“Por que não uma escola de você?” Cultura terapêutica e o...

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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) “Por que não uma escola de você?” Cultura terapêutica e o empreendedorismo de si nos discursos da Escola de Você e The School of Life 1 Priscila Tuna Quintal 2 Vinculação Institucional: ESPM Resumo Este trabalho tem como objetivo refletir sobre os discursos de convocação (PRADO, 2013) praticados na produção audiovisual da Escola de Você e da The School of Life, a partir dos vídeos de apresentação das empresas veiculados em seus canais da Internet. À luz dos conceitos de “modernidade reflexiva” (GIDDENS, 2002), “narrativas terapêuticas” (ILLOUZ, 2011) e do “novo espírito do capitalismo” (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2009), buscamos compreender de que maneira esses discursos são articulados a fim de produzir, atualizar e gerenciar a subjetividade dos indivíduos contemporâneos. A metodologia adotada nesta pesquisa é a análise crítica do discurso (FAIRCLOUGH, 2001). Palavras-chave: cultura empreendedora; aconselhamento; comunicação e consumo Introdução Ser mais feliz, reconfigurar a vida afetiva, ser competitivo no trabalho, equilibrado, espiritualizado, conhecer seu eu interior. Estas são as temáticas da maioria dos produtos relacionados a aconselhamento que estão disponíveis no mercado. De livros/manuais com ensinamentos a aulas online motivacionais, podemos perceber, principalmente nas últimas décadas, um maior interesse pela subjetividade dos indivíduos. Segundo Illouz (2011), muitas correntes da psicologia clínica, incluindo a freudiana, construíram um novo estilo afetivo terapêutico, 1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 01: Comunicação e Consumo: cultura empreendedora e espaço biográfico, do 5º Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2015. 2 Aluna do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas do Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing, ESPM- SP. Graduada em Comunicação Social com habilitação em Rádio e TV e Jornalismo pelas Faculdades Integradas Rio Branco. [email protected]

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“Por que não uma escola de você?” Cultura terapêutica e o empreendedorismo de si nos discursos da Escola de Você e The School of Life1

Priscila Tuna Quintal2

Vinculação Institucional: ESPM

Resumo Este trabalho tem como objetivo refletir sobre os discursos de convocação (PRADO, 2013) praticados na produção audiovisual da Escola de Você e da The School of Life, a partir dos vídeos de apresentação das empresas veiculados em seus canais da Internet. À luz dos conceitos de “modernidade reflexiva” (GIDDENS, 2002), “narrativas terapêuticas” (ILLOUZ, 2011) e do “novo espírito do capitalismo” (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2009), buscamos compreender de que maneira esses discursos são articulados a fim de produzir, atualizar e gerenciar a subjetividade dos indivíduos contemporâneos. A metodologia adotada nesta pesquisa é a análise crítica do discurso (FAIRCLOUGH, 2001). Palavras-chave: cultura empreendedora; aconselhamento; comunicação e consumo

Introdução

Ser mais feliz, reconfigurar a vida afetiva, ser competitivo no trabalho,

equilibrado, espiritualizado, conhecer seu eu interior. Estas são as temáticas da

maioria dos produtos relacionados a aconselhamento que estão disponíveis no

mercado. De livros/manuais com ensinamentos a aulas online motivacionais,

podemos perceber, principalmente nas últimas décadas, um maior interesse pela

subjetividade dos indivíduos. Segundo Illouz (2011), muitas correntes da psicologia

clínica, incluindo a freudiana, construíram um novo estilo afetivo terapêutico,

1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 01: Comunicação e Consumo: cultura empreendedora e espaço biográfico, do 5º Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2015. 2 Aluna do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas do Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing, ESPM- SP. Graduada em Comunicação Social com habilitação em Rádio e TV e Jornalismo pelas Faculdades Integradas Rio Branco. [email protected]

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expressão utilizada “para designar as maneiras pelas quais a cultura do século XX

ficou ‘preocupada’ com a vida afetiva [...] e concebeu técnicas [...] para apreender e

gerir esses sentimentos” (ILLOUZ, 2011, p. 14).

