Popper e Indeterminismo

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Jorge Barbosa ESMGA Filosofia - Curso de Artes Visuais 11º 7ª Janeiro a Março, 2013 O CONCEITO DE INDETERMINISMO O indeterminismo nega que seja verdade que “tudo o que acontece tem uma causa”. Segundo o indeterminismo, nada acontece “necessariamente”, ou pelo menos alguns acontecimentos ocorrem de forma “não necessária”. Podemos falar de um “indeterminismo geral” e de um “indeterminismo especial”. O indeterminismo geral refere-se a todos os acontecimentos; abrange quer os fenómenos físicos, quer os fenómenos psíquicos. O indeterminismo especial refere-se ou ao “indeterminismo físico” ou ao “indeterminismo psíquico”. Neste texto, só será abordado o indeterminismo físico. O princípio de incerteza de Heisenberg O princípio de incerteza de Heisenberg afirma que quanto mais exatamente se determina a velocidade (momento) de uma partícula, menos exatamente se pode determinar a sua posição e vice-versa; ou seja, não se consegue determinar simultaneamente e com a mesma exatidão a velocidade (momento) e a posição de uma partícula subatómica. Considera-se frequentemente que este princípio de Heisenberg é uma prova do indeterminismo no mundo físico. Nesta interpretação, o determinismo que parece existir no mundo macrofísico (aquele a que temos acesso diretamente a partir dos nossos sentidos) é só um limite do indeterminismo no mundo microfísico; isto é, o mundo microfísico seria regido por leis estatísticas de probabilidade e não por leis deterministas; por seu turno, o mundo macrofísico seria também regido por leis estatísticas de probabilidade, mas, dado o número elevado de partículas envolvidas nas relações macrofísicas, esse mundo poderia ser considerado, na prática, como regido por leis deterministas. Nesta ordem de ideias, o determinismo seria uma “aproximação”, ou, recorrendo à linguagem de cálculo, um “arredondamento”, ou então uma “redução”. Em princípio, não existem leis deterministas válidas, mas, para efeitos práticos, não tem mal que falemos a respeito do nosso mundo como se elas existissem. Nesta interpretação, o indeterminismo não resulta de um intervenção do sujeito. Com efeito, recusa todo o tipo de subjetivismo, fazendo notar que não há nada de subjetivo no facto de ser impossível medir com exatidão duas quantidades físicas relacionadas; esta impossibilidade é atualmente concebida como uma consequência das leis matemáticas da mecânica quântica.

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Jorge BarbosaESMGAFilosofia - Curso de Artes Visuais 11º 7ªJaneiro a Março, 2013

O C O N C E I TO D E I N D E T E R M I N I S M O

O indeterminismo nega que seja verdade que “tudo o que acontece tem uma causa”. Segundo o indeterminismo, nada acontece “necessariamente”, ou pelo menos alguns acontecimentos ocorrem de forma “não necessária”.

Podemos falar de um “indeterminismo geral” e de um “indeterminismo especial”. O indeterminismo geral refere-se a todos os acontecimentos; abrange quer os fenómenos físicos, quer os fenómenos psíquicos. O indeterminismo especial refere-se ou ao “indeterminismo físico” ou ao “indeterminismo psíquico”. Neste texto, só será abordado o indeterminismo físico.

O princípio de incerteza de Heisenberg

O princípio de incerteza de Heisenberg afirma que quanto mais exatamente se determina a velocidade (momento) de uma partícula, menos exatamente se pode determinar a sua posição e vice-versa; ou seja, não se consegue determinar simultaneamente e com a mesma exatidão a velocidade (momento) e a posição de uma partícula subatómica.

Considera-se frequentemente que este princípio de Heisenberg é uma prova do indeterminismo no mundo físico. Nesta interpretação, o determinismo que parece existir no mundo macrofísico (aquele a que temos acesso diretamente a partir dos nossos sentidos) é só um limite do indeterminismo no mundo microfísico; isto é, o mundo microfísico seria regido por leis estatísticas de probabilidade e não por leis deterministas; por seu turno, o mundo macrofísico seria também regido por leis estatísticas de probabilidade, mas, dado o número elevado de partículas envolvidas nas relações macrofísicas, esse mundo poderia ser considerado, na prática, como regido por leis deterministas. Nesta ordem de ideias, o determinismo seria uma “aproximação”, ou, recorrendo à linguagem de cálculo, um “arredondamento”, ou então uma “redução”. Em princípio, não existem leis deterministas válidas, mas, para efeitos práticos, não tem mal que falemos a respeito do nosso mundo como se elas existissem. Nesta interpretação, o indeterminismo não resulta de um intervenção do sujeito. Com efeito, recusa todo o tipo de subjetivismo, fazendo notar que não há nada de subjetivo no facto de ser impossível medir com exatidão duas quantidades físicas relacionadas; esta impossibilidade é atualmente concebida como uma consequência das leis matemáticas da mecânica quântica.

