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A RRAIAS Um portal para o além

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ARRAIAS

Um portal para o além

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Redenir dos Santos

ARRAIAS

Um portal para o além

PROJECTOEDITORIAL

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SANTOS, Redenir dos.Arraias, um portal para o além, Redenir dos Santos.

Brasília: Projecto Editorial, 2002.

284p.

ISBN 85-88401-11-8

1. Romance brasileiro I. Título

CDD 869.93

© 2002 Redenir dos SantosTodos os direitos desta edição reservados

Projecto Editorial Ltda.Brasília Shopping – SCN – Q. 05 – Bl. A – Sl. 1.304 – Torre Sul

Brasília-DF – Tel.: (0xx61) 327-6610/328-8010 – CEP 70715-900

EDITORAÇÃO

Arlene de MedeirosRones Lima

Vanderlei VelosoCAPA

Tarcísio FerreiraILUSTRAÇÕES

Juarez Leite

PROJECTOEDITORIAL

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Sumário

Nota do autor .................................................................................................................... 13

Introdução .......................................................................................................................... 17

1Um homem misterioso falando de Arraias, uma cidade inesquecível ....................... 19

2A carta do vô João, uma fuga da revolução ................................................................... 29

3Na vida, o que é bom dura pouco .................................................................................. 43

4O misterioso choro na mata ............................................................................................ 49

5O caboclo poderoso da mata fechada ............................................................................. 59

6Colônias do Combinado – um sonho chegando ao fim ........................................... 65

7Desvendando o misterioso choro da mata ................................................................... 69

8As esculturas genitais: a paulistona e a goianinha ......................................................... 79

9A cassação de Mauro Borges ............................................................................................ 83

10O homem mais guloso do mundo................................................................................ 87

11A carona para o desespero – início de uma tragédia ..................................................... 91

12Golpe de mestre: A vingança ........................................................................................... 95

13Preso sumido ..................................................................................................................... 103

14E o destino nos levou a Arraias ...................................................................................... 109

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15Um herói em minha vida ................................................................................................. 115

16O mundo começa a se desabar ........................................................................................ 119

17Os portões do bem e do mal .......................................................................................... 127

18O julgamento ..................................................................................................................... 133

19Meu cavalo bravo ............................................................................................................... 139

20Nasce uma criança valente ................................................................................................. 143

21Aparece o homem do portão do mal – seria um anjo? ............................................... 151

22A carta aberta ao povo arraiano – nasce uma esperança ............................................... 155

23O medo do homem do portão do mal ......................................................................... 159

24A morte da mãe do Terto e o homem do portão do mal .......................................... 163

25A garrafa mágica ................................................................................................................. 169

26Mamãe terminou ficando louca ....................................................................................... 173

27Aparecem pessoas más do além ...................................................................................... 181

28Faltava a autorização judicial para sairmos de Arraias .................................................. 187

29Pertubações do além.......................................................................................................... 189

30O padre correu de medo do demônio ........................................................................... 195

31Diante do portão do bem em busca de um anjo ......................................................... 199

32Minha grande dor e saudade ............................................................................................ 211

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33O início de um plano ........................................................................................................ 215

34Um inesquecível abandono .............................................................................................. 221

35Arraias fica para trás, levamos as lembranças ................................................................. 227

36O Rio do Peixe ................................................................................................................... 231

37O velhinho Sebastião, um novo amigo ......................................................................... 239

38O suicídio ............................................................................................................................ 243

39Os primeiros dezessete minutos após a morte ............................................................ 249

40Um grande enigma, minha incansável busca ................................................................. 261

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A meus paise irmãos.

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Agradeço à minha irmã Roseli, professora e...paciente ouvinte; à Rosana, servidora do município

de Arraias; à D. Edna Barbosa, escrivã da Justiçaem Arraias; e à minha filha Kelvia Teixeira, por

suas valorosas sugestões e estímulo a prosseguirnos momentos de incerteza e insegurança.

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Nota do autor

ESTE LIVRO conta uma história real. O leitor em alguns momen-tos duvidará disso. Quanto aos trechos que geram essas dúvidas, dificil-mente eu poderia convencê-los da veracidade do que foi dito. Todavia,isso não me perturba, pois não é esse o propósito do livro. No entanto,muitos leitores serão meus aliados em sustentar a narrativa. Serão osleitores que, como eu, acreditam que a vida tem sentido. São pessoasque acreditam que há conseqüências para a prática do bem e do mal, quecarregam a certeza interior da existência de algo além do que considera-mos nossa realidade, que têm também a certeza da existência de um Cria-dor. Essa certeza, podemos interpretá-la como fé.

A fé ainda não é uma experiência que a ciência possa validar, verifi-car ou estabelecer os meios e métodos de como experimentá-la. A ciêncianão possui instrumentos e meios de comprovar a fé, muito menos demensurar o quanto ela habita em cada um de nós. A fé é como uma linhaconcebida, digamos, por uma eletrônica divina, algo realmente pessoal eintransferível que liga a mente e o coração humano a Deus. O exercício dodesenvolvimento da fé se dá pela humildade e busca constantes.

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Escrever um livro causa ansiedade, medo e insegurança. Tudo issochega a níveis alarmantes quando se imagina a possibilidade de poucosse interessarem pela obra, talvez ninguém. Muitas vezes, ao imaginaresse quadro, somado às críticas, surgiu a vontade de desistir, pois, con-fesso, não acredito possuir a necessária habilidade com as letras, requisi-to talvez imprescindível a quem se atreve a contar uma história em livro.

Muitos amigos leram os rascunhos deste livro a meu pedido. Vári-os desconhecidos também o leram, recomendados por esses mesmosamigos. Qual não foi a minha surpresa: todos esses primeiros leitores,tanto os amigos quanto os desconhecidos, emocionaram-se. Muitos afir-maram o terem lido duas vezes. Alguns capítulos foram lidos várias ve-zes pelo mesmo leitor, obviamente não vou adiantar quais.

Muitos leitores sugeriram que eu mudasse algo no início do livro, alinas primeiras trinta páginas. Outros sugeriram mudanças no relato do sui-cídio. Quando procurei editores para o livro, houve grande interesse, masexigiram mudanças semelhantes àquelas propostas por alguns dos primei-ros leitores. Os editores tinham um argumento a mais, diziam eles: “É oque esta faltando para este livro se tornar um best-seller”.

Seria desonesto negar: em alguns momentos entre a insegurança e omedo, sonhei acordado que este livro se tornava um best-seller. No entanto,mudar a história só para atingir esse objetivo não me pareceu justo.

Este livro não tem a missão de angariar prestígio, fama e fortunaao autor, tampouco ser o início de uma brilhante carreira literária. Opropósito e desejo maior desta história é que ela sirva de ajuda princi-palmente a pessoas que se sentem aprisionadas a um passado de dores erevolta. Ao final da leitura, espero que possam se libertar dos traumascausados por sofrimentos decorridos em razão de perdas, doenças, per-seguições; e mesmo daqueles decorrentes dos sofrimentos que muitasvezes nos acometem devido a nossa ingenuidade e boa-fé. Temos a ten-dência de acreditar no próximo, amá-lo e perdoá-lo; às vezes até sofre-mos pelos outros. Se você alcança essa grandeza, não está sozinho.

Para não sofrer arrependimentos pela resistência em não mudara história, fiz esta nota – para esclarecer que, sendo esta uma históriareal, não posso mudá-la. Isto seria uma interferência inadmissível. Aisso eu nunca me senti autorizado.

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Introdução

Quanto ao relato do que aconteceu depois do suicídio, onde fo-ram maiores os pedidos de mudança, só posso dizer que foi daquelamaneira mesmo que tudo aconteceu. As lembranças são exatamenteaquelas. Acredito ser inútil e desastroso fantasiar o que é desconheci-do de muitos e domínio só de alguns abençoados.

Finalmente, as emoções que certamente envolverão o leitor es-tão amarradas ao início da história, que à primeira vista pode parecerdistante do restante do livro.

Não existe colheita farta sem cultivo paciente.

Tabatinga, Amazonas, março de 2001O autor.

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Introdução

SEMPRE me despertaram interesse os mistérios que envolvem amorte. Desde criança. Após ler, ouvir relatos e investigar o assunto,resta-me hoje recordar as muitas viagens que fiz em busca de esclareci-mento, quase todas por milhares de quilômetros. Aventurei-me em fazê-las só para estar com pessoas que pudessem acrescentar algo mais so-bre o assunto.

Confesso que pouco consegui nessas buscas. Às vezes penso queelas talvez tenham me confundido mais do que lançado luzes às mi-nhas dúvidas sobre o profundo, o desconhecido.

Quantas curiosidades nos desperta o lado de lá!O que nos acontece quando perdemos a vida? Quando alguém

faz essa pergunta e sai em busca da resposta, com certeza as encontra-rá às centenas.

Considerando as coincidências nos relatos das pessoas que afir-mam ter passado por experiências após a morte, mesmo não acreditan-do em vida nessa dimensão, é de se concluir que todos tiveram no míni-mo as mesmas alucinações, induzidas por situações de sofrimentos físicosou emocionais muito parecidos, pois a constituição orgânica dos seres

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humanos, em sua essência, é idêntica, independentemente de raça. Pode-se pensar também que, ao construir suas histórias, as pessoas usem tre-chos de relatos alheios para se fazerem cúmplices e assim alcançar credi-bilidade para as suas fantásticas experiências ou simples alucinações.

Mas, partindo do pressuposto de que essas afirmações são ver-dadeiras, conclui-se que as situações a serem enfrentadas por todosos seres humanos na hora da morte serão exatamente iguais paratodos. Não existem surpresas; existe sim um mínimo de lógica, poisa gestação e o nascimento são iguais para todos os seres humanos. Seassim é, prevalecerá o princípio da justiça natural, segundo o qualtodos os seres humanos chegam ao nosso mundo e dele se despren-dem da mesma forma.

Mas vamos à interessante e misteriosa história de alguém queesteve real e comprovadamente morto por aproximadamente dezesseteminutos.

O Autor.

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Um homem misterioso falando deArraias, uma cidade inesquecível

EU ESTAVA de férias em Pernambuco pela segunda vez conse-cutiva. Aquele estado me fascina. Além de sua gente alegre e acolhe-dora, Recife – quem conhece sabe – é uma cidade com muitos atrati-vos: a Praia de Boa-Viagem, as noites no Recife Antigo e a Ilha deItamaracá. E ainda a inesquecível cidade de Olinda.

Tamanho é meu fascínio pela cidade e sua gente, que despertouem mim o interesse em saber um pouco mais sobre Pernambuco. Re-solvi então viajar de ônibus de Recife até Araripina, no sertão do estado.Talvez a minha motivação maior para conhecer Araripina se deva ao fatode ser ela a cidade natal de meu pai e de meus avós paternos.

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Durante a viagem, esteve ao meu lado um homem que eu nãoconhecia, mas que me pareceu familiar. Aquele homem tornou-se de-pois um mistério em minha vida. Eu o procuro até hoje... Este livro éa última esperança de encontrá-lo.

Da mesma forma como surgiu, rapidamente ele desapareceu.Insisto: algo naquele homem me era muito familiar, mas não o buscosomente por isso. É que ele me contou uma história “do outro mun-do”, mas que possuía algo de real. Eu o comprovei.

No início daquela viagem, receosos, comentávamos sobre osconstantes assaltos sofridos pelos passageiros daquela linha de ônibus.Agora nós também nos aventurávamos a percorrê-la.

Quando aquele meu companheiro de viagem falava, chamava aatenção de todos os passageiros.

A voz dele parecia feita para dar emoção e vida às trêmulas pala-vras que dizia, um desabafo que explodia de seu coração rasgado pelatristeza. Mas não era grave nem aguda aquela voz, simplesmente nar-rava com emoção uma história de mistérios, desventuras, amor e fé,levando-me às lágrimas várias vezes.

Aqui e ali, raros momentos de alegria ousaram colorir a história,que parecia apresentar uma só cor, sempre negra, seja pelo sofrimentodos personagens, seja pelos muitos mistérios e pelas dores que emer-giam para endurecer-lhes a vida. Fantasticamente, toda aquela históriaera real. Nenhum gênio da ficção a imaginaria.

Sobre os assaltos aos quais nos referíamos, eles aconteciamquando os ônibus passavam por uma região conhecida como “Polígo-no da Maconha”. Naturalmente, o medo rendia assunto, deixando-nos perturbados. Falávamos sobre os assaltos seguidos de morte edos transtornos de morrer tão longe de casa.

Meu companheiro de viagem disse que morava no Gama, noDistrito Federal. Eu também moro longe, muito longe: no Amazonas,região de florestas e grandes rios, na pequenina e rica Tabatinga, terrados sábios índios Tikunas.

Estando-se em Pernambuco, Tabatinga fica exatamente dooutro lado do país, onde começa ou termina o Brasil, onde oBrasil faz fronteira com a Colômbia e o Peru, onde não existem

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rodovias. O grande “rio-mar” Solimões é que liga Tabatinga aoresto do Brasil.

Durante a viagem de tão longa distância, cujo percurso de ôni-bus gira em torno de quinze horas, o assunto mudou rapidamente.Passamos a falar sobre os mistérios que rodeiam “a vida após a mor-te”. No princípio da viajem, fiquei intrigado, pois aquele homem – eàs vezes penso que ele era apenas um espírito – insistia em viajar aomeu lado, apesar de existirem muitas poltronas vazias.

Preferi o lado da janela, para contemplar a paisagem. Durante aviagem, eu alternava minha atenção entre o cenário lá fora e o falar demeu companheiro de viagem. Às vezes deixava de escutá-lo por bre-ves instantes, envolvido pelas belezas naturais em derredor.

Quando já havíamos percorrido quase um quarto da viagem, eleme confidenciou repentinamente que já tinha morrido uma vez e vol-tado à vida. Diante do meu espanto, apressou-se em esclarecer queesteve morto por “apenas dezessete minutos, aproximadamente”. Elefez questão de frisar o tempo.

No entanto, segundo ele, foi o suficiente para conhecer mundosfantásticos e inimagináveis. Ele tinha dificuldade em narrar como eramesses mundos. Ao ouvi-lo descrever os lugares que visitou como mortoou quase-morto, assustei-me muito mais. A repentina confissão me fezesquecer as belas paisagens do sertão pernambucano que eu contempla-va através da janela. Dei-lhe a partir daí toda a minha atenção, em trocade sua emocionante e fantástica história.

O nome do meu companheiro de viagem não sei dizer. Esqueci-me de perguntar. Na verdade, sua história prendeu-me tanto que eunão quis interrompê-lo de maneira nenhuma, e quando o fiz foi porpoucas e rápidas vezes. Em minhas lembranças, apelidei-o de Deca,em razão das dez horas que passou me contando sua história.

Ele iniciou dizendo que tudo lhe aconteceu numa cidade do esta-do do Tocantins, Arraias, da qual se recordava com lágrimas nos olhos.Às vezes, a emoção era tanta que lhe embargava totalmente a voz, e eleinterrompia a narrativa por alguns minutos.

O mais interessante é que eu me preocupava tanto quanto elepara não deixar que os poucos passageiros, mesmo aqueles mais

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próximos de nossa poltrona, percebessem o seu estado emocional,inexplicável a quem não estivesse ouvindo a história.

Logo, porém, ele se recompôs e seguiu falando baixinho. Talvezdentro daquele ônibus só eu podia ouvi-lo.

Quase sem bocejar, durante grande parte da viagem, ele seguiucontando sua história com o olhar perdido e quase sempre lacrimejan-do. Sua voz denunciava toda a tristeza que se pode sentir ao lembrarum passado marcado por fortes emoções. Ele falou:

– É, amigo, a vida às vezes segue por caminhos inexplicáveis.Lembro claramente. É como se tudo tivesse acontecido ainda ontem.Tristes lembranças tenho daquele tempo em que vivi naquela cidade.Arraias. Arraias... Não só eu: meu pai, minha mãe, meus irmãos, prin-cipalmente meu irmão Reginaldo (o Didi); Renilde, minha irmã maisvelha; Regina, que mal caminhava na época; e Rosimeire, que nasceuem Arraias, exatamente no meio de toda aquela turbulência que toma-va conta dos nossos dias intermináveis, de desespero e sofrimento.

Constantemente me lembro de minha irmã Rosirene, que mor-reu logo depois daquela fase tão triste de nossas vidas, talvez o nossoúltimo momento de sofrimento.

Finalmente nasceu Roseli, já em Sobradinho, cidade-satélite deBrasília. Roseli nasceu depois daquela fase tão triste quanto trágica,mas também tomou conhecimento de toda a história. Seu jeito tímido,com raras explosões de alegria (que só acontecem na intimidade), de-nunciam-lhe a insegurança adquirida.

Hoje me ponho a pensar: passaram-se tantos anos... mais de trin-ta, sempre tentando superar as dores que restaram. Agora já me con-formo um pouco mais e creio que exista daquilo tudo um saldo posi-tivo. Não foram somente perdas e tragédias. Talvez aquilo tenha sidosimplesmente a chave para o conhecimento dos inúmeros mundos quedescobri. Lamentavelmente, nós, mortais nesta vida, dificilmente (oununca) vamos poder neles adentrar.

Talvez todo aquele sofrimento tenha sido apenas o preço a pa-gar pelo ingresso nesses mundos inimagináveis, fantásticos e quase ine-narráveis. Eu os conheci após tentar o suicídio. Cometi essa loucuraporque não suportava mais tantos desencontros e padecimentos. Afinal,

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eu mal havia completado sete anos de idade e minha vida já não tinhamais sentido. Ela havia se tornado uma rotina de medos e desespero,sem justificativa aparente.

As lembranças mais terríveis ainda machucam e doem forte sóem mim e em meus pais. Se bem que eles as evitam como podem.Meus irmãos, graças a Deus, não sentem essas dores com tanta intensi-dade. Naquela época, eram crianças aprendendo a falar. Só Didi, en-tão com seis anos, infelizmente, tem mais cicatrizes, mas se tornou umhomem forte, um vencedor, muito capaz. Renilde possui pequeninascicatrizes. Ela era muito criança, tinha entre quatro e cinco anos.

Renilde tem memória privilegiada, e, apesar de sua tenra idadena época, ainda se lembra das covardes agressões do finado delegadode roça João Andrade, que tinha grande poder naqueles tempos. Odesgraçado do delegado teve um fim muito triste. O destino me pou-pou de cometer um absurdo desejo de vingança, o único que alimenteiem toda a minha vida.

Faz muito tempo. Arraias... Arraias... A cidade talvez não tenhaa mínima culpa no que aconteceu à minha família. Talvez não... Comtoda a certeza, não! A cidade e seu povo nada tiveram e nem contri-buíram com o que nos aconteceu. Hoje, entendo que seus moradoresmuito nos ajudaram.

Arraias, naquele tempo, era uma pequena cidade perdida no ser-tão de Goiás. Não possuía mais do que oito mil habitantes.

Arraias... Tempo que ficou esquecido no calendário, mas aindatão vivo e tão presente em minhas emoções...

Hoje, em pleno século XXI, início de milênio, Arraias cresceupouco em relação ao tempo em que se passou essa história. Sua popu-lação, devido às emancipações políticas de Combinado, com cincomil habitantes, e de Novo Alegre, com dois mil – ambos eram distri-tos de Arraias –, diminuiu: é hoje estimada em 11.500 moradores.

Arraias não é mais uma cidade goiana; tampouco está perdida nosertão. Com a divisão do estado de Goiás, tornou-se cidade de Tocan-tins, fazendo divisa com Campos Belos, esta no antigo estado.

No ano de 1966, Arraias era uma pequena e interiorana cidadegoiana. Era mesmo bem pequenina. Nunca mais voltei lá, mas acredito

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que tenha mudado pouco. Naquele tempo, Arraias era bem organiza-da, arborizada e razoavelmente limpa, as ruas eram calçadas em pe-dras, havia muitas casas antigas e, claro, uma imponente igreja; à es-querda, ficava o inesquecível e mágico Morro da Cruz, meu confiden-te e eterno amigo.

A cidade merecia ser tombada como patrimônio histórico dahumanidade. Existiam lá muitas coisas feitas pelos escravos. Talveztenham modificado ou destruído algumas dessas construções. Fui in-formado de que o Asilo de Arraias, um monumento à caridade dopovo arraiano, foi demolido e reconstruído. É assim que as cidadesvão perdendo sua memória. Ah, quisera eu que Arraias fosse preser-vada como aquela do meu tempo de infância...

A cidade é cercada por morros. O rio Maravilha, que é muitoraso, encontra-se com o córrego Rico, muito raso também. O rio pas-sa na cidade acompanhando as curvas do pé do Morro da Cruz, como qual a cidade se limita ao norte.

Arraias seguia uma rotina previsível. Todos os moradores sabiamexatamente o que iria acontecer no dia seguinte, com exceção, é claro,de quem iria morrer. Sabiam até mesmo qual vendedor viajante chega-ria à cidade e em que dia da semana e do mês.

Arraias era também de muitos fazendeiros. Alguns deles ainda em-pregavam descendentes diretos de escravos, os quais praticamente nãotinham mudado suas condições de vida após a abolição. Uma coisa écerta: pelo menos já não pagavam por seus castigos no tronco. No en-tanto, não puderam mudar suas vidas, devido à ignorância que os cercava.

A vida naquela época era difícil. Quase não havia acesso a infor-mações, devido à precária formação escolar. Também faltava ofícioque proporcionasse renda.

Fato peculiar, que não se pode esquecer de levar em conta: adistância de Arraias dos grandes centros. As capitais mais próximassão Brasília e Goiânia. Hoje, as distâncias que as separam de Arraiassão quase nada, algo em torno de 450 quilômetros para Brasília e 600para Goiânia. Quando digo “quase nada”, refiro-me ao progresso dascomunicações, ao aumento do número de automóveis e, acima de tudo,ao novo desenho e à pavimentação da estrada que liga Brasília a Arraias.

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Naquela época, 1966, a estrada era de terra, em condições pre-cárias. E havia pouca oferta de transportes. A distância parecia umaeternidade... O asfalto só ligou Arraias a Brasília dezenove anos de-pois, em 1985.

A cidade não possuía um só aparelho de televisão. Rádio, con-tando com o nosso, apesar de tantos afortunados fazendeiros e co-merciantes, talvez não houvesse mais de uma dezena, para que nas noi-tes pudessem sintonizar alguma emissora.

Facilidades proporcionadas pela tecnologia eram coisa rara. Ima-gine só: um dia meu pai emprestou um liqüidificador para o proprietáriode um bar e o aparelho se tornou assunto por longo tempo e objetode cobiça na cidade.

O atraso em Arraias, creio, facilitava a vida para os mais ricos,que podiam mandar seus filhos para Goiânia, “estudá pra sê dotô”,afirmação prazerosa e comum de alguns dos grandes fazendeiros ecomerciantes daquela época, entre eles alguns de elevada honra e pou-ca habilidade no trato com as pessoas. Podiam ainda, duas, três vezesou até mais, durante o ano, ir a Goiânia, em suas potentes “rurais” oucaminhonetes, visitar os filhos e amigos, ver e conhecer de perto asnovidades que surgiam na capital.

No entanto, o atraso, as dificuldades geográficas e políticas deArraias, além dos escassos recursos concentrados nas mãos de pou-cos, maltratavam e dificultavam a vida dos filhos e moradores maispobres do lugar. Mas o atraso maltratava muito mais, principalmenteaos negros de Arraias, que viviam de pequenos trabalhos e dos raríssi-mos empregos que a cidade podia oferecer naquela época.

Vivia-se ainda dos pequenos serviços domésticos e das poucaslavagens de roupa feitas pelas mulheres. Algumas, principalmente asmais jovens, devido à falta de renda e à extrema pobreza, eram obriga-das a ganhar a vida na Rua da Alegria. Logicamente, à medida queenvelheciam, aumentavam as dificuldades para exercer o “ofício”. Apobreza que envolvia grande parte da população da cidade mostrava-se, às vezes, tão cruel quanto a falta de fé e de esperança. Entretanto,todos os pobres de Arraias sustentavam-se principalmente de suas es-peranças e da fé religiosa.

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Lembrando as prostitutas da cidade, foram elas que nos mo-mentos mais difíceis da vida de minha família se mostraram as maissolidárias e humanas. Sempre dedico minhas constantes preces a Da-vina, augusta pessoa, de pura bondade. Sei que Deus conhecia seubondoso coração.

Davina me mostrou, por suas ações, toda a pureza que existia emseu coração e a nobreza de seu caráter. Pode parecer estranho que euveja e ressalte tais qualidades em uma prostituta, mas mesmo as prosti-tutas e os ladrões possuem códigos de honra e momentos de doçura.

Ela possuía uma beleza exótica. Negra, alta e gorda, muito volu-mosa. Enchia as portas por onde passava. Sempre sorridente. Eram sor-risos perdidos em tristezas misteriosas, porém sinceros. Davina nãodemonstrava possuir remorso moral pela vida que levava.

Aqueles sorrisos monalisados lecionavam com segurança quetudo na vida é passageiro, mesmo os sofrimentos mais dolorosos.Davina quase já não podia mais trabalhar. Estava velha e não desperta-va mais atração nos poucos e costumeiros clientes do prostíbulo. Vi-via de fazer remédios caseiros, de alguns partos e da compaixão mate-rial das prostitutas mais jovens.

Naquele distante ano de 1966, tudo o que os negros produziam eraquase que somente em troca de comida. A sobrevivência na cidade eramuito difícil. E mesmo assim o destino obrigou minha família a ir morarem Arraias, cidade que eu nunca esqueceria, por mais que tentasse.

Quando dela me lembro, é assim... Não posso controlar as cri-ses de choro, esse nó que me dá na garganta, quando tento contar aalguém pequenas partes de minhas tristes lembranças, de tudo aquiloque nos aconteceu. Se bem que, mesmo agora, tentando contar tudo,tenho certeza de que não conseguirei. Seria autotortura, desumano...

Alguns acontecimentos ficarão em eterno segredo entre minha almae Deus, e possivelmente na alma de minha mãe. Digo “possivelmente naalma de minha mãe” porque, decorridos mais de trinta anos, ainda nãotenho coragem de perguntar-lhe se ela tem consciência de tudo o queaconteceu.

Será que Deus, naquele tempo, entregou-nos literalmente aos ca-prichos do demônio e sua legião? Não acredito, não acredito mesmo,

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na existência do demo, nem em seu suposto poder sobre a vida daspessoas. Estou convencido de que as pessoas, quando têm contato mui-to intenso com o misterioso e o desconhecido mundo invisível que nosrodeia, provavelmente sofrem algum tipo de bloqueio (por providênciadivina) em sua mente e talvez até em sua alma, o que as impossibilita deter plena e clara consciência do acontecido.

As lembranças são de fato muito perigosas e podem destroçar avida das pessoas. Então, não vou forçar minha alma narrando os fatosmais desumanos que nos aconteceram. Seria crueldade desnecessáriacom minha família e com as outras pessoas. E creio que não será ne-cessário para a boa compreensão do que contarei.

Foi em Arraias que me tornei um irrequieto e curioso acerca davida e seu sentido. Hoje questiono todos os dias: por que tudo aconte-ceu? Que sentido faz tanta crueldade e injustiça? Diante de tantos pe-sadelos que presenciávamos acordados, nascia dentro do meu cora-ção o desejo crescente de morrer.

Apesar da minha pouca idade na época, apenas sete anos, eu viaa morte como o único descanso, como distanciamento seguro de tudoo que eu enfrentava. Depois dessa vida tão exposta a tantas desventu-ras, seria bom que minha família e eu tivéssemos uma vida material eespiritual mais feliz, ou no mínimo com dores menos agudas, princi-palmente as dores das injustiças, pois estas são incuráveis, jamais ces-sarão, por mais vidas que se tenha.

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A carta do Vô João,uma fuga da revolução

SEI QUE ESTOU deixando você ansioso por detalhes. Tudo nos acon-teceu muito rapidamente. Nossa tragédia tomou caminho no mês de agos-to de 1964. Minha família morava em São Paulo, na capital. Naquele tempo,eu estava com apenas quatro anos de idade, e ainda que você não acredite,recordo-me com muita clareza de meu pai sentado em uma escadinha es-treita de alvenaria, com poucos degraus, que servia para vencer o desníveldo terreiro em relação à altura do piso da sala de nossa casa.

Meu pai, eufórico, falava em alto e bom som com a minha mãe,que o escutava um pouco a distância, varrendo o terreiro, numa limpezaque já se tornava interminável, imagino que só para ficar ouvindo meu

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pai e simular um pouco de desinteresse da conversa. Papai tentavaconvencê-la de alguma coisa.

Trinta anos depois, na casa de meus pais, comemorávamos onatal do ano de 1997. Lembrávamos de muitas coisas passadas e, semque percebêssemos, passamos a comentar o passado de nossa família.Relembrei e citei aquele episódio de meu pai sentado na escada.

O natal para mim é muito melancólico. Os comentários sobre opassado carregado de tragédias, mas com muitas lições de vida, mefez lembrar de meu pai sentado na escadinha de alvenaria que davaacesso à sala de nossa casa lá em São Paulo, propondo à minha mãenossa mudança para Goiás.

Meu pai não acreditou que eu pudesse lembrar de tudo aquilo.Para lhe provar, tive, então, de falar sobre outros detalhes do nossotempo na capital paulista. Lembrei-lhe de nomes de alguns amigos denossa família naquela época, como o “irmão” Bento, que apelidaraRenilde, minha irmã mais velha, de ‘caneta’, por ela ser gordinha efalante. Renilde é a que mais puxou a meu pai na alegria e na esponta-neidade. Relembrei ainda ao meu pai uma das cenas mais marcantespara ele e minha mãe em relação a nossa saída de São Paulo.

Descrevi com detalhes e muita clareza um ato do Irmão Bento.Ele era um negro de gestos delicados e muito simpático que nos acom-panhou até a rodoviária no nosso embarque para Combinado, no ser-tão de Goiás. Irmão Bento, na despedida, com lágrimas nos olhos,afirmava que não devíamos ir embora de São Paulo. Dizia ele que olugar para onde estávamos indo não seria nada bom para nossa famíliae que sofreríamos muito.

Irmão Bento assim profetizou. Ele era evangélico. E como di-zem “no meio”, o homem era um “abençoado”, verdadeiro instru-mento nas mãos de Deus. Possuía o dom da visão e das profecias.

Continuei comentando com meu pai sobre vários outros detalhesdo passado, insistindo em provar a ele que conseguia me lembrar decoisas do meu tempo de quatro anos. Entre tantos fatos que eu seguiarecordando e comentando, um deles chamou a atenção de minha mãe.Ela nos ouvia com os olhos lacrimejando, talvez em razão das lembran-ças do Irmão Bento. Foi então que me interrompeu, dizendo:

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– Mas não é possível! Isso aconteceu em Paranavaí, no Paraná – aminha cidade natal! – E você só tinha um ano e meio, no máximo doisanos. Como pode se lembrar?

– Então, mãe, se lembro de coisas de Paranavaí, quando eu tinhadois anos, isso prova que posso me lembrar de meu pai sentado naescada de nossa casa, em São Paulo, lhe falando de uma carta que rece-bera do Vô João.

Tentei impedi-la de me interromper novamente e continuei a falar:– Ora, pai, se o que minha mãe fala em termos de tempo proce-

de, o senhor pode perceber que eu posso lembrar perfeitamente dostempos em que morávamos em São Paulo.

Meu pai, que olhava para o teto, voltou os olhos na minha dire-ção e, com voz quase inaudível, disse:

– É assim mesmo! Às vezes as pessoas se lembram de coisas quese perdem entre a realidade e a imaginação.

Não gostei do que ouvi. Pareceu-me que meu pai ainda tinhadúvidas ou entendia que eu misturava vagas lembranças com coisasque tinha ouvido na adolescência ou mesmo na infância, ali em tornodos oito, dez anos. Mas, na verdade, eu consigo lembrar de muitascoisas a partir do meu primeiro ano de vida.

O meu pai, às vezes, falava ou filosofava de maneira que muitome impressionava. Passei a anotar suas incontáveis frases e pensamen-tos. Apesar de suas “poucas letras”, eu via algo de fantástico em seuspensamentos e sua visão do mundo. Eram no mínimo diferentes e avan-çadas para um homem de pouca instrução, criado no sertão de Per-nambuco, que só tivera oportunidade de completar o primário quasena mesma época que eu.

Meu pai, logo depois, explicou-nos com detalhes o que se pas-sou naquela dia em que estava sentado na escada conversando comminha mãe:

– Naqueles dias, eu tinha recebido uma longa carta de seu avôJoão. Ele dava várias notícias de felicidade e progresso na vida e nosconvidava a ir morar no lugar onde ele estava estabelecido. Seu avôdizia inclusive que lá não existiam os atropelos da vida que se levavaem São Paulo. Naquele ano, as coisas estavam agravadas em razão do

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“governo revolucionário” dos militares. Eu estava muito intranqüilocom a Revolução. Ninguém sabia no que aquilo ia dar. Seu avô infor-mava que lá se sentiam muito menos os graves efeitos da revolução.

Foi isto o que me explicou meu pai.

Meu avô paterno morava em Combinado, e foi lá que fomosmorar depois daquela carta. Combinado ficava no sertão goiano, hojeestado do Tocantins. E assim meus pais deixaram tudo na capitalpaulista e se mudaram para aquela cidadezinha. Recordo-me bem daviagem de ônibus, partindo de São Paulo.

Dormimos na rodoviária de Brasília para, no dia seguinte, to-mar outro ônibus, que nos levaria até a cidade de Arraias, para daliseguirmos até Combinado, distante de Arraias cinqüenta quilômetros,aproximadamente. Combinado, na época, não era servido por linhasde ônibus. Teríamos de conseguir carona ou fretar veículos particula-res, de preferência caminhões – eram os veículos mais apropriadospara vencer as péssimas condições da estrada de chão, muitoesburacada, que ligava Brasília a Combinado.

Era no início da Revolução. A rodoviária de Brasília estava cheiade gente, alguns como que perdidos, outros desesperados. Todos ten-tavam ir de um lugar para outro, muitos fugindo, com medo da Revo-lução. O governo militar havia paralisado muitas obras em Brasília;por isso faltavam empregos. Boatos espalhavam verdadeiro terror einsegurança. Pessoas oriundas de cidades do interior tentavam regres-sar a elas, mas não havia ônibus suficientes para todos. E assim muitosdormiam e perambulavam por vários dias na rodoviária da capital.

Após passar por Brasília e Arraias, nosso destino era Combina-do. Não pense que se tratava de uma cidade. Era em verdade umagrande obra, talvez um sonho do governador de Goiás daquela épo-ca, Mauro Borges Teixeira, homem fantástico, possuidor de admirávelespírito público. Aliás, o titulo de um livro que Wilson Romano Calilescreveu em homenagem a ele diz muito: Mauro Borges: a intolerável de-cência de um político.

O governador goiano, em pleno governo revolucionário dosmilitares, também fazia a sua ‘revolução particular’, no campo da

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Reforma Agrária. Ele executava um audacioso plano de distribui-ção de terras com várias promessas: de incentivos, ajuda por meiode programas extensivos de assistência técnica e outras facilidadesnunca vistas, pelo menos até aquele tempo. Tais promessas eram fei-tas a todos que desejassem povoar e produzir numa grande regiãode florestas pouco habitada.

O tempo mostrou que a visão do governador Mauro Borges eraacertada, e ele tinha razão também quanto à sua decisão de desenvol-ver a parte mais pobre e esquecida do estado, a região norte. Tantoque os habitantes daquela área territorial gritaram anos depois exigin-do o desenvolvimento, pois os governos de antes e depois de MauroBorges demonstraram pouco interesse pela região. Por isso mais tardea população pediu – e conseguiu – a divisão do estado.

Hoje aquela região vem se desenvolvendo significativamente,graças à divisão. Com ela, aquela área passou a pertencer ao novo esta-do, Tocantins. É ali onde se faz a divisa entre os dois estados.

O governador Mauro Borges, naqueles passados e distantes anosde 1963 e 1964, comandava o início da implantação de um ousadoplano de Reforma Agrária em Goiás. Foi o que ele chamou de ‘Com-binado Agrourbano de Arraias’. O Combinado se constituía de colô-nias agrícolas com tecnologia de primeiro mundo. A idéia do gover-nador goiano tinha a família como base econômica e social. Ele criaraum novo tipo de sociedade rural. O governo goiano contratou assis-tência técnica do Estado de Israel; trouxe até animais de raças nobresdaquele país, para a melhoria dos plantéis existentes nas colônias.

Foi lá no Combinado que me deparei com os dois maioresporcos que já vi na minha vida. Eles também foram trazidos de Isra-el. Um deles, um porco preto, os colonos apelidaram de ‘Zé Brasil’,e o outro, da raça que os colonos chamavam de pial, foi apelidadode ‘Cafuringa’. Era comum os dois porcos gigantes se soltarem esair pelo Acampamento afora causando horrores e destruindo plan-tações. Todos tinham medo daqueles animais enormes. E quandoeles resolviam copular, era um escândalo, causavam verdadeiro cons-trangimento; eram tantas velhas carolas se escandalizando e se ben-zendo, que causava graça.

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O governador esforçava-se muito para o desenvolvimento econsolidação do projeto. Era algo grandioso em termos de ideal eousadia política.

As colônias eram dotadas de vários equipamentos públicos,como hospitais, escolas e água encanada. Em algumas partes existiaaté água para irrigação das lavouras e energia elétrica gerada por gru-pos geradores. Mas mesmo assim construíram uma usina hidroelétri-ca, a usina do Rio Mosquito.

O governador goiano executava a idéia do Combinado preocu-pando-se com o campesinato goiano; no entanto, surpreendentemen-te, ali desembarcou gente de todas as partes do país. Chegavam famí-lias inteiras, pequenas e grandes, com filhos de várias faixas etárias,oriundas principalmente de Minas Gerais e da Paraíba. Chegavam tam-bém homens solteiros e mulheres idem. Outros que deixavam as famí-lias para trás na tentativa de ganhar dinheiro e a elas enviar.

Era comum alguns formarem novas famílias, esquecendo as quedeixaram para trás, esperando-os. Outros chegavam e se desencanta-vam, logo regressando. Tudo isso formava um vaivém de aventurei-ros e outros tipos difíceis de qualificar. Não se sabia dizer o que real-mente queriam ou buscavam nas colônias do Combinado.

O novo lugar que surgia em razão das colônias não parava decrescer no seu primeiro e segundo ano de implantação. Como em todaformação urbana, surgiam problemas de toda ordem. Às vezes a con-vivência tornava-se tediosa, a inveja e a cobiça reinavam absolutas.Naturalmente que lugar pequeno é propício a fofocas, ciúmes. Ali exis-tia uma fonte. Durante as noites nos terreiros das casas, jorravam mui-tos mistérios e lendas.

O Idago, órgão criado para desenvolver o plano de Refor-ma Agrária do governador Mauro Borges, dividiu a área de terraem regiões administrativas. Ainda assim era difícil a administra-ção das colônias.

O local onde fomos morar era denominado “Acampamento”.Ficava exatamente no centro das Colônias. Além do Acampamento,existiam outros quatro lugares: a R-1, a R-2, a R-3 e a R-4, que eramconjuntos de glebas entregues aos colonos interessados em cultivar as

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terras do estado. As glebas rodeavam o Acampamento, que centrali-zava o funcionamento da administração local do projeto das colônias.

A divisão territorial do projeto muito se assemelhava à do Dis-trito Federal, em que o Acampamento seria Brasília e as “Rs” seriamas cidades-satélite.

Havia no Acampamento um trânsito intenso de pessoas. É que láfuncionava a sede da administração central do projeto. A administraçãoera composta de vários setores: a cooperativa, o grande almoxarifado,o alojamento dos funcionários, a oficina geral de manutenção de viatu-ras e equipamentos agrícolas e o escritório central, que contava commuitos funcionários sentados detrás de mesas repletas de papéis, escre-vendo à mão ou datilografando em ritmo apressado. Era no Acampa-mento que funcionava o único comércio de toda a colônia.

O governador Mauro Borges denominou o projeto de “Combi-nado Agrourbano de Colônias Agrícolas de Arraias”, mas todosconheciam o lugar simplesmente por “Combinado”. As colônias agrí-colas aos poucos faziam surgir um novo lugar, um imprevisível e enig-mático lugar. Era um lugar de muitos sonhos, esperanças e também demuitas lendas e histórias que surpreendiam. Incontestavelmente, eraum lugar que proporcionava, além de sonhos e esperanças, muitas re-alizações, tanto econômicas como de auto-estima, aos colonos.

Aquelas colônias hoje não existem mais, acabaram-se, como seacabam todos os sonhos impossíveis. Quando falo de sonhos im-possíveis, refiro-me aos sonhos que dependem da convergência davontade de políticos.

Onde ficavam as colônias da R-1 atualmente existe o municí-pio Combinado, em Tocantins, com população estimada em cincomil habitantes.

Curioso é que o Acampamento, que parecia fazer nascer umanova e próspera cidade, hoje é simplesmente uma fazenda, sem qualquersinal de que um dia quase se tornou a cidade dos sonhos de muitosagricultores e de um governador idealista.

Acreditavam que ali se dava o grande impulso para a realizaçãode um antigo sonho de muitos brasileiros: o Brasil “celeiro do mundo”.Não foi isso o que aconteceu. É que no começo de toda empreitada

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política, bem-intencionada ou não, tudo é festa; lamentavelmente, osbajuladores e os caçadores de verba pública fácil, conseguem, com odecorrer do tempo, desviar do rumo as iniciativas bem-intencionadas.

No início, em razão de o Combinado ser um lugar de muitaspromessas, a euforia tomava conta de todos, talvez pela ingênuaesperança de um Estado eficiente e protetor.

Mauro Borges, anos depois, confessou-me: “No meu governo, oCombinado era meu maior ideal”. Ele queria criar ali no sertão goianoum centro de produção agrícola pelo qual o Brasil se empolgaria, paraexecutar a verdadeira Reforma Agrária.

Naquelas colônias, o único lugar com alguns aspectos que caracte-rizavam uma formação urbana, lembrando uma cidade, era o Acampa-mento. O lugar, visto de longe, assemelhava-se a uma cidade do VelhoOeste americano, claro que sem os cowboys com seus cavalos e carrua-gens. Aliás, não me lembro de desordens e violências no Combinadoque ultrapassassem os limites da tolerância. Veja que, nesse aspecto, aidéia de tomar a família como base se comprovou eficiente.

O Acampamento era também o lugar onde meu avô paternomorava. Ele era o proprietário do único comércio, um grande arma-zém que vendia de tudo. Naquela época, mesmo nas cidades maiores,ainda não existiam os supermercados. Começavam a surgir os primei-ros pegue-pagues, que dariam origem aos supermercados e depois aoshipermercados. O armazém de meu avô era muito maior do que asnecessidades das colônias, e, por isso, uma referência dentro delas;hoje, seria no mínimo um grande supermercado.

O Acampamento ficava localizado às margens de uma estradade terra de condições pra lá de precárias, mas era a única existente. Elaligava o extremo norte de Goiás a sua capital, Goiânia. Naquele tem-po, Goiás tinha como limite o estado da Bahia. E a estrada seguia atélá. A estrada, no sentido contrário, por estar na mesma rota, tambémligava Combinado a Brasília.

Na época, Brasília já estava obviamente inaugurada, mas ainda emplena construção, num ritmo desacelerado. Quando falo que Goiás se li-mitava com a Bahia, levo em conta que isso se dava antes da divisão doestado. Hoje, portanto, quem mantém limites com a Bahia é o Tocantins.

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Eu, na verdade, quero falar é da estrada e de sua importância.É que por aquela utilíssima estrada de tantas histórias, mistérios elendas – algumas desvendadas, outras ainda vivas e povoando o ima-ginário dos que vivem à margem dela – passavam muitos caminhõesdo tipo ‘boiadeiro’, que transportavam gado da Bahia e do Goiáspara o sul do país; e, no sentido contrário, caminhões que vinhamprincipalmente de Anápolis, Goiânia e do Triângulo Mineiro, levan-do mercadorias para as poucas e pequenas cidades goianas localiza-das adiante do Combinado; às vezes, seguiam até a Bahia, chegandoao município de Barreiras.

A falta de transporte regular para passageiros naquela regiãocausava enormes transtornos e dificultava as comunicações, princi-palmente dos correios. Mas a pior dificuldade era o tratamento dosenfermos que necessitavam dos centros médicos localizados em Bra-sília ou Goiânia.

Lamentavelmente, as profecias do Irmão Bento, aquele de São Pau-lo, começavam a se descortinar. Realmente, parecia ser coisa do destinode nossa família. Coisas ruins estavam fadadas a nos acontecer. Após achegada de minha família a Combinado (em meados de setembro de1964), o projeto das colônias começava a dar sinais de que muito prova-velmente não iria adiante. Existia a ameaça de o governo militar cassaros direitos políticos do governador Mauro Borges.

O governo de Goiás mantinha muitos profissionais no Combi-nado – médicos, agrônomos, veterinários, mecânicos, funcionários ad-ministrativos e centenas de operários. Aos poucos, alguns deles forammostrando desânimo, coisa que fora prevista pelo governador.

Meu pai, que jamais gostou de trabalhar na lavoura, conseguiuemprego no estado. Ele era eletricista industrial e montador mecâni-co, e ficou encarregado da manutenção dos grupos de geradores deenergia elétrica e do bombeamento de água potável e para as irriga-ções. Mas havia pressões para sua demissão. Seus inimigos ocultos,como dizia mamãe, alegavam às escondidas que ele só cuidava do co-mércio que montou no Acampamento. Na verdade, o comércio eraadministrado e mantido por minha mãe, que sempre agiu com muitadedicação e competência em tudo que se propôs a fazer.

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Apesar de pequenos dissabores que surgiam e da pobreza quedespontava nas colônias, nós levávamos a vida com normalidade.

Minha mãe sempre se preocupava em ajudar as pessoas maisnecessitadas, pois começavam a grassar as primeiras dificuldades in-contornáveis decorrentes da pobreza extrema que surgira de formarápida no Combinado.

A pobreza despontava principalmente no meio dos recém-che-gados. Muitos vendiam tudo o que tinham em suas cidades de origempara conseguir chegar às colônias, que, como já disse, foram projetadaspara o campesinato goiano, mas aos poucos foram ocupadas tambémpor muitos mineiros e migrantes nordestinos. Eles desembarcavam lásó com as poucas mudas de roupa e a vontade de trabalhar.

A notícia das maravilhas das colônias se espalhavam rapidamen-te, mas quando as coisas começaram a desandar, as notícias não corre-ram na mesma velocidade. Pela primeira vez na vida eu pude ver notí-cia ruim correr menos que notícia boa. Mas havia razões. Você vaisaber o motivo.

O governo do estado já não conseguia cumprir as promessasfeitas aos colonos e manter os padrões de assistência social inicialmen-te estabelecidos. O governo militar, de posse das suas armas, tomara opaís e o transformara em um Estado de justiça submissa, tornando-seuma ameaça às obras, às idéias políticas e acima de tudo aos sonhos domodelo de Reforma Agrária de Mauro Borges.

Sem dúvida, eram bons projetos e idéias arrojadas. O governa-dor visitou vários países – tanto países comunistas como democráti-cos –, mas se inspirou no modelo cooperativista do Estado de Israel.O governador esteve por lá estudando e se convenceu de que aquilodaria certo no Brasil.

As idéias de Mauro Borges não eram vistas com boa-vontadepelos militares e inimigos poderosos dele. Ele, de certa forma, andoucausando incômodos a certa camada da classe dominante, abalandoprivilégios.

Tudo isso precipitava o fim do seu governo e, é óbvio, o fim dascolônias. Também em razão da natureza e dos objetivos sociais dos pro-jetos que continham indisfarçavelmente elevado assistencialismo, além

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da distribuição de terras com oportunidades iguais para qualquer brasi-leiro ou estrangeiro que tivesse coragem e vontade de trabalhar nas ter-ras do estado, as quais eram muitas e inegavelmente inaproveitadas.

Os militares, se usassem um mínimo de má-vontade, teriam mui-tos ingredientes para tachar a obra de Mauro Borges como mais umaação comunista no Brasil, o que, na tosca compreensão dos militaresda época, constituía uma ameaça. Sei que as coisas começavam a darsinais de que dias difíceis estavam por vir. O pagamento dos saláriosdos funcionários do estado começava a sofrer constantes atrasos. Mes-mo assim, continuavam a chegar famílias, que às vezes ficavam arre-pendidas, mas não tinham como retornar a suas cidades de origem.

Meus pais, no entanto, estavam felizes no novo lugar. Foi ali queconstatei que as crises favorecem aqueles que sabem espremer commaior habilidade os bagaços e aproveitam com otimismo e coragemas oportunidades que elas podem trazer. Em menos de um ano noCombinado, meus pais estavam muito bem financeiramente, princi-palmente em razão das economias que levaram de São Paulo e, acimade tudo, por serem bons poupadores.

Minha mãe talvez fosse a principal responsável pela poupança.Ela é uma pessoa que ainda hoje faz da responsabilidade e da religiãoum propósito de vida. Extremamente religiosa, até hoje acredita nopoder dos jejuns e constantemente os pratica. Vive em permanenteestado de oração, possui intuições que surpreendem e faz os que comela convivem meditar muito. Ela tem uma surpreendente capacidadede revelar perigos que podem acontecer no futuro próximo. Semprepraticou a caridade por fé. Até hoje a pratica.

A vida de minha mãe! Na verdade, até hoje é um mundo deincertezas, um grande mistério, enfim. Ela, infelizmente, não conheceua mãe, só o pai, que diziam não ser seu pai biológico (ela, porém,acredita que sim: ao comparar as características físicas dela com as demeu provável avô, ela constatava muitas semelhanças).

Alguns parentes de minha mãe contam que ela era fruto de umamor escondido de meu avô. Contam que meu suposto avô simulouter ganho uma criança de uma família muito pobre e levou-a para suamulher criar, muito a contragosto. Essa mulher naturalmente seria a

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madrasta de minha mãe. A mulher que mamãe conheceu como mãeera uma verdadeira madrasta, alcoólatra, mal-humorada, que só se ex-pressava usando palavrões e ameaçando pancadas.

Conta minha mãe que um dia acordou com sua madrasta, oumãe, ateando-lhe fogo na cama. Por pouco minha mãe não virou cin-zas. E desde então passou a sofrer ameaças para que não revelasse oacontecido ao pai. Ela carrega essa dúvida até hoje: aquela mulher quetanto a maltratou era sua madrasta ou sua verdadeira mãe? Eu nãotenho dúvida, por tudo o que já ouvi: era madrasta e, o pior, com tarae despeito de um padrasto mau caráter.

Mamãe uma vez nos contou, para mim e meus irmãos, que,quando era adolescente, levava uma vida muito atribulada em casa.Aos quatorze anos, o pai dela morreu e seus tormentos aumentaram.Passou a ser tratada com total indiferença pela mãe e, principalmente,pela irmã mais velha. Tratavam-na como uma criada, muito discrimi-nada e espancada por qualquer motivo.

Sua vida só melhorou – imagine! – quando a mãe dela, minhasuposta avó, “bateu as botas” e partiu deste mundo sabe-se lá paraonde. Por tudo o que fez à minha mãe, não me surpreenderia se rece-besse notícias dela em apuros no purgatório.

Mamãe, já aos quatorze anos, passou a perambular por váriosempregos. Afinal, era um modo de sair de casa, pois seus irmãos,tio Alexandre e tio Ramiro, eram muito ciumentos e não lhe davamtrela. Mamãe era uma mulher muito bonita. Ainda o é, mas, quan-do jovem, era realmente encantadora (me convenci disso pelas fo-tos que tenho dela na mocidade). Parecia atriz de cinema. Aliás,sempre me pergunto: o que ela viu no meu pai? Sou obrigado areconhecer que papai, em termos de beleza física, não era páreopara mamãe.

Se falo que papai não era páreo para minha mãe, sei que causocuriosidade quanto às características físicas dele. Bem, é que ele, porser de origem negra, apesar da pele clara – a mãe dele era branca –,tem o nariz largo, só não achatado; a boca grande, de lábios grossos; eé cabeçudo, com cabelo crespo (às vezes me pergunto se existe cabeloruim). Dele só puxei a cabeça grande.

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Meu pai, além de tudo, era muito pobre. E você sabe que mulhe-res bonitas geralmente são conquistadas por homens de mais posses.Mas, por esses mistérios da vida, conheceram-se quando mamãe esta-va com dezoito anos, namoraram e se casaram muito rápido.

Quando ela completou dezenove anos, deu à luz ao primeiro filho:eu. Hoje ela não faz segredos e confessa: casou sem amar o marido. Elapensava que o casamento era apenas uma sociedade na qual a parte damulher era fazer os serviços domésticos. Enfim, casou-se para escapar daopressão dos irmãos.

Só conheci meus tios por parte de mãe aos quatorze anos. Suairmã mais velha, Ernestina, já falecida, era uma pessoa de venetas: eracomum ser repentinamente acolhida pela tristeza e pelo mau humor.

Em um daqueles momentos, tia Ernestina disse à minha irmãRegina que acompanhara mamãe numa das quatro visitas que ela fi-zera às suas duas irmãs e aos três irmãos, no decorrer dos quarentaanos, após ter se casado; que mamãe fora deixada por sua verdadeirafamília, com poucos dias de vida, na casa daqueles a quem ela sem-pre conheceu como seus parentes. Dissera ainda que a mulher quedeixou mamãe pertencia a um povo nômade que perambulava pelacidade a cavalo.

A outra irmã de mamãe, tia Maria, desmentiu tudo quanto àprocedência nômade de mamãe. Mas tudo isso me intriga e me causauma enorme curiosidade, pois minha mãe tem personalidade muitomística. Eu até vejo muitas coisas de ciganos na personalidade dela.Ela adivinha coisas do futuro, tem intuições fortíssimas e, quandojovem, usava algumas extravagâncias que os ciganos apreciam, comograndes brincos de argolas douradas e lenços coloridos, que serviamde tiaras para prender os cabelos. Ela sabe fazer alguns truques comcartas de baralho e gosta de um escambo. Ela tem grande aptidãopara o comércio, no qual se mostra muito versátil. E se não fosse oescrúpulo religioso demasiado, certamente ficaria milionária com aarte de comprar e vender.