O gerenciamento das emoções, desde então, ganhou respaldo dos principais

meios de comunicação de cada época, para a disseminação das normas afetivas

vigentes. A literatura de autoajuda, presente de forma contundente até a

contemporaneidade, alcançou outros formatos, ganhando o cinema, as revistas

femininas, programas de rádio e televisão, Internet e ‘escolas’ especializadas. Embora

em plataformas distintas, a produção do conteúdo desses materiais se desenvolve de

maneira semelhante e sempre seguindo padrões. O aconselhamento deve ser acessível

a qualquer sujeito interessado, variar os assuntos e dilemas discutidos, não ter um

posicionamento radical perante assuntos controversos e sempre possuir uma fonte de

autoridade que legitime o discurso e o faça ser confiável.

É pertinente observar que a produção desses discursos se dá em meio a um

contexto socioeconômico específico. A organização dos sentimentos para uma

atualização da subjetividade dos indivíduos, pode ser compreendida como uma das

características da dinâmica da sociedade contemporânea, a reflexividade, onde o eu se

tornou algo que precisa ser repensado, o eu como projeto reflexivo. Para Giddens

(2002), a reflexividade moderna, refere-se à “suscetibilidade da maioria dos aspectos

da atividade social, e das relações materiais com a natureza, à revisão intensa à luz de

novo conhecimento e informação (2002, p.25-26).

Os chamados à transformação, a convocação para a crença e para a

espiritualidade de modo individual, como se cada sujeito possuísse dentro de si a

resolução de todos seus problemas, explicita outro componente do contexto

socioeconômico vigente. Nesse ideal de autonomia e responsabilização dos

indivíduos, a ideologia do capitalismo contemporâneo é transmitida no plano da

subjetividade, sendo naturalizada na vida cotidiana. “[...] a tarefa do indivíduo é ser

um empreendedor de si mesmo, necessitando desenvolver competências que

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valorizem seu capital biológico e abandonar hábitos que o depreciem”

(TUCHERMAN, SANTOS, 2014, p. 7).

De 1930 a 1960, o cenário que imperava era o das grandes empresas como

organizadoras da sociedade, em que a posição de figura heroica pertencia ao diretor.

O gigantismo dessas organizações ultrapassava as barreiras corporativas chegando a

sociedade, atribuindo sentido às comunidades e as organizando. O capitalismo, em

seu “segundo espírito”, como é denominado por Boltanski e Chiapello (2009), perdeu

forças com o enfraquecimento do Estado e das grandes empresas, passando por uma

profunda crise. Valendo-se de suas críticas e dificuldades, o capitalismo “supõe a

formação de um novo conjunto ideológico mais mobilizador” (2209, p. 39), a fim de

atualizar seu sistema e engajar novas gerações.

Sem o suporte e as perspectivas de segurança que propunham as empresas, o

“novo espírito do capitalismo” (BOLTANSKI E CHIAPELLO, 2009) traz o

empreendedorismo, ou seja, o indivíduo como responsável pelo seu desenvolvimento,

como sua principal atualização, incitando os sujeitos a continuarem participativos no

sistema. Dessa maneira, é compreensível que esse ideal de independência e superação

sejam os motes dos discursos de aconselhamento na contemporaneidade.

Neste ambiente, sistemas especializados (GIDDENS, 2002) se tornam

fundamentais para orientar os indivíduos na busca pela autorrealização. O eu, que até

então era pouco percebido, tornou-se algo a que se almeja alcançar e descobrir

(ILLOUZ, 2011), alcance que será sempre mediado, observado e padronizado de

acordo o espírito vigente (BOLTANSKI E CHIAPELLO, 2009). O analista e o

terapeuta na contemporaneidade equivalem ao técnico e cientista de outrora, sistemas

qualificados a indicar, com segurança, o melhor caminho a seguir.

Entre os mais diversificados canais de orientação e aconselhamento, este

trabalho se propõe a investigar os discursos de orientação a partir da produção

audiovisual de duas empresas que se apresentam como escolas. The School of Life3 foi

fundada em 2008 em Londres e possui filiais em 6 países, incluindo o Brasil, com 3 http://www.theschooloflife.com/saopaulo/ - Último acesso em julho/2015.

