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Humberto Moacir de Oliveira POR UMA DESAPRENDIZAGEM: LETRA E TRANSMISSÃO EM MANOEL DE BARROS Belo Horizonte 2010

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Humberto Moacir de Oliveira

POR UMA DESAPRENDIZAGEM:

LETRA E TRANSMISSÃO EM MANOEL DE BARROS

Belo Horizonte

2010

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150 Oliveira, Humberto Moacir de

O48p Por uma desaprendizagem [manuscrito] : letra e transmissão em Manoel 2010 de Barros / Humberto Moacir de Oliveira. - 2010 .

98 f. Orientador: Jésus Santiago Co- orientadora : Ana Maria Clark Peres Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.

.

1.Barros, Manoel de, 1916- 2. Lacan, Jacques,1901-1981. 3. Psicologia –

Teses. 3. Poesia– Teses. 4. Psicanálise – Teses. 5. Aprendizagem – Teses. I.

Santiago, Jésus II. Peres, Ana Maria Clark. III. Universidade Federal de Minas

Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título

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Humberto Moacir de Oliveira

POR UMA DESAPRENDIZAGEM:

LETRA E TRANSMISSÃO EM MANOEL DE BARROS

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Psicologia

Orientador: Prof. Dr. Jesus Santiago

Co-orientadora: Prof. Dra. Ana Maria Clark Peres

Belo Horizonte

2010

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Humberto Moacir de Oliveira

POR UMA DESAPRENDIZAGEM:

LETRA E TRANSMISSÃO EM MANOEL DE BARROS

Aprovado por _____________________________________________________ Prof. Dr. Jésus Santiago (Orientador) _____________________________________________________ Prof. Dra. Ana Maria Clark Peres (Co-orientadora) _____________________________________________________ Prof. Dr. Frederico Zeymer Feu de Carvalho _____________________________________________________ Prof. Dra. Márcia Maria Rosa Vieira

Belo Horizonte

2010

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aos meus pais, pelo apoio,

à Camila Vaz, pela arte e pelo amor,

à Rúbia Maroli, pelas boas influências,

à Luma Garcia, pela infância.

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AGRADECIMENTOS

Meus profundos agradecimentos

a Ana Maria Clark Peres, pelo acolhimento e cumplicidade;

a Jesus Santiago, pelas precisas observações;

a Jefferson Pinto, pelo incentivo inicial;

a Ram Mandil, pela escuta e pelas palavras;

a Rosimeire França e a Clínica SOMAP, pelo apoio;

aos amigos do mestrado,

principalmente aos participantes do [email protected];

aos professores Jussara Avellar, Arthur Parreiras e Lúcia Efigênia, pelos primeiros passos;

aos amigos Thiago Iwasawa, Loren Aline e Leander Matiolli, pelas dicas e companhia;

ao professor de teatro Tarcisio Homem, pelo incentivo, inspiração e leveza emprestada;

aos amigos e alunos da Faculdade Pitágoras, pela inquietação e trabalho na reta final;

a Cristiane Vieira e Aline Primo, pelo carinho das últimas semanas;

e a todos que de uma forma ou de outra deram a este trabalho um sabor mais doce.

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Singular, tão singular Ó passar-se invisível pela alma da alameda de casas espaçosas

Imaginando a feição ideal dentro de cada uma! Ir recebendo um pouco de poesia no peito Sem lembranças do mundo, sem começo...

Chegar ao fim sem saber que passou Tranqüilo como as casas,

Cheio de aroma como os jardins. Desaparecer.

Não contar nada a ninguém. Não tentar um poema.

Nem olhar o nome na placa Esquecer.

Invisível, deixar apenas que a emoção perdure Fique na nossa vida fresca e incompreensível

Um mistério suave alisando para sempre o coração. Singular, tão singular

Manoel de Barros, Face Imóvel, 1942, p.68

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RESUMO

A presente dissertação visa fazer uma leitura da obra do poeta brasileiro Manoel de Barros, buscando esclarecer, do ponto de vista psicanalítico, sua “poética da desaprendizagem”. Para tanto, foram usados, como referência principal, textos do psicanalista Jacques Lacan e, secundariamente, do semiólogo e crítico literário Roland Barthes. Baseando-se nessas fontes, o trabalho tenta demonstrar como a poesia de Manoel de Barros, através do que ele chama de “desaprendizagem” (mas também de “descascamento da palavra”, “desestruturação da linguagem”, entre outros nomes), busca atingir um esvaziamento do sentido que pode ser lido tanto como um processo de assemia, de acordo com Barthes, quanto como um uso peculiar do significante que o faz funcionar como letra, do ponto de vista lacaniano. O trabalho tenta, dessa forma, pensar a hipótese de que, através desse processo de fazer o significante funcionar como letra, despindo-lhe de sua significação, o poeta empresta a seus escritos o que Lacan chama de transmissão, que se revela como uma transferência de trabalho. Palavras-chave: Manoel de Barros, poesia, letra, transmissão, psicanálise, Lacan.

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ABSTRACT

In the present dissertation, the works of the Brazilian poet, Manoel de Barros, are analyzed in an effort to elucidate "un-learning poetics". Psychoanalytic references have been utilised; Jacques Lacan's writings are the primary source, along with those of the semeiologist and literary critic, Roland Barthes. Based upon these sources, the author conjectures and will herein try to demonstrate that Manoel de Barros' poetry seeks to attain a void in meaning by using a method named by Barros, himself, as "un-learning", or "peeling off the word", or "de-structuring the language". According to Barthes, the voidance of meaning can be interpreted as a process of assemia (lack of meaning, in English) or, in line with Lacanian theory: a unique form of using the signifier as if it were language itself. The author defends the hypothesis that by transforming the function of the signifier into the function of language and, in so, stripping the signifier of its meaning, Barros has endowed his writings with "transmission" and consequently operated what is known as "work transference" - in the Lacanian sense - or , in other words, he has transferred the work load to the reader. Keywords: Manoel de Barros, language (letter), transmission, psychoanalysis, Lacan.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................................10

2 O NEGÓCIO DE MANOEL DE BARROS..........................................................................14

3 A LETRA E A DESPALAVRA..............................................................................................36

4 DESAPRENDIZAGEM, UMA TRANSMISSÃO..................................................................60

5 CONCLUSÃO.......................................................................................................................80

ANEXO - Dez perguntas a Manoel de Barros..........................................................................85

REFERÊNCIAS........................................................................................................................88

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1 INTRODUÇÃO

Como aponta Octave Mannoni (1992), Freud, em 1895, em Estudos sobre a histeria

(antes, portanto, de A interpretação dos sonhos, de 1900), equipara a Psicanálise aos

processos de compreensão de que fazem uso os poetas. Esse fato indica o interesse de Freud

pela escrita literária desde o início de suas pesquisas e como a aproximação entre a Literatura

e a teoria psicanalítica se mostra presente desde a criação desta última e atravessa toda sua

história chegando até os dias de hoje. Também Lacan (1965) se mostrou seduzido a buscar na

arte literária recursos que lhe ajudasse a pensar a clínica psicanalítica, chegando mesmo a

dizer, em uma homenagem a Marguerite Duras, que, em sua matéria, o artista sempre precede

o psicanalista.

Ultrapassando os limites da psicanálise, Roland Barthes defende que a literatura pode

beneficiar muitos outros campos do saber, uma vez que o monumento literário contém, a seu

ver, todas as ciências. Em sua aula inaugural na cadeira de Semiologia Literária no Colégio de

França em 1977, Barthes (2007, p.17) dirá que, se por uma espécie de barbárie todas as nossas

disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto uma, esta deveria ser a disciplina

literária, já que a Literatura trabalha, justamente, nos interstícios da ciência. Para o autor, a

Literatura faz girar os saberes, não fixando nem fetichizando nunca nenhum deles.

Se a Literatura serve como recurso metodológico para chegar-se a um saber (no nosso

caso, um saber psicanalítico), ressaltamos também a sugestão de Rafael Villari de retirar o

psicanalista da posição de crítico do texto literário para colocá-lo “... no lugar do não sabido,

da falta perante o texto” (VILLARI, 2000, p.6). Recorrendo novamente a Mannoni, não há

“verdadeiramente, nenhuma razão para colocar o poeta, mesmo de maneira metafórica, em

posição de analisando” (MANNONI, 1992, p.43). O mesmo autor ainda acrescenta que

também é uma ilusão “... acreditar que o poeta tem por função, como o analista, fazer passar o

sentido do inconsciente para o consciente, participar-nos suas descobertas” (MANNONI,

1992, p.45).

Por mais que acreditemos que a Literatura possa vir a oferecer um acesso distinto ao

conhecimento psicanalítico, sabemos que sugerir uma aproximação entre o trabalho de um

poeta e o trabalho do psicanalista é situar-se, tomando de empréstimo a metáfora lacaniana

usada em “Lituraterra” (1971), em um litoral: ponto de encontro entre dois campos

heterogêneos marcado mais pela indefinição do que pela delimitação clara entre eles. Para

Sueli de Melo Miranda (2002), o litoral entre Psicanálise e Literatura só pode ser marcado por

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um encontro faltoso. Talvez nem mesmo possamos dizer de uma relação, principalmente se

entendermos relação como um encontro proporcional entre as duas áreas. Antes disso, trata-se

de uma “não relação”, uma relação “não toda proporcional”, mas que em alguns pontos

coincidentes sugere, ao menos, uma aproximação.

Para Ram Avraham Mandil (2005), a constância da aproximação das duas disciplinas

desde a criação da Psicanálise indica a suposição de um saber na Literatura do qual a teoria

analítica poderia extrair uma orientação para a prática do inconsciente. Mais do que usar a

obra literária para ilustrar os conceitos analíticos e tentar encontrar respostas aos enigmas

presentes na arte, a Psicanálise deve visar buscar nessas fontes o que ela não alcança - os

modos de apresentação do irrepresentável, o acesso ao impossível, a busca pelo real através

das palavras.

Para contribuir com a interface entre Psicanálise e Literatura, esta dissertação pretende

fazer uma leitura da obra do poeta brasileiro Manoel de Barros, deixando-nos tocar pelo estilo

literário do autor e pelo que apresenta de transmissibilidade, função almejada pela teoria

psicanalítica, principalmente depois das teorizações lacanianas a respeito da letra.

Mesmo distante da prática psicanalítica, o uso que Manoel de Barros faz da palavra,

do qual destacaremos o que ele chama de desaprendizagem, revela um trabalho com a língua

relacionado a uma escrita que visa contemplar um discurso fora da dimensão simbólica do

semblante.

Foi essa singularidade da obra do poeta, e sua coincidência com os projetos da prática

psicanalítica, que trouxe o presente trabalho e, naturalmente, a própria poesia de Manoel de

Barros, para o Programa de Pós-Graduação do Departamento de Psicologia da Universidade

Federal de Minas Gerais. Afetado pela escrita literária, tanto como leitor quanto como

escritor, antes mesmo que pelo discurso analítico1, optei pela obra de Manoel de Barros não

somente como principal objeto de estudo desse trabalho, explorar a desaprendizagem através

de uma leitura psicanalítica, mas também como recurso metodológico para pesquisar a letra e

a transmissão na obra lacaniana.

Reconhecendo, como Ram Mandil (2005) e Jean-Guy Godin (2000), a presença da

Literatura na prática psicanalítica, seja através da associação livre do analisando, seja através

da leitura que o analista faz desse texto ou, ainda, através do modo como a psicanálise

1 Desde os 14 anos, escrevo poemas, contos e crônicas. Atualmente possuo um romance publicado com o

incentivo do Rotary Clube de Acesita: O dia em que conheci Sophia; uma peça teatral em circulação na cidade de Ipatinga através da 7º. Campanha de Popularização do Teatro e da Dança do Vale do Aço: A Família de Arthur; e dois livros de poesia por enquanto não publicados: De mim, da vida e da morte e Dezessete de Abril. Todos assinados com pseudônimo de Beto Oliveira.

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entende o inconsciente, o que ofertamos neste trabalho é uma pesquisa sobre o singularidade

da escrita de Manoel de Barros que o faz, através das palavras, esbarrar no real.

Para tal empreitada, foi realizada uma leitura de todos os livros do poeta lançados até

2009, dos quais tentamos depurar o que poderia significar aquilo que ele chama, através de

um neologismo, de desaprendizagem. O termo desaprendizagem, encontrado na poesia de

Fernando Pessoa (2006, p.71) e João Cabral de Melo Neto (1997, p.287), na crítica de

Octavio Paz (1991, p.224), e na teoria literária de Roland Barthes (2007, p.45), aparece de tal

maneira na obra de Manoel de Barros que podemos dizer que a palavra recebe uma função

singular em seu acervo literário.

Visando apontar o lugar que a desaprendizagem assume na obra de Manoel de Barros,

o primeiro capítulo da dissertação apresentará ao leitor o poeta pantaneiro procurando

estabelecer um panorama de sua obra. Para traçar esse panorama, lançaremos mão da

biografia do poeta que, embora difícil de ser encontrada em livros e artigos de literatura,

aparece em sua própria obra e em entrevistas como “memórias inventadas”. Da biografia do

autor faremos um percurso pela sua bibliografia que reúne, até o presente momento, mais de

vinte e quatro publicações, algumas inclusive em línguas estrangeiras. Discutindo algumas

características próprias da escrita de Manoel de Barros, recorreremos a vários poemas de

momentos diversos de sua carreira. Dessa forma, não nos deteremos em nenhum desses livros

especificamente, dando uma atenção um pouco mais especial somente a sua primeira

publicação, já que o próprio Manoel dirá que seus livros “... são todos repetições do primeiro”

(BARROS, 2003, p.45). Também é intenção do primeiro capítulo abrir uma discussão sobre a

escola ou o movimento literário em que se apóia a escrita manoelina, revelando a

singularidade que o poeta apresenta e a dificuldade encontrada pelos críticos em enquadrar o

estilo de Barros em qualquer dos rótulos habituais. Ainda que difícil de ser classificada em

uma escola literária, sua poesia encontra em outros artistas da letra ou das artes plásticas vias

de diálogo que serão, nesse momento, discutidas. Porém, o maior esforço da primeira etapa do

nosso trabalho, como já foi apontado no início do parágrafo, será apresentar ao leitor a poética

da desaprendizagem contida na obra de Manoel e sua busca pela palavra desprovida de

sentido e significação.

O segundo capítulo nos servirá para desenvolver teoricamente o que Manoel atinge

com essa poética. Para tanto, serão usados, como referenciais teóricos principais, o ensino do

psicanalista Jacques Lacan e a crítica literária de Roland Barthes. Nesse momento, a noção

lacaniana de “letra” e o conceito de “significância” encontrada, sobretudo, nas críticas de

Barthes, serão fundamentais para pensarmos a maneira como Manoel, em sua poética da

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desaprendizagem, procura atingir um esvaziamento do sentido. O objetivo é realizar uma

reflexão a respeito da busca de Barros pelo significante que funcione como letra, o que fará

com que seu texto ganhe em significância e perca em significação.

O terceiro capítulo será decisivo para a aproximação das leituras de Lacan e Barthes à

obra de Manoel de Barros. Com uma apreensão melhor dos termos lacanianos e barthesianos

e, entendendo como eles podem dialogar com a poética de Manoel, faremos ainda uma última

aproximação. Destacando o caráter transmissivo que Lacan empresta à letra, e que Milner

(1996) ressalta em A obra clara, o terceiro capítulo buscará levar ao leitor um debate de como

a desaprendizagem de Manoel de Barros pode se revelar, também, como uma transmissão. Ao

fazer o significante funcionar como letra e aumentar assim a significância de seus versos, o

poeta transmite ao leitor o que Barthes chama de “produtividade”. Entendendo, como propõe

Lacan, que a transmissão é uma transferência de trabalho, a dissertação almeja chegar ao seu

fim sugerindo uma aproximação entre o desaprender de Barros e a transmissão sugerida por

Lacan.

Assim, o objetivo principal do trabalho é analisar a hipótese de que a desaprendizagem

na obra de Manoel de Barros consiste em buscar fazer o significante funcionar como letra

através de um processo que, como diria o próprio poeta, visa retirar o significado das

palavras, despi-las do sentido comum, descascá-las. Esse processo visa, em última instância,

alcançar algo que se aproxima do que Lacan chama de transmissão, revelado como uma

transferência de trabalho própria do uso que Manoel de Barros faz da letra.

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2 O NEGÓCIO DE MANOEL DE BARROS

Manoel Wenceslau Leite de Barros, advogado, fazendeiro e poeta, nasceu em Cuiabá,

Mato Grosso, mas logo se mudou para o Pantanal de Corumbá, Mato Grosso do Sul, onde se

criou2. Aos oito anos de idade foi enviado a um colégio interno de Campo Grande e em

seguida ao Rio de Janeiro, onde completou seus estudos básicos e graduou-se como Bacharel

em Direito. Ex-integrante da Juventude Comunista, desligou-se do partido no final da década

de 30 após desiludir-se com o apoio dado por Luiz Carlos Prestes ao governo Getúlio Vargas:

“Quando escutei o discurso apoiando Getúlio — o mesmo Getúlio que havia entregue sua

mulher, Olga Benário, aos nazistas — não agüentei (...) Rompi definitivamente com o Partido

e fui para o Pantanal” (BARROS apud NOGUEIRA, 2009).

Desiludido politicamente, o poeta faz uma espécie de exílio voluntário e sai do país

em visita a Bolívia, Peru e Estados Unidos, país no qual residiu durante um ano na cidade de

Nova York. Nesse tempo, faz cursos de cinema e pintura e tem contato com obras de Picasso,

Chagall, Miró e Van Gogh, assim como filmes de Fellini e Buñuel. De volta ao Brasil, no

início dos anos 40, conhece a mineira Stella com quem é casado até hoje. Embora tenha

publicado seu primeiro livro em 1937, o reconhecimento e a consagração vieram somente a

partir da década de 80, quando recebeu declarado apoio do então colunista das revistas Veja e

Isto é, e do Jornal do Brasil, Millôr Fernandes. A partir de então, Manoel aumentará

significantemente o número de livros publicados chegando, atualmente, a ser considerado, ao

lado de Ferreira Gullar, um dos maiores poetas vivos do Brasil. Com mais de vinte livros

publicados, alguns inclusive fora do país (Portugal, França e Espanha), Barros já foi premiado

pela Academia Brasileira de Letras e pela Fundação Cultural do Distrito Federal.

Não muito adepto a entrevistas, sobretudo as televisivas, Manoel de Barros procurou

manter sua biografia e sua vida pessoal um tanto reservadas, se dando ao luxo, por exemplo,

de, durante um período de sua carreira, dar entrevistas apenas por escrito. Mesmo nas

entrevistas concedidas nos últimos anos ao Canal Futura na série Paixão pela palavra:

Manoel de Barros e no filme Língua de Brincar, de Lúcia Castello Branco3, Manoel procura

falar de sua vida sempre de maneira metafórica, poética, em uma aparente recusa a um projeto

2 Fontes biográficas retiradas da dissertação de Mirian Theyla Ribeiro Garcia (2003) e do artigo de Ligia Sávio

(2008). 3 Outro filme dedicado ao poeta com caráter documentário é o longa-metragem Só dez por cento é mentira, de

Pedro César Duarte Guimarães, que não pôde ser assistido. Algumas informações sobre esse trabalho, assim como o trailer do filme, foram vistos através do site: http://www.sodezporcentoementira.com.br/ (Acesso em 05 mai. 2009)

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biográfico. “Não sou biografável”, diz o poeta na já citada entrevista ao Canal Futura. Essa

recusa a uma biografia, ou essa opção de apresentá-la sempre no plano poético, lúdico,

justifica o nome de seu mais recente trabalho, Memórias Inventadas, uma coleção composta

de três volumes que formam, nos dizeres de Pascoal Soto4, a “Autobiografia Inventada” do

poeta. Já no início de cada volume, Barros adverte: “Tudo o que não invento é falso.”

Em entrevista à Revista Bric-a-Brac, publicada em Gramática Expositiva do Chão, o

poeta dá pelo menos três possíveis motivos a essa reserva. O primeiro seria o que ele chamou

de “... meu temperamento de tímido, que é uma sem-graceira demais...” (BARROS, 1996b,

p.326); o segundo seria por orgulho: “... este esquivar-se de falcão, só querendo estar livre

para os vôos, – é o pior orgulho”; e o terceiro, como mais adiante irá acrescentar, por medo:

“Mas voltando à sua pergunta se seria por medo ou por tática poética que me escondo, digo

que é por medo.” (BARROS, 1996b, p.331). Se seu esquivar-se tem como objetivo estar livre

para os vôos, onde mais pensar esses vôos senão na sua própria poesia? Será mesmo o poeta

que irá dizer: “Poesia é voar fora da asa.” (BARROS, 1993, p.21).

Sua biografia, portanto, aparece, mais do que em entrevistas ou notícias, em sua

própria poesia, seja diluída e espalhada em fragmentos de poemas: “... tudo o que falo é

sempre de mim que falo” (BARROS, 1996b, p.331); seja, ainda, em poemas propriamente

denominados “Auto-Retrato”. Podemos encontrar esse tipo de “retrato” em pelo menos dois

momentos distintos, um em 1993 e outro em 2000, ambos fazendo referência a sua origem,

sua obra e, por fim, sua morte. Primeiro temos “Auto-Retrato-Falado” em O livro das

ignorãças: Venho de um Cuiabá garimpo e de ruelas entortadas. Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da Marinha, onde nasci. Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios. Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar entre pedras e lagartos. Fazer o desprezível ser prezado é coisa que me apraz. Já publiquei 10 livros de poesia; ao publicá-los me sinto como que desonrado e fujo para o Pantanal onde sou abençoado a garças. Me procurei a vida inteira e não me achei — pelo que fui salvo. Descobri que todos os caminhos levam à ignorância. Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de gado. Os bois me recriam. Agora eu sou tão ocaso! Estou na categoria de sofrer do moral porque só faço coisas inúteis. No meu morrer tem uma dor de árvore. (BARROS, 1993, p.103).

Sete anos depois o poeta publica “Auto-Retrato” em Ensaios fotográficos (2000): Ao nascer eu não estava acordado, de forma que não vi a hora.

4 Pascoal Soto é editor e idealizador dos livros Memórias Inventadas, e a referência usada aqui é o texto que o

próprio editor escreve atrás das caixas que embalam os três volumes da série.

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Isso faz tempo. Foi na beira de um rio. Depois eu já morri 14 vezes. Só falta a última. Escrevi 14 livros. E deles estou livrado. São todos repetições do primeiro. (Penso fingir de outros, mas não posso fugir de mim). Já plantei dezoito árvores, mas pode que só quatro. Em pensamento e palavras namorei noventa moças, mas pode que nove. Produzi desobjetos, 35, mas pode que onze. Cito os mais bolinados: um alicate cremoso, um abridor de amanhecer, uma fivela de prender silêncios, um prego que farfalha, um parafuso de veludo etc. etc. Tenho uma confissão: noventa por cento do que escrevo é invenção; só dez por cento é mentira. Quero morrer no barranco de um rio: - sem moscas na boca descampada! (BARROS, 2000, p.45).

Neste segundo retrato, Manoel dá ênfase a uma confissão: noventa por cento do que

ele escreve é invenção, apenas dez por cento é mentira. Se para Lacan (1971) a verdade, por

ser inseparável dos efeitos da linguagem, só progride por uma estrutura de ficção, já que a

ficção é a essência mesma da linguagem, na obra de Barros a verdade progride sempre através

do semi-dizer da invenção e da mentira. Nesse aspecto, Manoel de Barros põe em prática a

teoria de Lacan (1969/1970) de que, por não haver uma verdade sobre a verdade, a verdade

pode dizer tudo o que quiser. Servindo-se dessa liberdade que a verdade lhe proporciona, a

biografia do poeta, a exemplo de sua arte, se revelará recheada de mentiras e invenções. Em

oportunidade de fazer, via e-mail, dez perguntas a Manoel, este comentou sobre a dificuldade

em ser biografado: “...acho que o poeta é só inventado. Biografia acho que tem caminhos

diferentes.” 5. É a partir da invenção e da mentira que Manoel entra na poesia fazendo com

que sua biografia se confunda com sua obra a tal ponto que nos questionamos se suas

entrevistas não fazem parte de seus poemas assim como se seus poemas não formam sua

própria história de vida. É também nessa vertente que o poeta explica, na mesma entrevista,

como seus livros são todos repetições do primeiro: “Tudo são repetições de mim por formas

diferentes. São invenções com as quais eu quero expor meu subconsciente”.

De fato, podemos identificar alguns elementos que se repetem ao longo da obra de

Barros, como o uso lúdico da palavra, o gosto por personagens populares e pelas falas do

povo, assim como a criação de desobjetos e a admiração pelas pequenas coisas do chão do

Pantanal. Já em seu primeiro livro publicado, Poemas concebidos sem pecados (1937),

encontramos uma coletânea de poemas que narram, em sua maioria, histórias ou casos de

personagens que supostamente teriam vivido com o autor e participado direta ou

indiretamente de sua infância. Quase todos os poemas de seu primeiro livro contam com 5 Vide entrevista em anexo.

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personagens do campo ou “da sarjeta” que servem de meio para o poeta exercer sua ironia e

sua crítica social presente mais em seus dois primeiros livros do que no restante de sua obra.

