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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015)
“Por que não uma escola de você?” Cultura terapêutica e o empreendedorismo de si nos discursos da Escola de Você e The School of Life1
Priscila Tuna Quintal2
Vinculação Institucional: ESPM
Resumo Este trabalho tem como objetivo refletir sobre os discursos de convocação (PRADO, 2013) praticados na produção audiovisual da Escola de Você e da The School of Life, a partir dos vídeos de apresentação das empresas veiculados em seus canais da Internet. À luz dos conceitos de “modernidade reflexiva” (GIDDENS, 2002), “narrativas terapêuticas” (ILLOUZ, 2011) e do “novo espírito do capitalismo” (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2009), buscamos compreender de que maneira esses discursos são articulados a fim de produzir, atualizar e gerenciar a subjetividade dos indivíduos contemporâneos. A metodologia adotada nesta pesquisa é a análise crítica do discurso (FAIRCLOUGH, 2001). Palavras-chave: cultura empreendedora; aconselhamento; comunicação e consumo
Introdução
Ser mais feliz, reconfigurar a vida afetiva, ser competitivo no trabalho,
equilibrado, espiritualizado, conhecer seu eu interior. Estas são as temáticas da
maioria dos produtos relacionados a aconselhamento que estão disponíveis no
mercado. De livros/manuais com ensinamentos a aulas online motivacionais,
podemos perceber, principalmente nas últimas décadas, um maior interesse pela
subjetividade dos indivíduos. Segundo Illouz (2011), muitas correntes da psicologia
clínica, incluindo a freudiana, construíram um novo estilo afetivo terapêutico,
1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 01: Comunicação e Consumo: cultura empreendedora e espaço biográfico, do 5º Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2015. 2 Aluna do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas do Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing, ESPM- SP. Graduada em Comunicação Social com habilitação em Rádio e TV e Jornalismo pelas Faculdades Integradas Rio Branco. [email protected]
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expressão utilizada “para designar as maneiras pelas quais a cultura do século XX
ficou ‘preocupada’ com a vida afetiva [...] e concebeu técnicas [...] para apreender e
gerir esses sentimentos” (ILLOUZ, 2011, p. 14).
O gerenciamento das emoções, desde então, ganhou respaldo dos principais
meios de comunicação de cada época, para a disseminação das normas afetivas
vigentes. A literatura de autoajuda, presente de forma contundente até a
contemporaneidade, alcançou outros formatos, ganhando o cinema, as revistas
femininas, programas de rádio e televisão, Internet e ‘escolas’ especializadas. Embora
em plataformas distintas, a produção do conteúdo desses materiais se desenvolve de
maneira semelhante e sempre seguindo padrões. O aconselhamento deve ser acessível
a qualquer sujeito interessado, variar os assuntos e dilemas discutidos, não ter um
posicionamento radical perante assuntos controversos e sempre possuir uma fonte de
autoridade que legitime o discurso e o faça ser confiável.
É pertinente observar que a produção desses discursos se dá em meio a um
contexto socioeconômico específico. A organização dos sentimentos para uma
atualização da subjetividade dos indivíduos, pode ser compreendida como uma das
características da dinâmica da sociedade contemporânea, a reflexividade, onde o eu se
tornou algo que precisa ser repensado, o eu como projeto reflexivo. Para Giddens
(2002), a reflexividade moderna, refere-se à “suscetibilidade da maioria dos aspectos
da atividade social, e das relações materiais com a natureza, à revisão intensa à luz de
novo conhecimento e informação (2002, p.25-26).
Os chamados à transformação, a convocação para a crença e para a
espiritualidade de modo individual, como se cada sujeito possuísse dentro de si a
resolução de todos seus problemas, explicita outro componente do contexto
socioeconômico vigente. Nesse ideal de autonomia e responsabilização dos
indivíduos, a ideologia do capitalismo contemporâneo é transmitida no plano da
subjetividade, sendo naturalizada na vida cotidiana. “[...] a tarefa do indivíduo é ser
um empreendedor de si mesmo, necessitando desenvolver competências que
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valorizem seu capital biológico e abandonar hábitos que o depreciem”
(TUCHERMAN, SANTOS, 2014, p. 7).
