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POR UMA HISTÓRIA DE DENTRO PARA FORA: ARGUMENTOS PARA A DESCONSTRUÇÃO DO EUROCENTRISMO NA HISTORIOGRAFIA E NO ENSINO DA HISTÓRIA NO BRASIL Raíssa Orestes Carneiro (Mestre em História - UFPE) [email protected] Resumo: a História do Ocidente foi contada, pelo menos nos últimos duzentos anos, a partir de marcos ocorridos em um ponto bem específico do planeta: a Europa Ocidental. Ensinada como história universal, ela não leva em conta a influência de outros povos na cultura europeia, nem o fato de que tanto os marcos quanto os critérios para se definir quem seria civilizado e quem seria atrasado sempre foram completamente arbitrários, afinal, são uma construção. Os países colonizados pelos europeus, dentre eles o Brasil, assimilaram o discurso e também passaram a contar suas próprias histórias a partir dessa relação. Nos últimos anos, contudo, tanto historiadores quanto pesquisadores ligados a outras áreas do conhecimento passaram a questionar essa narrativa e a propor uma história contada pelos “subalternos”. Nesse artigo, buscou-se trazer os argumentos levantados por alguns deles, como forma de lançar luz sobre uma nova maneira de narrar a História do Brasil, sem, obviamente, qualquer pretensão de encerrar o tema ou de trazer respostas fechadas. Palavras-Chave: Eurocentrismo; Estudos Subalternos; História Oficial. Abstract: the Western History was told, at least in the last 200 years, from events that happened in a very specific place of the planet: Western Europe. Taught as a universal history, it doesn’t take into account the influence of other people in European culture, or the fact that both the landmarks and the criteria to define who would be civilized and who wouldn’t have always been completely arbitrary, after all that’s a construction. The countries colonized by Europeans, including Brazil, have assimilated this discourse and also tell their own histories from that point of view. In recent years, however, both historians and researchers of other areas of knowledge began to questionning this narrative and to propose a history told by the "subalterns". In this article, we sought to bring the arguments raised by some of them, as a way to shed light on a new way of narrating the history of Brazil, without, obviously, any pretension to close the topic or bring definitive answers. Key-Words: Eurocentrism; Subaltern Studies; Oficial History.

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POR UMA HISTÓRIA DE DENTRO PARA FORA: ARGUMENTOS PARA A

DESCONSTRUÇÃO DO EUROCENTRISMO NA HISTORIOGRAFIA E NO

ENSINO DA HISTÓRIA NO BRASIL

Raíssa Orestes Carneiro

(Mestre em História - UFPE)

[email protected]

Resumo: a História do Ocidente foi contada, pelo menos nos últimos duzentos anos, a

partir de marcos ocorridos em um ponto bem específico do planeta: a Europa Ocidental.

Ensinada como história universal, ela não leva em conta a influência de outros povos na

cultura europeia, nem o fato de que tanto os marcos quanto os critérios para se definir

quem seria civilizado e quem seria atrasado sempre foram completamente arbitrários,

afinal, são uma construção. Os países colonizados pelos europeus, dentre eles o Brasil,

assimilaram o discurso e também passaram a contar suas próprias histórias a partir dessa

relação. Nos últimos anos, contudo, tanto historiadores quanto pesquisadores ligados a

outras áreas do conhecimento passaram a questionar essa narrativa e a propor uma

história contada pelos “subalternos”. Nesse artigo, buscou-se trazer os argumentos

levantados por alguns deles, como forma de lançar luz sobre uma nova maneira de

narrar a História do Brasil, sem, obviamente, qualquer pretensão de encerrar o tema ou

de trazer respostas fechadas.

Palavras-Chave: Eurocentrismo; Estudos Subalternos; História Oficial.