Faz parte desses personagens a menina e prostituta Maria-pelego-preto, caso considerado por

um senhor respeitável “uma indignidade e um desrespeito às instituições da família e da

Pátria!”, ao que Manoel responde com ironia: “Mas parece que era fome.” (BARROS, 1937,

p.51). No mesmo livro, encontramos o aposentado Seu Zezinho-margens-plácidas, célebre

fazedor de discursos patriotas, que vivia em seu sítio Abóbora Celeste. Ou, ainda, Mário-

pega-sapo, um dos viventes da “draga”, abrigo de vagabundos e bêbados, que andava com os

bolsos estufados de jias e que só era entendido pelas crianças e pelas “putas do jardim”.

Se encontramos em 1937 alguns personagens que servem à crítica social do poeta, não

é difícil perceber, também, nessas e em outras passagens, o começo do que viria a ser uma das

principais características de Manoel de Barros: a crítica à própria língua. Assim, na história de

Mário-pega-sapo, encontramos em seu enterro um “literato oficial” que sentia nojo das

formas coloquiais e que, para não “macular” a língua nacional, o chama de Mário-Captura-

Sapo. Manoel, já usando sua ironia para criticar a linguagem formal e revelar sua admiração

pelo linguajar do povo, dirá que “... a vida tem suas descompensações.” (BARROS, 1937,

p.45). No mesmo poema, Barros irá dizer que da “draga”, abrigo de Mário-pega-sapo e de

outros vagabundos, restaram somente algumas expressões como “estar na draga” e “viver na

draga”, as quais Manoel oferece ao filólogo Aurélio Buarque de Hollanda para que esse as

registre em seus léxicos: “Pois que o povo já as registrou” (BARROS, 1937, p.45). A história

de Mário-pega-sapo ajuda Manoel a fazer um elogio à língua popular e a defender a idéia de

que a linguagem coloquial pode por vezes antecipar os registros nos léxicos dos grandes

“literatos oficiais”.

Como veremos adiante, a língua do povo exerce uma função significativa em toda a

obra de Manoel, principalmente pelo caráter lúdico que ela empresta à palavra. Assim, a

história de Cabeludinho, que também aparece nos poemas de seu primeiro livro, é relembrada

pelo próprio poeta, em ocasião da escrita de um de seus últimos livros publicados. Em 1937,

ao narrar suas aventuras como beque do Porto de Dona Emília Futebol Clube, o poeta cita os

gritos de Mário-Maria que ficava do lado de fora da quadra dando pontapés no vento:

“Disilimina esse, Cabeludinho!” (BARROS, 1937, p.15). Em 2003, ao relembrar a história, o

poeta diz que, embora não tenha “disiliminado” ninguém, o “verbo novo trouxe um perfume

de poesia à nossa quadra”. Manoel ainda complementa: “Aprendi nessas férias a brincar de

palavras mais do que trabalhar com elas.” (BARROS, 2003, p.VIII).

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Embora possamos identificar, na obra de Manoel de Barros, alguns elementos que se

repetem desde seu primeiro livro, ela está longe de ser facilmente classificada ou enquadrada

em um determinado movimento literário. Definir sua obra através de qualquer de suas

características, mesmo aquelas que mais aparecem - como a poética da desaprendizagem -

seria correr o risco de empobrecer um projeto poético de rica amplitude e diversidade.

Sabemos que, cronologicamente, sua poesia se enquadra na Geração de 45, mas como

dirá o poeta (1996b) em entrevista concedida a José Otávio Guizzo, ele não sofreu as reações

de retesar os versos ou endireitar sintaxes tortas que seus contemporâneos sofreram. A

Geração de 45, ao contrário do movimento modernista de 22 que louvava o vanguardismo, é

conformada por um grito de redescoberta do passado, uma busca pelo equilíbrio entre a

emoção e a sua expressão verbal. Para Geraldo Vidigal (1995), ícone dessa geração ao lado de

João Cabral de Melo Neto, Ledo Ivo, e outros, o espírito da Geração de 45 é o de respeito à

dignidade da palavra, seu significado, sua musicalidade, tomando-a sempre pelos elos

próprios à gramática e ao idioma de forma geral.

Para José de Nicola (1998, p.377), a Geração de 45 nega a liberdade formal, ironias,

sátiras e outras “brincadeiras” modernistas, em prol de uma poesia mais “... equilibrada e

séria”. Está, assim, distante do movimento de 1922 e próxima do parnasianismo, movimento

do final do século XIX marcado pela objetividade temática e culto à forma e estética da arte.

De maneira ainda mais radical, José Guilherme Merquior (1996) dirá que a proposta da

Geração de 45, embora nunca tenha sido formalizada, era a de fazer um programa

antimodernista, o que do ponto vista literário seria uma “dege(ne)ração”, uma traição da

poesia. Para o ensaísta, os poemas dessa geração são marcados pelo culto às formas, pelo

afastamento da linguagem de sua fonte nacional e popular e pelo manejo de ritmos mecânicos,

de metros sem vida e de imagens em conserva.

O que Manoel nos mostra é que sua poesia seguirá rumos bastante distintos do da sua

geração. Posterior ao movimento de 22, a poesia de Manoel se afasta dos versos metrificados

e das rimas ricas, raras e perfeitas. Aproximando a linguagem de sua fonte nacional, popular e

pantaneira, o poeta buscará na poesia a revolução da língua, a crítica à linguagem culta e a

exaltação à palavra desacostumada, desatada dos elos gramaticais e semânticos que as

enquadram no idioma. A palavra a ponto, por exemplo, do que ele chama de “escombro”:

“Sou mais a palavra a ponto de entulho ou traste.” (BARROS, 1996b, p.308). O mais correto,

parece, é que, como propõe Luiz Henrique Barbosa (2003), o texto de Manoel de Barros não

se filia a nenhuma escola literária e não faz par com nenhum outro poeta.

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Situado fora de qualquer escola literária, o poeta muitas vezes é chamado de poeta do

Pantanal já que, de sua terra natal, recolhe muitos dos elementos presentes em sua poesia.

Mas essa classificação geográfica parece ser tão ou mais insuficiente do que a cronológica.

Para Manoel de Barros, como para muitos de seus críticos atuais (Lúcia Castello Branco

(1994), Luiz Henrique Barbosa (1995) e Rogério Barbosa da Silva (1995)), sua poesia não se

resume a uma poesia pantaneira. Sua preocupação não é com a enumeração de bichos e

plantas que compõem a beleza da natureza, mas com a palavra. Não tenho em mente trazer contribuição para o acervo folclórico do Pantanal. Meu negócio é com a palavra. Meu negócio é descascar as palavras, se possível, até a mais lírica semente delas. Nem uma, porém, se me entregou de nudez ainda. (BARROS, 1996b, p.322).

O negócio do poeta é com a palavra e, mais, o uso que ele fará dela será mesmo no

sentido de descascá-la. Nessa busca pela palavra despida, ou palavra descascada, o poeta irá,

concomitantemente à sua poesia, ou melhor, dentro dela, elaborando e expondo seu projeto

poético, suas impressões da poesia e do fazer do poeta, que se revela num saber fazer com a

palavra.

Ligia Sávio (2004), assim como Luciete Bastos (2003), lembra que uma característica

de Manoel de Barros é sua preocupação com a elaboração de uma teoria poética que parece

sair de sua própria poesia. Para as autoras, o poeta consegue fazer a análise de sua poesia

dentro de seus poemas e de suas entrevistas. Bastos diz que, muitas vezes, ao invés de

dialogar com a realidade aparente das coisas, o poeta prefere dialogar com a realidade da

língua e do uso poético que faz dessa língua. Assim, o poeta acaba construindo uma crítica

própria de sua poesia e revelando o que é, para ele, o fazer do poeta: “A metalinguagem me

excita. Acho que é porque eu não tenho muito o que falar e falo do que eu faço. Que ao fim é

de mim mesmo que falo.” (BARROS apud BASTOS, 2003, s/p).

Assim, talvez possamos dizer que não seria muito difícil pensarmos uma teoria do

fazer poético a partir da poesia de Manoel de Barros. Em todos os seus livros, e na maioria de

seus poemas, encontramos sugestões, advertências e indicações de como um poeta deve

operar com a palavra, quais os melhores objetos que servem à poesia e, até mesmo, quais

tipos humanos e personagens são mais propícios à arte de escrever. No fundo, o que podemos

notar é que Manoel faz uma crítica do seu próprio modo de escrita, e a comunica não como

quem funda uma escola, mas sim como quem divulga suas descobertas sobre os usos

possíveis da letra e das palavras.

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Nessa aventura de descobrir e inventar seu próprio projeto poético, descobrindo e

divulgando de que é feita e como é feita sua escrita, Manoel de Barros lança, em 1970, seu

livro intitulado Matéria de Poesia. Dentre outras definições, ele irá dizer: “Poesia é a loucura

das palavras: Na beira do rio o silêncio põe ovo” (BARROS, 1970, p.26). É a partir dessa

loucura das palavras que o poeta vai trabalhar sua matéria, se interessando sempre pelo que as

palavras têm de desarranjo, de louco, de delírio. Vinte e três anos depois, ele ainda diz, Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas. Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor, esse gosto esquisito. Eu pensava que fosse um sujeito escaleno. - Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável, o Padre me disse. Ele fez um limpamento em meus receios. O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença, pode muito que você carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas... E se riu. Você não é de bugre? - ele continuou. Que sim, eu respondi. Veja que bugre só pega por desvios, não anda em estradas – Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os ariticuns maduros. Há que apenas saber errar bem o seu idioma. Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de agramática. (BARROS, 1993, p.87)

Manoel de Barros aponta Padre Ezequiel como seu primeiro professor de

“agramática”, neologismo que indica uma anulação da gramática a favor daquilo que ele

chama de doença das palavras. É preciso saber errar bem o idioma. Errar o idioma e negar a

gramática faz parte do projeto poético de Manoel, que vê nos “desvios” as possibilidades de

colher os melhores frutos. A exemplo dos bugres, o poeta não anda nas estradas, se as

entendermos como os caminhos habituais da palavra. A pena de Manoel vai atrás dos

caminhos incomuns, das trilhas defeituosas das frases, lá onde, para o poeta, estão as

“melhores surpresas” e os “ariticuns maduros”. Na teoria lacaniana, como veremos adiante,

esses desvios são ocasionados em função de uma ajuda que o próprio material pelo qual a

linguagem é feita oferece. Para Lacan, a lalíngua, “matéria prima” elucubrada pela

linguagem, nos oferece homofonias, neologismos, construções diversas que permitem a

invenção de outros caminhos para a linguagem. Esses desvios e trilhas nos permitem brincar,

mais que trabalhar, em algo que a linguagem, em sua função comunicacional, não nos

oferece.

Em Manoel, a reflexão feita de sua própria escrita, implícita e explicitamente, parece

sempre contemplar os defeitos da frase, a letra torta, a loucura das palavras, o errar o idioma a

fim de inventar um novo arranjo para a linguagem. Quem sabe até escrever uma nova língua.

É o que Manoel diz quando revela sua busca pelo “idioleto manoelês archaico”, e explica:

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“Idioleto é o dialeto que os idiotas usam para falar com as paredes e com as moscas”6; e, em

nota, complementa: “Falar em archaico: aprecio uma desviação ortográfica para o archaico.

Estâmago por estômago. Celeusma por celeuma. Seja este um gosto que vem de detrás.”

(BARROS, 1996, p.43). Aqui, vemos uma busca do poeta pelo arcaico, pela origem da língua,

o que não deixa de ser um dos “desvios” usado pelo “bugre” Manoel e que é encontrado em

muitas outras passagens de sua obra: Eu queria avançar para o começo. Chegar ao criançamento das palavras. Lá onde elas ainda urinam na perna. Antes mesmo que sejam modeladas pelas mãos. Quando a criança garatuja o verbo para falar o que não tem. Pegar no estame do som. Ser a voz de um lagarto escurecido. Abrir um descortínio para o arcano. (BARROS, 1996, p.47).

Para Lúcia Castello Branco (1995), Manoel de Barros tenta flagrar a poesia em seu

estado nascente, a palavra em sua fase afásica, em seu momento inicial de larva. Avançar

para o começo, pegar o estame do som, buscar o arcaico e a doença das palavras, é uma

constante sugestão do poeta à poesia. Daí a grande importância do universo infantil nos

poemas de Barros. Por demasiadas vezes o poeta lembra a consideração que nutre pelas

construções do infante que inicia seu trabalho com a linguagem: “A criança me deu a semente

da palavra” (BARROS, 2008, I), diz o poeta na última de suas Memórias Inventadas. Para

Luiz Henrique Barbosa, o poeta vê, nos gestos das crianças de transformar a língua, “...uma

saída virtual da aterradora pena que nos coloca a palavra.” (BARBOSA, 2003, p.60).

A criança, assim como o louco ou o andarilho, aparece muitas vezes nos poemas de

Barros como personagem que permite ao poeta alcançar o trabalho proposto em seu projeto

poético. Se Manoel apresenta uma carta de intenção, na qual indica o que busca fazer com as

palavras ou até onde pretende levar seu jogo poético, muitas vezes é aos personagens de seus

livros que atribui esse jogo. Muitos desses personagens são baseados em pessoas reais que,

através de um jogo que contempla mais uma vez a lógica de que a verdade tem a estrutura da

ficção, ou da invenção e da mentira, se tornam fictícios. Apuleio, Felisdônio, o pintor

boliviano Rômulo Quiroga, e outros tantos andarilhos, loucos e infantes, com ou sem nome,

servem como suporte para que a poesia aconteça. É assim que Manoel chega, por vezes, a

6 Lembremos que, no contexto apresentado, a explicação dada à palavra idioleto faz referência a um uso

totalmente particular e livre de Manoel de Barros. Segundo Celso Pedro Luft (2002), autor da Moderna Gramática Brasileira: edição revista e atualizada, o “idioleto” é uma adaptação individual do sistema coletivo de linguagem. Além da distinção entre a norma coletiva, chamada pelo autor de socioleto, e a norma individual, o idioleto, Luft ainda ressalta a diferença entre a norma comum a toda uma nação, o idioma, e as normas peculiares de uma região, o dialeto.

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colocar na boca de um deles o que chama, em O Livro das ignorãças (1993), de delírio do

verbo. Este delírio do verbo é que vem a ser um dos exemplos citados pelo poeta de errar a

língua, de atingir a loucura das palavras, de promover um desarranjo na linguagem: No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. E pois. Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos — O verbo tem que pegar delírio. (BARROS, 1993, p.15).

No poema acima, a criança empresta sua voz ao poeta para que esse faça uso de uma

sinestesia7. Como lembra Nicola (1998, p.219), a sinestesia, característica marcante do

simbolismo, consiste numa relação que se estabelece entre uma percepção e outra que

pertençam a domínios de sentidos diferentes. No poema de Manoel, o personagem usa a

audição para captar um estímulo exclusivamente visual: a cor. Embora o poeta lance mão de

um recurso típico do simbolismo, o que observamos é uma preocupação muito maior em nos

revelar as várias possibilidades da língua do que em exaltar a metáfora e o subjetivismo, tão

caros ao simbolismo. Se, para os simbolistas, a sinestesia serve como valorização da realidade

subjetiva, Barros a usa, primordialmente, como um exemplo de “delírio verbal”.

Da mesma maneira que Manoel recorre à criança para “contrair” o que chama de

doença da palavra, outros personagens que habitaram sua infância e, de alguma forma,

provocaram sua escrita, são recorrentes em sua obra. Já mencionamos Padre Ezequiel,

preceptor que o encorajou a fazer doença nas frases. Bernardo da Mata, por sua vez, pode ser

considerado um alter ego do autor que ilustra a paixão do pantaneiro pelas coisas simples da

vida e pela harmonia entre o homem e a natureza. Também parece afetar sua formação

literária o linguajar simples e popular dos habitantes de sua terra. Como exemplo dessa

afetação, o poeta cita uma preposição deslocada que se encontra em uma das frases de sua

avó:

7 A palavra homófona cinestesia abriga um significado completamente diferente. Enquanto sinestesia diz

respeito à fusão e relação de diferentes sentidos, como proposto acima, cinestesia, grafada com “c”, cuja raiz grega, de acordo com José Pedro Machado (1952), é cinese (kinesis), expressa a percepção do movimento (HOUAISS, 2001, p.720). Na Psicopatologia, como aponta Paulo Dalgalarrondo (2000), as alucinações cinestésicas também dizem respeito a alterações na percepção do movimento, enquanto que as alucinações cenestésicas, essas grafadas com “ce”, indicam alterações na percepção tátil, ambas com significado distintos ao da sinestesia.

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Quando a Vó me recebeu nas férias, ela me apresentou aos amigos: Este é meu neto. Ele foi estudar no Rio e voltou de ateu. Ela disse que eu voltei de ateu. Aquela preposição deslocada me fantasiava de ateu. Como quem dissesse no Carnaval: aquele menino está fantasiado de palhaço. Minha avó entendia de regências verbais. Ela falava de sério. Mas todo-mundo riu. Porque aquela preposição deslocada podia fazer de uma informação um chiste. E fez. (BARROS, 2003, VIII).

O que poderia se designar como um erro do idioma apresenta-se para o poeta como

um encanto. Assim, ele exalta também os versos de um vaqueiro que parece entender tanto

quanto sua avó das regências verbais: “Por depois ouvi um vaqueiro a cantar com saudade: Ai

morena, não me escreve / que eu não sei a ler. Aquele a preposto ao verbo ler, ao meu ouvir,

ampliava a solidão do vaqueiro.” (BARROS, 2003, VIII). A exemplo de Guimarães Rosa, que

anotava em suas cadernetas de viagem frases e palavras recolhidas nas falas do homem do

sertão, Manoel parece também recuperar da fala do povo a vivacidade de sua língua materna.

Dessa forma, o poeta incorpora à sua poesia as doenças das palavras encontradas naqueles que

lhe servem, ao mesmo tempo, de inspiração e alter-ego. A “preposição deslocada” na frase da

avó, o artigo “preposto ao verbo” nos versos do vaqueiro, e tantas outras modificações da

língua, passam a fazer parte da linguagem do poeta não só nos poemas em que se refere a tais

personagens, mas em toda sua obra, transbordando inclusive para suas entrevistas.

Mas os personagens que Manoel usa para fazer seu exercício de equivocar os sentidos

das palavras não se restringem ao povo com quem conviveu ou inventou. O próprio autor é

também um personagem de seus livros, não apenas implicitamente inserido em outros

personagens, como também explicitamente citado, seja enquanto o velho, o jovem, ou,

principalmente, o menino Manoel. Dessa forma, os personagens de Barros, incluindo ele

próprio, presente em suas “memórias inventadas”, permitem ao escritor colocar em prática o

que ele mesmo propõe quando aconselha ao poeta errar seu idioma.

É, portanto, através de seus personagens, que o poeta alcança a loucura das palavras.

Um exemplo é quando ele equivoca substantivos fazendo-os funcionar como verbo: “Ele me

coisa / Ele me rã / Ele me árvore.” (BARROS, 1993, p.75). Ou, então, quando perturba,

através das palavras, a dimensão temporal da natureza: “Ontem choveu no futuro.”

(BARROS, 1993, p.33).

São a esses desarranjos colocados ou retirados das bocas de seus personagens que o

poeta busca chegar ao que ele designa palavra desacostumada: “Não gosto de palavra

acostumada.” (BARROS, 1996, p.71). Desacostumada, podemos ler, do seu sentido comum.

Citar a criança que pega de empréstimo o verbo que serve para o som e o utiliza para a cor,

lembrar do menino Manoel encantado com a preposição deslocada na frase da avó, ressaltar o

artigo que aparece em excesso nos versos do vaqueiro, usar o substantivo rã como se fosse um

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verbo. Essas são algumas maneiras de o poeta reinventar sua língua, abster-se da linguagem

acostumada e propor um novo funcionamento para seu idioma. Isso explica a escolha de

Manoel por personagens tão singulares, pobres e por vezes tão desprovidos de conhecimento,

títulos ou diplomas. A esse respeito, o poeta adverte que seus alter-egos são todos bêbedos ou

bocós, todos formados por ciscos e borras. Manoel ainda nos conta sua resposta à sugestão de

alter-egos mais dignos: “Um dia alguém me sugeriu que adotasse um alter-ego respeitável –

tipo um príncipe, um almirante, um senador. E eu perguntei: Mas quem ficará com os meus

abismos se os pobres-diabos não ficarem?” (BARROS, 2000, p.61).

É, portanto, através de seus personagens, dentre os quais o próprio Manoel de Barros

faz parte, que o poeta consegue praticar sua arte poética, dar lugar a seus abismos e exercer

seu “idioleto”. Nisto parece consistir a aventura poética de Manoel, em enlouquecer o idioma,

desestruturar a linguagem, usar as palavras distantes de seu sentido comum, fazendo com que

a tarefa mais lídima da poesia seja “equivocar os sentidos das palavras” (BARROS, 2000,

p.65).

Nessa tentativa de equivocar o sentido das palavras, vale lembrar a importância que o

prefixo8 “des” alcança na obra de Manoel. Instrumento da língua portuguesa usado para a

descaracterização ou negação de uma palavra, esse prefixo aparece em vários momentos da

obra do poeta como dispositivo formador de neologismos clássicos de sua escrita, como

“desutilidade”, “dessaber” ou “desúteis”. Como lembra Cristiane Azevedo (2007, p.2), essa

procura por uma “desconstrução semântica” instaura em sua obra “uma certa poesia do des”,

que consiste em uma poesia da negação, da desestruturação incessante e radical da língua

Ao instaurar sua “poética do des” na tentativa de desestruturar a linguagem ou

fornecer-lhe um novo arranjo – o “idioleto manoelês archaico” – o poeta apresenta uma

singularidade ainda maior quando faz uso do que ele chama de desaprendizagem. Para Lúcia

Castello Branco, como podemos ler na orelha da quinta edição de Livro Sobre Nada, o que

resta ao leitor de Manoel de Barros é “...ingressar na poética da desaprendizagem proposta

pelo autor, buscando, então, desler as letras: advinhar, diviná-las”. Essa poética da

desaprendizagem é marcada por uma poesia muito singular, onde o que se destaca não é a

8 De acordo com Celso Cunha (2001), do ponto de vista gramatical, a palavra é composta por morfemas, as

menores unidades gramaticais identificáveis. Um afixo é um morfema derivacional, freqüentemente de origem latina ou grega, que se une a uma palavra ou a outro morfema para modificar, geralmente de maneira precisa, o sentido desse último. O prefixo é uma espécie de morfema que se adiciona à esquerda de uma palavra ou de outro morfema, enquanto que o sufixo é um morfema que se adiciona à sua direita. O des, tão usado por Manoel de Barros, é um prefixo de origem latina que indica a ação contrária, a oposição, a negação ou a anulação do significado original de uma palavra. Na língua portuguesa, entre os prefixos de negação, temos, além do des, o a, o in, o im, o an, o dis, entre outros.

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aprendizagem enquanto adição de conhecimento, mas o desaprender que resulta num novo

olhar, um olhar infantil, que abre, assim, maiores possibilidades para a criação: A poesia, para mim, sempre foi um jogo à brinca. Nunca um jogo à vera. Acho que a gente precisa desaprender um pouco o que aprendeu. Desaprender umas oito horas por dia para adquirir um novo olho, digamos, um olho infantil, para olhar o mundo como se fosse a primeira vez. (...) Criar, para mim, começa exatamente no desconhecer. (BARROS apud MACIEL; XAVIER, 2000, p.86).

Sua poesia, ao invés de buscar a adição de sentidos, vai retirar do signo o máximo de

significação já cristalizada pela língua, buscando, por vezes, alcançar apenas a materialidade

sonora. Antecipando um pouco a discussão que faremos a partir da crítica literária de Roland

Barthes no segundo capítulo, podemos já antever em Manoel uma busca pelo o que o

semiólogo chama de erotismo da palavra. Em O rumor da língua, Barthes (2004) comenta

sobre três possibilidades de prazer que a leitura pode nos proporcionar, ou, como ele mesmo

acrescenta, três vias pelas quais a “imagem de leitura” pode capturar o “sujeito-leitor”. A

primeira delas seria aquela em que o leitor tem com o texto lido uma relação fetichista: ele tira

prazer das palavras, dos arranjos poéticos, dos jogos significantes, do rumor da língua. Esse

gozo pode ser comparado ao momento do balbucio infantil. Além do prazer causado pela pura

sonoridade da palavra, o leitor ainda poderia ser agraciado por mais duas formas de prazer: o

prazer pelo sentido que as palavras engendram e que fazem o leitor desejar sempre a próxima

página ou, ainda, o prazer causado pelo desejo de escrever que uma leitura pode vir a

despertar. É evidente que todas as três vias citadas por Barthes podem ser alcançadas através

dos poemas de Barros. Entretanto, o que podemos perceber em parte da obra do poeta, é um

privilégio pelo erotismo sonoro das palavras, uma busca pelo gozo que a manipulação da

letra, desvinculada de qualquer valor de significação ou sentido, pode promover. Mesmo que

não seja uma constância em sua obra, muitas vezes aparecendo mais como uma sugestão à

poesia do que como uma prática reiterada pelo autor, Manoel mostra-se preocupado em

valorizar mais o ritmo das palavras do que seu significado. Assim, por vezes, encontramos em

sua obra listagens de palavras que parecem destacar mais a dimensão do som causado pela

organização poética do que qualquer sentido que possa ser extraído dessa organização, - E martelo grama de castela, móbile estrela, bridão lua e cambão vulva e pilão, elisa valise, nurse pulvis e aldabras, que são? - Palabras.

