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152 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS: GESTÃO DE CIDADES WÂNIA MARIA DE ARAÚJO POPULAÇÃO DE RUA EM BELO HORIZONTE: A REINVENÇÃO DE ESPAÇOS DOMÉSTICOS NO IMPROVISO DA MORADIA Belo Horizonte 2004

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS: GESTÃO DE CIDADES

WÂNIA MARIA DE ARAÚJO

POPULAÇÃO DE RUA EM BELO HORIZONTE: A REINVENÇÃO DE ESPAÇOS DOMÉSTICOS NO IMPROVISO DA MORADIA

Belo Horizonte 2004

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS: GESTÃO DE CIDADES

WÂNIA MARIA DE ARAÚJO

POPULAÇÃO DE RUA EM BELO HORIZONTE: A REINVENÇÃO DE ESPAÇOS DOMÉSTICOS NO IMPROVISO DA MORADIA

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre. Linha de Pesquisa: Cultura Urbana e Modos de Vida Orientador: Prof. Dr. Tarcísio Rodrigues Botelho

Belo Horizonte 2004

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Para minha mãe, Walderez. Quem fez a nossa casa ter o espaço

doméstico mais acolhedor.

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AGRADECIMENTOS Ao Mestrado em Ciências Sociais: gestão de cidades da Pucminas pela acolhida generosa. Meus agradecimentos se estendem a todos os professores e a Ângela. À Prof. Dra. Magda de Almeida Neves pelas sugestões e críticas no exame de qualificação e pelo interesse e disponibilidade constantes. Ao Prof. Dr. Tarcísio Botelho, meu orientador, muito obrigada pelas inúmeras leituras, sugestões e atenção ao meu trabalho. A minha mãe tão querida, pelo amor absoluto, pelo cuidado e atenção tão constantes. Muito, muito obrigada!! Às minhas queridas irmãs, Jane e Simone, pelo amor incondicional. Aos meus irmãos e ao meu pai pela presença, mesmo que silenciosa. Ao meu cunhado Eninho, pelas boas conversas, pelas preocupações com minha vida afetiva e profissional, obrigada! Aos meus sobrinhos, Thiago, Pedro, Maíra, Lucila, João Victor, Jéssica, Gabi e Luiza, pela alegria que sinto em ter vocês! Maíra, minha sobrinha, e Márcia, minha aluna, obrigada pela ajuda com os mapas. Aos meus tios, Milton e Eulina que me socorreram em momentos difíceis e pela paternidade indireta. Obrigada por tudo! Este trabalho não teria chegado ao final sem a presença de amigos tão preciosos, a todos vocês meu muito obrigada! Minha amiga-irmã Juliana quem primeiro partilhou comigo a idéia de estudar a população de rua, ainda no final da graduação. Muitíssimo obrigada, pelas leituras constantes, pelas sugestões valiosas e pela torcida vigorosa e, mais do que isso, pela amizade que tanto acolheu e acolhe. Muito obrigada, amiga! Lelena, a você meu muito obrigada pela casa sempre aberta para um belo café, uma boa conversa e pela preocupação maternal por mim e por esse trabalho. Daniela pelas correções sugeridas, pelo encontro amigo e pela companhia cotidiana na divisão da casa. Obrigada, Dani! Ângela, Mônica e Guga pelos bons momentos do “bandinho” que muito contribuíram para suavizar a longa trajetória desse trabalho!

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Haydée, pelas informações e contatos importantes na Prefeitura de Belo Horizonte, pelas ótimas conversas e pela delicadeza no trato com a vida. Guiomar, companheira de outra trajetória, mas apoiadora constante deste trabalho. Gláucia pelas conversas, passeios, piqueniques e pelo apoio inconteste! Ao Edson que mesmo à distância sempre esteve disponível para discussões, sugestões e “diversões” das melhores. Valeu Edson! Lucinha, Ré, Denisinha e Fernanda pelos bons tempos de Civitas e também pelo apoio e interesse por esse longo trabalho. Meninas, obrigada! Cecília, pela brilhante indicação de um novo caminho e uma nova possibilidade. Muitíssimo obrigada! Luciana pelo contato com Maria do Carmo e pelas informações preciosas sobre a população de rua de Belo Horizonte nos dias de hoje. Alexandra pelo encontro amigo, pelo carinho que já parecem antigos e pelas dúvidas, teóricas e pessoais, partilhadas. Ao Rodrigo B. pelas informações antigas, mas preciosas para o momento final deste trabalho. Muito obrigada! Ao Fredinho pela leitura do summary, pelas sugestões “elegantes” e pelo “papinho” de sempre. Aos moradores de baixios de viadutos que abriram suas casas e suas vidas me permitindo entender um pouquinho do seu cotidiano. Aos moradores de rua que em nossos encontros fugazes sempre se dispuseram a conversar comigo. Aos participantes do movimento dos sem-casa que no afã da luta também se mostraram abertos às conversas nas calçadas do bairro de Lourdes. Muito obrigada a todos! Cristina Bove da Pastoral de Rua pela dedicação à população de rua e pela generosidade ao partilhar comigo sua experiência. Muito obrigada! Aos profissionais da Prefeitura de Belo Horizonte que disponibilizaram dados, informações, dúvidas e questões em torno da população de rua, obrigada.

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo investigar e discutir a população de rua de Belo Horizonte que,

pela denominação, apresenta uma homogeneidade, visto que todos os que se apropriam de

espaços públicos como local de moradia ou pernoite são assim denominados. Entretanto, o

contato estabelecido com esses habitantes da cidade possibilitou constatar que aqueles que

constroem instalações permanentes em baixios de viadutos e passarelas, bem como nas calçadas,

ou seja, erguem suas moradias nesses espaços públicos, se diferenciam daqueles que habitam

instalações provisórias, valendo-se de calçadas sob marquises para o pernoite. Além desses dois

grupos, existem os participantes do movimento de sem-casa que também sofrem o

constrangimento da falta da moradia, mas se valem de uma estratégia diferenciada para enfrentá-

lo: apropriam-se de espaços públicos como forma de pressionar o poder público no atendimento

às suas reivindicações. O que se percebe é que além de traduzirem estratégias diferenciadas para

o problema da falta de moradia, o cotidiano de cada um deles denota a existência de estilos de

vida diferentes, ou seja, a forma como se apropriam e se instalam nos espaços públicos da cidade

enuncia que suas vivências e suas relações com o espaço ocupado também se materializam de

maneiras distintas. Sendo assim, foi possível compreender que as formas diferentes de

apropriação dos espaços públicos, lhes confere identidades diferenciadas, pois se auto classificam

e classificam os "outros" do mundo da rua de maneiras distintas e, conseqüentemente, suas visões

de mundo também se diferenciam. Assim, a heterogeneidade encontra-se presente nessa

denominação homogeneizadora de um novo velho habitante das cidades contemporâneas.

Palavras- Chave: população de rua, espaços públicos, estilos de vida

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INDICE INTRODUÇÃO............................................................................................................................10 1. A CIDADE COMO PROJEÇÃO DOS IMAGINÁRIOS SOCIAIS................................... 26

1.1. Belo Horizonte: a presença do paradigma da ordem ao longo de sua história ...............27

1.1.1. A Ordem Lógica: o advento da república, a construção da cidade e o nascimento da nova

capital ............................................................................................................................. ...............28

1.1.2. A Ordem Econômica: a construção da cidade industrial e a retomada do discurso da

modernização ................................................................................................................................ 42

1.1.3. A Ordem Política: desigualdade e diferenciação espacial – o retrato das favelas na fase do

autoritarismo ................................................................................................................................. 57

1.1.4. A Ordem Social: fase da democratização ........................................................................... 62

1.2. Belo Horizonte como Resultado do Exercício da Ordem no Espaço Urbano ................ 76

2. O PÚBLICO E O PRIVADO: A RUA E A CASA, A RUA NA CASA E A CASA NA

RUA .............................................................................................................................................. 79

2.1. A Rua na Casa e a Casa na Rua ......................................................................................... 80

2.2. A Casa na Rua: um novo lugar no espaço ......................................................................... 90

3. INSTALAÇÕES PERMANENTES E INSTALAÇÕES PROVISÓRIAS: AS

DIFERENÇAS INTERNAS DA POPULAÇÃO DE RUA ................................................... 105

3.1. O Fazer Etnográfico: uma discussão sobre autoridade e subjetividade no texto

antropológico.............................................................................................................................. 107

3.2. O Trabalho de Campo: a presença do “eu” no mundo do “outro” e do “outro” no

mundo do “eu” .......................................................................................................................... 112

3.3. O Nós e os Outros: como nos vemos, como vemos os outros e como somos

vistos............................................................................................................................................ 116

3.3.1. As Casas sob os viadutos, passarelas e nas calçadas ........................................................ 116

3.3.2. A “Maloca” e os “Maloqueiros” ........................................................................................122

3.3.3. Os Nômades Urbanos: os ocupantes das calçadas sob marquises e bancos de praças

......................................................................................................................................................130

3.4. A Heterogeneidade na Homogeneidade ............................................................................139

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3.5. Discutindo Identidade ........................................................................................................145

4. O MOVIMENTO DOS SEM-CASA, O PODER PÚBLICO MUNICIPAL E A

PASTORAL DE RUA ...............................................................................................................152

4.1. Os Participantes do Movimento dos Sem-Casa ...............................................................154

4.2. A Relação com os “Vizinhos” ............................................................................................159

4.2.1. Os Moradores de Rua e o Movimento dos Sem-Casa .......................................................160

4.3. O Poder Público Municipal e a População de Rua ..........................................................177

4.4. A Pastoral de Rua: os “iniciados”......................................................................................186

CONCLUSÃO: onde é possível morar? Considerações finais sobre a improvisação de

espaços de moradia ...................................................................................................................190

SUMMARY ...............................................................................................................................197

BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................................198

ANEXOS

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Lista de Tabelas e Mapas Tabelas Tabela 1 ............................................................................................................................... 38

Tabela 2 ............................................................................................................................... 72

Tabela 3 ............................................................................................................................... 73

Tabela 4 ............................................................................................................................... 74

Mapas

Mapa 1................................................................................................................................. 94

Mapa 2 ................................................................................................................................ 94

Mapa 3 ................................................................................................................................ 98

Mapa 4 ............................................................................................................................... 125

Mapa 5 ............................................................................................................................... 154

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INTRODUÇÃO

“Cacos e restos delimitam domicílios onde a

intimidade dos gestos e das ações levantam paredes invisíveis mas presentes e que, ao serem

atravessados pelo olhar do pesquisador, fazem-no sentir-se intruso, indiscreto, e perceber a força dos

limites simbólicos desses casulos no espaço público.” (Antônio Arantes,1994)

Este trabalho tem como objetivo deter um olhar sobre Belo Horizonte a partir de um

segmento de seus habitantes: a população de rua. São sujeitos que adotam espaços públicos como

locais de moradia improvisadas por meio de instalações permanentes − a construção de casas em

baixios de viadutos e passarelas − e instalações provisórias, entendidas aqui como a adoção de

calçadas sob marquises e bancos de praça para pernoite. Os espaços públicos passam, assim, a

comportar atividades da esfera privada, a princípio, não previstas para os mesmos. Além de

contrapor os usos definidos como próprios para tais espaços, o fenômeno da população de rua

pode ser revelador de novas significações dos espaços públicos no cenário da globalização, em

que as cidades podem ser interpretadas a partir das interseções entre processos globais e locais.

A população de rua é um fenômeno global, visto que está presente nos cenários urbanos

contemporâneos de várias metrópoles do mundo. Entretanto, é também um produto de relações e

processos locais. A construção de moradias improvisadas explicita, além disso, a presença da

esfera privada em locais públicos, trazendo um novo recorte para pensarmos as fronteiras entre

público e privado.

Com um olhar intruso e indiscreto, como assinala a epígrafe, foi que percorri o traçado de

Belo Horizonte, planejado por Aarão Reis, para investigar a possibilidade de uma leitura do seu

espaço urbano, a partir dos sujeitos que fazem de alguns espaços públicos seu local de moradia.

Andar pelas ruas da cidade sem perceber o quanto de vida elas comportam é não andar

pelas ruas da cidade, não se dar conta do que elas têm a nos dizer com seu movimento, além do

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seu traçado, das suas esquinas. Mas o que pode conter, o que pode dizer uma rua além de seu

desenho e dos caminhos que nelas perfazemos para chegar aos mais variados destinos?

Foi andando pela cidade e querendo enxergar o que o traçado das ruas tem a nos dizer,

principalmente numa cidade planejada como Belo Horizonte, que detive o meu olhar sob alguns

pontos, alguns lugares, algumas ruas que, além do movimento de pedestres e automóveis,

serviam − e muitos ainda servem − como espaço de sobrevivência de homens, de mulheres e de

famílias inteiras. Sobrevivência esta que permite não só viver da rua, ou seja, das ocupações que

podem ser desenvolvidas na rua, como também viver na rua, o que implica ocupá-la adotando-a

como local de trabalho e moradia. A pergunta inicial que me coloquei frente a essa experiência de

vida foi pensar a possibilidade de constituição de um espaço de moradia − espaço privado − em

um espaço de domínio público, que comporta o movimento, a vida e a dinâmica da cidade.

Diante dessa primeira questão, olhar mais profundamente as “casas” construídas sob os viadutos,

tentar, mesmo que num relance, adentrar aqueles ambientes buscando imaginar o quanto de vida

eles contêm e, mais do que isso, que histórias as pessoas que ali se encontram vivenciaram, passa

a ser uma constante no meu caminhar pela cidade. E a partir daí surgem novas perguntas: além do

seu traçado e do movimento de pedestres e automóveis, o que a rua pode comportar? Onde o

espaço-casa pode ser construído? A rua pode ser concebida também como um espaço de

moradia? Como estes novos espaços de moradia são construídos? O espaço casa e o espaço rua

são assim tão díspares? Que relação há entre eles? Se comunicam? Se intercruzam? Têm limites

definidos ou não? E quem são essas pessoas que passam a ser os habitantes das ruas e não

somente seus transeuntes? Que histórias têm para contar? Como vivem essa realidade de

sobreviver da rua e na rua permanecer como um morador?

Na tentativa de responder a algumas dessas perguntas e, ao mesmo tempo, levantando

outras é que passo a uma segunda etapa desse ato de caminhar pela cidade perscrutando seus

novos contornos não desenhados na sua planta geral. A pesquisa de campo1 começa, então, a

tomar forma e os primeiros contatos, inicialmente com aquelas pessoas que construíam “casas”

sob os viadutos, são estabelecidos. Contatos esses que, muitas vezes, foram tensos. Era um

mundo novo com o qual só tinha contato por meio das janelas dos ônibus, dos automóveis, das

fotos e notícias dos jornais e que agora aparecia à minha frente sem vidraças, sem lentes

1 Uma discussão sobre o trabalho de campo encontra-se presente no Capítulo Três.

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fotográficas e sem o papel jornal. Agora era o jornal na minha frente, mas não como notícia, e

sim como cobertura de parede, forro de cama e como forma de ganhar dinheiro. Mundos

diferentes, por vezes muito próximos, mas ao mesmo tempo muito distantes, buscando

estabelecer comunicação.

A trajetória inicial deste trabalho teve como roteiro os baixios de viadutos e passarelas

onde primeiro avistei alguns dos sujeitos que fazem parte da chamada “população de rua”. Num

primeiro momento eram sujeitos incógnitos que começaram a fazer parte do meu olhar nos

caminhos percorridos pela cidade para chegar em casa, ir à escola, ao cinema, por meio das

vidraças dos ônibus e dos carros. A partir destas primeiras e despretensiosas observações que

confirmavam a existência de um estilo de vida urbano distinto daquele que vivenciava no meu

cotidiano, foi que os escolhi como objeto de estudo do presente trabalho. Assim, de sujeitos

incógnitos passaram a ser, para mim, pessoas que têm uma forma peculiar de sobreviver nos

espaços públicos da cidade. Sobrevivência esta travada cotidianamente nas ruas que passam a

comportar, além do trânsito de pedestres, locais de trabalho e espaços de moradia. Para discorrer

sobre este estilo de vida de sobreviver nos espaços públicos da cidade, realizei um longo percurso

em busca de “pistas” que tornassem viável uma interpretação sobre os sujeitos que, frente ao

constrangimento da falta de habitação, adotam baixios de viadutos e passarelas, praças, ruas e

avenidas como local de moradia.

No primeiro capítulo, destaco que o espaço urbano de Belo Horizonte, local onde se

situam os sujeitos dessa investigação, será aqui analisado levando-se em consideração os aspectos

políticos, econômicos e sociais que contribuíram para a conformação atual da ocupação dos

espaços da cidade. Entretanto, conferir-se-á ênfase maior aos aspectos referentes ao sistema

simbólico, para que se possa apreender as representações da cidade e os significados atribuídos a

ela ao longo de seu processo de produção do espaço. Isto é, a análise da produção do espaço de

Belo Horizonte dar-se-á a partir de sua compreensão como uma esfera de significação social,

local de registro de visões de mundo, representações e sistemas simbólicos.

Assim, prosseguindo o meu percurso sobre as trilhas que me garantissem “pistas” para

interpretar o “fenômeno da população de rua” nas metrópoles, decido voltar no tempo e

“recontar”, por meio de leituras e impressões que vários autores registraram, a história de Belo

Horizonte. “Recontar” a história da cidade sob o aspecto da produção e ocupação de seus espaços

e como esse processo refletiu ideais e idéias que orientaram seu crescimento, inscrevendo nos

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edifícios, casas e barracos, nas avenidas, ruas e becos as marcas da trajetória histórica dos

espaços da cidade: produto das relações travadas entre o poder público, a população e o meio.

O primeiro ponto relevante da história de Belo Horizonte é o fato dela ter sido uma cidade

planejada para abrigar a nova capital de Minas Gerais sob o ideal de progresso e modernização da

recém proclamada República. A nova capital deveria incorporar no seu espaço o ideal de

“progresso e modernização” que impregnava o Projeto da Nova Capital do Estado. O que se

observa é que desde o seu planejamento e ao longo de seu desenvolvimento, o poder público, foi

definindo e elegendo espaços para a localização de determinadas atividades e para a ocupação da

cidade por alguns segmentos sociais. Percorrendo a história de Belo Horizonte e salientando os

usos implantados em seus espaços é que se buscará compreender, longitudinalmente, como a

cidade adquiriu o formato atual. Este pode ser percebido como resultado do crescimento e

expansão da cidade e, além disso, como a expressão dos ideais que orientaram esse crescimento,

inscreveu marcas da trajetória histórica da cidade. Como assinala Meyer (1978:151), “ o espaço é

o resultado de um progresso natural de uma operação humana. A História se cristaliza no

espaço como soma, que progressivamente incorpora os elementos econômicos, sociais, culturais,

políticos, etc.”

Belo Horizonte atualmente pode ser definida como o resultado do seu processo de

crescimento e expansão. A organização do seu espaço reflete sua história, as idéias que por aqui

passaram e aqui buscaram se expressar: a construção da capital da era republicana, a cidade

moderna, planejada; as relações de poder que aqui se estabeleceram: a oligarquia agrária, a elite

industrial emergente, os movimentos sociais reivindicatórios, enfim as lutas que nele se travaram.

Assim, buscando não uma cobertura abrangente, mas pontuar algumas marcas e sinais da

história de Belo Horizonte inscritos em seu formato inicial, à época da sua construção, bem como

as transformações ocorridas em virtude de sua expansão e crescimento; a tentativa aqui é

selecionar alguns fragmentos dessa trajetória histórica para elucidar, a partir da forma de

ocupação de seus espaços, como a imagem e a representação da cidade foram sendo construídas

por meio da atuação de seus sujeitos e das relações que, cotidianamente, estabeleceram entre si e

com o espaço ocupado. Partindo desses fragmentos procurarei estabelecer possíveis nexos de

significação ou possíveis entraves entre a cidade, seu formato e seus sujeitos, em especial,

aqueles que fazem parte da chamada população de rua. Segundo Canevacci (1993:35)

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“compreender uma cidade significa colher fragmentos. E lançar entre eles estranhas pontes, por

intermédio das quais seja possível encontrar uma pluralidade de significados. Ou de

encruzilhadas herméticas”.

É importante ressaltar que a paisagem contemporânea da capital mineira é fruto de

processos vários travados entre o poder público e a população em torno do acesso aos espaços da

cidade: instalações em locais não previstos, resistência aos assentamentos designados, defesa da

imagem de cidade limpa, higiênica e organizada, pelo menos na área central considerada o cartão

de visitas do “Belo Horizonte” etc. Embates que expressam um conjunto de reivindicações dos

diferentes segmentos e instituições sociais em torno dos espaços da cidade cuja configuração

atual resulta das várias apropriações e denominações forjados ao longo de sua história.

O segundo capítulo tem como objetivo uma primeira aproximação com os sujeitos da

pesquisa e inicia a análise a partir das esferas do público e do privado e como elas permeiam os

espaços improvisados de moradias ocupados pela população de rua. A representação da esfera

pública está circunscrita a rua? É possível a constituição de espaços privados em espaços

públicos, ou seja, a construção de casas na rua? As moradias improvisadas em baixios de viaduto

podem ser pensadas a partir da comunicação entre as esferas pública e privada? A partir dessas

questões, esse capítulo se delineia como uma reflexão sobre o público e o privado e as possíveis

inter-relações entre ambos como uma das formas de compreensão da constituição de moradias em

espaços públicos.

Essa discussão toma como ponto de partida a oposição recorrente em torno da casa e da

rua. As representações que recobrem o universo de significação da casa estão relacionadas à

esfera privada, visto que a casa é o local da família, da intimidade, da cumplicidade e da

afetividade. Em contrapartida, a rua aparece como a verdadeira conotação da esfera pública, pois

é o espaço destinado à multidão, à impessoalidade, onde atividades domésticas não são previstas.

Após esse primeiro enfoque, a discussão tem continuidade a partir da reflexão da casa e

da rua, bem como das esferas pública e privada como dimensões que possibilitam uma espécie de

comunicação, visto que as fronteiras entre os dois espaços e as duas esferas da vida podem ser

vistas como fluidas e interpenetráveis. Para discorrer sobre tal perspectiva inicio a discussão a

partir de Dumont (1988) e suas colocações em torno das oposições hierárquicas o que, grosso

modo, significa pensar o todo e não seus elementos separadamente. Dessa forma, casa e rua são

pensadas como elementos do cenário urbano, mas não ocupam aí, simplesmente, posições

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opostas, o que enuncia uma possibilidade de pensá-los como espaços urbanos que estabelecem

comunicação. Partindo dos pressupostos de Dumont (op. cit.), DaMatta (1985, 1986) discorre

sobre os espaços casa e rua, enfatizando, exatamente, a inter relação entre eles a partir do caso

brasileiro o que fornece uma primeira possibilidade de pensar casa e rua não como espaços

simplesmente opostos. Além disso, é importante ressaltar que no caso da improvisação das casas

na rua, não é possível focar a discussão apenas em torno de oposições binárias, é preciso pensar

na existência de uma tríade: existem as casas, as ruas e as casas na rua. Como assinala Leach

(1978), as marcas de fronteira podem ser pensadas como zonas limítrofes carregadas de

ambigüidade e conflito. Assim, as casas na rua, nesse momento do texto, serão analisadas a partir

da tríade e pensadas a partir das características das marcas de fronteira. Isso significa que serão

enfocadas como uma zona limítrofe entre as casas e as ruas que mantêm, de alguma forma,

características de ambas. A existência de casas na rua implica, então, a coexistência de valores,

representações e significados tanto do mundo da casa, quanto do mundo da rua. Coexistência essa

que é perceptível por meio da realização de atividades relativas ao ambiente doméstico, próprias

das casas, bem como atividades que são referências do mundo da rua. Daí a ênfase presente na

discussão da existência da tríade e não das oposições binárias.

Ainda no segundo capítulo, uma última discussão que se apresenta é relativa às casas na

rua do cenário urbano contemporâneo que recobrem os espaços públicos ocupados como locais

de moradia e pernoite imprimindo novos usos e novos valores aos mesmos. Os sujeitos que

adotam essa forma de habitar na cidade revelam “novos jeitos de morar” e as ruas, calçadas e

praças passam a comportar não apenas o movimento, mas também a permanência a partir da

ocupação de tais espaços. Essa ocupação confere novos usos aos espaços públicos, até então não

previstos bem como novos valores que lhes são atribuídos pelos sujeitos que compõem a

população de rua. Dessa forma, não só os espaços públicos são recobertos de novas práticas como

os espaços casa e rua são concebidos de uma nova maneira pelos sujeitos que improvisam as

moradias no cenário urbano. Os baixios de viadutos com as moradias improvisadas, as calçadas e

os bancos de praças ocupadas com a presença de pessoas que ali fazem seu pernoite podem ser

reveladores de novas formas de concepção dos espaços públicos e seus usos, bem como dos

espaços casa e rua. Além disso, espaços públicos transformam-se em lugares a partir dos usos e

hábitos que os sujeitos ali instalados passam a desenvolver e que os possibilita nominá-los como

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o lugar onde moram e/ou trabalham, como também o lugar onde estabeleceram laços e relações

sociais e afetivas.

Ao final desse capítulo o que se registra é como o espaço rua não comporta na

contemporaneidade somente a prática da mendicância, que passa a coexistir com sujeitos que

trabalham nas ruas da cidade e, mais do que isso, adotam espaços públicos como locais de

moradia e pernoite. De alguma maneira, isso sugere reflexões em torno da esfera pública e

privada que neste trabalho são enfocadas a partir dos espaços casa e rua, bem como reflexões em

torno dos valores e representações sobre esses espaços e os sujeitos que passam a ocupá-los nos

grandes centros metropolitanos. Os valores e representações sobre a casa e a rua são recobertos

de novos significados, visto que são fruto de uma nova forma de sobrevivência nas cidades:

moradias improvisadas nos espaços públicos – as casas na rua – que reinventam espaços

domésticos e relações de convivialidade.

O terceiro capítulo apresenta uma discussão em torno dos encontros realizados junto à

população de rua de Belo Horizonte que possibilitaram a coleta de dados para essa pesquisa. O

procedimento de coleta de dados utilizado tem como referência o trabalho de campo

antropológico. Sendo assim, o ponto inicial da discussão desse capítulo é a própria etnografia a

partir de comentários em torno do “encontro etnográfico”, bem como da construção do texto. Há

uma descrição do trabalho de campo propriamente dito para em seguida, tecer algumas

considerações em torno de duas categorias que compõem a população de rua: os sujeitos que

improvisam moradias permanentes em baixios de viaduto e passarelas – instalações permanentes

– e os sujeitos que improvisam o pernoite em calçadas e bancos de praça – instalações

provisórias.

Os encontros que se constituíram como o trabalho de campo para essa pesquisa foram

realizados em Belo Horizonte em três momentos distintos: em 1994 estabeleci contato com os

moradores dos baixios de viadutos que ali construíam suas casas, com os moradores de rua que

perambulam pela cidade ao longo do dia e pernoitam sob alguma marquise ou banco de praça e

com os participantes do movimento dos sem-casa. Em 1995 contactei os comerciantes vizinhos

ao acampamento do movimento dos sem-casa no Bairro de Lourdes e em 1996 as entrevistas com

os técnicos da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, com a Secretária de

Desenvolvimento Social e com a Pastoral de Rua. Cabe aqui justificar a distância temporal entre

os dados e este trabalho agora apresentado. Um dos argumentos possíveis para essa justificativa

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está no fato de ter realizado uma etnografia para produzir conhecimento sobre os sujeitos que

faziam parte da minha pesquisa. Como assinala Geertz (1989:15) “... se você quer compreender o que é a ciência, você deve olhar, em primeiro lugar, não para as suas teorias ou as suas descobertas, e certamente não para o que seus apologistas dizem sobre ela; você deve ver o que os praticantes da ciência fazem. Em antropologia ou, de qualquer forma, em antropologia social, o que os praticantes fazem é a etnografia. E é justamente ao compreender o que é a etnografia, ou mais exatamente, o que é a prática etnográfica, é que se pode começar a entender o que representa a análise antropológica como forma de conhecimento.”

O que pretendi fazer por meio da etnografia foi construir uma interpretação, a partir dos

dados coletados ao longo do trabalho de campo, sobre a população de rua em Belo Horizonte,

mas evidentemente, não deve-se considerá-la completa, pois assim como a própria antropologia

está sempre em construção, cada monografia é sempre artesanal e incompleta. A incompletude

aqui não se deve ao distanciamento temporal entre os dados coletados e a escrita do texto2 em

torno deles e sim a característica intrínseca da própria antropologia3.

O ponto norteador da discussão presente no capítulo três está na relação entre o etnógrafo

e o(s) sujeito(s) investigado(s) que é analisada como uma relação permeada de poder e

subjetividade por ambas as partes. Para discorrer sobre essa questão o primeiro autor apresentado

é Cardoso de Oliveira (1995) e suas considerações em torno da intersubjetividade,

individualidade e historicidade. É exatamente a partir da reflexão desses conceitos ao longo da

história da antropologia que o referido autor assinala que a antropologia interpretativa contribuiu

para um novo estilo do fazer antropológico, visto que o pesquisador exercita tais conceitos em

sua prática de trabalho de campo e de construção do texto etnográfico. Com efeito, o pesquisador

partidário da perspectiva interpretativista na antropologia, tem sua autoridade colocada sob

suspeita, pois o fazer etnográfico confronta e articula os horizontes tanto do pesquisador quanto

dos sujeitos pesquisados.

Em virtude da interligação entre esses três conceitos, a discussão avança com algumas

considerações sobre autoridade e subjetividade na construção da etnografia a partir de Clifford

(1998). As questões que orientam sua reflexão dizem respeito à legitimidade da etnografia como

resultado de experiências de trabalho de campo que podem ser compreendidas como encontros

2 É importante dizer que não houve nesse período de tempo (1994 - 2004) mudança substancial no que se refere aos hábitos e comportamentos da população de rua, a não ser em termos numéricos. A própria Prefeitura de Belo Horizonte trabalha com os dados coletados no Censo de 1998, pois não foi realizada outra pesquisa no período posterior a 1998. 3 Cf. Peirano (1995), Da Matta (1987)

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interculturais entre o pesquisador e os sujeitos de sua pesquisa. Segundo Clifford (op. cit.) esses

encontros são perpassados por relações de poder e propósitos pessoais e o que se questiona é

como ele pode estar contido numa versão de um “outro mundo” que é construída por um ator

individual, no caso o pesquisador. Um dos primeiros pontos enfatizados em sua análise é o fato

da etnografia estar vinculada à escrita, o que pressupõe que se constitui em uma tradução da

experiência de trabalho de campo para a forma de um texto. Tradução essa que implica o

encontro de múltiplas subjetividades que, além de tudo, estão acima do controle do autor do

texto. Ao longo de sua história, a antropologia centrou suas discussões em torno da experiência

do pesquisador como observador participante, deixando de lado as questões relativas à tradução e

ao papel dialógico entre os informantes e o intérprete que ela envolve. Atualmente o que se

percebe é uma preocupação em torno da autoridade conferida ao texto produzido, ou seja, a

interpretação construída por meio da experiência de trabalho de campo.

Para discorrer sobre esse ponto, Clifford (1998) se pauta na observação participante que

hermeneuticamente pode ser compreendida como uma dialética entre a experiência e a

interpretação. A experiência poderia ser a garantia da autoridade, pois ela pressupõe a presença

do pesquisador em campo e seu contato com os sujeitos da pesquisa. Entretanto, não se pode

perder de vista que ela contém uma ambigüidade: o relato textual construído a partir dessa

presença participativa no mundo do outro é subjetivo e não dialógico ou intersubjetivo. Isto

significa que o texto que produz a interpretação da experiência de campo é autoral.

Frente a esse caráter experiencial da autoridade, alguns antropólogos vão construir certas

críticas; entre elas cabe destacar Geertz (1989, 1998). Segundo ele, a interpretação é uma leitura

textual que aparece como uma alternativa às afirmações que se consideram ingênuas em torno da

autoridade experiencial. Geertz (op. cit.) é partidário da “textualização” da cultura como sendo

um requisito básico para a interpretação e no processo de produção do texto, definido por ele

como uma descrição densa. A fala, o comportamento, as tradições formam um conjunto

significativo que é separado da situação discursiva. Quando o texto é criado, esse conjunto

significativo conforma uma relação com um contexto. A tradução da experiência de campo em

um texto é uma interpretação que não pode ser compreendida como uma interlocução, pois não

depende de estar na presença de alguém. Na verdade, é construída aqui pelo fato de ter estado lá,

ou seja, o autor refere-se ao contexto no qual ocorreu a experiência de trabalho de campo, refere-

se ao mundo do outro, mas produz o texto e a interpretação num momento posterior ao ter estado

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lá e os textos podem ser lidos como uma evidência de um contexto, de uma realidade cultural. É

importante mencionar que a experiência e a interpretação do antropólogo não podem ser

considerados “inocentes”, porque a etnografia não deve ser compreendida como uma

interpretação e experiência de outra realidade, mas sim como uma negociação que envolve pelo

menos dois sujeitos. Dessa forma, o discurso que aparece na prática etnográfica tem relação com

uma cena de intersubjetividade presente em toda a fala, paralelamente ao contexto no qual ela

ocorre. Isso implica dizer que a linguagem presente na etnografia é sempre permeada por várias

subjetividades e, assim, o que transparece é um processo de diálogo entre interlocutores que

negociam uma visão compartilhada da realidade.

É a partir dessa breve reflexão em torno da etnografia que passo a tratar da minha

experiência de trabalho de campo junto à população de rua de Belo Horizonte. Experiência essa

que reflete um encontro de subjetividades a partir do qual foi construída uma interpretação sobre

o “mundo do(s) outro(s)”.

Isso significa que não realizei um trabalho de campo no sentido estrito do termo, tal como

preconizou Malinowski, nos primórdios da antropologia, visto que meus deslocamentos

ocorreram em minha própria cidade. Nos primeiros meses, meus encontros aconteceram em

espaços públicos nos quais havia alguma moradia improvisada, visto que meu objetivo inicial era

discutir a possibilidade de construção de ambientes privados – domésticos – em espaços públicos.

Dessa forma, me dirigi aos viadutos e passarelas para conhecer os espaços que se constituíam, e

muitos ainda se constituem, em locais de moradia e permanência e seus habitantes. Os contatos

iniciais chamavam minha atenção para o fato de que, além dos moradores dessas moradias

improvisadas sob baixios de viadutos e passarelas ou mesmo em algumas calçadas da cidade,

havia outra forma de instalação nos espaços públicos: sujeitos que realizavam o pernoite em

bancos de praças ou nas calçadas sob as marquises. Frente a essa observação, passei a denominar

as moradias improvisadas em baixios de viadutos como instalações permanentes e de instalações

provisórias aquelas realizadas para o pernoite.

Dessa forma, percebi que o campo me apresentou novidades e os sujeitos que inicialmente

fariam parte da pesquisa como população de rua foram, de certa forma, ampliados, pois além dos

encontros com os moradores de casas sob viadutos, os sujeitos que realizavam pernoite em

algumas calçadas e praças da cidade também passaram a fazer parte dos meus roteiros de visita.

Com efeito, o objetivo inicial da pesquisa também foi ampliado: além de refletir em torno da

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construção de ambientes privados em espaços públicos, me detive nas diferentes formas de

instalação nos espaços públicos pela população de rua.

Frente às diferentes formas de instalação nos espaços públicos da cidade, o trabalho de

campo tornou possível perceber que a população de rua, assim denominada de uma forma

homogênea, contém grande heterogeneidade no seu interior. Isso porque além de ocuparem os

espaços públicos de maneiras diferentes, também os percebem de formas diversas.

Os sujeitos que se instalam em áreas sob viadutos e passarelas improvisam suas moradias,

se fixam nesses espaços ocupados e, de certa forma, os transformam em lugares dada a

personalização que o ambiente passa a comportar. A improvisação de uma moradia em uma área

pública, como os baixios de viadutos e passarelas, confere a esses espaços novos usos até então

não previstos para os mesmos. De locais de passagem, transformam-se em locais de moradia

onde são desenvolvidas atividades peculiares de um ambiente doméstico como lavar roupas, fazer

as refeições, receber visitas, entre outras. Entretanto, como essas moradias não são reconhecidas

como tais na cidade, são denominadas de maneira pejorativa como malocas. Há aí uma referência

a um modelo de habitação indígena que não é próprio da cidade, bem como a revelação de um

estigma. Essa denominação de maloca também explicita uma tensão em torno da definição

socialmente reconhecida de moradia, pois é como se fosse o oposto de uma casa e/ou barraco

que, por sua vez, são reconhecidos como formas legítimas de habitação. Esse termo é conferido

às moradias localizadas em baixios de viadutos e passarelas, pelo fato de serem construídas com

materiais frágeis e de maneira precária. Como a denominação da moradia como maloca é

estigmatizante, seus moradores até utilizam o termo para se referirem a elas, mas afirmam que

não foram eles que o criaram, ou seja, eles incorporam o rótulo, mas questionam seu conteúdo.

Afirmam que aquelas são construções muito semelhantes às que existem em favelas da cidade e

que as consideram como suas casas, seu lugar de moradia na cidade.

Como as casas em áreas sob viadutos e passarelas e, por vezes, em algumas calçadas são

denominadas de maloca, seus moradores são, conseqüentemente, denominados de maloqueiros.

Entretanto, os moradores dessas casas não se consideram e não se identificam como tais. Para

eles, o “verdadeiro maloqueiro” é aquele que perambula pela cidade, sem ter um local fixo onde

permanecer, ou seja, não constrói uma instalação permanente e, além disso, não se preocupa com

a higiene pessoal, não desenvolve nenhuma atividade que possa lhe conferir algum tipo de

remuneração, como a coleta de material para reciclagem, e por isso depende das esmolas. Eles

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fazem questão de afirmar suas diferenças perante os outros sujeitos que também compõem a

população de rua. Ou seja, é a partir do contato com os outros moradores de rua que aqueles que

improvisam suas moradias em baixios de viaduto percebem e apontam suas diferenças.

Diferenças essas que são pautadas pela forma como ocupam e se instalam em espaços públicos,

pela forma como garantem sua sobrevivência cotidiana no “mundo da rua”.

É importante ressaltar que a classificação como maloqueiro também não é assumida pelos

moradores das instalações temporárias. Quando questionados sobre a denominação de

maloqueiro que lhes é atribuída, não se identificam pelos mesmos motivos apresentados pelos

moradores das moradias improvisadas em baixios de viadutos, ou seja, consideram tal

denominação como pejorativa e alegam que os “verdadeiros maloqueiros” são aqueles que não

tomam banho, que vivem na sujeira, que não se importam com a higiene pessoal, são os “caídos”

uma denominação ainda mais pejorativa do que maloqueiro. Eles também se consideram

diferentes dos maloqueiros, afirmam sua identidade a partir da diferença. Mais uma vez pode-se

perceber que a classificação de si mesmos é construída em relação aos outros que compõem o

“mundo da rua”.

Além da denominação de maloqueiro, me deparei com outras formas de denominar os

sujeitos que constroem as instalações provisórias. Eles mencionam os termos andarilho, trecheiro

e pardal para definir as denominações mais recorrentes entre eles, bem como para marcar as

diferenças existentes entre os sujeitos que improvisam instalações provisórias.

Apesar das diferenciações entre as várias categorias de sujeitos que se instalam

provisoriamente na cidade, eles partilham códigos no “mundo da rua”. Quando passam a adotar

as ruas como espaço de moradia, suas referências de vida social passam ser aquelas

desenvolvidas nas calçadas, nos bancos de praças e nos abrigos, ou seja, o cotidiano desses

sujeitos é marcado pela rua não somente como lugar de passagem, mas de permanência, mesmo

que temporária. Para tanto, desenvolvem um estilo de vida recoberto por formas específicas de

sobreviver e de conviver.

De uma maneira geral, a sobrevivência é garantida com a realização de atividades como

coleta de material reciclável, de “bicos” e da atividade mais tradicional de sobrevivência nas ruas:

a mendicância, mesmo que não queiram ser identificados como mendigos. Então, a partir da

forma nômade como passam a viver na cidade, têm um olhar diferente sobre a rua e sobre outros

espaços da cidade. Diferentemente de grande parte da população de uma cidade que passa pela

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rua circunstancialmente, os que moram nas ruas têm um modo de vida muito peculiar, pois

desenvolvem formas de garantir a sobrevivência, de conviver com os outros sujeitos da rua e de

ver o mundo. Atribuem novas funções aos espaços públicos da cidade e a rua passa a ser

entendida como espaço de morar e de sobreviver.

Mesmo que permaneçam na cidade por pouco tempo, conseguem estabelecer laços,

relativamente, estáveis com outros moradores de rua. Referem-se aos “amigos da rua” como

aqueles que indicam bons lugares para o pernoite, como aqueles com quem dividem a aguardente

e é também com esses amigos que se informam de instituições que oferecem atendimento à

população de rua. Como, em grande parte, esses sujeitos estão sozinhos, diferentemente das

instalações permanentes dos baixios de viadutos, onde encontram-se grupos domésticos, eles

estabelecem novas redes de relações com os amigos que fazem no mundo da rua. Isso significa

que mesmo longe de suas famílias, eles buscam se filiar a algum grupo a partir do qual

desenvolvem sua sociabilidade. Esses contatos são importantes pelo fato de que é por meio deles

que esses sujeitos podem realimentar os códigos e valores necessários para a sobrevivência nas

ruas.

Ao final do capítulo, duas últimas questões serão discutidas: a presença da

heterogeneidade no interior de um segmento da população de Belo Horizonte que é definido

homogeneamente como população de rua e uma breve incursão sobre o conceito de identidade.

A heterogeneidade na homogeneidade será discutida porque práticas, usos e valores

diferenciados adotados pelas várias categorias de sujeitos que se apropriam das calçadas, bancos

de praças, baixios de viadutos e passarelas, como locais permanentes ou temporários de moradia

marcam definitivamente a população de rua e torna impossível pensá-la como homogênea. As

diferentes formas utilizadas para viver nas ruas da cidade são reveladoras de posturas e atitudes

diferentes em relação aos lugares ocupados, bem como em relação à cidade como um todo e seus

habitantes. Isto significa que esses sujeitos percebem e interpretam, não só suas vivências, mas

também suas posições no mundo da rua de forma bem particulares. Valendo-me de Bourdieu

(1982), é exatamente porque ocupam posições diferentes no interior da população de rua e da

cidade como um todo que adotam atitudes diferentes e têm percepções diferenciadas da realidade

na qual vivem. Isto é, as classificações das quais se valem para interpretar a realidade vivenciada

é relativa à posição que nela ocupam. Partindo desses pressupostos, a análise da população de rua

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pelo viés da heterogeneidade foi construída a partir das diferentes maneiras de ocupar os espaços

públicos e pelas formas distintas de classificar e perceber o espaço ocupado.

A questão da identidade será discutida de maneira breve na última seção do capítulo como

uma forma de apresentar os sujeitos que fizeram parte dessa pesquisa a partir de suas afirmações

em torno de suas diferenças, das definições que apresentaram a mim sobre quem são, ou seja,

como se vêem, como vêem os outros e como desejam ser vistos. Para tanto, debrucei-me,

inicialmente, na discussão de Hall (1995) sobre o sujeito pós-moderno que tem como

característica a fragmentação e o descentramento. Esses conceitos me foram válidos para pensar

os sujeitos que compõem a população de rua não como uma novidade do cenário urbano

contemporâneo, visto que o fenômeno da população de rua parece novo, mas não é recente, mas

para pensá-los como um dos personagens da cena da globalização. Com isso quero dizer que a

população de rua pode ser pensada como uma das características do fenômeno da globalização,

mas com suas especificidades resultantes de processos locais. Nesse cenário de transformações

do mundo contemporâneo, nos deparamos com um contexto de fragmentação, não só dos

sujeitos, mas também das identidades. Isso significa que o sujeito pós-moderno, como definido

por Hall (1995), se vale de múltiplos fatores, interesses e gostos, por vezes contraditórios, para

construir sua(s) identificação(ões). Os sujeitos que compõem a população de rua podem ser

pensados como uma das expressões dos sujeitos descentrados e fragmentados que se valem de

vários interesses e gostos para se identificarem como maloqueiros, andarilhos, como catadores de

papel entre outros para sobreviverem no mundo da rua. Tais identificações serão utilizadas nas

variadas situações que possam vivenciar e que requerem práticas específicas e por vezes,

contraditórias para garantirem sua sobrevivência cotidiana.

O conceito de identidade contrastiva de Cardoso de Oliveira (1976, 2000), mesmo que,

diferentemente de Hall, trabalhe com o irredutível na definição das identidades, é retomado para

fazer referências à manipulação de identidade nas situações de contato. Essa idéia de que os

sujeitos no mundo contemporâneo adotam vários interesses para se identificar, ou seja, não

cristalizam sua identidade em um único referencial, pode também ser pensada a partir da

manipulação. Os sujeitos da população de rua também manipulam sua(s) identidade(s) em

situações de confronto, seja com outros moradores de rua, seja com pessoas que não moram nas

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ruas. Isso significa que nas situações de contato, se deparam com o(s) outro(s) e buscam afirmar

suas diferenças ou semelhanças.

O quarto e último capítulo traçará a idéia de como os sujeitos que fazem parte da

população de rua são vistos por outros segmentos da sociedade: o movimento dos sem-casa, o

Poder Público Municipal e a Pastoral de Rua. Esses segmentos foram escolhidos como parte da

análise dessa pesquisa pelo fato de estarem direta ou indiretamente relacionados com a população

de rua. Além disso, o objetivo principal de trazer outros sujeitos para análise foi o de identificar

se a heterogeneidade da população de rua é percebida por quem trabalha diretamente com ela

(Poder Público Municipal e Pastoral de Rua) e por quem de forma indireta esteve/está

relacionado a ela. Se o capítulo três abordou a forma como os sujeitos que improvisam

instalações permanentes e transitórias em espaços púbicos da cidade se vêem, o capítulo quatro

tem como objetivo apresentar como são vistos por quem diretamente não faz parte da população

de rua, mas com ela estabelece/estabeleceu algum contato.

O primeiro grupo a ser apresentado nesse capítulo final será o movimento dos sem-casa.

Esses sujeitos também sofrem o constrangimento da falta de moradia, mas adotam uma estratégia

diferenciada para enfrentá-lo. Esse grupo aparecerá nesse capítulo pelo fato de que durante a

realização do trabalho de campo, no ano de 1994, ocorreu um acampamento de participantes do

Movimento dos Sem-Casa no bairro de Lourdes, localizado na zona sul de Belo Horizonte. O

acampamento ocorreu ali porque era onde se localizava a Secretaria Estadual da Habitação. O

objetivo de tal acampamento era pressionar o poder público para o atendimento de uma

reivindicação do movimento por uma área na região metropolitana de Belo Horizonte onde

pudessem construir suas moradias. A imagem do acampamento – barracas erguidas com lona,

papelão e madeirite, pessoas fazendo as refeições nas calçadas, lavando roupas, cuidando de

crianças – fez com que, imediatamente, eu me lembrasse das cenas e situações dos baixios de

viadutos e passarelas: desde a forma como as edificações eram construídas até as atividades

realizadas cotidianamente. Diante desse acontecimento percebi mais um grupo de pessoas que

também vivia o constrangimento da falta da habitação e adotava estratégias diferentes para o

enfrentamento do problema. Frente a esse fato, entrei em contato com os participantes desse

acampamento objetivando adentrar o universo classificatório deles em relação às outras

“categorias” de “moradores de rua” por mim investigados. Isto é, o intuito era mapear mais um

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grupo que, naquele momento se apropriou de um espaço público numa área nobre da cidade,

ergueu edificações muito semelhantes àquelas que existiam/existem em baixios de viadutos e,

como esses últimos, eram percebidos pelos acampados do movimento dos sem casa.

Esse acampamento foi emblemático no que se refere à tensão existente entre moradores de

rua e não moradores de rua, mesmo que os sujeitos acampados não se definissem como

população de rua. Ao entrevistar os comerciantes mais próximos ao local do acampamento, foi

possível mapear como os moradores dos baixios de viadutos, os sujeitos que pernoitam em

calçadas da cidade e os participantes do movimento dos sem casa se vêem e são vistos pelos que

não têm moradia. Bem como compreender como eles são vistos por aqueles que não vivem o

problema da falta de moradia, mas que experimentaram uma grande proximidade com o

cotidiano de quem faz da “rua” seu local de permanência na cidade.

Além disso, conversei com alguns funcionários da Prefeitura Municipal de Belo

Horizonte: Secretária Municipal de Desenvolvimento Social, Diretora do Departamento de Ação

Social Básica, Coordenadora do Programa de Apoio à População de Rua e Educador Social do

Programa de Apoio à População de Rua. Também entrevistei a coordenadora da Pastoral de Rua,

vinculada a Arquidiocese, já que essa pastoral também realiza atividades junto à população de

rua.

Ao final deste trabalho apresento algumas considerações a título de conclusão, mas

obviamente não tive a pretensão de tecer enunciados categóricos em torno da população de rua e

sim apresentar uma reflexão final sobre as interpretações aqui construídas. O andar pelas ruas da

cidade continua, esse trabalho foi resultado apenas de algumas interrupções ao longo da

caminhada para deter mais intensamente meu olhar sobre os seus moradores.

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CAPÍTULO UM

A CIDADE COMO PROJEÇÃO DOS IMAGINÁRIOS SOCIAIS

“Mas a cidade não conta com o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros

das bandeiras...” (Italo Calvino,1991)

O objetivo deste capítulo é traçar, esquematicamente, a história de Belo Horizonte,

buscando focalizar o processo de produção e ocupação dos espaços da cidade, a que serviriam e a

quem caberia usufruí-los, para situar o fenômeno da população de rua. Buscarei mostrar que,

seguindo o ideal de “progresso e modernização” que impregnava o Projeto da Nova Capital do

Estado, desde o planejamento e ao longo de seu desenvolvimento, o poder público definiu e

elegeu espaços para a localização de determinadas atividades bem como para a ocupação da

cidade por alguns segmentos sociais. Percorrendo a história de Belo Horizonte e salientando os

usos implantados em seus espaços é que se buscará compreender, diacronicamente, como a

cidade foi adquirindo o formato atual. Este pode ser percebido como resultado do crescimento e

expansão da cidade e, além disso, como a expressão dos ideais e idéias que orientaram esse

crescimento, inscrevendo nos edifícios, casas e barracos, nas avenidas, ruas e becos as marcas da

trajetória histórica dos espaços da cidade: produto das relações travadas entre o poder público, a

população e o meio.

A Belo Horizonte do final do século XX e início do XXI pode ser definida como o

resultado do seu processo de crescimento e expansão. A organização do seu espaço reflete sua

história, as idéias que por aqui passaram e aqui buscaram se expressar: a construção da capital da

era republicana, a cidade moderna, planejada; as relações de poder que aqui se estabeleceram: a

oligarquia agrária, a elite industrial emergente, os movimentos sociais reivindicatórios, enfim as

lutas que nele se travaram.

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A noção de cidade que norteará a análise remete a uma concepção que a compreende

como um “cenário”, uma “paisagem urbana” que se constrói cotidianamente. Nesse cenário e/ou

paisagem ocorrem múltiplos acontecimentos que, por sua vez, influenciam as transformações do

espaço físico, político, econômico, social e cultural da cidade, conferindo-lhe novo formato, novo

contorno. De acordo com Ferrara (1993:202), “as transformações econômicas e sociais deixam,

na cidade, marcas ou sinais que contam uma história não verbal pontilhada de imagens, de

máscaras, que têm como significado o conjunto de valores, usos, hábitos, desejos e crenças que

nutriram, através dos tempos o cotidiano dos homens.”

Assim, buscando não uma cobertura abrangente, mas pontuar algumas marcas e sinais da

história de Belo Horizonte inscritos em seu formato inicial, à época da sua construção, bem como

as transformações ocorridas em virtude de sua expansão e crescimento; a tentativa aqui é

selecionar alguns fragmentos dessa trajetória histórica para elucidar, através da forma de

ocupação de seus espaços, como a imagem e a representação da cidade foram sendo construídas

através da atuação de seus sujeitos e das relações que, cotidianamente, estabeleceram entre si e

com o espaço ocupado. Partindo desses fragmentos é que procurarei estabelecer possíveis nexos

de significação ou possíveis entraves entre a cidade, seu formato e seus sujeitos, em especial,

aqueles que fazem parte da chamada população de rua.

1.1. BELO HORIZONTE: A PRESENÇA DO PARADIGMA DA ORDEM AO LONGO

DE SUA HISTÓRIA

Segundo Zukin (1996), Belo Horizonte pode ser considerada uma cidade moderna antiga1,

que teve sua história marcada pela forma como ocorreu seu crescimento e expansão. A ordem,

como a grande orientadora do desenvolvimento da cidade, já estava presente desde a época de

sua construção. O Plano de Aarão Reis buscou expressá-la através do traçado geométrico, da

localização de algumas atividades e de algumas edificações, como por exemplo o Palácio do

Governo. Era a época em que o poder público arbitrariamente, apesar da mudança e construção

da nova capital ter sido discutida no congresso, impôs à população do antigo Curral Del Rei um

novo formato de cidade em contraposição à espontaneidade do desenvolvimento daquele arraial e

mais ainda em contraposição ao traçado da antiga capital − Ouro Preto − que, além disso,

1 Zukin (1996) em seu artigo sobre as paisagens urbanas pós-modernas, assinala que as cidades modernas antigas são aquelas construídas entre 1750 e 1900 e as cidades modernas recentes são aquelas construídas entre 1900-50.

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significava uma oposição ao que representava o antigo regime: o arcaico, o barroco. O novo

tempo − a república − deveria ser um marco do progresso e da modernidade para o país. Assim,

empenhar-se na concretização dos mesmos a partir da construção de uma cidade planejada sob a

autoridade da ciência e da racionalidade técnica era mais do que consoante com aquele momento.

É como se Minas Gerais saísse à frente pela busca do tão almejado progresso ao construir dessa

forma sua nova capital.

Essa busca da ordenação num espaço citadino que seria conformado para ter a

configuração de um espaço urbano foi enfrentando, ao longo do tempo, alguns entraves para a

sua consecução, os quais foram considerados como aspectos da presença da desordem na cidade.

Num primeiro momento, a desordem era atribuída aos assentamentos espontâneos que foram

surgindo na área central de Belo Horizonte com a construção dos barracos e das “cafuas” pelos

operários que chegavam à cidade para trabalhar na sua construção. Tais construções

contrariavam a lógica de ocupação prevista pelo seu plano, como também o ideal de modernidade

e progresso, naquela época ancorados na imagem de uma cidade limpa, bela e higiênica, pois

eram moradias construídas com chapas de lata e madeira, estando em desacordo com as

edificações que se pretendia erigir naquela área. Assim, já no início do século XX era possível

perceber que, de acordo com o planejamento da cidade e com as imagens que se buscava criar

para ela, uma determinada forma de uso e ocupação do espaço central pelos segmentos mais

pobres da população era inconcebível, daí o início das ações de remoção e expulsão de tais

moradias dessas áreas. A ocupação daquela área deveria obedecer o previsto pelo plano e pelas

imagens da cidade que se tentava cunhar.

1.1.1. A ORDEM LÓGICA: O ADVENTO DA REPÚBLICA, A CONSTRUÇÃO DA CIDADE E O NASCIMENTO DA NOVA CAPITAL COMO EXPRESSÃO DA MODERNIDADE

Apesar de todas as tentativas anteriores de mudança da capital2 , foi a instalação da

República que revigorou a discussão, buscando colocar fim aos argumentos contrários a tal

empreitada, justificando que cabia aos Estados “... zelar pela posição que deveriam ocupar na

Federação, naturalmente com destaque para os seus centros políticos administrativos, suas 2 Até 1851, houve cinco tentativas de mudança da capital mineira, as quais alegavam que Ouro Preto não era uma cidade que correspondia às necessidades de um centro político, administrativo e econômico do estado de Minas Gerais.

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180

capitais.” (Bomeny,1994:51) Com a Proclamação da República, em 1889, e com a instauração

do regime federalista, implantado, em 18913, o Estado passa a ter grande importância e destaque

político frente à União e aos Municípios e, desta forma, arrebanha encargos e atribuições que

anteriormente escapavam à sua esfera de ação.

A República, mais do que instalar uma nova forma de governo no país, trazia consigo um

desejo de renovação da sociedade, de rompimento com o passado e de projeção para o futuro.

“Era como se a República tivesse dissipado uma certa inércia do tempo, abrindo horizontes para

a integração do País no mundo civilizado e acelerando o próprio ritmo da sua história.”

(Julião,1992:17) Foi nessa imagem da República que a idéia de construção da nova capital do

estado encontrou ressonância.

A transferência da capital, tornada, como assinala Julião (op.cit.:11), em bandeira da elite,

passou a ser identificada com o projeto republicano. Isso porque as elites brasileiras do final do

século XIX defendiam a República como sendo portadora de um novo tempo. Desta forma, o

ideal republicano é que perpassava as imagens produzidas no debate sobre a futura capital entre

1891 e 1893. O que se pensava é que a nova capital pudesse ser “... um centro de

desenvolvimento econômico e intelectual, foco da civilização e progresso, moderno, higiênico e

elegante.” (Ibidem:10)

O país buscava entrar na era da modernidade que trazia no seu bojo o desejo de

transformações radicais, como, por exemplo, o rompimento com os laços de uma sociedade

tradicional e o início de um processo de desenvolvimento nacional. Essas mudanças ocorridas no

final do Império, num país que recebia os ecos da modernização que tomava corpo na Europa,

acenavam com a possibilidade de se instituir uma nova ordem social.

Os ecos do processo de desenvolvimento econômico, resultante da expansão do

capitalismo na segunda metade do século XIX, inspiravam as elites brasileiras a defenderem o

progresso a partir do tema da modernização. Como assinala Ianni (1994:21), “em 1888-89 o

Brasil tentou entrar no ritmo da história. Aboliu a Escravatura e a Monarquia, proclamando a

República e o trabalho livre.” Tais modificações na estrutura do país ocorreram

3 Cf. Coelho (1972)

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concomitantemente com o surgimento de estabelecimentos fabris, com o desenvolvimento dos

transportes e com a intensificação do comércio. Esse conjunto de transformações significava uma

modernização, mesmo que ainda tímida, em termos materiais como também culturais. Entretanto,

Julião (1992) ressalta que a modernização no Brasil, assim como em outros países periféricos,

desenvolveu-se de forma singular, visto que esta “... entrava na cena nacional como um esforço

das elites, gerado pela percepção do atraso em que se encontrava o País.” (Ibidem:14) Com

efeito, a corrida atrás do desenvolvimento e do progresso teve no país uma trajetória

contraditória, pois o avanço das condições materiais debatia-se com um modelo econômico

dependente, predominantemente agrário, e uma estrutura política conservadora.

“Mas ao fim do século XIX o Brasil ainda parecia viver no fim do século XVIII. As estruturas jurídico-políticas e sociais tornaram-se cada vez mais pesadas. (...) Eram evidentes os sinais de uma mentalidade formada nos tempos do colonialismo português. A relação dos setores dominantes e do próprio governo com a sociedade guardava os traços do colonialismo.” (Ianni,1994:19)

No cenário nacional da recém proclamada república, palco das idéias modernas de desenvolvimento econômico, político e social, a idéia de construção de uma nova capital para o Estado de Minas Gerais encontrou repercussão. É nesse contexto que se funda Belo Horizonte no antigo Curral Del Rei, configurando-se como o lugar da república nas Minas Gerais. Bomeny (1994:49) assinala que Belo Horizonte traria a marca de ser “...o primeiro espaço republicano, no sentido preciso de que nascia a cidade-filha-única da proclamação da igualdade política.” 4

“É sintomático que a decisão da transferência da Capital coincidisse com a convicção de que se vivia uma era inaugural. A instituição de um novo tempo pressupunha uma nova espacialidade, capaz de dar um sentido material e simbólico à idéia de ruptura. A necessidade de distinguir-se da antiga ordem impunha um deslocamento, uma mudança de lugar, capaz de demarcar a emergência de um tempo de alteração social. Se o advento da República era o elemento chave na concepção dessa temporalidade, a cidade foi, por excelência, o espaço da sua representação. Opondo-se à sociedade rural e arcaica, ela sugeria uma vida cosmopolita, racional, em incessante transformação. Sobretudo, constituía o espaço público legitimador do novo poder, adequado à sociedade formada por indivíduos emancipados.” (Julião,1992:19) (Grifos meus)

As idéias de modernização perpassavam os debates após a Proclamação da República,

influenciando sobremaneira a discussão sobre a construção da nova capital do Estado de Minas

Gerais. Naquele momento, as idéias partilhadas pela elite brasileira eram defendidas pelos grupos

4 É importante ressaltar que Belo Horizonte foi a primeira cidade construída na República, tendo sido criada para ser o centro político-administrativo do Estado. LE VEN (1977) assinala que em estudos urbanos é comum estabelecer categorias que classificam as cidades a partir de suas funções. As cidades-capitais teriam como função “... abrigar a sede do Poder Público e desempenhar um papel controlador, em relação à região administrativa legalmente a ele submetida.”(P.18) Estas cidades seriam, por definição, cidades-administrativas.

