Portinari e a Dor - historiaecriticadearte.files.wordpress.com · terra, mas ao mesmo tempo, nos...
Transcript of Portinari e a Dor - historiaecriticadearte.files.wordpress.com · terra, mas ao mesmo tempo, nos...
Portinari, Cândido - Menino Morto 1944 - Painel a óleo/tela - 180 x 190cm
Série Retirantes
A DOR EM PORTINARI Maria Helena Cavalcanti Hofmann
Profa. Dra. Maria Cristina Berbara
Trabalho de Conclusão da Disciplina A Dor nas Artes Visuais do Mestrado em História e Crítica de Arte
A DOR EM PORTINARI
por
Maria Helena Cavalcanti Hofmann
Profa. Dra. Maria Cristina Berbara
Trabalho de Conclusão da Disciplina A Dor nas Artes Visuais
do Mestrado em História e Crítica de Arte
Universidade do Estado do do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades
Instituto de Artes Mestrado em Artes
Dor em Portinari
Maria Helena C. Hofmann Influências Artísticas
Cândido Portinari nasceu no interior de São Paulo no dia 30 de dezembro de 1903, filho
de imigrantes italianos. Aos 15 anos viaja para o Rio de Janeiro para inscrever-se na Escola de
Belas Artes, anos mais tarde, após ganhar três prêmios por um retrato em um salão, começa a
ser notado pela crítica e em 1928, ganha o prêmio de viagem à Europa, onde vive por dois
anos. É neste período que descobre as obras dos artistas europeus que iriam influenciar sua
pintura ao longo de toda a sua carreira1, em especial os renascentistas Giotto, Piero de La
Francesca e Fra Angélico, e também os pintores da Escola de Paris: Matisse, Modigliani e
Picasso.
Menino Morto
Este trabalho é um dos painéis pintados por Portinari em 1944. O conjunto das obras é
considerado um dos mais importantes quadros de Portinari e, sem dúvida, a mais dramática
imagem criada pelo artista sobre o tema dos retirantes.
A representação de luz neste trabalho de Portinari segue aparentemente o modelo clássico,
apresentando uma fonte que tem origem à esquerda do quadro, de forma a destacar as
personagens e dar-lhes um volume. Segundo Carlos Zílio, na série Os Retirantes, Portinari
reproduz também a característica narrativa presente na arte muralista, além do caráter literário,
o que acaba por ocasionar a representação do tema de forma bastante alegórica. O que Zílio
chama de “repertório estável capaz de significar os grandes conjuntos com solenidade e
eloqüência” acaba por se tornar um fator de destaque nas obras dos Retirantes de Portinari em
44. Longe do compromisso com o belo ideal, a arte muralista mexicana trará o contraponto da
estética do feio para o trabalho do artista, criando um Expressionismo próprio, distante das
características do movimento na Europa.
1 É importante ressaltar a origem humilde de Portinari, pois, tendo nascido em uma fazenda de café e sendo filho de trabalhadores, teve pouco acesso à obra de pintores e aos estudos das Belas Artes quando menino.
Na série “Retirantes” de Portinari, todos esses componentes estão presentes , porém controlados pelo
fantasma acadêmico. O “Menino Morto” e a “Família de Retirantes” trazem de volta o mesmo espaço
dos Retirantes de 1936, organizado pela linha do horizonte. Ao invés das tonalidades baixas e da
predominância do marrom, as cores retomam um caráter mais naturalista, continuando pelas nuances a
sugerir profundidade. O conjunto humano, mantendo o equilíbrio clássico, ganha um tratamento mais
expressionista, tanto no desenho como na utilização da textura. (Zílio, Carlos, 1982, p. 103)
A luz que incide sobre as figuras, tendo sua origem à esquerda do quadro, realça
contornos e volumes, porém uma única personagem foge a essa regra, destacando-se do resto
do grupo; é a figura central, que dá o título à obra: o menino morto. Suas pernas deveriam estar
na penumbra, uma vez que a luz vem da esquerda, porém não é o que se vê. A luz incide sobre
a criança, sua luz vem do alto, iluminado-a por completo. Sua forma se destaca, conferindo-lhe
uma dramaticidade maior que às figuras que a rodeiam. Portinari não só destaca o motivo
central como lhe dá um tratamento especial, uma luz diferenciada. Ao mesmo tempo, este
corpo não gera nenhuma sombra sobre o colo da mãe, sua cor branca amarelada se destaca
sobre a sombra do corpo contorcido da mesma, não sobre a sua própria sombra. É como se não
estivesse ali, ou não tivesse volume e nem sequer peso. A criança parece ser comparada a um
anjo, ou mesmo Jesus morto. Apresenta a forma de um esqueleto: sem carne, roupa ou
definição de sexo, apenas um conjunto de ossos.
