Portugal a Flor e a Foice Rentes de Carvalho

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Primeiras Páginas da obra Portugal, a Flor e a Foice, de José Rentes de Carvalho publicada em Portugal a 21 de Março de 2014

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  • J. Rentes de Carvalho

  • PortugalA Flor e a Foice

    quetzal lngua comum | J. Rentes de Carvalho

  • 1 Editado em lngua neerlandesa com o ttulo Portugal, de Bloem en

    de Sikkel (De Arbeiderspers Amesterdo) em Novembro de 1975.

    No he sido nunca nacionalista; pero he sido siempre nacional,

    y esto significa para m sentir un entusiasmo siempre renaciente

    ante las dos docenas de cosas espaolas que estn verdadera-

    mente bien y un odio inextinguible hacia todo lo dems que est

    verdaderamente mal.

    Ortega y Gasset

    A pergunta data provavelmente dos netos de Ado, mas es-

    ses no dispunham das possibilidades publicitrias do Novo

    Testamento, e assim nos encostamos a Pilatos quando, com n-

    fase, queremos saber o que a verdade.

    Com a nossa e a alheia se confecciona a Histria, o curioso

    refogado de factos, mentiras e aparncias que, segundo o inte-

    resse dominante, levianamente muda de sabor e colorido.

    Neste relato, escrito entre Abril de 1974 e Outubro de 19751

    ningum encontrar a Verdade, sim uma colectnea de factos

    e acontecimentos, uma ou outra profecia e os comentrios que

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    a mudana, mais radical na aparncia que na realidade, me leva-ram ento a fazer.

    Por se destinar apenas ao pblico holands que, nas pala-vras de um crtico, sabia ento assustadoramente pouco dePortugal, inclui-se um resumo histrico que ao leitor portuguspoder parecer suprfluo. Todavia, se nunca os leu, talvez issoo leve a proveitosamente tomar conhecimento da Histria dePortugal e do Portugal Contemporneo, de Oliveira Martins,e a admirar-se, como eu em permanncia me admiro, que desdeh tantos sculos sejam diminutas as mudanas de atitude dobom povo portugus em relao res publica e aos que a tra-tam como coisa sua.

    Numa tarde de Setembro de 1968, uma cadeira quebradaterminava a carreira poltica de Salazar. Todavia, durante osvinte e trs meses seguintes, a Morte, ironicamente, fez-se espe-rar, enquanto os jornais publicavam boletins dum optimismottrico: O Presidente Salazar urinou. O Presidente Salazar j capaz de escrever o seu nome. O Dirio de Notcias, lembradode como antes se homenageavam os reis, dera-lhe um cognome:O Grande Ausente. E durante esses vinte e trs meses ningumousou dizer-lhe que j no reinava.

    O presidente da Repblica, Caetano, os ministros, visita-vam-no diariamente, punham em cena reunies ilusrias, pe-diam a sua opinio, fingiam anotar os seus conselhos, seguir osseus mandos, mas no tinham coragem de lhe contar a verdade.

  • 1A Histria a cores

    Por volta de 1935, ao entrar na escola, o salazarismo es-

    perava por mim com uma viso imperial do tamanho do pas.

    Sobrepondo a rea das colnias ao mapa da Europa, Portugal

    era uma mancha que se estendia do Atlntico at para l de

    Moscovo. E quando a professora afirmava, com indiscutvel

    autoridade, O nosso pas tem tudo ou Salazar a Grande

    Luz, eu e os outros, tenros de idade, facilmente impression-

    veis, sentamos uma satisfao igual que sentem os ricos e os

    protegidos.

    Por sobre essa grandeza do tamanho havia a da Histria.

    Portugal nascera do conselho que Deus, em boa disposio, de-

    ra num dia de 1139 a Afonso Henriques, o primeiro rei. E desde

    ento, cada vez que, por descuido ou boa-f, o pas se encontra-

    va beira do desastre, a interveno divina nunca se tinha feito

    esperar, o Senhor aparecendo pessoalmente aos reis ou, como

    em 1917, delegando Nossa Senhora de Ftima para proteger

    Portugal, e atravs dele o Mundo, contra o drago comunista.

