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978 Grupo de Trabalho: Teorias POR UMA METODOLOGIA COLABORATIVA PARA A PESQUISA EM MEDIAÇÃO CULTURAL Sônia Barreto de Novaes Paschoal 1 Resumo Desde o conceito de complexidade, observado empiricamente no cotidiano, às práticas colaborativas, vividas em diversos centros e núcleos de pesquisa, observa-se uma tendência a “bricolage” metodológica. Busca no texto que se segue encontrar uma possível definição para essa forma de abordagem metodológica a qual contribui significativamente aos estudos dos campos da Informação e da Cultura. Sendo estas, bens de caráter multidimensional e transversal a todas as faculdades, cujas formas de apropriação ocorrem das mais variadas formas, também a maneira de serem verificadas deverá obedecer à mesma lógica. Palavras-chaves: Metodologia de Pesquisa Colaborativa. Infoeducação. Mediação Cultural. Apropriação da Informação 1 Mestranda em Ciência da Informação ECA/USP sob orientação do Prof. Dr. Edmir Perrotti; Área de concentração: Cultura e Informação; Linha de Pesquisa: Mediação e Ação Cultural – Desenvolve pesquisa colaborativa de mediação cultural com crianças e adolescentes em situação de abrigo. Pesquisador-júnior do ColaborI – Colaboratório em Infoeducação

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Grupo de Trabalho: Teorias

POR UMA METODOLOGIA COLABORATIVA PARA A PESQUISA EM

MEDIAÇÃO CULTURAL

Sônia Barreto de Novaes Paschoal1

Resumo Desde o conceito de complexidade, observado empiricamente no cotidiano, às práticas colaborativas, vividas em diversos centros e núcleos de pesquisa, observa-se uma tendência a “bricolage” metodológica. Busca no texto que se segue encontrar uma possível definição para essa forma de abordagem metodológica a qual contribui significativamente aos estudos dos campos da Informação e da Cultura. Sendo estas, bens de caráter multidimensional e transversal a todas as faculdades, cujas formas de apropriação ocorrem das mais variadas formas, também a maneira de serem verificadas deverá obedecer à mesma lógica. Palavras-chaves: Metodologia de Pesquisa Colaborativa. Infoeducação. Mediação Cultural. Apropriação da Informação

1 Mestranda em Ciência da Informação ECA/USP sob orientação do Prof. Dr. Edmir Perrotti; Área de concentração: Cultura e Informação; Linha de Pesquisa: Mediação e Ação Cultural – Desenvolve pesquisa colaborativa de mediação cultural com crianças e adolescentes em situação de abrigo. Pesquisador-júnior do ColaborI – Colaboratório em Infoeducação

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Um pouco da história da metodologia qualitativa: um possível início da metodologia colaborativa

Gaston Bachelard divide o pensamento científico em três períodos, sejam eles:

a) o estado pré-científico (séculos XVI, XVII e XVIII) – nesse período é desenvolvido um modelo de

racionalidade científica basicamente sobre as ciências naturais;

b) o estado científico (final do século XVIII ao início do século XX) – no qual há modelo global de

racionalidade científica

[...] que admite variedade interna mas que se distingue e defende, por via de fronteiras ostensivas e ostensivamente policiadas, de duas formas de conhecimento não científico (e, portanto, irracional) potencialmente pertubadoras e intrusas: o senso comum e as chamadas humanidades ou estudos humanísticos (em que se incluiriam, entre outros, os estudos históricos, filológicos, jurídicos, literários, filosóficos e teológicos).” (SANTOS, 2006, p. 21)

c) novo espírito científico (ano de 1905 com a “Relatividade de Einstein”) – a partir deste, conceitos antes

primordiais e fixos são desmontados, sofrem deformações, as idéias e o desenvolvimento científico

ganham velocidade e é, “[...] em breve, as físicas abstratas que ordenarão todas as possibilidades de

experiência.” (BACHERLAD, 1996, p. 10)

Temos ainda nesse período, início do século XX, Adam Smith (riqueza das nações), Darwin (evolução das

espécies), Marx (O capital), Weber (A ética protestante e o espírito capitalista), Heisenberg (princípio da

incerteza), Gödel (teorema da incompletude) dentre outros, fazendo aparecer suas teorias, seus

pensamentos e seus princípios, convergindo, assim, a outros modos de se fazer a ciência.