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escritórios em São Paulo e Rio de Janeiro, onde se instalou em 2013. Em seu portal, a

empresa disponibiliza um manual (em inglês), no qual são baseadas suas condutas e

ideias. Neste manual é possível ler sobre todos os setores da vida de um indivíduo,

como trabalho, personalidade e relacionamentos. Ainda no mesmo ambiente, há um

link para a loja online, que oferece desde livros até sapatos, bolsas e decoração para

casa e também sua programação dos eventos. As aulas, palestras, ou ‘sermões’, como

eles próprios denominam alguns encontros, são cobrados, acontecem presencialmente

em um local fixo e são divididos por temas como “Como superar a morte?”, “Como

ter uma mente empreendedora?” ou “Como ter melhores conversas”.

A Escola de Você4 é um projeto brasileiro, criado pela jornalista Ana Paula

Padrão, proprietária da empresa Tempo de Mulher, em parceria com outras mulheres,

que serão citadas posteriormente junto à análise do corpus. Durante três meses, de

segunda a sexta feira, são postados vídeos de até três minutos sobre os mais variados

assuntos no site da escola. Para ter acesso as aulas, é necessário fazer um cadastro

antecipado, antes de uma nova turma ser iniciada. Seu conteúdo é voltado para as

mulheres, público delimitado através das temáticas tratadas em cada aula, dos

elementos visuais do site e dos patrocinadores, como O Boticário (na turma passada)

e o sabão em pó Brilhante (Unilever).

A possibilidade de atualizar e transformar o eu, por meio de algum tipo de

consumo e discurso de convocação (PRADO, 2013), desperta-nos a olhar a crescente

demanda por aconselhamento nos últimos anos. Se cada vez mais essas mercadorias

relacionadas à reforma dos sujeitos ganham visibilidade e geram renda, é relevante

observar as lógicas contemporâneas que alimentam esse fenômeno. Trabalhando com

uma gama infinita de supostos ‘dilemas’ que afetam a maioria dos indivíduos, o

comércio da autoajuda sempre se atualiza trazendo novidades. Segundo a matéria

“Ajude-se”5, publicada recentemente pela revista Superinteressante, do Grupo Abril,

na última década o mercado editorial brasileiro teve um aumento de 35% nas suas

4 http://www.escoladevoce.com.br/ - Último acesso em julho/2015. 5 http://super.abril.com.br/comportamento/ajude-se - Último acesso em julho/2015.

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publicações de maneira geral, enquanto a categoria de autoajuda cresceu 700%. O

aumento fez com que esse tipo de publicação tivesse uma categoria própria na lista

dos livros mais vendidos pela Revista Veja6, não pertencendo mais a lista de ficção ou

não-ficção.

Para o desenvolvimento deste artigo, a metodologia utilizada é o levantamento

bibliográfico do quadro teórico apresentado a seguir para embasar nossa discussão

acerca de nossos objetos empíricos, vídeos da The School of Life e da Escola de Você

disponibilizados na Internet. Seus discursos serão discutidos e analisados a partir do

método de análise crítica de discurso de Fairclough (2001).

Para nortear nosso trabalho, em seu desenvolvimento e análise, utilizaremos

quatro autores fundantes como embasamento teórico. À luz de Giddens, trataremos a

reflexividade moderna e os sistemas especialistas. Para compreendermos de que

maneira ocorre o engajamento ao capitalismo e a noção de “espírito do capitalismo”,

Boltanski e Chiapello são nossa partida. A articulação entre capitalismo e afetos, que

perpassa toda a pesquisa, será trabalhada com Illouz, com as concepções de

capitalismo afetivo e as narrativas terapêuticas. Para a análise crítica dos discursos

aqui recortados, utilizaremos os conceitos trazidos por Fairclough.

A cultura terapêutica e o empreendedorismo de si

No decorrer do século XX, as emoções se tornaram destaque por influência da

psicanálise e do feminismo. Os psicólogos, pouco a pouco, ganharam espaço e voz na

orientação de todos os tipos de problema e situação, tendo influência seja na área da

educação, em programas de reabilitação em presídios ou em discussões familiares. No

meio empresarial, a presença destes especialistas foi requisitada, à princípio, no início

do século, para dar conta de problemas disciplinares e de produtividade nas fábricas,

onde se concentravam a maioria dos empregos. Os homens eram pensados como

máquinas e a empresa com um lugar impessoal, que precisava ser operado. 6 http://veja.abril.com.br/livros_mais_vendidos/ - Último acesso em julho/2015.  

