PORTUGUÊS MODERNISMO FERNANDO PESSOA E HETERÓNIMOS · Fernando Pessoa (n. 1888), Sá Carneiro (n....

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PORTUGUÊS

• MODERNISMO• FERNANDO PESSOA E HETERÓNIMOS

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Modernismo

O início do século XX foi um momento de crise aguda, de dissolução de muitos

valores. Os artistas reagiram ao cepticismo social, marcado por um laxismo próximo

do «laissez-faire, laissez-passer» através da agressão cultural, pelo sarcasmo, pelo

exercício gratuito das energias individuais, pela sondagem, a um tempo lúcida e

inquieta, das regiões virgens e indefinidas do inconsciente, ou então pela entrega à

vertigem das sensações, à grandeza inumana das máquinas, das técnicas, da vida

gregária nas cidades.

No início deste século as minorias criadoras manifestaram-se por impulsos de ruptura

com as diversas ordens vigentes. As forças da aventura romperam as crostas das

camadas conservadoras e tentaram redescobrir o mundo através da redescoberta da

linguagem estética. Na área da poesia recusam-se os temas poéticos já gastos, as

estruturas vigentes da poética ultrapassada. A arte entra numa dimensão-outra: os

objectos não-estéticos e o dia-a-dia na sua dimensão multiforme entram na arte.

Recusa-se o código linguístico convencional e, sob o signo da invenção, surgem

novas linguagens literárias: desde a desarticulação deliberada até à densamente

metafórica, quase inacessível ao entendimento comum.

É a toda esta recusa, desejo de ruptura e redescoberta do mundo através da

linguagem estética que se chama modernismo ou movimento modernista. No caso

português, o modernismo pode ser considerado um movimento estético, em que a

literatura surge associada às artes plásticas e por elas influenciada. Nomes como

Fernando Pessoa (n. 1888), Sá Carneiro (n. 1890) e Almada Negreiros (n. 1893), são

marcos importantes desta época.

Foi em 1913, em Lisboa, que se constituiu o núcleo do grupo modernista. Pessoa e Sá

Carneiro haviam colaborado na Águia, órgão do Saudosismo; mas iam agora realizar-

se em oposição a este, desejosos como estavam de imprimir ao ambiente literário

português o tom europeu, audaz e requintado, que faltava à poesia saudosista. Nesse

ano de 1913 escreveu Sá Carneiro, aplaudido pelo seu amigo Fernando Pessoa, os

poemas de Dispersão; Fernando Pessoa dava início a uma escola efémera compondo

o poema «Pauis» (ambos nutriam o sonho de uma revista, significativamente intitulada

Europa). Em 1914 os nossos jovens modernistas, estimulados pela aragem de

actualidade vinda de Paris com Sá Carneiro e Santa Rita Pintor, adepto do futurismo,

faziam seu o projecto que Luís da Silva Ramos (Luís de Montalvor) acabava de trazer

do Brasil: o lançamento de uma revista luso-brasileira: Orpheu. Desta revista saíram

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dois números em 1915; incluíam colaboração de Montalvor, Pessoa, Sá Carneiro,

Almada Negreiros, Cortes Rodrigues, Alfredo Pedro Guisado e Raul Leal; dos

brasileiros Ronald de Carvalho e Eduardo Guimarães; de Ângelo de Lima, internado

no manicómio; de Álvaro de Campos, heterónimo de Pessoa. Feitos, em parte, para

irritar o burguês, para escandalizar, estes dois números alcançaram o fim proposto,

tornando-se alvo das troças dos jornais; mas a empresa não pôde prosseguir por falta

de dinheiro. A geração modernista continuou a manifestar-se, quer em publicações

individuais, quer através de outras revistas, como é o caso de Exílio (1916), com um

só número e Centauro (1916). Em Portugal, a nova geração combatia o academismo

bem pensante de republicanos burgueses que tinham feito carreira à sombra do

partido.

O Modernismo encerra um humanismo seminal, incita à plenitude individual. E

desponta nele, intuitiva e, de modo precursor, o Sobrerrealismo, sobretudo em Sá

Carneiro, a par da visão do mundo como coisa absurda e sem suporte. A geração do

Orpheu surge como ponto de arranque em mais duma direcção - começo de uma

época nova, liquidação de certas formas de pensar e de sentir. A literatura não é já

expressão do indivíduo mas linguagem que se constitui, inesperada, a partir dum

vazio, dum não-eu.