Com Durkheim surge a sociologia acadêmica e Ernest Nagel estabelece obstáculos às ciências

sociais os quais dentre outros podemos destacar: [...] as teorias sociais não dispõem de teorias explicativas que lhes permitam abstrair do real para depois buscar nele, de modo metodologicamente controlado, a prova adequada; as ciências sociais não podem estabelecer leis unviersais porque os fenômenos sociais são historicamente condicionados e culturalmente determinados [...] (SANTOS, 2006, p. 36)

Não poderia ser diferente, afinal o comportamento humano não pode ser explicado objetivamente

com vista em suas manifestações externas. A ação humana é antes de tudo uma ação subjetiva, um a

priori, que vai se constituindo e se alimentando das informações presentes em seus mais variados

ambientes. Muito embora se emprestem conceitos das chamadas ciências naturais e das ciências puras para

explicar e fixar a especificidade do ser humano, tais conceitos vão se adequando às humanidades e

ganhando a coloração desse prisma. As ciências sociais nascem assim, essencialmente empíricas. Estas

passam então a buscar através de métodos quantitativos e qualitativos conhecimentos que a possam

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constituir. O fato é que a maneira de defender argumentos, posições e teses, vem sendo alterada

substancialmente e isso a partir dessas “quebras” no pensar científico.

O rigor da medição é colocado em xeque, no momento em que as questões relativas à matéria, ao

tempo e ao espaço não são passiveis de verificações, mas tão unicamente de definições, como é o caso da

simultaneidade de acontecimentos. Também é comprovado que não é possível observar um objeto sem

alterá-lo, sem interferir em sua trajetória.

Nesse caminho trilhado pelo fazer e pensar as ciências alguns conceitos, os quais são deixados de

fora em certos momentos de sua história, são recuperados e atualizados. Foi o que aconteceu com a

“Teoria das estruturas dissipativas” 2 e o princípio da “ordem através de flutuações” de Ilya Prigogine3,

nos quais são recuperados os conceitos aristotélicos de virtualidade e potencialidade. Juntamente com essa

Teoria surgem outras (sinergética de Haken; teoria da origem da vida de Eigen; o conceito de autopoiesis

de Maturana e Varela, etc.) que vão das ciências naturais às ciências sociais num movimento

transdisciplinar, representativos de uma atitude filosófica por parte desses cientistas sobre seus campos de

trabalho e a problematização destes.

Ao final do século XX questões de cunho social e cultural passam a ser relevantes na reflexão

epistemológica. É questionado então o conceito de lei e causalidade.

[...] As leis têm assim um caráter probabilístico, aproximativo e provisório, bem expresso no princípio da falsificabilidade de Popper. Mas acima de tudo, a simplicidade das leis constitui uma simplificação arbitrária da realidade que nos confina a um horizonte mínimo para além do qual outros conhecimentos da natureza, provavelmente mais ricos e com mais interesse humano, ficam por conhecer.” (SANTOS, p. 51)

Essas variantes no campo das ciências puras reforçam a idéia de que o objeto de estudo, aquele que

o cientista seleciona como amostra de determinada realidade, embora recortado de seu ambiente, traz em

seu bojo, junções, elos, nós que devem ser considerados sob pena de se perder partes essenciais à estrutura

como um todo e, mais ainda, perder a complexidade da riqueza de seu ambiente informativo.