Abstract: the Western History was told, at least in the last 200 years, from events that

happened in a very specific place of the planet: Western Europe. Taught as a universal

history, it doesn’t take into account the influence of other people in European culture, or

the fact that both the landmarks and the criteria to define who would be civilized and

who wouldn’t have always been completely arbitrary, after all that’s a construction. The

countries colonized by Europeans, including Brazil, have assimilated this discourse and

also tell their own histories from that point of view. In recent years, however, both

historians and researchers of other areas of knowledge began to questionning this

narrative and to propose a history told by the "subalterns". In this article, we sought to

bring the arguments raised by some of them, as a way to shed light on a new way of

narrating the history of Brazil, without, obviously, any pretension to close the topic or

bring definitive answers.

Key-Words: Eurocentrism; Subaltern Studies; Oficial History.

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O pensamento ocidental se habituou a trabalhar com conceitos fechados, os

quais acabam, em vários momentos, sendo transpostos sem qualquer adaptação para

realidades nas quais eles não são tão facilmente aplicáveis. Ao longo do tempo, criaram-

se critérios (arbitrários) para se definir o que seria civilizado, histórico, evolutivo. Em

contrapartida, os que não se encaixavam plenamente nos conceitos foram taxados de

“primitivos”, “pré-históricos”, “estagnados” (despóticos). De tão arraigada e difundida,

essa forma de pensar acabou sendo assimilada até mesmo pelos ditos “atrasados” e

perpetuada em suas historiografias, normalmente impostas de cima para baixo. O

historiador indiano Ranahit Guha (2002) utiliza o termo “estatismo” para se referir a

essa imposição, ou seja, aquela que “permite que os valores dominantes do Estado

determinem o critério do que é histórico” (RANAHIT GUHA, 2002, p. 17)1.

Um conceito particularmente danoso, pois amplamente utilizado para separar o

suposto avanço de alguns povos de um igualmente suposto atraso de outros é o de

“progresso”. De fato, ideias sobre progresso permeiam o imaginário ocidental há

séculos. Normalmente associadas ao que a Europa Ocidental definiu como único

caminho para se atingir a “civilização”, o ideal levou ao desprezo das populações que

ainda não haviam passado por todas as ditas etapas para o desenvolvimento.

O mais curioso é que, além de não fazerem nenhum sentido como história do

Ocidente, muito menos da humanidade, uma vez que dizem respeito a pontos bem

específicos do mapa, os marcos escolhidos para contar a História dão saltos gigantescos

sem qualquer explicação, como a passagem da “pré-história” para as primeiras

“civilizações”, para citar apenas um exemplo. James Scott (2017), antropólogo

americano, chama a atenção para o fato de que a formação dos Estados não teve nada de

natural. Entre a sedentarização das primeiras populações, a domesticação de animais e

plantas e o surgimento dos primeiros Estados se passaram milênios. Um fato, portanto,

não foi causa direta do seguinte, ao contrário do que costuma aparecer nos manuais

escolares. Foi o que Demoule (2017), arqueólogo francês, tratando exatamente do

mesmo tema, chamou de “milênios apagados”2, o que demonstra que o questionamento

1 Os textos em outras línguas foram traduzidos pela autora para fins de citação. 2 Millénaires zappés.

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está despertando a atenção de pesquisadores em vários países ao mesmo tempo, o que

faz todo o sentido, já que:

[...] a Arqueologia demonstra que uma boa parte do que compõe nosso

mundo atual, as cidades, os chefes, as nações, as guerras, os deuses, e que

parecem evidentes, possui, na verdade, uma história e que essa história não

era necessariamente a única que teria sido possível (DEMOULE, 2017, p.

233).

A essa crença generalizada no Ocidente de que a civilização europeia, em

particular, teve algum tipo de vantagem especial exclusiva que lhe deu, ao longo da

história, uma superioridade permanente sobre outras populações ao redor do mundo,

Blaut deu o nome de Difusionismo Eurocêntrico. Segundo ele:

A crença é tanto histórica quanto geográfica. Europeus são vistos como

“fazedores de história”. A Europa eternamente avança, progride, moderniza-

se. O resto do mundo avança mais lentamente, ou fica estagnado: é

“sociedade tradicional”. Assim, o mundo tem um centro geográfico

permanente e uma periferia permanente: um Dentro e um Fora. Dentro lidera,

Fora fica atrás. Dentro inova, Fora imita. [...] Essa crença é o difusionismo

ou, mais precisamente, o Difusionismo Eurocêntrico (BLAUT, 1993, p.1).