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E máquina de dor é de a vapor? brincar de amarelinha tem amarelos? as porteiras do mundo varas têm? - Têm conformes. (BARROS, 1966, p.51/52).

Esse é um dos aspectos encontrados na poética da desaprendizagem proposta pelo

poeta: encontrar expressão mais na forma e no ritmo do encadeamento das palavras do que no

conteúdo que elas carregam.

Porém, mais freqüente do que isso, é a tentativa do poeta de retirar a significação

cristalizada de um significante para que se possa possibilitar uma criação. Talvez esta seja a

maior marca da “desaprendizagem”: caminhar entre dois pólos que constituem, quem sabe, o

que ele chama de “didática da invenção” (BARROS, 1993, p.07). De um lado, a

desaprendizagem e o desnomear, desfazer, desinventar; e, do outro, a criação ou a invenção. É

como se a sugestão do poeta em quase toda sua obra reduzisse a desaprender para criar:

“Criar, para mim, começa exatamente no desconhecer”. Por isso é que, mais do que negar a

aprendizagem antecedendo-a com o prefixo des, Manoel irá propor uma poesia que siga,

mesmo, o trilho inverso do aprender.

Sabemos da dificuldade encontrada pelos teóricos da aprendizagem em conceituar e

definir essa atividade tão complexa. Não é intenção deste trabalho abrir uma discussão

detalhada das diferentes visões encontradas na Psicologia da Aprendizagem, nem reduzi-la a

uma prática simplista que se oponha à poética de Manoel de Barros apenas por não apresentar

o prefixo des. De todo modo, situarmo-nos, mesmo que brevemente, nessa discussão, pode

nos ajudar a entender o que é a desaprendizagem do poeta e por que ele a chama assim.

Para Juan Ignácio Pozo (2002) encontramos, ao longo da história, três grandes

enfoques que reúnem as discussões a respeito do aprender: o racionalismo, o empirismo e o

construtivismo. Se, por um lado, o racionalismo, aos moldes do pensamento platônico, limita

à aprendizagem a descoberta de conhecimentos inatos que jazem dentro de nós, no mundo das

idéias, por exemplo, por outro lado, o empirismo encara o conhecimento como puro reflexo

da estrutura do ambiente, limitando a aprendizagem à ação de reproduzir a informação que

recebemos via experiência. Considerado pelo autor um enfoque mais maduro teoricamente, o

construtivismo, pautado mais num pensamento kantiano do que platônico ou aristotélico,

enxerga o conhecimento como uma interação entre a informação dada e o que sabemos a

priori. A aprendizagem, para os construtivistas, consiste num processo de construção a partir

da interação entre a informação nova e o conjunto de informações já adquiridas pelo sujeito

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até o presente momento da aprendizagem. Embora se suponha, nos três modelos, alguma

reestruturação dos conhecimentos anteriores, o caminho percorrido parece sempre apostar ou

na informação externa somando-se ao conteúdo interno, ou no mundo interno fazendo uma

nova construção a partir da realidade externa. Manoel parece propor que, à poesia, cabe o

papel de fornecer não um estímulo externo que sirva de acréscimo de informação, ou que

facilite uma nova construção do saber, mas, ao contrário da aprendizagem, a permissão ao

leitor de desfazer-se de seu conhecimento habitual, corriqueiro, para alcançar um

esvaziamento de informação. Se, para o construtivismo, aprender consiste num processo de

assimilação e acomodação, a sugestão de Manoel de Barros é justamente incomodar e

desestruturar a linguagem, fazer vacilar o conhecimento existente a priori e questionar a

própria língua.

Seguindo esse raciocínio, podemos comparar o olhar de Barros ao de Alberto Caeiro,

heterônimo de Fernando Pessoa, que diz em “O Guardador de Rebanhos”: O essencial é saber ver, Saber ver sem estar a pensar, Saber ver quando se vê, E nem pensar quando se vê Nem ver quando se pensa. Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!), Isso exige um estudo profundo, Uma aprendizagem de desaprender9 (PESSOA, 2006, p.72).

Para Rogério Barbosa da Silva, a exemplo do que faz Alberto Caeiro, Manoel de

Barros sugerirá a desaprendizagem do mundo a partir de um novo modo de ver, “...próximo

da ‘coisa’, as coisas sem os mistérios e sem a inteligência que as deforma” (SILVA, 1995,

p.26).

Além de Fernando Pessoa, Manoel de Barros faz alusão a outros artistas que

compartilham com ele de uma desaprendizagem. E faz referência inclusive a James Joyce,

escritor que causou grande impacto na obra lacaniana. Ambos, Pessoa e Joyce, são

homenageados por Manoel de Barros em títulos de livro: O Guardador de águas faz

referência ao Guardador de rebanhos de Fernando Pessoa e O retrato do artista quando coisa

nos remete ao Retrato do artista quando jovem, de Joyce. Manoel de Barros também faz

alusão a Rimbaud quando diz ter colhido no poeta francês uma frase de seu poema: “Perder a

inteligência das coisas para vê-las. / (colhida em Rimbaud)” (BARROS, 1970, p.17). E

mesmo a Guimarães Rosa, quando narra seu encontro com o escritor mineiro: Levei o Rosa na beira dos pássaros que fica no

9 Grifo nosso.

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meio da Ilha Lingüística. Rosa gostava muito de frases em que entrassem pássaros. E fez uma na hora: A tarde está verde no olho das garças. E completou com Job: Sabedoria se tira das coisas que não existem (...) O que resta de grandezas para nós são os desconheceres --- completou. (BARROS, 1998, p.33).

Guimarães Rosa talvez mereça um destaque especial ao tratarmos do diálogo possível

entre a obra de Manoel de Barros e a de outros grandes artistas. Mais do que aparecer no

poema de Barros como uma possível referência à desaprendizagem, ao “desconheceres” e ao

ato de “tirar sabedorias das coisas”, características marcantes em Manoel, a obra de Rosa

apresentará muitas outras facetas que podemos aproximar dos caminhos percorridos pelo

poeta pantaneiro. A começar pela já citada busca do escritor pela fala do sertanejo, do homem

simples, semi-analfabeto, mas que, como os personagens de Barros, provocam e questionam a

língua. Logo na abertura de Grande Sertão: Veredas, o personagem Riobaldo adverte seu

interlocutor: “Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de

opiniães...” (ROSA, 2007, p.24). Contemporâneo de Manoel, embora consagrado pela crítica

algumas décadas antes que Barros, Rosa também usará seus personagens para promover uma

subversão em sua língua natal. Numa busca pela universalização do regional, o autor vai

encontrar em seus personagens um meio de extrair do “sertão” não só belas imagens e

metáforas a respeito do ser e do mundo, como, principalmente, um linguajar original que

produz, aos olhos do crítico lusitano Óscar Lopes, um efeito poético radical: “...o efeito de

ressaca do significado novo sobre o significado corrente.” (Oscar Lopes apud Nicola, 1998,

p.379). Em ocasião da inauguração do Museu da Língua Portuguesa, o poeta concretista

Décio Pignatari (2006)10 dirá que Guimarães Rosa inventa uma língua e quase inventa um

país dentro de um país. Guardadas suas proporções, inventar uma língua em Rosa pode estar

próximo a buscar o “idioleto manoelês archaico” em Barros. Sobre essa operação, Rolland

Barthes (1971) dirá que os fundadores de uma nova língua, a quem ele se refere como “os

Logotetas”, e entre os quais inclui Sade, Fourier e Loiola, se distinguem não por fundarem

uma nova língua lingüística, uma língua de comunicação, mas, pelo contrário, por

“ilimitarem” a linguagem. Segundo o autor, para fundar, efetivamente, uma língua nova, é

necessário teatralizar. Ele próprio continua o raciocínio: “Que é teatralizar? Não é decorar a 10 Referência retirada do livro que acompanha a edição comemorativa dos 50 anos de Grande Sertão: Veredas

(2007) e que tenta compilar num material gráfico as diversas intervenções expostas na instalação Grande sertão: Veredas, concebida por Bia Lessa para a inauguração do Museu da Língua Portuguesa, São Paulo, março 2006.

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representação, é ilimitar a linguagem.” (BARTHES, 1971, p.11). E é por insistirem nessa

busca pelo o que Manoel chama de “Os deslimites da palavra”11 que as obras de Barros e

Rosa, em alguns pontos, podem se tocar. Não por acaso, a recriação da linguagem, a

diversidade do uso feito pela palavra, os neologismos, as sinestesias, e outros recursos do

gênero, serão encontrados na obra dos dois artistas. Outra aproximação possível entre os dois

escritores é a busca por uma poesia, um através do poema o outro através da prosa, que se

sustente pelo jogo fônico, pela materialidade sonora dos versos ou frases mais do que pelo

sentido neles contido. Aqui, vale notar as aliterações usadas pelos dois autores, talvez menos

por Manoel do que por Rosa, das quais destacaremos o som que o segundo faz ecoar ao narrar

a marcha de uma boiada no conto “O Burrinho Pedrês”: Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando... Dança doido, dá de duro, dá de dentro, dá direito... Vai, vem, volta, vem na vara, vai não volta, vai varando (...) A boiada vai, como um navio. (ROSA, 1968, p.23).

Sem nos atermos aos vários pontos de aproximação entre a obra de Manoel e de

Guimarães Rosa, passemos para outra notável alusão que Barros faz a um artista que

compartilha com ele do processo de desaprendizagem. No poema intitulado “Miró”,

encontrado em Ensaios Fotográficos, o poeta, fazendo clara referência ao pintor catalão, diz: Para atingir sua expressão fontana Miró precisava de esquecer os traços e as doutrinas que aprendera nos livros. Desejava atingir a pureza de não saber mais nada. Fazia um ritual para atingir essa pureza: ia ao fundo do quintal à busca de uma árvore. E ali, ao pé da árvore, enterrava de vez tudo aquilo que havia aprendido nos livros. Depois depositava sobre o enterro uma nobre mijada florestal. Sobre o enterro nasciam borboletas, restos de insetos, cascas de cigarra etc. A partir dos restos Miró iniciava a sua engenharia de cores. Muitas vezes chegava a iluminuras a partir de um dejeto de mosca deixado na tela. Sua expressão fontana se iniciava naquela mancha escura. O escuro o iluminava. (BARROS, 2000, p.29).

Ainda sobre Miró, o poeta mexicano Octavio Paz, amigo do pintor, usa, para designar

o movimento da arte moderna em geral, e da arte de Miró em particular, o mesmo significante

usado por Barros para designar o processo de sua poesia:

11 Nome de um dos capítulos que compõem o Livro das ignorãças (1993).

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A arte moderna foi uma desaprendizagem: um desaprender as receitas, os truques e as manhas para recuperar o frescor do olhar primigênio. Um dos momentos mais altos desse processo de desaprendizagem foi a obra de Miró. (PAZ, 1991, p.224)12.

Também o poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto parece destacar no pintor esse

processo de desaprendizagem quando escreve em seu poema “O sim contra o sim” que: (...) Miró sentia a mão direita demasiado sábia e que de saber tanto já não podia inventar nada. Quis então que desaprendesse13 o muito que aprendera, a fim de reencontrar a linha ainda fresca da esquerda. Pois que ela não pôde, ele pôs-se a desenhar com esta até que, se operando, no braço direito ele a enxerta. A esquerda (se não se é canhoto) é mão sem habilidade; reaprende a cada linha, cada instante, a recomeçar-se. (MELO NETO, 1997, p.287).

Se Miró usa as tintas e a tela para atingir sua expressão fontana, “o negócio” de

Barros, como foi dito, é a palavra. Para isso, o poeta equivoca os sentidos delas: Não quero saber como as coisas se comportam. Quero inventar comportamentos para as coisas. Li uma vez que a tarefa mais lídima da poesia é a de equivocar o sentido das palavras (BARROS, 2000, p.65).

Mesmo no ensino, campo distinto da arte, podemos encontrar espaço para uma

desaprendizagem que, em sua estrutura, se assemelha às propostas dos poetas e pintores

citados acima. Ao falar do percurso acadêmico de um professor, Barthes distingue três

momentos importantes: Primeiramente, há uma idade em que se ensina o que se sabe; em

seguida, vem o momento em que se ensina o que não se sabe, que o autor define como sendo

a pesquisa; por fim, Barthes descreve a que ponto um bom professor pode chegar: Vem talvez agora a idade de uma outra experiência, a de desaprender, de deixar trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos. (BARTHES, 2007, p.45).

E é justamente uma “desaprendizagem” o que identificamos como a maior

singularidade da obra de Manoel de Barros, ou pelo menos da qual nos ocuparemos na feitura

desta dissertação. O que mais nos interessará no projeto poético de Manoel, será esse processo 12 Grifo nosso. 13 Grifo nosso.

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de “equivocar os sentido”, “errar a língua”, “desinventar objetos”, “desnomear as coisas”,

“desaprender oito horas por dia”, tudo para, através das “vadias palavras”, ir alargando seus

limites: Porque a maneira de reduzir o isolado que somos dentro de nós mesmos, rodeados de distâncias e lembranças, é botando enchimento nas palavras. É botando apelidos, contando lorotas. É, enfim, através das vadias palavras, ir alargando os nossos limites. (BARROS, 1985, p.33).

É, portanto, através das vadias palavras que Manoel de Barros coloca em prática sua

desaprendizagem. Muito mais do que acrescer contribuições ao acervo folclórico do Pantanal

ou do país, o negócio de Barros é, através desse mecanismo de desaprendizagem, descascar as

palavras até chegar às sementes delas.

Se “seu negócio é com a palavra”, o uso que ele irá fazer dela, nesse processo de

descascá-la, é bastante peculiar, o que o torna, como declara Fausto Wolff na orelha da quinta

edição de O retrato do artista quando coisa (1998), um poeta incomparável, que está longe

dos demais poetas: “Mais fácil compará-lo a Picasso e De Kooning, os grandes

decompositores de artes plásticas que, como ele, des-essencializavam a forma até torná-la

pura.” Nessa perspectiva de que é mais fácil comparar Barros a Picasso e De Kooning do que

a outros poetas, lembremos de Luciete Bastos (2003)14 que, ao falar do poeta, faz alusão a

uma litografia de Picasso,

14 Wanessa Cruz (2009), em apresentação de sua dissertação de mestrado pela Universidade Federal de Minas

Gerais (inédita), faz referência à mesma obra de Picasso.

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Figura 1. Pablo Picasso, Os 11 estados progressivos da litografia, O Touro,1945.15

Picasso, aos poucos, retira do touro suas linhas supérfluas e a imagem vai perdendo a

cobertura, ou “a casca”, que a deixa em conformidade com a imagem comum, “imagem

acostumada” que a palavra TOURO nos remete. A figura é cada vez mais apresentada por

linhas imprescindíveis para a litografia, que parecem nos levar mais ao esboço de um touro do

que a imagem real do animal. Essa decomposição pode ser encontrada também na obra do

outro artista plástico citado por Fausto Wolf. Em proporções e estilo diferente de Picasso, o

pintor holandês Willem de Kooning apresenta, em 1947, um quadro16 sem título que sugere a

presença de duas mulheres:

Figura 2. Sem título, 1947. Óleo em papel. 20 x 16 polegadas. Coleção particular.

Dois anos depois, em 1949, observamos, em uma tela de De Kooning intitulada

Woman, uma mulher que se apresenta ainda mais desconfigurada do que na primeira tela

citada:

15 Imagem retirada de “Fernand Mourlot, lithographe: Le Taureau de Picasso” disponível no site:

http://mourlot.free.fr/fmtaureau.html (ACESSO 05/05/09) 16 Imagens retiradas de “Craig F. Starr Gallery”, disponível no site: http://www.starr-

art.com/exhibits/deKooning_Women/index.html (ACESSO 26/11/2009)

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Figura 3. Mulher, 1949. Óleo em tela com esmalte e carvão. 60 1/2 x 48 polegadas. Coleção particular.

Finalmente, em 1951, quatro anos após a primeira tela referida, o pintor volta a

desenhar duas mulheres (Two Women); dessa vez, ainda mais decompostas do que as outras e

que, aos moldes do touro de Picasso, revelam-se apenas por linhas e traços básicos à figura:

Figura 4. Duas Mulheres, c. 1951. Lápiz em papel. 14 x 17 polegadas. Coleção particular.

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Não só “os grandes decompositores das artes plásticas” apresentam essa

particularidade de revelar suas figuras através de traços essenciais, como também Manoel de

Barros tempera algumas de suas obras com desenhos próprios que se sustentam no traçado,

nas linhas imprescindíveis.

Figura 5. Desenhos de Manoel de Barros 17

A escrita de Barros e, principalmente, sua poética da desaprendizagem, apóia-se em

um movimento de decomposição semelhante ao que vimos nas artes plásticas, seja através de

Picasso ou De Kooning, seja ainda no próprio traçado de Manoel. O poeta retira dos seus

versos as palavras supérfluas e acostumadas para alcançar o que ele considera essencial, num

caminho que ruma, como foi assinalado, à pureza da forma. Mas, se Picasso e De Kooning

atingem a pureza no descascamento, na decomposição ou des-essencialização da imagem de

um touro ou de uma mulher, como Manoel descasca sua palavra? Qual pureza o poeta

pretende alcançar com sua arte? O que está no alvo de sua poética da desaprendizagem?

A hipótese é que a decomposição da linguagem contida na obra de Manoel de Barros

caminhará em direção ao que a psicanálise lacaniana chamará de letra. Assim como

indicamos que os desvios literários perseguidos por Barros são possibilitados pela

manipulação da lalíngua que sustenta a linguagem, sua desaprendizagem exercerá sua

verdadeira função através da transmissão que a letra, por se distanciar do campo simbólico da

articulação significante, possibilita. Nessa empreitada, também nos será útil a crítica literária

de Barthes que nos possibilitará identificar na obra de Manoel um exercício poético que

privilegiará mais o trabalho e a produtividade da significância do que os efeitos da

significação. Essas referências nos guiarão na pesquisa a respeito do lugar reservado na obra

17 Imagens retiradas da obra de Manoel de Barros O Livro das Ignorãças (1996, p.7 e p.73).

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de Barros à semente (ou nudez) da palavra, tão constantemente almejada por sua

desaprendizagem.

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3 A LETRA E A DESPALAVRA

Como foi antecipado, para nos ajudar na discussão a respeito do funcionamento da

poética da desaprendizagem de Barros, recorreremos inicialmente ao uso que Lacan faz da

lingüística para pensar o inconsciente, destacando, principalmente, a teoria que o autor faz

avançar a respeito da letra. Para tanto, traremos a tona uma discussão psicanalítica que nos

ajudará a analisar e comentar diversos pontos da desaprendizagem de Barros.

Em 1957, no texto “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”,

Lacan tentará extrair de A Interpretação dos Sonhos as leis do inconsciente. Para isso, lançará

mão não só do texto de Freud (1900), como também do curso de Ferdinand Saussure (1996) e

dos conceitos de significante e significado que constituem o algoritmo fundador da

lingüística. Vale lembrar que a opção lacaniana de pensar o inconsciente freudiano a partir das

leis da linguagem não pode ser, de maneira alguma, considerada um capricho. A própria obra

de Freud contempla o tema e sugere uma influência do significante na formalização do que

viria ser o inconsciente para a Psicanálise. Não só a condensação e o deslocamento, presentes

no “Capítulo VI” da Traumdeutung (1900), apresentam uma articulação significante que,

como veremos, pode ser comparada à metáfora ou à metonímia, como também a própria

técnica freudiana da associação livre sugere que algo da cadeia significante opere no

inconsciente. Além da interpretação dos sonhos, as teorias sobre a formação do sintoma, os

chistes, os lapsos ou o recalque, embora não se valham do termo, apresentam, da mesma

maneira, uma lógica que parece antecipar a teoria lingüística do significante.

Todavia, é em um trabalho considerado pré-psicanalítico que encontramos uma

ligação ainda mais estreita entre as formulações freudianas e a articulação significante. O

“Apêndice C” do texto O inconsciente (1915) apresenta um pequeno fragmento daquilo que

teria sido a monografia de Freud sobre as afasias, escrito em 1891. Nele, encontramos

algumas considerações a respeito das palavras e das coisas que vale a pena citarmos em nossa

discussão. No texto freudiano, a “palavra” é considerada a unidade da função da fala e é

definida como sendo uma “apresentação complexa” que combina elementos auditivos, visuais

e cinestésicos. A palavra adquiriria seu “significado” ligando-se, através de sua imagem

sonora, a uma “apresentação do objeto” (ou, como sugere o editor, “uma representação da

coisa”), que, por sua vez, consistiria em outro complexo de associações formado por uma

grande variedade de apresentações visuais, acústicas, táteis, cinestésicas, etc.. A relação entre

a apresentação da palavra e a apresentação do objeto é descrita, então, como uma operação

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“simbólica” que participa da aquisição da linguagem nos seres humanos. O que no texto é tido

como a “imagem sonora da palavra” – mas que também pode ser lido hoje como a “imagem

acústica” ou, simplesmente, como “significante” – se liga a outras “imagens sonoras”

formando o que Freud designou “discurso encadeado”. Essas considerações pré-psicanalíticas

nos ajudam a compreender que, a exemplo do que lembra Lacan (1957, p.448), as leis

presentes nas teorias a respeito dos sonhos, dos chistes, das psicopatologias da vida cotidiana,

enfim, do inconsciente, revelam que Freud antecipa as leis que Ferdinand Saussure só iria

trazer à luz alguns anos mais tarde.

É por acreditar nessa antecipação freudiana da teoria de Saussure que Lacan retoma a

fórmula lingüística que propõe pensar o signo como uma unidade que associa um significado

(s) – um conceito –, a um significante (S) – uma imagem acústica; essa última designando,

portanto, a marca psíquica do som material, ou a representação fornecida pelo testemunho dos

sentidos. Esses dois elementos, significado e significante, formariam, então, uma entidade

psíquica (s/S), ficando intimamente unidos e postulando-se um ao outro. Em texto18

estabelecido pelo menos alguns anos mais tarde do que os textos freudianos citados até agora,

Saussure (1996), ao abordar a relação existente entre uma imagem acústica e um conceito, irá

desenvolvê-la de forma a expor duas características consideradas primordiais à entidade

psíquica denominada por ele mesmo de signo lingüístico. A primeira característica diz

respeito à arbitrariedade do signo, que significa dizer que não há nenhum elo intrínseco,

natural ou inevitável entre o significante e o significado. Outra característica, que será

essencial para a distinção lacaniana entre a letra e o significante, é o princípio de linearidade

do significante, ou seja, o significante, por ser de natureza auditiva, desenvolve-se no tempo e

ao tempo vai buscar as suas características. Isso faz com que ele se disponha em linha, e

forme uma cadeia: um significante (S1) se liga a outro (S2). Essa cadeia fará com que a

significação de um elemento seja dada pela sua relação com os outros elementos, ponto

fundamental na diferença entre a letra e o significante.

A proposta de Lacan é de desfazer essa unidade saussuriana, separando e distanciando

o significado do significante, o que dá maior autonomia e maior possibilidade de articulação a

este último. Além disso, Lacan inverte a posição respectiva do significante e do significado,

procurando, com isso, destacar a primazia do significante sobre o significado, dizendo que

“fracassaremos (...) enquanto não nos tivermos livrado da ilusão de que o significante atende à

18 Curso de lingüística geral (1916), estabelecido por Charles Bally e Albert Sechehaye a partir de notas de

alunos de Saussure.

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função de representar o significado” (LACAN, 1957, p.501). O significante, então, sempre se

antecipa ao sentido, precedendo e determinando, portanto, o significado.

Porém, Lacan (1957) insistirá na barra que separa o ‘S’, significante, do ‘s’,

significado (S/s); barra essa que deixa de indicar uma relação para dizer de uma separação de

ordens diferentes, o que, novamente, vai reforçar a autonomia do significante em relação ao

significado. Dizer que há uma separação entre significante e significado não anula a

articulação entre eles. Pelo contrário, a distância entre eles, e, conseqüentemente, a autonomia

significante, permite uma relação ainda mais ampla, produzindo possibilidades infinitas de

sentido na articulação entre um e outro, articulação que, para Lacan (1953), equivale à própria

estrutura da linguagem.

É, portanto, a partir dos textos de Freud e Saussure que Lacan irá tratar do

inconsciente sob a perspectiva da lingüística, e o designará como que constituído pelo

significante, equivalendo “as leis do inconsciente” às duas formas de articulação dos

significantes: a superposição de significantes, que constitui a metáfora, e o transporte da

significação, demonstrado pela metonímia. Podemos entender a metáfora como equivalente

ao que Freud (1900) chamou de condensação e a metonímia ao deslocamento. Se a articulação

entre significante e significado é o equivalente da própria estrutura da linguagem, e as duas

formas de articulação do significante são designadas como “leis do inconsciente”, é porque,

para Lacan, o inconsciente é estruturado aos moldes de uma linguagem.