Outra interpretação deste princípio admite que o princípio de incerteza é uma prova do indeterminismo, mas associa este indeterminismo à “intervenção” do observador no mundo subatómico.

No entanto, há quem considere que o princípio de incerteza de Heisenberg não é, ou ainda não é, uma prova suficiente do indeterminismo físico. Em defesa desta interpretação, são avançadas sobretudo três razões:

1. O facto de ser possível que exista interacção entre o observador e o observado prova que o suposto indeterminismo pode simplesmente resultar de uma “intervenção” subjetiva; se esta intervenção puder ser eliminada, com meios técnicos que venham a ser inventados, o indeterminismo seria eliminado.

2. As interpretações que defendem o indeterminismo fazem confusão entre “determinismo” e “previsibilidade”. A previsibilidade não é uma consequência necessária e suficiente de um sistema determinista. Com efeito, não pode dizer-se que, se um sistema é determinista, então todos os seus estados são previsíveis. Mesmo que algo não seja previsível no sistema, isso não quer dizer que ele não seja determinista.

3. Não é legítimo retirar conclusões das relações de incerteza, sobre a questão do determinismo ou do indeterminismo, pela simples razão de que os termos “momento” (velocidade) e “posição” usados na mecânica quântica atual, já não têm o mesmo sentido que tinham na mecânica clássica.

Na verdade, estas três razões são, elas próprias, tão pouco convincentes quanto aquilo mesmo que criticam. Afirmam, com efeito, não ser seguro defender o indeterminismo, mas também não podem afirmar que seja seguro defender o determinismo. Quando se nega algo por falta de provas, o argumento usado nunca serve de prova para o contrário.

Popper e o Indeterminismo

Motivações éticas e políticas

Não há dúvidas sobre o facto de a oposição de Popper ao determinismo conter em si mesma alguma forma de motivação ética e política. A sua defesa das liberdades individuais e das sociedades, face às pretensões tirânicas dos poderes do seu tempo, explica, em parte, a sua luta contra o determinismo. No entanto, esta defesa da liberdade baseia-se numa profunda reflexão ontológica e epistemológica em permanente diálogo conflituoso, mas construtivo, com conceções opostas à sua.

O conceito de abertura é talvez o que melhor caracteriza a posição de Popper, como podemos ver nos títulos que escolheu para algumas das suas obras: sociedade aberta, universo aberto, pesquisa sem fim… É como se a clausura, em qualquer das suas formas, fosse o principal adversário a abater, o

perigo a evitar. No entanto, compreendemos bem que sem clausura, sem encerramento, não há acabamento possível, nem, por isso mesmo, perfeição. É certo que vivemos numa época em que foram acumuladas conotações negativas sobre a ideia de clausura, mas não é claro como é que podemos manter em aberto todas as possibilidades iniciais num dado processo e fazê-lo avançar. Isto quer dizer que aquilo que é aberto pode deixar de o ser, na prática, para que se torne em alguma coisa. Por conseguinte, o “aberto” tende paradoxalmente a “fechar-se” sobre si mesmo. Popper sempre esteve consciente deste perigo, mas, nem por isso, deixou de contestar firmemente o determinismo.

O determinismo e as suas modalidades

Para perceber, de forma minimamente aceitável, o problema do determinismo, temos de o relacionar com a noção de tempo. Ao fim e ao cabo, tudo acaba por ser de algum modo e, neste sentido, o determinismo não é uma tese filosófica, mas uma constatação trivial do senso comum: se falarmos de coisas, e não de meras possibilidades que nunca se concretizam, nada escapa à individualização pormenorizada e definitiva de todos e de cada um dos seus traços definidores. Tudo, portanto, se determina na exata medida em que ocorre. Em contrapartida, o determinismo converte-se numa proposta não tautológica, se o considerarmos como uma prospeção, isto é, quando dizemos que o que vai acontecer amanhã é hoje tão inevitável como será no momento em que ocorra (a pedra cairá amanhã, se as condições necessárias se verificarem, por exemplo; ora, sabemos isto tão bem hoje quanto o saberemos no momento em que a pedra caia). Neste sentido prospetivo (“profético”), o determinismo não é uma tautologia. Se esta tese estiver correta, as suas consequências serão de grande monta. Com efeito, converte o tempo em algo de muito pouco relevante. E, por outro lado, fazendo-o, estabelece a melhor condição possível para se saber prever o futuro. Deixando de ser relevante, o tempo não é um factor perturbador das previsões. Esta será uma das razões que ajudam a compreender por que razão o determinismo teve tantos partidários.