Pobre da minha mãe! Sempre apanhou muito da vida... Hoje,penso bastante, e por mais que eu tente, não sei dizer se foi a sina delaque nos arrastou para tantas desventuras e sofrimentos ou se foi o

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destino traçado para meu pai, que, com sua inexperiência, ou quemsabe por sua boa-fé e ingenuidade, meteu-se em tantas encrencas eandou pagando muito caro por isso.

Mamãe, apesar de todos esses problemas em sua infância e ado-lescência, é uma pessoa muito equilibrada e caridosa. Em nossos tem-pos no Combinado, quando não podia dar remédios, mesmo caseiros,aos doentes, promovia semanas de orações em favor deles. As ora-ções eram iniciativa dela e do meu avô paterno.

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Na vida, o que é bom dura pouco

MAS, voltando a falar do Combinado: os motoristas de caminhão eseus ajudantes, quando passavam naquele sertão, não tinham onde fazersuas refeições ou comprar qualquer coisa para comer. Não existiam res-taurantes, sequer havia bares. Os ônibus e os caminhões faziam parada emfrente ao grande barracão de madeira que era a cooperativa, onde tam-bém funcionavam a administração e o almoxarifado central de Combina-do. A estrada que vinha de Goiânia formava uma grande reta até chegarao Acampamento, mas, para sair dele, a estrada fazia uma curva de quasenoventa graus. No início dessa curva, estava o barracão da cooperativa.Os colonos o chamavam de “escritório central”.

O escritório central era a principal edificação do Acampamento,que era formado por seis ruas paralelas, todas planas e levemente

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inclinadas no sentido longitudinal. Eram bem largas, de terra dura ba-tida. Cada rua devia ter em torno de 40 casas. No ponto mais alto,onde se iniciavam as ruas, ficava o barracão da cooperativa. As casaseram construídas com um tipo de madeira que os colonos chamavamde tala, muito macia, como o miolo de buriti (que se usa para fazergaiolas de passarinho), cobertas com a palha de uma palmeira nativaabundante na região.

Quase dois meses após nossa chegada a Combinado, surgiu a pri-meira linha de ônibus. Um dos poucos acontecimentos, além dos dias depagamento, a quebrar a rotina no Acampamento era a passagem doônibus por lá. Ele chegava por volta das duas horas da tarde. As pesso-as, do terreiro de suas casas, podiam avistá-lo estacionado em frente aogrande barracão. Para lá, a maioria acorria e ficava andando em volta doônibus. Através das janelas, faziam perguntas aos passageiros: como es-tava a estrada, se estava chovendo lá para trás, qual o destino dos passa-geiros com os quais conseguiam conversar, ou simplesmente ficavamadmirando o ônibus. E dizia o mais espantado e confesso admirador doveículo, um nativo das proximidades, o finado Mané Velho: “Lá i vemaquela caixona de ferro baruienta, com a barrigona cheia de gente em-poeirada e com cara de sono”.

O motorista do ônibus, naqueles breves momentos de parada, eraa pessoa mais importante do mundo. Interessante: significava status seramigo pessoal ou até mesmo um simples conhecido dele. Os motoris-tas traziam cartas e pequenas encomendas para muita gente. Apesar docalor e da poeira fina, vermelha, sempre usavam gravata azul-marinhosobre a camisa cor de areia. Na cabeça, usavam um quepe ou boné como emblema da empresa bordado.

Se era quepe ou boné, é detalhe que não consigo precisar. Mas queimportância isso tem? Lembro-me, contudo, de um acessório insepará-vel de todos os motoristas que trabalhavam naquela linha: os óculos desol. Todos eles na faixa dos trinta e poucos anos, despertavam pequenase grandes paixões nas moças. Foi quando descobri que as pessoas têmnecessidade de ter ídolos.

No Combinado não chegavam jornais ou revistas, e não era pos-sível sintonizar qualquer emissora de rádio. Muito menos por lá chegava

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sinal de televisão para divulgar os atores de novela e cinema e os can-tores populares. Faltava um ídolo no lugarejo.

Os meninos, as mocinhas e também as moças velhas (como ha-via moça velha naquele lugar!), enfim, moças e meninos faziam dosmotoristas de ônibus os seus ídolos. Naquele lugar, também devido àépoca, nem todos conheciam (alguns sequer podiam imaginar-lhes aexistência) as corridas de automóveis. Mas se fosse indagado a qual-quer menino do Combinado o que queria ser quando crescesse, comcerteza a resposta não seria piloto de Fórmula 1 ou jogador de fute-bol. Ele responderia: “Chofer de ônibus”.

Meu tio Eliequim, irmão de meu pai, naquela época um adoles-cente de dezoito anos, alimentava esse sonho e o realizou. É moto-rista por paixão e trabalha naquela linha atualmente. Usa a tão sonha-da gravata cor azul-marinho, só que sobre uma camisa branca. Aempresa de ônibus em que ele trabalha é a Real Expresso. O tio Eli-equim já está em vias de se aposentar. Portanto, muita coisa mudou.A estrada, que era de terra, foi asfaltada e segue até o final do estadodo Tocantins.

O ônibus não demorava muito naquelas paradas, no máximoquinze a vinte minutos. Quando ele partia, era visível a repentina triste-za nos moradores do Acampamento. Mas a tristeza era passageira,logo se conformavam. Pouquíssimas pessoas embarcavam, e as queficavam iniciavam nova contagem dos dias para a chegada do próxi-mo ônibus.

Minha mãe tinha muito trabalho nessa parada: servia água e em-prestava a privada para as mulheres, que saíam às pressas, ainda seajeitando, atormentadas pela buzina do ônibus que intimava para acontinuação da viagem.

Às vezes, mamãe fazia os mesmos favores também a passageirose motoristas de outros veículos. Nossa casa era a segunda da rua quediziam ser a principal. Nela moravam algumas das autoridades admi-nistrativas das colônias, por isso a chamavam assim. Foi a primeira ruaa ser formada e habitada. Quase no final dela estava o imponente co-mércio de meu avô, e por trás do comércio uma grande lagoa, ondecaçavam marrecos selvagens.

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Pelo Combinado passavam muitos viajantes a serviço, e meu pai,que faz amizades com muita facilidade, conhecia-os quase todos. Algunsfaziam de seus carros lojas ambulantes: eram os mascates; outros erammotoristas de caminhão representantes de firmas atacadistas: CasasAlô Brasil, Irmãos Cecílio e Armazéns Martins, entre muitas. Esses viajan-tes sempre chegavam com fome, e meu pai os convidava para almoçarlá em casa. Alguns até aproveitavam para tomar um banho decente efazer a barba.

Aqueles favores tornaram-se muito freqüentes, e a coisa foi setransformando aos poucos. Logo minha mãe tinha um restauranteimprovisado, que rapidamente virou também um armazém, ou mis-tura dos dois ramos, pois ali se vendia quase tudo o que se possaimaginar. Minha mãe era obrigada a continuar servindo refeições. Éque de vez em quando papai enviava ou levava viajantes famintos anossa casa, que por força das circunstâncias transformou-se em res-taurante, mas este a cada dia perdia espaço para o armazém, quecrescia rapidamente.

O negócio cresceu rápido. Meu pai comprava as mercadoriascom facilidade dos novos amigos viajantes, que o incentivavam e lhedavam bons prazos para pagamento – afinal, era mais um cliente quesurgia numa região de pouco comércio. E eu não posso esquecer demencionar: meus pais são muito simpáticos no comércio, tanto paracomprar como para vender.

Eu sempre invejei a simpatia do meu pai e a sua facilidade parafazer amizades e sorrir com tanta espontaneidade em todos os mo-mentos da vida, mesmo nos mais difíceis. Ele sempre tem uma piadapronta para qualquer ocasião, ou transforma as situações mais emba-raçosas numa saborosa anedota, para provocar risos. Ainda hoje éassim que ele leva a vida.

Num dia desses, recentemente, ao sairmos, eu e meu pai, de umespetáculo em um pequeno e acanhado circo armado na cidade ondemora com minha mãe, ele me confessou, com ar de tristeza e frustração,uma grande mágoa que carrega na vida: aquela fora a primeira vez emque me viu rir tanto. É que naquele pequeno circo havia um palhaçofranzino e muito propositadamente desajeitado. Esse irrequieto palhaço

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era simplesmente genial e inesquecível; um palhaço à moda antiga.Transformava sua simulada burrice e falta de jeito com as mulheres e ascoisas em geral em uma arma poderosa contra o mau humor dos maissisudos e preocupados.

Sei que você quer saber a mágoa de meu pai. Era em relação asua vocação profissional. O desejo mais íntimo dele era ser palhaço decirco ou humorista. Pobre do meu pai! A vida o fez de palhaço portanto tempo e ele nem percebeu! Sempre penso: quando a hora delechegar, vai partir dando gargalhadas. Papai, apesar das dificuldades davida, sempre foi valente e, acima de tudo, muito alegre, como só ele eos palhaços sabem ser.

Não puxei a ele. Nasci – ou a vida assim me fez – sisudo. Comome entristece ter dificuldade para sorrir! Incomoda-me saber que meuspoucos e breves sorrisos raramente são espontâneos, talvez por nãoaceitar que vez ou outra é necessário vestir a fantasia de palhaço parasobreviver. É que, às vezes, a alegria desmedida de meu pai e da minhairmã Renilde me incomodam.

Por outro lado, meu pai, desligado, não percebia que muitosde seus amigos gostavam de bajular a minha mãe. Alguns se surpre-endiam com a beleza e a educação daquela mulher branca, de cabe-los ruivos, olhos claros e gestos amáveis, trabalhando duro em plenosertão goiano. Ela nunca confessou, mas com certeza recebia deze-nas de galanteios.

Fiquei sabendo, muitos anos depois, sobre um tal Braz, chefe dacooperativa, que morria de amores pela minha mãe. E quanto mais elao desprezava e o repreendia, mais ele implicava com meu pai. Se tor-naram inimigos mortais. O tal Braz deve ter feito pacto com o demô-nio para destruir a vida de meus pais. Creio que meu pai nunca matouesse sujeito por falta de oportunidade. Me faz lembrar um amigo queé presidente do Tribunal do Júri do estado do Amazonas. Me disse ele:“Todo assassinato é motivado por um dos quatro elementos: o álcool,a inveja, a cobiça ou o sexo; às vezes a combinação de dois ou atémesmo de quatro desses elementos motivam os assassinatos”. Dossentimentos humanos, não sei dizer qual o mais condenável: se a invejaou a cobiça. Sei dizer que ambos são destrutivos.

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A verdade é que ninguém, do mais simples braçal ao maisgraduado funcionário do estado, deixava de atender a um pedidofeito por minha mãe, nem tinha coragem de lhe pronunciar um não.Isso também por sua bondade, fineza e, claro, pelos muitos favoresprestados por ela, que ajudava todas as vizinhas que constantementea procuravam.

Meu avô não gostava do sucesso comercial de meus pais, pois elecomeçou a sofrer concorrência logo de quem não imaginava. Meu pairapidamente ficou conhecido como um homem próspero, dentro dascolônias e mesmo fora delas. Isso continuava a despertar muitos ciúmese crescia uma doentia inveja entre alguns de seus colegas de serviço.

Minha mãe percebia e avisava a papai, que, por sua vez, não davaa menor importância às observações dela. Hoje tenho certeza de que atão discutida intuição feminina realmente existe. Bobo foi meu pai,que não ouviu mamãe. Mas, como dizia ela: “Quem não ouve conse-lho, ouve coitado”. E foi o que ele mais teve de ouvir durante um bomtempo de sua vida.

Nossa casa era interligada com o comércio e sempre estavarepleta de pessoas: motoristas, viajantes em geral, colonos e funci-onários do estado. Era bem movimentada, a nossa casa. Os dias sepassavam e as coisas no Combinado, que já tinham dado sinal defracasso, realmente ficavam cada vez piores. Até eu, com meus quaseseis anos, podia sentir no ar o pessimismo nas conversas daquelesque freqüentavam o comércio de meus pais. As dificuldades atéaquele momento não afetavam a situação de nossa família, o quefazia crescer os ciúmes, para não dizer a inveja, entre os colegas depapai. Foi a partir dali que ele começou a enfrentar os primeirosproblemas realmente sérios causados pela inveja de alguns de seuscolegas e amigos.

Não sei como meu pai não percebia. Até eu, que era tão criança,percebia a maldade e as intrigas. Ouvia atentamente os comentáriosmaldosos dos colegas de papai a respeito de sua prosperidade. Ouviaalgumas calúnias totalmente infundadas e, de vez em quando, até con-tava para ele e minha mãe. Eles nunca davam a devida importância,principalmente meu pai, que em toda a vida foi muito ingênuo.

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O misterioso choro na mata

ENTRE as muitas conversas que se podiam ouvir lá em casa, pas-sei a cultivar especial interesse pelas misteriosas histórias e lendas deassombrações, principalmente as contadas pelos motoristas viajantes daestrada. O interessante é que muitas delas comprovou-se serem apenaslendas mesmo. Outras histórias, ainda hoje os moradores da região astêm como mistério. Muita gente séria jurava que algumas eram verda-deiras. Entre tantas de que falavam, acreditavam cegamente em duas deassombrações que apareciam ao longo da estrada.

Uma delas era a cada dia mais repetida pelos viajantes e, na mes-ma medida, tornava-se a mais conhecida, causando enorme espantoem todos da região. Falavam sobre uma velhinha que aparecia na mar-gem da estrada com uma criança nos braços, de no máximo dois anos

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de idade. Era uma menina, muito bonita e inteligente, mas com clarossinais de desnutrição. A velhinha tentava doar a criança aos viajantes,pedindo-lhes que cuidassem bem dela, e justificava sua atitude dizen-do não ter como alimentar a netinha.

A boa velhinha, para conseguir seu intento, contava uma como-vente história, que geralmente convencia o viajante abordado a aceitar acriança; mas quando este a levava, uma desagradável surpresa aconteciano caminho: a bela e meiga menina se transformava em um demônio deaparência monstruosa, que agredia o indefeso viajante, geralmente mor-dendo e cravando-lhe as unhas por todo o corpo, causando enormes edolorosos ferimentos no pobre coitado; isso quando não o matava.

Entre os fatos a favor e contra a veracidade das lendas – sabe-secomo são os fatos, eles sempre deixam dúvidas para um lado e paraoutro –, eu me lembro de Seu Luís Antônio, o único barbeiro da colô-nia... Ele tinha o corpo todo marcado por cicatrizes. Eram vários fu-ros e rasgos, todos roxos e fundos. Diziam que aquelas cicatrizes eramde mordidas e unhadas da tal criatura que surgia da metamorfose dacriança. Muitos desmentiam. Outros falavam que as cicatrizes realmenteeram provenientes de mordidas, mas de porcos selvagens. É verdadeque o barbeiro tinha o hábito de caçar, mas o difícil em tudo aquilo éque ninguém acreditava no barbeiro, pois o homem mentia com umdescaro de fazer avermelhar qualquer cara, mesmo que fosse de pau.

Meu pai desligava os geradores de energia do Combinado por voltadas oito da noite, e a iluminação passava a ser feita por lamparinas a que-rosene ou lampiões a gás. Nos terreiros de algumas casas, geralmente acen-diam-se grandes fogueiras, para animar as noites, e a única coisa que sepodia fazer para passar o tempo era bater papo com amigos.

Havia um motorista de caminhão muito estimado por todos noCombinado, conhecido por Lilico. Era um homem com pouco maisde cinqüenta anos, negro, magrinho e calvo, bem simpático, muito fa-lante e de conversa agradável. Naquela época, eu ouvia vez por outrauma expressão sobre Lilico, sem compreender-lhe o significado: “ne-gro de alma branca”. Bem, o que importa é que Lilico gostava de con-tar piadas para meu pai, que retribuía com outras bem escandalosas.Papai fazia o estilo Ari Toledo.

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Certa noite, depois de ter jantado lá em casa, já estando as luzesapagadas, Lilico decidiu falar sobre as lendas da estrada e confessarseus temores e receios em determinados trechos da longa e sinuosatrilha. Naquela estrada havia uma cruz de madeira em cada curva, mar-cando o local de uma morte, o que contribuía para o aumento dassuperstições. Por isso, falavam muito sobre assombrações que capota-vam os carros ou corriam atrás dos veículos, assustando seus ocupantes.

Lilico estava sentado num tamborete colocado no terreiro bemiluminado pela lua, que era auxiliada por um potente lampião. Ele sor-riu meio desconfiado, alisou a testa com a palma da mão e começou acontar para meus pais e outras pessoas que estavam lá em casa sobreum grande medo que passou na estrada, naquela sua última viagem.

Ouvi tudo com muita atenção. Eu estava sentado num enormetronco de aroeira, estendido em paralelo e bem encostado na parededa fachada principal de nossa casa. Papai havia colocado o tronco aliexatamente para servir de banco, pois amigos e vizinhos sempre sesentavam ali nas noites acaloradas, para esperar o sono. Todos ouvi-am, com muito interesse, Lilico falar sobre o pedaço da estrada quelhe causou calafrios e arrepios. Foi numa longa curva, que terminavaem um enorme mata-burro sobre o Rio do Peixe.

No tal mata-burro, geralmente os passageiros do ônibus desciam, esomente o motorista permanecia no veículo durante a travessia, por ques-tão de segurança, porque o trecho era relativamente longo e a estrutura demadeira estava toda comprometida. Nada tinha a ver com assombrações.O ônibus passava por lá ainda de dia, quase chegando ao Combinado.

Você sabe o que é um mata-burro? É um tipo de ponte sem asso-alhos, feita com troncos de árvores lavrados. Naquele só tinha o lugaronde mal cabiam as rodas dos carros. Quando era tempo da seca, osmotoristas preferiam desviar do mata-burro e passavam por dentro doleito do rio, que naquele local era raso, com o fundo de cascalho.

A descida dos passageiros naquele mata-burro, repito, nada ti-nha a ver com as assombrações, que só perturbavam no silêncio dasnoites, segundo as histórias dos viajantes.

O mata-burro das assombrações ficava logo depois de um luga-rejo chamado Alegre. Esse lugarejo virou o município de Novo Alegre,

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hoje com aproximadamente cinco mil habitantes. O Alegre daqueletempo, ou o Novo Alegre de hoje, era o último lugar antes de chegarao Combinado, no sentido de quem vinha de Goiânia. O tal mata-burro servia de travessia sobre o lindo Rio do Peixe. O interessante éque quase não se viam peixes nas águas daquele rio. Sua água é salobra,muito transparente, e o fundo, em sua maior parte, é formado porgigantescas pedras, que formam belas piscinas naturais.

Por pura ironia, era exatamente embaixo do mata-burro, quediziam mal-assombrado, e em suas proximidades que o Rio do Peixeparecia querer exibir-se e mostrar-se realmente belo e encantador. Pelomenos naquele tempo. Creio que hoje não exista mais o mata-burro.Talvez exista lá uma ponte de concreto. E qualquer obra que se faça,por mais zelo que se tenha, sempre interfere no meio ambiente, alte-rando suas faces originais. Acredito que agora tais belezas só existamna minha lembrança.

O Rio do Peixe, nas proximidades do mata-burro, era margeadopor um lindo jardim natural, parecia que fora plantado após um minuci-oso planejamento paisagístico. Na verdade, foi: era uma magnífica obrada natureza. Hoje deve ter mudado, e não deve ser tão bonito como eranaquela época. Havia centenas de flores brancas e azuis, que pareciammargaridas, mas com menos pétalas, sendo um pouco mais largas; elasnasciam de uma vegetação rasteira e espinhenta. As folhas das plantinhaseram bem miúdas e divididas em duas partes. Pareciam pequeninas bor-boletas pousadas de asas abertas. Quando tocadas, as duas partes dasfolhas se voltavam uma para a outra e de forma mágica se fechavam.Era uma vegetação muito comum na região.

No combinado havia muitas daquelas plantinhas, e eu me divertiabastante passando o solado dos meus sapatos sobre elas; tocava-lhes comsuavidade, e elas se fechavam instantaneamente, fazendo as duas partesdas folhinhas se encontrarem, formando uma única figura. Desse jeito,pareciam minúsculas borboletinhas de asas totalmente fechadas. Pareciaaté que aquelas plantinhas tinham a comunicação dos elefantes, uma avisa-va a outra com extrema velocidade, quando incomodadas, e então todasas folhinhas se fechavam, como se estivessem em absoluto estado de defe-sa. O nome delas, lá no Combinado, era Maria-das-onze-horas.

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As margens do Rio do Peixe eram repletas daquelas plantinhas.Enfim, era uma total falta de lógica dizer que aquele trecho tão exube-rante do Rio do Peixe era morada de assombrações.

Mas o que intrigava todos é que foi comprovado várias vezesque alguns carros, quando se aproximavam do famoso mata-burro,apresentavam defeitos inexplicáveis. Sei de um caminhão que até ca-potou, matando o motorista, mas acredito que por imprudência; ou-tros veículos esquentavam o motor em plena noite fria, ou num repen-te apagavam os faróis. Ouvi, pessoalmente, muitos motoristas conta-rem essas coisas estranhas no comércio de meus pais.

Mas voltando ao Lilico, que naquela noite confessou todo seutemor e nos revelou ainda que sempre parava o caminhão dele – umbelo Mercedes de cabine amarela, tipo cara-chata, com uma enormeimagem de São Jorge pintada no painel – um pouco antes do mata-burro, rezava três ave-marias e um pai-nosso, para só depois passarpelo tal mata-burro. Sei que é verdade quanto à reza, pois um amigode meu pai viajou com ele de carona e presenciou a reza.

O Lilico viajava, na maioria das vezes, sozinho. Ele era motoris-ta do Estado e não lhe eram dado ajudantes. Diziam que por isso elesempre dava carona, com medo de viajar sozinho. Ele já viajava notrecho há mais de um ano e nunca tinha lhe acontecido, ou tinha visto,nada. Mas, naquela viagem que ele fez durante a noite, coisa que elesempre evitava, o caminhão estourou o pneu esquerdo dianteiro mui-to próximo do local mal-assombrado.

Veja você que sempre acontecia alguma coisa, e com Lilico acon-teceu quando faltavam pouco menos de cinqüenta metros do mata-burro, quase em cima. Segundo ele, no silêncio daquela noite, até davapara ouvir o barulho da água passando por baixo do mata-burro.

Minha mãe se interessa muito por esse tipo de histórias que dãonotícias do além ou coisa parecida. Ela ouvia o Lilico atentamente e,num misto de descrédito e curiosidade, também muito interessada norápido desfecho da história, apressou-se em perguntar ao Lilico:

– Seu Lilico, o senhor dessa vez tinha parado o caminhão para rezar?– Mas dona Geralda, foi minha valença – respondeu Lilico, num

português sofrível, que o caracterizava –, aliais, durante todo tempo

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qui eu trocava o pineu eu trimia iguale bandeira no pau em dia di ven-tania, e num parava de rezar. Eu im todo minuto pensava: valei-minossa sinhora... pro que essi pineu novinho acha de papocar logo aqui?Tinha coisa ali, num tinha?

– E aí, você viu alguma coisa além do estouro do pneu? – per-guntou meu pai.

– Peraí, moço! Ué, dexa eu cabá de contá a estóra pro cêis... Eujá tava cabano de mudar o pineu quando cumecei a iscutar um chorode menino novo, que vinha di dentro da mata, qui tava iscura qui nembreu. Deu vontade di sair correno e deixar o caminhão com tudo pralá... Mais correr pra onde, né?

– Eita, mineiro!, que não sei se é mais mentiroso ou maismedroso! – Gritou meu pai, aos risos.

– Você acha, Raimundo, qui eu ia mintir pro cêis essas coisas tãoséria, num é dona Geralda? – Esbravejou interrogando, muito irrita-do, Lilico.

– Mentir, não. Só uma inventadinha de leve, para assustar os bobos.Respondeu meu pai, que não acreditava em assombrações e coi-

sas do gênero.– Pois, si tá duvidano, pregunte ao professor Duval, eu dei carona

a ele, peguei ele em Campus Belos, pregunta, sô! Uai, tá pensano qui ébrincadeira?!

Um breve silêncio, pois Lilico tinha usado da simulação de nervosoe de bravo para transparecer veracidade. Com a cara zangada, mostrandoseriedade, arrolou como testemunha o professor da escolinha primária,seu Duval, meu primeiro professor. Todos viam o professor como umhomem muito sério; ninguém o via em brincadeiras e bebedeiras.

O professor Duval morava na nossa rua, mas do outro lado,mais ou menos dez casas depois da nossa. Papai teve a repentina idéiade convidá-lo a vir até nossa casa, confirmar a história de Lilico, edeterminou a Natalino que o chamasse. Mas recomendou-lhe que nãoadiantasse o assunto, e ainda, por segurança, Gavião, um auxiliar depapai, acompanhou Natalino.

O Gavião já ia andando, quando voltou-se para trás e, me adulandomais uma vez, como sempre fazia, convidou-me para ir com eles. O

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pessoal que ouvia a história ficou esperando lá na porta de nossa casa. Oprofessor Duval aceitou ir a nossa casa. Natalino fora esperto e fizera oconvite em nome de minha mãe. Quando voltávamos triunfantes e acom-panhados do professor Duval, percebemos que havia chegado lá emcasa mais ou menos cinco pessoas, que foram informadas do que acon-tecia, e ficaram aguardando, ansiosas, o desfecho.

– Boa noite, minha gente! – Chegou o professor, cumprimentan-do a todos.

– Boa noite! – Responderam quase todos juntos, fazendo coro.– Boa noite. – Respondeu minha mãe isoladamente, logo após o

coral.Todos aguardavam ansiosos. Fizeram silêncio para ouvir o pro-

fessor Duval confirmando ou desmentido a história do Lilico.O professor Duval, mestre, embora sem formação acadêmica, mui-

to comum na região naquela época, gostava de mostrar seu pretensiosoportuguês, que julgava irrepreensível. Todos sabiam de seus longos rodeiospara falar, sendo que às vezes se perdia em devaneios. Era dono de umavoz pouco agradável para se ouvir por longo tempo – era rouca e muitocompassada –, o que só aumentava a ansiedade de todos.

Mas valia o sacrifício de ouvi-lo. Muitos conheciam as históriasque os viajantes contavam sobre assombrações e outros fenômenos queaconteciam na estrada. Falavam tanto sobre aquelas histórias que até setornavam reais na imaginação de quem as ouvia. Mas, logicamente, ha-via muitas dúvidas, e essa era uma rara oportunidade de ouvir o teste-munho de alguém confiável. Como diz minha mãe, “quem conversademais dá bom dia a cavalo”. Mas todos tinham uma certeza: o profes-sor Duval não era o tipo de homem que dava bom dia a cavalos.

– Bem, dona Geralda, a senhora me pediu para vir. Em que pos-so lhe ser útil?

– Na verdade, professor, foi o Raimundo quem lhe chamou.Diga o que quer, Raimundo, o professor deve ter pressa em regressar.

– Não estou afobado, não. – Afirmou calmamente o professorDuval.

– Bem, professor, é que o Lilico disse que o senhor veio de caronacom ele; no meio do caminho, um pneu estourou, e durante a troca,

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vocês escutaram um choro de criança, que vinha de dentro da mata es-cura. Nós duvidamos, e o Lilico está afirmando que o senhor tambémouviu. Por isso, tive a idéia de convidá-lo, para confirmar ou, quem sabe...

– Sei, Raimundo, compreendo. É, realmente, eu estou muito gratoao Sr. Lilico. Ele me trouxe lá de Campos Belos, pois só teria um ôni-bus na sexta-feira, e na viagem tudo transcorreu muito bem. Não éverdade, seu Lilico? Mas, ali perto do mata-burro falado, o pneu fu-rou. Não é verdade, seu Lilico? Nós estávamos até achando a viagemrápida... mas, de repente, aquele papoco! Nós nos assustamos... nãoera para menos. Não é verdade, dona Geralda?

Os ouvintes já se impacientavam com tantas voltas para umaresposta tão simples; enfim, se o professor garantia ter ouvido ou ne-gava o tal choro que vinha de dentro da mata e ponto final. Era tudoque todos queriam ouvir. Mas ninguém ousava apressar o velho pro-fessor, que, como já lhe falei, tinha gosto em se prolongar, por acredi-tar que se expressava de forma exemplar.

– Mas, desculpe-me por interrompê-lo, professor... O senhor per-cebeu se o seu Lilico estava muito nervoso? – Arriscou minha mãe,tentando forçar o professor a concluir.

– Muito bem, dona Geralda. Conforme eu dizia, com o papoco,ou estouro do pneu, como prefiro dizer, nós nos assustamos, e issonos deixou claramente muito nervosos. Não só ele, como já disse; eutambém fiquei. Não é verdade, seu Lilico?

– Não, professor, me refiro a quando ouviram o choro da crian-ça que vinha da mata. – Insistiu minha mãe outra vez.

– Dona Geralda, eu ainda não falei em choros. Não é verdade,minha gente?

– Olha, aí! Tá vendo aí, gente? – Gritou o Gavião. – O professornão ouviu choro coisa nenhuma. Só o Lilico... o professor lá junto delenão ouviu nada – Reclamou, muito zangado e desesperançado, o Gavião.

– Mais como, professor? Si foi o senhô sozinho que iscutô pri-meiro e falou: “óia, seu Lilico, esse choro!” – Berrou, pra lá de nervo-so e muito confuso, o Lilico.

De repente se instalou uma confusão enorme. Todos falavam aomesmo tempo, e o professor tentava retomar o fio da meada. No

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entanto, todos falavam com todos e não se sabia quem se dirigia aquem. Minha mãe falou mais alto, tentando restabelecer a ordem:

– Deixem o professor continuar! Afinal, nós o convidamos paraele falar.

– É, mas ninguém tem a noite toda. – Reclamou Natalino, queera cunhado do professor e naturalmente tinha mais intimidade parareclamar e exigir o final do lengalenga.

– Bem, minha gente, que tanta agonia por nada. Olha, eu atéavisei o seu Lilico, porque, afinal, sabe como são essas coisas... Naverdade, eu tenho por modo me assentar da certeza de tudo, para daruma opinião mais positiva, e...

– Puta que pariu minha sogra! Ô trem cumprido, que não chega nun-ca, Duval. Tu escutou o tal choro ou não escutou? Quem está pra chorar soueu... – Berrou o agoniado Natalino, possuído de raiva do cunhado.

– Respeite as crianças e a casa dos outros, Natalino. – Respon-deu o professor, já meio embaraçado. – Olha, eu realmente ouvi umacoisa, um som muito esquisito, que vinha do mato e parecia muitocom choro de uma criança. Eu ouvi primeiro e avisei o seu Lilico. Nãoé verdade, seu Lilico?

– Não falei, Raimundão, que nós ouvimos um choro!? –Entusiasmou-se Lilico, após, finalmente, ver sua história confirmadapelo professor.

– E não bastava o Duval falar que ouviu? Agora, fica aí, enrolan-do toda a vida. Não é verdade, seu Duval? – Finalizou Natalino, usan-do o bordão do professor e imitando-o na voz rouca e lenta.

Todos que estavam lá no terreiro de nossa casa foram envolvidospelo clima da noite, que era muito peculiar no Combinado. Elas exala-vam mistérios, e acho que por isso todos ficaram assustadíssimos com aconfirmação da história do Lilico. Meu pai jurou que iria lá no bendito,ou maldito local ouvir o tal choro de perto. Gavião logo se prontificoua acompanhá-lo quando ele resolvesse ir ao mata-burro assombrado.

Aos poucos, todos foram mudando de assunto. Alguns, impulsi-onados pelo medo que a história e a noite causaram, foram sedespedindo e logo buscando suas casas ou alojamentos para dormircom mais aquele nó na cabeça em relação às histórias e lendas da estrada.

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Minha mãe falou para meu pai não procurar chifres em cabeça de ca-valo, procurando desestimulá-lo de ir até o tal mata-burro, e se reti-rou, buscando a cama.

Papai permaneceu um pouco mais, e continuou fazendo pergun-tas com muito interesse e desconfianças a Lilico. Ele queria muito maisdetalhes sobre o misterioso choro. Eu adormeci deitado naquele tron-co. Meu pai certamente levou-me até a cama, e não ouvi o fim da con-versa entre ele e Lilico. Meu pai ficou dias intrigado, resmungando,questionando, e sempre duvidando da possível existência do choro.Papai todo dia manifestava sua vontade de ir ao local, mas lhe faltavao mais importante: o transporte. Meu pai, naquele tempo, não possuíacarro e nem sabia dirigir. Mas seu interesse em ouvir o choro pessoal-mente era cada dia maior. Isso contagiava as demais pessoas, e logo eletinha uma legião de interessados em acompá-lo.

No dia seguinte, a história de Lilico tinha se espalhado pelo Com-binado. E como dizia mamãe: “terra pequena, inferno grande”. A con-versa, além de correr longe, estava muito aumentada e fantasiada.

No entanto, uma outra conversa, ou boato, toda contornada depossíveis verdades, era mais preocupante: a queda, a qualquer momento,do governador Mauro Borges, imposta pelos militares. Outro boatoque preocupava era a total falta de previsão do pagamento dos salári-os atrasados dos funcionários do Estado.

Ouvi, então, pela primeira vez, mamãe falar demonstrando pes-simismo com a situação em geral. Afinal, ela, que vendia fiado paraquase toda a colônia, temia entrar em dificuldades financeiras. Ela co-mentava com o marido, à noite, na cama, que o fiado estava muitogrande. Alguns colonos e funcionários estavam indo embora e, às ve-zes, esqueciam de acertar as contas no armazém. Mas a vida seguia noCombinado, e as esperanças eram muito grandes no sentido de que anormalidade voltaria em breve, ou algo de novo e bom pudesse acon-tecer a qualquer momento.

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O caboclo poderosoda mata fechada

MAMÃE era muito ocupada, mas não lhe faltava tempo parapromover seus cultos evangélicos nas casas dos vizinhos queaceitavam ouvir as pregações dela e de meu avô, que sempre a acom-panhava. Em uma das muitas noites de calor intenso e lua clara queiluminava o Acampamento, minha mãe foi fazer mais um culto,daquela vez na casa de dona Mocinha. Falando da maneira comofalavam no Acampamento, ‘vivia amigada’ com Zé dos Bode, ‘quepegava espíritos’, e quando possuído por eles, sempre aprontava mile uma confusões, por imposição do espírito que baixava nele. Mui-tos vizinhos alertaram minha mãe que não fosse àquela casa, pois o

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tal espírito que se apoderava de Zé dos Bode era muito agressivo enão respeitava nada e ninguém.

Mamãe, antes de sair, comentou com papai do seu receio sobreo culto que faria na casa do Zé dos Bode. Papai, sempre incrédulodessas coisas, recomendou a ela que fizesse suas orações e nada temes-se. E foi mais longe, afirmando que esse negócio de ‘pegar espírito’era falta de vergonha; disse ainda o que fazer e que certamente o Zédos Bode não teria coragem de fazer tamanho papelão. O culto foramarcado para às oito da noite, e começou pontualmente, com minhamãe agradecendo entusiasmada a presença de todos. Havia muita gen-te, quase oitenta pessoas, o que impossibilitou a realização do cultodentro da casa, como faziam de costume.

Geralmente, naqueles cultos, nunca iam mais de dez pessoas. Sem-pre eram os donos da casa que recebiam o culto, mais a minha mãe e omeu avô, sempre acompanhado de minha tímida e calada avó Hermínia.Mas a razão de tanta gente naquele noite era a expectativa do Zé dosBode ‘pegar espírito’. Daí a expectativa de um possível espetáculo. Quemjá tivera a oportunidade ver o Zé dos Bode tomado pelo espírito diziaque era um verdadeiro teatro de horror e baixaria, com boas pitadas dehumor. Pois o espírito que encarnava em Zé dos Bode era do tipo zom-beteiro, aquele que se apraz em caçoar.

O culto começara e o Zé dos Bode não estava em casa. Chegouum pouco depois e preferiu sentar-se no chão, tentando chamar a aten-ção de imediato. Estava com um olhar espantado, os cabelos despen-teados, a camisa desabotoada de cima até em baixo, descalço; fumavaum cigarro de palha, de fumo tão forte que o cheiro inundava todo oterreiro. Ficou em silêncio, com olhar atento sobre meu avô, que lia abíblia e explicava o teor aos presentes.

Zé dos Bode era um mulato baixo – não tinha mais do que ummetro e sessenta de altura –, de cabelos volumosos e lisos, bigodinhoralo; era muito musculoso e reconhecidamente trabalhador. Decomportamento irrepreensível, quando sóbrio e sem o tal espírito. As-sim que terminara a leitura da bíblia, meu avô convidou todos que assis-tiam ao culto para juntos cantar um hino. Quando os poucos e acanha-dos cantores se arriscaram acompanhar minha mãe, que iniciava o hino,

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o Zé dos Bode levantou-se e começou a pular de quatro, imitando ummacaco, e a bater palmas. Meu avô, com toda a polidez, disse:

– Seu José, esse hino nós não cantamos batendo palmas, e muitomenos pulando.

– Aqui não tem seu José! Aqui não tem seu José! – Respondeu,repetindo, Zé dos Bode.

– Tudo bem, seu Zé dos Bode... desculpe, o senhor prefere quelhe chame de... – Dirigiu-se minha mãe, com o semblante autoritário,repreendendo o homem, ou o espírito. Quem sabia, naquela alturados acontecimentos, precisar se homem ou espírito? Aquela repreen-são era uma tentativa de evitar maiores transtornos. Mamãe temia queo tal espírito já houvesse baixado no terreiro errado.

Zé dos Bode continuou resmungando e tentando intimidar.– I também num tem bode aqui não, minha cumade. É bom res-

peitar... Quero acabar com essa paiaçada aqui.– Então, quem é você? – Perguntou minha mãe, certa de que o

tal espírito tinha baixado.Ele passou a olhar para minha vó Hermínia, que estava ao lado

de mamãe.– Eu sou Romãozinho, véio falado. O que essa véia faz com esse

urubu em baixo do sovaco? – Ele se referia à bíblia da minha avó.– Aqui é o Romãozinho, caboclo poderoso da mata fechada.

Não quero conversa com vocês, não. Vai todo mundo embora!Uma vez declarado que o espírito havia baixado, minha mãe e

meus avós começaram a orar com todo o fervor. Tentavam expulsar oespírito do culto, mas a coisa só piorava.

O tal Romãozinho pulava no terreiro, gritava, imitava sons emi-tidos por animais, principalmente de cavalo. Relinchava tão parecidocom um potro selvagem, que quem estava de longe certamente pensa-ria que havia um cavalo em pânico por ali. Não satisfeito, o espíritocomeçou a derrubar as cadeiras e os bancos espalhados na frente dacasa. Algumas pessoas ficaram com medo e se afastaram; crianças co-meçaram a chorar. O espírito xingava todos de “filhos-da-puta” e “des-graçados”, e perguntava o que queriam no terreiro que era dele; cha-mava todos de “cambada de cornos e viados”. Afirmava, insistente,

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que o que tinha no culto era só viados e cornos, constrangendo ospresentes, que faziam o sinal da cruz. Ele, o espírito, partia para cimadas pessoas, que corriam, tentando escapar; uns iam, outros chegavame se amontoavam para ver as cenas. Em meio a berros e gritos doespírito, era possível ouvir:

– Sai, em nome de Jesus! O sangue de Jesus tem poder! Sai, emnome de Jesus! Oh! Senhor, mostra a tua presença e expulsa, Senhor. Osangue de Jesus tem poder!...

– Que Jizus e sangue nada! – Zombava o espírito. Poderaqui quem tem e manda nessa geripóca é eu e o Tranca-Rua. Euvou mandar outros espíritos baixar aqui pra me ajudar... quiá,quiá, ô, ô... êta lasquera do norte! – Gargalhava o Romãozinho. –Êta noite boa!... Aqui é meu lugar. – Seguia o Romãozinho comsua bagunça sem fim.

Desistiram de orar. Para o evangélico, é uma enorme frus-tração não conseguir expulsar os demônios. Afinal, não é possí-vel deixar o diabo vencer Jesus. A confusão era muito grande.Alguém tinha mandado chamar meu pai, pois o espírito começa-va a agredir minha mãe, chamando-a de crente fajuta, que ela sósabia era vender muito caro, aumentar preços; e de Deus, mesmo,ela não sabia nada.

Eu sempre desconfiei que meu pai gostava de aparecer, princi-palmente se houvesse por perto algum rabo-de-saia. Hoje em dia, mi-nha irmã Regina, que o observa muito, jura que ele realmente gosta.

Naquela noite, papai resolveu mostrar sua descomunal forçafísica. Ao chegar no meio da confusão, perguntou apavorado, em meioa tanta balbúrdia:

– Ué, Geralda, o que está acontecendo aqui?!Perguntou papai, olhando de cara feia nos olhos vermelhos do

Romãozinho, que até pareciam duas brasas abanadas.– O seu Zé dos Bode ficou desse jeito. Já oramos, fizemos de

tudo, e ele continua assim, cada hora mais esquisito. – Respondeu ma-mãe, trêmula.

– Quem é esse cara ispiculador, nojento? Num sabe que aqui é oRomãozinho falado, fazendo seu trabaio da sexta-feira?

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Entre o pessoal que assistia o culto estava o Dr. Moacir, um nissei;era um dos agrônomos das colônias. Ele, desistindo de permanecer nolocal, exclamou antes de sair, com a voz alta, se revelando surpreso:

– Esse sujeito merece é um tabefe no pé-do-ouvido.– Vem dá, seu fio de uma quenga do zói apertado! – Gritou o

espírito.Ao terminar de desafiá-lo para que lhe desse o tabefe, Romãozi-

nho, ou Zé dos Bode (sabe-se lá quantas entidades tinha naquele cor-po, para aprontar tanto e não se cansar), se zangou e partiu para cimado Dr. Moacir, empurrando-o.

O pobre japonês, coitado, quase foi ao chão. Meu pai, vendoaquilo, não suportou e partiu para cima do tal Romãozinho, que sedizia encarnado no humilde Zé dos Bode. Papai e Zé dos Bode, ouRomãozinho (como saber?), se atrelaram numa briga, rolando pelochão para lá e para cá.

Os dois eram muito fortes fisicamente, mas papai conseguiu dar-lhe uma gravata e em seguida uma rasteira. Romãozinho, ou Zé dosBodes desabou de costas, indo ao chão. Mas o Zé dos Bode tinha umfísico realmente privilegiado, tinha músculos de um touro enfezado.Levantou-se ligeiro e fixou os olhos em papai por alguns momentos e,em seguida, tentou socar. Papai aparou o soco, segurou-lhe o mesmopulso que usara para desferir o soco e, num golpe ligeiro, foi torcendoo braço do tal espírito, levando-o novamente ao chão.

Finalmente, após tanta luta, papai lhe aplicou um golpe que ele cha-mava de ‘chave-de-braço’, e começou a forçar o braço do homem, tor-cendo-o. Quem prestava atenção nos detalhes da luta torcia o nariz e fran-zia a testa, de dó do pobre Zé dos Bode. O homem não suportava mais ador no braço, quando papai gritou bem alto, tomado de ira:

– Vou quebrar e arrancar o braço desse infeliz, depois o espíritoemenda!

– Não faz isso, não, seu Raimundo! – Suplicou, aos berros, oespírito golpeado, ou simplesmente o homem acuado pelas dores,já aos choros. – Sou eu, José Machado, o Zé dos Bode. Pelo amorde Deus, não quebre o meu braço, não, senhor! O Romãozinho jáfoi embora...

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Depois daquele dia, como se falava no Combinado, O Zé dosBode não “pegou mais espírito”; passou muitos dias sem graça, sempoder encarar as pessoas. Aqui e ali, sempre brincavam com ele: “Debíblia o Zé não tem medo, mas dos golpes do Raimundão, aí ele viraum santo”. Tempos depois, fizeram novos cultos na casa do Zé dosBode, mas tudo transcorreu normalmente. A dona mocinha, sua mu-lher, como diz minha mãe, “se converteu pela fé”. O tal Romãozinhonunca mais apareceu nos terreiros do Combinado, pelo menos enquantomoramos lá.

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Colônias do Combinado – umsonho chegando ao fim

AS COISAS não melhoravam no Combinado; muito pelo contrário,pioravam rapidamente, dia após dia. Minha mãe havia chegado da beirado Rio Palma, o grande rio que banhava o Combinado. Ela, quando che-gou em casa, sentou-se de imediato do lado de dentro do balcão do arma-zém; atendeu uma menina que queria um pacote de fubá, entregou o paco-te, anotou na caderneta que a menina trazia e depois no caderno que con-trolava os fiados do armazém; e começou a passar as folhas do caderno.

Leu todas, uma por uma, e inevitavelmente foi tomando pé natriste realidade. Era muito dinheiro a receber e, se ela não tomasse asdevidas providências, talvez logo não teria mais como repor o estoque.

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Mamãe percebeu que era necessário fazer um balanço criterioso e tra-çar uma estratégia. Entretanto, não lhe agradava extinguir o fiado, erauma questão social. Mas não teria fôlego para continuar por muitotempo com aquela situação.

O pagamento do funcionalismo estadual já chegava a três mesesde atraso, indo para o próximo. A grande maioria dos fregueses deve-dores eram colegas de serviço de meu pai. Para uma cobrança maisrígida, havia um certo constrangimento. Era uma situação muito difí-cil, mas que teria que ser resolvida com urgência.

Era um sábado, havia chovido durante todo o dia. Aquele tipo dechuva fina e insistente. O sol naquele dia não apareceu, o que tornou o diatriste e aborrecido. Minha mãe, talvez influenciada pela melancolia do dia,demonstrava-se angustiada, parecia-lhe doída a alma. Poucas pessoas apa-receram pela manhã no armazém. Meu pai ouvia alguns discos em suavitrola e não percebeu a tristeza de mamãe. Eu percebi e perguntei:

– Mãe, você esta triste... É porque está chovendo?– Não é porque está chovendo. As coisas não me parecem bem

como ontem.– Então, mãe!, ontem não choveu e a senhora estava alegre.– As coisas na vida são muito complicadas, e vai chegar o seu dia

de ter suas preocupações. Hoje é dia de brincar. Mamãe só está pen-sando em umas coisas.

Mamãe estava sentindo e vendo por antecipação todos os pro-blemas que iriam começar a surgir no Combinado e em nossas vidas.Ela tem esse dom divino.

O governador Mauro Borges estava praticamente cassado, os salá-rios atrasados indo pelo quarto mês, e até o novo governador nomeadopelos militares se organizar e resolver tudo, o que seria do Combinado?

Era uma pergunta sem resposta naqueles dias. As colônias eram umprojeto muito pessoal do governador Mauro Borges. O novo governadortalvez não tivesse o menor interesse em continuar o projeto das colônias.

Diante dos fatos e das evidências políticas, grande parte doscolonos que tinham fé no projeto e trabalhavam duro na consolida-ção do Combinado, e até mesmo muitos aventureiros indiferentes àsorte daquela idéia, seguiram o exemplo do único alfaiate instalado

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no Combinado. Ele era o grande pregador do pessimismo e termi-nou se mudando para Uberlândia.

Muitos venderam o pouco que tinham: os animais, a velha cartu-cheira, a máquina de costurar e, às vezes, até os anéis do casamento.Vendiam por qualquer quantia, desde que alcançassem o valor de umapassagem para abandonar o Combinado.

Todos tinham medo de dias ainda piores, o que era plenamentepossível de acontecer. Foi quando, aos seis anos de idade, ouvi pelaprimeira vez a frase: “pior do que está não pode ficar”. Escutei-a doJoão Sola, que até hoje mora na região. Nunca a esqueci.

E embora eu tivesse apenas seis anos naquela época, foi possívelentender que a instabilidade de um governo causa enormes angústias edesarranjos na vida dos governados. Aquele povo do Combinado apos-tou tudo no sonho do governador Mauro Borges. E talvez até tenhasonhado e acreditado mais que ele próprio. No entanto, forças políti-cas alienígenas desconheciam os esforços do povo e do governo paraa realização daquele projeto.

As colônias da R-4, pouco a pouco, esvaziaram-se e logo foramcompletamente abandonadas. As casas ficaram largadas no meio domatagal que crescia, invadindo tudo, como se tentasse apagar uma aven-tura mal-sucedida. Muitas plantações e animais domésticos, como ga-tos, cachorros, porcos e galinhas, que viviam soltos, foram deixados àprópria sorte, ou talvez esquecidos.

Alguns equipamentos agrícolas do estado, de uso coletivo dos co-lonos, também ficaram entregues ao abandono e à ferrugem. A insegu-rança política desanimava os administradores das colônias, no zelo econtinuidade da rotina. Instalações públicas, como escolas e posto desaúde, foram deixadas por conta dos grilos, lagartixas, sapos e cobras.

Contavam que, em um depósito da R-4, uma onça pariu doisfilhotes, que foram capturados por seu Oliveira, nosso vizinho. O ma-tagal crescia de forma vigorosa, invadia tudo, anulando os caminhos eas poucas ruas abertas no conjunto de glebas.

Aqueles que insistiam em permanecer no Combinado temiam o fimdas demais colônias. A R-1, no entanto, a mais desenvolvida. Em termosde tamanho territorial e densidade demográfica, a segunda no ranking era a

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R-2; depois vinha a R-3. O que alimentava as esperanças de revitalizaçãodo Combinado e por fim conformava era saber que a R-4 sempre fora apior das colônias. Dr. Moacir, o agrônomo japonês, sempre dizia que látinha uma cabeça de burro enterrada, e por isso ela não ia adiante.

Certo dia, mamãe estava lavando roupas na beira do Rio Palmacom Maria Santana, nossa empregada, acompanhada de outras mulheres(eu, que sempre as acompanhava, mais uma vez estava junto), quandopassou um avião barulhento, voando baixo, chamando a atenção de todos.

Aquele avião trazia o pagamento dos funcionários do estado.Minutos depois, o Gavião, auxiliar de meu pai, veio, a mando dele,chamar a minha mãe.

Era um dia de alegria, pois o atraso no pagamento dos saláriosestava para completar quatro meses. No entanto, a alegria foi diminuída,pois só seriam pagos dois meses. Mesmo assim, era um dia diferente, eraum daqueles poucos dias em que se quebrava a rotina do Combinado.

Papai havia acertado com o pessoal do escritório encarregado dopagamento para fazer os descontos direto na folha dos funcionários quedeviam (e quase todos deviam) ao nosso comércio. Aquela atitude desa-gradou ao chefe-geral da cooperativa, o Sr. Braz, que sempre foi uminimigo oculto de papai, como sempre advertira minha mãe. Houve umbate-boca entre os dois, e daquele dia em diante não se falaram mais.

O Sr. Braz passou a perseguir papai, que é de temperamento explo-sivo – quando incomodado, transforma-se no verdadeiro estopim depólvora em pessoa. A partir daquele episódio, meu pai sempre ameaçavaque a qualquer hora terminaria dando um murro na cara do homem. Aquilotrazia enormes preocupações para mamãe. Um dia, eu a ouvi pedindo ameu avô para aconselhar papai a se controlar; mas vovô era a favor de quepapai desse realmente uma surra no tal Braz, que era antipatizado portodos, devido à arrogância e à prepotência no exercício de sua função.

Foi naquele episódio que descobri um dos motivos que contribu-íram para que papai deixasse São Paulo. Ele havia batido em um colegade trabalho em seu último emprego lá em São Paulo, machucando-omuito. É triste admitir que meu pai era do tipo que não levava desaforopara casa; enfim, brigava facilmente, talvez se prevalecendo de sua forçadescomunal, e por ter sido lutador profissional de luta-livre.

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Desvendando o misteriosochoro da mata

VOCÊ se lembra do que lhe falei da história do Lilico? Aquelahistória do choro de neném na mata? Pois bem, após o dia do pagamen-to, que aconteceu numa sexta-feira, tivemos, enfim, um sábado bastantealegre. As esperanças em alguns otimistas e embriagados renasciam, em-bora de maneira muito contida. De qualquer forma, uma coisa pareciaclara: o pessimismo perdeu espaço naquele final de semana, cedendolugar à alegria.

Lilico, o amigo de meu pai, havia chegado de Goiânia naquelamadrugada de domingo, e às sete da manhã já estava em pé, a contarsuas novidades e piadas, aglomerando pessoas a sua volta, lotando o

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espaço de atendimento do armazém. Logo chegou Natalino, outrofiel companheiro dos jogos de cartas que papai sempre promovia.

Aqueles jogos eram animados por doses de cachaça “Três Fa-zendas”, “Vinte e Nove” ou “Tatuzinho”, as mais apreciadas. Eu achavabonito aqueles rótulos coloridos nas garrafas, principalmente o dese-nho do tatuzinho, mas não compreendia como aquelas pessoas conse-guiam tomar aquele líquido de sabor e odor estranhos.

Natalino, logo que chegou, lembrou a história do choro de meninono mata-burro mal-assombrado. Lilico, que sempre era muito caçoa-do quando lembravam daquela história, tentou mudar de assunto, masnão logrou êxito. Logo, todos os amigos passaram a cobrar de papai apromessa de ir ver de perto o tal choro. Naquela manhã, entre umacachaça e outra, todos instigavam papai, cobrando sua valentia e avisita ao mata-burro, para conferir o tal choro.

Um amigo do meu tio Eliequim, conhecido no Combinado porFerrim, era metido a mecânico de veículos, mas não passava de um ra-pazola atrevido e presunçoso que gostava de estar entre os mais velhos.O tal Ferrim comentou, bajulando, que papai tinha resolvido o caso doespírito que baixava no Zé dos Bode e, portanto, poderia solucionar omistério do choro e (por que não?) também a história da criança que avelhinha doava e transformava-se em um demônio. No meio da alegriae coragem proporcionadas pela cachaça, o doutor Moacir, que gostavade estar no meio do pessoal jogando e bebendo, sugeriu o empréstimode seu jipe Candango, um carrinho muito barulhento da Vemag, commotor de dois tempos. Era o que faltava, o transporte. Imediatamente,todos, mais ou menos bêbados, combinaram sair às seis da tarde paraconferir o tal choro de uma vez por todas.

