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ESPECIAL 68 v 10 DE ABRIL DE 2008 Vinte e quatro alucinadas horas na vida de Jonas V. Clarke, nosso conterrâneo mas ainda não contemporâneo. No dia em que a VISÃO completará 30 anos, a 10 de Abril de 2023, (re)visita-se Portugal e o seu quotidiano – mais tecnológico, é certo, mas nem por isso isento de complicações POR ANA MARGARIDA DE CARVALHO* TEXTO HÉLDER OLIVEIRA/WHO ILUSTRAÇÃO ANYFORMS INFOGRAFIA 10 DE ABRIL DE 2008 v 69

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O futuro é lá para a frenteVinte e quatro alucinadas horas na vida de Jonas V. Clarke, nosso conterrâneo mas ainda não contemporâneo. No dia em que a VISÃO completará 30 anos, a 10 de Abril de 2023, (re)visita-se Portugal e o seu quotidiano – mais tecnológico, é certo, mas nem por isso isento de complicações POR ANA MARGARIDA DE CARVALHO* TEXTO HÉLDER OLIVEIRA/WHO ILUSTRAÇÃO ANYFORMS INFOGRAFIA

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Quase toda a gente se recor-dava do 10 de Abril de 2023 como o dia em que, pela primeira vez, um tran-sexual oficializou a sua candidatura a Presidente dos EUA, pelo Partido Re-

publicano. Mesmo tendo o caso ocupado cinco gigabytes por segundo (era assim, na comunidade virtual, que se mediam os su-cessos mediáticos), não se reunia o consen-so planetário.

Para uns, o dia fi cou assinalado pela revo-gação da velhinha lei de Moore: a inovação tecnológica e de computação deixou de se duplicar a cada 18 meses – passou a quadru-plicar. Para outros, aquele 10 de Abril fi caria para sempre marcado pelo batalhão de son-das espaciais que partiu para os oceanos ge-lados de Europa, uma das luas de Júpiter.

Os lisboetas não se esqueceriam tão cedo da inauguração da quarta ponte sobre o Tejo, celebrada com um mega-almoço no tabu-leiro, a cumprir uma tradição antiga. Cada eufórico comensal recebeu a sua dose empa-cotada de refeição compacta e gelada. E até houve discursos jocosos que evocaram hábi-tos primitivos, que consistiam em convidar generosamente bactérias para um repasto argiloso de feijões com carne, exposto a de-dos desprovidos de luvas esterilizadas, ao sol e a restantes contaminações ambientais...

Para os mais atentos, aquele dia seria lem-brado por a revista VISÃO ter suspendido a sua edição on line por 24 horas (80% da população tinha acesso a banda larga) para lançar uma luxuosa publicação em papel, só para coleccionadores nostálgicos, a assina-lar os seus 30 anos.

Poucos, no entanto, se deram conta de que naquela Primavera de 2023, soaram os alarmes em quase todos os Ministérios Informáticos do mundo. A memória digi-tal sabia-se infi nitamente expansível, mas não infi nitamente armazenável – e só uma transferência súbita de plataforma impediu o crash global. Mesmo evitada (ou adiada) a catástrofe, a data fi caria associada ao apare-cimento de uma das mais emergentes e mais lucrativas profi ssões do mundo: os ciberde-tectives, os únicos profi ssionais preparados

para viajarem nas galáxias de informação da Internet, em busca de uma palavra-chave.

