíamos esse tempo de preparação de materiais com algumas horas na Cáritas.

A Cáritas é um orfanato, tal como cá em Portugal, que acolhe crianças até aos 18 anos. Essas crianças foram retiradas aos pais pelos mais diversos motivos ou então foram mesmo entregues por eles. Na Cáritas, eu estava com crianças até aos três anos e deliciava-me todos os dias. Eu e a Isabel entrávamos e eles corriam para os nossos braços.

Era o único sítio para onde íamos que não exigia preparação prévia – era só dar e dar e dar! Lembro-me de nos sentarmos no chão e de brincarmos sem interrupções sem que déssemos conta que o tempo tinha passado.

O que gostavas de transmitir a qualquer pessoa que esteja a pensar ou queira ou já faça voluntariado, com ou sem a AHEAD? O que queres que as pessoas absorvam da tua experiência?

Como coordenadora do Rumos São Tomé 15, sempre me preocupei em não deixar esquecer o vosso principal objetivo – o que vos leva a querer ir.

Cada um é como cada qual e eu acredito que as motivações dos meus voluntários são todas diferentes.

No entanto, há pontos importantes e que eu acho que têm de ser tidos em conta tanto para quem ainda vai como para quem já voltou: é um sistema de trocas. Desenganem- -se aqueles que acham que vão apenas dar! Desenganem- -se aqueles que acham que deram mais do que receberam! O voluntariado é gratificante pelo simples facto ou motivo de que, mesmo quem não tem nada, dá o máximo e o melhor que pode! Às vezes esse máximo é um sorriso que nos enche o coração.

Existe um grande investimento da nossa parte, sim, e isto serve para qualquer tipo de voluntariado, não só para o internacional. São algumas as horas que perdemos a preparar uma atividade, são algumas as horas que passamos a tentar estabelecer contactos e parcerias, são bastantes os dias que “perdemos” a fazer recrutamento e seleção para preencher as vagas dos próximos voluntários, mas ninguém é voluntário de profissão e isso sempre foi um lema que eu tentei ter bem assente e transmitir aos meus voluntários, já para não falar de que há alturas e alturas para vivermos as coisas. Integrar um projeto como este requer bastante responsabilidade e vontade! É impossível estar a “meio- -gás”. Para quem está a pensar fazer voluntariado (nacional ou não), pela AHEAD, só me resta dizer-lhes para “vestirem a camisola”, porque há um mundo fantástico, que com certeza não conhecem, à sua espera!

A AHEAD, Associação Humanitária de Educação e Apoio ao Desenvolvimento, é uma ONGD sem fins lucrativos que vive única e exclusivamente de ajudas de custo.

É uma Associação que tem dois programas – um nacional (o programa Bairros, que decorre no Bairro da Ameixoeira e no Bairro da Boavista) e um internacional (que decorre em São Tomé e Moçambique) – que se focam principalmente na educação. “Ser” AHEAD ou estar na AHEAD é acreditar na educação enquanto ferramenta principal para a construção de um mundo melhor. É acreditar na igualdade, na justiça, que é possível fazer a diferença. É acreditar.

“A população em geral não usa relógio, eles regem-se muito pelos horários biológicos e, por esse motivo, eram muitos os dias em que nós tínhamos de os ir chamar a casa ou à praia, porque ele já não se lembravam que íamos dar aula ou que naquele dia íamos lá!”

“Se tivesses de contar a tua experiência em duas palavras, quais

seriam?Parece descabido, sem sentido, mas

as palavras que escolho são VOU VOLTAR. Mas é que foi tão bom, tão

fantástico, que eu não tenho alternativa senão voltar lá outra vez.”

Mais informação em http://www.ahead.org.pt/

Doações através do NIF: 508 361 923

manueL cavazza

Texto escrito com o Novo Acordo Ortográfico

Page 24: Pontivírgula nº20

ACTUALIDADEsécuLo xxi e muLHeres gaMers

Em pleno ano de 2015, ainda são muitos os preconceitos ligados ao sexo feminino no mundo dos videojogos.

Recentemente, tem-se dado atenção às mulheres gamers que tentam entrar neste mundo estereotipado. A cultura dos gamers pressupõe jogos violentos que se focam em assuntos bélicos, e que mostram imagens depreciativas de mulheres. Porém, a cada dia que passa, consegue-se testemunhar a uma população de gamers dividida entre os que são a favor da entrada das mulheres neste universo, e os que são contra.

Com o número de exposições sobre jogos de vídeo a aumentar, pro-porcional à quantidade de interessados, são

muitos os que dão a sua opinião, como, por exemplo, Catarina Seabra, gamer que participou no evento Lisboa Games Week, defensora de que as mulheres chegam a ser “os melhores jogadores no ranking”, o que mostra que as mesmas têm a possibilidade de “atingir o topo”.

No entanto, de um ponto de vista do marketing, tem existido uma mudança na criação de jogos, agora feitos para atrair mulheres, que actualmente formam 49% dos jogadores, segundo um estudo realizado pela Associação Internacional de Criadores de Jogos (IGDA, International Game Developers Association).

Os criadores de jogos não se podem dar ao luxo de discriminar qualquer pessoa, por isso têm como objectivo atrair o máximo de jogadores possível, i ndependen temen te da forma como o jogo é jogado. Daí o interesse no tipo de entretenimento que as pessoas podem controlar e de que podem usufruir em qualquer lado, seja num computador, num tablet ou num smartphone pessoal. Um exemplo deste tipo de sucesso é o Candy Crush Saga, presença assídua entre os muitos que esperam por transportes públicos.

Ora, sabendo que as mulheres gamers são o novo nicho de interesse, porque e como é que ainda existem tantos problemas sociais relativamente a este tópico? O caso mais polémico, intitulado, de modo sensacio-nalista, #Gamergate, foi o de Zoe Quinn, criadora do jogo Depression Quest e vítima de assédio pelo seu ex-namorado, Eron Gjoni.

Gjoni publicou um post no seu blogue acusan-do Quinn de ter um caso com um jornalista que teria escrito uma crítica sobre a sua criação.

A denúncia não foi fundamentada e revelou o grande número de casos de misoginia neste mundo de videojogos.

Juntamente com

Quinn, também outras mulheres sofreram com este caso, como Anita Sarkeesian, blogger e comentadora, e Brianna Wu, também uma cria-dora de videojogos, famosa pelo Revolution 60.

É interessante como a ideia de mudança está ligada ao século XXI e como não existe nenhum processo linear que a acompanhe. Sabemos que daqui a alguns anos tudo vai estabilizar, mas até lá vive-se uma incógnita constante relativa a esta tão esperada e questionada transformação.

“Recentemente, tem-se dado atenção às mulheres gamers que tentam entrar neste mundo estereotipado.”