A alusão à Pietà de Michelangelo2 é clara na pose da mãe que segura o filho morto. A
figura central, sentada sobre o que parece ser um caixote ou um baú, segurando a criança,
parece fazê-lo em suas mãos, não em seus braços. A frontalidade da figura, chega a diminuir
sua dramaticidade, seus braços parecem cortados, a criança não é abraçada, mas carregada
como um boneco. Esta pietà, entretanto, não tem a mesma leveza daquela. Assim como seu
filho, cujo braço não está pendente, mas parece quase estar destacado do resto do corpo, esta
mãe é uma figura endurecida, um corpo de madeira, tal como uma escultura usada nas
procissões de Corpus Christi das cidades do interior. A mãe dá a impressão ao observador de
carregá-lo não em seus braços, mas com suas enormes mãos e oferecê-lo em sacrifício. É uma
tristeza contida. Ela não chora nenhuma lágrima, sua dor não pode ser traduzida em lágrimas, é
contida, reservada, talvez por ser impossível exteriorizá-la. Aparentemente, esta mãe tem uma
atitude de total resignação. Segundo Rodrigo Naves, "Michelangelo luta para espiritualizar a
2 Para este pinel Portinari utilizou como referência a Pietà de Michelangelo que se encontra na Basílica de São Pedro no Vaticano.
matéria"; Portinari, ao contrário, utiliza a materialidade além se seus próprios limites, a matéria
se mostra dura, seca, pesada. A criança não é um corpo delicado, cuja morte chega como uma
redenção, mas um esqueleto, cuja inércia lembra às outras figuras do quadro que este será,
possivelmente, o fim de todos que ali estão. Ao seu lado, três figuras femininas choram
lágrimas sólidas, tão sólidas como as pedras do chão que as rodeia. Brancas, se destacam pelo
excesso, gotejando, como uma torneira aberta, são “lágrimas de pedra”, assim as descreve
Portinari em seu poema “Respirar”. Portinari também narra o desespero de uma família de
retirantes:
“O filho menor está morrendo
As filhas maiores soluçam forte
Caem lágrimas de pedra. Mãe querendo
Levar menino morto: feio de sofrer, cara da morte
(...)
Que santo nos poderia livrar?
Reza de velho louco
Deus pode a todos castigar.
Que é que esse menino tem? Está morto.”
(Portinari, Cândido, 1964, p. 77)
As lágrimas escondem suas feições, mas deixam à mostra suas bocas, exageradamente
rasgadas. As mulheres possuem uma face, mas não é possível vê-la, assim como as mais novas
têm seus rostos escondidos pelas lágrimas, as mais velhas os escondem, olhando para baixo. O
único visível é o do menino que segura a mão de sua jovem mãe. Porém, é impossível definir
claramente o que esta figura parece sentir, talvez algo entre tristeza e falta de compreensão do
que está acontecendo ao seu redor. Sua pequena figura retratada de frente, a olhar diretamente
para o público com seus olhos quase fechados, lembra um dos auto-retratos feitos por Portinari.
Os corpos dos retirantes são retorcidos e magros, têm os sulcos que a terra, árida e seca
não possui. Seus corpos representam a terra: a cor branca amarelada, os sulcos pretos, fortes,
que dividem a pele, rasgando, cortando suas vidas sem futuro. A terra, marrom, sem um traço
de verde, sem plantas e sem referências de montanhas, ou um caminho qualquer para percorrer,
ressaltam a dureza desta vida de retirante. Do chão nascem pequenas pedras, algumas são
brancas e outras azuladas e se destacam na terra. Pequeninas, salpicadas sobre o marrom, têm
um ponto em comum na forma. Pequenas, porém enormes em conteúdo, podem ser comparadas
ao caminho tortuoso e difícil que as figuras têm a percorrer. São as pedras do caminho, os
infortúnios, que tornam mais terrível a luta para sobreviver nesta vida áspera. São pequenas
pedras que ressaltam as dificuldades da vida, suas tristeza, como a morte de um ente querido.
As figuras estão descalças, impotentes diante de tantas dificuldades, machucam os pés e seus
corações nesta jornada sem esperança.
As meninas mais jovens trajam vestidos que possuem tons mais claros aparentemente
próximos da cor da terra. É uma tonalidade mais suave, talvez uma analogia com o chão de
terra e a juventude, que parece se esvair com o tempo, tal qual a cor dos trapos que as cobrem.
A figura à esquerda, visivelmente mais nova, uma menina, usa um vestido vaporoso, uma chita
leve, cor de rosa, salpicada de minúsculos pontinhos. A figura à direita do grupo, também
jovem, que dá a mão a uma criança, parece ser um reflexo do futuro da menina que segura a
cabeça do menino morto, com seu vestido de tom terra, também com pequenos pontinhos
pintados, similares em quantidade e desordem às pedras do chão. Portinari a pintou com um
lenço na cabeça, o que certamente pode ser interpretado como uma outra alusão religiosa, uma
vez que parece ser um véu. Esta jovem mãe que dá a mão a seu filho é uma jovem Pietà, cujo
filho ainda é um menino. Ela veste um tecido mais pesado, numa cor mais escura que ainda não
é desgastada e sem cor como a roupa das mais adultas, porém a dureza das vestes pode ser
comparada tanto ao seu tempo de vida já percorrido, quanto às dificuldades de sua vida. A cor
das roupas parece perder o viço e refletir a vida de dificuldades, as mais velhas trajam vestidos
azulados, um tom cinza, manchado. São trapos. Assim como as roupas que as cobrem parecem
trapos com o passar dos anos. Pode-se perceber a associação do tempo que transcorre e o
acúmulo de tristezas, com a maturidade. As duas mulheres tem a dureza da vida em seus corpos
e em suas roupas. O menino, vestido de azul, ressalta sua juventude e por esta razão, seu
distanciamento da terra. Numa análise mais detalhada das figuras que são retratadas no quadro,
fica claro que Portinari mostra ao observador três tempos, três momentos de um mesmo drama:
a menina que chora por seu irmão morto, a jovem mãe que antecipa o fim de seu filho ainda
vivo, e da mãe, que pranteia o filho morto nos braços. Quanto à figura pintada à esquerda, atrás
do grupo, não tem uma referência clara de idade, não parece mais jovem nem tampouco, muito
mais velha que a figura central. Entretanto, analisando outras obras com o mesmo tema, é
possível supor que esta seja a idosa, que freqüentemente é representada neste tema, assim como
o velho com o cajado.