A turma chegou ao mata-burro mal-assombrado em torno dassete da noite. Além de papai, foram o doutor Moacir, Natalino, Ga-vião, João Sola e o professor Duval. Lilico se recusou a acompanhá-los, alegando cansaço, e, após ser zombado por Ferrim e Natalino,confessou “não querer brincadeira com coisas do além”. Os aventu-reiros, liderados por papai, já estavam sentados no mata-burro, espe-rando pela assombração, desde às sete da noite. A meia-noite se apro-ximou, chegou e passou; e nada do tal choro.

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Natalino começou a caçoar do encabulado professor Duval,empurrando o coitado para a “berlinda”, mas era com o intuito deanimar o restante do pessoal. Começava a ventar devagarinho, e a ven-tania aumentava aos poucos, incomodando a permanência do grupo.Todos pensavam que a chuva logo viria fazer-lhes companhia e com-plicar o retorno ao Combinado. João Sola, que estava um pouco afas-tado dos demais, aproximou-se, pedindo silêncio, e com a voz trêmu-la, mostrando medo de alguma coisa, disse:

– Crém-Deus-pai, minha gente! Eu ouvi alguma coisa diferentepor ali.

– O que foi, João? – perguntou papai.Todos gelaram. Parecia que o sangue fugia das veias. Caiu um

silêncio sepulcral entre eles, como se fosse de propósito, para escutaro que João dissera ter ouvido. Mas, inegavelmente, o medo tomoutodos de assalto. O silêncio se perpetuou por longo tempo, mas nãoouviam nada de estranho, só o vento soprando mansamente a mataescura, e dela se ouviam o canto dos grilos e alguns sapos a coaxar.

De repente, os caçadores-de-assombrações paralisaram a respi-ração; o coração quase saindo pela boca. O doutor Moacir chegou apassar mal e deixou escapar um gemido de dor ou de susto. Papaiestava deitado sobre as madeiras da estrutura do mata-burro, quasecochilando, e levantou-se rápido, tentando manter-se calmo. O pro-fessor Duval, de tão assustado, ficou sem voz, e os poucos fios de suarala cabeleira ficaram de pé. Gavião, que não abandonava sua carabi-na, ameaçou atirar, mas, sem saber para que rumo apontar a velhaarma, desistiu e preferiu focar sua lanterna mata adentro. João Sola,com sua voz fina e estridente, gritou:

– Valha-me, Deus! Raimundão do céu!– Calma, homem! João, tu é muito frouxo! – reclamou Gavião.– Fiquem quietos! – ordenou papai.Todos continuaram em silêncio. Poucos tinham a coragem de

desviar o olhar dos próprios pés e o dirigir para a mata, quando denovo um som assemelhado a um grito estridente e estarrecedor inter-rompeu assombrosamente o silêncio da mata. Parecia uma gargalhadacurta, que em seguida se calava. Não parecia voz humana. Novamente

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o estranho grito avolumou-se sobre os demais sons característicos dosruídos noturnos da mata.

O susto daquela vez fora menor, pois todos esperavam um novogrito. João Sola, muito assustado, espalhava medo aos demais. Com avoz que denunciava claramente seu terror e desespero, quase não con-seguindo falar, choramingou:

– Meu Deus do céu! Santa mãe de Deus! Que é isso, gente?– Esse é o homem que vem ajudar a caçar assombração? – recla-

mou meu pai, referindo-se a João Sola, que ficava cada vez mais assustado.Sorrindo muito, contendo-se para não soltar gargalhadas, papai,

que já havia conseguido identificar o estranho som, consolou seus as-sustados companheiros, pedindo-lhes que enxugassem as calças e quenão se assustassem mais. Então, ele disse:

– É só uma ou mais corujas caburé se procurando dentro da mata.Gavião sorriu e concordou dizendo:– Rapaz, bem que eu estava reconhecendo esse grito... É de co-

ruja mesmo!– Ué! Coruja?! É mesmo! O susto nem deixou a gente pensar... É

claro que é Coruja! – concordou Natalino.– Depois desse susto, melhor nós irmos embora.– Nada disso, professor. O trato era, e é, de dormirmos aqui. –

discordou papai.– Seu Duval, foi esse o som que o senhor ouviu daquela vez? –

perguntou Dr. Moacir, esperançoso de uma resposta positiva.– Não doutor, eu ouvi um som parecido com choro mesmo;

choro parecido de criança nova quando está com fome.– Então, vamos esperar o neném chorar, né, Raimundo? – con-

vocou Gavião.Todos concordaram em permanecer. Afinal, susto maior do que

já tinham experimentado seria impossível. Todos pensavam com seusbotões que um choro não poderia ser mais assustador que o grito dacoruja escandalosa no silêncio noturno da mata. O professor Duvalinterrompeu a conversa baixinha entre papai e João Sola. Com a vozdenunciando seu pavor e causando pânico aos demais, disse:

– Eu ouvi o choro... Silêncio aí, que vocês vão ouvir...

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– Vamos prestar atenção – pediu papai, espantosamente animado.Após um breve silêncio, o pânico tomava conta de todos. Para o

doutor Moacir, era quase incontrolável. O japonês e João Sola tam-bém eram muito medrosos. Diante do silêncio e da concentração detodos, eles realmente daquela vez puderam ouvir um choro bem baixi-nho e distante; parecia sair do assustador escuro da mata, que lá nofundo se encontrava com o negro azul do céu, sem luar nem estrelas,fazendo um horripilante escuro, tão silencioso que causava medo aqualquer mortal.

Agora a lenda parecia querer mostrar-se real e apontava seu dedomindinho para ser tocado e talvez permitir se desvendar; afinal, podiaser o choro da criança que a velhinha costumava entregar na beira daestrada para viajantes desavisados. Papai conta que se empolgou.

Natalino apontou o rumo exato de onde vinha o choro. Papai disseentão que iriam seguir mata adentro, para encontrar o local exato onde eleocorria. Mas faltou coragem aos presentes, e só o corajoso Gavião sedispôs a segui-lo. Natalino, ao perceber que os dois iriam sós, resolveuacompanhá-los. João Sola ficou indeciso, mas o medo de ficar longe e semo amparo dos três mais corajosos o fez se decidir a ir também.

Natalino falou ao Duval que a assombração gostava de aparecerpara pouca gente, e como o professor Duval ficaria só com Dr. Moa-cir na beira da estrada, a assombração viria assustá-los. Foi o suficientepara os dois decidirem seguir com o restante do grupo mata adentro.

Estavam equipados com lanternas, foices, facões, carabinas, fós-foros e querosene. Gavião ainda achou tempo e tranqüilidade parabotar em sua capanga de couro uma garrafa de cachaça, e ironizava asituação, dizendo que, de repente, a criança poderia querer um goli-nho. Ele perguntou a papai, que estava ansioso para entrar na mata:

– Raimundão, você não trouxe uma chupeta para o chorãozinho?– Deixa de brincar com coisa séria, Gavião – pediu João Sola.O vento aumentou muito, sacudindo a mata e varrendo o chão.

O choro também aumentou e já podia ser ouvido com clareza.Parecia tão próximo, que causava um medo jamais sentido peloscaçadores-de-assombração. O medo era tanto que alguns malpodiam continuar a caminhar.

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Papai, na sua volta ao Combinado, confessou que tivera certopânico pela surpresa do que poderiam encontrar. Fez também elogiosa Gavião, que se mostrou um homem inexplicavelmente desassom-brado. Todos se impressionaram com a coragem de Gavião e com opouco caso que fazia do assombroso choro.

O misterioso som continuava a desafiar a coragem e a crença detodos. Papai comentou com seus companheiros que aquele choro nãoera assim tão parecido com choro de neném, e pediu atenção redobra-da, recomendando que observassem com total frieza e sem medo – oque era impossível. Duval constatou que o choro estava ali mesmo,quase em cima deles, e lembrou, a despeito da observação de papai,que ele já havia comentado lá em casa, desde a primeira vez em quefalou sobre o assunto, que nunca afirmou ser um choro exatamente decriança, apenas muito parecido. O doutor Moacir, já mais controlado– afinal, ficar mais assustado era impossível, só se tombasse morto –,comentou que estavam em cima ou debaixo do choro, e afirmava comcerteza que o choro era de uma criança.

Papai concordou que realmente o local era ali. Parecia vir decima de uma das árvores. Não podiam ver nada, mas podiam ouvircom toda a clareza os sons intercalados de choro que já não era cons-tante; fazia pausas, como se a criança fosse consolada.

Natalino gostava de ouvir, ler e estudar tudo sobre assombraçõese coisas do gênero; ele sabia muito do assunto. Meu pai falava que tudonão passava de puro e ingênuo folclore. Todavia, Natalino explicou,com convicção, que é assim mesmo, a gente não pode avistá-las quandodeseja. As assombrações é que aparecem quando querem.

João Sola pedia, em voz alta, “pelo amor de Deus”, que a assom-bração não lhes aparecesse, e implorava à Santa Maria, mãe do meni-no Jesus, que os protegesse. Papai, já irritado com João Sola, disse:

– Que coisa, João Sola! Nós estamos aqui é pra ver que diacho éesse. E deixe de ser cagão e nos ajude a encontrar essa coisa que chora,porque tem que estar aqui. E não é assombração coisa nenhuma, vocêvai ver.

– Isso mesmo, gente! Está todo mundo ouvindo, só falta é a gentever – concordou Gavião, que focava sua lanterna para todas as direções.

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– Não tem cabimento, o choro é aqui mesmo e ninguém enxerga– protestava o professor Duval, de cabelos arrepiados e com a vozengasgada.

O dia começava a clarear devagarinho. Papai e seus companhei-ros caminhavam em círculo, vasculhando uma área de aproximada-mente cem metros quadrados, e o misterioso choro não revelava seudono. O dia já estava quase claro, e o danado do choro era ouvido emintervalos bem mais espaçados e muito mais baixinho. O vento sopravamenos, o frio já não castigava tanto. Todos estavam exaustos, molhadospelo orvalho e, acima de tudo, desanimados. Mas, repentinamente, omaior susto! Desde o início da caçada, ninguém imaginou que a as-sombração, ou o choro, podia não ser de uma criança.

Falavam tanto em assombração no Combinado, que logo asso-ciaram o choro a coisas malignas. Talvez compreendessem, se não pen-sassem tanto em assombração, que aquele choro – quem sabe? – po-deria ser até mesmo de um anjo bom que se encontrava aprisionadoou perdido por ali.

Todos estavam tão transtornados que, ao passar por um novosusto, o desesperado João Sola, coitado, desmaiou. Não era para me-nos: passaram toda aquela inesquecível e horripilante noite procurandoa razão e o dono do choro, mas foi em plena luz do dia que tiveramum novo e assombroso susto. Pois se sabe que as assombrações e coi-sas do gênero sempre aparecem de noite. Eu nunca ouvi alguém dizerque se deparou com esse tipo de coisa à luz do dia. Mas o medo, àsvezes, somos nós mesmos que construímos, com nossa imaginação edesconhecimento dos mistérios do mundo.

A razão daquele último susto que passaram e que levou JoãoSola ao desmaio foi um barulho muito estranho, mas que foi rapida-mente identificado por todos de forma unânime: era o ronco do mo-tor de um caminhão FNM que se aproximava do mata-burro e engre-nou marcha. O caminhão vinha em marcha neutra, na ‘banguela’, comodizem os caminhoneiros. Aquele era o primeiro veículo a passar pelaestrada depois que os caçadores chegaram ao local.

Todos concordaram em cessar as buscas e lamentavelmente vol-tar para casa sem solucionar ou poder explicar o mistério do choro, sem

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que pudessem também explicar a maior lenda das colônias: a da velhi-nha que entregava uma criança aos viajantes. No entanto, uma certezaaqueles homens passaram a ter: a de que realmente existia um misteriosochoro naquela mata.

Quando eles voltaram à estrada, encontraram dois homens emvolta do jipe do doutor Moacir, espiando o carro. Ao avistá-los, oshomens estranhos, com cara de surpresos, os cumprimentaram, e omais velho deles, com aproximadamente cinqüenta anos de idade,apressou-se em justificar o que faziam em torno do jipe. Doutor Mo-acir respondeu ao cumprimento e contou-lhes toda a história, justifi-cando, portanto, o que faziam ali na beira do Rio do Peixe.

Os dois homens estranhos, após o ouvirem, se soltaram emrisadas. O mais novo riu tanto que chegou a descontrolar-se. Meu paificou sem ação e com cara de bobo. Gavião ameaçou revidar, mas foiimpedido pelo professor.

O homem mais velho, que se chamava Adauto, disse-lhes que era aterceira vez que faziam viagem pela estrada. O destino final deles era acidade de Dianópolis, e levavam materiais de construção para a prefei-tura da cidade. E o mais jovem, que aos poucos ia conseguindo contro-lar os risos, tinha vinte e poucos anos e se chamava Josué. Era filho deAdauto e o ajudava no volante durante as viagens. Inacreditável! Parasurpresa de papai e de todos os seus companheiros, seu Adauto, apósreprovar os risos e as gargalhadas do filho, disse poder explicar o misté-rio do choro.

Detalhou o senhor Adauto que, na primeira vez em que viajoupela estrada, parou naquele local para avaliar a travessia pelo mata-burro e se encantou com a beleza do rio, pondo-se a admirá-lo. Seufilho, então, o avisou de que teria ouvido um choro. Teriam parado alipor volta das cinco horas da tarde. Adauto e Josué ficaram curiosos eentraram na mata procurando o som que parecia choro. Pensavam, ohomem e seu filho, existir uma casa ou alguma tapera nas proximida-des, com uma criança sozinha. Natalino, impaciente, como sempre,perguntou:

– Vocês encontraram a coisa ou a criança que chora?– Sim, encontramos – respondeu o jovem Josué.

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– Então nos leva lá – pediu meu pai.– Vamos lá, então. É bem ali – concordou o seu Adauto.Papai e os companheiros seguiram seu Adauto e Josué mata aden-

tro, agora sem medo, mas tomados de toda a curiosidade que se possasentir. E logo ali, a menos de vinte metros da estrada, pararam embai-xo de uma árvore, um enorme pé de angico, que se erguia ao lado deuma árvore ainda maior, uma aroeira. Seu Adauto, então, pediu a Na-talino, que era pequeno e magrinho, que subisse em uma das árvores,exatamente no pé de angico.

Natalino achou estranho, e creio que ficou com medo, mas su-biu, sob o gesto de aprovação de papai. Adauto também ordenou aseu filho que subisse na outra árvore, a aroeira. Quando os dois esta-vam no alto das árvores, seu Adauto solicitou a Natalino e Josué quetentassem alcançar as galhas mais altas e as balançassem com força.Quando atenderam ao pedido, todos se soltaram em risos e gargalha-das, pois não podiam acreditar no que viam e ouviam. O choro, com obalançar das galhas, ganhava imagem clara como a luz proporcionadapelo sol abrasador que iluminava aquele dia que despontava.

Sabe como acontecia o misterioso choro, meu amigo?Acomodei-me melhor na poltrona. O ônibus seguia lentamente

atrás de outros veículos, subindo uma serra. Então, eu respondi aomeu companheiro de viagem:

– Não tenho a menor idéia. Um macaco guariba chorava no altoda árvore?

– Que nada. Muito simples. Um galho do pé de angico cruzava comum dos galhos da aroeira, apoiando-se neste, e com os movimentos dosgalhos impulsionados pelo vento, ambos se friccionavam, produzindo sonsque imitavam, de maneira quase perfeita, o choro engasgado de uma cri-ança. Papai e seus companheiros não podiam mesmo acreditar que o somque causara tanto falatório e os fizera empreender tanto sacrifício paradesvendá-lo tinha uma explicação tão simples.

Tudo era, de fato, muito simples. E isso fez com que papai nuncamais tivesse coragem de comentar o assunto; pois era inaceitável, ou nomínimo constrangedor, dar aquela explicação a uma lenda tão viva eantiga na região. O segredo, com toda a sua simplicidade, foi desvendado,

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por mero acaso, pelo caminhoneiro Adauto. E dessa forma se pôs fimao misterioso choro de criança do mata-burro mal-assombrado.

Combinado tinha outras histórias e lendas, como aquela davelhinha que entregava a criança na beira da estrada para viajantes, a qualnunca foi explicada. Não só essa, mas muitas e muitas outras históriasaté hoje não se sabe, ao certo, se são verdadeiras ou pura lenda.

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As esculturas genitais: apaulistona e a goianinha

NAQUELE domingo, já anoitecendo, chegou de Goiânia um ami-go de Lilico, Geraldino, também motorista do Estado. Ele tentavadesfrutar de igual prestígio e amizade que Lilico tinha junto ao povodo Combinado, e principalmente de papai, que era a pessoa que criavaou inventava as festas e todos os motivos de animações no Combina-do, como os animados e famosos jogos de cartas, em que as apostaseram irrisórias, quase sempre no valor das despesas dos tira-gostosconsumidos durante os jogos.

O consumo das bebidas obedecia a uma regra pétrea: cada qualpagava a sua. Papai adorava companhia nas noites de suas freqüentes

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insônias, e quase sempre pagava por isso, pois perdia muitas noitesde sono. Às vezes, arrumava alguns desentendimentos em razão da-queles jogos. Era um tal de fulano roubou, sicrano guardou ou es-condeu as cartas embaixo da bunda... Mas na noite seguinte, todosestavam lá de novo.

Minha mãe reprovava aqueles jogos, mas nada podia fazer.Ela apenas suportava e entendia tudo como provação de Deus àsua fé. Orava muito. Todos os dias eu a via de joelhos, orando,quando acordava e quando deitava.

Geraldino, com o intuito de fofocar e por confessar antipatiapelo intragável Braz, denunciou o ‘inimigo oculto’ de papai – comosempre afirmava mamãe. Geraldino, com ares de bom amigo, cha-mou papai em particular para lhe delatar algumas atitudes quereprovava no seu Braz, que planejava tirar o emprego do meu pai,no Estado.

O Sr. Braz havia ordenado Geraldino a levar de volta para Goi-ânia várias peças que papai havia requisitado para manutenção dosgeradores de energia. Alegava o tal Braz serem desnecessárias taispeças, e declarou que foram pedidas por erro, segundo ele, por puradesídia de papai. O plano do homem era deixar o acampamentosem energia, tudo às escuras, e culpar papai pela situação. Meu pairapidamente foi à casa de seu Abílio e exigiu providências contra aatitude do Braz, que fora repreendido em público na segunda-feirapela manhã.

O fato muito preocupou mamãe. Ela sabia, que a relação entreeles iria piorar, e muito, pois aquele ‘inimigo oculto’ acabara serevelando e mostrando sua face covarde e traiçoeira.

Papai e Gavião gostavam muito de brincadeiras, e às vezes exa-geravam, por total vadiagem. Eles levantaram uma enorme polêmicano Acampamento sobre as diferenças existentes entre os órgãos ge-nitais masculinos dos paulistas e dos goianos. Indagavam eles: qual omaior e mais vigoroso? Papai e seu amigo Gavião encomendaramsigilosamente a um artesão, que trabalhava a madeira com rara habi-lidade, duas esculturas de pênis. O artesão era desconhecido em suaarte no Combinado. O artista, que não tinha oportunidade de exibir

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seu privilegiado talento, recebeu a encomenda com seriedade e apro-veitou com toda gana aquela oportunidade para exibir, mesmo ano-nimamente, sua arte.

A principal exigência era que os pênis deveriam ser talhadosem dois tamanhos: um teria que ser bem grande, com vinte e cincocentímetros de comprimento por quatro de diâmetro; o outro deve-ria ser talhado com míseros doze centímetros de comprimento emenos de dois centímetros de diâmetro, se muito, um centímetro emeio. Quando prontas, pintaram as glandes das “obras-de-arte” devermelho e as penduraram no beiral do telhado do escritório cen-tral, bem acima da porta da entrada principal. A escultura maiorsimbolizava a propriedade dos paulistas, e a menor representava osdotes dos goianos, que eram maioria nas colônias. Aquelas esculturasficaram conhecidas como a “paulistona” e a “goianinha”, e rende-ram muitas e inesperadas confusões.

A brincadeira deu muito o que falar. Alguns acharam muitoengraçado; outros protestaram – principalmente os goianos – esolicitaram providências contra os autores da anedota, que logo fo-ram descobertos.

O Sr. Braz, que era goiano, se sentiu ofendido e interpretouaquela brincadeira como uma provocação direta de papai à sua pes-soa. Diziam que o pobre homem nasceu quase sem pênis, razão desua infelicidade e constante mau humor. E ele passou a não cruzarseus caminhos com os de meu pai, e também evitava os lugares quepapai freqüentava. Certamente, o ódio gratuito e desarrazoado doSr. Braz passou a ser fermentado com maior intensidade, e assimele passou a alimentar, de forma desesperada, sua obsessão porvingança.

Mas papai era muito mais criativo e inegavelmente mais travesso,e contava com seu companheiro Gavião, que sempre lhe dava toda acorda e o auxiliava na criação das travessuras. Sei que papai era páreoduro para o vingativo Sr. Braz. Naquela época, papai estava com trin-ta anos, era jovem, e parecia adivinhar o que estava por lhe acontecerno futuro próximo. E, por conseqüência, a toda nossa família,infelizmente.

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A cassação de Mauro Borges

PAPAI se divertia com todos e com tudo que podia. Inventavade tudo: formava times de futebol, incentivava a formação de outrasequipes, e, assim, ele era o coordenador de acirradas disputas de tor-neios no futebol. Os torneios ganharam dimensões intermunicipais.Além dos torneios, era da iniciativa dele as animadas noites de forrónas colônias, mesmo naquelas mais distantes.

Papai e seus amigos caminhavam horas para chegar aos locaismarcados para as festas. As noites eram realmente muito animadas, ecertamente valiam a pena as longas caminhadas. A música era produzidaapenas por uma sanfona, um pandeiro e uma zabumba, que era tocadapor seu Pedro Flores; Abelardo de Elisa era o maioral na sanfona; eJoão Grilo fazia cada uma com o pandeiro! Era de causar espanto.

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Eles eram, ou melhor, são grandes músicos. Queira Deus que aindaestejam vivos. Como tocavam, aqueles três!

No terreiro da casa do colono anfitrião, os demais colonos con-vidados esqueciam a noite. Só se davam conta da realidade quando osprimeiros raios de sol clareavam o terreiro, expulsando a madrugada.Mamãe não gostava das festas, como também não gostava dos jogosde cartas, e por isso vivia contrariada com tantos desses eventos orga-nizados pelo marido.

Em São Paulo, papai era um evangélico fervoroso. No Combina-do não havia igreja, e a falta do povo evangélico fez papai conviver compessoas que apenas se divertiam. Aquilo incomodava mamãe.

Apesar daquelas noites de alegria, das emocionantes partidas defutebol e de toda a luta contra o pessimismo, a situação nas colôniasestava muito ruim e piorava dia a dia. Só mesmo seu Raimundo, comsua inesgotável criatividade, para proporcionar alegria a elas! Mas asasas da tristeza insistiam em planar sobre o Combinado, que começa-va a contar seus dias finais de proteção do Estado.

Todos sabiam que o governo militar a qualquer momento cassa-ria Mauro Borges. Os agrônomos, veterinários, médicos e outros pro-fissionais graduados do Estado já tinham deixado o Combinado. Pou-co a pouco, todos se foram. Não houve ideal (que esses profissionaissempre alardeavam possuir) que os mantivesse no lugar. Não espera-ram a última hora; todos se renderam às evidências, abandonando oscolonos e as idéias de Mauro Borges.

Meu pai, eterno desafeto das tristezas e dificuldades da vida, na-queles dias já não externava sua inesgotável e contagiante alegria. Naverdade, a incerteza dos dias que viriam sob o governo dos militaresnão permitia alegria a ninguém.

Numa terça-feira, foi-se de mudança do Combinado para Goiânia oúltimo médico da colônia, o paciente e bondoso Dr. Peixoto. No dia seguinte,de surpresa, um outro importante funcionário se foi, um tal Arapuã. Nãorecordo o que ele fazia; só sei de sua presunçosa importância: vivia sempredistante de todos e trajava-se com exagerado garbo; possuía um carro preto,muito bonito, que sempre ficava estacionado em frente à casa dele; esta eramuito maior que as demais e muito bem caiada, de cor branca.

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Três dias depois, os colonos e funcionários, que faziam da espe-rança a última resistência aos dias de dificuldades e abandono pro-gressivo, receberam a notícia que nunca quiseram ouvir. Incrédulos,todos ouviram no boca-a-boca correr a notícia da cassação do gover-nador Mauro Borges.

Estava oficialmente declarado o fim do governo do homem quesonhava e fazia sonhar. As colônias foram acolhidas pela tristeza, deforma avassaladora. Até parecia que acontecia o sepultamento de umparente muito querido de todos. O sol, parecendo dar as mãos ao crueldestino forjado pelos militares, não despontou naquele dia. O dia nubla-do e escuro só aumentava a melancolia e a frustração, que se refletiamnitidamente no rosto de cada colono e também na grande maioria dosfuncionários do Estado, dos mais humildes aos mais elevados.

Eu, com meu coração de criança, percebia tudo, mas não conse-guia entender tantas lamúrias e tamanho desânimo por parte daquelagente. Todos lamentavam ao mesmo tempo. Era como se de repentetodos tivessem perdido o pai ao mesmo tempo, numa triste emboscadado destino, tornando-se órfãos no mesmo instante.

A desolação tomava conta de todos nas colônias. As pessoas sejuntavam em pequenos grupos, em frente ao escritório central. Vistosa distância, era uma grande aglomeração de inconformados. Todosbuscavam mais detalhes da notícia, ou, quem sabe, um consolo. Ascenas dos grupos sem rumo tornaram possível mensurar o tamanhodemográfico das colônias. Era muito mais gente naquela região doque se imaginava.

Toda aquela gente perturbada e desiludida caminhava de um ladopara o outro, numa tristeza que só Deus podia compreender. Os colo-nos perambulavam numa busca inútil de novas notícias e de consoloentre si mesmos e aos poucos funcionários do Estado que apareciam.No entanto, nenhum deles tinha condições de falar oficialmente em nomeda administração das colônias, e muito menos em nome do governo quedeixava de existir. O administrador geral das colônias, seu Abílio, nãoseguiu para Goiânia, como muitos. Permaneceu e morreu no Combina-do; mas havia se mudado do Acampamento para a R-1 há muito tempo,talvez para fugir dos problemas, que sempre cresciam.

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No Acampamento, no dia do anúncio da cassação de MauroBorges, parecia que todos buscavam esperançosos um desmentido paraaquela notícia que usurpava um plano de vida e uma rotina acomoda-da. Talvez, pela turbulência do momento, buscassem algumas pala-vras, dando mesmo vagas esperanças de que tudo acabaria bem.

No entanto, a única notícia que todos no Acampamento ouvi-ram naquele dia negro do anúncio da cassação do governador era queseu Abílio viria ao Acampamento mais tarde e talvez falasse algo queos tranqüilizasse. Mas o que gostariam de ouvir era impossível: todossonhavam com a permanência do governador. No entanto, MauroBorges realmente estava deposto, e naquela altura dos acontecimentospolíticos era um pesadelo diurno a ser assimilado, durante muitas elongas noites, pelos colonos do Combinado.

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O homem mais guloso do mundo

NO DIA seguinte, minha mãe conversava com papai sobre ascontas a receber e o lembrava de que novamente os salários esta-vam com três meses de atraso. Surgia mais uma preocupação: operíodo de indefinição entre a queda do governador Mauro Bor-ges e a nomeação do novo governo. Calculavam meus pais levarmais tempo do que pudessem esperar para a devida regularizaçãodo pagamento dos salários.

O receio de ficarem seis meses ou mais sem receber os apavora-va, pois, em razão das circunstâncias, talvez nunca mais recebessemseus créditos. Para piorar, não tinham documento nenhum que os com-provasse. Os devedores geralmente eram vizinhos, amigos ou conhe-cidos de amigos, sendo que muitos compravam usando só o apelido

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(meus pais nem o nome sequer sabiam de muitos dos devedores).Vendiam para aquela gente na base da confiança e boa-fé. Acredita-vam apenas na moral dos colonos.

Papai, talvez para tranqüilizar minha mãe, disse que falaria comseu Abílio e o pessoal do escritório para estudarem uma possibilidadede auxiliá-los no recebimento dos créditos nos dias de pagamento.Papai, como sempre, muito otimista, tinha certeza de que isso aconte-ceria muito rapidamente.

Os dias passavam rapidamente para o vencimento das contas, eos credores do armazém não levavam em consideração a nova situa-ção política vivida pelo Brasil, pelo estado do Goiás e, por extensão,pelas colônias, que eram totalmente dependentes do estado. Queriamreceber seus créditos de qualquer maneira, receosos, pois todos dali,naqueles dias, se mudavam de uma hora para outra. Minha mãe se pre-ocupava muito, o que lhe fez despontar os primeiros fios de cabelosbrancos. Entretanto, papai chegou com novidades animadoras: tinhaouvido falar que o novo governador nomeado pelos militares honra-ria os salários em atraso.

O novo governo pagou realmente os salários atrasados, mas oprojeto de colonização fora completamente abandonado. Com a novapostura do governo militar, todos os colonos passaram a enfrentarmuitas dificuldades: ficaram sem assistência médica, as escolas foramfechadas e aquilo que o estado ainda mantivera funcionando (já queera pouco) foi sendo desativado muito rapidamente.

A maioria dos funcionários estáveis se transferiu ou voltou paraGoiânia e Anápolis. Os colonos tiveram que se arranjar, e passaram aviver realmente do que plantavam e da solidariedade dos mais afortu-nados, pois nem todos estavam preparados para aqueles novos diasde plenas dificuldades e incertezas. Muita gente, mesmo com o dinhei-ro na mão, não encontrava comida e outras mercadorias essenciais àsobrevivência. Assim, surgiu uma grande onda de fome naquela épocapor toda a região. Quem podia, seguia até Barreiras, no Estado daBahia, para comprar o que comer. Eram dias de horror e sacrifícios.Aqueles foram os piores dias de dificuldades que o povo do Combi-nado conheceu.

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Minha família mudou-se para a R-2, que fazia divisa com a La-vandera, um antigo povoado – hoje é município do Tocantins, o me-nor do Brasil, e fica do outro lado da velha ponte de madeira sobre oRio Palma. A nossa mudança ocorreu devido ao marasmo administra-tivo que se estendeu sobre todo o Combinado. As coisas do estadoforam atiradas ao mais completo abandono, e o Acampamento perdeumuito da sua razão de ser. Papai ficou sem ter o que fazer, sem chefedefinido e sem receber salários. Enfim, uma ruptura de comunicação ezelo administrativo aconteceu após a cassação do governador.

Meus pais, ao chegarem à R-2, plantaram uma horta, a mais bo-nita e produtiva que a região já tivera (talvez até hoje não tenha sidosuperada, até porque acredito que ninguém nunca mais se interessouem plantar uma horta daquele porte na região). Havia só um empregadopara cuidar da horta, o seu Otacílio. Acho que ninguém lá em casa selembra dele. Eu nunca o esqueci, pois aquele era o homem que maiscomia no mundo! Sem exagero, posso afirmar que ele comia mais quetoda a nossa família junta. Como esquecê-lo? Eu quase apanhava paracomer, enquanto ele repetia o prato várias vezes! Mamãe, desanimadalhe perguntava: “Mais um pouquinho, seu Otacílio?”, pensando quefinalmente era o fim da gulodice. Ele, então, sorria, botando a mão naboca e olhando para os lados – até parecia desafiar mamãe quandorespondia: “É, mais uma narisgadinha só”. Papai cuidava do motor deluz (gerador) da R-2, o único que continuava a funcionar no Combina-do, e também da horta.

O armazém de minha mãe tinha perdido muitas vendas e foitransferido para a R-2. Voltou a melhorar, ganhando fregueses de varejoque residiam na Lavandera e em uma outra cidadezinha localizada umpouco mais adiante, chamada Aurora do Norte.

Meu pai continuava trabalhando na R-2, embora sem recebersalários e sem saber se ainda continuava funcionário do estado. Mas,com toda a disciplina que o caracterizava, montado em sua bicicleta“Philips”, visitava o Acampamento três vezes por semana, com a fina-lidade de inspecionar o almoxarifado, que ficara sob sua responsabili-dade, num acúmulo de funções devido à transferência do funcionárioencarregado do setor.

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Papai e outros poucos funcionários estaduais, com muitos espe-rançados colonos, ficaram no Combinado à espera de dias melhores.Rezavam por uma possível reorganização político-administrativa doCombinado, o que nunca mais aconteceu. Pelo menos não nos moldesdos bons tempos do governador Mauro Borges.

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A carona para o desespero –início de uma tragédia

EM um fim de tarde chuvosa, numa segunda-feira, chegouao Acampamento um grupo de homens vindos de Goiânia. Eramfuncionários do estado. Papai foi chamado às pressas para umareunião. Poucos dias após aquela reunião, retornamos de mudan-ça ao Acampamento, sob os protestos de minha mãe, que viviaempolgada com a horta e uma próspera criação de porcos e gali-nhas. Papai, consolando-a, prometeu uma nova horta, bem maiore mais diversificada; prometeu ainda que levaria os animais paranossa casa no Acampamento, que continuou vazia enquanto per-manecemos na R-2.

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Papai não cumpriu a promessa quanto à horta (acho que foi sim-plesmente para se livrar de seu Otacílio). Porém, construiu uma pocil-ga de fazer inveja a muita gente. Eram tantos porcos!... Não sei o quemeu pai fazia com todos eles, naquele sertão de pouco consumo decarne suína. Além dos porcos, logo passou a criar ovelhas e cabras.

Eu gostava muito de caminhar pelos arredores do Acampamen-to e pela estrada que dava acesso ao Combinado, às vezes acompanha-do de outros meninos da mesma idade; mas eu preferia caminhar sozi-nho. Minha mãe proibia, mas as surpresas da floresta incomodada eum pouco modificada pelos rastros da colonização, me atraíam. Na-quelas caminhadas, lembro-me de que vi muitos bens do estado aban-donados por todo o Combinado.

Era no Acampamento que as conseqüências da cassação do go-vernador se exponenciavam. Ali se concentravam os maiores abando-nos e desperdícios: veículos sucateados, motores, muitos equipamen-tos agrícolas, ferramentas diversas, até materiais de expediente semuso se encontravam jogados dentro de escolas, hospitais e outras ins-talações de uso público desativadas. Enfim, uma grande quantidadede materiais e equipamentos necessitavam de cuidados e armazena-mento. Aquele desperdício e abandono era um sinal visível do estragoque a interrupção do governo eleito democraticamente pelo povogoiano ocasionara.

Papai fora incumbido, com outros três funcionários, de fazerlevantamento dos materiais existentes e, na medida do possível, abri-gá-los, para serem transferidos futuramente para Goiânia ou outra ci-dade do estado, a qual o novo governo iria determinar em breve, se-gundo afirmavam os visitantes que chegaram na segunda-feira.

Existiam, entre as grandes quantidades de materiais espalhados edeixados em pleno abandono, nos quatro cantos do Combinado, enor-mes carretéis feitos de madeira, nos quais estavam enrolados quilômetrose quilômetros de cabos de cobre e alumínio, condutores de energia elétri-ca. Os cabos eram destinados às obras e serviços de eletrificação das colô-nias. Obras essas que nunca foram concluídas. Em muitas das glebas, se-quer foram iniciadas. O material elétrico abandonado nas colônias valiamuito dinheiro. E o mais importante: tinha liquidez imediata.

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Papai não sabia ao certo se permanecia funcionário do estado.Não recebia salário e corria o boato de que o novo governo havia demi-tido todos os funcionários e iria fazer novas contratações. Mesmo assim,cumpria todas as obrigações e se esforçava em manter sua rotina detrabalho, pois ninguém o havia demitido ou comunicado a ele formal-mente qualquer coisa. Alguns meses se passaram e aos poucos as coisaspareciam se encaminhar em termos administrativos no Combinado.

Naqueles momentos inquietantes, de muitas incertezas e apreen-sões devido à organização do novo governo que se instalava em Goi-ânia, as notícias chegavam aos poucos, incompletas, distorcidas e àsvezes forjadas no interesse de alguns chefes.

Papai recebera ordem, de um novo e desconhecido chefe, quedevia ser cumprida com urgência: recolher os cabos e todo o materialelétrico existente nas colônias e enviá-los a Brasília. Informaram queuma firma estabelecida no Núcleo Bandeirante, cidade-satélite de Bra-sília, havia adquirido todo o material em leilão promovido pelo novogoverno do Estado de Goiás. A ordem e a notícia do novo destinodos materiais foram transmitidas por meio de um singelo documentoassinado sob carimbos, que foi entregue ao meu pai. O documentoordenava a liberação dos materiais que estavam sob sua guarda.

Aqueles cabos eram de altas bitolas – pesavam muito, era muitocobre e alumínio – e foram acomodados em dois caminhões do estadopara serem transportados.

Naqueles dias, minha irmã Regina, com pouco mais de dois anosde idade, estava muito doente e precisando de tratamento médico comurgência. Esses tratamentos não eram possíveis no Combinado. Aliás,nem em Arraias, a maior cidade daquela região, distante cerca de trêshoras de carro do Combinado. Tudo que faltava no Combinado seresolvia em Arraias: bancos, pequenas cirurgias, problemas de políciae justiça. Mas em Arraias não havia médicos que atendessem minhairmã. Por isso, meus pais se obrigavam a levá-la a Brasília ou a Goiâ-nia. No entanto, havia uma preocupação a mais para complicar a en-fermidade de minha irmã: a falta de transportes para essas capitais.

Alguém sugeriu que minha mãe pegasse carona em um doscaminhões que transportaria os cabos e materiais elétricos até Brasília.

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Papai solicitou ao chefe de transportes a carona. Infelizmente, não foidifícil: conseguiu, apesar dos muitos pretendentes e necessitados. Sabepor que digo “infelizmente”? É que, se aquela carona era tão impor-tante, foi por intermédio dela que o mundo começou a desabar nacabeça de meus pais e sobre toda nossa família.

Papai, apesar das muitas mudanças no governo, ainda era umapessoa influente ali no Combinado; além do mais, tinha um caso com-provado de doença grave na família. Como minha mãe exigiu que elea acompanhasse, meus pais seguiram viagem juntos para Brasília. Elestemiam muito pela vida de Regina. Além da doença, preocupavam-setambém com a longa e esburacada estrada, que quando chovia trans-formava-se num grande lamaçal, o que aumentava o tempo da viagempara mais de trinta horas, chegando mesmo a durar dias. Atualmente,de ônibus se faz a viagem do Combinado a Brasília no máximo emoito horas.

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Golpe de mestre: a vingança

QUANDO os caminhões chegaram no Distrito Federal e passa-vam por Sobradinho, distante quarenta e cinco quilômetros do Nú-cleo Bandeirante, a cidade destino, foram interceptados pela polícia.Os policiais pediram aos motoristas a documentação dos caminhões,dos materiais e dos equipamentos. O motorista do caminhão em quemeus pais viajavam mostrou somente a documentação do veículo. Fal-taram alguns papéis, mas ele argumentou que o caminhão era “chapabranca”, carro oficial.

O policial respondeu não estar preocupado com os caminhões,mas com a procedência dos materiais. Meu pai, que tranqüilamenteassistia a tudo, resolveu intervir, identificando-se como funcionáriodo estado. Tentou explicar a situação e exibiu aos policiais um

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documento que autorizava o transporte das cargas até o Núcleo Ban-deirante. Mas ele e os motoristas foram surpreendidos com o anúncio,pelos policiais, da apreensão dos veículos e das cargas. Afirmaramainda que o documento era falso. Os policiais, em razão de denúnciaanônima, aguardavam a passagem dos caminhões.

Logo, meu pai, acompanhado dos motoristas e do funcionárioencarregado de entregar o material para a firma, a suposta compradorada carga, foi conduzido a uma delegacia de polícia de Brasília. Meu pai,quando entrou na delegacia, fazendo mil e um raciocínios sobre o quepoderia estar de fato ocorrendo, avistou-se com o Sr. Braz, seu velhoinimigo. É... aquele velho inimigo estava na delegacia exatamente de-pondo sobre a transferência dos materiais e equipamentos do Combina-do para a firma compradora – e acima de tudo operando sua vingança.

Meu pai rapidamente entendeu estar numa encrenca de difícilexplicação e, ao pisar na delegacia, apressou-se em informar, mesmosem ser interrogado: “O material é desse moço aí. Foi ele que enviou odocumento para o material ser mandado para cá”. Na verdade, existiauma grande trama naquilo tudo. O moço que meu pai afirmava ser odono do material era o Sr. Braz.

Novelista algum, por mais criativo que fosse, imaginaria enredotão intrincado e confuso. Até hoje, essa parte da história eu não seibem, me faltam detalhes sobre o que o Sr. Braz aprontou de fato na-quilo tudo. Mas isso não interessa. Realmente, a transferência era frau-dulenta. Os documentos que ordenavam toda a operação de vendas etransferência dos materiais eram falsificados.

Papai, os dois motoristas e o funcionário do estado permanece-ram longo tempo na delegacia de polícia. O funcionário, forçado pelapressão dos policiais, confessou que não era funcionário estadual coisanenhuma. A confissão complicou muito mais a situação. De maneiraque todos eles, os motoristas, papai e o falso funcionário do estado,como personagens daquela história, estavam pra lá de complicados.Eles tinham muito que explicar e, acima de tudo, provar à polícia quenada tinham a ver com aquela história sem pé e sem cabeça.

Minha mãe foi rapidamente liberada e saiu à procura de um hospi-tal para internar minha irmã. Meu pai, os motoristas e o falso funcionário

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estadual ficaram detidos. Enquanto foram “hóspedes” das celas da 1.ªDelegacia de Polícia de Brasília, ficaram sem refeições regulares por maisde quarenta e oito horas. Um dos policiais se compadeceu deles e lhesofertou sanduíches de mortadela com refrigerantes. Outros policiais que-riam explicações que eles não conseguiam dar.

Sofreram várias ameaças de que seriam espancados para confes-sar a trama e denunciar os demais envolvidos. Naquela altura dos acon-tecimentos, estava claro para a polícia que se tratava de um roubo, e osvalores envolvidos eram muito elevados. Não demorou muito para apolícia de Brasília entender que o caso era de competência da justiçado Estado do Goiás, e dar início aos procedimentos legais para a trans-ferência deles para Goiânia.

Minha mãe, diante daquela situação, apavorava-se mais do quedevia. Ela não conhecia Brasília, tinha dificuldades em entender seusendereços, formados por siglas e números. Dividia-se entre o hospitale a delegacia de polícia. Não sabia a quem acudir primeiro, se ao maridoencarcerado ou à filha hospitalizada. Queria contratar um advogado,mas os contatados cobravam muito caro. Alguns, atraídos pela belezade minha mãe, faziam propostas inaceitáveis. Meu pai a orientava nosentido contrário: dizia não ser necessário gastar com advogado, emface de sua inocência.

Devido à inexperiência de meu pai com a justiça, ele acreditavaque logo tudo seria esclarecido e estaria livre. No entanto, o delegadodo caso comentou com minha mãe que papai estava totalmente impli-cado naquele caso e não sairia facilmente da cela; e que seria transferidopara Goiânia, distante de Brasília aproximadamente 180 quilômetros,o que só iria aumentar os transtornos dela.

Minha mãe não conhecia ninguém em Brasília, tampouco emGoiânia. A polícia era muito truculenta na época – além da falta depreparo intelectual e educação formal, a ditadura inspirava os polici-ais nas crueldades e arbitrariedades. Eles impediam minha mãe de fa-lar com papai, e assim o desespero dela era muito maior, pois nãotinha com quem conversar ou se aconselhar.

Diante de tudo aquilo, ela resolveu contratar um advogado. Comoos dois primeiros insistiram com propostas inaceitáveis, ela contratou

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mesmo contra a vontade do marido uma jovem advogada, de muitopouca experiência. Mesmo assim, a advogada seria uma pessoa a estardo seu lado, e alguém lhe informou que ela podia falar com papai aqualquer momento e, inclusive, levar mamãe até a cela dele.

Certa manhã de terça-feira, muito fria e com o ar de baixa umidade(isso era apenas mais uma entre tantas dificuldades enfrentadas), ma-mãe obrigou-se a deixar minha irmã sozinha no hospital e reuniu to-das as forças que lhe restavam para se controlar e não se deixar tomarpelo pânico. Ela estava muito gripada e tossia bastante, e havia passa-do a noite na enfermaria do hospital, sentada numa banqueta ao ladoda maca de minha irmã.

Naquele dia, minha mãe foi ao escritório da advogada, que ficavapróximo ao hospital, em um edifício de nome Maristela, no Setor Co-mercial Sul. Quando ela chegou no edifício, quase caiu desmaiada naportaria. E enquanto aguardava o elevador, ouviu o porteiro comen-tar com outras pessoas uma notícia que ele lia no principal jornal dacidade, era sobre um grande roubo de materiais elétricos, que impor-tavam em milhões, ou talvez bilhões, de cruzeiros – não sei precisar ovalor, principalmente o valor da época; sei que era dinheiro grosso.

O jornal noticiava que os funcionários do Estado de Goiás quetinham feito o roubo foram flagrados e presos quando tentavam en-tregar a carga ao receptador, em Brasília. O porteiro exibia a páginado jornal que mostrava a foto de dois acusados. O susto de mamãe sónão foi maior porque nenhum deles era o meu pai. O jornal exibia afotografia do falso funcionário estadual e de um dos motoristas. Operiódico noticiava verdades, mas com estardalhaço, e exagerava nosvalores das mercadorias.

O interessante é que o jornal não exibia a foto dos verdadeirosladrões, que mais tarde apareceram. Tratava-se de “gente graúda”, defamílias tradicionais na política, sendo que alguns dos envolvidos faziamparte do governo. Por isso, não foram punidos até hoje, muito menosexpostos com a mesma publicidade que papai e outros inocentes foram.

Minha mãe saiu do escritório da advogada e foi à delegacia deses-perada, devido à matéria do jornal. Sentia-se um farrapo de gente, mui-to pequenina diante de tantos problemas. Quando chegou à delegacia, o

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mundo desabou de vez sobre sua cabeça: papai havia sido transferidopara Goiânia. Ela tentou conseguir informações quanto ao número dotelefone e endereço da delegacia em Goiânia, mas não obteve êxito.

Tudo acontecia muito rapidamente. Em pouco tempo, mamãevia o mundo se voltar em crueldades e surpresas amargas contra ela.O marido estava preso e sumido; a filha, hospitalizada; e ela, que tinhaa alma ferida desde criança, sentia o corpo pesado com um coraçãocada vez mais diminuído.

Para piorar, mamãe já estava quase sem dinheiro, pois os poli-cias extorquiram quase tudo que ela e meu pai haviam trazido. Elanão tinha como se comunicar com os parentes de papai que estavamno Combinado (imagine telefone quatro décadas atrás!); em Brasília,não tinha amigos ou mesmo o endereço de um só conhecido. Pobredona Geralda!

É que mamãe, naquela época, era uma jovem de vinte e cincoanos de idade, muito inexperiente, uma mulher que sempre havia leva-do uma vida acomodada e muito simples como dona-de-casa do inte-rior. Aliás, era – e é – só uma simples dona de casa. E, como já diziaaquela música, estava “sem lenço e sem documentos”. Enfim, não ti-nha nada. Na verdade, tudo o que tinha era um complicado inquéritopolicial em uma cidade desconhecida.

Ela, quando saiu da delegacia pela última vez, controlou-se, ten-tando evitar ou adiar uma enorme crise de choro que invadia os seussentimentos. Ela não queria chorar diante de estranhos. Ao tirar os pésda sala de atendimento da delegacia e despedir-se da advogada noestacionamento, sentiu-se sem forças até para caminhar. Arrastava-selentamente, e antes que caminhasse os primeiros vinte metros, encos-tou-se numa pequena árvore, firmou a testa no tronco e desabou-seem prantos. Sentiu-se a pessoa de menor sorte do mundo e completa-mente desamparada.

Embaixo da árvore, pouco a pouco, foi se lembrando de tudoque aconteceu em sua vida. Recordou-se de todo o seu passado, desdecriança até chegar àquele dia, que ela acreditava ser o pior de sua vida,sempre tão difícil e sofrida. Por mais que ela se esforçasse, não com-preendia a razão de tudo aquilo.

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Agora, tudo está no passado, findou-se; mas ainda hoje tenhomuita pena dela.

Ainda hoje a árvore está lá, agora muito maior. Muitos anos de-pois, eu e mamãe, visitando o Parlamundi, da LBV, em Brasília (quefica pertinho da delegacia, que, segundo mamãe, em nada mudou), elame mostrou a árvore, um flamboyant, e disse: “Se essa árvore falas-se... sei que ela se recorda de mim... só não pode é falar...”.

Tudo o que mamãe tinha sofrido até aquele dia em que o pé deflamboyant foi seu amigo mudo, tenha certeza, não era nada secomparado ao que ela iria enfrentar dali por diante. Às vezes, pensoque Deus, em um dado momento, entregou minha mãe, meu pai, todaa nossa família, nas mãos do demônio.

Naquele momento, meu companheiro de viagem falava commuita revolta; parecia ainda inconformado com uma coisa que haviaacontecido há tanto tampo. Ele ficou em silêncio. Tive medo de elenão continuar contando a história. Então resolvi encorajá-lo:

– Bem, o que importa é que hoje você tem uma história de vidapara contar, e isso não se pode negar. Mais que isso: é uma lição devida, pelo menos até agora, até onde você me contou.

– Sim, é verdade.Continuou em silêncio por mais um instante. Com os olhos

lacrimejando, olhou à sua volta, mas logo retornou à história. Dei gra-ças a Deus. Eu sou tão ansioso quanto curioso.

– Pois é, amigo, minha mãe é a fé em Deus em pessoa. Na-quele dia, ela pediu aos céus que a castigasse por tudo nessa vida,segundo sua sina e acima de tudo conforme a vontade de Deus.Ainda que ela não conseguisse compreender, rogou a Deus queprotegesse sua filha no hospital e o marido na prisão, preservan-do-lhes a vida.

Mamãe sabia que se papai fosse humilhado, espancado ou tortu-rado na delegacia, iria revidar. E por isso ela temia que ele fosse assas-sinado e a polícia desse fim em seu corpo. Papai, quando estava sendopressionado nos vários interrogatórios pelos policiais em Brasília, dis-se a mamãe que se um policial lhe tocasse a mão, ele se agarraria com otorturador e não sabia no que ia dar. Era realmente preocupante, pois

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ele não tinha noção do poder policial e dos dias políticos que vivia naépoca, tempos de ditadura.

Mamãe lembrava os comentários de papai e não conseguia pararde chorar. Chorava muito, ali, escorada no pé de flamboyant. Só con-teve o choro quando começou a orar mentalmente. Sua fé inabalável afez intensificar as orações.

Ela ainda orava quando do nada surgiu uma mão muito quente,que deslizou sobre sua cabeça e pousou-lhe no ombro. Então, umavoz com doçura disse-lhe: “Sua caminhada é longa, você a completará,todos completam”.

Mamãe assustou-se, parou de orar e olhou para trás, vendo umavelhinha que devia ter uns 80 anos, sorrindo. Trajava vestido longo,porém muito simples, de cor vermelha; usava um lenço branco escon-dendo os cabelos. A velhinha era branca, alta e muito magrinha, masde rosto delicado, com lindos olhos azuis, graúdos.

Quando minha mãe tentou falar com ela, a velhinha, como senão a estivesse vendo, saiu caminhando calmamente, demonstrandoentender as razões dela. Aquela anciã externava muita paz. Seguiucaminhando em direção ao Campo da Esperança, o cemitério de Bra-sília, que fica muito próximo da 1.ª Delegacia de Polícia de Brasília.Da porta desta avista-se o portão do cemitério.

Mamãe não sabe precisar até hoje se aquela velhinha adentrou ocemitério, ou se continuou caminhando rumo ao sul, em paralelo à cercado cemitério, atravessando a avenida do setor policial sul para alcançaro ponto de ônibus, ou se ela entrou na delegacia. Mamãe estava próximaao portão do cemitério, mas a perdeu de vista. Ela não mistifica o acon-tecido, e afirma, sem muita convicção, que aquela anciã era um ser hu-mano normal e “vivinha da silva”, como gosta de dizer meu pai.

Quanto à convicção de minha mãe, eu a conheço muito bem esei que ela se recusa a criar polêmicas. No entanto, anos depois ocorre-ram fatos interessantes e misteriosos. Aquela senhora voltaria a cruzar,muitos e muitos anos depois, o caminho de mamãe e o meu também.Se der tempo, depois lhe conto. Foi mais uma das coisas inexplicáveise de fato curiosas que me aconteceram, o que me obriga a acreditar emalgo além desta vida.

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A gripe insistente, o choro e o desespero davam a mamãe umaaparência irreconhecível. Surgia uma crescente vontade de sumir daface da terra. Mas ela se lembrou da filha hospitalizada e de nós, eu emeus irmãos, que a esperávamos no Combinado. Estávamos aos cui-dados de nossa empregada, Maria Santana, e da minha vó.

Mamãe, ciente de que a velhinha de vermelho tinha razão, se-guiu caminhando pela avenida W-3 Sul, a principal avenida de Brasí-lia, pelo menos naquela época. Seguiu chorando e limpando o nariz,enquanto subia a avenida. Algumas pessoas, quatro ou cinco, talvezseis, tentaram conversar com ela e saber o que lhe acontecia; noentanto, ela não conseguia falar, só movimentava a cabeça, sinalizan-do “não”. Continuou caminhando, até que alcançou o hospital, quefica muito distante da delegacia. No mínimo seis quilômetros sepa-ram a delegacia do hospital.

Quando se sabe dos sofrimentos de nossos pais, principalmentequando acontece com nossa mãe, surge uma grande sensação deimpotência e compaixão. Mas, que se pode fazer? É deixar as lágrimascaírem e absorver tudo como lição de vida, ou aceitar os fatos comodestino traçado (ou, como dizem alguns, o karma que temos de carre-gar. Esse seria o de mamãe, ou nosso, quem sabe?). É muito difícilcontinuar a vivendo com tudo isso e outras coisas piores para recor-dar pelo resto da vida. Alguns amigos dizem: “É só não se lembrar!”.Mas como se esquecer de ferimentos que deixam enormes cicatrizesno coração e rasgos na alma?

