Por Que o Mundo Existe - Um Mistério Existencial - Jim Holt

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  • Copyright Jim Holt, 2012

    TTULO ORIGINAL

    Why Does the World Exist?

    CAPA

    Albert Tang

    FOTO DE CAPA

    Caf de Flore, 6 arrondissement, Paris Dennis Stock/Magnum Photos

    ADAPTAO DE CAPA

    Julio Moreira

    PREPARAO

    Jaime Biaggio

    REVISO

    Clara DiamentFlora Pinheiro

    REVISO DE EPUB

    Fernanda Neves

    GERAO DE EPUB

    Intrnseca

    E-ISBN

    978-85-8057-383-1

    Edio digital: 2013

    Todos os direitos desta edio reservados Editora Intrnseca Ltda.

  • Rua Marqus de So Vicente, 99, 3 andar22451-041 GveaRio de Janeiro RJTel./Fax: (21) 3206-7400www.intrinseca.com.br

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  • SUMRIO

    PRLOGO: Uma rpida demonstrao de que deve existir algo e noapenas o nada, para pessoas modernas e muito ocupadas

    1. Enfrentando o mistrio

    INTERLDIO: Nosso mundo poderia ter sido criadopor um hacker?

    2. Um panorama filosfico

    INTERLDIO: A aritmtica do nada

    3. Uma breve histria do nada

    4. O grande rejeicionista

    5. Finito ou infinito?

    INTERLDIO: Ideias noturnas no Caf de Flore

    6. O testa indutivo de North Oxford

    INTERLDIO: O supremo fato bruto

  • 7. O mago do multiverso

    INTERLDIO: O fim da explicao

    8. A suprema boca-livre?

    INTERLDIO: Nusea

    9. espera da teoria final

    INTERLDIO: Uma palavra sobre muitos mundos

    10. Reflexes platnicas

    INTERLDIO: It from bit?

    11. O imperativo tico de haver algo

    INTERLDIO: Um hegeliano em Paris

    12. A ltima palavra dos finados

    INTERLDIO EPISTOLAR: A prova

    13. O mundo como poema humorstico

    14. O ego: eu realmente existo?

    15. Retorno ao nada

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  • EPLOGO: beira do Sena

    AgradecimentosNotas

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  • PRLOGO

    Uma rpida demonstrao de que deveexistir algo e no apenas o nada, parapessoas modernas e muito ocupadas

    Suponhamos que no houvesse nada. Nesse caso, no existiriam leis,pois as leis, afinal, so algo. Se no houvesse leis, tudo seria permitido.Se tudo fosse permitido, nada seria proibido. Assim, se no houvessenada, nada seria proibido. O nada , portanto, autoproibitivo.

    Logo, deve existir algo. Quod erat demonstrandum.

  • 1ENFRENTANDO O MISTRIO

    E este esprito cinzento, ansiando

    Por seguir o conhecimento tal como uma estrela cadente

    Alm dos limites extremos do pensamento humano.

    ALFRED, LORDE TENNYSON, Ulisses

    Gostaria de adverti-la seriamente contra qualquer tentativa de encontrar razo e

    explicao para tudo. (...) Ter a pretenso de encontrar a razo de tudo muito

    perigoso e leva apenas a decepes e insatisfao, deixando a mente inquieta e no

    fim das contas causando infelicidade.

    RAINHA VITRIA, em carta neta, a princesa

    Vitria de Hesse, 22 de agosto de 1883

    (...) pois quem foi a primeira pessoa do universo antes que houvesse algum que fez

    tudo quem ah isso eles no sabem nem eu (...)

    MONLOGO DE MOLLY, Ulisses, de James Joyce

  • L embro-me nitidamente de quando o mistrio da existnciaapareceu pela primeira vez no meu horizonte. Foi no incio dadcada de 1970. Eu era um aluno de ensino mdio imaturo,

    aspirante a rebelde, no interior da Virgnia. Como s vezes acontececom alunos de ensino mdio imaturos e aspirantes a rebeldes, eucomeava a me interessar pelo existencialismo, filosofia que pareciaoferecer a esperana de resolver minhas inseguranas de adolescente,ou pelo menos de elev-las a um patamar mais nobre. Certo dia, fui biblioteca universitria em minha cidade e dei uma olhada em algunsvolumes impressionantes: O ser e o nada, de Sartre, e a Introduo metafsica, de Heidegger. Foi nas primeiras pginas deste ltimo, comseu ttulo promissor, que me deparei pela primeira vez com estaquesto: Por que existe algo e no apenas o nada? Ainda me lembro dasensao de estupefao ante o carter absoluto, a pura e simples foradessa pergunta. Tratava-se do por qu? mais supremo de todos, o queestava por trs de todas as outras indagaes j feitas pela humanidade.E eu me perguntava por onde ele tinha andado ao longo de toda aminha vida intelectual (que era curta, confesso).

    J se disse que a pergunta Por que existe algo e no apenas o nada? to profunda que s ocorreria a um metafsico, mas tambm tosimples que s ocorreria a uma criana. Na poca, eu no tinha idadepara ser metafsico. Mas por que a pergunta no me ocorreu na infn-cia? Revendo a questo, a resposta era bvia. Minha curiosidade

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  • metafsica natural tinha sido sufocada pela educao religiosa. Desde amais tenra infncia me haviam dito minha me e meu pai, as freirasque foram minhas professoras no ensino fundamental, os monges fran-ciscanos do mosteiro na colina perto da qual morvamos que Deuscriara o mundo e que o criou a partir do nada. Por isso o mundo existia.Por isso eu existia. Mas ficava um pouco vago o motivo pelo qual Deusexistia. Ao contrrio do mundo finito que Ele criara, Deus era eterno.Tambm era todo-poderoso e dotado de toda perfeio em grau in-finito. Assim, talvez Ele no precisasse de uma explicao para sua ex-istncia. Sendo onipotente, podia ter criado sozinho a prpria existn-cia. Era, para empregar uma expresso latina, causa sui.

    Era essa a histria que me contavam na infncia. Nela ainda acred-ita a grande maioria das pessoas. Para esses que creem, no existe ummistrio da existncia. Se lhes perguntarmos por que o universo ex-iste, eles diro que existe porque Deus o fez. E, se lhes perguntarmospor que Deus existe, a resposta depender do grau de sofisticao teo-lgica do interlocutor. Ele poder dizer que Deus causa de Si mesmo,que o fundamento do prprio ser, que Sua existncia est contida emSua prpria essncia. Ou ento poder dizer que as pessoas que fazemtais perguntas herticas queimaro no fogo dos infernos.

    Mas vamos supor que voc pergunte a algum sem crenas por queexiste um mundo e no apenas o nada. O mais provvel que no ob-tenha uma resposta muito satisfatria. Nas atuais guerras de Deus, osque defendem a crena religiosa costumam empregar o mistrio da ex-istncia como arma contra os adversrios neoateus. Bilogo evolu-cionista e ateu profissional, Richard Dawkins est cansado de ouvir

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  • falar desse suposto mistrio. Meus amigos telogos, diz ele, semprereafirmam que tem de haver um motivo para que exista algo e noapenas o nada.1 Christopher Hitchens, outro incansvel proslito doatesmo, costuma ser defrontado pelos adversrios com a mesma per-gunta: Se voc no reconhece a existncia de um Deus, como pode ex-plicar a existncia do mundo?, perguntou-lhe num programa de TVum apresentador de direita ligeiramente agressivo, com certo ar de tri-unfo. Outra apresentadora, dessa vez uma loura de pernas longas, fezeco ao mesmo tema religioso. De onde veio o universo?, perguntou aHitchens. A ideia de que tudo isto tenha vindo do nada parece con-trariar a lgica e a razo. O que foi que veio antes do Big Bang? Ao queHitchens respondeu: Eu adoraria saber o que veio antes do Big Bang.

    Que alternativas nos restam para resolver o mistrio da existnciase deixarmos de lado a hiptese de Deus? Bom, voc talvez imagine queum dia a cincia v explicar no s como o mundo , mas por que ele .Essa pelo menos a esperana de Dawkins, que tenta encontrar umaresposta na fsica terica. Talvez a inflao que, segundo os fsicos,ocupa uma frao do primeiro yoctossegundo da existncia do universovenha a se revelar, quando for mais bem entendida, uma grua cosmol-gica comparvel grua biolgica de Darwin,2 escreveu Dawkins.

    Stephen Hawking, na verdade um cosmologista praticante, temuma abordagem diferente. Ele concebeu um modelo terico no qual ouniverso, apesar de finito no tempo, est completamente contido em simesmo, sem incio nem fim. Nesse modelo sem limites, sustenta ele,no h necessidade de um criador, seja ele divino ou no. Contudo, oprprio Hawking duvida de que esse conjunto de equaes seja capaz

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  • de apresentar uma soluo completa para o mistrio da existncia. Oque ser que infunde vida nas equaes e faz surgir um universo a serexplicado por elas?,3 pergunta, lamentoso. Por que o universo se d otrabalho de existir?

    O problema com a alternativa cientfica parece ser este. O universoabarca tudo que existe fisicamente. Uma explicao cientfica devecontemplar algum tipo de causa fsica; porm qualquer causa fsica por definio parte do universo a ser explicado. Desse modo, qualquerexplicao puramente cientfica da existncia do universo est fadada circularidade. Mesmo que comece com algo mnimo um ovo cs-mico, uma minscula partcula de vcuo, uma singularidade , aindaassim ela estar comeando com algo, e no com nada. A cincia podeser capaz de identificar de que maneira o atual universo evoluiu de umestado anterior de realidade fsica, chegando at a remontar ao BigBang nesse processo. Mas por fim a cincia se depara com um ob-stculo intransponvel. Ela no tem como explicar a origem do primevoestado fsico sado do nada. Pelo menos o que sustentam os mais in-transigentes defensores da hiptese de Deus.

    Ao longo da histria, quando a cincia parecia incapaz de explicaralgum fenmeno natural, os religiosos logo tratavam de invocar umArtfice Divino para preencher a lacuna e ento ficavam con-strangidos quando afinal a cincia conseguia faz-lo. Newton, por ex-emplo, considerava Deus necessrio para realizar pequenos ajustesocasionais nas rbitas dos planetas a fim de impedir que colidissem.Um sculo depois, porm, Laplace provou que a fsica era perfeita-mente capaz de explicar a estabilidade do sistema solar. (Quando

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  • Napoleo perguntou a Laplace onde ficava Deus em seu esquemaceleste, ele deu uma resposta que ficou famosa: Je navais pas besoinde cette hypothse. [Eu no precisei dessa hiptese.]) Nos ltimostempos, os religiosos tm sustentado que a seleo natural cega por sis no poderia explicar o surgimento de organismos complexos, demodo que Deus deve estar guiando o processo evolucionrio alegao refutada de forma decisiva (e entusiasmada) por Dawkins eoutros darwinistas.

    Esses argumentos do tipo Deus das lacunas, quando aplicados smincias da biologia ou da astrofsica, tendem a ser um tiro pela culatrapara os religiosos que os empregam. Mas essas pessoas se sentem emum terreno mais seguro diante da pergunta Por que existe algo e noapenas o nada? Ao que parece, nenhuma teoria cientfica capaz detranspor o abismo entre o nada absoluto e um universo pleno,4 escre-veu Roy Abraham Varghese, defensor da religio e afeito cincia.Essa questo da origem primordial metacientfica a cincia podeformul-la, mas no respond-la. O eminente astrnomo (e menonitadevoto) Owen Gingerich, da Universidade de Harvard, concorda. Emuma palestra intitulada Gods Universe [O universo de Deus], ap-resentada na Harvard Memorial Church em 2005, Gingerich afirmouque o porqu supremo teleolgico e no est na esfera da cincia.