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econômicos emergentes em ascensão política, a chamada “burguesia do café”. Empenhavam-se

no projeto de mudança da capital, pois esta, ao implementar um novo formato de cidade sob o

arauto da modernização, romperia com a antiga estrutura colonial impregnada em Ouro Preto e

na decadente mineração, colaborando, assim, para o fortalecimento da nova atividade econômica

no Estado e, além disso, para o alijamento da elite aristocrática ouropretana. Segundo Julião

(1992:30), os cafeicultores buscariam um espaço para abrigar a nova força econômica que

representavam.

Decidido onde construir a nova capital, em 1894 foi formada a Comissão Construtora

responsável pela elaboração da planta geral da cidade. Aarão Reis, que já havia presidido a

Comissão de Estudos formada para avaliar as cinco localidades possíveis para a transferência da

capital, foi também o coordenador dessa Comissão, ficando encarregado de elaborar o projeto da

nova cidade a ser construída no Arraial de Belo Horizonte.

A Planta Geral elaborada por Aarão Reis era composta de três zonas concêntricas: zona

urbana central, zona suburbana e zona rural. A primeira delas, com ruas e avenidas amplas,

destinava-se ao aparato burocrático-administrativo do governo e às residências de funcionários

públicos, de proprietários de Ouro Preto (antiga capital) e de ex-proprietários do Curral del Rei.

A zona suburbana era separada da urbana pela atual Avenida do Contorno5, e suas ruas eram

mais estreitas e menos regulares. Para esta zona estava prevista a construção de sítios e chácaras.

A zona rural constituiria o cinturão verde da cidade, pois nela se instalariam os Núcleos

Agrícolas. Esse critério de zoneamento utilizado pelo planejador da cidade já denota uma

representação espacial delimitadora, pois impõe fisicamente, através dos limites entre as zonas, as

atividades e os tipos de moradores permitidos para cada parte da cidade. Além de definir regras

diferentes para a ocupação dos espaços da cidade, essa divisão em zoneamentos também

expressava a separação do centro administrativo, com os edifícios públicos, as atividades

administrativas, os funcionários envolvidos na burocracia estatal e municipal e seus habitantes,

em sua maioria advindos de Ouro Preto, dos subúrbios que localizavam-se nas zonas suburbana e

rural. A intenção de Aarão Reis era

“construir uma cidade protótipo do modelo urbano do futuro, cuja concepção seria a base e o limite da sociedade que se desejava fazer existir − moderna, organizada, com funções definidas e espacialmente localizadas. Deveria exaltar a grandeza do governo que, em sua

5 Avenida esta que anteriormente era denominada como Avenida 17 de dezembro

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demonstração simbólica de força, desencadearia um importante efeito político captando confiança e provando a solidez do poder. Ao Estado caberia não só a responsabilidade pela construção da cidade, como também pelo processo de ocupação do solo e pelo seu desenvolvimento.” (Guimarães, 1991:44 e 45) (Grifos meus)

O mapeamento da cidade, com seu traçado geométrico, suas ruas e avenidas largas como

expressão do modernismo, significava um contraponto à antiga capital. Ouro Preto, com suas

ruas curvas e estreitas devido ao traçado tortuoso das ladeiras que foram sendo definidas pela

disposição das construções, era a imagem-antítese do progresso, como assinala Salgueiro (1988).

Ouro Preto surgiu espontaneamente devido à mineração, em uma região com topografia difícil

que, segundo os grupos favoráveis à mudança da capital, era inadequada ao assentamento

humano. Além disso, Bomeny (1994) ressalta que o plano da nova capital significava também um

contraponto às fazendas, sítios e roças características da região na qual Belo Horizonte iria se

instalar. “Porque idealizada e imposta pela fração mais moderna das elites mineiras, Belo

Horizonte traduziria na sua ordenação físico-espacial o que havia de mais avançado em termos

urbanísticos.” (Ibidem:42) Belo Horizonte como cidade planejada sob o ideário da república,

expressão da modernidade, seria construída sobre os escombros da antiga ordem, cujo alvo

primeiro era Ouro Preto.

Pelo traçado da cidade elaborado por Aarão Reis é possível perceber a influência evidente

de Haussmann, responsável pela reforma de Paris implementada por Napoleão III por volta de

1850. De acordo com Harouel (1990), o urbanismo de Haussmann tinha como característica uma

rede de grandes artérias cortando o território da cidade. Previa uma estrutura de bulevares,

avenidas e ruas largas “...criando uma forte hierarquia entre as vias novas e a maioria das vias

antigas.” (Ibidem: 112) O objetivo, tanto de Napoleão quanto de Haussmann, era fazer

desaparecer a imagem de Paris como uma cidade antiga, velha, que convivia com a insalubridade,

fazendo com que as grandes vias impusessem a toda a cidade a imagem de uma capital moderna6

.

O plano de Aarão Reis explicitava uma preocupação com o “staff” burocrático estadual,

pois, no que se refere às áreas residenciais, ficou reservado para este setor a área nobre da cidade. 6 Segundo Guimarães (1991:47), em geral a associação da entrada da influência de Haussmann no Brasil é feita à reforma de Pereira Passos no Rio de Janeiro no início do século (1902-1906) visando a remodelação e urbanização da cidade buscando modernizar a capital federal. Entretanto, a autora ressalta que com Aarão Reis já foi possível perceber tal influência, apesar de Haussmann transformar um espaço construído e Aarão Reis construir um novo espaço.

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Para os trabalhadores agrícolas, responsáveis pela constituição do cinturão verde da cidade,

estava prevista a construção de alojamentos nos Núcleos Agrícolas. Já os encarregados da

construção da cidade − os trabalhadores da construção civil, artífices da cidade − não foram

incluídos em nenhum tipo de planejamento referente à moradia. Havia apenas uma hospedaria

destinada aos trabalhadores, mas era insuficiente para abrigar a todos, o que contribuiu

diretamente para o surgimento de cafuas e barracos, denotando uma clara exclusão deste

segmento social do plano original.

As cafuas eram casas de barro cobertas de capim e os barracos eram feitos de tábuas,

cobertos de capim ou zinco. Assim, na época da sua construção, Belo Horizonte assemelhava-se a

um grande acampamento com barracas para os trabalhadores. Dois anos antes da inauguração já

havia dois núcleos de aglomeração de cafuas na zona urbana: o Córrego do Leitão, no Barro

Preto, e a Favela ou Alto da Estação, em Santa Teresa. Segundo descrição de Barreto (1995:350),

esses bairros eram “aglomerações humanas justamente consideradas a suburra7 da futura

cidade.” Em seu artigo sobre habitação e produção do espaço em Belo Horizonte, Costa (1994)

assinala que os discursos da época da construção da capital refletiam como o acesso a ela era

diferenciado para os vários segmentos da população em função da preservação da imagem de

cidade que se buscava construir. Tais discursos faziam

“referência ao tipo de população que seria considerada adequada e condizente com a imagem de cidade que se queria cunhar. Assim, por exemplo, os habitantes do Curral Del Rey, bem como os que trabalhavam na construção da cidade, ou os pobres em geral não se enquadravam na categoria acima. Já aos funcionários públicos seriam doados e vendidos lotes, e para eles seriam desenvolvidos projetos habitacionais segundo uma tipologia que variava de acordo com a própria hierarquia do funcionalismo.” (Costa, op.cit.: 51,52)

Portanto, antes mesmo de sua inauguração, a cidade já podia ser vista como um local de

usos e apropriações diferenciadas de seu espaço. Ao optar pela construção de uma cidade

moderna - ou seja, organizada com funções definidas e espacialmente localizadas − o autor da

planta geral predeterminou o formato dos espaços da cidade a partir das atividades priorizadas e

do tipo de moradores a elas associados. Enquanto isso, os reais “construtores da cidade” − os

trabalhadores da construção civil envolvidos na edificação da cidade ─, sem terem sido contemplados na planta geral com áreas específicas para moradia, passaram a formar

7 Suburra significa bairro a que se relegam bordéis e casas de prostituição.

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aglomerações de habitações precárias como estratégias para sobreviverem na cidade onde

trabalhavam.

Desta forma, o processo de ocupação de Belo Horizonte, apesar de idealizado e planejado,

começou a manifestar, no momento mesmo da construção da cidade, uma falta de controle do

poder público, visto que um segmento social não previsto para ocupar a área central da cidade

estava ali constituindo, mesmo que precariamente, suas moradias. Pode-se perceber que, nesse

período de construção da cidade e ao longo de seu desenvolvimento, houve uma certa distância

entre o que foi pensado e idealizado e o que efetivamente experimentaram seus construtores e

moradores, ou seja, uma distância entre o planejador e os usuários do espaço planejado.

Bomeny (1994:40) utiliza a figura de “cidade espetáculo” para enfatizar o aspecto da

segregação físico-espacial presente já no projeto da cidade, criando barreiras ao uso e

participação do ambiente urbano para algumas camadas da população. Segundo a autora, a

rigidez da planta elaborada por Aarão Reis a partir de critérios técnicos e rigorosos, a

preocupação com a área central e seu desenvolvimento e a posterior emergência da cidade oficial

e da real, são aspectos que reforçam a idéia de que Belo Horizonte seria uma cidade para “ser

vista”8.

Ao discutir o signo contextual, Ferrara (1986) afirma que o ambiente urbano é o campo

constante de luta entre o projeto e o uso. Isto porque o projeto seria “... o arauto de uma ideologia dominante e institucionalizada ...” e o uso “... cotidiano, simples (...) denuncia, no

interior do ambiente urbano, a representação do próprio antagonismo social.” (Ibidem:186)

Além disso, a autora também assinala que “... o uso não se amolda a normas, estatutos ou códigos, mas é, antes, fala subversiva e marginal pela maneira como compreende o espaço

urbano de inusitados significados e gera a imprevisibilidade de outros usos...” (Ibidem:12)

8 Cabe aqui uma referência a Brasília, cidade planejada, também caracterizada pela segregação físico-espacial, inaugurada em 21 de abril de 1960. Além de efetivar a transferência da capital federal, seu projeto modernista buscava servir de modelo de progresso para o resto do país, pois almejava ser a propulsora de uma nova era no Brasil que experimentasse mudanças não somente em termos da construção física de uma cidade, mas também em termos das relações sociais que ali seriam engendradas. Para Brasília também se poderia usar a figura da “cidade espetáculo”, visto que o Plano Piloto, assim como a área central de Belo Horizonte, constituiu uma barreira. Os espaços centrais da cidade, onde a ordem tem lugar, também ficam restritos a setores privilegiados da sociedade. Aos demais, entre os quais estão os trabalhadores, restam as áreas periféricas onde a desordem, em termos de planejamento urbano, prevalece.

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Com outras palavras, pode-se tratar a oposição projeto/uso, a partir das noções de

Lefebvre (1986): a representação do espaço e os espaços de representação. A primeira refere-se

ao espaço concebido, aquele dos urbanistas, dos planejadores, que ao fazerem um recorte

arbitrário do espaço, buscam ajustá-lo às suas concepções, tal como o fizeram Aarão Reis, no

caso de Belo Horizonte, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, no caso de Brasília. A segunda noção

refere-se ao espaço vivido, sendo, pois, o espaço dos habitantes das cidades, dos usuários dos espaços construídos. São esses os espaços que se aproximam de sistemas de símbolos e signos

não verbais e, segundo Harvey (1993), esse aspecto está relacionado com as invenções mentais

que imaginam novos sentidos ou possibilidades para as práticas espaciais.

O advento da República reforçou os ideais de progresso, de modernização, de ruptura com

o passado, com formas arcaicas de organização social para adentrar a nova era. Belo Horizonte surge nesse contexto e tem seu plano de cidade elaborado pelo engenheiro Aarão Reis, “... sob a

proteção da autoridade da ciência, (...) aquilo que seria a comprovação de que pela razão científica se chegaria ao aperfeiçoamento social.” (Bomeny,1994:43) Entretanto, contrariando a

“razão científica”, os trabalhadores envolvidos na sua construção, se instalam na área central da

cidade com suas cafuas e barracos. Com os olhos no futuro e a segregação físico-espacial já

impressa em seu projeto9, Belo Horizonte, às vésperas de sua inauguração, ainda se vê presa ao

passado, pois seus habitantes, como no passado colonial, são objeto de rigorosa exclusão. Com

efeito, a área central estava reservada para os funcionários públicos, mas aos reais construtores da

cidade não foi destinada nenhuma área específica, apenas uma única hospedaria foi construída, pois acreditava-se que sua presença na nova cidade seria temporária.

O momento de transferência da capital do estado cristaliza o esforço de construção de

uma imagem da cidade vinculada às idéias de modernidade. Imagem essa que é elaborada

apoiada na racionalidade técnica da organização e do planejamento das cidades. Por isso o

projeto da nova capital significava, além de uma nova forma de se conceber uma cidade, o

rompimento com a velha ordem, não só em termos de regime político, quando então era deixado 9 Guimarães (1991:47,50) chama a atenção para o caráter segregacionista que outros autores (Le Ven, 1977; PLAMBEL, 1979; Faria, 1985; Magalhães, 1989) atribuem ao plano de Aarão Reis. Guimarães (op. cit.) defende outra interpretação afirmando que “O plano final consistia basicamente no traçado, projeto e distribuição de prédios e logradouros públicos, condições para a implantação das habitações e a indicação, na Planta Geral da cidade, da destinação dos lotes a serem vendidos, reservados e concedidos aos funcionários públicos, proprietários de Ouro Preto e ex-proprietários do arraial.” (P.50) Segundo essa mesma autora, a segregação que passa a caracterizar a cidade é resultado de medidas adotadas pela Prefeitura e pelo Governo do Estado que seriam os principais incentivadores da especulação de terrenos.

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para trás o país colonial, mas no que diz respeito à implantação de novos marcos de construção e

concepção de um espaço citadino.

Nessa imagem que se buscava cunhar para a nova capital do Estado, o poder público,

símbolo da nova ordem, seria o grande responsável por implantar, por meio da construção de

Belo Horizonte, novas formas de desenvolvimento econômico, social e cultural. Essas idéias

orientaram a construção da cidade. Entretanto, é importante salientar que o poder público não se

encontrava sozinho nessa empreitada, mas os trabalhadores da construção da nova capital,

planejada e moderna, teriam poucas possibilidades de usufruírem dessa cidade. Isso porque para

estes a imagem de cidade que começa a ser gerida é aquela que impõe limites, estabelece

barreiras, ao invés de propiciar um livre acesso à mesma. Assim começa a história de Belo

Horizonte, com o poder público orientando sua construção, estabelecendo limites de acesso à

cidade para uns, doando terrenos em áreas nobres para outros, enfim, administrando a ocupação

da cidade.

A inauguração oficial da cidade ocorreu no dia 12 de dezembro de 1897 e em 1898 foi

elaborado o primeiro Código de Posturas, que já evidenciava uma característica básica do

processo efetivo de desenvolvimento urbano da cidade coordenado pelo poder público:

diferenciação de critérios e exigências para construção das casas na zona urbana, suburbana e

rural. Na zona urbana, configurada como objeto da legislação elitista, os preços dos terrenos eram

altos devido à especulação imobiliária e às várias exigências para a construção e a conservação

das casas. Na zona suburbana, os preços dos terrenos eram mais acessíveis à população de baixa

renda, o que contribuiu para que a maioria da população aí se instalasse.

Houve, inclusive, por parte da Prefeitura, um estímulo à ocupação da zona suburbana

como forma de evitar que áreas nobres na zona urbana fossem “invadidas” por trabalhadores de

baixa renda para a construção de “barracos”. De acordo com o PLAMBEL (1986:34), “o

controle do Poder Público sobre a ocupação do território se faz no sentido de separar no espaço

as classes sociais. (...) A cidade já nasce, desse modo, com a marca da segregação social do

espaço, impressa pelo Poder Público, o que se confirma e se acentua no decorrer de seu

processo de ocupação.”

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Assim sendo, a previsão feita por Aarão Reis sobre o processo de ocupação da cidade, que

se realizaria do centro para a periferia, se vê contrariada, pois o que aconteceu foi o

estabelecimento de uma zona urbana dotada, em parte, de infra-estrutura, mas esvaziada e uma

zona suburbana e rural povoada, mas sem serviços de infra-estrutura. Ou seja, a ocupação

acontecia inversamente ao sentido previsto: da periferia para o centro.

Conforme assinala o relatório do PLAMBEL (1986), é como se estivesse ocorrendo o

nascimento de duas cidades. A cidade oficial se desenvolveu conforme o que foi prescrito e

planejado pelo poder público. Situada na zona urbana e ocupada pela elite e pelos funcionários

transferidos de Ouro Preto, concentrou a quase totalidade dos equipamentos urbanos da cidade,

tais como escolas, órgãos administrativos, comércio e indústrias. E, ao lado desta, desenvolveu-se

a cidade real, nas zonas suburbana e rural, com carência de serviços e equipamentos urbanos e

uma população essencialmente operária.

As autoridades públicas, empenhadas em evitar a instalação da população de baixa renda

na área nobre da cidade − a zona urbana −, incentivaram a ocupação da zona suburbana e

adotaram posturas que visavam à limpeza da área central da cidade com a expulsão dos operários

do local. A primeira iniciativa nesse sentido foi do Prefeito Bernardo Monteiro que, em 1900,

ordenou a demolição das “cafuas” e barracos localizados nessa área e concedeu lotes a título

provisório, principalmente na área suburbana, para onde as pessoas deveriam se transferir.

Ainda em 1900, dois decretos da Seção de Higiene da Prefeitura aprovaram o

regulamento da Polícia Sanitária da cidade, estabelecendo disposições relativas às habitações dos

operários. Estas deveriam localizar-se fora da zona urbana, ser individuais e isoladas umas das

outras, sem comunicação interna, e não eram permitidos os domicílios coletivos. Além disso,

deveriam também ter suas paredes caiadas uma vez por ano, ou sempre que aparecessem doenças

transmissíveis, e possuir condições de higiene, ou seja, água, luz e instalação sanitária. Um

médico da Prefeitura faria visitas freqüentes para exigir que essas condições de asseio e higiene

fossem mantidas.

Pode-se dizer que o poder público preocupava-se com a higiene e a moradia para o

operário muito mais como questão estética do que social. A prioridade parecia ser a ordenação, a

limpeza e a organização da cidade e não as conseqüências da falta de higiene na saúde dos

moradores. As “cafuas” eram uma preocupação do poder público porque comprometiam a

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imagem de cidade-modelo e não porque eram um ambiente inadequado para a moradia. Partindo

dessa premissa, proibiu-se a construção de cafuas, cortiços, estalagens albergues ou casas para

moradia coletiva e construções de madeira para garantir um padrão homogêneo de urbanização.

Buscava-se preservar a área central, a zona urbana, que era exatamente o “cartão de visitas” da

cidade. Sua imagem deveria ser preservada ao longo do tempo, deveria ser eternizada.10 Vale

ressaltar que a partir do final do século XIX os higienistas voltam sua atenção para o meio

ambiente. O poder público em Belo Horizonte deixou transparecer essa preocupação com a saúde

pública nas ações fiscalizadoras da Seção de Higiene que tentavam disciplinar atividades, usos e

práticas do ambiente urbano. Foram elaboradas leis sob a ótica sanitarista, visando regulamentar

desde o comércio alimentício e ambulante, as construções, chiqueiros e estábulos até o

funcionamento do cemitério. Essas ações do poder público, legitimadas pelo saber médico,

normatizavam e fiscalizavam coisas, espaços e relações entre os indivíduos, buscando mais do

que higienizar o ambiente urbano, pois serviam como exercício de controle do poder público

sobre os homens e suas atividades. Segundo Julião (1992:128),

“A intervenção crescente na vida cotidiana visava, sobretudo, disciplinar comportamentos individuais e impedir o caos e a desordem urbana. Um projeto utópico que procurava instituir uma cidade asséptica, ocupada por homens higienizados e moralizados, cujo comportamento não oferecesse obstáculos ao progresso.” (Grifos meus)

Ainda no ano de 1900, foi instituído o Decreto nº 1.435 que prescrevia o seguinte:

“Todo o indivíduo que não puder ganhar a vida pelo trabalho, que não tiver meios de fortuna, nem parentes nas condições de lhe prestar alimentos nos termos da lei civil, e implorar esmolas, será considerado mendigo. Nenhum indivíduo poderá pedir esmolas, no distrito da cidade, sem estar inscrito como mendigo, no livro respectivo da Prefeitura. Feita a inscrição será entregue a cada mendigo:

- Uma placa com a designação ‘Mendigo’ e o número da inscrição, para trazer no peito e por forma bem visível;

- Um bilhete de identidade, contendo o número da inscrição, o nome, a idade, residência e designação do local destinado a estacionar, bilhete este que será assinado pelo Doutor Diretor de Higiene...” (Decreto nº 1435, 27/12/1900)

A racionalidade do planejamento regulamentava não somente a forma de ocupação dos

espaços da cidade, mas também as ocupações dos cidadãos nesses espaços. Medidas

discriminatórias eram adotadas como uma forma de evitar a presença da pobreza e da

10 Ferrara (1986) ao discutir a relação entre estética e moral assinala que “a estética não se satisfaz com o momentâneo, com o efêmero, com o imprevisto, com o reproduzível; oferece sua constante ao nosso desejo de eternidade, de eterno retorno como forma de participação nas esferas do ideal e da verdade (....).” (p.51)

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mendicância nas ruas da cidade11. Tais medidas visavam preservar o modelo original de cidade,

elitista e hierarquizado, com áreas bem diferenciadas para cada segmento social.

“Os dados do censo de 1912 confirmam o sucesso do poder público em seu esforço de obter a “limpeza” da área central, pois revela que a ocupação da cidade foi mais intensa fora da zona urbana onde estavam concentrados 68% da população da cidade. Este mesmo censo revela também que o atendimento de infra-estrutura não cobria grande parte das habitações o que denota o aspecto precário das mesmas. “... das 6808 construções existentes na cidade, 27% eram barracos; em termos dos níveis de atendimento de infra-estrutura, 15% das construções tinham energia elétrica, 36% eram abastecidas por água e 24% tinham sistema de esgotos (Penna, 1950). Assim, aproximadamente uma em cada quatro habitações era precária, havendo várias referências a favelas surgidas desde os primeiros anos de sua ocupação.” (Costa,1994:53)

Tabela 1

DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL DA POPULAÇÃO DE BELO HORIZONTE EM 1912

Zona População %

Urbana 12033 32

Suburbana 14842 38

Rural 11947 30

Total 100

Fonte: LE VEN (1977:90)

Desde o início de sua construção, no final do século passado, até os primeiros vinte anos

deste século, o que se viu prevalecer na cidade foi o empenho para a consecução das diretrizes

propostas pelo plano da cidade. Apesar das modificações do mesmo em virtude da saída do

próprio Aarão Reis da Comissão Construtora em 1895, antes mesmo da inauguração oficial da

cidade, das repercussões da Primeira Guerra provocando uma recessão nas obras e nos

empreendimentos econômicos, entre outros fatores, o que prevaleceu nesses primeiros anos foi o

esforço do poder público por manter a diferenciação espacial: delimitação e hierarquização dos

espaços urbanos.

Nessa fase, a prioridade era a construção dos prédios públicos, dos serviços de

terraplanagem e da urbanização do centro urbano, ou seja, da zona urbana da cidade onde se

11 Cf. Guimarães, 1991:153

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instalaram o centro do poder estadual, representado pela Praça da Liberdade, cujo entorno era

ocupado pelas Secretarias Governamentais e o Palácio do Governo, e o centro urbano onde se

desenvolveu o comércio e os bairros residenciais nobres. Externamente à zona urbana, a periferia

desenvolveu-se com bairros ocupados predominantemente por uma população operária, de forma

desordenada e sem controle do poder público. Apesar da existência de normas e regulamentos

para as construções nessa área, os mesmos não eram respeitados e tampouco fiscalizados. Assim,

a área da cidade, externa à Avenida do Contorno, se caracterizava pelo desenvolvimento e

ocupação desordenada. Através desse modelo segregacionista de ocupação, é importante perceber

que nessa primeira fase se consolidou a conformação espacial da cidade que definiu o lugar para

cada atividade e os seus segmentos sociais. Como assinala Filgueiras (1992:402) “...a

segregação urbana não foi simples produto do desenvolvimento econômico e do crescimento

demográfico acelerado. Ela é originária da fundação mesmo da cidade.”

A segregação, em Belo Horizonte, esteve presente mesmo antes de sua inauguração,

quando os próprios “construtores da cidades” − trabalhadores da construção civil − lutavam pelos

espaços da cidade ao construir seus barracos e cafuas. Luta esta que foi travada em torno da

legitimidade da ocupação de áreas da cidade por determinados segmentos. De um lado, os

segmentos mais pobres da população reivindicavam permanecer nos espaços centrais da cidade,

por eles ocupados, mas não a eles destinados. Outras vezes reivindicavam infra-estrutura,

principalmente nas zonas suburbana e rural, nos chamados bairros populares; pois na área central

da cidade os serviços de infra-estrutura fizeram parte do seu desenvolvimento, não sendo

resultado de ações reivindicativas. As áreas mais distantes, ou mesmo as porções ocupadas por

esses segmentos mais pobres nas áreas centrais, eram o retrato do descaso do poder público em

relação ao planejamento urbano. Essas áreas constituíam o que se pode chamar de palco da

desordem, tanto material, em se tratando da construção das moradias, como social, pois eram

considerados locais próprios da marginalidade.

De outro lado, encontravam-se os segmentos de renda mais alta, para os quais a zona

urbana da cidade foi acessível e prevista para ser ocupada por eles. Na perspectiva do poder

público municipal, nesse estrato social que ocupava a área nobre reinava a ordem, fruto da

observação da racionalidade que orientava o projeto original em que havia sido previsto uma

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ocupação homogênea e controlada por setor. Era o mundo da ordem pública, da cidade planejada

e moderna.

Praticamente, a cidade encontrava-se dividida em dois territórios: de um lado, a zona

urbana; de outro, as zonas suburbana e rural, separadas simbolicamente pela Avenida do

Contorno e de fato pelas diferentes formas de ocupação e desenvolvimento. Assim dividida, a

cidade ganhou uma feição dominada pelo eixo ordem versus desordem. A ordem foi cristalizada

na zona urbana central que abrigava o poder e o modelo de desenvolvimento da cidade planejada

e a desordem estava localizada fora desse centro, no entorno da cidade, nas suas áreas periféricas,

locais que abrigavam os segmentos mais pobres da população, situados à margem não só do

poder, mas também do aclamado progresso que, timidamente, tomava forma na zona urbana. A

cidade não configurava como uma extensão de espaços fluidos e indefinidos, mas sim como áreas

delimitadas para determinadas formas de ocupação e de cidadãos.

O projeto elaborado por Aarão Reis − priorizando a ocupação e o desenvolvimento de

infra-estrutura da zona urbana, destinada aos funcionários públicos da antiga capital − estabelece

um acesso diferencial à cidade, excluindo do progresso e da modernidade, materializadas no

centro urbano, os segmentos mais pobres da sociedade mineira.

“Ao invés de promessas de desenvolvimento e emancipação, a modernidade para os moradores dos bairros populares era sinônimo de exclusão, carência, controle e repressão social. Da ausência de serviços públicos básicos às barreiras que impediam o acesso às oportunidades econômicas ou políticas - tudo, aparentemente, constituía a negação do progresso.” (Julião, 1992:121)

Buscando explicitar as marcas que se inscreveram nos espaços de Belo Horizonte nesses

primeiros anos, é importante ressaltar três pontos: o progresso, a racionalidade técnica e a ordem.

Estas foram noções orientadoras da construção da cidade e de seus primeiros passos em direção

ao processo de desenvolvimento nacional como sinal de um novo tempo iniciado com a

República. Esses três aspectos fizeram parte do discurso ideológico que esteve presente no

momento de construção da cidade e a partir dele é possível compreender o sentido das

delimitações impostas ao novo espaço citadino.

Entre o progresso almejado com a construção de Belo Horizonte e o progresso

efetivamente constituído existe uma lacuna. O significado político da transferência da capital do

Estado de Minas Gerais estava no fato de que a nova cidade pudesse ser o expoente da igualdade,

do progresso e da modernidade propagados com o advento da república. Era o arcaico, o barraco,

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os resquícios do império que seriam expulsos desse novo espaço para ceder lugar ao que a

história lançava como moderno.

Como bem assinala Julião (1992:11), “... as representações urbanas estavam

estreitamente associadas ao universo ideológico republicano”. Efetivamente, as imagens que se

buscava cunhar sobre a nova cidade estavam em consonância com as elites brasileiras no final do

século XIX, pois estas acreditavam que o país começava a viver a era da modernidade, uma nova

ordem social, uma nova temporalidade símbolo de ruptura com a antiga ordem.

Fruto da racionalidade técnica, o projeto da cidade previu um traçado geométrico com

ruas e avenidas largas, em franca contraposição à forma espontânea que Ouro Preto cresceu.

Definindo áreas para a localização das principais edificações (Palácio do Governo, Secretarias

Estaduais, Estação Ferroviária etc), de determinadas atividades como a burocracia estatal, o

comércio e residência de funcionários (antigos funcionários públicos de Ouro Preto, por

exemplo), não foram previstas áreas de moradia para os construtores da cidade. A classe

trabalhadora foi “... convidada a construir mas não a residir com plena cidadania” (Le

Ven,1977:159). A racionalidade empregada em prol do progresso projeta uma cidade com

barreiras, algumas invisíveis no seu mapa12, mas presentes no mapa imaginário percorrido e

vivido por alguns de seus habitantes, barreiras estas que dificultavam o acesso às manifestações

do progresso que ensaiava sua estréia na capital mineira.

De fato, a lacuna existente diz respeito a esse descompasso no desenvolvimento da cidade.

Com algumas áreas bem equipadas em termos de infra-estrutura e outras sem esses serviços

básicos, o progresso não alcançava todos os seus habitantes. A almejada ruptura com os

resquícios da “antiga ordem” não estava efetivada, pois nem todos tinham plenos direitos para

usufruir a cidade.

Ao lado da racionalidade técnica que dominava o modelo arquitetônico geométrico de

cidade, a ordem esteve presente. Como uma forma de contraposição ao traçado espontâneo de

Ouro Preto e, conseqüentemente, ao símbolo do arcaico, da antiga ordem, a técnica e o

planejamento vêm materializar na nova capital do estado os ideais republicanos de progresso e

12 Digo que no mapa as barreiras eram invisíveis no sentido de não se configurarem como tal no projeto que foi desenhado para a cidade, mesmo tendo a Avenida do Contorno funcionado como uma dessas barreiras, pois servia como um “... ‘dique’, um separador social.” (Iglésias, 1987:25) entre a zona urbana e as demais.

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modernidade. Ordem essa que, naquele momento, significava seguir as regras ditadas pelo plano

da cidade. O Poder Público local era o grande responsável pela condução do processo de

implantação de uma nova concepção de cidade, da possibilidade de ordenar um espaço físico e de

inscrever nele as marcas de uma nova ordem social. De modo a indicar isso, Balandier (1982:10)

assinala que

“O poderio político não aparece unicamente em circunstâncias excepcionais. Ele se quer inscrito duravelmente, imortalizado em uma matéria imperecível, expresso em criações que manifestem sua “personalidade” e seu brilho. (...) Cada “reinado”, mesmo que republicano, marca de um modo novo um território, uma cidade, um espaço público. Ele arranja, modifica e organiza, segundo as exigências dos proveitos econômicos e sociais de que é guardião, mas, também, para não ser esquecido e para criar condições para suas comemorações futuras.” (Grifos meus)

Em suma, Ouro Preto trazia consigo a marca do absolutismo português, incompatível com

a era republicana. A nova capital procurava, então, imprimir uma imagem oposta: moderna,

vigorosa e emblemática do novo poder emergente que buscava se consolidar não apenas a partir

do poderio econômico, mas também do uso da técnica, da implantação da ordem no novo espaço

da capital mineira como forma de impulsionar o progresso na era republicana.

1.1.2. A ORDEM ECONÔMICA: A CONSTRUÇÃO DA CIDADE INDUSTRIAL E A RETOMADA DO DISCURSO DA MODERNIZAÇÃO

Nas décadas de 1920 e 1930, com o aumento de sua população, principalmente na zona

suburbana, a desordem passa a ser identificada com a falta de infra-estrutura em alguns bairros e

vilas. O abastecimento de água e de energia elétrica eram precários, o esgotamento sanitário

praticamente inexistente e a falta de equipamentos urbanos tais como escolas, hospitais, entre

outros, também contribuíam para completar o quadro de carência da zona suburbana.

O aparecimento da desordem no cenário urbano só fez reforçar a necessidade de

ordenação, entretanto as medidas efetivadas com tal objetivo não foram eficazes para equacionar

os problemas de infra-estrutura, pois as ações públicas implementadas continuaram privilegiando

a realização de obras na zona urbana - o cartão postal da cidade. Essa diferenciação, referente à

realização de obras em determinadas áreas da cidade, reforçou a segregação do espaço urbano de

Belo Horizonte.

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É possível dizer que tanto o poder público como a população carente de moradia, se debateram em torno do problema da ordem. De um lado, o poder público, em nome da limpeza e do embelezamento da cidade, realizou remoções e expulsões das favelas localizadas nas áreas mais centrais à medida que Belo Horizonte se expandia. De outro, uma parcela da população atuou em movimentos reivindicativos buscando, além da realização de obras de infra-estrutura, o reconhecimento das áreas ocupadas como um direito que deveria lhes ser conferido, na medida em que ao longo da história da cidade foram expulsos de outras áreas. Ou seja, desejavam que a ocupação e a apropriação por eles realizada, fosse reconhecida dentro dos padrões da ordem estabelecida para o espaço urbano de Belo Horizonte.

Não se deve desconsiderar que a década de 1920 também caracterizou-se como portadora de novos valores nos campos artístico, cultural, social e político. O ano de 1922, com a Semana de Arte Moderna em São Paulo, foi um marco de novos temas e novas formas de expressão para as artes como também para o pensamento social no país; o tenentismo, também de 1922, buscou alterar as estruturas oligárquicas prevalecentes. Segundo Ianni (1994:24): “Parece que o Brasil começa a ingressar no século XX nesse ano. Os acontecimentos de 22 sugerem os prenúncios de outra época, outro ciclo da história.”

Na capital mineira, os anos 1920 ecoaram no espaço urbano por meio de uma expansão acelerada da cidade, quando se observou uma taxa de crescimento de 7,7% ao ano13 , mas a característica marcante foi um processo de ocupação desordenado. A ordem como orientadora do processo de crescimento, desenvolvimento e expansão da cidade − tão enfatizada e perseguida à época da sua construção e em seus primeiros anos − nesse momento, torna-se um imperativo pelo fato do poder público começar a perder o controle sobre o crescimento da cidade.

A desordem no cenário da Belo Horizonte dos anos 1920 significou ausência de investimentos em infra-estrutura, principalmente nas áreas localizadas fora da Avenida do Contorno onde estavam as vilas e os bairros populares e onde ocorriam as invasões, formando novas favelas ou expandindo as já existentes. Evidentemente, isso denota que o modelo segregacionista de ocupação da cidade persistiu nessa década, pois observa-se que a zona urbana − a área nobre − consolidou-se como a melhor região da cidade em termos de condições de habitabilidade e equipamentos urbanos. Ao final dos anos 1920, com o “boom” imobiliário, ocorreu uma expansão dos loteamentos sem infra-estrutura, agravando o problema dos novos bairros desassistidos pelo poder público no atendimento aos serviços urbanos básicos. 13 Segundo Guimarães (1991:129) essa foi a maior taxa registrada entre 1900 e 1990. No espaço de 10 anos (entre a década de 1920 e a de 1930) a população passou de 55.563 para 116.981 habitantes.

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Após uma desaceleração no processo de crescimento da cidade, em virtude da crise

econômica enfrentada pelo país devido à Primeira Guerra, foi a partir do início dos anos 1920 que

a retomada do crescimento urbano e econômico da cidade ganhou novo impulso14. Essa retomada

tinha, por um lado, a força incipiente do desenvolvimento industrial aquecendo a economia

mineira e, por outro, a intensificação do processo de “ocupação desordenada” do espaço da

cidade. Em razão desse desenvolvimento industrial, Belo Horizonte tornou-se um mercado de

trabalho atrativo, principalmente para a população rural, pois a década de 1920 demonstrava

sinais de decadência da agricultura local. Assim, a emigração campo-cidade contribuiu para

aumentar a população da capital mineira, como também para intensificar o processo de formação

da periferia e favelas, pois aqueles que não eram absorvidos pelo mercado de trabalho insistiram

em permanecer na cidade, instalando-se em suas zonas periféricas que naquele momento já

estavam formadas. Isso, segundo Meyer (1978), implica dizer que as favelas são o resultado de

um duplo processo: a não absorção da mão-de-obra e a determinação desses trabalhadores em

permanecer nas cidades para a qual emigraram.

Em 1922, o poder público, ainda buscando conter a desordem da ocupação urbana e

preservar a imagem de cidade limpa e higiênica, proibiu a existência de casas sem esgoto na zona

urbana e suburbana, estando o infrator sujeito à aplicação de multa. Também foi suspensa a

concessão de alvará de licença para construção de casas em áreas na zona urbana que ainda não

fossem servidas de rede de esgoto e o aforamento de terrenos foi proibido, podendo os mesmos

serem vendidos somente por meio de hasta pública. Somente os terrenos suburbanos das vilas

proletárias e militares poderiam ser vendidos, independentemente de hasta pública.

Ainda que o poder público adotasse medidas visando conter a desordem urbana provocada

pelos especuladores15, a prática das invasões continuava ocorrendo em virtude:

14 Reflexo da melhoria da situação econômica nacional, parcialmente expresso com a instalação de siderurgias próximas à cidade e com a expansão da malha viária ligando a capital a várias regiões do Estado. As siderurgias trouxeram um aumento de empregos e de salários, crescimento industrial e certo ar cosmopolita. Com a expansão industrial, o comércio também cresce, aparecem os bancos mineiros (Banco comércio e Indústria -1923, Banco da Lavoura -1925, Banco Mineiro S/A -1928), os hotéis de luxo, as universidades e colégios propiciando a expansão das atividades de prestação de serviços; Cf. Coelho, (1972), PLAMBEL (1986), Iglésias (1987) . 15 O ano de 1922 também é marcado por uma crise do café, abalando parte da economia agrícola mineira, e pela desvalorização da moeda. Com esses fatos novos no cenário das Minas Gerais, houve um redirecionamento nos investimentos, os quais voltaram-se para a compra de terrenos em Belo Horizonte. Conseqüentemente, aumenta o valor da terra urbana e a especulação imobiliária ganha maiores proporções.

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1) da especulação de lotes na zona urbana, tornando-os inacessíveis ao trabalhador;

2) da falta de infra-estrutura e da inexistência de serviço de transporte na periferia para facilitar o

acesso ao trabalho.

O crescimento acelerado da cidade por meio, especialmente, da aprovação de bairros e

vilas foi uma das conseqüências das invasões das áreas periféricas e também das investidas,

mesmo que tímidas, no mercado imobiliário para a construção de casas de baixo custo. Entre os

anos de 1924 e 1930, a Prefeitura aprovou 53 novos bairros e vilas, mas a ocupação continuava

desordenada e sem controle do poder público, apesar das medidas adotadas visando ao combate

desse crescimento desordenado. Também continuavam as invasões de terrenos e o adensamento

das favelas16. Em 1926, 10% da população da cidade morava em favelas sujeitas às remoções. O

poder público permitia a ocupação temporária de uma área até o momento em que fosse

necessária sua desocupação, seja pela valorização do terreno ou pelo crescimento da cidade. Na

remoção, a Prefeitura auxiliava com o transporte e na reconstrução dos barracos em outro local17 .

Havia protestos contra as remoções das moradias improvisadas, mas, ao mesmo tempo,

elas eram consideradas pelo poder público municipal e por segmentos da população a favor do

progresso como necessárias, face ao acelerado crescimento da cidade. Isso é possível perceber

nos jornais da época:

“... exigência fatal do progresso. Não é um capricho de um administrador, como aventuram os que, incapazes de fazer por si alguma cousa pelo povo, deturpam a significação dos gestos alheios. A Barroca porém, comprehende a necessidade de seu sacrifício. Ella bem sabe que as suas cafuas cobertas de latas não poderiam teimosas ficar ao lado das construções modernas. (Diário Mineiro, 12/06/1929. p. 1)” 18

A “desordem urbana” era o retrato mais fiel de Belo Horizonte. A cidade, com vazios de

ocupação na zona urbana e uma zona suburbana adensada, não contava, em grande parte, com

serviços de infra-estrutura, tais como abastecimento de água e energia elétrica, rede de esgoto e

pavimentação de vias, além da deficiência do sistema de transporte coletivo 19. “O mapa de

cadastramento realizado pela Prefeitura em 1929 revelou que, em Belo Horizonte, menos da

16 A Pedreira Prado Lopes já possuía 600 barracos e a Barroca, 300. 17 Processo usual desde 1902. 18 Citado em Guimarães (1991:159) 19 O serviço de ônibus é inaugurado em 1928. (Guimarães,1991:160)

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metade das casas da zona urbana tinha água e menos de 1/3, esgoto sanitário. Somente a partir

de 1930, é que a água chega a algumas seções suburbanas.” (Guimarães,1991:160)

O poder público não tinha controle sobre a quantidade e a qualidade das construções

realizadas fora da zona urbana, dificultando sua arrecadação de impostos e, conseqüentemente, a

resolução dos problemas urbanos. Estes, por sua vez, ainda não representavam obstáculos para o

crescimento e expansão de Belo Horizonte, pelo contrário, existiam em função de um

crescimento e expansão desordenados. Entretanto, para a transformação da cidade em um centro

industrial moderno, significavam grandes obstáculos, pois entre os pré-requisitos exigidos para

tal transformação estavam um espaço físico com infra-estrutura urbana, principalmente água e

energia, mão-de-obra disponível e sistema de transporte eficiente para o escoamento da produção

e acesso às matérias-primas.

Segundo Bueno (1982:25), os sinais de renovação da década de 1920 em Belo Horizonte

não ultrapassaram o plano intelectual e o campo institucional. Os ares de renovação trazidos pela

Semana de 1922 não repercutiram no cenário urbano da cidade, no qual a modernidade, o

progresso e o desenvolvimento ainda não haviam atingido todos os segmentos sociais,

prevalecendo um processo elitista de ocupação de seus espaços, visto que estes não eram tratados

da mesma forma pelo poder público.

A década seguinte tem como marco inicial a Revolução de 1930 e, de acordo com Ianni

(1994), pode ser compreendida como o momento em que o Brasil torna-se contemporâneo de seu

tempo, organizando-se de acordo com os interesses dos seus setores mais avançados. O que vinha

sendo germinado antes, com a Revolução torna-se mais explícito e se desenvolve. Em Belo

Horizonte, o declínio das oligarquias agrário-exportadoras e a entrada em cena da emergente elite

industrial influenciaram na mudança da dinâmica do crescimento da cidade. É nessa década que a

dinâmica do processo de crescimento da capital de Minas Gerais sofre alterações, pois atribuiu-se

a ela a função de centro industrial do Estado. Assim, a capital mineira, além de configurar-se

como centro político e administrativo do Estado, passa a ser conclamada, naquele momento, a

abrigar a industrialização como uma forma de dar “novo fôlego” ao desenvolvimento econômico

do Estado Mineiro. O objetivo era, então, formar o centro industrial do Estado.

“Economicamente debilitadas após crises sucessivas que culminam com a de 1929 e politicamente divididas com o acirramento das divergências internas, as oligarquias rurais de

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Minas Gerais e São Paulo, bases de sustentação da República Velha, são obrigadas a ceder espaço para os novos grupos sociais que vão utilizar-se da bandeira industrialista como forma de afirmação do Estado Brasileiro.” (PLAMBEL,1986:57)

O poder público havia, até então, trabalhado no sentido de transformar Belo Horizonte em

um centro político e administrativo, mas a década de 1930 impôs novo desafio: transformar a

capital do estado em um centro industrial moderno, fazendo com que a cidade também abrigasse

um pólo econômico.

Como assinala Castells (1983), o espaço é a expressão da estrutura social, podendo

configurar-se, em determinados momentos, como produto do sistema econômico. De fato, nesta

época, Belo Horizonte sofre a remodelação de seu espaço a partir das novas pressões econômicas

que ditam sua transformação.

O crescimento urbano desordenado de Belo Horizonte naquele momento apareceu como

empecilho ao desenvolvimento industrial do Estado, portanto a necessidade de controlar a

expansão e a ocupação dos espaços da cidade, por meio da adoção de um planejamento

urbanístico, tornou-se de extrema importância. Isso significa que os anos 1930 trouxeram a

modernização para a administração pública, uma concepção de cidade mais integrada, mas a

modernização não foi suficiente para reordenar o crescimento urbano de forma igualitária.

Para acelerar o processo de industrialização no Estado e para conter a desordem urbana de

sua capital, o planejamento passou a ser considerado de fundamental importância. A existência de

um novo plano urbanístico, considerado como necessário, marcou a superação do plano de Aarão

Reis. Por exemplo, pela primeira vez se observou na cidade a remoção de favelas motivada não

pela preservação da imagem da cidade e sim pela necessidade de realização de obras urbanísticas

ditadas pelo planejamento. De acordo com o projeto de desenvolvimento industrial, a Prefeitura,

apesar de manter o padrão diferenciado de urbanização entre a zona urbana e as demais, imposto

pelo planejamento de Aarão Reis, voltou-se mais para as zonas suburbana e rural, revelando ter

uma visão mais integrada de cidade.

Entre as medidas adotadas para ordenar o processo de expansão e ocupação da cidade

estavam:

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− a elaboração de um novo plano geral da cidade, quando foram redefinidas as zonas urbana,

suburbana e rural. Isso ocorreu em 1933 com o objetivo de estimular o adensamento da área

central, revertendo o modelo de ocupação previsto inicialmente.

− a criação, em 1934, de uma Comissão Técnica Consultiva subdividida em cinco comissões

(higiene, engenharia, arquitetura e urbanismo, indústria e comércio, jurídica) para elaborar um

plano urbanístico para Belo Horizonte.

− o Decreto Municipal nº 54 (4/11/35) ordenando que os loteamentos deveriam realizar os

serviços de infra-estrutura urbana para que a escritura dos lotes fosse aprovada.

Em 1936, o Governo Estadual, empenhado em contribuir com a expansão econômica da

capital, constituiu a Zona Industrial de Belo Horizonte20, localizada próximo às linhas da Estrada

de Ferro Central do Brasil e da Oeste de Minas, margeando o Ribeirão Arrudas, limitada pela

Estação Carlos Prates e o Matadouro Municipal, aproveitando a proximidade do transporte

ferroviário e a descarga industrial no Ribeirão. Foram mais de 20 empresas instaladas na região,

entre as quais estavam a Fábrica de Tecidos Renascença e a Cia de Cigarros Souza Cruz. A

Prefeitura Municipal, por sua vez, buscando favorecer a instalação de indústrias na cidade,

propôs a isenção de impostos e taxas e o fornecimento de energia elétrica21.

Instalada a Zona Industrial, entrou em pauta no município a discussão a respeito da

construção de casas para operários, porém foram construídas somente duas vilas operárias em

1937: a vila ligada à Fábrica de Tecidos Renascença, com 128 casas; e a outra ligada a Indústria

da Cachoeirinha. Vale ressaltar que tais medidas foram adotadas pelos empresários “na tentativa

de salvaguardar seu espaço de manobra junto ao governo e aos trabalhadores.”

(Guimarães,1991:206) Eram os ecos do Estado Novo.

Mesmo tratando a cidade de forma mais integrada, passando também a se preocupar com

todas as suas zonas e não somente com a área central, o poder público em seu novo plano

urbanístico revelou que ainda priorizava a manutenção de uma zona urbana limpa e bela,

expulsando dela tudo que viesse a comprometer essa imagem. Os mendigos, por exemplo, no

final dos anos 1930 não podiam mais circular pelas ruas, por isso foi construído um lugar

específico para alojá-los − a Cidade de Ozanan. 20 Através da Lei nº 98 de 10/10/36. 21 Através do decreto nº 104 (25/07/1936) e da Resolução nº 30 (18/11/1936). (Cf. Iglésias, 1987:33,34)

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O significado da desordem no processo de ocupação e crescimento da cidade pode ser

compreendido, contrastivamente, a partir da ênfase que, nas décadas de 1920 e 1930, foi dada à

imagem de cidade limpa, asséptica e higiênica. A desordem, produzida pelos barracos e cafuas,

ameaçava a limpeza, a higiene e a beleza do projeto original. Com efeito, a desordem pode,

então, ser pensada aqui não apenas como o oposto da ordem, mas como um imperativo para a

retomada do controle sobre o crescimento e as formas de ocupação dos espaços da cidade. A

necessidade desse ordenamento e controle revigorou-se exatamente no momento em que a

chamada desordem se impôs como presença no cenário belorizontino. Parece que tal ação

começa a fugir ao controle do poder público.

Dessa forma, pode-se dizer que nos anos 1920 e 1930, a desordem caracterizou a

expansão de Belo Horizonte, apesar do empenho do poder público em bani-la da cidade.

Entretanto, a ordem como orientadora do processo de uso e ocupação dos espaços da cidade e,

conseqüentemente, de seu crescimento e expansão não foi “abandonada” pelo poder público, mas

é como se tivesse sido recolocada com mais intensidade e vigor nas ações públicas. Como

assinala Balandier (1982:41),

“A ordem e a desordem da sociedade são como o verso e o anverso de uma moeda, indissociáveis. Dois aspectos ligados, dos quais um, à vista do senso comum, aparece como a figura invertida do outro. Esta inversão da ordem não é sua derrubada, dela é constitutiva, ela pode ser utilizada para reforçá-la. Ela faz a ordem com sua desordem”. (Grifos meus)

As noções de ordem e desordem, em seu antagonismo intrínseco, estiveram, então,

presentes no desenvolvimento da capital mineira nessas duas décadas, sendo que a necessidade

de controlar a expansão do espaço urbano foi, exatamente, no sentido de controlar sua ocupação

retirando dele a “desordem” por meio da instalação da “ordem”, ou seja, por meio de ações

devidamente planejadas.

O início dos anos 1940 tem como característica a recuperação da “...imagem de Belo

Horizonte como uma cidade moderna...” (PLAMBEL,1986:59). O poder público elege novas

prioridades. É a época da construção das grandes obras: o complexo urbanístico da Pampulha,

iniciado em 1938, o alargamento e abertura de vias e a ampliação do mercado municipal. O

espaço foi sendo remodelado como condição da modernidade.

Com a posse na Prefeitura de Juscelino Kubistchek, em 1940, o ideal modernizante e

desenvolvimentista ganha impulso. Desejando transformar a represa da Pampulha em um lago

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artificial com belas residências e casas de diversão ao redor, convocou Oscar Niemeyer, que fez o

projeto paisagístico composto pelo Iate Clube, Igreja de São Francisco, Cassino e Casa do Baile.

As obras foram iniciadas em 1945. Nesse momento o lazer começou a fazer parte do ideal de

modernidade e progresso.

Em relação ao problema da habitação popular, o poder público ainda tem atuações

restritas, pois o que se pode perceber é que a construção de casas para a classe trabalhadora

ocorria, basicamente, por meio dos Institutos de Aposentadorias e Pensões. A construção do

conjunto IAPI (1942), financiada pelo Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários22,

demonstra características modernizantes pelo fato de ser moradia multifamiliar,23 pelas inovações

introduzidas por suas formas arquitetônicas e por sua localização próxima à área central.

Juscelino Kubistchek, Prefeito de Belo Horizonte em 1940, justificou essa ação da seguinte

forma:

“... Considerando que a construção das chamadas Vilas-Operárias ou populares, com que se tem procurado resolver esse problema, não constitui a sua melhor solução, em primeiro lugar, porque dada a falta de espaço no centro urbano, tais vilas só podem ser construídas em bairros distantes, onde se consome no transporte o que se economiza no aluguel; segundo porque, mesmo em se tratando de “casa própria”, tem mostrado a experiência que as classes menos favorecidas raramente atingem a estabilidade econômica necessária para possuí-la, donde o geral fracasso das tentativas; considerando que a solução mais viável consiste em fazer grandes prédios de apartamentos, onde, pela sua construção e sistema de exploração se torne possível um aluguel módico, ao alcance de qualquer bolsa ...” (Relatório dos exercícios de 1940 e 1941 apresentado ao Exmo Snr. Dr. Benedito Valladares Ribeiro pelo Prefeito Juscelino Kubitschek de Oliveira.)24

Segundo Guimarães (1991), os anos 1940 também se caracterizaram pela mudança de

enfoque em relação ao problema das favelas que, diferentemente do que ocorria nos anos 1930,

deixou de ser assunto em evidência. Entretanto,

“as favelas existiam e continuavam crescendo, só que não mais constituíam matéria de interesse porque se encontravam localizadas em áreas que não “atrapalhavam” o projeto da cidade, ou seja, na periferia. As favelas passam a fazer parte do noticiário policial, pela ocorrência de crimes, havendo um alerta sobre o “ambiente de morro” que principia a se formar em Belo Horizonte.” (Guimarães,1991:225)

22 Cf. Andrade & Azevedo, 1982. 23 Vaz (1991) em seu artigo sobre moradia nos tempos modernos aponta a habitação coletiva ou multifamiliar como a moradia dos tempos modernos, surgida e desenvolvida no bojo do processo de modernização da sociedade e da cultura. Ela “... surge e se expande atendendo a imposição de ordem demográfica, espacial, econômica e cultural.” (Ibidem, p.136) 24 Citado em Guimarães (1991:215)

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O que ocorria anteriormente era a preocupação em remover os barracos e as cafuas que

estavam nas áreas nobres da cidade, comprometendo a ordem, a beleza e a higiene da zona

urbana. Na década de 1940, aconteceu um descaso em relação ao problema das favelas já que

estas não se localizavam mais nas áreas centrais da cidade. Situadas fora do alcance dos olhos da

população mais abastada da cidade, elas eram tratadas somente como o local da marginalidade e

da desordem, mas com um diferencial: não ameaçavam a cidade como um todo porque estavam

longe das áreas comprometidas com o planejamento. Se anteriormente a atuação do poder

público local em relação às favelas era no sentido de removê-las das áreas nobres da cidade

porque impregnavam as mesmas com a desordem, nesse momento o que passou a ser

característico na atuação do município foi a omissão no tratamento dedicado às favelas, já que

agora elas estavam localizadas fora dos espaços onde a ordem deveria prevalecer.

Ainda nos anos 1940, é possível perceber duas características na expansão da cidade: a região norte começou a crescer em virtude da implantação do complexo urbanístico da Pampulha e abertura da Avenida Antônio Carlos, e os loteamentos passaram a não ter mais como referência a zona urbana. Esta última teve mais dois bairros integrados à sua urbanização, Santo Agostinho e Lourdes, destinados à população de maior poder aquisitivo, assim como prescrevia o planejamento original da cidade. Assim, a zona urbana afirmou sua vocação de espaço nobre da cidade e os operários deslocaram-se, em grande parte, para a região oeste devido à instalação da cidade industrial naquela direção. Isso confirma a diferenciação espacial delineada pelo modelo segregacionista de urbanização definido desde a própria fundação da cidade.

O ideário republicano é revisitado nos anos 1940 e com isso o que se almeja para Belo

Horizonte naquele momento é um impulso definitivo para que se concretizasse sua vocação de

cidade moderna.

A realização de grandes obras nessa década para instalação de equipamentos urbanos -

tais como a cidade universitária, a abertura de avenidas, a criação de novos bairros e a realização

de um novo cadastramento da cidade para estabelecer uma nova política tributária condizente

com a realidade, refletem o empenho do poder público municipal em controlar a expansão

urbana, buscando fazer da cidade o “locus” do desenvolvimento da sociedade moderna.

Com a retomada do ideal de progresso sob a ideologia da modernidade orientando o

desenvolvimento da cidade, foram adotadas novas medidas capazes de efetivá-lo. O período se

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caracteriza por uma retomada do controle do desenvolvimento urbano que, até então, se dera de

forma desordenada. A técnica e a ciência, sob as quais Aarão Reis concebeu Belo Horizonte, não

foram capazes de conter um processo de ocupação desordenado, segregacionista e elitizado. A

cidade, dividida originalmente pelo seu zoneamento, nos anos 1940, com a agudização do

processo de segregação, também se dividiu pelos territórios bem ou mal equipados em termos de

serviços de água, energia, esgoto sanitário, transporte etc. A cidade necessitava urgentemente de

reordenamento, de redefinir seus padrões de desenvolvimento urbano, de integrar suas regiões

que já extrapolavam o previsto pela planta de Aarão Reis.

As grandes obras do período marcaram o empenho de modernização da cidade.

Entretanto, a modernização como símbolo de progresso, de instauração de uma “nova ordem”,

não alcançava toda a população, pois parte dela encontrava-se excluída das condições mínimas de

habitabilidade, vivendo nas favelas e contribuindo para o processo de expansão desordenada da

cidade. Em conseqüência, na próxima década se intensificam as ações dos movimentos sociais

reivindicando melhorias urbanas para regiões carentes de serviços básicos como abastecimento

de água e energia, rede de esgoto, legalização da posse de terrenos, entre outras.

A década de 1940 se caracterizou pela retomada do ideário republicano, quando então o

progresso e a modernidade voltaram a ser as noções orientadoras do processo de crescimento e

expansão urbanos e das formas de uso e ocupação dos seus mais variados espaços. Com Juscelino

Kubistchek à frente da Prefeitura, o poder público municipal tornou-se o executor de grandes

obras, dando forma ao imaginário social da beleza, limpeza e higiene. Dessa forma, em termos de

urbanização, a cidade iria “adentrar” o mundo do progresso e da modernidade. Essa “revisitação”

ao ideário republicano, pensada a partir do imaginário social, tal como Baczko (1985) o concebe,

permite dizer que a população de Belo Horizonte estava, naquele momento, resgatando sua

identidade e elaborando uma determinada representação de si: eles eram os habitantes da cidade

que se caracterizava como modelo do progresso e da modernidade, expressos no espaço urbano

belo, limpo e higiênico. Entretanto, esse mesmo ideário não foi partilhado e tampouco almejado

pelo conjunto da população belorizontina, foi a expressão de uma parcela desse conjunto que,

dessa forma, pretendia exercer o controle sobre a cidade e seu processo de crescimento. Previa-se

que assim a ordem voltaria ao cenário urbano de Belo Horizonte.

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Os anos 1950 têm como característica marcante o aumento da população e a expansão

física da cidade. O aumento populacional foi uma das conseqüências dos impactos da

industrialização, os quais ocorreram, não só em Belo Horizonte como também nos demais centros

urbanos do país. A Cidade Industrial, criada em 1947, quando contava com 10 indústrias e 1.000

trabalhadores, atraiu, no decorrer da década de 1950, empresas ligadas ao capital estrangeiro tais

como RCA-Victor, Trefilaria Belgo Mineira entre outras, como também mão-de-obra, e assim

chegou aos anos 1960 com 82 indústrias e 14.683 trabalhadores25. Os fluxos migratórios para a

Região Metropolitana, que compreende Belo Horizonte e seus municípios limítrofes, foram

responsáveis por 59% do aumento populacional, o que, conseqüentemente, contribuiu para o

adensamento e a expansão do espaço urbano da cidade.

“O crescimento industrial significou também crescimento urbano, notadamente via migrações, com conseqüente necessidade de provisão de serviços para a população. Mas essa não era a área prioritária para o poder público. O importante era criar condições para a expansão da indústria. Quanto a política urbana, prevaleceu o total “laissez-faire” .” (Somarriba et al.,1984:37)

Nesse momento, reinava a ausência de uma política urbana, permitindo que a especulação

imobiliária fosse uma característica marcante da década de 1950 na cidade. A iniciativa privada

era a grande controladora do mercado de terra26. Entretanto, é importante mencionar que, desde o

final da década de 1940, as administrações municipais demonstraram uma preocupação com a

falta de planejamento para o crescimento da cidade adotando medidas que buscavam conter o

crescimento desordenado.

O Prefeito Negrão de Lima (1947-1951) encaminhou à Câmara Municipal uma proposta

de reordenamento espacial de belo Horizonte com a criação de cidades satélites ao seu redor.

Segundo o Prefeito, cada uma dessas cidades desempenharia uma função respeitando a tendência

que cada uma delas já vinha demonstrando. As cidades satélites seriam o Barreiro − função

agrícola, a Cidade Industrial − centro de localização das fábricas, a Pampulha − centro de lazer e

diversão, e Venda Nova − centro residencial. Isto significa que novamente procurou-se repensar a

cidade em termos de divisão de funções para cada área, uma tentativa de ordenação e contenção

do processo desordenado de expansão urbana. “Cada uma destas cidades seria atraída pelo pólo

− o centro de Belo Horizonte −, formando um conjunto harmônico onde a espacialização de

25 De acordo com Somarriba (1984:37). 26 Nessa época, vários bairros e vilas foram aprovados sem serviços básicos de infra-estrutura. Havia também os loteamentos clandestinos à espera de legalização. E mais uma vez a população pobre da cidade era expulsa para as periferias devido ao aumento do preço da terra.