Uma cabaça de água, à direita, logo à frente do grupo, assim como o baú (caixote ou baú,
é impossível definir ao certo, mas em outras obras de Portinari é sempre um baú de folha)
parecem ser os únicos pertences desta família. Sua forma arredondada, ainda que não seja
simétrica, se destaca em relação aos ângulos retos vistos nas personagens e na paisagem e
parece se contrapor à aspereza do conjunto. Sua cor, cinzenta, se destaca da cor marrom da
terra, mas ao mesmo tempo, nos faz retornar à idéia de algo infértil, sem vida e sem cor.
O fundo do quadro de Portinari, um horizonte sem montanhas, cumpre o papel de criar
uma referência horizontal que situe esses personagens em algum espaço definido. Ao mesmo
tempo em que divide o quadro em duas partes bem demarcadas - céu e terra, esta divisão
funciona como um recurso visual para destacar as figuras centrais, uma vez que divide e cria
duas grandes faixas, manchado como a terra, o céu também se divide em outras tiras mais
estreitas, assim como as sombras do chão. Enquanto num instante, o recurso perece ser apenas
estético, em outro, parece ter um significado bem mais profundo, pois faz alusão à terra
propriamente dita, destacando sua imensidão horizontal e vazia. Céu e terra parecem oprimir e
expulsar o grupo: nenhum dos dois oferece um abrigo ou caminho.
Olhando este quadro de Portinari, uma pergunta nos vem à mente. Qual a razão das
personagens estarem representadas à frente de um pôr do sol? Parece que Portinari faz uma
alusão à incerteza e ao sofrimento que a morte pode representar. As trevas envolverão esses
retirantes em pouco tempo, a escuridão parece eminente, tal qual a morte dos outros integrantes
da família. É o crepúsculo, não somente do dia, mas da vida. Seria de se supor que, ao
representar os retirantes da seca do Nordeste, o artista pintasse também o sol escaldante e um
céu azul sem nuvens. Mas o que Portinari faz é exatamente o contrário, o dia termina, e
também a vida.
Os Retirantes
Esta outra obra de Portinari, junto com Enterro na Rede e Menino Morto compõe a trilogia dos
painéis dos Retirantes adquiridos por Assis Chatobriand que atualmente estão no Museu de
Arte de São Paulo. Nesta obra, não há mais a referência à Pietà de Michelangelo. Esta não é a
única diferença que pode ser destacada: o fundo do quadro, muito mais detalhado que o fundo
do Menino Morto, apresenta mais profundidade, possuindo uma preocupação na ambientação
das figuras. Uma montanha aparece ao fundo, ossos de animais mortos estão espalhados pelo
chão, que não é apenas mais um elemento gráfico, uma massa de cor marrom, e sim um chão
de terra com uma textura aparentemente mais real, assim como as pedras, também retratadas de
maneira mais próxima da imagem real. Urubus em grande número, sobrevoam o grupo, em
contraste com o céu vazio do quadro Menino Morto. Todos esses detalhes, conferem ao quadro
uma imagem de alegoria, as figuras não sugerem morte e sofrimento de uma maneira poética,
são imagens que gritam, que reforçam uma mensagem que não precisa de tantas explicações, já
é bem clara e evidente por si só. O grupo, contraditoriamente, coeso e disperso, não parece se
comunicar entre si. Estão juntos, agrupados, porém seus olhos não se fixam em um ponto
comum. A menina representada à esquerda, possui bastante semelhança com a do quadro
anterior. Não é exatamente a mesma menina que segura a cabeça do irmão, também não é uma
referência direta da jovem Pietà com seu véu. Ela é quase uma mistura das duas, seu vestido
lembra a primeira, sua idade parece ser uma referência da segunda, mas a criança em seus
braços é o filho morto da figura central d”O Menino Morto. Parece se destacar do grupo,
olhando fixamente um ponto que não está ao alcance do observador. A mãe, ao fundo carrega
uma criança em um os braços, que se diferencia da trouxa na cabeça apenas por ter algo que
lembra uma cabeça. É quase uma trouxa. O pai segura a mão de uma criança que, mais uma
vez, é o motivo central. Este menino pode ser compreendido como a figura da morte,
pequenina, com uma sombra sobre seu rosto, provocada pelo chapéu enterrado na cabeça. É
uma clara alusão à sombra da morte, uma vez que seu rosto é o de uma caveira.
A Crítica Social
Portinari é o pintor da crítica social. Não que este tema tenha sido explorado apenas por
Portinari, mas através de sua obra, este motivo ganha dramaticidade ímpar: retratou
trabalhadores rurais, cangaceiros, favelas e, por muitas vezes, o sofrimento e morte destes
mesmos esquecidos pela sociedade. Diante de um trabalho de Portinari como Os Retirantes é
difícil não travar com a obra pelo menos um leve sentimento de tristeza e piedade pelas
imagens retratadas. Citando Rodrigo Naves, “Portinari queria fazer uma arte de feição social,
em que o Brasil das desigualdades ganhasse contornos sensíveis, sem disfarces do belo. No
entanto, essa pintura de protesto, com forte teor político, produz no espectador um disposição
altamente afetiva“. (Naves, Rodrigo, 2007, p. 442). O sucesso de seu trabalho com a temática
social encontrou eco não só no Brasil, mas também na Europa, após sua exposição na Galeria
Charpentier. Antônio Bento afirma que “a crítica francesa pôs então em realce o aspecto social
da pintura de Portinari. Exaltou não somente os seus quadros maiores da série dos retirantes
como os primeiros painéis realizados para a decoração de sede da Revista O Cruzeiro. (...)