    Ante essa linha de argumentao, o ateu costuma dar de ombros edizer que o mundo apenas . Talvez ele exista porque sempre existiu.Ou quem sabe passou a existir sem qualquer motivo. Em qualquer umdos casos, sua existncia no passa de um fato bruto.

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  • A perspectiva do fato bruto nega que a existncia do universo comoum todo precise ser explicada. Com isso, contorna a necessidade depostular alguma realidade transcendental, como Deus, para responder pergunta Por que existe algo e no apenas o nada? Do ponto de vistaintelectual, todavia, como se jogssemos a toalha. Uma coisa aceitarum universo sem propsito nem significado todos ns j passamospor isso em nossos momentos mais sombrios. Mas um universo sem ex-plicao? Parece absurdo demais, pelo menos para uma espcie racion-al como a nossa. Quer tenhamos conscincia ou no, nos apegamos porinstinto ao que Leibniz, filsofo do sculo XVII, chamava de Princpioda Razo Suficiente. Em suma, esse princpio estipula que a explicaoabarca tudo. Para cada verdade, deve haver uma razo para que ela sejaassim e no de outra forma; e, para cada coisa, deve haver uma razo desua existncia. H quem descarte o princpio de Leibniz como umamera necessidade de metafsico. Mas se trata de um princpio funda-mental da cincia, campo em que obteve grande sucesso de fato,tanto que se pode dizer que ele verdadeiro por motivos pragmticos:funciona. O princpio parece inerente prpria razo, pois qualquertentativa de argumentar contra ou a favor dele j pressupe sua valid-ade. E, se o Princpio da Razo Suficiente vlido, deve haver uma ex-plicao para a existncia do mundo, sejamos ou no capazes deencontr-la.

    Um mundo que existisse sem qualquer razo um mundo irra-cional, acidental, que apenas estivesse a seria enervante. Pelomenos era o que alegava o filsofo americano Arthur Lovejoy. Numa desuas palestras em Harvard, em 1933, sobre a grande cadeia do ser,

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  • Lovejoy afirmou que um mundo assim no teria estabilidade nem con-fiabilidade; a incerteza contagiaria tudo; qualquer coisa (exceto talvezo que fosse autocontraditrio) poderia existir e qualquer coisa poderiaacontecer, e nenhuma coisa seria em si mesma ainda mais provvel quequalquer outra.5

    Estamos ento condenados a escolher entre Deus e o mais pro-fundo e bruto Absurdo?

    Esse dilema tem rondado os confins da minha mente desde que deipela primeira vez com o mistrio do ser. E me levou a refletir sobre oque afinal significa ser. O termo adotado pelos filsofos para designaros elementos fundamentais da realidade substncia. Para Descartes,o mundo consistia em dois tipos de substncia: a matria, por ele defin-ida como res extensa (substncia estendida), e a mente, que definiacomo res cogitans (substncia pensante). Hoje, somos essencialmenteherdeiros dessa viso cartesiana. O universo contm coisas fsicas:Terra, estrelas, galxias, radiao, matria escura, energia escura eassim por diante. E tambm contm vida biolgica, que, conforme acincia revelou, de natureza fsica. Alm disso, o universo contmconscincia. Contm estados mentais subjetivos como alegria e sofri-mento, a experincia da vermelhido, a dor no dedo do p depois deuma topada. (Seriam esses estados subjetivos redutveis a processosfsicos objetivos? Ainda no temos um veredito filosfico a esse re-speito.) Uma explicao apenas uma histria causal envolvendo itensextrados de uma dessas categorias ontolgicas. O impacto da bola deboliche provoca a queda dos pinos. O medo de uma crise financeira res-ulta em vendas s pressas no mercado de aes.

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  • Se a realidade s isso coisas materiais e coisas mentais, comuma rede de relaes causais entre elas , ento o mistrio do ser defato parece no ter soluo. Contudo, talvez essa ontologia dualista sejapobre demais. Eu mesmo comecei a desconfiar disso quando, depois domeu flerte adolescente com o existencialismo, apaixonei-me pelamatemtica pura. As entidades sobre as quais os matemticos passam otempo todo especulando no apenas nmeros e crculos, mas var-iedades n-dimensionais, sistemas Galois e co-homologias cristalinas no podem ser encontradas no espao e no tempo. Com toda clareza,no so coisas materiais. Tampouco parecem mentais. No h qualquerpossibilidade, por exemplo, de que a mente finita de um matemticocontenha uma infinidade de nmeros. Mas ser ento que as entidadesmatemticas de fato existem? Bem, depende do que se entende por ex-istncia. Plato certamente achava que existiam. Na verdade, ele con-siderava que os objetos matemticos, por serem atemporais e imut-veis, eram mais reais que o mundo das coisas percebidas pelos sentidos.O mesmo se aplicava, segundo ele, a ideias abstratas como Bondade eBeleza. Para Plato, essas formas constituam a verdadeira realidade.Tudo mais no passava de aparncia.

    Talvez no queiramos ir to longe na reviso de nosso conceito derealidade. A Bondade, a Beleza, as entidades matemticas, as leis da l-gica: nada disso exatamente algo, no no mesmo sentido das coisasmentais e materiais. Mas tampouco so nada. Ser que de algumaforma podero contribuir para explicar por que existe algo e no apenaso nada?

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  • Devemos admitir que as ideias abstratas no podem estar entre asexplicaes causais que conhecemos. Seria absurdo dizer, por exemplo,que a Bondade causou o Big Bang. Mas nem todas as explicaes pre-cisam ter esse formato de causa e efeito; basta pensar, por exemplo, naexplicao do motivo de uma jogada de xadrez. Explicar algo basicamente torn-lo inteligvel ou compreensvel. Quando uma ex-plicao bem-sucedida, sentimos como se a chave girasse nafechadura, na feliz formulao do filsofo americano Charles SandersPeirce. Existem muitos tipos de explicaes diferentes, cada uma en-volvendo um sentido diferente de causa. Aristteles, por exemplo,identificou quatro tipos de causas passveis de explicar as ocorrnciasfsicas, e apenas uma delas (a causa eficiente) corresponde a nossasestreitas concepes cientficas. O tipo de causa mais absurda do es-quema aristotlico a causa final o fim ou propsito com o qualalgo gerado.

    As causas finais costumam aparecer em explicaes muito ruins.(Por que chove na primavera? Para que as plantaes cresam!) Essasexplicaes teleolgicas foram parodiadas por Voltaire em Cndido,e, com muita razo, a cincia moderna as descartou como modo deabordar os fenmenos naturais. Mas ser que deveriam ser automatica-mente rejeitadas quando se trata de explicar a existncia como um to-do? O pressuposto de que as explicaes devem envolver coisas foiconsiderado pelo renomado filsofo contemporneo Nicholas Rescherum dos preconceitos mais arraigados da filosofia ocidental.6 Natural-mente, para explicar determinado fato como, por exemplo, o fato deexistir um mundo , preciso mencionar outros fatos. Porm, no se

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  • deve concluir com isso que a existncia de determinada coisa s possaser explicada por meio de outras coisas. Talvez o motivo da existnciado mundo deva ser buscado em outro lugar, no reino de no coisascomo as entidades matemticas, os valores objetivos, as leis da lgicaou o princpio da incerteza de Heisenberg. Talvez algo na esfera deuma explicao teleolgica possa dar pelo menos uma ideia de comoresolver o mistrio da existncia do mundo.

    No primeiro curso de filosofia que fiz na minha graduao naUniversidade de Virgnia, o professor um eminente veterano de Ox-ford, A.D. Woozley recomendou-nos a leitura dos Dilogos sobre areligio natural, de David Hume. Nesses dilogos, trs personagensfictcios Cleantes, Demea e Filo debatem vrios argumentos em fa-vor da existncia de Deus. Demea, o mais ortodoxo dos trs em matriareligiosa, defende o argumento cosmolgico, segundo o qual, em es-sncia, a existncia do mundo s pode ser explicada postulando-secomo sua causa uma deidade necessariamente existente. Em resposta,o ctico Filo o que mais se aproxima de representar o prprio Hume se sai com um raciocnio bem interessante. Embora o mundo pareaprecisar de uma explicao de natureza divina para sua existncia, ob-serva Filo, isso pode se dever nossa cegueira intelectual. Veja-se porexemplo, prossegue ele, a seguinte curiosidade aritmtica. Se tomar-mos qualquer mltiplo de 9 (como 18, 27, 36 etc.) e somarmos os algar-ismos que o compem (1 + 8, 2 + 7, 3 + 6 etc.), acabaremos semprevoltando ao 9. Para os leigos em matemtica, isso pode parecer meroacaso. J os versados em lgebra logo enxergam a uma necessidade.No seria provvel, pergunta Filo ento, que toda a economia do

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  • universo seja conduzida por uma necessidade semelhante, emboranenhum esforo algbrico humano seja capaz de fornecer a chave pararesolver essa dificuldade?7

    Achei irresistvel essa ideia de uma lgebra csmica oculta, uma l-gebra do ser! A prpria expresso parecia expandir o limite de poss-veis explicaes para a existncia do mundo. Talvez a escolha no fosseentre Deus e os Fatos Brutos, afinal de contas. Talvez houvesse uma ex-plicao no testa para a existncia do mundo uma que pudesse serdescoberta pela razo humana. Embora uma explicao assim no pre-cisasse postular uma deidade, tampouco haveria necessariamente dedescart-la. Na verdade, poderia at significar a existncia de algumtipo de inteligncia sobrenatural, assim fornecendo uma resposta ter-rvel pergunta da criana precoce: Mas, mame, quem fez Deus?

    Quanto j teremos nos aproximado de descobrir essa lgebra doser? Bill Moyers perguntou certa vez ao romancista Martin Amis, numprograma de televiso, como ele achava que o universo tinha passado aexistir. Eu diria que ainda nos faltam pelo menos cinco Einsteins pararesponder a essa pergunta, devolveu Amis. A estimativa pareceu-memais ou menos certa. No entanto, fiquei me perguntando se algumdesses Einsteins j no estaria andando por a. Claro que no cabia amim pretender ser um deles. Mas se eu pudesse encontrar um, ouquem sabe dois ou trs, ou mesmo quatro, e desse um jeito de disp-losna ordem certa... bom, isso seria de fato uma excelente investigao.

    Foi o que resolvi fazer ento. Minha busca pelo preldio de uma re-sposta para a pergunta Por que existe algo e no apenas o nada? j en-controu muitas pistas promissoras. Algumas no se revelaram

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  • conclusivas. Uma vez, por exemplo, telefonei para um conhecido meu,um cosmologista terico famoso por seu brilhante talento especulativo.Deixei um recado no correio de voz falando que tinha uma pergunta alhe fazer. Ele ligou de volta e tambm deixou uma mensagem na minhasecretria eletrnica: Deixe sua pergunta na minha caixa postal e eudeixarei a resposta na sua, disse. Parecia interessante, e foi o que fiz.Ao voltar para casa bem tarde naquela noite, vi a luzinha piscando naminha secretria eletrnica. Com certa ansiedade, apertei o boto.Muito bem, comeava a voz do cosmologista, na verdade voc estfalando de uma violao da paridade matria/antimatria...

    Noutra ocasio, procurei um renomado professor de teologiafilosfica. Perguntei-lhe se a existncia do mundo podia ser explicadapostulando-se uma entidade divina cuja essncia contivesse sua ex-istncia. Voc est brincando?, disse ele. Deus to perfeito que noprecisa existir!