O grande problema é que, ainda segundo Blaut, não se trata apenas de um

pensamento baseado em preconceitos, mas sim da opinião de especialistas, ou seja, de

argumentos apoiados em supostos fatos (o Direito surgiu em Roma, a Filosofia surgiu

na Grécia, o capitalismo surgiu na Inglaterra, etc). Acontece que são argumentos que

não levam em consideração as interações da Europa com outras sociedades da Ásia, da

África e, pouco depois, da América, as quais, nesse sentido, não teriam sido vítimas de

espoliação e de destruição cultural, mas, pelo contrário, deveriam ser gratas por terem

tido contato com a civilização, através dos europeus. A esse respeito, é interessante o

que dizem Preiswerk e Perrot (1975, p. 130):

Examinando-se aqueles [critérios] que determinam a aparição do homem dito

civilizado, a saber, aquele que conhece a organização estatal, a urbanização e

a escrita, é claro que a rigidez dessa tripla escolha, ligada à inevitabilidade do

alcance da civilização quando esses três elementos estão presentes, é

etnocêntrica. Os critérios refletem o sistema de valores em curso na nossa

época no Ocidente, que é subjetivo e relativo. Poder-se-ia haver escolhido, no

seu lugar, a paz social, a ausência de guerra, a equidade na distribuição dos

recursos disponíveis, o equilíbrio ecológico ou, ainda, a proteção coletiva do

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indivíduo e o quadro seria completamente revirado. O aspecto etnocêntrico

deste reside, entre outros, no fato de apresentar o único modelo e a única

direção possível de evolução, diretamente deduzidos de concepções

ocidentais quanto ao conteúdo e às sequências do desenvolvimento.

Esses critérios, aliás, acabaram levando à valorização de algumas áreas, como o

chamado Crescente Fértil ou o delta do Nilo, como berços de grandes civilizações, as

quais, assim consideradas, foram, inclusive, “embranquecidas”, pois não-brancos não

teriam a capacidade para feitos tão grandiosos. Vários autores, nos últimos anos, vêm

buscando recontar essa história, com a ajuda de outras ciências, no intuito de desfazer

certos mitos. A título de exemplo, pode ser citado Cheik Anta Diop (2011), que no

artigo “A origem dos antigos egípcios” utiliza evidências da Antropologia física, da

Biologia, da Literatura antiga e da Arqueologia para demonstrar que os egípcios eram

negros.

Em outra obra, o mesmo autor (que, vale ressaltar, era físico e, portanto, possuía

um grau de liberdade talvez maior no campo histórico), fez um estudo comparado entre

a Europa e a África Negra desde a Antiguidade até a formação dos Estados Modernos,

buscando demonstrar que a África teria passado pelos mesmos estágios3 da Europa,

senão antes, ao menos concomitantemente. O autor detalha o nível de organização

política, econômica e social a que chegaram alguns reinos africanos, notadamente os de

Ghana, do Mali e de Songhai, os quais, se estivessem na Europa, certamente teriam

entrado para a história como grandes exemplos de impérios “civilizados”. Nas palavras

do autor:

O império de Ghana antecedeu em quinhentos anos o de Carlos Magno, cuja

consagração ocorreu no ano de 800. Desde o desmembramento do Império

Romano, no século IV, até essa data, a Europa foi apenas um caos, sem

organização comparável à do Império africano. É com Carlos Magno que

começa o primeiro esforço de centralização, mas pode-se afirmar, sem

exagero, que a Europa nunca encontrou, durante toda a Idade Média, uma

forma de organização política superior à dos Estados africanos (DIOP, 1987,

p. 97).

