Populações tradicionais, índios e quilombolas
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Populações tradicionais, índios e quilombolas:
fundamentos classificatórios e categorias de mobilização social (2009)
Deborah Lima
NuQ, FAFICH - UFMG
O objetivo dessa participação é refletir sobre o conceito de populações tradicionais
ou, seguindo a revisão recente, povos e comunidades tradicionais, a partir de sua relação
com outras duas categorias, a de índios e a de quilombolas. Relacionar populações
tradicionais a índios e quilombolas permite pensar o contexto mais amplo em que operam
as políticas de reconhecimento da diversidade sociocultural brasileira, e ao mesmo tempo
comparar os referenciais adotados nas definições de cada uma dessas categorias. Que há
um tratamento coletivo dado às três populações pode ser visto, por exemplo, na PNAP,
Política Nacional de Áreas Protegidas, e na PNPCT, Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (Decretos Nº. 5.758 de 13.04.2006,
publicado no DOU em 17.04.06, e Nº. 6.040, de 7 de Fevereiro de 2007), que incluíram,
cada, as três categorias como alvo de ações em comum.
Obviamente há diferentes entendimentos sobre o que “significa” cada um dos
termos, dependendo do posicionamento, das referências e das expectativas de onde
partem. Em outras palavras, não há um entendimento minimamente universal, por assim
dizer, nem para índios, menos para quilombolas e, dado o estágio inicial da atribuição de
direitos especificamente destinados a elas, menos ainda para as populações, povos ou
comunidades tradicionais.
Os antropólogos têm sido chamados a contribuir para a disseminação de uma
compreensão melhor fundamentada dos termos que especificam essas populações, dada a
sua dedicação ao tema e seu esforço para fundamentar classificações sociais com base nos
pontos de vista dos próprios grupos, apreendidos nos trabalhos e nas vivências
etnográficas. Foi assim com o conceito de índio, mais recentemente com o de quilombola e
agora o de populações tradicionais. Mas as re-semantizações estão longe de terem
alcançado o senso comum, e as atualizações que as definições recebem, vindas das
populações elas mesmas, estão sempre a corrigir os antropólogos, sendo dada a estes a
responsabilidade de retransmiti-las. Antigas dicotomias que embasavam essas definições -
por exemplo, rural urbano, puro mestiço, primitivo civilizado -, foram desfeitas pelas
populações mesmo na sua mobilização política por auto-reconhecimento e reivindicação de
direitos especiais. Essa é a realidade vivida pelas populações reais - a sua diversidade e
dinâmica -; e é nos processos sociais em curso que as expressões identitárias se manifestam
e se atualizam, em um movimento que os antropólogos procuram apreender. Hoje a o
reconhecimento dado aos índios não se limita à aldeia, nem à pureza, nem a uma condição
de isolamento econômico, social e cultural, e de primitivismo. Os quilombolas, do mesmo
modo, não são apenas rurais, nem mesmo isolados ou puros. Na curta história de existência
da noção de populações tradicionais, esses mesmos referenciais, associados à idéia de uma
tradição afastada da modernidade, foram descartados. A reunião dos três sob a rubrica de
tradicionais poderia ser compreendida em termos do seu contraponto branco: fazendeiro,
empreendedor do agronegócio, membro da elite urbana, ou industrial. Mas não são
explícitos os termos em que se fundamenta o atributo de tradicionalidade a partir da qual
os três são reunidos. E ao invés de apresentarem parâmetros de distinção étnica comum,
como a reunião pode sugerir, o significado de cada uma dessas categorias e a definição de
suas naturezas coletivas estão em referências territoriais, de organizações socioculturais
próprias e envolvem processos identitários específicos e histórias de mobilização política
particulares.