Muitos também lembram o 10 de Abril como o dia que marcava a abertura ofi cial da época turística, o que para um país como Por-tugal, de economia fortemente centrada no sector e com cerca de 20 milhões de visitantes por ano, era caso para alguma efervescência nas ruas. Sobretudo devido ao alarido psica-délico dos hologramas publicitários de boas--vindas aos turistas – há muito que os comer-ciantes tinham abandonado o obsoleto hábito de encher as cidades com supérfl uas luzinhas de Natal: agora canalizavam orçamentos para esta bem mais compensadora publici-dade 3D – só para estrangeiro ver. Enquanto isso, o Presidente da República Portuguesa, Francisco Louçã, 66 anos, e a sua comitiva de ministros e secretários de Estado, escolhidos entre os quadrantes partidários moderados e centristas que o elegeram, embarcavam, em viagem ofi cial, no TGV, para daí a cinco mi-nutos tomarem, no Aeroporto de Alcochete, o avião rumo a São Tomé e Príncipe, pequeno país produtor de petróleo, habitado por asiá-ticos, italianos e alguns africanos. E onde os americanos haviam instalado um comando de controlo do Atlântico e que servia de reta-guarda logística e geostratégica.

Tanta coisa ocorrida naquele 10 de Abril de 2023, e Jonas V. Clarke, 25 anos, gestor de Comunidades Virtuais, só conseguia reme-

Moda Roupa ecológica e inteligenteConhecido pelo uso de novos materiais, o colectivo de designers White Tent (composto pelo português Pedro Noronha-Feio, a birmanesa Ei Ei Kyaw e a russa Evgenia Tabakova), projectou, a pedido da VISÃO, o que poderá ser a peça de vestuário do futuro. Defendem que «a evolução da moda e das indústrias-irmãs dar--se-á em paralelo com a evolução tecnológica» e imaginaram um material que, através de um aparelho tipo mp4, pode «armazenar padrões e imagens». Isto permite ao utilizador mudar cores e padrões, «com a mesma facilidade com que ouve música ou visualiza uma fotografi a». Será também «adaptável a alterações climatéricas», tendo a capacidade de «tornar a roupa impermeável quando chove». Devido ao aquecimento global,

o processo de obtenção dos materiais também será alterado. «Já começam a aparecer alguns pequenos projectos de reciclagem e reutilização têxtil». Quanto à estética, «continuará num registo e evolução semelhantes aos actuais», mas «com um enquadramento e referências diferentes». Opinião também partilhada por Fátima Lopes: «Há 30 anos, quando projectávamos o ano 2000, toda a gente se vestia como astronauta. Hoje, sabemos que não é assim. A moda funciona por ciclos e o mais certo é daqui a 15 anos usarmos roupas parecidas com as que vestimos hoje, embora com algumas diferenças a nível do design específi co das peças.» Para a estilista, «a maior revolução acontecerá no campo dos materiais», mas essa, sublinha, «já está em curso».

O VESTUÁRIO DO FUTURO

Materiais amigos do ambiente com performances inteligentes

Incorporação de tecnologias de informação

Materiais adaptáveis a alterações climatéricas

Incorporação standard de nanotecnologias de ajuste da temperatura corporal

Padrões poderão ser mudados através de microchips ou aparelhos de mp4

Os ciberdetectives eram os únicos profi ssionais preparados para viajarem nas galáxias de informação da Internet, em busca de uma palavra-chave

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morar a data como mais um dia de intenso caos na sua vida.

Já na véspera acautelara o descanso e fi -zera por tomar sete doses de comprimidos hormonais para dormir, que lhe proporcio-nariam o exacto número de horas de sono pretendidas. Acordou, tal como o previsto, sete horas depois: os olhos abriam-se, des-pertava sem vestígios de sono ou resíduos de preguiça nem sonhos remanescentes a rondar-lhe a cabeça. A enxaqueca é que não o largara. Acontecia-lhe sempre que dormia ligado ao polífano, o aparelho que permitia aprender uma nova língua estrangeira, em três ou quatro noites de sono. Desde que a ciência descobriu para que servia a parte não usada do cérebro, toda a gente aprovei-tava estes momentos de inactividade, mas não de improdutividade. Sinais dos tempos, acelerados sempre, que não admitiam horas mortas, quanto mais de puro sono.