“No entanto, tem existido uma mudança na criação de

jogos, agora feitos para atrair mulheres, que actualmente

formam 49% dos jogadores.”“É interessante como

a ideia de mudança está ligada ao século XXI

e como não existe nenhum processo

linear que a acompanhe.”

madaLena giL

24

© darkain MulTiMEdia

Page 25: Pontivírgula nº20

ACTUALIDADEeLegia soBre o desaParecimento do Homem que não aParecia

li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,quando alguém morria perguntavam apenas:tinha paixão?quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:se tinha paixão pelas coisas gerais,água,música,pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,paixão pela paixão,tinha?e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,se posso morrer gregamente,que paixão?os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,homens e mulheres perdem a aurana usura,na política,no comércio,na indústria,dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,trémulos objectos entrando e saindodos dez tão poucos dedos para tantosobjectos do mundoe o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,palavra soprada a que forno com que fôlego,que alguém perguntasse: tinha paixão?afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,ponham muito alto a música e que eu dance,fluido, infindável,apanhado por toda a luz antiga e moderna,os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão e eu me perdesse nela,a paixão grega

de A Faca não Corta o Fogo

Herberto Hélder Luís Bernardes de Oliveira era natural do Funchal, nascido a 23 de Novembro de 1930. Frequentou a Faculdade de Letras de Coimbra, cur-sando tanto em Direito como em Filologia Românica, nunca chegando a completar nenhum dos cursos. Trabalhou como jor-nalista, tradutor, bibliotecário da biblioteca itinerante da Fundação Calouste Gulben-kian e apresentador de programas de rádio. Chegou até a orientar marinheiros entre os meandros da prostituição, na Bélgica. Mas foi, acima de tudo, mestre poeta.

Parte integrante do grupo intelectual que se reunia no Café Gelo no final da década de 50, onde se inseriam também Mário Cesariny, Luiz Pacheco e Manuel de Lima, recusou-se sempre a seguir um estilo literário. Servia a língua portuguesa sem grilhões que o prendessem a qualquer grupo ou género. Os seus temas recorren-tes eram a mística, a Mãe, a alquimia ou a mitologia e a morte. Escrevesse sobre o que escrevesse, denunciava sempre uma enorme mestria poética, como poucos mostraram ao escreverem na língua de Camões.

Recusava-se constantemente a dar entrevistas ou ser fotografado e declinou até o Prémio Pessoa, em 1994. Das foto-grafias conhecidas fica a impressão de um homem sério e sábio, sensação trans-mitida pela barba serrada e pelos olhos expressivos e lânguidos. Quem o ouvir a recitar os seus poemas descobrirá uma voz cavernosa e insular.

Tinha alma de poeta e não de estrela, como alguns dos poetas americanos que lia, como Ginsberg, Dylan ou Kerouak. Apreciador de música, gostava de Beatles, Leonard Cohen e Patti Smith. Recusava-se a aparecer e criou em torno de si uma aura de misticismo que poucos conseguiram descortinar. O único caminho para chegar ao conhecimento de Herberto Hélder é através da poesia que nos deixou.

Morreu no dia 23 de Março de 2015, na passada segunda-feira, em Cascais, aos 84 anos. Deixou-nos o seu maior dom, o da palavra. E é por ela que o lembraremos.

diogo Barreto

25

Page 26: Pontivírgula nº20

OPINIÃOo dia internacionaL da muLHer - numa PersPectiva mascuLina

“Um ente de paixão e sacrifício, De sofrimento cheio, eis a mulher!

Esmaga o coração dentro do peito, E nem te doas coração, sequer!”

Assim começa o poema “Mulheres”, da poeta Florbela Espanca – não me referirei à autora como “poetisa”, por respeito a Sophia de Mello Breyner Andresen.

Os versos apresentados são, na minha opinião, um axioma de como é vista a mulher. Um ser que sofre, mas que também ama; alguém que deve conter os seus sentimentos para si e fazer de tudo para esconder a dor que sofre, como Pessoa referiu na sua “Autopsicografia”.

Este mês é tão bom como qualquer outro para pensarmos na Mulher, mas a convenção é que seja em Março que se celebre o Dia Internacional da Mulher, o que levou ao seguinte episódio, no dia oito deste mês:

Estava com umas amigas e a data veio à baila. Todas se regozijaram e deram os “parabéns” entre si, por ser o dia “delas”. Depois de uns minutos, apercebi-me de que na verdade nenhuma delas sabia o contexto histórico deste dia. O Dia Internacional da Mulher perdeu o seu sentido original para passar a ser um dia em que se dão flores, chocolates e os “parabéns” às mulheres – tornou-se um Dia dos Namorados, mas só para pessoas do sexo feminino. Este texto é a minha forma de protestar contra este facto já enraizado.

A 28 de Fevereiro de 1909, em Nova Iorque, o Socialist Party of America organizou o primeiro “Dia da Mulher”, com o objectivo de celebrar a greve levada a cabo pela International Ladies’ Garment Workers’ Union, no ano de 1908. Esta greve tinha como objectivos conseguir horários mais reduzidos e melhores salários para as mulheres que trabalhavam nas fábricas. Outra das revindicações das grevistas era o direito ao voto. As demonstrações juntaram mais de 15.000 operárias nas ruas nova-iorquinas, que protestavam e lutavam pelos seus direitos.

Na Europa, os movimen-tos sufragistas começavam também a ganhar adeptas e, em 1910, foi convocada a International Women’s Con-ference, em que foi proposto por Luise Zietz, uma socialista

alemã, que se estabelecesse uma data anual dedicada a celebrar a Mulher. Esta celebração não era para ser apenas mais um dia, mas sim uma forma de revindicar activamente a igualdade de direitos entre homens e mulheres.

É a este espírito de luta que Florbela incita no seu poema, quando afirma “…não fraquejes/ Na luta; sê em Vénus sempre Marte”. Nestas estrofes, a poeta roga para que a Mulher dê uso ao seu espírito de luta e coragem, sem perder a sua natureza alva, pura e de amor.

No ano seguinte à I n te r na t iona l Women’s Conference, um milhão de pessoas do Norte da Europa celebraram o Dia Internacional da Mulher a 19 de Março. Só em 1914, na Rússia, esta data foi celebrada pela primeira vez a dia 8. A partir desse ano e até aos dias de hoje, celebramos sempre, no oitavo dia de Março, o Dia Internacional da Mulher.

Volvidos mais de cem anos destes primeiros passos, o Dia Internacional da Mulher perdeu o seu sentido. Ou então fomos nós que perdemos o sentido e deixámo-nos corromper, achando que todas as vitórias já foram alcançadas. A mulher já pode votar, ter uma carreira, escolher com quem quer casar e até pode usar calças e mini-saias. Há até países, como os E.U.A., em que há mais mulheres na faculdade do que homens. Já tivemos mesmo mulheres a desempenhar um papel político de excelência nos seus países – pensemos em Indira Gandhi, ou em Margaret Thatcher, ou ainda na actual chanceler alemã, Angela Merkel. Estas foram já grandes vitórias, mas não é ainda suficiente.

Ainda são vários os problemas enfrentados pelas mulheres na sociedade actual. Pensemos no “gender pay gap” – que não é um mito! –, nas burcas, apedrejamentos pelo “crime” de adultério, casamentos arranjados, violações ou violência doméstica, nomeando apenas alguns dos maiores dilemas. (Quem me conhece bem sabe que sou o primeiro a satirizar estes assuntos, mas agora falo o mais a sério que consigo.)