    Noutra oportunidade ainda, numa rua de Greenwich Village, en-contrei um erudito zen-budista que me fora apresentado numa festa.Ele era considerado uma autoridade em questes csmicas. Depois deconversarmos um pouco, eu lhe perguntei pensando bem, talveztenha sido de modo um pouco abrupto: Por que existe algo e noapenas o nada? Em resposta, ele tentou me dar um tapa na cabea.Deve ter pensado que era um koan, um paradoxo zen.

    No empenho de esclarecer o enigma do ser, joguei minha rede bemlonge, conversando com filsofos, telogos, fsicos de partculas, cos-mologistas, msticos e um grande romancista americano. Acima detudo, fui atrs de intelectos versteis e abrangentes. Para ter algo de

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  • fato proveitoso a dizer sobre os motivos da existncia do mundo, umpensador deve possuir mais de um tipo de sofisticao intelectual.Suponhamos, por exemplo, que um cientista seja dotado de certa arg-cia filosfica. Ele poderia ento perceber que o nada de que os filso-fos falavam equivalia conceitualmente a algo definvel em termoscientficos digamos uma variedade fechada no espao-tempo quadri-dimensional cujo raio tende a zero. Ao introduzir uma descriomatemtica dessa realidade nula nas equaes da teoria do campoquntico, talvez fosse possvel provar que um pequeno pedao de falsovcuo tem uma probabilidade no nula de aparecer de modo es-pontneo e que esse pedao de vcuo, pelo maravilhoso mecanismoda inflao catica, seria suficiente para botar em funcionamento to-do um universo. Se o cientista tambm fosse versado em teologia,talvez pudesse interpretar esse evento cosmognico como uma eman-ao retroativa de um futuro ponto mega dotado de algumas pro-priedades que a tradio atribui deidade judaico-crist. E assim pordiante.

    Dedicar-se a esse tipo de especulao requer boa dose de brio in-telectual. E brio foi o que no faltou na maioria desses meus encontros.Um dos prazeres de conversar com pensadores originais sobre umaquesto profunda como o mistrio do ser que comeamos a ouvi-lospensando em voz alta. s vezes diziam as coisas mais surpreendentes.Era como se eu tivesse o privilgio de espiar seus processos mentais o que me assombrou, mas tambm foi estranhamente animador.Quando ouvimos pensadores desse calibre tateando a questo de saberpor que existe um mundo afinal, comeamos a nos dar conta de que

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  • nossas prprias ideias sobre o assunto no so assim to insignificantescomo imaginvamos. Ningum pode se dizer dotado de superioridadeintelectual frente ao mistrio da existncia. Pois, como William Jamesobservou, nesse ponto somos todos indigentes.8

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  • INTERLDIO

    Nosso mundo poderiater sido criado por um hacker?

    D e onde veio nosso universo? Sua pura e simples existnciano indicaria a ao de uma suprema fora criativa? Feitapor um religioso a um ateu, essa pergunta na maioria dos

    casos suscita duas possveis respostas. Na primeira, o ateu poderiadizer que, se algum quiser postular tal fora criativa, bom estarpreparado para postular outra capaz de explicar sua existncia e depoisoutra ainda por trs dessa e assim por diante. Em outras palavras, va-mos dar numa regresso infinita. A segunda resposta do ateu consisteem dizer que, ainda que houvesse uma suprema fora criativa, no hmotivos para imaginar que seja de carter divino. Por que a CausaPrimordial teria de ser uma entidade infinitamente sbia e boa, muitomenos uma assim to preocupada com nossos pensamentos e nossavida sexual? Por que ela chegaria sequer a ter uma mente?

    A ideia de que nosso cosmos foi de alguma forma feito por um serinteligente pode parecer primitiva, at mesmo biruta. Antes de

  • descart-la, contudo, achei que poderia ser interessante consultarAndrei Linde, que contribuiu mais que qualquer outro cientista paraexplicar como se forjou o nosso cosmos. Linde um fsico russo queemigrou para os Estados Unidos em 1990 e leciona na Universidade deStanford. Quando era jovem e ainda morava em Moscou, ele elaborouuma teoria inovadora do Big Bang que respondia a trs incmodas per-guntas: O que explodiu? Por que explodiu? E o que acontecia antes daexploso? A teoria de Linde, batizada de inflao catica, explicava oformato geral do espao e a formao das galxias. Tambm previa demodo preciso o padro da radiao remanescente deixada pelo BigBang que foi observado na dcada de 1990 pelo satlite COBE (Explor-ador do Fundo Csmico).

    Entre as curiosas implicaes da teoria de Linde, uma das mais im-pressionantes que no preciso tanto assim para criar um universo.No preciso recursos de escala csmica, tampouco poderes sobrenat-urais. Pode at ser possvel que algum numa civilizao no muitomais avanada que a nossa fabrique um novo universo em laboratrio,o que leva a uma ideia interessante: Pode o nosso universo ter sido cri-ado assim?

    Linde um sujeito corpulento e boa-pinta, com uma vasta cabeleiragrisalha. Entre os colegas, famoso pelo talento para realizar acroba-cias e impressionantes prestidigitaes, mesmo de pileque.

    Quando formulei a teoria da inflao catica, dei-me conta de quea nica coisa necessria para criar um universo como o nosso umcentsimo de milsimo de grama de matria, disse-me Linde, com seusotaque russo. o suficiente para criar um pedacinho de vcuo que se

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  • transforma nos bilhes e bilhes de galxias que vemos ao nosso redor.Pode parecer mentira, mas assim que funciona a teoria da inflao toda a matria do universo criada a partir da energia negativa docampo gravitacional. Ento o que poderia nos impedir de criar um uni-verso num laboratrio? Seramos como deuses!

    Cabe dizer que Linde conhecido por seu jeito sombrio e espiritu-oso, e essas palavras vinham carregadas de ironia. No entanto, ele megarantiu que esse horizonte da cosmognese na bancada do labor-atrio era factvel, pelo menos em princpio.

    Minha demonstrao tem algumas lacunas, reconheceu. Mas oque eu expus e Alan Guth [seu parceiro na teoria da inflao] e out-ros que examinaram a questo chegaram mesma concluso queno podemos descartar a possibilidade de nosso universo ter sido cri-ado por algum de outro universo que simplesmente teve vontade defazer isso.

    Entretanto, percebi que algo estava errado nesse esquema. Se al-gum desencadeasse um Big Bang em laboratrio, o universo recm-nascido no deveria se expandir no nosso prprio mundo, matandopessoas, esmagando prdios e assim por diante?

    Linde me garantiu que no haveria esse perigo. O novo universoiria se expandir em si mesmo, disse ele. Seu espao se curvaria de talmodo que para seu criador seria minsculo como uma partcula ele-mentar. Na verdade, poderia acabar desaparecendo por completo domundo dele.

    Por que ento se dar o trabalho de fazer um universo que vai acabardesaparecendo, como Eurdice desapareceu aos olhos de Orfeu? No

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  • desejaramos ter uma espcie de poder quase divino sobre os desdobra-mentos de nossa criao, alguma forma de acompanh-la e nos certifi-carmos de que as criaturas nela surgidas estariam bem? O criador deLinde em muito se parecia com o conceito desta de Deus adotado porVoltaire e pelos fundadores dos Estados Unidos: um ser que ps emmovimento o nosso universo, mas perdeu o interesse por ele e suascriaturas.

    Faz sentido, disse Linde, com um ar ligeiramente divertido. Aprincpio, eu achava que o criador talvez fosse capaz de enviar inform-aes para o novo universo ensinar suas criaturas a se comportarem,ajud-las a descobrir as leis da natureza e assim por diante. Mas acomecei a pensar. A teoria da inflao afirma que um universo recm-nascido se infla como um balo na mais nfima frao de segundo.Suponhamos que o criador tentasse escrever na superfcie do baloalgo do tipo POR FAVOR, LEMBRE-SE DE QUE EU FIZ VOC. A expanso infla-cionria tornaria essa mensagem exponencialmente enorme. As cri-aturas do novo universo, vivendo num minsculo recanto de uma letra,jamais seriam capazes de ler a mensagem inteira.

    Linde ento imaginou outro canal de comunicao entre o criador ea criao o nico possvel, at onde ele podia saber. O criador, ma-nipulando a semente csmica da maneira acertada, teria o poder de or-denar certos parmetros fsicos do universo que cria. Poderia determ-inar, por exemplo, o coeficiente numrico da massa do eltron em re-lao do prton. Esses nmeros, conhecidos como constantes danatureza, parecem-nos completamente arbitrrios: no parece haverqualquer motivo para que tenham o valor que tm, e no algum outro.

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  • (A ttulo de exemplo, por que a fora da gravidade em nosso universo determinada por um nmero com os algarismos 6673?) Mas o cri-ador, estabelecendo certos valores para essas constantes, poderia es-crever uma mensagem sutil na prpria estrutura do universo. E, comodisse Linde com evidente prazer, essa mensagem s poderia ser lidapelos fsicos.

    Ele por acaso estaria brincando?Voc pode considerar uma brincadeira, explicou. Mas talvez no

    seja totalmente absurdo. Talvez explique por que o mundo em quevivemos to estranho, to distante da perfeio. Pelo que podemosconstatar, nosso universo no foi criado por um ser divino. Foi criadopor um hacker com conhecimentos de fsica!

    De um ponto de vista filosfico, a historinha de Linde deixa claro orisco de partir do princpio de que a fora criadora por trs de nossouniverso, caso exista, deva corresponder imagem tradicional de Deus:onipotente, onisciente, infinitamente bondoso e assim por diante.Ainda que nosso universo tenha sido causado por um ser inteligente,esse ser poderia ser terrivelmente incompetente e falvel, capaz decomprometer a tarefa cosmognica gerando uma criao absoluta-mente medocre. claro que os religiosos ortodoxos sempre poderoresponder a uma hiptese como a de Linde dizendo: Tudo bem, masquem foi que criou o hacker conhecedor de fsica? Vamos esperar queno sejam todos hackers.

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  • 2UM PANORAMA FILOSFICO

    O enigma no existe.

    LUDWIG WITTGENSTEIN, Tractatus

    Logico-Philosophicus, proposio 6.5

    O cerne do mistrio da existncia, como eu j disse, resumidona pergunta Por que existe algo e no apenas o nada? WilliamJames considerava essa a questo mais sombria de toda a

    filosofia.1 O astrofsico britnico Sir Bernard Lovell observou que sedeter nela pode estraalhar a mente de um indivduo. 2 (De fato ex-istem muitos pacientes psiquitricos obcecados por essa pergunta.) Ar-thur Lovejoy, fundador do campo acadmico conhecido como histriadas ideias, observou que a tentativa de resposta constitui um dosempreendimentos mais grandiosos do intelecto humano.3 Como cos-tuma acontecer com assuntos profundamente incompreensveis, ela doportunidade pilhria. Dcadas atrs, quando fiz a pergunta aofilsofo americano Arthur Danto, ele respondeu, com fingida irritao:Quem disse que no h apenas o nada? (Como logo veremos, essa

  • resposta no apenas uma piada.) Melhor ainda foi a resposta dada porSidney Morgenbesser, falecido professor da Universidade de Columbiaconhecido por suas brincadeiras. Professor Morgenbesser, por que ex-iste algo e no apenas o nada?, perguntou-lhe certo dia um aluno. E eleretrucou: Ah, ainda que houvesse o nada, voc no ficaria satisfeito!