De 1930 a 1960, o cenário que imperava era o das grandes empresas como
organizadoras da sociedade, em que a posição de figura heroica pertencia ao diretor.
O gigantismo dessas organizações ultrapassava as barreiras corporativas chegando a
sociedade, atribuindo sentido às comunidades e as organizando. O capitalismo, em
seu “segundo espírito”, como é denominado por Boltanski e Chiapello (2009), perdeu
forças com o enfraquecimento do Estado e das grandes empresas, passando por uma
profunda crise. Valendo-se de suas críticas e dificuldades, o capitalismo “supõe a
formação de um novo conjunto ideológico mais mobilizador” (2209, p. 39), a fim de
atualizar seu sistema e engajar novas gerações.
Sem o suporte e as perspectivas de segurança que propunham as empresas, o
“novo espírito do capitalismo” (BOLTANSKI E CHIAPELLO, 2009) traz o
empreendedorismo, ou seja, o indivíduo como responsável pelo seu desenvolvimento,
como sua principal atualização, incitando os sujeitos a continuarem participativos no
sistema. Dessa maneira, é compreensível que esse ideal de independência e superação
sejam os motes dos discursos de aconselhamento na contemporaneidade.
Neste ambiente, sistemas especializados (GIDDENS, 2002) se tornam
fundamentais para orientar os indivíduos na busca pela autorrealização. O eu, que até
então era pouco percebido, tornou-se algo a que se almeja alcançar e descobrir
(ILLOUZ, 2011), alcance que será sempre mediado, observado e padronizado de
acordo o espírito vigente (BOLTANSKI E CHIAPELLO, 2009). O analista e o
terapeuta na contemporaneidade equivalem ao técnico e cientista de outrora, sistemas
qualificados a indicar, com segurança, o melhor caminho a seguir.
Entre os mais diversificados canais de orientação e aconselhamento, este
trabalho se propõe a investigar os discursos de orientação a partir da produção
audiovisual de duas empresas que se apresentam como escolas. The School of Life3 foi
fundada em 2008 em Londres e possui filiais em 6 países, incluindo o Brasil, com 3 http://www.theschooloflife.com/saopaulo/ - Último acesso em julho/2015.
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escritórios em São Paulo e Rio de Janeiro, onde se instalou em 2013. Em seu portal, a
empresa disponibiliza um manual (em inglês), no qual são baseadas suas condutas e
ideias. Neste manual é possível ler sobre todos os setores da vida de um indivíduo,
como trabalho, personalidade e relacionamentos. Ainda no mesmo ambiente, há um
link para a loja online, que oferece desde livros até sapatos, bolsas e decoração para
casa e também sua programação dos eventos. As aulas, palestras, ou ‘sermões’, como
eles próprios denominam alguns encontros, são cobrados, acontecem presencialmente
em um local fixo e são divididos por temas como “Como superar a morte?”, “Como
ter uma mente empreendedora?” ou “Como ter melhores conversas”.
A Escola de Você4 é um projeto brasileiro, criado pela jornalista Ana Paula
Padrão, proprietária da empresa Tempo de Mulher, em parceria com outras mulheres,
que serão citadas posteriormente junto à análise do corpus. Durante três meses, de
segunda a sexta feira, são postados vídeos de até três minutos sobre os mais variados
assuntos no site da escola. Para ter acesso as aulas, é necessário fazer um cadastro
antecipado, antes de uma nova turma ser iniciada. Seu conteúdo é voltado para as
mulheres, público delimitado através das temáticas tratadas em cada aula, dos
elementos visuais do site e dos patrocinadores, como O Boticário (na turma passada)
e o sabão em pó Brilhante (Unilever).
A possibilidade de atualizar e transformar o eu, por meio de algum tipo de
consumo e discurso de convocação (PRADO, 2013), desperta-nos a olhar a crescente
demanda por aconselhamento nos últimos anos. Se cada vez mais essas mercadorias
relacionadas à reforma dos sujeitos ganham visibilidade e geram renda, é relevante
observar as lógicas contemporâneas que alimentam esse fenômeno. Trabalhando com
uma gama infinita de supostos ‘dilemas’ que afetam a maioria dos indivíduos, o
comércio da autoajuda sempre se atualiza trazendo novidades. Segundo a matéria
“Ajude-se”5, publicada recentemente pela revista Superinteressante, do Grupo Abril,
na última década o mercado editorial brasileiro teve um aumento de 35% nas suas
4 http://www.escoladevoce.com.br/ - Último acesso em julho/2015. 5 http://super.abril.com.br/comportamento/ajude-se - Último acesso em julho/2015.