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Preso sumido

MEU pai fora transferido para Goiânia. Mamãe, agora, tinha detomar algumas decisões. Ela já estava sem dinheiro até mesmo para selocomover e fazer suas refeições. Após a transferência de papai, ela per-maneceu por mais dois dias em Brasília, esperando pela alta de minhairmã. Entre a prisão de papai e a transferência dele para Goiânia, passa-ram-se dezessete dias. Quando saíram do Combinado, meus pais pro-meteram voltar no máximo em dez dias. Mamãe sabia que todos esta-vam preocupados. Isso, mais a falta de dinheiro, a fez retornar para casasem procurar papai em Goiânia.

Em seu retorno ao Combinado, mamãe pouco demorou. Dei-xou Regina, já muito melhor de saúde, conosco e aos cuidados daempregada, indo a Goiânia após conseguir dinheiro. Para isso, vendeu

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bens a qualquer preço e recebeu várias contas em valores bem abaixodos créditos.

Ela aprendeu, nos dezessete dias em que permaneceu lutandocontra a enfermidade da filha e pela liberdade do marido, que advoga-dos e policiais exigem muito dinheiro, e a maioria é insensível aos so-frimentos dos acusados. Meus pais tinham boa condição econômica,mas dinheiro em espécie era muito difícil de conseguir.

Mamãe pediu ajuda a meu avô, mas ele negou, alegando não tercerteza da inocência de papai naquela história. Meu avô, dizendo-seenvergonhado, nunca moveu uma palha do lugar, ou sequer cravouum prego numa barra de sabão para ajudar o filho. Até hoje meu painão o perdoou.

Mamãe seguiu para Goiânia para socorrer papai. Antes, porém,deixou com Maria Santana uma enorme lista de coisas com preços jáestabelecidos, para que ela, caso encontrasse vendas, posteriormentelhe remetesse o dinheiro por intermédio de Lilico ou Geraldino.

Pobre da minha mãe! Devido ao desespero e à inexperiência,iniciou um verdadeiro processo de liquidação de nossos bens. Autori-zou todos os tipos de negócios para receber as dívidas do armazém epermitiu a venda das coisas pela metade do preço. Ela havia perdidotodo o senso comercial. Só pensava em juntar dinheiro suficiente parapagar advogados e se manter em Goiânia durante o tempo necessáriopara conseguir a liberdade de papai. Segundo informações do delega-do de Brasília, isso não seria fácil. Ele a orientou para que contratassebons advogados.

Em Goiânia, mamãe demorou a localizar papai. Somente doisdias depois de sua chegada é que conseguiu encontrá-lo. Estavam hámais de um mês sem se comunicar. Foi um encontro muito emociona-do, ambos choraram muito e ficaram longo tempo sem conseguir falar.O advogado, que fora contratado por mamãe em Goiânia, tentou inutil-mente acalmá-los. Papai estava muito magro e abatido, com a barbaenorme, mal cuidada. Pela barba era possível perceber toda a sua tristeza.

Meu pai, certamente, tinha muitas perguntas. Queria saber dosfilhos, como estava Regina, se em Brasília ou com mamãe, ali emGoiânia; como mamãe conseguiu encontrá-lo, enfim, eram muitas

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perguntas a fazer um ao outro. Com certeza, meu pai trazia mais ques-tionamentos. Afinal, estava preso.

Minha mãe tinha pressa de saber como estava aquela história, emque pé se encontrava o inquérito policial. Queria saber tudo o quehavia se passado com o marido durante sua ausência. Acredito queaquele reencontro foi um dos momentos mais tristes, e por isso ines-quecível, dos meus pais. Papai sempre foi manteiga derretida, chorafácil fácil; a emoção corre à flor de sua existência. Quando conseguiuse controlar e se expressar, fez algumas perguntas a mamãe. Perguntascuja resposta só Deus poderia dar, por isso o descontrole bateu muitomais forte em mamãe, principalmente quando papai lhe perguntou:

– Será que é justo tudo isto? Será que um dia vou sair vivo daqui?Eu só queria saber o porquê de todas estas coisas...

Papai, desesperançado, continuava comovendo mamãe, e lhe se-gredou:

– Me disseram, Geralda, que um daqueles motoristas foi solto eassassinado em seguida...

– Deus é por nós! Eu confio muito na justiça divina. Além domais, contratei um ótimo advogado. Basta que tenha calma.

Aquela história que tragou papai e o envolveu até o último fio decabelo era pra lá de complicada. Parecia uma teia de aranha energiza-da, e fora tecida por gente grande e influente. Mas o grande mentor detodo aquele plano que mudaria a vida de nossa família, nos enviandopara conhecer o inferno armado dentro de um paraíso, era um influen-te deputado federal da região de Ipameri, cidade do Estado de Goiás.

O tal deputado era irmão do falso funcionário do estado queestava preso com papai. Tudo aquilo se desencadearia da pior maneirapossível em Arraias.

Diante da informação de que um dos envolvidos havia sido eli-minado, minha mãe teve a idéia de tornar a coisa pública, e procurou aimprensa para denunciar o caso. Em Goiânia, a história não havia ganhoespaço na mídia com as mesmas proporções que em Brasília.

Mamãe entendia que, divulgando os fatos, não iriam desaparecercom papai. E tão logo a história saiu nos jornais, houve granderepercussão. O caso rapidamente tomou novos e inesperados rumos.

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Surgiram pessoas tentando ajudar meus pais, imagino que envia-dos pelo tal deputado e seus cúmplices. Elas, na verdade, tentavamevitar o escândalo que estava prestes a explodir. É que até aquele mo-mento o público não sabia que aquele deputado tinha um irmão preso.O deputado, com a ajuda da família, lutava para libertar o irmão dacadeia e ocultar o acontecido. Meus pais também não sabiam que ofalso funcionário do estado, preso com papai, era irmão do tal depu-tado, e tampouco que o deputado era o mentor do roubo.

Os jornais publicaram mais algumas reportagens sobre o caso,embora sem o mesmo interesse demonstrado nas duas primeirasreportagens. Mamãe era obrigada a gastar muito dinheiro – além doadvogado, gastava também com incentivos a jornalistas, que perde-ram o interesse no caso, principalmente quando a polícia provou queo motorista estava vivo e que fora simplesmente transferido para Goi-atuba, cidade do interior de Goiás.

Mamãe, vendo-se sem dinheiro, foi até o Dergo, o Departamen-to de Estradas e Rodagens de Goiás, onde trabalhavam vários moto-ristas amigos de papai. Eles viajavam para o Combinado. Mamãe que-ria pedir a um deles que desse um recado a nossa empregada MariaSantana: que ela lhe enviasse mais dinheiro. Minha mãe não percebiaque estava acabando rapidamente com nosso patrimônio, sem, no en-tanto, conseguir a liberdade do marido. Ela continuava sem entenderpor completo as razões da prisão de papai.

Assim, minha mãe resolveu mudar de tática: apelou para o de-putado mentor do fracassado plano. Mamãe partiu para o tudo ounada. Foi prática e corajosa. Creio que colocou sua fé para caminharna estrada da ousadia. Hoje, ela explica que a fé, às vezes, toma cami-nhos estreitos e sinuosos para favorecer aqueles que crêem. Dessa for-ma, sou obrigado a aceitar que ela nunca deixou de ter fé. Talvez tenhasido exatamente isso que a encorajou a bater de frente com o tal depu-tado, exigindo que ele apoiasse papai.

Aquela atitude de mamãe fez a coisa mudar, e muito. Não demo-rou e meu pai ouviu os policiais comentarem que tinham que dar umjeito, pois o deputado estava apertando o cerco e mexendo os pauzi-nhos para liberar o irmão e papai.

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A situação do outro era menos complicada: contra ele haviaapenas o fato de viajar como carona num caminhão que transporta-va bens públicos de forma irregular e haver dito, mentindo, que erafuncionário do estado. Tanto era assim, que logo foi solto – o queirritou minha mãe.

Diante daquela situação, mamãe, orientada pelo advogado, pro-curou outra vez o jornalista que escrevia as reportagens, certa de quenão precisaria gastar, pois tinha um superescândalo político, matériaque venderia milhares de exemplares de jornais. No entanto, ela e oadvogado não foram espertos o suficiente para prever que o jornalistairia procurar o deputado, fazendo leilão daquela situação. Mesmo assim,as coisas tomaram novo rumo, pois o tal deputado julgava fácil man-ter papai na prisão, fazendo dele o culpado.

O deputado percebeu que mamãe não era tão boba, e estavabem orientada, e resolveu se mexer para ajudar meu pai, antes quemamãe, por intermédio de um outro jornalista, conseguisse tornarpúblico seu envolvimento no desvio de todo aquele material. Desvioesse do qual as autoridades policiais não conseguiam encontrar o fioda meada. Papai só dizia que recebera um documento ordenando aentrega dos materiais e estava no caminhão pegando carona com ma-mãe até Brasília, para os fins do tratamento de uma filha.

A polícia checou o depoimento de papai, concluindo que eraverdadeiro, e começou a enxergar que ele possivelmente estava ino-cente no meio de uma grande tramóia e um emaranhado de documen-tos forjados. O mesmo ocorria com os motoristas. Um deles se desli-gou do estado e ninguém soube mais notícias suas. O tal deputado,movido pelo medo, esforçava-se em libertar meu pai, mas era real-mente difícil inocentá-lo. Ele era a única pessoa com alguma responsa-bilidade sobre aqueles materiais flagrados na operação de desvio.

Os policiais, mesmo assim, começavam a entender que papai erainocente. Mas os fatos não o ajudavam. Foi quando seu advogado,com a ajuda do tal deputado, conseguiu transferir meu pai para Arrai-as, pois o Combinado, domicílio de papai, fazia parte da comarca des-sa cidade. Lá havia cadeia pública e juiz de primeira instância paradecidir o destino de papai – e, conseqüentemente, de toda a nossa

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família, que também iria cumprir uma pena que parecia ser uma sen-tença proferida por um destino diabólico e desumano.

O deputado se esforçou para transferir meu pai, para se livrar deuma possível denúncia de minha mãe à imprensa. Ele montarafacilmente a operação de desvio, porque sabia que no Combinado exis-tiam muitos bens perdidos ou abandonados no meio da selva, sem osdevidos registros patrimoniais. Bastavam meia dúzia de páginas assi-nadas sob carimbo, encaminhadas ao responsável pelos materiais, paraconseguir a liberação destes sem maiores dificuldades. Só que tudodera errado. E pelo simples fato de que o inimigo de papai, o vingati-vo Braz, pensando sabe-se lá o quê, resolveu interferir, não com ointuito de zelar pela coisa pública, mas pela obstinação de se vingar.

E não é que o homem acabou atirando no que viu e acertando noque não viu... Talvez o Sr. Braz nem imagine, ou talvez nunca tenhasabido, o quanto conseguiu se vingar de papai e o mal que fez a todanossa família, com seu gesto de antecipar-se aos caminhões e chegarprimeiro a Brasília para denunciar meu pai como envolvido no desvio.Entretanto, só atingiu meu pai e minha família. O deputado, se pagoupor seu pecado, pagou muito barato e em suaves prestações.

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E o destino nos levou a Arraias

E, ASSIM, papai foi conduzido de Goiânia até a cidade de Ar-raias por dois policiais, lá sendo entregue ao delegado João Andrade,que se dizia seu amigo.

Minha mãe saiu de Goiânia no dia seguinte à partida de papai, esó chegou a Arraias quatro dias depois. Papai, que não ficou preso nacela (isso porque era muito conhecido do delegado e de outros políti-cos locais), esperava por ela, ansioso, na pensão onde o ônibus fazia aparada para o almoço. Em Arraias, naquela época, não existia termi-nal rodoviário, por isso os ônibus faziam parada em pensões, hotéis,postos de gasolina e lugares desse tipo.

Finalmente, passados dois meses de sua detenção em Brasília,papai se encontrou com mamãe livre das grades. Afirmou que estava

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tranqüilo e bem tratado por todos. Mas não escondeu seu constrangi-mento de andar pelas ruas da pequena cidade e ser visto como “opreso que veio do Combinado”. Ele imaginava que por onde passavaas pessoas o observavam e comentavam sobre sua condição de preso.Chorou muito ao lembrar dos filhos e pediu a mamãe que providenci-asse a nossa ida e a de minha avó Hermínia até Arraias.

A intenção de mamãe era seguir no mesmo ônibus para o Com-binado, pois ela estava um longo tempo fora de casa, mais de doismeses. Papai e mamãe conversaram rapidamente durante a curta para-da. O ônibus demorava cerca de meia hora. Ela o achou muito magroe quis saber se estava sendo bem tratado. Ele afirmou que sim. Disseque a prefeitura lhe dava almoço e janta. Papai era o único hóspede dacadeia do município.

Logo o motorista do ônibus ligou o motor e acionou a buzina,convocando para a continuidade da viagem – cena que papai e mamãeconheciam bem. Mamãe se despediu do marido mais aliviada. Afinal,ele estava mais próximo do Combinado e fora das pressões e trucu-lência dos policiais. Sem contar que estava fora das grades e tinha li-berdade para caminhar, conversar e até trabalhar em alguma coisa. Aúnica proibição era sair de Arraias sem autorização do juiz.

Papai era conhecido em Arraias, pois sempre levava para lá otime de futebol que mantinha no Combinado, para participar de tor-neios. A falta de eventos e de outras formas de diversão transformavaaqueles singelos e descomplicados torneios intermunicipais em verda-deiros e apaixonantes certames. Davam o que falar por todo o ano. ACBF e o Clube dos Treze morreriam de inveja da fórmula simples eobjetiva, mas que tanto atraía o público.

O time de Arraias era muito bom e sempre disputava o títulocom o Combinado. Aqueles torneios, enfim, valeram alguma coisa,pois o tratamento do meu pai foi diferenciado: ele dormia em umdepósito da prefeitura que era geminado ao prédio da delegacia.

Mamãe finalmente retornou ao Combinado. Durante todo o tem-po em que ela esteve fora, eu ia todos os dias até os ônibus que chega-vam, para ver se ela estava de volta. Cada vez que eu constatava quemamãe não retornava, voltava para casa chorando e lamentando o

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desamparo. Eu não poderia imaginar que um desamparo mais cruel epior estava por acontecer e teria de enfrentá-lo muito em breve.

O mais importante é que mamãe um dia voltou. E o seu retorno,embora sem meu pai, foi um dos acontecimentos mais felizes de minhavida. Eu sempre tinha a sensação de que não a veria mais, e no entanto elaestava de volta. Mamãe nos prometeu que no retorno do ônibus paraArraias nós iríamos viajar para encontrar com papai. Ela tentava me pou-par da verdade, mas eu já desconfiava, em razão das conversas que ouvia.A chegada de mamãe foi uma festa para toda a vizinhança. Todos foramaté nossa casa saber das notícias. Menos meu avô. Ele não apareceu.

No outro dia, era hora de mamãe enfrentar a realidade do Com-binado e de nossa casa. Ela ficou assustada com a nossa situação finan-ceira. Mamãe havia se afastado por longo tempo do comércio, e nesseperíodo não recebeu muitas contas; e as poucas que recebeu foi parafazer dinheiro rápido, a qualquer custo. Ela havia vendido muitos pro-dutos a qualquer preço. Também não tinha reposto o estoque. Alémdo mais, a crise no Combinado concorreu para complicar a situação.

Diante de tudo isso, constatou que estava quase falida. A esfor-çada Maria Santana, que ficou cuidando dos negócios, era analfabeta enão sabia prestar contas ou explicar seus atos no comércio.

Eu, que assistia às lamentações de minha mãe, tentava dar-lhealgumas informações. Mas de que adiantava? Expliquei a ela que meuavô e também alguns parentes de Maria Santana pegaram várias mer-cadorias do nosso armazém e que eu não via ninguém dando o dinhei-ro. Maria Santana logo tratou de adiantar a mamãe que eu era muitofofoqueiro e inventava histórias absurdas. Mas apesar dessas tentativasde inibir meu relato, eu soube precisar muitas coisas. Por exemplo: aquantidade de açúcar que Henrique, amigo de Pio, irmão de MariaSantana, levou na cangaia do burrinho dele e quantas caixas de cachaçameu avô pegou.

O que mamãe podia fazer? As coisas realmente estavam ruins.Mas não era só porque alguém tinha apanhado parte do estoque. Exis-tiam várias razões que contribuíam para aquela situação. Principalmentea prisão de papai, que consumiu muito dinheiro no pagamento de ad-vogados e policiais corruptos.

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Passaram-se duas semanas. Mamãe, então, resolveu nos levar aArraias para visitar papai. Devido à falta de dinheiro, ela teve de ven-der Fidalgo, nosso lindo cavalo, e também a carroça que ele puxava.(Nossa carroça era muito útil a todos que moravam no Combinado,pois servia para todo tipo de transporte, que sempre era feito gratui-tamente.) Fidalgo tinha sido adestrado por papai, que tem um talentoraro para adestrar animais.

E assim, nosso imponente cavalo castanho, que tinha uma man-cha branca na testa, lembrando a figura de uma estrela, foi para a cida-de de Barreiras, na Bahia.

Eu chorei muito e embarquei para Arraias doente, em razão daperda de Fidalgo. Dias depois, chorei muito mais, pois o homem queo comprou, de passagem pelo Combinado a caminho de Campo Be-los, deu a triste notícia de sua morte. Até hoje penso que ele morreu dedepressão e saudades de nós e do Combinado. Um animal tão queridoe útil trocado por algumas passagens de ônibus... Demorei a perdoarminha mãe e compreender suas razões.

Quando chegamos a Arraias, papai nos esperava ansioso, e tudoo que falou antes de nos cobrir de beijos e abraços, para em seguida sederreter em choros, foi quase que uma bronca em mamãe. Disse ele:

– Você demorou demais, Geralda! Foi o tempo mais longo quesuportei.

– Para os meninos também. Eles reclamavam todos os dias –mamãe respondeu sorrindo, pois compreendia a ansiedade de papai.

Eu fiquei tão feliz ao ver meu pai, que o agarrei por um longotempo pelo pescoço e só o soltei para embaraçá-lo, perguntando seele iria embora conosco ou se nós é que iríamos morar em Arraias. Sólhe provoquei mais lágrimas. Mas ele logo se aprumou, saindo conos-co pela cidade, a nos exibir aos vários amigos e novos conhecidos quetinha arrumado.

Fomos todos dormir no cômodo que papai ocupava. Não haviamínimas condições de moradia, pois se tratava de um depósito muni-cipal de materiais de construção e equipamentos diversos, mas princi-palmente de restos e sobras de demolições de construções. Papai en-costou um monte daquelas sobras num canto, abrindo espaço para

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colocar o colchão que usava no piso de cimento desempenado. Alitodos nós dormimos naquela noite.

Quando chegamos em Arraias, eu me encantei com a cidadezinhade muitas casas de adobo, algumas de pedras, mas a maioria de alvena-ria. As ruas principais eram calçadas com pedras. Era muito diferentedo Combinado, uma cidade em formação, onde todas as casas eram demadeira, as ruas de chão batido e não havia nenhuma praça.

Arraias é uma cidade centenária – creio que a mais importantepoliticamente naquela região –, muito organizada do ponto de vistaurbano. Como nem tudo é perfeito, tinha muitos jumentos soltos pelacidade. Pareciam abandonados. Eles pastavam num largo defronte àdelegacia, e eu na minha imaginação, para compensar a perda deFidalgo, me tornei o dono de todos eles.

Me apropriei também do inesquecível Rio Maravilha, de águaslímpidas e transparentes. Ele banha o pé do Morro da Cruz e era olocal da garimpagem de muitos esperançosos e sonhadores aventurei-ros. O rio é muito raso – as partes mais fundas não cobriam minhacintura (mesmo aos sete anos eu já era bem crescido para a idade). Osprédios da delegacia e do depósito municipal eram muito próximosao rio, que passava nos fundos dos prédios. Entre as suas margens e osfundos daqueles prédios existiam muitas árvores – parecia um peque-no bosque –, e nelas havia algumas casas de joões-de-barro, que viviambrigando com os bem-te-vis.

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Um herói em minha vida

QUASE em frente à delegacia existia um asilo. Aliás, existe atéhoje, mas o prédio da delegacia foi demolido. Um velho que lá mora-va se tornou meu amigo e confidente. Aquele velho mudaria minhavida! Ele se tornou a minha maior e inesquecível saudade. Nossa ami-zade começou durante a primeira semana em que estive em Arraias.

O velho me contou inúmeras histórias, explicou-me muitos mis-térios da vida e da morte, segundo as experiências e lendas contadaspelos escravos e descendentes deles.

Ninguém presta muita atenção em conversa de velho, muito me-nos se for um daqueles pobres que vivem abandonados em asilos, so-frendo com as recordações do passado. No entanto, eu dava muitaatenção e importância a tudo o que o velho do asilo falava.

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O velho se dizia ex-garimpeiro, mas ainda insistia no ofício. Eleme falava com gosto: “Garimpar é mais que um trabalho; na verdade, éum vício, um vício que alimenta a esperança e em que se depositam ossonhos de um novo dia”. E assim, apesar da idade, o velho se arriscavaem garimpar pelo Rio Maravilha, que é cheio de pedras lisas e traiçoeiras.

No início de nossa amizade, o velho garimpeiro me prometeuum diamante bem grande, para que eu me tornasse um rapaz muitorico e pudesse estudar na França, país que o velho admirava.

O velho conseguia destrinchar qualquer assunto. Ele usava expli-cações que levavam a aumentar a fé em Deus e davam esperanças deuma vida contínua. Acreditava que sobre o universo existe uma gran-de malha energizada, como uma teia de aranha, crescendo infinitamente,e em cada cruzamento dos fios da malha uma vida pode nascer oumorrer, conforme a energia que se desliga ou surge nos cruzamentosda malha. Cada vez que alguém nasce, também nasce uma estrela paraaquela pessoa; a estrela nasce forte, brilhante, e conforme a condutade vida do dono da estrela ela brilhará muito mais.

Além de contar lindas histórias, fazia letras de músicas conformeos tema que eu lhe dava. Creio que foi com ele que aprendi a gostar dehistórias e de todos os tipos de música.

Um dia, perguntei ao velho por que ele morava no asilo, emum quarto tão pequeno. Ele respondeu que tinha muitos filhos pelomundo, por onde andou garimpando, mas nada sabia deles, e que seperdera de seus irmãos. Gostava de afirmar que “o asilo era muletamoral da sociedade e, portanto, o lugar de velhos abandonados esem família que os queira”. Mas ele humildemente reconhecia: colhiao que havia plantado durante sua vida solitária, de muitas aventurasna busca do vil metal pelos garimpos da vida.

Certa vez, entre tantas perguntas que fazia ao velho garimpeiro, per-guntei o porquê das brigas dos pássaros (referia-me aos joões-de-barro ebem-te-vis, que não se suportavam). O velho, coçando a barba branca erala, fazendo mais um de seus cigarros de palha, foi falando:

– É que um dia, já faz muito tempo, os soldados do rei saíramem busca do menino Jesus para matá-lo, e um joão-de-barro, que era orei daquelas aves, resolveu ajudar a virgem Maria e São José. O rei dos

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joões-de-barro convocou todos os seus companheiros, e construíramuma enorme casa, igualzinha àquelas que eles fazem para abrigar seusninhos, só que bem grande, e nela esconderam o menino Jesus. Os sol-dados passavam bem pertinho da casa, mas não o viam, nem descon-fiavam que os bondosos pássaros o guardavam. Então, só por inveja,os malvados e linguarudos bem-te-vis começaram a denunciar o me-nino Jesus, cantando uma música de letra maliciosa, que dava a dicaaos soldados. A música era assim: “Bem te vi, bem te vi, fiu, fiu, fiu,bem te vi”. Os joões-de-barro, ao perceberem a maldade dos tagare-las e invejosos bem-te-vis, voaram aos céus para lutar em pleno espaçocontra os pássaros do peito amarelo, no primeiro combate aéreo nomundo. Os joões-de-barro nunca foram perdoados por essas belasaves de plumagem e canto fascinantes, que um dia tentaram denunciaro menino Jesus aos soldados, e por isso ficaram conhecidas pelo nomeque sempre lembraria aquela traição: bem-te-vis. É por essa razão queeles brigam até hoje, quando se encontram.

Ficamos com papai, em Arraias, durante uma semana, e depois vol-tamos para o Combinado. Ele, com o coração possuído de toda a tristezado mundo, nos levou até o ônibus e, após nos acomodar no interior doveículo, foi se sentar na calçada de uma casa do outro lado da rua, emfrente à pensão da parada. Lá ficou aguardando a nossa saída. Qualquerpessoa que o olhasse perceberia sua tentativa de segurar-se para não cho-rar. Mas ele não se conteve... Eu podia ouvir claramente a voz de choro depapai falando: “Vão com Deus! Vão com Deus! Logo eu vou”.

E o ônibus foi saindo lentamente, nos distanciando de meu pai.Nós também seguimos chorando. Com as mãos para fora, ace-

namos para ele, dando adeus. Então coloquei a cabeça através da jane-la e o avistei esmurrando a calçada. Uma senhora, com a mão em seusombros, parecia consolá-lo. Alguém dentro do ônibus nos ofereceubalinhas, para nos calar. Foi inútil.

Passou-se um mês desde que tínhamos voltado de Arraias. As coisasestavam muito ruins no Combinado. Mamãe não tinha cabeça para os negócios,e a falta de dinheiro nas colônias a deixava perdida no tempo e no espaço.

Mas, adiantando a história, meu amigo, o destino seguia sua tra-jetória na velocidade de um raio e nos empurrava para Arraias.

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O mundo começa a desabar

PAPAI escrevia toda semana, mandando as cartas pelos motoris-tas de ônibus. Por meio delas acertou com mamãe nossa mudança,“de mala e cuia”, para Arraias. As coisas mais incompreensíveis a umser humano nos esperavam lá. Na verdade, o pior esperava por mim eminha mãe.

Não conseguimos casa em Arraias, por isso fomos morar provi-soriamente no desarrumado e assombroso depósito da prefeitura. Oprovisório se tornou coisa permanente, e minha mãe se virava comopodia ali dentro, entre as tranqueiras que serviam de casas e esconderi-jos de ratos, morcegos e baratas.

O depósito era grande e dividido em três cômodos; um delessempre permanecia trancado. O primeiro era retangular, e em cada

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canto dele havia uma porta, uma no direito e outra no esquerdo,dando acesso aos outros dois cômodos. O da esquerda era o que aprefeitura sempre mantinha trancado; no da direita eram guardadosmuitos tijolos. Meu pai ajuntou esse tijolos, formando um grandequadrado, e sobre estes colocou um colchão. Aquela invenção foi,de fato, nossa cama. E essa cama foi o palco dos piores aconteci-mentos... Não sei se vou conseguir lhe contar tudo. São coisas absur-das, e algumas me dão vergonha...

Falando assim, em cama, você pode pensar em cenas eróticas ouaté mesmo em possíveis infidelidades conjugais. Bem, não vejo e nun-ca vi defeito em meu pai. Talvez por amá-lo muito. No entanto,reconheço que ele sempre foi muito mulherengo, a exemplo de meuavô, e não resiste a um rabo-de-saia. Confesso que, infelizmente, euherdei isso deles, e me considero até pior do que os dois. Mas antesfosse infidelidade o ocorrido naquela cama improvisada...

No primeiro cômodo, mamãe fez nossa sala, pois ele já abria aporta na calçada da rua; num cantinho, ela montou a cozinha. Minhamãe levou do Combinado muitas coisas. (A finada dona Beneditasempre falava: “Dona Geralda tem muitas coisas de valor”.) Eramvários eletrodomésticos: uma radiola, num lindo móvel de madeira– muito cobiçada por seu João Bandeira, proprietário da merceariavizinha do depósito que ora nos servia de casa –, um liqüidificador,uma máquina de costura (não lhe esqueço a marca e a cor: uma vigore-lli preta), um fogão a gás, um sofá e várias coisinhas que mulheresgostam para enfeitar a casa, além de muitos utensílios domésticos demuito bom gosto.

Minha mãe distribuiu tudo dentro do depósito, meio misturadoàs tranqueiras que guardavam ali. Me lembro de restos de brita, verga-lhões de ferro, escadas velhas de madeira e cavaletes que usavam comoandaimes de obra e outras coisas mais. Era algo estranho, a mistura detudo aquilo com nossos móveis. Mas eu conseguia me divertir comaquele cenário que tanto chateava minha mãe.

Mamãe vendeu quase todo o resto do estoque do armazém. Aqui-lo que não foi vendido, ela repartiu com os vizinhos. Vendeu também osúltimos carneiros e cabras, uma meia dúzia de porcos de raça, até a velha

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carabina e o revólver de papai, um trinta e oito de cabo branco. Tudofoi vendido a qualquer preço, pois não havia dinheiro no Combinado.

Enfim, minha mãe arrumou o dinheiro que pôde e deu o restodas coisas que não poderíamos levar. Após pagar o carreto da mudan-ça e vivermos um mês em Arraias, me lembro de que meus pais sepreocuparam em arrumar trabalho, mas não conseguiam. Logo aca-bou o pouco dinheiro, e eles começaram a comprar fiado nos arma-zéns. No início, vendiam sem problemas, pois todos pensavam quepapai possuía alguma reserva financeira. Mas as contas venceram e osdonos dos armazéns começaram a cobrar e pressionar pelo pagamen-to. Minha mãe ficava muito nervosa. E o pior: em meio de tudo aqui-lo, ela descobriu que estava grávida! E me parece que ela engravidouno primeiro mês em que chegamos a Arraias.

Nos primeiros dias, eu e meus irmãos estávamos felizes emArraias. Após quase sete meses separados de papai, estávamos juntosnovamente. Eu sempre visitava o asilo e ficava horas e horas conver-sando com o velho garimpeiro. Ele sempre ia ao garimpo. Dizia quetinha de tentar a sorte.

Quando eu não encontrava o velho no asilo, brincava com uma moçamorena e muito bonita. Ela devia ter uns vinte e cinco anos, no máximo. Amoça era muda e surda. Os familiares dela a abandonaram no asilo por-que pensavam que ela era débil mental, mas não era. Tratava-se apenas deuma pessoa sem paciência e muito inconformada por não poder falar ecompreender a linguagem comum. Eu e ela jogávamos bola de gude den-tro do pequeno jardim que separava as duas alas do asilo. Em Arraias,chamavam bolinha de gude de biloca. A muda, quando queria me convi-dar para jogar, mostrava-me as bilocas amontoadas na palma da mão.Não creio que fosse débil mental, como todos falavam e a consideravam.

Ela obedecia às regras do jogo, aceitava as derrotas com digni-dade, entregava as bilocas que perdia sem nenhuma resistência e exigiaas que ganhava. Eu aprendi as regras do jogo com ela. Antes eu nuncatinha brincado com ninguém aquele jogo.

Chegamos para morar em Arraias no fim de junho de 1966. Oano letivo já estava na metade; mesmo assim meus pais me colocaramna escola como aluno ouvinte, pois não conseguiram a minha matrícula.

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No primeiro dia de aula, minha primeira decepção em Arraias.Foi na sala de aula. A minha turma era composta de alunos de idadesque variavam entre sete e quinze anos, ou talvez até mais; eu completa-ria sete em janeiro de 1967. Alguém na sala de aula perguntou em vozalta quem era eu, e responderam em voz mais alta ainda: “É o presi-nho, filho do preso”. Percebi a maldade, me acanhei, baixei a cabeçaenterrando o rosto na carteira por um longo tempo.

A professora não me socorreu, nem ao menos perguntou qualera o meu nome, para eliminar logo de início aquela pecha. Quandocheguei em casa contei ao meu pai e, ainda bem, ele não deuimportância. Talvez, apenas para me contaminar com a imagem depessoa forte e indiferente às pequenezas de alguns seres humanos, etambém numa clara tentativa de me consolar de forma positiva.

A situação começava a causar pânico. Papai sem dinheiro, e nãoencontrava trabalho; mamãe também não conseguia nada para ajudá-lo. Até parece que a cidade tinha uma vida econômica milimetrica-mente planejada, com a renda dividida e já destinada somente a seusmoradores, e nós não cabíamos de forma alguma naquela partilha.Mamãe procurava emprego doméstico, lavagem de roupas, mas nãoencontrava nada.

Meus pais tinham muitas dificuldades para alimentar os filhos ea eles próprios. Os comerciantes já não nos fiavam, e ainda ameaça-vam tomar a radiola, a máquina de costura e outros objetos. Mamãeaté que queria entregar; meu pai, por sua vez, queria vender. Era umamaneira de conseguir dinheiro para tantas necessidades a serem sa-tisfeitas. Papai vendeu primeiro nosso fogão a um preço que era umverdadeiro troféu à exploração de um faminto desesperado. Nãonos fez falta, já que não tínhamos o que cozinhar nem como compraro gás, que em Arraias era tão raro quanto caro. Mamãe não se impor-tou. Tinha ciúmes era de sua máquina de costura, que trouxera des-montada de São Paulo.

Minha mãe passou a cozinhar à lenha em um fogão improvisadocom tijolos no chão do depósito. Não demorou três dias e apareceu ofiscal da prefeitura, proibindo cozinhar dentro do depósito daquelamaneira. Isso obrigou mamãe a pedir a dona Benedita, a vizinha mais

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próxima, já falecida, que a deixasse cozinhar no fundo de seu quintal.E assim mamãe cozinhou uma semana no chão do quintal alheio. Eramelhor do que cozinhar na rua...

De vez em quando chovia. Por isso, dona Benedita se compade-ceu e permitiu que mamãe cozinhasse no fogão a lenha que ficava den-tro de sua pequena casa. A barriga de mamãe já aparecia: estava dequatro para cinco meses de gravidez. Apesar de tudo, eu a ouvia falarque ficava feliz de cozinhar o pouco que conseguíamos. Pior era quan-do não havia nada para cozinhar. Mamãe nunca foi de reclamar davida e suportava tudo calada; jamais culpou meu pai ou o constrangeucom cobranças.

Mas hoje posso garantir que não se deve sofrer calado. As conse-qüências se revelam e explodem no momento em que o coração resol-ve substituir a boca. Para mim, era fácil perceber o estado de humilha-ção que mamãe e papai viviam naquela cidade.

Meu pai, devido à ociosidade, começou a jogar baralho dia e noite.Passava as noites jogando na casa de um vizinho conhecido por João Gor-do. Aquilo deixava minha mãe possessa de raiva. Ela alertava papai paraos danos que aquele hábito poderia lhe causar. E ele empolgado, porque asorte, no início, de forma traiçoeira, o acompanhara. Foi quando ganhoualgum dinheiro. Mas logo passou a perder muito mais do que a ganhar.

Uma de minhas aventuras em Arraias era caminhar dentro dorio, contra a correnteza, bem no centro do leito. Gostava de vencer ospequenos obstáculos que surgiam em forma de alguns buracos e pe-dras lisas cheias de lodo. Cada dia eu aumentava um pouquinho mais opercurso e voltava caminhando pelo pé do morro, próximo da matarala que nele crescia entre as pedras, típica vegetação do cerrado. Euvoltava avistando o gado espalhado pelos arredores do morro.

Em uma bela manhã de sábado, eu acordei bem cedinho e fizmais um desses passeios. No retorno, chegando ao ponto do início dacaminhada onde eu atravessaria o rio para voltar para casa, avistei minhamãe acompanhada de Domingas, filha de dona Benedita, lavando rou-pas (as mulheres sempre faziam isso naquele local). Então me aproxi-mei e a flagrei chorando muito; cheguei ainda mais perto, até podertocá-la. Ela, zangada, bronqueou:

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– Já falei pra você não andar por aí, tem muitas cobras!...– Eu não tenho medo delas; no Combinado tinha muito mais

que aqui – respondi.– Mas não é para andar mais. Vai brincar com seus irmãos lá em casa.– Lá nem é casa, é depósito da prefeitura. E por que a senhora

esta chorando? – perguntei, mais curioso do que com pena dela.Ela não respondia, e eu me impacientava. Mamãe às vezes emburra-

va e não abria a boca. De vez enquanto discutíamos muito. Ela se nivelavaa mim. Parecia gostar de bater boca comigo, principalmente quando esta-va de bom humor. Sei que se divertia à minha custa. Ela achava muitoengraçado eu conversar sério sobre assuntos pelos quais as crianças geral-mente não se interessam, e não conseguia conversar comigo com a serie-dade que eu lhe exigia. Ela ficava rindo por dentro. Eu percebia e mezangava, porque julgava tratar-se de coisas importantes.

– A senhora vai ou não vai falar por que está chorando, hein,mãe? – insisti.

– Não estou chorando mais. Vai para casa. Vai logo! – ela orde-nou, expressando sua autoridade pela fisionomia.

Chegando em casa, entendi tudo. Papai chegou junto comigo. Eramoito horas. Eu tinha saído às seis da manhã e ele não estava em casa –mais uma vez tinha passado a noite na casa do João Gordo, jogandobaralho e se endividando. Aquilo estava se tornando um vício. Essa eramais uma das razões que faziam mamãe se desesperar. Cada vez papaificava mais endividado. Ele, de vez enquanto, conseguia fazer alguns bis-cates como eletricista ou encanador; às vezes consertava os motores equadros elétricos da estação de tratamento de água da cidade e ganhavaalgum dinheiro. Mas os companheiros de jogos lhe tomavam tudo.

Aquilo incomodava a todos nós. Mas parece que Deus ouviu asconstantes orações de mamãe. Foi quando fiz mais uma descoberta navida: quando as crianças falam certas coisas, são usadas pelos anjos. E,assim, parece que alguém lá do céu usou minha irmã Renilde, que na-quela época estava com quatro anos de idade, quase cinco.

Era início de mais uma noite de jogos. Ela, então, atravessou arua e entrou na casa do João Gordo. E quase gritando, assustando osconcentrados jogadores e os demais que se encontravam na casa, falou:

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– Seu João Gordo, o senhor está ficando com todo o dinheiroque papai compra comida prá nós. Nem ontem, nem hoje a gente co-meu comida; só come manga lá em casa. A culpa é sua, viu!

– Mas, Raimundo, que é isso que sua filha está falando? – pergun-tou ele.

– Você ouviu muito bem, João. Também acho que seu Raimun-do não devia jogar tanto – falou, em tom de reprovação, a mulher deseu João Gordo.

– Ai, meu Deus do céu! A gente não pode nem brincar sossega-do! Vamos acabar com esse jogo por hoje, já perdi a concentração –reclamou João Gordo, abandonando a mesa de jogo.

Depois daquela intervenção de minha irmã, que considero pro-videncial, papai ficou muitos dias sem jogar, e seu João passou a nãoaceitá-lo como parceiro. Mas alguns jogadores a quem papai devianão o perdoaram. E ele teve que entregar algumas coisas de nossa casapara pagar as dívidas do jogo. Ouvi, pela primeira vez, mamãe levan-tar a voz com papai, num volume bastante alto.

– A situação que vivemos, Raimundo, e você não se acanha! Daras últimas coisas que nos restam para pagar dívidas de jogo, Raimun-do! Eu, grávida, precisando de remédios; as crianças passando neces-sidades... Seu julgamento vem aí, está próximo, precisamos arrumarum advogado... Com que dinheiro, Raimundo?! Raimundo... cabeçaque não pensa, o corpo padece! Eu não sei não...

Meu pai ouviu tudo aquilo calado. Estava sentado em cima de umapilha de tijolos e ali ficou por um longo tempo, pensando. Depois, saiu decasa sem pronunciar uma só palavra. Foi perambular pela cidade afora.

Quando meu pai voltou, por volta das seis da tarde, quase escu-recendo, ele nos trouxe um feixe de canas. Sentou-se na calçada, noschamou, a mim e a meus irmãos. Pediu-me que buscasse uma faca paradescascar as canas. Papai, quando quer, sabe promover a alegria; e nosproporcionou uma festa com aquela novidade. Cortou as canas empequenos pedaços e os distribuiu a nós. Ganhava mais cana quem exi-bisse o maior sorriso ou cantasse uma música.

Acabamos a farra com a cana, limpando a sujeira que fizemos naporta de casa. Eu tinha uma certeza: aquilo era a nossa janta.

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Mamãe ficou o tempo todo deitada, e papai foi lhe perguntar seestava bem. Claro que ela não estava nada bem! Estava com muitafebre e fortes dores nas pernas. Papai, então, foi procurar uma amigadele, a Davina, uma prostituta de quem já lhe falei. Logo ele voltoucom a mulher. Ela chegou suada, com ar de cansaço, mas toda apres-sada e com a autoridade de quem comanda uma emergência. Orde-nou que papai voltasse à casa dela e apanhasse uma erva para fazerchá para mamãe.

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Os portões do bem e do mal

PASSARAM-SE três dias e mamãe não se levantava da cama.Estava muito magra, os olhos fundos, a pele flácida e amarela,muito desidratada. Era possível escrever na pele dela simples-mente arranhando-a. Eu ouvia Davina falar ao meu pai que difi-cilmente a criança que mamãe esperava nasceria com vida. Papaicomentou que se preocupava não só com a criança, mas com avida de mamãe, e fez cara de choro ao vislumbrar uma possívelmorte da esposa. Davina disse para ele não se afobar e confiar emDeus. Ele respondeu:

– É, Davina, faz tempo que Deus já não me olha e só castiga amim e a minha família. Só queria que Deus ou o Diabo me mostrasse opecado tão grave que cometi. É muita coisa para uma pessoa só...

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Mamãe, que quase já não falava – só se ouviam vez e outra osgemidos dela –, em razão da enfermidade e da fraqueza (ela perderacompletamente o apetite e sentia muitas náuseas), tossiu bastante, tentandofalar. Após controlar a tosse, entrou na conversa de papai com Davina.

– Raimundo, não pronuncie essa blasfêmia, por favor. Deus sabeo que faz, e você conhece as Escrituras. Lembre-se do servo Jó. Deusnão dá mais do que a gente pode suportar. Além do quê, Deus não nosmanda procurar chifres em cabeça de cavalos.

Após repreender as palavras de papai, ela silenciou, como se nadamais fosse necessário acrescentar. Aquela demonstração de fé fez Davinapensar. Por um breve momento, ela gesticulou a cabeça, demonstrandoconcordar com as palavras que ouviu. Lacrimejou e me pareceu fazer umaoração, aquela expressada com a voz do coração – no entanto, seus lábiosgrossos e arriados deixaram escapar algumas palavras, bem baixinho.

Eu, no canto do quarto, não entendia as cenas que se passavam,como não entendi muitas e muitas outras que vou lhe contar adiante.Papai, que sempre foi um homem de fé vacilante, constrangeu-se diantede tanta fé da esposa moribunda, mas ainda confiante nos milagresque Deus concede todos os dias aos que crêem. Ele fez silêncio e saiudo quarto para o outro cômodo, e dali saiu rapidamente para a rua.Mas foi alcançado pelos gritos de Davina:

– Raimundo! Corre, corre logo! Ela piorou, está vomitando...Ele atendeu ao chamado. Voltou rápido, mas não soube o que

fazer. Ficou sem ação diante da cena que encontrou ao adentrar, esba-forido, no quarto. Davina tentou falar algo; não conseguiu, gaguejou;silenciou-se por um momento e voltou a falar:

– Raimundo, chame o dentista! Parece que ela esta perdendo o fôlego.– Não precisa chamar ninguém. Estou bem, vai passar...Surpreendentemente, mamãe falou com calma e, passando tran-

qüilidade como se nada estivesse acontecendo. Sinalizou-me suaintenção de alcançar a moringa e o copo que estavam no chão, próximoa sua cabeceira. Passei-lhe a vasilha e o copo. Ela tomou menos quemeio copo, virou-se para o outro lado e creio que tentou dormir.

Meu companheiro de viajem já tinha falado, ou melhor, contadogrande parte de sua história. E eu só o ouvia. O ônibus reduziu muito

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a velocidade, pois se aproximava de uma curva muito acentuada. Meucompanheiro interrompeu por um momento sua narração. Então tivecoragem de lhe fazer a primeira pergunta em relação a tudo o que mecontava. Quando estruturei a pergunta na mente, tive um grande sus-to: Deca pareceu ler meus pensamentos e retornou à história exata-mente me respondendo à pergunta que eu tinha só em pensamento.

– Você quer saber por que Davina pediu a meu pai para chamaro dentista, e não um médico?

– Sim, isso me chamou a atenção. O problema da sua mãe nãoera dor de dente, era? – Respondi, emendando outra pergunta.

– Claro que não! Claro que não era.Deca respondeu de maneira incisiva e ríspida, acho que me obri-

gando a raciocinar o óbvio. Em seguida, explicou que em Arraias, na-quela época, não havia médico, e o único dentista da cidade se viaobrigado também a desempenhar esse papel, receitando remédios e,vez ou outra, até fazendo pequenas cirurgias. Calei, e Deca continuoua contar sua história.

O dentista apareceu lá em casa, mas não pôde fazer muita coisapara ajudar minha mãe. Ela continuou acamada e a cada dia pareciamais próxima da hora final. Papai, desde que mamãe se acamou, pas-sou a fazer nossa comida, mas a roupa suja se amontoava.

No final da rua em que morávamos ficava o “puteiro” – eracomo as pessoas se referiam quando falavam da zona do baixo mere-trício. Acho que em todo lugar falam assim mesmo.

Não sei como se iniciou a amizade daquelas mulheres do final darua com minha família. Lembro bem que elas nos ajudaram muitodurante a doença de minha mãe. Apareceram de repente, como umenxame de abelhas, e como formigas dividiam os trabalhos e rapida-mente deixavam tudo organizado. Elas passaram a lavar as roupas,limpar a casa, dar banho nos meus irmãos; vez ou outra até traziamcomida pronta. Parece que combinavam uma escala entre elas. Assim,a casa passou a ser bem cuidada, o que facilitou a vida de papai e detodos nós. Às vezes ficavam sumidas por algum tempo.

Infelizmente, minha mãe não melhorava. Estava a cada dia maismagra, e de vez em quando perdia os sentidos.

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Papai já se preparava para ficar viúvo e criar, sem mamãe, seuscinco filhos. Várias vezes ele se revoltava contra tudo, creio que atécontra Deus. O desespero de papai não era pelo medo de ter de criaros filhos sozinho; o que lhe causava pânico era a iminência de perdersua valente companheira.

Realmente, mamãe naqueles dias enfrentava um mundo que pa-recia se reduzir a um túnel estreito e sem luz, que insistia em lhe assaltaros últimos suspiros de vida. Mamãe já estava com seis meses de gravi-dez, dois dos quais acamada. Não tínhamos mais esperanças. E algu-mas pessoas que a visitavam, no fundo, por pena, desejavam-lhe a morte,para que ela encontrasse o descanso que merecia.

Acho que ela emagreceu até o limite possível a uma pessoa. Gemiadia e noite; tudo o que comia vomitava; sentia dores terríveis, que afaziam chorar e até chegar aos gritos. Ela não tinha forças para se moversozinha. As amigas de papai – eu prefiro pensar que eram enviadas pe-los bons espíritos para nos ajudar – é que levavam mamãe ao banheiro.

Eu deixei de ir à escola. Ajudava no que podia, pois meu paitinha de sair para conseguir a comida do dia. Sabe, às vezes, eutentava ser uma criança normal; saía para brincar ou ir ao asilo.Numa dessas idas e vindas, em conversa com o velho garimpeiro,perguntei-lhe:

– Será que a minha mãe vai morrer mesmo?– Ela não vai morrer, porque ninguém morre. As pessoas viajam

para o céu. Lá no ponto mais alto daquele morro tem um portão, é umportão de entrada para o céu. E sabe de uma coisa?

– Que coisa?– Ele está fechado. Isso mesmo, o portão está fechado. Então,

sua mãe não pode viajar para o céu.– Eu não vejo o portão. Falei com os olhos vasculhando sobre o

morro.– É. Você é pequeno, eu sou grande. Posso vê-lo; faz dias que ele

está fechado.– Faz tempo que ninguém morre! – observei, vendo lógica na coisa.– Mas tem um portão no pé do morro que fica aberto todo o

tempo – explicava o velho. – Mas ele não é o de entrada do céu.

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– O portão do pé do morro, eu sei – respondi ao velho – é oportão daquela fazenda que fica depois que a gente passa o CórregoRico. Mas ele fica fechado. Não pode ficar aberto, senão o gado passa.

O velho sorriu. Foi um largo sorriso. Suas incontáveis rugascaracterizavam a extensão e a segurança daquele sorriso. E ainda sor-rindo me explicou que aquele portão ao qual eu me referia era apenasum dos muitos portões que existiam no morro. No entanto, ele sereferia a um outro, que ficava um pouco adiante. Eu sabia a que portãoo velho se referia. Segundo ele, aquele portão do qual falava era umportão encantado pelo mal, e por ali saía muita gente malvada, paraperturbar as pessoas. Aquela gente malvada conseguia passar por ali,mesmo com o portão fechado.

– Não entendo como podem passar por um portão fechado... –Eu não via lógica.

– É que as pessoas que passam por ali são pessoas do mundo encan-tado. Elas se parecem com vaga-lumes, que voam nas noites, aparecemaqui e ali, onde querem e, num piscar de olhos, aparecem e desaparecem.

– O senhor já viu um deles? – perguntei, amedrontado.– Sim, eu os vejo sempre. Estão sempre andando aqui no asilo.– Então muita gente esquisita que mora aqui no asilo é gente

encantada?– Algumas dessas pessoas que moram aqui são pessoas encanta-

das, que encarnaram para pagar pecados.O velho falou, levantando-se do tamborete, demonstrando cansaço.– O senhor é encantado? – perguntei.– Não, não sou. Quer dizer, sou encantado, todos somos encan-

tados. Mas eu e você somos do bem, encantados no mundo do bem.Perguntei sobre a minha mãe.– Ela é do bem, anda sempre com o coração na fé e na esperança.O velho ressaltou as qualidades de minha mãe e em seguida se

dirigiu para dentro do asilo, buscando seu quarto para descansar. Eramtrês ou quatro horas da tarde, estava muito quente; o velho disse que iachover e prometeu explicar o resto depois.

Voltei para casa e encontrei papai sentado ao pé da cama demamãe. Estavam calados, em absoluto silêncio. Rompendo-o,

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ouviam-se pausadamente os gemidos de mamãe. Sentei-me no chãoe não falei nada. Instantes depois, papai me perguntou por onde eutinha andado. Disse a papai onde estivera e comentei o que o velhogarimpeiro me contou sobre os portões que existiam no morro. Meupai esboçou um curto sorriso, negando com a cabeça qualquer pos-sibilidade deles existirem, e me disse que o velho era maluco.Aconselhou-me que brincasse com o meu irmão Didi e não visitassetanto o asilo, pois, caso contrário, eu iria ficar maluco também.

Os dias se passavam e nos desesperançavam. Afinal, mamãe con-tinuava acamada. Numa tarde de segunda-feira, mamãe passou muitomal. Todos pensavam que seria seu último dia de vida, que daquele diaela não passava. As pessoas davam como certo: “A criança que DonaGeralda espera está morta em seu ventre”.

O dentista veio às pressas e trouxe um remédio, que aliviou asdores de mamãe. Veio a terça-feira, e com ela chegou a Arraias ummédico. Se a memória não me falha, era filho de um fazendeiro dacidade, Seu Domingos Batista. O apelido do médico jamais vou es-quecer: Doutor Didi. Era xará do meu irmão.

Papai estava fazendo um pequeno serviço na residência dos paisdo médico e conseguiu, com a ajuda da mãe do doutor, que ele fossever mamãe. O Doutor, quando chegou a nossa casa, compadeceu-seda situação de minha mãe e da impotência de papai diante de tudo oque enfrentava. Ele, após saber da história de meu pai, lembrou-se queacompanhou o início do caso pelos jornais.

Após uma semana de tratamento com o acompanhamento do médi-co, que lhe deu várias drogas, a melhora da minha mãe era clara e indiscutí-vel. A alegria no rosto de papai era flagrante. O médico ainda informou que,milagrosamente, a criança que mamãe aguardava estava viva, e bem. A ale-gria após muito tempo deu as caras em nossa casa. Era um final de semana.

Papai colocou uma cadeira na calçada para mamãe se sentar àbeira da rua, assim ela podia rever as pessoas e o mundo do lado defora das quatro paredes daquele quarto, que sequer tinha janelas. Emesmo que tivesse, já significava uma prisão. Afinal, meu amigo, elahavia ficado mais de dois meses acamada.

Mamãe, naquele dia, pareceu estar de volta à vida e à luz do dia.

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O julgamento

A VIDA em Arraias seguia numa rotina imutável. O únicofato novo na cidade é que todos os seus moradores conheciam ahistória de nossa família e assim tomaram conhecimento da datado julgamento de papai, que estava prestes a acontecer. Aguardá-vamos ansiosos. Nós, e muitos arraianos, todos torcíamos pelaliberdade de papai. No dia do julgamento, ele era a cara da tristezaem pessoa.

O fórum da cidade estava lotado. Muita gente disputava lugarnas janelas largas de madeiras lavradas, outros se apertavam nas duasportas de acesso à sala de audiência. Foi um dia muito movimentadoem Arraias. Um dia de muita expectativa para a nossa família e paratoda a cidade. Todos aguardavam o final da tal audiência.

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A razão da tristeza que tomou conta de papai era exatamente emrazão da palavra “audiência”. Isso mesmo, audiência. Não era ainda ojulgamento, como todos nós esperávamos. Era só uma tal audiênciade instrução, ou coisa parecida. Foi uma decepção geral. Todos torci-am pela liberdade de papai, que foi adiada. No dizer da justiça, ficouadiada sine die.

Acho que a tristeza e a frustração de papai devido à decepçãocom a audiência afetaram mamãe, pois seu estado de saúde voltou apiorar. Papai, entre a desilusão com os acontecimentos do seu proces-so e o estado de saúde de mamãe, entrou em completa depressão edesânimo com a vida. Não quero acreditar, mas parece que o demô-nio, aproveitando-se das fraquezas de papai, empurrou-o para o jogode baralho novamente.