Nesta relação entre tempo e determinismo, não é possível evitarmos os conceitos de objetivo e subjetivo. São termos importantes, na medida em que deles derivam perspetivas relativas ao determinismo que frequentemente se confundem, e que Popper tem o cuidado de manter bem separadas. Uma coisa é o determinismo objetivo, das próprias coisas, a que Popper chama determinismo metafísico, e outra é o determinismo acessível ao sujeito do conhecimento, que pode ser usado para prever acontecimentos futuros. A esta segunda modalidade de determinismo, Popper chama determinismo científico. Deste modo, Popper distingue a dimensão ontológica, da dimensão epistemológica, do determinismo. Para alguém que se situe nas correntes do realismo, o determinismo metafísico não pode ser excluído, mas, de acordo com o critério de demarcação de Popper, esse realismo só se torna operatório e relevante se não for puramente metafísico, ou seja, se puder ser refutado de uma forma ou de outra. Popper não viu qualquer inconveniente em confessar a sua preferência por uma ontologia indeterminista, mas remeteu sempre o debate racional sobre o determinismo para o campo da epistemologia.

A distinção entre verdade e certeza é crucial, porque a confusão entre os dois termos está na base da maioria das tentações idealistas do pensamento moderno; o epistemólogo não pode

renunciar à certeza, porque é a pedra de toque de todo o trabalho científico; só que o refutacionismo de Popper defende que só podemos ter a certeza do erro: a verdade é sempre incerta, está sempre submetida a conjeturas. Dito de outro modo: a verdade não é nem certa, nem incerta, simplesmente é. O que é incerto é a sua posse, e o que pode alguma vez ser certo é a consciência de estar longe dela. A verdade é, então, uma condição de possibilidade objetiva - e portanto ontológica - dos processos de conhecimento que a perseguem.

Popper e o Debate sobre o Determinismo

Para que possamos retirar o determinismo do seu limbo imaculado e para que ele se converta em algo suscetível de ser atacado e portanto relevante, é preciso enunciar o princípio a que Popper chama “de poder dar razão”. Razão de quê? Não da relação exata entre os antecedentes determinantes e o consequente determinado (entre as variáveis independentes e as variáveis dependentes na investigação científica), porque isso pertence à dimensão ontológica do problema que, de acordo com o que já foi dito, é relegada para fora do debate. Aquilo a que há que dar razão é à ligação lógica entre os enunciados que formaram as premissas e os enunciados que constituíram a conclusão do raciocínio antecipatório proporcionado pelo determinismo científico. Passamos, portanto, do mundo das coisas para o mundo dos conceitos e das palavras, o que tem um efeito imediato: ainda que sejamos capazes, legitimamente, de presumir uma relação necessária entre o passado e o futuro, as palavras nunca são unívocas, nem o seu significado totalmente preciso. É inútil querer dar aos conceitos uma maior nitidez do que a que o seu emprego requer, porque a nitidez absoluta não passa de uma miragem.

“(…) poderíamos dizer que o determinismo “científico” é consequência da tentativa de substituir uma vaga ideia de conhecimento antecipado do futuro por uma ideia mais rigorosa de previsibilidade de acordo com os procedimentos científicos racionais de previsão. Por outras palavras, o determinismo afirma que o futuro pode deduzir-se racionalmente a partir das condições iniciais do passado ou do presente em união com teorias universais verdadeiras.”

De certo modo, estas clarificações iniciais são também as primeiras escaramuças de um combate orientado para alcançar um objectivo importante: estabelecer as condições da tarefa de prova ou também que coisas recebem a simpatia e o apoio do senso comum. A tese pouco rigorosa de que o futuro tem a ver com o passado é tão óbvia que ninguém a põe seriamente em dúvida: todos sabem que nuvens negras anunciam chuva. Muitos deterministas pensam que estas constatações elementares constituem indícios de que todas as coisas estão ligadas entre si por vínculos que transcendem o tempo e o espaço, e que é lícito, até natural, extrapolar e universalizar esses vínculos até envolver neles toda a realidade.

Mas, ao lado da consciência da dependência do presente relativamente ao passado, existe também uma crença igualmente generalizada e comprovada: que o futuro é incerto e que é difícil, se não impossível, fazer prognósticos infalíveis. Por esta razão, a linguagem dos videntes foi sempre

deliberadamente ambígua, e o negócio das lotarias foi sempre lucrativo. O senso comum partilha as duas crenças: que há fortes ligações que unem o hoje com o ontem, e que todas elas juntas não são suficientes para prever o futuro com segurança. Neste sentido, o senso comum favorece, segundo Popper, o indeterminismo, uma vez que o determinismo não é a simples afirmação de relações causais mantidas ao longo do tempo: acresce ainda a exigência de um rigor ilimitado à ideia de causalidade, que uma vez enunciado se torna muito difícil de manter.