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funções por si só garantiria o bom funcionamento do todo.” (Melo,1991:s/p)27 Além disso, a

proposta também incluía um reordenamento no que se refere a questões técnico-administrativas,

pois visava a descentralizar a Administração Municipal, visto que os problemas de cada região

poderiam ser solucionados nas sub-administrações, não envolvendo a cidade como um todo.

O prefeito seguinte, Américo Gianetti (1951-1954), também preocupado com a expansão

urbana desordenada, criou, em 1951, o Serviço de Plano Diretor para o qual convidou, entre

outras personalidades, Oscar Niemeyer e Burle Marx, com o objetivo de planejar a ação da

Prefeitura em relação à questão urbana.

“Ao Serviço do Plano Diretor caberá em primeiro lugar, a organização do projeto de urbanização da cidade e, em seguida, assegurar sua continuidade. (...) No caso de Belo Horizonte, e para que os engenheiros da Municipalidade conheçam em todos os seus detalhes seu plano de expansão e sejam deles fiéis executores, é de todo interesse que o planejamento, supervisionado por renomados especialistas, se desenvolva com sua colaboração direta. (...) Será uma legislação peculiar e própria que vise proteger e garantir continuidade a tudo que vier a ser estabelecido e disciplinado pelo Plano Diretor. Importante é assinalar, além disso, que o Serviço de Plano Diretor, segundo a sua maior finalidade, não restringirá a sua atuação ao desenvolvimento material de Belo Horizonte mas deverá estendê-la, com igual desvelo, às atividades que compõem sua vida social.” (GIANETTI,1951:s/p)28

Após Gianetti, Celso Mello Azevedo (1955-1959) assumiu a prefeitura e contratou a

Sociedade de Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais −

SAGMACS, para realizar uma pesquisa sobre a estrutura urbana de Belo Horizonte. O resultado

da pesquisa saiu em 1961, apontando problemas de falta de infra-estrutura como sistema de água

e esgoto, escolas, hospitais e condições de habitação precárias, o que contribuía para que grande

parte da população da cidade (47%) vivesse em condições subumanas. Como medidas urgentes a

serem implementadas, o relatório da SAGMACS assinalou a necessidade de disciplinar o

crescimento da capital, urbanizando toda a cidade e não priorizando a zona urbana em detrimento

das demais. A questão das favelas deveria ser estudada mais meticulosamente, no sentido de

traçar um plano de ação para solucionar o problema, e o processo de aprovação de vilas deveria

ser agilizado. Ou seja, o relatório apontou para a necessidade de avaliar o projeto original da

cidade elaborado sob a autoridade da ciência e da técnica, o qual não comportava as ações

espontâneas da população da cidade.

27 Citado em PBH (1994:83) 28 Citado em PBH (1994:84)

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Estas administrações ilustram como essa época se caracterizou por uma preocupação em

repensar o processo de urbanização de Belo Horizonte e definir novos rumos para a cidade a

partir do planejamento de ações e intervenções urbanas. A cidade deveria ter seu

desenvolvimento urbano redesenhado para que o controle sobre seu crescimento pudesse ser

retomado.

Com relação às favelas, presentes desde o momento da fundação da cidade, de 1946 a

1955, o Executivo debruçava-se sobre o problema, considerando-o como comprometedor da

imagem de cidade limpa e bela29. Dessa forma, com o intuito de embelezar a cidade, foram

realizadas muitas remoções de favelas das áreas mais centrais.

Como se vê, a capital das Minas Gerais já na metade do século XX contava com vários

bairros na periferia que tinham como característica problemas de falta de infra-estrutura e com as

favelas que cotidianamente eram ameaçadas de remoção.30

Completando esse quadro do desenvolvimento urbano de Belo Horizonte, constituiu

também uma característica da década de 1950 o acirramento da especulação imobiliária e a

intensificação da metropolização. Ou seja, a ampliação dos limites da cidade por meio da

expansão urbana em várias direções, estreitando as relações com os municípios vizinhos e dando

início à formação da atual estrutura urbana da Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Fora do núcleo central, as demais regiões da cidade deram mostras da metropolização. A

Cidade Industrial constituiu o primeiro sinal de conurbação, acentuando a ocupação em direção

aos municípios de Contagem (bairro Parque Industrial) e Ibirité (bairro Durval de Barros). A

região norte, com o Complexo da Pampulha induzindo os loteamentos, teve um ritmo de

expansão menos intenso e sua ocupação foi mais dispersa. Entretanto, o desenvolvimento para

além da Pampulha começou a tomar impulso, tendo início a conurbação de Belo Horizonte

(bairro Venda Nova) e os municípios de Ribeirão das Neves (bairro Justinópolis) e Santa Luzia

(bairro São Benedito). Mas como característica dessa nova expansão periférica, o que se pode

29 Cf. Somarriba (1984:40) 30 Segundo depoimento do ex-presidente da Federação dos Trabalhadores Favelados (In: Somarriba et al., 1984:43), o Prefeito Amintas de Barros (1959/1963) como medida para acabar com as favelas cortava água e luz nas mesmas. Em repúdio a essa medida, em 1958 foi realizada uma passeata na cidade.

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observar é “um padrão extremamente precário que traz as marcas do improviso, do inacabado e

da carência absoluta e reflete o ritmo acelerado de construção exigido pela dinâmica de

crescimento da cidade, caracterizando-se como espaço da simples reprodução da força de

trabalho, totalmente excluído da fruição do urbano.” (PLAMBEL,1986:79)

Como conseqüência da rápida metropolização da cidade, observou-se uma carência de

habitações e serviços. O problema da habitação era dos mais graves do período, em virtude dos

preços elevados dos terrenos e da intensificação da migração. As favelas cresceram tanto nas

áreas periféricas quanto na área central da cidade31. Segundo Costa (1994:58), “a favela passa a

ser, ao longo da década de 60, uma questão policial. O conceito usado na época é revelador:

‘erradicação das favelas’.”

Por outro lado, o problema habitacional mobilizou a população. Os movimentos sociais na

cidade foram intensificados nos primeiros anos da década de 1960, em especial, pela população

favelada32. Foi também prática comum dessa época a invasão de terrenos pela população carente,

dando origem a novas favelas, especialmente aqueles com plantação de eucaliptos que eram

identificados como pertencentes a um determinado especulador imobiliário da cidade.

O processo de urbanização de Belo Horizonte nos anos 1950 passou por nova tentativa de

retomar o direcionamento do crescimento e da forma de ocupação dos espaços urbanos. O projeto

da cidade foi repensado para que o controle sobre seu crescimento não escapasse às mãos do

poder público. Este defendia o exercício do papel de condutor de tal processo através da

implantação de determinada ordem numa cidade que já se afastava muito do seu plano original

em termos de expansão de seu espaço físico e da forma como ocorreu essa expansão. O que

implica instaurar uma ordenação em um ambiente já construído e não em construção.

Esse processo de crescimento, considerado desordenado pelo fato de não ter o seu

correspondente em termos de infra-estrutura urbana, tem como marca a segregação espacial e a

diferenciação entre as áreas da cidade, no que se refere à existência de serviços de água, esgoto

sanitário, energia elétrica, escolas, hospitais, lazer etc. Por isso se diz que a tentativa era de 31 Em 1964, de acordo com o “Levantamento da População Favelada de Belo Horizonte”, foi contabilizado um total de 79 favelas com uma população estimada em 120.000 habitantes o que correspondia a 10% da população belorizontina. [Cf. PLAMBEL (1986:80)] 32 Aconteceram assembléias com o poder público buscando aprovação de projeto de lei municipal que propunha a venda de terrenos da Prefeitura para os favelados; como também assembléias nas favelas para reivindicar melhorias urbanas e legalização da posse de terrenos.

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ordenar um espaço que se configurava como desordenado devido à forma como se dava sua

ocupação e expansão.

A forma que a cidade tomava contradizia a imagem que dela se buscava cunhar, pois a

desordem das construções, das ruas, dos transportes etc, nas áreas periféricas não estava em

consonância com o progresso, a modernidade e o planejamento técnico. Por isso, a necessidade

de ordenar o crescimento e expansão da cidade, a partir de ações que expressassem o desejo de

construir uma metrópole, onde o progresso estivesse presente tanto na forma de administrar a

cidade, como na sua economia e nas suas manifestações artísticas. A modernização da

administração municipal foi alcançada nos anos 1930, o complexo da Pampulha foi construído

como um marco da arquitetura moderna em Belo Horizonte na década de 1940 e o crescimento

industrial foi impulsionado com a entrada de algumas empresas estrangeiras no cenário das

Minas Gerais. Por outro lado, a periferia da cidade se expandia, em grande parte, com os

loteamentos clandestinos, e a existência de serviços de infra-estrutura urbana continuava restrita a

uma pequena parcela da população. Assim, a imagem de cidade bela, limpa e moderna dominava

o discurso oficial, mas estava distante da fisionomia real da cidade.

1.1.3. A ORDEM POLÍTICA: DESIGUALDADE E DIFERENCIAÇÃO ESPACIAL - O RETRATO DAS FAVELAS NA FASE DO AUTORITARISMO

Os movimentos reivindicativos calaram-se com o golpe de 1964 quando a ordem se

inscreveu na história do país como característica de uma forma de governo autoritária implantada

pelos militares. Os novos direcionamentos para os rumos da economia e da política, apoiados no

programa de manutenção da ordem no país, se refletiram no cenário belorizontino reforçando

alguns aspectos da forma de ocupação da cidade: a segregação e a diferenciação quanto ao acesso

aos seus espaços.

Em março de 1964, foi instaurada uma nova ordem política e econômica no país, que

mudou a estrutura de poder, a forma de acumulação de capital e a própria organização social. O

desenvolvimento econômico brasileiro passou a privilegiar a acumulação urbano-industrial,

beneficiando a burguesia e as empresas estrangeiras. Segundo o relatório do PLAMBEL

(1986:86), “a burguesia abre mão dos controles políticos tradicionais e das liberdades

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democráticas que ainda subsistiam e, em troca, o Estado garante a ‘ordem’ e assume os

interesses da burguesia como os de toda a nação.” A burguesia e parte dos estratos médios da

sociedade aliaram-se aos militares, excluindo as classes populares de qualquer participação no

novo regime e assim garantiram sua estabilidade. Com o novo padrão de industrialização,

enfatizando as indústrias de bens de capital e de consumo durável, os investimentos públicos

voltaram-se, por um lado, para esse setor, no sentido de prover infra-estrutura para tal

desenvolvimento. Por outro lado, os investimentos públicos no setor de bens de consumo coletivo

são realizados segundo uma lógica de rentabilidade empresarial, a qual exclui os setores de baixa

renda do acesso a tais benefícios. Esta lógica tem como conseqüência “... o aumento da

diferenciação dos lugares e da segregação urbana, explicitando, a nível do espaço, o padrão

social de desigualdade.” (PLAMBEL,1986:94) Em se tratando de investimentos sociais, estes

foram excluídos da pauta de ações prioritárias do poder público, sem que esse último sofresse

pressões para implementação dos mesmos por parte das camadas sociais não beneficiadas com o

novo modelo de industrialização.

A nova estrutura de poder instaurada com o golpe militar elegeu a restauração da economia como uma de suas metas prevendo que a concretização das mesmas se daria de forma autoritária como uma imposição do poder público à sociedade. Tanto foi assim que a ampliação e a modernização do Estado, também previstas como metas a serem alcançadas, ocorreram em detrimento da atuação da sociedade civil, à qual se impunha o silêncio. De acordo com Cardoso (1979:67), implantou-se no país o que pode ser caracterizado como “conservantismo moderno, que, no plano ideológico, quer manter socialmente aberta uma sociedade politicamente fechada que se baseia no dinamismo da empresa capitalista, pública ou privada.”

O que é importante dizer sobre a questão urbana é que, nesse período mais que em outros momentos da história do país, observou-se a explicitação dos mecanismos de dominação política e exploração econômica no urbano, como assinala o relatório do PLAMBEL (1986:88):

“... seja pela perda de autonomia dos Estados e dos Municípios e pela centralização de políticas e programas a nível federal, seja pelo processo de diferenciação do espaço resultante de um decidido apoio do Estado aos interesses dos grupos empresariais (entre os quais se inclui o próprio Estado), seja ainda pela exclusão das populações do processo político.”

Isso significa que houve uma reordenação e reorientação de práticas políticas, econômicas

e sociais até então implantadas, e uma das conseqüências dessa nova dinâmica social foi a ruptura

da experiência de mobilização social de grupos populares na sociedade brasileira.

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A instauração de um novo regime político trouxe consigo novas formas de atuar

politicamente, apoiadas, principalmente, na manutenção da ordem. Ordem aqui entendida como

aceitação da imposição do novo modelo econômico e político implantado com o golpe militar.

Assim, apesar de inaugurar um “novo ideário”33, o regime político adotado a partir de 1964

também fez referência à noção de ordem que tanto foi empregada na capital mineira. Entretanto,

é importante perceber que a ordem, neste momento, deve ser entendida como uma imposição do

autoritarismo − a nova forma de governar o país − que não concebia uma organização social

composta pela pluralidade de interesses. O emprego da ordem deveria ser feito para que se

cumprissem as metas propostas pelo novo regime, fazendo com que concepções de organização

política, econômica e social diferentes daquelas que os militares eram partidários não tivessem

chance de prosperar. Com o silêncio imposto à sociedade civil, as formas de manifestação das

insatisfações com o novo regime do país foram reprimidas, bem como os movimentos

reivindicativos daqueles segmentos sociais que não se alinhavam com o projeto dos militares.

Em Belo Horizonte, o reflexo da ruptura da experiência de mobilização se traduziu pelo

desaparecimento quase total dos movimentos reivindicativos de melhorias urbanas, que somente

voltaram ao cenário da cidade em meados da década de 1970.

Com o arrefecimento dos movimentos sociais reivindicatórios no período do autoritarismo

do regime militar, a partir de 1965, Belo Horizonte assistiu a uma política explícita de

desfavelamento. Nesse mesmo ano, foi criado um órgão para assessorar o Departamento de

Bairros Populares (DBP), denominado Serviços Municipais para o Desfavelamento das Áreas

Urbanas e Suburbanas, que tinha como objetivo coordenar a remoção das habitações de áreas

faveladas e fiscalizar as novas ocupações para que elas não se efetivassem. Entre dezembro de

1965 e fevereiro de 1966, o novo órgão destruiu mais barracões do que o DBP construiu em

cinco anos. Queixas foram feitas em relação à violência de policiais e fiscais da Prefeitura nas

remoções, dando entrada no Fórum da cidade em forma de ações contra a Prefeitura.

As remoções e expulsões ocorridas em Belo Horizonte nessa época foram um reflexo da

imposição da ordem própria do regime militar. Nas décadas de 1960 e 1970, não houve reformas

urbanas visando a moradia da população de baixa renda e serviços de infra-estrutura básica. 33 Novo no sentido de pertencer a uma nova correlação de forças no cenário nacional e não no sentido de trazer ares de “novidade” ou ainda de modernidade para o cenário social, econômico, político e cultural do país.

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Como mais uma forma de demonstração de força do poder público, a política das remoções era

realizada para solucionar o problema das favelas retirando-as do local onde se encontravam sem

oferecer outra alternativa à população.

Em 1971, mais um órgão é criado com o propósito de operacionalizar o desfavelamento.

O DBP é extinto dando lugar à Coordenação de Habitação de Interesse Social de Belo Horizonte

(CHISBEL). “Se a atuação do DBP até 1964 fora marcada pela pouca ênfase no desfavelamento

e pela busca de alternativas habitacionais de caráter definitivo para os favelados removidos

(construção do Conjunto Santa Maria, por exemplo), a atuação da CHISBEL caracteriza-se, ao

contrário, pela ênfase no desfavelamento.” (Somarriba et al.,1984:48) A CHISBEL indenizava

os favelados que tinham seus barracões removidos. Entretanto, como a indenização era

insuficiente para que esse morador solucionasse seu problema habitacional, o que ocorria,

geralmente, era a migração para outra favela. Em doze anos de existência (1971/1983), a

CHISBEL atuou em 423 áreas da cidade, removendo 10.000 barracos e aproximadamente 43.000

pessoas.34

Em 1964, muitas obras encontravam-se inacabadas pela falta de recursos. É dessa época a

criação do Banco Nacional de Habitação − BNH, que representou um grande alento para o

mercado imobiliário. Em Belo Horizonte, a decisão foi por retomar as obras paralisadas desde

que a parte já construída fosse considerada a poupança daquele que solicitava o empréstimo, visto

ser a poupança uma condição obrigatória dos contratos de financiamento realizados pelo Banco.

A partir de 1967, o BNH passou a operar com recursos do Fundo de Garantia sobre Tempo de

Serviço (FGTS), o que contribuiu para a expansão do mercado imobiliário e da indústria da

construção civil. Entretanto, as atividades de ambos voltaram-se para os segmentos sociais de

maior poder aquisitivo e, especialmente, para a “nova classe média”. Nos anos 1970 houve uma

dinamização do mercado imobiliário voltado para as classes médias, pois o desenvolvimento

econômico propiciou um aumento dos rendimentos dessa classe, favorecendo a aquisição da casa

própria.

Outra característica do período é o tipo de loteamento oferecido no mercado imobiliário e

o agente que o produz:

34 Citado em Guimarães (1992:7)

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213

− o loteamento de recreio − espaços mais fechados e distantes, tipo condomínio -;

− um padrão médio de loteamento − áreas valorizadas, próximas a áreas já ocupadas, tendo,

assim, boa rentabilidade;

− o loteamento popular − espaços de baixa qualidade, situados, geralmente, na área intermediária

entre Belo Horizonte e as cidades que compõem a Região Metropolitana.

Na segunda metade dos anos 1970 esse último tipo de loteamento teve uma enorme

demanda35, apesar de ser oferecido sem nenhuma infra-estrutura e, muitas vezes, em situação

irregular: os lotes eram vendidos sem que as ruas fossem abertas e sem passar por cartórios.

Resumindo, os anos 1960 e 1970 foram marcados por uma agudização das contradições

entre os diversos segmentos sociais. Em Belo Horizonte, a população mais pobre da cidade

convivia com o desfavelamento e a população de melhor poder aquisitivo experimentava a fase

áurea de aquisição da casa própria pelo BNH.

A população cresce e a malha urbana se expande, mas o acesso à cidade, no que diz

respeito à moradia, devido à falta de políticas habitacionais efetivas, fica condicionado à atuação

do setor privado e do capital imobiliário em termos tanto do produto oferecido como da sua

localização, os quais, por sua vez, são condicionados pelo preço da terra urbana, como assinala

Costa (1994:59). Isso significa que a distribuição espacial da população na cidade neste período

reflete não a vontade do poder público e sim a distribuição de alternativas de moradia,

demonstrando o quê e onde o dinheiro pode comprar na cidade. Por isso, para os mais pobres a

multiplicação da ocupação ilegal de terrenos, com o desenvolvimento de favelas, surge como

uma dessas alternativas habitacionais.

Contribuindo para o aprofundamento do processo de segregação do espaço urbano da

cidade até então implantado, em 1976 é promulgada a Lei Municipal nº 2.662/76, denominada

Lei de Uso e Ocupação do Solo, que passa a normatizar a formação do espaço urbano na cidade.

Segundo o relatório do PLAMBEL (1986:124), a lei

“... contém um zoneamento concebido a partir da verificação das tendências de assentamento de atividades e populações, ao que ela não contrapõe outro modelo. Deste modo, a Lei tem como conseqüência o reforço das tendências da formação espacial da cidade, constituindo-se, assim,

35 Em torno de 85.000 lotes do tipo popular na Região Metropolitana. (cf. COSTA, 1994:72)

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214

em fator de consolidação dos processos de concentração/dispersão e segregação social do espaço já observados desde os primeiros períodos de sua história.” (Grifos meus)

Em dezembro de 1979, foi promulgada a Lei Federal nº 6766 que instituiu novas

exigências jurídicas e técnicas para a execução e venda de lotes, através da institucionalização da

interferência da instância metropolitana no problema. Foram, então, estabelecidas exigências em

relação aos loteamentos e punições para o seu descumprimento, o que significou restrição para a

atuação especulativa de uma parcela do mercado imobiliário.

Os anos da ditadura militar e do milagre econômico contribuíram para consolidar e

aprofundar o modelo de crescimento urbano segregacionista traçado no fim do século passado em

Belo Horizonte. A prática do desfavelamento voltou “a todo vapor”, assim como o silêncio dos

moradores das favelas e regiões periféricas no que se refere a suas reivindicações. Os problemas

urbanos, de acordo com os padrões do novo regime político, são agravados e não solucionados. É

a ordem política de um governo autoritário orientando o “desenvolvimento e progresso” do país

e, dessa forma, justificando a realização de suas ações públicas.

1.1.4. A ORDEM SOCIAL: FASE DA DEMOCRATIZAÇÃO

Os anos 1980 tiveram como marca o processo de reabertura política depois do golpe

militar e os programas participativos de gestão da questão urbana como uma forma de angariar o

apoio da população às administrações públicas municipais e estaduais que ainda eram nomeadas

e garantidas pelo regime militar. O imperativo da manutenção da ordem na sociedade civil pela

imposição do silêncio às formas de manifestação dos vários grupos sociais foi encerrada e os

movimentos reivindicativos voltaram à cena lutando pela legitimidade das ocupações de áreas

urbanas e reivindicando melhorias.

As enchentes ocorridas em Belo Horizonte nos anos 1979 e 1982, aliadas à rearticulação

dos movimentos de favela e à reabertura política no país, trouxeram mudanças no que se refere à

habitação para a população de baixa renda. Nesse momento, o governo estadual voltou sua

atenção para as favelas, criando um programa de urbanização, o que, implicitamente, significou

um reconhecimento do direito da população favelada de permanecer nas áreas invadidas.

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Em 1979, foi criado o PRODECOM − Programa de Desenvolvimento de Comunidades,

pela Secretaria de Estado do Planejamento, que possuía cinco linhas de programas destinados a

atender as favelas e as áreas periféricas de Belo Horizonte. Entre esses programas estavam o

financiamento à construção e melhoria de habitações e um programa de urbanização e legalização

da posse da terra. Para as atividades que necessitavam de remoção da população para a realização

de obras, o PRODECOM contava com o auxílio da CHISBEL. Outro órgão do governo estadual,

o PLAMBEL − Planejamento da Região Metropolitana de Belo Horizonte, também foi acionado

para elaborar uma lei de uso do solo e parcelamento especial, destinado às áreas de favela. A

urbanização dessas áreas implantada pelo PRODECOM teve como característica a participação

da população envolvida.

A desativação do PRODECOM ocorreu em 1984 por razões políticas em virtude da mudança de governo e pelas críticas que vinha recebendo dos políticos que assumiram a administração municipal, os quais apontavam o programa como sendo paternalista e clientelista. Sua desativação encontrou resistência por parte do movimento dos favelados, por meio da União dos Trabalhadores da Periferia − UTP, pois em seus três anos de existência atuou em 11 áreas de favela chegando a beneficiar em torno de 70.000 pessoas.36

Sob o argumento de que à população favelada interessava mais a legalização da posse dos terrenos do que a urbanização, em 1983 foi criado o PRÓ-FAVELA - Programa Municipal de Regularização de Favelas, com o objetivo de cuidar do processo de regularização, legalização e urbanização de áreas faveladas em Belo Horizonte. Segundo Guimarães (1990), pode-se dizer que com o PRÓ-FAVELA o poder público reconheceu, explicitamente, o direito do favelado à propriedade de sua moradia. Entretanto, esse programa só foi realmente regulamentado quase dois anos depois quando, por pressão dos movimentos populares e da Pastoral de Favelas, o Decreto 4.762 de 10/08/84 foi assinado extinguindo a CHISBEL.

Como medida do PRÓ-FAVELA, as favelas, localizadas em terrenos públicos e passíveis de urbanização, foram decretadas Setor Especial 4 − SE 4. Essa regulamentação das áreas ocupadas pelas favelas fez com que seus moradores passassem a ter assegurado o direito de permanecer no local, a menos que uma remoção fosse necessária em virtude do risco de moradia ou da realização de alguma obra de urbanização. Além disso, foi elaborado um Código de Posturas especial para tais áreas, através do qual se permitia um parcelamento e um padrão de

36 Cf. Guimarães (1990:9)

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urbanização diferenciado. Para que o PRÓ-FAVELA fosse implementado, em 1986 foi criada a URBEL − Companhia de Urbanização de Belo Horizonte, como um órgão da Prefeitura responsável pelas questões referentes às favelas da cidade, tais como a urbanização, legalização e regularização da posse do terreno e remoção, caso fosse necessário37.

É importante dizer que a regulamentação do PRÓ-FAVELA coincide com a posse do

primeiro Prefeito eleito, Sérgio Ferrara, depois do golpe de 1964. Este Prefeito tinha como

plataforma de governo a construção de casas para o povo. Entre as medidas adotadas para colocar

em prática sua plataforma, estavam:

− o PRÓ-FAVELA, assim como um programa de lotes urbanizados para famílias que porventura

tivessem sido removidas de áreas de risco ou áreas onde fossem realizadas obras para

urbanização;

− um programa de lotes urbanizados para os sem-casa;

− um programa que previa a distribuição de material de construção para ampliação e melhoria das

residências.

Pressionada pelas diversas associações comunitárias,38 a Prefeitura iniciou o assentamento

de famílias em lotes urbanizados em áreas que até hoje são denominadas como locais das “casas

do Ferrara”39.

Nesse mesmo ano de 1988, para continuar atuando junto às favelas de Belo Horizonte, o PRODECOM reaparece, mas dessa vez, além da verba do governo estadual, conta com recursos provenientes dos governos alemão e italiano. Para dar continuidade ao programa de lotes urbanizados da Prefeitura, foi estabelecido um convênio entre Estado e Administração Municipal,

37 Desde sua fundação até o início dos anos 1990 a URBEL esteve presente em 17 favelas realizando as atividades acima mencionadas que se finalizam com a entrega da titulação do lote ocupado. Vale ressaltar que, apesar de ter atuado em 17 áreas de favela da cidade, até 1992 somente em sete delas o processo foi completo, ou seja, a regularização e titulação das áreas foi efetivada. Isso se deve à morosidade do processo que acaba trazendo à tona conflitos referentes a divergências políticas nas associações de bairro. 38 Tais como União dos Trabalhadores da Periferia, Federação das Associações de Moradores de Bairros, Vilas e Favelas de Belo Horizonte - FAMOBH, Associação dos Moradores de Aluguel de Belo Horizonte - AMABEL, assim como pelas famílias que durante a campanha receberam certificado de inscrição da casa própria, no ano subsequente à sua posse. 39 Lotes de 125 m2 e material de construção foram distribuídos às famílias que, em regime de mutirão e com a orientação de técnicos da Prefeitura, construíram casas de 27m2. No total foram distribuídos 7.661 lotes em nove conjuntos, situados em áreas afastadas da malha urbana e, em parte, dotados de serviços de água, luz e esgoto. Esse programa foi paralisado em 1988 devido à falta de organização e de verba, ficando o governo municipal e também o estadual, pressionados pela FAMOBH e a AMABEL para que cumprissem as promessas de campanha.

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ambos tendo à frente governantes do PMDB, por meio do Programa Comunitário de Habitação Popular − PRÓ-HABITAÇÃO. Esse programa foi criado em 1987 com o objetivo de atender à população economicamente carente de Minas Gerais, com a construção de moradias e melhoria das chamadas “sub-habitações”. No entanto, tal convênio não saiu do papel, com suspeita de que o dinheiro para o mesmo tenha sido utilizado em campanha eleitoral e em aplicações financeiras. Isso propiciou a mobilização do movimento dos sem-casa e a ocorrência de invasão de áreas, sendo a polícia utilizada para expulsar a população de tais áreas. São alguns dos atores do cenário urbano de Belo Horizonte que se articulam no sentido de pressionar as autoridades da cidade para cumprir as promessas feitas sobre o problema da moradia para a população de baixa renda. Isso configurou-se, então, como uma das facetas da luta pelo espaço na cidade.

No ano seguinte, o PMDB perdeu as eleições municipais, ficando a Prefeitura sob o “comando” do PSDB. Frente aos desentendimentos entre Prefeitura e Governo do Estado, houve o repasse de verbas às associações de moradores para que os proprietários dos lotes distribuídos pela Prefeitura, na administração anterior, pudessem concluir suas casas.

A partir de 1989, o governo estadual centralizou a política de habitação para a população carente no PRÓ-HABITAÇÃO, que, por sua vez, reuniu todos os recursos financeiros para a habitação. Este programa em muito se assemelha ao programa municipal de distribuição de lotes urbanizados, permitindo o acesso da população com renda até três salários mínimos à casa própria. Guimarães (1990) destaca que este programa teve um caráter político eleitoral, pois “colocando o atendimento às massas como prioridade de seu governo, em contraposição aos que o precederam, Newton Cardoso explicita o compromisso com o populismo, transformando o programa em bandeira de seu partido.” (p. 11) Assim, não houve planejamento nem das construções nem de serviços de infra-estrutura, o que trouxe problemas tais como desabamento de casas e deslizamento de áreas40. Como se pode perceber, o que ocorreu foi a implantação de um programa habitacional de caráter “eleitoreiro” e não a implantação de uma política habitacional para a população de baixa renda da cidade. O programa habitacional não foi suficiente para enfrentar o problema da moradia e tampouco aqueles referentes à ocupação dos espaços da cidade, visto que as áreas periféricas são expandidas, as favelas são adensadas e os serviços básicos de infra-estrutura são obtidos por meio de movimentos reivindicatórios41 e dos serviços de mutirão. Obras de urbanização foram realizadas nas favelas e em algumas delas o 40 A previsão de construir em Belo Horizonte 6.000 casas não foi cumprida, pois após quatro anos de criação do programa, efetivamente só foram produzidas 2.213 casas das quais 1.384 pertencem aos conjuntos da Prefeitura, onde a ação do programa resume-se em doar material para a conclusão das unidades habitacionais. 41 Sobre o movimento dos favelados em Belo Horizonte, cf. Afonso & Azevedo. (1988).

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direito à propriedade do terreno ocupado foi legalizado na tentativa de minorar seus problemas, mas foram ações que não ocorreram de forma continuada, visto que estão imbricadas no jogo político da cidade e das próprias favelas através de suas associações. Dessa forma, persistiu o tratamento diferenciado dos espaços da cidade já que, por um lado, os bairros nobres eram, geralmente, bem servidos de equipamentos coletivos (escolas, posto de saúde, área de lazer etc) e serviços de infra-estrutura (água, luz, rede de esgoto etc) sem que seus habitantes, setores de renda alta e média, tivessem algum ônus adicional. Por outro lado a população de baixa renda, muitas vezes, ofereceu a mão-de-obra para receber tais benefícios. Segundo Azevedo & Prates (1991:136) “O ‘preço pago’ para um aumento considerável na produção destes bens significa, nestas sociedades [países em desenvolvimento], a ‘superexploração’ da mão-de-obra (...)”

Discutindo a nova segregação urbana em São Paulo, Caldeira (1996:304) salienta que “...

nos anos 90, as distâncias físicas separando ricos e pobres diminuíram ao mesmo tempo que os

mecanismos para separá-los tornaram-se mais óbvios e mais complexos.” Isso porque a década

de 1980 foi caracterizada como anos de recessão econômica e inflação alta, cujos efeitos mais

severos recaíram sobre os segmentos mais pobres visto que a questão da má distribuição da

riqueza no país foi agravada. A periferia das cidades passa, então, a ser inacessível aos mais

pobres fazendo com que ocorra o adensamento das favelas e cortiços. Com a consolidação

democrática no país, os movimentos sociais pressionaram ainda mais o poder público para

melhorar a infra-estrutura e legalizar a posse da terra nas regiões periféricas, áreas dos

loteamentos clandestinos e de algumas favelas. Essas pressões fizeram com que a periferia fosse

alvo das prioridades dos investimentos públicos em infra-estrutura urbana. Assim, essas áreas

passaram a contar com serviços e equipamentos urbanos, tornando-se inacessíveis ao segmento

mais pobre da cidade que, expulsos desses locais, contribuíram para o adensamento das favelas e

cortiços, sendo que alguns deles chegaram às ruas por essa via. Por fim, Caldeira (1996) aponta a

existência de um novo padrão de segregação urbana residencial que se inscreve nas cidades a

partir da retórica do aumento dos crimes violentos e do medo, fazendo de São Paulo, por

exemplo, uma cidade de paredes, pois barreiras físicas são construídas ao redor dos prédios, dos

parques, dos quarteirões, das escolas etc. “Uma nova estética da segurança modelando todos os

tipos de construção e impondo sua nova lógica de vigilância e distância como um meio de

demonstração de status, e está mudando o caráter da vida pública e das interações públicas. “

(Caldeira, op.cit:308)

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Belo Horizonte também reflete, de alguma forma, esse novo padrão de segregação urbana,

pois o que é característico do final dos anos 1980 e início da década de 1990 é a dificuldade de

uma parte dos setores mais pobres da cidade de se instalarem nas áreas que, até então, lhes eram

destinadas: as periferias e as favelas.

Frente à falta de medidas adotadas pelo poder público e mesmo pela iniciativa privada, em

se tratando do problema da moradia, os anos 1990 iniciaram-se com uma cidade onde o cenário

urbano comportava práticas alternativas de acesso à moradia, tais como “...invasões,

encortiçamento de áreas deterioradas, favelização crescente, aumento do número de pessoas

morando nas ruas, entre outras.” (Costa,1994:72) Isso leva a pensar que o espaço da cidade, no

que se refere à moradia, foi sendo remodelado de acordo com o agravamento das condições

sócio-econômicas e a ineficiência das políticas públicas habitacionais, voltadas, principalmente,

para a população de baixa renda.

Belo Horizonte era, até meados dos anos 1990, uma cidade com mais de dois milhões de

habitantes que, espacialmente, encontrava-se subdividida em nove regiões administrativas. Os

serviços de infra-estrutura não eram distribuídos igualmente em toda a cidade, o que contribuia

para reforçar o que desde a sua fundação vem insistindo em prevalecer: a segregação do espaço

da cidade que elitiza determinadas áreas servidas por infra-estrutura e equipamentos urbanos e

daí expulsa a população mais pobre para áreas periféricas e sem infra-estrutura urbana. Nesse

cenário, no qual a segregação do espaço desenha o formato da cidade, os dados de 1994

indicavam para a existência de

“cento e trinta e nove assentamentos caracterizados como favelas (ocupação de áreas de propriedade de terceiros, públicas ou privadas, onde são construídas edificações precárias) e vinte e um outros assentamentos, chamados de “Conjuntos Habitacionais”, implantados pelo poder público municipal e estadual.” (PBH,1994b)

A população dessas favelas e conjuntos era de 83.135 famílias, o que significava algo em

torno de 415.975 pessoas representando 21% da população de Belo Horizonte.42 Além das

favelas e assentamentos existentes, a cidade ainda contava com uma população que vivia nas

ruas, sob os viadutos e marquises, nas calçadas e praças, ocupando silenciosamente os espaços

públicos.

42 Dados obtidos em Diagnóstico da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte sobre a situação habitacional em 1994 (mimeo)

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Em julho de 1992, foi possível assistir ao exercício de uma prática muito antiga na cidade

− a expulsão de alguns moradores de sua área central. No dia 7 de julho de 1992, funcionários da

Prefeitura acompanhados da Polícia Militar deram início a uma operação que pode ser

denominada de “limpeza da cidade”, como assinala Bove (1992). Tal operação aconteceu com o

objetivo de retirar a população que morava sob alguns viadutos da cidade, alegando que estas

eram áreas de risco, sem higiene e segurança. Os barracos ali instalados foram destruídos e seus

habitantes foram levados para um abrigo da Prefeitura, onde permaneceram por mais de um mês,

pois não havia, por parte da Prefeitura, nenhum projeto de moradia para essas pessoas. Após

várias reuniões da Pastoral de Direitos Humanos e da Cáritas do Brasil com o Secretário

Municipal de Desenvolvimento Social, foi anunciado um convênio com a Sociedade São Vicente

de Paula que providenciou moradia para aquelas pessoas. Ou seja, mais uma vez não se discute a

realização, ou melhor, a implementação de uma política habitacional para a população de baixa

renda, ficando o problema sem uma solução efetiva. Além disso, é importante dizer que nesse

momento, em que se vivia a ordem democrática, foi realizada a ação policial para remover

moradores de áreas sob viadutos em nome da manutenção da segurança e da higiene da cidade.

Poderíamos dizer que assistimos aqui à retomada do discurso da ordem tal como era utilizado

nos anos 1920 e 1930.

Entretanto, as ocupações de calçadas de áreas sob viadutos e de praças da cidade, e

invasões de áreas públicas pelos participantes do movimento dos sem-casa, continuaram

ocorrendo. Em relação às invasões do movimento dos sem-casa, elas aconteceram como uma

forma de pressionar o poder público para a resolução do problema da falta de moradia. Em

setembro de 1994, cerca de 200 famílias “acamparam” no bairro de Lourdes, zona sul da cidade,

em frente à Secretaria de Estado da Habitação, onde permaneceram até o início de novembro.

Eram famílias provenientes de um acampamento em Ribeirão das Neves e que, após uma

passagem pela Praça Afonso Arinos, no centro da cidade, se deslocaram para o bairro de

Lourdes.

A próxima Administração Municipal (1993-1996), resultado de uma aliança política entre

os partidos PT, PV, PSB, PCB e PC do B, denominada Frente Popular, demonstrou não somente

uma nova correlação de forças no poder político local, mas também maior sensibilidade para os

problemas habitacionais, por meio de uma administração conjunta dos vários problemas da

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cidade. Mais uma vez é possível fazer referência ao imaginário social como orientador de uma

nova prática política na cidade que buscou conferir uma nova identidade à mesma a partir de

outras bases como, por exemplo, a administração participativa. A ordem perpassou essa gestão

da cidade no sentido de implementar novas formas de atendimento às demandas da população e

ordenar as prioridades das ações públicas contando com a participação dos envolvidos

diretamente nas mesmas. As marcas que se procurava imprimir no espaço urbano é que este

pertencia a uma coletividade, composta por uma pluralidade de interesses, que deveria participar

ativamente da gestão do mesmo.

Com relação ao problema habitacional para a população carente, foi criado, o Sistema

Municipal de Habitação composto pela URBEL, pelo Conselho Municipal de Habitação e pelo

Fundo Municipal de Habitação Popular. Este último foi criado em janeiro de 1993 pela Lei nº

6326, para dar suporte financeiro à política municipal de habitação. Tem como objetivo financiar

e implantar programas e projetos habitacionais de interesse social, que atendam à população com

renda familiar de até cinco salários mínimos.43 O Conselho Municipal de Habitação foi criado

pela Lei nº 6.508 de janeiro de 1994 para ser o canal institucional formal de participação da

sociedade, sendo, então, constituído de representantes de entidades populares, entidades do

movimento popular por moradia, sindicatos, representantes de entidades vinculadas à produção

de moradia (empresarial ou de ensino superior), do Legislativo e do Executivo. Tem como

atribuição formular uma política de habitação popular no município.

Em se tratando da população de rua, a referida administração municipal criou um grupo

de trabalho integrado, composto por representantes de quatro administrações regionais (Centro-

Sul, Nordeste, Noroeste e Leste) e outros órgãos municipais, como Procuradoria, Secretaria

Municipal de Desenvolvimento Social, Secretaria de Governo, URBEL, SLU (Superintendência

de Limpeza Urbana), entre outros, para atuar junto aos moradores de rua da cidade. Assim, a

questão não foi tratada como um caso de polícia, como ocorreu em 1992, pois a partir de então

passou a ser objeto de estudo e análise para elaborar um plano de atuação junto a esse grupo.

Em 1993, por meio da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, foi criado o

Programa de Atendimento à População de Rua que coadunava com o ideário da Constituição de

43 Sua receita é proveniente de dotações orçamentárias municipal, estadual e federal, como também de recursos de convênios nacionais e internacionais advindos de retorno de financiamentos.

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1988, pois essa propunha a criação de mecanismos de participação popular tanto na formulação,

quanto na execução e avaliação de programas sociais. Isso também contribuía para a ampliação

da concepção de assistência social, para que essa não fosse concebida como favor ou

benemerência, ou mesmo que fosse aliada do clientelismo e da corrupção, pois estaria inscrita no

âmbito das políticas sociais e da defesa dos direitos de cidadania. Além disso, é importante

ressaltar que o Programa de Atendimento à População de Rua, fundamentado nos princípios da

Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), promulgada em função da Constituição de 1988,

significou um avanço no que se refere ao posicionamento do poder público para o enfrentamento

dos sujeitos que viviam e muitos ainda vivem uma situação de exclusão social. Seu objetivo era

implementar ações para resgatar os direitos sociais dos sujeitos que compunham a população de

rua.

O Programa de Atendimento à População de Rua da Prefeitura de Belo Horizonte foi

viabilizado a partir do estabelecimento de algumas parcerias com entidades da sociedade civil,

entre as quais é importante destacar a Mitra Arquidiocesana através da Pastoral de Rua, que já

atuava junto à população de rua desde 1987. No início dos anos 1990, a atuação da Pastoral de

Rua já contava com algumas conquistas, entre elas a organização de um dos grupos que

compõem a população de rua para a formalização da ASMARE – Associação dos Catadores de

Papel, Papelão e Material Reaproveitável.44 Atualmente, os catadores de papel são parceiros da

SLU/PBH – Superintendência de Limpeza Urbana da Prefeitura de Belo Horizonte, na

implantação do projeto de coleta seletiva. Já possuem dois novos galpões de triagem do material

coletado45, os quais foram inaugurados a partir de uma parceria entre Prefeitura Municipal, por

meio da SLU e da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, a Mitra Arquidiocesana com

a Pastoral de Rua, e os catadores de papel, por meio da ASMARE.

Em novembro de 1994, foi inaugurada a República Reviver, uma experiência pioneira no

Brasil de “moradia pública”, destinada à população de rua como um espaço provisório durante o

processo de saída da rua. Esse espaço foi resultado de uma reivindicação dos freqüentadores da

“Casa Esperança” e da “Casa da Acolhida” (centros comunitários para socialização dos

moradores de rua) aliados aos catadores de papel da ASMARE. Juntos, participaram das

44 Cf. Andrade, 2002 e Oliveira, 2001 45 Um na rua Curitiba, área central da cidade e outro na rua Itambé, já na Regional Leste, mas bem próximo à área central.

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assembléias do orçamento participativo de 1993 quando então conseguiram recursos para

viabilizar a construção da República Reviver. A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social

tornou-se a responsável pela coordenação da República, mas também contou com a parceria da

Cúria Metropolitana, por meio da Pastoral de Rua e de moradores de rua, bem como com os

catadores de papel. Ela se configura como um espaço de moradia temporária para aqueles que

desejam sair da rua. O tempo permitido de permanência é de seis meses a um ano, para que

possam tirar documentos, conseguir trabalho, contactar a família, ter um endereço de

correspondência e residência, enfim, organizar a vida e acreditar na possibilidade de refazer

trajetórias fora das ruas. Os moradores da pensão devem contribuir mensalmente com 10% do

salário mínimo e devem assumir coletivamente as atividades da casa. Um novo equipamento destinado à socialização da população de rua foi inaugurado em

outubro de 1996: o Centro de Referência da População de Rua – Projeto Cidadania. Esse é um

espaço que se destina à realização de atividades diárias como tomar banho, lavar roupas e guardar

os pertences (são noventa e dois boxes). Para tanto, foi alugado um amplo galpão na Avenida do

Contorno, no Barro Preto, com quadra de futebol e salas de atendimento. O horário de

funcionamento é de 9 às 17 horas e somente de segunda a sexta-feira. Oferece, além dos serviços

básicos de higiene pessoal, atividades de lazer e educação. Conta com uma biblioteca e

desenvolve alfabetização para adultos. Oficinas de teatro, capoeira e música também são

realizadas. Cerca de 130 pessoas circulam pelo centro diariamente. O Centro de Referência é um

equipamento que, diferentemente da República Reviver, atende os sujeitos do mundo da rua

servindo de suporte para aqueles que vivem nas ruas e não tem como objetivo principal promover

a saída da rua, mas possibilitar a restituição de alguns direitos fundamentais do cidadão. Um

último ponto que merece destaque é que a constituição desse equipamento se deu a partir de

recursos definidos no orçamento participativo de 1995.

A Frente BH Popular é derrotada na eleição de 1996 e no ano seguinte é substituída pela

Coligação BH Novo Século, composta por uma frente de partidos que se coligaram sob a

hegemonia do PSB e do PMDB. Entretanto, essa mudança no cenário político municipal não

significou retrocessos no que se refere aos programas de atendimento à população de rua

implementados na gestão anterior.

Em fevereiro de 1998, foi realizado o 1.º Censo da População de Rua de Belo Horizonte,

sob a coordenação da Secretaria de Planejamento da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte.

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Pela primeira vez em Belo Horizonte foi delineado o perfil da população de rua, bem como sua

quantificação. No que se refere ao número total de pessoas que compõem a população de rua −

916 (novecentas e dezesseis) pessoas − ocorreu aí uma desmistificação, visto que a população da

cidade e, até mesmo, autoridades públicas e meios de comunicação chegaram a enunciar que o

número seria maior. Entre essas pessoas, o maior número de moradores concentra-se nas ruas,

avenidas e praças, ou seja, são aqueles que nesse trabalho denomino como sujeitos que constroem

instalações temporárias em espaços públicos da cidade. Eles se apropriam de alguma calçada ou

banco de praça, em geral na área central da cidade (Regional Centro-Sul), para realizarem o

pernoite. Entretanto, é importante observar que o número de pessoas que se valem de

equipamentos da Prefeitura de Belo Horizonte (Albergue, República Reviver e Abrigos) para

moradia ou pernoite muito se aproxima do número dos que pernoitam em espaços públicos.

(Tabela 2)

Tabela 2 Número de moradores de rua por tipo de local utilizado para

pernoite ou permanência e região administrativa – Belo Horizonte - 1998 ALBERGUE, REPÚBLICA, ABRIGOS,

HOSPITAIS

SOB VIADUTOS

RUAS, AVENIDAS,

PRAÇAS OUTROS

LOGRADOUROS TOTAL REGIÃO

ADMINISTRATIVA Número

de pessoas

% Número

de pessoas

% Número

de pessoas

% Número de pessoas %

Número de

pessoas %

Barreiro 0 0,00 0 0,00 2 0,56 0 0,00 2 0,22 Centro-Sul 33 9,40 45 22,39 264 73,54 1 20,00 343 37,45 Leste 0 0,00 5 2,49 33 9,19 4 80,00 42 4,59 Nordeste 0 0,00 8 3,98 1 0,28 0 0,00 9 0,98 Noroeste 315 89,74 78 38,81 42 11,70 0 0,00 435 47,49 Norte 3 0,85 0 0,00 1 0,28 0 0,00 4 0,44 Oeste 0 0,00 51 25,37 2 0,56 0 0,00 53 5,79 Pampulha 0 0,00 11 5,47 10 2,79 0 0,00 21 2,29 Venda Nova 0 0,00 3 1,49 1 0,28 0 0,00 4 0,44 Sem logradouro fixo 0 0,00 0 0,00 3 0,84 0 0,00 3 0,33 Total 351 100,00 201 100,00 359 100,00 5 100,00 916 100,00

Fonte: PBH. 1º censo da população de rua do município de Belo Horizonte. 1998. Org.: DITPL. 1998.

Em se tratando do perfil da população de rua, o que o censo revelou é que ela é composta

na sua maioria por homens adultos: 78% são homens e 22% são mulheres. Essa predominância

masculina ocorre tanto nos espaços públicos, como ruas, avenidas e praças, quanto nas

instituições que os atendem. Nos baixios de viadutos o número de mulheres já cresce um pouco

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mais, visto que é mais usual a construção de moradias que abrigam famílias ou grupos

domésticos. (Tabela 3)

Tabela 3

População de rua segundo sexo e tipo de local de pernoite e permanência -

Belo Horizonte - 1998 MASCULINO FEMININO TOTAL

TIPO DE LOGRADOURO Núm. de pessoas % Núm. de

pessoas % Núm. de pessoas %

Albergue, abrigos, repúblicas e hospitais 311 43,56 40 19,80 351 38,32 Sob viadutos 130 18,21 71 35,15 201 21,94 Ruas, avenidas e praças 269 37,68 90 44,55 359 39,19 Outros 4 0,56 1 0,50 5 0,55 Total 714 100,00 202 100,00 916 100,00

Fonte: PBH. 1º censo da população de rua do município de Belo Horizonte. 1998. Org.: DITPL. 1998.

De acordo com o censo, mais de 10% dos adultos da população de rua trabalham com ou

sem carteira assinada ou com contrato temporário, mas a maioria realiza “bicos” para garantir a

sobrevivência. Entretanto, é importante ressaltar que dentre as atividades executadas para ganhar

dinheiro sobressai a coleta do papel, lata e outros materiais recicláveis, tanto em baixios de

viadutos, quanto nas ruas, avenidas e praças. (Tabela 4)

Tabela 4

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População de rua por sexo e atividade exercida Belo Horizonte - 1998

(%)

ATIVIDADE MASCULINO FEMININO TOTAL Não executa atividade

remunerada 8,68 17,33 10,59

Cata material reciclável 15,55 15,84 15,61

Lava/toma conta de carro 14,99 9,41 13,76

Pede ajuda 7,98 20,30 10,70

Chapa/carregador de caminhão 13,73 0,00 10,70

Pintor/pedreiro 10,78 0,50 8,52

Vendedor ambulante/camelô 6,72 7,43 6,88

Biscate 4,76 2,48 4,26

Doméstica 0,84 10,89 3,06

Artesão 2,10 0,50 1,75

Rouba 0,84 0,00 0,66

Consertos diversos 0,42 0,00 0,33

Aposentado 0,14 0,00 0,11

Outras atividades 13,44 2,97 11,13

Sem informação 10,92 17,33 12,34

N (**) 714 202 916

Fonte: PBH. 1º censo da população de rua do município de Belo Horizonte, 1998.

Org.; DITPL. 1998.

(**) Corresponde às quantidades absolutas de moradores de rua, por sexo, sobre as

quais foram calculados os percentuais de cada coluna.

Obs.: Os percentuais relativos à cada coluna podem ultrapassar 100% porque alguns

moradores de rua declararam exercer mais de uma atividade.

Uma outra ação da administração municipal em torno da população de rua foi a realização

do Diagnóstico Participativo Urbano: O Olhar de Quem Mora, Produz e Vive nas Ruas da

Cidade46, durante os meses de julho, agosto e setembro de 1999. Esse diagnóstico foi realizado

junto aos moradores dos viadutos Silva Lobo, Francisco Sales e Floresta. Um de seus objetivos

foi conhecer a realidade vivida pelos moradores de tais viadutos a partir de seus relatos. Eles

foram contactados no próprio viaduto onde moravam e convidados a se manifestar sobre temas

como: suas atividades ocupacionais para garantia da sobrevivência, suas relações com os demais

moradores do viaduto, suas expectativas em relação ao futuro, entre outros. O Diagnóstico foi

elaborado a partir desses contatos, sendo composto, em sua maioria, por depoimentos dos 46 Diagnótico Participativo Urbano, 1999 (mimeo)

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moradores. Além de traçar o perfil dessas pessoas, o diagnóstico se propunha a incentivar a

mobilização dos moradores de baixios de viadutos na busca de soluções para seus problemas,

bem como disponibilizar informações sobre a realidade por eles vivida para as equipes da

Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e a Pastoral de Rua.

Ainda em 1999, o programa “Se essa casa fosse minha” é implantado, com o objetivo de

atender às famílias moradoras de rua com uma bolsa aluguel. Durante um ano a Prefeitura

financia o aluguel de um imóvel e acompanha o desenvolvimento social da família. Esse

programa é conseqüência das reivindicações dos moradores de baixios de viadutos “quando da

realização do diagnóstico participativo que teve como objetivo promover a construção de

conhecimentos a partir do olhar dos próprios moradores de rua, buscando ações coletivas para

os problemas evidenciados, como a falta de políticas públicas de moradia, trabalho e assistência

para este segmento social.” (Andrade, 2002:84)

Em julho de 2000, é inaugurada a República Maria, Maria com o objetivo de abrigar

temporariamente 40 (quarenta) mulheres moradoras de rua que vivem sozinhas ou com filhos de

até 6 anos. Este é um espaço que oferece serviço de higienização, acompanhamento e

encaminhamento social, curso profissionalizante e alfabetização47. As mulheres que foram

encaminhadas para este local são, na maioria, portadoras de sofrimento mental, sendo que muitas

delas já conseguiram o benefício de prestação continuada. Diferentemente da República Reviver,

destinada aos homens, na República Maria, Maria, a Prefeitura Municipal subsidia 100% da

alimentação, ficando as mulheres responsáveis pela manutenção da limpeza do ambiente.

Atualmente, após a reforma administrativa realizada em 2000 na esfera do poder

municipal, os programas de atendimento à população de rua foram modificados em relação a sua

subordinação a novas gerências. Isso porque a antiga Secretaria Municipal de Desenvolvimento

Social foi extinta e transformou-se em Secretaria Municipal de Assistência Social. Sua divisão

interna passou a contar as seguintes gerências:

• Gerência da Coordenação de Políticas de Assistência Social: coordena a implantação das

ações sociais com o objetivo de conferir um formato uniforme às políticas sociais;

• Gerência de Proteção Especial: compreende as atuações com as crianças;

47 Cf. www.pbh.gov.br

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• Gerência Produtiva: atua com projetos de inclusão produtiva (geração de emprego e

renda);

• Gerência de Monitoramento da Política de Assistência Social: essa gerência inclui a

diretoria de ação básica à qual está subordinado o atendimento à população de rua. A novidade implementada a partir da Reforma Administrativa é que a abordagem da

população de rua será descentralizada. Isso significa que as nove regiões administrativas de Belo

Horizonte contarão com técnicos sociais que realizarão o contato com os moradores de ruas,

avenidas, baixios de viadutos e praças que se localizam na região. As regionais Centro-Sul, Leste,

Nordeste, Noroeste e Oeste já contam com esses técnicos nos seus quadros. Para o atendimento à

população de rua das outras regionais (Norte, Barreiro, Pampulha, Venda Nova), os técnicos

partem da regional Centro-Sul.

Para encerrar a discussão sobre a ordem social, é importante ressaltar que apesar dos

programas habitacionais clientelistas implantados ao longo dos 1980, a década seguinte foi

emblemática no que se refere à ordenação das ações sociais do município voltadas para a

habitação. Vale ressaltar que sobre os anos 1990 o destaque aqui foi dado ao atendimento à

população de rua, sujeitos que enfrentam o constrangimento da falta de moradia, visto serem eles

objeto de estudo desta dissertação.

1.2. BELO HORIZONTE COMO RESULTADO DO EXERCÍCIO DA ORDEM NO

ESPAÇO URBANO

O cenário da última década do século XX e os primeiros anos do século XXI contém as

marcas de um processo de ocupação que teve como resultado da implantação da ordem no espaço

urbano a segregação espacial. Desta forma, a cidade encontra-se dividida, configurando-se como

um espaço urbano que tem grande extensão física, mas contém barreiras “invisíveis”, impedindo

o acesso e a fruição igualitária de seus espaços por sua população. Suas ruas, praças e

monumentos são, de certa forma, a expressão de sua história, guardam marcas de eventos

políticos, sociais e culturais ou mesmo do cotidiano experimentado pela população da cidade.

Mas comportam também uma grande variedade de identidades, evidenciando a existência dos

vários segmentos sociais que usam, percebem e se relacionam com seus espaços de formas

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diferenciadas. Essas formas diferenciadas de relação, uso e percepção dos espaços estão

relacionadas à maneira como esses vários segmentos sociais os vivem cotidianamente. Como

assinala Arantes (1994) em seu artigo sobre as fronteiras simbólicas e liminaridades no espaço

urbano, “mais do que territórios bem delimitados, esses ‘contextos’ ou ‘ambientes’ podem ser

entendidos como zonas de contato, onde se entrecruzam moralidades contraditórias(...)

aproximam-se mundos que são parte de um mesmo modo mas que, assim mesmo, encontram-se

irremediavelmente apartados.” (p.192)

Uma análise diacrônica do mapa de Belo Horizonte revela as diferentes maneiras,

simbólicas ou não, que garantiram, nas diversas épocas, uma “certa ordem”, o que pode ser

também compreendido como um “controle da desordem”. Foram estabelecidas barreiras

invisíveis de acesso à área central da cidade para os segmentos mais pobres da população e a

sociedade contemporânea estabeleceu barreiras simbolicamente invisíveis. Assim, as praças e

ruas da cidade passaram a ser concebidas como locais próprios de práticas sociais e de visões de

mundo antagônicas48.

Belo Horizonte é, hoje, fruto das várias ações do poder público, ao longo do tempo, nos

vários espaços da cidade, como também da sua interação com a população que a ele recorre para

as solicitações mais diversas. É uma cidade que comporta vários espaços que podem ser descritos

pela presença de visões de mundo e práticas sociais diferentes, caracterizando-se, então, como

uma paisagem urbana contemporânea49 .

O desenho e a configuração atual da cidade, sua fragmentação e saturação de trânsito e

fluxos, podem ser considerados como o resultado das atuações tanto do poder público quanto da

população local nas áreas social, econômica, política e cultural. Isso porque todo tipo de

intervenção no espaço de uma cidade por meio da remodelação de seus usos, da construção de

novas edificações ou ainda da conservação e recuperação de algumas áreas produz resultados na

sua conformação espacial. Assim, além das ações do poder público sobre os espaços da cidade, 48 A Praça da Liberdade pode ser consideradas exemplar nessa questão. A Praça da Liberdade, emoldurada pelo Palácio do Governo e suas Secretarias, principalmente após a reforma realizada em 1991, além do público habitual praticante do cooper, dos namorados e das crianças com suas bicicletas e patins, atrai também um público que aprecia seus jardins e considera agradável o passeio entre seus canteiros se preocupando, inclusive, em não degradá-lo. É inconcebível para a Praça da Liberdade abrigar algum morador de rua. Naturalmente, não existem placas permissivas ou proibitivas para tal tipo de apropriação de um espaço público, mas as fronteiras simbolicamente invisíveis têm esse poder de estabelecer o permitido e o proibido a partir da ordem que vigora em cada espaço da cidade. 49 Para referir-se às cidades fragmentadas e ao mesmo tempo saturadas, um local onde diferentes cenários se sobrepõem, Brissac Peixoto (1996) utiliza essa noção.

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sua população também interage com esse meio e vai deixando suas marcas nele inscritas por

meio de manifestações artísticas, da interferência direta no espaço urbano pela forma como o

usufrui e também pela participação em organizações que atuam na cidade, objetivando

modificações específicas em algumas de suas áreas.

Enfim, ao longo de sua história, Belo Horizonte foi palco do enfrentamento entre os

interesses de diversos grupos da cidade que buscaram validar formas de pensar e usar seus

espaços para moldá-los de acordo com o que ansiavam e imaginavam ser viável para a cidade.

Como as imagens de Belo Horizonte foram mudando com o transcorrer do tempo, essas formas

de pensar e usar o espaço também se modificaram, pois o espaço pode ser considerado o

“equivalente do tempo (...) um meio dinâmico que, ao mesmo tempo, exerce uma influência sobre

a história e é moldado pela ação humana.” (Zukin, 1996:206)

Belo Horizonte tem, então, seu espaço e suas formas de ocupação e uso influenciando na

sua história, como também sendo influenciados pela ação de seus sujeitos. É a cidade como

resultado da ação e relação entre os sujeitos e o meio onde se localizam. Como aponta Gottdiener

(1993), o espaço é um produto contingente, resultado da articulação dialética entre ação e

estrutura.

Fazendo parte da paisagem urbana contemporânea, Belo Horizonte se inscreve nesse

universo como uma metrópole que tem seus espaços ou, de acordo com Arantes (1994), seus

“ambientes” ou “contextos”, perpassados pela convivência diária de moralidades contraditórias.

Seus sujeitos se cruzam cotidianamente num mesmo “ambiente”, mas seus mundos não se

penetram, eles se justapõem e, de certa forma, se confrontam. A existência de práticas tão

diferenciadas num mesmo espaço torna possível pensar como as calçadas, as praças e as áreas

sob os viadutos podem ser apropriadas pela população de rua da cidade que aponta algo além da

miséria e da falta de políticas públicas habitacionais, pois aponta também para a reinterpretação

de usos dos espaços da cidade, chamando a atenção para a existência de outras práticas sociais e

visões de mundo não previstas pela sua ordem política, econômica e social.

Frente a esse dado da paisagem urbana de Belo Horizonte, este trabalho se propõe a tratar

o problema dos moradores de rua da cidade a partir da concepção de que os espaços públicos

comportam uma pluralidade de grupos sociais que, na sua interação cotidiana e, principalmente,

pela forma como se relacionam, usam e percebem o espaço onde se situam, podem revelar

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231

diferentes visões de mundo, a partir das quais projetam no espaço as fronteiras simbólicas

invisíveis que tanto os aproximam como os separam.