A verdade é que o Ocidente ganhou uma síndrome: a de achar que a luta já não é responsabilidade nossa. Os assuntos atrás referidos são problemas de outrem. Que sejam as mulheres que os sofrem na pele a lutar e insurgir-se, a nossa sociedade já se livrou desses dilemas. Mas voltemos ao poema de Florbela, para percebermos como, mesmo passados cem anos, ainda há muito por mudar. “Sempre o mundo é vil e infame e os homens/ Se te sentem gemer hão-de pisar-te”, redigiu a poeta, demonstrando aquilo que ainda hoje sabemos – o mundo não cessou de tentar minar o género feminino. E este não é um problema que só deva preocupar as sociedades orientais e africanas. Mesmo na “evoluída sociedade ocidental” observamos ataques contra a mulher que têm de cessar de uma vez por todas!

Perdemos o direito a celebrar o Dia Internacional da Mulher a partir do momento em que achamos que este dia é sobre oferecer flores, fazer posts no Facebook a dizer “Um óptimo dia às mulheres de todo o mundo”, tirar selfies cheias de hashtags como #óptimodiadamulherparaasminhasbitches e achar que o Dia Internacional da Mulher serve para as “nossas” Mulheres.

Não olvidemos o significado deste dia. Não nos esqueçamos o que a Mulher já sofreu. Não nos percamos nas vitórias que já foram alcançadas. Continuemos a lutar!

diogo Barreto

“O Dia Internacional da Mulher perdeu o seu sentido original para passar a ser um dia em que se dão flores, chocolates e ‘parabéns’ às mulheres.”

26

siMonE dE BEauvoir © googlE iMagEs

Page 27: Pontivírgula nº20

Caro José Sócrates,

Não tenho palavras para descrever a sua situação. É uma tremenda (in)justiça. Mas que acusações (i)merecidas são essas? Não imagina a minha (in)felicidade quando soube que um senhor tão (in)decoroso foi detido no aeroporto.

Decidi escrever para lhe dar ânimo. Sempre depositei uma (des)confiança (in)terminável em si.

Achei-o um primeiro-ministro (ir)repreensível, com uma vasta sabedoria. Devo dizer que quando decidiu abandonar o cargo fiquei desgraçada. Mas quando soube que ia fazer um curso de filosofia concluí que, finalmente, ia fazer justiça ao seu nome.

Repare em algumas semelhanças: Sócrates (o filósofo) foi preso também. Foi condenado à morte: deram-lhe cicuta. Uma verdadeira injustiça, já viu? Parece que o problema não é de agora. A sua cicuta é outra. Se tivesse ido para Atenas em vez de Paris, atrever-me-ia a dizer que o caríssimo seria uma reencarnação de Sócrates. Ainda bem que não é, se não a cicuta poderia ser verdadeira. A sua é outra… assim mais metafórica, menos mortífera, uma versão mais soft da história.

E, como deve saber, o sofismo é um problema, sempre foi. Eu acredito plenamente que a maioria dos políticos são sofistas, mas o senhor era autêntico. Por isso, (não) gosto de si.

Agora são os Portugueses que se dividem entre socráticos e não socráticos (como se voltássemos ao princípio). Ainda assim, tem apoiantes. A máxima socrática permanece na memória dos para sempre socráticos, que só sabem que nada sabem. E como sabem disso (que nada sabem), apoiam-no incondicionalmente.

Vejo aqui uma oportunidade para alterar a história. Um Sócrates que vence. Afinal, nunca vi a nossa justiça ser (in)justa.

Desejo-lhe as maiores felicidades.

ActuAlidAde

carta ao ex-Primeiro-ministro

OPINIÃO27

micHeLLe tomás

Texto escrito com o Novo Acordo Ortográfico

Page 28: Pontivírgula nº20

A RApARigA do BlAzeR RosA

LifestyLe

o maraviLHoso mundo das muLHeres

Neste pequeno espaço já falei um pouco de tudo, sobre o preconceito, sobre o amor, sobre o meu carnaval… Tudo situações pelas quais passei. Sempre quis que este espaço reflectisse a minha pessoa, a minha escrita, e penso ter conseguido isso mesmo. Logo na primeira coluna de todas falei-vos do que gostava, e hoje, sugeria que fizéssemos uma coisa diferente. Gosto de escrever sobre bom gosto, e gosto ainda mais de escrever sobre atentados ao mesmo. Não é dizer mal, não é ser mesquinha, não é ser superior. É apenas divertir-me enquanto escrevo, lembrar-me de situações caricatas que me tenham acontecido, é largar umas gargalhadas.

Por tudo isto, hoje vou falar de um assunto, digamos, delicado. Delicado porque há quem adore e seja defensora acérrima, e há quem deteste e repudie por completo a ideia. Dentro do grupo que as adora há toda uma variedade, há delas que gostam mais curtas, mais longas, simples, com desenhos… Há para todos os gostos. Estou obviamente a falar das unhas de gel.

mariana Leão costa

araparigadoblazerrosa.wordpress.com

OPINIÃO

Como os meus leitores podiam alegar que eu não tinha conhecimento de causa para falar sobre o assunto, há duas semanas estava a aterrar num sofá para fazer as tão faladas unhas. Primeiramente devo dizer que aquilo é um atentado à paciência de uma pessoa. Mais de duas horas sentada para me tratarem das unhas é demais, mesmo para mim, vaidosa desde sempre. Depois concluí que a minha opinião não mudou em nada, é uma maçada e dá um ar um tanto bimbo.

É verdade que as fiz simples, simples, com uma corzinha decente, mas não deixei de ter o ar que acima descrevi. Bom, talvez tudo isto seja preconceito. Ao pensar em unhas de gel vêm-me à cabeça unhas com meio metro, com desenhos de golfinhos e relevos de lacinhos. Não, não, não! Meninas, se me estão a ler, e se se revêm nas linhas acima, por favor, deixem as unhas de trinta centímetros para as artistas de circo. Não é bonito, não vos dá um ar elegante e ainda tem a desvantagem de não conseguirem abrir uma lata de Coca-cola sozinhas.

“Dentro do grupo que as adora há uma variedade, há delas que gostam

mais curtas, mais longas, simples, com desenhos... Há para todos os gostos.”

© JoannE duCkManTon

28

Page 29: Pontivírgula nº20

OPINIÃOtiqui-tAcA do despoRtodesPorto

semPre que saLto

danieLa riBeiro de Britodanielar-footballmagazine.blogspot.pt

Texto escrito com o Novo Acordo Ortográfico

Costa do Marfim, 20 de abril de 1984. Chegou a Portugal com cinco anos e cresceu em Odivelas. Foi vizinho do antigo recordista nacional de salto em altura e foi este senhor que o incentivou a praticar atletismo. Começou a treinar na Escola da Ramada, que frequentava na altura, e aos dez anos ingressou no Odivelas Futebol Clube.

Poderia contar toda a história da sua infância, adolescência, vida… Mas o certo e o mais importante, é que hoje ele é um ícone do desporto nacional e mundial. Um verdadeiro atleta, um ganhador nato e um perdedor motivado. Sim, porque nem sempre ganhou, mas reconheceu o mérito dos colegas e o seu esforço pessoal. A humildade levou-o a ser campeão do mundo de triplo salto em 2007, Medalha de Ouro nos Jogos Olímpicos de Pequim em 2008 e, no presente ano, Medalha de Ouro no Campeonato Europeu de Atletismo em Pista Coberta (Praga), com marca de 17,21cm.