SUPORTE HOLOGRÁFICOJonas V. Clarke ligou o seu TAIO (touch all--in-one), um gadget do tamanho de um relógio de pulso que combinava telecomunicações, computador, televisão, GPS, agenda e todo o sistema de telecomandos caseiros, com um dispositivo de projecção 3D. Começou por fazer uma fusão das duas agendas, a pessoal e a de trabalho – era assim que iniciava todos os dias, a conciliar pontos incompatíveis. Ficou por algum tempo de pé, a tentar planear o seu dia, deslocando, no suporte holográfi co, as várias peças como um puzzle. A agenda profi s-sional não parava de gotejar serviços. A ver-melho fl uorescente estavam as tarefas pes-soais mais emergentes, ainda sem solução: o súbito casamento da melhor amiga ao fi m da tarde (era o padrinho, tinha de comparecer com uma pontualidade matemática para en-tregar as alianças); a visita dos sobrinhos, os terríveis trigémios (havia que entretê-los até à hora em que os embarcaria no TGV); acer-tar com a geri-sitter (baby-sitter de idosos), que fi casse a tomar conta do avô...

À custa de algumas acrobacias, conseguiu conciliar agendas. Em seguida, deu ordem, através do TAIO, ao sistema de controlo ca-seiro para preparar o banho e sincronizar a saída do WC com a confecção de torradas e leite aquecido. Entretanto, passou rapida-mente os olhos pelo sistema de manutenção preventiva da casa, a temperatura dos quar-tos, as redes eléctricas, de gás e de recicla-gem.... O sistema notifi cou-o de volta. O ser-viço de garagem que retira o carro e o coloca à porta de casa estava com ligeiro atraso rela-cionado com uma desconexão na rede... Logo hoje, lamentou-se Jonas V. Clarke. Porque é

CITY CAR

O Pixy é um conceito de veículo individual, de baixa velocidade, concebido para trajectos curtos.

Tem três rodas movidas a electricidade.

É incorporado numa espécie de nave-mãe, a Sharing Coach, que levará dois destes veículos, tratando-se de percursos longos.

O carro do futuroO design automóvel não sofreu grandes alterações, nos últimos 30 anos. Mas os próximos 15 poderão revolucionar os conceitos de mobilidade, energia, design e segurança

FONTE Revista Turbo, Inteli – Inteligência em Inovação e Centro para a Excelência e Inovação da Indústria Automóvel

SEGURANÇA

Haverá comunicação entre todos os veículos – equipados com radares periféricos.

O carro terá capacidade para ajustar a velocidade ou mesmo para parar, sem intervenção do condutor.

Pode alertar as autoridades e dar informações sobre a localização e o estado do condutor (batimentos cardíacos, por exemplo).

O carro será inteligente e avisará se estiver a circular fora de mão ou se houver algum obstáculo na via. Emitirá vários alertas, e, se o condutor não fi zer nada, o veículo travará sozinho.

DESIGN

Assume várias formas, com base numa espécie de skate com rodas e bateria fuel cell.

Pode suportar a carroçaria de um veículo familiar, de um utilitário, de uma carrinha tipo pick-up ou de um carro desportivo.

Como não tem motor, o espaço pode ser organizado de forma diferente: o condutor guiará o carro mesmo em cima do para-choques, ou no centro do veículo.

Os travões e o volante serão incorporados num comando único, como um joystick, libertando o espaço ocupado pelos pedais e pela coluna de direcção.

ENERGIA

Em 2023, a lógica do produtor-consumidor poderá levá-lo a escolher carros movidos a energia solar e eólica

Tem células fotovoltaicas, ao longo do tecto. Equipado com dois geradores de energia eólica.

O Venturi Eclectic integra uma bateria eléctrica, com uma autonomia de 50 quilómetros e que se carrega em cinco horas. Porém, a possibilidade de usar a energia do Sol e do vento, torna-o num veículo praticamente moto-

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que me meti nisto? – era o seu lamento favo-rito. Recorrente, mas sentido.