CAPÍTULO DOIS

O PÚBLICO E O PRIVADO: A RUA E A CASA, A RUA NA CASA E A CASA NA RUA

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A rua, não só em Belo Horizonte como em outras cidades, tem sido apropriada de

diferentes maneiras por pessoas que vivem o problema da falta de moradia. Pela forma

diferenciada que algumas pessoas se apropriam dos espaços públicos, é possível identificar

diferentes denominações que elas utilizam para se auto classificarem e classificarem os outros. A

partir da forma como se instalam nos espaços públicos, nas calçadas ou sob viadutos e como

passam a sobreviver e viver no mesmo, elas passam a ser identificadas ou não com determinada

“categoria” de morador de rua. A improvisação de uma moradia e a fixação em determinada área

são indicativos de que aquela ou aquelas pessoas que ocupam o local dele se apropriaram,

imprimindo no mesmo marcas pessoais, isto é, transformam um espaço de passagem em um

ambiente privado onde as atividades cotidianas de uma família ou de um grupo de pessoas são

desenvolvidas. Roupas são estendidas no varal, paredes são erguidas, calçadas são cobertas de

papelão e utilizadas como locais de pernoite; enfim, novos usos passam a ser desenvolvidos e

novas funções passam a ser atribuídas aos locais e áreas públicas que transformam-se em

territórios privados. O que se percebe é a redefinição de usos e funções dos espaços públicos a

partir da forma como passam a ser utilizados pelas pessoas que neles se instalam, apropriando-se

deles como locais de trabalho e/ou moradia. A partir desses novos usos e funções, é possível

pensar que os ocupantes desses espaços, seja qual for a forma de ocupação, também adotam uma

nova maneira de experienciá-los que se diferencia daquela que a maioria dos usuários cotidianos

de tais espaços venha a ter com eles. Assim sendo, o objetivo deste capítulo é realizar uma

discussão em torno dos espaços casa e rua e suas configurações como espaço público e privado.

Num primeiro momento, a ênfase será dada aos espaços casa e rua como opostos. Ou seja, a casa

configura-se como a esfera privada em oposição à rua que é o emblema da esfera pública. Num

segundo momento, a discussão desdobra-se tomando como foco os limites tênues e fluidos

existentes entre a casa e a rua a partir, exatamente, do exemplo da apropriação de espaços

públicos em espaços privados.

2.1. A RUA NA CASA E A CASA NA RUA: COMUNICAÇÃO ENTRE “MUNDOS”

A princípio o que se pode observar é que as pessoas que improvisam moradias nas

calçadas e nas áreas sob viadutos e passarelas estão “erguendo muros” para se proteger do frio, da

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chuva e do sol, como também para se preservar dos olhares alheios ao realizarem atividades

como vestir, tomar banho, dormir, fazer as refeições. Assim, estão buscando manter a privacidade

das atividades domésticas, apesar do domicílio estar localizado num espaço considerado público.

Então, é possível pensar que as esferas pública e privada podem situar-se lado a lado, podem

“dialogar”, mais do que situar em posições opostas?

Antes de iniciar essa discussão, vale ressaltar algumas análises sobre a casa e a rua, para

que se possa perceber as concepções mais recorrentes sobre os mesmos e contrapô-las ao que os

sujeitos do mundo da rua vivem e concebem como casa e rua.

A casa não se define apenas pela descrição de sua estrutura física, isto é, uma casa não é

uma casa simplesmente porque tem quartos, sala, cozinha, banheiro e pintura nas paredes. A casa

é um dos lugares do espaço que comporta significados que não são visíveis como os quadros e

retratos colados à parede, mas que fazem parte do código cultural da sociedade na qual está

localizada. Assim, ela não deve ser compreendida apenas como uma construção que fornece

abrigo, mas como um dos componentes do sistema simbólico espacial de uma determinada

organização social.

Pensando no sistema de valores que caracteriza e confere sentido às construções das

moradias, é recorrente a referência à casa como aquele lugar do espaço relativo à esfera da vida

privada. É nesse lugar que as atividades voltadas para os indivíduos que nele habitam devem ser

desempenhadas, ou seja, só caberão aí atividades que se relacionam com a vida de cada um dos

seus habitantes, como por exemplo, o cuidado com a higiene e limpeza corporal, as relações com

as pessoas de laços consangüíneos, o partilhamento das alegrias e tristezas pessoais etc. A

definição de quais são essas atividades está relacionada com a organização social na qual a casa,

como um dos lugares do espaço, está localizada. Isso porque essas atividades íntimas, próprias da

esfera do privado, podem se diferenciar de um grupo social para outro. O sistema de valores que

reflete, ou melhor, que determina a adoção dessa ou daquela maneira de construir, habitar e viver

nas casas tem suas raízes na coletividade, isto é, são construídos socialmente e, sendo assim, ao

longo do tempo, vão ocorrendo redefinições em relação ao que é próprio e peculiar aos ambientes

domésticos. Isto implica dizer que as pessoas classificam e representam diferentemente os lugares

do espaço, assim como as relações, os objetos e as instituições ao seu redor. Como já foi

discutido, o conceito casa é praticamente imutável, pois continua sendo uma referência ao ato de

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nos abrigarmos, de construirmos uma moradia, e o que vem mudando são suas formas, os

materiais, as cores, as formas de construí-la e, conseqüentemente, a maneira de representá-la.

Fazendo uma primeira menção à oposição entre esses dois lugares do espaço − casa e

rua −, cabe discorrer sobre este último como sendo o local da esfera da vida pública. Pensada sob

essa perspectiva, a rua seria o local por excelência das atividades que podem ser realizadas em

conjunto com outras pessoas, inclusive desconhecidas, ou seja, ela é o local onde se cruzam

várias pessoas dos mais diferentes estratos sociais.

Discorrendo sobre a casa e a família operária, Woortmann (1982:119) ressalta que a

importância da casa “... vai muito além da simples dimensão de um teto sobre a cabeça (...) Ela

é crucial, não apenas de um ponto de vista material, óbvio, mas igualmente, por constituir uma

categoria central de um domínio cultural e um mapa simbólico de representações ideológicas.”

Isso implica que seu significado está além de sua função de fornecer abrigo, sendo inclusive

considerada uma categoria importante no mapa simbólico de um grupo social.

De acordo com DaMatta, tanto a casa quanto a rua contêm um código próprio que

prescreve formas de comportamento. Para ele, tais lugares do espaço “... contêm visões de mundo

ou éticas que são particulares.” (DaMatta,1985:41) A casa brasileira é por ele caracterizada

como sendo “... um espaço que pode abrigar iguais (...) e está sujeita às mesmas normas vigentes na rua, mas como uma área especial; onde não existem indivíduos e todos são pessoas, isto é, todos que habitam uma casa brasileira se relacionam entre si por meio de laços de sangue, idade, sexo e vínculos de hospitalidade e simpatia que permitem fazer da casa uma metáfora da própria sociedade brasileira.”(Ibidem,p.45)

A sociedade é, neste caso, uma entidade especial, um espaço idealizado e não um local de lutas e

indiferença. Vale ressaltar que as obras Casa Grande e Senzala (1933) e Sobrados e Mocambos

(1936), de Gilberto Freyre, já demonstravam a possibilidade de estudar o espaço casa como

reflexo da sociedade de uma época.

Cabe aqui salientar que o formato da casa influi na maneira como seus usuários4 se

comportam no seu interior e mesmo fora dela. Isso significa que sua divisão em cômodos, suas

cores, o material utilizado na sua construção etc recebe influências de um lugar e de uma época,

mas também pode ser um exemplo de sua influência no meio onde se localiza, visto que os

4Utilizei a denominação de usuários e não de habitantes para demonstrar que, assim como os moradores, os demais usuários, por exemplo, visitantes esporádicos, também se comportam de determinada maneira em virtude do arranjo dos cômodos da casa e das atividades neles desenvolvidas.

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comportamentos de muitos de seus moradores e demais usuários fora dela podem se orientar a

partir de como agem no seu interior.

Tornando clara essa questão, o estudo de uma vila pesqueira brasileira realizado por

Robben (1989), aponta a relação ali existente entre estrutura espacial e prática social. Segundo

ele, a divisão sócio-espacial da casa brasileira em quartos, sala e cozinha influi diretamente nas

práticas domésticas dos membros da família como também nas práticas públicas e econômicas

fora de casa. Ou seja, a forma de organização espacial da casa exerce influência nas atitudes dos

membros da família tanto dentro quanto fora de casa. Para Robben (op. cit.), a estruturação da

casa representa uma hegemonia espacial na sociedade brasileira.

Assim como a casa, a rua na sociedade brasileira também comporta um código de

representações que vai além de sua realidade material. Ela é um espaço conotado pela

externalidade, é o que está além, fora do domínio do privado das casas. Nela predomina o

anonimato onde quem comanda é a “... autoridade que governa com a lei, a qual torna todo

mundo igual no propósito de desautorizar ...” (DaMatta,1986:30)

A rua, como espaço físico que compõe as cidades, comporta o trânsito de veículos e

pedestres, sendo, então, num primeiro momento, destinada à circulação e não à permanência. É,

assim, um local repleto de fluidez e movimento, sendo também considerada como local perigoso

propício aos roubos e às desgraças.

Foi no século XIX, segundo Georgel (1986), que a rua tornou-se objeto de um novo

imaginário social e adquiriu uma nova identidade junto à transformação capitalista do mundo,

tendo a urbanização como um de seus processos constituintes. A rua deixou de ser apenas o

espaço que separa as casas e começou a perder suas formas medievais na Europa e coloniais na

América para as novas exigências do viver nas cidades. Elas deveriam atestar o progresso ou

atraso de uma cidade5 e eram consideradas seu cartão de visitas. Por definição, a rua se opunha à

casa pois se o lar delimita a propriedade e a intimidade da família, a rua é o espaço de todos, onde

os personagens dos mais variados grupos sociais se cruzam.

Como um dos historiadores que resgatam este cenário público das ruas no contexto

europeu, Perrot (1988:123,124) assinala que o povo do século XIX “... tem um sentimento muito

forte de que o espaço público lhe pertence. Tudo o que ele pede é poder utilizá-lo à sua vontade,

5 Vale aqui uma referência ao Capítulo Um, tópico 1.1.1., a discussão referente à transferência da capital mineira da cidade de Ouro Preto. Uma das argumentações era que suas ruas estreitas e tortuosas significavam a antítese do progresso e da modernidade.

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de modo indiferenciado, capaz de aceitar uma certa desordem.” Entretanto, é também no século

XIX que ocorre a separação entre o público e o privado. Este também é o momento em que o

‘burguês’ se refugiou no lar e a rua foi realmente entregue e relegada ao domínio público. A rua

é, então, o espaço do povo, o oposto da casa que é o lugar da intimidade burguesa.

Com o crescimento das cidades, a vida fabril e comercial também se estendia e as ruas

passaram a ficar cheias de “... um povo sem rosto...” (Pesavento,1994:84). Em geral eram pobres,

mal vestidos e, por vezes, mal encarados, chegando mesmo a atemorizar a vida das famílias

burguesas. A rua lhes pertencia à medida que ali mendigavam, faziam biscates, por ali passavam

na volta da fábrica ou simplesmente falavam. O domínio desse “mundo da rua”, ou seja, da esfera

pública, parecia perigoso, atentatório à moral, ameaçando os bons costumes da família burguesa.

Assim, a idéia do espaço público distante e distinto da esfera privada é constituída e a imagem da

rua como local do perigo é consolidada.

A rua revela-se, então, como um espaço de ameaças à burguesia e seus hábitos e valores.

Neste momento, torna-se necessário que algum controle seja exercido sobre ele. O

aburguesamento da sociedade foi um dos fenômenos que contribuiu para a adoção de uma atitude

interventora no espaço urbano por parte do poder público. Ruas foram alargadas e velhas

construções foram demolidas em nome do progresso e da ordem. Discutindo essa intervenção

burguesa nos espaços urbanos, Pesavento (op. cit.:115) ressalta que “... a intervenção burguesa

não se limitaria a uma reordenação do espaço: ela se orientaria também para a eliminação de

certas socialidades populares, próprias ao povo das ruas e atentatórias à moral e aos bons

costumes.” Esse era o reflexo do ideal de cidade burguesa do século XIX que buscou a todo custo

integrar a ele a cidade nômade que, segundo Perrot (1988), assim poderia ser denominada pelo

fato de seus habitantes, em especial os operários, se igualarem à qualidade de nômades na cidade,

pois a utilizavam para criar uma rede de relações e uma estrutura de sociabilidade que tornasse

possível a sobrevivência e a garantia de um lugar na cidade.

O modelo urbanista progressista do início do século XX, fundado nos ideais de

racionalidade e modernidade, na eficácia da estética como também em uma ruptura com

dimensões culturais locais, não só remodela o desenho das cidades como também suas funções.

Partindo dessa concepção, o espaço urbano passou a comportar locais previstos para as mais

diversas atividades, desde o comércio até o lazer, as festas e os encontros. A cidade passou a ser

ordenada com funções especializadas o que sugere a abolição da rua como um local de

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simultaneidade. Segundo Bermman (1982), tanto a arquitetura quanto o planejamento urbano

modernista criaram “... um mundo espacialmente e socialmente segmentado - pessoas aqui,

tráfego ali, trabalho aqui, moradias acolá, ricos aqui, pobres lá adiante; no meio de barreiras de

grama e concreto.” (p.21) Ou seja, de acordo com este modelo a cidade e, mais especialmente as

ruas da cidade, passam a comportar usos e atividades previamente estabelecidos pelos

planejadores urbanos, cabendo ao povo obediência às novas regras estabelecidas para o espaço

público.

As ruas ao longo do tempo perdem seu papel de abrigar as multidões, pois os

planejadores das cidades, na busca de imprimir a elas uma ordenação, desconsideraram os usos já

realizados pelos usuários cotidianos e desenharam um novo traçado, novas avenidas e novos

edifícios que pudessem ser o reflexo da ordem no espaço urbano. Cabe ao espaço público, onde

as ruas se situam, abrigar o movimento, o trânsito. É um local de passagem e não de relações

sociais personificadas, pois um local de personagens estranhos entre si não comporta a ocorrência

da sociabilidade.

Isto significa que foi impresso no espaço urbano não somente um novo traçado, mas sim

uma nova hierarquia de usos e atividades, uma nova determinação do que seria, a partir de então,

apropriado aos espaços públicos. É o planejamento dos urbanistas se sobrepondo às atividades

cotidianamente realizadas pelos usuários e transeuntes das ruas. A modernidade e a

racionalidade, presentes nos projetos urbanísticos, marcam um rompimento com o que até então

era usual nas ruas das cidades e nesse momento ocorreu o aburguesamento das mesmas que

foram alargadas, muitas vezes através da destruição de antigas edificações, em nome do

progresso e da implementação da ordem nos espaços públicos. O planejamento de Belo

Horizonte é emblemático nesse sentido, pois refletiu a busca de implantação da ordem e do

progresso num espaço urbano por meio da racionalidade de um projeto urbanístico. O seu traçado

revela a hierarquia de ruas e avenidas e das atividades e ocupações que a elas caberiam.

Como se pode perceber, o universo de representações da casa e da rua comportam

significações que vão além de sua aparência. Tais significações são referentes aos esquemas

valorativos de determinado contexto social e histórico que definem os espaços, diferenciando-os,

opondo-os e, por vezes, permitindo uma certa complementaridade entre eles.

Assim, além de configurarem espaços com formas diferenciadas de uso e apropriação,

casa e rua também podem ser complementares. Conforme assinala DaMatta, a oposição que os

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perpassa é dinâmica e relativa, existindo uma espécie de comunicação entre eles fazendo que

sejam complementares e inter-relacionados: “... na gramaticalidade dos espaços brasileiros,

ruas e casas se reproduzem mutuamente posto que há espaços na rua que podem ser fechados e

apropriados por um grupo, categoria pessoal ou pessoas, tornando-se sua ‘casa’ ou seu

‘ponto’...” (DaMatta, 1985:45) A complexidade da relação entre casa e rua também é observada

por DaMatta quando ressalta que esses espaços não estão separados. Eles interagem e “... se

relacionam por seus subespaços (praças, adros, mercados, jardins, portas, janelas, cozinhas e

varandas) e também por ocasiões especiais onde a comunicação é possível, obrigatória ou

desejável.” (Ibidem, p.51)

É importante ressaltar que as idéias de DaMatta fundam-se na perspectiva de Louis

Dumont a respeito das categorias individualismo, holismo e hierarquia. Em sua análise da

sociedade indiana, Dumont (1988) tem como objetivo “... exprimir mais precisamente o quadro

ideológico ocidental, em comparação com o caso da Índia Tradicional.” (p.74). Ele destaca

como o individualismo é construído e característico das sociedades ditas modernas. Além disso,

enfatiza que a relação entre as sociedades modernas (indivíduo-no-mundo) e as tradicionais

(indivíduo-fora-do-mundo) não poderia ser pensada apenas a partir da simples oposição, mas sim

a partir da oposição hierárquica. É necessário pensar o conjunto, o todo, e não suas peças em

separado. “Chamo oposição hierárquica a oposição entre um conjunto (e, mais particularmente, um todo) e um elemento desse conjunto (ou desse todo); o elemento não é necessariamente simples, podendo ser um subconjunto. Essa oposição analisa-se logicamente em dois aspectos parciais contraditórios: de uma parte, o elemento é idêntico ao conjunto na medida em que faz parte deste (um vertebrado é um animal); de outra, existe uma diferença ou, mais estritamente, uma contrariedade (um vertebrado não é - somente - um animal, um animal não é - necessariamente - um vertebrado.) Cada relação dupla, de identidade e de contrariedade, é mais estrita no caso de um todo verdadeiro do que no de um conjunto mais ou menos arbitrário.” (Dumont, op.cit.:228)

As colocações de DaMatta (1985 e 1986) são importantes para iniciar a discussão a

respeito da possibilidade de comunicação existente entre o que estou aqui considerando como

dois lugares do espaço − casa e rua. Ao apontar para a complementaridade e inter-relação

existente entre ambos, assinala uma das direções para se pensar a existência de sujeitos

construindo/improvisando moradias nas calçadas e nas áreas sob viadutos, pois suas

considerações permitem que se perceba casa e rua como espaços que comportam uma oposição

dinâmica e relativa tornando-se, então, complementares.

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Partindo dessas inferências vale também considerar, em se tratando das casas na rua, dos

locais públicos − praças, calçadas, áreas sob viadutos − que se transformam em moradias, que

não é possível lidar com oposições binárias para discutir a questão, pois no caso temos os lugares

do espaço − casa e rua − e além deles a constituição de um novo lugar do espaço característico

das sociedades contemporâneas que são as moradias improvisadas em locais públicos. Assim,

torna-se difícil concentrar a discussão enfatizando as esferas pública e privada como sendo

explicativas da oposição entre casa e rua. Mais difícil ainda é simplesmente transpor essa

discussão para o universo da casa na rua. É necessário chamar a atenção para a existência de uma

tríade, ou seja, existem as casas, as ruas e as casas nas ruas. Desta forma, pode-se pensar numa

zona limítrofe6 entre as casas e as ruas caracterizada pela ambigüidade de ser um espaço que

pode abrigar atividades relativas ao mundo da casa e ao mundo da rua, zona essa que abrigaria as

casas nas ruas. Os limites não estanques, mas sim fluidos entre casa e rua possibilitam, como

assinalou DaMatta (1985), a comunicação e inter-relação entre ambos e também permitem, de

alguma forma, a improvisação das moradias nas ruas, ou melhor, em áreas públicas.

Graficamente essa discussão poderia ser representada da seguinte forma:

casa rua

á

casa na rua

6Leach (1978) ao discutir os limites de espaço e tempo social assinala que uma fronteira é algo que não tem dimensão e por isso é próprio das marcas de fronteira “... que elas sejam implicitamente ambíguas e uma fonte de conflito e de ansiedade.” (P.44) Fazendo referência aos rituais que marcam a transição de um status - puberdade, casamento, funeral etc - Leach os considera como um intervalo de indefinição, como uma zona limítrofe entre o antigo status e o futuro, uma zona limítrofe de espaço-tempo social. Vale também a referência a Van Genep (1986) discutindo os ritos de passagem, fazendo menção a liminaridade como criadora de uma situação de ambivalência de fronteira.

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240

Casa e rua são universos diferenciados com valores, representações e classificações

próprias que variam de acordo com as organizações sociais. Os significados que compreendem

podem, inclusive, ser definidos a partir da oposição, do contraste entre ambos. As fronteiras e os

limites entre eles são bastante claros quando se pensa em termos de sua construção, pois quando

se projeta uma casa, sua dimensão e suas subdivisões são pensadas a partir da área que poderá

utilizar para ser construída, área esta que não inclui a calçada e tampouco a rua. O muro que será

erguido como proteção ao universo íntimo, familiar das casas é como uma demarcação de

território indicando onde começam e onde terminam o mundo da casa e o mundo da rua. O

mesmo acontece com uma rua ou uma avenida, o projeto apenas prevê a largura, o tipo de

calçamento e o nome das mesmas levando em conta o local e a intensidade do tráfego de

automóveis e pedestres. Assim, uma casa que teve sua planta e construção aprovadas não se

localiza no meio da rua como também não é usual que ruas atravessem o interior das casas. Com

isso quero dizer que em termos de ocupação no e do espaço, casa e rua têm suas localizações

bastante definidas, isto é, ocupam espaços distintos e assim suas diferenciações podem ser

levantadas a partir dos lugares diferenciados que ocupam. Entretanto, nas sociedades

contemporâneas, os grandes centros metropolitanos passaram a contar na sua paisagem urbana

com as moradias improvisadas, nas calçadas ou nas áreas sob viadutos e/ou passarelas. Como

pensar, então, nesses limites tão definidos entre casa e rua quando se trata de discutir as casas na

rua? Numa primeira tentativa na direção de encontrar uma das respostas possíveis para essa

questão é que vou me valer do diagrama acima.

A casa na rua poderia ser compreendida a partir de sua localização numa zona limítrofe

entre o mundo da casa e o mundo da rua, onde existe uma interseção entre dois universos

distintos demonstrando que os limites entre casa e rua são fixos e estanques quando se trata da

estrutura física de ambos, pois quando se trata do conteúdo das representações e valores de cada

um desses universos, é possível perceber que seus limites são fluidos existindo a possibilidade de

interpenetração e comunicação, como já apontou DaMatta. O que desejo ressaltar é que a

existência de uma moradia na rua implica a conjugação dos dois lugares do espaço − casa e rua −

num mesmo local. Daí ser possível dizer que eles não só se comunicam, mas coexistem. A

coexistência é possível porque os habitantes dessas moradias improvisadas nas ruas desenvolvem

atividades próprias do mundo da casa como também do mundo da rua. Eles realmente vivem a

interseção entre os dois mundos, lançando a possibilidade de pensar além da comunicação e inter-

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relação entre casa e rua. Além disso, torna possível que sua compreensão seja realizada a partir

de uma tríade − casa, rua e casa na rua − e não de uma oposição binária.

De acordo com Dumont (1988), a classificação binária é insuficiente porque considera

simétricas oposições que não o são e “... peca por um igualitarismo deslocado que esvazia a

idéia de seu valor.” (p.234). A distinção hierárquica prevê o englobamento de contrários

implicando mais do que uma oposição, pois ela “solda” “... duas dimensões de distinção: entre

níveis e no interior de um nível.” (Ibidem: 233) Isso implica que a oposição se dá em pelo menos

dois níveis diferentes, que estão eles mesmos em relação hierárquica, sendo que um nível pode

estar contido no outro. Em se tratando da casa, da rua e das casas na rua, existe um nível em que

casa difere de rua (casa/rua) e um outro em que a casa pode ser identificada com a rua (as

referências à abertura dos portões e varandas das casas em dias festivos como se a rua adentrasse

a casa, e também pela referência que faço à casa como sendo um dos lugares do espaço, assim

como a rua) (casa/rua::rua/casa); ocorre aqui uma primeira inversão e o englobamento de um

nível por outro. Entretanto, há ainda um terceiro nível: as casas na rua. Aqui compara-se o

conjunto casa/rua, casa/rua::rua/casa com um terceiro termo casa na rua. Com este terceiro

termo instala-se um último nível. Nele existe um espaço interior (casa) qualitativamente diferente

do exterior (rua), ele é outro, mas também, por vezes, simultaneamente o mesmo. É como se o

espaço exterior tivesse uma continuidade no interior da casa. Isto é perceptível quando, ao

adentrar essas casas, nos deparamos com vários objetos do mundo da rua: desde o papelão que

muitas vezes serve como cobertura da parede até o móvel encontrado no lixo que passa a compor

os ambientes da casa. Essa continuidade do espaço exterior no interior também pode ser

percebida devido à proximidade com o espaço rua. As casas na rua acabam tornando-se mais

permissivas no que se refere à inter-relação e comunicação com o mundo da rua, por mais que

seus moradores desejem demarcar, com as moradias improvisadas, o limite entre casa e rua.

1º nível: oposição casa/rua

casa casa

rua

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2º nível: casa/rua::rua/casa

rua casa casa

casa r rua

3º nível: casa na rua

casa casa

rua

é

casa na rua

É importante perceber que na passagem de um nível a outro a casa aparece como uma

categoria englobadora e também é a partir dela que percebe-se as oposições se invertendo.

Pensando a partir das oposições hierárquicas de Dumont, é como se a casa estivesse no topo da

hierarquia ordenando e, por vezes, sendo subordinada aos espaços exteriores a ela.

Em sua análise da casa Kabyle, Bourdieu (1972) busca demonstrar como ela pode ser

compreendida em termos de sua organização interna como a inversão do espaço exterior, ou seja,

de seu oponente. Ela seria o espaço das mulheres em oposição, ou melhor, como uma inversão do

espaço exterior − o mundo dos homens. Mas Bourdieu (op. cit.) também ressalta que

“esses dois espaços simétricos e inversos não são apenas intercambiáveis, eles são, o espaço interior precisamente teria sido apenas a imagem inversa, ou o reflexo em um espelho do espaço masculino. (...) A casa é um império dentro de um império, mas que fica sempre subordinada porque, mesmo quando apresenta todas as propriedades e todas as relações que definem o mundo arquetípico, fica um mundo ao contrário, um reflexo inverso. O homem é a luz de fora, a mulher a luz de dentro. A aparência de simetria não deve enganar: a luz do dia não é senão aparentemente definida em relação à luz da noite; de fato, a luz noturna, masculina feminina, fica ordenada e subordinada à luz diurna, à luz do dia, isto é, ao dia do dia.” (Bourdieu, 1972:59) (Tradução livre) (Grifos meus)

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As análises de Dumont, Bourdieu e DaMatta, que remontam à questão das oposições

hierárquicas permitem que se pense a casa como uma categoria englobadora com um lugar e um

papel importante nos contextos onde se localiza. Pensar a casa na rua a partir dessa concepção é

pensá-la como um dos níveis da inter-relação entre os lugares do espaço ─ casa e rua ─, é pensá-

la como uma das inversões possíveis que ocorre nesse ato de comunicação entre esses dois

lugares, pois é como se fosse uma das possibilidades da casa, como categoria englobadora, conter

a rua e ao mesmo tempo se subordinar a ela, visto que as casas na rua são ordenadas de

determinada forma, não só, mas também, pelo fato de se localizarem em áreas e locais

considerados de acesso e trânsito de pedestres.

2.2. A CASA NA RUA : UM NOVO LUGAR DO ESPAÇO

Após essa incursão no “mundo das oposições hierárquicas”, passo a uma outra

possibilidade de compreensão das casas na rua. Agora me detenho a pensar o universo das casas

na rua como a inversão da inversão, ou seja, as oposições casa/rua − rua/casa, para poder falar de

um novo conjunto de valores diferente daquele dos lugares do espaço casa e rua; de um novo

contexto, que também diverge daquele em que se situam “nossas” casas e a rua propriamente

dita; e de uma nova particularidade das paisagens urbanas contemporâneas. Dizer que buscarei

tratar da inversão da inversão significa não me ater exclusivamente à discussão das casas na rua a

partir da oposição entre os dois lugares do espaço − casa e rua −, e seus desdobramentos;

significa deter o olhar nas ruas da cidade e pensá-las não como um dos lugares do espaço, externo

às casas, que vem sendo englobado por estas últimas, mas, pelo contrário, como um dos lugares

do espaço que está sendo palco de novas práticas, novos usos e, conseqüentemente, novos

valores. Enfatizarei, é claro, as moradias improvisadas como um desses novos usos e como uma

das possibilidades dessa inversão que pode fazer da rua também um lugar do espaço englobador.

Meu trabalho de campo7 tornou claro que, para discutir o fenômeno da população de rua

em Belo Horizonte é preciso entender o que é um maloqueiro, um trecheiro, um andarilho, uma

maloca etc, ou seja, é preciso enfocar as particularidades das experiências dos sujeitos moradores

das ruas, praças e áreas sob viadutos da cidade buscando entender como elas podem tornar

7 No próximo capítulo haverá uma apresentação do meu trabalho de campo.

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inteligíveis conceitos outros, próprios das ciências sociais, tais como: identidade, estilo de vida,

ideologia, cultura etc. A partir da circunstancialidade, de um contexto específico, é possível uma

interpretação do fenômeno que não se pretende generalizável, mas sim poder generalizar dentro

dele8.

Para superar os limites da análise estruturalista que privilegia a oposição, me apoiarei na

antropologia interpretativa para explicar a rua não como a exata oposição da casa, mas a partir de

valores e normas que são próprias de seu universo. A casa na rua, ou melhor, a rua como um dos

lugares do espaço que tem sido palco de novos usos e práticas por sujeitos que se apropriam de

algumas de suas esquinas, calçadas, praças que as circundam e áreas que a contornam para

adotarem-nas como locais de pernoite ou moradia, não pode ser considerada apenas como um dos

lugares do espaço que passa a ser transformado em cópia ou em tentativa de reprodução da casa e

sim como uma possibilidade de sobrevivência no contexto da trajetória, tanto pessoal quanto

habitacional, de vários desses sujeitos. Deve então ser pensada a partir de suas particularidades

que, atualmente, podem ser expressas através desses novos usos e práticas que englobam um

conjunto de valores e códigos que não só fazem referência a experiências anteriores de moradia

como também ao aprendizado sobre a vivência no “mundo da rua”. A conjugação das

experiências e trajetórias origina uma nova maneira de viver e conceber os lugares do espaço −

casa e rua − pois permite que as ruas incorporem novos códigos e valores relativos à moradia e ao

seu movimento cotidiano das mais diversas identidades; ela passa a comportar a vizinhança, a

solidariedade, a intimidade e a amizade, como também as desavenças, os riscos e dificuldades de

uma forma de sobrevivência travada no limite de dois mundos conjugados num só: rua e casa. No

cotidiano das ruas, rostos estranhos passam a se reconhecer não só pela semelhança da

sobrevivência forjada por meio das atividades desenvolvidas na rua como também pela nova

relação estabelecida com a rua: a de moradia.

Essa nova forma de habitar reflete não somente o momento conjuntural de acirramento

da miséria no país como um dos reflexos da falência das políticas públicas habitacionais para a

população de baixa renda, mas também um novo contorno para o desenho das calçadas, praças e

áreas sob viadutos: elas têm elementos novos que lhes conferem esse novo formato. Passam a

comportar não somente os clássicos mendigos como também novas categorias que, além de

transformarem esses locais em moradias, passam a sobreviver das atividades que a rua lhes

8 Cf. Geertz (1989:36)

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permitem desenvolver, como a mendicância e a coleta de papel, vidro, plástico e alumínio para

reciclagem.

O espaço rua e seus sub-espaços (praças, calçadas e os baixios de viaduto) passa a

abrigar um novo tipo de prática até então reservada à mendicância: a sobrevivência por meio de

outras atividades desenvolvidas no “mundo da rua”. A rua e seus sub-espaços começam então a

ditar “regras” de comportamento e sobrevivência no seu interior que são transmitidas

informalmente entre seus ocupantes, mas se fixam e fazem valer seus princípios. Desta forma, um

novo contexto se desenha nas grandes cidades, um contexto repleto de vidas que se mantêm e se

reproduzem no espaço rua e seus sub-espaços de acordo com “regras”, princípios e valores

próprios desses novos usos e práticas.

A transformação de alguns espaços públicos em espaços de moradia revela exatamente a

existência de novos jeitos de morar que, muitas vezes, buscam uma adaptação do que já se viveu,

em termos de experiência habitacional, conjugados com a realidade do “mundo da rua”. Isto

significa que as casas na rua se constituem em espaços de realização das atividades domésticas

típicas, como preparação das refeições, arrumação dos cômodos internos e do entorno da

moradia, lavagem das roupas e utensílios de cozinha etc, mas também comportam atividades

outras como armazenamento do papel e dos outros objetos coletados, seja para a venda ou como

reserva de material para a manutenção, ampliação ou deslocamento da casa, ou mesmo pensando

na construção de outra.

Esses “novos jeitos de morar” expressam também uma nova relação entre os usuários e

o espaço ocupado, pois, para os moradores da rua, esse espaço deixa de ser simplesmente local de

passagem e movimento e torna-se também local de pausa e descanso. É onde eles permanecem,

onde se localizam na cidade. Além disso, eles personalizam os espaços ocupados, transformam

espaços públicos em lugares. Eles imprimem suas marcas ao se fixarem nos mesmos, a partir de

instalações temporárias que comportam apenas o pernoite ou das instalações permanentes quando

casas são construídas e transformam a paisagem dos baixios de viadutos. Um espaço, a princípio

vazio, onde ocorre a improvisação de uma casa, a instalação de várias ‘barracas’ ou, ainda, a

permanência noturna, significa que ele passa a ser “preenchido” não somente por pessoas e

objetos, mas também por novos hábitos e usos. Eles começam a se identificar com um lugar

específico que é conformado de acordo com as atividades que passam a desenvolver ali, sejam

elas morar, dormir ou trabalhar. A partir daí, ou seja, do “preenchimento” do espaço com homens

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e atividades, é possível apontá-lo como sendo um lugar com novo formato, nova dimensão e nova

possibilidade de utilização. “O espaço transforma-se em lugar na medida em que adquire

definição e significado.” (Tuan,1983.:151) Isto é, a transformação do espaço em lugar se daria a

partir dos usos e hábitos que os sujeitos ali instalados passassem a desenvolver e que os

possibilitaria nominá-lo como o lugar onde moram e/ou trabalham, como também o lugar onde

estabeleceram laços e relações sociais e afetivas.

Discutindo a diferenciação que pode ser estabelecida entre as noções de espaço e lugar,

Tuan (op.cit.:6) assinala que

“Na experiência, o significado de espaço freqüentemente se funde com o de lugar. ‘Espaço’ é mais abstrato do que ‘lugar’. O que começa como espaço indiferenciado transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor (...) Se pensamos o espaço como algo que permite o movimento, então lugar é pausa; cada pausa no movimento torna possível que a localização se transforme em lugar.”

De acordo com Ferrara (1993:21), é pelo “... uso que o homem se apropria do espaço

ambiental, identificando-se e se identificando com ele...”. Isto significa que a apropriação do

espaço rua e seus sub-espaços se concretiza por meio dos usos implementados pelos sujeitos que

deles se apropriam. Essa apropriação permite que os moradores das ruas e calçadas se

identifiquem como sujeitos que fazem parte do cenário das metrópoles, como também permite

que eles se identifiquem com o espaço ocupado. Avançando em sua discussão Ferrara (op. cit.)

também afirma que o uso é um elemento que “... conforma e informa o ambiente.” (Ibidem),

tornando possível a transformação de um espaço em lugar.

As impressões sobre o “morar na rua” variam. Aqueles que constroem suas casas nos

baixios de viaduto e passarelas, em geral dizem que “não moram na rua”, fazem uma distinção

entre os dois lugares do espaço demarcando os limites entre um e outro para demonstrar a

distância e a diferença entre os dois ambientes.

“Eu não acho que moro na rua. Morar na rua é assim, você não ter onde, um local fixo p’ra você ficar, certo?! Quer dizer, morar na rua p’ra mim significa assim, você pegar um saco, colocar nas costas e sair andando. Dorme numa praça, noutro dia dorme na porta de um boteco, na porta de uma loja, aí eu sei que é morar na rua. Agora embaixo do viaduto acho que desde que tem um barracãozinho nem que for de plástico, isso não é morar na rua. Você ‘tá cuidando, é um lugarzinho ali que você não vai sair dali, vai ficar batendo cabeça p’ra cima e p’ra baixo sem lugar de ficar, isso, não é morar na rua não.” (Bela, moradora do Viaduto da Avenida Silva Lobo sobre a Via Expressa (cf. Mapa 1), 4/08/1994)

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Mapa 1

Viaduto da Avenida Amazonas sobre a Avenida Silva Lobo e Viaduto da Avenida Silva Lobo sobre a Via Expressa

“Eu não considero assim que eu moro na rua não, considero que mora na rua esses cara que anda dormindo em beira de esquina, em beira de poste, enchendo a cara de cachaça, cheirando ‘thiner’, cheirando cola, fumando maconha pela rua afora, hoje come, amanhã não come. Eu não, eu tenho minha vida, eu tenho que levantar de manhã, eu tenho que tomar meu café, eu tenho que comer meu pão, eu tenho que almoçar, eu tenho que jantar, eu tenho que tomar meu banho, eu tenho que me vestir, eu tenho que trocar de roupa, então eu tenho minhas necessidades. Agora esse pessoal que mora na rua não necessita de nada não. Eles vivem por viver, trabalha p’ra beber e vive por viver.” (Joselito, morador de calçada na Avenida do Contorno, próximo à Rodoviária,(Cf. Mapa 2) 23/08/1994)

Mapa 2

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Avenida do Contorno próximo à ASMARE a à Rodoviária

Existe aí uma luta pela imposição das representações dominadas ou, melhor dizendo,

pela reformulação das representações dominantes. Os moradores de áreas públicas não se

atribuem a denominação de morador de rua, pois eles têm um lugar na cidade para onde sempre

retornam e mais, é ali que eles permanecem, sem a necessidade de constantes mudanças. Eles

desejam ter reconhecido o seu direito de morar a partir da construção de seu “barraco”, seja este

onde for, considerando-o como sua casa, seu lugar de localização na cidade. Surge então uma

nova oposição: a intinerância − o sujeito com o saco nas costas −, e a permanência − o sujeito que

improvisa seu “barracãozinho”. O espaço público − a rua − pode abrigar o intinerante, o

provisório, mas a partir do momento em que se dá a construção de um “barraco” nesse mesmo

espaço ele passa a comportar o universo do privado, da permanência, ele transforma-se em lugar

e deixa de ser um espaço despersonalizado.

Aqueles que perambulam pelas ruas e se utilizam de calçadas ou bancos de praças para

pernoitar têm uma relação mais estreita com a rua e seus sub-espaços pelo fato de demarcarem

seus locais de pernoite com o papelão e o cobertor que pela manhã são guardados nas mochilas,

nas sacolas ou escondidos9 em algum local próximo àquele do pernoite. O limite entre os dois

lugares do espaço é ainda mais fluido, mais tênue do que aquele entre casa e rua, é estabelecido

durante a noite e desfeito durante o dia. O limite de territórios é, então, entre o corpo e o chão,

entre o indivíduo e a rua e não entre a rua e a casa.

9 Eles usam a palavra malocar com o sentido de esconder. Por exemplo, eles dizem que malocam as cobertas durante o dia e as retiram à noite. Aqui pode-se perceber a referência ao termo maloca utilizado para nomear as casas na rua, como se fosse um local onde as pessoas não moram, mas se escondem. No próximo capítulo haverá uma discussão referente à maloca como casa.

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O pernoite é realizado por um certo período de tempo em um mesmo local, mas as

mudanças são freqüentes e por isso ele é sempre provisório. Entretanto, apesar dessa relação com

a rua e seus sub-espaços caracterizar-se pela temporariedade, principalmente no que se refere ao

pernoite, não somente porque retiram dela sua sobrevivência, por meio da mendicância ou das

atividades relacionadas à coleta do papel, papelão, latas de alumínio e garrafas plásticas e de

vidro, mas também porque estão mais interados de seus códigos e valores. Ou seja, essas pessoas

têm formas peculiares de sobrevivência no mundo da rua, têm formas próprias de comunicação e

transmissão de informação sobre o que acontece nesse mundo, qual a sua lógica, isto é, como ele

funciona. A escolha do local para o pernoite não é aleatória, pois existem alguns critérios para a

definição de quais os melhores lugares. Aqueles locais tranqüilos, sem muito movimento de

pedestres e de policiais, onde não existe pressão da vizinhança e tampouco do poder público em

relação à permanência nos mesmos durante a noite são eleitos como os lugares ideais. A rede

informal de comunicação existente entre eles é que fornece as informações a respeito dos “bons

lugares” de pernoite como também dos locais ou instituições onde são fornecidas refeições,

lanches e algum tipo de atendimento médico ou social à população de rua. O pernoite e a própria

permanência em algum local na cidade levam em conta esses fatores.

“Eu ficava um certo tempo num lugar, depois mudava, deslocava pra outro local. Tinha uns ponto debaixo de umas marquise, juntava um papelão e ali eu ficava. Eu saia andando à noite, o lugar que fosse mais sossegado, menos movimentado. Aquele lugar que eu achava que eu poderia ter um pouquinho mais de tranqüilidade, ali eu ficava.” (Charles, belorizontino, ex-morador de rua, entrevistado na fraternidade Espírita Irmão Glaucus em 08/10/1994) “Atualmente eu tô morando, eu tô dormindo lá no Barro Preto, debaixo de marquis, né?!. Eu não tenho um lugar certo aqui em Belo Horizonte, apesar que eu procuro lugares assim mais calmos, em bairros. Lugar que passa menos gente, porque no centro de Belo Horizonte é muito perigoso, tem muito malandro, tem muitas pessoa maldosa.”(Marcelo, paulista, morador de rua, entrevistado na Fraternidade Espírita Irmão Glaucus em 24/09/1994)

Durante a noite esses sujeitos irão estabelecer uma espécie de vínculo com determinadas

calçadas, praças ou outras áreas da cidade, pois é nesse período que, de certa forma, eles se

estabelecem em algum lugar e, então, demarcam, minimamente, o território. Essa demarcação é

geralmente feita com a utilização do papelão que cobre o chão e do cobertor que cobre o corpo,

daí dizer que o limite entre as pessoas e a rua é aquele estabelecido entre o chão e o corpo. O

corpo fica protegido de um contato direto com a calçada sendo o papelão aquele que demarca o

limite da interação entre os sujeitos e a rua. Os indivíduos do “mundo da rua” buscam manter-se

imunes e protegidos do frio e da possível sujeira das calçadas, dos bancos das praças ou da

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soleira de uma marquise pela utilização do papelão, que serve como uma barreira contra o que

pode estar contido no chão e “penetrá-lo”, desde o frio até a sujeira.

Esse distanciamento da “sujeira” das calçadas e das soleiras das marquises, pela

utilização do papelão para o pernoite revela a ordenação do mundo que cerca o morador de rua,

isto é, pode ser compreendida como uma característica do seu estilo de vida e também como

forma de ordenar suas atividades cotidianas. A rua é o local atual da vivência e sobrevivência

desses sujeitos, onde eles permanecem todo o tempo, estabelecendo, em certos momentos,

durante o pernoite, por exemplo, um limite dessa interação entre eles e o espaço ocupado. Limite

este que demonstra a tentativa de ordenar o seu universo, visto que o distanciamento da “sujeira”

pode significar uma busca de recolocar as coisas nos seus devidos lugares.

Sobre a discussão acima, é preciso ainda considerar que a população de rua vive e

sobrevive muito próxima ao lixo, quando não sobrevive do mesmo. Ou seja, vivem próximos das

sobras, dos restos, do que não se utiliza mais, que se deseja longe do espaço doméstico e do

trabalho, vivem da coleta dessas sobras como uma forma alternativa de sobrevivência. Essa

proximidade do lixo e da sujeira da qual a sociedade quer se livrar para limpar e,

conseqüentemente, ordenar seus ambientes faz com que a população de rua seja, de alguma

forma, identificada como sujeitos que vivem desordenadamente, pois convivem lado a lado com

tudo que cotidianamente retiramos dos ambientes domésticos para ordená-los a partir da

colocação da sujeira no seu exterior. Coloca-se do lado externo das casas, dos edifícios

residenciais e comerciais tudo que é considerado lixo, sobra, resto, tudo que não serve mais.

Aqueles que hoje vivem dessas sobras que não fazem parte do ambiente doméstico ou de trabalho

são então, considerados por muitos dos que não vivem a experiência da rua como local de

trabalho e/ou moradia, como sujeitos que vivem fora da ordem, pois imiscuídos que estão no lixo

e na sujeira é como se não demonstrassem preocupação alguma em ordenar seus ambientes.

Discutindo a questão da impureza, Douglas (1991:50) assinala que ela é concebida

“...como uma espécie de compêndio de elementos repelidos pelos nossos sistemas ordenados.” É

dessa forma que repelimos o que parece estar fora do lugar dizendo que os utensílios de cozinha

não podem, por exemplo, estar no banheiro, que as coisas que são da rua não podem estar dentro

de casa. Segundo Douglas (op. cit.), frente à impureza o nosso comportamento busca “...

condenar qualquer objecto ou qualquer idéia susceptível de lançar confusão ou de contradizer

as nossas preciosas classificações.” (p.51) Vale também chamar a atenção para a noção de

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“sujeira” e “pureza” discutida por Douglas (1991) como representante de um sistema

organizado de significados enquanto uma forma de organizar o mundo que nos cerca. Ou seja, a

partir das noções de “pureza” e “sujeira” buscamos uma certa ordenação do universo que nos

cerca. “Tal como a conhecemos, a impureza é essencialmente desordem. (...) A impureza é uma

ofensa contra a ordem. Eliminando-a, não fazemos um gesto negativo; pelo contrário,

esforçamo-nos positivamente por organizar o nosso meio.” (p.14)

Algumas reportagens jornalísticas e opiniões do senso comum chegam a dizer que a

população de rua vive desordenadamente porque, por exemplo, não se distancia do lixo e da

sujeira. Isto denota uma atitude etnocêntrica que coloca fora do lugar classificações e valores que

não encontram guarida no “mundo da rua”. Esses moradores de rua incorporam o ideal da

limpeza e da higiene como de fundamental importância para que não sejam confundidos com os

‘maloqueiros’, por exemplo, como também estão demonstrando a sobrevivência de valores de sua

trajetória pessoal e habitacional anterior à chegada às ruas. Como se fosse usual a identificação

deles com a sujeira, eles se vangloriam ao contar que a vizinhança refere-se a eles como limpos

apesar de serem moradores de rua.

“o pessoal da creche fala assim: você mora debaixo do viaduto mas seus meninos vêm todo dia limpinhos. E todo vez que a gente sai, toda vez que eu vou na ‘Cabana’7 passear, nós saímos todo mundo limpo.(...) O pessoal ali do bar quando eu vou lá, todo mundo fala: nossa você mora ali debaixo, mas seus meninos andam limpinho, você também anda limpinha, você é cuidadosa, suas roupas estão sempre no varal secando limpinho.” (Vera, moradora da passarela na Vila Oeste, (Cf. Mapa 3), 24/09/1994)

Mapa 3

7 “Cabana” é uma favela localizada na região oeste de Belo Horizonte, próxima ao local onde situa o viaduto adotado como local de moradia por essa família.

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Passarela do Bairro Vila Oeste

Essa fala é reveladora dos preconceitos alimentados pelo imaginário do puro e do impuro,

da sujeira e da limpeza. Ou seja, o viaduto não condiz com o que se construiu simbolicamente

como referências aos conceitos de pureza e limpeza, entretanto a moradora desse espaço público

consegue aparecer aos outros como alguém que preserva valores e regras de uma sobrevivência

que, a princípio, não poderia ocorrer em um baixio de viaduto onde são a sujeira e as impurezas

que têm lugar. Essa moradora procura contradizer o que o senso comum denomina como próprio

e legítimo para os baixios de viadutos, organizando seu mundo de acordo com valores outros que

são condizentes com ambientes domésticos que não se localizam em áreas públicas.

Alguns urbanistas, preocupados em manter as cidades limpas e, mais do que isso, de

deixar seus moradores cada vez mais longe da sujeira e de quem possa ser identificado com ela

adotaram o que se pode denominar de “arquitetura antimendigo”. Em reportagem do jornal

“Estado de Minas” de novembro de 1994, Teixeira da Costa define a proposta dessa arquitetura

como sendo a “... construção de prédios sem marquises ou gradeados, com óleo queimado no

passeio e até chuveiro10 aberto de duas em duas horas durante a madrugada, que são usados

para afugentar as pessoas, é, os mendigos, que dormem na rua.” (Estado de Minas, 06/11/1994,

10 Em Belo Horizonte, foi possível observar essa prática na rua da Bahia em frente ao Ginásio do Minas Tênis Clube, zona sul da cidade, onde a noite inteira escorria água pela calçada para que alguns moradores de rua, já antigos e conhecidos de toda vizinhança, não permanecessem ali.

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p.2) Torna-se claro como é violento o conflito entre segmentos urbanos sem que se afigure sequer

como conflito e tampouco como uma forma de violência.

O jornal “Folha de São Paulo” de dezembro de 1996 também publicou uma reportagem

que faz referência a algumas cidades dos Estados Unidos que elaboraram leis antimendigos, pois

consideravam como prática ilegal deitar em uma calçada pública. Outras cidades chegaram a

criar bancos nas praças e parques onde fosse impossível dormir, um outro exemplo de

“arquitetura antimendigo”. Tudo isso indica uma tendência não só de retirar das paisagens

urbanas a figura do mendigo, do morador de rua, como também de reforçar o estigma da

população de rua como marginais e vagabundos, buscando distanciá-los ainda mais do convívio

social em espaços que são públicos na cidade. A distância, o afastamento e a retirada desses

sujeitos do cenário urbano através dessa “nova arquitetura” também reflete a busca pela

manutenção da “ordem” por meio do controle de espaços suscetíveis de serem apropriados pelos

moradores de rua. Assim, a escolha do local para o pernoite ainda tem que levar em conta esses

critérios que a arquitetura de alguns edifícios vem adotando para não tê-los como vizinhos.

A partir de depoimentos de moradores de rua de São Paulo, Vieira (1992) adotou uma

tipologia para classificá-los que ressalta como as várias situações de permanência na rua

propiciam que sejam percebidos diferentemente pelos outros e por eles mesmos. Existem aqueles

sujeitos que ficam na rua, os que estão na rua e os que são da rua. De acordo com essa

classificação11 os que ficam na rua, o fazem eventualmente, somente quando não conseguem

vagas em abrigos ou não têm dinheiro para pagar uma pensão. Esta situação pode ser resultado do

desemprego, geralmente na construção civil, onde além do trabalho recebem moradia em

alojamentos da obra. Entre estes encontram-se também os migrantes que acabaram de chegar à

cidade e ainda não conseguiram emprego e tampouco um lugar para ficar. Eles têm medo de

dormir na rua e tentam solucionar esse problema o mais rápido possível recorrendo às instituições

que atendem a população de rua ou um emprego ou mesmo um “bico” que possa lhe garantir o

dinheiro para o pagamento de uma pensão.

Os que estão na rua a alternam com abrigos e pensões e já não a sentem como um local

tão ameaçador. Começam a participar da rede de comunicação e troca de informações da rua e

passam a freqüentar as instituições que oferecem algum tipo de atendimento à população de rua.

Eles procuram empregos e também fazem “bicos”.

11 Cf. Vieira (1992:94,95)

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Por fim, existem aqueles que são da rua e já encontram-se debilitados física e

mentalmente devido a má alimentação, às condições precárias de higiene e ao consumo do álcool.

Com efeito, torna-se difícil ser aceito em algum emprego, tanto na construção civil quanto em

trabalhos temporários, mesmo que recorra ao discurso do trabalhador desempregado que perdeu

os documentos. É junto a esse grupo que a rua ganha cada vez mais importância, pois passa a ser

o local das relações pessoais e do trabalho, ou seja, onde ele obtém a sua sobrevivência, por meio

dos locais que fornecem refeições e dos grupos que passam pelas ruas distribuindo lanches. A rua

passa a ser seu local de moradia de forma definitiva.

Pensando a partir dessa classificação e confrontando com meus dados de campo,

acredito que ela seria redutora para classificar os “nativos” com os quais mantive contato. Isto

porque tal tipologia poderia ser aplicada somente para aqueles sujeitos que fazem pernoite em

calçadas sob marquises ou em bancos de praça. Entre esses, é possível encontrar os que ficam na

rua, os que estão na rua e os que são da rua. Entretanto, junto aos sujeitos que adotam espaços

públicos como locais de permanência na cidade, essa tipologia não é suficiente para abarcar as

características de sua forma de morar e sobreviver em tais espaços. A grande diferença entre eles

é a forma como se apropriam dos espaços ocupados, ou seja, me deparei com sujeitos que

improvisam as moradias em baixios de viadutos e passarelas constituindo o que denomino como

instalação permanente. E me deparei também com os sujeitos que ocupam espaços públicos como

locais de pernoite, constituindo, então, instalações provisórias. “‘Tá com seis anos que eu sempre fico aqui, vou ao norte, volto de novo porque sempre eu tenho uns amigo na rua , somos papeleiro. Meus tios também moram aqui, mas parente não adianta, tem que ser os amigos da rua.” (Francisco de Assis Bahia da Silva, morador de rua, pernambucano, entrevistado na Fraternidade Espírita Irmão Glaucus em 24/09/1994) “Sou paraibano do sertão do nordeste. Desde o dia 27 de maio de 94 que eu ‘tô aqui em Belo Horizonte nas rua. Antes eu passei numa cidade que se chama Três Rios, me informaram que ela fica no estado do Rio, aí vim p’ra cá direto. Lá no nordeste é um lugar muito difícil;, ‘tá com mais de sete ano que não produz nada lá, num sabe? ‘Ta com mais de sete ano que não produz um grão de nada, nem feijão, nem arroz, porque não chove que dê p’ra produzir nada. Eu trabalhava na agricultura, mas lá nem isso ‘ta produzindo, então eu digo vou m’embora, ‘debandá’ nesse meio, vou caça um lugar que me dê pelo menos um emprego. Desde que eu cheguei eu estou na rua. A vida na rua é um engano, porque a pessoa espera p’ro negócio de trem de sopão que passa à noite. A gente ‘ta debaixo das marquise e chega o pessoal. Tem até umas comunidades dessas mesmas, uns grupo espírita, distribuindo um sopão com pão, uns café com leite e aí você vive escapando com isso.” (Raimundo Furtado da Silva, paraibano, morador de rua, entrevistado na Fraternidade Espírita Irmão Glaucus em 24/09/1994) “No início eu comecei a trabalhar com 14 anos ainda estava com os familiares. Trabalhei até o período de 18 anos. Depois que eu servi o exército eu trabalhei mais um ano. Trabalhei numa conservadora - Adservis. Isso foi em 85,86. Aí em 86 eu fiquei desempregado, aí eu comecei a

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arrumar outro tipo de serviço, trabalhando p’ra fora. Trabalhei no estado de São Paulo, em Campinas. Trabalhava em obra como servente, na construção civil e lá tinha alojamento p’ra gente morar. No período de 89 eu voltei. Voltei, fiquei mais uns tempos com o pessoal da família aí eu tive uns problema, uma dificuldade que eu tive de convivência com a família, aí eu resolvi sair e levar uma vida sozinho. Só que eu ‘tava muito mal estruturado e eu acabei ficando na rua. Eu ficava um certo tempo num lugar, depois mudava, deslocava para outro local, né. Tinha uns ponto debaixo de umas marquise, juntava um papelão e ali eu ficava. De 89 a 90 eu andei bem desmazelado. quando chegou em 90 eu tive um privilégio, eu acredito, uma porta abriu p’ra mim e eu consegui sair das garras do vício do alcoolismo.(...) eu fiquei um período de 3 anos e 4 meses sem colocar qualquer tipo de bebida na boca, sofrendo tentação, passando dificuldades. No início quando eu parei, eu fiquei ainda uns 4 meses morando na rua debaixo de marquise, passando dificuldade, sentindo frio, sem cobertor, sem nada, até que voltando as minhas condições normais de ser humano eu consegui arrumar um emprego de biscate e aí consegui pagar uma pensão e fui reformulando a vida, fui trocando de roupa, vestindo um pouquinho melhor, cada dia alimentando melhor, procurando atividades que podiam me ajudar a ocupar o tempo num sobrando espaço vazio e nisso eu retornei a sociedade novamente. a experiência que eu tive na rua foi muito boa, muito importante.” (Charles, belorizontino, ex-morador de rua, entrevistado na fraternidade Espírita Irmão Glaucus em 8/10/1994)10

Esses depoimentos revelam qual o caminho percorrido por alguns dos sujeitos do

“mundo da rua” para iniciarem sua nova experiência de sobrevivência. O trabalho fez parte da

vida de todos eles, assim como a vida junto à família. O trabalho, ou a falta dele, impulsionou o

início das mudanças na vida desses sujeitos. Entretanto, a rua passa a ser o novo referencial de

suas existências e, conseqüentemente, ordena o cotidiano de uma nova forma, seja pelo trabalho

desenvolvido nas ruas, seja pelas visitas a instituições que oferecem algum atendimento a eles.

“A rua é um lugar bom. Eu acho que serve p’ra morar, porque um lugarzinho que dá p’ra dormir eu durmo tranqüilo. (...) Eu gosto da rua, gosto de ficar com essas pessoas que sofre. (...) Na rua eu estou tendo mais conforto que em casa.” (Rivânia, moradora de rua, mineira, entrevista na Comunidade Reviver em 29/09/1994) “Morar na rua p’ra mim é uma lua de mel, porque eu acho doce, melhor do que em casa. Não pago água, não pago luz, não pago comida, não pago nada, é bom, eu sou feliz. (...) a rua é um lugar que eu acho excepcionalmente legal.” (Paulo César, morador de rua, mineiro, entrevistado na Comunidade Reviver em 29/09/1994)

Esses últimos relatos revelam como alguns já estabeleceram fortes vínculos com a rua e

referem-se a ela como um local de morar, mencionada como opção e não como contingência que

a conjuntura familiar e econômica imprimiram em suas vidas.

10 Esses depoimentos foram coletados junto a moradores de rua que freqüentavam o Centro Espírita Irmão Glaucus, localizado no bairro Padre Eustáquio, região noroeste de Belo Horizonte, que faz um atendimento à população de rua aos sábados. A instituição oferece atendimento médico e dentário, roupas, banho, corte de cabelo e uma sopa.

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O Poder Público,11 discorrendo sobre as concepções que esses sujeitos têm dos lugares

do espaço − casa e rua −, ressaltam as esferas pública e privada como características que os

perpassam e ao mesmo tempo são objeto de conflito nas relações que nele estabelecem. A rua −

lugar do espaço por excelência da esfera pública − é concebida e vivida como um reduto privado,

pois passa a contar com alguns moradores que, além de desenvolverem suas atividades

ocupacionais no seu cenário, fazem dela local de moradia realizando, então, atividades

domésticas e íntimas nesse espaço, concebido como público. O que ocorre não é uma inversão

das atividades desenvolvidas no mesmo, mas a incorporação de novas práticas ao espaço público,

que passa a comportar também outros usos que lhe conferem, pelo menos em algumas de suas

esquinas, calçadas, bancos de praça ou baixios de viaduto, essa característica de espaço privado.

Isso denota uma nova relação entre sujeitos das paisagens urbanas contemporâneas que adotam

lugares públicos como locais de moradia, instigando a discussão entre os limites e as fronteiras

entre as esferas pública e privada.

“Em alguns casos, as pessoas demonstram a liberdade em lidar com aqueles hábitos, que

nós sabemos que são hábitos privados, no espaço público de uma forma muito natural, de uma forma muito espontânea, que aí nos permite fazer uma leitura de que aquele espaço que para nós é um espaço público, para eles é um espaço privado. Ou seja, a casa da rua é uma casa, é a moradia para eles assim como a casa é para nós.(...) as pessoas vão construindo uma nova relação com a rua, que é uma relação de concebê-la não como espaço público, mas como espaço privado, e ao mesmo tempo de também ter uma relação muito pública com esse espaço (...) a rua passa a ser um universo de lidar com todos e ao mesmo tempo a rua é o espaço privado que é onde eles se sente dono, é onde ele vive, é onde ele sobrevive. Então a gente percebe que existe essa fragmentação ao mesmo tempo, de transportar essa imagem, esse universo imaginário da casa para a rua e se apropriar do espaço público e sentir aquele espaço enquanto privado, mas também de estar tendo uma relação com um espaço público como um espaço público. (...) Na maior parte dos casos, eles não exigem que as pessoas saiam da rua para que eles tenham espaço, mas eles exigem que as pessoas aceitem que aquele espaço é deles. E é uma relação de conflito muito legal que a gente percebe assim “(Vânia R. Rodrigues, Coordenadora do Programa de Apoio à População de Rua, SMDS, 20/08/1996)

“Ao mesmo tempo que os cidadãos, por exemplo, ligam p’ra nós dizendo ‘tira o povo da rua porque o espaço é público, então é de todo mundo. Tem também o povo que mora na rua e diz ‘esse espaço é meu’. As pessoas se apropriam do espaço que é público e delimitam território. Então você fica trabalhando no limiar do público e do privado p’ra população como um todo e p’ra população dita, chamada, população de rua.” (Simone A. Albuquerque, Diretora do Departamento de Ação Básica, SMDS, 26/08/1996)

No tópico anterior, foi discutida a questão dos limites entre casa e rua como tênues,

fluidos. Seria possível dizer o mesmo em relação a espaços públicos e espaços privados? O 11 O Poder Público Municipal aqui enfocado na figura dos técnicos da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social.