O modernismo português não foi um movimento homogéneo, mas sim uma síntese de

várias tendências, quer literárias quer plásticas, manifestando-se ao invés dos

movimentos literários anteriores basicamente em Lisboa, apenas com algumas

adesões de Coimbra e ecos vagos noutros pontos da província.

Modernismo

Termo que designa o culto do moderno, ou seja, e em termos gerais, de tudo aquilo

que se opõe à ideia de clássico e de tradição. O modernismo surge, assim, como

conceito associado a uma ética do progresso, da aceleração das inovações e

experiências (formais ou plásticas) conduzidas pelos movimentos de vanguarda do

início do século XX, em função da ideologia do novo como valor ético e estético, da

autonomia da arte, e da recusa da realidade como modelo para esta última. Por outro

lado, refere-se a uma geografia da arte que se organiza em torno de Paris, como

principal centro da criação, desde finais do século XIX e até meados do século XX, a

qual tende a reflectir o estado da modernidade (das inovações formais) que ali se vive.

Assim, o modernismo encontra seguimento em países como Portugal, Espanha,

Brasil, nos quais representa o movimento de ruptura com a tradição naturalista de

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oitocentos, de acordo com as tendências e os modelos desenvolvidos na capital

francesa. Em Portugal, a geração congregada em torno da revista Orpheu, cujo

primeiro número saiu em 1915, e a que pertenceram nomes como Almada Negreiros,

Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, foi a introdutora do modernismo. Nas artes

plásticas, são de destacar Amadeo de Souza Cardoso e Santa-Rita Pintor. Considera-

se ainda que a revista Presença (1927-1940) marca, na literatura portuguesa, um

segundo modernismo, que recupera e promove a geração de Orpheu, cujo

reconhecimento público fora reduzido.

Modernismo

-liberdade criadora

-perfeição formal

-exótico, clássico e pitoresco

-renovação vocabular e dos recursos expressivos

-imagens visuais e dos vocábulos musicais

-sentido aristocrático da arte

-o cosmopolitismo

-impressionismo descritivo

-simplificação da sintaxe

-verso livre

-liberdade estrófica

Futurismo – Extravagância artística

-Exaltação da energia, da velocidade e da força

-sensação de poder e triunfo

-abolição da pontuação

-dinamismo: liberdade de expressão, vida agitada e dinâmica

-literatura do ruído, do peso e do cheiro

-corte com o passado

-nova vida futura

-busca de uma nova sintaxe

-agressividade, escândalo, insultos

-destruição de símbolos do passado

Dadaísmo – Negação de tudo, a destruição, a contestação

-criação espontânea

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-irracional

-rompendo com a tradição

-reacção contra a guerra

-máxima liberdade na relação pensamento com a expressão literária

Surrealismo – Inconsciente (Dali)

-rejeição do racionalismo

-sobrevalorização do inconsciente

-pelo inconsciente se pode atingir a libertação total

-radicando a criação nos automatismos psíquicos, no subconsciente, no sonho

Cubismo – Geometrização (Picasso)

-modo de expressão que recria através de planos geométricos a realidade

-procura sugerir a visão simultânea de diferentes ângulos dos objectos

-texturas e materiais

-monocromatismo

-substitui a análise da cor pela das formas dos objectos

-Cubismo primitivo: muito simples

-Cubismo analítico: cores ocre, verde-escuro e cinzento

Faces sobrepostas

Diferentes aspectos do mesmo objecto

-Cubismo sintético: signos visuais – metáforas

Expressionismo – expressão de emoções

-expressar os próprios conflitos e paixões

-a deformação da realidade exterior para dar forma à visão interior do artista

-expressão dos sentimentos do artista

-exagero, metáforas

-focagem pessimista da vida: angústia, dor e denuncia de problemas sociais

-ponte entre o visível e o invisível

Sebastianismo

Ideologia messiânica que atravessou de forma singular a história portuguesa desde o

século XVI, consistindo na crença no advento iminente de um rei libertador. O

sebastianismo não foi apenas a fé no regresso de D. Sebastião, sobrevivente de

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Alcácer Quibir, mas um conjunto de temas messiânicos sucessivamente reelaborados

em contextos de crise e de indefinição política.