Esta última conquista não foi apenas mais um título, não foi apenas mais uma celebração… Foi o orgulho de fazer soar novamente A Portuguesa além-fronteiras, foi aquele abraço ao treinador que o apoiou em cada momento, foi o erguer da bandeira verde e vermelha, que ele próprio usa para “abraçar” a pátria depois de cada vitória, que ele faz questão de pôr às costas como uma representação do povo português, do seu povo. Do seu país. Porquê? Porque não esquece as suas origens, não esquece quem lhe deu a mão para ser o Homem e o Atleta que é hoje. Porque, apesar de não ter nascido em Portugal, é português de alma e coração e o sangue lusitano corre-lhe nas veias, porque é um verdadeiro conquistador.

Mas porque é que esta conquista não foi apenas mais uma? Afinal, ele tinha sido campeão do mundo em 2007 e tinha vencido os Jogos Olímpicos em 2008.

A diferença é que, desta vez, ele tinha sentido o sabor amargo de uma lesão no joelho, em janeiro de 2014, que o afastou da competição durante longos meses. Certamente para ele, não há pior sentimento que aquela sensação de incapacidade, aquela angústia de querer e não poder fazer… Porque quem ama o seu trabalho, não precisa de trabalhar uma única vez na vida, porque é um prazer e não uma obrigação. E, tal como o cirurgião precisa de operações para se sentir feliz e o professor precisa das aulas para se sentir realizado na sua profissão, ele precisa do salto para se sentir vivo. Sim, a sua profissão é saltar. Salta como um verdadeiro campeão. Cada vez que Nelson Évora salta, salta para o infinito.

29

©siCnoTíCiasdEsporTo

“Ele precisa do salto para se sentir vivo. Cada vez que salta,

salta para o infinito.”

Page 30: Pontivírgula nº20

CULTURA 30

o cABidemoda

FiLiPe Faísca na moda LisBoa

Este mês trocaram-me as voltas. Tinha preparado uma coluna acutilante sobre as massas que frequentam a Moda Lisboa. Mas depois, no domingo, realizou-se um desfile muito especial.

O designer Filipe Faísca aliou-se à Fundação Rui Osório de Castro (FROC) - uma instituição não lucrativa que actua no campo científico das doenças oncológicas pediátricas - e criou uma colecção com base nos trabalhos das crianças beneficiárias.

Nove crianças em tratamento no IPO de Lisboa tiveram a oportunidade de realizar um workshop com o criador e, desta forma, ter a oportunidade única de visitar o seu atelier e perceber como as peças são feitas. O envolvimento de Filipe Faísca não ficou por aí pois desafiou as raparigas a fazerem uma série de desenhos sob o tema “Amor”, que mais tarde iriam ser usados como estampado para a colecção.

O desfile começou com uma vibe rockeira ao som de Led Zeppelin, de forma a entusiasmar o público, mas que cedo se transformou num ambiente mais calmo, relaxado e com um quê de boémio. A colecção intitulada Darling, uma referência ao vestido usado por Jane Birkin, é extremamente revivalista, das décadas de 60 e 70. Os vestidos girly fluídos, os conjuntos de camisolas e calças ligeiramente à boca-de-sino e os pêlos coloridos, trabalhados na perfeição, evocam um estilo cool e descontraído.

Posteriormente ao desfile, houve um cocktail com a pretensão de vender as peças da colecção, do qual 30% revertia para a FROC (ainda é possível adquirir peças na loja Filipe Faísca).

O desfile do Filipe Faísca foi o momento alto da Moda Lisboa e é um excelente exemplo que ilustra as minhas próximas afirmações.

Com isto, pretendo dizer que a maioria das pessoas encara a indústria da moda (odeio a expressão “mundo da moda”!) como um meio onde apenas a aparência é que conta. O código em vigor baseia-se no glamour, na beleza e na magreza e se não possuis nenhum destes requisitos estás fora. Este meio não é levado a sério e é, muitas vezes, caracterizado como superficial e sem significado profundo aparente.

Deste modo, acredito que este projecto veio desmistificar a questão para as pessoas mais cépticas: o desfile eliminou a sua impessoalidade, demonstrando que uma indústria que valoriza o exterior também pode aliar-se a causas sociais.

Em vez de se tornar um mero espectador, Filipe Faísca, decidiu tornar-se uma parte activa da questão. Juntou no mesmo palco o glamour e a consciência social. Ligou dois mundos que cada vez parecem mais distantes: o da moda e o real. Não foram apenas as raparigas magras, altas e sem expressão que participaram no desfile. Foram também crianças esperançosas com grandes sorrisos que desfilaram, de mãos dadas com o sonho que é a moda.

catarina veLoso

o-cabide-moda.blogspot.pt

©CaTarina vEloso “Com isto, pretendo dizer que a maioria

das pessoas encara a indústria da moda

como um meio onde apenas a aparência é

que conta.”

Page 31: Pontivírgula nº20

CULTURA31

FoRA de séRieséries

Hoje decidi trazer-vos esta coluna num formato um pouco diferente. Em vez de me debruçar exclusivamente sobre uma série, irei partilhar várias, para que possam ter mais opções de escolha.

Estou a gostar muito da versão americana de The Slap. Com um elenco excelente, cativa-me mais a cada episódio que passa. No início da temporada é-nos dado contexto e percebemos que houve um encontro de familiares e amigos, no qual houve um homem que deu um estalo a uma criança. À medida que a série avança, vamos conhecendo as personagens, uma a uma, e compreendendo a sua visão sobre o sucedido. Este é um tema que levanta algum debate, tendo em conta o contraste de opiniões que cada um tem. Se uns acham que a violência nunca se justifica, outros acharão que uma palmada ocasional nunca fez mal a ninguém. O próprio espectador é convidado a emitir juízos de valor sobre o estalo e sobre os seus intervenientes, num misto de histórias cruzadas que, na minha opinião, resulta num produto muito interessante.

Apenas conheço a realidade dos clubes motards americanos através das séries. Não sei onde acaba a linha factual e começa a ficção, como ter a certeza? Depois de Sons of Anarchy, surge Gangland Undercover, uma mini-série que conta uma história baseada em factos. E a verdade é sangrenta, cheia de intrigas. Charles Falco infiltra-se no clube Vagos, depois de ter feito um acordo com a polícia. Caso consiga informações úteis, poderá evitar a prisão, para onde iria pelos seus próprios crimes de tráfico de droga. Está longe de ser uma série documental, o tipo de narrativa é apelativo e construído para entretenimento.

misceLLaneous

Se o sucesso de uma série dependesse do seu elenco, American Crime teria muitos bons motivos para ser bem-sucedida. Os actores Timothy Hutton e Felicity Huffman representam um casal que descobre a morte do seu jovem filho. Somos convidados a entrar num enredo de várias personagens, cada uma com o seu problema e conflito. No fundo, interligam-se e tenho alguma curiosidade para ver como este drama se vai desenrolar. No entanto, a série poderá afastar os seus espectadores por ser demasiado pesada.

Para quem quer uma pausa de longos episódios de mais 40 minutos, existem algumas alternativas. Já vos falei de Togetherness, que continua com uma promissora linha de conteúdo. The Big Bang Theory e Modern Family são incontornáveis no seu género mas, para fugir à normalidade, temos ainda Broad City e Girls.

facebook.com/foradeserieportugalinês sousa aLmeida

“Em vez de me debruçar sobre uma

série, irei partilhar várias, para que possam ter mais

opções de escolha.”