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Durante o “segundo espírito do capitalismo” (BOLTANSKI e CHIAPELLO,

2009), entre os anos 30 e 60, alteram-se as relações de trabalho. Neste período, mais

postos de trabalho foram abertos, criaram-se novos cargos e muitas pessoas passaram

a trabalhar entre o diretor geral e a fábrica, gerando hierarquia e competição. Segundo

Illouz (2011), a psicologia teve forte influência na construção de um novo discurso da

identidade empresarial, “visto que a hierarquia empresarial começou a demandar uma

orientação para as pessoas, além das mercadorias, [...] o manejo do eu no trabalho

transformou-se cada vez mais num ‘problema’”. (2011, p. 28-29).

A necessidade de um gestor ‘terapêutico’, que soubesse administrar pessoas de

uma nova forma, estava posta. Se no sistema anterior, os trabalhadores precisavam se

submeter às autoridades, no atual era preciso um controle sutil e mais potente para

que a ordem prosseguisse estabelecida. Igualdade e cooperação (ILLOUZ, 2011) são

as novas noções aplicadas no gerenciamento de pessoas. Boltanski e Chiapello (2009)

ainda observam que, tornaram-se “muito estimulantes para os jovens diplomados as

oportunidades oferecidas pelas organizações, no sentido de atingir posições de poder

a partir das quais se possa mudar o mundo” (2009, p. 50).

Ao longo do século XX, o foco de atuação dos psicólogos avançou para além

das empresas (que buscavam ampliar seus domínios e lucros), tratamentos à doenças

mentais graves e traumas de guerras. Illouz (2011) sinaliza que, nas décadas de 1950

e 1960, tratamentos psicológicos e psiquiátricos passaram a ser direitos da

comunidade sob uma legislação federal nos Estados Unidos, ampliando o mercado de

serviços terapêuticos.

O enfraquecimento do mercado e das promessas de segurança e estabilidade

oferecidas pelas grandes empresas e pelo Estado, corroboram para o crescimento do

mercado de aconselhamento. Novas regras burocráticas, limites impostos à empresas

e aumento dos direitos dos assalariados são algumas das características que levaram o

capitalismo a uma profunda crise. Observando as modificações no ambiente do

trabalho e da vida dos sujeitos, e se valendo de suas críticas, o capitalismo por meio

de um novo espírito se repropõe, em uma evolução e atualização ideológica.

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O “novo espírito do capitalismo” (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2009) se

apresenta, na década de 1970, como um capitalismo globalizado, de rede,

conexionista, onde não há separação entre a vida pessoal e o trabalho, o indivíduo

tece suas relações a partir de seus interesses, visando alguma vantagem. O

empreendedorismo emerge como uma maneira de continuar convocando os cidadãos

de modo independente às empresas e ao Estado, onde novas competências passam a

ser exigidas. “Como desenvolver novas capacitações, como descobrir capacidades

potenciais à medida que vão mudando as exigências da realidade. [...] Na economia

moderna, a vida útil de muitas capacitações é curta”. (SENNETT, 2006, p. 13). Para

Sennett (2006), os predicados exigidos para se tornar um homem ou uma mulher

ideal, distanciam-se da realidade de pessoas comuns, mas se tornam paradigmas para

todos. O indivíduo passou a ser convocado a empreender a si mesmo, “sendo ele

próprio seu capital, sendo para si mesmo seu produtor, sendo para si mesmo sua fonte

de renda (FOUCAULT, 2008, p. 311).

O empreender a si mesmo, coloca o sujeito na condição de ser produtor de

suas habilidades técnicas e morais, produção que ocorre por meio de algum consumo.

Criada essa demanda de se alcançar um modelo padrão, as narrativas terapêuticas

passam a buscar por uma racionalização da vida comum, que se distancia à medida

que situações cotidianas ganham status de doenças. “Estresse, ansiedade, vício,

compulsão, trauma, síndrome, autoestima e aconselhamento passaram a fazer parte do

imaginário compartilhado e revelam [...] o surgimento de novas atitudes e

expectativas cultuais” (CAMPANELLA, CASTELLANO, 2014, p. 1).