Desde que ele e os pais se tinham mudado para aquele ecocondomínio lisboeta (que se auto-abastecia em termos energéticos, com painéis solares e turbinas eólicas), os proble-mas acumulavam-se. Sobretudo por causa do tecto descapotável da sala. Normalmente eram os pais (professores universitários, o pai na Universidade de Aveiro, a mãe na de Bruxelas), quem se ocupava desta gestão doméstica, mas agora estavam de férias. De repente, ambos se deram conta de que ti-nham andado a descontar a vida inteira para a geração anterior. Daí esta partida, um tanto precipitada – na opinião de Jonas V. Clarke –, e esta urgência de umas férias no Alqueva, o maior lago artifi cial da Europa. Com 250 km2 (três vezes a cidade de Lisboa do princípio do século XXI), 440 ilhas, resorts luxuosos e uma dezena de campos de golfe, era para esta Florida europeia que convergia, através do aeroporto de Beja, toda a terceira idade endinheirada. Ainda mais, quando alguém

se lembrou de redireccionar os resorts do Grande Lago, para unidades turísticas mé-dicas, especializadas em cirurgia das pálpe-bras e de prótese da anca.

Enquanto tomava o pequeno-almoço, Jo-nas V. Clarke digitou três palavras-chave no seu TAIO para ter acesso a uma selecção das notícias produzidas em todo o mundo. Foi za-ppando através do sistema de touch screen, até ir parar a um debate globalizado com cientis-tas da Roménia, de Cuba, da Índia e da China,

e aberto a um fórum mundial. Discutia-se o trans-humanismo. De um lado, os engenhei-ros de células humanas orgulhavam-se de as ter tornado cada vez mais resistentes ao cancro e HIV. Havia que se assumir, diziam, a fase pós-darwinista da evolução. Já chega-va de acaso e arbitrariedade, o homem devia assumir o controlo da sua própria constitui-ção, recorrendo à ciência e às aplicações da nanotecnologia e da biotecnologia, para se livrar de todas as limitações biológicas, incre-mentando, assim, a longevidade e as suas ca-pacidades físicas e cognitivas. Mas isso seria transformar-nos nuns seres pós-humanos, indignavam-se os bioconservadores: ao che-gar-se a essa simbiose entre as capacidades humanas e as potencialidades oferecidas pela Inteligência Artifi cial, o homem transitava de Homo Sapiens para Machina Sapiens... Certo é que, pensava Jonas V. Clarke, poucos pais se negariam a dar suplementos genéticos aos embriões, de forma a torná-los mais in-teligentes e menos vulneráveis às doenças. Mesmo correndo-se o risco de se criar uma classe favorecida, dominante, biologicamen-te aperfeiçoada, esta questão só tinha, para ele, uma posição acertada: o agnosticismo. Noutra ocasião, ele até teria intervindo no fórum, raramente conseguia conter os seus impulsos comunicativos, mas naquele dia es-tava mesmo muito pressionado pelo tempo. Assim como assim, o debate já sofrera três in-tromissões. Duas mensagens audiovisuais do chefe com as suas instruções inúteis, uma da mãe em cuidado por causa do avô que fi cara lá em casa, a seu cargo.

‘MACHINA SAPIENS’Coitado do avô, pensou Jonas V. Clarke. Olhava com comiseração para aquela geração octogenária. Tolerava-lhe os maus humores, sabia que levara uma vida difícil nos seus tempos de professor de liceu, quando ainda a profi ssão não era auxiliada pela tecnologia, nem havia vidros separadores de segurança, entre os professores e as turmas agressivas. A mãe contara-lhe que, no tempo dele, até as receitas médicas se prescreviam às escuras, sem ter em conta o genoma de cada um, coisa que agora se fazia com a facilidade de quem se submete a uma radiografi a ao tórax. Os míopes usavam óculos em vez de transplantes retinianos e alguns tratamentos oncológicos daquele tempo pareciam ter a mesma efi cácia do que as sangrias de séculos passados. Coi-tado, tornou a pensar. Ele até compreendia as fúrias do avô contra aquela neofi lia desenfre-ada, percebia que ele mantivesse aquela re-nitência em responder obrigado, com todas as sílabas, quando toda a gente dizia dankon