Page 32: Pontivírgula nº20

CULTURA 32

joão marques da siLva

AstigmAtismo pRoFicientecinema

oPá, sPoiLa-mos

Cresci, e ainda cresço, com o meu avô materno a dizer-me que “a candeia que vai à frente alumia duas vezes”. Ora, do mesmo modo que o espectador comum demora a perceber que o Bruce Willis está morto desde o início do The Sixth Sense também eu tardei em compreender o rico e abundante significado proverbial. Só quando alcancei níveis mais altos de circunspecção é que entendi que meu avô não queria apenas sugerir que eu comesse uma segunda porção de sopa imediatamente a seguir à primeira.

Em situações de obtenção de conhecimento, caminhar na dianteira do grupo é um privilégio estratégico-posicional. Se para além disto ainda se transportar uma candeia acesa, acrescenta-se uma vantagem bélica. Ou seja, ter conhecimento contribui para a sobrevivência. Conhecimento é poder.

A posição da maior parte da população terrestre perante um filme novo parece ser a contrária. Limitam-se a conhecer dados de produção (quem são os actores e o realizador) e traços gerais da história. Sublimam sinopses raquíticas e cultuam os trailers - essa invenção prodigiosa mas altamente letal. Enfardam este conhecimento superficial e dizem-se cheios sem espaço para a sobremesa. Todo este modo de consumo incorre quase sempre numa militante abominação pelos spoilers.

Os spoilers (a própria palavra é pejorativa) são encarados como algo pernicioso para quem os recebe e como acto criminoso para quem os pratica. São vistos como destruidores da experiência fílmica, como seres contrários ao próprio Cinema e como anuladores de entretenimento. Ideias estas que atormentariam o meu avô, já que, na verdade, o spoiler é um núcleo de conhecimento. O spoiler é a candeia que alumiará duplamente a escuridão da sala de cinema cerebral.

“O spoiler traz a desilusão positiva e não a ilusão déspota da

manipuladora narrativa. Ele é amigo da sobriedade racional e, claro, da

emoção equilibrada.”Quero com isto afirmar que quanto mais se

conhece da área narrativa do filme, quanto maior for a nossa palpação do inacessível e invisível guião do filme, melhor será a nossa percepção e compreensão da parte visual, técnica e artística. Conhecendo de antemão que, em The Usual Suspects, Kevin Spacey não é Verbal mas sim Keyser Soze impele-nos a uma análise mais cuidada e clara dos zooms de câmara aquando do depoimento da personagem. Na mesma medida, saber que a boxeur Hillary Swank em Million Dollar Baby ficará tetraplégica na sequência do último combate do filme ajuda-nos a apreender melhor o conceito latente na rigidez da câmara. Um spoiler pode revelar muito mais do que um simples pormenor da intriga. Pode prever uma selecção de cores, antecipar enquadramentos ou explicar uma determinada montagem.

Assim, acumularmos o máximo de informação narrativa (e visual também) antes de ver um filme só contribui para a experiência de visualização sóbria. O spoiler traz a desilusão positiva e não a ilusão déspota da manipuladora narrativa. Ele é amigo da sobriedade racional e, claro, da emoção equilibrada.

Quanto mais se sabe, quanto mais se lê e vê acerca de um filme, mais se conclui que mais temos de saber. O conhecimento, através da germinação de mais conhecimento, aumenta o desconhecimento. Ir ver um filme sabendo quem é que morre no fim dá-nos vida hermeneuta. O spoiler quer deixar de ser alert.

Page 33: Pontivírgula nº20

CULTURA33

inteligênciA ARtiFiciAlgaMing/internet

quando eu For grande quero ser...

Vou directamente ao assunto e vou ser sincero. Nestas últimas duas semanas tenho estado a ocupar o meu tempo com Grand Theft Auto V, e o porquê pode ser interessante. Há inúmeras razões que explicam o charme deste jogo, se calhar uma delas é eu ser capaz de me vestir num fato branco com uma t-shirt cor-de-rosa, armado com uma pistola, roubar o mais parecido a um Ferrari, sintonizar a rádio que rebente a melhor música dos anos 80 e andar pela praia a fingir que faço parte de um dos episódios de Miami Vice, se calhar porque sou capaz de me juntar a três amigos e planificar a fuga de uma prisão, incluindo, obviamente: persecuções em terra e aéreas, saltos de pára-quedas e lutas intensas contra as forças especiais de cidade de Los Santos (alusão à cidade Americana de Los Angeles), tudo enquanto estou a cantarolar a célebre música do A-Team. Grand Theft Auto V é uma caixinha de areia para adultos e adoro. A sua grande razão de ser é a quantidade de liberdade de acção que o jogo provê ao jogador num actual panorama onde se normaliza e condiciona a escolha do jogador, limitando de uma forma ou outra a experiência, e é isto que nós, como jogadores, apreciamos; liberdade, mas liberdade em boa medida, saber o que fazer e o porquê de o fazer e não simplesmente deambular sem direcção.

“É um alívio saber que ainda existem produções

mediáticas, como os videojogos, capazes de voltar a despertar esse

sentimento.”

mitcHeL martins moLinos

Não quero falar especificamente do jogo, mas, muito por alto, a história e narrativa principal é de ser respeitada, sendo ela interessante, bem escrita e bem realizada. Contudo, a narrativa acaba por tomar uma função secundária à verdadeira história, aquela que o jogador produz, sozinho e junto de amigos. Este tipo de jogos proporciona ferramentas e a nossa disposição e o nosso desejo fazem dela o que nós quisermos. Estes tipos de momentos, na nossa vida adulta, levam-nos a memórias passadas como as histórias e aventuras audazes que maquinávamos como crianças: estando na praia, no recreio, ou sozinhos, fechados no nosso pensamento. Fazer de cada mão uma personagem, vilões e heróis, e produzir as mais variadas onomatopeias para adicionar “realismo” à nossa imaginação. A questão é essa, faz parte da vida crescer e, no caminho, a maior parte de nós esquece que individualmente éramos capazes de criar aventuras e mistérios incomparáveis. Isso perde-se, com o tempo muito se perde, mas é um alívio saber que ainda existem produções mediáticas, como os videojogos, capazes de voltar a despertar esse sentimento. Ser infantil não é sempre mau e o “quando eu for grande” pode tornar-se maçador. Joguem enquanto puderem.

© sCrEEnsHoT

Page 34: Pontivírgula nº20

CULTURA 34

HARmoniAs e contRApontosmúsica

a música e as muLHeres

O primeiro rascunho deste texto tinha como início o seguinte parágrafo: “Janis Joplin, Joni Mitchell, Patti Smith, Nina Simone, Billie Holliday, Maria Callas, Ella Fitzgerald, Grace Slick, Debbie Harry, PJ Harvey e Kim Gordon.”

Quando o reli e pensei um pouco mais naquilo que tinha para dizer, arranquei a folha do caderno, amarrotei-a e atirei-a para o lado. Pensei num outro início e voltou-me a parecer errado. Arranquei o papel e amarrotei-o. Desisti e fui ouvir a playlist que tinha preparado para este mês, em busca de inspiração.