A organização da vida que precisa ser modificada passa pelos “sistemas

especializados” (GIDDENS, 2002), “que penetram em todos os aspectos da vida

social nas condições da modernidade” (p. 24). Chaui (2014) fala em “ideologia da

competência”, que divide a sociedade entre os competentes (os especialistas, que

possuem conhecimentos e legitimidade em diversas áreas) e os incompetentes, que

são os que seguem os comandos dos especialistas. Segundo a autora,

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assim, cada um de nós aprende a se relacionar com o desejo pela medição do discurso da sexologia, a se relacionar com a alimentação pela mediação do discurso da dietética ou nutricionista, a se relacionar com a criança por meio do discurso do pediatra, da psicologia e da pedagogia, a se relacionar com a Natureza pela medição do discurso ecológico [...] e assim por diante. Na medida em que somos invalidados como seres competentes, tudo precisa nos ser ensinado ‘cientificamente’ (CHAUI, 2014, p. 57).

A ideia de que aprendemos por meio de alguma mediação por especialistas,

remete-nos diretamente aos objetos de estudo deste trabalho, The School of Life e

Escola de Você. Ambas as empresas, vendem-se como escolas com a proposta de que

por meio de suas aulas, manuais e prescrições, será possível encontrar uma vida

melhor. É a busca pelo eu autêntico, que existe dentro de cada indivíduo, que o faz

seguir um percurso que passa por institucionalidades, consumo, terapias, autoterapias

e mercadorias. Sobre a ideia da autenticidade, Taylor (2011) em A Ética da

Autenticidade, observa a importância de ser verdadeiro para si mesmo na

contemporaneidade: “se não sou, eu perco o propósito da minha vida, perco o que ser

humano é para mim” (p. 38).

A transformação da vida em narrativa, dramatiza e organiza experiências de

modo a convocar o indivíduo a buscar na sua história pessoal uma falha ou um desvio

que justifique sua personalidade ou até os problemas que ele vive. A narrativa

terapêutica busca esse aspecto disfuncional da vida do sujeito para apontá-lo como

patologia que precisa ser tratada, em que qualquer comportamento, ainda que seja

completamente corriqueiro e banal, pode vir a ser tratado como patológico. Essa

narrativa “tem ampla penetração por ser praticada numa grande variedade de locais

sociais como grupos de apoio, programas de entrevista, [...] ou a internet: todos são

lugares para a atuação e reatualização do eu” (ILLOUZ, 2009, p. 72).

“Por que não uma escola de você?”

Ainda que tenham públicos diferentes e sejam ministradas em meios distintos,

nossos objetos de pesquisa, a The School of Life e a Escola de Você se assemelham

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em diversos aspectos. Além de serem empresas que se denominam como escolas,

ambas se valem do “discurso de convocação” (PRADO, 2013) para engajar

indivíduos. Para Prado (2013, p. 10), na contemporaneidade, “há uma infinidade de

enunciadores, que, além de informar e responder às demandas dos usuários, também

nos convoca para programas específicos, apoiados em atividades e serviços oferecidos

no mercado”. Ainda segundo o autor (2013, p. 12), os produtos relacionados a

autoajuda partem da convocação à transformação de si baseados em alguma

‘necessidade’ que nem sempre é natural, “mas dá forma a uma demanda latente,

fazendo-a expressar-se num querer cultural”.

Logo, essas empresas compreendem como uma cultura contemporânea a

necessidade da existência de escolas que ensinem sobre a vida, sobre como lidar, de

maneira mais inteligente, com situações cotidianas e quase nunca racionais. As

escolas terapêuticas se valem da ideia de educar a subjetividade dos sujeitos. “Não

existe escola de enfermagem, escola de informática? Por que não uma escola de

você?”, questiona a jornalista Ana Paula Padrão logo na aula inaugural do curso

online da Escola de Você. A mesma fala é encontrada no vídeo de apresentação da

The School of Life, disponível no seu canal no site Youtube7. “Nós treinamos nossas

crianças para estudar matemática, nós ensinamos pilotos a pousar aviões e cirurgiões

a como operar nossos cérebros, mas existe uma área em que parecemos não acreditar

na educação [...]: a própria vida” (tradução nossa).