Papai jogava escondido de todos nós, e eu não sei se um anjo ouo próprio demônio fuxicava para minha mãe. Só sei que espantosa-mente ela sabia, ou pressentia, e era visível que não empreendia ne-nhum esforço para se recuperar. Lembro como se fosse hoje: entrei noquarto e ouvi uma senhora que se chamava Eva, mulher do seu Salva-dor, um amigo de papai, fazendo um apelo a minha mãe.

– Dona Geralda, a senhora não pode continuar assim, sem sealimentar. Por favor, coma essa canja que as meninas mandaram. SeuRaimundo se entregou à tristeza e a senhora do mesmo jeito. Essascrianças, como vão ficar, dona Geralda? Lute, pelo menos por seusfilhos! São todos tão pequenos, e apesar de tudo são alegres. Só omaiorzinho parece entender um pouco o que se passa.

Ela se referia a mim. Realmente, eu sofria muito com tudo aquilo.Mamãe ouviu tudo no mais completo silêncio, fixou o olhar em

meu rosto por longo tempo, depois passou a mão nos cabelos de Re-gina, que estava deitada ao lado dela, e não respondeu uma só palavra.Talvez para que dona Eva não lhe falasse mais nada, começou a comerlentamente. Mas dona Eva novamente bronqueou, dizendo que nãotomasse apenas o caldo, mas que comesse alguns pedaços de carne degalinha que flutuavam na tigela.

Os dias se passavam. Minha mãe entrou no sétimo mês de gravi-dez. Ela passava o dia deitada e completamente imóvel. Eu, que sempre

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a achei a mulher mais linda do mundo, reconheço: naqueles dias, nãoera nem sombra daquela linda mulher que sempre fora. Era só pele eosso. O que se via era uma enorme barriga, parecia uma azeitona atra-vessada por um palito; muito pálida, cabelos embuchados e sem bri-lho; os olhos eram apenas dois buracos fundos e negros em um rostobranco, em que parecia não correr uma só gota de sangue. Era impos-sível destacar sua boca: faltavam-lhe as cores. Sem exagerar e sendoapenas franco na análise, a verdade é que a aparência de minha mãe erahorrível e até amedrontava. Era uma verdadeira morta-viva deitadanaquela cama feita de tijolos amontoados. Como a doença, o desâni-mo e a pobreza transformam uma pessoa!

Em um daqueles dias tão tristes, quando todos apostavam no fim davida de minha mãe, meu irmão Didi – que até hoje tem a fama de ser odurão da família, de homem de poucas lágrimas –, ao chegar da rua, abriua porta do quarto apenas o suficiente para introduzir a cabeça e perguntouao meu pai, apontando para mamãe com o queixo: “Pai, já morreu?”

A pergunta não era só porque ele, aos seis anos de idade, já reve-lava seu pragmatismo com a vida; é que o que mais se ouvia era quemamãe iria morrer a qualquer momento.

Era o que todos afirmavam. Até mesmo Davina, parteira antigae calejada no ofício, dizia que era impossível mamãe sobreviver aoparto. E a cada dia se aproximava mais e mais o parto de mamãe,aumentando em nós o temor de perdê-la. O tempo caminhava parale-lamente ao nosso medo e ao desespero de papai, que não aceitava amorte de mamãe naquele lugar que não era o nosso.

O parto de mamãe aproximava-se e as dificuldades aumentavamdia a dia. Quase não tivemos visitas de parentes. Ajuda deles, sei quenão houve. Até hoje não sei dizer por que meu avô, que morava acinqüenta quilômetros de Arraias, nunca nos visitou e não nos ofere-ceu qualquer auxílio. Depois de tudo passado, sempre perguntei omotivo ao meu pai, mas ele nunca respondeu coisa nenhuma. Talvezmeu avô seja daquele tipo que acredita que não se deve ajudar aquelesque Deus esquece, exigindo a prova de sofrimento.

Tantas coisas inexplicáveis nos aconteceram em Arraias... Hojetenho dificuldades em recordar algo de bom que tenha ocorrido naquela

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fase da minha infância. Minhas alucinações e desesperos se mistura-vam à triste realidade daqueles dias que nos devoravam vivos.

Em mais uma das tantas manhãs em que eu acordava sem vonta-de de viver, tomado pelo constrangimento de ter o pai preso e o cora-ção quase que movido só pelas tristezas, fui ao encontro do meu ami-go no asilo. Eu queria que ele me ajudasse a ir até o Combinado, pedirajuda ao meu avô. Eu tinha plena noção das posses dele e, na minhacompreensão, devido às conversas que eu ouvia, meu avô se apodera-ra de muitas coisas nossas quando da ausência de meus pais. Eu tenta-va explicar tudo isso ao velho garimpeiro, com minhas poucas pala-vras e curto entendimento do que acontecia naquele tempo. Em con-versa com ele, eu disse:

– Eu preciso falar com meu vô para ele comprar remédio paraminha mãe. Ele tem dinheiro. Ele tem um armazém grande, bemgrande, lá no Combinado.

– Não precisa você ir lá. Escreva, mande uma carta pelo ônibus.Ir lá gasta muito dinheiro e o motorista deve conhecer o armazém doseu avô. Ele não é bem grande? – Aconselhava o velho, com sua cons-tante ironia.

– É bem grande, sim senhor! maior que este asilo. O armazémdo meu avô é o maior do Combinado – sustentei ao velho.

– Mas o coração dele deve ser do tamanho da cabeça de um alfine-te – disse o velho, com ar incrédulo quanto às posses do meu avô.

– O coração dele é... não sei, mas ele gosta de mim – afirmei aovelho.

– Se gosta mesmo, não sabe das coisas. Escreva para ele. Umavô que tem um armazém bem grande não nega remédio à mãe doneto amado. Escreva, que é batata.

– Eu não quero que ele mande batatas! – respondi, irritado.– Quando falo que é batata, quero dizer que vai dar certo esse

nosso plano.Na verdade, o velho nunca acreditou que meu avô fosse propri-

etário de um grande armazém, tampouco que fosse capaz de nos dei-xar ao completo desamparo, passando tantas necessidades. Não lheparecia possível aquela contradição.

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O velho era uma pessoa irônica e, a exemplo de mamãe, se di-vertia com minha seriedade precoce. Ele pensava que eu, naquelaconversa, inventava ter um avô rico para me salvar da situação de ex-tremas dificuldades e privações em que vivíamos em Arraias.

É. Mas aquele velho garimpeiro encontrou em minha pequena efrágil companhia uma forma de extravasar suas dores, lamentar suasdesventuras. Em troca, me passou um pouco de sua sabedoria de vida.Eu, com certeza, o ajudava a espantar sua indesejável solidão.

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Meu cavalo bravo

ERA boca da noite, como se falava em Arraias. Eu voltava commeu pai de uma casa onde ele fazia um pequeno serviço de encana-mentos de água. A casa ficava um pouco antes da entrada da cidade.Nós morávamos no final dela. No entanto, naquele tempo, a distânciaentre a entrada da cidade e seus limites finais não media mais de umquilômetro.

Curiosamente, a estrada pela qual se entrava na cidade era a mes-ma da saída. Para entender melhor, estando dentro de Arraias, não seseguia para outra cidade atravessando-a; voltava-se para Campos Be-los para seguir viagem, inclusive ao Combinado.

Mas o que eu ia lhe falar era sobre o nosso retorno do serviço naboca da noite. Eu e papai voltávamos para casa. Ele caminhava rápido

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e eu o seguia muito atrás, choramingando e, talvez, exagerando na de-monstração de cansaço.

De vez em quando papai parava, voltava-se para trás e me cha-mava de molenga, para em seguida ordenar que eu andasse mais rápi-do. Para convencer meu pai do meu cansaço, sentei à beira da estrada,debaixo de um pé de mutamba.

– Hei, pai! Pode ir, que depois eu vou. Estou muito cansado... –falei, fazendo chantagem.

– Vai ficar escuro! A onça vai te pegar. Vamos logo! Anda logo,rapaz – insistia papai, quase perdendo a paciência.

O velho garimpeiro, que vinha pela estrada, sei lá de onde, maisque de repente surgiu atrás de nós. Talvez tenha nos alcançado devidoà minha moleza. Cumprimentou papai e lhe falou:

– Boa noite, seu Raimundo. Me diga o que está acontecendocom o meu amiguinho, que está com cara de choro e sentado ali, todoemburrado.

– Ele esta com preguiça de andar – resmungou papai.– Coitadinho, seu Raimundo! Pobrezinho desse menino! O senhor

não está vendo que daqui até lá é muito longe, e ele não agüenta cami-nhar essa lonjura toda? É longe demais. O bichinho tem razão, seuRaimundo – O velho falou tudo isso me apoiando.

– Como diz a mãe dele, quem não o conhece é que o compra –esclareceu papai, demonstrando que meus gestos não lhe convenciam.

– Nada disso. É que tem que arranjar um cavalo para ele, umcavalo do bom, para ele montar e ir pra casa bem rápido que nem umveado correndo da onça no meio da campina. – recomendou o velhogarimpeiro.

O velho entrou na mata à beira da estrada e sacou da cintura umenorme facão, cortou uma vara mais ou menos no tamanho de umcabo de vassoura, limpou bem as folhas e os talos. Após passar vigo-rosamente o facão várias vezes sobre ela, deixou-a bem lisa (até pare-cia que amolava o facão na vara); fez um talho na ponta mais grossa,mas apenas o suficiente para facilitar que esta, medindo mais ou me-nos um palmo, envergasse para virar e parecer-se com a cabeça docavalo. Entregou-me a vara e ordenou:

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– Tome vaqueiro, este cavalo é seu! Monte nele, mas com muitocuidado: ele é meio xucro. Tome esta rama, e quando ele não quisercorrer, peia no lombo deste cavalo bravo.

Meu pai até hoje conta isso com muito gosto. Creio que é a únicacoisa que ele não se importa de lembrar daqueles tempos lá de Arraias.Diz ele que nunca viu um sorriso com tamanha ingenuidade e tanta féem uma fantasia. É papai que conta: montei no cavalo e saí em dispa-rada, passando na frente dos dois.

Cheguei em casa muito antes deles, que ficaram para trás, con-versando sobre coisas de que eu nunca fiquei sabendo. Mas sei quepapai aprendeu uma lição: com criança se age com inteligência ecarinho. E também depois daquele dia ele mudou sua impressãosobre o velho garimpeiro. Antes meu pai não gostava muito dele,implicava demais com minha amizade por aquele senhor e o consi-derava um maluco.

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Nasce uma criança valente

AO chegar em casa, não guardei meu cavalo, nem tive tempode tirar-lhe a cela. É que, quando entrei, fiquei acanhado diante detanta gente que estava lá dentro. Quase voltei em cima do rastro paraapressar papai (era comum ele parar e ficar conversando com ami-gos e conhecidos que encontrasse nas proximidades). Naquele mo-mento não entendi a razão de tantas pessoas em nossa casa. Era tantagente que quase nem notaram a minha chegada. Me desesperei, poisnão me deixaram entrar no quarto. Foi fácil deduzir: alguém tinhamorrido e o corpo estava dentro daquele quarto. Mamãe morreu!,eu disse a mim mesmo.

Saí de casa correndo para apressar papai (e daquela vez nem foipreciso apanhar o meu cavalo).

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Bem, nós já esperávamos a morte de mamãe. E com o poucoentendimento que eu tinha naquela época do que significava a mor-te, de uma coisa eu já tinha certeza: a morte nos separa das pessoasque amamos. Então, apressado por uma dor no coração que meemudecia, saí correndo pela cidade afora. Era tanta angústia e de-solação que ao encontrar meu pai conversando com Mundico e Jo-aquim Barbeiro, hoje já falecidos, dois quarteirões acima do nosso,este último, percebendo meu estado, fez suas próprias e rápidasconclusões, e disse:

– Seja forte e tenha calma, Raimundo, muita calma. Você aindatem seus filhos, que Geralda tanto amava.

– Sua mãe morreu, menino? – perguntou papai. – Fala logo,menino!

Tentei, mas não consegui responder nada. Comecei a chorar e asoluçar descontroladamente. Meu pai nem se despediu dos amigos,saiu correndo em direção a nossa casa, com a boca no mundo,chorando.

– Ai, meu Deus, isso não podia me acontecer! O que será demim? Tanto que eu tinha esperança de um dia sair daqui e levar minhafamília embora. Agora vou deixá-la enterrada neste lugar. Oh! Deus!,não faz isso comigo, não! Não pode ser verdade... Ai, meu Deus!

Eu corria atrás de papai e gritava:– Me espera, papai! Me espera, papai!Algumas pessoas que nos viam correndo e chorando nos segui-

ram até a porta de nossa casa. Todos sabiam do estado de mamãe, eassim só aumentou a multidão em frente e dentro da casa. Papai en-trou atropelando pessoas e coisas. Grande parte daquele pessoal ex-clamou quase em coro: “Seu Raimundo chegou, deixem ele passar!”.Meu pai entrou no quarto após passar por todos aqueles curiosos quese amontoavam na porta da entrada e por outros grupos que se junta-vam na parte que funcionava como sala.

Papai, entre choros e lamentos, se surpreendeu ao entrar no quar-to. Imagine, minha mãe estava de pé, ao lado da cama, segurada porduas mulheres: uma, me lembro bem, era Davina, que limpava ummonte de sangue. Mamãe, que estava de costas para a porta do quarto,

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virou-se para trás com extrema dificuldade. Avistando papai em pé,na porta, e com cara de surpresa, perguntou-lhe:

– O que é, Raimundo? Que cara é essa? Por que você estáchorando assim?

– Nada, não! É só porque Deus é bom demais. – Foi tudo o queele falou.

Papai, aliviado, me olhou com uma cara de quem queria dizer:depois você me paga. Certamente, ele entendeu tudo. Eu nem chegueia abrir a boca para falar: ele e o Joaquim Barbeiro é que concluíramque se tratava de morte, sem que eu falasse uma só palavra.

Na verdade, o que aconteceu foi que minha mãe tinha acabadode dar a luz à minha irmã Rosimeire.

Ela nasceu completamente fora de peso, mas com relativa saúde.Era o primeiro milagre que Deus nos concedia em meio a tantossofrimentos. O nascimento de minha irmã com vida foi uma bênçãodos céus. Todos foram unânimes em reconhecer que aquela criançalinda era uma grande vencedora.

Mamãe não estava morta, graças a Deus!, mas todo o grandeinfortúnio e a tragédia fatal de nossas vidas se iniciariam a partir daquelemomento. Recordo muito bem que tudo se iniciaria a partir do nasci-mento de minha irmã.

É, meu amigo, se já tínhamos comido o pão que o diabo amas-sou com o rabo, a partir daquele dia é que iríamos ter de comer omesmo pão, só que doravante vomitado pelo demônio. Ou sei lá comolhe explicar... Só sei que as marcas mais profundas, as dores mais agu-das e as maiores desilusões com a vida iriam começar, ou melhor,tudo iria se acabar naqueles dias.

As coisas para minha família, infelizmente, tomaram o rumo tortoa partir do dia do nascimento de minha irmã Rosimeire. Aquele nasci-mento era uma data inesquecível para nós, uma data de alegria e triste-za. 13 de fevereiro do ano de 1967. Fazia um mês e um dia que euhavia completado sete anos de idade.

Minha mãe passou por um parto muito difícil e não mais se le-vantou da cama. Estava muito debilitada fisicamente. Mesmo diantede tudo aquilo, eu tinha uma outra preocupação: a minha amiga, a

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muda do asilo, também estava grávida. E o velho garimpeiro me con-fidenciou que ela iria morrer no parto. Eu tinha uma vontade maiorque meu tamanho de falar sobre o assunto com a muda, mas não sabiacomo lhe falar sobre aquele algo tão sério por meio da linguagem dela.Se soubesse, perguntaria também o que todo mundo queria saber:quem era o pai da criança que ela esperava. Eu ouvia os adultos fala-rem que era um crime o que fizeram com ela: engravidar uma pessoanaquela condição.

Se eu soubesse me comunicar com ela de forma completa, certa-mente a linda muda me confiaria aquele segredo. Sei que ela fez amorde livre e espontânea vontade. Seu instinto sexual me parecia muitoforte. Tanto que meu primeiro beijo aconteceu aos sete anos de idade.E – imagine você – foi a muda quem me beijou. O primeiro foi quaseforçado. Eu não gostei nem um pouquinho; mas, para não perder suaamizade, deixei que me beijasse várias vezes. Me incomodava aquelalíngua enorme invadindo minha boca pequena. Se ainda hoje é peque-na, imagine naquele tempo.

O atrevimento da muda não passava muito além disso. Talvez obeijo fosse mais impulsionado pelo instinto maternal. Quem pode sa-ber? Ela nunca tocou meus órgãos genitais. Gostava de beijar meurosto e meus lábios, aqui e ali tentava sugar minha língua. Eu a repre-endia, constrangendo-a; cuspia muito e limpava a boca com a camisalogo em seguida às suas investidas. Aqueles beijos me deixaramencabulado e isso me distanciou um pouco dela. Mesmo assim, eucontinuava preocupado com a profecia do velho.

Numa manhã sem sol de uma quarta-feira, eu vinha de uma ca-minhada que sempre fazia em paralelo às muralhas construídas compedras empilhadas que arrodeavam o morro. As muralhas não medi-am mais do que um metro de altura. Elas me fascinavam, embora fos-sem perigosas, pois as cobras moravam nas rocas formadas pelas pe-dras. Quem me alertava sobre o perigo era a finada dona Benedita. Noentanto, nunca me deparei com nenhuma serpente nas muralhas.

Dona Benedita, que era neta de escravos, falou para minha mãe –e eu ouvi tudo com muita atenção – que aquelas muralhas foram cons-truídas com mão-de-obra escrava. Acho que isso é que me atraía. Pois

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bem, naquela quarta-feira, eu, caminhando pelas muralhas, encontreium pássaro ferido. Ele era negro e muito pequenino. Quase podia es-condê-lo na palma de minha mão. Como o pássaro não pudesse voar,eu o levei ao asilo, para mostrar ao velho garimpeiro.

Quando entrei no asilo, com o pássaro na mão, pela primeira vezna vida presenciei uma cena que com certeza não era deste mundo. Eunão tinha a menor noção do que estava vendo. Anos depois é queentendi... Meu Deus do céu! Ainda hoje, quando lembro, me arrepiotodo...

Eu vi duas mudas, uma deitada sobre a mesa, morta, um lençolazul a lhe cobrir o corpo, que estava muito inchado. Era uma mulherde porte médio. Morreu devido a complicações no parto, sem conse-guir dar à luz – como previu o velho garimpeiro.

Ao lado daquele cadáver eu vi a própria muda, de pé, alisando abarriga daquela cujo corpo estava estirado na mesa. Ela, que sempresorria quando me via, não sorriu daquela vez. Quase não tinha nin-guém para chorar sua morte, ali em volta da mesa.

Eu vi a porta do quarto do velho garimpeiro aberta. Entrei eperguntei:

– Por que tem duas mudas? Uma está deitada na mesa e a outra aolado, com cara de triste, nem me olhou direito – expliquei ao velho.

– Santo Cristo! Você viu duas mudas lá fora? – espantou-se ovelho.

Ele estava sentado na cama; e eu em pé, na porta, com a vistapara dentro do quarto e, se quisesse, para o corredor, bastava inclinarum pouco a cabeça. No final do longo e sombrio corredor estava ocorpo estendido na mesa cheia de velas em volta. Olhei para o corre-dor e confirmei ao velho.

– É, estou vendo as duas lá.– Bem, vamos lá pertinho – falou baixinho o velho. – Você vai

falar umas coisas para ela, tá?O velho garimpeiro levantou-se da cama com dificuldade. Ele

sofria com o reumatismo, que parecia lhe torcer os ossos. O coitadosentia muitas dores nas juntas (às vezes, eu até ouvia os estalos de suasarticulações). Após se pôr de pé, ele se benzeu e saiu do quarto,

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dirigindo-se até a mesa da morta. Então me ordenou, segurando-mepelo braço:

– Diga à muda que ela deve se conformar e seguir sua caminhada.– Eu estou conformada e feliz – respondeu aquela outra muda,

ao lado do corpo morto.– Ela disse que esta conformada e feliz – falei ao velho o que

ouvi da muda.– Como ela lhe disse, se é muda? – perguntou o velho, simulan-

do susto e incredulidade, dirigindo o olhar à sua volta sobre outrosmoradores do asilo, que pareciam não se perturbar com a morte damuda.

– É mesmo, mas ela está falando – reafirmei.Tentei me soltar do velho, que ainda me segurava. Eu estava muito

confuso e começava a ficar com medo. Pedi para ele me deixar ir embora,pois eu estava muito confuso e amedrontado. Consegui me soltar e saícorrendo para casa. Na correria, ainda ouvi a muda me falar: “Não seassuste, não tenha medo de mim”. Aquele apelo me assustou ainda mais.

Fiquei mais de uma semana sem visitar o velho no asilo. Mas elepassou a ir à minha casa. No dia seguinte, ele quis saber se eu tinhacomentado com alguém. Respondi que não. Então ele me recomen-dou muito que eu não devia contar para ninguém o que eu tinha visto.Disse, me advertindo, que se eu falasse ninguém acreditaria e diriamque eu era louco e mentiroso. O velho insistiu tanto com aquela reco-mendação, que até hoje eu nunca tinha falado sobre isso com ninguém.

Ele se preocupava com o meu comportamento, pois eu fiqueimuitos dias encabulado com as cenas e me recusava a entrar no asilo.O velho tentava me convencer a não temer. Dizia que eu era um privi-legiado, um felizardo, que poucas pessoas podiam ver um corpo de-sencarnado e falar com ele. Eu não entendia e nem entendo dessascoisas de dois corpos, desencarnação e espíritos.

Era tudo tão complicado! Além do mais, eu também não estavainteressado e não via importância nessas coisas. Mas o velho queria mepreparar para algo mais, e ficava horas conversando comigo, contan-do histórias. Por intermédio delas, falava o que queria que eu ouvisse,ou aprendesse, sei lá.

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Fazendo um extrato de tudo, o velho garimpeiro acreditava queeu tinha o dom de enxergar e falar com o mundo invisível, que, segun-do ele, nos rodeia; um mundo que – não me lembro bem como eledizia – está dentro do nosso mundo material, ou o contrário, o nossomundo material é que está dentro desse mundo invisível. O velho seencantava com aquilo, que ele julgava ser um dom que eu possuía, epedia que eu explicasse como era o corpo da muda que ficava ao ladodo corpo da muda morta.

– Quando você viu as duas mudas, como era a que falou comvocê? Era igual à outra que conhecíamos?

– Igual à outra não era. Ela não tinha aquela barriga de neném –respondi.

O velho emendava uma pergunta atrás da outra, não se continhade tanta curiosidade.

– Mas não tinha barriga de grávida?! Que roupa ela usava?– Acho que ela não usava roupa – disse ao velho.– Ué! Estava pelada?– Parecia que sim, não era um corpo assim como o nosso. Era

bem esquisito...– Então, como era?– Não sei explicar.– E como você sabe que a outra mulher era a muda?– Eu sei que era ela pelo jeito. O olhar dela... Era assim mesmo

que ela me olhava, desde a primeira vez em que a vi – respondi, já mecansando.

– Ela tinha biloca nas mãos?O velho, com os olhos brilhando de felicidade – afinal, eu estava

me soltando e concordando em falar –, perguntou maliciosamente,envolvendo as bilocas na conversa.

– Não. Ela não tinha bilocas nas mãos, não. Com quem vão ficaras bilocas dela agora? – Perguntei, interessado nas bilocas da muda.

– As bilocas? Não sei, vou ver se as consigo para você.

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Aparece o homem do portãodo mal – seria um anjo?

NO dia seguinte, fui caminhar dentro do rio e resolvi sair daságuas para andar pelo pé do morro, que era bastante alto. Eu tinhamuita vontade de ir lá no topo para ver o portão de entrada do céu. Oportão do céu estava longe; não era como o portão do mal, que ficavabem no pé do morro. Me faltava coragem e disposição. Eu precisavade uma companhia que me estimulasse. Estava cansado da caminhadae iniciei o retorno para casa.

Ao me aproximar do portão encantado do mal, vi um homemnegro, gordo, com ar de exausto. O suor lhe escorria pelo rosto eensopava sua camisa, que estava colada na pele do seu peito; sua careca

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suada brilhava ao sol. Ele estava sentado numa pedra quase rente aochão e com as costas escoradas em um dos mourões de madeira quesustentavam as robustas dobradiças do portão. Não parecia mau; tan-to que não tive medo ao passar por ele. O homem abriu um enormee simpático sorriso para mim, mas não falou nada; inclinou a cabeçapara baixo, como se prestasse uma reverência à minha pessoa. Eufiquei sério e passei apressado por ele, seguindo no rumo de casa,com sua imagem fixa em meus pensamentos. Aquele homem tinhauma aparência diferente de todas as pessoas que eu conhecia, masmuito amistosa.

À tarde, entrei no quarto para ver mamãe e fiquei muitodeprimido. Ela não melhorava seu estado de saúde. Cada dia eraapenas mais um dia de tristeza em nossa casa. Agora tínhamos maisuma preocupação: a minha irmã recém-nascida, que também estavamal de saúde, mas inspirava menos cuidados que mamãe. Meu paisabia que o tratamento adequado para minha mãe estava fora deArraias, mas ele não tinha condições de levá-la, devido à falta dedinheiro e também por ser um preso na cidade. Creio que isso era oque o desanimava de viver.

Deixei o quarto e fui sentar-me na calçada. Papai chegou de algumlugar e perguntou como estava minha mãe. Respondi que estava domesmo jeito. Ele saiu momentos depois e, ao retornar, me disse quemamãe estava piorando muito e que ele já estava quase enlouquecendocom tudo aquilo.

Papai me mandou ir ao comércio do Diomar comprar algumacoisa. Quando entrei na venda, deparei com o homem que eu tinhavisto no portão do mal, lá no pé do morro. Ele estava sentado em umadas duas portas do comércio. O homem sorriu novamente para mim,como da primeira vez. Eu, mais uma vez, fiquei sério e encabulado. Odono do comércio pensou que fosse com ele. Pedi o que queria e oDiomar embrulhou a mercadoria num jornal. Quando passei pela porta,quase esbarrando no homem, ele perguntou como estava minha mãe.Respondi que estava do mesmo jeito.

Diomar me olhou espantado e disse: “Desculpe-me. Melhoras asua mãe”. Olhei para o homem do portão do mal. Eu sequer sabia

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qual era seu nome. Ele movimentou a cabeça para a esquerda e paradireita, creio que reprovando a atitude do Diomar, que só se manifes-tou sobre minha mãe após ouvir nossa conversa. Diomar saiu de trásdo balcão e se dirigiu à porta e ali se prostrou. Ficou me observandoaté eu virar a esquina, desaparecendo de sua vista.

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A carta aberta ao povo arraiano– nasce uma esperança

QUANDO voltei do comércio do Diomar, encontrei dona Evaem minha casa. Ela conversava com papai na calçada da porta de en-trada, parecia se despedir dele. Só ouvi o finalzinho da conversa. Elafalou: “Pode deixar, seu Raimundo. Eu vou começar a fazer isso ama-nhã mesmo”.

Eu perguntei ao meu pai:– O que ela vai fazer amanhã, pai?– Nada. Vai nos ajudar a solucionar um problema.– Que problema, pai?– Depois eu te conto.

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Eu fiquei muito curioso. Mas os dias se passaram e esqueci apromessa de dona Eva. Só consegui saber o que ela prometeu a papai,naquele dia, quinze anos depois. Meu pai nunca me contou. Também,eu nunca mais perguntei. Mesmo assim eu descobri. Foi por acaso. Eurevirava vários papéis, documentos e fotografias que mamãe guardavaa sete chaves. Mas era só por zelo. Mamãe era muito cuidadosa e orga-nizada com as coisas e me ensinou a ser assim. Tanto é que hoje tenhodificuldades em conviver com o mínimo que seja de desorganização edesmazelo. Aliás, eu puxei à minha mãe em muitas coisas.

Mas, voltando à história Dona Eva se foi; eu e papai fomos paradentro de casa. Eram seis horas da tarde, estava escurecendo. O sinoda igreja badalava, avisando a hora. É... como tenho saudades do anoi-tecer de Arraias! É lindo, é mágico, tem algo de misterioso, basta olharpara o alto do morro.

Foi nesse horário que o velho me ensinou a ver o portão de en-trada para o céu, que fica lá no topo do Morro da Cruz. Misteriosa-mente, é nesse exato horário que o portão torna-se mais perceptívelaos olhos humanos de menor fé.

Não me contive e interrompi Deca, pela segunda vez, para lheperguntar:

– Me desculpe, por favor. Mas o que a dona Eva prometeu a seupai e você só descobriu quinze anos depois?

– Nada a desculpar. Eu realmente, sem querer, mudei de assunto.É que me lembrei do anoitecer de Arraias. É uma coisa muito viva naminha saudade, assim como o velho garimpeiro.

Deca respondeu e imediatamente retornou a narrar sua história,explicando o que dona Eva se prontificou a fazer.

– Pois é, dona Eva prometeu a papai, naquele dia, correr umacarta aberta à população de Arraias, apelando à caridade públicados arraianos. A carta tinha o objetivo de levantar dinheiro paraajudar meu pai a levar mamãe a Brasília, em busca de tratamento. Eeu, anos depois, encontrei o original da carta no meio de papéis efotos antigas.

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Era uma carta com um texto datilografado em poucas linhas(dez, no máximo). A carta foi datilografada por alguém de pouca prá-tica. Abaixo de um texto singelo e direto, havia linhas bem espaçadas,destinadas a colher assinaturas dos colaboradores da causa. Poucaslinhas assinadas; a maioria estava em branco.

Já tentei encontrar esse documento, mas minha mãe diz que operdeu. Tenho minhas dúvidas... Eu não sei de quem foi a iniciativa deguardar aquela carta, se de meu pai ou de minha mãe, nem qual era aintenção, já que ambos não gostam de lembrar daquele tempo e detoda essa história que lhe conto.

Creio que meu pai voltou a se animar com a vida após a idéia deviabilizar uma maneira de sair de Arraias, levando mamãe para se tratar.

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O medo do homemdo portão do mal

EU estava sentado na calçada da rua tomando sol pela manhã,vendo algumas pessoas passarem. Ali, sentado, descobri uma fila deformigas carregando folhas para dentro de um buraco muito próximoao lugar em que eu estava sentado. Me distraía observando o trabalhodas formigas. Levantei a vista, abandonando as formigas, e olhei paraa curva da rua. Era uma rua muito curta, começava em frente à dele-gacia de polícia, que era geminada ao depósito municipal em que mo-rávamos, e terminava no rio. Ela ganhou o nome de José Marinho, que,segundo meu pai, era o homem que comandava a alegria em Arraias.Tenho muita vontade de voltar lá...

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Mas não é bem da rua que eu ia falar. É que eu vi o homem queconheci no portão do mal descendo a rua. Papai se aproximou, can-tando e externando uma felicidade como há muito tempo eu não via.Então, eu perguntei:

– Pai, o senhor conhece aquele homem gordo, preto?– Que homem? Não estou vendo.– Aquele que vai descendo bem lá na curva.– Eu não estou vendo homem nenhum – sustentou papai.– Deixa, ele já foi. Não dá para ver mais – me conformei.O homem desapareceu na curva. Ele se foi, e papai não conse-

guiu vê-lo. Acho que meu pai não prestou atenção. Talvez tenha seinteressado pouco. Os adultos normalmente não se importam com asconversas dos velhinhos e das crianças. Se soubessem o quanto os an-jos usam as crianças para dar os santos recados do céu! São tantas asmensagens preciosas em que não prestamos atenção... Os velhos ge-ralmente trazem o conhecimento despido das vaidades graciosas. Massobre aquele homem que conheci no portão do mal, percebi uma coi-sa: ele passou a cruzar muito o meu caminho. E aquilo me chamava aatenção, ou me incomodava, não sei ao certo.

Antes de saber dos portões do mal e do bem, eu nunca tinhavisto aquele homem negro, que me causava curiosidade. Resolvicomentar o assunto com meu amigo, o velho garimpeiro. Ele me davatoda a atenção. Mamãe também me dava muita atenção, mas ela estavadoente e não podia conversar comigo. Meu pai sempre estava no mundoda lua, ou nervoso e atribulado pela situação que vivíamos. Quase nãoconversávamos.

A falta de mamãe e a impaciência de meu pai me faziam cada diamais companheiro do velho garimpeiro, que se interessou muito maisem conversar comigo depois que eu vi a muda desencarnada.

Fazia tempo que eu não ia no asilo. Entrei com um pouquinhode medo e caminhei apressado pelo corredor. Invadi de supetão oquarto do velho, que sorriu e perguntou:

– Veio pelas bilocas?– Nem me lembrava das bilocas. Cadê elas? – perguntei.– Se não vem por elas... pra que saber? – ironizou o velho.

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– Tá bom, não quero saber. – E entrei no assunto que me interes-sava no momento. – Sabe, um dia eu estava andando na serra e vi noportão do mal um homem negro, bem gordo e careca, que anda des-calço com uma calça de pano de saco de farinha de trigo. Ele amarra acalça na cintura com uma corda verde, luminosa, e usa camisa de meia.Toda vez que me encontra, ele sorri. Um dia perguntou como estavaminha mãe. O senhor conhece ele?

– Não conheço e nunca vi. Eu conheço todo mundo neste lugar,e esse homem gordo, careca, de cor negra, eu acho que não é daqui –respondeu o velho, segurando o queixo com a mão.

– Da próxima vez que você encontrá-lo, pergunte o nome dele eo que faz aqui... Ah! e também onde ele dorme.

– Tá bom, eu já vou – me despedi do velho e fui para casa.Quando voltei para casa, fui direto ao quarto e dirigi o olhar

para a cama onde minha mãe padecia. Ela estava lá, deitada de bruços,mas com o rosto virado para a porta. Mamãe estava com os olhoscerrados e os abriu lentamente – creio que para se certificar de quemse tratava –, fechando-os de novo logo em seguida. Foi então que tiveum enorme susto. Talvez o maior susto da minha vida. Quando digo“talvez o maior susto da minha vida”, é porque tive um outro sustoque nunca mais vou esquecer. Não sei qual dos dois foi o maior... Bem,deixe as comparações.

Quando mamãe cerrou os olhos, olhei para o canto esquerdo doquarto que ficava rente à cabeceira da cama. E aí, meu amigo (aindabem que, naquela época, com sete anos, eu tinha o coração fortalecidopela inocência), imagine: o homem do portão do mal estava sentadolá, no chão do quarto, bem ali no cantinho! Quando o vi – e até hojenão sei o porquê –, meus cabelos se arrepiaram e meu sangue gela.Tentei um grito, mas a voz não saiu. Então me veio uma repentinavontade de chorar.

Senti um enorme medo daquele homem.O curioso é que nas outras vezes em que o vi não me aflorou

nenhuma sensação diferente. Mas daquela vez algo se passou, e eunão compreendia o que era. Tentei perguntar a minha mãe ou a ou-tras pessoas que estavam no quarto, fazendo companhia a ela, o que

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aquele homem fazia ali. E ele, parece que adivinhando minhas inten-ções, sorriu para mim, como das outras vezes – mas era um sorrisodiferente, tão calmo e tranquilizador, que instilava uma grande paz.Ele, então, me fez sinal de silêncio, cruzando seu dedo indicadorsobre os grossos e arriados lábios.

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A morte da mãe do Terto e ohomem do portão do mal

SAÍ do quarto e fui sentar na calçada da esquina em frente àdelegacia. Deixei mamãe lá no quarto, com o homem do portão domal e as outras pessoas. Logo o esqueci e fui assistir a uma peladaque acontecia em frente à delegacia. Na pelada jogavam alguns ho-mens. Entre eles, eu gostava de ver o Alexandre, filho de seu JoséMarinho. Ele era um exímio sapateiro e muito habilidoso com a bolanos pés. O sapateiro fazia o ingênuo Terto e outros peladeiros debobos, com seus dribles imprevisíveis e desconcertantes. Como exis-tem craques pelo Brasil afora sem oportunidades! Basta lembrar dofutebol daquela região.

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A pelada foi interrompida quando alguém veio chamar o Terto eavisá-lo de que sua mãe estava morrendo. O jogo acontecia na esquinada rua do asilo com a José Marinho, a rua em que eu morava. A casado Terto era quase na esquina, parede e meia com a delegacia de polí-cia. Esta ficava exatamente na esquina. Passando a delegacia, começa-va minha rua, e o primeiro prédio era o depósito municipal, que, con-forme já falei, nós usávamos como residência.

Quem chamou o Terto não precisou sair da porta da casa dele.De lá mesmo a pessoa gritou: “Terto, corre, sua mãe está morrendo!”.

O pessoal não parou o jogo. Só o Terto abandonou a pelada.Talvez não tenham parado o jogo porque a mãe do Terto estava

com oitenta e seis anos e já andava doente há muito tempo. Em Arrai-as, naqueles dias, todos já estavam preparados para duas mortes: a deminha mãe e a da mãe do Terto.

A morte iminente de minha mãe despertava mais compaixão e tam-bém muita tensão, pois ela era bastante jovem (estava com pouco mais devinte e seis anos) e tinha cinco filhos – o maior era eu, com apenas seteanos. A mãe do Terto era velhinha e só tinha a ele como filho, que, aliás, jáestava com mais de quarenta anos. E quer saber de uma verdade? Terto esua mãe eram muito pobres e sem parentes em Arraias. E se ninguém seimporta com o pobre quando vivo, quanto mais depois de morto...

Só sei que quando alguém gritou ao Terto, ele não se apavorou.Ainda teve calma para levar mais um “chapéu” do Alexandre antes deatender ao chamado.

Logo que o Terto entrou em sua casa, eu me levantei e fui até látambém. Quando entrei na sala, ouvi o choro do Terto dentro doquarto da mãe. Terto chorava e gritava. Mas chorava aos berros: ficoucompletamente descontrolado. Dava até dó ver o desespero daquelehomem. Duas senhoras que estavam assistindo a mãe dele na hora damorte tentaram consolá-lo, mas parece que foi pior. Lembro que elerepetia várias vezes: “Nunca mais vou ver minha mãe!”. Era tantodesespero, que resolvi espiar, botando a metade do rosto na porta doquarto que dava direto para a sala.

Para minha surpresa, o tal homem negro do portão do mal estava ládentro, sentado na quina da cama, de costas para a porta. Assustei-me

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novamente, mas controlei os impulsos e vi quando ele se levantou e pou-sou a mão sobre o ombro direito do Terto. Aquilo tranqüilizou o rapaz,que se calou, ficando, aos poucos, só nos fortes e sentidos suspiros.

Estranhamente, Terto voltou à pelada. Começou a jogar nova-mente, como se nada tivesse acontecido. Todos ficaram pasmos.

Alguém lhe perguntou:– Sua mãe melhorou?Ele respondeu, com a voz firme, sem nenhuma emoção:– Que nada! Ela esta é morta, lá dentro de casa.Terto voltou ao jogo, mas começou a chorar enquanto corria

atrás da bola, e quando a pegava, dava chutões para o alto e emseguida gritava: “Minha mãe morreu!”. Corria atrás da bola outravez, e quando novamente a conseguia, dava-lhe mais chutes. Todosos chutes eram sem eira nem beira, para o rumo que o nariz aponta-va. Aos poucos, ele, com aquelas atitudes esquisitas, acabou com apelada, mas todos compreenderam o estado do Terto e foram aospoucos rumando para casa. Poucos foram gentis com Terto, indover a velha morta.

Terto ficou lá, sentado, no meio do campinho improvisado, com abola entre as pernas e chorando a perda. Olhei à minha esquerda e vi ohomem negro saindo da casa da morta e se dirigindo ao local onde estavao rapaz. Quando o alcançou, olhou-o com pena e novamente colocou amão em seu ombro. Terto, por sua vez, não lhe deu importância alguma;sequer levantou a cabeça para olhar o homem. Era como se não o visse.

Terto estava sentado na terra, abraçando as canelas, com a cabe-ça apoiada sobre os joelhos. Olhava fixamente para o chão. O homemnegro ficou no máximo um minuto ao lado do Terto, em pé; botou-lhe a mão sobre o ombro mais uma vez e seguiu caminhando em dire-ção à saída da cidade. O rapaz ficou sozinho e logo se levantou. Foipara casa com toda a calma do mundo, tomar as providências para osepultamento da mãe.

Na noite do dia da morte da mãe do Terto, minha mãe se sentiabem. Não havia ninguém de fora em nosso quarto e até mesmo meupai estava na rua. Eu, então, dava a ela as notícias da morte da vizinhae das cenas de desespero do Terto. Expliquei a mamãe que quando o

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homem gordo e negro lhe falou alguma coisa, Terto se conformou efoi para casa. Minha mãe se interessou em saber quem era o homem dequem eu falava. E eu lhe disse:

– Ué, mãe, aquele homem que estava sentado aí no chão, naqueledia – falei, apontando para o canto do quarto. – Mãe, ele sempre mepergunta pela senhora!

– Eu não me lembro desse homem, meu filho. Também... é tantagente aqui dentro desse quarto... E na maioria eu nem posso prestaratenção. Às vezes, estou tão atacada pelas dores que não vejo nada.

– Mas, mãe, ele é tão alto! Bem gordão, preto e careca. Tem aboca esquisita e anda descalço. E a senhora me diz que não viu aquelehomem aqui dentro do quarto?! – questionei, irritado. – Eu acho im-possível aquele homem não ser visto, mãe! – insisti.

Dando os descontos por minha mãe afirmar que não viu o ho-mem, eu estava muito feliz. Afinal, ela conversou um longo tempocomigo, o que não acontecia há muito tempo. Em compensação, foi aúltima vez que conversei com mamãe. Depois daquele dia, ela só pio-rou. Até não ter mais como piorar...

Um novo dia chegou e a rotina era a mesma: minha mãe estiradana cama, papai perambulando pela cidade em busca de remédios ecomida, e eu andando pelo rio, contra a corrente, quando não ia aoasilo conversar com o velho garimpeiro.

Depois que a muda morreu, eu já não gostava tanto de andarpelo asilo. Mas me restava o velho com suas histórias e conselhos. Con-versando com ele, eu perguntei o porquê do desespero do Terto dian-te da morte da mãe.

– Toda pessoa que maltrata a mãe, chora assim mesmo. É remorso– disse o velho, olhando para o infinito através da janela.

– Será que quando a minha mãe morrer eu vou chorar tanto assim?– Não, sua mãe não vai morrer. Quando a gente é criança, não

chora tanto. As crianças não medem a extensão da morte da mesmaforma que os adultos. Eles interpretam a morte como o fim de tudo,como um castigo para a vida.

– A morte não é o fim? – perguntei, curioso. – Eu acho que é ofim – afirmei.

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– Não é o fim, não. A morte é o início de um novo ciclo. Algolindo e fantástico como um ser humano não se acaba com o simplesgolpe da morte. Todo ser humano tem um tempo de vida infinito eimpossível de medir: é o tempo espiritual.

O velho ficou por longas horas me explicando seu entendimentosobre a morte. Pena que, naquela época, esse assunto não me interessava.Hoje, sim, me interessa, e muito. Mas lembro muito bem que aquelevelho jurou que um dia me visitaria, depois de morto, e combinamosuma senha para que eu soubesse que era ele. Era um homem de bomcoração e gostava muito de crianças. Eu o adorava, pois conversavacomigo sem construir barreiras, ou seja, não me via como uma criançaincapaz de entender qualquer assunto. Não perdia tempo usando figurasde linguagem para explicar as coisas.

Pela terceira vez interrompi o meu companheiro de viagem. Fi-quei numa curiosidade incontrolável para saber se o velho já tinha lheaparecido e qual a senha combinada.

– Você, que tem realmente uma memória privilegiada, se recor-da da senha?

– Claro que sim – respondeu Deca, com segurança.– E pode me revelar?– Uma das coisas que o velho me ensinou é que as coisas

encantadas, sagradas e do além são segredos que não se partilham fa-cilmente. Nem todos estão preparados – Deca respondeu, tentandovisivelmente voltar à história.

– Preparado? Como, preparado? – insisti, induzindo-o a voltarao meu interesse, que era saber a senha.

– Preparado para respeitar, com o coração, tudo aquilo que osolhos não podem testemunhar nem as mãos tocar. Isso se chama fé, ea fé é poder de poucos. Deus perdoa tudo, menos zombar daquelesque tem fé, pois a fé é o único caminho ao mundo de Deus, quando seestá preso aqui neste nosso mundo.

– O velho lhe ensinou tudo isso?– Que os segredos dos encantamentos se devem guardar, sim;

mas quanto à fé, é algo que está dentro de todos. Em quem a deseja

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com a força da alma, a cultiva, ela cresce, se intensifica, e Deus nosauxilia à medida que a buscamos.

– Eu não quero interromper, pois estou interessado na sua histó-ria, mas o velho já lhe apareceu alguma vez?

– Sim, centenas de vezes – Deca respondeu, candidamente.Quando meu companheiro de viagem afirmou que tinha tido

contato com o tal velho morto, um forte arrepio tomou conta do meucorpo. E em menos de um minuto montei em minha cabeça mil per-guntas. Todas elas levavam a um inegável objetivo: arrancar uma pro-va concreta de que era verdade aquele contato entre ele e o velho. Tivedúvidas em manifestá-las. Perguntas, às vezes, ofendem; buscamos umacoisa e os interrogados entendem outra. E mais uma vez aquele ho-mem que viajava ao meu lado, contando uma história que tanto pren-dia a minha atenção, surpreendeu-me.

– Guarde suas perguntas. Ouvindo o resto da história, você teráas respostas.

Deca me fez calar, parece que adivinhava minhas intenções.

– Mas voltemos ao velho – continuou Deca. – E deixemos suapromessa de aparições. Naquele dia, eu falara das dores do Terto. Logoestava falando das minhas. Perguntei-lhe o que iria acontecer com mi-nha mãe. Como o velho garimpeiro já tinha dito que ela não morreria,eu lhe falei o que todo mundo sabia em Arraias: que dona Geralda, aminha mãe, estava cada dia pior, e o único que dizia que ela não mor-reria era ele. Eu insistia tanto com o velho, para ele me adiantar osacontecimentos, que até parecia que o meu amigo era o porta-voz dofuturo. Na verdade, eu o tinha como o sabe-tudo no que se referia aosmistérios da vida.

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A garrafa mágica

É, meu amigo, aquele velho sabia muitos mistérios dessa vida quelevamos! E foi ele que fez as previsões mais incríveis, que realmente seconfirmaram. Ele tinha certeza de que mamãe não morreria, mas avisouque sofreria muito mais, que tudo aconteceria muito rápido, e eu deveriaser forte, pois a mim, apesar da pouca idade, caberia um papel impor-tante. Contei tudo a meu pai, e ele proibiu definitivamente a minha ami-zade com o velho. Papai achou que ele me enchia a cabeça de bobagens.

Eu passei um dia muito triste. Queria conversar com o velhosobre os portões, pois eu tinha sonhado com o portão do bem. Omedo de desobedecer a meu pai era muito grande, tanto quanto anecessidade de comentar com o velho o meu sonho. Veio a noite, e eunão consegui falar com ele.

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O asilo era muito próximo de minha casa, e eu sentia uma enormevontade de sair em plena noite para falar com o meu amigo. Lá pelas oitohoras da noite, não me contive: saí de fininho da cama e fui ao asilo. Naminha saída de casa, vi o homem do portão do mal sentado na calçada dadelegacia. Entrei em pânico! E em meu desespero, não sabia se passava porele ou se voltava. O homem, então, me chamou pelo nome e perguntou.

– Você vai ao asilo?– O senhor sabe o meu nome? Quem lhe falou?– Eu sei, faz tempo que eu sei. Se você vai lá no asilo, não adianta,

já está fechado. Vai dormir, amanhã você conversa com seu amigo.– Como é o nome do senhor?– Pense em um nome para mim e me chame por ele.– Onde o senhor mora? – perguntei, já sem tanto medo dele.– Moro lá no morro. Bem no alto, perto do céu.Respondeu o homem, pondo-se de pé diante de mim. Como era alto!– Como que o senhor vai embora nesse escurão? – perguntei,

preocupado.– Eu tenho uma lanterna.O homem retirou do bolso uma garrafa luminosa, de luz intensa,

e me mostrou. Prestei bastante atenção na garrafa, que irradiava umaluz verde, intensa, mas de curto alcance. Era uma luz muito bonita, mefascinava. O homem passou a mão sobre a garrafa e a luz aumentouem intensidade e beleza. Então, comentei:

– É muito bonita! Eu queria uma dessa... Onde o senhor comprou?– Não a comprei; eu a tenho. Quer uma para você?O homem perguntou, sorrindo. Como sorria!– Quero.– Então pode ficar com ela. – E me deu a garrafa, com um meio-

sorriso.– Obrigado! – agradeci, quase não acreditando no presente.Conversei um pouco mais. Depois me despedi do homem e en-

trei em casa, lembrando sua recomendação de guardar bem a garrafapara não sumir.

No dia seguinte, acordei eufórico e ansioso em exibir aquela gar-rafa para todos. Se possível, a quem eu pudesse. Pulei do colchão e fui

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buscá-la debaixo de uma pilha de caixas de papelão, onde eu a tinhaguardado. Mas não achei a bendita garrafa! E então me apavorei. Re-virei tudo, e nada de encontrá-la. Fiquei numa tristeza... Parecia terperdido o maior tesouro do mundo.

Comentei com meu irmão Didi sobre a garrafa. Expliquei queela possuía uma luz verde muito bonita e que tinha sido um presente,naquela noite, de um homem que conheci em minhas andanças no mor-ro. Meu irmão disse que não tinha visto, e ficou tão interessado pelagarrafa luminosa que passou o dia me ajudando a procurá-la.

Eu e o meu irmão não encontramos a tal garrafa. E, desobedecendoa meu pai, fomos ao asilo pedir ao velho uma idéia de como encontrá-la.

O velho nos falou que não nos preocupássemos, que ele iria fazeruma garrafa iluminada para nós. Alertou que demoraria um pouco,mas ele iria nos dar uma outra garrafa de luz. Eu duvidei que ele sou-besse fazer. Ele disse que demoraria, mas jurou por tudo que era sa-grado que nos daria uma nova garrafa iluminada. Eu quis saber delepor que iria demorar. O velho explicou que era uma garrafa mágica, etambém porque fazia muito tempo que ele não fazia aquela mágica eteria de se lembrar de como era. Eu e meu irmão voltamos felizes eesperançosos para casa. Tive de ficar dias contando para o meu irmãocomo era a garrafa e como era o homem que me presenteou.

Passavam-se os dias, e em todos eles eu ia ao asilo, escondido demeu pai, para cobrar do velho a garrafa mágica. Ele tinha muita paci-ência, e acredito que até gostava das minhas cobranças, pois não resol-via o caso, só adiava a promessa, me contando novas histórias. Eu, acada dia, perdia o interesse nas histórias. Estava perdendo a fé no ve-lho e me desencantando com ele, por não cumprir sua promessa.

Ele percebeu minha desilusão e me lembrou de que sempre cumpriratodas as promessas que me fez. Lembrei-o de que havia me prometido umdiamante bem grande e não tinha me dado. Ele reconheceu e argumentouque eu não estava nos meus dias de sorte; afinal, depois daquela promessa,ele nunca mais tinha garimpado nenhum diamante. Quanto à garrafa, eleestava juntando os ingredientes da mágica. Me prontifiquei a ajudá-lo a pro-curar os ingredientes. O velho recusou a ajuda e disse que os tais ingredientessó se encontravam à noite; e durante a noite as crianças teriam de dormir.

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Mamãe terminou ficando louca

NUMA noite de chuva fina e insistente, acordamos com minhamãe gritando. Ela gritava muito. Eram gritos de pavor. Era como seela estivesse vendo algo horrível em sua frente. Mamãe, devido à do-ença, quase não tinha forças para se mover. Mas – estranho! –, naquelanoite, ela se sentou na cama e ficou gritando muito. Os gritos, de tãofortes, doíam os ouvidos e transmitiam a sensação de medo e pavor.Meu pai acordou muito confuso. Todos nós acordamos. Meus irmãosacordaram chorando e ficaram muito assustados. Nem isso a fez ces-sar aquela gritaria.

Papai ficou sem ação e pensou que mamãe estava tendo pesadelos.Tentou acordá-la, mas percebeu que já estava acordada. Ela continuougritando e se sacudindo sobre a cama. Quando parou com os gritos e se

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acalmou, se deitou e creio que voltou a dormir. Meu pai e eu permane-cemos acordados o resto daquela noite. Ele ficou sentado na cama porum bom tempo, depois se levantou e ficou caminhando pela casa.

Eu nunca tinha visto uma pessoa ficar tão magra como minhamãe ficou naquela época. Ela raramente comia. Meu pai também per-deu muito peso; mas minha mãe, como já lhe disse, era só pele e ossos.Ela se parecia com aqueles africanos que vemos nos telejornais ilus-trando as reportagens que mostram a violência da fome.

Só sei que enquanto eu me preocupava com o homem do por-tão do mal, com a garrafa que ganhei dele e as histórias que o velhogarimpeiro me contava, as coisas, para minha família, só pioravamdia após dia. Minha mãe, aos pouquinhos, fisicamente sumia destemundo, emagrecendo mais e mais. Surgiram aqueles pesadelos dela,nos acordando no meio das noites. Mamãe não falava mais, perdeu ocontato com mundo e conosco. Só ouvíamos, vez ou outra, os seusgemidos.

Nossa vida doméstica, com relação aos serviços diários, era umadesordem. Às vezes papai fazia a comida; noutras, eram as meninas darua que faziam. Roupa limpa era outro problema: enquanto se lavavauma peça, nós sujávamos três.

Ouvi várias vezes papai falar de sua saudade do tempo em quemamãe estava bem de saúde e nós – eu e meus irmãos – vivíamos bemzelados, “com aparência de filhos de rico”. Era assim que alguns pa-rentes se referiam a nós, devido à maneira como mamãe nos trajava,cuidava e educava. Ela exigia muito de nós quanto aos bons modos ecomportamento à mesa.