    Logo a seguir s de Deus, a Histria narrava as faanhas dos

    heris. Da maior parte esqueci o nome, mas ficaram que so-

    bram: o que se deixou esmagar pelas portas dum castelo para

    que os companheiros, aproveitando a abertura assim feita,

    o pudessem tomar aos mouros. Outro, a quem numa batalha

    o inimigo tinha decepado os braos, segurara a bandeira com os

    dentes, dando a que os camaradas, acudindo, pusessem a salvo

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    o smbolo sagrado. Um terceiro, a quem os espanhis incitavama que trasse, optara pela alternativa de ser frito em azeite.

    Alguns feitos eram mencionados como dignos de pasmo, ou-tros dados em exemplo. Um infante, feito prisioneiro pelossarracenos, tinha morrido em cheiro de santidade. Uma rainhaIsabel, a quem o marido acidamente censurara o tamanho dasesmolas, adquirira do Alto o poder de transformar os pes emrosas, escapando assim clera do soberano, quando estea apanhava em flagrante delito de prodigalidade. Outro rei,Pedro, o Cru, mandara vingar o assassinato da amante, a quedepois de morta foi rainha, ordenando que o corao dos as-sassinos lhes fosse arrancado pelas costas e depois assado. Al-guns desvairados cronistas relatam que o monarca, assistindo aplicao da sentena, mandou trazer sal e azeite, na firme in-teno de levar a antropofagia por diante.

    Deus deitara pessoalmente a mo aos lemes das naus deVasco da Gama, para que este no se enganasse na rota paraa ndia, e assim levasse at esses longes a f de Cristo e a famados portugueses. Brincalho tambm, o Altssimo deixara quePedro lvares Cabral se perdesse e, enquanto o dito procuravaa rota do Oriente, fez-lhe aparecer o Brasil diante das caravelas.

    Mais tarde, professores doutro quilate guiaram-me numa vi-so menos mitolgica da Histria nacional. Mesmo assim, po-rm, limitados pelo que lhes ditava o programa oficial ou pelocontrole estrito do reitor, nunca ultrapassavam as barreiras. Sediminuam a influncia do Esprito Santo, tambm no aumen-tavam a dos homens sobre os acontecimentos; desse modo,batalhas, transformaes, perdas, eram deitadas conta dos es-panhis, nossos inimigos de sempre.

    Curiosamente, tanto os professores como os compndiosdespachavam em poucas falas e poucas linhas o perodo que iada proclamao da Repblica (1910) ao princpio da ditadurade Salazar (1932). Da em diante era o panegrico: Ele salvara--nos do caos econmico, Ele livrara-nos da guerra, Ele mortifi-cava-se para que vivssemos todos em paz e felicidade.

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    *

    Estvamos ento em princpios de 1945, a Segunda GuerraMundial quase a acabar. Precocemente politizados, ramos soca-pa dos uniformes da Mocidade Portuguesa, que ainda tnhamosde vestir ao sbado, mas em vez da saudao fascista deixva-mos descair o brao e fechvamos o punho. Os professores,alarmados com o micrbio comunista, viravam as costas e noviam o que no dia 8 de Maio desse ano nos encorajou a tomarparte no enorme cortejo com que o povo do Porto festejava,tanto o fim da Guerra, como a esperana de que as foras de-mocrticas europeias no tardariam a libertar-nos de Salazar.

    Esperana perdida. Salazar governou pessoalmente at 1968e por procurao at 25 de Abril de 1974, com a cumplicidade,o apoio e a bno de tantos democratas e tantas democracias,que chega a ser obra de caridade no mexer nas guas lamacen-tas desse passado recente.

    Certo que em muitos dentre ns, ento adolescentes, o abaloressentido pelo abandono em que nos deixavam os pases de-mocrticos viria a traduzir-se em radicalismo poltico. Dessemodo no surpreende que muitos dos homens empenhados nomovimento de 25 de Abril pertenam minha gerao e se si-tuem politicamente extrema-esquerda.

    Voltando escola e aos compndios: os meses que se segui-ram ao fim da Guerra foram, primeiro, de entusiasmo, logo de-pois de medo e pasmo. A filiao Mocidade Portuguesa deixarade ser obrigatria, mas no resto a camisa-de-foras apertava mesma, e de forma ainda mais incoerente, como convinha pa-ra alimentar um ambiente de terror e insegurana.