Temos, portanto, uma subversão no signo lingüístico, principalmente, ao supormos

que o significante antecipa o sentido e o determina. Dessa forma, a teoria lacaniana reforça

ainda mais o fato de que o significante não designa um conceito, não dá nome a alguma parte

do real ao qual é referência. O significante apenas representa e uma representação não

consiste em significar um referente19. Uma representação só pode ser representação de um

significante para outro significante. Para ilustrar esse papel do significante de representar

sempre um significante para outro significante, Lacan (1964), no livro XI de seu Seminário,

19 No ponto em que estamos, vale lembrar a noção de “referência” de Gottlob Frege. Numa época anterior a

Saussure, Frege (1891/1892) elabora concomitantemente a suas investigações matemáticas e lógicas, uma filosofia da linguagem. Nela, o autor designa como “sinal” o que ele desenvolve como sendo o nome próprio dos objetos. Assim, o “sentido” para o autor designará o modo de apresentação do sinal e a referência dirá respeito ao objeto que o sinal ou “nome próprio” designa, sendo que nos casos em que esse objeto [a referência] não for sensorialmente perceptível, deverá, por ser uma imagem interna, ser chamada de representação. De qualquer maneira, os termos referência e representação aparecem na lógica de Frege como se fossem um pedaço do real que o significante [ou sinal] referencia. Temos então que 2 + 2, embora siga um pensamento [um sentido] diferente de 2 x 2, obtém o mesmo referente que o último, a saber, o valor representado pelo numeral 4. Tanto o termo “representação” quanto “sentido” serão usados no restante do presente trabalho de maneira distinta ao uso que Frege fará dos mesmos. Já o termo “referente”, pouco usado em nosso texto, nos remeterá, esse sim, propriamente a obra de Frege.

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recorre à hipotética descoberta de uma pedra coberta de hieróglifos num deserto. As marcas

revelam que algum sujeito esteve ali inscrevendo cada um daqueles significantes na pedra,

mas tão certo quanto isso é o fato de que essas marcas não foram endereçadas ao sujeito que

os encontrou, possivelmente desconhecedor daqueles hieróglifos. Pelo contrário, a única razão

que leva o sujeito a encarar os hieróglifos como significantes, é o fato de ele supor que cada

um desses significantes se reporta a cada um dos outros significantes, e não ao sujeito. Sendo

mais preciso, é a conexão dos significantes, a cadeia que formam, que produz o efeito de

significação, e não a conexão entre um significante e um significado ou referente.

É por isso que, em “A subversão do sujeito e a dialética do desejo”, Lacan (1960) vai

dizer que o Outro, com O maiúsculo, é o lugar do tesouro do significante, e não um código,

pois nele não se conserva a correspondência unívoca entre um signo e “alguma coisa”. Se o

código sugere uma correspondência unívoca, a cadeia significante indica uma reunião

sincrônica e enumerável de significante, na qual eles se sustentam pelo princípio de oposição

a cada um dos outros. Em outros termos, a cadeia não se esgota, um significante sempre nos

remete a outro significante o que, por sua vez, faz com que a significação também não possa

parar. Se, como propõe Lacan (1957, p.505), somente as correlações do significante com o

significante fornecem o padrão de qualquer busca de significação, essa se sustenta sempre

pela remissão a uma outra significação.

Todavia, se a significação não cessa de se deslocar sobre a cadeia, nem por isso

podemos dizer que nenhum efeito de significação seja possível. Para Jean-Luc Nancy e

Philippe Lacoue-Labarthe (1991)20, a solução desse enigma está no que Lacan chamou de os

pontos de bastas [points de capiton]. Os pontos de bastas consistem em determinados lugares

da cadeia em que o significante interrompe o deslizamento do significado como que por um

fenômeno de pontuação, constituindo assim, mesmo que temporariamente, uma significação

como um “produto acabado”. O efeito de significação que a cadeia significante produz,

portanto, não se encontra preso a um elemento isolado da cadeia.

As conseqüências de se pensar o inconsciente estruturado como uma linguagem

extrapolam a dimensão significante alcançando a órbita de outro termo lacaniano que muito

nos interessará. Se Lacan faz uma nova leitura do signo saussuriano, demonstrando a

autonomia significante e reforçando a tese da linearidade de que o significante só pode

representar algo para outro significante, o autor avança ainda mais essa discussão quando

20Autores de O Título da letra, obra citada por Lacan no Seminário XX. Nesse mesmo seminário, além de

aconselhar a leitura do livro, Lacan, embora fazendo algumas objeções a respeito do conteúdo das últimas páginas da obra, diz não ter sido nunca tão bem lido quanto foi pelos referidos autores. O livro é uma leitura do texto “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”, escrito por LACAN em 1957.

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propõe sua perspectiva para o problema da letra. Enquanto o significante se caracteriza por

representar um sujeito para outro significante, a letra não representa nada, é o próprio

significante sem significado, desprovido, portanto, de significação.

Em “O seminário sobre a carta roubada”, Lacan (1956) demonstrará, a partir de um

conto de Edgar Alain Poe (2007), a materialidade que se deve atribuir à letra. No conto, a

carta recebida pela rainha é interpretada pelo ministro como uma carta de conteúdo secreto, o

que se deve aos efeitos que a mesma causa a Sua Alteza. Percebendo o valor do documento, o

ministro, com habilidade, troca a carta secreta por outra que trazia no bolso, sem que o rei

percebesse. Porém, faz tudo isso aos olhos da rainha. A posse da carta empresta um poder ao

ministro que a rainha logo tenta destituir contratando a polícia para recuperar o objeto

roubado. A polícia, assim como o rei, não enxerga a carta, que está, justamente, no ponto

menos oculto da casa do ministro. O Chefe de Polícia recorre a Dupin, que visita o ministro e

enxerga a carta. Dupin, então, prepara uma falsa confusão na rua que leva o ministro à janela

de sua casa enquanto ele, a exemplo da primeira cena, troca as cartas de lugar. A carta agora

está com Dupin, detendo um poder sobre o Chefe de Polícia, que se sente obrigado a pagar

um preço pelo resgate do papel.

A carta baliza todo o enredo do texto, emprestando ou retirando poder a cada um dos

personagens, sem que o leitor saiba qual é sua mensagem. A carta (em francês escrito da

mesma maneira que a letra [lettre]) gera seus efeitos independentemente do significado, do

sentido que carrega em seu conteúdo. É a carta enquanto materialidade, enquanto objeto, que

provoca efeitos diferentes de acordo com a posição que ela ocupa no conto. É nessa vertente

que Lacan fará uso da homofonia francesa entre as palavras carta e letra. A letra, assim como

a carta (não só a carta do conto de Poe), ultrapassa sua função de transmitir a mensagem. Para

Mandil (2003), no conto, isso se apresenta com maior evidência quando refletimos que a carta

causa seus principais efeitos depois que sua mensagem já chegou à sua destinatária. Mesmo

que a carta tenha cumprido sua função de transmitir a mensagem à rainha, seus efeitos não

param; pelo contrário, é aí que se impõem ainda mais fortemente.

E é por se dar conta de que a carta não se limita à sua função mensageira que Dupin

pode encontrar o papel. O detetive de Poe antevê a materialidade da carta, e daí a enxerga

como um objeto manipulável, possível de ser rasurada, rasgada, virada ao avesso. Seguindo o

exemplo lacaniano e aproveitando a homofonia francesa entre a carta e a letra, podemos,

desde já, prever em quê a noção lacaniana de letra pode nos servir no estudo da obra de

Manoel de Barros. Assim como o detetive Dupin, que era poeta nas horas vagas, Manoel

também sabe da materialidade da carta/letra e por isso a manipula, empresta a ela outra

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aparência, revira a palavra como o ministro revirou a carta, troca a letra de lugar como Dupin

faz no fim do conto. Manoel de Barros, como verdadeiro poeta que é, sabe que a letra pode se

destacar do seu contexto, deslocar de seu significado habitual. Sabe que um substantivo pode

ocupar o lugar de um verbo e um verbo que serve para captar um estímulo auditivo pode

servir para captar um estímulo visual: “Eu escuto a cor dos passarinhos.” (BARROS, 1993,

p.15). A carta/letra de Poe compartilha dessa capacidade e se desloca, se destaca, se

transforma, e a polícia, assim como o leitor mais desatento de Manoel, não sabe o que fazer

com a carta/letra, resiste a seus efeitos, embora a tenha ao alcance das mãos. Como lembra

Mandil (2003), esse é o sentido da citação lacaniana de Joyce: a letter, a litter: a letra não é só

mensagem, é também lixo, materialidade que se joga fora depois de consumida a mensagem.

Mas jogar fora não implica abrir mão do gozo que ela pode causar. E poetas como Manoel de

Barros sabem muito bem aproveitar esse material residual.

Convém lembrar, também, outra ocasião na qual Lacan (1985) chamará a atenção pra

essa materialidade da letra, usando como exemplo o objeto carta. É quando diz das cartas de

Gide queimadas por sua prima-esposa Madeleine Rondeaux. Mais uma vez percebemos que a

carta/letra não se limita à mensagem que carrega. Fato já observado por Lacan (1956) em “O

seminário sobre a carta roubada”, a carta não é usada pelos amantes apenas para fazer chegar

uma mensagem. Isso se torna explícito quando diante de um desfecho amoroso ocorre a

devolução, ou mesmo, como no caso de Gide, a destruição das cartas. Ao destruir as cartas

que Gide a havia encaminhado, Madeleine destrói o que ela própria tinha de mais precioso,

mas que também era o que mais podia fazer Gide lamentar. As possivelmente belas

mensagens da carta21 são substituídas por um ato de Madeleine: a destruição das mesmas.

Assim como na carta roubada do conto de Poe, a mensagem não é decisiva para os efeitos

causados pela marca da carta/letra. Se o efeito da carta se restringisse à mensagem, não teria

nenhum valor sua destruição, uma vez que a mensagem já havia sido transmitida: Madeleine

havia lido todas as cartas antes de destruí-las.

A letra, portanto, pelo menos nos textos lacanianos citados até o presente momento,

corresponde à face real do significante. E, por isso, ainda se encontra dentro dessa dimensão

significante, funcionando como seu suporte, o que a torna comparável ao objeto material da

carta, que também suporta uma mensagem. Também no já citado texto “A instância da letra

ou a razão desde Freud”, a letra ainda é designada como um “suporte material que o discurso

concreto toma emprestado da linguagem” (LACAN, 1957, p.498). A letra, aqui, será

comparada ao caractere tipográfico e se apoiará na distinção já evocada entre o significante e 21“Talvez nunca tenha havido correspondência mais bela...” (GIDE apud LACAN, 1958, p.773).

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o significado. A letra seria como o caractere tipográfico sem o sentido ou o significado que

pode compor. Essa posição justifica a fala de Miller de que a letra presentifica o que descola o

significante do significado, ou de que a letra é o termo usado por Lacan para designar “o

significante despojado de qualquer valor de significação” (MILLER, 1996, p.97). Nesse

sentido, a letra seria o significante depurado de seu significado e localizado na sua

materialidade.

Embora a letra, mesmo enquanto suporte material do significante, sempre nos remeta a

algo do real, destacado da dimensão significante, sua materialidade totalmente independente

do sentido veiculado e do jogo entre significante e significado aparece com mais força na obra

lacaniana a partir do Seminário XVIII (1971) e do artigo “Lituraterra” (1971), recebendo

grande ênfase também no Seminário XX (1972-1973). Vale lembrar que, como aponta Ram

Mandil (2003), essa distinção entre letra e significante talvez tenha sido propositadamente

indiferenciada por Lacan, principalmente nos textos que antecedem a década de setenta.

Em “Lituraterra” (1971), a letra ganha outros contornos. O título do artigo será

resultado de um jogo com as palavras onde, a exemplo de um poeta, Lacan cunhará, a partir

dos termos em latim litura e de sua raiz lino, um neologismo que parece se opor à palavra

literatura. Lituraterra seria, portanto, a literatura da rasura (litura), o escrito do rabisco, da

marca que nada representa. Desenvolvido no mesmo ano de 1971, o Seminário XVIII terá

como meta encontrar um discurso que não esteja sustentado pelo semblante próprio à

dimensão simbólica. Nessa busca lacaniana, que fará parte da nossa discussão no terceiro

capítulo, o escrito vai se apresentar como uma saída possível justamente por se apoiar na letra,

enquanto que a fala se caracterizaria pelo uso do significante. A letra então receberá cada vez

mais uma dimensão real destacada não só de uma mensagem que possa suportar, mas também

de qualquer referência ao simbólico. A metáfora da carta que suporta uma mensagem é

substituída pelo sulco, pela rasura que suporta a marca. A letra é marca, é rasura que nada

representa. Diferentemente do significante, a letra se detém. Ela delineia um litoral entre o

simbólico e o real, desenhando a borda do furo no saber. É litoral que vira literal. Litoral este

que se situa entre centro e ausência, entre saber e gozo. A letra, portanto, se encontra fora do

jogo representativo, não representa; pelo contrário, se detém em sua própria materialidade.

Não forma cadeia, marca. Não engendra um sentido, faz furo. Assim, a letra vai aos poucos

deixando de ser apenas suporte material de uma mensagem para ser entendida também como

materialidade desconectada de qualquer sentido, o que, principalmente no Seminário XX

(1972-1973), será ilustrado pelo matema, mais do que pela carta.

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Sem avançarmos demais nessa discussão a respeito da letra enquanto matema e das

conseqüências que Lacan retirará disso no âmbito da transmissão, meta do nosso próximo

capítulo, voltemos ao nosso principal objeto de estudo: a letra em Manoel de Barros. Ao

sugerir uma poética que se desenvolva a partir de uma desaprendizagem, que retira do texto a

significação ordinária e propõe um esvaziamento do sentido, podemos dizer que Manoel

busca alcançar algo da letra, da palavra “despida” de sua significação. Assim como a carta de

Poe se sustenta por sua materialidade, colocando em segundo plano sua mensagem, a poesia

de Manoel de Barros dará um tratamento semelhante à palavra. A palavra na obra de Barros

será manipulada de tal forma que sua materialidade ganhe força em detrimento de seu

significado, em detrimento da mensagem que comumente ela veicula. Esse raciocínio é que

nos fará prosseguir na hipótese de que, sem querer reduzir a obra do poeta a uma fórmula

psicanalítica, a poética da desaprendizagem pode ser encarada como uma tentativa de fazer o

significante funcionar como letra. A obra de Barros será marcada por essa busca em operar

com o significante em sua materialidade, lá onde ele se encontra em dissonância com a cadeia

significante em que ele está introduzido, produzindo um texto que, a exemplo do que Julia

Kristeva (1974) irá dizer a respeito da linguagem poética, é estranho à própria língua, não

condiz com a lei que rege o sistema lingüístico “cotidiano”. Por variadas vezes, a poesia de

Barros desloca um significante da cadeia que o regula e que o faz representar um significante

a outro significante, buscando, dessa maneira, atingir a materialidade própria da letra. É assim

que podemos observar que, ao invés de descrever os objetos a partir de seus conhecimentos, o

poeta prefere desinventá-los para que surja o novo: Desinventar objetos. O pente, por exemplo. Dar ao pente funções de não pentear. Até que ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha. Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma. (BARROS, 1993, p.11).

Esse esvaziamento do significante, desvinculando-o do significado, tirando o sentido e

o “idioma”, e apontando, justamente, para o fora-do-significante, para o sem-sentido, pode ser

lido como uma busca do poeta por um significante que fizesse função de letra, um significante

despojado de qualquer idioma, de qualquer valor de significação. No poema acima, podemos

ver o poeta buscar por algumas palavras que estejam, justamente, desprovidas do idioma;

desprovidas, por que não dizer, de representações. É a busca de Manoel por significantes

carentes de um significado, carentes do sentido normal das palavras, carentes de um sentido

que pudesse, por exemplo, ser compartilhado em nossos dicionários.

Como vimos no primeiro capítulo, Barros chamará esse uso da palavra deslocada da

cadeia significante de “um desvio” próprio aos bugres. Também a chamará de um

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“descomportamento semântico” (BARROS, 2000, p.65), nos indicando que o golpe de sua

poesia, como veremos, é dado, principalmente, no sentido que a palavra tenta veicular, em seu

semantismo. Em outras palavras, a poesia de Barros se desvia é do sentido. Destarte, o

significante, muitas vezes, é preservado – mas nem sempre; existem neologismos na obra do

poeta –; porém, mesmo quando preservado, o significante se encontra numa posição em que

se abstém ao que Manoel chama de sentido normal, obrigando, então, que a palavra receba

uma nova função, uma “finalidade” que rompa com o sentido cotidiano e lhe empreste um

“comportamento lingüístico” novo: Se eu digo que grota é uma palavra apropriada para ventar nas pedras, Apenas faço o desvio da finalidade da grota que não é a de ventar nas pedras. Se digo que os passarinhos faziam paisagens na minha infância, É apenas um desvio das tarefas dos passarinhos que não é a de fazer paisagens. Mas isso é apenas um descomportamento lingüístico que não ofende a natureza dos passarinhos nem das grotas. Mudo apenas os verbos e às vezes nem mudo. Mudo os substantivos e às vezes nem mudo. (BARROS, 2000, p.65/66).

É hora de introduzirmos outra discussão que nos ajudará não somente a pensar a

significação que o uso da letra tenta excluir, como também a pensar como o processo de fazer

o significante funcionar como letra pode, ao invés de fechar uma significação, “abrir um

leque”22, o que faz com que um texto como o de Manoel de Barros possa se enriquecer de

uma infinidade de sentidos. Para isso, antes de voltarmos a Lacan, recorreremos a algumas

considerações do semiólogo e crítico literário Roland Barthes e a relação que suas críticas

podem ter com a obra de Manoel. Antes de explorarmos a oposição feita pelo autor entre

significação e significância – que mais nos interessará – vale recorrer a outras oposições

presentes em sua obra que nos ajudarão a localizar o texto de Barros na crítica barthesiana.

Não estando à procura do envio de uma mensagem: “Não queria comunicar nada. Não

tinha nenhuma mensagem” (BARROS, 1996b, p.325), a poesia de Manoel de Barros

aproxima-se do que Barthes (1987) chama de texto de gozo, ou, de acordo com algumas

traduções, texto de fruição (jouissance, em francês). O semiólogo francês, em O prazer do

texto, chama de texto de gozo aquele que põe em estado de perda, desconforta, faz vacilar as

bases históricas, culturais e psicológicas do leitor, faz entrar em crise sua relação com a

linguagem. Dez anos antes, Barthes (2007) já havia separado duas classes de escritores, a que

chama de “o escritor” propriamente dito e a que chama de “o escrevente”. Segundo o autor, o

material comum do escritor e do escrevente é a palavra; lembremos: “o negócio” de Manoel

de Barros. Porém, se o escrevente usa a palavra como um meio para atingir algum fim, como

22 Referência à fala de Lacan (1972-1973) sobre “significância”, assunto ao qual passaremos a discorrer.

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um instrumento para transmitir uma mensagem, o escritor usa a palavra como seu próprio fim.

A palavra, para o escritor, não é um instrumento nem um veículo, não põe termo à

ambigüidade do mundo; pelo contrário, o interroga. Poderíamos localizar o texto de gozo do

lado do escritor, mas como alerta o próprio Barthes, essa distinção entre escritores e

escreventes não é estanque e raramente é pura, “...cada um hoje se move mais ou menos

abertamente entre as duas postulações, a do escritor e a do escrevente;” (BARTHES, 2007,

p.37-38). Em um suplemento ao livro Prazer do Texto, Barthes também faz uma ressalva à

oposição entre texto de gozo e texto de prazer, dizendo que essa distinção ...só é verdadeira em certos limites, que não são de modo algum referenciais, mas discursivos. (...) Não esperem desse osso que contenha a mínima medula, não o interroguem sob a relação das obras, da história. (BARTHES, 2004, p.259).

Ainda que essa distinção só seja verdadeira em certos limites, é de se considerar que a

poesia de Manoel de Barros traz muito mais um estado de desconforto, próximo da descrição

barthesiana do texto de gozo, do que uma prática confortável de leitura. Esse desconforto é o

que possibilita ao leitor de Manoel de Barros deparar-se com algo da ordem do

estranhamento, sem significação, do in-dizível próprio do gozo. E é a esse caminho – ou

atalho – que a desaprendizagem de Manoel de Barros nos conduz: ao rumo mesmo desse in-

dizível, dessa falta do sentido.

Para Barthes (2004), o sentido, embora um conceito muito geral e pouco preciso, ainda

é tido, a partir do esquema de Saussure, como a união entre um significante e um significado.

Barthes destaca três regimes antropológicos do sentido: a polissemia, existência de vários

sentidos para a mesma mensagem, ou seja, vários significados para o mesmo significante; a

monossemia, que seria um regime patológico onde todo significante e toda mensagem

comportaria um só sentido; e a assemia, que é a busca pela isenção do sentido. O autor ainda

alerta que a assemia não tem a ver com o absurdo, pois o absurdo é um sentido, e a assemia

seria um estado ainda mais difícil de realizar, pois é um vazio de sentido, ou melhor, um

sentido lido como vazio. Este estado é realizado por três práticas; a saber, pelas linguagens

formalizadas tais como a matemática e a lógica, pelas experiências místicas, como o zen

budismo, e por algumas vanguardas literárias.23 Como exemplo de assemia, Barthes cita a

obra de Lautréamont24 dizendo ser esta “...uma experiência de assemia ou de procura de um

23 O autor lembra ainda que “...os teóricos do zen entenderam muito bem que a tarefa mais difícil do mundo não

é dar sentido (fazemos isso naturalmente), mas, ao contrário, retirar o sentido...” (BARTHES, 2004 , p.119) 24 Segundo Leyla Perrone-Moisés (2000, p.85), Isidore Lucien Ducasse, conhecido como Conde de Lautréamont,

foi, apesar de cronologicamente anterior, uma das influências literárias mais fundamentais à Vanguarda Literária Européia, principalmente ao movimento surrealista. O escritor, ainda segundo Perrone-Moisés, foi

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discurso que esteja de algum modo desipotecado do sentido ou, em todo caso, do antigo

regime de sentido.” (BARTHES, 2004, p.121). Podemos encontrar no texto de Manoel de

Barros essa mesma sugestão de se chegar a um discurso desipotecado do sentido ou do antigo

regime do sentido: O sentido normal das palavras não faz bem ao poema. Há que se dar um gosto incasto aos termos. Haver com eles um relacionamento voluptuoso. Talvez corrompê-los até a quimera. Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los. Não existir mais rei nem regências. Uma certa liberdade com a luxúria convém. (BARROS, 1989, p.299).

Manoel evidencia sua recusa ao sentido normal das palavras quando, por exemplo, em

Arranjos para Assobio, propõe um “Glossário de transnominações em que não se explicam

algumas delas (nenhumas) – ou menos”. Aproveitando da estrutura de um dicionário comum,

o poeta fará uma subversão no seu Glossário, buscando, como antecipa seu título, a não

explicação das palavras. Ao invés de oferecer um significado que participe efetivamente de

nosso léxico, um complemento ao qual a palavra já esteja acostumada, o que o poeta fará será,

justamente, varrer de seu Glossário os sentidos comuns das palavras para oferecer ao leitor

sentidos outros a partir do que ele chamou de transnominações: Lesma. S.f. Semente molhada de caracol que se arrasta sobre as pedras deixando um caminho de gosma escrito com o corpo Indivíduo que experimenta a lascívia do ínfimo Aquele que viça de líquenes no jardim (BARROS, 1980, p.214/215/216).

Ao comparar a poesia de Manoel de Barros às composições para piano do músico

francês Erik Satie na orelha do Livro de Pré-coisas, Ênio Silveira diz da variabilidade de

sentidos contidos em cada palavra da poesia de Barros: Com extraordinária economia de meios e enganosa simplicidade formal, ambos nos revelam aos poucos, de mansinho, assim como quem não quer, denso e recôndito universo interior de refinada sensibilidade, onde cada palavra e cada nota têm sempre pelo menos mil sentidos possíveis além daquele que de pronto se evidencia. (Ênio Silveira, orelha do Livro de Pré-Coisas, de Manoel de Barros).

Equivocar os sentidos possibilitando mil sentidos possíveis além daquele que de

pronto se evidencia, sugerir novos regimes para o sentido, ou atingir essa experiência de

assemia, parece uma forma, ou várias, de privilegiar o que Barthes chama de significância em

autor de uma obra irônica, imaginativa e transfiguradora que, mais do que a busca pelo sentido, explorava coisas como o encontro de objetos aparentemente disparatados.

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contraposição à significação. A significação, para Barthes (2004), está do lado do que Manoel

de Barros chama de palavra acostumada, do sentido normal. A significação, portanto, seria o

aprisionamento de um significante a um significado gerando um regime de sentido fixo, um

produto. Atingir algum efeito de significação, portanto, seria interromper o deslizamento do

significado sobre o significante, extraindo dessa operação uma significação que tanto Barthes

como Lacan chamam de “produto acabado”25. Já a significância traria para o texto uma nova

dimensão, a dimensão da produtividade, que desipotecando o discurso do sentido, ou do

antigo regime do sentido, traz a possibilidade de um trabalho. Se o texto é uma prática

significante, a significância é a maneira pela qual o texto revela esse trabalho, teatraliza esse

processo. O texto trabalha a língua, e é sua função mostrar esse trabalho, desestruturando a

linguagem e buscando reconstruir uma nova língua – por que não, o “idioleto manoelês

archaico”. É a revelação desse trabalho que encontramos no Glossário de Manoel, Sol, s. m. Quem tira a roupa da manhã e acende o mar Quem assanha as formigas e os touros Diz-se que: se a mulher espiar o seu corpo num ribeiro florescido de sol, sazona Estar sol: o que a invenção de um verso contém Árvore, s. f. Gente que despetala Possessão de insetos Aquilo que ensina de chão diz-se de alguém com resina e falenas Algumas pessoas em quem o desejo é capaz de irromper sobre o lábio, como se fosse a raiz de seu canto (BARROS, 1980, p.214/215/216).