Pensar no conjunto formado pelas três categorias – cada uma delas um conjunto
particular de populações, povos ou comunidades, com suas próprias fronteiras e
identificações – nos remete à história da formação social brasileira. A construção de uma
forte desigualdade social é hoje enfrentada com políticas visando compensação, reparação e
atenção diferenciadas. Mais importante ainda é o critério de legitimidade dado a essas
destinações, baseado na participação dos próprios interessados. Ao Estado é cobrada a
responsabilidade de atender demandas sociais que partem de grupos até então
politicamente invisíveis, ou intencionalmente “invisibilizados”. Deixando de eleger apenas
um brasileiro ideal, genérico, branco e civilizado, setores do Estado buscam reconhecer a
diversidade sociocultural brasileira e atender as necessidades diferenciadas de uma realidade
plural.
Apesar de as três categorias de populações estarem reunidas em torno de uma
demanda central – o direito à titulação do território e a manutenção de formas particulares
de apropriação dos recursos naturais baseadas em regras de uso comum –, esses grupos se
diferenciam, politicamente, em termos dos critérios que especificam seus estatutos
jurídicos, suas instituições de reconhecimento e seus direitos específicos. As duas primeiras
são definidas como grupos étnicos e seus direitos estão declarados na Constituição. Como
se sabe, o Art. 231 reconhece aos índios: sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União
demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. E o Art. 68 do ADCT reconhece: aos
remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras a propriedade definitiva,
devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
Em contraste, só no ano passado foi divulgada uma definição oficial de povos e
comunidades tradicionais. Depois de ter sido retirada do decreto que criou o SNUC,
(Sistema Nacional de Unidades de Conservação, Lei No 9.985, de 18 de Julho de 2000),
com a justificativa de que qualquer grupo poderia ser qualificado como população
tradicional - ou seja, por não expressar um coletivo suficientemente distinto -, a PNPCT
(Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais) apresentou a seguinte definição:
Povos e comunidades tradicionais são “grupos culturalmente
diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem
formas próprias de organização social, que ocupam e usam
territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução
cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando
conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela
tradição”.
Quando o conceito de populações tradicionais surgiu na década de 1980, partiu de
um reconhecimento exterior: resumia uma proposta feita a populações rurais de adesão ao
ideário socioambiental. Desse direcionamento vindo de fora, a categoria passou a ser
“preenchida”, como Manuela Carneiro da Cunha e Mauro de Almeida cedo perceberam,
por coletividades que encontraram na proposta socioambiental uma base para a realização
de suas próprias agendas. Grupos “não encaixados” nas classificações baseadas em critérios
étnicos oficiais fizeram seu auto-reconhecimento como populações tradicionais.
São agora listados como povos e comunidades tradicionais: ribeirinhos,
seringueiros, castanheiros, faxinenses (cultivadores de mate e criadores de porcos),
comunidade de “fundo de pasto”, geraizeiros (habitantes do sertão), pantaneiros, caiçaras,
quebradeiras de coco de babaçu, ciganos, pomeranos, entre outros.
Tomando esse histórico como referência de análise, pode-se perguntar qual é a
diferença entre as três categorias, ou mais diretamente, por que populações tradicionais não
são publicamente reconhecidas como grupos étnicos, e o que isso implica?
O caráter relacional dos grupos étnicos, como sabemos, é baseado na manutenção
de fronteiras que enfatizam a diferença entre coletividades que apresentam modos de
organização social e política próprios. Reconhecendo na etnicidade uma categoria
fundamental de organização social, Weber identificou na crença em origens históricas
comuns uma base importante para a formação de uma comunidade étnica, que pode
também incluir cultura, religião ou língua. Mas Weber também disse que apesar de ser
sempre uma produção social, a existência de uma comunidade étnica é sempre
problemática e nenhum dos fatores possíveis de produzir uma comunidade étnica é por si
só determinante. O decisivo é a constituição de uma comunidade política, e é ela quem
incentiva a produção dos sentimentos que definem o pertencimento étnico: a crença
subjetiva de pertencimento, baseada na honra e na origem privilegiada, entre outros
aspectos.