O fato de nem todos esses autores serem historiadores em nada diminui a

relevância e a pertinência da argumentação. Todos os critérios que fizeram da Europa

3 Entendidos, aqui, em linhas gerais, a partir das ideias sobre modos de produção da teoria marxista.

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ocidental um lugar destinado por natureza ao progresso sempre caracterizaram

igualmente povos de fora da Europa, notadamente China, Império Otomano, Índia e

alguns, como dito antes, reinos da África e da América. Nesse contexto, a solução para

explicar o aparente desenvolvimento desses “bárbaros” foi, ao menos a princípio, o da

existência de um progresso técnico, mas não moral, afinal, sem o cristianismo e sem as

qualidades “naturais” dos europeus, o máximo a que eles haviam conseguido chegar

teria sido, no plano político, a um “Despotismo Oriental”, já que somente os europeus

conheceriam a verdadeira liberdade. O curioso é que o momento em que essas teorias se

tornaram mais fortes, notadamente ao logo dos séculos XVII e XVIII, corresponde

justamente àquele em que a própria Europa “civilizada” enfrentava o absolutismo de

seus soberanos.

Esse tipo de postura que coloca o “Velho Continente” como superior a todos os

demais foi questionado por Jack Goody (2008), o qual, criticando Norbert Elias e seu

“processo civilizador” que tomava exclusivamente a Europa Ocidental como parâmetro,

considerou como um “roubo de civilização” a afirmação de que apenas a Europa a

possuiria ou seria capaz de produzi-la. De acordo com o autor:

Alguns dos problemas de Elias com outras culturas estão registrados nos

comentários sobre suas experiências em Gana [...]. Elias falha em não tirar a

conclusão evidente desse encontro: para cada cultura, o “outro” representa o

desvio das normas de comportamento civilizado. Civilizado no sentido de

obedecer a regulamentos sociais que são frequentemente internalizados a

ponto de parecerem autocompreensivos. Ele próprio, com suas

peculiaridades, era a aberração no vilarejo ganense, aquele que

desconsiderava as normas de coabitação (GOODY, 2008, p. 200-201).

No campo da História, essa divisão entre “civilizados” e “primitivos”, com as

características peculiares a cada categoria, já havia, inclusive, levado, desde meados do

século XIX, à divisão entre o que poderia ser considerado histórico ou não, cabendo à

Antropologia (e não à História) o estudo dos últimos.

No final do século XX, no entanto, vários autores (ainda uma minoria), de

diversos países do mundo, iniciaram um combate a esse eurocentrismo, propondo

formas diferentes de perceber a história.

Nomes como Cheikh Anta Diop, Ranahit Guha e James Scott, já mencionados,

mas também Dipesh Chakrabarty (2000) e Sanjay Subrahmanyan (1997), para a Índia e

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o sul da Ásia, Greg Denning (1991) e Marshall Sahlins (1990), para a Oceania, e

Leopoldo Zea (1978), Edgardo Lander (2005) e Eduardo Galeano (1993), para a

América Latina, dentre vários outros, passaram a propor uma narrativa da história a

partir da visão dos “subalternos”4.

Foge ao escopo desse artigo analisar em detalhes o que propõe cada um desses

autores, ainda assim, não se pode deixar de traçar suas ideias básicas, já que muitas

delas poderiam ter alguma aplicação na realidade brasileira.

Os autores indianos, por exemplo, fazem parte de um grupo que ficou conhecido

como “Subaltern Studies Group”, surgido nos anos de 1980, na Inglaterra (e não na

Índia), em face do clima hostil que suas ideias desencadeavam em solo indiano. Esses

autores buscavam desmistificar a história nacionalista elaborada por uma elite que havia

chegado ao topo justamente por colaborar com os colonizadores britânicos. Sua

proposta, nesse sentido, era a de “provincializar a Europa”5, ou seja, retirá-la do centro

do mundo onde ela se instaurou com a ajuda, inclusive, de muitos dos países tidos como

periféricos (ou, ao menos, dos grupos que detinham o poder nesses países). Como

enfatiza Chakrabarty (2000, p. 4):

Conceitos como cidadania, Estado, sociedade civil, esfera pública, direitos

humanos, igualdade perante a lei, indivíduo, distinções entre público e

privado, a ideia de sujeito, de democracia, de soberania popular, de justiça

social, de racionalidade científica e assim por diante, todos carregam o fardo

do pensamento e da história europeus.