Minha mãe não media esforços para caprichar em nossa apre-sentação pessoal. Éramos, realmente, o seu orgulho! No entanto, emArraias vivíamos com uma aparência que não era nem sombra daquelados velhos tempos de São Paulo e do Combinado. Era comum Renil-de e Regina andarem nuas, por absoluta falta de roupas, algo inaceitá-vel por minha mãe antes da enfermidade que a devorava aos poucos.

Em nossa casa faltavam muitas coisas essenciais a uma pessoacivilizada, habituada à vida urbana. Quase tudo que tínhamos foravendido a qualquer preço. Só nos restaram poucos pratos, panelas e

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algumas roupas de cama. Mesmo as melhores roupas de cama, ricasem bordados, que eram verdadeiras preciosidades das recordaçõesde minha mãe (como ela, carinhosamente, dizia: “as coisinhas de quetanto gosto e que muito me valem”), todas sumiram. Como tambémsumiram muitos enfeites e utensílios domésticos. Eram muitas as an-tigüidades valiosas que mamãe – por amor, intuição, ou sei lá porque razão – guardava. Alguns daqueles objetos, hoje, valeriam umapequena fortuna. Era fácil perceber que tudo que era nosso estavasumindo ou se acabando.

A falta de meios e lugares apropriados para guardar tantas coi-sas e também as constantes invasões de curiosos que tomavam de as-salto nossa casa contribuíram para o sumiço de tudo. Hoje, às vezespenso: como pode alguém furtar o pouco que resta de pessoas que seencontram em situação de terrível dificuldade e extrema pobreza?! Mastudo isso fazia parte de um mundo inexplicável, que nos envolvia enos devorava dia a dia.

Além daqueles objetos que sumiam, também desapareciam, acada dia, a nossa paz e a possibilidade de um dia sermos felizes nova-mente.

A pobreza repentina, as constantes humilhações e a falta de es-perança e fé no futuro levavam meus pais ao desespero. Quem podianos ajudar de fato era a Justiça, julgando o caso de papai rapidamente.Mas isso não acontecia. E, assim, creio que perdemos por completo anossa auto-estima.

No entanto, nada daquilo que desaparecia e perdíamos dia-a-diatinha a menor importância diante de algo muito maior e mais precio-so, que, infelizmente, desaparecia sem que percebêssemos: a saúdemental de minha mãe. E isso nos levaria ao fundo do poço.

É, amigo, é duro! Mas mesmo no fundo do poço existem misté-rios que nos obrigam a acreditar e a aceitar que existe algo além davida física que conhecemos.

Não faltava nada para a morte de minha mãe. Parecia que aquelasituação era estendida interminavelmente só para arrastar meu pai aomundo da loucura e assim cometer uma brutalidade até contra a pró-pria família. As pessoas humildes e bondosas que nos ajudavam, ainda

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que apenas com orações e solidariedade, temiam que papai se suici-dasse e nos arrastasse juntos. Hoje, mais do que nunca, sei que meupai, mesmo sofrendo uma grande injustiça, foi um homem leal e valente.

A vida de meu pai era sonhar em deixar Arraias e nos levar devolta a São Paulo. Não esqueça de que meu pai é nordestino, aqui dePernambuco, e São Paulo era, para ele, sempre um sonho de vidamelhor. Papai constantemente se lembrava dos conselhos do irmãoBento, lá de São Paulo, e por isso chorava pelos cantos da casa e pelacidade. Sentia-se o homem mais infeliz e impotente do mundo. Naverdade, ele estava cada dia com menos condição emocional de cui-dar da família, de chefiá-la. Creio que mamãe percebia tudo isso, epor essa razão se autodestruía paulatinamente. Ela não conseguiareagir à vida.

Creio que pagamos por todos os nossos pecados naqueles diasvividos lá em Arraias, na condição de família presa. Ou, como dizemos doutos do judiciário, à disposição da Justiça. No entanto, Justiça deum homem só. Pois a Justiça de primeira instância, principalmente nointerior, corre o risco de ficar na dependência do humor e caráter dojuiz de direito, e muitos deles, francamente, não têm compromissocom a produtividade e a eficiência. Na verdade, toda a minha famíliapagava um preço muito alto à Justiça, ainda que ela não exigisse assim.

É verdade que meu pai é que estava preso... Mas não se esqueçade que tudo aquilo nos acontecia nos anos sessenta, quando o homem,em regra, era o único provedor do lar. Assim, meu pai era o pilar desustento da nossa família. Por seu lado, minha mãe era uma mulher quesó conhecia uma bandeira na vida: a bandeira da família, seu marido eos filhos. Aliás, ela é assim até hoje. Naquela época, então, nem se diga...Meu pai, assim como minha mãe, não tinha noção do tempo que selevaria para resolver sua situação com a Justiça, que parecia ignorar ascondições do único homem preso na cidade.

É, meu amigo, a coisa estava chegando ao extremo. E, mais umavez, meu pai – aliás, como sempre – não percebia o que estava acontecendo.

Lembro-me bem. Era manhã nublada de uma segunda-feiraquando chegou em nossa casa dona Eva. Ela entrou apressada e dis-se em poucas palavras ao meu pai que já tinha conseguido alguma

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ajuda, mas lamentava um obstáculo: é que de nada adiantaria ela con-seguir ajuda, se papai não tivesse autorização do juiz permitindo suasaída da cidade.

Eu recordo que papai disse a dona Eva que iria pedir a um amigoque intercedesse ao juiz em seu favor. Ele falou com seu Chico Pontes,ou seu Quincas Teixeira, não sei ao certo. O que sei é que o juiz negou.

Minha mãe, quando soube que o juiz foi insensível ao pedido,piorou o seu estado de saúde muito rapidamente. (Até hoje não seicomo o coração dela não parou naquele dia.) É que ela não tinhamais o que emagrecer nem onde lhe doer. Passou a perder os senti-dos com freqüência; e quase não se alimentava – nem mesmo águaela tomava. Às vezes, desconfio que mamãe queria era acelerar suamorte, não comendo.

Durante todo o tempo em que moramos em Arraias, todosnós dormíamos juntos, no mesmo quarto. Na cama improvisada emcima de uma pilha de tijolos, como já lhe falei, dormiam meus pais,Rosimeire, minha irmã recém-nascida, Rosirene e Regina. Eu, Didi eRenilde, a mais velha das mulheres, dormíamos em um colchão es-tendido no chão.

Numa daquelas noites intermináveis – eram cerca de duas horasda madrugada –, minha mãe novamente nos acordou aos gritos. Elagritava apavorada, como se estivesse em apuros, com pavor, com muitomedo de alguma coisa. Ela já havia acordado aos gritos em noitesanteriores, mas daquela vez eram muito mais pavorosos e insistente-mente seguidos, e nada conseguia acalmá-la. O barulho acordou tam-bém muitos vizinhos: o da direita, que era o seu João Bandeira, e até osdo outro lado da rua ouviram os gritos que ecoavam de nosso quarto.

Lembro-me claramente de que acordei no meio de uma noitecom o choro de meu pai, e o vi sentado na cama chorando igual a umacriança, ou melhor, igual aos meus próprios irmãos menores, que tam-bém foram acordados. Meu pai, naquela noite, chorava por desespe-ro, pois não sabia mais o que fazer com aquela situação. Não era paramenos: coitado, estava preso na cidade, a família passando privações ea mulher, naqueles dias, estava sendo covardemente enlouquecida pe-lo sofrimento.

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Minha mãe estava entrando em franco estado de loucura. É issomesmo, amigo. Minha valente mãe estava ficando completamente lou-ca. Entregando-se ou finalmente sendo vencida pela fúria da maldadeque o destino às vezes nos impõe. Mamãe estava perdendo totalmenteo controle de seus atos. Nunca vou esquecer o dia em que ouvi meupai falar com Davina: “A Geralda ficou louca, está totalmente louca.Coitada, ela está sendo tragada por essa violência toda”.

Foi a partir daquela madrugada, em que mamãe acordou osvizinhos com seus gritos ensurdecedores e apavorantes, que papaiconstatou que ela estava ficando realmente louca. De fato, mamãeestava completamente desequilibrada: gritava demais, se sacudiamuito em cima da cama, se estrebuchava toda (não tinha, no entanto,forças para se levantar). Não reconhecia as pessoas. Nem mesmo anós, seus filhos, ela conseguia reconhecer. Quando alguém entravano quarto, ela gritava e logo cobria o rosto com o lençol, mostrandoseu medo de todos e de tudo.

Nossa casa passou a receber muita gente. Estava constante-mente lotada de pessoas que eu não sabia de onde surgiam. Eramos curiosos, pois correu pela cidade a notícia: “a mulher do presoficou doida”. Torna-se atração, esse tipo de acontecimento, numapequena cidade de rotina cansativa, como era Arraias – aliás, emqualquer cidade pequena tudo vira notícia, até as tragédias se tor-nam espetáculo. As dificuldades alheias podem se transformar emassunto comum nas mesas de bar. E, por essas vias, a notícia daloucura de minha mãe causava curiosidade e movimentava a ruaJosé Marinho, que naquela época ainda não homenageava o grandeamigo de papai.

Desde o dia em que ouvi papai falar para Davina sobre a loucurade mamãe, nós, que já estávamos com um pé no precipício, parece queentramos de corpo e alma em um mundo inexplicável, o qual julgoimpossível descrever.

E por falar em precipício, um fato misterioso começou a aconte-cer naqueles dias, eu percebi de imediato. Meu pai perdeu a paciênciacom tantas pessoas dentro de nossa casa. Ele entendeu que a grandemaioria de toda aquela gente estava lá mais por conta da curiosidade

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do que da solidariedade. Para oferecer ajuda mesmo, eram poucos...Por isso, papai botou grande parte para fora, e daquele dia em diantesó permitiu o acesso ao “quarto dos espetáculos trágicos” àqueles quejá nos ajudavam desde os primeiros dias da doença de mamãe.

Na verdade, o fato estranho que aconteceu não foi bem a expul-são dos curiosos. Observei que, entre o pessoal que ficava dentro doquarto espiando, admirando ou “curiando” o estado de minha mãe,estava também o homem que conheci no portão do mal. Foi naqueledia, em que meu pai expulsou toda aquela gente, que presenciei suamaior ira. Papai estava muito zangado e gritou com todo mundo queestava lá em casa. Todos se assustaram e foram saindo de fininho. Me-nos o homem do portão do mal. Era como se ele nem estivesse ouvin-do as broncas de meu pai. Continuou lá, quietinho, no mesmo canto,de cócoras e de olhos arregalados, assistindo a tudo de camarote. Nãodeu a mínima importância ao esbravejo de papai.

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Aparecem pessoas más do além

ACHEI estranho o homem do portão do mal não se importarcom a fúria de meu pai. Aliás, eu aprovei plenamente aquela atitude depapai, pois aquele pessoal às vezes nos incomodava e nos constrangia.Todavia, não questionei a permanência do homem no quarto. Confes-so que tive medo, devido ao humor alterado de papai.

Fui ao asilo e procurei o velho garimpeiro para conversar. Comenteisobre o homem do portão do mal, que estava lá em casa. O velho seinteressou em ir até minha casa para ver de quem se tratava – afinal, eusempre falava sobre o tal homem negro, que tanto me chamava a atenção.

Corri então à minha casa, para ver se o tal homem ainda estavapor lá, e em seguida voltei ao asilo, para avisar o velho. Não demoreimais que um minuto nessa ida-e-vinda. Depois, falei ao velho:

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– Vamos logo, ele está lá, sentado no canto do quarto.– Então vamos lá ver quem é esse negão.Ele me seguiu, mancando. Como andava devagar, o velho ga-

rimpeiro!– Tomara que ele esteja lá – resmungou, passando a mancar mais

rápido.– Está, sim! Ele está lá – falei, tentando animá-lo.Chegamos em casa e entramos rapidamente no quarto. O velho

saudou meu pai, justificou-se por não ter aparecido mais lá em casa edeu suas desculpas. Discretamente se benzeu. Depois, saiu apressado.Eu o acompanhei de volta até o asilo e perguntei:

– E então, o senhor conhece aquele homem?– Imagino de onde ele é, mas não o vi bem – respondeu o velho,

com cara de assustado.– Por que o senhor se benzeu?– Por nada – falou, tentando encerrar o assunto.Já era noite quando voltei do asilo. Entrei na casa e tomei um

pouco de água; depois voltei para a porta que dava para a rua e mesentei no batente de madeira da porta. De repente, eu vi dois rapa-zes chegar e entrar rapidamente. Eles acompanhavam o Angelim,filho de seu Adão, o padeiro. Foram direto para o quarto. Ouvi,então, o Angelim dar um recado de seu Quincas Teixeira para omeu pai. Após ouvir o recado, papai saiu rapidamente com o filhodo padeiro.

Intrigou-me os dois rapazes não saírem do quarto. Achei estra-nho e fui até lá, flagrando os dois morrendo de rir. Faziam mil galho-fas e caretas para minha mãe. Ela, então, começou com aquela gritariaque denunciava pavor. O maior terror do mundo e toda uma afliçãopodiam ser sentidos nos gritos dela.

Aqueles rapazes, eu nunca os havia visto antes. Deviam ter entredezoito e vinte e um anos. Um deles era caolho e tinha uma cicatrizenorme no rosto; os olhos eram muito grandes, sem brilho; os dentes,muito esquisitos, pareciam dentes de peixe; tinha a pele branca, pare-cendo muito queimada pelo sol. O outro era negro, magrinho e nãotinha um só fio de cabelo (a cabeça era lisa e brilhante – não é que era

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raspada; parecia que nunca havia nascido cabelo nela); não usava rou-pas normais, só uma espécie de bermuda muito folgada.

Eles davam cada gargalhada! E sem nenhuma razão que justificas-se aquilo. Eu não conseguia ouvir o som das gargalhadas, mas os gestosdeles as revelavam. O caolho resolveu tirar a roupa. Ficou completa-mente despido e começou a dançar; enquanto o outro parecia cantaruma música. Mas eu também não ouvia nenhum som sair de sua boca.

Apesar de serem eles muito maiores do que eu, apanhei o meucavalo-de-pau e fui para cima dos dois. Quando acertei o caolho, onegro se espantou e ficou quieto por um momento. O outro ficouindeciso, não sabia se continuava com a bagunça ou se aquietava devez. Eu o acertei com muita força. No entanto, ele pareceu não sentirnenhuma dor; só ódio. Exalava isso claramente no olhar. O negro tam-bém me olhou mostrando muita fúria. Fez uma cara assustadora. Quan-do ele ameaçou me agredir, entrou no quarto o homem do portão domal e me disse:

– Esses dois são perigosos! Não os enfrente assim. De hoje emdiante, eles sempre vão perseguir você. Enfrente-os com seu desprezo.

– Por que vão me perseguir? – perguntei, assustado.– Eles são perversos e sentem prazer com o sofrimento alheio.No dia seguinte, contei para meu pai sobre os rapazes e suas

estripulias. Ele não acreditou, chamou meu irmão Didi e lhe pergun-tou se tinha visto alguma coisa. Meu irmão disse que não vira nada.Intrigado, papai me perguntou quem estava no quarto. Respondi que,durante aqueles instantes, ninguém de fora. No entanto, lembrei-me deque o homem do portão do mal havia entrado no quarto e me aconse-lhado a não enfrentá-los à base de pauladas.

Quando contei tudo aquilo para o meu pai, ele ficou muitomais irritado. Não acreditava, ficava sem saber o que fazer. O certo éque ele não acreditou em nada do que eu disse. Eu, que não me con-formava com o descrédito, solicitei então ao meu pai que perguntas-se ao Angelim se ele havia realmente comparecido em nossa casaacompanhado dos dois rapazes. Papai afirmou, com toda a seguran-ça: “O Angelim entrou no quarto sozinho”. Assim, pôs um pontofinal na conversa.

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Mais uma vez eu me sentia desamparado, muito angustiado porfalar a verdade e meu pai não acreditar. E o pior: ele se zangava comigo.

Novamente recorri ao velho garimpeiro. Após lhe contar tudo,ele me instruiu para que, quando os dois voltassem, caso voltassem, eulhes dissesse que não os temia e que sabia que eles não podiam fazernada contra mim; que os via como pobres errantes, sofredores, abor-recidos, e que possuía uma reza santa com poderes para mandá-los devolta à escuridão.

Voltei para casa mais confiante, pois o velho demonstrou saberlidar com gente daquele tipo. O mais importante é que ele acreditouem tudo o que eu disse. Para as crianças, é muito importante que acre-ditem nelas e dêem importância às suas histórias. O velho acreditou,ou pelo menos simulou acreditar.

Apesar de confiante, depois da conversa com o velho, na verda-de – não vou mentir –, pedia a Deus para que aqueles dois não voltas-sem nunca mais.

Eram seis horas da tarde quando saí do asilo (pude ouvir as seisbadaladas do sino da igreja). Estava anoitecendo e minha mãe já dor-mia. A última noite havia sido muito atribulada. De repente, ela acor-dou e começou a gritar. Sentou-se na cama, tentando rasgar os lençóis.Mas, por estar muito debilitada, ela não conseguia fazer nada que exi-gisse força física. Começou, então, a mascar as pontas do lençol.

Meu pai, quando viu aquela cena, se animou em lhe dar algo paracomer. Ele entendeu aquilo como uma demonstração de fome. Entãopapai lhe trouxe pedaços de mandioca frita que Domingas, filha dafinada dona Benedita, havia levado para mamãe, pois sabia que elagostava muito.

Mamãe comeu vários pedaços, numa avidez que nos animava.Era prazeroso ver aquela gulodice, já que ela quase não comia nadaque lhe oferecíamos. Mas não demorou nada e veio a decepção: ma-mãe não engolia a mandioca que mastigava, e quando na boca nãocoube mais, ela soprou tudo, parece que propositadamente, no rostode papai, fazendo aquela sujeira toda em cima da cama.

Enquanto papai limpava o rosto, mamãe começou a tremer o quei-xo e a chorar feito criança assustada. Ela novamente gritava com seus

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pavores. Quando me lembro daquilo, me aperta o coração: mamãe apon-tava para o canto do quarto e falava aos gritos, mas tão estridentes quedoíam os ouvidos: “Tira daqui! Tira daqui! Sai daí! Sai daí!”. Papai foiaté o canto do quarto e retirou um monte de roupa suja, levando paraoutro cômodo. De nada adiantou. Mamãe continuou com seus apeloschorosos, aos gritos. O curioso é que mamãe não tinha força para nada,mas na hora daqueles gritos, era tanta energia que não sei de onde vinha.

Olhei para o canto que mamãe apontava e vi os dois rapazes, onegrinho e o caolho, fazendo caretas para mamãe. Perguntei ao meupai: “Está vendo agora os dois rapazes de que falei para o senhor?”Meu pai apertou bem os olhos, girou a cabeça para a direita e paraesquerda, depois para cima e para baixo; estava muito concentrado,como se procurasse um pernilongo na imensidão do quarto (o ho-mem parecia que nem respirava, como se visse algo de inacreditável).Por fim, para minha tristeza, com ar de impaciência falou:

– Eu não estou vendo nada. Não vai dizer que você também vêassombração?

– Ué, tá cego, pai? – perguntei.– Eu não vejo nada aí. Aqui em casa agora tem dois loucos... –

resmungou papai.– Minha mãe não está louca, está doente. É só levá-la ao hospital

que ela fica boa. Eu estou vendo esses dois atentados aí fazendo care-tas e mungangas para a mamãe. E por que o senhor fala que não vê?

– Então manda eles irem embora – ordenou papai, após pensarpor um instante.

Falei, ou melhor, rezei tudo o que o velho me instruiu, e os doisrapazes, com cara de pouco caso, saíram do quarto morrendo de rir.Mamãe parou de chorar e de apontar o canto do quarto. Papai disse:

– Ela se acalmou, graças a Deus.– Papai, é que eles agora foram embora – eu disse.– Então fala a reza santa que você sabe.– Foi o velho garimpeiro que me ensinou, para eles sumirem; e

só pode rezar na grande precisão de ajuda do anjo da guarda.Papai foi ao asilo imediatamente, conversou com o velho garim-

peiro sobre os rapazes que apareciam em nosso quarto. Papai se

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surpreendeu quando o velho, no final da conversa, comentou sobre ohomem do portão do mal. Era muita coisa para ele, que é um verda-deiro São Tomé. O velho garimpeiro aconselhou papai a procurar opadre, para conversar sobre o assunto. Mas ele, que era protestante,jamais iria procurar um padre.

Papai conversou sobre o assunto com o dentista, que era um dospoucos protestantes de Arraias, naquela época. Aqueles rapazes estra-nhos e de difícil definição continuaram a aparecer lá no quarto. Eramaparecimentos rápidos. O dentista foi lá em casa muitas vezes e fez vári-as orações, todas muito fervorosas, mas os rapazes estranhos não derama mínima para aquelas orações de voz embolada e cheia de clamores.

Desde o dia em que papai constatou a loucura de minha mãe, jáhavia se passado quatro dias de intermináveis horrores e agonia. DonaEva continuava na busca de ajuda financeira. Seu Quincas Teixeira aguar-dava o retorno do juiz a Arraias, pois mais uma vez ele estava emviagem à capital.

Aliás, não sei se o senhor é juiz, mas como juiz e prefeito deinterior gostam de viajar para a capital!

– Eu não sou juiz, sou prefeito. Um prefeito não chega a viajar maisque um executivo comum – respondi ao meu companheiro de viajem.Ele, sorrindo, certo de que tinha feito uma piada, retomou a história.

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Faltava a autorização judicialpara sairmos de Arraias

BEM, voltemos à conversa.Seu Quincas Teixeira tentava conseguir uma autorização para pa-

pai se ausentar de Arraias e assim levar mamãe para tratamento médi-co em Brasília. Já haviam feito o pedido uma vez e, como lhe disse, ojuiz negou. Naquele segundo pedido, meu pai estava muito confiante.A cidade inteira pedia por papai. Era um verdadeiro clamor popular;e o juiz, por menos sensível que fosse, não negaria daquela vez.

Interessante... Depois de trinta e tantos anos, consegui localizar aquelejuiz, Dr. José Honorato Pinheiro, hoje aposentado, e falar com ele portelefone. Ele mora atualmente em Goiânia. Eu queria saber uma coisa que

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ninguém nunca me disse ao certo, e, abaixo de Deus, o juiz era a únicapessoa que podia me dar a resposta. Você acredita que ele me disse quenão se recordava do caso?! Um caso tão sério e importante para mim eminha família, mas que, para a Justiça e o juiz, era apenas mais um.

Alguns da minha família dizem que papai saiu da cidade semautorização judicial. Outros dizem que papai a obteve, só que nuncamais voltou para o julgamento. Sei que o processo já prescreveu, mastudo aquilo que nos aconteceu foi muito forte e inesquecível. São deta-lhes como esse que às vezes me perturbam e causam curiosidade. Acuriosidade maior, talvez, é entender por que minha família passoupor tantos sofrimentos e privações. Não tendo as respostas, apego-meaos detalhes, pois acredito que é neles que posso encontrar a resposta.São os detalhes, que geralmente passam despercebidos, que podemmudar a vida. E, como dizia o velho garimpeiro, “compreende-se opresente revirando a história”. Creio que ele tem toda a razão.

No quinto dia da completa loucura de mamãe, ao anoitecer, ovelho garimpeiro apareceu a nossa porta. Ao ouvir sua voz cansadame chamar lá de fora, saí às pressas, pois o velho dificilmente ia aminha casa. Cumprimentei-o e perguntei qual o motivo da visita. Elebalançou a cabeça para cima e para baixo. Estava muito pensativo, epausadamente disse:

– Peça a seu pai para dar soro para sua mãe.– Pra quê? – perguntei ao velho.– Você sabe o que é soro? – perguntou o velho, com fisionomia seria.Respondi que sim, com a cabeça.– Sua mãe está com o corpo quase morto; só o espírito dela esta

resistindo à morte. E sabe por quê? É que ela ama muito você e seusirmãos e não quer deixá-los.

– Sabe, quando dá ataque de doidura, ela tem muita força.– Mas essa força não é do corpo dela. De qualquer maneira, diga

a seu pai para dar o soro, nem que seja à força. Ela precisa. E caso elenão tenha jeito e paciência, peça a Davina para dar o soro, urgente.

O velho tinha razão: só o espírito podia estar vivo naquele farra-po de corpo, que só se movia quando aconteciam os ataques de loucura.Na época, eu chamava de doiduras da mamãe.

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Perturbações do além

QUANDO voltei para dentro de casa e entrei no quarto – imagi-ne você! –, estavam lá os dois rapazes estranhos, o negrinho e o cao-lho. Me deu uma gana enorme de lhes perguntar o que queriam e sen-tar meu cavalo no meio da cabeça deles. Mas eles estavam só olhandopara a cama e apontando para o corpo de mamãe, que estava de bru-ços e encoberta pelo lençol. Afinal, eram apenas mais dois, entre tan-tos que ficavam no quarto simulando pesares, e que na verdade aguar-davam, curiosos, os ataques de loucura de minha mãe.

O caolho me fez várias caretas, mas não me importei. Ele, en-tão, resolveu assobiar. Assobiava muito e insistentemente. Eu nãoouvia o som dos assobios, mas sei que ele assobiava pelos gestos quefazia e pelo modo que levava os dedos à boca. Após tantos assobios,

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mamãe se virou e começou a gritar: “Pára, pára, pára!”. E colocou amão nos ouvidos, tampando-os. Entendi que minha mãe ouvia osassobios, e eu não.

Naquele momento, só eu e minhas irmãs estávamos no quartoacompanhando minha mãe. Quando descobri que só mamãe ouvia osassobios, me acendeu o maior medo que já tive na minha vida. Só apartir dali entendi que existia algo de sobrenatural em tudo aquilo.

Deixei minhas irmãs sozinhas com mamãe e saí correndo paraprocurar papai. Não o encontrei. Então fui ao asilo, socorrer-mecom o velho.

Cheguei muito assustado ao asilo. O velho me perguntou se eu tinhavisto assombração. Contei ao velho sobre os assobios e pedi a ele umaexplicação para o ocorrido. O velho, que era muito branco, quando ouviutudo o que eu lhe falei ficou tão amarelo quanto surpreso, e me perguntou:

– Você vê esses rapazes chegar, ou eles aparecem de repente?– Não sei bem... Eu olho para o canto do quarto e eles estão lá.– Veja bem, você é muito criança para entender o que está acon-

tecendo. Essas pessoas que você vê não são deste mundo. Poucas pes-soas podem vê-las. É algo mágico e misterioso, coisas dos mistériosdo universo que fogem à compreensão humana de nosso tempo.

– Então é uma assombração, não é? – afirmei, espantado.– Não é assombração. Só é assombração se você ficar com medo,

a ponto de se assombrar. Assombrar é fazer medo. Por isso chamamde assombração o inexplicável que nos causa medo. E o que nos assustanão é aquilo que vemos de estranho, mas sim o fato de nunca termosvisto ou sentido antes.

– Mas eu não tenho medo – respondi.– Sei que você não tem medo. Por essa razão é que me preocupo

com o que lhe possa acontecer.– O que pode me acontecer? – perguntei, curioso.– Ser incomodado pelo resto da sua vida por esses seres de ou-

tros mundos e dimensões, que buscam contato com o nosso mundo.Quando eles aparecerem, vire-lhe as costas, faça a reza santa que ensi-nei, com toda a força do seu coração e, ao final, diga-lhes que vocênada fará para eles e que devem voltar ao mundo deles.

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Voltei para casa muito mais confuso e assustado. Até aquele mo-mento eu não tinha plena consciência de que aqueles rapazes eram deoutro mundo. Agora que sabia, estava confuso e muito assustado.

Meu pai chegara em casa com um monte de mangas (comohavia mangas em Arraias!). Ele me ofereceu, mas não aceitei. Fi-quei ali, pelos cantos, morrendo de medo de entrar no quarto. Atéminha própria mãe, ultimamente, me assustava. E quando desco-bri que víamos coisas que os outros não viam, percebi que estavacomeçando a entrar em pânico.

Meu pai me mandou buscar dentro do quarto uma caixa de pa-pelão em que ele amontoava as roupas sujas. Simulei não entender aordem, para não entrar no quarto. Papai perdeu a paciência, gritando:

– Não esta me ouvindo, não?!– Já vou.Entrei no quarto sem querer olhar para o canto, pois era lá que

gostavam de ficar os rapazes e também o homem do portão do mal(eu também não sabia se ele era um homem normal ou se fazia partede outro mundo). Apanhei a caixa e, ao voltar para o cômodo ondepapai estava, exatamente na porta que interligava os cômodos, me depa-rei com uma velhinha branca, bem gorda e vestida com roupas azul-celeste, sorrindo e me estendendo a mão, para me ajudar a carregar acaixa, que era maior do que eu.

Soltei um berro tão escandaloso, de medo, ao ver aquela senho-ra, que ela quase cai de costas, assustando-se também. Ela perguntouao meu pai o que eu tinha, que estava tão assustado. Papai não soubeexplicar, mas justificou que, por tudo o que passávamos, não era paramenos que eu me tornasse uma criança amedrontada.

Entrei na conversa e reclamei que no quarto sempre apareciamdois rapazes, e os descrevi. Contei que o velho garimpeiro me disseque eram pessoas do outro mundo. A senhora falou a papai que co-nhecia bem o velho garimpeiro e sabia que ele era cheio de histórias efantasias; mas reconhecia algo de especial em seu comportamento: queele sabia rezas poderosas, inclusive de curas comprovadas.

Aquela senhora – de quem, infelizmente, não me lembro o nome– explicou a papai que o velho garimpeiro não era filho de Arraias.

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Disse que ele, quando chegou à cidade, ainda era um homem jovem.Sempre viveu mais embrenhado nas matas e nos rios que na cidade, ea vida toda se dedicou a essas coisas inexplicáveis. Gostava de convi-ver com um povo negro e misterioso, formado por descendentes deescravos que fugiram de seus donos e formaram aldeias bem escondi-das no meio da mata.

O mais interessante é que realmente existe um povo negro quevive ainda hoje no completo isolamento, nas proximidades de MonteAlegre, cidade goiana próxima a Arraias – são os Calungas.

Tudo o que aquela senhora dizia a meu pai só contribuía paraque se acreditasse no velho e, de certa forma, nas minhas visões, ou seilá como se chamariam essas coisas.

A senhora se foi e papai entrou no quarto para ver minha mãe.Eu o acompanhei. Mamãe nos recebeu com olhar assustado, cobrin-do-se com o lençol. Logo que papai saiu, os malditos rapazesapareceram do nada e começaram a infernizar o dia de minha mãe. Elaera muito incomodada por eles. (Acredito que mamãe podia vê-los eouvi-los, enquanto eu apenas os enxergava.) Minha mãe começou agritar novamente, apontando para o canto do quarto. Papai retornouao quarto correndo e me perguntou:

– Você está vendo aquelas pessoas aqui no quarto?– Estou. Eles estão aí, atrás do senhor – respondi, com a voz

trêmula.– Vá lá no asilo chamar o velho, seu amigo – ordenou-me papai.Eu saí correndo feito uma flecha disparada no ar com o vento a

favor. Pouco adiantou, pois o velho andava muito devagar. Quandochegamos, meu pai o esperava no quarto, tentando acalmar mamãe.Papai perguntou ao velho se ele achava possível que ela estivesse loucaem razão de estar vendo coisas. O velho lhe disse:

– Dona Geralda está doente do corpo e do espírito. O corpofraco facilita a doença do espírito, e vice-versa. E segundo as históriasdo meu amiguinho, Dona Geralda os vê e os escuta, comunica-se comeles; enquanto ele só pode vê-los.

O velho explicava tudo a papai, que demonstrava não acreditarmuito em tudo o que ouvia.

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Naquele momento, apareceram no quarto mais três pessoas, doishomens e uma mulher. Eram muito altos, com a pele avermelhada e osolhos bastante pequenos e brilhantes. O rosto era de gente má.

Ela se dirigiu à minha mãe e lhe falou alguma coisa. Mamãe ouviatudo atentamente, o rosto estampando um medo terrível, que a emudecia.

Dava muita pena olhar o rosto magro e assustado de minha mãe,que chorava sem murmúrios. Só os olhos lacrimejavam. Quando um doshomens caminhou na direção de minha irmã Renilde, ela se desesperou devez: gritava, pedia que deixassem sua filha em paz e suplicava por clemência:

– A minha filha, não! A minha filha, não! A minha filha eu nãodou nunca!

– Larga minha irmã! Eu exigi, quando vi um dos homens pegarno braço de minha irmã, que estava sentada no colchão estendido so-bre o chão.

Meu pai se arrepiou todo (acho que pela primeira vez ele acredi-tou em coisas de outro mundo), pois viu minha irmã, que chorou aoser incomodada, sendo levantada no ar. Ele, eu e o velho garimpeirovimos o braço de minha irmã sendo erguido e puxado. Eu via clara-mente o homem puxando o braço dela, mas papai e o velho só viam obraço sendo erguido, como se puxado para cima. Papai me perguntou:

– Você está vendo alguma coisa?– Estou! O homem da cara vermelha e dente de peixe está pu-

xando o braço dela! E o homem do portão do mal está segurando amão dele, impedindo-o!

– Quem? Segurando a mão de quem, menino?! – perguntou pa-pai, confuso.

– O homem avermelhado estava pegando no braço da Renilde epuxando para cima, e o homem do portão do mal segurou a mão dele,empurrando-a para baixo, para que ele não a levantasse pelo braço.

Meu pai finalmente se convenceu de que algo de estranho real-mente acontecia naquele quarto. Ele viu com os próprios olhos o bra-ço de minha irmã ser erguido ao ponto de incomodá-la e fazê-la cho-rar. Então perguntou, assustado, ao velho garimpeiro se ele vira tudoaquilo. O velho respondeu, com sua ironia de sempre, que podia serum pouco surdo, mas a vista era muito boa.

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Mamãe, apesar de estar mentalmente perturbada, chorava porRenilde, expressando sentimentos de mãe que tenta proteger a filha deum monstro.

O velho começou uma reza. Logo vi o rapaz negro lhe mostrar alíngua e sair em seguida. O caolho baixou as calças e ficou exibindo otraseiro para o garimpeiro, que não podia ver nada. Os dois homens ea mulher se retiraram do quarto um pouco depois do velho acenderum cigarro. Ele ofereceu o sabor do fumo ao poderoso sei lá quem,pedindo que retirasse aqueles espíritos intrusos dali.

Algumas pessoas que eu acreditava serem encantadas, que sem-pre apareciam no nosso quarto, se foram. Mamãe se tranqüilizou –pelo menos naquele momento – e minha irmã Renilde parou de cho-rar. O velho garimpeiro aconselhou papai novamente a convidar opadre a benzer nosso quarto.

Papai se rendeu: buscou ajuda do padre, que, por sua vez, nãoacreditou em nada do que ele lhe relatou.

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O padre correu demedo do demônio

O PADRE, com muita educação, disse a papai que minha mãe pode-ria estar sofrendo problemas de saúde mental. Sua desconfiança dava-seem razão das atitudes dela. Quanto às minhas visões, afirmou ser comumas crianças imaginarem ver bichos-papões e outras coisas do gênero.

Após muita insistência de papai, o padre resolveu ir a nossa casa.Quando o padre entrou no quarto, minha mãe ficou com medo

dele e se embrulhou dos pés a cabeça. Ele tentou fazer com que mamãelhe mostrasse o rosto, mas foram inúteis as tentativas. O padre começoua rezar o pai-nosso. Nesse momento, algo comovente e impressionanteaconteceu: mamãe se sentou e o acompanhou na oração.

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Papai, vendo, finalmente, um ato racional de mamãe, emocio-nou-se e foi aos prantos. Algumas pessoas que acompanhavam a ora-ção também se emocionaram.

Ainda chorando, papai perguntou ao padre:– Será que aconteceu um milagre aqui, seu padre?– É provável. Ela é uma mulher de muita fé. Talvez esteja apenas

passando por provações difíceis.O padre mal fechou a boca e o quarto foi tomado por todo

aquele pessoal que vinha não sei de onde (só pode ser do inferno!). Onegrinho, que se mostrava muito zangado, tirou de sua cintura – comose retirasse um cinto que prendia suas vestes ao corpo – uma enormeserpente negra e amarela, que exibia uma língua tão longa que a deixavamuito mais comprida. A terrível cobra, que metia medo em qualquermortal, parecia brava e pronta para acertar o bote.

O negrinho ficava com a serpente pendurada no ombro emordendo os lábios, de raiva, enquanto ouvia as rezas do padre. Ocaolho, então, retirou a víbora do ombro do negrinho e a atirou emcima da cama de mamãe. Ela, apavorada, soltou um grito estridente,seguido por outros cada vez mais altos e apavorantes. Alguém queestivesse fora do quarto até imaginaria que estavam matando mamãeaos pouquinhos, com um ferro quente. Eram os piores gritos que ouvide minha mãe naquela época. Ela, coitada, morria de medo, sempreteve um medo fora do comum de cobras.

O padre pediu calma a mamãe, que ignorava os apelos. Eu, en-tão, disse a ele:

– Padre, a cobra grandona, aí na cama, está assustando minha mãe!– Eu não estou vendo cobra nenhuma... Você está? – O padre

perguntou a papai.– Mas a cobra esta aí! Ela se enfiou em baixo do lençol – eu insisti.O padre sacudiu o lençol e afirmou não ver nada. Retirou o len-

çol da cama e o sacudiu várias vezes, provando a todos os presentesque não existia cobra alguma, que tudo não passava de possíveis fanta-sias que eu criava. Mas naquele instante vi quando a mulher, que acom-panhava os homens vermelhos, pegou a serpente e jogou em cima dopadre. Foi quando o avisei, apavorado:

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– Padre, cuidado! A mulher jogou a cobra em cima do senhor!– Eu não sinto nada em cima de mim. E que mulher? – disse ele,

com a cara de quem estava prestes a perder a paciência.– Olha, padre! É mesmo! A sua batina está se movendo. Tem

alguma coisa dentro dela – avisou papai.Alguém que estava dentro do quarto acompanhando as orações

falou, com voz de medo e espanto, alertando o padre:– Seu padre, ‘devera’! Sua batina está toda chacoalhando – a pes-

soa que avisou o padre saiu correndo para fora do quarto, se benzendo.Ele se olhou do pescoço abaixo, constatando que realmente sua

batina, sem nenhuma razão aparente, se movimentava muito. Pareciapuxada em várias partes, como se uma cobra estivesse mesmo dentrode sua roupa. O padre não se conteve de medo e saiu às pressas, sebenzendo, dizendo que iria buscar alguma coisa na igreja. Nunca maisvoltou lá em casa.

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Diante do portão do bemem busca de um anjo

NO outro dia, que já era o sétimo da loucura de mamãe, eu conversa-va com o velho garimpeiro sobre o ocorrido e confessava meu temor emrelação àquele povo. Parecia ser do inferno e não queria parar de perturbarnossa casa. A situação era grave, pois nem mesmo o padre conseguiu fazercessar as aparições. É verdade que eu já não me assustava tanto com elas.Apesar de minha pouca idade, eu raciocinava que minha mãe teve sua doen-ça agravada desde o dia em que eu vi aquelas pessoas estranhas dentro doquarto, em volta da cama. No entanto, o velho dizia que aqueles espíritos seaproveitaram da doença dela para se divertir com a situação. Por isso é queeu me preocupava muito com os sustos e medos que eles faziam a ela.

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Eu sofria com tudo aquilo e buscava uma solução, um meio desumir com aquelas pessoas que não sabia definir e tampouco compre-ender. Tentava entender por que elas resolveram perturbar tanto mi-nha mãe. Até hoje não descobri o motivo.

Naquele tempo, eu não separava bem as coisas. As reais e as irreais, ouo que é sagrado e o que é profano, o que era de Deus, o que era do demônio,mas havia algo dentro de mim que me fazia buscar soluções no campo da fé.Todo ser humano, quando não consegue soluções pelos caminhos convenci-onais, busca algo que está dentro de si mesmo para ajudá-lo. Acredito serisso o pedacinho de Deus que cada um carrega dentro de si.

Naquele sétimo dia de total perda da sanidade mental de mamãe,conversei muito com o velho garimpeiro. Queria que ele – pois, na mi-nha inocência, o considerava tão bondoso e íntimo de Deus – me aju-dasse com uma idéia, quem sabe com uma de suas tantas rezas. Eu oimaginava como o homem que sabia tudo, que podia explicar e resolveros mistérios da vida. Diante das minhas angústias, ele me aconselhou:

– Certas coisas são inevitáveis na vida. Deus exige que nós passe-mos por elas. É ele quem faz tais coisas acontecerem e não podemosmudá-las. A vontade de Deus é soberana. No entanto, quando sua von-tade nos parece pesada demais e lhe pedimos que nos absolva de cum-pri-la, Ele, muitas vezes, por nos amar tanto, nos concede o pedido;mas contrariar a vontade do nosso papai do céu é apenas adiar umatravessia, pois um dia teremos de cumpri-la. São as travessias da vidaque nos levam ao equilíbrio e ao conhecimento. O que é a nossa vidaterrena senão uma simples travessia?

Eu interrompi o velho e lhe disse que não acreditava que Deuspermitisse o sofrimento das pessoas boas, como a minha mãe.

O velho sorriu e perguntou:– Então você não sabe que é o sofrimento que amolece o coração?– Eu não sei. Penso que se alguém me faz sofrer, não me ama – respondi.– Seu pai, quando te bate, te faz sofrer. Mas te ama, não é?– O meu pai nunca me bateu – respondi, tentando pôr fim à teima.Ficamos algum tempo calados e olhando os pequenos quadros

fixados nas paredes do quarto do velho. Ele não buscava assunto. En-tão me zanguei com o silêncio e reclamei.

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– Eu quero é tirar aquele povo esquisito lá de casa – falei, emvoz alta.

O velho, ouvindo o meu desejo, resolveu mais uma vez me ensinaruma de suas magias e encantos – como abrir o portão do bem, aqueleexistente no topo do Morro da Cruz. Ele é, na verdade, o portão docéu. Nele existe um anjo para atender a todos os pedidos urgentes.

Não me contive e novamente interrompi o meu companheiro deviagem, para pedir que me falasse logo se ele havia conseguido abrir oportão do céu. Desde que ele falou dos portões pela primeira vez, meenvolvi numa inexplicável curiosidade. Ele só tinha falado do portãodo mal, eu o havia compreendido como uma fantasia, mas aos poucossua história me fez acreditá-lo plenamente real. Queria que Deca falas-se do outro portão. Queria saber de imediato se ele realmente existia(ou existe). Ou seria apenas uma metáfora, uma fantasia que o velhousava para conduzir a uma explicação?

– Os portões existem mesmo? Você conseguiu vê-los e adentrá-los?– Os portões existem. Eu os vi, mas não entrei por eles. Alguém

veio até eles e me falou uma mensagem que até hoje não entendi.Deca foi taxativo, convincente na resposta, e continuou a contar

a história. Pelos meus cálculos, o ônibus chegaria dentre de mais duashoras e meia à Araripina. Fiquei apreensivo: será que ele concluiria ahistória até o fim da viagem?

Eu estava curioso sobre vários detalhes que ele me adiantou noinício da história: o suicídio dele, os tais mundos pelos quais viajou, asgarrafas luminosas – aquela que o homem do portão do mal lhe pre-senteou e que sumiu e a garrafa que o velho garimpeiro lhe deu comoconsolo para substituir a primeira (ou será que não deu?). Eu não mecontinha de curiosidade. Ficava pensando se era igual àquela que ohomem do portão do mal havia lhe dado.

Eram tantas perguntas que eu tinha! Mas me contive. E ele pros-seguiu a história, já dando sinais de sono e cansaço.

Quando o velho me ensinou a abrir o portão do bem, todo omeu ser foi invadido por uma fé inexplicável. Era manhã de sol forte.

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Subi o Morro da Cruz seguindo os caminhos que o velho havia indica-do. Quando atingi o ponto mais alto, procurei as pedras gêmeas, que,conforme o velho, estavam uma sobre a outra. Ele disse que elas eramdo meu tamanho, lisas e brilhantes.

O morro é todo cheio de pedras de vários tamanhos e coberto poruma vegetação rala, tipo cerrado. Esses detalhes dificultavam a procuradas pedras gêmeas que sustentavam o portão do bem que me levaria aoscéus. Eu já havia procurado muito, estava quase desistindo, por conta docansaço. Resolvi então sentar em uma pedra. Olhei para os lados, procu-rando identificar um ruído que ouvi entre outras pedras, ali perto. Entãovi uma cobra enorme entrando debaixo daquela em que eu estava senta-do. Dei um pulo para frente e cai em cima de uma outra pedra. Fiquei semsaber se corria ou se ficava ali, parado. Ocorreu-me a idéia de matar acobra, mas ela havia sumido debaixo da pedra.

Fiquei indeciso. Logo vi um rato sair correndo debaixo daquelapedra; de repente, outro e mais outro. Vários ratos saíram desesperadosde lá. Agora um pouco afastado, com medo da cobra, eu pensava que,se tivesse ficado algum rato lá, seria o que a cobra estava engolindo.Demorou um pouquinho e mais um rato saiu correndo lá debaixo. Eleestava muito assustado. Era bem diferente dos ratos anteriores: era me-nor, de cor branca, tinha a cauda muito comprida, sem pêlos e averme-lhada; os olhos eram enormes e esbugalhados. Aquele rato diferente mechamou a atenção, por isso o segui. Ele se enfiou numa fresta que haviaentre duas pedras. Fiquei um longo tempo prestando atenção na fresta.

Aos poucos, meus olhos foram mais e mais se abrindo e dilatan-do à visão das pedras. Então percebi que elas eram lisas e brilhavammuito. Iniciei uma volta em torno delas, e quando fiz um giro de centoe oitenta graus, o brilho aumentou muito, pois não havia vegetaçãofazendo sombra daquele lado e o sol se refletia diretamente sobre elas,de onde emanavam luminosos raios que se dirigiam ao sol, ou vinhamdo sol e nelas finalizavam. Era difícil distinguir.

Quase que por um acaso, percebi que estava diante das pedrasgêmeas. Como me alegrei! Fiquei pulando e gritando sozinho no topodaquele morro. Foram vários pulos de alegria (criança quando pula éde alegria!). Não era pra menos, afinal em vários momentos me faltou

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fé, cheguei a duvidar do meu amigo. Mas o velho estava falando a maispura verdade: as pedras existiam e estavam ali. Acontece que ele medisse que aquelas pedras seguravam o portão do bem, mas eu nãoconseguia ver o tal portão. Ocorreu-me, então, uma tristeza repentina.

Fiquei por longo tempo diante das pedras gêmeas, pensando emtantas coisas... Era realmente fascinante a beleza das pedras, uma so-bre a outra. A que ficava por baixo era um pouquinho menor; no en-tanto, brilhava mais. Esqueci o rato branco e a cobra. Naquele mo-mento, não percebi que o rato branco, esquisito, me guiara até aquelaspedras brilhantes que eu tanto procurava.

Agora, diante das pedras, eu queria enxergar o portão do bempara adentrá-lo. Eu ficava recapitulando os ensinamentos e as indica-ções do velho garimpeiro. Tudo estava conforme ele descrevera. Eledisse ainda que eu deveria subir na pedra, fechar os olhos e pedir commuita vontade, e assim procedendo o anjo que cuidava do portão meconduziria aos céus. A tudo o que o velho recomendou, eu obedeci.No entanto, não apareceu nenhum anjo.

Quando resolvi voltar para casa – e nossa casa era quase no pédo morro, que era alto e volumoso –, já escurecia. Quando cheguei emcasa, meu pai já me procurava, aflito, pois já era noite, e muito escura.Apesar das broncas de meu pai, eu não me continha (eu era a ansieda-de em pessoa): queria sair escondido naquela mesma noite para contartudo ao velho garimpeiro, mas esperei o dia amanhecer. Queria que ovelho explicasse por que o anjo não aparecera.

Amanheceu. Fui correndo ao asilo. Era no máximo seis da ma-nhã. Tirei o velho da cama, questionando seus ensinamentos e reco-mendações. O velho, em nenhum momento, se fez de culpado. Susten-tou que a falha era toda minha, e ela estava no meu desejo e tambémno meu coração, que não conseguia acreditar nos anjos.

O velho me disse que eu deveria voltar até as pedras gêmeaslevando algumas flores bem bonitas, fechar os olhos e pedir com a vozbaixinha, mas com toda a força e vontade que sai do coração. Elegarantiu que se assim eu fizesse, o anjo, com certeza, me apareceria.Ouvi tudo e reclamei que vi as pedras gêmeas, mas não vi portão al-gum, muito menos anjo.

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O velho respondeu perguntando:– Eu não lhe disse que o portão é encantado?!– É, disse – respondi.– E, por isso, tem que acreditar. Tudo o que é encantado só

aparece para quem acredita. Tem gente que chama isso de fé. Portan-to, tem que ter fé.

Lembro-me muito bem. Era uma manhã de domingo. Nova-mente fui ao topo do morro. Foi mais rápido alcançá-lo na segundavez, pois eu já sabia o lugar exato. Quando cheguei até as pedras, sen-tei-me em cima da maior, era a que ficava mais no alto. Fechei meusolhos e fiquei ali mais de sete horas, sentado em cima daquela pedra,pedindo ao anjo que me aparecesse.

Eu já estava com muita sede e fome, muito queimado pelo sol,que naquele dia estava abrasador e impiedoso. Mas nada me fez desis-tir do meu pedido, pois eu estava determinado a falar com alguém docéu. Precisava de ajuda para minha mãe. Falava constantemente, bembaixinho, comigo mesmo, que só sairia dali após falar com o anjo. Euacreditava muito no velho. Se ele havia afirmado que um anjo viria,então é porque existia um anjo e também o portão encantado do bem.

Após a minha completa exaustão, aconteceu a coisa mais fantás-tica, talvez um milagre, na minha existência! Até hoje me emociono aolembrar. Vivo buscando uma explicação, pois ainda hoje não acreditoplenamente naquilo, embora eu tenha certeza do que vi e ouvi.

Às seis horas da tarde daquele dia, o sol se cansou e se foi. Emseu lugar surgiu devagarinho a luz branca da lua cheia. O morro ficoulindo, deslumbrante. Tudo era muito propício ao aparecimento de umanjo, tamanha era a paz naquele início de noite no alto do Morro daCruz. Lá de cima eu podia ver toda a cidade, iluminada pela lua.

Eu começava a entender as coisas com meu raciocínio de criança.Do alto, de onde eu estava, compreendia que eu estava muito próxi-mo do céu; e a cidade, lá embaixo, estava longe do céu. Fechei osolhos e pedi que o anjo aparecesse, pois agora eu compreendia porqueo céu acabava e fazia a curva por detrás do morro.

Eu estava de olhos cerrados, mas com o coração totalmente aber-to e voltado para a esperança de falar com os anjos. Ouvi o som do

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sino da igreja tocar distante. Vinha de longe, lá do centro da cidade,aquele som insistente e agudo, que me fez abrir os olhos. Quando osabri, bem diante de mim estava uma luz branca, que foi aumentando eficando cada vez mais forte, com um brilho fulgurante. A luz me pro-vocava um calor crescente, parecia querer queimar o meu corpo.

A luz que estava ali, diante de mim, tinha uma luminosidade tãoradiante que me causava cegueira. De dentro, ou por trás daquela luz,uma voz feminina, de uma sonoridade que nunca mais ouvi na vida,me fez vibrar o corpo quando falou aos meus ouvidos, passando umapaz inigualável. Lentamente ela foi falando: “Tua fé e esperançaatingiram a misericórdia para os aflitos e perseverantes. Lembra-te,sabes que teu caminho deverá ser seguido. Não existem males eternos.Vença um dia de cada vez, um após o outro”.

Quando ouvi aquela doce e inesquecível voz, algo estranho ocor-reu: eu me sentia uma pessoa adulta, uma pessoa tão antiga quantoaquele morro sobre o qual eu gostava de caminhar. Pareceu-me aindaque já conhecia aquela voz. Abri bem os olhos, mas só enxergava aclaridão que me cegava. Não era a luz do sol. A luz que eu via erabranca, como luz de lâmpada fluorescente; e a luz do sol é amarela,como luz de lâmpada incandescente.

Após ouvir a mensagem, fui tomado por uma sensação inexpli-cável, uma sensação de felicidade. De felicidade e eternidade. Sentia-me humilde e cheio de paz, todavia pequeno diante daquilo que maistarde o velho garimpeiro disse ser um milagre. Sentia-me divinamenteprivilegiado por ter ouvido a voz que eu acreditava ser de um anjo.

Caminhei ao encontro da luz, tentando entrar nela. Quando atoquei, no centro, a luz queimou meus dedos. Estas cicatrizes que vocêvê eram bem maiores; conforme cresci, elas diminuíram. São oresultado material daquele contato que tentei.

A luz, ao ser tocada e logo após queimar meus dedos, apagou-se, como se apaga um raio no céu. Lentamente minha vista foi voltan-do ao normal, e o morro continuou iluminado pela lua, de forma es-plêndida. Iniciei minha volta para casa, completamente tomado pelaslágrimas e muito emocionado. Ao chegar, contei tudo ao meu pai, epela primeira vez eu o vi não duvidar das coisas que costumam chamar

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de milagres – essas coisas que a ciência não explica. Ele não achougraça, não me deu bronca. Percebi claramente: ele se emocionou.

Às vezes, penso que tudo foi uma alucinação, devido à fome e ao cansa-ço, que sugavam meu corpo. Noutras, acredito que realmente aconteceu, quetudo foi real. É que a gente é assim mesmo: teima em negar os milagres.

Voltei para casa sem ver nenhum sentido no que ouvi lá em cima domorro. Anos depois é que tentei decifrar o enigma que a mensagem trazia.Tenho tantas interpretações para aquela mensagem... Mas deixa pra lá.

Lembro-me de que ao contar todo o ocorrido ao velho, mostran-do-lhe os dedos queimados como prova, vi os seus pequenos e profundosolhos se encherem de lágrimas. Ele ficou chorando por longo tempo e sepôs a rezar. Ao final de uma longa reza, exclamou, olhando para o céu:

– No que uma criança é diferente de um anjo? O primeiro acre-dita e o segundo realiza. Ou pode ser o contrário. – O velho respon-deu a si mesmo.