Assim Boaventura nos adverte que a “distinção dicotômica entre ciências naturais e ciências puras

deixou de ter sentido e utilidade. [...]” (SANTOS, 2006, p.61) mesmo porque, como já se disse

anteriormente, a aplicabilidade das teorias, dos conceitos das ciências naturais às ciências humanas

demonstra a superação de tal dicotomia. No entanto, a constituição das ciências sociais se deu de uma

2 De acordo com tal teoria as suscetibilidades à dissolução e à morte andam juntas com o potencial de crescimento e de aumento da complexidade. E assim as perturbações em um sistema determinam a sua ordem. 3 Citado por SANTOS, Boaventura de Sousa – I. Prigogine e I. Stengers, La Nouvelle Alliance. Metamorphose da Science. Paris: Gallimard, 1979. In: __________. Um discurso sobre as ciências. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2006

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tensão entre o positivismo4 e o anti-positivismo5, sendo este último o pulsar para a transição → as ciências

naturais se aproximando das ciências sociais e esta, por sua vez, se aproximando das humanidades. Aqui e

lá esbarramos com quais seriam as condições necessárias à pesquisa: que instrumentos usarmos? E, em que

quadro de hipóteses e referências combinar a lógica a fim de obter um resultado, que além de ser teórico

tem que ser empírico?

Essas condições são aparentemente simples de serem resolvidas, basta que para tanto se verifiquem

as particularidades do objeto, seus meandros relacionais ao seu contexto; dispor de estudos similares

realizados outrora; revisão bibliográfica e, evidentemente, dispor da metodologia adequada –

instrumentalização de métodos sem os quais o objeto não será passível de ser verificado. Aparentemente

simples, se não fora a instabilidade do objeto, se não fora o objeto também sujeito protagonista desta ação

– o homem que estuda e é estudado deixa de ser diluído nos afazeres para se instaurar como instância.

Tem-se um entendimento do homem como sujeito que conhece e como objeto a ser conhecido e, como tal,

esse homem foi se posicionando dentro da história das ciências, foi encontrando contribuições na biologia

com a teoria dos sistemas e outras; emprestando esse e aquele conceito da física, da matemática, assim foi

ele se arremedando, se costurando e se entendendo, ou pelo menos tentando buscar pelo caminho das

pedras compreender a sua posição. Descobre então, que não há mais situações estáveis, mas sim um

desencadear de evoluções, por vezes, crises. “[...] É, pois necessário descobrir categorias de

inteligibilidade globais, conceitos quentes que derretam as fronteiras em que a ciência moderna dividiu e

encerrou a realidade. [...]” (SANTOS, 2006, p. 72)

As analogias trazidas no bojo da ciência pós-moderna são respostas, são as categorias necessárias

ao desvelar dos conhecimentos totais (tem como horizonte a totalidade universal e indivisa) e locais

(constitui-se em torno de temas dados e adotados por certas comunidades como projetos de vida local),

sobre condições de possibilidades das ações humanas projetadas em um espaço-tempo.

[...] Um conhecimento desse tipo é relativamente imetódico, constitui-se a partir de uma pluralidade metodológica. [...] Numa fase de revolução científica como a que atravessamos, essa pluralidade de métodos só é possível mediante a transgressão metodológica. [...](SANTOS, 2006, p. 77-78)

Neste limiar que é propagado desde o início do século passado, mas que tem nas últimas décadas se

apresentado mais subliminar, como pudemos observar acima, forjam-se configurações, inventam-se 4 Positivista enquanto vinculada à epistemologia e a metodologia das ciências naturais 5 Anti-positivista – envolvida numa filosofia complexa, fenomenológica, hermenêutica, interacionista pressupondo seus estudos a partir de mecânica da natureza.

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contextos persuasivos que conduzem à aplicação de métodos fora de seu habitat natural. A tendência é o

mundo natural se tornar também social e vice-e-versa não se trata de amalgamar ciências, muito menos

justapô-las, trata-se de interrelacioná-las, de intertextualizá-las numa promoção da comunicação entre

saberes, que são cada vez mais plurais6...

... Por uma qualidade nas pesquisas...