A oposição entre significância e significação na obra barthesiana se aproxima do

ensino lacaniano sobre esse mesmo tema. Embora Lacan se dê conta de que a significação

remete sempre à significação26, localizará essa operação do lado da “pontuação”, dizendo que

a significação, ou pelo menos o efeito de significação, pode se constituir como “produto

acabado”. No Seminário XX, o autor irá dizer que a significância é algo que se “abre em

leque”. Enquanto a significação se constitui como “produto acabado”, interrompendo o

deslizamento do significado sobre o significante e fechando um sentido, a significância, pelo

contrário, se abre.

Como exemplo de significância, Lacan (1972-1973, p.30) lembra a expressão francesa

à tire-larigot, traduzida por M.D. Magno por à beça. Segundo Lacan, se buscarmos no

25 Vide Lacan (1960, p.820) e Barthes (2004, p.271). 26 LACAN, 1966, p.354.

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dicionário a expressão citada, encontraremos “coisas novas” e distintas, quem sabe até “um

senhor chamado Bessa” de quem a expressão derivou. Porém, nenhum dos significados

parece aprisionar o que quer dizer à tire-larigot. Para Lacan, a pergunta sobre o que quer

dizer essa expressão, assim como outras expressões chamadas por ele de extravagantes,

continua. Seguindo esse raciocínio, ele responderá à pergunta sobre o que é a significância

dizendo que “No nível em que estamos, é aquilo que tem efeito de significado.” (LACAN,

1972-1973, p.30). Algumas páginas antes, no mesmo Seminário, Lacan já terá dito que

também o significante é, primeiro, o que tem efeito de significado. Este raciocínio, se

levarmos em conta as considerações de Barthes, podem nos fazer crer que o significante,

antes de qualquer coisa (primeiro), se permite ao trabalho de significância; ele tem efeito de

significado, e é por isso que ele não só é autônomo ao significado, mas também antecipa o

sentido. Somente depois de sua associação ao significado, somente após representar um

significante para outro significante, é que pode fazer com que um ponto de basta capture uma

significação.

O significante, portanto, se despojado de seu valor de significação, se distante de um

significado que o aprisione, longe de “afivelar um sentido”27, longe de fechar uma

significação, abre uma significância, e o faz, justamente, por funcionar como letra, como um

suporte material que não representa, que não oferece um produto acabado, mas que se “abre

em leque”. Isso justifica a fala de Miller (1996) de que, quanto menor o semantismo, ou seja,

quanto mais o significante apresenta-se afastado de seu valor de significação, maior sua

significância. Em outras palavras, quanto mais separado, quanto mais funcionando “como

letra”, mais o significante produz significância em detrimento de seu valor de sentido

cotidiano, de sua significação. Pensando ser nesse trabalho de significância que reside o poder

poético das palavras, Miller concluirá seu raciocínio dizendo: “Esse mais-de-significante, é o

que podemos chamar de efeito poético.” (MILLER, 1996, p.98).

Nessa mesma perspectiva, Vanderveken (2000) dirá que o efeito poético surge no

momento em que o sentido toca o não-sentido, e isso nos remete à letra enquanto litoral,

borda. É, portanto, por meio de um movimento de suspensão de qualquer decisão semântica,

que surge o poder poético das palavras de evocar uma multiplicidade de significações.

Também Kristeva, citando os semioticistas soviéticos, irá ressaltar que as construções

poéticas só são consideradas como tais pelo fato de sua aparição ser muito pouco provável, o

que os leva (os semioticistas soviéticos) à fórmula de que “seria poético o que não se tornou

lei” (KRISTEVA, 1974, p.52/53). O efeito poético estaria, portanto, fora da lei da linguagem, 27 LACAN, 1957.

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excluído da cadeia significante e inserido mais na prática da letra, na marca, do que na

representação própria ao significante.

Manoel de Barros também aposta nesse caminho para atingir o efeito ou o poder

poético de suas palavras. E é nessa busca de fazer o significante funcionar “como letra”,

litoral entre o sentido e o não sentido, que parece consistir sua desaprendizagem. Como já

vimos, o poeta, ao desinventar objetos, ressalta justamente a indecisão semântica da palavra.

Tira do significante pente “a função” de pentear e o deixa em suspenso, ou, para ser mais fiel

ao texto de Barros, o deixa “à disposição”. Nessa mesma direção, nessa mesma aventura

literária, o poeta usará ainda, como outro recurso à desaprendizagem, o que ele chama de

desnomeação.

Para entender a lógica da desaprendizagem do poeta, assim como a importância que a

prática de desnomear tem para ela, é interessante observar um poema no qual Manoel de

Barros dá uma pista do que seria para ele uma aprendizagem. O poeta começa descrevendo

com beleza a cena do rio que rodeava sua casa: “O rio que fazia volta atrás da nossa casa era a

imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa”. Continuando, o poeta irá dizer

de como que, ao receber um nome, o rio perdeu sua capacidade de inspirar a imaginação, em

outras palavras, perdeu em significância: “Passou um homem depois e disse: Essa volta que o

rio faz por trás de sua casa se chama enseada. Não era mais a imagem de uma cobra de vidro

que fazia uma volta atrás de casa. Era uma enseada.”. Barros concluirá seu poema fazendo um

alerta: “Acho que o nome empobreceu a imagem”. (BARROS, 1993, p.23).

Se o nome empobrece a imagem, é justamente porque fecha um sentido nele, solidifica

uma significação, fixa uma interpretação e diminui assim o trabalho de significância do texto.

Nesta mesma perspectiva de que o nome traz o empobrecimento, encontramos em O Livro

das ignorãças um personagem que, segundo o autor, Gostava de desnomear: Para falar barranco dizia: lugar onde avestruz esbarra. Rede era vasilha de dormir. Traços de letras que um dia encontrou nas pedras de uma gruta, chamou: desenhos de uma voz. Penso que fosse um escorço de poeta. (BARROS, 1993, p.79).

Da mesma forma que “enseada” empobrecia a imagem, fechava e antecipava um

sentido e encerrava as possíveis significações singulares que o poeta dava ao rio que fazia

volta atrás de sua casa, desnomear o barranco, fazendo esse significante funcionar “como

letra”, deixando-o sem significação, abre espaço para uma maior significância e,

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conseqüentemente, traz a possibilidade de uma nova criação, de um trabalho: por exemplo,

“lugar onde avestruz esbarra”.

Manoel de Barros parece perceber o poder poético das palavras muito mais nas

desnomeações e transnominações contidas em sua poética da desaprendizagem do que na

nomeação ou na prática de aprendizagem. Ao poeta, segundo Manoel de Barros, cabe muito

mais a desformação do mundo do que a sua descrição: O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo. Isto seja: Deus deu a forma. Os artistas desformam. É preciso desformar o mundo: Tirar da natureza as naturalidades. Fazer cavalo verde, por exemplo. (BARROS, 1996, p.75).

É interessante atentar novamente para a busca de um momento, mítico que seja, no

qual as palavras “ainda” não estavam presas a um sentido, um momento no qual as palavras

“ainda” não tinham idioma, ou como veremos adiante, um momento em que se pode captar

“...o som que ainda não deu liga” (BARROS, 1998, p.53). Em seu curso Seis lições sobre o

som e o sentido, Roman Jakobson (1977) irá definir a palavra como sendo um valor

lingüístico concebido por um grupo de fonemas que teriam como função a distinção do

sentido. Para Jakobson, a principal função dos sons é diferenciarem as significações das

palavras. Assim como um significante se relaciona com outros significantes da cadeia, o

fonema também se relaciona entre si através de uma distinção que afeta o sentido que o som

pode veicular. É por isso que podemos dizer que o som, para Jakobson, está intimamente

ligado à função do sentido e que os fonemas e suas qualidades distintivas também servem a

essa mesma função. Se na linguagem comum os sons estão ligados ao sentido, o que Manoel

de Barros busca é encontrar o som desvinculado do “...sentido normal das palavras...”

(BARROS, 1989, 299). Lembremos o apelo do poeta: Agora só espero a despalavra: a palavra nascida para o canto – desde os pássaros. A palavra sem pronúncia, ágrafa. Quero o som que ainda não deu liga. Quero o som gotejante das violas do cocho. A palavra que tenha um aroma ainda cego. Até antes do murmúrio. Que fosse nem um risco de voz. Que só mostrasse a cintilância dos escuros. A palavra incapaz de ocupar o lugar de uma imagem. O antesmente verbal: a despalavra mesmo. (BARROS, 1998, p.53).

Vemos na desaprendizagem de Manoel de Barros uma valorização do som que ainda

não deu liga, do antes mesmo do murmúrio, da palavra incapaz de ocupar o lugar de uma

imagem. É como se o poeta fosse atrás da, digamos por enquanto, “matéria prima” da

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linguagem, do som que ainda não foi articulado em um sentido que possa servir à

comunicação.

Vale, mais uma vez, recorrermos à monografia de Freud sobre a afasia que nos ajudará

a pensar sobre um momento em que a linguagem se encontra, nos arriscaremos dizer, em sua

fase “nascente”. Para entender os problemas da afasia, o pai da psicanálise acaba

desenvolvendo uma pequena teoria da aquisição da linguagem; esta começa pela emissão de

sons que a criança se presta a fazer e apresenta um caráter motor mais presente do que o

caráter simbólico. É o que chamamos, por vezes, de balbucio. A criança balbucia sem a

intenção ainda de controlar o som que produz. Porém, os sons gerados por elas somados aos

sons gerados por outros seres humanos e compartilhados pela língua, as fazem criar uma

“imagem sonora” da palavra que a criança tentará repetir. Existem, portanto, dois registros da

“imagem sonora”: um é aquele que nós criamos a partir do nosso próprio balbucio, o outro é o

que corresponde à língua de outras pessoas e que também tentamos imitar. Na transição

dessas duas fases presentes no desenvolvimento da fala é que podemos localizar o que o poeta

chama de palavra “ágrafa” ou, em conformidade com a monografia freudiana, a palavra

afásica. Aí temos o som que não deu liga, o rumor situado entre o balbucio e a língua

propriamente dita, a fase em que usamos uma linguagem que nós mesmos construímos, fora,

portanto, da utilidade comunicacional.

A respeito dessa busca de Manoel pelo momento embrionário da palavra, Lúcia

Castello Branco (1995) nota que o próprio título de alguns livros do poeta28 já encerram a

idéia de uma poesia mergulhada no material de que ela se servirá: o conteúdo pré-discursivo

do assobio, o canto dos pássaros, as entranhas do chão e, sobretudo, o estado nascente da fala

na boca das crianças e dos loucos. Em seu poema intitulado “Línguas”, o poeta revela seu

fascínio por línguas tais como a dos Guaranis que, a exemplo da fala em sua fase primitiva,

priorizam mais o rumor, o som, do que o sentido articulado: Contenho vocação pra não saber línguas cultas. Sou capaz de entender as abelhas do que alemão. Eu domino os instintos primitivos. A única língua que estudei com força foi a portuguesa. Estudei-a com força para poder errá-la ao dente. A língua dos índios Guatós é múrmura: é como se ao dentro de suas palavras corresse um rio entre pedras.

28 Compêndio para uso dos pássaros, 1961, Gramática expositiva do chão, 1966, Matéria de Poesia, 1974, e

Arranjos para assobio, 1982, por exemplo.

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A língua dos Guaranis é gárrula: para eles é muito mais importante o rumor das palavras do que o sentido que elas tenham. Usam trinados até na dor. Na língua dos Guanás há sempre uma sombra do charco em que vivem. Mas é língua matinal. Há nos seus termos réstias de um sol infantil. Entendo ainda o idioma inconversável das pedras. É aquele idioma que melhor abrange o silêncio das palavras. Sei também a linguagem dos pássaros – é só cantar. (BARROS, 2000, p.17).

Ao falar dos Guaranis, Manoel revela a admiração desse povo pelo rumor das

palavras, mais do que pelo sentido que elas têm. Em seu artigo “O Rumor da língua”, Barthes

(2004) define o rumor exatamente como uma operação que tornasse o aparelho semântico

irrealizado, deixasse o sentido indiviso, impenetrável e se valesse apenas do que ele chamou

de trama sonora que alojaria em si um gozo. Observa que “o rumor da língua” não exclui

brutal e dogmaticamente o sentido. Para o autor, ao rumorejar a língua, o sentido é posto ao

longe como uma miragem. O rumor não é mais que o ruído de uma ausência de ruído, o não-

sentido que faz ouvir ao longe um sentido liberto de todas as agressões do signo.

Em sua desaprendizagem, que almeja a palavra funcionando como letra, Manoel de

Barros acaba aproximando-se também do que Lacan chamou de lalangue29 em O Seminário:

Livro XX. Nesse seminário, Lacan usará o termo para designar, justamente, uma relação do

sujeito com a língua que não passasse pelo campo comunicacional, localizando, nesse termo,

uma operação que diz muito mais do gozo enquanto satisfação pulsional que inclui tanto o

sofrimento quanto o prazer, do que da comunicação: “Lalangue serve para coisas inteiramente

diferentes da comunicação.” (LACAN, 1972-3, 188). Se lalangue difere da linguagem em sua

dimensão comunicacional, é bom reforçar que essa distinção precisa ser relativizada, já que a

linguagem não serve unicamente à comunicação e nem exclui o gozo; pelo contrário, a

linguagem é, para Lacan, um aparelho de gozo, e o é por conter nela o que chamou de

lalíngua. A linguagem, sem dúvida, é feita de alíngua. É uma elocubração de saber sobre alíngua. Mas o inconsciente é um saber, um saber-fazer com alíngua. E o que se pode fazer com alíngua ultrapassa de muito o de que podemos dar conta a título de linguagem. (LACAN, 1972-1973, 190).

29 O poeta Haroldo de Campos (1995), em seu ensaio “O afreudisíaco Lacan na galáxia de lalíngua”, discorda da

tradução comumente empregada a esse “neovocábulo” de Lacan. Para Campos, alíngua, ao contrário da palavra em francês lalangue, sugere, em português, uma negação da língua, uma carência da linguagem. O poeta lembra que lalangue é o oposto da não-língua, é uma língua enfatizada, uma língua tensionada pela função poética. Haroldo de Campos sugere, então, traduzirmos lalangue por lalíngua, termo que será usado doravante neste trabalho.

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Manoel parece, novamente, ao buscar o rumor da língua, procurar atingir algo da

vertente da letra, mas também do som que não deu liga, da origem da palavra: “Eu queria

avançar para o começo. / Chegar ao criançamento das palavras.” (BARROS, 1996, p.47). Essa

busca pela despalavra aparecerá não só em neologismos como “bestamento”, “necedade”,

“niquices”, etc., como na descrição do gozo causado pelas palavras na voz de quem as

profere, Certas palavras têm ardimentos; outras, não. A palavra jacaré fere a voz. É como descer arranhado pelas escarpas de um serrote. É nome com verdasco de lodo no couro. Além disso é agríope (que tem olho medonho). Já a palavra garça tem para nós um sombreamento de silêncios... E o azul seleciona ela! (BARROS, 1991, p.19).

Vemos, nesse trecho, a narração dos efeitos de gozo que a palavra jacaré gera na voz,

ela fere a voz. Manoel de Barros mostra que não só aos Guaranis, mas também a ele, o rumor

das palavras importa mais do que o sentido que têm. É como se o poeta esquecesse o

significado da palavra jacaré, ou da articulação, do trabalho feito pela linguagem sobre essa

palavra, para reparar no efeito quase orgânico que a palavra gera no ser falante. Não importa

aqui que o poeta busque nessa “organicidade” uma aproximação com o significado da palavra

ou com a imagem de um jacaré que também fere, vive no lodo e é revestido de couro. O que

importa mais do que isso parece ser o gozo que a palavra gera. É esse gozo que o poeta chama

de orgasmo com as palavras: “Uma semente genética de desencontros que veio desaguar

nessa esquisita coisa de ter orgasmo com as palavras” (BARROS, 1996b, p.331).

Outro exemplo desse gozo da palavra, presente na poesia de Barros, encontramos em

O Guardador de Águas, Alfama é uma palavra escura e de olhos baixos. Ela pode ser o germe de uma apagada existência. Só trolhas e andarilhos poderão achá-la. Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu, ao fóssil, ao ouro que trazem da boca do chão. Andei nas pedras negras de Alfama. Errante e preso por uma fonte recôndita. Sob aqueles sobrados sujos vi os arcanos com flor! (BARROS, 1989, p. 297).

Nesses exemplos, o poeta não se interessa pelo sentido das palavras, mas pelo rumor

que carregam e pelo gozo que ele alcança através delas. Em “A língua mãe”, poema que faz

parte do livro infantil O fazedor de amanhecer, o poeta deixa ainda mais claro seu

desinteresse pelo sentido quando compara duas palavras que, em línguas diferentes, buscam

capturar o mesmo sentido:

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Não sinto o mesmo gosto nas palavras: oiseau e pássaro. Embora elas tenham o mesmo sentido. Será pelo gosto que vem de mãe? De língua mãe? Seria porque eu não tenha amor pela língua de Flaubert? Mas eu tenho. (Faço este registro porque tenho a estupefação de não sentir com a mesma riqueza as palavras oiseau e pássaro) Penso que seja porque a palavra pássaro em mim repercute a infância E oiseau não repercute. Penso que a palavra pássaro carrega até hoje nela o menino que ia de tarde pra debaixo das árvores a ouvir os pássaros. Nas folhas daquelas árvores não tinha oiseaux Só tinha pássaros. É o que me ocorre sobre língua mãe. (BARROS, 2001, s/p).

Dentro do idioma próprio a cada uma dessas palavras, seja ele o francês ou o

português, o significante aponta para um significado – talvez nesse caso específico, pode-se

dizer, para um referente – quase idêntico. No entanto, a palavra “pássaro” repercute no poeta

algo da infância que seu equivalente, no francês, não repercute. O gozo, portanto, encontra-se

atrelado nesse poema ao som, muito mais do que ao significado. O significante antecipa o

sentido e provoca o gozo.

Esse desinteresse pelo sentido da palavra em prol de uma valorização do gozo, do

orgasmo com as palavras, juntamente com a busca da origem, contribui com a poética da

desaprendizagem do poeta. Talvez isso ajude a promover ainda mais o fascínio do autor pelo

campo da infância e das línguas arcaicas. É como se Manoel de Barros procurasse na criança

a origem do que Lacan chamou de elucubração de saber sobre lalíngua. Ou, para aproximar-

nos de Manoel, o “antesmente” dessa elucubração. Não é à toa que o poeta define a poesia

como sendo uma prática de crianças e loucos. Em seu “Glossário...” o autor reserva para o

verbete “Poesia” a seguinte definição: Poesia, s.f Raiz de água larga no rosto da noite Produto de uma pessoa inclinada a antro Remanso que um riacho faz sob o caule da manhã Espécie de réstia espantada que sai pelas frinchas de um homem Designa também a armação de objetos lúdicos com emprego de palavras imagens cores sons etc. – geralmente feitos por crianças pessoas esquisitas loucos e bêbados. (BARROS, 1980, p.215).

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A busca pela origem da palavra aparece também sob a forma metafórica da nudez.

Para Lúcia Castello Branco, “Um dos processos de que se vale Manoel de Barros para

decifrar essa ‘gramática do chão’ consiste no descascamento da palavra até atingir seu estado

inicial de nudez” (CASTELLO BRANCO, 1995, 126). Se, para o dramaturgo Harold Pinter

(1976), uma forma de encarar a fala humana é a de considerá-la como um estratagema para

cobrir nossa nudez, para Manoel, “a língua é uma tapagem” (BARROS, 1985, p.68), e o

trabalho do poeta é de desmontar esse estratagema. Barros, como diz Lúcia Castello Branco,

vai tentar atingir a “nudez do inominável da ‘coisa que não faz nome para explicar’”

(CASTELLO BRANCO, 1995, p.126). O artista lança mão de versos que cultuam a palavra

despida de qualquer sentido e que revelam seu interesse por essa nudez: “Certas palavras

pediam para mostrar os pentelhos.” (BARROS, 1970, p.27), ou “Uma palavra abriu o roupão

pra mim. Ela deseja que eu a seja” (BARROS, 1996, p.70). Mais tarde, o poeta ainda

completará essa última frase: “Uma palavra abriu o roupão pra mim. / Vi tudo dela: a escova

fofa, o pente a doce maçã. / A mesma maçã que perdeu Adão. (...) Depois a palavra teve

piedade / E esfregou a lesma dela em mim.” (BARROS, 2004, p.69). Dessa maneira é que o

próprio poeta, em alguns de seus poemas, definirá sua arte como sendo essa busca pela

palavra despida. Aqui, podemos entender que a palavra se despe de seu significado, de seu

sentido normal e da mensagem que carrega, deixando à mostra toda sua nudez e

materialidade, para então, vir esfregar-se no poeta.

Além de sua busca pelo significante despido de seu idioma, o poeta destaca também o

uso que procura fazer desse seu “encontro” com a nudez da palavra que, como dirá, se baseia

numa espécie de “orgasmo”. Enfim, trata-se do gozo que ele retira desse “encontro” ou, se

nesses termos corremos o risco de uma imprecisão, diremos, então, do gozo que ele retira

desse “esfregão” que o poeta recebe da lesma da palavra. À sua maneira, o autor nos

testemunhará esse seu gozo através de versos como: “A lesma influi muito em meu desejo de

gosmar sobre as palavras / Neste coito com letras!” (BARROS, 1989, p.293); ou então,

“Experimento o gozo de criar. Experimento o gozo de Deus. Faço vaginação com as palavras

até meu retrato aparecer.” (BARROS, 1998, p.21); ou ainda, “Prefiro fazer vadiagem com

letras. Ao fazer vadiagem com letras posso ver quanto é branco o silêncio do orvalho.”

(BARROS, 1998, p.51). Assim é que Manoel de Barros, através de uma prática literária que

lhe é própria, goza, faz coito, obtêm orgasmos, enfim, faz vadiagem com as palavras.

Esse gozo retirado das palavras vai ao encontro do ensino lacaniano que localiza na

prática da letra e no uso da lalangue uma inutilidade própria do gozo. A linguagem, mesmo

que sirva à utilidade comunicacional, serve também, como já fizemos notar, ao gozo. Lacan

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irá, inclusive, acentuar a distância existente entre esses dois aspectos da linguagem, a

utilidade e o gozo, evidenciando a diferença existente entre os termos, quando, por exemplo,

se pergunta: “O que é o gozo? Aqui ele se reduz a ser apenas uma instância negativa. O gozo

é aquilo que não serve para nada.” (LACAN, 1972/1973, p.11). Se o gozo é uma satisfação

que, como apontamos, inclui o conflito de atender o prazer e o sofrimento, e se essa satisfação

pulsional é marcada por uma não-serventia, o utilitarismo será encarado justamente como a

necessidade de servir: “O utilitarismo não quer dizer outra coisa senão isto – as velhas

palavras, as que já estão em serventia, é no para o que elas servem que é preciso pensar. Nada

mais.” (LACAN, 1972/1973, p.80).

Leyla Perrone-Moisés (2000), em uma declarada defesa à obra de Mallarmé, destacará

o quanto a sociedade é marcada pelo utilitarismo, pela necessidade de serventia,

principalmente, em se tratando da linguagem. Para ela, os textos que fogem a essa lógica do

utilitarismo, os poemas que não servem para nada, não defendem uma idéia política, não

criticam uma ideologia, e não louvam uma classe oprimida, são encarados com resistência.

Ao comparar os poemas de Mallarmé a outras linguagens confusas, como a do extrato

bancário ou mesmo a linguagem de uma matéria de jornal, a autora assinala que essas não são

encaradas com tamanha resistência devida à serventia que sugerem. No entanto, para Perrone-

Moisés, se nos dispusermos a penetrar na inutilidade própria de alguns poemas, será a

utilidade dos outros impressos que será posta em causa. Seguindo o raciocínio da autora,

poderíamos mesmo nos perguntar se a utilidade do poema, ou de uma classe de poemas, não

poderia ser, exatamente, a de por em questão a utilidade dos outros textos e da própria

linguagem. Se com isso emprestamos uma função para o que não tem função, o que não é

nosso objetivo, destacamos, ao menos, um dos efeitos que certos trabalhos com a língua

podem oferecer. Afirmando coisas inverificáveis, irredutíveis a um referente, o poema questiona a verificabilidade e a referencialidade das mensagens que nos chegam cotidianamente. O poema vem lembrar que tudo é linguagem, e que esta engana. Que a linguagem está o tempo todo fingindo-se de transparente, de prática e de unívoca, e nos enreda num comércio que nada tem de essencialmente verdadeiro e necessário. (PERRONE-MOISÉS, 2000, p.32).

Ora, ao retirar do significante seu sentido cristalizado, oferecendo à palavra outra

função que não a comunicação, Manoel abre mão, exatamente, da utilidade do idioma, da

serventia da palavra, em prol tanto do questionamento da língua, quanto do gozo da letra.

Chegamos então à desutilidade poética de Barros, que não se afasta de sua desaprendizagem;

pelo contrário, a enriquece. Ao optar por desutensílios, pela inutilidade dos objetos, pelo nada

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que a nada serve, Manoel chega mais perto do significante funcionando como letra e retira

dessa aventura poética sua quota de gozo. O poeta, nesse sentido, além dos desobjetos que

produz, conta-nos também do seu gosto pelo inútil do gozo: “Prefiro as máquinas que servem

para não funcionar (...) Senhor, eu tenho orgulho do imprestável! / (O abandono me protege.)”