Tecnologia Admirável mundo novoViu o fi lme Relatório Minoritário? Prepare-se. Tudo, ou quase tudo, o que viu vai tornar-se realidade. É o que prevê António Câmara, líder da empresa portuguesa YDreams. O gestor antecipa duas grandes tendências: «Todas as superfícies serão interactivas – papel, plástico, madeira, cortiça, vidro e têxteis.» A segunda grande linha são os desenvolvimentos nas tecnologias ligadas aos ecrãs, apontando para a convergência entre a TV e o computador.

Já chegava de acaso e arbitrariedade. O homem devia assumir o controlo da seu próprio corpo e da sua saúde, através da nanotecnologia

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(uma mistura das várias línguas). E que se re-cusasse a desejar «feliz orbituário», quando alguém fazia anos (por oposição a obituário, estava na moda chamar orbituário ao aniver-sário, contando-se o número de vezes que a Terra cumpria a órbita solar).

Desde que o avô viera viver com eles para este novo ecocondomínio nos terrenos dre-nados do Tejo, na zona de Alverca, sentia-se deslocado... Até largara aquele hábito bizar-ro de comprar todos os dias um jornal em papel. Desde pequeno que Jonas V. Clarke se recordava de o ver com o jornal debaixo do braço. Era mais um adereço de vestuário ou antes uma marca de afirmação geracio-nal, pensava ele agora. Não via que outro interesse poderia possuir aquele arcaico su-porte com notícias que desactualizavam em menos de meia hora. A mãe contara-lhe que, ainda há bem pouco tempo, o avô se reunia com outros contemporâneos que, tal como ele, cultivavam esta cultura underground. Contava-se que mantinham a estranha e clandestina mania de sugar por uma palhi-nha de papel folhas de tabaco prensado, que os fazia soltar fumo branco pela boca e pelas narinas como os dragões. A este excêntrico ritual já tinha Jonas V. Clarke assistido nos filmes antigos, mas custava-lhe a crer que o próprio avô se dedicasse a tais práticas. Um homem tão cordato e cumpridor, cujo úni-co vício que se lhe conhecia era levar horas em volta dos seus livros, para desespero dos pais que consideravam a acumulação deste remoto objecto, no mínimo, anti-higiénica pelas gerações de ácaros que abrigavam. Jo-nas V. Clarke era sensível à mania do avô. Ele, na verdade, pertencia a outra geração que olhava o livro de papel como uma fantástica invenção, que possibilitava mudar de folha sem que desaparecesse a informação ante-rior, como acontecia com os e-books. Não concebia a vida sem e-books, sobretudo na-queles três intensos anos de faculdade. Nada podia competir com as suas inúmeras poten-cialidades de hiperligações, de copy-pastes imediatos, com as possibilidades ilimitadas de leitura rápida e fragmentada, ao sabor dos ícones que se clicam. Mas, aos poucos, recu-peravam-se os livros de papel, como objectos de culto. Sobretudo, os da área da ficção, que nunca se adaptaram eficazmente à era da di-gitalização. Perdiam todo o carisma, achava Jonas V. Clarke. E agora pequenas editoras independentes recuperavam os grossos vo-lumes de capa dura. Alguns editores mais originais, para darem mais personalidade à obra, imprimiam-na na caligrafia própria de cada escritor, em vez do massificado Time News Roman. Outros, num radicalismo con-

tracultura, voltam a semear os textos de «c» e «p» antes de consoantes, como acontecia antes de um Acordo Ortográfico de 2014.

‘JUNKIE-BEAUTY’Um HMS (mensagem halográfica) do che-fe veio interromper-lhe os pensamentos e apareceu-lhe, naquele suporte 3D, etéreo e trespassável, no meio da sala. Tornava-se infernal esta modalidade de teletrabalho, com o chefe o tempo todo a entrar-lhe casa adentro. Porque é que se tinha metido nis-to? Era uma pergunta retórica que se fazia muitas vezes. Um desabafo, uma maneira de enfatizar a situação... Ele sabia bem porquê, antes um chefe intruso do que o inferno da acumulação de part-times, uns atrás dos ou-tros, sem fim- de-semana para descansar.