Não se pretende aqui subestimar a pesquisa quantitativa, mesmo porque, a análise dos dados e a

interpretação de sua mensuração favorecem ou não a qualidade nas respostas às hipóteses. Nesse momento

está presente o subjetivo do pesquisador e, em maior ou menor grau, as interferências acontecem.

Segundo Normam K. Denzin, a pesquisa qualitativa passa por sete momentos, sejam eles:

1) O período tradicional

Inicia-se no século XX e se estende até o final da Segunda Guerra Mundial. Nesse período surgem as

pesquisas etnográficas clássicas em meados de 1914, trata-se em geral de relatos colonialistas que refletem

os paradigmas dos cientistas positivista. [...] Sua preocupação estava em oferecer interpretações válidas,

confiáveis e objetivas em seus escritos. [...]” (DEZIN, 2006, p. 26). Malinowski salienta em 1967, que um

pesquisador de campo solitário enfrenta os fatos de forma bruta, estes não são científicos, são apenas

interpretações da realidade social subordinado a regras gerais. (DEZIN, 2006, p. 27)

2) A fase modernista

A partir do pós-guerra aos anos 70, muitos textos buscaram formalizar os métodos qualitativos,

surgem novas teorias interpretativas, dentre elas a fenomenologia e a etnometodologia, empresta-se

exemplos da estatística, procura-se probabilidades e apoios argumentativos.

3) Gêneros (estilos) obscuros

Nesse momento esgotam-se os paradigmas, os métodos e as estratégias a serem empregadas na

pesquisa qualitativa. As teorias variam e cresce consideravelmente o interesse pela pesquisa qualitativa

aplicada, pela política e pela ética da pesquisa qualitativa. Diferenciam-se e multiplicam-se os formatos

dos relatos, as estratégias das coletas de dados bem como a análise destes. Os paradigmas naturalistas, pós-

positivistas e construcionistas ganham força, em especial na educação, surgem também periódicos na área

6 MEDINA, Cremilda (org) Caminhos do saber plural: dez anos de trajetória. São Paulo: ECA/USP, 1999.

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da etnografia, da antropologia cultural. Nesse momento aporta a pesquisa-ação7, forma de pesquisa que

tangência o modelo aqui proposto de metodologia colaborativa.

4) A crise da representação

Ocorre uma profunda ruptura em meados de 1980 quando pesquisas publicadas colocam em dúvida

questões sobre a raça, o gênero e a classe, elas articulam as conseqüências da interpretação “gêneros

obscuros” de Geertz para o campo no início daquela década. Perde-se a nitidez entre o trabalho de campo e

a redação. Desta maneira novos modelos de representação e de métodos são buscados e a “[...] crise de

representação desloca a pesquisa qualitativa para novas direções.” (DEZIN, 2006, p. 31)

5) Uma tripla crise

Trata-se de uma crise representacional – os pesquisadores qualitativos não podem apreender

diretamente a experiência vivida; de legitimação – ela envolve termos como a validade, a capacidade de

generalização e a confiabilidade. Estas duas crise desembocam em uma terceira quando se depara com a

questão: é possível realizar mudanças no mundo se a sociedade é apenas e sempre um texto?

6) Período pós-moderno da redação etnográfica experimental

Este momento empenhou-se em entender as crises, desenharam-se então no horizonte contornos de

pesquisas voltadas à ação, à participação e ao ativismo apresentando teorias que contribuíssem às situações

particulares.