Alguns foram muito elogiados por diversos críticos franceses” (Bento, Antônio, 1980, p.121).
Portinari alcançou um grande reconhecimento dentro e fora do Brasil, tendo feito exposições na
América Latina, na Europa e nos Estados Unidos ao longo de sua carreira e grande parte de sua
obra aborda a questão social.
Retirantes - Tema Social Freqüentemente Presente na Obra de Portinari
Segundo Carlos Zílio, “da primeira fase do modernismo, Portinari mantém sobretudo, a
intenção nacionalista, através da temática brasileira." (Zílio, Carlos, 1982, p. 103). Antônio
Bento afirma que “o tema retirante é um dos mais significativos de sua obra. Nenhum pintor
nordestino ou qualquer outro do Brasil conseguiu pintá-los como ele o fez.“(Bento, Antônio,
1980, p.121). Portinari conheceu esses retirantes acampados nos arredores de Brodósqui:
“Desde menino tenho vivido o drama dos retirantes. Lembro-me da seca de 1915, as grandes
levas, aquela miséria. Essas recordações, a que se acrescentam novos contatos com a gente aqui
do interior de São Paulo, fazem os temas destes quadros”3. Portinari jamais os esqueceu,
enterrando seus mortos, vestidos com trapos, famintos e miseráveis. Faziam a caminhada a pé,
do Ceará a São Paulo, “numa marcha sem paralelo na história deste continente”(Bento,
Antônio, 1980, p.121). Assim os descreve Graciliano Ramos em seu romance Vidas Secas:
“ Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente
andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem
três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe,
através dos galhos pelados da caatinga rala. Arrastaram-se para lá, devagar, sinhá Vitória com o filho
mais novo escanhado no quarto e baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a
tiracolo(..)O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás. (Ramos, Graciliano, 2002, p. 9)
Não sentia a espingarda, o saco, as pedras miúdas que entravam nas alpercatas, o cheiro de carniças
que empestavam o caminho. (...) Iriam para adiante, para uma terra desconhecida. Fabiano estava
contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era e nem onde era.(...) E andavam para o
sul, metidos naquele sonho. (Ramos, Graciliano, 2002, p. 126)
3 Entrevista à Tribuna Popular em 1947, Trecho em sua biografia disponível em: http://www.portinari.org.br/ppsite/ppacervo/cronobio.pdf
O tema dos retirantes da seca é retomado por Portinari muitas vezes ao longo de sua
carreira, aparentemente desde 1934, quando o intitulou de Os Despejados, porém, é possível
encontrá-lo em telas de 1936, 1945, em alguns anos da década de 50 e ainda em 1960. Nos
Deserdados de 1934, feito dois anos antes do primeiro quadro com o tema de retirantes, já se
percebe que estão presentes alguns elementos que se repetirão nas séries posteriores. Existe um
embrião do que Portinari pintaria durante quase toda a sua vida: a mãe, o pai, o menino em
destaque com o chapéu de palha que lembra o de um Arlequim e a menina à esquerda. Nas suas
obras também aparecerá o que poderia ser considerada uma metáfora da passagem do tempo.
Nos Retirantes de 1934, Portinari pinta uma mulher mais velha, já no painel de 1944,
representa um o velho com um cajado. Ainda que representando gêneros diferentes, ambos
possuem a mesma força simbólica.
Para Antônio Bento, Portinari representa os retirantes em quadros que chamava de
Famílias, no ano de 1936. Alguns elementos estão sempre presentes nas muitas versões, tais
como a trouxa na cabeça e o baú de folha, por exemplo. Nos Retirantes deste mesmo ano,
Portinari dá um trato quase renascentista ao fundo do quadro, detalhando montanhas, árvores e
céu, utilizando as regras da perspectiva do mesmo período. Além deste detalhe, pode-se
observar o volume conferido às figuras centrais a partir de um único foco de luz, o mesmo
recurso usado para realçar as figuras centrais em 1944. Portinari trata o fundo e as figuras
centrais de forma bem diferente de Picasso, enquanto este quase mistura fundo e figura
diminuindo o contraste entre os dois, aquele ao contrário, utiliza vários artifícios para destacar
as figuras do fundo. Apesar dessas diferenças, é visível a inspiração em Picasso, nesta fase que
Zílio intitula de pós-cubista de Portinari.
A forma dramática como representava os retirantes, entretanto, foi se acentuando com o
passar dos anos até 1944. Os quadros posteriores, com o mesmo tema, entretanto, tornam-se
mais plásticos, a composição perde o clima de denúncia social e parece atender apenas às
necessidades estéticas. Em algumas obras, Portinari utiliza tonalidades diferentes e
contrastantes em pequenas áreas de maneira a criar composições quase decorativas para as
figuras de retirantes. Com essa ênfase na questão estética, os Retirantes de 1959, perdem
bastante em termos de dramaticidade. Antônio Bento afirma que “os últimos quadros de
retirantes de Portinari já são menos trágicos que os de sua fase anterior”, nesta obra, Portinari
usa a cor como um mosaico: as figuras, em tons de azul e terracota, parecem recortados em
pequenos pedaços coloridos. O conjunto, sólido, central, quase em forma de triângulo, se
destaca do fundo, construído em tons de amarelo, complementar do azul. Ainda que a obra
tenha um tratamento mais estilizado, é possível identificar as mesmas figuras dos outros
Retirantes: a mulher e o menino barrigudo. A criança, que nos Retirantes de 1944, aparece
como figura central, quase uma alegoria da morte, aqui, é apenas uma criança, cuja face
delicada, olha para os pais com suavidade, sem traços de sofrimento.