Também é relevante considerar o contexto em que se dão as relações inter-étnicas,
pois os grupos étnicos só existem a partir da manutenção de suas fronteiras (e não dos seus
conteúdos culturais, como mostrou Barth, em uma formulação muito aceita no Brasil). A
identidade étnica se baseia na percepção das diferenças, e essa pode ser desigual, ou seja, a
percepção pode diferir se vinda de dentro ou de fora de suas fronteiras.
O tema da etnicidade é particularmente importante em estados formados pela
colonização. No Brasil só depois da Constituição de 1988 passou a ter relevo o
reconhecimento da pluralidade sociocultural e a composição étnica da nação. O ideário
colonial foi um misto de assimilação/integração das chamadas matrizes populacionais, no
projeto de branqueamento e civilização, ao mesmo tempo associado à manutenção das
diferenças, naturalizadas em termos das diferentes aptidões raciais. Como resultado do
projeto colonial, durante muito tempo o Brasil apresentou pelo menos três estatutos
diferentes para suas populações principais, reconhecidas de modo particular como brancos,
negros e índios. Até muito recentemente apenas os brancos eram os únicos cidadãos
plenos. O que pode ser concluído a partir da observação dos fundamentos classificatórios
das noções de índios, quilombolas e populações tradicionais é que a idéia, ou mito de
origem, do Brasil ser formado pela mistura de três raças ainda é operante e informa o
relacionamento entre os grupos definidos nesses termos.
Em grande parte, as denominações de índios e quilombolas, como referência
genérica para os conjuntos de coletivos particulares, remetem à noção popular de raça.
Índios e quilombolas ainda são pensados como categorias raciais e não como grupos
étnicos (ou, do mesmo modo, os grupos étnicos são entendidos como denominações,
politicamente corretas, para categorias raciais).
É nesse quadro racial que a definição de populações tradicionais se torna
problemática, pois para o senso comum elas não possuem um referencial biológico preciso
que permita fundamentar a sua categorização. (a crítica – de que qualquer um pode ser
população tradicional – expressa a importância da noção de raça como fundamento da
classificação).
A idéia da mistura sempre foi problema para as classificações. Apesar de termos
uma multiplicidade de “denominações híbridas” para as chamadas misturas raciais –
mameluco, caboclo, cafuzo, curiboca –, nenhuma delas se tornou uma referência coletiva
forte; ao contrário, sempre apreenderam um sentido de dinâmica e de transição. Tomo por
exemplo a noção de caboclo, ou antes, de mameluco. As diferentes origens daqueles assim
denominados e a idéia de se “ver com os olhos do branco”, como disse Roberto Cardoso
de Oliveira, não produziu um senso de identidade compreendido em bases étnicas. Não
são termos de auto-identificação. No contexto da ideologia evolucionista de integração, seja
ela de branqueamento ou de civilização, ou de uma sinonímia entre os dois, caboclo
constitui uma categoria de alteridade empregada na identificação de grupos difusos, não
especificados nos seus próprios termos, pensados como transição entre referenciais etno-
raciais fortes.
A idéia de assimilação foi corrente em muitos países, do mesmo modo que é hoje o
movimento em direção ao reconhecimento da pluralidade e multiplicidade étnica e cultural
de estados nacionais. A esperada incorporação via processos de “derretimento”, o melting
pot americano, cedeu lugar à incorporação com base em direitos universais de cidadania,
associados ao reconhecimento de necessidades particulares de grupos diferenciados.
Mas se povos e comunidades tradicionais não possuem/ não lhes é atribuída uma
referência étnica própria, há para eles hoje opções de reconhecimento étnico, como um
remanescente, que retorna a um dos nossos dois referenciais mais sólidos. Não há
propriamente uma etnicização para esse conjunto default (isso seria se houvesse
reconhecimento das denominações híbridas ou dos termos específicos compreendidos pelo
gênero coletivo populações tradicionais). Se não optam por uma identidade étnica
convencional, podem adotar a opção oferecida de povo tradicional.
Qual a base então da diferenciação das populações tradicionais? Como está sendo
construído o seu entendimento? Quais são as implicações diferenciadas para as populações
reconhecidas por essa denominação (e não em bases explicitamente étnicas)?