Selecionamos para este trabalho apenas dois vídeos, um de cada escola, para a

análise. Como ambos apresentam uma grande quantidade de material, foram

escolhidos o vídeo de apresentação da The School of Life e outro de divulgação da

Escola de Você, disponíveis no Youtube.

O canal da The School of Life, tem 172 vídeos dos mais variados assuntos

(amor, morte, sexo, filósofos, capitalismo), sendo o primeiro, uma palestra da

psicóloga Carol Dweck sobre perfeccionismo, postado há um ano. Na abertura do

vídeo, ele nos é apresentado como o “Sermão de Domingo”, seguido de um clipe com 7 https://www.youtube.com/user/schooloflifechannel - Último acesso em junho/2015.  

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pessoas cantando e confraternizando como se estivesse em um culto, em uma igreja

para a missa dominical. Dentre todos, o “O que é a The School of Life?” é o mais

relevante para esta pesquisa por ser o primeiro vídeo que o visitante tem acesso ao

procurar mais informações sobre a escola no Youtube.

Já a Escola de Você não disponibiliza os vídeos de seu curso online

publicamente. Para acessá-los é necessário um cadastro prévio e a emissão de login e

senha. A interessada só acessa seu conteúdo por meio do site da própria escola e à

medida em que for assistindo aula por aula, na sequência proposta. Ao final de cada

semana, há um questionário sobre as aulas que precisa ser respondido para que a

aluna tenha acesso aos novos vídeos. Dessa maneira, para esta análise, utilizaremos

um vídeo de divulgação acessível no Youtube, também com a apresentação da

proposta da escola.

“O que é a The School of Life?” é uma animação em inglês e mostra crianças

indo para a escola, já em uma primeira referência à “reflexividade do eu”, onde o

indivíduo é “instado a auto-interrogar-se em termos do que está acontecendo”

(GIDDENS, 2002, p. 75) em sua vida. “Há um estranho silêncio na educação quando

se trata na verdade de grandes questões” (fig. 1), diz o vídeo, que em seguida se refere

ao amor, relacionamentos, carreira, dinheiro, ansiedade, arrependimento, vergonha,

velhice e à família como sendo estas ‘grandes questões’.

Fig. 1 – Grandes questões

Fonte: Fragmento extraído do vídeo “O que é a The School of Life”.

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No canal da Escola de Você se destaca o vídeo (fig. 2), “Ana Paula Padrão te

convida para fazer a Escola de Você”8. A presença do nome de uma jornalista

respeitada no país vem ao encontro do que se espera dos sistemas especialistas,

credibilidade e legitimidade na fala. Mulher, bem sucedida e famosa parecem ser as

características que conferem a Ana Paula todos os requisitos necessários para

aconselhar. As demais mulheres que dividem a parceria com Ana Paula, sempre são

apresentadas sob títulos de especialistas em alguma área como Natália Leite (mestre

em Ciência da Informação e apresentadora de TV), Ana Fontes (fundadora da Rede

Mulher Empreendedora), Patricia Tucci (“pioneira” em consultoria de imagem

pessoal) e Soraia Schutel (doutoranda em administração). É relevante observar que

todas elas são alçadas como verdadeiros exemplos a serem seguidos, com carreiras

consolidadas, o que confere legitimidade às suas falas.

Fig. 2 – Ana Paula Padrão te convida

Fonte: Fragmento extraído do vídeo “Ana Paula Padrão te convida para fazer a Escola de Você

O vídeo, logo no início, traz a dualidade entre os negócios e a vida, elementos

que aparecem juntos, em seguida, expressos na ideia de empreender a si mesmo.

“Você que é mulher e quer crescer nos negócios e na vida, quer empreender um novo

lado de você mesma, tem que conhecer a Escola de Você!” (grifo nosso). O

capitalismo como uma racionalidade que impacta diretamente na subjetividade dos

indivíduos e os reorganiza de acordo com sua lógica vigente fica evidente no conceito

de capitalismo afetivo tratado por Illouz (2011):

8 https://www.youtube.com/watch?v=WP-ZaIOuE8c - Último acesso em julho/2015.