    Mas no podemos fazer pouco da pergunta e deix-la para l. Cadaum de ns, dizia Martin Heidegger, est imbudo de sua foraoculta:4

    A questo ronda em momentos de grande desespero, quando as coisas tendem aperder seu peso e o significado de tudo fica obscurecido. Ela est presente emmomentos de jbilo, quando tudo ao nosso redor transfigurado e pareceapresentar-se pela primeira vez. (...) A pergunta surge para ns nos momentosde tdio, quando estamos equidistantes do desespero e da alegria e tudo aonosso redor parece to irremediavelmente rotineiro que no ligamos mais se al-guma coisa ou deixa de ser.

    Ignorar essa questo um sintoma de deficincia mental ou pelomenos o que afirmava o filsofo Arthur Schopenhauer. Quantomenos um homem dotado do ponto de vista intelectual, menos intrig-ante e misteriosa parece-lhe a prpria existncia,5 escreveu Schopen-hauer. O que situa o homem acima das outras criaturas o fato de terconscincia de sua finitude; a perspectiva da morte torna concebvel onada, o choque do no ser. Se o meu ser, o microcosmo,

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  • ontologicamente precrio, talvez o mesmo se d com o macrocosmo, ouniverso como um todo. Em termos conceituais, a pergunta Por que omundo existe? rima com Por que eu existo? So esses, na viso de JohnUpdike, os dois grandes mistrios existenciais. E, se voc for um sol-ipsista ou seja, se considerar, como o jovem Wittgenstein, que eusou o meu mundo , os dois mistrios fundem-se num s.

    * * *

    TRATANDO-SE DE UMA pergunta supostamente atemporal e universal, estranho que at a era moderna ningum tenha questionado de formaexplcita Por que existe algo e no apenas o nada? Talvez seja a ideia donada o que torna a pergunta de fato moderna. As culturas pr-mod-ernas tm os mitos da criao para explicar a origem do universo, masesses mitos nunca comeam do nada puro e simples, pois sempre pres-supem seres ou coisas primordiais dos quais surgiu a realidade. Nummito escandinavo que data de cerca de 1200 da era crist, por exemplo,o mundo comeou quando uma regio primeva de fogo derreteu umaregio primeva de gelo, dando origem a gotas lquidas que ganharamvida e tomaram a forma de um sbio gigante chamado Ymer e de umavaca chamada Audhumla e da acabaria brotando o restante da vidatal como os vikings a conheciam. De acordo com outro mito da criao,esse um tanto mais econmico, o dos bantos africanos, todo o contedodo universo o Sol, as estrelas, a terra, o mar, os animais, os peixes, aespcie humana literalmente vomitado pela boca de um ser naus-eado chamado Bumba. So raras, mas existem culturas que no

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  • apresentam nenhum mito para a criao do mundo. Uma delas a dospirarr, uma tribo amaznica de divertido exotismo. Quando question-ados por antroplogos sobre o que havia antes do mundo, os membrosda tribo todas as vezes respondem: Sempre foi assim.6

    A uma teoria sobre a origem do universo d-se o nome cosmogonia,formado pelas palavras gregas kosmos, que significa universo, e go-nos, produzir (a mesma raiz de gnada). Os gregos antigos foram ospioneiros da cosmogonia racional, em contraposio ao tipo mito-potico exemplificado pelos mitos da criao. Contudo, os gregosnunca perguntaram por que h um mundo e no apenas o nada. Suascosmogonias sempre envolviam algum material inicial, em geralbastante confuso. Eles sustentavam que o mundo natural surgiuquando se imps ordem a essa confuso primitiva: quando o Caostransformou-se em Cosmos. ( interessante notar que as palavras cos-mos e cosmtico tm a mesma raiz, a palavra grega que designa ad-orno ou ordem.) Quanto a como esse caos original devia ser, osfilsofos gregos tinham vrias suposies. Para Tales, ele era aquoso,uma espcie de oceano original. Para Herclito, era fogo. Para Anaxim-andro, era algo mais abstrato, um material indeterminado chamado oIlimitado. Para Plato e Aristteles, era um substrato sem forma quehoje poderamos considerar um conceito pr-cientfico de espao. Aosgregos no preocupava muito de onde vinha essa matria original.Simplesmente se partia do princpio de que ela era eterna. Fosse o quefosse, com certeza no era nada essa simples ideia era inconcebvelpara os gregos.

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  • O nada tambm era estranho tradio abramica. No Gnesis,Deus no cria o mundo do nada, mas a partir de um caos de terra e guasem forma e vazio tohu bohu, no original hebraico. Entretanto, noincio da era crist surgiu uma nova forma de pensar. A ideia de queDeus precisava de algo material para forjar um mundo parecia repres-entar um limite para seus poderes criativos que deveriam ser infinitos.Foi assim que, por volta do segundo ou terceiro sculo de nossa era, ospais da Igreja se saram com uma nova e radical cosmogonia. Elesafirmavam que o mundo foi criado apenas pela palavra de Deus, semnecessidade de nenhuma matria preexistente. Essa doutrina da cri-ao ex nihilo mais tarde iria se tornar parte da teologia islmica, apare-cendo no argumento kalam a respeito da existncia de Deus. Ela tam-bm entrou para o pensamento judaico medieval. Em sua leitura dapassagem inicial do livro do Gnesis, o filsofo judeu Maimnidesafirmava que Deus criou o mundo do nada.

    Dizer que Deus criou o mundo do nada no significa elevar onada categoria de entidade, equiparvel ao divino mas apenas queDeus no criou o mundo a partir de alguma coisa. Era o que sustentavaSo Toms de Aquino, entre outros telogos cristos. Ainda assim, adoutrina da criao ex nihilo parecia corroborar a ideia do nada comouma autntica possibilidade ontolgica. Tornava conceitualmente pos-svel perguntar por que existe um mundo e no apenas o nada.

    Alguns sculos depois, algum enfim fez a pergunta um cortesoalemo vaidoso e manipulador que tambm um dos maiores intelec-tos de todos os tempos: Gottfried Wilhelm Leibniz. Corria o ano de1714. Leibniz, ento com 68 anos, chegava ao fim de uma longa carreira,

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  • de uma produtividade excepcional. Ele inventara o clculo ao mesmotempo que Newton o fizera, mas de maneira totalmente independente.Sozinho, tinha revolucionado a cincia da lgica. Criara uma metafsicafantstica baseada numa infinidade de unidades com caractersticas dealmas chamadas mnadas e no axioma que viria a ser alvo de cruelzombaria de Voltaire em Cndido de que este o melhor dos mun-dos possveis. Apesar da fama como filsofo-cientista, Leibniz foideixado em Hanover quando seu mecenas real, o prncipe-eleitor Ge-org Ludwig, seguiu para a Gr-Bretanha para ser coroado rei George I.Leibniz j no ia bem de sade; morreria dois anos depois, expirando(segundo seu secretrio) com uma grande nuvem de gs nocivo sendoliberada de seu corpo.

    Foi nessas circunstncias adversas que Leibniz produziu seusderradeiros escritos filosficos, entre eles um ensaio intitulado Princ-pios da natureza e da graa, fundados na razo. Nesse texto, ele enun-ciava seu Princpio da Razo Suficiente, segundo o qual existe umaexplicao para todo fato, uma resposta para toda pergunta. Enun-ciado este princpio, escrevia Leibniz, a primeira pergunta que temoso direito de fazer : Por que existe algo e no apenas o nada?7

    Para Leibniz, a resposta era fcil. A bem da prpria carreira, elesempre fingira curvar-se ortodoxia religiosa. O motivo da existnciado mundo, afirmava ento, era Deus, que o criou por livre escolha, mo-tivado por sua infinita bondade.

    Mas qual seria a explicao para a existncia do prprio Deus? Paraessa dvida, Leibniz tambm tinha uma resposta. Ao contrrio do uni-verso, que existe de maneira contingencial, Deus um ser necessrio.

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  • Contm em Si mesmo a razo de Sua prpria existncia. Sua no ex-istncia , do ponto de vista lgico, impossvel.

    Desse modo, mal havia sido enunciada, a pergunta Por que existealgo e no apenas o nada? j era descartada. O universo existe por causade Deus. E Deus existe por causa de Deus. S a Suprema Divindade, de-clarava Leibniz, capaz de dar a derradeira soluo do mistrio daexistncia.

    Entretanto, a soluo leibniziana no prevaleceu por muito tempo.No sculo XVIII, David Hume e Immanuel Kant filsofos que dis-cordavam um do outro na maioria das questes criticaram o conceitode ser necessrio, considerando-o um embuste ontolgico. Com cer-teza h entidades cuja existncia logicamente impossvel por exem-plo, um quadrado circular. Mas, por uma questo de simples lgica,nenhuma existncia, sustentavam Hume e Kant, garantida. Tudoaquilo que podemos considerar existente tambm podemos considerarno existente, escreveu Hume. No existe, portanto, nenhum ser cujano existncia signifique uma contradio8 nem mesmo Deus.

    Mas, se Deus no existe necessariamente, apresenta-se uma possib-ilidade metafsica de todo nova: a possibilidade do nada absoluto nemmundo, nem Deus, nem coisa alguma. De forma curiosa, contudo, tantoHume quanto Kant no levaram a srio a pergunta Por que existe algo eno apenas o nada? Para Hume, qualquer resposta a essa pergunta seriamero sofisma e iluso, pois jamais poderia se basear em nossa exper-incia. Para Kant, uma tentativa de explicar a totalidade do ser inev-itavelmente acarretaria uma extenso ilegtima dos conceitos de quenos valemos para estruturar o mundo de nossa experincia conceitos

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  • como causalidade e tempo a uma realidade que transcende essemundo, a realidade das coisas em si mesmas. Isso, segundo ele, slevaria a erros e incoerncias.

    Possivelmente refreados por essas crticas humianas e kantianas, osfilsofos em grande medida passariam a evitar pergunta Por que existealgo e no apenas o nada? O grande pessimista Schopenhauer, paraquem o mistrio da existncia seria a roda oscilatria que mantm emmovimento o relgio da metafsica,9 nem por isso deixava de consid-erar tolos,10 presunosos e charlates os que pretendiam resolv-lo. O romntico alemo Friedrich Schelling afirmava que a principalfuno de toda a filosofia a soluo do problema da existncia domundo.11 Contudo, ele no demoraria a concluir que era impossvelchegar a uma explicao racional da existncia; o mximo que se po-deria dizer, segundo ele, era que o mundo surgiu do abismo do nadaeterno num salto incompreensvel. Hegel deitou no papel muita prosaobscura sobre o desaparecimento do ser no nada e o desaparecimentodo nada no ser,12 mas suas manobras dialticas seriam descartadaspelo irnico pensador dinamarqus Sren Kierkegaard como poucomais que explicaes de vendedor de especiarias.13

    No incio do sculo XX houve um modesto retorno do interessepelo mistrio da existncia, graas sobretudo ao filsofo francs HenriBergson. Quero saber por que o universo existe,14 declarou Bergsonnum livro publicado em 1907, A evoluo criadora. Para ele, toda a ex-istncia matria, conscincia, o prprio Deus era uma conquistasobre o nada. No entanto, depois de muito refletir ele chegou con-cluso de que essa conquista no era assim to milagrosa. Toda a

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  • questo do algo versus o nada decorria de uma iluso, conforme veio aacreditar: a iluso de que seria possvel no haver absolutamente nada.Com uma srie de argumentos duvidosos, Bergson julgava estar com-provando que a ideia de um nada absoluto era em si mesma to contra-ditria quanto a ideia de um quadrado redondo. Como o nada era umapseudoideia, ele concluiu, a pergunta Por que existe algo e no apenas onada? era uma pseudopergunta.