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publicações de maneira geral, enquanto a categoria de autoajuda cresceu 700%. O
aumento fez com que esse tipo de publicação tivesse uma categoria própria na lista
dos livros mais vendidos pela Revista Veja6, não pertencendo mais a lista de ficção ou
não-ficção.
Para o desenvolvimento deste artigo, a metodologia utilizada é o levantamento
bibliográfico do quadro teórico apresentado a seguir para embasar nossa discussão
acerca de nossos objetos empíricos, vídeos da The School of Life e da Escola de Você
disponibilizados na Internet. Seus discursos serão discutidos e analisados a partir do
método de análise crítica de discurso de Fairclough (2001).
Para nortear nosso trabalho, em seu desenvolvimento e análise, utilizaremos
quatro autores fundantes como embasamento teórico. À luz de Giddens, trataremos a
reflexividade moderna e os sistemas especialistas. Para compreendermos de que
maneira ocorre o engajamento ao capitalismo e a noção de “espírito do capitalismo”,
Boltanski e Chiapello são nossa partida. A articulação entre capitalismo e afetos, que
perpassa toda a pesquisa, será trabalhada com Illouz, com as concepções de
capitalismo afetivo e as narrativas terapêuticas. Para a análise crítica dos discursos
aqui recortados, utilizaremos os conceitos trazidos por Fairclough.
A cultura terapêutica e o empreendedorismo de si
No decorrer do século XX, as emoções se tornaram destaque por influência da
psicanálise e do feminismo. Os psicólogos, pouco a pouco, ganharam espaço e voz na
orientação de todos os tipos de problema e situação, tendo influência seja na área da
educação, em programas de reabilitação em presídios ou em discussões familiares. No
meio empresarial, a presença destes especialistas foi requisitada, à princípio, no início
do século, para dar conta de problemas disciplinares e de produtividade nas fábricas,
onde se concentravam a maioria dos empregos. Os homens eram pensados como
máquinas e a empresa com um lugar impessoal, que precisava ser operado. 6 http://veja.abril.com.br/livros_mais_vendidos/ - Último acesso em julho/2015.
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Durante o “segundo espírito do capitalismo” (BOLTANSKI e CHIAPELLO,
2009), entre os anos 30 e 60, alteram-se as relações de trabalho. Neste período, mais
postos de trabalho foram abertos, criaram-se novos cargos e muitas pessoas passaram
a trabalhar entre o diretor geral e a fábrica, gerando hierarquia e competição. Segundo
Illouz (2011), a psicologia teve forte influência na construção de um novo discurso da
identidade empresarial, “visto que a hierarquia empresarial começou a demandar uma
orientação para as pessoas, além das mercadorias, [...] o manejo do eu no trabalho
transformou-se cada vez mais num ‘problema’”. (2011, p. 28-29).
A necessidade de um gestor ‘terapêutico’, que soubesse administrar pessoas de
uma nova forma, estava posta. Se no sistema anterior, os trabalhadores precisavam se
submeter às autoridades, no atual era preciso um controle sutil e mais potente para
que a ordem prosseguisse estabelecida. Igualdade e cooperação (ILLOUZ, 2011) são
as novas noções aplicadas no gerenciamento de pessoas. Boltanski e Chiapello (2009)
ainda observam que, tornaram-se “muito estimulantes para os jovens diplomados as
oportunidades oferecidas pelas organizações, no sentido de atingir posições de poder
a partir das quais se possa mudar o mundo” (2009, p. 50).
Ao longo do século XX, o foco de atuação dos psicólogos avançou para além
das empresas (que buscavam ampliar seus domínios e lucros), tratamentos à doenças
mentais graves e traumas de guerras. Illouz (2011) sinaliza que, nas décadas de 1950
e 1960, tratamentos psicológicos e psiquiátricos passaram a ser direitos da
comunidade sob uma legislação federal nos Estados Unidos, ampliando o mercado de
serviços terapêuticos.