Sabemos que a denominação surgiu no contexto político de defender o direito de
populações humanas permanecerem morando em unidades de conservação e também ao
lado da formulação do ideário do desenvolvimento sustentável.
Tal entendimento inicial do conceito de populações tradicionais esteve associado à
renovação dos rumos da política internacional de conservação na década de 1980. Junto
surgiu outro termo, hoje consolidado, o de biodiversidade, criado com o objetivo de dar uma
nova perspectiva e interpretação à necessidade de preservar a natureza. Populações
tradicionais, como o par do conceito de biodiversidade, foi o termo usado para designar os
moradores das unidades de conservação “com gente”.
Biodiversidade é uma expressão que veio da academia e ganhou força na política da
conservação. Dá o sentido de riqueza, de patrimônio natural, e também é mais explícito do
que a palavra natureza em relação ao conjunto de espécies que denomina, conjunto este que
exclui - indiscutivelmente e consensualmente -, a espécie humana. O termo população
tradicional também é uma terminologia internacional que incorporamos ao nosso
vocabulário, como parte da estratégia adotada para justificar a presença humana em áreas
protegidas. A despeito de uma forte crítica inicial, focada no perigo de se negar a
contemporaneidade dos grupos assim qualificados, a terminologia foi mantida e teve a
repercussão que conhecemos, ou seja, o conceito conquistou realidade social.
Por outro lado, caracterizar esses povos fazendo referência à tradição é coerente
com um pensamento ao mesmo tempo crítico e submisso à idéia de uma modernidade
distanciada e estranha à natureza, pois o termo população tradicional apareceu no contexto
de uma ampla revisão conceitual que incluiu, em um mesmo movimento reflexivo, tanto o
modelo de conservação como a própria noção de modernidade. (Este período foi marcado
por um outro fato importante - a queda do muro de Berlim, em 1989).
Denominar moradores das reservas de população tradicional é um modo de excluí-los
da condição de modernos e assim situá-los mais próximos da natureza, como meio de
justificar sua presença em áreas protegidas. Essa nossa representação “deles” é uma forma
de dar sentido à sua inserção, como mediadores, entre o desenvolvimento e a
sustentabilidade, entre a condição humana e a natureza, para realizar, como em retrospecto,
modos de vida sustentáveis. Ao invés de olhar para frente e chamá-los de pós-modernos,
ou neo-tradicionais, e dar outro sentido a essas palavras, foi dada a essas coletividades um
referencial histórico: são chamados apenas de tradicionais, como se estivessem em uma
etapa anterior de desenvolvimento social, desse modo fazendo uma reedição do rótulo de
“populações primitivas” do paradigma evolucionista dos primórdios da Antropologia,
mantida ainda hoje na interpretação popular da superioridade urbana, industrial e educada.
Na proposta inicial, a presença humana em unidades de conservação foi defendida por
causa de seu baixo impacto ambiental, e a esses povos foi destinado o papel de guardiões da
biodiversidade. A associação entre biodiversidade e populações tradicionais é uma versão
revisada do par natureza e cultura. Biodiversidade e populações tradicionais são
complementares não só no sentido do papel que cada um representa para a existência do
outro como também por serem os termos que correspondem ao modo contemporâneo de
expressar, principalmente nas áreas protegidas, uma relação entre natureza e cultura muito
mais clara a respeito de seu aspecto restritivo. Como correspondentes de um modelo de
natureza e cultura nas unidades de conservação de uso sustentável, biodiversidade e
população tradicional representam uma natureza excludente da espécie humana e uma
população fora da modernidade. Com esses termos estamos dizendo que a realidade tanto
das reservas sustentáveis como do projeto de vida que esperamos daqueles que aderem ao
pacote (que aprovo, é preciso dizer) de vida sustentável está muito longe de nós, do modo
de vida moderno, como se fosse impossível criar condições entre nós também de formular
um modo de vida sustentável. Esse para mim é o problema, o aspecto correto, mas
desigual da proposição.