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O capitalismo afetivo é uma cultura em que os discursos e práticas afetivos e econômicos moldam uns aos outros [...]. Os repertórios do mercado se entrelaçam com a linguagem da psicologia e, combinados, os dois oferecem novas técnicas e sentidos para cunhar novas formas de sociabilidades. (2011, p. 12-13).

Para Fairclough (2011), a produção dos discursos na sociedade não provém de

simples ideias de qualquer indivíduo, “mas de uma prática social que está firmemente

enraizada em estruturais sociais” (p. 93). Logo a prática discursiva está inserida na

prática social e por isso se faz necessária a observação e contextualização do

momento histórico vivido. Para o autor, “ao produzirem seu mundo, as práticas dos

membros são moldadas, de forma inconsciente, por estruturas sociais, relações de

poder e pela natureza da prática social (Fairclough, 2001, p. 100).

A associação entre a racionalidade e os afetos pode ser ilustrada com outra

passagem do vídeo da The School of Life. Depois de mostrar uma cena com o

personagem sendo ‘atropelado’ por várias palavras como divórcio, compulsão,

depressão e vício, as imagens da construção de um prédio aparecem (fig. 3, 4 e 5). A

locução prossegue: “queríamos um lugar para ajudar com esses assuntos e por isso

construímos a Escola da Vida, uma organização de mente aberta, rigorosamente sem

ideologia e dedicada a ajudar a lidar com importantes questões que nunca foram

ensinadas na escola” (tradução nossa).

Fig. 3, 4 e 5 – Construção da The School of Life

Fonte: Fragmento extraído do vídeo “O que é a The School of Life”.

Dois engenheiros posicionam as vigas e depois a cobertura, construindo a The

School of Life, imagem que nos remete mais a uma igreja do que a uma escola. Rose

(2001) observa que diversas tecnologias (meios que são utilizados para governar e

moldar os indivíduos) têm sido criadas na contemporaneidade e destaca dentre elas, a

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relação pastoral, que se baseia no aconselhamento entre uma figura de autoridade e

outra que é apenas membro do grupo. A “tecnologia pastoral” (Rose, 2001), é

utilizada de inúmeras maneiras, seja na relação entre um padre e um fiel ou entre um

terapeuta e seu paciente, relações que sempre visam a educação e a normatização do

eu. “As tecnologias humanas produzem e enquadram os humanos como certos tipos

de seres cuja existência é simultaneamente capacitada e governada por sua

organização no interior de um campo tecnológico” (ROSE, 2001, p. 38).

Na última fala do vídeo da Escola de Você, Ana Paula passa o endereço da

página online, frisa que o curso é gratuito e finaliza, “você vai ver o quão grande você

vai ser mulher depois da Escola de Você”. A convocação por ser ‘mais mulher’ é

clara e posiciona o especialista como o soberano, detentor de todas as informações

que podem dar esse “a mais”. “Esse discurso competente exige que interiorizamos

suas regras e valores, se não quisermos ser considerados lixo e detrito” (CHAUI,

2014, p. 58).

Considerações finais

As escolas The School of Life e Escola de Você convocam o indivíduo a uma

reflexão sobre sua própria vida. “A terapia só pode ter sucesso quando envolve a

própria reflexividade do indivíduo. [...] é uma experiência que envolve o indivíduo na

reflexão sistemática sobre o curso do desenvolvimento de sua vida” (GIDDENS,

2002, p. 70). O eu, como um projeto reflexivo, que pode ser alterado e atualizado, fica

à disposição de uma série de tecnologias que visam moldar e orientar a conduta dos

sujeitos na direção tencionada. Dessa maneira, a autoajuda e o aconselhamento

posicionam-se como dispositivos de “ajuda”, a fim de oferecer as condições

necessárias para a transformação.

Nos dois vídeos aqui analisados, pudemos observar a utilização das narrativas

terapêuticas (ILLOUZ, 2011). Estas são praticadas em uma série de locais sociais e

apreendidas, muitas vezes, de maneira inconsciente, problematizando condutas e

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situações cotidianas. Transformadas em patologias, é compreensível que o indivíduo

busque tratamentos oferecidos por sistemas que colocam-se como especialistas.