O enfraquecimento do mercado e das promessas de segurança e estabilidade
oferecidas pelas grandes empresas e pelo Estado, corroboram para o crescimento do
mercado de aconselhamento. Novas regras burocráticas, limites impostos à empresas
e aumento dos direitos dos assalariados são algumas das características que levaram o
capitalismo a uma profunda crise. Observando as modificações no ambiente do
trabalho e da vida dos sujeitos, e se valendo de suas críticas, o capitalismo por meio
de um novo espírito se repropõe, em uma evolução e atualização ideológica.
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O “novo espírito do capitalismo” (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2009) se
apresenta, na década de 1970, como um capitalismo globalizado, de rede,
conexionista, onde não há separação entre a vida pessoal e o trabalho, o indivíduo
tece suas relações a partir de seus interesses, visando alguma vantagem. O
empreendedorismo emerge como uma maneira de continuar convocando os cidadãos
de modo independente às empresas e ao Estado, onde novas competências passam a
ser exigidas. “Como desenvolver novas capacitações, como descobrir capacidades
potenciais à medida que vão mudando as exigências da realidade. [...] Na economia
moderna, a vida útil de muitas capacitações é curta”. (SENNETT, 2006, p. 13). Para
Sennett (2006), os predicados exigidos para se tornar um homem ou uma mulher
ideal, distanciam-se da realidade de pessoas comuns, mas se tornam paradigmas para
todos. O indivíduo passou a ser convocado a empreender a si mesmo, “sendo ele
próprio seu capital, sendo para si mesmo seu produtor, sendo para si mesmo sua fonte
de renda (FOUCAULT, 2008, p. 311).
O empreender a si mesmo, coloca o sujeito na condição de ser produtor de
suas habilidades técnicas e morais, produção que ocorre por meio de algum consumo.
Criada essa demanda de se alcançar um modelo padrão, as narrativas terapêuticas
passam a buscar por uma racionalização da vida comum, que se distancia à medida
que situações cotidianas ganham status de doenças. “Estresse, ansiedade, vício,
compulsão, trauma, síndrome, autoestima e aconselhamento passaram a fazer parte do
imaginário compartilhado e revelam [...] o surgimento de novas atitudes e
expectativas cultuais” (CAMPANELLA, CASTELLANO, 2014, p. 1).
A organização da vida que precisa ser modificada passa pelos “sistemas
especializados” (GIDDENS, 2002), “que penetram em todos os aspectos da vida
social nas condições da modernidade” (p. 24). Chaui (2014) fala em “ideologia da
competência”, que divide a sociedade entre os competentes (os especialistas, que
possuem conhecimentos e legitimidade em diversas áreas) e os incompetentes, que
são os que seguem os comandos dos especialistas. Segundo a autora,
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assim, cada um de nós aprende a se relacionar com o desejo pela medição do discurso da sexologia, a se relacionar com a alimentação pela mediação do discurso da dietética ou nutricionista, a se relacionar com a criança por meio do discurso do pediatra, da psicologia e da pedagogia, a se relacionar com a Natureza pela medição do discurso ecológico [...] e assim por diante. Na medida em que somos invalidados como seres competentes, tudo precisa nos ser ensinado ‘cientificamente’ (CHAUI, 2014, p. 57).
A ideia de que aprendemos por meio de alguma mediação por especialistas,
remete-nos diretamente aos objetos de estudo deste trabalho, The School of Life e
Escola de Você. Ambas as empresas, vendem-se como escolas com a proposta de que
por meio de suas aulas, manuais e prescrições, será possível encontrar uma vida
melhor. É a busca pelo eu autêntico, que existe dentro de cada indivíduo, que o faz
seguir um percurso que passa por institucionalidades, consumo, terapias, autoterapias
e mercadorias. Sobre a ideia da autenticidade, Taylor (2011) em A Ética da
Autenticidade, observa a importância de ser verdadeiro para si mesmo na
contemporaneidade: “se não sou, eu perco o propósito da minha vida, perco o que ser
humano é para mim” (p. 38).