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fenômeno da casa na rua realmente sugere uma reflexão a respeito desses limites, pois comporta

num mesmo espaço essas duas esferas: público e privado. O próprio discurso do Poder Público

revela o conflito vivido não somente pelos moradores de rua que se apropriam e delimitam

territórios em espaços públicos como também dos demais cidadãos, não moradores da rua, que

alegam a qualificação de espaço público para justificar a retirada de alguém que dele se apropria.

Isto torna claro que as representações sobre o “público” e o “privado” em relação ao espaço estão

em jogo, pois conforme os usos realizados no mesmo é que alguns cidadãos o caracterizarão

como público e passível de ser usufruído por todos da mesma maneira, enquanto outros dele se

apropriam, delimitando territórios e definindo os lugares de dormir, comer e trabalhar, pelo fato

de o perceberem e viverem como um espaço privado.

Deter o olhar sobre o fenômeno da casa na rua a partir do lugar do espaço − rua − onde

ele se localiza foi uma tentativa de enfocá-lo como uma das particularidades das paisagens

urbanas contemporâneas. A rua e seus sub-espaços − baixios de viadutos, praças, calçadas etc. −

passam a comportar novos usos e novas práticas, que por sua vez são reveladores de novos

valores e novos códigos que permitem não só a manutenção desses novos usos e práticas como

também a possibilidade de sobrevivência daqueles que são seus atores e autores. A vida desses

sujeitos no “mundo da rua” requer o conhecimento de certas normas de sobrevivência: como se

vive, do que se vive e com quem se vive no seu cotidiano. Segundo Santos (1996:119) “há uma

mentalidade de rua que oferece uma perspectiva diferenciada de olhar e viver a cidade.” Ela

associa essa mentalidade ao modo de viver da população de rua que, geralmente, carrega consigo

todos os seus pertences, ou seja, o seu mundo está nas suas costas. Ela ainda acrescenta que “à

semelhança do uso das mochilas, tão difundidas hoje em dia, pode-se falar numa pack mentality,

numa bag mentality, que é o signo universal do homem de rua. Da sacola ao carrinho de

supermercado, passando pela carroça, é nesse elemento que o homem de rua carrega seu

sistema de suporte de vida como uma extensão do próprio corpo.” (Ibidem) Vale lembrar aqui do

“veículo do sem-teto” projetado pelo artista Krzysztof Wodiczko, baseado na arquitetura do

carrinho de supermercado que serviria para facilitar algumas necessidades básicas dos sem-teto

como abrigar-se, dormir, sentar, transportar os pertences. Apesar de ser um objeto simbólico, sua

funcionalidade enuncia a possibilidade de mobilidade espacial para os sem-teto, pelo fato de

permitir andar pela cidade carregando suas posses armazenadas no veículo.12

12 Cf. Smith (2000)

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Esses sujeitos que estão, na maioria das vezes, desprovidos de casa, trabalho e família,

signos usuais que poderiam retratar sua identidade, têm no corpo sua expressão. As sacolas que

geralmente carregam contêm todos os seus pertences, alguns objetos de uso pessoal, roupas,

documentos, se tiverem, e, muitas vezes, uma garrafa de aguardente. Este é o mundo que

carregam e com ele se instalam nas calçadas.

O cenário urbano, em vez de contar somente com a antiga prática da mendicância que

também adota “pontos” para suas atividades e que adota a rua como local de convivência

grupal13, passa a contar com pessoas que conjugam atividades de trabalho e moradia num mesmo

local. Estas pessoas não se deslocam de seus “pontos” ao fim da realização das atividades que

lhes garantem a sobrevivência, ou melhor, elas não se apropriam dos “pontos” apenas para a

realização daquelas atividades. A apropriação de espaços públicos é ampliada no sentido de que

inclui a permanência nos mesmos ou em outros locais para a improvisação de moradias ou para a

adoção de “pontos” como locais de pernoite.

Essa particularidade confere um novo formato ao cenário urbano, permitindo que um

novo contexto se constitua a partir da construção de novas formas de viver que são adotadas no

“mundo da rua”, onde não ocorre simplesmente uma retradução ou uma transposição dos valores

do “mundo da casa” para a rua transformada em local de moradia, mas sim a construção de novos

valores, fruto de uma nova forma de sobrevivência nas cidades: moradias improvisadas nas ruas

− uma reinvenção do espaço doméstico e das relações de convivialidade.

CAPÍTULO TRÊS

INSTALAÇÕES PERMANENTES E INSTALAÇÕES PROVISÓRIAS: AS DIFERENÇAS INTERNAS DA POPULAÇÃO DE RUA

13 Sobre a atividade da mendicância cf. Stoffles (1977)

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No Capítulo Um discutiu-se como Belo Horizonte, uma cidade planejada para ser a

expressão da modernidade e do progresso da República em Minas Gerais, foi transformando

profundamente a sua paisagem urbana ao longo de seu desenvolvimento.

A cidade teve, sem dúvida, sua ocupação marcada pela segregação, pela dotação

diferenciada de equipamentos e melhorias urbanas e pela dificuldade de acesso a algumas áreas

por determinados segmentos da população. Inicialmente, a dificuldade de acesso era à zona

central da cidade por aqueles que não fossem funcionários públicos ou antigos proprietários em

Ouro Preto. Posteriormente, com a ampliação dessa zona central, a partir da incorporação de

alguns bairros que hoje compõem a zona sul da cidade, a dificuldade de acesso é sentida por

aqueles que não têm condições de “pagar” pelos serviços de infra-estrutura ali oferecidos. Além

disso, não se deve perder de vista que o processo de ocupação dos espaços da cidade teve como

um de seus pressupostos a segregação.

Entretanto, é importante ressaltar que a paisagem contemporânea da capital mineira é

fruto de processos vários travados entre o poder público e a população em torno do acesso aos

espaços da cidade: instalações em locais não previstos, resistência aos assentamentos designados,

defesa da imagem de cidade limpa, higiênica e organizada (pelo menos na área central

considerada o cartão de visitas do “Belo Horizonte”) etc. Embates que expressam um conjunto de

reivindicações dos diferentes segmentos e instituições sociais em torno dos espaços da cidade

cuja configuração atual resulta das várias apropriações e denominações forjadas ao longo de sua

história. Ou seja, a paisagem urbana atual de Belo Horizonte pode ser “lida” e compreendida a

partir dessas apropriações, denominações e usos que se fazem em seus espaços.

Neste capítulo buscarei, então, fazer uma leitura da cidade por meio das formas de

apropriação e uso dos espaços públicos, tais como ruas, praças e áreas sob viadutos e passarelas.

Indivíduos, famílias e grupos têm se apropriado desses espaços, fazendo deles seu local de

moradia e expressando uma das formas de enfrentamento ao problema da falta de moradia.

A partir da experiência da rua como local de moradia e/ou trabalho de um grupo de

moradores que entrevistei ao longo de oito meses de trabalho de campo, procurarei descrever

como se diferenciam uns dos outros exatamente a partir da forma como utilizam os espaços

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260

públicos ocupados. Alguns constroem “barracos” em baixios de viadutos ou sob pontes e

passarelas aproveitando parte dos pilares de sustentação, outros se instalam sob marquises

durante a noite. Instalando-se diferentemente nos espaços públicos da cidade, estabelecem

relações diversas com o mesmo, exibem hábitos peculiares para garantir ali a sobrevivência diária

e adotam novos valores que lhes permitem suportar essa “nova” forma de morar no espaço

urbano. Os lugares onde se instalam podem ser configurados como permanentes quando existe a

construção de uma moradia, ou seja, os “barracos”, as “malocas”; outras vezes não recebem essa

marca da permanência, pois a instalação nos mesmos é temporária, seja porque o indivíduo está

de passagem pela cidade porque é um “andarilho” ou porque ali ficará até o momento em que não

for “solicitada”, pela vizinhança ou pela polícia, a sua saída daquele local. Assim, o que desejo

demonstrar é como a percepção e a vivência no próprio espaço ocupado, no seu entorno e com a

vizinhança, seja ela composta por moradores de rua ou não, é relativa à forma como se instalam

nos espaços públicos e deles se apropriam.

Outro ponto a ser destacado refere-se às identidades sociais. De acordo com a forma

como se instalam nos espaços públicos, os moradores de rua se identificam de forma

diferenciada, daí a existência de várias denominações relativas às diversas formas de viver no

mundo da rua. Assim, também discutirei neste capítulo como a forma de instalação e ocupação de

um espaço público está colada a um conjunto de valores, hábitos e denominações próprias de

modos de viver bem específicos que não somente orientam as práticas desses sujeitos como

também expressam quem são essas pessoas que estão fazendo de espaços públicos locais de

moradia ou permanência temporária.

3.1. O FAZER ETNOGRÁFICO: UMA DISCUSSÃO SOBRE A AUTORIDADE E A SUBJETIVIDADE NO TEXTO ANTROPOLÓGICO

A tradição antropológica, como prescrita, emblematicamente, por Malinowski,

pressupôs nos seus primórdios o deslocamento geográfico como possibilidade de estudar o

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“outro”, a diferença. Ao apresentar as condições adequadas para a pesquisa etnográfica,

Malinowski assinala que o “pesquisador deve, antes de mais nada, procurar afastar-se da

companhia de outros homens brancos, mantendo-se assim em contato o mais íntimo possível

com os nativos. Isso realmente só se pode conseguir acampando dentro das próprias

aldeias.”(1984:21) A importância de viver entre os nativos está no fato de concretizar a

observação participante. Distante de sua terra natal, o antropólogo estará em contato direto com

os sujeitos de sua investigação e, além disso, terá a oportunidade de presenciar os fatos no

momento em que eles acontecem. Mas como transpor isso para uma análise antropológica de um

fenômeno que tem lugar em um centro urbano?

Sem desconsiderar a tradição antropológica da realização do trabalho de campo a partir

de um deslocamento geográfico, devo ressaltar que meus deslocamentos para a realização dessa

pesquisa não ocorreram no estrito senso do termo: os encontros com os sujeitos dessa

investigação foram realizados dentro de minha própria cidade. Convivi com os sujeitos que

formam a população de rua por meio de idas e vindas aos locais onde se instalam: os baixios de

viadutos e passarelas, as calçadas sob marquises e algumas praças da cidade. Nesses encontros,

pude conversar com eles, observá-los, tornar-me presença quase cotidiana em suas vidas. Essa foi

minha estratégia para conviver com eles e buscar acessar seu mundo conceitual, conforme

assinala Geertz (1989).

Cabe agora, antes mesmo da apresentação dos sujeitos que estiveram presentes em meu

cotidiano, ao longo do tempo de realização do trabalho de campo, uma breve discussão em torno

do fazer etnográfico a partir da minha experiência junto à população de rua de Belo Horizonte.

Essa discussão não tem como objetivo traçar novidades no que se refere ao método

antropológico do trabalho de campo, mas sim elucidar algumas reflexões contemporâneas

relativas ao “encontro antropológico”, bem como o momento posterior que é a construção do

texto, a análise e a interpretação desse encontro de subjetividades, ou seja, a realização da escrita

etnográfica propriamente dita.

Não é possível iniciar tal reflexão sem mencionar Malinowski que, de certa forma,

configura-se como o antropólogo que efetivamente sistematiza o método antropológico de coleta

de dados por meio do trabalho de campo com base na observação participante. Em 1922, com o

lançamento dos Argonautas do Pacífico Ocidental, o autor fornece à antropologia as primeiras

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orientações formais sobre a realização do trabalho de campo, tais como: “objetivos genuinamente

científicos e conhecer os valores e critérios da etnografia moderna. (...) deve o pesquisador

assegurar boas condições de trabalho, o que significa basicamente, viver mesmo entre os

nativos, sem depender de outros brancos. (...) deve ele aplicar certos métodos especiais de

coleta, manipulação e registro da evidência.” (Malinowski, 1984:20). Entretanto, a idéia de

etnografia se modificou ao longo do tempo e, nas últimas décadas do século XX até os dias

atuais, o próprio texto etnográfico foi objeto de reflexão de vários autores e novas dimensões

foram acrescidas a ele. Como a relação construída entre o etnógrafo e os sujeitos investigados é

analisada como uma relação permeada de poder e subjetividade – tanto do pesquisador como dos

sujeitos da pesquisa – o texto não tem a pretensão de ser objetivo. Dessa forma, os relatos, que

ficavam circunscritos ao diário de campo, são possíveis de aparecer no produto final do trabalho

sem que percam seu valor teórico, visto que esse fato pode ser revelador do processo de

construção do conhecimento.

Cardoso de Oliveira (1995), ao discorrer sobre a constituição da Antropologia como uma

disciplina das Ciências Sociais e sua consolidação, apresenta uma matriz disciplinar a partir da

qual analisa a antropologia clássica12 sob o paradigma da ordem e a antropologia interpretativa a

partir do paradigma da desordem. Segundo Cardoso de Oliveira, a antropologia clássica

domestica o indivíduo, a história e a subjetividade. A antropologia interpretativa, diferentemente,

propõe a intersubjetividade, que compreende a importância do horizonte cultural do sujeito

estudado e sua interseção com o horizonte do pesquisador. Além disso, assinala que o paradigma

da desordem contribuiu para a constituição de um novo estilo de fazer antropologia, onde a

intersubjetividade, a individualidade e a historicidade passam a ser exercitadas pelo

pesquisador. (Cardoso de Oliveira, 1995:32) Neste novo estilo do fazer antropológico o que se

coloca em debate e o diferencia da antropologia clássica é o próprio papel do autor da etnografia,

como se sua autoridade ficasse sob suspeita, pois seu trabalho é resultado de uma relação

dialógica, na qual tanto o pesquisador como o pesquisado confrontam e articulam seus

horizontes. Dessa forma, as interpretações são geradas a partir da fusão de horizontes13 e o autor

das mesmas não pode mais ser considerado como soberano, como intérprete único de seus dados,

pois, de alguma forma, integra em seu texto o saber do “outro”. Os “horizontes” do pesquisador e 12 Escolas Evolucionista, Estruturalista e Funcionalista 13 Um bom exemplo disso que os hermeneutas chamam de fusão de horizontes é feita por Capranzano (1980) em Tuhami

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do pesquisado não se excluem de forma absoluta, mas se intersecionam, podendo até se fundir.

Isso é que possibilita a intersubjetividade na etnografia, o que não pode ser confundido com

subjetividade, pois, ao contrário, possibilita, exatamente, a expressão das individualidades de

ambos. Além disso, é importante mencionar que ao apreender a vida do “outro”, o pesquisador o

faz num momento histórico do qual ele mesmo não pode se excluir, isto é, em termos de

historicidade. Cardoso de Oliveira (1995) conclui, então, que a intersubjetividade, a

individualidade e a historicidade estão circunscritas na nova antropologia.

Dada a circunscrição desses três conceitos, cabe elucidar, mesmo que brevemente, a

discussão relativa à autoridade e subjetividade na construção da etnografia. Clifford (1998)

chama atenção para as seguintes questões: se a etnografia produz interpretações culturais por

meio de experiências de trabalho de campo, como ela se transforma em algo legítimo? E como o

encontro intercultural entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa, que é perpassado por relações

de poder e propósitos pessoais, pode estar contido em uma versão de um “outro mundo”

construída por um ator individual? Para responder tais questões, Clifford (1998) analisa o fato da

etnografia estar imersa na escrita que, evidentemente, inclui uma tradução da experiência do

trabalho de campo para a forma textual. Essa tradução envolve um complexo processo porque

múltiplas subjetividades estão presentes e, além disso, estão acima do controle do escritor. A

antropologia, ao longo de sua história, nem sempre reteve atenção especial a esse fato que tem

sido discutido com mais constância na contemporaneidade. Tradicionalmente, na antropologia, é

possível observar que o trabalho de campo encontrava-se centrado na figura do pesquisador que

observava e participativa dos acontecimentos durante a sua pesquisa. Dessa forma, ficavam em

plano secundário as discussões relativas à transcrição textual e à tradução, bem como o papel

dialógico de intérprete e “informantes”. No entanto, o que temos hoje no cenário antropológico

são discussões relacionadas à construção da etnografia que enfocam, exatamente, tais questões.

A contribuição de Clifford (1998) para essa discussão contemporânea da etnografia

centra-se no fato de refletir em torno da observação participante, presente no trabalho de campo.

Essa reflexão consiste em considerá-la em termos hermenêuticos, como uma dialética entre

experiência e interpretação, e não mais tratar o trabalho de campo como centrado somente na

experiência do pesquisador, pois é necessário refletir também em torno da autoridade conferida

ao texto produzido por meio dessa experiência, ou seja, a interpretação construída.

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Para conferir consistência a essa discussão é imprescindível recorrer aos argumentos de

Dilthey14 em torno da compreensão. Para esse autor, o ato de compreender os outros é resultado

do fato de coexistirmos num mundo que é partilhado. Entretanto, é importante ressaltar que, para

o antropólogo, o que é problemático ao penetrar o “mundo do outro” é exatamente o fato de

enveredar por um terreno subjetivo e transformá-lo em formas objetivas de conhecimento. Para

se fazer referência ao argumento de Dilthey, o antropólogo necessita exatamente estabelecer e

reestabelecer constantemente a esfera comum, a partir da construção de experiências partilhadas,

pois é em relação a elas que todos os fatos, textos, eventos e suas interpretações serão

construídos. É dessa forma que torna possível dizer que a experiência está intimamente ligada à

interpretação que, por sua vez, não ocorre sem que haja uma intensa participação pessoal num

universo comum.

De acordo com Clifford (1998), para seguir os passos de Dilthey, pode-se considerar a

experiência etnográfica como a construção de um mundo de significados, a partir de estilos

intuitivos de sentimento, percepção e inferências. Essa atividade faz uso de pistas, traços, gestos

e restos de sentido antes de desenvolver interpretações estáveis. (Clifford, op. cit.: 36).

A experiência serve, então, como garantia da autoridade etnográfica, o que não significa

a ausência de ambigüidade no termo. Experiência implica numa presença participativa no mundo

do outro, mas quando seu relato textual é concebido como uma criação da experiência, ele é

subjetivo e não dialógico ou intersubjetivo. É o etnógrafo a demonstrar o acúmulo de

conhecimento pessoal sobre o campo.

Essa discussão referente ao caráter experiencial da autoridade, a partir da dialética entre

experiência e interpretação, foi submetida a críticas por antropólogos como Geertz, Rabinow e

outros. A interpretação, por meio desses autores, se apresenta como uma leitura textual que se

configura como uma alternativa às afirmações que se consideram ingênuas em torno da

autoridade experiencial. Dessa forma, a antropologia interpretativa, da qual esses autores e outros

fazem parte, é uma vertente que questiona o que até então não se questionava em torno da

construção de narrativas e descrições etnográficas. Assim, contribui para a reflexão em torno dos

processos criativos que envolvem a etnografia, por meio dos quais os objetos culturais são

inventados e considerados como significativos.

14 Cf. Clifford (1998)

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Geertz, como um dos autores emblemáticos dessa postura teórica, deixa claro a

influência de Ricoeur (1971) em suas discussões sobre o trabalho de campo. De acordo com

Geertz (1989 e 1998), o texto, ou melhor a “textualização” da cultura, deve ser compreendido

como um requisito básico para a interpretação. Nesse processo de produção do texto, definido por

Geertz (1989) como uma descrição densa, o comportamento, a fala, as tradições e as crenças são

marcados por um conjunto significativo que é separado de uma situação discursiva. Quando tudo

isso se transforma num texto, esse conjunto significativo conforma uma relação mais ou menos

estável com um contexto, que pode, então, ser definida como uma descrição densa, conforme

assinala Geertz (1989).Voltando a Ricouer, uma das inspirações de Geertz, é importante assinalar

que sua proposta recai sobre a necessidade de uma relação entre o texto e o mundo.

Um mundo não pode ser apreendido diretamente; ele é sempre inferido a partir de suas

partes, e as partes devem ser separadas conceitual e perceptualmente do fluxo da experiência.

Desse modo a textualização gera sentido através de um movimento circular que isola e depois

contextualiza um fato ou evento em sua realidade englobante. Um modo familiar de autoridade é

gerado a partir da afirmação de que estão representando mundos diferentes e significativos. A

etnografia é a interpretação das culturas. (Clifford, 1998:40)

Outro ponto da análise de Ricouer que merece destaque é sua discussão em torno do

processo por meio do qual o discurso vira texto. O discurso é marcado por pronomes pessoais e

demonstrativos que apontam na direção do momento no qual ele acontece. Segundo Ricouer, para

entender o discurso é preciso ter estado lá, face a face com o(s) sujeito(s). Já a interpretação não

pode ser concebida como uma interlocução, pois não depende de estar na presença de alguém que

diz algo.

Distinguir texto e interpretação para a etnografia é relevante porque o antropólogo

sempre deixa o contexto, a situação na qual transcorre o trabalho de campo para realizar

posteriormente a interpretação. Isso traz para o texto uma conotação de que, diferentemente do

discurso, ele pode viajar. Eu estou ou estive lá, mas escrevo aqui. Ou seja, a escrita etnográfica é

em grande parte produzida no campo, mas sua real elaboração é realizada em outro lugar. Dessa

forma, traduzir a experiência de campo num texto, que é separado de suas ocasiões discursivas,

tem conseqüências para a autoridade etnográfica. Os textos podem ser vistos, ou melhor, lidos,

como provas evidentes de um contexto, de uma realidade cultural.

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Essa discussão revela que a antropologia interpretativa contribuiu sobremaneira para o

estranhamento da autoridade etnográfica, visto que concebe as culturas como conjunto de textos.

Entretanto, é importante que se sublinhe que nem a experiência e tampouco a interpretação do

antropólogo podem ser consideradas inocentes, pois a etnografia não se configura como

interpretação e experiência de “outra” realidade, mas como uma negociação construtiva

envolvendo pelo menos dois, e muitas vezes mais, sujeitos conscientes e politicamente

significativos. Paradigmas de experiência e interpretação estão dando lugar a paradigmas

discursivos de diálogo e polifonia. (Clifford, 1998:43)

O discurso que aparece na prática etnográfica evoca uma cena de intersubjetividade

presente em toda fala, em paralelo ao contexto no qual ela ocorre. Isso significa que a linguagem

presente na etnografia é permeada por várias subjetividades. Sendo assim, o que transparece é um

processo de diálogo que apresenta interlocutores que negociam uma visão compartilhada da

realidade.

A partir dessa breve reflexão em torno do fazer etnográfico, passo agora a relatar minha

experiência de trabalho de campo para expor o encontro de subjetividades que, de alguma forma,

partilharam e negociaram visões de mundo que transparecem aqui, nessa etnografia, como uma

possibilidade de interpretação do “mundo do outro”, num horizonte que é perpassado pela

polifonia, pela fusão de horizontes, mesmo que aqui se configure como um texto autoral.

3.2. TRABALHO DE CAMPO: a presença do “eu” no mundo do “outro” e do “outro” no mundo do “eu”

O trabalho de campo realizado para essa pesquisa teve a peculiaridade de ter sido

desenvolvido em três momentos distintos tanto no tempo como no espaço. Isso ocorreu porque

ele teve uma longa duração (1994, 1995 e 1996) e porque entrei em contato com “grupos

distintos”. O primeiro deles foi, evidentemente, os sujeitos que conformam diretamente a

população de rua: os que improvisam abrigos sob baixios de passarelas e viadutos e os que

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improvisam locais de pernoite sob as marquises. Num segundo momento da pesquisa houve o

contato com os participantes do movimento dos sem-casa15 que estavam acampados em um

bairro da zona sul de Belo Horizonte. Face a esse encontro com os participantes do movimento

dos sem-casa, também me aproximei daqueles que estiveram, fisicamente, mais próximos deles:

comerciantes e comerciários dos estabelecimentos localizados no entorno do acampamento. Por

fim, realizei entrevistas com técnicos do poder público municipal que atuavam no Programa de

Atendimento à População de Rua, bem como com a Secretária de Desenvolvimento Social

daquela época e com a Coordenadora da Pastoral de Rua de Belo Horizonte.

Esses encontros se pautaram no estabelecimento do diálogo entre mim e os sujeitos da

minha pesquisa, buscando, como assinala Geertz (1989:15), praticar a etnografia, estabelecer

relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos,

manter um diário, e assim por diante. Dessa maneira, a proposta dessa investigação se baseou na

realização de uma análise antropológica, a qual pressupõe a descrição densa, segundo Geertz (op.

cit.)

A descrição densa constitui a realização de uma interpretação do fluxo do discurso social,

da vida social. Tal interpretação consiste em tentar salvar o “dito” num tal discurso da sua

possibilidade de extinguir-se e fixa-lo em formas pesquisáveis. (Geertz, op.cit.:31) Além disso,

deve-se ressaltar que essa interpretação é feita sob dimensões microscópicas. O fato dela ser

microscópica não significa que a interpretação não possa ser válida para pensar algo mais amplo.

Assim, o objetivo da utilização dessa perspectiva metodológica é realizar uma interpretação das

classificações e representações dos sujeitos que conformam a população de rua no contexto de

Belo Horizonte, pois para Geertz o desenvolvimento da ciência ocorre exatamente em contextos

particulares. Como, para ele, a cultura é um contexto, sua interpretação deve ser contextualizada

e para tanto é fundamental levar em conta a ação simbólica de sujeitos particulares. As

interpretações levam em conta as diferenças e particularidades. Para Geertz, a cultura só pode ser

compreendida a partir do comportamento dos indivíduos, é preciso ver as coisas do ponto de

vista do nativo (Geertz, 1997). Não se pode compreender através da repetição da vivência do

“outro”, mas através dos sentidos interpretados na relação entre o pesquisador e o sujeito

estudado. Por isso a importância de valorizar o que é dito pelo “outro”, de dialogar com ele.

Interpretar diz respeito a manter um diálogo com o nativo. É preciso conversar com ele, sem 15 Esses encontros serão discutidos mais detalhadamente no capítulo quatro.

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ignorar seu ponto de vista. Isso seria a busca da fusão de horizontes, o que definitivamente não

deve ser confundido com a tentativa de identificação.

Para tanto, foram realizadas entrevistas abertas e em profundidade com os sujeitos que

fazem parte da população de rua, selecionados a partir do mapeamento e de contatos com os

mesmos nos espaços públicos onde se encontram instalados para o levantamento do seu sistema

classificatório e de representações relativos aos espaços por eles apropriados. O contato com os

sujeitos da investigação durante o trabalho de campo, de acordo com Geertz (1989:35), deve nos

possibilitar a ganhar acesso ao mundo conceptual no qual vivem (...), de forma a podermos, num

sentido um tanto mais amplo, conversar com eles.

Além da utilização da descrição densa, foi também realizado um levantamento

documental a respeito da unidade de análise: sujeitos que adotam espaços públicos como locais

de moradia provisória ou permanente em Belo Horizonte. Esse levantamento incluiu a coleta de

dados junto a órgãos públicos e organizações não-governamentais que desenvolvem programas

junto a esse segmento da população, como a Prefeitura de Belo Horizonte16 e a Pastoral de Rua.

Esses dados foram necessários para realizar um mapeamento da população de rua na cidade, com

o objetivo de detectar áreas com maior número de ocupações, áreas com ocupações mais antigas

e áreas com ocupações recentes, bem como a atuação do poder público junto ao referido

segmento populacional. A elaboração desse mapeamento forneceu uma visão do conjunto do

fenômeno na cidade, para que fosse possível selecionar alguns casos que mais diretamente

relacionam-se com a proposta da investigação.

As primeiras visitas17 a algumas “casas” sob viadutos, apesar da tensão natural do

primeiro contato, transcorreram tranqüilamente. Os moradores nos receberam7, aparentemente,

sem constrangimento e logo nos convidavam para entrar e conhecer suas “casas”. Eram

receptivos aos contatos e nos tratavam como se fôssemos importantes visitas, nos ofereciam as

melhores cadeiras, nos protegiam dos cães e se dispunham a nos contar um pouco sobre a vida

sob os viadutos.

16 A Prefeitura de Belo Horizonte tem, na Secretaria de Desenvolvimento Social, um Setor de Atendimento à População de Rua que desenvolve programas junto a mesma desde 1992. 17 Essas primeiras visitas foram realizadas em outubro de 1993 nos viadutos da Lagoinha (cf. Mapa 3), da Silva Lobo sobre a Via Expressa e na passarela do metrô na Estação da Gameleira (cf. Mapa 2) em Belo Horizonte. 7 Realizei os primeiros contatos na companhia de Marcos, na época um aluno da graduação.

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Continuando a caminhada e observação das ruas da cidade, das áreas sob seus viadutos e

passarelas e, além disso, tendo intensificado o contato com os moradores de tais lugares, eu os

visitava no mínimo uma vez por semana, revezando os dias e horários para que pudesse estar com

eles em momentos e situações distintas. Durante tais visitas, o campo me surpreende com uma

novidade: percebi que os moradores das casas sob os baixios de viadutos e passarelas se

relacionavam com outra categoria da população de rua, os quais eram chamados de

“maloqueiros”. Esses eram os nômades urbanos, sujeitos que ocupavam as ruas e praças

temporariamente sem erguerem ali suas “casas”, apenas se apropriando de tais lugares para

pernoite ou para permanência diurna. A partir da forma como se instalavam nos espaços públicos

os “ocupantes” das praças, calçadas e baixios de viadutos da cidade se diferenciavam. Frente a

essa nova categoria de morador de rua, surge um dilema no que se refere ao trabalho de campo:

como conviver com esses sujeitos que perambulam pela cidade e, de certa forma, encontram-se

desterritorializados? Os encontros com esses sujeitos, dada a transitoriedade no que se refere à

forma como ocupam os espaços públicos da cidade, ocorreram de uma maneira peculiar. Passei a

visitar praças nas áreas mais centrais da cidade em busca de contatos com tais sujeitos e a partir

daí obtive informações mais precisas de locais onde permaneciam durante o dia, visto que não me

arrisquei a encontrá-los sozinha nos lugares onde realizavam o pernoite.

Assim, além de detectar que são várias as formas de instalação nos espaços públicos, a

pesquisa de campo também apontou para o fato de que a população de rua se classifica de forma

diferenciada. Existem denominações próprias a cada segmento para se auto-definirem e definirem

os outros que não fazem parte do segmento ao qual pertencem.

O sistema de classificação próprio de cada um desses segmentos tornou claro que eles se

situam em posições diferentes no “mundo da rua”. Não foi somente o fato de estarem todos na

rua fazendo dela, de alguma forma, seu lugar de moradia − temporária ou permanente − que os

definiu como parte da população de rua que nela e dela sobrevive. As formas variadas como se

denominam e denominam os outros − sejam eles também parte da população de rua ou não − são

a expressão que percebem o mundo ao seu redor de maneiras também diferentes, pois suas

posições não são as mesmas no contexto da rua, a instalação, a percepção e a relação com o

espaço e com as pessoas nesse entorno se diferenciam. A partir das classificações produzidas no

interior da população de rua que se caracteriza pela heterogeneidade é que busquei compreender

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quem são as pessoas que fazem parte da mesma, como se percebem e como percebem a paisagem

urbana onde estão localizados para verificar se as variadas formas de instalação no espaço

público se relacionam com a existência de identidades diferenciadas no “mundo da rua”.

Em seu estudo sobre as estratégias adaptativas dos nômades urbanos, Spradley (1980) assim denomina os mendigos e assinala que “os vários grupos étnicos e sociais da cidade desenvolvem diferentes estratégias de adaptação. (...) Se descobrirmos diferentes estratégias de adaptação entre os grupos urbanos descobrimos os diferentes sistemas de categorias que eles utilizam para reduzir a complexidade de seu ambiente e organizar seus hábitos.”8 (p.107) Sendo assim, buscarei “descobrir” os sistemas de classificação da população de rua a partir da identificação das suas várias estratégias de adaptação aos espaços públicos; buscarei “descobrir” como eles categorizam e codificam o mundo e as pessoas ao seu redor.

3.3. O NÓS E OS OUTROS: COMO NOS VEMOS, COMO VEMOS OS OUTROS E COMO SOMOS VISTOS

Neste tópico, discutirei como as pessoas que se apropriam de vários espaços públicos da

cidade como local de trabalho e/ou de moradia a partir de ocupações e instalações diferenciadas

nos mesmos, se percebem e percebem o(s) outro(s). A princípio, buscar perceber como eles se

vêem será uma forma de tentar, como assinala Geertz (1997:89), “... descobrir que diabos eles

acham que estão fazendo.” E, assim, tentar compreender como experimentam e compreendem o

universo no qual estão inseridos a partir da percepção que têm de si mesmos e dos outros.

3.3.1. AS CASAS SOB OS VIADUTOS, AS PASSARELAS E NAS CALÇADAS

As casas sob os viadutos e passarelas variam em tamanho e formato, mas geralmente

têm o mesmo tipo de material de construção. As paredes são feitas de papelão e/ou chapas de lata

8 Tradução livre

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e/ou madeirite9. É comum a utilização de alguma viga do viaduto ou passarela como uma das

paredes da casa. Um pilar de sustentação é formado a partir da junção do papelão, madeirite ou

chapas de lata a uma espécie de estaca de madeira fixada ao chão de onde se erguem outras

paredes. Este pilar serve também para a amarração do teto da casa, quando este é de lona e não

utiliza a própria cobertura do viaduto ou passarela. Geralmente a lona é utilizada quando o

viaduto é muito alto. Em algumas casas as paredes são forradas com folhas de jornal ou revista e, por vezes, são pregados retratos, posters de filmes, de times de futebol, utilizados como objetos

de decoração.

“Quando não comprava [a madeira] a gente ia na madereira, qualquer madeireira e pedia eles. Aí eles davam ou vendia pra gente por menos do preço que ela era. Aí nós pegava comprava, furava os buraco com a alavanca e fazia a casa. Minha mãe é que resolvia como queria a casa porque ela é que entendia. Então do jeito que ela falava os rapaz ajudava nós. Se ela queria três cômodos de madeira, aí media. Se era de dois metros cada um, media dois e furava o buraco, fincava o pau, fazia o teto e depois fazia os lado e atrás. O teto era primeiro, por causa do sereno. Tinha que comprar lona para o teto, prego pra parede.” (Sílvia, moradora da área da Associação dos Catadores de Papel (Cf. Mapa 2), 16/08/94)

Em geral, as casas têm apenas uma porta de entrada que, quando não é improvisada, é

uma porta de madeira afixada às estacas de sustentação das paredes e do teto. Esta porta de

entrada, quando a casa possui mais de um cômodo, fica no ambiente onde são feitas as refeições

ou onde se recebem as visitas. Os ambientes internos geralmente são separados por cortinas.

Quando a casa tem apenas um cômodo, essa porta de entrada é colocada em uma das paredes de

forma a impedir a visibilidade total do ambiente possibilitando a privacidade dos moradores.

Os espaços internos das casas, quando estas têm mais de um cômodo, se subdividem, na

maior parte das vezes, em espaço para dormir e espaço para cozinhar, sendo que este último pode

ficar do lado de fora da casa onde fazem o fogão à lenha. Poucas são as casas que têm um espaço

destinado às refeições ou um espaço destinado a receber as visitas. O espaço para dormir − o

quarto − acaba sendo o principal, pois nas casas que possuem apenas um cômodo os objetos

predominantes são referentes ao quarto. É importante perceber que, apesar de ser o local para

dormir, outros usos podem ser aí implementados. O espaço é subdividido em vários cantos

destinados a variados usos: é onde se dorme, se abriga do frio, da chuva e da noite, mas também

pode ser onde recebem as pessoas e fazem as refeições.

9 Madeirite é um material semelhante a uma folha de madeira de espessura muito fina. Geralmente esse material envolve grandes peças de automóveis e outros maquinários.

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As casas nem sempre têm janelas. Quando existem, estão apenas em um dos cômodos e

em geral nas casas maiores. Durante o dia a luminosidade dos ambientes é natural e à noite

alguns utilizam velas e outros dizem não ser necessário já que a área é bastante clara em virtude

das luzes da rua próxima ou mesmo daquelas que estão na parte inferior dos viadutos.

A água é a grande dificuldade dos moradores das casas sob os viadutos pois nem sempre

está disponível próximo ao local onde se situam. É comum buscarem água em postos de gasolina,

nas casas da vizinhança (se o viaduto é próximo a algum bairro residencial); em um dos casos,

existia uma mina d’água próxima ao viaduto10, e em outro11 havia uma “bica” que jorrava água

ininterruptamente. Ninguém soube me explicar de onde vinha essa água, apenas diziam que desde

a construção do viaduto ela não parava de jorrar.

O entorno das casas varia em extensão. Existem áreas grandes12 e com poucas casas, sendo freqüente a presença de cães, algumas vezes de galinhas, plantas, desde as ornamentais até hortaliças e medicamentos, como também uma quantidade enorme de objetos que não cabem no interior da casa e têm, ou podem vir a ter, alguma utilidade. É como se não pudessem recusar nada do que ganham ou encontram pela rua. Tenham ou não uma utilidade imediata, são esses objetos, ganhados, achados no percurso da coleta de papel13 ou ainda fruto de alguma troca, o que essas pessoas conseguem acumular.

Tanto o material utilizado para a construção das casas, como alguns dos objetos que compõem os ambientes internos e externos são, muitas vezes, obtidos na atividade da coleta de papel. Essa é uma atividade que faz parte do cotidiano da maioria da população de rua, sendo que a forma como é desenvolvida também se diferencia de segmento para segmento. Existem aqueles que a exercem esporadicamente, somente quando necessitam de algum dinheiro enquanto outros fazem dela seu meio de sobrevivência diária. As pessoas que se instalam de forma temporária em algumas vias e espaços públicos também adotam a atividade de coleta de papel como algo temporário que lhes permite garantir a sobrevivência mais imediata, ou seja, a refeição diária; enquanto aqueles instalados de forma permanente nos baixios de viaduto ou sob as passarelas têm a coleta de papel como a ocupação também permanente; alguns, inclusive, são membros da

10 Viaduto da Silva Lobo com Via Expressa 11 Viaduto da Lagoinha 12 Naquela época essas áreas maiores já estavam praticamente ocupadas com a construção de casas. Elas são, na sua maioria, localizadas em baixios de viadutos. 13 A coleta de papel e sucata é a atividade mais comum entre os moradores de rua da cidade.

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Associação dos Catadores de Papel − ASMARE14. Sendo assim, cabe dizer que a atividade desenvolvida pela maioria das pessoas que fazem parte da população de rua e a forma como é realizada também permite perceber novas distinções no seu interior. A forma como alguns trabalham e concebem o trabalho é expressa através da forma como desenvolvem as atividades que lhes garante a sobrevivência: a instalação temporária é geralmente indicadora de uma concepção de trabalho temporário, e a instalação permanente se alia a uma concepção de trabalho que ocupa a maior do tempo orientando as demais atividades na vida dos sujeitos do mundo da rua: aquelas relativas ao lazer, à educação, à religião; que, geralmente, são realizadas em momentos diferentes daqueles dedicados ao trabalho.

No percurso da coleta ou mesmo nos locais onde buscam o papel15, encontram parte do

material que utilizam para a construção da casa e dos objetos e mobiliário que passam a compor

seus ambientes. Os canteiros de obra também são bons lugares para se conseguir madeira, seja

para as paredes ou para fazer algum utensílio como cama, porta, prateleira etc, ou mesmo para a

lenha do fogão.

“Num dia eles ‘amontaram’ o barracão. O material a gente arrumava na rua, na rua mesmo a gente buscava o papel, achava um madeirite já trazia. Meu telhado era feito todo coberto de tábua com papelão e depois jogava uma lona por cima.” (Meire, moradora da área da Associação dos Catadores de Papel (Cf. Mapa 2), 23/08/94)

“Tudo a gente acha na rua, esse caxotão achamos na rua, roupa nossa, eles passam e dão, eles dão leite, dão pão, dão chá.” (Dona Deusdedite, moradora da calçada da Avenida do Contorno próximo à Associação de Papel (cf. Mapa 2), 30/08/94.)

“Tudo a gente acha, as vasilhas, a cadeira, tapete.” (Lucinete, moradora da calçada da Avenida do Contorno próximo à Associação de Papel (cf. Mapa 2), 23/08/94)

É comum a reunião de vários tipos de material − madeira ou madeirite, papelão, chapas

de ferro − para a construção não só das paredes da casa, mas da casa como um todo, isto é, existe

um aproveitamento total dos materiais coletados. As tábuas de madeira podem transformar-se em

paredes, camas e prateleiras; as caixas de papelão maiores servem como armários e protegem a

comida e as roupas dos ratos16; um banco de carro pode tornar-se o sofá da casa, enfim, os

materiais e objetos encontrados, ganhados ou trocados são reagrupados e, dessa operação, o

resultado pode ser novos objetos ou mesmo a casa propriamente dita.

14 Esta Associação foi fruto do trabalho da Pastoral de Rua junto à população de rua em parceria com a Prefeitura de Belo Horizonte e a SLU - Superintendência de Limpeza Urbana, conforme apresentado no Capítulo Um. 15 Alguns têm pontos certos para apanhar o papel. 16 Os moradores das casas na rua reclamam muito da presença dos ratos nas suas casas. Assim é preciso proteger a comida e as roupas do alcance dos roedores.

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“Quando eu cheguei aqui eu dormia dentro de uma caixa. Eu arrumava uma caixa de geladeira e dormia dentro. A gente não tinha madeira, né?! Arrumava a caixa de geladeira e dormia dentro. Eu dormi dentro da caixa de geladeira uns seis meses. De dia a gente arrumava ela, dobrava e encostava, de noite a gente abria ela e enfiava dentro. Eu dormia dentro de uma com a Fernanda e a Sandra dormia dentro de outra com o Bruno. Aí arrumamos umas madeiras por aí. No caminho da catação do papel a gente acha a madeira, nessas madeireira, eles encostam esses caixotes, aí a gente vem desarma e pega. Os caixotes são tudo desse madeirite fraquinha.” (Dona Deusdedite, moradora da calçada na Avenida do Contorno, próximo à Associação dos Catadores de Papel (cf. Mapa 2), 30/08/94.)

A forma como se dá a construção das casas e o material utilizado para tal, traz a a noção

de bricolage utilizada por Lévi-Strauss (1976) para o universo da população de rua. Ele assinala

que, para o bricoleur

“... a regra de seu jogo é de arranjar-se sempre com os meios-limites, isto é, um conjunto, continuamente restrito, de utensílios e de materiais, heteróclitos, além do mais, porque a composição do conjunto não está em relação com o projeto do momento, nem, aliás, com qualquer projeto particular, mas é o resultado contingente de todas as ocasiões que se apresentaram para renovar o estoque, ou para conservá-lo, com resíduos de construções e de destruições anteriores.” (Lévi-Strauss, 1976 :38)

Assim como o bricoleur que parte da coleta de materiais que podem ser utilizáveis para

construir algo novo, é a partir dos materiais encontradas pelas ruas, do seu agrupamento e

rearranjo, que os moradores das casas sob os viadutos as constroem. Elas são o resultado da

combinação de materiais que têm, ou já tiveram, outra utilidade. A madeira, as chapas de lata, as

caixas de papelão, a lona e outros objetos dão forma à casa e seus ambientes. O resultado da

junção desses materiais é que permite visualizar a formação de um novo objeto: a casa. Os

“construtores de casa sob os viadutos”, a partir da coleta de vários materiais, chegam a formar um

todo (a casa) que é uma “novidade”.

É importante ressaltar que essas instalações, mesmo em toda a sua precariedade,

obedecem uma lógica de construção a partir dos materiais que utilizam, da forma como adquirem

esse material, das adaptações e transformações dos objetos para os usos no novo ambiente e da

própria técnica de construir a moradia, o que resulta numa cultura de ocupação.

Nas casas sob os viadutos é mais comum encontrar famílias que podem se constituir da

mãe, pai e filhos; como também da mulher com seus filhos e um companheiro que não é pai de

nenhum deles; mulher que tem filhos, mas que debaixo dos viadutos não mora com eles e sim

com um companheiro. Assim sendo, é mais apropriado usar o conceito de grupo doméstico para

falar dos moradores das casas sob viadutos. Isso porque, de acordo com Fortes (1974:12) “grupo

doméstico é essencialmente uma unidade que possui e mantém a casa e está organizado para

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prover os recursos materiais e culturais necessários para sustentar e criar seus membros.”

Dessa forma, os moradores de uma dessas casas, sejam eles ligados ou não por laços familiares,

formam um grupo doméstico, essa unidade que mantém, cuida e sustenta a casa no que ela

necessita. Fortes (op. cit.) acrescenta que a família elementar pode ser considerada o “... núcleo

reprodutivo do domínio doméstico.” (Ibidem) mas que a ela podem estar vinculados outros

membros por outros laços: “... o grupo doméstico inclui geralmente três gerações sucessivas,

assim como membros ligados ao núcleo do grupo por colateralidade ou por outras formas. Neste

domínio, entram na constituição do grupo, parentesco, descendência e outros laços jurídicos e

afetivos ...” (Idem) Isto significa que o grupo doméstico não é formado somente por indivíduos

ligados por laços de consangüinidade, pois outras formas de vinculações também são aceitáveis

para compor o grupo que sustenta a casa.

Os homens que moram sozinhos geralmente estão nos viadutos próximos à área central

da cidade e, nos meus contatos, não encontrei nenhuma mulher morando sozinha. Conheci apenas

uma mulher que morava com seu filho e uma senhora mais velha que permanecia a maior parte

do tempo sozinha, pois tinha um companheiro que às vezes a visitava. Além desses moradores,

tive contato com um grupo de meninas e meninos em situação de rua17 que já estavam

constituindo família e fazendo suas casas nas calçadas.

Sobre a existência de uma organização familiar em relação à divisão do trabalho, o que

foi possível observar é que as mulheres moradoras das casas sob os viadutos estão muito

envolvidas com as atividades domésticas. Elas constituem o pivô do grupo doméstico. Em várias

visitas, as encontrei lavando roupa, arrumando a casa, cozinhando, buscando água e lenha e

cuidando dos filhos. Essas atividades vão sendo realizadas ao longo do dia e à medida que são

necessárias, os horários não são rígidos. Os homens, em sua maioria, estão envolvidos na

atividade de coleta do papel e sucata. Algumas mulheres, além das tarefas domésticas, também se

17 Fiz apenas dois contatos com esse grupo que se instalou na calçada da Avenida Barbacena, próximo ao prédio da CEMIG Centrais Elétricas de Minas Gerais -, no Bairro Santo Agostinho, zona sul da cidade. Não continuei a contatá-los porque saíram desse local e não os localizei mais. Apesar de já estarem constituindo famílias e dessa instalação na calçada em muito se assemelhar às casas construídas sob os viadutos, esses meninos e meninas não permaneceram no local. Tal fato chama atenção para a transitoriedade das instalações dos meninos e meninas em situação de rua que acabam por não se fixarem por muito tempo em um mesmo local.

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envolvem com a separação18 do papel coletado para a venda. Algumas auxiliam os companheiros

na coleta e outras, por viverem sozinhas19, realizam as duas etapas do trabalho.

Existiam algumas pessoas que já haviam morado nas ruas, sob os viadutos, mas que no

momento da pesquisa encontravam-se fazendo parte da ASMARE − Associação dos Catadores

de Papel e Material Reciclável de Belo Horizonte. Quando os conheci e realizei as entrevistas,

alguns estavam morando em barracas de lona na mesma área onde guardavam o papel coletado e

realizavam sua separação. Essa área localizava-se no terreno da Associação dos Catadores de

Papel da qual são sócios. Ali permaneciam porque estavam próximos da atividade de coletar o

papel e da associação. Hoje o local destina-se somente ao armazenamento e separação do papel,

aqueles que moravam nessa área em barracas de lona mudaram-se para suas casas20, ou para

abrigos da Prefeitura até que fosse possível solucionar o problema da moradia.

3.3.2. A “MALOCA” e os “MALOQUEIROS”

O termo “maloca” é utilizado pela população de rua para se referir às moradias construídas sejam sob os viadutos e passarelas ou nas calçadas.

“Maloca é o modo da gente tratar, antigamente era maloca. Maloca é o barraco de tábua cheio de trem assim por cima...” (Meire, moradora da área da Associação dos Catadores de Papel (cf. Mapa 1), 16/08/94)

“Eu não acho que é maloca né?!, mas o pessoal aí fala que barraco embaixo do viaduto é maloca, eu já não acho.” (Bela, moradora do Viaduto da Silva Lobo sobre a Via Expressa (cf. Mapa 1), 4/08/94)

“Eles chamam esses barraco aqui de maloca porque é de madeira. Porque se fosse de tijolo eles iam chamar de barraco, mas é de madeira aí é uma maloca.” (Eunice, moradora da calçada da Avenida do Contorno próximo à Associação dos Catadores de Papel (cf. Mapa 2), 24/08/94)

Discutindo a maloca marúbo, Melatti & Melatti (1986), assinalam que a maloca é uma

edificação nitidamente indígena e que os habitantes dos municípios amazonenses de Benjamin

Constant e Atalaia do Norte assim designam as grandes construções alongadas, cobertas de palha

da cumeeira ao chão onde habitam os membros das tribos indígenas da bacia do Javari. Os

marúbo, em sua língua, denominam as malocas de shovo. Assim como os índios que constituem

18 O papel coletado para ser vendido tem que ser separado: o papel branco, o jornal, o papelão, o papel colorido. 19 Essas mulheres que vivem sozinhas e sobrevivem da coleta do papel, são da Associação dos Catadores de Papel. Não encontrei mulheres sozinhas morando sob algum viaduto ou passarela. 20 Alguns dos moradores dessa área tinham casa na periferia da cidade. Como a atividade da catação do papel é realizada na área central da cidade, pela dificuldade de deslocamento diária, ali permaneciam. Hoje essas pessoas retornam diariamente para casa.

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“o outro” frente aos povos “civilizados”, os moradores das casas sob os baixios de viadutos,

passarelas ou nas calçadas, podem ser “o outro” da paisagem urbana atual, que não habitam as

edificações de alvenaria e sim as construções improvisadas com o madeirite, o papelão e as

chapas de lata. Utilizam-se do material que têm à sua disposição para a construção das mesmas.

A palha serve como teto da maloca marúbo; o papelão, a madeira e a lona podem servir para a

confecção do teto das moradias improvisadas sob os viadutos e passarelas e nas calçadas.

Diferentemente das malocas marúbo que “... são construídas segundo um modelo bastante

rígido.” (Melatti e Melatti, op. cit:42), as “malocas urbanas” não seguem nenhum critério rígido,

cada uma delas é construída a partir do material disponível e da criatividade de cada um para

improvisar o arranjo, o agrupamento desses materiais na área ocupada. No entanto, a maneira

como são construídas revela que obedecem a um padrão de construção, pois, por exemplo,

primeiro as paredes são erguidas a partir da fixação de estacas no solo. A segunda etapa é o

telhado que, sendo de lona ou metal, é afixado; aí então a casa vai se conformando como tal e

seus cômodos vão sendo compostos à maneira de cada morador, com resquícios de objetos de sua

trajetória habitacional e dos objetos encontrados na trajetória diária da coleta do papel e material

reciclável.

A denominação das moradias improvisadas utilizando o termo “maloca” explicita seu

caráter pejorativo, porque faz referência a um tipo de moradia improvisada e não àquela

concebida e reconhecida como legítima na sociedade urbana. “Maloca” é um termo que, a

princípio, remete à idéia de habitações indígenas, ou seja, habitações próprias de um contexto

diferente daquele das cidades. Denominar as moradias improvisadas de “maloca” ressalta a

diferença dessas moradias em relação àquelas construídas em locais e com formatos previsíveis.

Sendo “diferente” do que é legítimo e previsto como local de moradia, a “maloca” não se

enquadra no universo das moradias reconhecidas socialmente podendo, então, ser reveladora de

um estigma, pois como afirma Goffman (1982), estigmatizado é aquilo ou aquele que possui “...

uma característica diferente da que havíamos previsto.” (p.14) Assim, apresentando como

características específicas o formato e o local “inusitado” da construção, as casas sob os viadutos

e passarelas e nas calçadas denominadas como “malocas” revelam o estigma da sociedade em

relação a este tipo de moradia.

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A “maloca” é uma construção ideológica estigmatizante porque não representa os

formatos legítimos de moradia e, conseqüentemente, seus moradores também o são. Eles não

habitam moradias construídas em loteamentos ou mesmo nas favelas, são aqueles que

construíram “malocas” em áreas públicas, locais previstos para o trânsito e a passagem de

pedestres e não para comportar habitações.

Além disso, é importante destacar que a utilização do termo “maloca” também expressa

a tensão existente em torno da definição legítima de moradia. Esse fato pode ser tomado como

um exemplo de luta simbólica21, pois o termo “maloca” expressa uma oposição ao termo “casa”

e/ou “barraco” reconhecidos como construções legítimas. Essa utilização de categorias diferentes

para denominar a moradia num mesmo contexto urbano chama a atenção para o fato de que cada

segmento, cada grupo de uma mesma sociedade classifica o “mundo” ao seu redor de maneira

diferenciada porque ocupa posição diferente no contexto no qual está inserido e,

conseqüentemente, confere sentido diferente ao mesmo. As pessoas que fazem uso do termo

“maloca” não apenas denominam um tipo de moradia improvisada no contexto urbano; de certa

forma, conferem sentido a um modo de ser, agir e pensar referente ao “mundo da rua”22, que

pode se diferenciar devido às várias formas de instalação e ocupação dos espaços públicos, as

quais, por sua vez, indicam posições diferentes em tais locais.

Ainda, em relação à utilização do termo “maloca”, pode ser percebida uma tensão entre

os próprios moradores de rua. Isto porque as distinções entre eles podem, grosso modo, ser

identificadas a partir da construção ou não de abrigos nas áreas ocupadas. Dessa forma, a tensão

pode ocorrer entre os construtores de moradias em espaços públicos e aqueles outros moradores

das ruas que não fazem esse tipo de instalação nos espaços ocupados. Os moradores das casas sob

viadutos e nas calçadas até utilizam o termo “maloca”, mas afirmam não serem os seus criadores,

ou seja, eles incorporam o rótulo dominante, mas questionam seu conteúdo. Isto significa um

gesto de reprodução do estigma que a sociedade impõe, sem distinção, aos moradores de rua; e

uma parcela destes, aqueles que apresentam uma relativa permanência nos espaços ocupados,

21 Luta simbólica tal como será discutido no tópico 3.4. A Heterogeneidade na Homogeneidade. 22 O mundo da rua é relativo às calçadas, às áreas sob os viadutos, às praças, enfim, aos espaços públicos que aqui são enfocados como locais onde geralmente ocorrem as ocupações para implementação de alguma forma de moradia, mas também compreende uma série de valores e normas que são referendados e vivenciados pelos sujeitos que se instalam nos mesmos.

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deslocam o estigma “maloca” para os segmentos de moradores que adotam as ruas como locais

de pernoite e não de permanência. Apesar de suas moradias serem assim reconhecidas e

identificadas, eles buscam se diferenciar daqueles “outros” que não constroem moradias nas

calçadas ou nas áreas sob os viadutos e/ou passarelas afirmando que não concordam com essa

denominação que foi atribuída às casas que construíram e onde moram. Entretanto, mesmo

aqueles que não concordam com a denominação dada às casas que construíram acabam utilizando

o termo “maloca” para fazer referência às mesmas.

“Maloca é o seguinte, as pessoas que mora assim debaixo do viaduto, tem assim um barraquinho de papelão, madeirite, ou até lona,(...) num é a gente que põe nome de maloca, pra nós é casa né?! É uma coisa que pelo menos ‘tá tampando o nosso lado né?!, mas as pessoas já fala que é maloca aí a gente acostuma, eles falam e a gente acostuma.” (Cirléia, moradora do viaduto da Avenida Amazonas sobre a Avenida Silva Lobo (cf. Mapa 1), 9/08/94)

O termo “maloca” é utilizado para se fazer referência às moradias improvisadas e

“maloqueiro” é a denominação utilizada para fazer referência aos seus moradores.

Durante a pesquisa de campo, quando perguntei quem eram os “maloqueiros”, os

moradores das casas sob os viadutos, passarelas ou nas calçadas não se incluíram nesse grupo,

demonstrando a possibilidade de identificação de um “outro” dentro do universo da população de

rua − o “maloqueiro”. Eles dizem o seguinte sobre os maloqueiros:

“Maloqueiro é um nome que as pessoas que dão. A gente que mora na rua não tem condições, aí as pessoas chama a gente de maloqueiro. Num foi nós que inventamo esse nome, foi eles mesmo.” (Cirléia, moradora do viaduto da Avenida Amazonas sobre a Avenida Silva Lobo (cf. Mapa 1), 9/08/94)

“Maloqueiro que eu sei, no meu modo de pensar, é essas pessoa que vive nessa situação que a gente ‘tá aqui, mas porém num toma um banho, num tem hora prá comer, num tem hora prá dormir, bebe muito álcool, até usa outros tipo de droga, fica com uma roupa o ano inteiro, quando os outros dá outra é que ele troca. Isso aí que eu entendo como maloqueiro. Agora muitos tem nós aqui como maloqueiro, mendigo, mas no íntimo da gente, a gente sabe que num é nada disso, né?!” (Paulinho, morador do viaduto da Avenida Francisco Sales sobre a Avenida dos Andradas (cf. Mapa 4), 13/08/94)

Mapa 4

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Viaduto da Avenida Francisco Sales sobre Avenida dos Andradas

“Maloqueiro é as pessoa que num tem família, por exemplo que nem um homem só, que fica todo sujo, não toma banho, isso é maloqueiro, cabelo sem pentear, isso é maloqueiro. Agora, pessoa que tem família, num tem lugar certo prá fazer [a casa], tem que fazer é debaixo do viaduto mesmo, isso não é maloqueiro não, na minha opinião não.” (Sílvia, moradora da área da Associação dos Catadores de Papel (cf. Mapa 2), 16/08/94)

“Maloqueiro que os outro trata, (...) é porque a pessoa anda suja, talvez a pessoa bebe, tem o vício da bebida, do cigarro, da droga, da maconha, num usa tomá um banho, parece que eles tão desgostoso da vida, só bebe, vai bebendo, bebendo, bebendo, num liga prá uma roupa limpa. (...) quem não é maloqueiro é quem cuida do seu corpo, toma um banho, troca de roupa, preocupa em arrumar um sabão prá tomar banho. Agora aqueles que entrega o corpo prá sujeira é maloqueiro.” (Rosemeire, moradora da área da Associação dos Catadores de Papel (cf. Mapa 2), 16/08/94)

“Se você for olhar, todo mundo é maloqueiro, tá na rua, mexe com lixo, é maloqueiro. (...) Agora eles quer ofender os outros, maloqueiro que eles falam é a pessoa que não toma banho, que fica só por aí. Eles jogam isso prá cima do outro prá poder ofender. O pessoal que tem intriga um com outro, briga um com outro.” (Joselito, morador da calçada da Avenida do Contorno próximo à Associação dos Catadores de Papel, (cf. Mapa 2) 23/08/94)

“Maloqueiro que eu sei é esse que num cuida, num toma banho, só vive aí prás porta dos outro pedindo, fazendo sopa na latinha, no meio da rua assim, todo mundo passando e eles fazendo a sopa. Esse é o maloqueiro.” (Bela, moradora do Viaduto da Silva Lobo sobre a Via Expressa (cf. Mapa 1), 4/08/94)

Os moradores das casas sob os viadutos, passarelas ou nas calçadas não se considerando

maloqueiros, compreendem que esses últimos são aqueles que “perambulam” pelas ruas, que não

se importam com a questão da higiene pessoal e da limpeza, ou seja, têm hábitos diferentes. É

como se eles fossem os seus outros. Isto significa que os “maloqueiros” não são todos aqueles

que moram na rua e sim parte da população de rua que busca sua sobrevivência no percurso das

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praças e ruas. Os “maloqueiros” que, a princípio e pela lógica da construção da palavra, pareciam

ser aqueles que moravam nas “malocas”; pelo olhar dos moradores das casas sob os viadutos, ou

seja, das “malocas”, estão fora e além destas, são exatamente aqueles que não constroem uma

“instalação permanente” permanecendo nas ruas sob as marquises, nas praças da cidade, sem

ponto certo de permanência.