– Como assim? – perguntei.– Bem, amiguinho, quero dizer que só as crianças e os anjos têm

acesso direto a Deus, sem bater na porta.– É!... Eu não bati no portão... Só fechei os olhos e pedi com a

vontade do meu coração, como o senhor me ensinou. Eu tambémpedi com o coração da mamãe, para ajudar mais um pouquinho.

Foi muito engraçado o velho, com os olhos cheios de lágrimas,dar um enorme sorriso e, ao final do sorriso, continuar lacrimejando.

A minha vidinha de criança, a vida da minha família, era uma tragé-dia só. Nenhum romancista, por mais pessimista e inspirado no mundodas tristezas, conseguiria imaginar. Minha mãe estava completando oitodias naquele estado que diziam ser de plena loucura. Muitas pessoas ti-nham medo de que o desespero de papai o levasse à loucura também. Porisso várias delas se empenhavam em ajudar papai a conseguir o dinheiro ea autorização judicial para se ausentar de Arraias e assim poder levar mi-nha mãe para tratamento. Devido a isso, eu sempre ouvia alguns falarem:“Temos que mandar Geralda para o hospício, e rápido!”.

Era assim que falavam. Sem nenhum cuidado ou cerimônia. Faltavajeito e às vezes respeito. Mas era a realidade: mamãe tinha de ir realmentepara o hospício. Eu não tinha muita noção da gravidade daquelas palavras,

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nem ligava muito. No entanto, um dia ouvi uma senhora reclamar com aamiga, exigindo que mudasse a maneira de falar sobre o estado de mamãe, eem seguida me apontar. Creio que queria poupar a mim e a minha família.

Ocorreu-me uma curiosidade em relação ao significado da palavra hos-pício. Mais uma vez fui ao encontro do velho, pedi a ele que me explicasse oque era um hospício. O velho pensou muito, me olhou nos olhos, segurou nomeu queixo e o empurrou carinhosamente para trás; depois, passou a mão naminha cabeça (ele e meu pai gostavam de alisar minha cabeça). Em seguida,pigarreou – naqueles dias ele estava um pouco resfriado – e me disse:

– Um hospício é como um asilo. Só que aqui no asilo ficam osvelhos e também os muito doentes rejeitados pela família. Em umhospício ficam pessoas que têm problemas no pensamento, pessoasque estejam com dificuldades na cabeça. Enfim, é um hospital paratratar doentes da cabeça, lugar onde internam os doentes mentais.

– Aí, minha mãe vai pra lá, né?– É o melhor para ela, amiguinho.O velho estava sendo generoso (ele era um homem muito generoso).

Não queria tachar minha mãe de louca – aliás, nunca a chamou de louca oudoida, tampouco meu pai de preso. Sempre tratava com muita reverência,principalmente a minha mãe. Ele, todas as vezes, falava “dona Geralda” e“seu Raimundo”. Ele sempre me inspirava fé e esperança no futuro.

Então, com meus sete anos de idade – quando, creio, iniciamosnossa tomada de consciência da realidade da vida –, ainda impulsionadopela inocência, disse-lhe:

– É bom, né?, minha mãe ir para o hospício... Porque aí nósvamos embora de Arraias!

– É... A sua mãe precisa de tratamento!O velho fez aquela afirmação denunciando muita tristeza na voz.

Eu percebi claramente, pois ela exalava até do olhar do meu amigo.Eu não sabia de onde vinha aquela tristeza, a razão dela. Então tenteianimá-lo. Quantas vezes ele não fez isso por mim? Com toda a ternuraque o caracterizava, vivia fazendo.

– Olha, eu vou com meu pai para tratar a minha mãe, mas depoiso senhor pode ir morar lá com a gente, tá bom? Eu vou te escrever eeu nunca vou te esquecer, viu?

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O velho se esforçou, quase sorriu. Então falou da nossa amiza-de. Parecia estar adivinhando coisas. Na verdade, adivinhava...

– Nossa amizade tem como base a fidelidade do bom garimpeiroe terá como símbolo o diamante, o mais belo que existe, aquele que eununca encontrei.

– Como é a fidelidade do bom garimpeiro?– O bom garimpeiro jura amor à sorte, e ainda que ela o engane,

o bom garimpeiro será fiel, será feliz pela fidelidade que devota, acre-ditando sempre que o novo dia a trará para os seus braços.

– Será que a sorte é uma moça ou uma mulher, hein?Daquela vez, o velho sorriu muito e chegou a soltar uma enorme

gargalhada, até a tosse cessá-la. E ao final da crise de tosses, com afisionomia de um homem apaixonado, respondeu:

– É uma linda donzela que só beija a face dos homens determinados.– E o símbolo? – perguntei, interessado.– Os diamantes? Eles são eternos, puros e únicos. Quem possui

um diamante é dono de uma história de luta, sorte e muito amor. Éassim que se conquista um belo e digno diamante.

– E como eu ia ficar rico com um diamante bem grande? – per-guntei, confuso.

– Um diamante grande vale muito dinheiro. Você o venderia. Maso dinheiro é para você estudar, pois ser e viver é melhor do que ter.

– Como assim, hein?– Estudando você vai ser eternamente o que aprendeu a ser. E

você deve lutar para viver feliz. Quanto a ter, a gente tem hoje e ama-nhã não tem mais. Tudo pode se acabar de uma hora outra. Então,lembre-se sempre: ser e viver é melhor do que ter.

Deixamos aquela conversa. O velho, então, passou a contar mais umahistória: a do homem que o rei mandou cortar a língua porque fazia fofocas.

Pois bem amiguinho, o danado do homem era tão fofoqueiro,que o rei o proibiu de falar por um mês e o avisou que, caso ele falasseuma só palavra, durante aquele período, teria a língua cortada. O danadodo fofoqueiro conseguiu ficar vinte e nove dias sem falar. No último dia dapunição, o fofoqueiro, ao avistar um mercador passar na rua oferecendochapéus, não se conteve e perguntou qual o preço dos belos chapéus que o

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homem vendia. O próprio mercador, mal informou ao fofoqueiro o va-lor, foi correndo contar para sua majestade a desobediência do fofoqueiro.

O mercador entrou apressado no palácio para contar ao rei adesobediência à ordem real. O rei, muito mais apressado que omercador, mal acabou de ouvir a denúncia, já ordenou a todos ossoldados do reino que localizassem o fofoqueiro. O fofoqueiro já ha-via feito muita maldade com sua língua destrambelhada. Muita gentequeria ver o gato comer a língua do fofoqueiro. Por isso, logo todosos moradores do reino aglutinaram-se na praça defronte do palácio,para ver o corte da língua do infeliz fofoqueiro.

Mas os soldados não achavam o fofoqueiro. E o tempo ia pas-sando, passando. Já era noite quando os soldados do rei voltaram tra-zendo apenas o filho mais velho do fofoqueiro. O filho do fofoqueiroera um menino que não tinha mais de dez anos. O menino estava muitoassustado, chorava muito, não sabia dizer o paradeiro do pai.

O rei apareceu no alto do palácio e disse ao povo que mandariacortar a língua do menino no outro dia, às sete horas manhã, caso opai dele, o homem fofoqueiro, não aparecesse. E declarou ainda: “Nãofaz mal cortar a língua deste menino, pois filho de peixe, peixinho é.Será menos um para enredar no reino”.

Muita gente ficou revoltada, tanto com o homem fofoqueiroquanto com o rei, que iria cortar a língua de uma criança inocente,que talvez não fosse fofoqueira como o pai. Todos ficaram preocu-pados, pois palavra de rei não volta atrás. Muitos súditos não se con-formavam com aquela decisão.

O dia amanheceu. O sol mal havia saído e o povo já estava napraça do palácio. Não era para ver o rei cortar a língua do menino,mas para ver se o pai do menino iria aparecer ou não. Quando deramsete horas da manhã, o rei apareceu no alto do palácio. O povo fezsilêncio, amiguinho! Quando o rei começou a falar, ouviu-se um enor-me estrondo e uma grande névoa de poeira subiu aos céus...

O velho interrompeu a história, ouvi a voz de meu pai se avolu-mando no corredor do asilo. Em questão de segundos, ele estava naporta do quarto do velho. Chegou muito apressado, dizendo que pre-cisava de mim em casa.

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Minha grande dor e saudade

ME despedi do velho e lhe disse que voltaria no dia seguinte,para ele me contar o resto da história. Saí acompanhando meu pai bas-tante contrariado. Eu estava muito curioso para saber o que causou oestrondo, se o pai do menino apareceu ou se o rei cortou a língua domenino. Enfim, queria o final da história.

Passaram-se mais um dia e uma noite. Acordei muito angustiado,sentindo uma grande ansiedade, e estava bastante inquieto. Eu pressen-tia algo estranho no ar. A mando de meu pai, fui até o ponto de saídado ônibus, para entregar uma carta ao motorista. Voltando para casa,encontrei papai sentado na calçada, de cabeça baixa. Ele se levantou,olhou para mim com um olhar de dó, passou a mão na minha cabeça eme abraçou forte. Então, falou:

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– Tenho uma coisa muito triste para lhe falar.– Qual a coisa triste, pai?– Uma pessoa de quem você gosta muito morreu esta noite.Não perguntei o nome de quem morreu. Eu sabia desde a noite;

só não aceitava imaginar e fazia o pensamento fugir daquele assunto.Saí correndo rumo ao asilo. Da porta, olhei lá no final do corredor, viaquela mesa que usavam para velar os mortos do asilo. E lá estava umcorpo sobre a mesa. Aproximei-me devagarinho, iniciei uma caminha-da lenta e pesada, que eu não queria que terminasse nunca.

Quando a caminhada acabou, vi o meu amigo dormindo. Meusolhos se encheram de lágrimas. Uma coisa sufocou-me, em seguidaconsegui soltar um grito de dor. Eu perdia uma pessoa que eu aprendia amar muito em tão pouco tempo. Às vezes julgava imortal o meuamigo, que me ensinou muito, que tanto cuidava de mim com suaspalavras. Naquele instante me senti a pessoa mais abandonada e semsorte do mundo.

Deitei meu rosto sobre o peito do velho garimpeiro, senti seucorpo gelado e duro. Gritei, perguntando tantas coisas ao velho... Porque ele estava indo embora, sobre o diamante que ele me prometera eagora eu o exigia, a história que ele não havia acabado de contar no diaanterior. Mas o velho, claro, fisicamente não respondia. Eu ouvi umapessoa pedir a uma outra para chamar meu pai, para me levar paracasa. Respondi com má-criação que não saía dali até o velho se levan-tar, que ninguém me tiraria dali.

Eu nunca mais, em toda minha vida, senti tamanha sensação deperda. O mundo havia desabado de vez sobre minha trágica vidinhade criança. Eu esperava que tudo me acontecesse em Arraias, menosaquela separação inesperada de uma pessoa que me era tão cara e memantinha anestesiado para a realidade. Mas a morte tem esse poder,vem na hora que ela bem quer, não se importa com o momento dequem ela leva e de quem chora seu feito. Até aquele dia eu não conhe-cia a dor de uma separação imposta e irreversível.

Papai, naquele dia, ficou transtornado ao me ver tão inconfor-mado com a morte do velho garimpeiro. Eu sempre ajudava meu paia cuidar dos meus irmãos e até a fazer alguns serviços domésticos.

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Anos depois, papai confessou que admirava meu equilíbrio diante detudo aquilo que vivíamos. Papai temia que eu mudasse após a mortedo meu amigo. Ele não permitiu que eu acompanhasse o enterro. Ten-tou me distrair com várias conversas e coisas de que eu gostava, paraque eu não me lembrasse do sepultamento.

O dia do enterro se foi... E minha vida continuou, como temcontinuado até agora. Mas naqueles dias que se seguiram ela ficou mui-to mais triste. Perdi, a partir da morte do meu amigo, minha capacida-de de acreditar em fantasias. Fiquei mais quieto dentro de casa e passeia ver as cenas de loucura de minha mãe com maior freqüência.

Depois que meu amigo se foi, passei a ver o mundo apenas comoum caminho sem sentido, principalmente para os pobres. Comecei en-tão a questionar, desde cedo, todas as coisas, às vezes perdendo a com-preensão do que dizem ser a vontade de Deus. Nada me faz crer queDeus queira e permita sofrimentos. Isso me parece irracional e sádico;parece muito mais com coisa do demônio que de Deus.

Em Arraias, todos os que me conheciam me consideravamuma criança muito inteligente. Uma estudante de Direito que goza-va férias na casa dos pais, que eram nossos vizinhos, me disse umafrase da qual nunca esqueci: “Você é um garotinho tão maquiavéli-co e endiabrado, e ultimamente anda mudo”. Geralmente usam apalavra maquiavélico no sentido de mau-caráter; isso tenho certezade que nunca fui.

Mas eu realmente me calei para o mundo durante muito tempo.Não podia ser diferente: minha mãe, como diziam, “louca-de-jogar-pedra”; meu pai, preso naquela cidade, não podia levá-la para umtratamento; e agora perdia um amigo que dedicava grande parte doseu tempo cuidando de mim e me dando atenção.

Meu pai às vezes perdia o que não tinha no jogo de cartas. Atra-vessávamos sérias dificuldades, faltava-nos de tudo. E o velho, que mesustentava em um mundo de fantasias e me dava suporte psicológicopara enfrentar aquela louca realidade, tinha partido de repente, medeixando sem muitas respostas. A impressão que eu tinha era de quelogo todos iriam embora e eu ficaria vendo aqueles seres inexplicáveisno quarto de minha mãe, perturbando-a para sempre...

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O início de um plano

TRÊS dias se passaram desde a morte do velho garimpeiro. Gra-ças a Deus aqueles seres estranhos não apareceram para infernizar nos-sas vidas. No entanto, minha mãe estava num estado deplorável. Melevantei muito cedo, estava sentado na beira de sua cama quando, nomáximo às cinco horas, chegou em nossa casa dona Eva, que conversoulongamente com papai. Após aquela conversa, flagrei papai chorandopelos cantos do cômodo que usávamos como sala. Perguntei-lhe a razãodo choro, mas ele negou que estivesse chorando (ele sempre se acanhavade chorar perto de mim). Insisti em saber o que se passava.

– Papai, por que o senhor está chorando?– Tantas coisas me devoram nestes dias... Tenho que salvar sua mãe

antes que seja tarde demais. Você terá que ser mais forte do que foi até agora.

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– Como assim?(Não entendia aquela resposta cifrada.)A conversa entre meu pai e dona Eva faria acontecer em três

dias a cena que mais me marcou em todo aquele sofrimento pelo qualpassamos. Não sei por que me marcou tanto, mas é uma cena eterna-mente viva em minha lembrança; é a que mais me faz sofrer até hoje,quando lembro.

Pelo que apurei da história, dona Eva veio avisar a meu pai que ojuiz da cidade viajaria no dia seguinte. Por volta das nove horas, che-gou em nossa casa o delegado João Andrade. Ele conversou com meupai rapidamente. Lembro-me de que o delegado disse a papai que vi-ajaria para Campos Belos, tendo lhe desejado muita sorte.

Naquele dia da visita de dona Eva e do delegado João Andrade,eu percebia que papai estava muito agitado, entrava e saía em casa atodo momento. Minha mãe, que era cuidada por algumas mulheres,amigas de Davina, estava em um daqueles dias. Ela gritava e choravadesesperadamente. Davam-lhe comida e ela juntava tudo na boca, paraem seguida jogar em cima de quem estava mais próximo. Não queriamais se vestir. (Naquele estado de loucura em que vivia, mamãe prefe-ria sempre poucas roupas ou nenhuma.) Ela, às vezes, não sei por quemotivo, passava a implicar com as pessoas que ficavam lá em casa coma intenção de nos ajudar; tentava agredi-las com chutes e unhadas, ouatirando objetos nelas. Com tudo aquilo, eu vi plena razão quandopapai afirmou que tinha de salvar mamãe, antes que fosse tarde de-mais. Eu, silenciosamente, achava que já era tarde.

Seu José Marinho, amigo de papai, que morava no fim da nossarua – era lá que funcionavam as casas das mulheres, como chamavam azona do meretrício –, foi até nossa casa na manhã do dia seguinte. Eleentregou um dinheiro a papai, dizendo que era a sua colaboração. Eleainda perguntou a meu pai quanto possuía de dinheiro. Quando papairespondeu, o homem assustou-se. Mas papai o tranqüilizou, respon-dendo que viajaria até mesmo sem dinheiro. Por meio daquele diálo-go, percebi que papai planejava uma viagem.

Passei a perturbá-lo constantemente para saber quando iríamosembora. Eu queria viajar o mais rápido possível! Quando fazia aquelas

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perguntas, papai me olhava com tanta tristeza! Nunca vou esqueceraqueles olhares... Às vezes, ele até lacrimejava e me dava um tapinha nacabeça. Na última vez em que lhe pedi para apressar nossa viagem, elemais uma vez se emocionou, não conseguindo controlar-se. Então der-reteu-se em lágrimas e aos prantos me disse:

– Se Deus nos abençoar, logo todo esse pesadelo vai acabar.Lembre-se, papai nunca vai abandoná-los.

– O velho me dizia que Deus nos abençoa todos os dias, nós éque não percebemos e caminhamos além dos limites das graçasconcedidas. Respondi a papai, que me olhou, concordando, e maisuma vez saiu para a rua sem dizer aonde ia.

Aproximava-se a hora do almoço. Era comum não almoçar-mos, não só pela falta de alimento, mas também em razão dadesordem doméstica em que vivíamos. Papai, coitado, sempre in-ventava alguma coisa para tapear nossa fome. Mas naquele dia ele seperturbou e esqueceu que nós comíamos de vez em quando, e sumiudurante toda a tarde.

Naquele mesmo dia, fiquei cuidando de mamãe, que – comodizia Davina – não estava tão atacada. Percebendo que ela estava bemcomportada, convidei meu irmão Didi para irmos ao morro ondeexistia um enorme e generoso pé de manga-espada, para buscarmosalgumas. A árvore era muito alta e tínhamos dificuldade para apanharas frutas. Eu e meu irmão estávamos famintos, por isso comemosmuitas mangas que estavam caídas no chão. Também colhemos algu-mas, pois nós queríamos levar para casa, mas eram poucas as que esta-vam boas. Ficamos frustados. Então falei ao meu irmão:

– Não vamos poder levar para as meninas.– É, não dá para subir. Vamos embora – disse ele.– Mas as meninas estão com fome... – lamentei.Quando decidimos voltar para casa sem mangas, aquele homem

negro e forte do portão do mal me apareceu do nada e disse:– Saia debaixo da árvore, que vou sacudir para cair muitas man-

gas para vocês levarem.– Muito obrigado. Didi, saia, que o moço vai sacudir o pé

de manga.

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Meu irmão atendeu a minha ordem. Saímos debaixo da man-gueira, que se balançou freneticamente. Caíram tantas mangas que nãoconseguimos levar nem a décima parte. Quando a árvore deixou deser sacudida, apanhamos as frutas mais bonitas. Entretido na tarefa,não percebi o sumiço do homem do portão do mal. Meu irmão ficousurpreso com tanta manga e me perguntou:

– Qual moço balançou a árvore?– O nome dele eu não sei – respondi, sem dar importância à

pergunta.– Enchemos muito o saco, ficou pesado – Didi falou, mudando

de assunto.– Depois a gente busca o resto.Quando chegamos em casa com as mangas, o homem do por-

tão do mal já estava sentado na calçada. Tive um repentino medo,pois eu desconfiava que ele era uma pessoa de outro mundo. Lem-brei-me imediatamente do velho garimpeiro. Eu não o tinha maispara me explicar as coisas e me ensinar a lidar com elas. O homempercebeu meu medo e disse:

– Não tenha medo de mim; sou seu amigo. Sou amigo de suamãe. Venho para ajudar em tudo aquilo que ela não tenha meios eforças para enfrentar sozinha.

– Como o senhor se chama? – perguntei, mais tranqüilo.– Pode colocar um nome em mim, o que você quiser.– Ah!... não sei – respondi, achando graça.Papai finalmente chegou, perguntou-me com quem eu con-

versava. Respondi que não falava com ninguém. O homem negro esem nome sorriu, me fez um gesto com o polegar direito. Papaientrou, eu disse ao homem que entraria também. Ele me fez sinalde adeus e se foi.

Logo escureceu. Sentamos na calçada, comemos mais mangas.Papai reclamou, dizendo que faria uma sopa de macarrão e que nósnão iríamos comer nada.

Quando escurecia – geralmente após as seis e meia –, não ficavaninguém em nossa casa. Meu pai preparava nossa janta (aliás, meu paicozinha muito bem) quando escutamos minha mãe chamá-lo com certa

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normalidade, como não se via há muito tempo. Papai até se assus-tou e entrou no quarto rapidamente, para atendê-la. Ela queria água.Queria também se vestir e caminhar pela rua. Ela pedia aquilo comose estivesse normal, tanto da cabeça como fisicamente. Mas ela nãoestava bem. Meu pai, obviamente, não permitiu. Foi o suficientepara minha mãe entrar numa das crises de loucura mais violentasque presenciei.

Naquelas crises de loucura, minha mãe adquiria uma força mus-cular que parecia nutrida por coisas sobrenaturais. Papai sempre foimuito forte, estava ainda jovem; mesmo assim ele não conseguia segu-rá-la. Nem três iguais a ele conseguiam. Fora das crises, ela era umfarrapo de gente. Até uma criança poderia dominá-la. Mas quandominha mãe tomou aquela água, foi como o marinheiro do desenhoanimado comendo espinafre: a mulher virou uma fera, ficou muitobrava, causava medo até em meu pai; a nós, filhos, nem se diga.

Em plena noite, nossa casa se encheu de vizinhos. Alguns paraajudar, outros para assistir a tudo aquilo. Minha mãe gritava sem ces-sar, queria quebrar as coisas, mandava todo mundo embora... As pes-soas não se moviam do lugar, aquilo a incomodava muito mais, dei-xando-a mais inquieta, aumentando seu destempero e agonia.

Quando ela se cansava, conseguiam segurá-la. Mas ela escarravae cuspia em todo mundo, muitas vezes de forma certeira, no rostodaqueles que tentavam dominá-la. Ninguém, com exceção de papai,suportava aquilo; por isso, claro, soltavam-na. Mamãe, vez ou outra,lembrava-se da filha recém-nascida, a Rosimeire – que estava sendocuidada pelas mulheres do final da rua –, exigia que a trouxessem atéela. Mas minha mãe não tinha a menor condição de cuidar da filha,mesmo recorrendo a todo o amor e instinto materno. Na verdade, eraperigoso até mesmo deixá-la amamentar a criança. Alguns diziam quemamãe poderia até matá-la.

Exagero, eu acho, pois minha mãe nunca perdeu o senso materno.Sempre tentava nos proteger, mesmo nos momentos de suas crisesmais agudas. Posso até imaginar que foi de tanto pensar no nosso pa-decimento – dos filhos – que mamãe teve seu estado de saúde agrava-do, chegando àquela situação deplorável.

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Naquela noite muita coisa aconteceu. Foi uma bagunça, uma de-sordem total em nossa casa, que esteve o tempo todo repleta de gente.A noite foi longa e muito trabalhosa. Ninguém conseguiu dormir. Nodia seguinte, a situação foi considerada como uma questão de urgênciapor muitas pessoas. Todos entenderam que meu pai não podia conti-nuar enfrentando aquilo tudo.

Muitos prometeram ajudar papai. Realmente era difícil paraele, como preso na cidade, trabalhar, manter a família, cuidar damulher completamente louca e manter um mínimo de equilíbrio. Odesequilíbrio era o temor de muita gente. As pessoas temiam quepapai terminasse por fazer uma bobagem. Era, reconhecidamente,muito sofrimento. Por isso, alguns arraianos resolveram ajudar pa-pai de uma vez por todas e esquematizaram um plano para resol-ver a situação.

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Um inesquecível abandono

DEMOROU muito a passar aquela noite das mil e uma atribulações.No dia seguinte, por volta das dez horas da manhã, chegaram a

nossa casa dois homens, que conversaram de forma agitada ao trata-rem alguma coisa com meu pai. A conversa foi nervosa e rápida. De-pois eles se foram, apressados. Talvez tenha sido naquela noite que arua José Marinho mais se movimentou em toda a sua existência. Talveznunca mais tenha acontecido outro tumulto com as proporções da-quele. A rua fervilhou de gente em frente ao depósito municipal, ondemorávamos.

Passaram-se dois dias. E era ainda maior o clima de correria narotina já tão agitada de nossa casa. É que uma vez por mês passavapela cidade um avião a serviço exclusivo dos correios, o qual, em casos

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graves de saúde, transportava os necessitados. Parte do plano era co-locar meus pais naquele avião.

A cidade estava em alvoroço. Todos torciam para meu pai eminha mãe conseguirem embarcar. O juiz não havia concedido autori-zação; mas ele estava ausente, tinha viajado mais uma vez para Goiâ-nia. O delegado de polícia também não estava em Arraias.

O fato é que todos apoiavam e encorajavam papai a sair da cida-de, mesmo ilegalmente. Ele já sabia para onde levar mamãe: seria paraum sanatório na cidade de Anápolis, em Goiás.

A previsão da chegada do avião em Arraias era para as duashoras da tarde. Papai aguardava ansioso. Eu via muito movimento ealvoroço em nossa casa, mas não conseguia acompanhar os aconteci-mentos e tampouco entender o que estava para acontecer.

De repente, toda aquela agitação se tornou muito maior. É que oavião adiantou seu pouso naquele dia, sobrevoando a cidade três ho-ras antes, em torno das onze horas. A aeronave geralmente não ficavamais do que meia hora em solo arraiano.

Lembro que um dos homens que esteve pela manhã conversandocom papai chegou apavorado e disse: “Raimundo, rápido, meu amigo!O avião já esta pousando. Anda depressa que o Quincas já vem aí como carro!”.

O homem mal fechou a boca e pareceu que um tufão entrou emnossa casa. Era um turbilhão de gente, em grande correria e atropelo.Todos queriam ajudar papai a organizar um mínimo de roupas e ou-tras coisas para viajar naquele instante, mas acabavam atrapalhando.

Eu não me continha de tanta alegria! Era chegada a hora de via-jar para iniciar uma nova vida, em um novo lugar. Tentava arrumarminhas poucas roupas. As pessoas me atropelavam a todo instante,mas eu não me importava. Eu brigava com meu irmão para ele searrumar também. A minha felicidade quase explodiu do peito parafora quando avisaram que o seu Quincas Teixeira havia estacionadosua caminhonete e já nos esperava na frente do depósito municipalpara nos levar ao campo de pouso. Apesar da minha alegria, fiqueiparalisado num canto do quarto a observar o esforço de meu pai edos outros homens para segurar minha mãe e levá-la para dentro do

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carro. Mamãe estava num daqueles “dias de crise atacada”, como diziaDavina. Ela gritava palavras incompreensíveis e dava muito trabalhopara entrar no automóvel. Aquela força muscular que lhe ocorria deuma hora para outra estava a toda quando tentaram embarcá-la.

A multidão formada por curiosos e compadecidos, que assistiamao tumultuado embarque no carro de seu Quincas, atrapalhava bastan-te, pois muitos faziam esforços desordenados, tentando ajudar. Quan-do conseguiram colocar mamãe dentro da cabine da caminhonete, su-geriram amarrá-la. Papai se irritou, tomou aquilo como insulto. Abra-çou-a com muita força, evitando que ela saísse do carro. Seu Quincas,que ajudara no embarque, deu a volta correndo pela frente do carro;mal entrou, funcionou rapidamente o motor, tentando arrancar, masmamãe o atrapalhou. Ela se agitava, gritava e, como sempre, cuspiaem todos que dela se aproximavam. Meu pai se machucou muito, de-vido ao esforço para segurá-la.

Logo o carro começou a se movimentar. Foi partindo devagari-nho. E aí é que me vêm as lembranças das cenas mais tristes de toda aminha vida. Nunca vou esquecer. Meu pai, já dentro do carro, entre omotorista e mamãe, tentando controlá-la, esforçava-se para colocar acabeça para fora da janela. O carro já abria passagem lentamente entrea multidão. Ele aos choros, de dor e clara revolta, gritava bem alto,fazendo um último apelo à multidão. Ele ficou repetindo as mesmaspalavras até o carro sumir e não ser mais possível ouvir sua voz. Papaigritava, muito emocionado: “Minha gente, pelo amor de Deus, cuidede meus filhos! Pelo amor de Deus, minha gente, cuide de meus filhi-nhos! Meus filhos, não chorem! Papai volta logo...”

O carro seguia lentamente, aumentando a velocidade aos poucos.Eu corria ao lado da porta do carona, ouvindo os apelos de papai. Po-dia ver minha mãe se acalmando e os olhos desesperados de papai meobservar correndo atrás do carro. Quando eu já não conseguia acompa-nhar a velocidade, perguntei: “Pai! E nós, não vamos? O senhor e a ma-mãe vão voltar?” Eu já não podia ver o rosto de meu pai, pois o carro jáestava bem à frente. Só ouvi o grito dele: “Cuida dos teus irmãos!”.

Fiquei estarrecido! O mundo, literalmente, se apagou naquelemomento. Meu pai e minha mãe se foram, deixando a mim e a meus

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irmãos. Voltei para a frente do depósito que chamávamos de nossacasa, e sentei-me no chão, rodeado por toda aquela multidão. Meusirmãos, todos aos prantos, me ladearam, impondo-me a obrigaçãode cuidar deles. Naquele momento, afortunadamente, uma energiase apoderou de mim, e eu não chorei. Fiquei com a imagem datraseira do carro se afastando, diminuindo, diminuindo, até sumirdos meus olhos.

Então vi outras pessoas chorando de dó da nossa situação. Prin-cipalmente quando minha irmã Renilde perguntou: “Quem vai ser nos-so pai e nossa mãe, agora?”. Ficamos ali abandonados e dependentesda boa-vontade de algum bom coração arraiano.

Logo o avião sobrevoou a cidade e se foi, levando meu pai eminha mãe. Eu vi o avião desaparecer no céu e não me contive. Eramuita angústia saber que tinha ficado ali, ao abandono, sem saber paraonde estavam indo meus pais e se um dia voltariam. Eu tinha umapergunta pulsando aqui dentro: o que seria de mim e de meus irmãos?

Demorou para a multidão sair da frente de nossa casa. As pesso-as ficavam ali fazendo vários comentários sobre a situação de nossafamília e só aos poucos foram saindo. Sem tanta gente por perto, co-mecei a fraquejar. Mas sabia que se chorasse meus irmãos se sentiriammuito mais abandonados. Contive-me, chamei meus irmãos para den-tro de casa. Várias pessoas tentavam dizer palavras de conforto, ten-tando transmitir força. Eu as ouvia silenciosamente, e no íntimo pediapara nos deixarem a sós. Acho que eu queria me soltar em choros. (Ochoro é a primeira prece de alguém em sofrimento.)

Dona Eva – que Deus a abençoe por tudo o que fez por nós –nos acompanhou quando entramos na casa e esforçou-se em me con-solar. Explicou o que acontecera, principalmente quanto ao plano depapai e seus amigos. Confortou-me dizendo que logo minha mãe vol-taria, e totalmente recuperada. Mas eu não perdoava meu pai, por elenão ter me explicado que eu teria de ficar sozinho com meus irmãos.

Agora eu sei de tudo. Papai tinha combinado com alguns amigosde deixar a cidade mesmo sem autorização judicial. Os amigos delesabiam que o juiz viajaria e que o avião passaria na cidade durante aausência do magistrado. O delegado (que se dizia amigo de papai),

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talvez para se libertar de possíveis remorsos, tenha resolvido deixar acidade para colaborar com o plano.

Eu estava com meu coração de criança arrasado. Tanto quanto ocoração de um náufrago que, avistando a praia, não sabe se suportaráa próxima onda. Antes eu tinha uma mãe, que, aos poucos, os desen-contros e crueldades da vida enlouqueceram, e um pai a quem chama-vam de preso, mas dormíamos juntos todos os dias e estávamos sobsua proteção. Agora, não tinha mais nada disso. E o difícil é que meusirmãos buscavam em mim essa proteção.

Chegou a noite. Eu tinha a esperança silenciosa de que logochegaria algum parente, vindo do Combinado. Afinal, era tão próxi-mo! Lá moravam meus avós, três tios casados e dois solteiros. Masse passaram dois dias e ninguém apareceu. Eu perambulava pelasimediações da casa, sem rumo. Meus irmãos, como minha própriasombra, me seguiam por onde quer que eu fosse. Era uma situaçãobastante difícil.

De tudo aquilo aprendi como é imediato o senso da busca deproteção e rumo de vida. Hoje em dia é comum vermos criançascom cinco, seis anos, abandonadas nas grandes cidades; mas elas, atécerto ponto, são orientadas, e os novos esquemas de sobrevivênciaurbana as moldam. Eu, no entanto, era uma criança protegida pelospais e jamais imaginaria ser deixado com quatro irmãos menores.Isso sem contar a Rosimeire, de quem as mulheres do fim da ruacuidavam desde que nasceu.

Chegou a terceira noite. Comecei a entrar em depressão. Minhaesperança de algum parente vir nos buscar se acabou. Eu não tinhaninguém, além de meus irmãos. Ficava horas lembrando de meus paise do velho garimpeiro. Nem mesmo o homem do portão do mal, queeu não sabia se era amigo ou não, apareceu naqueles dias. A sensaçãode abandono e falta de sorte era total. Só não era pior porque semprena hora do almoço e da janta alguém da cidade, não lembro quem, nostrazia comida. Raramente eu comia. Meus irmãos choravam muito afalta de nossos pais. Eu tentava ser forte, mas isso era humanamenteimpossível para uma criança de sete anos. Acredito que tudo aquilome envelheceu no mínimo vinte anos. A tristeza e o abandono dos

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meus irmãozinhos me afetavam muito, corroíam minhas esperanças ea fé no dia seguinte.

Faltava alguém em quem eu confiasse para conversar e pedirorientação. Restava-me unicamente a astúcia de uma criança destinadaa lidar com os emaranhados de uma vida que se apresentava comomuito cruel e sem sentido. Naqueles dias eu me apegava às imagensque construía das tantas histórias do velho garimpeiro e das longasconversas que eu tinha com mamãe, quando ela esteve bem de saúde.

Já escurecia quando vi o carro de seu Quincas parando outravez em frente da nossa casa. Dele desceu a Zinha, que foi empregadade nossa família nos bons tempos do Combinado e estava morandoem Arraias. Sorri para ela – afinal, alguém que eu conhecia de longadata. Ela me chamou e disse que nos levaria até a casa de meu avô,em Combinado. Eu sorri muito. Após três dias de plena depressão,fiquei bastante aliviado. Era uma sensação muito agradável que eunão sentia há muito tempo.

A Zinha adentrou nossa casa muito apressada, juntou nossasroupas, alguns cadernos, livros e a inseparável bíblia de mamãe. Tam-bém pegou vários enfeites de louças (ela sabia que mamãe os adora-va), alguns dos quais eram mais velhos do que eu. Colocou tudo emuma caixa de madeira. Em seguida, apanhou um cobertor e o col-chão para forrar o assoalho da carroceria da caminhonete, para alinos acomodar.

Quando seu Quincas baixou a porta traseira da capota, fechan-do a carroceria, comecei a chorar e a resmungar, recusando seguirviagem. Perguntaram-me por quê, e expliquei que não deixaria minhairmãzinha recém-nascida, a Rosimeire. A Zinha me explicou, sem muitapapa na língua – mas era sem má intenção –, que passaria no “puteiro”para apanhar minha irmã.

De fato, a caminhonete deu ré até o fim da rua, que é bem curta.Uma mulher negra, com aproximados trinta anos, beijou várias vezeso rosto da minha irmãzinha e a colocou, com todo carinho, nos bra-ços da Zinha. (Não me lembro do nome dela, mas Deus sabe quem é.Que Ele a abençoe ou a tenha.) Nossa amiga a levou no colo, dentroda cabine, durante toda a viagem.

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Arraias fica para trás,levamos as lembranças

SAÍMOS rumo ao Combinado no final da tarde, quando o dia e anoite já se encontravam. Começava a cair uma chuva fina, que logocessou. O carro foi deixando Arraias para trás, me enchendo de espe-rança e de uma felicidade que só as crianças são capazes de sentir. Só ascrianças conseguem a metamorfose de passar da profunda tristeza paraa esperança e alegria exageradas. Assim, eu sorria e contemplava asnuvens de poeira que o carro fazia.

Quando eu disse aos manos Didi e Renilde que estávamos indopara casa do vô João esperar mamãe e papai, após muito tempo vi osorriso iluminar novamente o rosto de meus irmãozinhos. O sorriso

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de Renilde, seguido de uma gostosa gaitada, é inesquecível. Era a pró-pria inocência sorrindo! A inocência é assim, sorri sem exigir nada. Éassim mesmo. Ainda hoje me faz chorar quando me lembro. É quemisturo a alegria, a dor, a revolta e a tristeza. Mas, acima de tudo, mesinto um sobrevivente.

Meu companheiro de viagem, enquanto me contava sua história,lacrimejara e controlara várias crises de choro. Mas daquela vez elenão conseguiu segurar. Eu o acompanhei em suas lágrimas. A tristezadele me atingiu mais uma vez. Entendi seus sentimentos, consegui vi-ver aquela cena de sua irmã reencontrando a esperança e a alegria.Ficamos em silêncio por um momento e ele voltou à história.

Através da janela de plástico transparente da capota preta que cobriaa carroceria da caminhonete eu via Arraias ir ficando para trás. Meus olhosse encheram de lágrimas novamente. Eu não sei dizer se era de alegria, detristeza ou de insegurança. Eu deixava para trás a muda, o velho garimpei-ro, o asilo, o Morro da Cruz e os portões do mal e do bem, o homemnegro, de quem nunca soube o nome, os inesquecíveis Rio Maravilha e oCórrego Rico... Como me doeu! Ah!, e o meu cavalo-de-pau... Não melembrei de apanhá-lo. Às vezes eu chorava por ele; mas, na verdade, opranto era pelo velho que me presenteou com tanto carinho e providên-cia... Eu deixava para trás algumas coisas que mesmo o tempo jamais ex-plicaria. Infelizmente, só uma coisa eu não conseguiria deixar lá: as tristeslembranças que me acompanhariam para o resto da vida.

Já se passaram tantos anos e nunca mais voltei a Arraias. Às ve-zes tenho vontade de retornar lá para rever o rio e o morro, tentarabrir os portões que lá existem. Mas o medo do passado me afasta. Seique um dia voltarei lá. O rio, o córrego, o morro e o asilo me esperam.Eles querem me contar segredos, me fazer compreender tantos misté-rios que guardaram durante todo esse tempo em que estive longe.

O morro e o rio sabem que ao longo desses trinta e tantos anos –tempo tão rápido e pequeno diante da serenidade deles – aprendi novosmistérios e querem saber deles. Hoje sou um pobre homem drasticamentemaltratado por um destino mesclado de dores e lutas. Tudo aquilo que nos

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aconteceu me marcou profundamente. Sou um homem sem amigos deinfância para recordar as travessuras. A alegria dificilmente me visita. Crescibuscando uma justificativa para os sofrimentos humanos.

Tenho minhas angústias, pois jurei amor eterno ao Rio Maravilha,ao morro e ao asilo. A eles confiei meus segredos... Dentro de mim latejaum ditado que o velho garimpeiro apreciava e usou para convencionarnosso reencontro, mesmo em outra vida: “Até as pedras um dia se encon-tram”. Sei que as pedras gêmeas se ocultaram e guardam seu brilho inten-so para festejar o meu retorno. Elas foram fiéis a mim. Eu tenho a gratidãocomo a virtude dos bem-aventurados. Todo dia, algo dentro de mim pedeque eu volte a Arraias. Tenho resistido, desobedecido, mas confesso: omeu coração escuta sempre a voz do morro clamando nosso reencontro.

Eu seguia a viagem embaralhando e entrelaçando meus pensa-mentos com os ensinamentos e as histórias do velho garimpeiro. Sóquem rezou com fé às margens do Rio Maravilha conhece a energiaque dele emana. Às vezes, fico a pensar: aquela energia seria o que oscristãos chamam de Espírito Santo? A energia do rio inunda a mente ea alma com o fogo da alegria e da certeza de que todos os sofrimentoshumanos são infinitamente menores que a lição e o crescimento espiri-tual que eles nos trazem.

Após a vitória sobre o sofrimento, sobrevive a fé. É ela a últimaequação que a ciência simplificará, quando esta se unir ao espírito, navia única. Então, ambos, ciência e espírito, encontrarão Deus, pois a fée a esperança em Deus não são possíveis de ser desenvolvidas em la-boratórios.

São elas, a fé e a esperança, experiências e sentimentos individu-ais, elos divinos que ligam a alma de cada ser humano a Deus. Elos quese solidificam conforme se vai descobrindo o amor e aceitando a vidacomo ela nos é dada. Nas muralhas de pedras manchadas pelo sanguedos inocentes cativos que rodeiam a vida e o Morro da Cruz está tra-çado o caminho da vitória para aqueles que sofrem os castigos da vidasem perder a dignidade e sem se permitir a blasfêmia.

Eu seguia pensando nessas tantas coisas... Pensava também nosmistérios de Arraias. Lá estão guardados segredos que só o sofrimentoe a humilhação me permitiram conhecer.

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Arraias foi ficando para trás, enquanto eu me distraía ouvindo osom do motor do carro que nos levava para longe. Aquele som meconduzia a imaginar uma nova fase para nossas vidas. O carro seguiuengolindo a estrada (ou seria o contrário?). Viajávamos ao encontroda renovação de nossas esperanças. Mas me causava insegurança, medoe ansiedade aquela viagem. Meus irmãos dormiam, enquanto seu Quin-cas Teixeira, ao lado de Zinha, seguia atento ao volante. Ele dirigiacom ar de felicidade, apesar da chuva e da lama que enfrentou naquelanoite, quando nos aproximamos do Combinado.

Quincas tinha o rosto de quem tem a certeza de que prestava maisum serviço a Deus. Era um rosto feliz. Ele tinha outra certeza: a de quejamais seria esquecido. Sempre seria lembrado pelos anjos que velam pelacaridade.

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O Rio do Peixe

AO chegarmos em Combinado, foi muito difícil localizar afazenda do meu avô. Com a decaída econômica da região, ele encer-rou o comércio e investiu numa fazenda afastada da estrada e de difícilacesso. Chegamos de madrugada no acesso para a fazenda, o qual de-rivava da estrada.

A fazenda ficava do outro lado do Rio do Peixe. Naqueles dias orio estava cheio, muito acima do seu nível normal, e não havia pontepara atravessá-lo. A travessia só era possível usando-se uma pinguelafeita de uma árvore muito comprida que fora derrubada numa mar-gem e se estendia até a outra, atravessando toda a largura do leito.

Seu Quincas Teixeira, acompanhado de outros dois homens quemoravam na beira da estrada, atravessaram a pinguela e sumiram

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escuridão adentro em busca da sede da fazenda. Nós ficamos na beirada estrada, acompanhados da Zinha, esperando dentro do carro, abri-gados de uma forte tempestade que caiu naquela noite, logo após anossa chegada. Um temporal sobre uma mata é algo assustador; osraios parecem flechas que caem do céu para amedrontar e castigartodos os seres vivos da floresta.

Adiantando a conversa, amigo: naquela madrugada os galos jácantavam quando chegamos à fazenda do meu avô. Ele tinha muitosempregados trabalhando na colheita de algodão; eram mais de sessen-ta braçais. Todos eles acordaram com a nossa chegada, e apesar de sermadrugada, não dormiram mais. Os empregados ficaram surpresos efazendo comentários. Minha tia Selonita e a minha avó nos abraçaram,um a um, de um modo caloroso. Mostravam-se surpresas com o nos-so tamanho. Elas achavam que tínhamos crescido muito.

Meu avô, meus tios e todos os empregados ficaram pasmos econsternados quando a Zinha, de supetão, deu a triste notícia:

– O seu Raimundo foi obrigado a sair de Arraias às pressas, semautorização do juiz, pois teve que levar a dona Geralda para tratamen-to. Se foram para Goiás, ou Brasília, a gente não sabe. A dona Geral-da, com tantos problemas, ficou louca, louca, louca! Olha, gente, lou-ca de jogar pedra! Não é, seu Quincas?

– É verdade!Assim mesmo – como diria minha mãe, “sem pôr sem tirar” –,

com essas palavras e sem pensar muito, Zinha deu a lamentável notíciaaos meus avós. Tanto ela como seu Quincas Teixeira não sabiam infor-mar ao certo o lugar para onde haviam ido meus pais, que se obriga-ram a nos deixar entregues à própria sorte e à boa-vontade alheia. SeuQuincas tinha prometido a meu pai nos levar até o meu avô.

Quando ouviu as notícias dadas por Zinha (de tão ansiosa,ela até se esqueceu de cumprimentar as pessoas, quando chegamos),meu avô se afastou um pouco de todos. Acredito que ele se emoci-onou. É, ele é aquele tipo de nordestino durão, aqui mesmo dosertão de Pernambuco, de Araripina, devoto da verdade e da fran-queza, às vezes de forma até descabida. Embora tenha tentado se-gurar as lágrimas, foi vencido pela emoção (meu avô é durão, sim,

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mas o coração dele não é de pedra). Foi quando o vi chorar pelaprimeira vez.

Minha mãe, hoje em dia, diz que meu avô é igual a papai: seemociona fácil, mas é do tipo que gosta de exibir coragem e lisura emsua conduta. No dizer dele mesmo, é apenas “um homem de vergonhana cara”.

A fazenda era muito movimentada. Havia uma imensa plantaçãode algodão e também uma grande criação de porcos. Quando a vi,lembrei-me daquela que tínhamos no Combinado.

Era época da colheita do algodão, e todo o produto colhido eradepositado em quatro grandes caixas de madeira (mediam cerca dedois metros de largura por quatro de comprimento e dois de fundo),que ficavam dentro de um cômodo imenso. Nós dormíamos dentrodessas caixas, em cima do algodão colhido. Nossos cabelos, ouvidos enarizes amanheciam cheios de fiapos de algodão.

Passada a nossa primeira semana na fazenda, aos cuidados de meuavô, eu não estava tão feliz como pensei que ficaria quando saí de Arrai-as. Meus pensamentos se voltavam a todo instante para a lembrança demamãe; quando fugiam dela, ligavam-se ao velho garimpeiro. Outrasvezes, lembrava o homem do portão do mal. (Não sei por que aindadigo “do mal”; ele nunca me fez mal algum... muito pelo contrário!Apenas o conheci sentado numa pedra e escorado no portão do mal.)Meus pensamentos se voltavam ainda para as lembranças do Rio Mara-vilha, de minhas caminhadas por suas correntezas e pelo Morro da Cruz.É, apesar de tudo o que passamos em Arraias, eu sentia uma pontinha desaudades daquela cidade e de seus fascinantes mistérios.

Em Arraias havia doces e encantadores mistérios, mas tambémhavia aqueles que resultavam em pesadelos. Eu entendia tudo aquilo comocoisas que vinham do portão do bem ou do portão do mal. Os pesade-los ou mistérios que pareciam vir do portão do mal logo me faziamesquecer Arraias. No entanto, eu continuava a maior parte do tempolembrando de minha mãe. Eu ficava triste e muitas vezes pensando quedaquela vez era definitivo, não veria nunca mais a minha mãe.

Na segunda semana em que estávamos na fazenda de meu avô,eu comecei a colher algodão, em companhia dos trabalhadores. Meu

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avô pagava aos coletores por quilo. O que eu colhia ele pagava nor-malmente. Às vezes eu colhia tanto que o saco com a minha colheitaficava tão pesado que eu não o conseguia levar até a balança. E, assim,um dos trabalhadores, muito ganancioso, chamado Vidão – um jo-vem negro, de aproximadamente vinte anos –, me orientava, todas asvezes em que eu não conseguia carregar o saco, a depositar parte daminha colheita no saco dele, para que o meu ficasse mais leve e euentão pudesse carregá-lo.

Descobri que o Vidão me trapaceava: poucas vezes devolvia aminha colheita e, quando o fazia, devolvia apenas uma pequena parte.Eu colhia talvez entre dez e quinze quilos diários. Ele me trapaceava ametade, em média. Comentei com o meu tio Zaqueu, que era adoles-cente naquela época (ele tem oito ou nove anos a mais do que eu), eele, com toda a imprudência da idade, foi tomar satisfação com oVidão. A coisa se transformou em uma encrenca enorme, e logo elesestavam aos tapas e pontapés.

Meu avô, quando soube do ocorrido, fez uma análise bem ao seumodo, na tentativa de descobrir quem tinha razão, e terminou dandouma surra no Zaqueu e as contas do Vidão.

Eu achei um exagero a surra em meu tio; e a dispensa do Vidão nãome pareceu justa. Eu reclamei da trapaça, mas a entendia como uma brin-cadeira de mau gosto. Era algo que dava para relevar. Além do mais, ape-sar da esperteza dele, eu gostava do trapaceiro. Até hoje não perco meutempo guardando rancor.

Para dar o troco ao meu avô, resolvi cortar um pé de melancia doqual ele sempre cuidava, aguardando ansioso pelos frutos. Meu avô ficoumuito bravo ao ver o pé de melancia decepado, e saiu aos berros, recla-mando, à procura da bainha do seu facão. Ela era feita de couro, e meu avôqueria usá-la para me dar uma surra. E eu, vendo o quanto ele estava furi-oso, corri para a mata e fiquei lá, escondido, até o anoitecer.

Causei muita preocupação no dia em que me escondi. A mata jáestava escura e oferecia muitos perigos. Todos, então, foram à minhaprocura: os empregados, meus tios e tias. Eu, escondido, podia ouvi-los conversando. Ouvi o meu tio Bidu, que já faleceu, se zangar commeu avô.

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– Onde já se viu, papai, querer bater no bichinho. Os coitadi-nhos já estão aí, jogados, sem a mãe, sem o pai. O senhor sabe como éque Raimundo e Geralda criam esses meninos... Nunca levaram umtapa sequer; quando muito, Geralda botava de joelhos.

– Pois é, por isso é que estão do jeito que estão – respondeu meuavô, que continuava firme no propósito de me dar a sova.

– Ninguém vai te bater mais, não! – gritava tia Aparecida, mu-lher do Bidu (ela também já faleceu).

Logo Calar, o cachorro mestiço do tio Eliequim, me encontrousentado debaixo de uma árvore e começou a latir, me denunciando.Então me levaram para a casa do tio Bidu, onde eu fiquei por três dias,com medo de voltar para a casa de meu avô.

Reconheço: eu era muito travesso. Durante os três meses em queficamos sob os cuidados do meu avô, ele tentou por várias vezes mesurrar. Tio Bidu sempre intervinha, impedindo as “tacas”, como diziameu avô. Certa vez a surra terminou acontecendo, e, sinceramente,daquela vez eu não merecia.

Meu avô tinha uma empregada, a cozinheira da fazenda, de portefísico avantajado e “muito trabalhadora” – assim dizia minha avó. Amoça tinha a pele branca (era uma pele muito bonita e macia) e ocabelo encarapinhado, cor-de-fogo. Ela se chamava Idaça e era umamulher realmente muito bonita. Todos os homens da fazenda a de-sejavam. Diziam que ela era namorada do meu tio Eliequim; mas ele,anos mais tarde, esclareceu que a moça, na verdade, era amante domeu avô. Daquele caso nasceu uma menina chamada Eliete.

O fato é que até hoje não sei ao certo se a Eliete é minha tia ouminha prima. Meu avô jura que não é o pai; o mesmo diz meu tio. Fazmais de trinta anos que não tenho notícias de Idaça e de Eliete. Naverdade, elas sumiram.

Quanto à surra injusta que meu avô me deu, foi exatamente porcausa de uma inocente cantada que dei na Idaça. Um trabalhador dafazenda chamado Valter, que adorava assobiar, me instigou a procu-rar a Idaça e pedir para fazer sexo com ela. (Eu mal sabia o que eraisso!) Lembro-me bem da cara de surpresa da moça, que me respon-deu com toda humildade e atenção:

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– Oh!, fiinho, num posso, porque agora sou crente.– Crente não faz isso, né? – foi tudo o que respondi.Não sei como aquilo chegou aos ouvidos do meu avô. Só sei que

ele me chamou de forma muito amistosa, com todo o cuidado, paraque eu não desconfiasse de suas intenções. (Ele sabia que eu era muito“liso” e sempre escapava dele com muita facilidade. Acho que isso oirritava ainda mais.) Eu não podia imaginar que iria apanhar. Não tinhafeito absolutamente nada no dia daquela surra e a “cantada” na Idaçajá fazia dois dias.

O velho, que na época ainda não era tão velho (estava chegandoaos sessenta anos), quando me pegou, me segurou com muita força,enfiou minha cabeça entre suas pernas e com elas me prendeu forte-mente, deixando meu traseiro exposto a sua ira. E, então, foi à forra.Como me bateu! Meu traseiro ficou todo retalhado; fiquei muito ma-chucado e dias sem poder sentar direito. O velho deu aquela surravalendo por todas as que ele não havia conseguido dar.

Sempre tive um elevado senso de justiça interior. Por isso, quan-do me castigavam por coisa merecida, eu nunca me zangava, nãoguardava rancor nenhum. Mas aquela surra eu não esqueci. Não per-doei meu avô nem a Idaça, pois acho que ela fez o fuxico. Aquela surramudou muito minha visão infantil da vida e foi a gota d’água que falta-va para que eu me revoltasse de uma vez por todas com as injustiças.As injustiças cometidas, nem mesmo Deus as corrige. E eu, que supor-to tudo na vida, menos a injustiça, não me conformava. Afinal, quemal havia em pedir a uma moça para fazer “tic-tic”, como dizia oValter, que me instigou a convidá-la. E o pior é que eu mal sabia o queera o tal “tic-tic”, muito menos para que servia; e depois, fiz o pedidopara o Valter, nem foi para mim. Não me conformava.

Eu não quis continuar colhendo algodão depois daquela surra.Passei a ir todos os dias olhar os porcos. Achava interessante ver osbarrões cobrirem as porcas. Ficava dias esperando os leitões nasce-rem; era uma cena e tanto ver aquele monte de porquinhos ir saindo dedentro das porcas. Ficava encabulado e muito curioso. Meu avô, talvezmovido pelo remorso, me deu uma leitoazinha, que logo se transfor-mou numa bonita leitoa piau.