A transformação da vida em narrativa, dramatiza e organiza experiências de
modo a convocar o indivíduo a buscar na sua história pessoal uma falha ou um desvio
que justifique sua personalidade ou até os problemas que ele vive. A narrativa
terapêutica busca esse aspecto disfuncional da vida do sujeito para apontá-lo como
patologia que precisa ser tratada, em que qualquer comportamento, ainda que seja
completamente corriqueiro e banal, pode vir a ser tratado como patológico. Essa
narrativa “tem ampla penetração por ser praticada numa grande variedade de locais
sociais como grupos de apoio, programas de entrevista, [...] ou a internet: todos são
lugares para a atuação e reatualização do eu” (ILLOUZ, 2009, p. 72).
“Por que não uma escola de você?”
Ainda que tenham públicos diferentes e sejam ministradas em meios distintos,
nossos objetos de pesquisa, a The School of Life e a Escola de Você se assemelham
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em diversos aspectos. Além de serem empresas que se denominam como escolas,
ambas se valem do “discurso de convocação” (PRADO, 2013) para engajar
indivíduos. Para Prado (2013, p. 10), na contemporaneidade, “há uma infinidade de
enunciadores, que, além de informar e responder às demandas dos usuários, também
nos convoca para programas específicos, apoiados em atividades e serviços oferecidos
no mercado”. Ainda segundo o autor (2013, p. 12), os produtos relacionados a
autoajuda partem da convocação à transformação de si baseados em alguma
‘necessidade’ que nem sempre é natural, “mas dá forma a uma demanda latente,
fazendo-a expressar-se num querer cultural”.
Logo, essas empresas compreendem como uma cultura contemporânea a
necessidade da existência de escolas que ensinem sobre a vida, sobre como lidar, de
maneira mais inteligente, com situações cotidianas e quase nunca racionais. As
escolas terapêuticas se valem da ideia de educar a subjetividade dos sujeitos. “Não
existe escola de enfermagem, escola de informática? Por que não uma escola de
você?”, questiona a jornalista Ana Paula Padrão logo na aula inaugural do curso
online da Escola de Você. A mesma fala é encontrada no vídeo de apresentação da
The School of Life, disponível no seu canal no site Youtube7. “Nós treinamos nossas
crianças para estudar matemática, nós ensinamos pilotos a pousar aviões e cirurgiões
a como operar nossos cérebros, mas existe uma área em que parecemos não acreditar
na educação [...]: a própria vida” (tradução nossa).
Selecionamos para este trabalho apenas dois vídeos, um de cada escola, para a
análise. Como ambos apresentam uma grande quantidade de material, foram
escolhidos o vídeo de apresentação da The School of Life e outro de divulgação da
Escola de Você, disponíveis no Youtube.
O canal da The School of Life, tem 172 vídeos dos mais variados assuntos
(amor, morte, sexo, filósofos, capitalismo), sendo o primeiro, uma palestra da
psicóloga Carol Dweck sobre perfeccionismo, postado há um ano. Na abertura do
vídeo, ele nos é apresentado como o “Sermão de Domingo”, seguido de um clipe com 7 https://www.youtube.com/user/schooloflifechannel - Último acesso em junho/2015.
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pessoas cantando e confraternizando como se estivesse em um culto, em uma igreja
para a missa dominical. Dentre todos, o “O que é a The School of Life?” é o mais
relevante para esta pesquisa por ser o primeiro vídeo que o visitante tem acesso ao
procurar mais informações sobre a escola no Youtube.
Já a Escola de Você não disponibiliza os vídeos de seu curso online
publicamente. Para acessá-los é necessário um cadastro prévio e a emissão de login e
senha. A interessada só acessa seu conteúdo por meio do site da própria escola e à
medida em que for assistindo aula por aula, na sequência proposta. Ao final de cada
semana, há um questionário sobre as aulas que precisa ser respondido para que a
aluna tenha acesso aos novos vídeos. Dessa maneira, para esta análise, utilizaremos
um vídeo de divulgação acessível no Youtube, também com a apresentação da
proposta da escola.