Dezin diz estarmos entrando nesse sexto momento – o pós-experimental, sendo o sétimo momento

o futuro. Contudo, a história denota que certos momentos anteriores ainda são vividos e os pesquisadores

continuam a seguir ou a contestar. “[...] As múltiplas e fragmentadas histórias da pesquisa qualitativa agora

possibilitam que qualquer pesquisador vincule um projeto a um texto canônico de qualquer um dos

momentos históricos descritos acima. [...]” (DEZIN, 2006, p. 32)

Como dissemos acima não existem observações objetivas, porque estas passam necessariamente

pela lente do observador circunscrito em um mundo cultural e social. Conseqüentemente é salutar que o

pesquisador lance mão dos mais variados métodos em busca das validações ou não de suas hipóteses,

mesmo porque, nenhum método em si é suficiente para compreender todas as variações sutis da vida

humana como um continuum. Assim surge a figura do “bricoleur” 8, um confeccionador de redes,

entrelaçador de métodos e materiais empíricos que estejam ao seu alcance e, ainda, se houver necessidade

7 Um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo, no qual os pesquisadores e participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo. (THIOLLENT, 1985, p. 14) 8 Termo sugerido por Norman K. Dezin e Yvonna S. Lincoln (2006)

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de novas ferramentas, ele as inventará, as reunirá a favor de que sua pesquisa para que essa não seja

meramente mais uma a ser colocada dentre tantas outras em estantes de bibliotecas universitárias. O

pesquisador preocupado com as questões sociais, mais do que verificá-las, pretende dar-lhes respostas

tanto teóricas quanto empíricas. Trata-se de um modo de viver a ciência em todas as suas dimensões.

Metodologia colaborativa: cruzando saberes

Já é possível delinear a metodologia colaborativa cruzando saberes provenientes de diferentes

campos disciplinares. Se os modos de conhecer são diferentes, se produz ciência a partir de outros modos.

Se os modos de conhecer são permeados e construídos pelas relações humanas, em suas negociações

(termo tratado adiante), então esses modos são colaborativos. A metodologia colaborativa é tangenciada

por outras metodologias tais como as aplicadas na pesquisa-ação e na pesquisa participativa, mas se

distância destas quando diz que seu sujeito é também seu objeto. Esta é sua essência. A construção do

sujeito/objeto é um processo partilhado não só pelo grupo em questão como por outros grupos afins.

O termo colaborativo indica um trabalho (ou a participação em obra científica) em comum com

uma ou mais pessoas. Em seu cerne está a questão qualitativa relacionada aos estudos interpretativos e

culturais abordados a partir de métodos tais como: estudos de caso, entrevistas, observação participativa

dentre outros, enfim, como fora dito outrora, uma “bricolage” dos procedimentos. A metodologia

colaborativa deverá ser verificada a partir dos princípios norteadores das pesquisas desenvolvidas no

Colaboratório de Infoeducação9. Pretende-se abordar a aplicabilidade e a aceitabilidade científica de tal

metodologia, uma vez que, como já foi visto as ciências possuem meandros, caminhos e descaminhos por

onde se faz.

À questão de determinados objetos demandarem metodologias diferenciadas corresponderá a um

“decifra-me”, a uma hermenêutica. Será necessário trazer à luz o que se assemelha e fazer falar signos

descobrir seus sentidos, o que só é possível através de uma metodologia adequada.

Pesquisa de mediação cultural com crianças e adolescentes em situação de abrigo

9 Centro de Pesquisa do Departamento de Biblioteconomia e Documentação – ECA/USP. O Colaboratório de Infoeducação, criado na ECA/USP, é uma iniciativa de pesquisadores interessados na problemática da apropriação simbólica, tendo em vista processos sociais de protagonismo cultural. Tal problemática é enfocada a partir do estudo das relações entre os dispositivos de informação e cultura e as aprendizagens informacionais próprios da contemporaneidade.