Ora, como uma região que - conforme lembra Abu-Lughod (1989) - estava em

plena atividade comercial, política e social, envolvendo uma área que ia da China à

costa oriental da África, passando pela Arábia Saudita e pela Índia, muito antes de

qualquer contato mais estreito com europeus, poderia ser apenas herdeira dos seus

conceitos?

Mesmo para o caso da Oceania, onde o contato constante foi ainda mais tardio, é

preciso ter em mente que a história é uma construção cultural e, portanto, deve-se

abandonar a ideia de que sociedades “primitivas” como a dos chamados “aborígenes”

4 Utilizando a expressão dos indianos. 5 Utilizando a expressão de Chakrabarty.

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são sem história. Nesse sentido, como propõe Denning, é imprescindível fazer uma

distinção entre o que constitui o conhecimento sobre o passado, que seria a história, e o

passado enquanto algo que efetivamente aconteceu. Segundo esse autor:

Nós temos a convicção de que o passado está ordenado em si, de tal maneira

que nós podemos fazer uma narrativa dele. Ele pode ser transformado em

texto. Nós estamos convictos de que a nossa seleção é uma exegese de uma

ordem já pronta. É a mesma convicção que nós temos nos sistemas culturais

do nosso presente. Essa crença mítica em um passado que pode ser

transformado em texto é o ambiente no qual histórias são feitas. O passado

em si é imperceptível: ele só tem existência em histórias. Histórias são o

passado em texto (DENNING, 1991, p. 353).

Em suma, as lembranças do que aconteceu no passado são artefatos culturais,

tanto dos momentos que as produzem quanto daqueles que as reproduzem, e vão

ganhando significados diferentes, de acordo com a época e a sociedade que as reaviva.

Para ilustrar essa visão, pode ser mencionado o texto de Marshall Sahlins (1990), que

detalha um evento amplamente narrado na história ocidental, qual seja, a chegada do

Capitão Cook, a mando do governo britânico, às ilhas do Pacífico, mas contada, dessa

vez, a partir do ponto de vista dos habitantes dessas ilhas e de como eles perceberam

essa chegada, associando-a, inclusive, aos mitos locais. Apenas a dupla visão dá

realmente sentido à história do Capitão, permitindo explicar por que, num primeiro

contato, ele foi recebido literalmente como um deus, ao passo que, um mês depois,

acabou sendo assassinado como um intruso.

As linhas gerais traçadas até aqui servem para montar o caminho até a América

Latina e, consequentemente, até o Brasil. As grandes navegações colocaram os europeus

em contato com povos e culturas completamente diferentes de tudo a que eles estavam

habituados. Pode-se até dizer, como ressalta Zea (1978), que, nesse contexto, ao se

“universalizar”, o homem europeu passou a tomar realmente consciência de si e do

outro, percebendo, no final das contas, apenas a si mesmo como ser humano,

completamente libertado do estado de natureza. Fontana resume bem essa ideia:

A nova forma de pensar sobre si mesmo nascia entre os europeus de uma

consciência que já não tinha relação com a religião, mas que se baseava na

crença própria de serem superiores moral e intelectualmente. O novo termo

de referência sobre o qual se elaborou esta imagem é o da natureza inferior

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dos não europeus; mas o espelho em que olharam para se definir tem uma

face dupla. Numa delas se “vêem” as diferenças de raça e mostra o rosto do

“selvagem”; na outra, fundamentada numa visão eurocêntrica da história, se

vê o do “primitivo”. Do primeiro surgiram o genocídio e o tráfico de

escravos; do segundo, o imperialismo (2005, p. 106).