A Construção Científica da Realidade

Definição de Ciência

Enquanto os animais se limitam a estar no mundo, o homem tenta também entendê-lo; e, com base na sua inteligência imperfeita, mas aperfeiçoável, do mundo, o homem tenta dominá-lo para o tornar mais confortável. Neste processo, constrói um mundo artificial: um crescente corpo de ideias chamado “ciência”, que pode ser caracterizado como um conhecimento racional, sistemático, exacto, verificável e, por conseguinte, falível. Através da investigação científica, o homem conseguiu realizar uma reconstrução conceptual do mundo, que é cada vez mais ampla, mais profunda e mais exacta. A glória do homem não é suportar ou desprezar o mundo, mas enriquecê-lo construindo outros universos. Amansa e remodela a natureza submetendo-a às suas próprias necessidades; constrói a sociedade e é, por seu turno, construído por ela; tenta permanentemente remodelar esse mesmo ambiente artificial para o adaptar às suas próprias necessidades animais e espirituais, assim como aos seus sonhos: cria, assim, o mundo dos artefactos e o mundo da cultura. A ciência como actividade - como investigação - pertence à vida social. Na medida em que se aplica à melhoria do nosso meio natural e artificial, à invenção e à manufactura de bens materiais e culturais, a ciência converte-se em tecnologia. No entanto, a ciência apresenta-se como a mais deslumbrante e assombrosa das estrelas da cultura, que consideramos como um bem em si mesma, isto é, como um sistema de ideias estabelecidas provisoriamente (conhecimento científico), e como uma actividade produtora das novas ideias (investigação científica).

Assim definida, esta atividade poderia confundir-se com outras parecidas, com um objetivo parecido, como a filosofia, a arte e até a própria religião. Mas a atividade científica distingue-se das outras pelas suas características específicas. O conhecimento que lhe diz respeito:

✓ É um conhecimento racional, que se refere ao mundo material ou natureza, cujas regularidades pretende explicar e prever;

✓ É obtido através de um método experimental, do qual fazem parte a observação, a experimentação e as inferências a partir dos factos observados;

✓ É sistemático porque se organiza através de hipóteses, leis e teorias;

✓ É um conhecimento objetivo e público, porque procura ser reconhecido por todos como verdadeiro, ou, no mínimo, ser aceite por consenso universal.

A partir deste esclarecimento, o conceito de ciência deveria aplicar-se exclusivamente às chamadas ciências empíricas, como a Física ou a Química, e excluir as ciências formais, como a Matemática e a Lógica. Mas estas ciências formais são também ciências no pleno sentido da palavra porque, embora não se refiram a fenómenos da natureza, são também um conhecimento universal, sistemático e metódico, proporcionam instrumentos de cálculo e de inferência, necessários para o método e a sistematização das ciências empíricas e, para além disso, também mantêm alguma relação com a natureza, das quais constituem modelos ou formas que nos permitem pensá-la.

Historicamente, este tipo de conhecimento teve origem na Grécia, no século VI a.C., nas colónias jónicas da Ásia Menor, primeiro na forma de conhecimentos matemáticos e de astronomia, e, em seguida, na forma de cosmologias novas que vieram substituir - nos métodos, mas não nos objetivos - as velhas cosmogonias gregas, egípcias, babilónicas e judias. A este primeiro nascimento acrescentou-se, no século XVII, também no Ocidente e também nas margens do Mediterrâneo, o segundo e definitivo ressurgimento da ciência, graças à renovação do modelo astronómico do mundo, por obra de Nicolau Copérnico e, depois, graças à aplicação do método matemático aos fenómenos físicos da natureza, por obra de Galileu. Estes autores e aqueles que se lhes seguiram, apoiando-se no seu modelo de investigação, deram origem àquilo a que, na altura se chamou “ciência nova” e, mais tarde, “ciência moderna”. Esta ciência moderna, com a síntese da mecânica clássica de Newton, que correspondeu ao seu ponto mais alto, constituiu-se em modelo de conhecimento científico, ou de ciência, para toda a civilização posterior. É comum distinguir quatro períodos na constituição da ciência:

1. A passagem das primeiras cosmogonias míticas (babilónicas, egípcias, judias e gregas) para as novas cosmologias, iniciadas pelo pensamento racional dos jónicos da Ásia Menor, no século VI a.C, o que corresponde ao surgimento da Filosofia;

2. A construção da tradição geocêntrica e geoestática, graças a Platão e Aristóteles, e, sobretudo, o aparecimento da astronomia e da física aristotélicas;

3. A crise e crítica das ideias aristotélicas, na chamada revolução científica do início da era moderna com o estabelecimento do paradigma da mecânica de Newton;

4. As modificações deste mesmo paradigma e, por isso, da mecânica clássica e do modelo clássico de ciência, graças à teoria da relatividade especial de Einstein, ao nível da cosmologia, e à nova física quântica, no que diz respeito à constituição da matéria.