    Um professor, a quem um estgio no estrangeiro tinha trans-formado as ideias, tomara o hbito de jogar futebol connoscodurante os intervalos e, nas aulas, reservava um quarto de horapara que cada um expusesse os seus pontos de vista sobre a ln-gua francesa.

    To graves quebras da hierarquia pediam castigo exemplare o homem foi demitido. Mas para que a memria se nos no

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    1 Mais bizarro ser difcil encontrar. O docente em questo tinha sidoleitor do Instituto da Alta Cultura na Alemanha, onde ganhara o hbitosubversivo de jogar futebol com os alunos.

    apagasse e no apagou o reitor comunicou-nos a penadiante do acusado, levantando o dedo para assegurar que noadmitia atentados disciplina.1

    amos estudando e vivendo numa atmosfera irreal, decoran-do virtudes e feitos hericos que h muito tinham deixado denos interessar ou convencer. A Histria de Portugal no podiaser aquilo, nem ser assim.

    De facto no . Mas para o descobrirmos foi preciso que ou-tro professor, pedindo segredo, aconselhasse alguns de nsa lermos Oliveira Martins.

    Semelhante s igrejas, a biblioteca do liceu Alexandre Her-culano, no Porto, era silenciosa, bafienta, guardada por um bi-bliotecrio que, duma mesa empoleirada num estrado, vigiavao nosso vaivm. Entrava-se em pontas de ps, pediam-se-lhe oslivros num sussurro, ia-se em pontas de ps esperar que ele os ti-rasse dos armrios envidraados.

    Simplesmente, nem todos os livros eram obtidos com essafacilidade. Os de Oliveira Martins e outros exigiam formalida-des. Para l-los era necessrio preencher uma ficha que eraentregue ao reitor, avisava ele na qual constava o nome doaluno, o seu nmero de turma, data de nascimento, filiao,morada, o ttulo da obra, o nome do autor, o nome do profes-sor que a aconselhara e, por baixo, a razo da leitura.

    Muito obrigado. No vale a pena. Era s para ver umacoisa... e em pontas de ps samos dali direitos a um alfarra-bista que Sim senhor, meus senhores tinha a Histria de Por-tugal de Oliveira Martins, em dois volumes, dcima primeiraedio, 1927.

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    *

    Embora descobrssemos logo a seguir que a Histria se estu-

    dava luz de concepes que pouco tinham a ver com as de

    Oliveira Martins, o qual, para ns, cometera o pecado mortal

    de ignorar Marx, seu contemporneo. Mesmo assim, que ines-

    quecvel leitura!

    Aquele retrato de Portugal parecia-nos mais conforme do

    que as hagiografias que nos tinham obrigado a aceitar e, com

    o sentimento de que fazamos obra revolucionria, copivamos

    frases que, secretamente, distribuamos aos mais novos.

    Nos sculos xii e xiii Portugal um certo territrio, pro-

    priedade dum certo prncipe: donde vem? quem ? pouco im-

    porta. O conde Henrique era francs. Assim, a poca da primei-

    ra dinastia desmente por todos os lados, e de todas as formas,

    a ideia duma raa, possuindo, dum modo mais ou menos definido,

    a conscincia da sua existncia colectiva.

    Quem era Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal?

    Era audaz, temerrio at, pessoalmente bravo, qualidades

    nem to comuns no tempo, como a muitos acaso parea (...)

    mas era seco, astuto, friamente ambicioso, sem quimeras nem

    iluses. Submisso e humilde quando se achava vencido, subscre-

    via todas as condies, aceitava todas as durezas; para logo

    mentir a todas as promessas, rasgar todos os tratados, com uma

    franqueza ingnua, uma simplicidade natural, que chegavam

    a espantar a prpria Idade Mdia.

    De D. Pedro, o Cru, j antes citado, alargava a biografia

    horrorosa: (...) tinha a paixo da justia: era nele uma mania,

    como no seu av fora a guerra: no prescindia de julgar todos

    os delitos. Os criminosos vinham corte desde os remotos con-

    fins do reino. Quando algum chegava, manietado, e o rei co-

    mia, levantava-se pressuroso da mesa, e trocava a vianda pela

    tortura. Prazia-se em ajudar e dirigir os algozes; indicava os ex-

    pedientes e processos para obter a confisso dos rus. Nunca

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    abandonava o aoute: enrolado cinta em viagem, tomava dele,

    e por suas mos castigava os facnoras que no caminho lhe tra-

    ziam.