De fato, sendo esse “outro” tão diferente, surgiram dúvidas quanto à sua

humanidade, afinal, povos com relações vistas como tão próximas do mundo natural,

dentre os quais alguns percebiam, em acontecimentos do dia a dia, vinganças dos deuses

da floresta, ou reconheciam, entre os seus ancestrais, animais e árvores6, não podiam ser

completamente humanos. Basta lembrar, por exemplo, que, até a bula Veritatis Ipsa,

decretada por Paulo III, em 1537, discutia-se a humanidade dos “índios”. A sua

decretação, contudo, em nada impediu todo tipo de abuso contra as populações aqui

instaladas antes da chegada dos europeus. Além do mais, era apenas o motivo que se

precisava para estimular o comércio de escravos. Já que os “índios” não podiam ser

forçados, “ter-se-ia” que recorrer aos africanos.

Em relação a estes, muitos deles, aliás, advindos de reinos bastante avançados,

para usar a nomenclatura própria do discurso do progresso - mas, como apontado por

Cheik Anta Diop (1987), não reconhecidos como tais pelos “civilizados” europeus -,

não houve qualquer preocupação moral. Zea (1978) chama a atenção para esse fato,

remetendo a Aristóteles, para o qual não se deveria negar a condição de humanidade ao

escravo, embora ficasse bastante claro que a sua humanidade seria diferente e inferior à

do seu senhor. Zea, nesse sentido, compara a escravidão entre os gregos com aquela

empreendida no mundo ibero, no qual o escravo perdia a própria condição de ser

humano, passando a fazer parte da natureza.

Esse discurso, conforme explicado por Descola, serviu (e continua servindo)

para justificar a dominação de pessoas, animais e plantas em todos os níveis, a tal ponto

que, para quase todos os povos colonizados, a sua própria história passou a ser contada

a partir da chegada dos colonizadores. Antes disso só se poderia falar numa “Pré-

História”, com os “povos primeiros”. Isso é facilmente perceptível nos livros escolares.

Zea, mais uma vez, é bastante contundente a esse respeito:

6 Ver, nesse sentido: DESCOLA, Philippe. Antropologia da Natureza. Disponível em:

http://www.ufpe.br/editora/ufpebooks/serie_extensao/outros/Cad_Hist_Ano_8_n_VIII/. Acesso em: 10

fev. 2014.

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Os seres com os quais tropeçou o europeu na sua fantástica aventura terão,

agora, que justificar perante ele sua humanidade ou, ao menos, fazer algo

para merecê-la. Igualmente, a história, a verdadeira história destes seres se

iniciará a partir da sua incorporação, por meio do descobrimento, da

conquista e da colonização realizados pelo homem ocidental à história deste.

Era este o fazedor da única possível e autêntica história, a verdadeira história

universal (ZEA, 1978, p. 50).

Para Lander (2005, p. 26), teria sido justamente com a invasão da América que

se haveria iniciado o que ele chama de “organização colonial do mundo”, com a

“constituição colonial dos saberes, das linguagens, da memória e do imaginário” e a

criação de uma narrativa universal para a história. Para aniquilar os povos que aqui

habitavam, atribuindo-lhes a alcunha de bárbaros selvagens, era preciso negar-lhes suas

identidades e, para isso, nada melhor do que apagar o seu passado. Como afirma

Galeano (1993, p. 65):

O sistema nega, aos mortos de fome, até mesmo o alimento de sua memória.

Para que não tenham um futuro, rouba seu passado. A história oficial está

contada a partir dos, pelos e para os ricos, os brancos, os machos e os

militares. A Europa é o Universo. Pouco ou nada aprendemos do passado

pré-colombiano da América e, quanto à África, melhor nem falar: o

conhecemos somente através dos velhos filmes de Tarzan. [...] Os grandes

processos econômicos e sociais não existem nem como fundo de cenário: são

escamoteados para que os chamados “países em desenvolvimento” não

saibam que não vão rumo ao desenvolvimento e sim que vêm dele, porque ao

longo de uma longa história foram sendo subdesenvolvidos pelo

desenvolvimento dos países que os espremeram.