As características básicas de que goza a ciência são as mesmas que se atribuem ao conhecimento científico, uma vez que, em definitivo, são a mesma coisa (um é o resultado da atividade e a outra é a atividade humana que o produz), e só a eles se aplica a noção de episteme, tal como se denominava o verdadeiro saber entre os gregos, por oposição à mera opinião, que era considerada conhecimento

impróprio ou saber não fundamentado. No entanto, o valor de verdade na ciência deve ser reduzido à sua justa dimensão. E, assim, a filosofia da ciência de Popper salienta o aspeto provisório do conhecimento científico e insiste no facto de a ciência ser sobretudo aquela atividade racional que consiste em propor teoria provisórias, na forma de conjecturas audazes, a partir dos problemas que têm origem na nossa adaptação ao meio, para as submeter à prova da experimentação, comparando-as com os factos, afim de descobrir a sua possível falsidade. Daí que o que caracteriza o desenvolvimento da ciência não seja a acumulação de conhecimentos, mas a “busca da verdade persistente”.

A ciência não é um sistema de enunciados seguros e bem estabelecidos, nem tão pouco um sistema que tenha a possibilidade de progredir para um estado final, onde toda a realidade fosse explicada com conhecimento certo. A nossa ciência não é conhecimento (episteme): nunca pode pretender ter alcançado a verdade, nem sequer o seu substituto, a probabilidade.

Mas a ciência tem um valor que excede o da mera sobrevivência biológica; não é somente um instrumento útil: embora não consiga encontrar nem a verdade, nem a probabilidade, o esforço pelo conhecimento e a busca da verdade continuam a constituir as razões mais fortes da investigação científica.

Não sabemos: só podemos fazer conjecturas. As nossas previsões são guiadas pela fé nas leis, em regularidades que conseguimos descobrir. Já Bacon tinha descrito a ciência como (…) “o método de raciocinar que os homens, normalmente, aplicam à natureza”, acrescentando que consiste em “antecipações precipitadas e imaturas” e em “preconceitos”. Mas controlamos cuidadosamente estas conjecturas ou “antecipações”, tão maravilhosamente imaginativas e audazes, através de comparações sistemáticas: nenhuma das nossas “antecipações” se mantém dogmaticamente; o nosso método de investigação não consiste em defendê-las para demonstrar que tínhamos razão; mas, pelo contrário, em tentar contestá-las. Com todas as armas do nosso arsenal lógico, tentamos demonstrar que as nossas antecipações eram falsas, com o objetivo de propor, em sua substituição, novas antecipações injustificadas e injustificáveis, novos “preconceitos precipitados e prematuros”, como lhes chamou Bacon com muita ironia.

A ciência não persegue a meta ilusória de as suas respostas serem definitivas, nem sequer prováveis; antes pelo contrário, a sua marcha visa uma finalidade infinita - e, no entanto, ao nosso alcance: a de descobrir incessantemente problemas novos, mais profundos e mais gerais, e de submeter as nossas respostas sempre provisórias a refutações constantemente renovadas e cada vez mais rigorosas.

O produto da atividade científica é o conhecimento científico. As principais características deste conhecimento podem ser resumidas do seguinte modo: é um conhecimento racional, metódico, objetivo, verificável e sistemático, que se formula em leis e teorias, e que é comunicável e aberto à crítica e à eliminação de erros.

A maioria dos estudiosos da ciência concordam em atribuir ao pensamento científico as seguintes características:

a) Objetividade - Num primeiro nível, poderá dizer-se que o pensamento científico não é subjetivo, na justa medida em que não depende de interesses pessoais. No entanto, a um nível mais rigoroso, objetividade significa concordância ou adaptação ao objeto de estudo. O pensamento científico interessa-se pelos factos e não especula arbitrariamente. O termo objetividade significa, em bom rigor, adequação à realidade e independência dos interesses de quem conhece.

b) Racionalidade - É habitual chamar-se razão à faculdade que permite distinguir os homens dos restantes animais. Também se entende por razão o fundamento ou a explicação de alguma coisa. O pensamento científico não é formado por imagens, sensações ou hábitos de comportamento. Diz-se que há racionalidade na ciência, porque esta inclui princípios e leis científicas. O homem de ciência constrói imagens, tem sensações e possui certos hábitos de conduta, e realiza com eles o seu trabalho científico, mas baseia-se sempre em elementos racionais e os resultados que obtém têm de ser sempre de natureza racional. A racionalidade, neste caso, refere-se à possibilidade de associar conceitos de acordo com leis lógicas, gerando novos conceitos e descobertas, para, finalmente, ordenar estes conceitos em teorias.

c) Sistematicidade - Com frequência, ouvimos falar de diversos sistemas: sistema digestivo, sistema elétrico de um automóvel, etc. Podemos, então, entender por sistema uma série de elementos relacionados entre si de forma harmónica. Mas do ponto de vista da ciência, o conceito de sistema deve ser entendido com mais rigor, num sentido menos amplo. Os conhecimentos científicos não podem permanecer isolados e sem ordem; fazem sempre parte de um conjunto e mantêm relações uns com os outros. O conhecimento científico só tem significado se preservar essas relações de ordem e hierarquia. Acredita-se que as explicações da ciência se estruturam sistematicamente refletindo a ordem e a harmonia que existe na realidade.