    Valendo-se duma citao de Alexandre Herculano, Oliveira

    Martins despachava assim o retrato de trs reis da primeira di-

    nastia: D. Dinis foi um avaro, Afonso IV um homem de juzo,

    Pedro I um doido com intervalos lcidos de justia e econo-

    mia.

    Dali passava aos Descobrimentos. Ora ns, jovens, no t-

    nhamos sido insensveis ao trovejar da epopeia de Cames e,

    sem excepo, sabamos de cor os primeiros versos de Os Lu-

    sadas. Alm disso, o hino nacional, que cantvamos pelo me-

    nos todos os sbados de manh, era igualmente belicoso. Pense

    cada qual o que quiser, no deixa de ser realidade que, sobre

    esse perodo particular da Histria, nos encontrvamos razoa-

    velmente endoutrinados. As faanhas dos nossos marinheiros

    e soldados a caminho do Oriente eram infinitamente mais exci-

    tantes do que as lamechices de Texas Jack, Jesse James e os res-

    tantes fora-da-lei do faroeste.

    Ora o historiador, com um simples pargrafo, limpou-nos

    a cabea das teias do herosmo e, pelo menos no que me diz res-

    peito, vacinou-me contra as verses oficiais passadas, presentes

    e futuras dos acontecimentos histricos: Navegadores (...)

    a maneira como nos aventurmos ao mar retrata ainda a nossa

    fisionomia colectiva: fomos prudente e pacientemente ao longo

    das costas africanas, ou de ilha em ilha, no oceano, caminhan-

    do passo a passo, avanando sempre, tenazes, mas jamais teme-

    rrios.

    As descries que faz das atrocidades, dos crimes, das la-

    droeiras e das selvajarias cometidas pelos grandes e pequenos

    homens dos Descobrimentos extraordinria empresa que

    pouco mais durou que cinquenta anos igualaro as feitas por

    outros historiadores srios sobre as faanhas igualmente heri-

    cas doutros povos. Espanhis, holandeses, ingleses e franceses

    no se comportaram mais santamente. Mas isso pouco importa

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    aqui. O que nos deixou de boca aberta foi a disparidade entreaquela verdade e a que nos tinham dado os compndios, osmestres e as interminveis comemoraes dos Descobrimentos,da Restaurao, do Imprio, do Dia da Raa e do aniversriode Cames.

    Vasco da Gama perdia aquele ar de gro-senhor comedido,protector do indgena: Um terramoto agitou o mar da ndiaquando o Gama pela segunda vez o trilhava; e o almirante, ima-gem da bravura pica do povo portugus, acreditou e disse queat as prprias ondas tremiam com medo nosso com medodele!

    Para comear, ordenou o saque de uma nau cheia de pere-grinos que iam ou vinham de Meca, trezentos homens, mulhe-res e crianas e, acabado o saque, carregou-a de plvora e f-laexplodir. Depois intimou o raj de Calecute a que expulsasse asfamlias mouras da cidade. No queria expulsar? Vasco da Ga-ma ao fundear diante da cidade apresara um nmero conside-rvel de mercadores do porto, mandou cortar-lhes as orelhas e asmos, e amontoados num barco, foram com a mar varar napraia, levando a resposta recusa do aflito prncipe.

    Mas no s o Gama. Depois dele, Francisco de Almeida,Afonso de Albuquerque e outros vice-reis apareciam como gen-te da mesma estirpe. Sanguinrios, fanticos, movidos pelo du-plo motor da f e do lucro. D-se-lhes esse desconto: no era sa ganncia da pimenta, do ouro, dos diamantes e o aumento donome e honras do rei, mas igualmente a pressa de pr o Orientede joelhos diante da Santa Madre Igreja.

    O domnio portugus escreve Oliveira Martins ad-quiriu logo de comeo o carcter duplo que jamais perdeu, apesarde todas as tentativas posteriores de regularizao e de ordem.Era no mar uma anarquia de roubos, na terra uma srie de de-predaes sanguinrias (...) A pirataria e o saque foram os doisfundamentos do domnio portugus, cujo nervo eram os ca-nhes, cuja alma era a Pimenta.