Painéis Guerra e Paz
Este conjunto de obras foi executado para a sede da Organização das Nações Unidas,
ONU, em Nova York. Foi iniciado em 1952 e concluído quatro anos depois. Segundo
Annatheresa Fabris, “o Portinari intensamente impressionista está novamente presente nos dois
painéis, em que reaparecem todas as figuras típicas de sua imagística: a mãe com filho morto,
os retirantes, os meninos de Brodowski, a noiva da roça, o palhaço e os camponeses (Fabris,
Annateresa, 1990, p.116), Em ambos os painéis, Portinari retrata suas figuras do povo, o que
os diferencia é o tratamento dramático de um, em contraposição ao tratamento alegre do outro,
não somente em termos de cores predominantes, mas também na organização da composição.
Painel Guerra
Para o painel da Guerra, Portinari utilizou o tema dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse a
fim de representar os terrores presentes em uma guerra. Organizada verticalmente, esta obra foi
executada predominantemente nas cores azul e amarelo, passando por tons de ocre e lilás. Os
Quatro Cavaleiros do Apocalipse são representados por manchas azuis, sombras sem rosto e
sem detalhes, sobre seus cavalos, estes perfeitamente pintados. A guerra, a fome e a peste, além
do arqueiro que os precede, este, não em seu cavalo branco, mas sobre um cavalo negro se
misturam à multidão. Cercados por figuras humanas, organizadas em grupos, distribuídas de
maneira aparentemente aleatória sobre a área do painel, estas figuras dão uma sensação de
desorganização, numa alusão à confusão de um campo de batalha, porém, Portinari não
apresenta um campo de soldados, e sim o retrato de uma praça em uma cidade invadida. São
civis que sofrem, o próprio povo, a quem Portinari sempre se refere em seus quadros: são mães
e filhos. As imagens femininas, não têm feições particulares, são como figuras icônicas que
representam todas as mulheres que sofrem por seus filhos, maridos, pais e irmãos. Algumas
abraçam seus mortos, outras, ajoelhadas com olhos e mãos voltados para o céu, rogam por suas
vidas, muitas choram, escondendo seus rostos com as mãos. Em cada grupo, uma mãe abraça
ou vela um pequeno corpo sem vida - estas figuras se repetem por todo o quadro para reforçar a
presença da morte. Também sobre cavalos, os soldados, representados no painel como
cavaleiros de armadura, formam uma massa compacta, porém, fraca como uma simples mancha
azulada, suas figuras não se destacam na confusão de corpos e sobreviventes. Portinari não
pinta heróis nesta tela, ao contrário da força que poderiam transmitir, estes soldados não
possuem energia para o combate. A composição retrata uma luta confusa e tensa, sem
vencedores ou vencidos, sem heróis. A predominância da cor azul neste painel sugere ao
observador que a guerra para Portinari se traduz em melancolia e sofrimento, não há nesta obra
a energia de uma batalha, nem os vermelhos de sangue, não existe raiva, apenas dor.
Painel Paz
Neste painel predominam cores mais luminosas, tais como amarelos e ocres, que sugerem
alegria e calor humano. Aqui, os tons azuis são entrecortados de amarelos e vermelhos,
perdendo por completo a associação com a melancolia ou o sofrimento. “Portinari procurou
inspiração nas Eumênides de Ésquilo, em que a paz é descrita em tons dourados” (Antônio
Bento, 1980, p. 125). Organizado em faixas horizontais, Portinari representou grupos humanos
em momentos felizes, pode-se dizer que estão presentes os elementos de um domingo ou uma
festa em Brodowski. No topo do painel, lavradores dividem o espaço com crianças que brincam
de balanço em árvores imaginárias, fora do alcance da visão do observador. O tom ocre cria
uma atmosfera de claridade numa plantação de trigo, onde um espantalho parece observar os
catadores de trigo, numa alusão ao fato de que não há mais fome. Num segundo plano, no
centro do painel, um coro de crianças entoa uma canção, enquanto logo atrás, mulheres em roda
conversam animadamente. Ao lado do coral, um grupo de mães com filhos pequenos e homens
da roça parecem acompanhar o movimento dos dançarinos e malabaristas da festa que se
desenrola à sua frente. À direita do painel, um casal de noivos sobre um elegante cavalo branco
se prepara para partir em lua-de-mel. Os cavalos do tema do painel anterior foram
transformados por Portinari em dóceis cavalos de fazenda. O que antes era uma ameaça visível,
agora é uma demonstração de que a vida continua: um potro é representado pastando junto à
sua mãe no campo semeado e por todo o painel pares de animais celebram a alegria da vida. Na
base do painel, crianças brincam de cabra-cega, outras de gangorra, algumas apenas saltam, ao
lado, duas jovens dançam. Todos parecem pertencer à orquestra do menino que, em destaque,
no primeiro plano, dança em um cavalo de pano, com seus braços para cima. Esta figura se
destaca, não só por estar em primeiríssimo plano, pintado em um tom forte de amarelo, mas por
resumir em seu movimento, a alegria de uma festa folclórica em uma fazenda ou vilarejo. Mais
do que isso: Portinari dá um toque lúdico ao destacar uma figura do folclore popular: o Bumba-
meu-Boi. Festa conhecida por diferentes nomes - Boi-Bumbá, Boi de Reis ou Boi Mamão,
dependendo de cada região, esta comemoração é representada em quase todos os estados do
Brasil, na figura de um boi de pano, enfeitado com fitas e bordados, e dos personagens
secundários, os vaqueiros, além de outros. O que era desorganização, angústia e desespero, aqui
pode ser visto como uma alegre festa na fazenda.