Nesse contexto, juntamente com a população, o meio natural também acabou

sofrendo o impacto da colonização. Crosby (2011), aliás, chega até a dizer que esta não

foi apenas um empreendimento cultural e econômico, mas biológico, através da

transposição de plantas, animais e, sobretudo, vírus e bactérias para o “Novo Mundo”.

De qualquer forma, o fato é que, desde as treze colônias norte-americanas até o sul da

América espanhola, nenhuma região conseguiu escapar à destruição desenfreada dos

recursos naturais. Obviamente, isso também é válido para a América portuguesa (o

Brasil).

De acordo com Mintz (1985), não se sabe exatamente como nem por que o

açúcar se tornou tão prevalente entre as preferências gustativas dos europeus, mas foi

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esse produto que, a partir do século XVI, permitiu à Europa se conectar a praticamente

todo o resto do mundo, no que Wallerstein (2005) chamou de “uma economia-mundo

capitalista”. A passagem a seguir dá uma dimensão muito precisa desse sistema mundial

interligado:

[...] milhões de seres humanos foram tratados como commodities. Para obtê-

los, os produtos eram enviados para a África; por sua força de trabalho, a

riqueza foi criada nas Américas. A riqueza que eles criaram voltou, em

grande parte, à Grã-Bretanha; os produtos que eles fizeram foram

consumidos na Grã-Bretanha; e os produtos feitos pelos britânicos – pano,

ferramentas, instrumentos de tortura – foram consumidos pelos escravos, que

eram eles próprios consumidos na criação de riqueza (1985, p. 43).

O que se quer dizer com tudo isso é que, assim como vem acontecendo na Índia,

na África do Sul e no Peru, para citar apenas alguns países, já é tempo de se recontar a

História do Brasil e do mundo a partir de critérios não eurocêntricos. Não se busca, com

isso, negar a influência europeia na História local e, menos ainda, na formação do

pensamento brasileiro, mas sim ter em mente que a narrativa da História é uma

construção e, como tal, atende a interesses. Nesse sentido, assumir outros pontos de

vista, desconstruindo essa ideia de um caminho único para o progresso, pode ajudar a

perceber o Brasil como um “país do presente”, e não como um “país do futuro”,

eternamente “em desenvolvimento”.

Que o paradigma tradicional da História já não responde aos questionamentos

atuais não é novidade. A nouvelle histoire de Jacques Le Goff aborda isso há anos. A

crítica ao eurocentrismo também não é novidade. Contudo, pode-se dizer que ainda

possui relativamente poucos adeptos dentro do universo de historiadores. Por mais que,

no caso do Brasil, venha-se tentando inserir a História Indígena e a História da África (e

não apenas dos trabalhadores africanos escravizados) no ensino tradicional, ainda se

percebe que o conteúdo geral nas escolas e universidades continua passando pelos

marcos tradicionais (“invasões” bárbaras, tomada de Constantinopla, Revolução

Francesa, etc), o que faz com que a História do Brasil também seja contada a partir

desses marcos, tanto que ela só se inicia com a chegada dos europeus ao continente.

Como a História poderia ser recontada? O trabalho seria (será), sem dúvida,

árduo. Um ponto de partida já foi traçado por todos os autores mencionados. Ainda que

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eventualmente partindo dos próprios critérios eurocêntricos para demonstrar que os

europeus não eram os únicos a possuí-los, não deixa de ser um início válido. A

desconstrução de conceitos arraigados é extremamente complicada. Talvez um bom

caminho fosse tomar um fio condutor realmente universal, como a História Ambiental.

Obviamente, não se pretende, com um artigo, propor respostas definitivas, se é que elas

existem, mas também é papel do historiador, como já disse Sidney Mintz, fazer

perguntas cada vez mais desafiadoras. E os historiadores brasileiros atuais estão em

plenas condições de fazê-lo.

REFERÊNCIAS

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1350. New York: Oxford University Press. Oxford: Oxford University Press, 1989.

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London/Washington: Smithsonian Institution Press, 1991.

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Acesso em: 10 fev. 2014.

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