    Essa resposta desmancha-prazeres certamente no impressionou aMartin Heidegger, para quem o nada era muito real, uma espcie defora de negao que representava, para o reino do ser, a ameaa daaniquilao. No incio de uma srie de conferncias proferidas em 1935na Universidade de Freiburg onde havia sido nomeado reitor depoisde aderir ao nacional-socialismo de Hitler , Heidegger declarou quepor que existe o ser e no apenas o nada? a mais profunda,15abrangente e fundamental de todas as perguntas.

    E Heidegger avanou com essa questo ao longo das palestras? Nomuito. Ele enveredou por seu pthos existencial. Improvisou ex-plicaes etimolgicas amadoras, enumerando palavras gregas, latinase snscritas relacionadas a Sein, a palavra alem que designa ser.Entusiasmou-se ao falar sobre as virtudes poticas dos pr-socrticos edos trgicos gregos. Na concluso da ltima conferncia, Heideggerobservou que ser capaz de fazer uma pergunta significa ser capaz deesperar, at mesmo a vida inteira16 o que deve ter levado as pessoasda plateia que esperavam ao menos o palpite de uma resposta a assentirdesanimadas, balanando a cabea.

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  • Heidegger foi, sem sombra de dvida, o filsofo mais influente dosculo XX na Europa continental. Contudo, no mundo anglfono foiLudwig Wittgenstein quem prevaleceu. Wittgenstein e Heidegger nas-ceram no mesmo ano (1889) e tinham temperamentos quase opostos:Wittgenstein era corajoso e asctico; Heidegger, traioeiro e vaidoso.Mas os dois se sentiam igualmente seduzidos pelo mistrio da existn-cia. No a maneira como as coisas esto no mundo que mstica, maso fato de ele existir, afirmou Wittgenstein numa das mximas lapid-ares a de nmero 6.44, para ser preciso da nica obra que publicouem vida, Tractatus Logico-Philosophicus. Alguns anos antes, em suasanotaes de quando era soldado do exrcito austraco na PrimeiraGuerra Mundial, Wittgenstein escreveu, a 26 de outubro de 1916: Doponto de vista esttico, o milagre que o mundo exista.17 (Mais tardenesse mesmo dia, ele tambm registraria: A vida sria, a arte alegre num momento em que combatia na frente russa.) SegundoWittgenstein, o assombro e a admirao com a existncia do mundo fo-ram uma das trs experincias que lhe permitiram centrar sua menteem valores ticos. (As duas outras foram o sentimento de absoluta se-gurana e a experincia da culpa.) Apesar disso, como acontece com to-das as questes realmente importantes os valores ticos, o signific-ado da vida e da morte , seria intil tentar explicar o milagre es-ttico da existncia do mundo; a tentativa nos levaria, de acordo comWittgenstein, alm dos limites da linguagem, enveredando pelo reinodo indizvel. Embora tivesse profundo respeito pela necessidade deperguntar Por que existe algo e no apenas o nada?, em ltima anlise

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  • ele considerava a pergunta sem sentido. Como diria de forma incisivana mxima 6.5 do Tractatus, O enigma no existe.

    Por mais inefvel que pudesse ser para Wittgenstein, o mistrio daexistncia no deixava de assombr-lo, imbuindo-o de certo sentido deiluminao espiritual. Muitos filsofos britnicos e americanos por eleinfluenciados, por outro lado, consideravam-no uma total perda detempo. Bem caracterstica desse desinteresse era a atitude de A. J.Freddy Ayer, o paladino britnico do positivismo lgico, inimigojurado da metafsica e autodeclarado herdeiro filosfico de DavidHume. Num programa de rdio transmitido pela BBC em 1949, Ayerdebateu a existncia de Deus com Frederick Copleston, padre jesuta ehistoriador da filosofia. Grande parte do debate entre os dois girou emtorno da questo de saber se existe algo e no apenas o nada. Para opadre Copleston, a pergunta era uma abertura para a transcendncia,uma maneira de constatar que a existncia de Deus vem a ser a su-prema explicao ontolgica dos fenmenos.18 Para Ayer, seuoponente ateu, no passava de um disparate sem lgica.

    Vamos supor uma pergunta do tipo De onde vm todas ascoisas?, disse Ayer. Seria perfeitamente significativo questionar issoem relao a qualquer acontecimento especfico. Perguntar de onde eleveio querer uma descrio de algum acontecimento anterior a ele.Porm, se generalizarmos essa pergunta, ela se torna sem sentido.Estaremos ento questionando qual o acontecimento anterior a todosos outros. Mas evidente que nenhum acontecimento pode ser anteri-or a todos os acontecimentos. Por fazer parte da categoria de todos os

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  • acontecimentos, ele deve ser includo nela, e portanto no pode ser an-terior.19

    Wittgenstein, que ouviu esse programa de rdio, diria mais tarde aum amigo que achava o raciocnio de Ayer incrivelmente superfi-cial.20 Ainda assim, o debate foi considerado to equilibrado que umarevanche televisiva foi marcada para alguns anos depois. No entanto,serviram tanto usque a Ayer e Copleston enquanto um problema tc-nico precisava ser resolvido que, quando o debate foi retomado, os doisno conseguiam dizer coisa com coisa.

    A discordncia entre Ayer e Copleston a respeito do valor da per-gunta Por que existe algo e no apenas o nada? se resumia no fim dascontas discusso sobre a prpria natureza da filosofia. E a grandemaioria dos filsofos, pelo menos nos pases de lngua inglesa, se alin-hava com Ayer. Rezava a ortodoxia que existiam dois tipos de ver-dades: as lgicas e as empricas. As verdades lgicas dependiam apenasdo significado das palavras. As necessidades por elas expressas, taiscomo Os solteiros no so casados, eram apenas necessidades verbais.Portanto, as verdades lgicas nada podiam explicar sobre a realidade.As verdades empricas, por outro lado, dependiam das provas forneci-das pelos sentidos. Eram terreno da investigao cientfica. E em geralse admitia que a questo de por que o mundo existe estava fora do al-cance da cincia. Afinal de contas, uma explicao cientfica poderiaabarcar um pedao da realidade somente em funo dos outros ped-aos; jamais seria capaz de dar conta da realidade como um todo. Dessemodo, a existncia do mundo s podia ser um fato bruto. Bertrand

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  • Russell assim resumia o consenso filosfico: Devo dizer que o uni-verso apenas est a, e isso tudo.21

    Na maioria dos casos, a cincia concordava. O ponto de vista do fatobruto a respeito da existncia dos mais confortveis se partirmos doprincpio de que o universo sempre esteve a. E era, com efeito, o queacreditavam quase todos os grandes cientistas da era moderna, entreeles Coprnico, Galileu e Newton. Einstein estava convencido de que ouniverso era no s eterno mas tambm imutvel de uma forma geral.Assim, em 1917, quando aplicou sua teoria geral da relatividade aoespao-tempo como um todo, ficou perplexo ao constatar que suasequaes indicavam algo radicalmente diferente: o universo deve estarse expandindo ou se contraindo. Isso lhe pareceu bizarro, ento eleacrescentou sua teoria um fator impondervel para abrir espao paraum universo que fosse ao mesmo tempo eterno e imutvel.

    Foi um padre que teve coragem de levar a relatividade sua con-cluso lgica. Em 1927, Georges Lematre, da Universidade de Louvain,na Blgica, desenvolveu um modelo einsteiniano no qual o universo seexpandia. Desenvolvendo um raciocnio retrospectivo, o padreLematre postulava que em algum momento decisivo do passado todo ouniverso deve ter se originado de um tomo primordial de energia in-finitamente concentrada. Dois anos depois, seu modelo de universo emexpanso seria confirmado pelo astrnomo americano Edwin Hubble,que estabeleceu a partir de seus trabalhos no Observatrio de MountWilson, na Califrnia, que todas as galxias ao nosso redor de fato es-tavam recuando. Tanto os dados tericos quanto os empricos

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  • apontavam na mesma direo: o universo deve ter tido um incio ab-rupto no tempo.

    Os eclesisticos comemoraram. Acreditavam que havia cado emseu colo a comprovao cientfica do relato bblico da criao. Abrindouma conferncia no Vaticano em 1951, o papa Pio XII declarou que essanova teoria das origens csmicas dava testemunho do Fiat lux primor-dial pronunciado no momento em que, juntamente com a matria,emanou do nada um mar de luz e radiao (...) Desse modo, a criao sedeu no tempo. Portanto existe um criador, e portanto Deus existe!22

    Os que se encontravam na outra extremidade ideolgica rangeramos dentes em especial os marxistas. parte sua aura religiosa, a novateoria ia de encontro sua convico sobre a infinitude e a eternidadeda matria, um dos axiomas do materialismo dialtico de Lnin. Assim,foi desprezada por ser idealista. O fsico marxista David Bohm acu-sou os autores da teoria de cientistas que na verdade traem a cincia,descartando fatos cientficos para chegar a concluses convenientes Igreja Catlica.23 Os ateus no marxistas tambm se mostraram res-istentes. Certos cientistas mais jovens ficaram to preocupados comessas tendncias teolgicas que resolveram simplesmente bloquear suafonte cosmolgica,24 comentou o astrnomo alemo Otto Heckmann,proeminente investigador da expanso csmica. O decano da profisso,Sir Arthur Eddington, escreveu que a ideia de um incio me provocarepulsa (...) Eu no consigo acreditar que a atual ordem das coisastenha comeado com uma exploso (...) o Universo em expanso umaideia absurda (...) inacreditvel (...) no me entusiasma.25

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  • At mesmo certos cientistas de convices religiosas no se sentiam vontade. O cosmologista Sir Fred Hoyle considerava que uma ex-ploso era uma maneira indigna de dar incio ao mundo, mais ou menoscomo uma garota saindo de dentro de um bolo numa festa.26 Numaentrevista BBC na dcada de 1950, Hoyle referiu-se, com sarcasmo, aessa hipottica origem como o Big Bang. O termo pegou.

    Pouco antes de sua morte em 1955, Einstein superou seus escrpu-los metafsicos a respeito do Big Bang. Considerou que sua tentativaanterior de fugir ao problema com uma soluo terica ad hoc con-stitura a maior mancada da minha carreira. Quanto a Hoyle e os de-mais cticos, acabaram entregando os pontos em 1965, quando doiscientistas do Bell Labs em Nova Jersey detectaram por acidente umleve zumbido de micro-ondas que acabou se revelando o eco do BigBang. (Inicialmente, os cientistas acharam que o zumbido era causadopor fezes de pombos na antena.) Se sua televiso estiver sintonizadaentre duas estaes, cerca de 10% da esttica cheia de chuviscos queaparece causada por ftons deixados como refugo do nascimento douniverso. Poderia haver maior prova da realidade do Big Bang? D paraver na televiso!

    Haja ou no um criador do universo, a descoberta de que ele passoua existir num momento especfico do passado 13,7 bilhes de anos at-rs, segundo os mais recentes clculos cosmolgicos parece relegarao esquecimento a ideia de que ele seria ontologicamente autossufi-ciente. razovel pressupor que qualquer coisa que exista por sua pr-pria natureza deve ser eterna e imperecvel. Agora o universo no pare-cia mais ser qualquer uma dessas duas coisas. Assim como passou a

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  • existir com o Big Bang inicial, expandindo-se e evoluindo at a formaatual, ele tambm poderia vir a desaparecer num futuro distante comum Big Crunch, um grande esmigalhamento. (Uma das questes dacosmologia hoje saber se o destino final do universo ser um grandeesmigalhamento, um grande congelamento ou um grande colapso.) Talcomo nossas vidas, a vida do universo pode ser um mero intervaloentre dois nadas.