Não tirava da cabeça o maldito casamento cuja hora se aproximava a passos largos. Sen-tia-se lisonjeado, claro, em ser padrinho de um acontecimento tão raro como um casa-mento. Ainda por cima, religioso. Ainda por cima, nuns Jerónimos lotados de convidados e personalidades. Mas, francamente, a ami-ga não podia ter escolhido pior dia. Há horas

que mandava sequentes HMS à geri-sitter sem sucesso. E os sobrinhos deviam estar quase a chegar... Porque é que me meti nisto?, dizia alto, enquanto teclava furiosamente. O capí-tulo que lhe chegava todos os dias à mesma hora ao TAIO veio no momento certo. Esta porção de ficção diária apaziguava-o. As edi-toras aperceberam-se de que seria mais lógico vender um e-book em pequenas porções, por-que era assim o modo de leitura generaliza-do: fragmentado. A moda pegou. Para Jonas V. Clarke, aquele momento de evasão era pon-to de honra. Aliás, a interrupção literária estava prevista no contrato individual de trabalho.

Assim que chegou ao último parágrafo, a angústia voltou a atormentá-lo. E o casamen-to? E os sobrinhos quase a chegar... E a maldita geri-sitter que nunca mais respondia aos seus apelos para tomar conta do avô. Claro que po-dia muito bem procurar uma substituta, mas habituara-se àquela rapariga. E, na verdade, até simpatizava com ela. E o avô também. Era uma das raras mulheres portuguesas que ainda tinham ar de mulher... portuguesa. Mo-deradamente bonita, moderadamente gorda, olhos e cabelo castanhos. Era uma resistente à «cultura junkie-beauty» que tinha assolado o sector feminino da sua geração. Na rua to-das as mulheres eram bonitas, retocadas por sucessivas cirurgias estéticas. Resultado: eram as medianas que se destacavam. Aquela geri-sitter era definitivamente uma rapariga simpática, aprovava Jonas V. Clarke. Pelo menos, assumia o seu look desinteressante, o seu cabelo descolorido, a celulite. Não tinha orientalizado os olhos, nem alinhado a cana

As editoras vendiam e-books em pequenas doses. O modo de leitura habitual era fragmentado

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do nariz, nem estilizado as ancas. Não esma-gava pela irrealidade da sua beleza, nem se deixara colonizar pelo estereótipo. Só tinha aquele pequeno defeito: os atrasos. Maldito casamento. Que excentricidade tão pouco conveniente a da amiga. Porque é que me meti nisto?

SOFÁS CLIMATIZADOSPelo meio da tarde, acabou-se irreversivel-mente o sossego. Chegavam os terríveis trigémeos. Da última vez que irmã trouxe-ra os sobrinhos lá a casa, os miúdos tinham apoderado-se do TAIO, desclimatizado os sofás, e desconfi gurado toda a cozinha, as fatias de pão foram escalfadas e os ovos tor-rados. Tinha de estar de olho neles. E o pior é que só tinha dois.

A irmã possuía, de facto, um conceito mui-to próprio de educação. Tolerava todas as, chamemos-lhes assim, «experiências» dos gémeos. Isso ajudava-os a crescer, dizia. Até as mais puras das asneiras. Por isso, nunca os repreendia, e elogiava-lhes a autonomia. Tinha sido muito rigorosa na escola em que os matriculara. Assegurara-se de que não permaneciam nenhuns vícios retrógrados dos estabelecimentos do princípio do século XXI: espaços em que o professor transmitia a informação a alunos que se limitavam a sen-tar-se a memorizá-la. O conhecimento estava ao alcance de um touch no computador, e fora, é claro, desvalorizado pela sociedade. Melhor escola signifi cava aquela que proporcionava as melhores experiências. Os alunos consi-derados mais inteligentes não eram, como outrora, os que tinham melhores notas, ou os que aprendiam melhor as lições, mas aqueles que colocavam as melhores questões.