(BARROS, 1996, 57). Ainda nessa vertente de que a letra carrega consigo um gozo inútil,

Manoel dará mais uma das tantas definições para a poesia que podemos encontrar em sua

obra: “O poema é antes de tudo um inutensílio”. (BARROS, 1980, p.208).

Esse gosto pelo inútil desencadeará também o que poderíamos chamar de “poesia do

cisco”, que também faz parte da poética de Manoel. Haverá, nesse caso, uma exaltação não só

ao que não presta, ao inútil, mas também ao ínfimo, ao miúdo e, principalmente, ao resto. O

resto e o cisco são elementos constantes na obra de Barros. Sua admiração pelas coisas do

Pantanal se dá, exatamente, nesse campo. Como foi dito, sua poesia não se limita a descrever

as riquezas do Pantanal; porém, é importante ressaltar que grande parte de seus poemas,

embora tratem da palavra, lançam mão de um relato quase plástico dos seres de sua região. A

singularidade maior disso, no entanto, é que Manoel colhe para seus poemas não os grandes e

bonitos seres que compõem a paisagem pantaneira, mas, principalmente, os seres miúdos: as

larvas, as pequenas plantas, os dejetos e as sobras desse cenário. O cisco terá mais

importância do que uma catedral. O olhar do poeta estará mais voltado para o chão do que

para o horizonte. Somando-se aos objetos que não existem ou que não têm utilidade, esses

restos constituirão a rede de elementos constantemente presentes na obra de Manoel. Segundo

ele mesmo, os principais elementos do cisco são: “...gravetos, areia, cabelos, pregos, trapos,

ramos secos, asas de mosca, grampos, cuspe de aves, etc. Há outros componentes do cisco,

porém de menos importância.” (BARROS, 2001, p.10). Nesse mesmo poema, pertencente a

um livro que se chama, não por acaso, Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo, o poeta citará

ainda duas referências que até então tem nos sido muito preciosas: O cisco há de ser sempre aglomerado que se iguala a restos. Que se iguala a restos a fim de obter a contemplação dos poetas. Aliás, Lacan entregava aos poetas a tarefa de contemplação dos restos. E Barthes completava: Contemplar os restos é narcisismo. Ai de nós! Porque Narciso é a pátria dos poetas. Um dia pode ser que o lírio nascido nos monturos empreste qualidade de beleza ao cisco. Tudo pode ser. Até sei de pessoas que propendem a cisco mais do que a seres humanos.30 (BARROS, 2001, p.11).

30 Grifo nosso.

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Temos, então, o próprio Manoel de Barros fazendo referência, num mesmo poema, a

esses dois autores tão citados no presente trabalho. Em entrevista já referida acima, tive a

oportunidade de perguntar ao poeta sobre a origem dessa homenagem, ao que Manoel me

respondeu: “Gosto de Lacan e de Barthes. A citação foi para confirmar o gosto que tenho

pelas pobres coisas do chão. Pelos restos...” O poeta declara aqui seu gosto pelos dois

pensadores, mas, mais do que isso, seu gosto pelas pobres coisas do chão: pelos restos. Ao

poeta é reservada a tarefa de encontrar as grandezas das pequenas coisas do chão, a grandeza

do ínfimo, a grandeza dos objetos inexistentes e, principalmente, da inutilidade da poesia,

encontrada por Manoel através do uso que faz das palavras. O que não presta para a sociedade

prestará ao gozo da palavra poética.

À palavra, portanto, despida de sua significação, resta o gozo. O gozo da letra, que

consiste na materialidade do significante. Assim como a palavra se torna uma via de acesso ao

gozo, a palavra, na poesia de Barros, aparece também em outro aspecto característico à letra.

Trata-se da materialidade que exemplificamos com o comentário lacaniano a respeito do

conto de Poe. Assim como a carta roubada, a palavra em Manoel aparece como objeto, como

suporte material. Encontramos em sua poesia coisas como: “Não era normal o que tinha de

lagartixa na palavra paredes.” (BARROS, 1970, p.36); ou “Mexo com palavra / como quem

mexe com pimenta / até vir sangue no órgão” (BARROS, 1980, 214); ou “Do alto da torre

dizia o poeta: eu faço uma palavra equilibrar pratos no queixo” (BARROS, 1970, p.68). A

palavra “parede” não é mais veículo de seu significado ou significação, mas suporte material

para as lagartixas. A palavra agora equilibra pratos no queixo, a palavra é tempero comparado

à pimenta. Essa materialidade da palavra empresta a ela uma face real, material, que se

distancia de sua dimensão simbólica, de sua posição de significante que representa um

significante para outro significante. A palavra revela, agora, sua face real de letra, e Manoel

faz isso se valendo do simbólico, utilizando a própria palavra, lançando mão do próprio

significante, porém, para colocá-lo numa situação muito peculiar: no lugar de letra.

São essas as principais características da poética da desaprendizagem de Manoel:

tentar fazer o significante funcionar como letra, privilegiar o som e a materialidade da palavra

em detrimento do sentido que ela possa carregar, promover uma fuga ao sentido normal da

palavra e vir a encontrá-la no berço onde jaz ainda em fase embrionária, no escuro onde se

despe exibindo seus pentelhos, no momento em que é um desutensílio, prestável somente para

o gozo, para os orgasmos que Manoel inventa fazer com elas. É assim que o poeta se lança no

rastro da “despalavra”, da “palavra desacostumada”, fazendo com que o som e o significante

assumam, então, funções diferentes das que a linguagem “normal”, cotidiana, os oferece:

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“Não gosto de palavra acostumada. (...) Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo

para ser séria” (BARROS, 1996, p.71).

E assim chegamos, finalmente, a um dos aspectos fundamentais do nosso trabalho, que

procurou até o momento discorrer e destrinchar as peculiaridades presentes na poética de

Manoel de Barros. Isso nos possibilitou abarcá-la pela vertente da letra lacaniana e do

encontro e desencontro entre os termos significância e significação, seja no sentido lacaniano,

seja no sentido barthesiano dos termos. Entendendo, agora, como a palavra em Barros

privilegia a letra e ganha em significância, partiremos para o capítulo final da nossa

dissertação. Este terá como objetivo demonstrar como a desaprendizagem de Barros, mais do

que um puro neologismo ou uma simples oposição à aprendizagem, apresenta um

funcionamento peculiar que nos levará, através do mesmo referencial teórico lacaniano e

ainda apostando no aporte que a noção de letra tem nos dado até agora, a aproximar sua

poética e seu estilo ao que a psicanálise chama de transmissão.

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4 DESAPRENDIZAGEM, UMA TRANSMISSÃO

Se o poeta vai atrás da palavra desacostumada, fazendo uso da língua e do que essa

comporta de lalíngua para atingir o significante despojado de sua significação, é porque

atribui à sua desaprendizagem uma função, como o próprio neologismo indica, oposta, ou ao

menos diferente, da aprendizagem e, poderíamos acrescentar, do ensino em sua dimensão

pedagógica.

Se o poeta, em seu desarranjo da linguagem, atinge a letra e a lalíngua, é para fazer

gerar o que ele chamou de um novo olho, que agora poderíamos chamar de um “trabalho de

significância”. Mas em quê a desaprendizagem de Manoel de Barros diferencia-se da

aprendizagem?

Em “Alocução sobre o ensino”, Lacan (1970) se pergunta se o ensino é a transmissão

de um saber. Ao procurar por uma resposta, o autor chega a dizer que o primeiro pode, por

vezes, estabelecer uma barreira ao segundo. Para tal investigação, Lacan parte da análise do

próprio discurso psicanalítico e diz que esse “... não se sustentaria se o saber exigisse a

intermediação do ensino. Daí o interesse do antagonismo que enfatizo aqui entre o ensino e o

saber.” (LACAN, 1970, p.308). Se, para Lacan, o saber é antagônico ao ensino é porque,

como alerta Sueli de Melo Miranda, “...em psicanálise, o saber é diferente da aprendizagem, e

a transmissão, não sendo pedagógica, é diferente do ensino.” (MIRANDA, 2002, p.42). Se de

um lado temos o antagonismo entre o ensino e o saber, Miranda destaca aqui outro

antagonismo da mesma ordem entre a aprendizagem e a transmissão.

Para Quinet (1992), a escolha da orientação lacaniana opõe-se à conformidade da

transmissão de um saber de antemão já dado, “pré-digerido”. Vemos que o autor recorre a um

termo que o próprio Lacan havia utilizado em “Variantes do tratamento-padrão” onde, ao

discutir sobre a transmissão da psicanálise, principalmente em seus institutos, diz que O desejável não é que os analisados sejam mais ‘introspectivos’, mas que compreendam o que fazem; e o remédio não é que os institutos sejam menos estruturados, mas que não se ensine neles um saber pré-digerido, mesmo que resuma os dados da experiência analítica. (LACAN,1966 , p.358).

O antagonismo lacaniano entre o ensino e o saber se desdobra, então, em um

antagonismo entre um saber de antemão, pré-digerido, que pode ser ensinado, e um saber que

pode ser transmitido. Mas o que distingue um saber pré-digerido de outro ainda por digerir?

Podemos dizer que a diferença se encontra justamente no trabalho da digestão. A transmissão,

diferentemente da aprendizagem, lança o sujeito a um saber ainda por digerir, incompleto, um

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não-saber. Enquanto a aprendizagem oferece um produto já trabalhado, a transmissão coloca

o sujeito a trabalho.

Antes de prosseguirmos, é importante ressaltarmos que, embora Lacan se refira à sua

obra, tanto em seus Seminários quanto em seus Escritos, como “seu ensino”, ele guarda ao

discurso psicanalítico um lugar diferenciado nesse campo do ensinamento: “...ao se oferecer

ao ensino, o discurso psicanalítico leva o psicanalista à posição do psicanalisante, isto é, a não

produzir nada que se possa dominar, malgrado a aparência, a não ser a título de sintoma.”

(LACAN, 1970, p.310). No discurso psicanalítico, o saber que se produz a partir do ensino

não é nada que se possa dominar, não é nada pré-digerido. Ao se oferecer ao ensino, o

discurso psicanalítico faz exercer, na verdade, uma transmissão. Poderíamos arriscar, então, a

dizer que, quando Lacan (1970) opõe ensino e saber, ele opõe aprendizagem e saber, sendo

que ensino serve, em outros momentos de sua obra, como uma forma de transmissão.

Para Sandra Arruda Grostein (1992), em se tratando de Psicanálise, o que se transmite

é um saber, mas um saber do não sabido, aquilo que não é possível de significação. Estamos

novamente no campo da significação e da significância. Se fizermos valer o antagonismo

lacaniano entre ensino e saber, desdobrando-o, como sugere Miranda (2002), em um

antagonismo entre aprendizagem e transmissão, podemos pensar que a significação está para a

aprendizagem assim como a significância está para a transmissão. Se a significação encerra

em si um trabalho, apresentando-se como um produto, é porque no antagonismo lacaniano a

significação está do lado do saber pré-digerido, enquanto que a significância, por trazer, como

vimos em Barthes, a possibilidade de uma produtividade, se encontra do lado da transmissão.

Essa produtividade é o que Manoel de Barros chamará de “trabalho desnecessário”, o trabalho

desvinculado da utilidade prática que a informação e o conhecimento nos fornece: “Trabalho

arduamente para fazer o que é desnecessário. / O que presta não tem confirmação, / o que não

presta tem.” (BARROS, 1996, p.41).

Temos, aqui, outro ponto de aproximação entre a Literatura, não só de Manoel de

Barros, e a Psicanálise. Como atenta Mandil (2005), se no trabalho literário a utilidade vem

por acréscimo, no trabalho analítico, a cura também ocupa um papel semelhante. Na clínica

psicanalítica (lembremos a crítica de Freud (1915[1914]) ao fanatismo pela cura, ao furor

senandi da sociedade), a cura não é uma meta a se alcançar, mas, sim, algo que se pode

esperar. Da mesma forma, podemos esperar que uma obra literária venha a exercer alguma

função em nossa sociedade, mas é importante lembrar que essa utilidade, na maioria das

vezes, é posta ao longe, e o trabalho, mesmo que futuramente sirva a algum fim, inclusive

comercial, é, em sua essência, “desnecessário”. Provavelmente ciente disso, e visando

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potencializar esse caráter inútil da Literatura, é que Manoel faz de sua poesia não um produto

acabado, mas um trabalho desnecessário.

Da mesma forma que a letra, e por causa dela, a transmissão, na obra de Lacan,

também não será causa de um produto, mas de uma produtividade, um trabalho, talvez

desnecessário. E é esse tipo de trabalho que o poeta transmite em sua obra. Não nos

esqueçamos do alerta de Lacan no “Ato de Fundação” da Escola Francesa de Psicanálise,

quando diz que o ensino da psicanálise só pode transmitir-se de um sujeito para outro pelas

vias de uma transferência de trabalho. (LACAN, 1964/1971, p.242).

Jean-Claude Milner (1996), ao destacar a importância da letra na transmissão, nos

atenta também para a função da matemática na teoria lacaniana. Como o autor de A obra

clara sugere, Lacan vai depositar na matemática, mais precisamente no matema, a

transmissibilidade de seu ensino. A matemática se consagra no ensino lacaniano

principalmente a partir de 1972 com o artigo “O aturdito”. Um ano depois, em uma de suas

últimas lições do Seminário XX, Lacan dirá então que “A formalização matemática é nosso

fim, nosso ideal. Por quê? Porque só ela é matema, quer dizer, capaz de transmitir

integralmente.” (LACAN, 1973, p.161).

Baseando-se nessa perspectiva é que a matemática apresenta-se como o paradigma da

transmissibilidade integral. Essa afirmação é justificada exatamente a partir da noção de letra,

tão cara ao nosso trabalho. Estamos novamente trabalhando com a distinção entre letra e

significante que, como foi lembrado em capítulo anterior, talvez tenha sido propositadamente

indiferenciada por Lacan. Para Milner (1996), Lacan deixa a distinção entre letra e

significante confusa no primeiro classicismo, mas, segundo o autor, ela se aperfeiçoa no

segundo31. Um dos pontos-chave dessa distinção é que o significante, diferentemente da letra,

é apenas relação, ele representa para e é aquilo através do quê isso representa. O significante,

em si, não é nunca definível; só poderá aproximar de alguma definição como diferença para

com outro significante. A letra, por sua vez, mantém relação com as outras letras, mas não

consiste apenas em relações. A letra é idêntica a si mesma e possui qualidades, tem uma

fisionomia, um suporte sensível, e por isso pode ser manipulada, rasurada, destruída. Isso não

acontece com o significante, pois, não tendo uma identidade, sendo apenas relação,

representação, mesmo que ele possa faltar, não pode ser destruído, nem mesmo deslocado,

manipulado. São essas características que tornam a letra transmissível:

31 Essa distinção entre dois classicismos é feita pelo próprio Milner em A Obra Clara (1996), e diz de um corte

epistemológico na obra lacaniana.

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A letra é transmissível; por essa transmissibilidade própria, ela transmite aquilo de que ela é, no meio de um discurso, o suporte; um significante não se transmite e nada transmite: ele representa, no ponto das cadeias onde se encontra, o sujeito para um outro significante. (MILNER, 1996, p.105).

Mas, se no segundo classicismo lacaniano, a distinção entre a letra e o significante é

mais evidente, será que podemos ainda pensar em letra como um significante despojado de

qualquer valor de significação? Ou ainda, será que podemos pensar em letra como o suporte

material do significante? Em 1971, no Seminário XVIII, Lacan dirá que não se deve confundir

a letra com o significante e acrescenta que, ao lançar mão de letras para seus esquemas, ele

não chega a equivalê-las ao significante. Diferentemente do significante que habita o

simbólico, a letra está no real. Se o real na obra lacaniana aparece como o lugar por

excelência da falta de sentido, da não relação e da impossibilidade de representação,

podemos, mais uma vez, dizer que a letra não está inserida no jogo de representações próprio

ao significante. É nesse momento da obra lacaniana, quando a letra se destaca mais

vigorosamente do significante, que o matema irá aparecer como recurso metodológico para

melhor desenvolvimento da noção psicanalítica de letra. O matema, portanto, seria o que, na

matemática, apresenta-se como sendo idêntico a si mesmo, manipulável e destrutível. Nesse

momento, o matema seria o paradigma da letra, e estaria para a matemática assim como a

letra está para a linguagem.

Por isso, o mais correto é pensar que a concepção de letra trabalhada no nosso segundo

capítulo que destaca sua natureza de suporte material do significante seja válida mais

estritamente para o primeiro classicismo lacaniano, por exemplo, para o “Seminário sobre a

carta roubada”. A letra, no segundo classicismo de Lacan não deixará de ser pensada como

suporte material, mas mais do que isso, lhe será atribuída uma função de matema, o que lhe

emprestará uma transmissibilidade, mais do que uma significância. Entretanto, quando

Manoel de Barros parece alcançar algo da letra, não é de um matema que estamos falando.

Pelo contrário, o trabalho do poeta se faz na cadeia significante. Mas, por outro lado, como

bem nota Miller (1996) e Ram Mandil (2003), existe a possibilidade de o significante

funcionar ora mais, ora menos, como uma letra. Isso dependerá do quanto o significante se

separa de seu valor de significação. Quanto mais separado de seu valor de significação,

quanto mais isolado de suas possíveis significações, mais próximo ele estará da letra.

É por essa via que a desaprendizagem de Barros se avizinha, sem se confundir, à

transmissão lacaniana. Pois, mesmo que Manoel não faça matemas, seu trabalho, como foi

ressaltado, busca retirar o sentido das palavras, afastando o significante de seu valor de

significação. O “trabalho desnecessário” do poeta e de seus leitores não é com a escrita dos

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matemas, mas com as palavras, com os substantivos e com os verbos: “Mudo apenas os

verbos e às vezes nem mudo. Mudo os substantivos e às vezes nem mudo.” (BARROS, 2000,

p.65). Esse trabalho de mudar o significante conduz as palavras à desestruturação da

linguagem. Ciente de que somos mais efeitos das palavras do que seus algozes ou, em termos

lacanianos, somos mais empregados da linguagem do que a empregamos (LACAN,

1969/1970, p.69), Manoel atribuirá essa desestruturação mais à própria palavra do que a ele

mesmo: Eu desestruturo a linguagem? Vejamos: eu estou bem sentado num lugar. Vem uma palavra e tira o lugar de debaixo de mim. (...) Não era para terem retirado a mim do lugar? Foram as palavras pois que desestruturaram a linguagem. E não eu. (BARROS, 2000, p.57).

Mesmo que o poeta recuse ser o responsável pela desestruturação da linguagem, é em

seu trabalho poético que as palavras encontram os caminhos para tal “descomportamento

lingüístico”. O poeta, ao mudar o substantivo, o verbo, ou qualquer outro termo que exerça

uma função significante, afasta a palavra de sua dimensão simbólica e aproxima sua escrita ao

real próprio da letra. Isso faz com que o poeta deixe a significação em suspenso, “à

disposição”, “indecidível”, possibilitando um maior trabalho de significância.

Essa indecisão pela qual a poesia de Manoel nos conduz encontra, além de sua relação

com a letra e com a transmissão, sua relação também com o enigma. Na obra lacaniana, a

estrutura do enigma é expressa em termos próximos aos da estrutura da verdade. Se a verdade

não pode ser dita por inteiro, mas sempre ao nível de um semi-dizer, o enigma se apresenta,

também, nessa mesma dimensão. Mas, se o enigma é um semi-dizer, o que é que ele diz e o

que é que ele deixa por dizer? No livro XVII do Seminário de Lacan (1969/1970) vemos que

o enigma encontra sua expressão, sua semi-verdade, ao lado da enunciação que deverá ser

convertida em enunciado. No exemplo clássico de enigma que encontramos na tragédia de

Édipo, a enunciação se expressa através do animal com quatro patas matinais, duas patas

vespertinas e três patas noturnas. A conversão dessa enunciação em enunciado é trabalho do

qual Édipo se encarrega. Que a enunciação seja convertida em “animal homem” ou no próprio

Édipo32 não é o que mais importa. Afinal, a verdade não pode mesmo ser dita por inteiro, o

que confere ao enigma uma impossibilidade de respostas ou, o que seria quase equivalente,

uma infinidade de respostas.

É esse funcionamento enigmático que leva Lacan (1972/1973, p.51) a comparar a obra

de Joyce, principalmente Finnegans Wake, ao que Freud chama de lapso. Para Lacan, os

32 Sugestão de Lacan (1969/1970) ao enigma da esfinge.

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significantes se embutem, se compõem, se engavetam de tal modo na obra de Joyce que se

produz algo que, como significado, parece enigmático. Ao mesmo tempo, é o que há de mais

próximo do que um analista tenta ler num lapso. E é precisamente por suportar uma infinidade

de sentidos ou interpretações, justamente por poder ser lido de variadas e infinitas maneiras, é

que a leitura, tanto do lapso quanto do texto enigmático de Joyce, se torna impossível. Isso

justifica a afirmação de Lacan (1972/1973, p.38) de que seus textos publicados em Escritos

não eram para ser lidos. Também o estilo de Lacan é marcado pelo enigma, pela vacilação

entre uma significação e outra, pelo que o escrito suporta de indecidível. E é por isso que no

“Posfácio” ao Seminário XI, Lacan irá dizer que a dificuldade de leitura de seus Escritos não é

acidental.

Veremos, então, que a sugestão lacaniana de ler as páginas de Joyce sem procurar

compreendê-las, destacada por Ram Mandil (2003, p.150), serve também à sua própria obra.

E talvez sirva ainda à obra de outro pensador europeu, Wittgenstein. Comparando a

dificuldade de leitura dos textos de Wittgenstein aos seus próprios textos, Lacan, no livro

XVII de seu Seminário, irá criticar a ânsia dos pesquisadores na busca por uma significação,

por um fruto que se possa colher da escrita filosófica ou psicanalítica: “Vocês se ligam muito

em colher maçãs debaixo da macieira, e mesmo a pegá-las do chão. Seria melhor que não

pegassem as maçãs...” (LACAN, 1969/1970, p.61). Para Lacan, muitas vezes se ganha mais

ao habitar por certo tempo à sombra da macieira, do que a tentar desesperadamente pegar seus

frutos. Isso também pode ser útil à escuta analítica do lapso. Em “A direção do tratamento e

os princípios de seu poder”, Lacan irá dizer que “muitas vezes, mais vale não compreender

para pensar, e é possível percorrer léguas compreendendo sem que disso resulte o menor

pensamento”; no mesmo texto, o autor completa: “...ouvir não me força a compreender”

(LACAN, 1958, p.623). Pensar, habitar a macieira, seja através do lapso contido no texto do

analisando, seja através da dificuldade encontrada na filosofia de Wittgenstein ou ainda da

ilegibilidade própria aos textos de Joyce e Lacan, pode ser mais rico do que compreender,

pode ser mais importante do que apanhar seus frutos, muitas vezes impalpável.

Essa mesma sugestão, ou pelo menos uma sugestão semelhante, também é encontrada

na obra do próprio Manoel de Barros quando este responde sobre a dificuldade dos leitores de

entenderem seus versos: Difícil de entender, me dizem, é sua poesia; / o senhor concorda? / - Para entender nós temos dois caminhos: o da sensibilidade que é o entendimento do corpo; e o da inteligência que é o entendimento do espírito. / Eu escrevo com o corpo / Poesia não é para compreender, mas para / incorporar / Entender é parede; procure ser uma árvore. (BARROS, 1980, p.212).

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A advertência do poeta faz coro às palavras de Lacan e defende o lugar do enigma

reservado à sua poesia e ao escrito. A dificuldade, ou mesmo a impossibilidade de uma

leitura, se entendermos leitura como um processo que necessariamente inclui a compreensão,

não exclui o trabalho gerado pela escrita. Pelo contrário, quanto mais enigmática, quanto

maior for a multiplicidade de leituras possíveis a uma escrita, mais ela será capaz de exercer

sua função de transmissão, mais ela irá transferir um trabalho, uma produtividade. A isso se

deve a explicação de Ram Mandil (2003) à ilegibilidade dos textos tanto de Joyce quanto de

Lacan. Para o autor, o que a obra lacaniana critica na leitura é a leitura que se equivale à

compreensão, que seria aquela pela qual o significado guarda sempre o mesmo sentido.

Assim, ler seria compreender, e compreender seria eliminar a multiplicidade de leituras de um

significante, seria negar a ilegibilidade própria da letra. Se ler equivale a compreender, o

esforço de Lacan será o de produzir, a exemplo de Joyce, um escrito que não pode ser lido;

em outras palavras, um escrito que não pode ser compreendido, o que é razão, segundo Lacan

(1973b, p.273), para explicá-lo. Ainda Ram Mandil, ao fazer uma distinção etimológica entre

explicar e compreender33, nos alertará para o fato de que, enquanto a palavra “compreender”

indica “apreensão”, “abraço”, “inclusão”, a palavra “explicar”, cuja raiz é explanare, nos

remete a “espalhar”, “desdobrar”, “explanar”. Novamente, enquanto compreender fecha um

limite, explicar abre um leque de possibilidades. E, guardada suas particularidades, essa será

uma das riquezas presentes nos textos de Lacan, Joyce, ou Manoel de Barros: a abertura que a

letra nos lança quando sua multiplicidade de leituras intervém no leitor aos moldes de um

enigma.