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Desde o início a pesquisa sobre a apropriação simbólica da informação cultural entretecida nas

ações culturais desenvolvidas em abrigos para crianças e adolescentes a partir do viés da leitura de textos

escritos, tem se mostrado impossível de ser realizada por meio das ferramentas tradicionais de pesquisa. A

própria volatilidade do objeto implica em “insight” e em uma contínua desconstrução do programa e do

projeto. O objeto empírico e o objeto teórico obedecem aos dois contextos do pólo teórico proposto por De

Bruyne10: O contexto da prova: verificação de uma dada teoria (a exclusividade é imperativa) talvez aqui a

“ruptura epistemológica” seja uma variável determinante e; o contexto da descoberta: da ordem do

acontecimento (impera o inclusive), reino das interdisciplinaridades e transdisciplinaridades. Como

salienta Lessard-Hérbert, no pólo técnico relaciona-se a construção do objeto científico e o mundo dos

acontecimentos. Transforma as informações em dados. Então o que anteriormente estava no contexto da

descoberta passa para o contexto da prova. (LESSARD-HÉRBERT, 2005, p.22)

Tal pesquisa se vê na contramão da sistematização se esta partir de princípios pré-estabelecidos,

porque o seu ambiente é assistemático, o que é hoje, amanhã poderá não sê-lo mais. Portanto os conceitos

de aprendizagem mudam. Mas mesmo dentro desta abordagem assistemática, que pode ser relacionada ao

caos, é necessário que se estabeleça a congruência e a convergência de fatores, seguindo o caminho da

similitude e, nesse sentido, constituir critérios em relação à mediação cultural e à apropriação simbólica

informacional. Critérios esses que envolvem uma abordagem da aprendizagem diferentemente daquela

escolar, ou seja: uma aprendizagem informacional entretecida numa rede, num circuito por onde trilham as

crianças e os adolescentes. Essa aprendizagem se apresenta como condição necessária ao protagonismo

cultural e se operacionaliza através de uma pedagogia cultural11 para sua formulação e articulação. Por ser

um tema intrinsecamente de caráter social é de seu querer dar possíveis soluções a problemas de uma

realidade brasileira embrutecida.

Em se tratando de um projeto de Infoeducação há também a necessidade de se incorporar o maior número

de pessoas possível relacionadas ao Abrigo12, interagir com outros projetos de pesquisa, inter-relacionar

saberes provenientes da psicologia, do direito, da educação, da comunicação, da cultura, da ciência da

10 Para De Bruyne et al. A metodología qualitativa se realiza em 04 pólos, a saber: Epistemológico, teórico, morfológico e técnico. (LESSARD-HÉRBERT, 2005, p.22) 11 Que ensina através das imagens e tem seus signos produzidos socialmente pela cultura, recurso este a ser verificado pela pesquisa em andamento. 12 Crianças colocadas em Regime de Abrigo têm procedências diversas e estas estão, geralmente, ligadas à situação econômica da família e à fragilidade de sua organização. São crianças provenientes das ruas, filhos de famílias desestruturadas e sem base material e/ou psíquica para a formação de seus filhos.

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informação, dos estudos dos problemas sociais, dentre outros. Então deve se lançar mão dessa ferramenta

que se insinua: a metodologia colaborativa.

O ambiente onde se realiza a pesquisa empírica deve não somente aceitá-la, mas se posicionar a

esse respeito a fim de que o resultado deste processo seja garantido a ambas as partes. Não se trata de ir a

campo munido de recursos, previamente concebidos, a serem aplicados, nem muito menos vestido de todo

aparato teórico. O ambiente em questão despirá o pesquisador, inverter-se-ão os papéis. O ato de não

apenas conhecer determinada realidade, mas de compreendê-la e de atuar conjuntamente sobre ela, com e

através dela traz outras dimensões às pesquisas científicas: a dimensão relacional, a dimensão dialógica

dentro de uma dinâmica vital.

[...] Cada vez mais estamos dispostos a reconhecer que o tipicamente humano, o genuinamente formativo, não é a operação fria da inteligência binária, pois as máquinas sabem dizer melhor que dois mais dois são quatro. O que nos caracteriza e diferencia da inteligência artificial é a capacidade de nos emocionarmos, de reconstruir o mundo e conhecimento a partir de laços afetivos que pertubam. (MEDINA, 1999, p. 35)

A dimensão relacional, assim como, sua parceira a dimensão dialógica são necessárias quando se

tratam de questões que envolvem o apreender informações, o se apropriar destas e transformá-las em

conteúdos significativos. Crianças e adolescentes, enquanto sujeitos, estabelecem os vínculos entre

informação e cultura e estruturaram conceitos cujos significados dão propósitos à vida, no entanto, o papel

do mediador é imprescindível. Não há política cultural que se sustente sem a presença deste.