    Desse modo, a descoberta do Big Bang tornou muito mais difcilevitar a pergunta Por que existe algo e no apenas o nada? Se o uni-verso no existe desde sempre, a cincia se defronta com a necessidadede uma explicao para sua existncia,27 observou Arno Penzias, quecompartilhou um Prmio Nobel por detectar a fosforescncia do BigBang. No s o porqu continuava sem resposta, como agora vinha a seracrescido da dvida de como: Como possvel que algo tenha surgido donada? Alm de renovar as esperanas dos apologistas da religio, ahiptese do Big Bang deu incio a uma nova investigao puramentecientfica sobre as origens primeiras do universo. E as possibilidades deexplicao pareciam se multiplicar. Afinal, dois grandes desdobramen-tos revolucionrios se verificaram na fsica no sculo XX. Um deles, ateoria da relatividade de Einstein, levou concluso de que o universoteve um incio no tempo. O outro, a mecnica quntica, teve con-sequncias ainda mais radicais e lanou dvidas sobre a prpria ideiade causa e efeito. Segundo a teoria quntica, os acontecimentos nonvel micro se do de maneira aleatria, violando o princpio clssicode causalidade. Isso abria a possibilidade conceitual de que a prpriasemente do universo tivesse surgido sem uma causa, fosse ela

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  • sobrenatural ou de outra natureza. Talvez o mundo tivesse surgido es-pontaneamente do nada absoluto. Toda a existncia poderia ser at-ribuda a uma flutuao aleatria no vazio, uma abertura quntica detnel do nada para o ser. A maneira como isso poderia ter acontecidotransformou-se em territrio de investigao de um pequeno mas influ-ente grupo de fsicos s vezes chamados de tericos do nada. Comuma mistura de audcia metafsica e ingenuidade, esses fsicos entreeles Stephen Hawking consideram que talvez sejam capazes de re-solver um mistrio at agora considerado intocvel pela cincia.

    * * *

    TALVEZ INSPIRADOS POR esse fermento cientfico, os filsofos tambmtm demonstrado maior ousadia ontolgica. O positivismo lgico, quedescartara a pergunta Por que existe algo e no apenas o nada?,considerando-a absurda, estava morto e enterrado na dcada de 1960,vtima da prpria incapacidade de estabelecer uma distino vivelentre sentido e falta de sentido. Em seu rastro, a metafsica o projetode caracterizar a realidade como um todo revivida. At no mundoanglo-saxnico, os filsofos analticos j no se constrangem em en-frentar questes metafsicas. O mais audacioso dos muitos filsofosprofissionais que investigaram o mistrio da existncia nas ltimasdcadas foi Robert Nozick, da Universidade de Harvard, que morreuaos 63 anos em 2002. Embora seja mais conhecido como autor do cls-sico libertrio Anarquia, Estado e utopia, Nozick era obcecado com apergunta Por que existe algo e no apenas o nada?, tendo reservado um

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  • captulo de cinquenta pginas de um livro posterior, Philosophical Ex-planations [Explicaes filosficas], s vrias possibilidades de resposta algumas bem surpreendentes. Ele convidava o leitor a imaginar onada como uma fora sugando as coisas para a no existncia.28 Pos-tulava um princpio da fecundidade que sanciona a existncia simul-tnea de todos os mundos possveis. Falava de uma espcie de per-cepo mstica dos fundamentos da realidade. Quanto aos colegas quetalvez achassem um tanto estranhas suas tentativas de responder su-prema questo, Nozick respondia sem rodeios: Algum que proponhauma resposta no estranha estar demonstrando que no entendeu apergunta.29

    * * *

    HOJE, A PERGUNTA Por que existe algo e no apenas o nada? continua di-vidindo os pensadores em trs grupos. Os otimistas sustentam quetem de haver uma razo para a existncia do mundo e que talvez se-jamos capazes de descobri-la. Os pessimistas consideram que poderiahaver uma razo para a existncia do mundo, mas que nunca sabere-mos ao certo talvez por vermos pouco demais da realidade para terconscincia da razo por trs dela, ou porque qualquer razo desse tipodeve estar alm dos limites intelectuais do homem, que foi equipadopela natureza para a sobrevivncia, no para desvendar a natureza n-tima do cosmos. Por fim, os rejeicionistas insistem em acreditar que

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  • no pode haver uma razo para a existncia do mundo e que, portanto,a prpria questo desprovida de sentido.

    No preciso ser filsofo ou cientista para aderir a um desses cam-pos. Todo mundo pode. Marcel Proust, por exemplo, aparentemente seposicionava entre os pessimistas. O narrador de seu romance Em buscado tempo perdido, meditando sobre a diviso que o caso Dreyfus provo-cara na sociedade francesa, observa que a sabedoria poltica talvez notenha fora suficiente para pr fim aos confrontos civis, assim como,na filosofia, a pura lgica impotente para enfrentar o problema daexistncia.30

    Mas suponhamos que voc seja um otimista. Qual a abordagemmais promissora da questo do mistrio da existncia? Seria a abord-agem testa tradicional, que encara uma entidade divina como causanecessria ou suporte de todo ser? Seria a abordagem cientfica, a qualrecorre a ideias da cosmologia quntica para explicar por que um uni-verso necessariamente teria de surgir do vazio? Ou uma abordagempuramente filosfica, que tenta deduzir uma razo para a existncia domundo a partir de consideraes abstratas de valor ou da pura esimples impossibilidade do nada? Ou ainda uma abordagem de ori-entao mstica, que procura atender ao anseio de uma lgica csmicaatravs da iluminao?

    Todas essas abordagens tm seus defensores no mundo de hoje. primeira vista, todas parecem dignas de crdito. Na verdade, s mesmopensando no mistrio da existncia de todos os ngulos disponveis que teremos alguma esperana de resolv-lo. Aos que consideram a

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  • pergunta Por que existe algo e no apenas o nada? impossvel de ser re-spondida ou apenas incoerente, caberia assinalar que o progresso in-telectual muitas vezes consiste em depurar exatamente esse tipo dequesto, de maneiras que eram impensveis aos que primeiro aenunciaram. Veja-se por exemplo outra pergunta, feita h 2.500 anospor Tales e seus colegas pr-socrticos: De que so feitas as coisas? Po-deria parecer ingnuo e at infantil fazer uma pergunta to abrangentee genrica. Entretanto, como observa o filsofo Timothy Williamson,de Oxford, os filsofos pr-socrticos faziam a uma das melhores per-guntas j proferidas, uma pergunta que nos conduziu, com muito es-foro, a boa parte da cincia moderna.31 T-la descartado desde o in-cio como algo irrespondvel teria sido uma rendio fraca e desne-cessria ao desespero, ao filistinismo, covardia ou indolncia.

    No entanto, o mistrio da existncia pode parecer a mais intil des-sas questes. Como dizia William James, do nada ao ser no existeuma ponte lgica.32 Mas ser que possvel sab-lo antes de qualquertentativa de lanar essa ponte? Outras pontes aparentemente imposs-veis chegaram a ser construdas: da no vida vida (graas biologiamolecular), do finito ao infinito (graas teoria matemtica dos con-juntos). Hoje, os que investigam o problema da conscincia tentam es-tabelecer uma ponte entre a mente e a matria, e os que tentam unificara fsica procuram lanar uma ponte entre a matria e a matemtica.Com o estabelecimento desses elos conceituais, talvez possamoscomear a distinguir os tnues contornos de uma ponte entre o Nada eo Algo (ou talvez um tnel, se os tericos qunticos estiverem certos).Cabe esperar apenas que no seja afinal uma ponte dos asnos.

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  • * * *

    OS MOTIVOS PARA se tentar entender o mistrio da existncia no soapenas intelectuais. So tambm de ordem emocional. Nossas emoescostumam ter objetos; so emoes a respeito de alguma coisa. Estoutriste por causa da morte do meu co. Voc est esfuziante porque seutime chegou final do campeonato. Otelo est furioso com a infidelid-ade de Desdmona. Contudo, certos estados emocionais parecem flu-tuar livremente, sem objetos determinados. O temor de Kierkegaard,por exemplo, no se voltava para nada, ou se voltava para tudo. Estadosde nimo como depresso e euforia, se que tm algum objeto, pare-cem estar voltados para a prpria existncia. Heidegger sustentava que,no nvel mais profundo, isso se aplica a todas as emoes.

    Que tipo de emoo seria adequado quando o objeto dessa emoo o mundo como um todo?

    Diante dessa questo, as pessoas se dividem em duas categorias: asque sorriem para a existncia e as que franzem a testa. Entre estes,destaca-se Arthur Schopenhauer, cujo pessimismo filosfico influen-ciou pensadores como Tolstoi, Wittgenstein e Freud. Se nos espan-tamos com a existncia do mundo, dizia Schopenhauer, nosso espanto uma questo de desalento e angstia. Por isso a filosofia, como aabertura de Don Giovanni, comea com um acorde em tom menor.33No vivemos no melhor dos mundos, prosseguia ele, mas no pior. A noexistncia no s concebvel, mas at prefervel existncia. Porqu? Na metafsica de Schopenhauer, todo o universo uma grande

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  • manifestao de luta, uma grande vontade. Todos ns, com nossasvontades aparentemente individuais, somos apenas pedacinhos dessavontade csmica. At a natureza inanimada a fora da gravidade, aimpenetrabilidade da matria participa disso. E a vontade, paraSchopenhauer, em sua essncia sofrimento: nenhum objetivo, umavez alcanado, capaz de gerar satisfao; a vontade ou ser frustrada egerar infelicidade ou ser saciada e provocar tdio. Schopenhauer foio primeiro pensador a importar esse ponto de vista budista para opensamento ocidental. A nica maneira de sair do sofrimento, pensavaele, eliminar a vontade e assim entrar num estado de nirvana o maisprximo que podemos chegar da no existncia: Nenhuma vontade:nenhuma ideia, nenhum mundo. Diante de ns com certeza h apenaso nada. Cabe lembrar que Schopenhauer, f dos prazeres da mesa e dacama, brigo, ganancioso e obcecado com a prpria fama, no chegavaexatamente a praticar o ascetismo pessimista que pregava. Alm disso,tinha um poodle chamado Atm palavra snscrita que quer dizeralma do mundo.

    No ltimo sculo, houve uma predominncia de testas franzidas la Schopenhauer, pelo menos no universo literrio. Uma concentraoparticularmente pesada podia ser encontrada nos bulevares de Paris.Veja-se por exemplo E.M. Cioran, o escritor romeno que se instalou nacapital francesa e se reinventou como flneur existencialista. Nemmesmo a beleza da cidade que adotou dilua seu desespero niilista.Quando entendemos que nada , escreveu Cioran, que as coisas se-quer merecem a condio de aparncias, no precisamos mais ser sal-vos; estamos salvos, e infelizes para sempre.34 Samuel Beckett, outro

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  • exilado em Paris, tambm se sentia atormentado pelo vazio do ser. Elequeria saber por que o cosmos indiferente a ns. Por que somos umaparte to insignificante dele? Por que que existe um mundo, afinal?

    Em seus momentos de angstia, Jean-Paul Sartre tambm semostrava ressentido com a existncia. Roquentin, o heri autobio-grfico de seu romance A nusea, sentia-se sufocado de raiva35 comas monstruosas manifestaes de ser grosseiro e absurdo que o cer-cavam ao sentar-se embaixo de uma castanheira na aldeia fictcia deBouville (cidade de lama, em francs). A simples contingncia detudo isso parece-lhe no s absurda, mas obscena. No dava sequerpara imaginar de onde vinha tudo aquilo ou de que maneira um mundopassara a existir no lugar do nada, pondera Roquentin, sentindo-secompelido a gritar Nojeira! diante das toneladas e toneladas de ex-istncia, para em seguida cair num enorme cansao.