Portanto, ao fazer o significante funcionar como uma letra, o poeta também enriquece

sua poesia com o caráter enigmático que presenteia seu texto. Essa relação entre a letra e o

enigma é ressaltada também por Miller (1996) que, além do lapso, recorre para tal discussão,

à própria interpretação dos sonhos. Para o autor, “afirmar que o sonho se lê como um enigma,

quer dizer que a imagem não vale como figura, um signo figurado, nem como pantomima,

mas como uma letra...” (MILLER, 1996, p.97). E a letra, ainda de acordo com o Miller, é,

sobretudo, para ser decifrada.

Já citamos algumas definições de Manoel à poesia; repitamos uma: “Poesia é voar fora

da asa.” (BARROS, 1993, p.21). Não se trata aqui de uma pergunta, como encontramos na

33 O que confirmamos através do Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado (1952),

que reserva para o verbete compreender sua origem latina comprehendere (agarrar em conjunto, unir, ligar, encerrar, fechar, etc.), e para o verbete “explicar”, sua origem latina explicare (desdobrar, desenrolar, estender, alongar, etc.).

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boca da esfinge; e isso já nos permite advertir que dizer que o trabalho do poeta comporta

algo de enigmático não é o mesmo que dizer que seu trabalho consiste em fazer enigmas. De

todo modo, também não se trata de uma resposta. Pelo menos de uma resposta compreensível.

A enunciação, nesse caso, também se encontra desvinculada de um enunciado, o que gera

uma multiplicidade de leituras que nos leva às margens do texto ilegível. Alguns críticos e

leitores de Manoel se encarregarão de converter essa enunciação num enunciado. Outros se

contentarão apenas em habitar a macieira, e assim deixar que a verdade faça aparecer seu

meio-corpo de Quimera34.

Em outra ocasião, Manoel relata um acidente: “O menino caiu dentro do rio, tibum, /

ficou todo molhado de peixe... / A água dava rasinha de meu pé.” (BARROS, 1960, p.11).

Ficar molhado de peixe não é uma enunciação que nos convida a um enunciado imediato.

Pelo contrário, a imagem, através da articulação engendrada pelo poeta, demora a aparecer, já

que estar molhado sugere a afetação de um líquido e não de um animal sólido como o peixe.

Assim, Manoel de Barros, além de enigmas expressados por enunciações que escondem ou

simplesmente carecem de enunciados, produzirá também imagens que misturam elementos

semânticos e visuais que, através de sua poética, impedem a formação de uma figura

harmônica ou racional. Isto confere a sua poética um teor surrealista. Maria Adélia

Menegazzo (2004), ao fazer um estudo comparativo da obra de Manoel de Barros com as

artes visuais, chama a atenção para a maneira como o poeta empresta força às imagens que

cria fazendo, a exemplo do que sugere Breton, que duas realidades de relações longínquas

apareçam aproximadas em seu texto. Assim, encontramos coisas como um “chevrolet

gosmento”, um “bule de Braque sem boca”, um “abridor de amanhecer”, uma “palavra que

equilibra pratos”, entre outros quadros e desobjetos.

A imagem surreal e o enigma aparecem na obra de Manoel como mais um recurso

para que o poeta alcance sua desaprendizagem e assim toque, através das palavras, algum

pedaço de real. Em outro texto, o poeta, ao narrar a queda de seu avô na escada, reúne o

absurdo da imagem e a falta do enunciado própria do enigma em um só poema: O avô despencou do alto da escada aos / trambolhos. / Como um armário. / O armário quebrou três pernas. / O avo não teve nada. / Ué! Armário não é só um termo de comparação? / Aqui em casa comparação também quebra perna. (BARROS, 2004, p.71).

As conseqüências do tombo do avô recaem no termo de comparação e a falta de

sentido do poema juntamente com a imagem absurda que propõe, conferindo às frases acima

34 Referência à fala de Lacan (1969/1970) no Seminário XVII.

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um caráter enigmático. O sentido das frases fica em suspenso. Assim, o poeta encontra em seu

escrito um lugar para a letra e para o gozo causado pela falta de sentido. Se para Barthes, o

prazer faz parte do texto harmonicamente articulado, do conforto do sentido, o gozo faz parte,

exatamente, dessa desarmonia do não sentido onde, para Lacan (1971, p.82), repousa o chiste.

Freud (1905), um dos precursores do estudo do chiste, já havia atribuído um lugar ao não-

sentido nas técnicas chistosas. Segundo ele, um dos métodos usados para a produção do dito

espirituoso, assim como uma de suas fontes de prazer, é a retirada do sentido original de uma

palavra ou de uma situação e o absurdo que esse método provoca. Na escrita de Barros,

encontramos essa falta de sentido nas enunciações enigmáticas, nas imagens surreais e em

tudo o mais que nos convida a experimentar a letra, o gozo e o real.

Fazendo jus ao caráter impossível do real ao emprestar aos seus poemas alguma

literalidade, entendendo literalidade como uma referência à letra lacaniana, Manoel faz com

que suas frases pairem sobre a impossibilidade da decisão. O leitor experimentará essa

indecisão através do enigma sobre qual caminho seguir rumo à conversão da enunciação em

enunciado, mas também sobre qual caminho tomar rumo à significação conferida ao

significante ou a letra. Seguir por esses caminhos, sejam eles quais forem, é o trabalho que a

poesia de Manoel nos lança, nos transfere. E é nesse sentido que a poesia de Manoel comporta

uma transmissão. É ao promover o significante ao estatuto de letra, retirando-lhes os

significados cristalizados, que o poeta alcançará o “indecidível” de sua poesia.

Vemos essa indecisão aparecer também quando o poeta muda a função de um

substantivo, transferindo-o para a posição de verbo. O que aquele significante, afastado de sua

significação usual de substantivo pode agora significar enquanto verbo? Esse é o ponto de

indecisão em que se apóiam alguns dos poemas de Manoel de Barros. Já citamos um deles

que aparece em Livro das Ignorãças: Quando o rio está começando um peixe, Ele me coisa Ele me rã Ele me árvore. De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os ocasos. (BARROS, 1993, p.75)

Citemos outros:

Nossa maçã é que come Eva Estrelas é que tem firmamento Mas se estrela fosse brejo, eu brejava. (BARROS, 1980, p.213) Tenho que transfazer natureza. À força de nudez o ser inventa. Água recolhendo-se de um peixe. Ou, quando estrelas relvam nos brejos. (BARROS, 1985, p.44).

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Manoel usa recursos diferentes em cada exemplo. No primeiro, mantém o substantivo

em sua pronúncia cotidiana, enquanto no segundo e no terceiro busca adequar o substantivo à

sua forma verbal, conjugando-o em “brejava” ou “relvam”. Seja por uma via ou por outra,

Manoel de Barros inova a língua e introduz nesta um significante sem significação

cristalizada. Afinal, qual é o valor de significação de verbos como coisa, rã, brejar, ou

relvar? Esse parece ser o trabalho que a poesia de Barros nos transfere, lembrando que, para

Lacan, transmissão é uma transferência de trabalho.

Além de usar substantivos no lugar de verbos, existem outros exemplos em que Barros

opta por fazer uso de um significante sem atrelá-lo a uma significação contida em nossos

léxicos. Um deles, por aparecer mais de uma vez em sua obra, sugere ser especial. Refiro-me

ao uso da palavra gravanha. Perguntei a Manoel o que era e o que a palavra gravanha

representava em sua obra: “Gravanha é palavra que os pantaneiros usam quando querem dizer

que o lugar é impenetrável. É moita de gravatá que é áspera e impenetrável. Só formiga

penetra na gravanha sem se ferir.” (BARROS, 2009, entrevista em anexo). Ao ler a resposta

do poeta podemos pensar que a palavra encontra seu valor de significação, a saber: “lugar

impenetrável”. Mas, se buscarmos na obra de Barros os usos feitos dessa palavra, veremos

que essa significação não surge sem antes um trabalho de significância, revelado, por

exemplo, em sua homenagem ao pássaro socó-boca-d’água, Desse pássaro ninguém sabe muito. Ouço que mora na gravanha – ou no gravanha. Sabendo ninguém o que seja gravanha. A Palavra é bonita e selvagem. Não está registrada nos léxicos. Ouço nela um rumor de espinheiro com água. Tem tudo para ser ninho e altar de um socó-boca-d’água. (BARROS, 1985, p.82).

Esse trabalho de significância feito pelo poeta, assim como pelos seus leitores, é feito

ainda por um interlocutor bastante ilustre. No seu encontro com Guimarães Rosa, Manoel de

Barros o apresenta à palavra gravanha. É o próprio Manoel que narra os efeitos desse

encontro entre a palavra e o escritor poliglota: Apresentei-lhe a palavra gravanha. Por instinto lingüístico achou que gravanha seria um lugar entrançado de espinhos e bem emprenhado de filhotes de gravatá por baixo. E era. (BARROS, 1998, p.33).

Através desses trabalhos de tentar atribuir um valor de significação a essa palavra que

“não está registrada nos léxicos”, que “ninguém sabe o que é”, o poeta parece ter chegado a

um produto aparentemente satisfatório quando me responde que gravanha designa um lugar

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impenetrável. Pode ser que a questão se feche aí e, por um momento, o significante encontre

seu significado, seu ponto de basta, mas também pode ser, não duvidemos da astúcia do

poeta, que a resposta seja uma provocação e, além de um lugar, gravanha possa ser também

uma palavra impenetrável. Impenetrável, quem sabe, no sentido de opaca, de indecifrável, ou

mais ainda, de incompreensível35. Não se pode penetrar a significância da palavra, não se

pode chegar à sua significação, não se pode decifrar o enigma que ela causa. À maneira da

expressão citada por Lacan no Seminário XX, à tire-larigot, podemos encontrar coisas novas

na busca pelo significado de gravanha, novidades oferecidas pelo próprio poeta ou por seus

leitores, mas nenhum dos significados, sejam os de Rosa ou de Manoel, parece aprisionar ou

cristalizar um significado que se refira ao significante gravanha. Diremos, nesse caso, que o

significante funciona como letra, aumentando o trabalho de significância e transferindo um

novo trabalho ao leitor, o que possibilita uma transmissão. O significante não encontra um

ponto de basta, tampouco uma representação. Gravanha não representa outro significante.

Isso é o que faz o significante alcançar um funcionamento próximo à letra. É dessa forma que

o poeta, ao nos oferecer uma palavra não digerida, a palavra a ponto de traste, deslocada de

seu sentido normal ou de qualquer outro sentido, nos oferece, além de um enigma, também

um trabalho.

Nesse sentido é que sua desaprendizagem não nos conduz à ignorância, mas à

produtividade. A ignorância, se atingida, parece ser de outra ordem. Para essa ignorância,

Manoel de Barros tem nome: ignorãça. Lembremos que, na psicanálise lacaniana, também

encontramos uma distinção entre duas ignorâncias. Para o psicanalista, uma ignorância pode

se reduzir à negação do saber, mas também pode encarnar o não-saber, que é uma forma mais

elaborada do saber: “O fruto positivo da revelação da ignorância é o não-saber, que não é uma

negação do saber, porém sua forma mais elaborada.” (LACAN, 1966, p.360). A forma mais

elaborada do saber seria, justamente, o não sabido, o que ainda está por saber, o saber

impossível de uma significação, o saber ainda não digerido.

Opondo-se à aprendizagem, negando-a com o prefixo des, a desaprendizagem de

Manoel busca operar com um saber que ainda não foi digerido, um saber que não se fixa em 35Ram Mandil, sustentado pela teoria de Barthes, chama a atenção para a distinção entre as escrituras

indecifráveis e as escrituras incompreensíveis. As primeiras indicam uma falha do leitor na tradução, existe uma cifra para a qual ele não encontra decifração, um enigma de difícil solução. Já no segundo caso, a ausência de sentido é atribuída não à dificuldade na decodificação, mas à imaginação atribuída ao artista. Acreditamos que a obra de Manoel de Barros contempla ambas as escrituras, estando a palavra gravanha mais do lado da escritura incompreensível do que da escritura indecifrável, já que atribuímos o enigma da palavra ao próprio estilo do poeta, embora saibamos também que esse fato, longe de cessar o trabalho de decodificação, incita ainda mais a produtividade típica da significância. O mais certo é que, assim como a distinção entre texto de prazer e texto de gozo, novamente esbarramos em uma vacilação terminológica da obra de Barthes.

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uma significação. Essa parece ser a ignorãça que a desaprendizagem nos conduz. Já citamos a

importância dada ao matema no Seminário XX de Lacan (1972/1973). Nesse mesmo texto,

encontramos uma discussão do autor a respeito da aprendizagem, que merece ser resgatada.

Para essa discussão, o psicanalista recorre à experiência do rato no labirinto. Inventados no

começo do século por W. S. Small, os labirintos para ratos, muito usados pela escola

funcionalista de Chicago comandada por William James e Harvey Carr e pela escola

behaviorista tanto de John B. Watson quanto de Burrhus F. Skinner são, por vezes,

considerados situações padronizadas para o estudo da aprendizagem36. Essas experiências

visam demonstrar ou conhecer que capacidade o animal tem para aprender. A diminuição da

taxa de ensaios e erros para a obtenção da comida demonstra que o rato é capaz de aprender

algo. Isso, no entanto, não prova que haja um saber. Para Lacan (1972/1973), a verdadeira

questão é saber se o rato vai aprender a aprender, se, após passar por essa prova, em alguma

outra situação o rato irá aprender mais depressa. A hipótese que encontramos é que tudo o que

o rato (ou a unidade ratoeira, para sermos mais fiel à nossa referência), tudo o que ele aprende

é a dar um sinal, um signo de sua presença de unidade. Não se trata de um saber, mas de um

conhecimento, principalmente se nos reportamos a outro texto lacaniano (LACAN, 1960,

p.818) que definirá o instinto, estejamos ou não sob a ótica da biologia, como um

conhecimento que não pode ser um saber. O inconsciente não é composto de um

conhecimento sem saber, de um instinto, mas, pelo contrário, de um saber do qual o sujeito

não tem o menor conhecimento (o que estaria mais próximo do conceito freudiano de pulsão).

É por essas vias que, à psicanálise, não interessa o conhecimento, o “acúmulo de informação”,

como veremos Manoel de Barros também dizer. À psicanálise interessará o saber e não

qualquer saber, mas um saber do não sabido, um saber que não permite uma significação.

Mais do que isso, à psicanálise interessará um saber que se transmite, que se transmite

integralmente. E essa transmissão, é da ordem da letra enquanto matema.

A aprendizagem, portanto, refere-se ao conhecimento sem que isso implique,

necessariamente, um saber. O saber, distinto do conhecimento aprendido, se situa no campo

da transmissão. O saber é, ele também, um enigma37, a enunciação carente de enunciado. Por

isso, o saber vai muito além do que o ser falante suporta de saber enunciado. A aprendizagem

“transfere” enunciados, conhecimentos, informações, produtos, mensagens. O saber transfere

o trabalho de converter a enunciação em enunciado, a produtividade, o gozo. Por isso a

36 Para maiores esclarecimentos sobre a Escola Funcionalista de Chicago e a Escola Behaviorista de Watson ou

Skinner, assim como as experiências sobre ratos, vide: MARX, M. H.; HILLIX, W. A. Sistemas e teorias em psicologia. 14. ed. São Paulo: Cultrix, 2003. 755p.

37 LACAN, 1972/1973, p.188.

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aprendizagem, também para Manoel de Barros, consistirá em dar nomes, em descrever o

mundo, em atribuir enunciado ao objeto enigmático, enquanto que, à desaprendizagem,

restará a faculdade de “desformar” o mundo, retirar o nome das coisas, “criar desobjetos”,

“desinventar”, promover o enigma a partir da enunciação.

Para o poeta, a aprendizagem parece consistir em dar nome às coisas, acrescentar

sentidos, como faz o doutor com o rio que dava volta em sua casa. Já a poesia da

desaprendizagem, nos guia para um caminho inverso, do desnomear. Enquanto o poeta fala “à

brinca”, o doutor fala “à vera”. Assim é que, em mais de uma vez, a figura do doutor aparece

na obra de Manoel como o homem que “ensina”, que nomeia as coisas, mas que, ao mesmo

tempo, faz empobrecer a imagem, espanta as rolinhas... ... Aqui é lacuna de gente (...) Só quase que tem bicho andorinha e árvore. Quem aperta o botão do amanhecer é o arãquã. Um dia apareceu por lá um doutor formado: cheio de suspensórios e ademanes. Na beira dos brejos gaviões-caranguejeiros comiam caranguejos. E era mesma distância entre as rãs e a relva. A gente brincava com terra. O doutor apareceu. Disse: Precisam de tomar anquilostomina. Perto de nós sempre havia uma espera de rolinhas. O doutor espantou as rolinhas. (BARROS, 1996, p.13).

Para Milner, durante muito tempo se supôs necessária à transmissão do saber a

intervenção de um sujeito insubstituível, a quem chamamos mestre. O doutor que aparece na

poesia de Barros aproxima da caricatura desse sujeito insubstituível que detém o saber e o

entrega a seus discípulos. Da mesma forma que a desaprendizagem de Manoel zomba e

dispensa o doutor, o matema, ao fazer uso da letra, dispensa o mestre: “Quando, sob a forma

do matema, a letra se torna necessária e suficiente para a transmissão, não mais existe par

mestre-discípulo, com seu cortejo de fidelidades e traições...” (MILNER, 1996, p.103).

Vale mencionar nesse momento a crítica que Barros reserva à ciência quando a situa

na mesma função que a do doutor, de espantar os pássaros: A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá / mas não pode medir seus encantos. / A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem / nos encantos de um sabiá. / Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare. / Os sabiás divinam (BARROS, 1996, p.53).

O doutor aparece como um mestre que espanta as rolinhas. A ciência, por sua vez,

encontra seus limites na classificação e nomeação dos órgãos de um sabiá, por isso espanta

seus encantos. À ciência, da mesma forma que ao doutor, cabe a nomeação e a acumulação da

informação, do conhecimento. Nisso parece consistir a aprendizagem científica segundo

Manoel de Barros, em acumular informação para nomear e classificar o mundo e os

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fenômenos38. Mas, ao acumular informações, a ciência perde o condão de adivinhar, de

“divinar”. Para Barros, “Há muitas importâncias sem ciência.” (BARROS, 1985, p.69). Os

sabiás “divinam”. Poderíamos arriscar, ainda, alguma relação fonética entre sabiá e saber.

Será que, através dessa operação, poderíamos estender a função poética que Manoel reserva

aos sabiás também para o saber? O saber também “divina”? Pode ser. De qualquer forma, o

saber presente na transmissão parece encontrar mais ecos na desaprendizagem sugerida por

Barros do que no conhecimento que a aprendizagem pedagógica preza enquanto acúmulo de

informação. O sabiá está tão longe do mestre quanto o “saber do não-sabido” está longe da

informação advinda da aprendizagem.

E será exatamente indo em direção contrária ao mestre que Lacan vai situar o discurso

do psicanalista. Se o saber, no discurso do mestre, se encontra a serviço da figura do doutor, o

esforço do analista será colocá-lo na posição da verdade. Para Lacan, isso só será feito se o

analista se lançar em uma operação oposta à do discurso do mestre. Segundo Lacan, É pela meia volta constituída pelo discurso do analista, pelo discurso que assume seu lugar por ser de uma distribuição oposta à do discurso do Mestre, primário, que o saber chega ao lugar que designamos da verdade. (LACAN, 1970, p.308).

Em sua teoria sobre os quatro discursos, Lacan (1969/1970) irá contrapor o discurso

do analista ao discurso do mestre de tal forma que todos os elementos, se comparados os dois

discursos, se encontram em posições opostas. Não nos deteremos na teoria dos discursos

apresentada por Lacan, mas, para o trabalho, se faz interessante marcar essa diferença tão

extrema entre um discurso que ordena um saber e seu avesso, um discurso que faz surgir um

novo saber. No discurso do mestre, o mestre, representado pelo S1, se dirige ao escravo de

maneira a fazê-lo trabalhar duro, de forma que, de tanto trabalhar, aprenda algo; o escravo

vem encarnar o saber, saber, nesse caso, entendido como algo produtivo, representado pelo

S2. O saber do doutor é útil, prático, produtivo, classifica os órgãos do sabiá, mas não mede

seus encantos. Como o mestre não pode mostrar suas fraquezas, ele oculta o fato de que,

como qualquer ser da linguagem, ele sucumbiu à castração simbólica. Por isso, Lacan (1972-

1973) coloca o representante do sujeito barrado, sujeito que falta, no lugar da verdade velada.

Na posição de produto/perda, está o objeto a, indicando que aí resta um gozo39.

38 Lembremos dos manuais de psiquiatria (DSM IV e CID-10). 39É bom lembrar que o objeto a, assim como muitos termos lacanianos, sofre algumas alterações ao longo do

ensino de Lacan e ocupa funções um pouco distintas de acordo com o texto e o momento em que aparece. Para Marco Antonio Coutinho Jorge (2003), o objeto a aparece na obra de Lacan como um objeto substituto da satisfação total da pulsão. Por não existir um objeto que satisfaça plenamente à pulsão, o que ela pode encontrar são objetos a, objetos variáveis que a satisfaz somente parcialmente. Isso permite que o mesmo termo, num único texto (como, por exemplo, quando Lacan (1969/1970) aborda a teoria dos discursos) apareça ora como satisfação parcial da pulsão, ora também como objeto causa do desejo.

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O discurso do analista irá numa direção totalmente contrária, uma vez que o objeto a,

agora como causa do desejo, ocupará o lugar de agente, o que aponta para que o analista

desempenhe a função de pura condição desejante e interrogue o sujeito em sua divisão. Ao

analista não cabe a função didática de ensinar, de dar sentido ou significação ao texto do

analisante. Pelo contrário, a estrutura do discurso analítico será marcada por sua

descentralização em relação ao sentido. Dessa forma, o analista, esquivando-se do lugar do

conhecer, do mestre, transfere ao paciente o trabalho de “criar” um novo significante mestre

que ainda não se relacionou com qualquer outro significante.

Se a poesia de Barros exclui o doutor, o ensino de Lacan, com o uso cada vez maior da

matemática, exclui o mestre. Se para aprender precisamos dos “nomeamentos” e dos

significantes do doutor, para desaprender precisamos do esvaziamento do significante,

afastando-o de seu valor de significação ou do sentido comum das palavras. Não podemos

afirmar que a poesia de Barros faz operar o mesmo discurso do analista, mas que ela ocupa

uma posição diferente da qual se encontra o mestre é algo que nosso estudo nos revela com

segurança. Enquanto aprender, principalmente para os construtivistas, é uma construção,

desaprender nos aponta para a construção de uma “desconstrução”, mais precisamente, uma

ruína do sentido.

É assim que o projeto de Barros coincide com o de um de seus personagens de Ensaios

Fotográficos: “Um monge descabelado me disse no caminho: ‘Eu queria construir uma ruína.

Embora eu saiba que ruína é uma desconstrução (...) Alguma coisa que servisse para abrigar o

abandono’.” (BARROS, 2000, p.31). A poética de Barros se funda nesse desejo de construir

uma “desconstrução”, uma ruína das palavras e do sentido que abrigue o vazio, o abandono, o

nada.

Em Livro sobre nada (1997), o poeta, no que chama de Pretexto, abre sua obra

dizendo do desejo de Flaubert de fazer um livro sobre nada, desejo este que é relatado a uma

amiga em 1852 e é encontrado por Manoel de Barros em Cartas exemplares, organizadas por

Duda Machado. Manoel de Barros diz que o nada de Flaubert não corresponde ao nada

existencial, ao nada metafísico, mas que Flaubert queria escrever um livro que quase não

tivesse tema e se sustentasse apenas pelo estilo. Logo em seguida, Manoel de Barros adverte o

leitor da diferença entre o nada de Flaubert e o nada de sua obra: “Mas o nada de meu livro é

o nada mesmo”. E continua discorrendo sobre de que nada trataria em seu livro: É coisa nenhuma por escrito: um alarme para o silêncio, um abridor de amanhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso de veludo, etc etc. O que eu queria era

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fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis. O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora. (BARROS, 1996, p.7).

Mais adiante dirá, ainda a respeito de sua poesia: “o que não sei fazer desmancho em

frases. Eu fiz o nada aparecer. (...) Perder o nada é um empobrecimento” (BARROS, 1997,

p.63). Se perder o nada é um empobrecimento, a poética de Manoel de Barros vai trabalhar

justamente para fazê-lo aparecer. Para Barbosa (1995), a poesia de Barros está do lado do

simbólico, mas procura a todo tempo uma aproximação com o real, com o não simbolizado,

com aquilo que é impossível de ser representado.

É na tentativa, portanto, de fazer o nada aparecer, de apresentar o impossível de ser

representado, que a poesia de Barros caminha para a construção de uma ruína que abrigue o

abandono. O poeta, como o monge descabelado, busca a construção de uma “desconstrução”.

E ao sugerir essa ruína, Manoel de Barros nos oferece uma proposta que tende a ir contra a

toda uma prática pedagógica baseada na construção do conhecimento e pautada na adição do

sentido. Portanto, uma aprendizagem construtivista. A aprendizagem, então, pode ser

entendida como que sustentada na adição de um sentido acostumado, de um saber pré-

digerido. A desaprendizagem, ao contrário, caminha pra ruína, pro abrigo do nada.

Mesmo com suas diferenças, Manoel de Barros e Lacan, o primeiro através da poesia e

da articulação significante, o outro através da psicanálise e da busca pelo matema, sugerem

uma escrita que se diferencia da construção da aprendizagem por portar nela um suporte que

funciona como letra. Para Lacan, seu próprio texto só se torna ensinável, talvez transmissível,

depois que é matematizado, transformado em letra. Assim, um dizer como o meu, é por ex-sistir ao dito que ele permite o matema, mas não constitui matema para mim e, assim, coloca-se como não-ensinável antes que o dizer se tenha produzido, e como ensinável apenas depois de eu o haver matematizado... (LACAN, 1972, 484).