Cabe aqui retomar a noção de Cardoso de Oliveira (1976 e 2000) de identidade

contrastiva, pois é a partir do contato com os outros moradores de rua que aqueles que

improvisam moradias nos locais ocupados percebem e apontam suas diferenças, seja pela forma

de ocupação, seja pela forma como percebem e concebem a possibilidade de sobrevivência na

rua: suas regras e valores. É exatamente porque não se encontram sozinhos e isolados no “mundo

da rua”, que tomam os “outros” desse universo como uma referência para a identificação ou para

a diferenciação. Identificar-se ou não como “maloqueiro” é, de certa forma, afirmar ou não sua

filiação a um universo de concepções sobre o “mundo da rua”. Ao não se identificarem como tal,

os moradores das casas sob elevados, passarelas e viadutos desejam afirmar por oposição seu

estilo de vida, sua posição no “mundo da rua”. De acordo com Cardoso de Oliveira (1976:37)

“a associação de um grupo com um lugar ou com uma pessoa também reflete mecanismos de identificação por contraste, como se os membros do grupo se representassem inequivocamente “semelhantes” entre si enquanto “diferentes” dos membros de outros grupos de referência, numa realização contínua de um “jogo dialético”

Isto implica dizer que “maloqueiro” seria o fundo sobre o qual os moradores das casas

improvisadas indicariam suas diferenças, seria o contraponto de um estilo de vida e, além disso, a

partir da pontuação das diferenças, poderiam reafirmar suas semelhanças com aqueles que

também adotam a mesma forma de instalação nos espaços públicos. Entretanto, pode-se perceber

que a adoção da denominação de maloqueiro para se referir ao “outro” traz consigo uma

representação negativa, tal como descrita por Cardoso de Oliveira (2000). Quando o desejo é de

marcar a diferença entre um estilo próprio de viver no mundo da rua, o “outro” é chamado de

maloqueiro como uma forma de lhe conferir características que são negativas perante a sociedade

como um todo: eles não tomam banho, eles comem nas latinhas e dormem pelas ruas.

É possível pensar que uma primeira diferenciação entre aqueles que são considerados

população de rua se dá pela forma de instalação nos espaços públicos da cidade. Já que quem

ocupa uma área sob um viaduto, uma passarela ou mesmo uma calçada improvisando uma

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moradia, de certo modo, estabelece uma fronteira, define um limite, marca um território, no qual

estão definidas, mesmo que minimamente, regras de sobrevivência e permanência no local.

Aquele espaço até então, impessoal e, geralmente, dado apenas ao trânsito de pedestres, se

modifica, tornando-se um lugar onde “viver na rua” torna-se possível.

“O lugar ocupado por um grupo não é como um quadro negro sobre o qual escrevemos e depois apagamos os números e as figuras. (...) O lugar recebeu a marca do grupo e vice-versa. Então, todos os passos do grupo podem se traduzir em termos espaciais, e o lugar ocupado por ele é somente a reunião de todos esses termos. Cada aspecto, cada detalhe desse lugar tem ele mesmo um sentido que é inteligível apenas pelos membros do grupo, porque todas as partes do 0espaço que eles ocupam correspondem a outros tantos aspectos diferentes da estrutura e da vida da sociedade deles, pelo menos naquilo que teve nela de mais estável.” (Halbwachs, 1950:133)

Os moradores das casas sob os viadutos e passarelas e nas calçadas marcam esses locais

a partir da forma como nele se instalam, diferentemente dos seus outros cuja ocupação é

transitória. Estes adotam outros hábitos e regras para sua sobrevivência e manutenção na rua.

Vivem na rua e sobrevivem da rua, mas a partir de outras referências.

Se como afirmam Durkheim e Mauss (1981) as relações sociais fornecem o material

para a construção das categorias utilizadas pelos indivíduos para compreender e interpretar o

mundo em que vivem, o universo social e espacial onde se encontram passa a ser inteligível a

partir das classificações dos objetos, do espaço, do tempo e das relações que estabelecem com o

próprio meio e com os outros. É a partir da organização social que as classificações sobre o

mundo em que se vive e sobre os objetos que o compõem são construídas. Por isso, o sentido e a

afetividade atribuída às coisas, objetos, lugares e pessoas de uma localidade referem-se à forma

como os grupos ali situados encontram-se organizados socialmente e, dessa forma, as

classificações do mundo e seus objetos diferenciam-se umas das outras.

“Eis como as coisas mudam, de certa forma, de natureza de acordo com as sociedades; é que elas afetam de maneira diferente os sentimentos dos grupos. Aquilo que aqui é concebido como perfeitamente homogêneo é representado alhures como essencialmente heterogêneo. Para nós, o espaço é formado de partes semelhantes entre si, substituíveis umas pelas outras. Vimos no entanto que, para muitos povos, é profundamente diferenciado segundo as regiões. É que cada região tem seu valor afetivo próprio.“ (Durkheim e Mauss, 1981:454)

Assim, os moradores das casas sob elevados, viadutos e passarelas ou nas calçadas, a

partir da forma como se relacionam com o meio, ou melhor, com o “mundo da rua”, construindo

suas moradias improvisadas, percebem o espaço ocupado como seu lugar na cidade, como o local

de moradia, onde se instalaram, se fixaram. Os “outros” − os “maloqueiros” − que também

ocupam espaços nesse “mundo da rua” não se identificariam com os construtores das moradias

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improvisadas porque, a princípio, não se instalam nos espaços públicos da mesma forma e,

conseqüentemente, o concebem, vivem e experimentam de maneira diferenciada, pois não se

fixam em um local, apenas ocupam os espaços por períodos temporários. É como se para esses

últimos o lugar deles na cidade fosse o “mundo da rua” como um todo e não aquele espaço

esporadicamente ocupado. Daí a utilização de uma categoria específica − “maloqueiros” − para

os identificarem e, além disso, para os diferenciarem dos construtores das moradias improvisadas.

Os construtores das moradias improvisadas se referem aos outros segmentos da

população de rua que não constroem moradias como “maloqueiros” e, dessa forma, lhes

conferem denominação diferenciada a partir dos hábitos diferentes que eles adotam.

“Maloqueiro deve ser uma pessoa que não trabalha que não toma banho, não faz nada, então é maloqueiro, mas nós que mora nessas barraca aqui, nós não somos maloqueiro não. A gente trabalha, a gente lava a nossa roupa, nossa barraca são limpa, nossas vasilha tudo limpo, nós somos papeleiro e não maloqueiro.” (Eunice, moradora da calçada da Avenida do Contorno próximo à Associação dos Catadores de Papel (cf. Mapa 2), 24/08/94)

Essa fala busca mostrar que eles se diferenciam tanto pela forma como organizam a

sobrevivência e o espaço que ocupam (morar no barraco, lavar as vasilhas, manter limpo o

ambiente) como também pela atividade que desenvolvem na rua (papeleiro). O fato de ser

papeleiro e passar a maior parte do tempo na rua e, uma grande parte deles, morar nas calçadas

ou sob viadutos não é suficiente para serem identificados como “maloqueiros” pois estes não

seguem as mesmas regras de sobrevivência na rua: não trabalham e não gostam do banho, por

exemplo. Pela diferença afirmam a sua identidade. Como assinala Rodrigues (1989) em sua

discussão sobre a lógica do etnocentrismo, “nós somos diferentes do diferente; nós não somos

eles.” (Rodrigues, op. cit:145)

É importante assinalar, como um último ponto sobre a utilização da categoria

“maloqueiro”, que as categorias trabalho e moradia são de fundamental importância. Para os

construtores das moradias improvisadas o fato de trabalharem como papeleiros e o fato de terem

construído uma moradia fixa, mesmo que essa ocupação e o tipo de moradia não sejam aqueles

socialmente aceitos, implica hábitos diferentes daqueles que utilizam as praças e calçadas como

locais de pernoite.

Os construtores de moradias improvisadas fazem referência à distinção entre eles e os

“maloqueiros”, apontando a adoção de diferentes hábitos, os quais, por sua vez, estão diretamente

relacionados ao mundo do trabalho e da casa. Entretanto, é necessário ressaltar que essas

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referências estão embasadas em valores socialmente aceitos como a sobrevivência adquirida no

mercado formal de trabalho e a moradia mantida através desse trabalho. Tais valores não são

criados pela população de rua. Ou seja, a população de rua, considerada como um grupo

homogêneo, é vista negativamente pela sociedade como um todo, mas o seu segmento que

improvisa moradias sob viadutos, elevados, passarelas ou nas calçadas, busca, de alguma forma,

ser reconhecido em seu “estilo de vida”, se diferenciar de outros moradores de rua adotando

valores legitimados pela sociedade como uma forma de sustentação da distinção que desejam

afirmar. “Numa sociedade capitalista que se organiza com base na compra e venda da força de

trabalho, a legitimidade social, a dignidade pessoal se firmam através da ética do

trabalho.”(Vieira,1992:18) Valores morais estão atrelados ao “trabalhador honesto” e ao chefe de

família responsável que se situam em uma posição oposta à delinqüência e à marginalidade, por

isso o desejo de identificação do morador das casas improvisadas com o trabalhador honesto para

que não seja, em contrapartida, identificado como participante do universo da marginalidade e da

delinqüência, tal como acreditam que os “maloqueiros” sejam.

A sociedade capitalista, reconhecendo como socialmente legítimas as atividades do

mercado formal de trabalho, não confere visibilidade positiva às pessoas e às atividades que lhes

permitem sobreviver, mas que não se encontram formalmente registradas em tal mercado. Assim,

a população de rua como um todo não se enquadra no que se denomina como ética do trabalho

honesto, pois este pressupõe a compra e a venda da força de trabalho e sua realização no mercado

formal. A atividade da coleta de papel e de material reciclável não é considerada uma ocupação

legítima, não é ainda reconhecida como uma atividade de trabalho. Essa visão dominante na

sociedade capitalista é redutora porque não é permeável à diferença; o que não faz parte de seus

regulamentos é visto como algo que está “fora do lugar”, como algo que incorre na “violação de

pressupostos reconhecidamente legítimos”. A população de rua não se enquadra no formato de

trabalho e de trabalhador apregoado como próprios de uma sociedade capitalista e, assim, é

concebida como algo que está “fora do lugar”, são pessoas que se instalam onde não deveriam e

que desenvolvem atividades que não são consideradas e nem sequer reconhecidas como

legítimas.

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3.3.3. OS NÔMADES URBANOS: OS OCUPANTES DAS CALÇADAS SOB MARQUISES E BANCOS DE PRAÇAS

Passo agora a tratar daquelas pessoas que, contrariamente aos habitantes dos baixios de

viadutos, não constroem moradias fixas, pois apenas se instalam temporariamente em algumas

praças ou calçadas sob marquises e, por vezes, também sob viadutos, mas sem construírem

nenhum tipo de edificação.

O contato com esses moradores ocorreu através das informações dos moradores de casas

sob viadutos sobre instituições, em geral religiosas, que realizavam atendimento às pessoas que

moravam na rua. Dessa forma, meu contato com eles ocorreu basicamente junto a essas

instituições. A primeira instituição visitada – Comunidade Reviver − era vinculada à Igreja

Católica e localiza-se na Avenida Afonso Pena, próximo à entrada da Vila Isabel, favela que faz

parte do Aglomerado da Serra, na regional centro-sul. Posteriormente, o filho de uma moradora

do viaduto da Avenida Silva Lobo me levou até a Fraternidade Espírita Irmão Glaucus, localizada

no bairro Padre Eustáquio, na regional nordeste. Ambas as instituições realizam, uma vez por

semana, um atendimento aos moradores de rua. Esse atendimento constituía-se de banho,

alimentação e aquisição de roupas. Na referida Fraternidade Espírita, além desse atendimento, os

moradores de rua ainda contavam com dentista, médico e distribuição de remédios, caso fosse

necessário. Nas visitas a tais instituições, as entrevistas ocorriam no mesmo dia do encontro com

os moradores de rua, pois como eles mudavam com uma certa freqüência dos locais utilizados

para o pernoite, a possibilidade de os encontrar novamente era mais remota. Diferentemente do

que ocorreu com os moradores de baixios de viadutos e passarelas. Esses últimos foram por mim

visitados várias vezes antes e após a realização das entrevistas.

No período da noite é possível observar que algumas calçadas sob marquises e algumas

praças da cidade recebem um público diferente daquele que durante o dia nelas circula. Ao fim

do dia, um grupo vai chegando e transformando os locais em áreas de pernoite. Estendem seus

papelões como isolamento do frio da calçada e se cobrem com seus finos cobertores. A ocupação

dos espaços públicos por estas pessoas é temporária, esporádica − é noturna. Segundo eles

mesmos informam, assim que amanhece recolhem “suas coisas” (o cobertor, o papelão utilizado

para cobrir o chão, suas roupas, sacolas e/ou outros pertences) e saem para mais um dia de

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atividades que garantam sua sobrevivência. Alguns falam que este é o momento de procurar

trabalho, outros de buscar dinheiro, outros de pedir.

“De dia a gente tem sempre que procurar o parque p’rá descansar um pouco. P’rá comer a gente dá sempre uma caminhada vai numa casa pedir alguma coisa.” (Francisco de Assis Bahia da Silva, morador de rua, pernambucano, entrevistado na Fraternidade Espírita Irmão Glaucus em 24/09/94)

“... eu fico debaixo duma marquise isso de noite. De dia eu fico andando caçando um serviço, as vezes vai num restaurante pedir comida. (...) de noite pinta muito trem de sopa e de café com leite, de noite aparece bastante, agora de dia tem que batê a cascuda, que a gente chama que é uma marmitinha de alumínio e uma latinha de leite de criança. Tem que apertá as campanhia nas casa ou entrar nos restaurante.” (Raimundo Furtado da Silva, paraibano, morador de rua, entrevistado na Fraternidade Espírita Irmão Glaucus em 24/09/94)

“... acorda, vai p’rá Praça da Estação, toma banho, lava roupa, aí depois que a gente toma banho, tudo limpinho, a gente vai caçá dinheiro, vai batalhá p’rá caçá dinheiro, p’rá tomá café.” (Rivânia, moradora de rua, mineira, entrevistada na Comunidade Reviver em 29/09/94)”

“...eu sempre cato um papel, eu não passo sem um troco. (...)Eu corro atrás, cato papel, latinha, toda vida eu fiz assim. ‘Charquear’ mesmo eu não gosto não.’Charquear’ é pedir comida, dinheiro.” (José Florentino de Souza, baiano, morador de rua, entrevistado na Comunidade Reviver em 29/09/94)

As atividades que desenvolvem para garantirem a sobrevivência estão relacionadas à

mendicância e aos biscates como a coleta do papel e de material reciclável. As pessoas que

moravam sob as pontes em Los Angeles, entrevistadas por Underwood (1993) também viviam

dessas práticas. Segundo ele, “a economia das pessoas que moravam sob as pontes era baseada

primordialmente na mendicância.” (p.305); a coleta de material reciclável era a segunda

atividade mais desenvolvida, mas segundo ele esta é uma atividade “... mais suja, requer maior

esforço físico e muitas horas e rende menos dinheiro que a mendicância.” (Ibidem, p. 306).

As áreas escolhidas para o pernoite não atendem a critérios muito rigorosos. Situam-se,

na maior parte das vezes, próximas ao centro da cidade, mas em ruas menos movimentadas. Para

o descanso é preciso um local tranqüilo. Sobre a escolha dos lugares para pernoite, eles dizem o

seguinte:

“Lugar que passa menos gente porque no centro de Belo Horizonte é perigoso, tem muita pivetada, muito malandro, tem muitas pessoas maldosa.” (Marcelo Duarte, paulista, morador de rua, entrevistado na Fraternidade Espírita Irmão Glaucus em 24/09/94)

“Eu saia andando à noite, o lugar que fosse mais sossegado, menos movimentado. Aquele lugar que eu achava que eu poderia ter um pouquinho mais de tranqüilidade ali eu ficava.” (Charles Cosme e Damião, belorizontino, ex-morador de rua, entrevistado na Fraternidade Espírita Irmão Glaucus em 08/10/1994)

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A permanência nas áreas onde pernoitam é rara, sendo que a troca desses locais é

constante na vida dessas pessoas. Geralmente a mudança de local acontece devido a reclamações

sobre a presença dessas pessoas em frente às residências ou mesmo porque eles próprios

resolvem mudar de local ou de cidade.

“Tem local que eu passo quinze dias, outros passo seis, outros passo dois.” (José Florentino de Souza, baiano, morador de rua, entrevistado na Fraternidade Espírita Irmão Glaucus em 29/09/94)

“A gente saia, na maioria das vezes, porque o lugar que a gente escolhia para poder ficar o pessoal, dono da residência, não permitia, então a gente tinha que deslocar. Muitas vezes chamavam a polícia e tinha época que a polícia passava direto e mandava a gente sair. Às vezes a gente ‘tava dormindo tinha que levantá. Muitas vezes era os próprio dono, os vigia jogava até água na gente.” (Charles Cosme e Damião, belorizontino, ex-morador de rua, entrevistado na Fraternidade Espírita Irmão Glaucus em 08/10/94)

Não existem regras que definam o tempo de permanência em algum local. Essas pessoas

apenas escolhem alguns locais para pernoitar, elas não se fixam, podendo tanto passar dias e até

meses em um mesmo local, como dormir cada dia sob uma marquise diferente. Muitas pessoas

que adotam essa atitude frente à falta de moradia são de outras cidades e se denominam de

“peregrinos”, “andarilhos”, “trecheiros”, pelo fato de estarem cada dia em um lugar, em uma

cidade diferente.

“Trecheiro ele sai assim na cola de serviço. O andarilho sai, para aqui na cidade, ele enjoa aqui de Belo Horizonte ele vai lá p’rá Contagem.23 Fica lá uns dia, na hora que ele enjoa de contagem ele vai p’rá Betim, enjoa de Betim vai p’rá Mário Campos, ele vai só andando né?. O lugar que ele enjoa que ele vê que num ‘tá legal onde ele vê que tem um rango, uma comida, uma aguinha ali ele queta um tempo. Na hora que ele vê que a água ‘tá meio suja, começa embarreirá demais, o dia começa a num dá nada, aí ele sai fora e assim vai tocando a vida.” (Vanderlei, ex-trecheiro, companheiro de uma moradora de casa sob viaduto da Avenida Amazonas sobre Avenida Silva Lobo, (cf. Mapa 1) 08/08/94)

O “trecheiro” se desloca sempre em razão de trabalho. “São estes os chamados

trecheiros, verdadeiros trabalhadores nômades, que se deslocam para vários pontos do País

desenvolvendo atividades dos mais diferentes tipos: construção civil, trabalho agrícola, garimpo,

pesca etc.” (Vieira,1992:85). O “andarilho”, diferentemente, sempre está mudando pelo desejo

de estar na estrada, pelo gosto de caminhar e mudar sempre.

Quando os migrantes chegam de suas cidades e não têm onde ficar, costumam ir para os

abrigos que oferecem o serviço de albergamento. Estes, em geral, estabelecem um tempo máximo 23 As cidades citadas são próximas à Belo Horizonte e foram utilizadas somente como exemplo do deslocamento que pode ser feito por um andarilho.

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para a estadia de sua clientela, é comum as pessoas passarem por vários deles até esgotar o tempo

em cada um. Além disso, os abrigos24 são locais de pernoite para aqueles que vieram do interior

fazer algum tratamento médico, como também para quem não é da cidade e não tem onde se

hospedar.

Não podendo permanecer nos abrigos durante o dia, quando teoricamente seria o tempo

de procurar um emprego, de providenciar os documentos, de ir ao médico etc, eles passam a

conviver com a rua e suas formas de sobrevivência. Passam a conhecer as instituições25 que

possuem programas de atendimento aos moradores de rua, os locais onde alguns grupos

(religiosos, na grande maioria) fornecem refeições gratuitas e assim eles vão sobrevivendo na rua

e da rua. Quando ainda estão nos abrigos retornam à noite para os mesmos e, quando esse tempo

acaba, passam a ocupar as calçadas sob as marquises. Passam a conhecer a rede de ações que

amenizam as dificuldades de sobrevivência na rua e estabelecem nova rede de relações com os

outros moradores de rua e com as instituições que os atendem. “Quando o dormir na rua passa a

ser uma constante, novas relações se estabelecem, hábitos começam a ser incorporados, novos

códigos são criados.” (Vieira, 1992:96) De acordo com Vieira (op. cit.), isto ocorre porque ser

morador de rua não implica apenas enfrentar carências, mas também adquirir novos referenciais

de vida social que diferem daqueles relacionados com valores associados ao trabalho, à moradia e

às relações familiares. A partir do momento que as ruas são adotadas como o espaço de moradia,

as referências de vida social são aquelas travadas no cotidiano das calçadas, das praças, das

instituições religiosas e dos abrigos; ou seja, no cotidiano de quem vive a rua não somente como

lugar de passagem, mas de permanência, mesmo que temporária. Aqueles que passam a morar

nas ruas desenvolvem um modo de vida próprio nesse contexto, elaborando formas específicas e

criativas de sobreviver e conviver no mesmo.

24 A cidade de Belo Horizonte conta com os seguintes serviços de albergamento: Albergue Noturno Municipal: oferece pernoite, jantar, café da manhã, higienização, acompanhamento e encaminhamento social para população masculina de rua. Abrigo São Paulo: centro de triagem e acompanhamento social à população em situação de risco pessoal e social do município. Abrigos para pessoas moradoras em área de risco: gerenciados pela Prefeitura Municipal. Com duas instalações, uma no Bairro Pompéia e outra no Taquaril (região Leste), esses abrigos oferecem espaço suficiente para que uma família possa se instalar com seus pertences. 25 Muitas destas instituições são religiosas, paróquias, centros espíritas, igrejas evangélicas, que fornecem refeições pelo menos uma vez por semana, fazem doações de roupas, permitem o banho, providenciam corte de cabelo, tratamento médico e dentário.

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Depois de passar por vários abrigos, de procurar emprego e não encontrar nada no

mercado formal do trabalho, muitos dos moradores das ruas chegam a essa condição. Ou seja, é a

partir destas circunstâncias que, em geral, irão adotar a rua como local de permanência noturna,

dormindo em alguma calçada, debaixo de alguma marquise ou em alguma praça, e, diurna, pois,

além disso, passam a sobreviver das atividades possíveis de serem desenvolvidas na rua como a

catação do papel, os biscates tais como descarregar um caminhão e do que eles chamam de

“achacar” ou “manguear”, que significa pedir dinheiro, roupa ou comida. “A rua pode ter pelo

menos dois sentidos: o de se constituir num abrigo para os que, sem recurso, dormem

circunstancialmente sob marquises de lojas, viadutos ou bancos de jardim ou pode constituir-se

em um modo de vida, para os que já têm na rua o seu hábitat e que estabelecem com ela uma

complexa rede de relações.” (Vieira, op. cit.: 93)

Essas pessoas que perambulam pelas ruas e pernoitam sob as marquises, estabelecem

com a rua e através da rua novas relações, têm novas referências para percebê-la, pois passaram a

viver nela e dela sobreviver. Não são mais pessoas que moram em uma casa e percebem a rua

apenas como o espaço exterior ao ambiente doméstico. Têm um olhar diferente sobre a rua e

outros espaços públicos da cidade a partir dos hábitos nômades e da experiência de encontrar-se

na rua, sendo essa sua localização no mundo. Segundo Vieira (1992)

“Diferentemente dos que passam pela rua circunstancialmente, os que já moram nela possuem um modo de vida próprio, ou seja, desenvolvem formas específicas de garantir a sobrevivência, de conviver e ver o mundo. Têm sobre a cidade um outro olhar, atribuindo novas funções aos espaços públicos, às instituições. A rua entendida como espaço de morar e sobreviver, oferece diferentes possibilidades que são exploradas criativamente por seus moradores.” (p.96)

Apesar de permanecerem nos locais de pernoite por pouco tempo, estabelecem laços

relativamente estáveis com outros moradores de rua. Estão sempre se referindo aos “amigos da

rua” com os quais partilham a cachaça, o local de dormir, o papelão e as informações sobre os

locais de atendimento aos moradores de rua ou bons locais para pernoitar. Estão, na grande

maioria, sozinhos. As famílias, quando têm, não moram na cidade onde estão ou já perderam o

contato. Assim, nessa nova rede de relações que estabelecem no “mundo da rua”, passam a travar

laços de solidariedade com aqueles outros que também fazem uso da rua como espaço de moradia

e sobrevivência.

“Os colega chama, tem muitos colega conhecido de rua mesmo que chama, aí a gente vai p’rá lá, pega o papelão, arruma na rua, anda com uma coberta ....” (José Florentino de Souza,

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baiano, morador de rua, entrevistado na Comunidade Reviver em 29/09/94, falando sobre a escolha dos lugares ara pernoite)

“Sempre gostei de ficar sozinho, não gosto muito de companhia não, mas às vezes acontecia de ficar com alguém, porque nessa época, quando eu iniciei na rua eu tinha problema com bebida né, fazia uso de bebida alcóolica, então eu conheci pessoas que fazia uso também e ali a gente ficava conversando, batendo papo e tomando a nossa cachacinha. Então a gente acostumava ali e ficava, passava um a confiar no outro e a gente ficava três, quatro mês no mesmo lugar. E estando assim a gente sentia um pouco mais seguro.” (Charles Cosme e Damião, belorizontino, ex-morador de rua, entrevistado na Fraternidade Espírita Irmão Glaucus em, 08/10/94)

“Tá com seis anos que eu sempre fico aqui, vou ao norte, volto de novo porque sempre eu tenho uns amigo na rua, somos papeleiro também e tenho muito amigo, meus tio também mora aqui, mas parente não adianta, tem que ser os amigo da rua.” (Francisco de Assis Bahia da Silva, pernambucano, morador de rua, entrevistado na Fraternidade Espírita Irmão Glaucus em 24/09/94)

De modo familiar, em seu estudo sobre as pessoas que vivem sob pontes em Los

Angeles (USA), Underwood (1993:313) assinala que percebeu a “... amizade como uma

importante instituição social que sustenta a subcultura das pessoas que vivem sob as pontes.”

Ele diz que, pelo fato delas viverem dessa forma, entram em contato várias vezes ao longo do dia

e trocam informações, partilham comida, bebida, cigarro e dinheiro. Segundo este autor, isso

representa um contraponto à literatura que afirma que os sem-casa são “desafiliados” e não têm

contato com a família, pois apesar de realmente não terem contato com os pais e irmãos eles se

apegam aos amigos da rua e, dessa forma, pode-se dizer que se filiam, criam laços de

sociabilidade importantes que garantem sua sobrevivência não apenas individualmente, mas

também como grupo.

O conceito de networks, utilizado por Barnes (1954) e Bott (1957), diz respeito às

“relações de caráter pessoal que um indivíduo configura em torno de si” (Mitchell,1980:71) e

aqui torna-se importante a sua utilização para enfocar esses laços que os “nômades urbanos”

estabelecem entre si. Os novos relacionamentos que travam no mundo da rua, e que não estão

pautados por relações de trabalho ou de família, são contatos que se estabelecem pela forma de

sobrevivência que, cotidianamente, buscam no “mundo da rua”. Segundo Epstein (1961)26,

através da conversa uns com os outros,

“as normas e valores adequados a vida na cidade, se aclaram, redefinem e reafirmam no seio da rede real27, (...) graças ao conceito de rede, dispomos de uma hipótese acerca da forma em

26 Citado por Mitchell (op.cit.:71) 27 De acordo com Epstein (op. cit.) rede real deve ser entendida como pessoas que, geralmente, vivem em um mesmo local, mas não conhecem todos que formam o conjunto dos moradores deste local, apesar de muitos se conhecerem

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que é provável que se difundam as normas e valores em uma comunidade, assim como a forma que tem lugar o processo de retroalimentação.” (p.72) (Tradução Livre)

A importância desses contatos entre os “nômades urbanos” não se limita ao fato de estarem sendo

solidários uns com os outros, mas também por estarem reafirmando ou, como assinalou Epstein

(op. cit.), realimentando seu conjunto de valores e hábitos próprios e necessários para a

sobrevivência da subcultura do “mundo da rua”.

Antes de fixarem-se nas ruas elas contam que trabalhavam, seja na agricultura seja no

meio urbano, mas a referência da maioria deles é com as profissões não especializadas.

“Já trabalhei de pedreiro, pintor, trabalhei em Santa Lúcia28, já morei lá. Morava no alojamento.” (Francisco de Assis Bahia da Silva, pernambucano, morador de rua, entrevistado na Fraternidade Espírita Irmão Glaucus em 24/09/94)

“Sou paraibano, do sertão do nordeste. Trabalhava na agricultura, mas lá nem isso ‘tá produzindo. Eu digo vou-me embora, debandá nesse meio, vou caçá um lugar que me dê pelo menos um emprego.” (Raimundo Furtado da Silva, paraibano, morador de rua, entrevistado na Fraternidade Espírita Irmão Glaucus em 24/09/94)

“A primeira vez que eu vim eu trabalhei em Ouro Branco na Odebrecht, sete meses, mandando dinheiro direto p’rá casa todo mês. Aí eu pedi p’rá me mandar embora, fui p’rá casa, passei trinta dias. Voltei de novo e fichei na Constran. Trabalhava de carpinteiro. Trabalhei quase dez meses ali naquele viaduto de Contagem, na Avenida Amazonas. Saí, fui p’rá casa, passei trinta dias e mandando dinheiro p’rá casa direto. Depois voltei de novo, fichei na Tratex fazendo a construção da Prefeitura de Betim, trabalhei mais sete meses lá, fui p’rá casa. É quando cheguei em casa peguei o papel do seguro desemprego, aí esperei o seguro desemprego, quando recebi a última parcela parti p’rá aqui de novo, foi quando fichei na Coemp esta lá no Sion, depois entrei na AGT aí foi quando o negócio pegô mesmo e aí eu fiquei perambulando, sofrendo.”29 (José Florentino de Souza, baiano, morador de rua, entrevistado na Comunidade Reviver em 29/09/94)

As condições de vida e de trabalho vão se deteriorando ao longo do tempo. A perda do

trabalho e a distância da família favorecem a criação de novos laços e de novas relações com a

rua que passa a ser, gradativamente, o espaço não só de pernoite, mas da permanência na cidade.

Aqueles que “perambulam” pela cidade e não se fixam em nenhum espaço em especial

são muitas vezes classificados como “maloqueiros”, principalmente por aqueles que se instalam

de forma permanente em algum espaço público construindo casas. Apesar de estarem

entre si ou conhecerem alguém que os conhece. Por exemplo: João conhece Maria, Pedro e Adriana que também se conhecem entre si, mas Pedro conhece Joaquim que tampouco conhece Maria, Adriana ou Pedro. Apesar de nem todos se conhecerem eles formam a rede real. 28 Santa Lúcia é um bairro da zona sul de Belo Horizonte que tem nas suas vizinhanças duas favelas, o “Morro do Papagaio” e a “Barragem Santa Lúcia”. 29 As empresas citados por esses morador de rua, Odebrecht, Constran, Tratex, Coemp e AGT, são todas do ramo da construção civil.

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“perambulando” pelas ruas, eles próprios não se consideram como “maloqueiros”, para eles os

“maloqueiros” são os “caídos” que se entregaram à bebida, que ficam na sujeira.

“Maloqueiro é aquele que já se entregou, anda no lixo. (...) Aqueles que se entrega no chão, que fica na sujeira, aquela pessoa que anda limpa não é maloqueira.” ((Francisco de Assis Bahia da Silva, pernambucano, morador de rua, entrevistado na Fraternidade Espírita Irmão Glaucus em 24/09/94)

“O maloqueiro é aqueles que num toma banho, passa quinze dias, um mês, num se liga p’rá toma banho, fica sujo, aquela turma todinha só bebendo cachaça.” (José Florentino de Souza, baiano, morador de rua, entrevistado na Comunidade Reviver em 29/09/94)

“O maloqueiro, no nosso entender, são pessoas que pode-se dizer, mendigo, é idêntico à mendigo, porém o maloqueiro ainda tem uma discriminação a mais que o mendigo, porque o mendigo é um pedinte que necessita de ajuda e o maloqueiro já é tirado como vagabundo, sem vergonha, entendeu?, um mau elemento e talvez até um criminoso30. Esse é o nosso entender com relação à essa palavra.” (Charles Cosme e Damião, Belorizontino, ex-morador de rua, entrevistado na Fraternidade Espírita Irmão Glaucus em 8/10/94)

Mais uma vez a limpeza e a higiene estão presentes quando se fala sobre o maloqueiro.

O fato de não tomar banho, de não usar roupas limpas, de não cuidar do próprio corpo torna-se o

indicador de identidades de quem faz da rua seu espaço de moradia diferenciando os usos e as

relações que estabelecem com tal espaço. Burke (1996), ao discutir o hábito de tomar banho,

assinala que “uma das maneiras mais fáceis pela qual os indivíduos numa certa cultura podem

se diferenciar dos indivíduos de uma outra qualquer está em chamá-los de sujos. (...)”

De acordo com as definições obtidas junto à população de rua, “maloqueiro” é aquele

indivíduo que alcança o estágio final da degradação humana. Ele seria a expressão das perdas

morais e materiais ocorridas ao longo de sua vida. “Ficam em qualquer lugar”, “não procuram

trabalho”, “não se preocupam em cuidar do próprio corpo”. O “maloqueiro” representaria a

ausência total desses hábitos e costumes. Eles são chamados de “caídos”, literalmente sem forças

para “retomarem a caminhada”, só que aqui a caminhada seria de volta a um passado, de volta

àquele ponto inicial, no qual, na maior parte das vezes, a rua não figurava como o espaço da

moradia. Como disse um entrevistado: é como se “a cabeça da pessoa ficasse vazia”, paralisada,

apenas mandando energia para o corpo continuar de pé. Esse mesmo informante também

descreve as pessoas que moram nas ruas como “... pessoas [que parecem] índio, as pessoas

selvagem”.

30 Com relação a essa referência do maloqueiro associada à criminalidade o dicionário Aurélio (1988) inclui em sua definição de maloca “grupo de gente que não inspira confiança, grupo de salteadores.”

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“Quando a gente ‘tá na rua a gente tem uma opção, a gente vai buscar alguma coisa, ou lá vai p’ro trabalho ou então vai fazer alguma coisa, vai entregar alguma coisa, mas p’rá quem mora na rua não, a rua p’rá ele é a casa dele, o teto dele é o céu, chove, ele ‘tá debaixo da chuva, esconde um pouquinho na marquise, continua andando, esconde mais um pouco, continua andando, vê uma água empoçada ali bebe daquela água mesmo, eles tem vergonha de chegar numa casa e pedi um copo d’água (...) se eles ‘tão com fome, eles não tem coragem de chegar na casa batê palma, conversa com as pessoa, trocá umas idéia numa boa, trocá um prato de comida, ele pega aquela que ‘tá lá no lixo mesmo e come, então o cara fica lerdo, a cabeça da pessoa fica vazia, num pensa nada num funciona, parece que paralisa, o miolo descola e fica só mandando energia p’ros nervo das pessoa, só p’rá ele andá, caminhá, num pensa (...)” (Vanderlei, ex-trecheiro, companheiro de uma moradora de casa sob o viaduto da Avenida Amazonas sobre a Avenida Silva Lobo, (cf. Mapa 1) 8/08/94)

A vida na rua passa a ser expressão da degradação material e física. A pessoa foi perdendo ao

longo do tempo bens materiais, laços e relações afetivas e as ruas por onde “perambula” e alguns

de seus pontos passam a ser suas referências: o bar onde podem lhe fornecer água ou mesmo uma

“cachaça”, a padaria cujos freqüentadores podem dar uma esmola, a esquina onde pode pernoitar.

A sobrevivência é mantida pela força do corpo que ainda consegue se manter de pé andando

pelas ruas e continuar existindo apesar de todas as dificuldades. Ela vive na solidão nômade, pois

seus contatos sociais não são permanentes assim como os locais onde perambula. Suas

referências sociais e de vida coletiva já se perderam no tempo e sua dignidade e auto-estima já

foram solapadas pela luta diária da sobrevivência numa sociedade que valoriza e reconhece como

legitima a vida que se mantém através do “trabalho honesto” e não da solidariedade e da

mendicância.

Esse indivíduo é aquele denominado de “caído”, segundo Vieira (1992:102). Ele tem

uma “história de perdas sucessivas: laços familiares, emprego, condição física.” Essa imagem

do “caído” “é reforçada pelas instituições que produzem a figura do “indigente” , do “carente”,

e pelas polícias, do “vadio” e do “maloqueiro”31.

Discutindo o perfil da população de rua, Zaluar (1995:55) ressalta que,

“a simbologia da queda é particularmente forte entre os que abandonaram os laços sociais com a família, os parentes, os amigos e passaram a viver na solidão nômade dos que perderam seus referenciais de organização social, tão importantes na construção de identidades sociais positivas e de personalidades com auto-estima e noção de dignidade própria.”

Aqueles que não constroem instalações permanentes se apresentam como selvagens para

aqueles outros que constroem uma edificação nos baixios de viadutos. A construção das

31 Maloqueiro aqui entendido como aquele se maloca, ou seja, que se esconde, por vezes, da polícia mesmo.

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“malocas” não é compreendida como uma forma de atualização e retradução da atitude do ser

humano de se abrigar e sim como uma maneira não reconhecida socialmente como legítima de

moradia. Não se percebe o quanto essas construções também abrigam valores e hábitos próprios

dessa experiência ímpar que é ter as ruas e calçadas como local de moradia. Eles são

“maloqueiros” porque improvisam instalações sob baixios de viadutos e nas calçadas, eles

habitam as chamadas “malocas” que, por sua vez, podem significar o “retorno” a uma forma

precária de habitar. Os diversos sujeitos adotam novas formas de usar espaços públicos até então

previstos para outros usos e a partir dessa apropriação eles se identificam − são moradores de

espaços públicos, “maloqueiros”, “peregrinos”, “trecheiros” e “caídos”, fazem parte da população

de rua − e identificam o próprio espaço que transforma-se em local de variadas formas de

instalação. Como assinala Ferrara (1993:21) “O espaço é informado pelo uso que o transforma

em lugar, em ambiente público ou privado.” As instalações fixas ou temporárias conferem aos

espaços públicos novos sentidos pois estes transformam-se em espaços privados, onde se

realizam atividades domésticas, e em espaços de trabalho. A população de rua, ao improvisar

habitações nesses espaços, introduz novas formas de morar e sobreviver na paisagem urbana

contemporânea, a qual passa a incorporar um novo cenário que revela o universo de valores

referentes ao “mundo da rua”. Isso se contrapõe ao que Belo Horizonte, uma cidade planejada,

traçou como forma de ocupação para o espaço urbano. É claro que muito tempo já se passou e

muito já se transformou do projeto de Aarão Reis, mas o que desejo ressaltar é que a idéia de

cidade planejada pressupunha atividades, funções e usos bem definidos para seus espaços e

atualmente ela é palco dessas formas de instalação improvisadas nas calçadas e baixios de

viadutos. É o planejamento, a racionalidade e a idealização, não só de um formato de cidade, mas

de um conjunto de ideais que ela seria expressão material32, sendo contrapostos à improvisação

da forma de morar expressa por meio da precariedade do próprio abrigo. É a desordem que mais

uma vez se debate com o desejo de ordenação no espaço público, mas ordem e desordem

continuam a coexistir.

32 Cf. Capítulo Um “A Cidade Como Projeção dos Imaginários Sociais”

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3. 4. A HETEROGENEIDADE NA HOMOGENEIDADE

As pessoas, famílias e grupos que ocupam e se apropriam de espaços públicos da cidade

são, de uma maneira geral, considerados como aqueles que constituem a população de rua, os

sem-casa. Um grupo aparentemente homogêneo caso se considere como seus componentes todos

aqueles que adotam a rua como local de moradia. Em seu trabalho sobre as pessoas que moram

sob as pontes e viadutos em Los Angeles, Underwood (1993) assinala que “a noção típica sobre

um sem-casa, sugere que seja um grupo relativamente homogêneo, mas (...) existe uma variedade

enorme de estilos de vida, habilidades, dificuldades e trajetórias.” (op.cit:IX)33 Por isso é

importante ressaltar o fato das pessoas, famílias e grupos que compoem tal população terem

práticas, experiências e valores relativos ao “habitar a rua” diferenciados porque se apropriam,

usam e experienciam de várias maneiras os espaços que ocupam. A heterogeneidade da

população de rua pode, então, ser apreendida como resultado de visões e percepções de mundo

particulares e próprias a cada tipo de experiência, vivência e relação estabelecida com o espaço

público ocupado.

A transformação de espaços públicos em local de moradia a partir da improvisação de

moradias faz com que os sujeitos que realizam essa prática se apropriem desse espaço dotando-o

de particularidades − o plantio de verduras, a criação de animais, as atividades domésticas

cotidianas de lavar roupas, arrumar a casa etc − que são uma maneira de demarcar o território

ocupado e, mais do que isso, de conferir ao espaço, originalmente público, marcas de

privacidade.

A adoção das calçadas sob marquises como abrigo, dos bancos de praça como local de

pernoite configuram esses espaços como locais onde é possível não somente passar por eles, mas

também permanecer mesmo que seja temporariamente por algumas horas ou algumas noites.

Dormir nestes lugares implica que os sujeitos estão buscando um ponto de descanso, de retorno

após a caminhada diária de luta pela sobrevivência na rua e da rua.

Com efeito, são as práticas, valores e usos diferenciados que marcam e caracterizam a

população de rua da cidade, pois contribuem para a construção dos recortes e categorias através

dos quais eles se pensam, se compreendem e atribuem sentido a essa forma específica de vivência

33 Tradução livre

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da moradia no espaço urbano. Elas expressam mapas cognitivos através dos quais os indivíduos

orientam sua prática na sociedade.

Discutindo sobre gosto de classe e estilos de vida Bourdieu (1982:82) assinala que “as

diferentes posições no espaço social correspondem estilos de vida, sistema de desvios

diferenciais que são a retradução simbólica de diferenças objetivamente inscritas nas condições

de existência.” Trazendo essa discussão para o universo da população de rua, dos sem-casa e

pensando diferentes posições no interior desse mesmo grupo, é possível assinalar que, em suas

várias formas de instalação nas ruas, praças e calçadas da cidade, adotando posturas e atitudes

diferenciadas em relação a essa forma específica de moradia, os sujeitos desse universo estão

revelando suas percepções e interpretações dessa vivência. Isto é, o que expressam por meio de

atitudes, classificações e usos diferenciados dos espaços são as diferentes posições que ocupam

no universo da população de rua, a expressão de sua heterogeneidade. Essa heterogeneidade também pode ser percebida caso o olhar se detenha na

precariedade das instalações. Os materiais que são utilizados nas instalações permanentes, ou

seja, na construção dos “barracos”, e naquelas temporárias, os pernoites em bancos de praças, nas

calçadas sob as marquises, são todos eles materiais encontrados na atividade de coleta do lixo.

Isto significa que são materiais que a sociedade considera como algo que deve ser colocado fora

do ambiente doméstico ou de trabalho. Além disso, têm a característica da pouca durabilidade, o

papelão por mais resistente que seja acaba se desfazendo pela ação da chuva, da umidade e do

calor, a lona também acaba se rasgando com o tempo e o madeirite, assim como esses outros, não

resiste muito. Essa utilização de materiais tão frágeis à ação do tempo se contrapõe, de certa

forma, à tentativa de construir locais de moradia com características de permanência. Entretanto,

o que se pode perceber é que a construção dos “barracos” com esses materiais nos baixios de

viaduto, expressa como os sujeitos que habitam essas moradias têm uma relação de

pertencimento mais forte com o lugar que ocupam do que aqueles que apenas pernoitam numa

calçada ou banco de praça também se utilizando seja da lona ou do papelão. Isto implica dizer

que as condições materiais de existência referentes à forma como esses sujeitos que conformam a

população de rua se instalam nos espaços ocupados também revelam as relações diferenciadas

que estabelecem com os mesmos. A precariedade das diversas formas de instalação deixa

transparecer as condições materiais de existência da população de rua.

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Em sua discussão sobre condição de classe e posição de classe, Bourdieu (1982:3)

afirma que “cada classe social (...), possui propriedades de posição relativamente independentes

de propriedades intrínsecas como por exemplo um certo tipo de prática profissional ou de

condições materiais de existência.” Apesar de partilharem da mesma precariedade no que se

refere às condições materiais de existência (a vivência em instalações precárias, sejam elas

permanentes ou temporárias, a improvisação dos utensílios e objetos domésticos através dos

materiais coletados nas ruas, a sobrevivência diária por meio da coleta de papel, de material reciclável

ou de atividades outras desenvolvidas no “mundo da rua”) e, por vezes, das mesmas atividades

profissionais, existem diferenças entre a população de rua inerentes ao modo como organizam os

lugares ocupados para viver essa experiência de fazer moradias ou pontos de pernoite em espaços

públicos. A “pista” que retiramos daí é que a forma de instalação pode ser reveladora de um

conjunto de valores e hábitos próprios de grupos diferenciados que fazem parte da população de

rua.

Adotar uma área sob um viaduto e nela construir uma moradia, pernoitar numa calçada

sob uma marquise ou num banco de praça são atitudes que expressam diferenças não só de

posições no interior do universo da população de rua como também de uso, organização e

classificação dos espaços ocupados. A instalação em uma área sob um viaduto com a construção

de uma moradia é, no mínimo, uma atitude diferente, para não dizer oposta, do perambular pelas

ruas e adotar uma calçada como local de pernoite. Conseqüentemente, foi possível perceber que

essas formas de uso e apropriação dos espaços ocupados, fazem com que os sujeitos dessas

práticas se percebam como diferentes e se afirmem como tais e percebam os outros do mesmo

universo da população de rua como partes diferentes de um mesmo universo. São também

sujeitos que utilizam áreas e espaços públicos para o pernoite ou instalação, mas que se

diferenciam no que diz respeito ao uso e a forma como se instalam nas mesmas. Daí a utilização

de classificações e denominações diferenciadas para se identificarem − quem eles são − e

identificarem os outros.

Isto pode ser compreendido pelo fato de que as classificações que se processam no

interior de uma sociedade composta de segmentos diferenciados variam de grupo para grupo.

Assim, várias formas de classificar relações e objetos têm lugar no mesmo universo e se

enfrentam a todo instante. “Este trabalho de categorização, quer dizer, de explicitação e de

classificação, faz-se sem interrupção, a cada momento da existência corrente, a propósito das

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lutas que opõem os agentes acerca do sentido do mundo social e da sua posição nesse mundo, da

sua identidade social (...).” (Bourdieu,1989:142)

É como se os vários sujeitos do universo da população de rua, que têm em comum a

falta de moradia e conseqüentemente se instalam e usam os espaços públicos de diversas

maneiras, ao se classificarem e classificarem os outros, a partir de categorias e recortes

diferenciadas, explicitassem suas diferenças através da forma como percebem e experimentam o

mundo social no qual estão inseridos.

A pesquisa de campo tornou claro este trabalho de classificação. Tomando apenas um

ponto para ilustração desse fato, vale a pena ressaltar a utilização do termo maloqueiro e a

compreensão de quem pode e permite ser assim denominado. Aqueles sujeitos que se instalavam

em áreas sob viadutos e passarelas e ali construíam uma moradia não se identificavam com

aqueles outros, também instalados em áreas públicas como calçadas ou praças, mas que não

construíam moradias e, dessa forma, se relacionavam e organizavam de maneira distinta o espaço

ocupado. Esses últimos eram considerados pelos primeiros como sendo os “verdadeiros”

maloqueiros, aqueles que perambulam pelas ruas da cidade, que não têm local fixo de pernoite,

que nem sempre tomam banho e tampouco estão envolvidos cotidianamente com algum tipo de

trabalho. Isso implica dizer que a denominação de maloqueiro, atribuída, inclusive pela

população de rua, indistintamente àqueles que adotam espaços públicos como locais de moradia,

tem seu conteúdo questionado por aqueles que se negam a serem identificados como tal, por

exemplo, alguns moradores das casas sob viadutos e passarelas.

Segundo Bourdieu (1989), os objetos do mundo social podem ser percebidos e

classificados de maneiras diferenciadas porque sempre comportam uma margem de

indeterminação e, como objetos históricos, são sujeitos a variações no tempo, estando sua

significação relativamente indeterminada, em suspenso. Essa indeterminação é que fundamenta

uma pluralidade de visões de mundo, ligada, então, à pluralidade de pontos de vista, como

também fundamenta as lutas simbólicas pela produção e imposição da visão de mundo legítima.

Essas lutas simbólicas são cotidianamente travadas no interior de grupos sociais e na

sociedade como um todo, visto que a todo momento, dada essa margem de indeterminação

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própria das classificações sobre o mundo social34 no qual estamos inseridos, ocorre uma disputa

pela legitimação de visões de mundo, de recortes e categorias que possam ser considerados

expressões válidas do mesmo. As lutas são simbólicas porque ocorrem no plano onde se dá a

construção desses instrumentos que classificam objetos e o próprio mundo social permitindo aos

vários grupos sociais se compreenderem, se interpretarem e conferirem sentido à forma como

vivem e experimentam os contextos nos quais se encontram. É possível dizer que as lutas

simbólicas são responsáveis pelo estabelecimento das distinções entre os vários grupos sociais,

pelo fato de estarem buscando implementar como legítimas as categorias e classificações que

melhor exprimem as relações e as visões de mundo de um determinado grupo.

Em se tratando da população de rua, o que se pode perceber em relação às lutas

simbólicas é que elas também ocorrem nesse universo que impõe distinções entre as pessoas,

famílias e grupos que ocupam diferentemente os vários espaços públicos adotando-os como

locais de moradia. As formas diferenciadas de instalação nesses espaços expressam não somente

estratégias específicas em relação ao problema da falta de moradia, mas também revelam formas

de expressão das posições ocupadas no interior de um segmento social − os sem-casa, a

população de rua. Modos de viver, de estabelecer relações com amigos e familiares, de organizar

os espaços onde se instalam, enfim, estilos de vida diferentes são expressos por essas pessoas ou

famílias, os quais são relativos às posições que ocupam no mundo da rua35: sejam eles moradores

de casas sob viadutos, andarilhos que pernoitam sob marquises ou nos bancos de praça ou mesmo

participantes do movimento dos sem-casa. Reiterando esse raciocínio, vale a citação de Bourdieu

(1982:14)

“uma classe não pode jamais ser definida apenas por sua situação e por sua posição na estrutura social (...). Inúmeras propriedades de uma classe social provêm do fato de que seus membros se envolvem deliberada ou objetivamente em relações simbólicas com os indivíduos das outras classes, e com isso exprimem diferenças de situação e de posição segundo uma lógica sistemática, tendendo a transmutá-las em distinções significantes.”

Isto implica dizer que uma classe também se define através de relações simbólicas que expressam

lutas e conflitos no universo das classificações dos objetos e do próprio mundo tornando claro 34 Mundo social é pensado aqui de acordo com a proposição de Bourdieu que aponta a possibilidade de “... representar o mundo social em forma de um espaço (a várias dimensões) construído na base de princípios de diferenciação ou de distribuição constituídos pelo conjunto das propriedades que actuam no universo social considerado, quer dizer, apropriadas a conferir, ao detentor delas, força ou poder neste universo.” (Bourdieu, 1989:133) 35 Cf. nota n.º 22 desse capítulo.

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determinadas posições sociais, pois através da lógica da distinção as classes sociais exprimem as

diferenças de situação e de posição que as separam. A população de rua, por sua vez, se

diferencia não somente porque utiliza os espaços públicos de maneiras diversas através das várias

formas de instalação que existem na cidade, mas também por classificarem e perceberem o

espaço ocupado e seu entorno de maneiras peculiares, relativas a um conjunto de hábitos e

valores, à forma como vivenciam as mais variadas situações do seu cotidiano. Além disso, ao se

reportarem uns aos outros valendo-se de termos específicos do seu universo, como “maloqueiro”

e “maloca”, e com eles não se identificarem, os moradores de rua expressam o conflito existente

entre as classificações que lhes são atribuídas, não em relação ao termo propriamente dito, mas ao

seu conteúdo. Dessa forma, também deixam claro que, ao não adotarem hábitos e

comportamentos típicos da definição de um “maloqueiro”, ocupam uma posição diferenciada no

“mundo da rua”, visto que a relação que estabelecem com o espaço apropriado, com os objetos e

pessoas do seu entorno, é distinta daquela de um “maloqueiro típico” − conforme a maioria das

definições estabelece.

É importante ressaltar que as diferenças entre a população de rua também se inscrevem

no campo das trajetórias dos sujeitos que a conformam. De onde vêm, para onde se deslocam,

onde permanecem e onde desejam chegar são considerações que fazem com que adotem formas

diferenciadas de se instalar e se relacionar com os espaços ocupados. Existem aqueles que

realizam as instalações permanentes construindo seus “barracos” e existem também as instalações

temporárias as quais se caracterizam pelos pernoites realizados em algumas praças e calçadas sob

marquises. A partir dessas duas formas de instalação é importante perceber onde se situam os

projetos pessoais dos sujeitos das mesmas. Aqui surge então uma pergunta: é possível deduzir

que aqueles que se instalam temporariamente nas calçadas sob as marquises não têm projeto

pessoal de estabelecer-se na cidade, criando laços e raízes com a mesma e por isso apenas adotam

pontos de pernoite? Ou será o contrário, de tão vinculados com a cidade “sentem-se em casa” em

qualquer uma de suas praças e calçadas?

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3.5. DISCUTINDO IDENTIDADE

Até aqui, este capítulo abordou características dos sujeitos desta investigação que dizem

respeito a sua conformação como um grupo heterogêneo, ou seja, assinalou que a população de

rua pode e deve ser considerada com um segmento populacional que constitui a paisagem urbana

atual e que se diferencia não somente dos demais sujeitos que não têm a rua como local de

moradia, mas também daqueles outros que, assim como eles, se apropriam de espaços públicos

transformando-os em lugares onde se instalam e implementam sua forma de morar na cidade. A

busca da afirmação da distinção e, mais do que isso, da definição de quem eles são36 e como

devem ser considerados é que sugere o início da discussão sobre identidade37.

Buscando traçar um panorama das formulações de identidade para discuti-las no mundo

contemporâneo, Hall (1995) parte das concepções do sujeito do Iluminismo, do sujeito

sociológico e do sujeito pós-moderno. O sujeito do iluminismo é aquele que não muda durante

sua existência, ele é unificado, contínuo. O sujeito sociológico pressupõe a necessidade dos

contatos para que sua construção ocorra, visto que ela se dá em relação ao outro. A identidade vai

ser pensada como uma construção através da relação entre o ‘self’ e a sociedade. O sujeito é

possuidor de um eu real que dialoga com o mundo exterior e com as outras identidades podendo,

então, se transformar. Mesmo aqui a idéia de um sujeito unificado permanece. O sujeito pós-

moderno é aquele fragmentado, que não é portador de uma identidade fixa, assumindo diversas

identidades em vários momentos de sua existência. É importante ressaltar que essas identidades

podem, inclusive, ser contraditórias. Este é o sujeito descentrado que possui identidades não

acabadas, fragmentadas e contraditórias.

Quando Hall (op.cit.) assinala essa característica do sujeito descentrado, de certa forma,

traça um pouco da história desse descentramento demonstrando, inclusive, como os avanços da

teoria social contribuíram para tal. Tratando esses avanços, ele assinala primeiramente para o

marxismo, pois esta corrente afirma que os indivíduos não são “autores” de sua própria história,

pois agem em conformidade com as condições históricas que os precedem; Freud tem sua

36 Não quero aqui fazer uma afirmação categórica, mas apenas revelar como eles se mostraram a mim. 37 É importante dizer que a proposta dessa discussão sobre identidade não terá como objetivo a realização de uma revisão teórica sobre a mesma e sim a seleção de alguns conceitos e debates em torno da questão.

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importância nesse processo face ao descobrimento do inconsciente; Saussure e suas teorias da

lingüística contribuem através da concepção de linguagem como um sistema social que é anterior

ao indivíduo; por fim, Hall chama atenção para a genealogia do sujeito moderno de Foucault e o

impacto do feminismo. Este último contribui para o descentramento como crítica teórica e como

movimento social importante para a formulação de políticas identitárias.

Para tratar essa característica do sujeito pós-moderno pautada na fragmentação e

descentramento do sujeito, Hall (1995) ressalta as transformações ocorridas na alta-modernidade,

em especial a globalização. Esta coloca em pauta a discussão sobre uma mudança na concepção

de tempo e espaço a partir da idéia de compressão dos mesmos, as rupturas com antigas

tradições, ou seja, processos de descontinuidade, de fragmentação e de ruptura próprios da alta

modernidade que muito contribuíram para a transformação das identidades, as quais passariam a

ser fragmentadas e plurais.

Entretanto, Hall (op.cit.) assinala que, apesar dessas mudanças nas formulações de

identidades relativas inclusive a esse processo de globalização e as modificações que vem

introduzindo na modernidade, não são suficientes para que se possa falar da existência de uma

tendência à homogeneização, pois como contrapartida a esta última, existe o desejo do local, do

particular. Isso faz com que o global tenha sempre que ser pensado em relação ao local, mesmo

com suas modificações resultantes da lógica da globalização.

Atentando para o fato de que as identidades são construções contrastivas, ou seja, são

construídas em relação à diferença, à alteridade, não é plausível que seja discutida atualmente

sem levar em conta as transformações do mundo contemporâneo. Por isso, nesse contexto de

fragmentação, não é só o sujeito que se descentra, suas identidades também. São vários os

fatores, interesses e gostos, por vezes contraditórios, dos quais nos valemos para nos

identificarmos.

Essa discussão será aqui introduzida para pensar os moradores de rua como uma das

expressões desses sujeitos fragmentados e descentrados que também se valem de vários

interesses, fatores e gostos para se identificarem seja como “maloqueiros”, como “andarilhos”,

como “catadores de papel”, como “mendigos”, como um dos que recorrem aos órgãos públicos

para obter algum auxílio, como freqüentador de instituições de caridade aos ‘sofredores de rua’,

enfim, eles se utilizam de várias identificações para sobreviverem no “mundo da rua”.

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Identificações estas que se delineiam a partir das mais variadas situações e enfrentamentos que

possam vivenciar as quais requerem práticas específicas e por vezes contraditórias, para, como

afirma Cardoso de Oliveira (1976), garantirem sua sobrevivência social.

É importante nesse momento fazer referência à discussão de Cardoso de Oliveira (1976)

sobre manipulação de identidade em situações de ambigüidade. É nesse ponto que o autor discute

a possibilidade de “escolha” de identidades na situação de contato. Isso significa que frente a uma

situação de interação os sujeitos poderão, de alguma forma, escolher a identidade a partir de

critérios de valor. Isto porque, no caso da identidade étnica, a ‘cultura do contato’, deve ser

entendida como um sistema de valores bastante dinâmico que fornece o ‘rationale’ da

manipulação de identidades. Mais do que um sistema de valores, a ‘cultura de contato’ pode ser

um conjunto de representações − no qual se incluem os valores − que um grupo étnico produz na

situação em questão e através do qual classifica, ou melhor, como assinala o próprio Cardoso de

Oliveira, identifica, a si próprio e aos outros. De acordo com Cardoso de Oliveira (op.cit.:25) ”...

nos termos de uma teoria das relações interétnicas, fenômenos como as ‘flutuações’ da

identidade étnica − graças às possibilidades de manipulação − e o exercício da identificação

(étnica), devem ser interpretados como o esforço muitas vezes dramático do indivíduo e do grupo

para lograrem sua sobrevivência social.”

Em relação aos moradores de rua, deve-se pensar em manipulação de identidade também

em situações de contato, seja somente entre eles ou entre eles e a sociedade como um todo. Já que

é no momento do contato que os valores e as representações são expressos em termos de

identificação e de classificação do “próprio mundo” e do que concebem e percebem como

“mundo dos outros”. Dependendo da situação, os moradores de rua podem se interessar em

identificar-se como “maloqueiros” para que a convivência com outros moradores de um viaduto,

ou mesmo de calçadas e praças próximas seja tranqüila, no sentido de que podem se considerar

como “iguais”. Em outra situação, por exemplo com o poder público − e por vezes percebi isso

no meu trabalho de campo − defendem a sua não identificação com os “maloqueiros”, para

afirmarem a distinção entre eles e aqueles que perambulam pelas ruas, que não se importam com

a questão da higiene e da limpeza e com o trabalho. Enfim, dependendo da situação e dos

interesses em pauta é que buscarão se valer desses ou daqueles valores e representações.

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Em sua discussão sobre a identidade étnica, Cardoso de Oliveira (1976) chama a atenção

para a noção de identidade contrastiva

“... quando uma pessoa ou grupo se afirmam enquanto tais, o fazem como meio de diferenciação em relação a alguma outra pessoa ou grupo com que se defrontam; é uma identidade que surge por oposição, implicando a afirmação do nós diante do outros, jamais se afirmando isoladamente.” (Cardoso de Oliveira, op.cit.:36)

Mesmo tratando do confronto e do contraste entre etnias, essa noção também pode ser válida se

aplicada entre quaisquer unidades sociais. Aqui, em especial, a utilizarei para discutir o universo

da população de rua, na medida em que seus sujeitos afirmam-se como moradores de rua porque

constantemente se defrontam com outros sujeitos, sejam estes outros aqueles que também se

apropriam de espaços públicos, mas se diferenciam pela forma de ocupação (não constroem

moradias sob viadutos ou passarelas) e estilos de vida; sejam esses outros a sociedade em geral

que deles se diferencia porque não adota a rua como local de moradia. A identidade de “morador

de rua” pode então surgir nessa relação de confronto, de contraste com esses outros a partir de

critérios como, por exemplo, a construção ou não de moradias em espaços públicos.