Passaram-se três dias e vários discos na íntegra. Finalmente peguei de novo no texto. Sentei-me frente ao computador para escrever. Pela minha memória passavam-me fragmentos de Poesia, Beleza, Tristeza e Irreverência. A Espiritualidade juntava-se à Luta e à Leveza, enquanto a Alucinação abria a porta para a Altivez. Todas estas características comungavam em conjunto à mesma mesa. A mesa onde Joni Mitchell dividia um copo com PJ Harvey, Kim Gordon ensinava e aprendia com Billie Holliday, Janis Joplin ouvia avidamente Nina Simone e Maria Callas trocava impressões com Patti Smith sobre os mais variados temas. Uma utopia musical a desenrolar-se bem no epicentro do meu cérebro. O meu pensamento foi assoberbado. Afinal quem era eu para escrever sobre tão míticos seres? À medida que a dúvida se adensava no meu cérebro, desmultiplicavam-se os episódios e já Capicua dançava descalça junto a Grace Slick e Amália espicaçava-se com Edith Piaf. Ao mesmo tempo, Margo Timmins dividia um cigarro com Gal Costa, enquanto ouviam histórias contadas por Moon Unit (convenientemente falavam todas a mesma língua).

Cada vez que um novo episódio, tão simbólico e aleatório como qualquer outro, surgia, mais incapaz me sentia para poder escrever sobre o papel da mulher dentro do mundo paralelo que é a música. Horses, Blue, Pearl, Sister, Nina Simone and Her Friends, Lady in Satin, Parallel Lines, Surrealistic Pillow ou Tosca.

Vozes de uma beleza incontestável ou então com uma personalidade tão vincada que não conseguimos dissociar o que é canção, o que é sentimento; uma atitude de desafio e de bravura, ou então de tristeza e lamento que apenas nos agarram e puxam para a miséria da qual nem tentamos fugir e até acolhemos de braços abertos. Letras fortes, independentes e de luta ou então de dependência, desejo e sonhos. As dimensões são imensas e o universo constrói-se em volta destas mulheres que nos guiam por entre os seus medos e ambições, desgostos e triunfos, fragilidades e alentos.

Chegamos ao final do caminho. Olhando para trás consigo ver relações falhadas e relações de sucesso. Vejo drogas, álcool e vícios espalhados pelo chão. Vejo livros abertos, lidos e relidos, depostos no meio do caminho. Rasurados, com desenhos e letras gatafunhadas, os cadernos amontoam-se em projectos que muitas vezes nunca verão a ideia ser concretizada. Fotografias e cartas aglomeram-se por sobre peças de roupa perfumadas e coloridas e a trupe de músicas desapareceu.

Ao longe, uma porta entreaberta de onde sai um som abafado. Quando me achego da porta distingo no palco uma banda com todas as que se encontravam à mesa e depois a guiar-me por aquele caminho escuro e complexo. Não há como escrever sobre esta sensação que me passa pelo corpo. O arrepio que me percorre o sistema nervoso no momento em que as vejo, em que as oiço e em que as sinto.

Aquele momento em que não podemos dissociar mulher e música. São uma só entidade, como sempre devia ter sido. O canto de sereia surge para aprisionar o homem e a música ecoa pelas paredes.

“Aquele momento em que não podemos dissociar mulher e

música. São uma só entidade, como sempre devia ter sido.”

diogo Barreto

Page 35: Pontivírgula nº20

CULTURA35

cRiticAmente coRRetoLiteratura

ode a DiscworLD

Habitualmente planeio esta coluna com alguma antecedência, pois passo grande parte do meu monólogo anterior a categorizar o quanto eu gosto de coisas e a ordem delas. Todavia, por vezes, vejo-me diante de eventos que me obrigam a deitar fora todos os planos que fiz e a seguir o único caminho possível (como acontece em tantos outros campos da vida), portanto este mês falamos em Terry Prachett e Discworld.

Morreu recentemente Terry Prachett e com ele morre um dos pilares da fantasia moderna e embora seja normal as pessoas morrerem, será sempre cedo demais quando se é um escritor como Terry Prachett: Mestre do sentido de humor e criador de mundos incomparável.

Graças a ele foi-nos dado a conhecer o mundo de Discworld, uma provável Terra em forma de disco plano suportado por quatro elefantes que por sua vez se encontram

nas costas de uma tartaruga que atravessa o espaço.

Absurdo, mordaz, hilariante e cirúrgico o humor de Prachett no seu estilo muito inglês brinca ao longo de 44 livros e diversos contos com os arquétipos, os lugares-comuns, clichés não só da fantasia como de uma diversa panóplia de autores e assuntos, sem nunca sacrificar a sua história ou o mundo, obtendo o equilíbrio perfeito entre a sátira e a história de fantasia.

Um mundo tão vasto apresenta-nos personagens maiores que a vida que se tornam mais do que meras personagens de um livro, mas companheiros permanentes que crescem e evoluem connosco pelos anos fora, sempre numa versão mais estapafúrdia, pertinente ou ambos.

“A arte de Prachett estende-se ao longo de todos estes livros sem nunca se tornar repetitiva, devido ao seu amor pelo mundo”

Seja com Rincewind, um feiticeiro que chegou à profissão sem jeito, qualificações ou intenções de o ser mas, que por qualquer manha cósmica acaba sempre por se ver arrastado para viagens épicas de proporções T o l k i e n e s c a s (sim, Tolkienesco é o superlativo de épico nos tempos que correm), ou com Moist Von Lipwig um charlatão que acaba por tornar-se o chefe dos correios Ankh-Morpork e um pioneiro da locomotiva, a Morte e o seu cavalo esquelético Binky e as Bruxas que embora capazes de magia divertem-se mais a usar psicologia para atingirem os seus fins.

A arte de Prachett estende-se ao longo de todos estes livros sem nunca se tornar repetitiva, devido ao seu amor pelo mundo, pegando em pequenas coisas do quotidiano, na cultura popular e no absurdo de cada dia e torná-lo hilariante, importante e divertido. Discworld será sempre a sua maior obra-prima que infelizmente nunca poderá ser terminada, embora se possa considerar que Discworld há muito que ultrapassou os limites da vida humana e se tornou um universo só seu.

Para aqueles que ficaram curiosos: Discworld não teve o maior sucesso em Portugal portanto é impossível obter todos os livros da colecção, contudo aqueles que pretendem experimentar a literatura de Prachett podem encontrar livros dele na Caminho, Presença ou Saída de Emergência.

Terry Prachett morreu, mas Discworld continua sempre a rodar, como só um qualquer Deus (não vou ser picuinhas) sabe.

Pedro Pereira

“Terry Prachett morreu, mas Discworld

continua sempre a rodar, como só um

qualquer Deus sabe.”

Page 36: Pontivírgula nº20

CULTURA 36

pRodução escRitALiteratura

Pausa do traBaLHo

Mais um trago no cigarro. Mais um golo de gin. O vento liberta-me o cabelo e o espírito. Não! Porra, hoje detesto a contenção. O espírito é do pensamento e hoje estou de coração. O vento liberta-me o cabelo e a alma. Sou alta na minha pequenez, imensa na finitude dos corpos. Na varanda de um prédio com vista para o Cristo Rei e para a serra de Sintra, no que seria apenas mais uma pausa do trabalho, a beleza da cidade incandescida por uma noite primaveril desarma-me o alheamento rotineiro. O reverso da indiferença é o arrebatamento pontual. Brutal e volúvel, sem aviso. E, pior, causado por trivialidades de significado perdido.