Ao observarmos a grande quantidade de acessos e cadastros nos canais de

vídeo mencionados, compreendemos que a suscetibilidade dos indivíduos está

diretamente relacionada com os chamados à autonomia e autorrealização estimulados

pelo “novo espírito do capitalismo” (BOLTANSKI E CHIAPELLO, 2009), que

incentivam a independência dos sujeitos em relação às empresas, ao Estado e a

qualquer valor sólido tradicional. A flexibilidade no trabalho, proposta por esse

espírito, alcança a subjetividade dos sujeitos, que podem e precisam se modificar

contanto que dentro de parâmetros já pré-estabelecidos e normatizados.

No vídeo “O que é a The School of Life”, a escola se apresenta como uma

“organização rigorosamente sem ideologia” quando na verdade está inserida dentro de

um contexto socioeconômico, dentro de um sistema vigente, que é o capitalismo e que

precisa ser considerado para analisarmos a produção desses discursos

(FAIRCLOUGH, 2011). Diante do cenário social contemporâneo, não há dúvidas de

que esses discursos sejam de fato engajadores e provedores de muitas mudanças, mas

o que propomos aqui é um olhar além, uma análise para compreender de que maneira

e baseados em qual momento histórico, esses discursos, esses produtos, essas escolas

e esse mercado surgem, se desenvolvem e se multiplicam.

“Sem um pano de fundo simbólico contra o qual uma vida possa se erguer

com um sentido e uma significação que ultrapasse a experiências imediata de fruição

fragmentada de momentos isolados” (BEZERRA JR., 2010, p, 119), a satisfação

contemporânea, além dos objetos e conquistas objetivas, se debruça no superlativo de

uma vida boa, de uma vida “mais”, como traz a última frase do vídeo da Escola de

Você. Bem-estar esse que só será possível através da “competência (individual) na

gestão da vida e do uso de dispositivos de controle e eliminação do sofrimento”

(BEZERRA JR., 2010, p. 120).

PPGCOM  ESPM  //  SÃO  PAULO  //  COMUNICON  2015  (5  a  7  de  outubro  2015)  

Referências

BEZERRA JR., B. A psiquiatria e a gestão tecnológica do bem estar. In: FREIRE FILHO, J. (Org.) Ser feliz hoje: reflexões sobre o imperativo da felicidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. BOLTANSKY, L.; CHIAPELLO, È. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. CAMPANELLA, B., CASTELLANO, M. Cultura terapêutica e Nova Era: comunicando a “religiosidade do self”. Revista Comunicação, Mídia e Consumo, São Paulo, ano 12, v. 12, n. 33, p. 171 – 190, jan./abr. 2015. CHAUI, M. A ideologia da competência. Belo Horizonte: Autêntica Editora; São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2014. FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Brasília: Editora UnB, 2001.

FOUCAULT, M. O nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979)./ Michel Foucault; tradução Eduardo Brandão – São Paulo: Martins Fontes, 2008. GIDDENS, A. Modernidade e Identidade. / Anthony Giddens; tradução Plínio Dentzien – Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

ILLOUZ, E. O amor nos tempos do capitalismo. / Eva Illouz; tradução Vera Ribeiro – Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

PRADO, J. L. A. Convocações biopolíticas dos dispositivos comunicacionais. São Paulo: EDUC: FAPESP, 2013. ROSE, N. Como se deve fazer a história do eu? Revista Educação e Realidade, Rio Grande do Sul, v. 26, n. 1 , p. 33 – 57, jan./jul. 2001. Disponível em <http://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/41313> - Último acesso em julho/2015. SENNETT, R. A Cultura do Novo Capitalismo. / Richard Sennett; tradução Clóvis Marques – Rio de Janeiro: Record, 2006.

TAYLOR, C. A Ética da Autenticidade. / Charles Taylor; tradução Talyta Carvalho – São Paulo: É Realizações Editora, 2011. TUCHERMAN I., SANTOS, L. Sobre a arte da autorracionalização: fé e autoajuda no mercado de publicações. Artigo apresentado no GT “Comunicação e Cultura” do XXIII Encontro Anual da Compós, 2014. Disponível em http://compos.org.br/seer/index.php/e-compos/article/viewArticle/1118 - Último acesso em julho/2015.