A dor do Filho Morto
O quadro de Portinari pode trazer à baila duas questões ligadas à dor: a dor física da
pessoa que morre e a dor espiritual, quase física, da perda de um ente querido, em especial a
morte de um filho. A figura desta pietà nordestina pode não despertar a mesma piedade que a
de Michelangelo para quem a vê, mas certamente não diminui a dor da perda. Seu aspecto rude
pode aflorar sentimentos de piedade, porém, por não possuir a mesma delicadeza da obra de
Michelangelo, pode por outro lado, também despertar um sentimento de repulsa, ainda que por
um breve momento apenas. Portinari parece tentar mover os sentimentos do espectador diante
dessas figuras. De certa forma, seu aspecto rude, sua dor silenciosa, e a forma como oferece seu
filho em sacrifício, nos permite ver a grandeza com que Portinari representava o sofrimento das
vítimas da seca, e de modo geral, dos desafortunados. Neste quadro, a dor da morte é física
para quem fica, o morto deixa um rastro de tristeza: sufocada e silenciosa na figura que o traz
nos braços, certamente a mãe, e escancarada, visível nas brancas lágrimas das irmãs e do resto
da família na obra Menino Morto. A dor daquele que já morreu é impossível de ser
dimensionada, o fato já ocorreu. Mas seu sofrimento, sua fome, sua lenta morte está estampada
nas figuras que o cercam. A dor maior é para aqueles que ficam e que jamais poderão se
esquecer daquele que se foi.
Portinari utiliza uma referência mundialmente conhecida - a Pietà do Vaticano - para
retratar todas as mães do mundo, não apenas uma em especial. Sua Pietà é um exemplo de
como a representação do sofrimento pode ser universal, suas mães são figuras que sofrem em
silêncio, mas seu sofrimento é visível, sensível. Completa ainda a autora: “o grito de dor de
Portinari parece não ter limites. Ao homem, impotente diante da dor, resta-lhe as lágrimas.
Lágrimas petrificadas e mãos levantadas num gesto de súplica ou de maldição.” (Fabis,
Annateresa, 1990, p.58). A tristeza em Portinari é sempre vista com olhos na terceira pessoa, o
sofrimento existe, ronda, mas não é vivido por ele. Portinari é apenas um observador do
sofrimento alheio, talvez um porta-voz.
Pessoas que perdem seus entes queridos e em especial, mães que perdem seus filhos,
afirmam sentir a falta de um pedaço do próprio corpo, numa profunda dor que não pode ser
descrita. Em seu livro A Criança Dada por Morta, Danièle Brum, psicanalista, delineia o
universo infantil, a morte, a solidão das mães e a “impressão de amputação que a perda de um
filho produz”. “Perder um filho é a pior coisa que pode acontecer a uma mulher, pois uma
criança não se substitui”. Esta frase, longamente analisada em seu livro, demonstra o quanto
pode ser traumatizante esta situação de perda do filho. “'Perder um filho é como perder um
pedaço de si.”4, resume Claudia Ferrão, 30 anos, psicóloga e psicanalista, do Day Care Center,
entidade paulistana que atende pacientes de câncer e familiares“. Assim escreve Odete dos
Santos, em seu artigo no site Amigas do Parto5: “Perder um filho é perder um pedaço de nós,
sobreviver à perda, é o aprendizado que advém de tudo isto”. Engenheira Civil, Odete teve
duas perdas gestacionais e atualmente é moderadora do grupo Unidas Pela Dor, e uma das
idealizadoras da ONG Projeto Ser Mãe. Os sintomas do luto de acordo com a escritora, são
depressão, revolta, sensação de fracasso, negação, raiva, culpa, angústia. A sensação de tristeza
e desamparo da perda não vê distinção entre a morte rápida de uma vítima de violência ou
mesmo a da morte lenta, num leito de hospital. Ainda que a primeira possa ocorrer
inesperadamente, sem a oportunidade de um último adeus, o sofrimento é o mesmo, uma vez
que a sensação de impotência para proteger um filho, seja dos perigos da cidade grande, seja do
sofrimento de uma doença, levam a uma igual perda de referência diante da ausência do ente
querido. A vida das mães que perdem seus filhos passa por uma reviravolta que elas mesmas
têm dificuldade para entender. “Eu não me conformava. Deixei o trabalho e fui buscar a
purificação de minha alma”, lembra Iolanda Keiko Miachiro Ota, mãe do pequeno Ives6.
Segundo Freud, a distância entre melancolia e luto é pequena: “A identificação narcísica com o
4 Revista Marie Claire - disponível em: http://revistamarieclaire.globo.com/Marieclaire/0,6993,EML428927-1740,00.html 5 Disponível em: http://www.amigasdoparto.org.br/2007/index.php?option=com_content&task=view&id=97&Itemid=59
objeto se torna então o substituto do investimento de amor, a conseqüência é que, apesar do
conflito com a pessoa amada, a relação de amor não foi abandonada’. O filho não é esquecido,
porém o luto fará com que a perda seja elaborada numa tentativa de superação da dor. Depois
do primeiro impacto, essas mães lutam para acomodar suas vidas à nova realidade de uma
ferida que jamais irá cicatrizar. “'É um processo de mudança em que a família vai ter de
aprender a viver sem aquele que partiu', diz Maria Helena Pereira Franco, coordenadora do
Laboratório do Luto, o Lelu, serviço de assistência psicológica mantido pela PUC de São
Paulo“.