A culpa é do dia que vive na noite. Quando vem sozinha, presta-se a estes mal-amados devaneios, quase sempre inoportunos. Mas são eles que me devolvem à paixão que o tempo vai calando em mim. O mundo não é uma selva, afinal. Ou, pelo menos, não agora. A desilusão existe porque existe

o homem, não é triste? Agora, que não há ninguém – a enfadonha ordem social determina que tudo o que é da vida flua sob o escrutínio da luz e, por isso, os vizinhos já dormem –, o encantamento da existência vence a letargia. Aquieta-me e perturba-me em simultâneo. Como é bom ser seduzida! Acontece-me cada vez menos com a gente… Só o incrível me entusiasma. Será por isso? As pessoas com que me cruzo estão presas aos velhos caminhos e às histórias que, de tanto contadas, já perderam

qualquer referência viva na memória das imagens. Parece um paradoxo. É extraordinária, por definição, a raridade. E a vista está cá todos os dias, sempre que regresso do trabalho – foi por ela, antes de mais, que comprei esta casa! Merda! Agora que penso sobre o assunto, é a primeira vez que dedico tempo a observá-la…

Acendo outro cigarro. Encho o copo quase vazio. Sinto-me ridícula por me ter tornado chata. Mas nunca a felicidade de ser foi tão agradavelmente sufocante... Tenho vontade de mim aqui, quero fazer amor com a noite e com o vento. Apesar de excitantes, as primeiras vezes não costumam corresponder às expectativas. Mas as primeiras vezes a três são incríveis, e já não sei menos do que isso. Há quanto tempo é que não danço comigo? Quando é que o pensamento de que a vida terminará um dia me incomodou pela última vez?

Há um número que não marco no telemóvel há demasiado tempo. De nada serve não o ter guardado, ainda o sei de cor. O reverso do incrível é não se prestar ao esquecimento. Amanhã vamos ser ridículos e chatos os três, se deixares. Eu, esta e tu.

joana cavaLeiro

Texto escrito com o Novo Acordo Ortográfico

©José FErnandEs Jr/FliCkr

“O reverso da indiferença é o arrebatamento pontual. Brutal e volúvel, sem aviso. E, pior, causado por trivialidades de significado perdido.”

Page 37: Pontivírgula nº20

CULTURA37

pRodução escRitALiteratura

Passou um ano

Passou um ano desde que eu jurei que lutei.Agora, aqui estou eu a refletir na Susana de há um

ano. Sabem o que eu vejo quando leio o meu texto? Um aperto, uma pena... Dá-me pena... E penso: “coitada de mim, estava tão mal daquela cabecinha...”. Pensamento que alguns de vocês partilharão, não é verdade? Inclusive, houve quem usasse palavras como vitimização ou quem não compreendesse que isto foi uma situação passada e não presente.

Agora, aqui estou eu a admitir que, nas primeiras instâncias, partilhei esses pensamentos todos. Quando foi publicado e todos a ele tiveram acesso, quando vi os comentários de pessoas ou quando recebi certas mensagens no Facebook, vinha-me sempre uma sensação de “mas que bimbalhada, que ridícula!”.

Depois é que caía em mim... CALMA, VAMOS TER CALMA! Eu não sou ridícula, não sou bimba e muito menos uma vítima! Maluca da cabeça talvez, mas também quem não é?

Sabem, pessoas, a Susana de há um ano foi uma pessoa que estava a lutar contra algo que a consumia, que a afastava de quem ela gostava e que ninguém mas ninguém a olho nu conseguia descobrir. Só eu. Eu era a culpada da minha situação e tenho consciência disso, aliás só eu é que conseguia mudar o rumo das coisas. Agora pergunto-vos: sabem qual foi o primeiro passo que dei para mudar? Para conseguir ultrapassar (e agora vou dizer a palavra que tanto tenho evitado dizer... Respira... Aqui vai) a bulimia? Foi este texto, foi ele que me permitiu arranjar coragem para dizer à minha família e às pessoas próximas de mim o que eu tinha, como eu tinha e como me sentia. Deu-me as armas para lutar contra mim mesma, a minha cabeça, que não parava e não parava e não parava e rava e ava... PARAVA!

A culpa de tudo era minha. Acabou. Simples. Eu sei disso, já na altura sabia. Era uma obsessão ser perfeita! Em tudo! Com tudo! Com todos! Com isto! Com aquilo! Com aqueles! Dar 200% em tudo, levar tudo até à exaustão, porque eu tinha de ser melhor do que isso, melhor do que eu própria! Era como se estivesse a correr a maratona contra mim mesma e estivesse a competir comigo própria, mas nunca ganhava porque, lá está, era contra mim que corria...

Passou um ano.Passou um ano desde que jurei que lutei.Ultrapassei? Se ultrapassei, não sei. Ajudou? Sem dúvida.

Procurei ajuda e tive apoio daqueles que me importam, acalmei-me. Consegui não ceder aos hábitos que tinha em destruir-me e consumir com obrigações e exigências que criava na minha própria cabeça. Mas será que ultrapassei? Não totalmente. A bulimia não se ultrapassa do dia para a noite. Eu continuo a não comer certas comidas. Faço exercício diariamente (é uma obrigação! Eu tenho de ir!) e ainda, por vezes, quebro e fico horas a ver as “falhas” do meu reflexo. Contudo, (respira fundo...) isto faz parte. A bulimia é um processo em que se vai limando pequenas/grandes arestas. Pode demorar meses, como pode demorar anos ou muito mais. O que interessa é iniciar o processo e combater os maus hábitos. Ao fazermos isso já é meio caminho andado para o resto. Simplificando, estou no bom caminho.

Por isso mesmo, a publicação do texto faz parte de um desses processos, o de não ter vergonha. De olhar para mim e pensar “Boa! Conseguiste sair de um 31! Vá... Ainda vais no 13, mas ao menos não estás no 31!”. Sabem o que é dar a cara para uma coisa destas? Meus amigos, eu fiquei horas e horas a decidir se expunha isto ou não... Acho que, nesse processo todo, fumei mil e quinhentos cigarros, arranquei cabelos e mordi os lábios de tal forma que no dia seguinte parecia a Angelina Jolie. Mas mandei. Foi. Acabou. Arrependo-me? Ao princípio, quando foi publicado, arrependi-me. Quando vi os comentários, na página da Maria Capaz, a dizer: “Mas, olhe, devia ir a um médico...”. Ou então quando havia quem, de forma subtil, dissesse certas palavras “rebeldes” (aquelas que saem assim como um perdigoto... Estão a ver?), como pena, vítima ou inferiorização. Não foram muitas pessoas a fazerem isto, é certo. Mas bastou para que eu começasse a duvidar das razões que me tinham levado a publicar o texto, ou começasse a ridicularizar o próprio texto em si. Epá, meus caros... Vão todos passear! Todos aqueles que disseram aquilo querem achar isso? Achem o que acharem, o certo é que aquele texto e a publicação daquele texto não só foram um processo de libertação do meu problema como me ajudaram a mim e a mais pessoas. Sim, leram bem... MAIS pessoas! Nunca pensei, mas imensa gente mandou-me mensagem para o Facebook: pessoas que conhecia e que não conhecia. A dizer um pouco de tudo, desde o simples, mas tão agradável, “obrigado” até ao “deste-me força para admitir que sofro do mesmo”. Isto sim! Estas coisas é que me fizeram ver, efetivamente, que não tenho de ter vergonha que saibam o meu segredo! Não tenho de ter problema em publicar um texto que escrevi quando estava a sofrer, estava a passar mal (por minha culpa, eu sei...), só porque houve pessoas que não atingiram, não perceberam o propósito.