Estas três características são também, certamente, aspirações do pensamento a que alguns autores chamam bom senso. Mas no bom senso, não são procuradas nem alcançadas na mesma medida.

Princípio de Incerteza e o Postulado da Objetividade

Heisenberg afirmou que os conceitos clássicos do mundo quotidiano também existem no princípio de incerteza, mas só podem ser utilizados na forma restrita revelada pelas relações de incerteza. Quanto mais conhecermos com rigor a posição de uma partícula, menos rigorosamente conheceremos o seu momento, e vice-versa.

Para explicar o seu princípio de incerteza, Heisenberg recorreu ao exemplo da observação de um electrão. Só conseguimos ver as coisas através da sua observação, o que implica o impacto de fotões de luz sobre essas coisas e sobre os nossos olhos. Um fotão não altera muito um objeto do tipo de uma casa, pelo que não é de esperar que uma casa seja afetada, de forma significativa, pelo facto de ser observada. Pelo contrário, para um electrão as coisas são muito diferentes. Um electrão é tão pequeno que, para o vermos, temos de recorrer a energia electromagnética de onda curta; a radiação electromagnética de onda curta é muito energética e qualquer fotão, que incida num electrão, de modo a que este possa ser detetado pelo dispositivo experimental, alterará drasticamente a posição e o momento do electrão. Torna-se, portanto, impossível medir com absoluta precisão, simultaneamente, a posição e o momento do electrão. No fundo, o que o princípio de incerteza defende, de acordo com a equação fundamental da mecânica quântica, é que não existem coisas como um electrão que possuam simultaneamente uma posição precisa e um momento preciso. A conclusão de Heisenberg é que “não conseguimos conhecer, em princípio, o presente em todos os seus pormenores”. É com esta fórmula que a teoria quântica se afasta do determinismo clássico. Para Newton, com efeito, seria possível prever completamente o futuro, se fosse conhecida a posição e o momento de cada partícula do universo; para os físicos actuais, a ideia de previsão tão perfeita não tem sentido, porque não se consegue conhecer com precisão absoluta a posição e o momento de uma partícula.

Um aspeto importante do princípio de incerteza é que ele não funciona do mesmo modo para o futuro e para o passado. As relações de incerteza indicam que não é possível conhecer a posição e o momento simultaneamente e, por conseguinte, não é possível prever o futuro; o futuro é essencialmente imprevisível e incerto. Mas é compatível com as regras da mecânica quântica idealizar uma experiência, a partir da qual se possa calcular exatamente qual era a posição e o momento de uma partícula num instante do passado. O futuro é essencialmente incerto; não se sabe com certeza para onde vamos. Mas o passado está exatamente definido: sabe-se exatamente de onde vimos. Movemo-nos de um passado conhecido para um futuro incerto; esta é a característica fundamental do mundo quântico.

A interpretação de Copenhaga deste princípio defende que, enquanto na Física clássica, concebemos que um sistema de partículas funciona como a máquina de um relógio, independentemente de estar a ser observado ou não, na Física quântica o observador interage com o sistema, de tal forma que o sistema não pode ser considerado como tendo uma existência independente. Ao optarmos por medir com rigor uma partícula, forçamo-la a apresentar maior incerteza no seu momento. Na Física clássica, conseguimos descrever as posições das partículas com precisão no espaço e no tempo, e prever o seu comportamento de forma precisa; na Física quântica, não conseguimos.

Esta interpretação tem consequências:

a) Em primeiro lugar, temos de aceitar o facto de que observar uma coisa a modifica, e que o observador faz parte da experiência, isto é, não há um mecanismo que funcione independentemente de ser observado ou não.

b) Em segundo lugar, o que pode ser inferido da experimentação é a probabilidade de ao observar o sistema se obter o resultado A, e de, numa observação posterior, se obter o resultado B. Não se pode dizer nada sobre o que se passa quando não se observa, nem como o sistema passa de A para B, se é que passa. Por vezes, as coisas são observadas no estado A, outras vezes no B, e saber como a alteração de A para B ocorre não faz sentido.