Portinari e seus Poemas
A dor humana é representada por Portinari também através de palavras, não somente por
sua palheta. No final de sua vida, começou a escrever algumas de suas memórias de sua
juventude e da terra natal, assim as descreve Manuel Bandeira: “ultimamente, Portinari
começou a escrever umas coisas a modos de poemas. Ele chamava-as simplesmente escritos”.
Reunidos em um livro editado em 1964, lamenta José Olympio que tenha sido obra póstuma.
Em vários de seus poemas, é possível compreender as imagens que pintava em seus quadros,
estão reunidas as suas impressões os sobre o sofrimento do homem comum, e da morte, pois
Portinari jamais esqueceu sua terra, os trabalhadores que lá existiam, a vida do campo e a
infância pobre, porém feliz. Em Deus de Violência, Portinari assim descreve os retirantes que
passaram por Brodowski:
“Que seriam aqueles três rasgados
E sem cara? Vinham a cavalo.
Mais próximos não davam a impressão de gente,
Mas de três volumes se movendo como bandeiras
Esfarrapadas. Rentes a mim, estenderam
Algo como uns braços, com vestígios
De dedos, segurando uma caneca de folha.
Eram restos de três criatura
Espaventosas carregando a lepra.”
(Portinari, Cândido, 1964, p. 76)
6 Disponível em: http://www.revistaenfoque.com.br/index.php?edicao=70&materia=733
A comparação com os Cavaleiros do Apocalipse é clara. Portinari usou o mesmo tema para a
composição do painel Guerra, onde as figuras que representam os cavaleiros também são
sombras sem rosto, movendo-se sorrateiramente entre os sobreviventes. Num outro momento,
essas figuras se tornam humanas, mas apenas para, de uma forma ambígua, serem novamente
confundidas com santos. A alusão à religiosidade está sempre presente na obra de Portinari, não
somente em seu quadros, mas também em seus textos. Assim continua seu poema:
“Vinham das bandas do Triângulo,
Os sons que emitiam eram como
Sombras de palavras.
Meu pai chamou-os
Para o almoço. Sentaram-se à nossa mesa.
Nós crianças olhávamos intimidados
Depois confraternizados. Quando se foram,
Perguntamos: - Que santos
são aqueles?”
(Portinari, Cândido, 1964, p. 77)
Essas palavras mais uma vez confirmam o fato de que os retirantes vistos em Brodwski quando
era menino o impressionaram muito. Assim como suas pinturas, seus poemas também retratam
suas vivências e, principalmente sua infância.
Portinari e a Dor
“Quando alguém ouve falar a respeito da dor de alguém, os eventos que acontecem no
interior do corpo dessa pessoa parecem ter o caráter de um fato distante, subterrâneo e
profundo, o qual pertence a uma geografia invisível, que, embora potente, parece não existir,
pois não foi ainda manifestado de maneira visível na superfície terrestre”. Assim escreve Elaine
Scarry a respeito da dor em seu livro “The Body in Pain”. A dor pode ser dimensionada apenas
por aquele a sofre; ao espectador, cabe apenas o papel de observá-la e, se possível, imaginá-la.
A partir dessa mesma perspectiva, Portinari parece abordar a questão da dor: seus
quadros mostram o sofrimento de retirantes e mães que perdem seus filhos como um mero
observador deste acontecimento. Portinari coloca o público dentro da cena, mas, ele também
está em terceira pessoa em relação ao que pinta.
“Diante desses trabalhos é praticamente impossível evitar uma resposta de ordem sentimental. Elas
provocam de maneira irremediável, piedade, indignação, tristeza, sensações de desolação ou revolta.
(...) Reconhecemos algumas imagens violentas e nos condoemos com isso. Contudo, esse
reconhecimento não nos abre horizontes mais amplos, que dêem à pobreza e às desigualdades sociais
um significado complexo e abrangente. Essa violência que não violenta, que nos põe ao abrigo de seus
efeitos – como se isso fosse possível, tem desdobramento dentro das próprias pinturas de Portinari.