    As figuras literrias americanas tendem a ostentar seu pessimismoontolgico de maneira mais alegre. O dramaturgo Tennessee Williams,por exemplo, limitava-se a observar que um vazio muitssimo mel-hor do que certas coisas que a natureza pe no lugar dele,36 e entotomava outro usque. John Updike canalizava sua ambivalncia a re-speito do Ser para seu alter ego fictcio, o romancista judeu HenryBech, pripico, propenso ao desespero e sofrendo de bloqueio criativo.Numa das histrias, Bech convidado a fazer uma conferncia numcolgio feminino do Sul, onde o recebem como uma estrela da liter-atura. Num jantar em sua homenagem aps a palestra, ele passou osolhos pelo crculo de mulheres mastigando e viu seus corpos como osencararia um marciano ou um molusco: rolios talos de feixes de

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  • nervos estranhamente presos a um ponto de concentrao na cabea,salincia ssea cabeluda sustendo alguns gramas de geleia nos quais umtrilho de circuitos, em sua maioria mortos, guardavam informaes,codificavam operaes motoras e geravam um excesso de eletricidadeque pressionava o lado sem cabelos da cabea e vazava pelos orifcios,na forma de penosos rudos cheios de expectativa e uma dana simi-esca de rugas.37 Bech passa por uma epifania niilista: O vazio deviater sido deixado sossegado, ter sido poupado desse aborrecimento damatria, da vida e, pior ainda, da conscincia. Toda existncia, pensaele, no passa de um borro no nada. Todavia, em seus momentosmais ensolarados ou quando finge alegria durante a gravao de umaentrevista literria o personagem de Updike capaz de sorrir para oSer: Ele acreditava, j que esse gravador precisa saber, (...) na dignid-ade do inanimado, na complexidade do animado, na beleza das mul-heres e no senso comum dos homens.38 Em suma, Bech acreditavana benignidade de algo versus nada. O surto de otimismo ontolgicode Bech nos lembra uma famosa transcendentalista da Nova Inglaterrado sculo XIX, Margaret Fuller, que gostava de exclamar: Eu aceito ouniverso! (ao que o azedo Thomas Carlyle retrucava: melhormesmo!).

    Talvez a mais ressonante aceitao da benignidade do mundo noseja literria nem filosfica, mas musical. Ela nos apresentada porHaydn em seu oratrio A criao. De incio, h apenas o caos musical,uma mistura de harmonias estranhas e melodias fragmentrias. E entovem o momento criativo, quando Deus declara: Que se faa a luz! En-quanto os cantores respondem E se fez a luz, a orquestra e o coro

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  • comemoram o milagre com uma poderosa e prolongada exploso doacorde de d maior o exato oposto do sombrio acorde em tom men-or de Schopenhauer.

    Nossa atitude diante da existncia como um todo no deve serapenas uma questo de temperamento ou de estarmos ou no so-frendo do fgado, de termos dormido bem ou mal na noite anterior.Deveria ser suscetvel a uma avaliao racional. E s explorando a per-gunta Por que existe algo e no apenas o nada? que poderemosenxergar seu valor de um ponto de vista racional.

    Seria possvel, por exemplo, que o mundo exista precisamente porser, no geral, melhor que nada? Existem de fato filsofos que pensamassim. Eles se intitulam axiarquistas (a palavra vem da expressogrega o valor que manda!). Consideram que o cosmos pode ter pas-sado a existir numa exploso em resposta a uma necessidade de benig-nidade. Se estiverem certos, o mundo, assim como nossa existncianele, pode ser melhor do que nos parece. Precisamos estar atentos ssuas virtudes mais sutis, s harmonias ocultas e aos matizes.

    Outros sustentam que o triunfo do Ser sobre o Nada pode ter sidoum mero acaso. Afinal de contas, existem muitas maneiras de haverAlgo mundos em que tudo azul, mundos feitos de cream cheese eassim por diante , mas existe apenas um Nada. Presumindo-se que to-das as possveis realidades tiveram iguais oportunidades na loteria cs-mica, era muito provvel que um dos muitos Algos viesse a levar a mel-hor, e no o solitrio Nada. Se essa viso casual se revelasse pro-cedente, teramos de ter uma atitude um pouco mais humilde em re-lao existncia, pois, se a realidade resulta de uma loteria csmica,

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  • provvel que o mundo que saiu vencedor seja medocre: nem muitobom nem muito mau, nem muito arrumado nem muito confuso, nemmuito belo nem muito feio. Isso porque as possibilidades medocres socomuns, e as realmente excelentes ou terrveis, raras.

    Por outro lado, se a resposta para o enigma da existncia vier a sertesta ou quase testa vale dizer, se envolver algo parecido com umcriador , nossa atitude em relao ao mundo vai depender danatureza desse criador. As grandes religies monotestas afirmam queo mundo foi criado por um Deus benigno e todo-poderoso. Se isso forverdade, somos mais ou menos obrigados a encar-lo sob uma luz fa-vorvel, no obstante imperfeies fsicas como partculas elementaresredundantes e estrelas que implodem e imperfeies morais como ocncer infantil e o Holocausto. Entretanto, certas religies pregam umadoutrina diferente da criao. Os gnsticos, movimento hertico quesurgiu no incio da era crist, consideravam que o mundo material nofoi criado por uma deidade benevolente, mas por um demiurgo do mal.Assim, consideravam justo abominar a realidade material. (Uma in-teressante posio intermediria entre os cristos e os gnsticos podeser a minha: que o universo foi criado por um ser 100% malvolo, masapenas 80% eficiente.)

    De todas as possveis solues do mistrio da existncia, a mais es-timulante pode ser a descoberta de que, ao contrrio do que indicam asaparncias, o mundo causa sui: sua prpria causa. Essa possibilidadefoi aventada pela primeira vez por Spinoza, que conclua com ousadia(ainda que de forma um tanto confusa) que toda realidade consiste emuma nica substncia infinita. As coisas individuais, sejam fsicas ou

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  • mentais, no passam de modificaes temporrias dessa substncia,como ondas na superfcie do mar. Spinoza referia-se a essa substnciainfinita como Deus sive Natura: Deus ou Natureza. Deus no poderiaestar separado da natureza, ponderava, pois nesse caso cada um deleslimitaria o ser do outro. Desse modo, o mundo em si mesmo divino:eterno, infinito e causa de sua prpria existncia. , portanto, digno denosso temor e nossa venerao. Assim que o entendimento metafsicoleva ao amor intelectual da realidade a finalidade mais elevadapara os seres humanos, segundo Spinoza, e o mais prximo que po-demos chegar da imortalidade.

    A viso de Spinoza sobre o mundo como causa sui encantou AlbertEinstein. Em 1921, um rabino de Nova York perguntou-lhe se acred-itava em Deus. Acredito no Deus de Spinoza, respondeu, que se rev-ela na metdica harmonia do que existe, e no num Deus preocupadocom o destino e os atos dos seres humanos.39 A ideia de que o mundode certa forma tem a chave da prpria existncia e, portanto, de queesta necessria, e no acidental vai ao encontro do pensamento decertos fsicos com inclinaes metafsicas, como Sir Roger Penrose e ofalecido John Archibald Wheeler (que cunhou a expresso buraconegro). Chegou-se inclusive a conjecturar que a mente humana desem-penha um papel decisivo no mecanismo de autocausao. Embora se-jamos aparentemente uma parte insignificante do cosmos, nossa con-scincia que lhe confere realidade como um todo. Nessa hiptese, svezes designada como universo participatrio, a realidade uma es-piral causal autossuficiente: o mundo nos cria, e ns o criamos. Mais oumenos como a grande obra de Proust, que registra os avanos e

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  • sofrimentos de seu heri ao longo de milhares de pginas, para no fimdecidir escrever exatamente o romance que acabamos de ler.

    Esse tipo de fantasia prometeica somos ao mesmo tempo osautores do mundo e seu joguete! pode parecer boa demais para serverdade. Entretanto, a insistncia na pergunta Por que existe algo e noapenas o nada? fatalmente transforma nossos sentimentos a respeito domundo e de nosso lugar nele. O espanto que sua pura e simples existn-cia nos causa pode evoluir para um novo tipo de assombro medidaque comeamos a desvendar, ainda que apenas em linhas muito gerais,os motivos por trs de sua existncia. Nossa vaga angstia a respeito daprecariedade do ser pode dar lugar confiana num mundo que se rev-ela coerente, luminoso e intelectualmente seguro. Ou pode acabarcedendo ao terror csmico ao nos darmos conta de que todo esse es-petculo no passa de uma bolha numa sopa ontolgica, que pode setransformar em nada a qualquer momento, sem o menor aviso prvio. Enossa atual viso do possvel alcance do pensamento humano talvezabra caminho para uma nova humildade diante de seus limites ou umnovo encantamento com seus saltos e avanos ou um pouco das duascoisas. Podemos nos sentir como o matemtico Georg Cantor ao fazeruma profunda descoberta sobre o infinito. Estou vendo, mas noacredito, exclamou ele.40

    Antes de comearmos a mergulhar no mistrio da existncia,parece ser justo dar ao nada o que lhe de direito. Como escreveu odiplomata e filsofo alemo Max Scheler, aquele que, por assim dizer,no contemplou o abismo do Nada absoluto passar completamente ao

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  • largo do contedo essencialmente positivo da constatao de que existealgo e no apenas o nada.41

    Vamos, portanto, mergulhar por um breve momento nesse abismo,na plena certeza de que no voltaremos de mos vazias pois, comodiz o velho ditado, quem no arrisca no petisca.

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  • INTERLDIO

    A aritmtica do nada

    A matemtica tem um nome para o nada: zero. No deixa deser digno de nota que o radical de zero seja uma palavrahindu: sunya, que significa vazio ou vcuo. Foi entre os

    matemticos hindus que teve origem nosso conceito de zero.Para os gregos e os romanos, a prpria ideia do zero era inconce-

    bvel como poderia um nada ser alguma coisa? Carecendo de umsmbolo para o zero em seu sistema, eles no podiam se valer das vant-agens da notao posicional (aquela em que, por exemplo, 307 rep-resenta trs centenas, nenhuma dezena e sete unidades). Esse um dosmotivos pelos quais a multiplicao com numerais romanos uminferno.

    A ideia do vazio era conhecida dos matemticos indianos graas filosofia budista. Eles no tinham dificuldade com um smbolo abstratoque representasse o nada. Seu sistema de notao foi levado Europana Idade Mdia por eruditos rabes da nossos algarismos

  • arbicos. O sunya hindu evoluiu para o sifr rabe, que na lngua inglesatransparece nas palavras zero e cipher [cifra].

    Embora acolhessem o zero como dispositivo de notao, de incioos matemticos europeus mostraram-se cautelosos com o conceito portrs dele. O zero foi a princpio encarado antes como um sinal de pon-tuao do que como um nmero propriamente dito. Contudo, logo viriaa ganhar maior realidade. Curiosamente, o incremento do comrcioteve algo a ver com isso. Ao ser inventado o sistema de contabilidadepor partida dobrada por volta de 1340 na Itlia, o zero passou a ser en-carado como uma natural divisria entre crditos e dbitos.

    Descoberto ou inventado, o zero claramente tinha chegado paraficar. As dvidas filosficas quanto sua natureza deram lugar aos cl-culos virtuossticos de matemticos como Fibonacci e Fermat. O zeroera uma ddiva para os algebristas quando se tratava de resolverequaes: se a equao podia ser enunciada como ab = 0, podia-se de-duzir que a = 0 ou b = 0.