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Outras vezes, caminhava dentro da mata, sonhando em achar ni-nhos de papagaios. Fazia de qualquer coisa para ficar longe de todos ede tudo. Meu irmão Didi às vezes me acompanhava. Assim, logo ouviaas pessoas dizerem que eu andava muito triste e esquisito pelos cantos.

Passavam-se os dias. Nem meu pai nem minha mãe apareciam,sequer mandavam notícias. Observava, de vez enquanto, a má-vontade ea pouca paciência do pessoal com meus irmãos menores. É verdade queeles davam muito trabalho, principalmente Rosimeire, que tinha apenasmeses de nascida. Era uma batalha conseguir leite para alimentá-la.

Aqueles pequenos maus tratos e indelicadezas me doíam muito,e tudo o que eu podia fazer era ser malcriado com os detratores. Àsvezes me dava vontade de sumir mata adentro, carregando meus ir-mãos. Aquela situação só me causava mais ansiedade em relação à vin-da de meus pais, e também insegurança – se bem que eu sempre reviaa imagem do meu pai afirmando que nunca nos abandonaria, assimcomo o pedido dele feito a mim: “Cuida dos teus irmãos!”.

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O velhinho Sebastião,um novo amigo

CHEGOU à fazenda, na manhã de uma segunda-feira, um carpinteiro.Lembro o nome dele até hoje: Sebastião. Era um velhinho baixo, de cabeçabranca, meio corcunda e muito falante. Ele foi à fazenda construir um mon-jolo e ficou por lá duas semanas e meia. Logo tomou conhecimento denossa história. Ao reparar nele, lembrei-me do velho garimpeiro. Fisica-mente não se parecia em nada com meu falecido amigo; comum entre elessó o fato de serem velhos e gostarem de bater papo com crianças.

Seu Sebastião percebeu minha tristeza. E para tentar me animar,convidou-me, no fim do dia de trabalho, a ir tomar banho no rio, quejá não estava tão cheio. Chegando lá, ele me aconselhou:

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– Muito cuidado! Se você for lá no meio do rio, pode se afogare morrer. Muito cuidado! O rio ainda está cheio e sujo. É um perigo!Vem pra cá, para a beiradinha.

Calei o velho Sebastião com uma pergunta bem infantil:– Quando a gente afoga, a gente morre, é?Achei interessante a ligação entre o afogamento e a morte.– Claro que morre! Sebastião respondeu, com um sorriso.– Se eu morrer, vou para o céu?– Vai para o céu, sim. Mas você tem muito o que fazer aqui na

terra, inclusive esperar sua mãe e seu pai. Vamos embora.Assim se passou mais um dia e uma noite de nossas vidas na

fazenda, esperando a volta de meus pais. Eu começava a achar os diasmuito tristes e cansativos.

Num domingo, acordei lembrando de um sonho. Eu confundiaos sonhos com a realidade. Sonhei que passeava com o velho garim-peiro numa cidade iluminada por muitas luzes, parecida com aquelaque vi lá de cima do Morro da Cruz, quando tentava entrar no portãodo bem. A cidade que conheci no sonho era muito bonita. Expliquei oacontecido para minha tia Aparecida. Ela me explicou, com toda pa-ciência, o que era um sonho; e me disse, ao final de sua explicação, queeu tinha sonhado tudo aquilo.

Não sei explicar o porquê, mas a tristeza, a cada dia que sepassava, ia se apossando velozmente de minha vida. Devido a isso, eunão tinha ânimo para nada. Às vezes me flagravam chorando escondi-do; como me irritava ter de explicar por que chorava (afinal, não sabiaexplicar...).

Passou-se o primeiro mês, correu o segundo, e nada de notíciasde meus pais. Meu avô começava a se preocupar. Comentava apossibilidade de ir em busca deles. No entanto, ele não sabia por ondecomeçar a busca.

Era realmente difícil a comunicação naquela época. A falta de notí-cias já me fazia acostumar com a idéia de não ter pai nem mãe. Todavia,não aceitava imaginar viver eternamente naquela fazenda perdida no meioda floresta, que me parecia infinita; e o pior: sob o permanente domíniode meu avô, com suas constantes ameaças de “uma taca”. Juntando tudo o

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que me falavam, fiz uma lamentável e desastrosa associação de idéias paraculminar numa ação de pleno desespero infantil.

Sebastião, o carpinteiro, havia me explicado: quando se afoga,se morre. Os adultos me doutrinaram: quando morremos, vamospara o céu. Minha tia Aparecida, que hoje deve estar no céu, me disseque sonhar é muito bom, mas só podemos sonhar de verdade quan-do dormimos. Mamãe, por sua vez, havia me ensinado: quandomorremos, ficamos dormindo, esperando Jesus vir nos buscar. O ve-lho garimpeiro havia me contado várias histórias que descreviam, deforma pormenorizada, como era o céu e como era maravilhoso vi-ver por lá.

Juntando tudo o que eu havia ouvido, entendi que morrer era amelhor coisa: eu passaria a viver no céu, iria esperar Jesus, sonhar commuitas coisas boas, iria dormir muito e, afinal, todas as pessoas que euamava terminariam indo, mais cedo ou mais tarde, para lá. Medianteaquele raciocínio tão infantil e distorcido, decidi: queria morrer o maisrápido possível! E o meio mais fácil era afogar-me nas águas do Riodo Peixe.

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O suicídio

NO final dos dias de trabalho e também nas tardes de domingo,meus tios, os trabalhadores e às vezes até meu avô iam ao rio, tomarbanho. Eu geralmente os acompanhava. No início da tarde de maisum domingo, todos rumaram para o Rio do Peixe. Também fui, fiqueina margem, olhando o pessoal se divertir. Alguns tomavam banho,outros, mais ousados, nadavam de uma margem à outra.

Aos poucos, todos foram saindo da água e retornando à sede dafazenda. E eu, passando despercebido, esperei os dois últimos banhis-tas se retirarem. Quando fiquei sozinho, adentrei o rio, com a clara edecidida intenção de me afogar.

Fui caminhando pelo leito, pisando as pedrinhas, sentindo a água friasubindo pelas pernas. (Por um momento, pensei estar no Rio Maravilha.

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Lembrei-me dos passeios matutinos, das minhas alegrias e tristezas... O Morroda Cruz, os portões do bem e do mal, a muda, o velho garimpeiro, mamãe,o avião, o pedido de meu pai, meus irmãos, meu avô, a surra... Tudo semisturando em minha mente, me deixando tonto, sem saber onde estava.)Então, como se flutuasse, me deixei levar pela correnteza.

Tão logo comecei a me sufocar e a tomar mais água do que su-portava, veio o arrependimento (afogar não era assim tão simples, tal-vez seja a pior das mortes). Mas já era tarde demais! Não podia fazermais nada, pois a correnteza me arrastava velozmente.

O rio estava cheio, devido às constantes chuvas que caíam naépoca. Ainda consegui soltar dois ou três gritos, pedindo socorro.Esforço inútil. Por sorte, um pequeno tronco se aproximava, tambémcarregado pela correnteza. Num esforço extremo, consegui agarrar-me a ele, passando a flutuar na água. (Aquele tronco tornou-se, literal-mente, minha tábua de salvação.) Um pouco adiante, ele se enganchoua outros troncos, todos barrados por uma pedra enorme que nascia namargem do rio e avançava leito adentro.

O pessoal da fazenda chamava aquela pedra de cabeça-de-ele-fante. Havia muitos fragmentos de vegetais, ramas, galhos e troncosde árvores engatados entre a cabeça do elefante e outras pedras meno-res, à margem direita do rio. Fiquei enganchado naqueles troncos egalhos. Foi muita sorte! Pois, se não me engancho ali, certamente aságuas velozes do rio me levariam para muito longe, e possivelmentejamais seria encontrado. Mesmo enganchado e tentando me agarraraos troncos, fiquei me debatendo e tomando muita água.

Os gritos que soltei foram ouvidos pelos dois últimos trabalha-dores a deixarem o rio. Eles voltaram correndo, ansiosos. Como nãome viram, perceberam que algo acontecera. Caminharam pela mar-gem, rio abaixo, e me avistaram preso no meio das galhas e troncos,do outro lado. O rio era estreito; no entanto, era muito fundo e estavacom volume maior de água. Eles não tinham como me socorrer deimediato. Um deles, então, foi correndo à sede da fazenda, a cerca deduzentos metros, buscar uma corda e mais ajuda.

Logo ele voltou, com todo o pessoal da fazenda. Como fui res-gatado, não sei com detalhes, pois quando me alcançaram, estava

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desacordado. Contam que me deitaram imediatamente no chão da mar-gem oposta à da sede da fazenda e ali tentaram me reanimar. Paraminha sorte, naquele dia visitava a fazenda seu Pedro Enfermeiro, quetrabalhara no hospital do Combinado. Ele chegou às pressas, me fezbotar para fora toda a água que tinha engolido. (Seu Pedro era umhomem verdadeiramente bom, que salvou muitas vidas naquele ex-fim de mundo, devido à sua boa-vontade e à ajuda de Deus. Quandoo hospital do Combinado foi fechado, ele ficou lá, naquele sertão,fazendo as vezes de médico – até cesarianas ele fazia!)

Meu irmãos Didi e Renilde choravam, motivando minha vó, tiaSelonita e tia Aparecida a fazerem um grande escândalo na outramargem do rio. Elas gritavam desesperadamente, perguntando a todoinstante se eu ainda estava vivo.

Seu Pedro ordenou que me levassem para a outra margem. En-tão me colocaram dentro de um tambor cortado ao meio e me condu-ziram até lá. Quando me estenderam no chão, para seu Pedro Enfer-meiro continuar suas desesperadas tentativas de socorro, ele mal co-meçou seu trabalho e logo parou. Lívido, com a voz trêmula e tendodificuldade em comunicar o que tinha a dizer, colocou as duas mãosna cabeça e disse ao meu avô:

– Seu João, o menino já está morto!– Não é possível, gente! Como pode acontecer uma coisa des-

sas?! Meu Deus, o que nós vamos falar para Raimundo e Geralda, quan-do chegarem?

– Se ele está sufocado, vou sugar o nariz dele – sugeriu minhaavó Hermínia.

– Não adianta, dona Hermínia! O coração já parou de bater eele não respira. E veja o olho dele, já está revirado. Bebeu água de-mais... – informou seu Pedro.

O caminho que dava acesso à margem do rio que usavam parabanhos e demais serviços não era o mesmo que ligava a estrada àfazenda. Da sede da fazenda, para chegar até aquele local, existia umcaminho estreito e reto que rasgava a plantação de algodão; no finaldo caminho, descia um barranco cuja altura era variável conforme onível da água que corria no rio. Um dos trabalhadores, que estavam ali

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observando o meu corpo estendido sobre uma das muitas pedras quemargeiam o rio, chamou a atenção de todos quando, surpreso e assus-tado, perguntou, em voz alta:

– Ué! Olha lá! Quem é aquela mulher lá em cima?Todos olharam imediatamente para o alto do barranco, avistan-

do a mulher que lá se encontrava. Minha tia Aparecida interrompeu obreve silêncio, exclamando, assustada e perplexa:

– É Geralda, gente! Ai, meu Deus! Mas que coisa...– Que está acontecendo aí, gente? – perguntou, gritando, minha

mãe, que continuou de pé no alto do barranco, olhando lá embaixotodo aquele pessoal em volta do corpo de um menino.

Ninguém respondeu à pergunta. Então ela começou a descer obarranco, ao encontro deles. Meu avô, quando mamãe concluiu a des-cida, lhe falou:

– Ele se afogou. Tiramos ele do rio neste instante – explicoumeu avô, um tanto sem jeito, com a voz insegura e demonstrandoclaro pesar.

Meu avô, como já lhe falei, é um dos homens mais duros queconheci. É o tipo de pessoa que se acanha em demostrar suas emo-ções. Porém ele não se conteve e chorou no meio dos empregados edas demais pessoas.

O que certamente deveria ser uma grande festa – o retorno deminha mãe completamente curada – se transformou em uma cenaconfusa e triste. Mamãe estava chegando para nos reencontrar na-quele momento. E a primeira recepção era mais uma tragédia. A ale-gria foi completamente coberta pela dor e a angústia provocadaspelo acidente. Hoje fico imaginando como deve ser o encontro deuma grande alegria e de uma enorme tristeza, ambas disputando omesmo espaço.

Minha mãe havia descido o barranco apressada, quase caindo.Aproximou-se de mim, deitou-se sobre meu corpo e se pôs a clamarpor misericórdia a Deus. Ela anunciava a todos que estavam à minhavolta, como se eles já não soubessem:

– Meu filho está morto! Meu filhinho está é morto, gente! Comovou dar essa notícia para o pai dele?

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Nossa vida era assim: uma tragédia atrás da outra, um tormentoatrás do outro.

– Meu Deus, dai-me forças! Tenha compaixão, meu Deus! Quemais posso lhe dar? – lamentava-se minha mãe.

Retiraram ela de cima de mim e a levaram para a sede da fazenda.Contam que mamãe ficou muito transtornada. Minha avó orava silen-ciosamente o tempo todo. Ela temia que mamãe recaísse em sua doençade imediato. Era realmente um choque emocional muito forte paraminha mãe. Em seguida me levaram, ou simplesmente levaram o meucorpo, para a sede da fazenda.

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Os primeiros dezesseteminutos após a morte

ENQUANTO choravam e lamentavam a minha morte, eu com-provava: o meu raciocínio apesar de desastroso, se mostrava lógico.Enquanto todos choravam, eu começava uma viagem inimaginável.Realmente, como me falaram, dormindo é possível sonhar, e na mor-te o sono é total. Mas acredito que aquilo não foi um simples sonho. Éalgo real que nos acontece. Só me resta uma dúvida: eu estaria, de fato,morto, ou simplesmente meu cérebro estava se apagando, desligandoe me fazendo ver coisas?

Naquela viagem que fiz (talvez um simples sonho ou uma aluci-nação; enfim, não posso precisar o que aconteceu), posso garantir que,

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de um modo ou de outro, passei por muitos lugares, os quais meusolhos antes nunca haviam contemplado. Não podiam ser imagens ecenas que eu tivesse visto anteriormente e que, portanto, estavam ar-mazenadas na minha memória. Até aquela época não havia assistidotelevisão (em São Paulo, não tínhamos o aparelho, e saímos de lá em1964, quando a TV ainda engatinhava no Brasil). Tanto em Arraiascomo no Combinado não havia cinema – portanto, eu jamais tinhavisto filmes; também não tinha acesso a revistas e livros coloridos comaquelas imagens... Enfim, nada que estimulasse meu cérebro a geraraquelas imagens e cenas. No entanto, vi tudo isso de uma forma tãoclara e real, como se estivesse fisicamente diante de cada uma daquelascoisas que até então eu não conhecia.

Refletindo sobre tudo aquilo, concluo que sou um privilegiado emconhecer, por aproximados dezessete minutos, o que provavelmenteseja o tão discutido e curioso “lado-de-lá”, pois, segundo seu PedroEnfermeiro, foi esse o tempo em que permaneci “morto”.

Lamento muito, pois naquela época não havia, na região, ummédico ou meios para atestar se eu realmente estava morto; assim,não me restariam dúvidas quanto ao que me aconteceu naqueles ins-tantes em que estive desacordado. Seu Pedro afirmou que o meu cora-ção havia parado e que meus olhos tinham se revirado. Não sei exata-mente o que seu Pedro queria dizer com isso, e muito menos se quan-do alguém morre existe essa coisa de revirar os olhos.

Do meu afogamento, só me lembro do momento em que osdois homens me gritavam alguma coisa na margem oposta do rio.Dizem que quando morremos conseguimos ver o próprio corpo, masnão me lembro de ter visto o meu à margem do rio ou mesmo engan-chado entre os troncos e vegetações presas na cabeça-de-elefante. Lem-bro que segui caminhando sobre o rio – eu não me afundava! – emuma velocidade tão rápida que logo o rio se cruzou com outro rio. Saídeles e iniciei uma caminhada sobre uma montanha muito extensa, tãoextensa que até parecia um continente.

Creio que viajei a uma velocidade muito superior à da luz. Tudopassava muito rápido, tão rápido que eu sentia falta de ar. Tinha grandedificuldade para respirar e isso me causava um mal-estar desesperador.

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(Acredito que na morte o pior momento seja o do final da respiração.)Quando saí da montanha descomunal, viajei sobre um imenso e escurovazio. Era tudo muito silencioso naquele espaço. E o desespero pelaimpossibilidade de respirar aumentava a minha aflição e agonia.

A certa altura daquela viagem, ocorreu um salto no tempo, ouno meu pensamento. Fui sendo lançado a fatos e episódios dos quaiseu recordava. Já me sentia muito familiarizado com eles. Percebi quenão precisava respirar, ou minha respiração tinha voltado ao normal.Foi uma maravilhosa sensação de alívio. A satisfação de não necessitardo oxigênio aumentou sensivelmente meu estado de percepção. Se éque eu tinha um espírito em aflição, eu passava a sentir alegria e paz.Às vezes acredito que aquilo era o meu espírito que se desprendia domeu corpo em busca da nova morada.

A partir do momento em que percebi que não precisava respirar,foi possível observar melhor as coisas e suportar de forma mais cômo-da aquele deslocamento em altíssima velocidade. De dentro do espaçoescuro e silencioso em que eu viajava – aliás, parecia mais que eu navega-va sem rumo –, avistei uma cidade surgindo ao longe, muito longe.

Adentrei a cidade, e a velocidade que me impulsionava ou metragava para algum lugar foi bruscamente desacelerada. Comecei acaminhar em velocidade normal pela cidade, mas sobre as pessoas.Era muito estranho: eu andava flutuando, pisando no ar, elevado dosolo, um pouco mais alto que a altura da cabeça das pessoas.

Eram pessoas comuns, como nós aqui da terra. Eu ficava curio-so de saber se elas me percebiam. Por isso eu falava alto, para chamara atenção, mas as pessoas não se importavam comigo.

Não era possível ouvi-las, apesar de eu estar tão próximo delas.Algumas até me olhavam, sem, no entanto, me dar a menor importância.Era como se não me vissem mesmo. Eu queria ser percebido! Afinal,estava fazendo uma proeza: caminhava em pleno ar. Mas aquela genteparecia não ver a menor importância no meu feito.

Enquanto caminhava por sobre as pessoas daquela cidade deedifícios tão diferentes e iluminados por luzes brancas, de intensidademuito forte, aconteceu um novo salto no meu pensamento, fazendo-me finalmente refletir sobre o que estava me acontecendo. O salto no

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tempo também me fez lembrar do meu afogamento. Eu começava aouvir muito distante a voz da minha mãe. Mas não era bem o som davoz dela. Era como se o som martelasse no meu cérebro, como nosocorre quando ouvimos um som repetidas vezes em alto volume e derepente o desligam, e mesmo assim continuamos a ouvi-lo. Algo mefazia perceber e sentir mamãe chorando minha ausência.

Despreocupei-me de mamãe quando uma pessoa repentinamen-te surgiu caminhando ao meu lado. Ela também caminhava no ar, aci-ma das pessoas! Então começou a dialogar comigo e a comentar sobrecoisas que eu compreendia. Eu lhe fazia perguntas e dava respostasquando indagado.

Eu conhecia aquele repentino companheiro de caminhada, masnão sei dizer de onde. Ele me convidou para ir a um outro lugar, e nãohouve tempo de qualquer raciocínio quanto ao convite: em segundosjá estávamos em um local completamente diferente de tudo que umser humano pode imaginar.

Aquele meu companheiro me conduziu a um enorme ambien-te, o qual eu não podia enxergar com clareza (minha vista ficava nu-blada; eu me esforçava, mas não conseguia ver de forma nítida). Meurepentino companheiro de caminhada me abandonou ali. Então, umgrupo de seres me rodeou. Eles eram altos, pareciam formados porinúmeras pequenas esferas transparentes – milhões e milhões de es-feras agrupadas –, que davam forma a um tipo estranho de corpo.As pernas e os braços eram desproporcionais ao tronco; a cabeçaera muito pequena e era possível ver uma luminosidade piscandolentamente dentro dela.

Os estranhos seres me perguntaram se eu já sabia dos novos com-promissos. Eu, no entanto, não tinha respostas; as perguntas pareciamsem sentido. Eu imaginava que estavam exigindo uma senha, mas meucoração me avisou rapidamente que não era isso que queriam de mim.Insistiam sobre os compromissos. No entanto, eu não me lembrava decompromissos. Por isso respondi que não tinha compromisso.

Os seres se mostraram muito decepcionados. Então me disse-ram que eu não poderia estar ali se ainda não havia cumprido os com-promissos e não conseguia sequer me lembrar deles. Determinaram

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que eu deveria voltar ao início dos primeiros compromissos e concluí-los. Me falaram aquilo de forma enfática.

Ouvindo aquela ordem, olhei-me dos pés até o peito e assustei-me. Tentei me apalpar, não consegui. Olhei mais uma vez os pés e emseguida os braços. Então percebi que meu corpo era uma coisa dife-rente. Estava leve como pluma! Não era mais um corpo pesado decarne e osso. Meu corpo estava igual ao daqueles seres; no entanto,as esferas que o formavam eram muito menores do que aquelas quelhes constituíam o corpo e não possuíam qualquer luminosidade.Constatei ainda que elas não eram transparentes. E mais: vi que omeu corpo tinha definições proporcionais, bem humanas, e – umaenorme surpresa – percebi que ele não tinha o tamanho de uma cri-ança, e sim o de um adulto de físico avantajado, de proporções gi-gantescas!

Um dos seres possuía maior luminosidade na cabeça em relaçãoaos outros. Ele se aproximou e começou a conversar comigo. Pareciame aconselhar. Eu resistia a seus conselhos ou ordens, não sei ao certo.

Depois disso, a pessoa que me conduziu até aqueles seres reapa-receu e me levou a um outro ambiente. Não sei como, nem por quê,mas eu conhecia todos os que lá estavam.

Naquele novo local, todos me olhavam atentamente. Os olha-res me causaram um enorme mal-estar. Sentia-me acanhado e pequeno,com uma vontade incontrolável de abandonar aquele ambiente. Pa-recia até que eles me pediam exatamente o que eu desejava, ou entãomeus desejos passavam a ser controlados e impulsionados por eles.Logo meu cicerone me apanhou pelo braço e fomos juntos naquelavelocidade que faz um ser humano sentir a falta de ar nos pulmões.Era uma velocidade realmente inimaginável! Logo estávamos em umoutro mundo.

Durante aquela viagem, eu e meu companheiro passamos portantos lugares, ou mundos... Era como se me exibissem um filme emrotação superacelerada. Parecia ainda que estávamos parados e tudose passando sobre nós ou a nossa volta. As paisagens eram variadas,viam-se coisas comuns, que são vistas aqui no nosso mundo, e coisasinexplicáveis.

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Chegamos a um lugar que me pareceu comum. Adentramos umprédio muito grande, parecia feito de fibra-de-vidro, aquele materialque usam para fazer orelhões; o pé-direito era muito alto. Caminheipor um corredor largo e me vi diante de um homem de aparêncianormal. Era um homem comum, como qualquer um aqui da terra.Vestia roupas de uma cor parecida com o lilás, mas muito cintilante –aquela roupa parecia faiscar.

O homem era muito alto e forte, tinha o porte de um atleta (comcerteza, media mais de dois metros de altura e pesava mais de cento e qua-renta quilos). A pessoa que me apanhava me disse que eu deveria ouvir eobedecer àquele homem que estava diante de mim. Após me recomendarisso, meu acompanhante, ou guia, se foi e não o vi mais.

O homem me sorriu e disse:– Você é, e deve ser, o exemplo de resistência e paciência espiri-

tual! Tudo lhe acontece devido ao seu pedido. Vejamos os seus pares esemelhantes. Veja o infortúnio que a derrota lhes causa. Ela destaca afraqueza do espírito, impedindo-lhes o crescimento contínuo. Vocêsempre desiste! Não vai pensar naqueles que dependem de você?! Selembrará sempre desta recomendação.

– Eu não sei o que está acontecendo... Não sei quem sou e o quefaço aqui. Não sei também do que o senhor está falando – disse aohomem que me falava.

– Você é Izdranet. Pediu a missão mais difícil que se pode pedire preferiu cumprir no pior dos mundos em que se pode cumpri-la.Lembre-se de água e caminhos do conhecimento supremo; pense noseu princípio de criação... Tudo o que você pensar torna-se realidade.

Aquele homem enorme me doutrinou e recomendou tudo aqui-lo, sempre me sorrindo enquanto falava.

Refleti sobre o que ele disse e então desabei em prantos. A triste-za tomou conta de mim. Tudo ficou claro em minha mente: eu erarealmente o tal Izdranet, meu nome naquele mundo. Lembrei-me domeu nome e a razão dele. Tudo ficou claro em minha mente. Eu podiaolhar para trás e para frente; podia lembrar da minha vida antes destae o que eu deveria fazer adiante. Só então é que me foi possível enten-der tanta coisa! Por pouco eu não fiquei louco.

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Enquanto refletia sobre todas essas coisas, bateu em meu coraçãouma saudade descontrolada de minha mãe. Então, o homem me disse:

– Não se desespere. Você está a meio tempo e sabe que existeum caminho... Vá percorrê-lo! Volte ao seu compromisso.

– Como é o compromisso? Vocês falam tanto nele! – perguntei,curioso, já me faltando paciência.

– O compromisso foi a seu pedido; não lhe foi imposto. Vocêpode abandoná-lo, se quiser. Mas lembre-se das vidas que você aban-dona e interrompe em plena trajetória de busca do conhecimento e dapaz suprema.

O homem, então, foi caminhando lentamente pelo corredor. Foise afastando, até transformar-se numa luz verde-esmeralda, apagan-do-se depois, desaparecendo de minha vista.

Pensei em tudo o que ele recomendou, no perdão e nas vidasque eu interromperia. Lembrei-me de minha mãe, de meus irmãos,de meu pai. E o mais importante: eu lembrei que teria de resgatarmuitas vidas de um lugar horrendo e triste, custasse o que custasse.Eu sentia ou sabia de que vidas se tratava. Podia enxergá-las me es-perando, confiando na minha promessa. E lá no fundo do pensa-mento, ou coisa semelhante, meus compromissos se tornavam cla-ros. Sim, eu tinha realmente um compromisso e não podia falhar,sob pena de algo horrível me acontecer.

Hoje não tenho certeza das coisas, mas aos poucos vou conse-guindo compreender tudo aquilo, fazendo uma relação com aquelasvidas com as quais me comprometi, com os nove filhos que tenho. Osfilhos não nos vêm por acaso. Eu acredito que existe um compromis-so de caminharmos juntos no universo. Os pais vêm ao mundo pri-meiro, com a missão de prepará-lo para os filhos. Daí nossa luta, cons-ciente ou não, para fazer um mundo melhor, embora muitos pais seesqueçam de tal compromisso. Pais que abandonam os filhos e filhosque abandonam os pais são pessoas incompletas e infelizes; falta-lhesum elo para se agregar a uma força e razão de vida.

Naquele momento, o meu companheiro de viajem interrompeumais uma vez sua narração e desabou em prantos. Foi um choro

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demorado, seguido de suspiros profundos. Alguém da poltrona detrás se levantou e veio me perguntar se tudo estava bem. Respondi quesim, que o problema era o passado do meu amigo. A pessoa solidáriae preocupada sorriu-me e voltou ao seu assento.

Meu companheiro de viagem ainda não havia demostrado tantatristeza quanto daquela vez. Ainda soluçando, voltou ao seu relato. Jáestávamos próximo de Araripina. Eu me preocupava se ele consegui-ria concluir aquela história que tanto me interessava e que vez e outrame emocionava, levando-me às lágrimas.

Ele então voltou a falar. Notei que estava acelerando a voz, apres-sando o final da história.

Lembrei-me de que eu tinha nove pessoas a me esperar em algumlugar. Eu começava a entender que estava saindo de uma vida, mastudo ainda era muito confuso na minha mente. Resolvi caminhar eraciocinar para ver se entendia o que se passava. Não sabia se estavaem um sonho, num pesadelo, ou se tudo era real. Só dei um passo eparei: tive medo de ser conduzido naquela velocidade a outros luga-res! Eu ouvia minha mãe me chamando, chorando desesperada. Euqueria voltar, ou acordar de tudo aquilo. Então fiquei parado e umvulto veio caminhando lentamente em minha direção pelo longo cor-redor em que tinha desaparecido aquele homem que se transformouem luz. O vulto se aproximou e disse:

– Izdranet... Izdranet! Vamos voltar à sua jornada, para cumprirnossa caminhada. Todos devem cumprir a caminhada. Vamos fazer anossa.

– O senhor mora em Arraias, não é?– Eu caminho ao lado dos necessitados. Ando em muitos cami-

nhos e mundos. Sou um insignificante cajado daqueles que possuembom coração e se perdem na caminhada buscando o conhecimentosupremo e a última morada.

– O senhor é o homem do portão do mal e mora em Arraias!Aqui é Arraias?

– Aqui não é Arraias. É um mundo, uma estação que serve parase passar adiante. Aqui é uma estação de luz. Este é o mundo...

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O homem do portão do mal me falou o nome do lugar, mas não melembro. Lembro que ele me advertiu de que ali era um campo de paz ereflexão.

Surpreendentemente, eu estava outra vez diante do homem doportão do mal. Ao vê-lo naquele lugar, lembrei-me de Arraias, e pen-sei por um momento estar dentro da igreja matriz, mas logo percebique isso não fazia sentido. No momento em que eu reconhecia o ho-mem do portão do mal, lembrei-me dele muito antes de Arraias. Eu oreconhecia como uma pessoa amiga e boa.

Ao mesmo tempo lembrei de minha mãe, ouvi seu choro muitolonge. Cresceu-me a vontade de encontrá-la.

Enquanto crescia a vontade de encontrar minha mãe, eu perce-bia que nascia em volta do meu vulto, ou corpo, uma luz vermelha,como se fosse um néon de baixa intensidade, a qual foi aumentando,até iluminar tudo ao meu redor.

Eu continuava a pensar em perdão eterno e em compromissos,pois percebi que aquelas palavras me abriam a mente. Era como sefosse a senha para abrir uma porta, e depois outra porta, e outras mais,sucessivamente; e por detrás de cada porta, uma história ou fato deque eu me lembrava numa velocidade de raciocínio espantosa.

Eu passava a entender claramente os compromissos. Sabia quetinha uma trajetória a seguir na vida. Nessa trajetória, conseguiria osmeios de resgatar de algum lugar alguns amigos ou irmãos. Era claro,para mim, que eles estavam angustiados em algum lugar e precisavamde minha ajuda. Eu era a esperança deles. Havia saído do mesmo lugaronde eles estavam para conseguir os meios de buscá-los daquele mundoem que os deixei.

Percebia que meu corpo continuava todo feito de esferas e, aospoucos, aquelas esferas começavam a se acender e a se transformar emuma luz vermelha. O homem do portão do mal apareceu mais umavez, passou a mão sobre o meu peito, da direita para a esquerda e daesquerda para a direita e disse:

– Vamos agora! Antes que seu corpo se torne inútil e tenhamosque pedir ajuda.

– Vamos para onde? – perguntei assustado.

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– Para o Rio do Peixe. Sua volta está quase se tornando impossí-vel – afirmou o homem do portão do mal, com o olhar sério e preo-cupado.

Pensei no perdão novamente e ouvi minha mãe chorando desesperadapor minha provável morte. Eu sentia que ela estava voltando ao seu esta-do agudo de loucura. Interessante: no momento em que eu vivia aquelascoisas, sabia que ela estava curada. No entanto, me preocupava o seu de-sespero e uma possível volta à enfermidade. Naqueles momentos, entendio significado do verdadeiro amor e como ele funciona, o incomparável einigualável amor de uma mãe que aceita a missão de dar à luz, amar eproteger seu filho.

Então pude entender a dor da mãe de Jesus, a dor da mãe dosoldado que morre na guerra, o amor da mãe que tem o filho maltratadopela fome, o amor ferido da mãe que se separa do filho pela imposiçãoda morte estúpida. Quando pensei na morte estúpida e no sofrimentode minha mãe, que regressou da doença para me buscar, me encontran-do morto, não aceitei a morte, comecei a gritar: Mamãe! Mamãe! Ma-mãe! Quero ver minha mãe! Não chore, mãe, eu estou aqui. Mamãe!

Enquanto eu gritava por minha mãe, o homem do portão domal se aproximou de mim e olhou no fundo dos meus olhos. Aí pudever através dos olhos dele um longínquo caminho. Meu instinto mos-trava-me que no fim daquele caminho, refletido nos olhos do homemdo portão do mal, estava minha mãe.

O homem do portão mal (agora eu sabia seu nome, mesmo semninguém me dizer: chamava-se Luantezi) me avisou:

– Você vai voltar ao mundo de seu compromisso e não poderáver nunca mais, você adentrou com vida material caminhos que... de-vem ser... esquecidos para não...

Ele não concluiu o assunto. Talvez seja eu quem não se lembre...Na verdade, me lembro muito pouco das conversas que tive com ohomem do portão do mal. Ele caminhou para trás de mim e sumiu.

Novamente era possível ouvir minha mãe, cada vez mais forte.Me esforçava para abrir os olhos; durante o esforço, o som dos lamen-tos diminuía. Então eu passava a ouvi-la muito longe. Minha vista estavanublada; eu começava a ver várias pessoas e sentia alguém beijando

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meu rosto; ouvia uma oração, vindo de longe, de muito longe, se apro-ximando cada vez mais.

Era a oração de minha mãe. Eu, já semi-acordado, podia ouvir:

“Ó, Deus! Ó, Senhor! Todos os sofrimentos nesta minha vida euaceitei. Sempre aceitarei a tua vontade, Senhor! Mas, Senhor, o meufilho é minha razão maior, o meu caminho de amor... Senhor, sem meusfilhos, de que vale a minha luta? Dai-me, Senhor, meu filho de volta.Meu Deus, tu tiveste o poder de ressuscitar teu filho... ressuscite omeu. Minha fé em ti é meu rumo de vida. Em nome do teu filho, Senhor,te suplico a vida do meu filho de volta. O senhor disse que aquele quecrê em ti, ainda que esteja morto, viverá. Ó, Deus!, devolva meu filho,para que eu continue minha luta e obediência a tuas ordens. SenhorDeus, tanto meu filho, que é primeiramente teu filho, tem por fazer aseus semelhantes nesta vida, Senhor... assim diz a tua profecia...”

Essa é uma parte da oração de minha mãe, que minha finada tiaAparecida memorizou e nos falava num tom de fé e gracejo – se é queé possível fé com gracejo. Dizia ela: “aquela era a oração de levantardefunto pequeno”.

Se antes eu ouvia minha mãe distante, aos poucos começava aouvi-la mais próximo e mais alto. Logo que consegui abrir os olhos,ainda presenciei minha mãe e minha avó de joelhos na sala da casa dasede da fazenda, suplicando a Deus a minha volta à vida.

Quando abri os olhos e finalmente pude enxergar com clareza,senti a mão de meu irmão Didi alisando minha testa. Ele gritou, movidopela mais doce alegria:

– Mãe, ele abriu o olho! Olha, mãe!– Eita! É mesmo, pai! – gritou minha tia Selonita.Algumas pessoas correram, com medo, ou sei lá por quê, quando

o defuntinho acordou, meio confuso (se é que fui defunto algum dia).De olhos plenamente abertos, ainda ouvi as últimas palavras da

oração de minha mãe:

“Ó Deus!, eu nunca deixarei de crer em ti e pedirei sempre a tualuz para meus caminhos. Em tuas mãos sei que tudo está. As nossas

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vidas a ti pertencem. Ó, meu amado pai! Eu te sou grata por tudo.Ó, Deus! Só as mães sabem e conhecem o amor em seu mais pro-fundo sentido. Senhor, meu Deus, tu, Senhor, és conhecedor e sabe-dor de tudo, conheces o coração aflito de uma mãe...”

Sentei-me na mesa sobre a qual me deitaram como morto e per-guntei por que estava ali e por que todos choravam. Então minha mãe,chorando, me abraçou, agradecendo a Deus.

Ouvi um dos trabalhadores fazer o sinal da cruz e dizer:– É um milagre! Essa muié tem os podê de Deus!– Mãe, cadê o pai? – perguntei, ainda com muitas dores na bar-

riga e nos olhos.– Papai? Ele esta em Brasília, nos esperando numa casa bem bo-

nita. Ele comprou dois lindos carros de bombeiro, bem grandões, umpara você e outro para o Didi.

– Mãe, ele comprou onde, hein?– Lá, numa loja chamada Solomaq.– Solomaq, é?

Quando meu companheiro de viagem falou o nome da loja, oônibus já adentrava a cidade de Araripina. Ele silenciou, parou de contara história, talvez pensando que eu preferisse contemplar a cidade aescutá-lo. A cidade, eu tinha o outro dia... Minha ansiedade era pelofinal da história. Nós ficamos olhando a cidade através da janela. Eramvinte e três horas, em ponto, quando o ônibus estacionou no terminalrodoviário de Araripina.

Interrompi o silêncio perguntando ao meu companheiro ondeele ficaria hospedado. Ele me respondeu que em qualquer hotel depreço econômico. Convidei-o a dividir o táxi, pois eu também queriaum hotel simples. Por outro lado, não deixou de ser um pretexto. Euqueria me hospedar no mesmo hotel que ele, para continuar a ouvirmais sobre sua história. Eu tinha muitas perguntas. Ele aceitou dividiro táxi e fomos para o mesmo hotel. Embora eu tivesse muitas pergun-tas, estávamos bastante cansados. Então fomos logo dormir, tendocombinado que no café da manhã seguinte voltaríamos a nos falar.

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Um grande enigma,minha incansável busca

ÀS sete horas da manhã do dia seguinte, fui ao salão do café, masnão encontrei meu companheiro de viagem. Inicialmente eu tinha duasperguntas a fazer, ou melhor, uma pergunta e um pedido. Dirigi-me àrecepção do hotel e perguntei sobre o homem, descrevi-o em detalhes,pois não sabia informar ao rapaz da recepção o número do apartamen-to. O rapaz da recepção, risonho e atencioso, disse:

– Acho que não tem ninguém assim desse jeito, não, senhor. Quan-do ele entrou, senhor?

– Ontem, junto comigo – respondi.– Mas ontem à noite só o senhor se hospedou.

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– Bem, você não estava aqui. Era outro rapaz – contestei, surpre-so, tentando desfazer um possível mal-entendido, embora sentisse convic-ção na afirmação do rapaz. Ele verificou várias vezes as anotações e, paraminha decepção, manteve a informação.

– É possível falar com o rapaz de ontem à noite? – perguntei,ansioso e inconformado.

– Ele pega às dezenove horas – respondeu o rapaz risonho, masagora fazendo um rosto sério, sentindo-se desacreditado.

Agradeci ao rapaz e fui caminhar pelas ruas de Araripina. Foium dia de ansiedade. Muito confuso, quase não reparei na cidade e suagente. Falei pouco com as pessoas do lugar, coisa que gosto muito defazer em minhas viagens (como gosto de conversar com o povo dolugar!). Em Araripina eu queria procurar um lugar chamado Saco dosTrajanos, onde meu pai foi criado e viveu sua infância, mas não tiveânimo para fazer isso.

Eu queria que o tempo passasse rápido e que o relógio marcasselogo dezenove horas, para que eu pudesse conversar com o rapaz quehavia me atendido na noite anterior. Eu já tinha uma explicação muitológica: meu companheiro de viajem havia se chateado com algumacoisa no hotel e possivelmente se mudara naquela noite mesmo.

Faltavam dez minutos para as dezenove horas e eu já estava narecepção, aguardando o rapaz. Finalmente, às dezenove horas, pontual-mente, o rapaz chegou ao trabalho. Cumprimentei-o e perguntei se elese lembrava de mim, da noite anterior. Falei sobre o homem que sehospedara comigo, queria saber se ele poderia me dizer alguma coisa. Orapaz ficou calado um longo tempo. Fiquei impaciente e perguntei:

– Você entendeu tudo?– Entendi claramente o que o senhor me disse. O senhor não en-

trou no hotel acompanhado... Eu não vi ninguém com o senhor. O se-nhor deve se lembrar... Eu fui ao táxi apanhar sua bagagem.

– Mas não é possível! Um de nós dois está louco! – acusei.– Não, senhor. Não sei se existe um louco em tudo isso, mas,

com certeza, o senhor entrou aqui sozinho.Passei o dia esperando aquele rapaz para me ajudar e ele, no

entanto, me deixou mais perturbado. Pensei na possibilidade de que

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ele provavelmente não registrara o hóspede, para ludibriar o dono dohotel e se apossar do valor da diária, pois meu companheiro de vi-agem talvez tivesse saído muito cedo de lá, sem ao menos tomar café.Eu tinha um motivo a mais para investigar tudo aquilo. Em meus con-fusos pensamentos, suspeitei de que o rapaz era um funcionáriodesonesto e em razão disso mentia. Então perguntei ao rapaz, que nãoera tão risonho e comunicativo como o outro recepcionista:

– Você é dono do hotel ou empregado?– Sou só empregado; sou sobrinho do dono – respondeu, enca-

bulado.– Você se lembra do táxi que me trouxe? Conhece o motorista?– Sim, conheço. Chama-se João Neto. O senhor pode confirmar

com o taxista se o senhor entrou aqui sozinho ou não.– Mas é isso o que quero fazer.Afirmei, inseguro, em razão da convicção demonstrada pelo ra-

paz. Procurei o motorista no ponto de táxi do terminal rodoviário.Ele confirmou que fui da rodoviária até o hotel desacompanhado. In-sisti, argumentando com o taxista. Ele, por um momento, se mostrouconfuso, me reacendendo as esperanças.

Ele então explicou que na noite anterior fizera duas corridaspara hotéis. Na primeira havia duas pessoas; na segunda, só havia uma.A minha corrida era a segunda, em que ele tinha certeza de ter condu-zido um único passageiro.

O motorista era um senhor com mais de sessenta e cinco anos. Eeu insisti, perguntando se ele não confundiu a minha corrida com aoutra. Ele respondeu:

– Não, meu amigo. Eu sou meio usado, mas a cabeça é muitoboa e funciona direitinho. Olha, se tudo em mim funcionasse comominha cabeça, eu estava era casando de novo.

– Está certo. Case com alguém de sua idade, que os funciona-mentos são compatíveis – recomendei.

– Num conhece a música de Luís Gonzaga? Pra cavalo velho, onegócio é capim novo.

Entendi o humor do taxista e agradeci, forçando um sorriso. Fiqueimuito confuso. Já me afastava do ponto de táxi quando o motorista me

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chamou e disse que eu, ou um dos outros passageiros, havia esquecido umjornal no carro dele. Pedi para vê-lo. Então ele me entregou o jornal e eudisse que achava que era meu, mas sabia que não era.

Fiquei curioso. Era uma edição de um jornal de grande circula-ção, de Brasília. Estava dobrado numa página de esportes e a reporta-gem maior era sobre o time do Gama, aquele clube de Brasília quebrigou com a CBF e com o Clube dos Treze, inconformado com seurebaixamento para a segunda divisão. Lembrei que o meu companhei-ro de viagem estava vestindo uma camisa desse clube. Isso aumentouo mistério e não me ajudou a compreender o que estava acontecendo.Eu tinha uma certeza e três homens a negavam.

Voltei ao hotel, curioso e incerto quanto à existência do homemque eu procurava. Pensei: será que Arraias existe? Procurei no catálo-go telefônico um número de telefone de Arraias. Consegui o telefoneda prefeitura. Uma servidora do município, chamada Rosana, me in-formou o melhor meio de chegar até lá.

Então segui para Palmas, capital do Tocantins, e de lá meu desti-no seria Arraias.

Quando cheguei lá, reparei que a cidade lembrava Ouro Preto, massó por ser cercada por morros. A arquitetura e o traçado urbano erambem diferentes. Após caminhar algum tempo pela cidade, apesar de elacontinuar pequena, me senti um pouco desorientado. Logo percebi quechegava aos seus limites. Então pedi a dois senhores, que conversavamnuma esquina, que me informassem qual dos morros era o Morro daCruz. O senhor mais idoso apontou para um dos morros e disse:

– Aquele lá é o Morro da Cruz!Quando o homem me confirmou a existência do Morro da Cruz,

todos os meu pêlos se eriçaram. Senti um arrepio e um medo jamaissentido em toda a minha vida. Era como se eu confirmasse para mimmesmo ter falado com alguma pessoa morta, ou coisa parecida. Pro-curei não demonstrar meu medo e continuei a perguntar:

– Esta é a rua José Marinho?– É esta mesmo! – respondeu o mesmo senhor, que ficou curio-

so com minhas perguntas. Acho que ele percebeu meus cabelos se ar-repiarem. Mesmo assim continuei a perguntar, embora um pouco

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menos trêmulo, mesmo diante da segunda confirmação. O meu medoe a minha curiosidade se misturavam. Fiz a terceira pergunta:

– Onde é o asilo aqui da cidade, que até foi demolido e nova-mente construído?

– É aquele lá?– Me desculpe por tantas perguntas. Aqui na cidade existe, ou

existiu, um homem chamado Quincas Teixeira?– Existe, sim! Tá mais velho que nós; mas taí, firmão, o Quin-

cão véio.Sentei-me em companhia daqueles senhores e lhes expliquei muito

resumidamente por que estava em Arraias. Perguntei-lhes sobre outraspessoas, como a dona Benedita, Domingas, a filha de dona Benedita, seuChico Pontes e o delegado João Andrade. Conversando em Arraias, cons-tatei que todas aquelas pessoas e coisas citadas na história pelo meu com-panheiro de viagem estavam lá, ou um dia existiram em Arraias. Até oAlexandre, que era bom de bola (aquele que driblava o Terto), estava ali,diante de mim. Ele era um dos senhores com quem eu conversava, o demenos idade. Algumas das pessoas citadas na história, aos poucos as en-contrei, ou encontrei alguém que as conhecia ou as conheceu.

Eu já estava há dois dias em Arraias, mas ninguém naquela cidadese lembrava ou tinha ouvido falar de seu Raimundo, que era um ex-preso de Arraias, e nem da sua mulher, dona Geralda, que enlouque-ceu naquela cidade e se foi às pressas para Anápolis.

Havia muita coisa misteriosa, mas eu já tinha uma certeza: aquele ho-mem, ou espírito, ou seja lá o que for, viajou ao meu lado e me contou umahistória fantástica, trágica e acima de tudo muito misteriosa; no entanto, elaera real. Tudo o que ouvi, memorizei; as pessoas existiam, as coisas estavamlá. Encontrei finalmente o senhor João Bandeira, o vizinho de parede e meia.Ele simulou não lembrar, ou realmente não se lembrou, dos antigos vizi-nhos, o seu Raimundo e a dona Geralda. Lembrava-se, obviamente, do an-tigo depósito municipal, da delegacia, e confirmou que tudo fora demolidoe no lugar agora existia uma cobertura. Apontou com o dedo indicadorpara cima, mostrando o telhado. Estávamos quase debaixo dele.

Perguntei ao seu João Bandeira onde era a casa da finada donaBenedita. Era muito próximo da casa dele. Ele me apontou uma casa

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em frente ao asilo. Antes, dona Benedita morava ao lado do Asilo. Fuiaté a casa indicada, bati à porta e uma jovem de gestos acanhados,porém muito gentil e sorridente, me cumprimentou, convidando-mea entrar. (Coisas do interior, abrir as portas a um estranho e convidá-lo a entrar.) Aquela jovem era neta da finada dona Benedita.

A neta de dona Benedita, após eu lhe forçar a memória, lembrou quesua vó realmente havia comentado certa vez sobre uma amiga: tratava-se deuma mulher branca, muito bonita, que morou no antigo depósito da prefei-tura e que tinha ido embora para Brasília. Tempos depois essa amiga envioupara dona Benedita um par de sandálias e várias fotografias; enviou, inclusi-ve, a fotografia de uma criança morta dentro de uma urna, com outras cho-rando em volta. Pedi para ver as fotografias, caso ela as tivesse.

No verso da fotografia da criança morta estava escrito: “DonaBenedita, Deus quase levou meu primogênito. Eu o pedi de volta aosenhor e ele me devolveu. Aqui em Brasília, ele me pediu a minha doceRosirene, a sua linda flor branquinha do campo. Agora ela enfeita os jardinslá do céu. Eu sempre soube que ela era um anjo e Deus lhe confiouuma nova missão”.

Todas as fotografias eram em preto e branco. Estavam guarda-das dentro de uma caixa de papel-cartão que as fábricas usam paraembalar camisa. Entre as fotografias já amareladas pelo tempo, vi umade um time de futebol. Perguntei que time era aquele, mas a jovem nãosoube dizer. No entanto, ela disse que conhecia o goleiro: se chamavaEliequim, era motorista da Real Expresso, a empresa de ônibus quefazia a linha Arraias–Brasília.

Lembrei-me o que Deca havia dito sobre um tio: “Tio Eliequimaté hoje realizava o sonho de adolescente, que era ser motorista deônibus, usar gravata azul e óculos escuros”.

Continuei a olhar outras fotografias. Existia uma que chamouminha atenção: era de um homem moreno, barbado. Perguntei à jo-vem se sabia quem era ele. Ela forçou a memória mais uma vez e disse:“Sei, acho que sei... Imagino que é o marido da amiga da minha avó; eessa, acho que é a mulher dele, a amiga da minha avó”. Passou às mi-nhas mãos a fotografia de uma mulher muito bonita, de aproximadosvinte e cinco anos.

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Pedi à jovem neta de dona Benedita que me emprestasse as fotogra-fias. Ela ficou em dúvida. Ponderou que as fotos interessavam somente àsua falecida avó, portanto, em respeito à memória dela, entendia que de-via guardá-las. Expliquei que eu vinha de muito longe, da fronteira doBrasil com a Colômbia e com o Peru, à procura daquelas pessoas dasfotografias. Argumentei que, caso eu as encontrasse, devolveria as fotos, jáque não tinha nenhum valor sentimental para ela. Prometi que se não en-contrasse aquelas pessoas, devolveria as fotografias pelo correio.

A jovem quis saber como me encontraria, caso ela desejasse entrarem contato comigo. Justificou-se dizendo que sua mãe estava viajandoe que ela possivelmente saberia mais detalhes, pois com certeza conhe-ceu a mulher bonita e o homem barbado das fotografias.

Percebi claramente o desejo da jovem de me ajudar. Então lheexpliquei como me encontraria:

– Moro em Tabatinga, no Amazonas.– Qual o seu nome? – ela perguntou, com um meio sorriso.– Meu nome? É Raimundo Nonato. Melhor você me chamar

pelo meu apelido, que é Boi.– Boi?! – a jovem pasmou-se com meu apelido e se conteve para

não gargalhar.– Isso mesmo, Boi! Sou prefeito de minha cidade. Ela é pequena,

só um pouco maior que Arraias. Tem 38 mil habitantes. Você pode meescrever colocando no envelope apenas: “Boi. Tabatinga, Amazonas”,mais o CEP. O correio, com toda a certeza, me entregará. Vou te dartambém o meu telefone.

– Prefeito Boi! Boi prefeito? O senhor se candidatou com esseapelido, ou com seu nome mesmo?

– Disputei com o apelido Boi. Quando digitaram meu número,não apareceu a foto de um touro, apareceu a minha, e mesmo assim oseleitores confirmaram. Aliás, já venci cinco eleições usando esse apelido.

– Então seu apelido dá sorte.– É, também acho.De posse das fotografias, me despedi da jovem, que ficou em pé

na porta, encabulada com meu apelido. Permaneci mais um dia emArraias, mostrando aquelas fotografias para várias pessoas. A todas eu

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explicava que se tratava de um homem que morou na cidade como pre-so, no antigo depósito da prefeitura. Se alguém me dispensava um pou-co mais de atenção, então eu me empolgava e insistia, fornecendo deta-lhes. Dizia que o homem morara ali com toda a família, que sua esposaenlouquecera e que a família era do Combinado.

Ninguém se lembrava da família, muito menos daquele caso. Atéparecia que Deca havia inventado toda aquela história usando nomes deambientes e de pessoas reais. Ninguém se lembrava ou sabia de nada.No entanto, eu sei que tudo aquilo de fato aconteceu, foi real.

Era sábado. Ocorreu-me a idéia de esperar a segunda-feira e pro-curar no fórum local a existência de um processo datado do ano de1966, contra Raimundo de tal... No entanto, a idéia não pôde ir adiante,pois os servidores da Justiça do Tocantins estavam em greve.

Eu queria, por fim, falar com alguém sobre o velho garimpeiro,mas ninguém em Arraias se lembraria de um pobre velho místico, con-tador de histórias, que há tantos anos morou no asilo. Inutilmente tenteidescrever o velho garimpeiro para algumas pessoas envolvidas com oasilo. Percebi que era inútil tentar fazer alguém lembrar daquele antigomorador; afinal, tratava-se apenas de mais um velho deixado lá.

Quanto à muda, para que tentar descobrir se alguém lembrava-se dela, se as pessoas da cidade não se lembravam nem mesmo datriste história do preso de Arraias e de sua mulher que ficou louca,sendo obrigados a deixar os seis filhos aos cuidados da sorte.

Fui até o guichê da Real Expresso saber do motorista Elie-quim. Lá me informaram que ele havia deixado o emprego há maisde um ano.

Percebi que as pessoas não se importam com o passado alheio.Todavia, antes de retornar ao Amazonas, me restava uma alternativa,uma rara oportunidade.

Eram quatro e meia da tarde. O sol estava prestes a se ir e logoviria a lua. Decidi caminhar pelas águas do Córrego Rico; em seguida,caminhar em paralelo às muralhas, ir subindo ao topo do morro e pro-curar as pedras gêmeas para nelas sentar-me e fazer as minhas oraçõesdiante do portão do bem; ver a cidade lá de cima e conversar com oanjo que com certeza me aguardava lá no topo do Morro da Cruz.

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Esta obra foi composta nos bureaus da Livra-

ria Suspensa em Garamond 13.