“O que é a The School of Life?” é uma animação em inglês e mostra crianças
indo para a escola, já em uma primeira referência à “reflexividade do eu”, onde o
indivíduo é “instado a auto-interrogar-se em termos do que está acontecendo”
(GIDDENS, 2002, p. 75) em sua vida. “Há um estranho silêncio na educação quando
se trata na verdade de grandes questões” (fig. 1), diz o vídeo, que em seguida se refere
ao amor, relacionamentos, carreira, dinheiro, ansiedade, arrependimento, vergonha,
velhice e à família como sendo estas ‘grandes questões’.
Fig. 1 – Grandes questões
Fonte: Fragmento extraído do vídeo “O que é a The School of Life”.
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No canal da Escola de Você se destaca o vídeo (fig. 2), “Ana Paula Padrão te
convida para fazer a Escola de Você”8. A presença do nome de uma jornalista
respeitada no país vem ao encontro do que se espera dos sistemas especialistas,
credibilidade e legitimidade na fala. Mulher, bem sucedida e famosa parecem ser as
características que conferem a Ana Paula todos os requisitos necessários para
aconselhar. As demais mulheres que dividem a parceria com Ana Paula, sempre são
apresentadas sob títulos de especialistas em alguma área como Natália Leite (mestre
em Ciência da Informação e apresentadora de TV), Ana Fontes (fundadora da Rede
Mulher Empreendedora), Patricia Tucci (“pioneira” em consultoria de imagem
pessoal) e Soraia Schutel (doutoranda em administração). É relevante observar que
todas elas são alçadas como verdadeiros exemplos a serem seguidos, com carreiras
consolidadas, o que confere legitimidade às suas falas.
Fig. 2 – Ana Paula Padrão te convida
Fonte: Fragmento extraído do vídeo “Ana Paula Padrão te convida para fazer a Escola de Você
O vídeo, logo no início, traz a dualidade entre os negócios e a vida, elementos
que aparecem juntos, em seguida, expressos na ideia de empreender a si mesmo.
“Você que é mulher e quer crescer nos negócios e na vida, quer empreender um novo
lado de você mesma, tem que conhecer a Escola de Você!” (grifo nosso). O
capitalismo como uma racionalidade que impacta diretamente na subjetividade dos
indivíduos e os reorganiza de acordo com sua lógica vigente fica evidente no conceito
de capitalismo afetivo tratado por Illouz (2011):
8 https://www.youtube.com/watch?v=WP-ZaIOuE8c - Último acesso em julho/2015.
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O capitalismo afetivo é uma cultura em que os discursos e práticas afetivos e econômicos moldam uns aos outros [...]. Os repertórios do mercado se entrelaçam com a linguagem da psicologia e, combinados, os dois oferecem novas técnicas e sentidos para cunhar novas formas de sociabilidades. (2011, p. 12-13).
Para Fairclough (2011), a produção dos discursos na sociedade não provém de
simples ideias de qualquer indivíduo, “mas de uma prática social que está firmemente
enraizada em estruturais sociais” (p. 93). Logo a prática discursiva está inserida na
prática social e por isso se faz necessária a observação e contextualização do
momento histórico vivido. Para o autor, “ao produzirem seu mundo, as práticas dos
membros são moldadas, de forma inconsciente, por estruturas sociais, relações de
poder e pela natureza da prática social (Fairclough, 2001, p. 100).
A associação entre a racionalidade e os afetos pode ser ilustrada com outra
passagem do vídeo da The School of Life. Depois de mostrar uma cena com o
personagem sendo ‘atropelado’ por várias palavras como divórcio, compulsão,
depressão e vício, as imagens da construção de um prédio aparecem (fig. 3, 4 e 5). A
locução prossegue: “queríamos um lugar para ajudar com esses assuntos e por isso
construímos a Escola da Vida, uma organização de mente aberta, rigorosamente sem
ideologia e dedicada a ajudar a lidar com importantes questões que nunca foram
ensinadas na escola” (tradução nossa).
Fig. 3, 4 e 5 – Construção da The School of Life
Fonte: Fragmento extraído do vídeo “O que é a The School of Life”.