    Quanto origem do numeral 0, ainda no foi identificada peloshistoriadores da antiguidade. Uma das teorias, hoje desacreditadapelos estudiosos, sustenta que vem da primeira letra da palavra gregaouden, nada. Outra, reconhecidamente delirante, afirma que suaforma deriva da marca circular deixada na areia por uma lasca usadapara contar a presena de uma ausncia.

    Suponhamos que 0 represente Nada e 1, Algo. Temos a uma es-pcie de verso de brinquedo do mistrio da existncia: Como passarde 0 a 1?

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  • Na alta matemtica, a transio de 0 para 1 impossvel num sen-tido muito simples. Os matemticos afirmam que um nmero regu-lar quando no pode ser alcanado atravs dos recursos numricosque esto abaixo dele. Mais precisamente, o nmero n regular se nose pode chegar a ele somando menos que n nmeros por sua vezmenores que n.

    fcil constatar que 1 um nmero regular. No se pode chegar aele vindo de baixo, onde s existe o 0. A soma de 0 zeros 0, e ponto fi-nal. No possvel passar do Nada para Algo.

    Curiosamente, 1 no o nico nmero que no pode ser alcanadodessa maneira. O nmero 2 tambm vem a ser regular, pois no podeser alcanado pela soma de menos de dois nmeros menores que 2.(Tente s e ver.) No se pode, portanto, passar da Unidade Pluralidade.

    Os demais nmeros finitos carecem da interessante propriedade daregularidade. Eles podem ser alcanados a partir de baixo. (O nmero 3,por exemplo, pode ser alcanado pela soma de dois nmeros, 1 e 2,sendo cada um deles menor que 3.) Mas o primeiro nmero infinito,denotado pela letra grega mega, de fato se revela regular. No podeser alcanado pela soma de nenhum conjunto finito de nmeros finitos.No se pode, portanto, passar do Finito para o Infinito.

    Mas voltemos ao 0 e ao 1. Haveria alguma outra maneira de vencero intervalo entre eles o intervalo aritmtico entre Nada e Algo?

    Na realidade, ningum menos que um gnio como Leibniz achavater encontrado essa ponte. Alm de ser uma figura importantssima dahistria da filosofia, Leibniz tambm foi um grande matemtico. Ele

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  • inventou o clculo, mais ou menos na mesma poca que Newton. (Osdois disputaram ferozmente a autoria da inveno, mas uma coisa certa: a notao de Leibniz era infinitamente melhor que a de Newton.)

    Entre muitas outras coisas, o clculo lida com sries infinitas. Umadessas sries infinitas produzidas por Leibniz :

    1/(1 x) = 1 + x + x2 + x3 + x4 + x5 + ...

    Demonstrando um notvel sangue-frio, Leibniz acrescentou o nmero1 sua srie, o que deu:

    1/2 = 1 1 + 1 1 + 1 1 + ...

    Com os necessrios parnteses, chegamos assim interessanteequao:

    1/2 = (1 1) + (1 1) + (1 1) + ...

    ou:

    1/2 = 0 + 0 + 0 + ...

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  • Leibniz ficou petrificado. A estava uma analogia matemtica do mis-trio da criao! A equao parecia provar que Algo pode de fato sairdo Nada.

    Infelizmente, ele estava enganado. Os matemticos logo viriam aconstatar que sries dessa natureza no faziam sentido a menos quefossem sries convergentes ou seja, que a soma infinita em questoacabasse desembocando num s valor. A srie oscilante de Leibniz noatendia a esse critrio, pois as somas parciais ficavam saltando de 0para 1 e vice-versa. Sua prova, portanto, era invlida. Leibniz, omatemtico, certamente desconfiava disso, muito embora Leibniz, ometafsico, se regozijasse.

    Mas talvez alguma parte desse naufrgio conceitual possa se salvar.Veja-se por exemplo esta simples equao:

    0 = 1 1

    O que ela poderia representar? Que 1 e 1 somam zero, claro.Contudo, isso interessante. Imagine o inverso do processo: no a

    convergncia de 1 e 1 para chegar a 0, mas 0 por assim dizer se des-membrando em 1 e 1. Onde tnhamos Nada, temos agora dois Algos!De certa forma, opostos, claro. Energia positiva e negativa. Matria eantimatria. Yin e yang.

    Ainda mais sugestivo seria que 1 pode ser encarado como a mesmaentidade que 1, s que voltando no tempo. a interpretao do qumico(e ateu declarado) Peter Atkins, de Oxford. Os opostos se distinguem

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  • pela direo de sua viagem no tempo, escreve ele.1 Na ausncia dotempo, 1 e 1 se anulam; aglutinam-se no zero. O tempo permite que osdois opostos se desmembrem e esse desmembramento que, por suavez, assinala o surgimento do tempo. Foi assim, sugere Atkins, que acriao espontnea do universo se iniciou. (John Updike ficou to im-pressionado com essa hiptese que a usou na concluso de seu ro-mance Pai-Nosso computador como alternativa ao tesmo para explicara existncia.)

    Tudo isso a partir de 0 = 1 1. A equao tem uma pregnncia maisontolgica do que se poderia imaginar.

    A aritmtica simples no a nica maneira ao alcance dosmatemticos de construir uma ponte entre o Nada e o Ser. A teoria dosconjuntos tambm fornece meios para isso. Bem cedo no ensino damatemtica, e mesmo na educao fundamental, as crianas so ap-resentadas a uma coisa curiosa chamada conjunto vazio. Trata-se deum conjunto sem membros como, por exemplo, o de mulheres pres-identes dos Estados Unidos antes de Barack Obama. Ele convencion-almente designado pelo smbolo {}, chaves sem nada dentro, ou pelosmbolo .

    As crianas s vezes se insurgem contra a ideia do conjunto vazio.Perguntam como uma coleo que nada contm pode realmente seruma coleo. No esto ss no ceticismo. Um dos maiores matemticosdo sculo XIX, Richard Dedekind, considerava o conjunto vazio apenasuma fico conveniente. Ernst Zermelo, um dos criadores da teoria dosconjuntos, o considerava incorreto. Mais recentemente, o grandefilsofo americano David K. Lewis descartou o conjunto vazio como

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  • uma manchinha de puro nada, uma espcie de buraco negro na tramada prpria Realidade (...) um indivduo especial com um trao de nadadele.2

    Ser que o conjunto vazio existe? Poderia haver um Algo cuja es-sncia na verdade, cuja nica caracterstica abranger o Nada?Nem os que acreditam nem os cticos foram capazes de arrolar argu-mentos convincentes a favor ou contra. Na matemtica, ele dado porcerto. (Sua existncia pode ser provada pelos axiomas da teoria dosconjuntos, partindo-se do pressuposto de que exista pelo menos umoutro conjunto no universo.)

    Sejamos metafisicamente liberais e suponhamos que o conjuntovazio de fato exista. Ainda que haja apenas o nada, deve existir um con-junto que o contenha.

    Admitindo-se isso, tem incio uma verdadeira orgia ontolgica reg-ular, pois, se o conjunto vazio existe, tambm existe um conjunto queo contm: {}. E tambm um conjunto que contm tanto quanto {}:{, {}}. E igualmente um conjunto que contm esse novo conjunto,mais e {}: {, {}, {, {}}}. E assim por diante.

    Do mais absoluto nada surgiu uma notvel profuso de entidades.Essas entidades no so feitas de alguma coisa. So pura estrutura ab-strata. Podem imitar a estrutura dos nmeros. (No pargrafo anterior,construmos os nmeros 1, 2 e 3 a partir do conjunto vazio.) E osnmeros, com sua rica rede de correlaes, podem imitar mundos com-plicados. Na verdade, podem imitar todo o universo. Pelo menos se,como especularam pensadores como o fsico John Archibald Wheeler,o universo consistir em informao matematicamente estruturada

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  • (uma viso capturada pelo slogan it from bit, ou a existncia decorreda informao). Todo o espetculo da realidade pode ser gerado apartir do conjunto vazio a partir do Nada.

    Mas isso, naturalmente, pressupe que haja Nada para comear.

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  • 3UMA BREVE HISTRIA DO NADA

    Hartley disse Me que estivera pensando o dia inteiro durante

    toda a manh, todo o dia, toda a noite como seria se no houvesse Nada! Se todos

    os homens, & mulheres, & rvores, & plantas, e pssaros & animais,

    & o Cu, & a Terra se fossem: Escurido & Frio & nada para ser escuro & frio.

    SAMUEL TAYLOR COLERIDGE, carta a Sara (Asra)

    Hutchinson, junho de 1802 (Hartley era filho de Coleridge.)

    NADA! teu irmo mais velho deu a entender

    Que havia um ser feito antes do mundo,

    E (prspero) no teme acabar sozinho.

    JOHN WILMOT, CONDE DE ROCHESTER, Upon Nothing

    O nada,

    disse Heidegger,

    a eminncia

    modernista,

    nadeia.

    ARCHILOCHUS JONES, Metaphysics Explained for You

  • O que o nada? Macbeth respondeu a essa pergunta com ad-mirvel elegncia: Nada , exceto o que no . Meu di-cionrio a enuncia de forma algo mais paradoxal: nada (s.):

    uma coisa que no existe.1 Embora Parmnides, o antigo sbio eleata,afirmasse que era impossvel falar do que no desrespeitando assimseu prprio preceito , o homem comum sabe que no se trata apenasdisso. O senso comum dita que o nada melhor que um dry martini,mas pior que uma cama suja de areia. algo que o pobre tem, de que orico precisa, e, se for tudo que voc comer por muito tempo, acabarmorrendo. s vezes, nada pode estar mais longe da verdade, mas no sesabe quo mais longe. Pode ser completamente preto e completamentebranco ao mesmo tempo. Nada impossvel para Deus, mas molezapara o maior dos incompetentes. Seja qual for o par de propriedadescontraditrias escolhido, nada parece capaz de abrang-las. Seria pos-svel deduzir da que nada misterioso. Mas isso significaria apenasque tudo bvio inclusive, presume-se, o nada.

    Ser, talvez, por isso que no faltam no mundo pessoas que sabem,entendem e acreditam em nada. Mas cuidado ao falar com blasfmiasobre o nada, pois tambm h por a muitos sujeitos arrogantes po-dem ser chamados de nulfilos que gostam de afirmar que, paraeles, nada sagrado.

    Ex nihilo nihil fit, diziam os antigos filsofos, e o rei Lear concor-dava: nada vem do nada. Essa mxima aparentemente atribuiria ao

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  • nada um poder incrvel: o de gerar a si mesmo o de ser, como Deus,causa sui. O filsofo Leibniz fez outro elogio ao nada ao observar queele era mais simples e mais fcil que algo.2 (A dura experincia en-sina a mesma lio: nada simples, nada fcil.) De fato, foi a supostasimplicidade do nada que levou Leibniz a perguntar por que existe algoe no apenas o nada. Afinal, se no houvesse nada, nada haveria a serexplicado nem ningum para exigir uma explicao.

    Se o nada to simples, to natural, cabe perguntar por que queparece to misterioso. Na dcada de 1620, do alto de um plpito, JohnDonne deu uma resposta plausvel: Quanto menos uma coisa , menosa conhecemos: como invisvel, como ininteligvel esse Nada!3

    E por que uma coisa to simples (apesar de ininteligvel) seria tosinistra para outras pessoas? Veja-se por exemplo o telogo suo KarlBarth, um dos mais profundos e corajosos pensadores do sculo XX.Que o Nada? aquilo que Deus no quer.4 Na extensa e inacabadaDie Kirchliche Dogmatik [Dogmtica eclesistica], sua maior obra,Barth escreveu: O carter do