(Naves, Rodrigo, 2007, p.443)
Aparentemente ciente de sua responsabilidade social, Portinari utiliza sua arte como um
instrumento de denúncia. Em sua obra, suas figuras de retirantes são tão repulsivas quanto os
miseráveis reais que um dia conheceu. É também impossível ignorar em seu trabalho a
influência da estética muralista, onde o belo não pode ser usado como referência para a
revolução, onde somente o “feio” é capaz de expressar a eloqüência deste discurso. Com essas
imagens que parecem habitar uma terra distante na imaginação, Portinari tenta lembrar ao
espectador o ser humano que sofre, o trabalhador rural e de sua vida dura. É quase como um
grito em forma de imagem, esses homens e mulheres pedem ajuda passivamente, mas Portinari
não os deixa ser ignorados em toda a sua força silenciosa. O sofrimento dos retirantes de
Portinari tocam o observador como uma doce imagem de dor, não gritam, não agem, param e
olham com seus olhos tristes. Ainda assim, o público é tocado por esta sutil tentativa de
denúncia social. Segundo a autora Elaine Scarry, as respostas à dor são culturalmente
estipuladas, não são iguais para todas as sociedades, o mesmo se pode dizer em relação à
construção da imagem do sofrimento – Portinari não utiliza os mesmos recursos dramáticos de
Goya em suas gravuras “Os Desastres da Guerra”. Suas imagens falam de uma dor resignada,
abandonada, que transmite em si mesma o desamparo em que vivem os retirantes e os todos os
pobres de um país que não os reconhece como cidadãos. As figuras da obra Família de
Retirantes não parecem pedir ajuda, não têm nem mesmo um gesto de revolta, apenas se
colocam à disposição para que o público assista, passivo, ao seu sofrimento. A Pietà de Menino
Morto parece oferecer seu filho aos céus, ao Deus invisível que paira sobre eles, mas o
espectador está fora desta cena, que parece se desenrolar em um ponto além do seu alcance. Da
mesma forma, Portinari representou a guerra, vista do alto, este sofrimento não pode atingir o
público, que apenas pode assistir ao seu desenrolar, impassível.
Portinari e sua Religiosidade
Anateresa Fabris afirma “ao tratar da morte, Portinari impregna a composição de uma
atmosfera de religiosidade” (Fabris, Annateresa, 1990, p.116). Freqüentemente algumas
referências com pinturas ou símbolos religiosos ou podem ser percebidas nas obras do artista.
Proveniente de uma família cuja religiosidade é bastante presente, no ano de 1941 faz pinturas
murais de figuras bíblicas com rostos de familiares e amigos para a Capelinha da Nonna7 que
manda construir nos jardins da casa de seus pais em Brodwski, pois sua avó, já doente, não
pede se locomover até a igreja. ”Muito místico, embora pouco religioso, o que iria dar ao artista
sua simbólica era sempre a Bíblia”8. A obra Enterro na Rede, na qual os braços abertos em
súplica da mãe que enterra seu filho formam um cálice, é um dos exemplos onde fica evidente a
religiosidade que sempre permeia a obra de Portinari, independente de como esta se fará
presente, se em uma imagem explícita ou numa linguagem mais simbólica. Quase sempre de
braços levantados as mães de Portinari sofrem e se confortam suplicando aos céus em
desespero, algumas fazem alusão às madonas de pintores famosos. Suas madonas podem ser
algumas vezes deformadas como no painel bíblico O Último Baluarte, graciosas como as
Retirantes de 1936, que lembram a Virgem com o Menino e Santa Ana de Leonardo da Vinci ou
endurecidas como a pietà retirante, porém sempre grandiosas em sua força e presença na figura
da mulher do povo. Vale aqui citar Rodrigo Naves mais uma vez: “Portinari imaginou um país
ao mesmo tempo grandioso e singelo. Uma nação dilacerada por conflitos intensos, mas dócil a
ponto de resumir-se a um suspiro”. (Naves, Rodrigo, 2007, p.445)
7 Imagens disponíveis em: http://www.casadeportinari.com.br/acervo/capela_nonna.htm 8 Palavras de Mário de Andrade sobre Portinari e sua série bíblia. Disponível em: http://www.portinari.org.br/ppsite/ppacervo/cronobio.pdf
Bibliografia
ZILIO ,Carlos. A Querela do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Mec/Funarte, 1982.
SOUZA, Wladimir Alves e outros. Aspectos da Arte Brasileira Rio de Janeiro: Editora
Mec/Funarte, 1980. Texto escrito por Antônio Bento intitulado Cândido Portinari.
ALMEIDA, Paulo Mendes. Emiliano Di Cavalcanti São Paulo: Brunner, 1976.
MOREIRA, Marcos. Cândido Portinari São Paulo: Editora Três Ltda., 2001.
NAVES, Rodrigo. O Vento e o Moinho São Paulo: Editora Ática, 2007.
FABRIS, Annateresa. Portinari, O Pintos Social São Paulo: Editora Perspectiva, 1990.
SCARRY, Elaine. The Body in Pain New York: OxforD University Press, 1985
BRUN, Danièle. “A Relação da Criança com a Morte: Paradoxos de um Sofrimento”. Psychê
São Paulo, nº 12, jul-dez/2003
Imagens
Cândido Portinari Menino Morto 1944 - Painel a óleo/tela - 180 x 190cm Série Retirantes Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, São Paulo,SP
Cândido Portinari Família de Retirantes 1944 - Painel a óleo/tela - 190 x 180cm Série Retirantes Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, São Paulo,SP
Cândido Portinari Enterro na Rede 1944 - Painel a óleo/tela - 180 x 220cm Série Retirantes Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, São Paulo,SP
Cândido Portinari Os Despejados 1934 - Pintura a óleo/tela - 37 x 65cm Coleção particular, Fortaleza,CE
Cândido Portinari Retirantes 1936 - Pintura a óleo/tela - 60 x 73cm Coleção particular - São Paulo
Cândido Portinari Guerra 1952-1956 - Painel a óleo/madeira compensada 1400 x 1058cm (aproximadas) (irregular) ONU – Nova Iorque
Cândido Portinari Paz 1952-1956 - Painel a óleo/madeira compensada 1400 x 1058cm (aproximadas) (irregular) ONU – Nova Iorque
Michelângelo Pietà 1497-1500 – Mármore 174 x 195 cm Basílica de São Pedro - Vaticano
Leonardo da Vinci A Virgem com o Menino e Santa Ana 1510 – Óleo sobre madeira 168 x 112cm Louvre - Paris