Dois engenheiros posicionam as vigas e depois a cobertura, construindo a The
School of Life, imagem que nos remete mais a uma igreja do que a uma escola. Rose
(2001) observa que diversas tecnologias (meios que são utilizados para governar e
moldar os indivíduos) têm sido criadas na contemporaneidade e destaca dentre elas, a
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relação pastoral, que se baseia no aconselhamento entre uma figura de autoridade e
outra que é apenas membro do grupo. A “tecnologia pastoral” (Rose, 2001), é
utilizada de inúmeras maneiras, seja na relação entre um padre e um fiel ou entre um
terapeuta e seu paciente, relações que sempre visam a educação e a normatização do
eu. “As tecnologias humanas produzem e enquadram os humanos como certos tipos
de seres cuja existência é simultaneamente capacitada e governada por sua
organização no interior de um campo tecnológico” (ROSE, 2001, p. 38).
Na última fala do vídeo da Escola de Você, Ana Paula passa o endereço da
página online, frisa que o curso é gratuito e finaliza, “você vai ver o quão grande você
vai ser mulher depois da Escola de Você”. A convocação por ser ‘mais mulher’ é
clara e posiciona o especialista como o soberano, detentor de todas as informações
que podem dar esse “a mais”. “Esse discurso competente exige que interiorizamos
suas regras e valores, se não quisermos ser considerados lixo e detrito” (CHAUI,
2014, p. 58).
Considerações finais
As escolas The School of Life e Escola de Você convocam o indivíduo a uma
reflexão sobre sua própria vida. “A terapia só pode ter sucesso quando envolve a
própria reflexividade do indivíduo. [...] é uma experiência que envolve o indivíduo na
reflexão sistemática sobre o curso do desenvolvimento de sua vida” (GIDDENS,
2002, p. 70). O eu, como um projeto reflexivo, que pode ser alterado e atualizado, fica
à disposição de uma série de tecnologias que visam moldar e orientar a conduta dos
sujeitos na direção tencionada. Dessa maneira, a autoajuda e o aconselhamento
posicionam-se como dispositivos de “ajuda”, a fim de oferecer as condições
necessárias para a transformação.
Nos dois vídeos aqui analisados, pudemos observar a utilização das narrativas
terapêuticas (ILLOUZ, 2011). Estas são praticadas em uma série de locais sociais e
apreendidas, muitas vezes, de maneira inconsciente, problematizando condutas e
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situações cotidianas. Transformadas em patologias, é compreensível que o indivíduo
busque tratamentos oferecidos por sistemas que colocam-se como especialistas.
Ao observarmos a grande quantidade de acessos e cadastros nos canais de
vídeo mencionados, compreendemos que a suscetibilidade dos indivíduos está
diretamente relacionada com os chamados à autonomia e autorrealização estimulados
pelo “novo espírito do capitalismo” (BOLTANSKI E CHIAPELLO, 2009), que
incentivam a independência dos sujeitos em relação às empresas, ao Estado e a
qualquer valor sólido tradicional. A flexibilidade no trabalho, proposta por esse
espírito, alcança a subjetividade dos sujeitos, que podem e precisam se modificar
contanto que dentro de parâmetros já pré-estabelecidos e normatizados.
No vídeo “O que é a The School of Life”, a escola se apresenta como uma
“organização rigorosamente sem ideologia” quando na verdade está inserida dentro de
um contexto socioeconômico, dentro de um sistema vigente, que é o capitalismo e que
precisa ser considerado para analisarmos a produção desses discursos
(FAIRCLOUGH, 2011). Diante do cenário social contemporâneo, não há dúvidas de
que esses discursos sejam de fato engajadores e provedores de muitas mudanças, mas
o que propomos aqui é um olhar além, uma análise para compreender de que maneira
e baseados em qual momento histórico, esses discursos, esses produtos, essas escolas
e esse mercado surgem, se desenvolvem e se multiplicam.
“Sem um pano de fundo simbólico contra o qual uma vida possa se erguer
com um sentido e uma significação que ultrapasse a experiências imediata de fruição
fragmentada de momentos isolados” (BEZERRA JR., 2010, p, 119), a satisfação
contemporânea, além dos objetos e conquistas objetivas, se debruça no superlativo de
uma vida boa, de uma vida “mais”, como traz a última frase do vídeo da Escola de
Você. Bem-estar esse que só será possível através da “competência (individual) na
gestão da vida e do uso de dispositivos de controle e eliminação do sofrimento”
(BEZERRA JR., 2010, p. 120).
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015)
Referências
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