Cada vez mais, vejo que nem todos somos iguais, nem todos lidamos com a nossa dor da mesma forma, nem todos temos a mesma dor e nem todos interpretamos as coisas de igual modo. Não se pode agradar a Gregos e a Troianos, não é verdade?

Eu não quero agradar nem a uns nem a outros, por isso vejam! Eu queria ajudar-me e ajudar aqueles/as que, em silêncio (tal como eu), estejam a passar por um problema, seja bulimia ou não, e que estão a entrar no ponto de exaustão. Por isso, falem, revoltem-se, escrevam, cantem, façam O QUE QUISEREM! Para se conseguirem soltar dessa situação! Se precisam de fazer isso, FAÇAM! Não jurem que lutam, lutem mesmo. Custa, mas vale a pena.

susana santos

“Cada vez mais, vejo que nem todos

somos iguais, nem todos lidamos com a nossa dor da mesma

forma, nem todos temos a mesma dor.”

Texto escrito com o Novo Acordo Ortográfico

Page 38: Pontivírgula nº20

AGENDA CULTURAL 38

plAylist de... diogo BARReto da Força à vuLneraBiLidade e da derrota à vitória, uma PersPectiva das muLHeres que comPõem a Banda sonora da minHa vida.

1. Patti Smith – Gloria: In Excelsis Deo/Gloria 2. Skunk Anansie – Weak3. Peaches – I Don’t Give a Fuck4. Florence & The Machine – Cosmic Love5. Sonic Youth – JC6. Capicua – Sereia Louca7. Blondie – Call Me8. PJ Harvey – Big Exit9. Jefferson Airplane – Somebody to Love10. Björk – Venus as a Boy11. Donna Summer – I Feel Love12. Édith Piaf – La Vie en Rose13. Ella Fitzgerald – How High the Moon14. Etta James – I Just Want to Make Love to You15. Gal Costa – Cinema Olympia

“Não serve de muito a riqueza nos bolsos quando há pobreza no coração.”PaPa Francisco

Desenho por André Maia

16. Tori Amos – Angie 17. A Naifa – A Verdade Apanha-se com Enganos18. Amália Rodrigues – Povo Que Lavas no Rio19. Nina Simone – I Loves You Porgy20. Annie Lennox – Into the West21. Joan Baez – Baby, I’m Gonna Leave You22. Madredeus – A Sombra23. Laurie Anderson – Transitory Life24. Cowboy Junkies – Come Calling (Her Song)25. Maria Callas – La Mamma Morta26. Portishead – The RIP27. Billie Holliday – Strange Fruit28. Cat Power – The Greatest29. Big Brother & The Holding Company – Piece of my Heart 30. Joni Mitchell – Case of You

Page 39: Pontivírgula nº20

conceRtos:

01/04/2015 - Joan Baez - Coliseu de Lisboa;10/04/2015 - Capitão Fausto interpretam Syd! + Cave Story - Lux;10 e 11/04/2015 - Lisbon Psych Fest - Teatro do Bairro;19/04/2015 - Kraftwerk - Coliseu de Lisboa;20/04/2015 - Scott Matthew - Cinema São Jorge.

livRos:

“American Gods”, Neil Gaiman;“Um Feiticeiro de Terramar”, Ursula K Le Guin;“Johnathan Strange & Mr. Norell”, Suzanne Clarke;“Máscaras de Matar”, Léon Arsenal;“The Haunting of Alaizabel Cray”, Chris Wooding.

Filmes:

“Le Meraviglie”/”O País das Maravilhas”, de Alice Rohrwacher;“Amour Fou”/”Amor Louco”, de Jessica Hausner;“The Water Divine”/”A Promessa de Uma Vida”, de Russel Crowe;“Furious 7”/”Velocidade Furiosa 7”, de James Wan;“Timbuktu”, de Abderrahmane Sissako.

eventos:

Estreia a 9 de Abril - Musical “A Noite das Mil Estrelas”, de Filipe La Féria - Casino Estoril;9 a 19 de Abril - Evento gastronómico “Peixe em Lisboa” | 8.ª edição - Pátio da Galé, Terreiro do Paço, Lisboa;10 a 19 de Abril - LisbonWeek 2015 (evento cultural e turístico de descoberta da cidade) | 3.ª edição - Alvalade, Lisboa; 23 a 26 de Abril - Festival In – Inovação e Criatividade | 2.ª edição - FIL, Lisboa;Até 9 de Maio - Exposição “Human Beings – God’s Only Mistake”, de Wasted Rita - Galeria Underdogs, Lisboa.

Jogos:

Bloodborne (PS4);Final Fantasy Type-0 HD (PS4; Xbox One);Battlefield Hardline (PS3; PS4; Xbox 360; Xbox One; PC);Life is Strange - Episode 2 (PS3; PS4; Xbox 360; Xbox One; PC);Borderlands: The Handsome Collection (PS4; Xbox One).

séRies:

Bloodline;Secrets and Lies;American Crime;Dig;Gangland Undercover.

O QUE VISITAR EM...

MADRID, uma cidade de saberes e sabores, com uma enorme quantidade de pessoas diferentes, de belas praças e ruas e com todo o tipo de entreteni-mento ao longo das ruas! É, sem dúvida, uma cidade de encantar! Ficam aqui algumas sugestões um pouco diferentes, a não perder.

1. Círculo de Bellas Artes - Localizado no centro de Madrid, este edifício conta com um grande número de visitantes diários, que têm a oportunidade de visi-tar as exposições que ocorrem ocasionalmente e/ou também subir ao sétimo andar e desfrutar da vista mais completa da cidade. É aqui que são tiradas as mais conhecidas fotografias panorâmicas da cidade;

2. Microteatro por Dinero - Para um programa dife-rente, sendo o conceito um mix entre bar e teatro. É possível ir apenas beber um copo ou, pelo valor de quatro euros, escolher uma mini peça de teatro para ver. As peças têm uma duração de cerca de vinte minutos, em salas que dão para dez/onze pessoas, o que marca toda a diferença na vivência da peça;

3. Lateral - Alerta tapas! Sendo possível encontrar um Lateral em vários pontos da cidade, este é um dos melhores e mais famosos restaurantes de tapas madrilenas. O ambiente é sofisticado e os preços são acessíveis, visto que quase todas as tapas dão para partilhar!;

4. 100 Montaditos - Um dos mais conhecidos e turísticos restaurantes de Madrid, popular pelos baixos preços e pelas 100 pequenas sandes diferentes (os chamados montaditos) que vende;

5. Madrid Rio - Zona pedestre e recreativa construí-da nas margens do rio Manzanares, assente também na Serra de Guadarrama, o que resulta numa panóplia de paisagens e diferentes ambientes num mesmo lugar. É um sítio único para passear e tirar fotografias!

FiLiPa roquette

AGENDA CULTURAL39

visTa dE Madrid do CírCulo das BEllas arTEs © Filipa roquETE

Page 40: Pontivírgula nº20