Mais velha do que ele dois anos, a irmã chi-nesa fora adoptada já com 12 anos e era o or-gulho dos pais. A melhor aluna da faculdade tornou-se sócia maioritária de uma empresa de crio-preservação, além de mãe solteira das encantadoras crianças. Como andava sem-pre ocupada, pedira ao irmão, com seis meses de antecedência, que levasse os sobrinhos

Melhor escola era aquela que proporcionava as melhores experiências. Melhores alunos os que levantavam as melhores questões

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ao TGV. Partiam numa visita de estudo para umas colónias didácticas na Sibéria, onde as turmas do colégio fi cariam alojadas em ins-talações não computadorizadas, como nos primórdios deste século, por conta e risco puramente humano. Os gémeos iam contra-riados, sonhavam com a viagem de fi nalistas, três voltas orbitais em redor da Lua, a bordo de uma cápsula de turismo espacial.

DE TGV PARA ALCOCHETEMais um HMS redundante do chefe, outro da amiga noiva a garantir-se de que ele não haveria de atrasar-se. E a geri-sitter sem dar sinal de vida – nem virtual. Deixar o avô so-zinho em casa não lhe passava pela cabeça. Era socialmente condenável. O que diriam os amigos? Porque é que me meti isto? Fe-lizmente os trigémeos entretiveram-se a conduzir três carros virtuais em competi-ção com os reais, numa corrida transmitida directamente no sistema TAIO. O barulho era infernal, mas a casa possuía um sistema de isolamento sonoro móvel.

A geri-sitter lá apareceu num sonolento HMS, tinha-se demorado a acompanhar um outro cliente idoso numa consulta de telemedicina feita por um cirurgião de Osaka. Estava ainda noutro fuso horário. A Jonas C. Clarke já não lhe pareceu tão encantador o aspecto da rapa-riga. Aquelas rugas de expressão ao canto dos

olhos… Porque não as preenchia, como toda a gente? Parecia-lhe, agora, desleixo a mais.

Ela lá chegou, no seu passo arrastado. Um minuto depois, Jonas V. Clark empurrava sobrinhos e bagagem porta fora e dava ins-truções ao sistema para ter o carro a postos. Azar. O serviço estava com atraso, como lhe referira o relatório de condomínio matinal. Como era possível ter-se esquecido? Porque é que me meti nisto? Pelo menos, os gémeos divertiram-se durante a condução alucinada que o tio fez, pela cidade de Lisboa, eterna-mente em hora de ponta (parece que há 30 anos que era assim, não havia nada a fazer…). Os travões do seu híbrido guinchavam no asfalto. Lá se reuniram todos os alunos no

último TGV da tarde. Adeuses breves pelas janelas, e o carro, outra vez, a guinchar pelas ruas, a atravessar a cidade até ao lado opos-to. A publicidade halográfi ca encadeava-lhe os olhos, a amiga mandava-lhe repetidas HMS. A última dizia que iam iniciar a traves-sia da nave central até ao altar. Os alarmes de infracções acumulavam-se no contador. Pingavam as multas de trânsito, em simul-tâneo descontadas no sistema bancário. Porque é que me meti isto?, exasperava-se Jonas V. Clarke. Num arroubo de sortes (e, mais uma como esta, jurava que se tornaria religioso), Jonas conseguiu o último lugar no quinto piso, no subparque de estaciona-mento, debaixo do Tejo, na zona de Belém.

Saúde A vitória do cidadãoA possibilidade de aceder à informação sobre o seu corpo, a qualquer momento, através de um smart card, será uma das vitórias dos utentes dos serviços de saúde do futuro. À conta da miniaturização dos equipamentos, muitas das intervenções hoje realizadas em meio hospitalar poderão ser efectuadas em serviços mais «leves». Outra palavra chave será a telemedicina - consultas, diagnósticos e análises serão cada vez mais realizadas à distância, através do seu computador.