Ao realizar uma pesquisa que traz consigo a marca da colaboratividade nos surpreende logo de

início. O caminho é outro. Há uma alegria no colaborar, talvez aqui, implicitamente e mesmo

inconscientemente, o conceito apregoado por Pierre Lévy de Inteligência Coletiva: “É uma Inteligência

distribuída por toda parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em uma

mobilização efetiva das competências”. (LÉVY, 1998, p.28) Esta inteligência distribuída por toda parte

implica que todos sabem alguma coisa, independentemente de sua situação econômica, cultural, social ou

geográfica. Esta inteligência não é de toda valorizada, mas deverá o ser até por questões econômicas.

As interações são coordenadas no mesmo universo virtual de conhecimentos no tempo e em tempo

real, inclusive de coletivos mal-situados. “Nessa perspectiva o ciberespaço tornar-se-ia o espaço móvel das

interações entre conhecimentos e conhecedores de coletivos desterritorializados”. (LÉVY, 1998, p.29)

Uma ligação entre Inteligência coletiva e redes eletrônicas. Aqui vale a pena salientar que a questão da

colaboratividade avança via redes. Não é possível estar sempre presente fisicamente em reuniões, em

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discussões de idéias, assim o ciberespaço se coloca como uma ferramenta imprescindível para o

desenvolvimento da metodologia colaborativa e, consequentemente, para o avanço da pesquisa que dela se

utiliza. Sendo assim, pode se afirmar que a metodologia colaborativa está em consonância com as

principais variantes pós-modernas do “Tempo do Conhecimento Interativo”. (BARRETO, 2002, p. 11)

Informação e Cultura

A informação está para o acontecimento – contexto da descoberta, assim como a cultura está, de

certa maneira, para o dado, contexto da prova. Ambas fazem parte de um continuum se atualizando em

tempo e espaço, possibilitando a criação de significados a partir de suas apropriações. Quando tais

significados são partilhados tem-se uma construção colaborativa não de um projeto, mas de vários, porque

há um entrelaçar de idéias, há uma permuta de conhecimentos, modelos e formas de atuar.

Tanto a interdisciplinaridade como a transdisciplinaridade parecem convergir em resposta às

limitações territoriais terminológicas da cultura e da informação. Em relação a essas áreas do

conhecimento podem-se observar essas linhas claramente nas ações culturais desenvolvidas por

mediadores e profissionais afins. A informação contida nesses espaços consagrados, ou mesmo quanto aos

espaços de ruas quando usados para fins culturais vêm trazendo a obra aberta13 às mais diversas formas de

apropriações simbólicas. Temos nesses momentos uma complementação, um ir e vir, que foge às fronteiras

e acaba por ocupar lugares do outro. Assim obtêm-se informações sobre quem é o outro, questões de

identidades e marcas revelam o estrangeiro, desmistificam, rompem preconceitos.

É esta localização cultural dos significados que garante sua negociabilidade e, no final das contas,

sua comunicabilidade. Portanto, a cultura fornece as ferramentas necessárias para o entendimento do

mundo e os diferentes contextos culturais explicam as diferenças nas formas de apropriação da informação,

do conhecimento e conseqüentemente da produção de significados.