O conceito de identidade contrastiva deixa claro a necessidade dos contatos

estabelecidos entre nós e os outros para a afirmação da alteridade, pois também é a partir do

contraste, do confronto, que os grupos constroem uma representação de si mesmos e,

conseqüentemente, conferem realidade às suas concepções e a sua identidade ao afirmarem as

mesmas perante os outros. Sendo assim, esse é um conceito relacional, visto que pressupõe o

contato, não sendo possível pensá-lo em um contexto de isolamento. Ele se constitui como

representação por oposição. É exatamente a partir de um contexto de “não isolamento” que torna-

se possível perceber o caráter social da identidade visto que ela se constrói a partir das relações

sociais nas quais ocorre o contraste e o “nós” afirma-se enquanto tal perante o “outro”. Nesse

espaço que pressupõe o “não-isolamento” é que a diferença e o contraste são importantes para a

construção de representações, ideologias e sistemas simbólicos. São essas representações e

ideologias que devem tornar possível a percepção que os sujeitos, no caso aqueles instalados nas

calçadas, praças e áreas sob viadutos e passarelas, têm sobre si mesmos e sobre os outros.

Em uma discussão mais recente sobre o conceito de identidade contrastiva, Cardoso de

Oliveira (2000) reflete sobre condições de possibilidade de etnização das identidades nacionais

de imigrantes residentes em sociedades anfitriãs. A partir dessa questão ele assinala que nessa

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situação a identidade étnica se atualiza como identidade contrastiva. Citando o exemplo de

minorias étnicas que residem em Barcelona, Cardoso de Oliveira menciona que eles são

constantemente submetidos à humilhação, quando não à desonra. Além disso, é possível observar

a existência de representações negativas que marcam o etnicismo catalão em relação aos

imigrantes em geral, em especial os de língua castelhana. Ou seja, em geral os imigrantes que não

dominam o catalão recebem admoestações como ‘voltem para sua terra, vocês não dominam o

catalão e vieram aqui roubar nosso pão’. As representações negativas também são utilizadas

pelos castelhanos emigrados de Madri que se referem aos catalães como muito egoístas e

fechados, falam em catalão para que não possam ser compreendidos, eles não desejam ser

espanhóis. Ou seja, é uma relação social de mão dupla.

Pensando a identidade como uma representação de si, como um conjunto de idéias e

ideais que um grupo constrói sobre si mesmo é que Cardoso de Oliveira (1976:39) assinala a

relação entre identidade e ideologia afirmando, inclusive, que “... a identidade social, ela

própria, é uma ideologia e uma forma de representação coletiva.” Ele chama atenção para o

conceito de ideologia de Poulantzas que assinala a ocorrência de uma relação real entre os

homens e suas condições de existência que por sua vez é imbuída de uma relação imaginária.

Desta forma, a ideologia não teria como uma de suas funções propiciar um conhecimento

verdadeiro da estrutura social na qual os homens estão localizados, mas permitir que eles

estivessem aí inseridos, de um certo modo, através de suas atividades práticas que sustentam tal

estrutura. Assim, a função da ideologia, grosso modo, seria dar forma e sustentação às

representações da realidade vivida pelos sujeitos.38

Em se tratando das representações coletivas, Cardoso de Oliveira (1976) se vale da

concepção de Durkheim que aponta para o fato das mesmas transcenderem o “ser individual”,

visto que expressam uma realidade “superior”: a sociedade. Segundo Durkheim, as

representações coletivas “... são o produto de uma imensa cooperação que se estende não apenas

no espaço, mas no tempo; para produzi-las, uma multidão de espíritos diversos associaram,

misturaram, combinaram suas idéias e seus sentimentos; longas séries de gerações acumularam

aí sua experiência e seu saber.” (Durkheim,1989:45) Além desse aspecto da construção social

38 Cf. Carneiro da Cunha (1986). Essa autora faz uma crítica a essa discussão de Cardoso de Oliveira a respeito de identidade étnica e ideologia.

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das representações coletivas, Cardoso de Oliveira salienta o caráter inconsciente das mesmas,

pois pretende distinguí-la da crença popular que, por sua vez é consciente39.

Partindo dessas concepções, Cardoso de Oliveira afirma que os estudos sobre identidade

étnica não podem ser realizados sem referência ao contexto no qual os indivíduos se localizam

conferindo realidade a sua existência, pois é este que, de certa forma, gera a identidade. Além

disso, esse contexto, ou melhor, as condições reais de existência devem ser percebidas como

determinadas pelas relações e interações entre os indivíduos que nele se situam: “... as

representações coletivas, as ideologias ou as identidades étnicas somente serão inteligíveis à

condição de serem referidas ao sistema de relações sociais que lhes deram origem.” (Cardoso de

Oliveira, op.cit.:50,51)

Transpondo essas reflexões para o universo da população de rua, é importante ressaltar

que a questão da identidade pode também ser pensada aí com referência à ideologia e às

representações coletivas, visto que essas, por sua vez, não devem ser consideradas fora dos

contextos em que foram produzidas. Desta forma, pensar a respeito da identidade dos moradores

de rua é também pensar sobre as representações e ideologias que sustentam a mesma e, mais do

que isso, é pensar que foram produzidas a partir de interações concretas, algumas delas

presenciadas durante o trabalho de campo, que estabeleceram entre si, com o poder público, com

a vizinhança, enfim, com os demais grupos sociais da cidade.

Além disso, é importante salientar que as representações dos moradores de rua sobre si

mesmos, sobre os outros, sobre a cidade e sobre os espaços que ocupam, à medida que são

partilhadas, permite emergir sua identidade, salientando tanto as semelhanças quanto à forma

como se instalam nos espaços públicos quanto às diferenças. Esse ponto é interessante porque ao

se valerem desses traços comuns é possível pensar a unidade frente à heterogeneidade, ou seja, é

possível pensar na emergência de um “estado de grupo” em função desse partilhar de

representações. Adotar estratégias e estilos de vida diferenciados em relação ao “habitar a rua”,

implica adotar recortes e classificações diferenciados para organizar e interpretar o mundo, o que

conseqüentemente implica produzir identidades diferentes próprias a cada um desses estilos de

vida. Para tanto, as relações estabelecidas entre os vários tipos de moradores de rua e entre estes

últimos e os não moradores de rua, quando então os contrastes entre estilos de vida, formas de 39 De acordo com Belmont, Nicole (1971)

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percepção, organização e interpretação do mundo são, de certa forma, explicitados, permitem a

afirmação das distinções, do “eu” frente ao outro ou outros, permitem a afirmação das

identidades.

A proposta desse capítulo foi, então, elucidar quem faz parte da população de rua, como

sobrevivem nesse cenário não convencional para o abrigo, como se identificam e se diferenciam

uns dos outros, enfim como esse segmento urbano, que improvisa instalações nos espaços

públicos da cidade, comporta diferenciações no seu interior e coloca em cena nas paisagens

urbanas contemporâneas uma das faces da miséria.

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CAPÍTULO QUATRO

O MOVIMENTO DOS SEM-CASA, O PODER PÚBLICO MUNICIPAL E A PASTORAL DE RUA

No capítulo anterior privilegiei o enfoque em torno dos sujeitos que se apropriam de

espaços públicos ao improvisarem moradias ou abrigos para pernoite. Entre eles foi possível

perceber que imprimem marcas diferenciadas nos espaços ocupados face à adoção de usos e à

realização de atividades bastante distintas: a moradia e o pernoite. O presente capítulo tem como

objetivo refletir em torno de três grupos distintos de sujeitos que, indiretamente, estão

relacionados à população de rua: o movimento dos sem casa, a Prefeitura Municipal de Belo

Horizonte e a Pastoral de Rua.

O primeiro deles foi mais uma “surpresa” apresentada durante a realização do trabalho

de campo. Nesse período, houve a ocupação da Prefeitura Municipal por um grupo de “sem-casa”

de Ribeirão das Neves, município da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Após a saída do

prédio da Prefeitura, passaram a ocupar uma praça da cidade18 e depois seguiram para o bairro de

Lourdes, próximo à Secretaria Estadual de Habitação para forçar a negociação com o poder

público. Ali, ergueram um acampamento com barracas muito semelhantes às “casas” construídas

sob os viadutos e passarelas19.

A partir das primeiras observações do local onde eles se instalaram, uma primeira pista

surgiu: sujeitos com o mesmo tipo de constrangimento − a falta de moradia −, utilizam diferentes

estratégias de enfrentamento do mesmo. Inicialmente é possível traçar as diferenças entre eles da

seguinte forma: existem aqueles que se apropriam de áreas sob viadutos e passarelas e ali

constroem suas “casas”; outros perambulam pelas ruas utilizando-se de bancos de praças, de

calçadas sob marquises para descansar e pernoitar; e há ainda outros que se organizam, por meio

do movimento dos sem-casa, buscando pressionar o poder público para resolução do problema da

falta de moradia. Então, percebi que me deparava com um grupo de sujeitos que de alguma forma

18 Praça Afonso Arinos, localizada na área central de Belo Horizonte, ocupada em setembro de 1994. Esse fato será descrito no item 4.IV.4 deste capítulo. 19 Esse acampamento foi construído no Bairro de Lourdes, localizado na zona sul de Belo Horizonte.

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fazia parte de meu objeto de investigação. O contato com os participantes do movimento dos

sem-casa ocorreu exatamente durante o período em que estavam acampados no Bairro de

Lourdes. Esse será o primeiro grupo apresentado nesse capítulo.

Em seguida à apresentação desses sujeitos, me deterei em relatar os encontros com os

comerciantes do bairro de Lourdes que possuíam estabelecimentos comerciais no entorno da área

ocupada pelo movimento dos sem-casa. Vários desses comerciantes se organizaram junto aos

moradores do bairro para pressionar o poder público municipal e estadual para que retirassem as

pessoas acampadas daquele local. O conflito entre os participantes do movimento dos sem-casa e

a população do bairro foi intenso e até então não tinha aparecido diante de meus olhos. Os

comerciantes e moradores do bairro de Lourdes não concebiam a possibilidade de terem no

entorno de suas moradias e/ou estabelecimentos comerciais sujeitos que reclamavam a falta de

moradia. Era parte da cidade que não se vê, sendo apresentada e imposta aos moradores e

comerciantes de um bairro de luxo da cidade.

Um terceiro momento da pesquisa também será aqui apresentado: o encontro junto aos

técnicos do Programa de Atendimento à População de Rua da Prefeitura Municipal de Belo

Horizonte. Esse encontro foi realizado com o objetivo de elencar as atividades realizadas pelo

poder público municipal e apresentar a sua percepção desses sujeitos que compõem a população

da cidade.

Ao final do capítulo será relatado o encontro com a coordenadora da Pastoral de Rua em

Belo Horizonte para apresentar mais um grupo que desenvolve atividades junto aos moradores

das ruas da cidade desde 1987.

Esse capítulo constitui-se da descrição e análise desses encontros com o intuito de

discutir a percepção sobre a população de rua de Belo Horizonte por sujeitos que não fazem parte

dela, mas que, direta ou indiretamente, se relacionam com ela.

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4.1. OS PARTICIPANTES DO MOVIMENTO DOS “SEM-CASA”3

Em setembro de 1994 ocorreu a ocupação das calçadas próximas à Secretaria Estadual

de Habitação - Avenida Olegário Maciel esquina de Alvarenga Peixoto4 (cf. Mapa 5).

Mapa 5

Acampamento dos Sem-Casa na Avenida Olegário Maciel e rua Alvarenga Peixoto no Bairro de Lourdes

Eram pessoas do movimento dos “sem-casa” que - após uma invasão do prédio da

Prefeitura de Belo Horizonte (05/09/1994) e da permanência por mais de um mês (26/07/1994 a

05/09/1994) na Praça Afonso Arinos, localizada na região central da cidade - se transferiram para

as calçadas ao redor da Secretaria Estadual de Habitação. Essas pessoas vieram da Fazenda

Mizonguê, no bairro Maria Helena, em Ribeirão das Neves, município da região metropolitana de

Belo Horizonte, onde havia um acampamento do movimento dos “sem-casa”. Além dessas

pessoas, juntaram-se à ocupação das calçadas os “sem-casa” do bairro Itatiaia e do Novo Aarão

Reis, zona norte de Belo Horizonte. A

3 Esse tópico não tem como objetivo traçar o histórico do movimento dos sem-casa e sim relatar o contato realizado com alguns de seus participantes em setembro de 1994, quando estavam acampados no Bairro de Lourdes em frente à Secretaria Estadual de Habitação. 4 Este local está situado no Bairro de Lourdes, zona sul da cidade. Concentra prédios residenciais de luxo e estabelecimentos comerciais como restaurantes, padaria entre outros. A ocupação ocorreu durante o período de campanha eleitoral para o governo do Estado e, bem próximo às barracas erguidas estavam comitês de dois partidos políticos.

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ocupação de tais calçadas foi uma das formas encontradas pelo movimento para pressionar o

poder público na resolução do problema da moradia.

A partir do contato com os ocupantes das calçadas da Avenida Olegário Maciel, pude

perceber que as “barracas” de tal ocupação eram, em seu formato, muito semelhantes àquelas

construídas sob os viadutos. A lona, a madeira e o papelão também eram os materiais utilizados

para construção das barracas do acampamento do movimento dos “sem-casa”.

As barracas eram pequenas, servindo apenas para abrigar contra o sol e a chuva. Seu

interior era o local destinado às atividades privadas como dormir e tomar banho; assim como para

guardar os objetos pessoais, as roupas, as panelas, os colchões etc. Fazer comida e lavar roupa

eram atividades realizadas fora das barracas. Faziam pequenos fogões com tijolos e nas obras

próximas conseguiam madeira que servia de lenha para cozinhar. Bacias e baldes maiores eram

utilizados para lavar a roupa. Uma das formas pelas quais eles conseguiam água era por meio de

um caminhão que, algumas vezes por semana, passava pela região molhando os jardins dos

canteiros da Avenida Olegário Maciel. Quando este não passava, eles pediam nas casas, prédios

residenciais e estabelecimentos comerciais vizinhos.

“Dezenas de barracos de formatos irregulares e dos mais diversos materiais −

papelão, plástico e lata −, centenas de crianças correndo de um lado para o outro, cachorros

latindo, fogões de lenha improvisados e varais por todos os lugares. Esta é a imagem comum dos

acampamentos de sem-casa.20” (Estado de Minas, 23 out. 1994. Caderno Cidades, p.27) Essa

breve descrição dos acampamentos dos sem-casa demonstra o quanto eles têm em comum com a

ocupação das calçadas próximas à Secretaria da Habitação por participantes do movimento dos

sem-casa, como também com as moradias improvisadas nas áreas sob os viadutos e passarelas.

Ao falar do local onde estavam morando naquele momento, os participantes do movimento

faziam referência às barracas que eles construíram e que estavam fazendo parte do cenário do

bairro de Lourdes, tal qual no acampamento de onde eram provenientes. Essas barracas não eram

consideradas como moradia, estavam apenas servindo de moradia. A moradia seria a casa que

desejavam obter com a participação no movimento, era o futuro, o presente eram as barracas de

lona que compunham o cenário dos acampamentos. 20 Esses acampamentos aos quais se refere à reportagem são aqueles localizados em alguns bairros da Região Metropolitana de Belo Horizonte (Maria Helena, Itatiaia, Novo Aarão Reis) ocupados por pessoas do movimento dos sem-casa que aguardam do poder público a regularização de áreas para a construção de moradias populares.

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“Lá no Aarão Reis21 é só barraca. É barraca de lona. A minha é telha por cima e a lona ao redor, mas é pequenininha, é quente demais.” (Cleonice Rodrigues de Souza, participante do movimento dos sem-casa acampada na calçada próxima à Secretaria de Habitação, (cf. Mapa 5) 06/10/1994)

“Minha barraca é um cômodo só, o lugar de dormir era separado por um lençol. A lona foi comprada e as madeira foi panhada nos lixo.” (Edite Rosa, participante do movimento dos sem-casa acampada na calçada próxima à Secretaria de Habitação, (cf. Mapa 5) 06/10/1994)

“Minha barraca é de lona, a gente finca os paus no chão e joga a lona por cima e prega com os pregos. É um cômodo só a noite, para dormir, é que dividia um espaço para as crianças e um espaço para mim e para minha mulher.” (José Carlos de Medeiros, participante do movimento dos sem-casa acampado com a mulher e três enteados na calçada próxima à Secretaria de Habitação, (cf. Mapa 5) 06/10/1994)

“Eu moro por debaixo da barraca de lona.” (Marina, 6 anos, enteada do José Carlos de Medeiros)

Em relação às pessoas que moram sob os viadutos e àqueles que “perambulam” pelas

ruas, pernoitando sob as marquises, os participantes do movimento dos sem-casa por vezes fazem

referência a eles como sendo seus pares, mas somente no que se refere à falta de moradia.

“P’rá mim eles não são diferente de nós, eles são igual nós que às vezes não deu conta de pagar aluguel que prometeu que dava.” (Vilma, participante do movimento dos sem-casa acampada na calçada próxima à Secretaria de Habitação, (cf. Mapa 5) 06/10/1994)

“Eles também são sem-casa e vive sofrendo do mesmo jeito.” (Edite Rosa, participante do movimento dos sem-casa acampada na calçada próxima à Secretaria de Habitação, (cf. Mapa 5) 06/10/1994)

Como os participantes do movimento dos “sem-casa” estavam, naquele momento, vivendo de

forma semelhante àqueles que constroem as instalações fixas nos baixios de viadutos, eles

reconhecem como legítima essa forma de morar.

Entretanto, quando se referem à participação no movimento dos sem-casa reforçam que

são diferentes pelo fato de estarem engajados em uma luta que busca uma solução para o

problema da falta de moradia. Para eles, estar morando numa casa sob um viaduto não significa

que, de alguma forma, estão enfrentando o problema da falta de moradia e sim que não se

preocupam em sair daquela situação.

“P’rá eles a vida assim debaixo do viaduto é melhor do que lutar p’rá ganhá uma moradia.” (Vilma, participante do movimento dos sem-casa acampada na calçada próxima à Secretaria de Habitação, (cf. Mapa 5) 06/10/1994)

“Nós ‘tamo nos meio da rua, somos sem-casa, mas nós ‘temo esperança que nós vamo ganhar uma casinha, ne?! Nós ‘tamo aqui cumprindo tudo, mas nós temo esperança que vamo ganhá e eles, quando ‘tá lá debaixo do viaduto, eles não tem esperança que vai ganhá. Chega o

21 O bairro Aarão Reis, localizado na zona norte de Belo Horizonte, é um dos bairros onde se localiza um desses acampamentos mencionados na nota anterior.

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policial, derruba, eles fica na rua.” (Edite Rosa, participante do movimento dos sem-casa acampada na calçada próxima à Secretaria de Habitação, (cf. mapa 5) 06/10/1994)

A identidade das condições materiais de existência unifica a população de rua e o

movimento dos sem-casa pela carência que todos têm de um lugar para morar, mas não dissipa as

diferenças que se expressam como morais e se fixam como diferenças de posição de classe que

contêm não somente uma profundidade diacrônica, mas sobretudo uma expectativa de uma

moradia que se ergue como principal diferenciador.

É, então, importante destacar que faz parte do movimento dos sem-casa um projeto

político por meio de uma organização que pressiona o poder público para a resolução do

problema da falta de moradia, o que torna-se um aspecto diferenciador entre as práticas dos sem-

casa como um todo.

Apesar de viverem o mesmo tipo de constrangimento material − a falta de moradia −, as

diferentes formas de enfrentamento do problema denotam que experiências culturais também se

diversificam e assim percebem eles próprios e os outros como diferentes. Em sua discussão sobre

gosto de classe e estilo de vida, Bourdieu (1982:82,83) assinala que as “... condições semelhantes

produzem habitus substituíveis que engendram, (...) práticas infinitamente diversas e

imprevisíveis em seu detalhe singular.” Isto implica dizer que, apesar de experimentarem a falta

de moradia, os participantes do movimento dos sem-casa, os moradores das casas sob os

viadutos e aqueles que “perambulam” pelas ruas têm trajetórias diferentes e engendram práticas

diversas no “mundo da rua”, visto que se instalam diferentemente nas áreas ocupadas, se

percebem e percebem os outros como sendo portadores das mais variadas e diferentes

características e, conseqüentemente, de variadas identidades.

No que se refere aos “maloqueiros”, faziam referência às pessoas que não gostam de

trabalhar, que andam sujas, que ficam nas ruas; mas incluíam aí tanto os moradores das casas sob

os viadutos, quanto os mendigos, pedintes de uma forma geral e também todos aqueles que

permaneciam na rua, dormindo sob as marquises ou pelas praças. Aqui também é possível

perceber como evitam se incluir nessa categoria.

“Diz que debaixo do viaduto é os maloqueiro. Eu já ouvi falar, não vi com meus olhos. Num tem casa, num trabalha, quer viver sem trabalhar, eu acho que é isso. Eles anda sujo, eles anda de todo jeito e nós ‘tamo nos meio da rua e nós num são mendigo, nós somos sem-casa, nós num somo mendigo.” (Dona Edite, participante do movimento dos sem-casa acampada na calçada próxima à Secretaria de Habitação, (cf. Mapa 5) 6/10/94)

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“Pessoa que não gosta de trabalhar, que fica só na rua, num corre atrás de uma casa nem nada. Tipo maloqueiro é porque eles não gosta de trabalhar, não gosta da dureza do serviço e já acostumou a ficar só assim. Vai p’rá um viaduto hoje, amanhã vai p’rá outro, aí acostuma, o corpo dele acostuma.” (Vilma, participante do movimento dos sem-casa acampada na calçada próxima à Secretaria de Habitação, (cf. mapa 5) 6/10/94)

“A gente tem que ficar aqui o tempo todo, é importante para o movimento. Mas nem por isso, pelo fato de a gente estar desempregado, somos mendigos ou bandidos.” (Joana D’arc, participante do movimento dos sem-casa acampada na calçada próxima à Secretaria de Habitação, em entrevista ao Estado de Minas, 23 out. 1994. Caderno Cidades, p.34)

Aqui também é importante destacar que a classificação “maloqueiro” é relacional, pois

além de ser construída a partir da relação, direta ou indireta, com esse “outro”, depende de quem

a define e da posição que ocupa no contexto no qual se encontra. Ou seja, dependendo de quem

faz uso de tal classificação, ele inclui ou exclui alguns sujeitos que poderiam ou não ser assim

classificados. Nos depoimentos acima destacam-se as figuras do “mendigo” e do “bandido”

relacionadas ao “maloqueiro”, enquanto que em depoimentos anteriores, as referências ao

“maloqueiro” eram aquelas ligadas à questão da limpeza e higiene, por exemplo. Ou seja, existem

diferentes conteúdos simbólicos de representação do “maloqueiro”. A classificação “maloqueiro”

ordena, organiza o “mundo da rua”, pois a partir dela é possível identificar os vários indivíduos

que o compõem e as várias maneiras como eles sobrevivem.

Após dois meses e onze dias (17/11/1994) chegou ao fim a ocupação das calçadas em

frente à Secretaria Estadual de Habitação. Como resultado, o movimento dos sem-casa obteve do

poder público a garantia de permanência temporária, também em barracas, em outra área. As

famílias de Ribeirão das Neves foram transferidas para a Fazenda Mariquinhas22, sendo que lhes

foi assegurado o direito de passar por uma triagem social antes de serem incluídas no programa

de casas populares daquele município. Além disso, o governo estadual destinou uma verba (R$

60.000,00) à Prefeitura de Ribeirão das Neves, para a compra de um terreno naquele município

para abrigar os “sem-casa”. As famílias de Belo Horizonte foram transferidas para um alojamento

e a URBEL − Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte − se comprometeu a realizar uma

triagem social dessas famílias para averiguar a possibilidade de incluí-las no seu cadastro para

programas de habitação popular.

Após o desgaste de dois meses de negociações, enfrentando o poder público e a

vizinhança que não desejava que permanecessem naquele local, a obtenção de nova área para

22 Essa fazenda localizada na região de Venda Nova, zona norte da cidade, para onde os sem-casa foram transferidos para aguardar a inclusão em um dos programas de habitação popular.

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permanência, mesmo que temporária, significou um ganho para o movimento dos “sem-casa”. De

lá saíram, mas com alguma garantia, mesmo que esta representasse apenas a certeza de poderem

permanecer em suas barracas. Pelo menos por um certo tempo, não seriam expulsos de nenhum

local e não precisariam invadir nenhum outro. Como se fossem nômades e não precisassem,

naquele momento, preocupar com a nova área para a próxima transferência.

4.2. A RELAÇÃO COM OS VIZINHOS

O objetivo deste tópico é tratar a maneira pela qual as pessoas que não sofrem o problema da falta de moradia vêem aqueles que vivem tal problema. As entrevistas realizadas com pessoas que não fazem parte de nenhum segmento da população de rua ou do movimento dos “sem-casa” só foram feitas com aqueles que tiveram uma convivência muito próxima com alguns deles.

O que pretendo aqui é tratar os sujeitos da pesquisa a partir da forma como são ou foram

vistos por pessoas que não fazem parte do seu “grupo”, por meio de matérias de jornal e das

entrevistas realizadas com comerciantes e comerciários que conviveram de perto com os

participantes do movimento dos “sem-casa” na época da ocupação das calçadas no bairro de

Lourdes.

4.2.1. OS MORADORES DE RUA E O MOVIMENTO DOS SEM-CASA

Os moradores de rua geralmente ocupam áreas distantes de residências ou

estabelecimentos comerciais. As áreas sob viadutos ou passarelas, em geral, são isoladas, uma

vez que a própria construção desses equipamentos do sistema viário implica, em alguns casos, a

desapropriação de alguns espaços ocupados, tornando seu entorno um local apenas de passagem

e, conseqüentemente, desabitado ou pouco habitado. O entorno desses locais é constituído por

vias de tráfego intenso de veículos e de trânsito de pedestres. O muro ou a cerca, quando existem,

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as roupas no varal, o local de guardar o carrinho utilizado na coleta do papel e a própria casa, a

presença dos cães servem como demarcadores de território.

Apenas em um dos elevados visitados23 encontrei residências bem próximas ao local

ocupado para a improvisação das moradias e em um outro24 os estabelecimentos comerciais eram

predominantes. No primeiro deles, a família que ocupava a área falava muito bem dos vizinhos,

“que eram pessoas boas, que lhes davam algumas coisas, que os tratavam muito bem”. Várias

vezes em que estive lá pude presenciar algumas dessas cenas. Buscavam travar boas relações com

os vizinhos e, de certa forma, experimentar um pouco do que é ser morador de um bairro central

da cidade. No dia da entrevista fui ao posto de saúde com esta família levar as crianças para

vacinarem e lá, quando perguntada sobre o endereço residencial, a mãe deu o endereço de uma

das residências próximas ao viaduto. Nesse momento, ela se inclui no grupo de moradores do

bairro Floresta, se auto identificando publicamente como tal por meio do endereço residencial. É

também um momento de manipulação da identidade como forma de fugir do estigma que carrega

a população de rua.

“Os vizinhos são muito bons. Eles entram aqui dentro, tem madame que entra aqui dentro, senta e fica batendo papo. Eles mesmo já falaram com nós que se caso, precisarmos de alguma coisa pode pedir eles que eles ‘tão pronto p’rá ajudá a gente. Também tem gente que vem fazer bagunça eu não deixo, eu não deixo não, eu evito. Mas também tem muita gente que passa aqui e até cospe de nojo, pensa que nós num temos zelo, num temo higiene. A maioria das pessoas pensa isso.” (Paulinho, morador do elevado da Avenida Francisco Sales sobre a Avenida dos Andradas (cf. Mapa 4), 13/08/94)

“ Aqui os vizinhos é tudo rico, mora na Floresta em lugar de rico. Eu vou na casa dos vizinhos, dia de domingo eu brinco com eles de bola, brinco com eles de esconde-esconde.” (Ana Paula, 8 anos, filha do Paulinho, 13/08/1994)

A moradora do outro elevado (Avenida Amazonas sobre Avenida Silva Lobo, bairro

Nova Suiça), cujo vizinho mais próximo era uma oficina mecânica, fala deste estabelecimento

comercial como se a área onde decidiu fazer sua casa lhe pertencesse e não fosse pública.

“Eles já me conhecem, né?! Aqui eles não mexe comigo, num fala nada, eles só não quer mesmo que eu deixo fica amontoado de gente. Quando eu cheguei aqui eu conversei com eles, eles deixaram eu monta, e eles falaram que não era p’rá eu deixar entrar mais ninguém.” (Cirléia, moradora do viaduto da Avenida Amazonas sobre a Avenida Silva Lobo (cf. Mapa 1), 9/08/94)

Já uma moradora do viaduto da Via Expressa sobre a Avenida Silva Lobo cujo entorno

não é composto por residências nem estabelecimentos comerciais, fala da vizinhança como se

23 Avenida Francisco Sales, bairro da Floresta, zona leste da cidade (cf. Mapa 4) 24 Avenida Amazonas sobre a Avenida Silva Lobo, bairro Nova Suiça, zona oeste da cidade (cf. Mapa 1)

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fossem velhos conhecidos. Ela relata que já morou no Calafate, bairro próximo ao viaduto, e que

ali conhece muita gente. Mas quando fala dos vizinhos inclui também outros moradores25 de uma

passarela próxima, os quais a visitam.

“Conheço eles há muito tempo. Eles vem até aqui em casa, toma café, às vezes nós faz churrasquim. Sexta feira mesmo nós fizemo um churrasquim aqui, aí eles fica aqui comigo, nós diverte p’rá caramba, eles traz o gravador nós fica escutando música.” (Bela, moradora de casa sob o viaduto da Via Expressa sobre a Avenida Silva Lobo (cf. Mapa 1), 03/08/1994)

Esse último caso representa a situação mais comum das casas sob os viadutos e

passarelas: os vizinhos mais próximos são os moradores de outras casas sob o mesmo viaduto ou

passarela, ou aqueles que moram em outros viadutos próximos. Com esses nem sempre são

estabelecidas boas relações e o contato entre eles não é tão freqüente.

A bebida é um dos elementos que os aproxima um pouco, mas as discussões e

desentendimentos são freqüentes. Abordando o problema do uso do álcool entre a população que

mora sob as pontes em Los Angeles, Underwood (1993:310) assinala que “bebidas pesadas

contribuem enormemente para os conflitos entre os ‘Bridge People’ e em uso mais intenso

exacerbam seus problemas”. Segundo ele “(...) O consumo social de álcool fornece um fórum

para troca de noticias e fofocas e um senso de camaradagem.” (Ibidem)

Durante o trabalho de campo não cheguei a presenciar nenhum conflito, pois nesses

momentos buscavam passar uma imagem de boas relações com a vizinhança ou demonstravam

que não se relacionavam com os vizinhos de viaduto. Mas nas nossas conversas informais,

sempre relatavam os acontecimentos do período entre uma visita e outra e, muitas vezes, eles se

manifestaram falando algo sobre a vida do outro, do vizinho, diziam o que pensavam sobre ele, o

que concordavam e o que discordavam na conduta do outro e porque de vez em quando era

possível estabelecer algum contato ou porque não.

Sendo muito comum o uso da aguardente entre a população de rua, o problema é

discutido por Vieira (1992:102), chamando a atenção para o fato de que “ela atua como o

mediador que torna possível o desligamento do mundo das obrigações, dos papeis sociais e o

mergulho num outro plano de realidade, que afasta a percepção do fracasso, faz esquecer dores

e decepções, enfim, torna suportável o cotidiano.” No “mundo da rua”, para que seja possível,

pelo menos por alguns instantes, libertarem-se das regras e valores impostas pelo mundo social,

25 Essa moradora tem uma irmã que mora sob uma passarela do metrô em um bairro próximo.

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entrando num mundo imaginário que pelo menos afaste temporariamente essas pressões sociais, a

população de rua, em grande parte, faz uso da “cachaça”.

Em se tratando daqueles que perambulam e apenas pernoitam nas ruas, a relação que

estabelecem com a vizinhança é geralmente tensa. Muitas pessoas pernoitam em praças e

calçadas da região central da cidade onde a ocupação e uso dos locais é mais comercial do que

residencial. Quando, porém, existem residências próximas às áreas de pernoite, as reclamações

sobre a permanência deles nos locais, é comum. Um exemplo do alcance desta tensão pode ser

essa denúncia do jornal Estado de Minas do dia 27 de outubro de 1994, sobre um mendigo que

ocupava um quarteirão fechado na região central da cidade26, apontando “... que não é certo

cidadãos − crianças, jovens, senhores e senhoras − conviverem com uma pessoa adulta fazendo

suas necessidades fisiológicas no primeiro bueiro à mão. Errado ou não, é o que acontece todos

os dias...” (Caderno Cidades, p.18) O mendigo ressalta que usa o bueiro para não sujar a rua.

O setor de atendimento à população de rua da Prefeitura de Belo Horizonte assim como

a Polícia Militar recebem, com muita freqüência, estes tipos de reclamações, exigindo que

alguma providência seja tomada em relação a essas pessoas que estão na calçada próxima à sua

residência. Como relata a coordenadora do programa de população de rua da Prefeitura, “Alguns

não fazem nem solicitação, eles denunciam ‘tem um mendigo na porta da minha casa que tirou a

roupa, que está xingando, que está brigando e coisa e tal’” . (Coordenadora do Programa de

População de Rua da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, 20/08/1996) É importante

perceber que para essas pessoas os ocupantes das calçadas são mendigos, o que se contrapõe à

visão que os próprios ocupantes das calçadas têm de si mesmos.

A existência de moradores de rua tem acompanhado o desenvolvimento da cidade,

tendo passado pelas mais diversas classificações, tanto que as denúncias e reclamações sobre os

mendigos e catadores de papel não são recentes na cidade. Em 1938, o Diário da Tarde denuncia

que crianças e adolescentes estavam nas ruas “... esmolando ou apanhando papel sujo e velho.”27

Nessa mesma matéria está a história de uma jovem de 15 anos que apanhava papel para

complementar a renda familiar “ ... o repórter deparou com uma scena commmovente que a

pobreza cria, atirando o protagonista infeliz do lar para as ruas: uma senhorita, phisionomia

26 O quarteirão fechado da Avenida Álvares Cabral, próximo à Rua da Bahia, região central da cidade. 27 Conforme reportagem publicada no Jornal Estado de Minas, 24 nov. 1994. Caderno Cidades, p.22

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atrahente, tez morena, apanhava papel á rua são Paulo, perto da Avenida Affonso Penna.”

(Ibidem) Em 1949, uma reportagem do Diário de Minas (22/07/1949,p.5) fala sobre os “turistas

da miséria”, título conferido aos mendigos que, em sua maioria, eram de outras cidades. Essa

matéria também chama a atenção para um grupo de pessoas que morava debaixo do “Viaduto

Perrela”28, “... cerca de dez mendigos, metidos em trapos, sem uma coberta, sob a inclemência

do frio indiferente ao drama que se desenrola, ali, entre os gemidos nas bocas dos mendigos e o

chiar dos ratos no esgoto que atravessa o viaduto de lado à lado, aos pés dos “moradores”

daquela imundície.”

Em 195629, os jornais denunciavam o descaso da polícia no tratamento do problema dos

mendigos da cidade, considerados “vadios”, “desajustados”, que viviam em um ambiente de

promiscuidade improvisando “favelas” onde se instalavam.

Em maio e novembro de 199430, matérias no jornal denunciam o problema dos

catadores de papel que ocupam calçadas inteiras de áreas centrais da cidade para realizarem a

separação do papel e, por vezes, se instalam em tais calçadas como local de moradia. Um dos

artigos dessa época apontava que “... não há justificativas - nem sociais - para a pobreza ocupar

áreas nobres da terceira capital do País.”31 Sendo assim, as áreas nobres deveriam, como

sempre aconteceu desde a fundação da cidade, ser destinadas às atividades nobres e ocupantes

selecionados.

Durante o período do acampamento dos sem-casa em frente à Secretaria Estadual da

Habitação, quando a relação com os moradores e comerciantes do Bairro de Lourdes tornou-se

dramática e muito tensa, a vizinhança, tanto dos edifícios residenciais como dos estabelecimentos

comerciais, travou uma acirrada luta com o poder público − municipal e estadual − no sentido de

retirar as pessoas que ali estavam vivendo em condições precárias afetando, segundo afirmavam,

o comércio de restaurantes, padarias e a tranqüilidade e segurança das residências do local. Os

jornais, durante este período, publicaram várias matérias explicitando a posição dos

comerciantes, moradores e de pessoas que, geralmente, transitavam pela região.

28 O Viaduto do Perrela localizava-se onde, hoje, é a confluência das Avenidas do Contorno e Andradas, no bairro da Floresta, zona leste. 29 Conforme reportagem publicada no Estado de Minas de 27 de outubro de 1994, caderno Cidades, p.18. 30 Devo ressaltar que não foi feita uma pesquisa sistemática nos jornais da cidade em busca desse tipo de informação, por isso as datas das matérias dos jornais são tão esparsas. 31 Artigo publicado no jornal Estado de Minas, 20 maio 1994, Segunda Seção, p.2

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Com a frase “não somos mendigos, somos trabalhadores e queremos resolver nosso

problema de falta de moradia.”32, a matéria de jornal buscava enfocar o problema da convivência

dos sem-casa com os moradores da região. Essa mesma matéria trazia o código de normas de

comportamento na área ocupada naquele momento, elaborado pelos “sem-casa” buscando não

entrar em atrito com a população vizinha. Esse código previa a proibição de “... pedir comida

ainda que em estado de uso ou colocada para venda.(...) pedir dinheiro.(...) É permitido pedir os

alimentos que não vão ser utilizados, como frutas, e verduras muito maduras ou que já estão

sendo jogados fora nos mercados.”33

A matéria acima mencionada aponta para duas questões: primeiro, assinala que os

próprios participantes do movimento dos “sem-casa” acampados na referida região, preocupados

com o possível atrito com a população vizinha, estabelecem normas de conduta buscando adotar

um comportamento que não fosse agressivo e não prejudicasse em nada a vizinhança. Ou seja,

definiram como deveriam agir de acordo com os incômodos que acreditavam que a vizinhança

poderia vir a ter. Eles mesmos admitiam serem causadores de incômodos e por assim ser

deveriam agir de forma a não causar transtornos. Dessa forma, buscavam fugir dos estereótipos

das representações sobre a população de rua estendidos a eles. O depoimento de Joana D’arc

expressa como os participantes do movimento buscavam diferenciar-se daqueles outros

ocupantes de ruas e calçadas: os mendigos, os quais, a partir desse depoimento, seriam aqueles

que não gostam de trabalhar. Desejavam enfatizar que, como pessoas trabalhadoras lutando pela

conquista da moradia, teriam o direito de permanecer naquelas calçadas e não deveriam ser

equiparados aos mendigos que também ocupam espaços públicos, mas, por meio da mendicância,

não lutam por nada além da sobrevivência seja esta onde for. O trabalho é enfocado aqui como

uma categoria reveladora da tentativa de redefinição do estigma sobre a população de rua, pois

como pessoas trabalhadoras, que, além disso, lutam por seus direitos, os participantes do

movimento dos sem-casa, ali acampados, não desejavam ser confundidos com aqueles que

apenas “lutam pela sua sobrevivência” − os mendigos. Assim, tentavam legitimar a reivindicação

do movimento.

32 Joana D’arc de Oliveira, acampada na Avenida Olegário Maciel esquina de Alvarenga Peixoto, Estado de Minas, 19 set.1994. Caderno Cidades, p.26 33 Estado de Minas, 19 set.1994. Caderno Cidades, p.26

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Em segundo lugar, a mesma matéria também ressalta que um grupo da cidade adota

uma estratégia política para a conquista da moradia e ao mesmo tempo em que isto se dá trava-se

uma outra luta entre segmentos diferentes da sociedade, pois enquanto uns buscam garantir o

direito da reivindicação pela casa própria, outros buscam expulsá-los do local onde se encontram

pelos transtornos que vêm lhes causando. Ou seja, ambos disputam pelo espaço urbano e por

formas de ocupar o mesmo, tornando claro que existe aí uma luta simbólica pela imposição de classificações, representações e usos possíveis sobre o mesmo.

Após uma reunião realizada no dia 26 de outubro de 1994 com uma comissão de

moradores, comerciantes e representantes da comunidade dos bairros Santo Agostinho/Lourdes, o

Secretário Estadual de Habitação, José Roberto Vasconcelos, informou que a retirada dos sem-

casa já estava acertada com o comando da Polícia Militar e com o Prefeito Patrus Ananias. Os moradores e comerciantes articularam-se e com base na Lei de Posturas do Município decidiram

entrar com uma ação exigindo que a Prefeitura fizesse cumprir a legislação. Caso fosse

necessário, recorreriam à força policial. O Secretário Estadual da Habitação, no sentido de

orientá-los, colocou à disposição o departamento jurídico da secretaria. Os problemas mais

citados na reunião pelos moradores e comerciantes eram as “... moscas, o mau-cheiro e insegurança.”34 Além de enumerar os problemas, entregaram manifesto por escrito, exigindo a

data oficial da retirada dos sem-casa alegando que a boa vontade deles havia esgotado e que tais

medidas deveriam ser tomadas “para evitar que a comunidade já exaurida tome medidas de repercussão nacional.”35. No dia 31 de outubro, um morador do bairro de Lourdes entregou formalmente o pedido para que a Prefeitura retirasse as famílias de sem-casa do local.

Os argumentos dos moradores e comerciantes do bairro de Lourdes eram de teor

ideológico, relativos a sujeira, mau-cheiro e insegurança. Ou seja, referiam-se aos estereótipos

sobre a população de rua que vive das sobras, dos restos, daquilo que é colocado fora do

ambiente doméstico e de trabalho. A oposição entre ordem e desordem aparece como justificadora do que pode e do que não pode coexistir. Os estereótipos expressam aqui o que e

quem faz parte de determinado grupo ditando como vivem e ao mesmo tempo apontando com

quem não é possível partilhar a convivência social.

34 Estado de Minas, 27 out. 1994. Caderno Cidades, p. 17 35 Estado de Minas, 27 out. 1994. Caderno Cidades, p. 17

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Apesar das ações dos moradores e comerciantes para a retirada dos sem-casa da região,

a desocupação da área só teve início no dia 14/11/1994 encerrando-se no dia 16/11/1994, quando

as últimas famílias fizeram a mudança das calçadas do bairro de Lourdes. Essa “retirada” foi

uma expressão da tensão que alcançou o conflito e da pressão exercida pelos moradores do bairro

de Lourdes.

Um dia antes da saída do restante das famílias de sem-casa acampadas no bairro de

Lourdes (15/11/1994), um artigo é publicado na Segunda Seção do Estado de Minas em defesa

“... dos sacrificados moradores da região conflagrada da Olegário Maciel/Alvarenga Peixoto,

ocupada há mais de oitenta dias pelos “sem-casa” de Neves. E a gente fala de Neves para dar

um nome ao conjunto de mais de duzentos favelados que fincaram suas barracas de plástico e

papelão nos passeios de uma das regiões mais nobres da cidade.” Esse tom crítico e intolerante

da matéria revela os aspectos ideológicos do conflito pois, por um lado, os participantes se

empenham para evitar a identificação com os “favelados” e é exatamente dessa forma que são

tratados pelo jornalista. São os “favelados“ que devem se retirar do local porque os “moradores

da região estão sacrificados”. O problema da falta de moradia é reduzido ao fato de “favelados

terem fincado suas barracas em uma região nobre da cidade”. O conflito é acirrado porque

instalados da forma como estavam eles trazem a desordem para uma região que ainda se

identifica com aquela antiga imagem de ‘cidade jardim’ bela e higiênica. Como os jardins não

fazem parte desse tipo de acampamento e os referenciais de limpeza e higiene não são os mesmos

dos moradores daquele bairro, o conflito entre esses dois grupos da cidade atinge seu ápice no

momento em que ocorre a ocupação das calçadas do bairro de Lourdes. O embate que aí teve

lugar não refere-se somente à luta pela ocupação de um espaço, pela garantia de programas de

moradia popular, mas também uma luta por valores e hábitos que um determinado espaço pode

comportar. Essa matéria é representativa no sentido de explicitar como as famílias participantes

dessa ocupação estavam sendo vistas.

Esse mesmo artigo do dia 15/11/1994 chamava a atenção para outra área da cidade

onde, naquela época, era possível encontrar muitas casas de madeira, papelão e lona.

“Preocupa tanto, incomoda tanto o acampamento da Olegário Maciel que consegue até minimizar o que vem acontecendo nas margens do Arrudas, onde uma favela foi implantada atrás do muro divisório da pista de tráfego. Escondida aos olhos de quem passa, ela só faz crescer - sem que nada se faça para impedir a ocupação da região.” (Estado de Minas, 15 nov. 1994. Segunda Seção, p.2)

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Essa “favela”, como era denominada, constituía-se de casas de madeira, papelão e lona sobre uma

parte da calçada da Avenida do Contorno na faixa que margeia o Ribeirão Arrudas, no bairro

Barro Preto, próximo à região central da cidade. Mais uma vez a referência à favela é usada,

sendo que o objeto sobre o qual é falado é diferente, mas, aos olhos de um transeunte, as barracas

são todas iguais e as pessoas que as habitam também, não havendo diferença entre participantes

do movimento dos sem-casa e “construtores de casa” sob viadutos e passarelas e nas calçadas. A

diferença entre eles está na forma como eles mesmos se vêem e não como os outros, que não têm

a rua como referência de moradia, os vêem. Ou seja, a diferença é interna a cada segmento da

população de rua fazendo parte das identidades de quem pertence a cada um deles. Entretanto,

essa diferença não é percebida porque a visão dominante sobre a população de rua é

homogeneizadora e redutora, pois ignora a diversidade.

Os participantes do movimento dos sem-casa acampados por setenta e um dias na

Avenida Olegário Maciel foram aqueles que estiveram mais próximos de residências e

estabelecimentos comerciais, ameaçando diretamente esses últimos pois dividiam as mesmas

calçadas. Devido a essa proximidade, decidi fazer algumas entrevistas com pessoas dos

estabelecimentos comerciais da região ocupada pelos participantes do movimento dos sem-casa,

para ouvir como viam os sujeitos que estavam ocupando as calçadas, antes utilizadas pelos

transeuntes cotidianos e pelos consumidores usuais de tais estabelecimentos. As entrevistas foram

realizadas em janeiro de 1995.

Em janeiro de 1995, dois meses após a remoção dos sem-casa, todos os entrevistados se

lembravam do episódio ocorrido no ano anterior como um acontecimento sui generis na região e

difícil de ser esquecido devido aos transtornos e, para alguns, aos prejuízos financeiros. O que

relataram ter sido mais marcante naquele período foi o odor característico de locais onde as

condições sanitárias, de higiene e de limpeza são precárias.

“Lembro mais da sujeira que eles faziam. No começo não incomodava não, mas depois, foram setenta e um dias, né?!, ficou uma sujeira muito grande, um mau cheiro horrível. Chegou um ponto que incomodava, o mau cheiro que dava atrapalhava a gente.” (Audrey, recepcionista de uma Empresa de Consultoria em Engenharia, localizada na Avenida Olegário Maciel,(cf. Mapa 5) 4/01/195)

“Lembro mais dos arranhões do meu carro. Não posso falar que eles incomodaram não, a única coisa que incomodou é que eles não tinham instalação sanitária, então o mau cheiro que deu aqui ficou meio forte. (Ricardo, funcionário de uma revendedora de motos localizada na Avenida Olegário Maciel, (cf. Mapa 5) 24/01/1995)

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“Lembro perfeitamente do episódio e o mais marcante foi o odor [risos].” (Eduardo, gerente da Pneusola localizada na Avenida Olegário Maciel, (cf. Mapa 5) 24/01/1995)

“Tem freguesa minha que não vinha aqui porque o cheiro incomodava muito.” (Sr. Renê, dono de uma banca de jornais e revistas na Avenida Olegário Maciel, (cf. Mapa 5) 25/01/1995)

Essas falas fazem referência à limpeza e à higiene no acampamento, ressaltando como a

falta tanto de uma como da outra foi responsável pelo forte mau cheiro na região, fazendo com

que este fosse lembrado como um fato marcante e característico da ocupação das calçadas pelo

movimento dos sem-casa. O mau cheiro era forte e passou a ser uma referência importante em

relação ao episódio da ocupação das calçadas no bairro de Lourdes pelos participantes do

movimento dos sem-casa pela ameaça que representou ao comércio, principalmente o restaurante

e a padaria.

Discutindo sobre as representações referentes aos odores no século passado, Courbin

(1987) assinala que

“o burguês projeta sobre o pobre aquilo que ele tenta recalcar. A visão que ele tem do povo se estrutura em função da imundície. A fetidez do animal deitado sobre seu excremento, em sua toca, constitui-se num modelo. Seria então artificial dissociar a insistência no que diz respeito ao fedor do pobre, por um lado, e por outro, à vontade burguesa de desodorização.”(p. 185,186)

Essa é uma visão do século XIX, mas é importante para interpretar a idéia do mau cheiro como

uma peculiaridade dos participantes do movimento dos “sem-casa” apontada pelos vizinhos do

“acampamento” no Bairro de Lourdes. Uma característica que os tornou inesquecíveis, mas que

ao mesmo tempo fortaleceu na vizinhança o desejo de afastá-los, pois exalavam odores que tanto

comerciários quanto comerciantes procuravam conter e estar distantes. Era o desejo de

desodorizar, de trazer a higiene, da forma como eles a compreendem, de novo para o seu lugar.

Era a tentativa de tirar as “impurezas”, a “sujeira” que se instalava nas calçadas conferindo-lhes

um aspecto de “desordem” .

De acordo com Douglas (1991: 50), “a impureza é uma idéia relativa”, ela nunca é um

fenômeno isolado.“Ela é o subproduto de uma organização e de uma classificação da matéria,

na medida em que ordenar pressupõe repelir os elementos não apropriados.” (Ibidem) Nossos

sistemas de ordenação a concebem como um conjunto de elementos repelidos que estão fora do

lugar. As pessoas que participavam do movimento dos “sem-casa” não eram por si só “impuras”,

“sujas”. Eram consideradas e rotuladas dessa forma por estarem “acampadas” em barracas de

lona nas calçadas, realizando ali atividades domésticas, privadas, não previstas para os espaços

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públicos. É “sujo”, é “impuro”, é expressão de “desordem” cozinhar, dormir e, sobretudo, viver

nas calçadas.

A sujeira e a limpeza, representações classificatórias, tornam-se noções que distinguiam

os moradores do Bairro de Lourdes naquele momento. O morador, o comerciante e o comerciário

daquela região eram diferentes dos participantes do movimento dos “sem-casa”, entre outras

coisas, pelos hábitos de higiene que preservavam, pois esses eram a expressão da ordem. Dessa

forma, acreditavam que ainda estando no mesmo espaço deveriam, insistentemente, marcar a

diferença, a separação entre eles, o que significava a distância da desordem. “Nós”, moradores e

trabalhadores de um bairro da zona sul de Belo Horizonte, somos diferentes (porque limpos e

higiênicos) dos “outros” (participantes do movimento dos “sem-casa” que se instalaram nas

calçadas).

É importante perceber que essa referência às noções de limpeza e higiene não ficam

circunscritas aos moradores da zona sul da cidade, pois tanto nos relatos das pessoas que faziam

as instalações fixas sob viadutos, passarelas e nas calçadas, como naqueles dos participantes do

movimento dos “sem-casa”, tais noções aparecem como traços distintivos daqueles que não são

“maloqueiros”. A denominação de “maloqueiro” é conferida àqueles que não cuidam do próprio

corpo, que vivem na e da sujeira. Aqueles que não se auto-classificam como “maloqueiros”, é

porque partem do princípio de que os cuidados básicos que têm com a higiene corporal − tomam

banho, usam roupas limpas − não permitem que sejam considerados como “maloqueiros”.

Apesar de todos os relatos fazerem referência à limpeza e higiene, cada um dentro de

seus parâmetros, considera-se limpo e “o outro” ou “os outros” é que irão aparecer como sujos,

descuidados, sem higiene, como se estivessem em condições inferiores quanto à questão da

limpeza. Isso demonstra que cada um tem seu próprio parâmetro de higiene e limpeza e o que

para o outro pode parecer sujo para quem está no interior desse “sujo” assim não o percebe.

Sujo/limpo é um par dicotômico que estabelece uma fronteira pelos hábitos que os sujeitos

adotam e esses são classificados a partir de tais hábitos. Como assinala Burke (1996) em seu

artigo sobre o hábito de tomar banho, “ ... é obvio que, muito embora todos nos pretendamos

limpos e higiênicos, as atitudes quanto ao que é considerado limpo ou sujo, puro ou poluído

variam ao longo do tempo tanto quanto de um lugar ou grupo social para outro.” ( p. 3) (Grifos

meus)

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Em se tratando do relacionamento entre os comerciantes e os participantes do

movimento dos sem-casa, os entrevistados, em sua maioria, nem conversavam com eles, sabiam

o motivo porque estavam ali acampados, geralmente, por meio da imprensa.

“Eu não tive contato com ninguém. Eu sei que eles estavam reivindicando moradia, mas não me interessava muito em ficar entrando em detalhes não.” (Cibele, recepcionista da Pneusola localizada na Avenida Olegário Maciel, (cf. Mapa 5) 24/01/1995)

“O que eu via, o que eu assistia era de longe, eu nunca cheguei perto deles, nunca conversei com nenhum deles. Eles nunca subiram na minha porta p’rá pedir nada. (...)” (Alice, proprietária do restaurante na esquina da Avenida Olegário Maciel com Alvarenga Peixoto, (cf. Mapa 5), 24/01/1995)

“Eu até pensei em conversar com eles, mas se eu fosse de longe, aí eu vi que de perto eu não devia. Sabia porque eles estavam aqui pela imprensa, porque tinha uma conversa aqui outra ali.” (Olívia, proprietária de uma padaria na rua Alvarenga Peixoto, (cf. Mapa 5) 25/ 01/ 1995)

O contato face a face era evitado como se a partir dele pudessem se contaminar com o que

consideravam sujo, poluído. Falando sobre a solidão e a tristeza, um morador de rua entrevistado

por Underwood (1993) faz o seguinte relato:

“Quando você mora na rua dói o tempo todo. Dia após dia. Não é uma dor física, mas dói. Dói quando as pessoas olham para você como se você não fosse algo além de uma pilha de coisas indesejáveis. Como se quisessem que você não existisse. Isso não faz ninguém se sentir bem consigo mesmo.” (p. 11) (Grifos meus)

Todos sabiam que a falta da moradia era um problema que muitas pessoas experimentavam na

cidade, entretanto não desejavam estar convivendo com tanta proximidade com o mesmo. É

como se desejassem que aquelas pessoas não existissem naquele momento e naquele local, pois

mais do que a confirmação da existência de tal problema os comerciantes e moradores da região

estavam partilhando com os participantes do movimento dos sem-casa as mesmas calçadas,

estavam convivendo com o problema numa proximidade nunca imaginada.

“Eu como comerciante foi péssimo. E ruim também p’rá gente lidar com uma realidade muito próxima da gente, isso incomoda também o lado pessoal. A gente sabe que existe essas coisas só que ficou bem pertinho. Isso no começo me incomodou muito, era um sentimento de dó, você fica comovida. Mas depois você vai convivendo aí você aprende a conviver com isso e começa a ver um outro lado também. Porque aqui eu acho que existiam três coisas: uma realidade social, existia a malandragem e existia o fator político. Então existia essas três coisas, mas nada tira o que ‘tava aí, que é triste mesmo, que é um negócio muito difícil.” (Olívia, proprietária de uma padaria na Rua Alvarenga Peixoto, (cf. Mapa 5) 25/01/1995)

“Eu nunca tive muito contato (eu sou pobre) com pobreza total e era o que a gente via aqui. Aquelas senhoras, aqueles meninos, aquela pobreza total, aquela miséria brava aí, alimentando de tudo quanto era sujeira, defecando e urinando tudo aí na rua, aquilo choca demais. Aquele encontro com a realidade que é melhor nem nunca ver. Pobreza absoluta.” (Sr. René, dono de uma banca de jornais e revistas na Avenida Olegário Maciel, 25/01/1995)

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A existência de segmentos urbanos que vivem em condições precárias, que vivem o problema da

falta de moradia era conhecida dos moradores, comerciantes e comerciários por meio da mídia

impressa e eletrônica, mas o contato direto e tão próximo com essa realidade transforma-a em

algo palpável porque ela passa a ter lugar ao lado deles sem a intermediação da tela da televisão,

sem o papel jornal e sem o vidro do carro. Eles deixaram de vê-la apenas como notícia, pois, de

uma certa forma, passaram a fazer parte daquela realidade que estava compondo o cenário do

Bairro de Lourdes. E o que ocorria é que quanto mais os dias se passavam e o acampamento

permanecia no mesmo local, mais a vizinhança se revoltava com a desordem instalada ao seu

redor e ansiavam pela resolução do problema, pela volta do contato com aquela realidade

somente por meio da mídia.

Parece que para firmarem uma posição contrária àquele tipo de estratégia de

enfrentamento ao problema da falta de moradia, era necessário manterem-se distantes, afinal

tiveram “seu território” − apesar das calçadas serem um espaço público − “invadido” e o

“invasor” deveria ser tratado como tal: à distância.

“É um pessoal muito difícil de conviver com eles. Invadem um passeio público e não querem saber se estão trazendo prejuízo p’rá alguém, causa vários problemas p’rá gente, né?!” (Eduardo, gerente da Pneusola localizada na Avenida Olegário Maciel, (cf. mapa 5) 24/01/1995)

Apenas um dos comerciantes disse que conversava muito com eles dizendo que assim

fazia porque havia estudado com os monges capuchinhos e havia feito voto de pobreza.

“Eu conversava muito. A maioria era gente de muito pouca condição, muito pouca mesma ou nenhuma, sem profissão, alguns que tinha profissão assim era servente de pedreiro, que eu acho que nem é profissão, as mulheres inclusive muitas querendo arrumar emprego.” (Sr. René, dono de uma banca de jornais e revistas na Avenida Olegário Maciel, 25/01/1995)

Alguns dos entrevistados estabeleceram distinções entre os participantes do movimento

dos sem-casa, aqueles que construíam “instalações permanentes” sob os viadutos e passarelas e

aqueles que usam as calçadas como locais de pernoite − as “instalações provisórias”. A distinção

à qual eles se referiram dizia respeito ao fato do movimento dos sem-casa ser uma organização −

eles tinham um líder − enquanto o pessoal que fica debaixo do viaduto já está acostumado a viver

assim, na miséria, e não tem uma organização para formalizar suas reivindicações. Isso significa

que a diferença existente no interior da população de rua é perceptível, pois as instalações fixas e

as temporárias foram diferenciadas da ocupação das calçadas pelo movimento dos “sem-casa”: as

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primeiras são ocupações espontâneas e individuais, enquanto a segunda é organizada e coletiva.

A politização do conflito tornou perceptível para os moradores e comerciantes do Bairro de

Lourdes que seu território estava ameaçado e que havia condições de êxito.

“Eu acho que esse pessoal que mora debaixo de marquise fica lá, agora esse pessoal que veio p’rá cá é um grupo organizado, eles tinham um líder, eles faziam reunião, quando iam reivindicar era o líder que falava em nome do pessoal. Esse pessoal de marquise não, tipo assim eles são separados, têm uma vida separada.” (Audrey, recepcionista da Empresa de Consultoria de Engenharia localizada na Avenida Olegário Maciel, (cf. mapa 5) 24/01/195)

“Eu acho que quando a pessoa ‘tá ali debaixo do viaduto ele assume e fica ali daquele jeito, não muda e fica ali.”(Eduardo, gerente da Pneusola localizada na Avenida Olegário Maciel, (cf. mapa 5) 24/01/1995)

“Era uma comunidade, tinha um chefe aí, às vezes as pessoas iam sair o chefe não deixava, então tinha os que tinha mais autoridade, tinha os que fazia o papel de polícia, tinha também as mulheres no meio deles, p’rá eles mesmos.” (Sr. René, dono de uma banca de jornais e revistas na Avenida Olegário Maciel, (cf. Mapa 5) 25/01/1995)

Uma das entrevistadas aborda a diferença entre os participantes do movimento dos sem-

casa e os “construtores de casa” sob o viaduto, a partir da relativização da miséria. Os miseráveis

estavam sob os viadutos e, de acordo com o depoimento dela, os “falsos miseráveis” eram os que

estavam ocupando a calçada pública em frente ao seu estabelecimento comercial.