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Correu na passadeira rolante que contor-nava os jardins. Entrou na igreja enfeitada. Atravessou o tapete vermelho, enquanto tirava as alianças do bolso. A igreja em peso a olhar para ele. Lá ao fundo, no altar, o pa-dre e as duas noivas de mãos enlaçadas, am-bas vestidas de um branco tão glaciar como os olhares que lhe deitavam. Porque é que me meti nisto? *COM REPORTAGEM DE: ALEXANDRA CORREIA, ALEXANDRA ROSA; CLARA SOARES, LUÍS RIBEIRO, JOÃO LUZ, MIGUEL JUDAS, PAULO PENA, PAULO M. SANTOS, PEDRO SANTOS, PEDRO VIEIRA, RITA MONTEZ, SARA SÁ

Política O que vai mudar nos próximos 15 anos?

Joaquim AguiarEx-conselheiro presidencial

«A tendência será haver cada vez menos comunicação pelos ideólogos (citar Marx ou Tony Blair será cada vez menos importante). Vai contar muito o modo como se diz o sermão da missa, ou seja, como se comunica o discurso político. Os spin-doctors, o marketing político, vão ser mais importantes do que os partidos. Será uma comunicação de peças curtas, grande qualidade estética e conteúdo programático reduzido.»

Jorge de MirandaProfessor universitário, constitucionalista

«O crescente distanciamento entre partidos e eleitores tenderá a aumentar. Em contrapartida, poderão surgir movimentos cívicos, mas de forma conjuntural. A menos que haja uma revitalização da democracia, o fi m do clientelismo partidário, por exemplo, receio que em 2023 tenhamos a mesma situação actual, infelizmente... Os cidadãos estão anestesiados.»

Marcelo Rebelo de SousaProfessor universitário, analista político

«Neste momento, não há nenhuma mulher na pole position para estar a chefi ar o Governo, em 2023. Há ministras técnicas, mas com peso político não se vê. Os partidos terão de se reformar internamente. A comunicação será multivisual, via Internet e com meios mais sofi sticados por via electrónica. E os líderes deixarão de ter a última palavra na escolha dos candidatos a deputados, embora com resistências...»

Para este trabalho foram consultados os seguintes especialistas EDUCAÇÃO David Justino, Roberto Carneiro, Jorge Marques, Pedro Silva, José Gomes Ferreira, Manuel Ferreira Rodrigues, Nuno Crato, António Gomes Alves Ferreira, Kevin McGuiness, Margarida Morais, João Caraça, Teresa Heitor, João Sintra Nunes

POPULAÇÃO Maria João Valente Rosa, Vanessa Cunha

ALQUEVA Carlos Silva, Francisco Ferreira, António Lacerda

MEDIA Francisco Cádima, Paulo Querido, Gustavo Cardoso, director do Observatório da Comunicação, André Lapa, Paulo Veríssimo

POLÍTICA Joaquim Aguiar, Jorge Miranda, Marcelo Rebelo de Sousa

RELAÇÕES INTERNACIONAIS Armando Marque Guedes, José Félix Ribeiro Miguel Monjardino

ECONOMIA António Nogueira Leite, Luís Reis, Vítor Neto, Vasconcellos e Sá

SAÚDE Maria João Queiroz, Armando Brito de Sá, Rui Brandão Constantino Sakellarides, Maria Helena Monteiro

TECNOLOGIA António Câmara

ENERGIA António Sá da Costa, Ana Estanqueiro, António Sarmento, António Collares Pereira, António Vallêra, João Peças Lopes, Eduardo Oliveira Fernandes

ROUPA Pedro Noronha-Feio, Ei Ei Kyaw, Evgenia Tabakova, Fátima Lopes

AUTOMÓVEIS Júlio Santos, Luís Reis