Esta nova forma de conceber a ciência tem vindo a promover dois tipos de alterações fundamentais face à mecânica clássica:

1. Há limites no conhecimento sobre o que está a acontecer a uma partícula, no momento em que a estamos a observar.

2. Não temos qualquer ideia do que está a acontecer ou a fazer uma partícula, quando não a estamos a observar. O dado é a própria observação. Uma observação só tem sentido no contexto da experiência.

Deste modo, não só é negada a objetividade do conhecimento científico - coisa sagrada para a Física clássica - como também se afirma que não podemos saber com certeza absoluta se existe o mundo físico exterior a nós, quando não o estamos a observar. Esta surpreendente conclusão resulta do seguinte raciocínio:

1. Se respeitarmos o receituário quântico, podemos realizar uma experiência que produza resultados compatíveis com a interpretação de que existe uma certa partícula;

2. Seguindo a mesma receita, quase sempre, obtemos os mesmos resultados;

3. Mas a interpretação ocorre na nossa mente, não havendo nada que garanta que não se trata de uma ilusão coerente;

4. As equações não dizem nada a respeito do comportamento das partículas, quando não são observadas;

5. No mundo quântico, só se pode tratar do que se observa, e nada é real;

6. O máximo que podemos conseguir é um conjunto de ilusões que sejam coerentes entre si.

A Teoria da Objetividade de Popper

Para Karl Popper existe uma única metodologia de investigação científica, que se aplica de igual modo às ciências da natureza e às ciências sociais. Este monismo metodológico determina também um critério geral de objetividade no estudo das ciências da natureza e das ciências sociais., no que diz respeito à dinâmica do problema, conjecturas e tentativas de refutação. Isto não quer dizer que, para ele, não existam diferenças entre as ciências naturais e as ciências sociais. “Não pretendo afirmar que não existe diferença alguma entre os métodos das ciências teóricas da natureza e da sociedade; tais diferenças existem muito claramente, inclusive no interior das próprias ciências naturais tal como no interior das diferentes ciências sociais… mas estou de acordo com Comte e Mill… em que os métodos dos dois campos são fundamentalmente os mesmos… o método consiste em oferecer uma explicação causal dedutiva, e em experimentar através de previsões. A este foi dado, por vezes, o nome de método hipotético-dedutivo, ou, mais frequentemente, método de hipóteses, porque não obtém certeza absoluta para nenhuma das proposições científicas que experimenta; pelo contrário, estas proposições conservam sempre o carácter de hipótese…”

A atitude objetiva do cientista exige que, no processo de experimentação e validação da teoria, se procurem elementos falsificadores e, no caso de serem encontrados, , a postura do investigador deve ser a de denunciar a cegueira intelectual que deu origem à teoria. “Porque se não mantivermos uma atitude crítica, encontraremos sempre o que procuramos: procuraremos e encontraremos confirmações e afastaremos os olhos de qualquer coisa que possa ser perigosa para as nossas teorias favoritas, e conseguiremos nem a ver. Desta forma, é demasiado fácil conseguir o que parecem ser provas esmagadoras a favor de uma teoria que, se tivesse sido encarada criticamente, teria sido refutada; para que o método da seleção por eliminação funcione, e para nos assegurarmos que só as teorias mais aptas sobrevivem, a sua luta pela vida tem de ser severa”.

O método desenvolve-se em três etapas: o problema, as tentativas de solução e a eliminação.

1. A primeira etapa surge para Popper num cenário de perturbação, onde as condições são altamente subjetivas. O problema e a sua colocação ou criação é um ponto de vista do indivíduo, que age com toda a sua carga emocional, sem ignorar que tem de lhe aplicar, de igual modo, uma carga lógica e teórica.

2. Na segunda etapa, surgem as tentativas de solução, isto é, as tentativas para solucionar o problema. Esta etapa requer um maior grau de rigor e objetividade, uma vez que a honestidade intelectual exige que os constructos alternativos para a solução de problemas se submetam aos mais exigentes testes de contraste.

3. A última etapa, chamada de etapa de refutação (eliminação ou supressão), é aquela em que a objetividade é mais importante e decisiva, em que o cientista se liberta do apreço pela teoria e se converte no seu principal crítico.

Popper desenvolve o seu conceito de pensamento objetivo na proposta dos “três mundos”. “O mundo consta, pelo menos, de três sub-mundos antagonicamente distintos: o primeiro é o mundo físico ou dos estados físicos; o segundo é o mundo mental ou dos estados mentais; o terceiro é o dos inteligíveis ou das ideias em sentido objetivo, o mundo dos objetos de pensamento possíveis: o mundo das teorias em si mesmas e nas suas relações lógicas, dos argumentos e das situações problemáticas, tomados em si mesmos”.