Em relação à obra aberta, Umberto Eco chama-nos a atenção para um tipo de educação

objetivando uma

[...] continua ruptura de modelos e dos esquemas – escolhendo para modelo e esquema a efemeridade dos modelos e dos esquemas e a necessidade de seu revezamento, não somente de obra para obra, mas dentro de uma mesma obra – não poderia representar um instrumento pedagógico com funções libertadoras; e nesse caso seu discurso iria além do nível do gosto e

13 Conceito desenvolvido por Umberto Eco como sendo “um grupo de obras enquanto postas numa determinada relação fruitiva com seus receptores.” (ECO, 2003, p. 29)

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das estruturas estéticas, para inserir-se num contexto mais amplo, e indicar ao homem moderno uma possibilidade de recuperação e autonomia. (ECO, 1995, p. 148)

Em um sistema de significações tão complexas quanto é a cultura, a apropriação da informação é

fundamental para a emancipação e para o protagonismo cultural. Cabe aos sistemas de aprendizagem e as

instituições pelas quais as informações circulam instrumentalizar, criar e articular esses esquemas

referenciados por Umberto Eco como antídotos à massificação, ao comodismo, ao gregarismo e ao

conformismo.

É nessa fronteira complexa que a transformação social e material se realiza. “[...] Na verdade, é na

área dessas transformações complexas que o sistema de significações, por si só, se desenvolve e deve ser

estudado.” (WILLIAMS, 2000, p. 209) E concordando com Williams, é nessa área, das transformações

complexas que se pretende instalar a metodologia colaborativa. Nesse espaço, o intelectual coletivo

reconstitui um plano de imanência da significação no qual os seres, os signos e as coisas voltam a

encontrar uma relação dinâmica de participação recíproca, escapando às separações territoriais.

A engenharia do laço social proposta por Pierre Lévy, é uma opção à colaboratividade, uma vez

que,

[...] possibilita o surgimento de outro tipo de subjetividade. Ela pulveriza os signos do saber ou da identidade, mas para permitir-lhes fluir, mesclar-se, reencontrar-se, valorizar-se, dilatar-se e trocar-se... Ela não implode as identidades, mas as libera: entrega a cada um o poder de forjar suas imagens. [...] (LÉVY, 2003, p. 137)

O que podemos observar é que, a partir de conceitos desenvolvidos sobre a cibernética, as teorias

da informação e da própria biologia um limiar de territórios passaram a corresponder, sem perder de si

próprios, conhecimentos comuns, verificáveis tanto aqui como lá. Outros conceitos e metodologias foram e

são reformulados para dar conta de pensamentos complexos. [...] É preciso falar sobre a cibernética como sobre todo grande sistema de pensamento; apresenta-se em duas vertentes: uma em que existe nova mensagem e nova complexidade que nos levam a modificar e a enriquecer o olhar; outra é a redução de qualquer aspecto do real em favor do elemento novo que deixa de ser complexo porque reduz tudo a si. (MORIN, 2005, p.109-110)

Há, portanto, um local e um momento em que nas interfaces disciplinares, conhecimentos se

reconhecem e se firmam na complementação. Pode-se inferir que as linhas acima descritas já são

fortemente defendidas, buscadas e praticadas por todos aqueles que buscam o saber múltiplo. São estas

linhas: a Transdisciplinar e a Interdisciplinar.

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Considerações finais

Mais que uma tentativa, uma possibilidade da constituição de uma metodologia colaborativa

corresponde diretamente aos ditames da publicação científica, quando se verifica, na medida do possível, o

que está sendo realizado nos laboratórios universitários. O compartilhar de dados e saberes está no cerne

da engenharia do laço social. Já se demonstrou que o segredo não é mais a alma do negócio. Pelo

contrário, informação que não circula, que não se apreende, continua sendo virtual, ou seja, não se atualiza

e, portanto, não se transforma em conhecimento e, conseqüentemente, não gera bens. Quadros teóricos de

referências e embasamentos conceituais estimulam práticas e posicionamentos. Neles são tecidas redes.

Todo o desenvolvimento tecnológico e a convergência de tecnologias determinam espaços e tempos onde

Cultura e Informação são conceitos fundamentais e privilegiados porque são conceitos transdisciplinares e

interdisciplinares. Acredita-se que o lançar mão dos diversos instrumentos pode ser uma chave para o

desenvolvimento tanto das ciências como da sociedade.

REFERÊNCIAS

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