“Eu tinha ódio deles [dos acampados do movimento dos sem-casa], porque eu achava que era um bando de gente desocupada. Eles ficavam jogando truco o dia inteiro. Esses aqui foi armação mesmo, foram todos patrocinados. Isso aqui foi armação, tanto que dia 16 de novembro, passou a eleição, acabou. Eu acho que aqui não tinha nada de miséria, te dava era nojo, antipatia. Esses aqui ganhavam p’rá fazer isso. Eles eram pagos p’rá ficar aqui na porta. Eu penso assim né?! Não sei nem se eu estou certa, eu imagino que é isso. Você anda ali na Via Expressa [local onde tem muitos viadutos com casas construídas sob eles], eu morro de pena daquele povo. Lá é uma miséria danada. Lá não, é uma miséria tremenda.” (Alice, proprietária do restaurante na esquina da Avenida Olegário Maciel com Alvarenga Peixoto, (cf. mapa 5) 24/01/1995)

Essas pessoas que estiveram próximas, mesmo que só em termos de uma proximidade

espacial, expressam como “viram” os participantes do movimento dos sem-casa. Não é possível

pensar essa visão sobre os ocupantes de espaços públicos como a expressão de como eles são

vistos por quem não vive o problema da falta de moradia. Entretanto, possibilita perceber que as

impressões e as classificações sobre o outro são construídas a partir de parâmetros próprios do

grupo ao qual pertence o enunciador da opinião e relativos ao momento no qual a enunciação foi

feita. Ou seja, carregam as marcas da sua posição no mundo social naquele momento. De acordo

com Bakhtin (1981), uma enunciação, a qual pode conter uma palavra, uma frase, ou mesmo uma

seqüência de frases, não tem existência fora de um contexto social, pois há sempre um locutor

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que, partindo de seu “horizonte social”, pensa e se exprime para e sobre um grupo social bem

definido.

Voltando à questão das diferenças no interior da população de rua, vale ressaltar que,

em seu estudo sobre os nômades urbanos, Spradley (1980) discorre sobre os diferentes tipos de

mendigo dizendo que eles “... eram identificados em termos de graus de mobilidade, modo de

viajar, tipo de casa básica e estratégias econômicas de sobrevivência.” (p.108) Ele ainda

acrescenta que os tipos de moradia utilizados por esse segmento da população urbana são os

critérios mais significativos para definir a identidade social dos mesmos. Dessa forma,

pensando em reunir as caracterizações e diferenciações internas da população de rua, a partir da

forma como se instalam nos espaços públicos, foi elaborado o seguinte quadro:

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POPULAÇÃO DE RUA: QUEM SÃO E COMO VIVEM

Tipos de Instalação

Ocupação Modos de vida Relação com o espaço ocupado

Espaços ocupados Higiene e limpeza Denominações

Fixas

Coleta de papel e material reciclável

Grupos domésticos (homens, mulheres e crianças). “Estão na Rua”

Apropriação do espaço ocupado a partir da construção das “malocas”.

Baixios de viadutos, passarelas ou pontes.

A arrumação das “malocas” é diária e consta da limpeza do chão, dos utensílios de cozinha e das roupas.

“Maloqueiros”

“Charquear”, “Manguear”, “Mendicância”

Homens sozinhos (o pernoite, em geral, é feito em grupos de amigos) “Estão na Rua”

Permanecem temporariamente em espaços públicos, “perambulam”pela cidade até o momento que decidem partir para outro lugar.

Calçadas e praças da área central da cidade.

“Andarilho”, “Peregrino”

Construção civil36, “biscates” .

Homens sozinhos (o pernoite também é realizado com grupos de amigos). “Ficam nas ruas”.

A relação com o espaço temporariamente ocupado se dá no período de tempo em que ocorre o desemprego que,, em geral, traz o desalojamento.

Calçadas e praças da área central da cidade.

O banho e a limpeza das roupas são atividades realizadas quando freqüentam algum abrigo ou o centro de referência da População de Rua. Ocasionalmente esses procedimentos ocorrem nas praças onde existe algum chafariz ou sob os viadutos.

“Trecheiro”

Não têm uma ocupação além do exercício da mendicância

Homens e mulheres sozinhos. “São da rua”.

As ruas e calçadas por onde “perambulam” é que são suas referências na cidade devido à história pessoal de perdas afetivas, materiais e da vida em coletividade.

Calçadas, praças e esquinas da área central e em alguns bairros.

Esse morador de rua se veste com roupas bastante usadas e é notório que o banho e a lavagem das roupas não são hábitos regulares.

“Caídos”

Temporárias

Trabalhadores do setor de serviços, da construção civil, empregadas domésticas e desempregados.

Grupos domésticos, famílias. “Estão na Rua”.

O espaço ocupado era o objeto de pressão política ao poder público para terem suas reivindicações atendidas. As calçadas que se cobriram de “barracos de lona” tinham como objetivo tornar visível o problema da falta de moradia.

Calçadas da Avenida Olegário Maciel e da Rua Alvarenga Peixoto locallizadas no Bairro de Lourdes.37

A higiene pessoal era realizada dentro das barracas para garantir a privacidade do banho. As roupas eram lavadas quando o caminhão pipa trazia água que era reservada em grandes recipientes para o banho e para lavar os utensílios de cozinha.

“Movimento dos Sem-Casa”

36 O “ficar na rua” ocorre quando a obra não oferece alojamento para seus funcionários. 37 Essa localização refere-se a ocupação do movimento dos sem-casa realizada em setembro de 1994.

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As formas instalação nos espaços ocupados são a expressão de relações diferenciadas com

o próprio espaço, com a vizinhança, com as atividades ocupacionais e com os outros sujeitos do

“mundo da rua”. Segundo Underwood (1993:297), “as pessoas que moram sob as pontes, como

membros de qualquer subcultura, partilham a maioria de suas crenças e valores com a

sociedade como um todo, mas suas vidas estão sendo modeladas de formas distintas de acordo

com o nicho ecocultural que elas ocupam.” (Grifos meus) Ou seja, cada tipo de instalação e cada

espaço ocupado prevê um conjunto de hábitos e relações que estão vinculados às práticas que ali

se desenvolvem e, além disso, revelam uma estratificação no interior de um segmento urbano.

Estratificação esta que expressa a existência de posições diferenciadas no “mundo da rua”.

Posições que se definem pelas atividades ocupacionais desenvolvidas, pelos tipos de instalações

nos espaços públicos, pelas noções de higiene e limpeza expressas no cuidado com o próprio

corpo e com as instalações construídas e seu entorno.

As instalações fixas conferem aos seus moradores, que estão na rua, um status de

“proprietários” de uma moradia, pois esta é construída e mantida por meio das atividades que a

rua possibilita desenvolver, mas por outro lado são identificados com os estereótipos de

favelados, vagabundos e marginais. As instalações temporárias têm como característica a

constante mudança e com isso os sujeitos que fazem uso desse tipo de ocupação dos espaços

públicos permanecem períodos variados de tempo em lugares distintos: abrigos, calçadas, baixios

de viadutos e praças. Eles não se fixam por longos períodos em nenhum desses, eles se fixam

nessa forma de vida, numa relação circunstancial com as instituições de atendimento à população

de rua, com os amigos da rua e com os próprios locais ocupados. É nesse tipo de ocupação que

existe um maior número de distinções nas formas de identificação dos sujeitos do “mundo da

rua”. São os “andarilhos”, os “trecheiros” e os “caídos”, todos eles também denominados de

“maloqueiros” por aqueles que se instalam de forma permanente.

No que se refere às formas de identificação, existe um esforço de cada um desses

segmentos para evitar a denominação de “maloqueiro” visto que esta reúne todos os estereótipos

- vagabundo, marginal, louco, incapacitado, sujo, desempregado − que revelam os preconceitos

da sociedade para com este tipo de sobrevivência nos centros urbanos. Além disso, a justificativa

para não serem identificados como “maloqueiros” se pauta pela questão da limpeza e dos hábitos

de higiene. Como na definição da população de rua o “maloqueiro” é aquele que não se preocupa

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com esses hábitos, que “perambula” pelas ruas com as roupas e o próprio corpo sujos, aqueles

que prezam pela limpeza do seu entorno, de suas roupas e de seu corpo não podem ser

identificados com a figura do “maloqueiro”. A higiene torna-se uma noção que ordena as

posições no “mundo da rua”, e a partir dela se classifica quem faz parte de qual segmento da

população de rua.

Sendo assim, as classificações utilizadas pela população de rua para se diferenciarem

uns dos outros e estabelecer os limites entre as formas de instalação nos espaços públicos revelam

uma disputa por denominações legítimas que realmente correspondam à forma de vida de cada

um dos seus segmentos. É uma luta simbólica no campo da identidade, pois o que está em disputa

é a adoção de uma denominação que esteja de acordo com o modo de vida dos moradores dos

baixios dos viadutos, das calçadas e dos bancos de praças; uma denominação que não esteja

descolada das atividades e dos hábitos cotidianos do “mundo da rua”. De acordo com Bourdieu

(1989), ocorrem lutas de classificações no mundo social que também se constitui pela

“representação e vontade”, sendo que “...existir socialmente é também ser percebido como

distinto.” (p.118) Com efeito, a busca da distinção, ou melhor, da não inclusão na categoria

“maloqueiro”, é a busca da afirmação da própria existência como distinta ao que a sociedade

reconhece como próprio dessa forma de viver nas cidades: uma visão redutora, carregada de

preconceitos que desconhece as diferenças e por isso confere a todos os moradores de rua,

indistintamente, o rótulo de vagabundos, marginais, incapacitados, sujos e loucos.

4.3. O PODER PÚBLICO MUNICIPAL E A POPULAÇÃO DE RUA

Como já mencionado no Capítulo Um, a Prefeitura de Belo Horizonte, a partir da

administração da cidade pela Frente Popular, em 1993, por meio da Secretaria Municipal de

Desenvolvimento Social, deu início à realização de ações junto à população adulta em situação de

vulnerabilidade e miserabilidade. Entre estas ações estava o Programa de Apoio à População de

Rua cujo público alvo eram os moradores de rua de Belo Horizonte.

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Entrevistando38 técnicos envolvidos nesse programa e a Secretária do Desenvolvimento

Social, busquei identificar como o poder público concebe e atende este segmento da população da

cidade que experimenta o problema da falta de moradia, fazendo da rua seu local de

sobrevivência e permanência.

De acordo com as entrevistas, as pessoas que usam o espaço rua como local que garante

a sobrevivência e, além disso, como local de moradia conformam um universo bastante

diferenciado. O relato dos entrevistados que trabalham diretamente com essas pessoas e têm, de

alguma forma, buscado compreender o que vem a ser o fenômeno da rua tornar-se local de

trabalho e, além disso, transformar-se em local de moradia, confirma a idéia da heterogeneidade

de um grupo que, a princípio, parece e é denominado como homogêneo − população de rua, sem-

casa. Isto porque os entrevistados ressaltam que a população de rua é composta por pessoas com

as mais variadas trajetórias pessoais e habitacionais não podendo, então, ser compreendida como

um “grupo” que se apropria do espaço rua da mesma forma. São pessoas que estabelecem

relações diferenciadas com esse espaço, apesar de, praticamente todos, se utilizarem dele para

garantir a sobrevivência e nele se instalarem como local de moradia. Isto é, apesar desses mesmos

usos serem implementados no espaço rua as formas de fazê-los são diferenciadas, o que

possibilita perceber a heterogeneidade da população de rua.

“... enquanto uma categoria social, ela está sendo configurada como aquelas pessoas que vivem e que moram na rua. Um viver que, num aspecto mais amplo, é estar na rua buscando sua estratégia de sobrevivência. Temos casos limites de pessoas que têm casa na periferia, mas deixam suas casas e vêm para o centro da cidade exercer alguma atividade de trabalho ou mesmo de mendicância e outras que possam garantir a sua sustentabilidade. São pessoas que estão num limite social, que não têm condições nem de moradia nem de trabalho dentro dos padrões formais da sociedade. São esses que estão fora dos padrões de moradia e que, de uma certa forma, pelo vínculo de trabalho com a rua também se caracteriza como população de rua.” (Vânia R. Rodrigues, Coordenadora do Programa de Apoio à População de Rua, SMDS39, 20/08/1996)

Esse relato remete a duas discussões anteriores: o fato da população de rua ser assim

denominada por não se enquadrar nos padrões de moradia e a vinculação de trabalho com a rua.

O primeiro ponto refere-se ao problema da definição legitima de moradia: as ruas, praças, áreas

sob elevados ou viadutos e praças não são locais previstos para qualquer tipo de abrigo; assim

quem deles se apropria para se instalar foge aos padrões pré-estabelecidos e aceitos socialmente 38 Estas entrevistas foram realizadas entre agosto e setembro de 1996 e em julho de 2003 houve uma atualização das informações. 39 Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social.

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como prováveis possibilidades de moradia. Já o vínculo do trabalho realizado na rua é relativo às

perdas que já se processaram com várias pessoas que estão vivendo no mundo da rua: os laços

com a família, o trabalho no mercado formal entre outras fazendo com que não só vivam na rua,

mas também retirem dela sua sobrevivência. A rua passa então a comportar e conformar novos

valores e normas para esses sujeitos que nelas se instalam e sobrevivem das atividades que nelas

desenvolvem. “O processo que a gente tem vivido aqui tem possibilitado perceber o seguinte: primeiramente é um público diversificado, de uma realidade também bem diversificada, alguns pontos comuns, mas outros assim bem peculiares de acordo com determinados grupos. Na rua nós temos pessoas que foram vítimas da especulação imobiliária, pessoas que de algum modo foram parar na rua por essa razão, trabalhadores qualificados, você encontra torneiros, mecânicos, pessoas de profissões variadas que também foram parar na rua, aí bifurcam a questão do aluguel com o desemprego, aí há um encontro de situações. Você também depara com o migrante, que é aquela pessoa que veio para a cidade às vezes sem nenhuma referência, (...) você também depara com pessoas que tiveram algum tipo de ruptura familiar (...), os catadores de papel, que usam a rua como espaço de trabalho, de sobrevivência e os pedintes, pessoas que fazem uso da rua também pela sobrevivência.(...)” (Antônio R. Gonçalves, Educador Social do Programa de Atendimento à População de Rua, SMDS, 20/08/1996) “Dentro da população de rua existem várias categorias. Desses que trabalham e por causa do trabalho passam a ser considerados moradores de rua, como os catadores de papel, os lavadores de carro, os biscateiros, os catadores de latinha, são pessoas que têm com a rua a questão da sobrevivência e por causa disso passam a ser denominados moradores de rua. Tem também o que a gente chama de migrantes, que são pessoas que muitas vezes elas estão de passagem por Belo Horizonte e nessa passagem por Belo Horizonte ela, por ineficiência, no meu modo de entender, dos albergues e abrigos elas passam a ter também na rua uma referência. Nós temos também hoje, pessoas que foram expulsas de qualquer possibilidade de moradia e que também passam a estar morando na rua. (...) antes as pessoas iam morar nas favelas, hoje tem muita gente que não dá conta de pagar o aluguel na favela. Você não encontra em Belo Horizonte nenhum barracão por menos de R$ 150,00/R$ 200,00. Então isso também é uma forma de estar levando a população p’rá rua. E eu acho que tem uma outra categoria aí, que não é a maioria, mas ela também está na rua, é um outro grupo de pessoas que está na rua não é pela questão social, que está na rua porque rompeu com a instituição família ou pelo alcoolismo. Nós temos um caso de um grupo desses lá em Santa Tereza, é um grupo muito ‘sine qua non’. São pessoas que lêem a Folha de São Paulo, tipo passaram pela universidade. Esse grupo se reúne numa praça porque as famílias são de lá, têm vídeo cassete em casa, televisão, carro e estão na rua. E por fim tem os meninos e meninas com trajetória de rua que já é bem diferente, tem características diferenciadas da população adulta de rua.(...) Tem também uma outra categoria, a mais tradicional, que são os doidos, os mendigos de rua, que é a categoria da população de rua mais antiga do mundo.” (Simone A. Albuquerque, Diretora do Departamento de Ação Social Básica40, SMDS, 26/08/1996)

Esses últimos relatos também fazem referência à heterogeneidade da população de rua,

mas já salientam algumas das possíveis causas que levam as pessoas a adotarem a rua como local

40 Esse departamento “será responsável pelo atendimento às demandas emergenciais das pessoas e famílias em situação de risco social e pessoal, buscando garantir seus direitos sociais mínimos.” (Plano Municipal de Assistência Social de Belo Horizonte, Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social - Prefeitura de Belo Horizonte, gestão 1993/1996) O Programa de Apoio à População de Rua está vinculado à esse departamento.

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de moradia: o aumento do preço dos aluguéis, o desemprego, a migração, a ruptura com a

família, o alcoolismo. Isso retrata que entre os motivos que se apresentam como possíveis

propiciadores da inserção dos indivíduos no “mundo da rua” aparecem problemas conjunturais

que refletem a restrição da oferta tanto de empregos no mercado formal quanto de moradias

acessíveis à população de baixa renda; como também aparecem problemas de ordem individual

relacionadas a histórias de vida pessoais, condições físicas e mentais. Esse dado é importante

para se pensar a constituição da população de rua, dos sem-casa, não somente como resultado de

condições conjunturais como, por exemplo, a inexistência de políticas públicas habitacionais para

a população de baixa renda. Há de se levar em conta um conjunto de circunstâncias que,

combinadas, tiveram como resultado a chegada de indivíduos à rua como uma das possibilidades

de sobrevivência nos espaços urbanos.

A trajetória individual e habitacional desses sujeitos que fazem nas calçadas e nos

baixios de viadutos instalações fixas ou temporárias deve ser considerada para que se possa

entender a adoção desses espaços como locais de moradia. Ela expressa como os espaços

públicos foram fazendo parte da vida dessas pessoas: alguns abandonavam a casa por problemas

com a família, outros perderam o emprego e com ele a moradia, além disso ainda existem aqueles

que não conseguiram pagar o aluguel e depois de morar com outros parentes, com amigos, no

próprio trabalho chegaram até a rua como sendo esta uma última possibilidade de sobrevivência.

Não há como dizer que apenas um fator foi fundamental para a chegada dos sujeitos à rua, e que

existe a predominância de um sobre o outro, mas é necessário pensar as circunstâncias e a forma

como os fatos foram ocorrendo, pois cada trajetória individual com suas especificidades revela

relações diferenciadas com o “mundo da rua” fazendo com que as ocupações dos espaços

públicos sejam diferenciadas pelas várias formas de instalação nos mesmos.

Um aspecto importante a ser abordado em relação à chegada desses indivíduos à rua é

ressaltado por Vieira (1992:98), “a inserção no mundo da rua não se dá de forma repentina.

Gradativamente o indivíduo vai abandonando hábitos, costumes e conceitos, para pouco a pouco

ir vivenciando e adquirindo um novo entendimento da rua e - por que não dizer? - da vida.” Isso

significa que não é possível transformar-se num sujeito do mundo da rua repentinamente pois,

além das circunstâncias mencionadas acima que podem levar os indivíduos a adotarem a rua

como local de moradia, é necessário que se conforme uma nova maneira de viver nesse espaço

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que implica adquirir novos hábitos, valores, aprender novas regras de sobrevivência, adotando,

conseqüentemente, um novo estilo de vida. “Eu sou de João Molevade, mas fui criada em São Paulo. Aí eu morei em São Paulo 20 anos e depois eu vim direto p’ra Belo Horizonte. Aí chegou aqui eu arrumei um rapaz e fui morar com ele. Aí moramos na boca do Túnel. De lá não deu certo porque eles indenizaram, aí nós compramos um barracão lá no bairro Aparecida, mas ele resolveu vender tudo e nós viemos parar debaixo do viaduto.” (Bela, Bela, moradora do Viaduto da Silva Lobo sobre a Via Expressa (cf. mapa 2), 4/08/94)

“Sou de Pirapora. Minha família mora lá. Eu vim trabalhar aqui e não deu certo, a mulher me explorava. Eu fazia as coisas sozinha, dando faxina na casa dela de dois andares, não podia sair p’ra ir na casa de uma amiga no domingo. Aí eu cansei, peguei e fugi de lá.” (Rivânia, moradora de rua, 29/09/94)

A Secretária Municipal de Desenvolvimento Social, ao discutir sobre os segmentos que

compõem a população de rua, chama atenção para o fato de serem todos excluídos sociais, apesar

de ressaltar que as trajetórias de quem está na rua fazendo dela local de moradia e/ou trabalho são

várias. É claro que esta caracterização é pertinente a todos eles, mas, por outro lado, ela não deixa

transparecer a especificidade de cada um dos segmentos da população de rua, ela é uma

classificação redutora que não reconhece as diferenças existentes no interior da população de

rua, pois, ao contrário, ela a engloba numa categoria mais ampla colocando-a lado a lado com

outros segmentos urbanos, também excluídos, mas que não vivem a experiência de sobreviver da

rua e na rua. “Na verdade daqui do meu lugar, você está falando que existe, eu sei que existem vários grupos diferentes porque os meus técnicos, as diretorias me repassam, mas do meu lugar e de onde a população vê, são pessoas excluídas. A grande maioria não pertence à Belo Horizonte, parece que é recente, muito recente, o fato das pessoas não conseguirem pagar aluguéis nos barracões e irem p’rá rua, é bem recente isso. Eu acho que essa família não fica bem adaptada à rua como outros que já vêm vindo, eu acho que ela difere mesmo, porque ela já morou debaixo de um teto, então ela tem outro nível de exigência, esses são os excluídos da capital. Para mim é a concretização de várias coisas que você estuda, de várias teorias que é o resultado do grande erro que é a condução desse processo político-econômico brasileiro de exclusão mesmo. Apesar de ter essas diversas diferenças e nós trabalharmos com menino de rua, menino que trabalha na rua, menina de rua, menina que trabalha na rua, eles todos fazem parte de um grande complexo que é a exclusão social.” (Márcia M. B. Pinheiro, Secretária do Desenvolvimento Social, 04/09/1996)

Indubitavelmente, a exclusão é uma marca na vida dos sujeitos do mundo da rua. Num

primeiro plano esses sujeitos estão à margem da sociedade, pois ao “cair na rua” rompem com

formas socialmente aceitas de sobreviver. Essas são orientadas pelo princípio do trabalho, fonte

por meio da qual as pessoas retiram os recursos para sua sobrevivência: morar, comer, vestir etc.

O rompimento com essas formas socialmente aceitas de sobrevivência não implica dizer que

esses sujeitos não trabalham, mas que têm outras formas de trabalho: fazem biscates, bicos,

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realizam a coleta de papel, plástico e alumínio para reciclagem. Eles são excluídos da

possibilidade de inserção no mercado formal de trabalho, pois este tem exigências, como

endereço, boa aparência, capacitação profissional entre outras, nas quais não se enquadram as

pessoas que adotam a rua como local de moradia. Segundo Underwood (op.cit.:319,320),

“A maioria dos trabalhos que as pessoas sem-casa estão aptas a conseguir são aqueles informais que pagam muito pouco e não são reconhecidos como trabalho pelos membros da classe média.(...) Existem poucos empregos na economia formal para pessoas com poucas habilidades e existe uma grande competição para os mesmos em Los Angeles. Os sem-casa estão em grande desvantagem para conseguir um emprego convencional e eles sabem disso. Eles não têm endereço nem telefone para contato, então mesmo se alguém deseja empregá-los, seria difícil contactá-los. É muito difícil para eles manterem limpas suas roupas, seus documentos e eles próprios e, além disso, manter tudo em local seguro para não ser roubado.”

Dessa forma, eles passam a sobreviver dos ganhos advindos das ocupações que o

mercado informal lhes oferece, ou melhor, das ocupações que a rua lhes oferece como

possibilidade de sobrevivência. Então, ocupando postos inferiores da escala social, esses

trabalhadores sem residência fixa, na maior parte das vezes, sem família e sem um trabalho

regular, encontram-se em uma situação-limite frente ao que é considerado como ordem legítima

de vida. Ao discutir o perfil da população de rua e suas ocupações, Zaluar (1995:56) assinala que

“... a condição de moradores de rua os obriga a aceitar remunerações ainda mais baixas, como

catadores de papel e prestadores de pequenos serviços, em virtude da aparência pessoal e da

condição de pessoas sem lugar, sem lar.” É a desigualdade de condições e habilidade para o

mercado de trabalho sendo reproduzida e não diminuída.

Essa exclusão que se observa no mundo do trabalho não fica aí circunscrita pois a essa

forma de sobrevivência não aceita socialmente associa-se um conjunto de classificações

negativas que estigmatizam os sujeitos do mundo da rua excluindo-os de certas relações sociais

que poderiam inseri-los em parâmetros de vida social aceitos como, por exemplo, alugar um

cômodo ou arranjar um emprego. A imagem do “homem de rua” fica vinculada a estereótipos

como vagabundagem, marginalidade, incapacidade, loucura entre outros e os sujeitos do “mundo

da rua” acabam por incorporar essa identidade imposta e vinda de fora. É no “mundo da rua”,

esse espaço visto negativamente pela sociedade como um todo, que esses sujeitos encontram

outros com dificuldades semelhantes como as perdas, a auto imagem denegrida, os estigmas e

preconceitos e aí vão se socializando, como se a rua fosse o “... espaço social possível, mesmo

que estigmatizado e visto negativamente pela sociedade como um todo.” (Neves, 1992:99)

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A partir da identificação da heterogeneidade da população de rua − composta por

pessoas com trajetórias habitacionais e histórias de vida, hábitos e valores, diferenciados,

revelados, inclusive, pela forma como se apropriam e se instalam nos espaços públicos − o poder

público adota várias estratégias de ação no atendimento da mesma.

“É justamente essa questão da heterogeneidade que coloca esse desafio do poder público ter leituras diferenciadas, ter formas diferenciadas de tratamento, de enfrentamento dessas situações, e também de metodologias diferenciadas. (...)

O Programa de População de Rua está estruturado em projetos. O Projeto de Albergue Noturno Municipal seguindo as linhas mais tradicionais de atendimento à população de rua, que é o albergamento, oferecendo pernoite, a alimentação, o banho.(...) Tem o Projeto Lagoinha que é um projeto que no Brasil é a primeira proposta que o poder público tem desenvolvido um projeto de moradia para a população de rua.(...) O Projeto da República Reviver que é também uma proposta inovadora junto à população de rua e que no seu processo histórico ela já nasceu de uma intervenção de moradores de rua, com a Pastoral de Rua de Belo Horizonte, de forma organizada, reivindicando, no orçamento participativo de 1993, um local de moradia onde os homens sozinhos de rua pudessem ter uma estadia provisória e que nesse local, inicialmente, foi pensado uma casa mesmo, que eles pudessem viver enquanto uma pensão, (...) buscando a reinserção social, a reconstrução mesmo de valores e objetivos de vida, que pu dessem estar apontando para essas pessoas alternativas de vida que elas mesmo estariam sendo sujeitos.(...)O Projeto de Abordagem de Rua que é a intervenção mais pontual mesmo junto à população de rua, mas que é onde você vai estar mais próximo dessa população. Esse projeto está estruturado com 4 educadores sociais. Nós recebemos chamadas da comunidade, da população num todo, como do poder público, e de setores organizados mesmo da sociedade que fazem sua solicitação para atender pessoas que estão na rua, pessoas, grupos de pessoas utilizando as diferenciadas classificações de população de rua.” (Vânia R. Rodrigues, Coordenadora do Programa de Apoio à População de Rua, SMDS, 20/08/1996) “A estratégia tem que ser diferenciada, porque nessa malha chamada rua as relações também são diferenciadas. Só p’rá se ter uma idéia, a população adulta de rua tem uma convivência muito conflituosa com os meninos e meninas com trajetória de rua. Então o poder público também intervém de forma diferenciada. Por exemplo, no caso dos catadores de papel, de latinha, no caso dos trabalhadores de rua, a gente está trabalhando muito mais na perspectiva da organização desses trabalhadores, fazendo com que eles se identifiquem enquanto trabalhadores e se organizem enquanto trabalhadores. Os doidos e os mendigos de rua não se institucionalizam, para estes, por exemplo, a gente está criando centro de convivência que é p’rá ver se eles conseguem ter um espaço de referência, p’rá ver se a gente consegue fazer algum laço com esse tipo de população que fica na rua, dorme na rua, faz suas necessidades na rua, faz sua higienização na rua, então p’rá estes a gente está tentando não uma forma institucionalizada mais contínua, mas um espaço mesmo de referência, p’rá ver se a gente consegue fazer algum tipo de intervenção. No caso dos solteiros de rua, a gente tem a República Reviver, que é um espaço que tem sido muito interessante. Um espaço onde homens solteiros de rua têm tido a possibilidade de reconstrução da própria identidade. E no caso de famílias de rua, famílias que foram sendo expulsas da possibilidade de moradia, com essa população a gente tem trabalhado mais na perspectiva de moradia transitória, trabalho, moradia permanente. P’rá cada uma dessas categorias da população de rua a gente tem tentado traçar uma estratégia.” (Simone A. Albuquerque, Diretora do Departamento de Ação Básica, SMDS, 26/08/1996)

Esse discurso afirma que o poder público não atua de forma homogênea junto à população

de rua. Ele demonstra que se reconhece a existência de segmentos diferenciados no interior da

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população de rua e que é a partir dessa identificação que se adota diferentes estratégias de ação

para atender as várias demandas desses segmentos urbanos. Na verdade, esse discurso também é

revelador da necessidade de adoção de práticas diferenciadas da administração pública municipal

anterior que não contava sequer com um setor específico para o atendimento à população de rua.

A Secretária Municipal do Desenvolvimento Social ressalta a exclusão social como a

grande categoria que define e explica a constituição da população de rua: ela faz parte dos

excluídos sociais que vivem a carência da moradia e estão fazendo uso do espaço rua para

garantir a sobrevivência na cidade. Apesar dessa referência à categoria da exclusão social − uma

classificação redutora −, como já foi apontado acima, existem programas para cada um dos

setores dos excluídos sociais, entre os quais a população de rua.

“Na verdade é um grande grupo de excluídos nas suas diversas formas de organização de sobrevivência. Porque eu acho que esses diversos setores são estratégias de sobrevivência que cada um desses grupos encontram. Porque apesar de tudo sobrevivem e as nossas propostas talvez sejam ou tentam ser p’rá acudir, para poder dar condições à essas estratégias escolhidas por essa população.” (Márcia M. B. Pinheiro, Secretária do Desenvolvimento Social, 04/09/1996)

Essa posição da Secretária coincide com a classificação feita no início deste capítulo

quando discuti a existência de três segmentos diferenciados de pessoas que utilizam estratégias

diferenciadas para o enfrentamento do problema da falta de moradia. A Secretária fala de

“estratégias diferenciadas de sobrevivência”. A proximidade das duas posições está no fato de

que a sobrevivência é ameaçada quando não se tem um local de moradia, uma casa onde se possa

estar abrigado dignamente. Como assinala Durham (1986:90), “toda essa construção de um

modelo de vida decente e confortável, que orienta os julgamentos da população sobre a

sociedade e o lugar que nela ocupam está, entretanto, intimamente vinculada a uma valorização

da propriedade - não dos meios de produção, mas do espaço onde se desenrola sua vida, a

casa.” Além disso, Durham afirma que o projeto de melhoria de vida que organiza a atividade

tanto individual como familiar está concretizada, de maneira muito marcante, na casa própria

que, segunda ela, constitui a síntese da dimensão privada da vida social, é a objetivação do nível

de melhoria de vida privada. Dessa maneira, alguns indivíduos que não concretizam este “projeto

de melhoria de vida”, concretizado na aquisição da casa própria, podem adotar formas

diferenciadas de enfrentamento do problema da falta da moradia, o que, conseqüentemente, pode

significar formas diferenciadas de estratégias de sobrevivência, entre elas a adoção de espaços

públicos como locais de instalação e permanência na cidade.

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O poder público, pelo fato de desenvolver programas de atendimento às pessoas que

estão fazendo da rua local de trabalho e/ou moradia, tem revelado que a população de rua não é

um segmento urbano homogêneo. É exatamente sua heterogeneidade que tem orientado a

implementação de programas específicos para atendê-la.

4.4. A PASTORAL DE RUA : OS “INICIADOS”

Cabe agora ressaltar a atuação da Pastoral de Rua junto à população de rua, pois esta

desenvolve esse trabalho desde 1987.

A pastoral é um grupo vinculado à Arquidiocese, composto inicialmente pelas irmãs de

uma Fraternidade de Oblatas Beneditinas, que tem como característica uma atuação junto à

população dita marginalizada dos centros urbanos. Esta atuação junto à população de rua teve

início em São Paulo e Recife. Em Belo Horizonte, apesar da existência da população de rua, não

havia nenhum grupo trabalhando junto a ela. Essas irmãs, decidiram, então, iniciar o trabalho

aqui, após uma conversa com o Arcebispo, pois estariam vinculadas à Arquidiocese. Uniram-se a

alguns leigos, também interessados pelo problema, e começaram a primeira etapa do trabalho que

se caracterizou como uma fase de reconhecimento da população de rua para perceberem suas

características. O objetivo dessa fase era contatar as pessoas na rua, sem levar nada, e também

buscar agrupá-los, o que foi feito a partir do levantamento junto a eles de algumas datas

significativas quando, então, eram feitas festas e celebrações na rua.

“Não havia um espaço para essas festas, tudo era feito na rua. A gente escolhia junto com eles alguns pontos, que fossem também neutros, que não fossem de ninguém. Quando queríamos que mais gente participasse tinha que ser os pontos que não eram de ninguém (...) para evitar algumas rivalidades, alguns problemas que existem na rua.” (Cristina Bove, Pastoral de Rua, 10/09/1996)

De acordo com a discussão de Goffman (1988) sobre “estigma”, a Pastoral de Rua faz

parte do que o autor denomina como “informados”: “são os homens marginais diante dos quais

indivíduo que tem um defeito não precisa se envergonhar nem se autocontrolar, porque sabe que

será considerado como uma pessoa comum.” (Goffman, op. cit.:37).

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Durante os primeiros contatos, na fase de reconhecimento dos sujeitos do “mundo da

rua”, a Pastoral percebeu os diferentes tipos de pessoas que ocupavam as ruas da cidade.

“Dentro da população de rua a gente percebe que tem vários tipos, várias classificações. Tem aqueles que trabalham na rua, que vivem da rua, que recolhem as coisas que a rua dá, esses são os catadores de papel ou catadores de recicláveis e tem aqueles que fazem da rua sua moradia. Dentre os que fazem da rua sua moradia também tem vários tipos, porque alguns se fixam na rua, se abrigando, se protegendo de alguma forma, buscando uma privacidade fazendo barracos que eles chamam de malocas, outros ficando ali, ficam andando, não se fixam, são aqueles que dormem nas praças, nas marquises, embaixo de viadutos, que se protegem p’rá dormir, mas não se fixam. E tem também aquele grupo que eles chamam entre si de trecheiros. Pessoas que estão sempre buscando trabalho e andam de cidade em cidade. (...) O andarilho é aquele que gosta de andar, ele sai porque ele realmente gosta de estrada, gosta de sair, gosta de caminhar. (...) O andar dele não é vinculado ao trabalho. Ele sai andando, ele não tem um objetivo definido. O trecheiro sai porque vai buscar alguma coisa, busca emprego na safra do café, no garimpo, dependendo das chamadas que existem no tempo de trabalho.(...) E também a gente encontra dentro da rua aquele grupo que já está tão fragilizado na rua que perdeu um pouco a sua consciência mental, sua saúde mental. (...) Quase sempre eles têm uma referência, às vezes é uma árvore, às vezes é um poste, ás vezes é a porta da igreja, eles têm uma referência e tentam se fixar, só que a sociedade não deixa, mas eles tentam se fixar sempre com alguma coisa que cria algum laço, algum vínculo.” (Cristina Bove, Pastoral de Rua, 10/09/1996)

A primeira fase do trabalho da Pastoral teve a duração aproximada de um ano quando,

então, a equipe se dividiu em dois grupos: um para trabalhar com os catadores de papel e suas

reivindicações específicas e outro para trabalhar com os andarilhos, os trecheiros, com a

população que mora na rua. A partir daí é que se definiram dois tipos de intervenção diferentes

junto à população de rua.

Com os “catadores de papel” foi possível organizá-los em uma associação – ASMARE:

Associação de Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável – que se formaliza em

maio de 1990, ainda na Administração Municipal de Eduardo Azeredo (PSDB) com a

inauguração do primeiro galpão para triagem do material coletado. Atualmente, tem sede própria,

onde os catadores de papel têm local para guardar, separar e prensar o papel para ser vendido.

São reconhecidos na cidade como trabalhadores da limpeza urbana. Com o outro grupo,

inicialmente foi aberto um espaço para eles num centro comunitário, “Casa da Esperança” e

“Casa da Acolhida”, onde poderiam ir duas vezes por semana. Nesse local poderiam guardar

alguns pertences, adotar o endereço para correspondência, caso quisessem manter contato com a

família, podiam tomar banho e ter alguns momentos de lazer jogando dama, dominó, lendo

revistas e encontrando os colegas. Junto a esse grupo foi detectado o desejo da moradia como

necessária para o refazimento de suas vidas, alguns estavam cansados da rua. Surgiu, então, a

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idéia de formar um grupo, no centro comunitário, e levar para o orçamento participativo41 a

proposta de construção de uma pensão como uma alternativa para facilitar o processo de

transição de saída da rua e a posterior constituição da moradia. A partir dessa idéia, e da sua

vitória no orçamento participativo foi construída a Pensão Reviver onde alguns homens solteiros

de rua podem permanecer por um período de seis meses para se estruturarem em algum trabalho

e poderem pensar na possibilidade de ter uma casa. Hoje, os primeiros grupos já saíram da

República e como o dinheiro que ganham do trabalho que fazem não é suficiente para se

manterem em uma casa pagando aluguel e todas as outras contas, uma das alternativas foi a

constituição de mini grupos que moram juntos. A Pastoral de Rua trabalha em parceria com a

Prefeitura na Pensão Reviver.

Por meio desse contato direto com aqueles que estão fazendo da rua seu local de

trabalho e ou moradia é que a Pastoral de Rua tem percebido e buscado compreender quem e

como são essas pessoas. As diferenças entre as formas de ocupação e apropriação do espaço rua

impuseram como necessidade a adoção de estratégias diferenciadas de intervenção. Assim como

a Prefeitura Municipal, a pastoral classifica os vários “tipos” de moradores e trabalhadores da rua

a partir do contato que estabeleceu com eles.

Este capítulo buscou fazer um mapeamento sobre a população de rua apontando quem

faz parte dela, como eles próprios se identificam e como são identificados pela sociedade como

um todo. A partir daí é que foi possível perceber as diferenciações internas entre cada segmento

da mesma; diferenças essas que se pautam pelas formas de instalação nos espaços públicos e

pelas classificações que utilizam para se identificarem e identificarem os seus outros. Isso aponta

para o fato de que a forma como as pessoas se vêem e vêem os outros é relativa à forma como

vivem. No caso da população de rua, expressa como percebem os espaços ocupados e como

sobrevivem na rua e da rua. Além disso, revela também como cada segmento da população de rua

constrói essas concepções sobre si mesmo e sobre o outro, a partir das instalações que

improvisam sejam elas nas calçadas, praças, áreas sob viadutos ou passarelas. O próprio Poder

Público, assim como a Pastoral de Rua, também os percebe e diferencia-os pela forma como se

apropriam desses espaços públicos e a intervenção de ambos se estrutura exatamente a partir da

41 O Orçamento Participativo acontece desde 1993 como uma forma do poder público municipal discutir e definir, juntamente com a população da cidade por meio de Assembléias Populares, como e onde os recursos do orçamento do município devem ser gastos.

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compreensão de como esses segmentos se relacionam com o espaço ocupado. A proposta desse

capítulo foi, então, buscar demonstrar quem faz parte da população de rua, um segmento urbano

que improvisa instalações nos espaços públicos da cidade, comporta diferenciações no seu

interior e coloca em cena nas paisagens urbanas contemporâneas uma das faces da miséria.

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CONCLUSÃO

ONDE É POSSÍVEL MORAR? considerações finais sobre a improvisação de espaços de moradia.

“Casa quem tem é rico, pobre tem barraco” (Gilson, Morador de rua, 8/10/1994)

A proposta deste trabalho foi discutir, inicialmente, a cidade de Belo Horizonte como

um espaço urbano construído e planejado para consolidar em Minas Gerais a modernidade como

expressão da recém-proclamada República Brasileira. Belo Horizonte foi tratada como um

espaço construído a partir da idéia da modernidade, da racionalidade e da ordem, no sentido de

demonstrar como a cidade imprimiu as marcas desses ideários nas suas edificações, nas formas

como o poder público concebeu o processo de ocupação de seus espaços ordenando seu

crescimento. Concomitantemente aos constrangimentos legais e políticos do poder público, a

cidade também foi crescendo a partir das intervenções de seus habitantes, guardando marcas das

suas atuações, concepções e impressões sobre o “viver na cidade”. Entre seus habitantes,

focalizei, ao longo de sua história e no presente, a população de rua. Este segmento adota

padrões de uso, hábitos e comportamentos em espaços intersticiais da cidade que procurei

descrever e compreender. Estes padrões de usos e hábitos da rua expressam novas identidades

destes segmentos e novas relações com o espaço público apropriado para transformar-se em local

de moradia. Enfim, foi possível perceber como o uso do espaço pode expressar a forma que os

sujeitos que dele se apropriam o concebem e experimentam. Ou seja, a partir do uso do espaço

ocupado, novos valores, novas regras expressam a maneira como seus usuários tornam possível a

sobrevivência e vivência no mesmo e do mesmo. Assim, uma das “leituras” possíveis das

paisagens urbanas pode se dar através dos usos adotados nos seus espaços para inferir como os

sujeitos que deles se apropriam o percebem.

Percorrendo não só o traçado de Belo Horizonte pensado por Aarão Reis, mas também o

desenvolvimento histórico da cidade, a análise da população de rua tem início. Por que voltar

tanto no tempo para tratar um problema tão atual? A idéia era remontar, mesmo que brevemente,

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a história da construção da cidade, o plano de Belo Horizonte, a forma de ocupação espacial

pensada e a efetivamente realizada pelos seus atores, porque determinavam sua conformação

atual, visto que nela deixaram impressas, simbólica e materialmente, suas formas de compreender

a cidade.

Ruas e avenidas largas, prédios públicos situados em locais pré-determinados, bairro

para funcionários públicos, uma zona central para atividades burocráticas e o comércio, uma

zona suburbana ocupada de forma menos controlada, sem o olhar atento do planejador e uma

zona rural onde se localizaria o cinturão verde que abasteceria a cidade. Esta era a “Belo

Horizonte” imaginada por Aarão Reis, uma cidade nova, onde as pessoas, suas atividades e

moradias deveriam ocupar espaços previstos, bem definidos pelo seu plano. Espaços estes que

deveriam ser não somente a expressão, mas o balizamento do progresso e da modernidade, em

contraposição à antiga capital − Ouro Preto −, mas em compasso com a nascente República

Brasileira.

Essa nova cidade foi sendo construída a partir de ações planejadas pelo poder público

como uma forma de ordenar as relações sociais que emergiam com a nova ordem econômica: a

república e seu ideal de progresso e modernidade. Entretanto, também contou com uma forma de

ocupação espontânea de seus espaços, ou seja, uma forma de ocupação não prevista que destoava

da lógica estabelecida pelo plano de construção da cidade. Assim, ordem e desordem fizeram

parte da história de Belo Horizonte e de sua construção. “Ordem” expressa pela técnica e

racionalidade utilizadas no desenho de sua planta e “desordem” configurada por ações de uma

parcela da população que se instalava na cidade em desacordo com as regras estabelecidas no

planejamento. Enfim, a nova capital das Minas Gerais foi fruto dessas ações e dos embates entre

o poder público e segmentos da população da cidade que desejavam permanecer nos locais

escolhidos, como também das outras tantas ações econômicas, políticas e culturais dos grupos

sociais belorizontinos.

Percorrendo a história de Belo Horizonte, me deparei com as ações e intervenções de

seus habitantes em interação nos múltiplos espaços da cidade e como estas foram transformando

a capital do Estado.

Neste percurso é que foi possível compreender a cidade como um espaço concebido para

abrigar não só edificações, atividades comerciais, industriais e culturais e sua população, mas

também as formas como os sujeitos que ocupam tais edificações, que realizam tais atividades,

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estão pensando e vivendo o espaço que ocupam nos vários momentos de sua história. Eles se

filiam a tais espaços e criam laços que expressam sua/suas identidades. Assim, o espaço urbano

onde se vive cotidianamente é o local onde as individualidades, identidades e estilos de vida são

expressas e convivem lado a lado com a diferença entre elas compondo as paisagens urbanas

atuais.

A relação que sugiro como possível de ser estabelecida entre espaço e identidades é que

os usos e hábitos estão associados a um conjunto de valores relativos a sujeitos específicos. Ou

seja, usos e hábitos realizados nos vários espaços podem ser expressão não só de estilos de vida

próprios de cada localidade, como também das várias identidades que delas fazem parte. A partir

da forma como os espaços são utilizados e, no caso da população de rua, como esses espaços

são ocupados, é possível fazer um esboço sobre quem são os sujeitos que exercem as práticas

pertinentes aos usos ali adotados.

A história de Belo Horizonte ilustra esta relação entre prática e concepção. Quem eram

aqueles que agiam em conformidade com a ordenação prevista no plano da cidade e quem a

contrariava? A constante contraposição entre o plano e o uso, o planejado e o vivido,

contribuiu sobremaneira para a cidade ser o que é. Essa contraposição não se dava somente em

termos de uma vivência cotidiana que se opunha ao estabelecido pelo planejamento, mas sim uma

contraposição entre identidades, entre formas de viver a cidade e na cidade, era também uma

contraposição entre imaginários42, entre representações que esquadrinham, ordenam e classificam

o universo onde os sujeitos vivem.

A população de rua é composta de indivíduos portadores de identidades diversas que

expressam fronteiras não somente relativas à ocupação dos espaços da cidade, mas também em

relação às formas como se classificam e classificam os outros segmentos que fazem parte do

“mundo da rua” e às representações que se valem para ordenar os ambientes construídos a partir

do improviso de materiais. Isto é resultado das práticas realizadas cotidianamente por todos os

segmentos que fazem parte da população de rua, os quais interagem entre si e com os demais

segmentos sociais da cidade seja pelo uso e ocupação dos espaços públicos ou pela legitimação

de suas representações.

42 Cf. discussão sobre imaginário no Capítulo Um.

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Num primeiro momento, pode-se pensar o viver na rua, o uso que vem sendo adotado

nas calçadas, nas praças, nos baixios de viadutos como uma contraposição a valores e práticas do

“mundo da casa”, ou seja, o viver na rua pensado como uma contraposição ao viver em casa;

como também uma contraposição entre a esfera privada e a esfera pública. Dessa forma, o

espaço rua é pensado em oposição ao espaço casa que, por sua vez, seria o orientador das formas

de morar. Isto significa a apropriação da rua como local de moradia sendo considerada como uma

inversão dos usos previstos para o espaço casa e o espaço rua. As fronteiras entre os dois espaços são fluidas e tênues. Esta fluidez entre as fronteiras e

limites do espaço casa e do espaço rua permite pensar que, apesar de seus usuários

desenvolverem atividades permitidas e reconhecidas como próprias a cada um deles, as moradias

improvisadas a partir das instalações temporárias ou permanentes nos espaços públicos não

vêm somente contrapor a utilização dos espaços, mas acrescentar outras possibilidades de

comunicação e inter relação entre eles o que pode ser entendido exatamente pelo fato de estar

situada na zona limítrofe entre ambos que sempre carrega a ambigüidade43.

A interação entre o espaço casa e o espaço rua não é estanque, pois apesar da fixidez da

localização de cada um deles, é como se a própria possibilidade de se entrecruzarem os retirasse

dessa fixidez. Hoje os espaços da cidade estabelecem fronteiras simbólicas entre eles que ao

mesmo tempo separam práticas, valores, hábitos e, conseqüentemente, visões de mundo

antagônicas, mas também as colocam lado a lado tornando, inclusive, possível o “diálogo”. A

improvisação das moradias na rua implica pensar além da inter relação e conjugação em um

mesmo local dos dois lugares do espaço, na medida em que a construção de uma moradia

improvisada ou mesmo a demarcação de uma calçada como um território de apropriação privada

implica uma nova maneira de perceber a possibilidade de comunicação entre ambos. Esses

lugares do espaço podem mais do que se comunicar, podem estar no mesmo lugar. Sob o título de

“Guerra dos Lugares”, Arantes (1994) discute a formação de lugares sociais efêmeros na

contemporaneidade e assinala que

“... ruas, praças e monumentos transformam-se em suportes físicos de significações compartilhadas. (...) eles se superpõem e, entrecruzando-se de modo complexo, formam zonas simbólicas de transição, onde os sujeitos e os cenários de sua interação desenvolvem atributos análogos aos que Victor Turner conceituou como liminares.” (p.191)

43 Cf. discussão sobre ambigüidade das zonas limítrofes no Capítulo Dois

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Essa superposição e entrecruzamento reforça a idéia de fluidez, de porosidade das fronteiras entre

os espaços e também enuncia a sua necessidade para a sobrevivência de quem faz da rua o local

de moradia.

Considerando que os espaços são construídos pelos sujeitos que neles vivenciam seu

cotidiano, eles também comportam o que eles considerarem válido, importante e necessário

abrigar. Muitas vezes encontrei numa casa na rua ou mesmo numa ocupação de uma calçada

traços, lembranças, resquícios de uma experiência relativa ao espaço casa, isso é, no espaço rua

havia objetos, forma de organização, atividades domésticas muito próximas àquelas que na maior

parte das vezes têm lugar quando a moradia é no espaço casa. Isto implica que não só é possível

estabelecer relações com o “mundo da rua”, mas também levar para ele hábitos e usos que não

foram previstos. Os lugares são fixos, mas as relações entre eles, as interações que se estabelecem

neles, os usos e hábitos que são adotados, assim como as práticas e valores não partilham essa

característica da fixidez e sim a possibilidade de interação, comunicação e entrecruzamento.

Pensando a partir de uma perspectiva que assinala que os lugares e espaços não comportam uma

oposição estática e absoluta, Vogel (1980:128) assinala que “... não há uma coisa apropriada

para cada espaço, nem um espaço apropriado para cada coisa (...) o que significa que existem e

são admissíveis e lógicos vários tipos de ordem.” Nesse sentido, as formas de uso e apropriação

do espaço são múltiplas e, assim, “... o que é público em determinadas circunstâncias, pode ser

privado em outras. O que é casa de uma perspectiva pode ser rua de outra.” (Ibidem)

O segundo caminho é pensar o viver na rua a partir da própria rua e dos hábitos, valores

e práticas que são adotados e vivenciados cotidianamente pela população de rua que ali reinventa

espaços domésticos e de relações sociais. Hoje, quem são os sujeitos que fazem do espaço rua

local de moradia? Através do trabalho de campo foi possível perceber que são vários os estilos de

vida e identidades que transitam pelo “mundo da rua”. Esses estilos de vida e identidades são

perceptíveis por meio da forma como os sujeitos do “mundo da rua” utilizam-se dos espaços

ocupados, utilização essa que comporta não só a maneira como organizam a instalação, mas

também um conjunto de hábitos, práticas e valores. Tornar possível a vida no e do espaço rua

implica construir e transformar um local em moradia, implica carregar, transportar e redesenhar

um “mundo” de novos hábitos e de novas formas de viver próprias desses novos espaços

construídos como moradias improvisadas. Carregam e transportam velhos costumes, uma

trajetória pessoal e habitacional que é redesenhada a partir do momento em que o espaço rua

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deixa de ser apenas o lugar do trânsito, pois ao invés de ser espaço transitório, passa a ser o

espaço da permanência; ao contrário do que Garcia dos Santos (1989) enuncia em relação à casa

que, apesar de imóvel torna-se móvel visto que os sujeitos estão sempre de passagem por suas

próprias casas44, fazendo dos mais variados lugares local de moradia como por exemplo os

hotéis. De acordo com esse autor “a casa, evidentemente, não saiu do lugar. Ainda. Mas o estado

de coisas e o estado de espírito dos tempos pede que ela seja habitada como um veículo em

movimento.” (p.125) Com as instalações permanentes ou temporárias nas ruas o que se percebe é

o “móvel”, ou melhor, lugares onde a mobilidade é a característica, transformando-se em

“imóvel”, pois tornam-se lugares onde os sujeitos permanecem45 e, conseqüentemente, tornam-se

lugares onde se localizam no mundo. Cabe também, mesmo que rapidamente, uma referência ao

que Marc Augé (1994) aponta como sendo os não-lugares da supermodernidade: aqueles onde a

despersonalização prevalece, que são opostos ao lar, à residência, espaços públicos de muita

circulação como rodoviárias, aeroportos, estações de metrô etc. As instalações nas ruas seriam os

não-lugares transformando-se em lugares, pois os sujeitos aí permaneceriam podendo transformá-

los, pelo menos, como pontos de pernoite46.

Aí novos valores cedem lugar a novas práticas que serão a expressão de uma forma

muito peculiar de ver, viver e sentir o mundo e as pessoas ao seu redor. O transitório que cede

lugar ao permanente constrói uma rede de novos olhares sobre o espaço rua, o espaço casa, as

atividades de trabalho, as relações com o poder público e com instituições assistenciais, com os

“outros” do “mundo da rua” e com os “outros” que não fazem parte do “mundo da rua”. Eles

vêem o mundo onde estão e da forma como estão de uma maneira que é própria e peculiar a seus

estilos de vida. Estar situado num determinado lugar e nele e dele fazer sua vida é, no mínimo,

expressar como o mundo ao seu redor está lhe permitindo ser e viver. A partir dessa experiência

cotidiana é que passam, então, a compreendê-lo, a percebê-lo como lhes parece.

O “maloqueiro”, o “andarilho”, o “trecheiro”, os “caídos” e os participantes do

movimento dos “sem-casa” sofrem o problema da falta da moradia, mas encontram estratégias

diferenciadas para o enfrentamento do mesmo. Suas atitudes e comportamentos se diferenciam 44 Cf. Capítulo Dois tópico 2.1. “A Rua na Casa e A Casa na Rua. 45 Mesmo que essa permanência não seja por um longo período de tempo, como é o caso das instalações temporárias. 46 Um morador de rua me disse que às vezes dormia no velório da Santa Casa, onde tomava até cafezinho. (José Osvaldo, 24/09/1994)

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não somente no que se refere às soluções buscadas para sobreviver sem a moradia, mas também

porque existe entre eles distinções relativas à forma como procuram “garantir” esta

sobrevivência. A improvisação das moradias através das instalações permanentes nos baixios de

viadutos e das instalações temporárias nas calçadas, bancos de praça e sob as marquises faz

com que seus usuários se diferenciem uns dos outros, na medida em que adotam usos,

desenvolvem atividades, se relacionam com o espaço ocupado de maneiras diferentes. Alguns

constroem as “malocas”, outros se servem do papelão para improvisação de uma cama numa

esquina e há ainda outros que também se instalam nas calçadas, mas valendo-se de uma

organização política, tentam pressionar o Poder Público para solucionar o problema da falta da

moradia através dessa ação. Existem aqueles que trabalham diariamente com a coleta do papel,

aqueles que realizam essa atividade como uma ocupação intermitente, pois a conjugam com a

atividade de “manguear”47, ou mesmo outras como, por exemplo, os “biscates” e aqueles que

vivem exclusivamente da mendicância (esse é o caso dos “caídos”). A partir desses usos,

atividades e formas de instalação distintos nos espaços públicos, é que foi possível perceber a

existência de diferenciações internas na população de rua. A heterogeneidade dos modos de

viver, morar e trabalhar na rua é característico desse universo, a princípio considerado como um

grande segmento urbano que faz da rua seu espaço de moradia.

A cidade e sua paisagem urbana contemporânea abriga uma nova forma de habitar -

moradias improvisadas nas calçadas, nos baixios de viadutos e passarelas, como também a

apropriação de esquinas e praças como locais de pernoite. Esses seus “velhos novos habitantes”

estão adotando novas formas de morar nos espaços públicos, vêem os vários “outros” do “mundo

da rua” de maneiras diversas e também são vistos a partir de uma variedade enorme de olhares:

pobreza, miséria, sujeira, lixo, marginalidade, malandragem etc. Novas identidades pessoais são

construídas e alguns espaços da cidade também são identificados a partir desses usos que passam

a comportar. Mas é preciso, então, que se detenha um novo olhar sobre esses “velhos novos

moradores” que também estão vivos na cidade e no seu viver cotidiano vêm imprimindo no

cenário de Belo Horizonte, e de outras tantas cidades, por meio de um grito silencioso, as marcas

da precariedade e improviso do habitar, mas também da criatividade e inventividade da

47 Pedir dinheiro.

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apropriação de espaços públicos, da construção de espaços de moradia e da reinvenção de

espaços domésticos e de convivência social.

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SUMMARY

This dissertation aims at investigating and discussing homeless in Belo Horizonte (Brazil).

Through this denomination they present an homogeneity, because all people that appropriates

public space as a place of lodging or staying night, are considered homeless. Nevertheless, the

fieldwork has demonstrated that people who construct permanent installation under overpasses,

footbridges and pavement are different from those ones who live in temporary installations

improvised on sidewalks just to stay during the night. Close to both groups there are people who

are involved with the social movement of homeless. Due the absence of habitat, they adopt public

spaces as a place for housing struggle. Therefore, beyond translating different strategies facing

housing absence, the everyday life of each homeless group reveals the existence of distinct ways

and lifestyles: different forms of appropriation, settlement and connection within the public space

of the city. It was possible to comprehend that different forms of appropriation of public spaces

produce different identities. Indeed, they classified themselves and the others from “street world”

by different manners and, consequently, their world-view are different too. Thus, the

heterogeneity is present in the denomination of homeless.

Keywords : homeless, public spaces, lifestyle

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ANEXO

Entrevistas realizadas com moradores de moradias improvisadas nas calçadas e em baixios

de viadutos e passarelas:

Entrevista n.º 1

Data: 04/08/1994

Local: Viaduto da Avenida Silva Lobo sob a Via Expressa

Regional: Oeste

Entrevistada: Bela

Entrevista n.º 2

Data: 09/08/1994

Local: Viaduto da Avenida Amazona sob a Avenida Silva Lobo

Regional: Oeste

Entrevistada: Cirléia (houve a participação do companheiro dela : Wanderley)

Entrevista n.º 3

Data 13/08/1994

Local: Viaduto da Avenida Francisco Sales

Regional: Leste

Entrevistados: o casal Nanci e Paulinho

Entrevista n.º 4

Data: 16/08/1994

Local: Calçada da Avenida do Contorno

Regional Centro-Sul

Entrevistada: Meire

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Entrevista n.º 5

Data: 16/08/1994

Local: Calçada da Avenida do Contorno

Regional: Centro-Sul

Entrevistada: Silvia

Entrevista n.º 6

Data: 23/08/1994

Local: Calçada da Avenida do Contorno

Regional: Centro-Sul

Entrevistada: Rosemeire

Entrevista n.º 7

Data: 23/08/1994

Local: Calçada da Avenida do Contorno

Regional: Centro-Sul

Entrevistada: Joselito e Lucinete

Entrevista n.º 8

Data: 24/08/1994

Local: Calçada da Avenida do Contorno

Regional: Centro-Sul

Entrevistada: Eunice

Entrevista n.º 9

Data: 26/08/1994

Local: Calçada da Avenida do Contorno

Regional: Centro-Sul

Entrevistada: Carlão

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Entrevista n.º 10

Data: 30/08/1994

Local: Calçada da Avenida do Contorno

Regional: Centro-Sul

Entrevistada: Deusdedith

Entrevista n.º 11

Data: 30/08/1994

Local: Viaduto da Avenida silva Lobo

Regional: Oeste

Entrevistada: Darci e Márcio

Entrevista n.º 12

Data: 24/09/1994

Local: Passarela da Vila Oeste sobre a Via Expressa

Regional: Oeste

Entrevistada: Vera

Vale ressaltar que além dessas entrevistas realizadas após dois meses de contato com os

moradores de baixios de viadutos, outros sujeitos (dezenove pessoas sendo treze mulheres e seis

homens) foram contactados, mas não foram entrevistados formalmente.

Entrevistas realizadas com moradores de instalações provisórias improvisadas sob

marquises

Fraternidade Espírita Irmão Glaucus 24/09/1994 e 08/10/1994

Francisco de Assis Bahia da Silva

Marcelo Duarte Santos

Raimundo Furtado da Silva

Charles Cosme e Damião

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Comunidade Reviver 29/09/1994

Paulo César Barbosa

Rivânia

José Florentino de Souza

Entrevistas realizadas com participantes do movimento dos sem-casa acampados na

Avenida Olegário Maciel no Bairro de Lourdes

06/10/1994

Cleonice

Edite

Vilma

Carlinhos

Entrevistas realizadas com os comerciantes e comerciários vizinhos ao acampamento do

movimento dos sem-casa

24/01/1995

Eduardo

Andréa

Audrey

Ricardo

25/01/1995

Alice

Renée

Olívia

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Entrevistas realizadas com os Técnicos do Programa de Atendimento à População de Rua

da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte

20/08/1996

Antônio (Educador Social)

Vânia Rodrigues (Coordenadora do Programa de Atendimento à População de Rua da PBH)

26/08/1996

Simone Albuquerque (Coordenadora do Programa de Ação Básica da PBH)

04/09/1996

Márcia Pinheiro (Secretária de Desenvolvimento Social da PBH)

04/07/2003

Maria do Carmo Campos Villamarim (Coordenadora do Programa de Atendimento à População

de Rua)

Entrevista com a Coordenadora da Pastoral de Rua de Belo Horizonte

03/09/1996

Cristina Bove (Coordenadora da Pastoral de Rua)

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