Do não-ensinável, Lacan fez o matema. Do desejo de não dizer nada, Manoel de

Barros fez sua poesia. Enquanto um aposta na transmissão para a sobrevivência da

psicanálise, o outro sugere a desaprendizagem como caminho para apalpar as intimidades do

mundo. Mas ambos sustentam suas obras fora do campo simbólico, do campo da significação,

da representação. Lacan (1971) é muito preciso ao dizer que seus enunciados ganham êxitos e

esperança absoluta, exatamente ao não serem compreendidos. A não compreensão de seus

leitores e ouvintes é, para o autor, um sinal de que alguém foi afetado pela sua fala. Como o

autor ressalta, só se compreende o que já se tem na cabeça, e a transmissão vai além dessa

perspectiva. A transmissão está presente não somente no conteúdo da teoria lacaniana, mas na

maneira mesma, na forma, como ela é exposta, anunciada, principalmente em seus Escritos.

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Como vimos, para Lacan40, o escrito é feito para não ser lido. Assim, encontramos em sua

obra uma distinção entre o escrito e a fala que faz do primeiro um recurso muito mais

próximo da letra e do matema do que o segundo. O escrito seria o osso do qual a linguagem é

a carne. O escrito, portanto, habita, como a letra, o real, enquanto que a linguagem se sustenta

na articulação significante própria do simbólico e, seguindo esse raciocínio, próprio do

semblante.

No Seminário XVIII, ao procurar por um discurso que não seja emitido pelo

semblante, Lacan (1971) recorrerá ao escrito acreditando ser através dele que encontraríamos

um discurso sustentado pela letra. O semblante se caracterizaria, portanto, por aquilo que

constitui o significante, a representação; já o escrito, feito para não ser lido, estaria, como

dissemos, do lado letra. Um ano antes, o próprio Lacan já havia justificado o uso cada vez

mais constante que faz do escrito ao dizer que as letrinhas que sustenta sua teoria dos

discursos não estão em seu texto por acaso, mas, justamente, por trazerem consigo pouco ou

nenhum significado. Isto, naturalmente, é condição de um discurso que se abstém do

semblante e pretende tocar algum pedaço do real.

Para Lacan, quem pode responder a pergunta a respeito de um discurso que não seja o

do semblante é a literatura de vanguarda. Lembremos que também Barthes (2004) reserva, ao

lado da lógica matemática e do zen budismo, um lugar especial a esse mesmo movimento

literário quando fala da assemia. A mesma atitude literária que leva Barthes a crer num

discurso desipotecado de sentido, leva Lacan a enxergar uma proposta vanguardista que visa

atingir um discurso que não se sustente no semblante. A poesia de Manoel, como já vimos,

procura por um texto desipotecado de sentido. Se acreditarmos que o significante na obra de

Barros funciona como letra, poderíamos também dizer que a obra de Manoel, de forma

próxima ao movimento vanguardista, se propõe a procurar por um discurso que esteja situado

fora do semblante.

A dificuldade, ou impossibilidade, de se chegar a esse discurso completamente

desvinculado do simbólico e sustentado apenas pelo real e pela letra é enunciada na obra de

Barros através de sua suspeita em relação à palavra ao ponto de osso: Há quem receite a palavra ao ponto de osso, / de oco; ao ponto de ninguém e de nuvem. / Sou mais a palavra com febre, decaída, fodida, na sarjeta. / Sou mais a palavra ao ponto de entulho. / Amo arrastar algumas no caco de vidro, / envergá-las pro chão, corrompê-las / - até que padeçam de mim e me sujem de branco. / Sonho exercer com elas ofício de criado: / usá-las como quem usa brincos. (BARROS, 1980, p.206).

40 LACAN, 1973, p.271 ou Lacan, 1972/1973, p.38.

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Se, por um lado, o poeta busca, a todo o momento, a palavra despida, nua, que lhe

mostre os pentelhos, por outro, ele pretere o osso da linguagem a favor da palavra fodida que

ele busca dominar. A linguagem, uma vez que nos emprega mais do que nós a empregamos,

nos obriga a uma servidão, ao “ofício de criado”. Para Barthes (2007, p.16), a língua é

fascista, uma vez que fascismo não é impedir de dizer, e sim obrigar a dizer. Somos servos da

língua e a ela prestamos serviços. A única saída que nos resta contra essa escravidão, é a

trapaça, a esquiva que permite ouvir a língua fora do poder. Essa é a função que tanto Barthes

quanto Lacan parecem atribuir à literatura de vanguarda. Também Manoel, mesmo

reconhecendo o poder fascista das palavras, palavras essas que tiram o lugar debaixo dele,

mostra sua inclinação pra essa trapaça. Ao poeta, mais do que a palavra a ponto de osso, lhe

interessa a palavra a ponto de entulho, que se deixe dominar, que se deixe arrastar no chão e

ser usada como quem usa brincos.

Se o semblante se sustenta no simbólico e no pano que a articulação significante tece,

a nudez das palavras pode também nos remeter à ausência do semblante, da carne ou das

vestes que recobrem o osso. A palavra em Manoel procura se despir do semblante para atingir

sua nudez. Mas chegar ao osso da linguagem parece ser uma meta impossível. Talvez tão

impossível quanto fazer uso dela. Mas, então, será que todos os recursos de Manoel, de

alcançar a nudez das palavras, tirar o sentido delas, usar a linguagem como quem usa brincos,

fazer o significante funcionar como uma letra, desnomear as coisas e os seres, enfim, todas as

maneiras do poeta tentar sua desaprendizagem, tudo isso faz parte de um projeto impossível?

Se pensarmos que a desaprendizagem de Manoel, em todas as suas facetas, procura alcançar a

letra, estaríamos corretos em atribuir à sua obra uma impossibilidade própria do real

lacaniano. E mais, uma estrutura, próxima da estrutura de um escrito, que terá como função

impossível representar o irrepresentável.

A nudez da palavra, o osso da linguagem e o real que a letra carrega parecem ser

muito mais um alvo do que um objeto alcançado ou dominado pela poesia de Barros. O real,

como lembra Barthes (2007), é o objeto de desejo da literatura. Na poesia de Manoel, o osso

impossível da linguagem, o real recoberto pelo semblante, é habitat de lírio na fala dos loucos

que, juntamente com as crianças, aparecem em sua obra sempre ao lado dos poetas: “Poeta é

um ente que lambe as palavras e depois se alucina. / No osso da fala dos loucos há lírios.”

(BARROS, 1989, p.289).

Assim é que a poesia de Manoel torna-se um convite à desaprendizagem. Muito mais

do que funcionar como mestre capaz de adicionar conhecimentos ou histórias ao leitor,

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Manoel sugere o vazio, o nada, o real, a letra. Em Livro sobre nada, em um capítulo

homônimo, o poeta escreve: “(...) sempre que desejo contar alguma coisa não faço nada; mas

quando não desejo contar nada, faço poesia” (BARROS, 1997, p.69). A poesia do poeta

surge, como foi dito, do desejo de não contar nada ou, como também diz o poeta, de fazer o

nada aparecer. Não há acréscimo de significantes, não há adição de conhecimentos; o que

move o poeta, antes de nomear as coisas, é desnomeá-las, é “fabricar brinquedos com

palavras” (BARROS, 1997, p.11).

Embora seja importante ressaltar que a desaprendizagem de Manoel de Barros não se

confunde com a transmissão lacaniana, da mesma forma que essa não se confunde com a

produtividade de Barthes, esses termos parecem ter alguns pontos de encontro e desencontros

que podem nos ajudar a pensar sobre eles. A Produtividade, trabalhada por Barthes, a

Transmissão, conceito lacaniano, e a desaprendizagem, neologismo de Barros, parecem não

se coincidirem, mas se aproximam em alguns pontos, principalmente no ponto referente ao

real. A transmissão consiste em uma transferência de trabalho, enquanto a produtividade se

apresenta como o trabalho proporcionado pelo texto de gozo, o que faz o leitor passar de

consumidor a produtor do texto. Já a desaprendizagem se caracteriza pela busca de um novo

olho, um “olhar infantil” que trabalha uma nova maneira de ver o mundo, como se fosse pela

primeira vez. Se a transmissão se dá pela letra enquanto matema, e a produtividade se dá pela

assemia, a desaprendizagem se dará pela palavra despida, pelo texto em ruínas, pelo

abandono do sentido. Todas elas parecem contornar algo do não sentido, do não simbolizável,

algo que parece estar para além do simbólico, próximo da letra, e que nos remete ao

impossível de significação. Impossibilidade que expressa o real que cada experiência busca

atingir. Se a significação é impossível, resta-nos, portanto, o trabalho de significância que a

abertura própria da falta de significação nos provoca. Se acreditamos que há alguma

aproximação entre a produtividade, a transmissão e a desaprendizagem, será justamente no

que cada uma dessas práticas alcançam de pedaços do real.

A desaprendizagem contida na poesia de Manoel de Barros aparece em seu texto sob

variados aspectos, desde a prevalência da significância sobre a significação, passando pelas

imagens surrealistas e pelos desobjetos que cria, pelo caráter enigmático a que ela nos lança e

pela tentativa de fazer o nada aparecer, até a desinvenção do mundo e desestruturação da

linguagem que ela propõe. Todas essas formas parecem servir à desaprendizagem se

emprestarmos a ela esse caráter de transmissibilidade sugerido em nosso derradeiro capítulo.

Caminhando opostamente à aprendizagem enquanto adição de conhecimento e buscando o

gozo que o exercício do saber representa, Manoel de Barros joga com a linguagem de maneira

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a criar uma poesia singular que se sustenta, nos dizeres lacanianos, na letra e na transmissão

que ela carrega.

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5 CONCLUSÃO

Através do diálogo entre a obra de Manoel de Barros e a teoria psicanalítica, nos foi

possível aproximar de sua poética da desaprendizagem e deixarmo-nos tocar por ela. Os

efeitos diversos dessa aproximação não podemos precisar com exatidão; no entanto,

esperamos ter atingido algumas metas, assim como, também, chegado a novas questões.

Acreditando ter o cuidado que exige toda aproximação entre Psicanálise e Literatura,

pretendemos ter feito com que a poesia de Barros, através de tudo o que ela comporta, tenha

nos tocado de forma a permitir que avancemos em direção a um saber tanto literário quanto

psicanalítico. Literário, uma vez que destacamos a análise feita de um aspecto da poesia de

Manoel de Barros que encontramos no uso peculiar que faz da letra através daquilo que o

próprio poeta denomina “uma desaprendizagem”. Psicanalítico, porque tentamos

problematizar, através desse mesmo processo de desaprendizagem, a maneira como, por meio

da palavra, um poeta encontra acesso ao real, o que, como lembra Ram Mandil (2005), pode

nos orientar na prática do inconsciente, já que também este é atravessado pela linguagem,

pelo significante e pela letra.

Tendo como objeto principal de nosso estudo a desaprendizagem de Manoel de

Barros, acreditamos ter o privilégio de nos situar em um espaço movediço que separa, de

maneira não tão evidente, nossas duas áreas de interesse, a Literatura e a Psicanálise. Se nosso

referencial, ao abordarmos os problemas da Psicanálise, foi os conceitos lacanianos de

significante, letra e transmissão, nosso ponto de apoio na crítica literária foi os textos de

Barthes que contemplam a significância, o texto de gozo, a assemia e a produtividade.

Como podemos verificar no primeiro capítulo do nosso trabalho, a poesia de Manoel

de Barros é marcada pelo que ele chama, além de desaprendizagem, de doença da palavra.

Manoel, ao longo de sua obra, se interessa cada vez mais pelo que a palavra carrega de

disfuncional, de doença, de equívoco, de erro. Ao se enveredar por esse caminho, o poeta faz

de sua aventura literária uma prática muito mais rica pela inutilidade do gozo que extrai das

letras do que pela vertente mensageira e útil da linguagem. Isso justifica seu interesse pela

palavra despida de qualquer valor de significação, da palavra desvinculada do sentido comum

que encontramos em nosso léxico, da palavra despida ou descascada, da palavra fodida e na

sarjeta.

Ao tirar o sentido das palavras, ao tentar a construção de uma ruína, Manoel, talvez

mais do que inventar uma nova língua, como ele mesmo chega a sugerir ao falar do “idioleto

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manoelês archaico”, procura “desinventar” sua própria língua. Para isso, o poeta elabora,

dentro de sua obra, um acervo de sugestões e críticas do fazer poético que pretende executar.

Dentre essas intenções, explicitamente reveladas em diversos trechos de sua obra, nos chama

a atenção a insistência do autor na importância de o poeta errar seu idioma, de o poeta, a

exemplo das crianças, brincar com as palavras, a exemplo dos loucos, delirar com a língua ou

fazê-la delirar.

Se a principal atividade do poeta ou, ao menos seu principal objetivo, é fazer frases

que desestruturam a linguagem, que desloquem a significação de um texto, que provoquem

uma crise na cadeia significante, é porque ele reconhece, de alguma forma, o acesso que a

palavra pode lhe dar a algo irrepresentável, impossível, algo que nos remete ao real lacaniano.

Baseando-nos no ensino de Lacan, chegamos a propor que esse trabalho do poeta vai ao

encontro do que o psicanalista francês sugere ser chamado de letra. Se, para Saussure (1996),

o signo lingüístico é composto por um significante e um significado, a letra, para Lacan, vai

ser, ora o significante deslocado de qualquer significado, como no conto de Poe, onde a

letra/carta faz suas peripécias sem que precise recorrer a uma mensagem, ora como uma

marca distante de qualquer aspecto significante, como encontramos nos matemas.

Se dissemos que a desaprendizagem de Barros consiste em trabalhar com o equívoco

da palavra, retirando ou subvertendo seus significados, distanciando o significante de seu

valor de significação, é porque acreditamos que o uso que faz dos significantes aproxima

esses últimos aos aspectos fundamentais da letra. Mas antes de pensarmos a letra como traço

desvinculado de qualquer caráter significante e, por isso, portadora de uma transmissão,

pensamos a letra como o significante que se abstém de um valor de significação e portadora,

deste modo, de um trabalho de significância.

Para isso, recorremos, também, ao semiólogo e crítico literário Roland Barthes (2004),

que nos apresenta três regimes antropológicos do sentido: a monossemia, que seria um regime

patológico onde toda mensagem se fixaria a um só sentido; a polissemia, que seria a

existência de uma variedade de sentidos para a mesma mensagem; e a assemia, que seria a

falta de qualquer sentido. Mesmo que, em alguns momentos de sua obra, Barros se valha da

polissemia, e empreste a uma mesma palavra sentidos diferentes, o que vemos como

característica mais marcante no poeta é sua busca pela desestruturação da linguagem, pela

retirada e esvaziamento de sentido. Jogando com esses dois regimes de sentido, polissemia e

assemia, mas buscando cada vez mais atingir a falta de sentido, a palavra desipotecada de

qualquer significação, Manoel enriquece sua obra em significância.

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Nossa hipótese foi que, nesse momento, as duas leituras, lacaniana e barthesiana, se

tocam. Para Barthes (2004), a significância contrapõe-se à significação por sua produtividade.

Se a significação fecha um sentido, dá um ponto de basta para a cadeia significante, servindo

de pontuação, a significância, justamente por suprimir qualquer possibilidade de fechamento,

de ponto final, por não conter nenhum sentido fechado, abre um leque de possibilidades de

significação que exige um trabalho, chamado por Barthes de produtividade.

A escrita marcada pela significância, mais do que pela significação, convida o leitor a

ser muito mais do que um consumidor do texto, uma espécie de co-produtor. Se a significação

não está pronta, se o texto se encontra em um estado de assemia, o material literário se

encontra aberto e provoca um trabalho de produção do qual, além do escritor, o leitor

participa. Se a teoria lacaniana coincide, nesse ponto, com a crítica literária de Barthes, é

porque, pelo menos durante um período de seu ensino, Lacan também situa a letra no jogo

saussuriano entre significado e significante. Se a letra é encarada como suporte material do

significante, será marcada pela falta de significação e por um aumento de significância. Ou

seja, se a letra é o significante sem ponto de basta, sem ponto final, é uma abertura que

fomenta o trabalho de significância que, como vimos, remete à produtividade referida por

Barthes.

Porém, Lacan, ao longo de seus seminários, afasta a letra do campo significante e

empresta a essa característica outras que a aproxima mais a metáfora do matema do que da

carta roubada do conto de Poe. Embora essa distinção entre letra e significante não seja, de

modo algum, um ponto claro na obra de Lacan, podemos perceber que a letra vai se

distanciando do significante principalmente em virtude de seu caráter não representativo. Se o

significante representa algo para outro significante, uma letra não representa nada, a letra faz

marca. Essa característica da letra vai justificar um afastamento de Lacan da teoria de Barthes

sobre a significância, embora novamente não estejamos tratando de algo claramente distinto.

Se o significante, despojado de seu valor de significação, ganha em significância, a letra,

enquanto estrutura de matema, ganha em transmissibilidade. Aí chegamos à nossa mais

fundamental hipótese: se a poesia de Manoel busca esvaziar o sentido das palavras, seu estilo

será marcado por uma tentativa, também notada por Lacan na literatura de vanguarda, de

construir um discurso que esteja fora da dimensão simbólica do semblante, e que alcance algo

do real próprio à letra. Em outras palavras, a hipótese é que a desaprendizagem de Barros

consiste em fazer com que o significante funcione como letra e se aproxime do matema, não

por sua dimensão matemática, mas por fugir a uma representação. Busca, assim, fazer marca,

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seja através do rumor da língua, seja, mais freqüentemente, através do não sentido que ela

toca.

A hipótese, portanto, foi que, se a poesia de Barros é marcada por uma doença das

frases, a principal característica dessa doença seria ser transmissível, não como um vírus

maligno que impede o corpo de trabalhar, mas, pelo contrário, por uma marca da linguagem

que, justamente, possibilita a transferência de um trabalho. Trabalho este marcado pela

significância e pela impossibilidade de significação. Tentamos ter o cuidado de não confundir

as teorias apresentadas, seja por Lacan e Barthes, seja nas próprias propostas literárias

encontradas na poesia de Manoel de Barros. Porém, não podemos deixar de reconhecer uma

aproximação entre o uso que o poeta faz da palavra com a busca pelo não sentido teorizado

por Barthes ou pela letra trabalhada por Lacan. O ponto comum desses três projetos, além da

busca por atingir um pedaço do real, parece estar no trabalho a que a prática do poeta nos

remete. Se na teoria de Barthes encontramos uma exaltação ao texto desipotecado do antigo

regime de sentido que nos lançaria a um trabalho de significância, na teoria lacaniana

encontramos uma busca pela letra, pelo matema, objetivando alcançar uma transmissão. Na

poesia de Barros, encontramos a desaprendizagem como forma de se chegar a um novo olho,

um olho infantil, que vê o mundo pela primeira vez.

Nesse sentido, pensamos que o neologismo do poeta parece-nos agora mais propício

ainda do que no começo deste trabalho. Se a aprendizagem se desdobra em uma prática

pedagógica de acrescentar conhecimentos, de nomear, de aproximar as palavras dos sentidos

encontrados nos léxicos, a desaprendizagem seria rica por oferecer não uma transferência de

informação, mas uma transferência de trabalho; não um saber pré-digerido, mas um saber do

não sabido. Destarte, Manoel nos convida a desaprender oito horas por dia, a despir as

palavras e a se contagiar com a doença inerente às frases.

Dissemos que, além de algumas hipóteses trabalhadas e algumas conclusões

alcançadas, nossa pesquisa nos levou também a algumas questões novas. A principal delas

seria quanto ao valor clínico de nosso estudo. Acreditando na importância da dimensão clínica

em qualquer estudo psicanalítico, seja como fonte de inspiração, seja como finalidade prática,

perguntamos em quê o presente trabalho nos orienta na prática do inconsciente. Tendo em

vista principalmente os avanços teóricos do fim do ensino lacaniano, que concebe a prática

analítica como um trabalho que se orienta muito mais pela atualização da letra e pela

intervenção no real do que em produzir sentidos ou articular significantes, nos questionamos

se a desaprendizagem de Manoel, como uma tentativa de via de acesso ao real, pode nos

oferecer também uma inspiração de caráter clínico. Uma inspiração, por exemplo, de uma

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clínica que se oriente muito mais por algo próximo a uma desaprendizagem do que pela

produção de sentido ou pela decifração do inconsciente. Sem aprofundarmos em uma nova

questão que nos demandaria, logicamente, nova pesquisa, contentemo-nos em aproximar a

invenção que o poeta indica como conseqüência de uma desaprendizagem à invenção que

Lacan sugere em seus últimos seminários como um objetivo da análise.

Como já destacamos, não podemos prever todos os efeitos da aproximação feita entre

a literatura de Manoel e a teoria psicanalítica de Lacan. Se o poeta pode nos trazer alguma

contribuição clínica, talvez ainda seja precoce dizer. Por enquanto, apenas ressaltemos a

maneira “singular, tão singular” que o poeta encontra de alcançar um pedaço do real.

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ANEXO: DEZ PERGUNTAS A MANOEL DE BARROS41

1) Manoel, em O Livro das Ignorãças, você sugere que, para apalpar as intimidades do

mundo, é preciso desaprender oito horas por dia. No que consiste essa

desaprendizagem?

A gente precisa de ser estudado em língua de sol, de água, de árvores, de conchas e

de pedras. É preciso ser estudado nas coisas para talvez humanizá-las depois. E uma

vez humanizadas as coisas a gente consegue até pegar na bunda do vento e mesmo

apalpar as intimidades do mundo.

2) Ainda sobre desaprendizagem, você sugere em entrevista o seguinte: "Desaprender

umas oito horas por dia para adquirir um novo olho, digamos, um olho infantil, para

olhar o mundo como se fosse a primeira vez. (...) Criar, para mim, começa exatamente

no desconhecer". Onde se situa a criação e a invenção em Manoel de Barros?

Sim. Acho importante a infância da palavra. Com ela podemos penetrar no absurdo

divino das imagens. Na pura graça verbal. Sem regências e sem sintaxe. Só apalpando

o mundo. A gente acaba gostando de escrever as coisas que não acontecem. Só a

graça verbal.

3) Também em entrevista, você diz que seu "negócio é com a palavra", que o que você

faz é "descascar palavras". O que você procura atingir com esse descascamento?

Usei o verbo descascar, mas não foi no sentido de tirar a roupa da palavra. Foi no

sentido de amá-la e ser desejado por ela.

4) Em Tratado geral das grandezas do ínfimo, você diz: "Lacan entregava aos poetas a

tarefa de contemplação dos restos. E Barthes completava: Contemplar os restos é

narcisismo". Qual é a influência desses autores em seu trabalho?

41 Entrevista concedida através de um e-mail encaminhado à secretária de Manoel de Barros, Eliane Sandra, em

Maio de 2009.

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Gosto de Lacan e de Barthes. A citação foi para confirmar o gosto que tenho pelas

pobres coisas do chão. Pelos restos. As coisas desprezadas servem mais à pena do que

as coisas engalanadas.

5) Você diz ter apresentado ao Rosa a palavra "gravanha". O que é "gravanha" e o que foi

feito dessa palavra na obra de Manoel de Barros?

Gravanha é palavra que os pantaneiros usam quando querem dizer que o lugar é

impenetrável. É moita de gravatá que é áspera e impenetrável. Só formiga penetra na

gravanha sem se ferir.

6) Manoel de Barros "não é biografável". Por quê? Quem é biografável?

Porque eu acho que o poeta é só inventado. Biografia acho que tem caminhos

diferentes.

7) Um "abridor de amanhecer", uma "fivela de prender silêncio". Como funcionam esses

objetos, "inutensílios", que aparecem na obra de Manoel de Barros?

São brincadeiras de coisificar o amanhecer; de coisificar o silêncio. Tais objetos

fazem parte de meu trabalho de humanizar ou de coisificar as coisas. É brincadeira

poética de criança. Por exemplo: “Vi uma lesma ajoelhada na pedra”.

8) Em O Livro das Ignorãças, você diz: "Eu escrevo o rumor da língua". Em outros

momentos você diz procurar a palavra ágrafa, o som que não deu liga. O que a poesia

de Manoel atinge de "rumor"?

Penso que a poesia faz encantamentos através do rumor das palavras mais do que

pelas informações das palavras.

9) Você diz que todos seus livros são repetições do primeiro. No entanto, o primeiro

parece se diferenciar dos outros, por exemplo, quanto à metalinguagem e ao emprego

do que você chama de coisificação do homem, que vai ganhando espaço em sua obra.

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Que visão panorâmica você tem do seu percurso literário? Desde o primeiro livro até

agora, o que se repete?

Tudo são repetições de mim por formas diferentes. São invenções com as quais eu

quero expor meu subconsciente.

10) Você sugere a desnomeação e a desaprendizagem, exercícios que parecem desarrumar

a linguagem. No entanto, cria um Glossário, de transnominações, é verdade, e que não

explica muita coisa. Mas como um Glossário entra na obra de um poeta como Manoel

de Barros?

Glossários são gestos de palavra para alcançar a poesia do trapo, da pedra, da água,

da lesma. Na verdade eu não sei usar a razão para explicar.

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segundo a data da primeira publicação e não da ordem alfabética.

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