O desenvolvimento da teoria dos três mundos de Popper mostra-nos uma distinção entre o que é o mundo em si, o mundo subjetivo e o mundo objetivo; o mundo em si permanece em si, numa linguagem Kantiana, como o nómeno, que é incognoscível para o homem, dele só podemos estudar os fenómenos; o segundo mundo é o das concepções individuais de pensamento, mundo totalmente subjetivo, pela sua dependência exclusiva do olhar do homem; e o terceiro mundo é o mundo objetivo graças à validação intersubjetiva das concepções inicialmente de natureza individual.

Assim se entende o conceito de objetividade em Karl Popper. Trata-se de uma tese de “epistemologia sem sujeito cognoscente”. Podemos salientar os seguintes aspetos desta teoria:

1. O terceiro mundo (o mundo dos inteligíveis) é o mundo objetivo, graças à validação intersubjetiva ou acordo entre sujeitos.

2. No mundo objetivo encontram-se construções científicas, mas também poéticas e artísticas.

3. A existência do mundo objetivo é independente da existência dos outros dois mundos, embora requeira esses dois mundos para a sua construção. Depois de criado, é independente e relativamente autónomo.

A proposta da existência de um terceiro mundo autónomo e independente, permite a Popper apresentá-lo como um mundo objetivo, e apresentar o seu estudo epistemológico como uma atividade de carácter objetiva, que se opõe à epistemologia tradicional subjetiva centrada no segundo mundo. Entende a epistemologia como a “teoria do conhecimento científico”, e o “conhecimento científico pertence ao terceiro mundo, ao mundo das ideias objetivas, dos problemas objetivos e dos argumentos objetivos”.

Teses Fundamentais da Objetividade da Ciência, em Popper:

1. Todo o conhecimento científico é hipotético e conjetural.

2. O crescimento do conhecimento, e em especial do conhecimento científico, consiste em aprender com os erros que tenhamos cometido.

3. Aquilo a que podemos chamar método científico consiste em aprender sistematicamente com os nossos erros; em primeiro, atrevendo-se o cientista e cometê-los, isto é, a propor novas teorias e, em segundo lugar, procurando sistematicamente identificar os erros cometidos, isto é, realizando uma procura de erros através do debate crítico das ideias, próprias e dos outros.

4. Os argumentos que resultam dos controlos experimentais fazem parte dos argumentos mais importantes a ter em consideração.

5. As experimentações são orientadas constantemente pela teoria, por semi-ideias teóricas de que o próprio experimentador não é consciente.

6. A chamada objetividade científica consiste unicamente na aproximação crítica; no facto de que, se tivermos preconceitos a respeito da nossa teoria favorita, qualquer um dos nossos amigos ou dos nossos colegas (ou, na falta destes, dos cientistas da geração seguinte), estará ansioso por nos criticar, isto é, por refutar, se for capaz, a nossa teoria favorita.

7. Este facto pode animar-nos a tentar refutar nós próprios a nossa própria teoria, isto é, pode impor-nos uma certa disciplina.

8. No entanto, seria um erro pensar que os cientistas são mais “objetivos” do que as restantes pessoas. O que nos faz tender para a objetividade não é a objetividade ou o desinteresse do cientista individual, mas a própria ciência ou o que poderemos chamar a cooperação, ao mesmo tempo, amigável e hostil entre os cientistas, isto é, a disposição para os cientistas se criticarem uns aos outros.

9. Devemos ainda acrescentar uma justificação metodológica do dogmatismo e dos preconceitos dos cientistas individuais. Uma vez que o método da ciência consiste no debate crítico, é muito importante que as teorias criticadas sejam defendidas com empenho. Com efeito, só deste modo podemos saber qual é o seu poder real; e só conheceremos plenamente a força de uma argumentação crítica, se as críticas encontrarem resistências.

10. O papel fundamental que desempenham, na ciência, as teorias, ou hipóteses, ou conjeturas, faz com que seja fundamental distinguir entre teorias controláveis, ou falsificáveis e teorias não controláveis ou não falsificáveis.

11. Só é controlável ou falsificável a teoria que afirme ou implique que certos acontecimentos concebíveis não acontecem de facto. O controlo consiste, com todos os meios de que podemos dispor, em fazer com que ocorram precisamente aqueles acontecimentos que a teoria diz que não podem ococrrer.

12. Pode, então, dizer-se que as teoria que podem ser submetidas a controlo são aquelas que negam que certos acontecimentos possam ocorrer. As teorias só falam da realidade empírica, na medida em que lhe impõem limites.

Destas teses, resulta que o conhecimento nunca pode ser considerado definitivo. É próprio do cientista analisar todo o conhecimento do ponto de vista do seu carácter conjetural; a atitude do cientista deve ser a de se aventurar em conjeturas de risco e pô-las à prova. Popper partilha com Kant a ideia de que o homem não descobre leis na natureza, pelo contrário impõe as suas leis à natureza através do método dedutivo e da formulação de hipóteses.