Formulado pela primeira vez nas Trovas do sapateiro Gonçalo Anes (o Bandarra) em

meados do século XVI, o mito de um rei Encoberto salvador reapareceu durante o

período filipino na sua forma sebástica, sendo em vários momentos encarnado por

figuras que se fizeram passar por D. Sebastião (o «rei de Penamacor», o «rei da

Ericeira», o «Calabrês»). Após a Restauração, o padre António Vieira continuou a

divulgar os textos do Bandarra e ampliou a profecia à ideia de um Quinto Império

português, em que se cruzavam temas históricos e bíblicos. Depois de D. João IV, o

rei Encoberto foi sucessivamente identificado com D. Afonso VI, D. Pedro II e D. João

V, reaparecendo no contexto das invasões francesas e no miguelismo.

Como tema popular, o sebastianismo assumiu enorme importância, dando expressão

a um desejo persistente de libertação da miséria e opressão quotidianas. Até aos

nossos dias, a mística nacional-sebastianista, com traços saudosistas e decadentistas,

foi integrada na chamada «filosofia portuguesa» e entrou no pensamento e nas obras

de figuras como Leonardo Coimbra, Jaime Cortesão, Teixeira de Pascoaes e

Fernando Pessoa, entre outros.

Paùlismo

Designação que provém de uma poesia de Fernando Pessoa datada de 1913

intitulada «Impressões do Crepúsculo», que se inicia com a palavra paúis. O poema

surgiu no único número da revista A Renascença e foi tido como exemplo de uma

nova corrente de expressão artística. Esta corrente caracteriza-se pela linguagem

metafórica, por um discurso inacabado onde sobressaem as reticências e por uma

desconexão sintáctico-semântica, numa tentativa de expressão do vago, do subtil e do

complexo. Tem, pois, algumas afinidades com o decadentismo e o simbolismo. Trata-

se de um dos vários -ismos que marcaram a revolução modernista do grupo de

Orpheu.

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Decadentismo

De um modo geral, o conceito de decadentismo aplica-se a correntes, tendências,

movimentos estéticos, poéticos, literários e plásticos, tidos como uma superação ou

perversão de certos modelos (estéticos ou éticos) considerados originais ou de

primeiro plano. De uma forma mais restrita, o termo começou a circular por volta de

1880, referindo-se à obra de certos escritores (Oscar Wilde, Arthur Rimbaud,

Mallarmé) ou artistas plásticos (Beardsley, Burne-Jones, Bocklin) que partilhavam uma

atitude de tédio e desencantamento perante a vida real, recusando o enlevo naturalista

e o positivismo. Em Portugal, uma escrita como a de Fialho de Almeida apresenta

aspectos decadentistas. Os «decadentes» antecipam as experiências da Arte Nova e

do simbolismo europeus. Na poesia de António Nobre há também uma postura

decadentista.

Simbolismo

Movimento surgido na poesia francesa em finais do século XIX e que se reflectiu

também nas artes plásticas. O simbolismo marcou um corte em relação aos princípios

estéticos da época romântica: por um lado, entendendo a criação literária como um

trabalho essencialmente plástico (exploração das potencialidades formais da

linguagem, da musicalidade das palavras); por outro, e concomitantemente, pela

definição de um novo lugar do artista na sociedade. O poeta era concebido como um

ser distante do vulgo, a quem cabia a revelação da beleza e a sugestão do mistério,

afastando-se, assim, do papel interventor que caracterizara os escritores românticos e

realistas. O simbolismo é, pois, uma manifestação dos princípios da arte pela arte. A

originalidade, o recurso a termos insólitos e raros, a valorização da metáfora, a

sugestão do vago, do impreciso, são características marcantes desta escola, na

literatura.

Em Portugal, a publicação da revista Os Insubmissos, em 1889, marca o seu início.

Embora o simbolismo tenha deixado algumas marcas em escritores como D. João da

Câmara, António Patrício e Raul Brandão, os seus grandes representantes foram

Eugénio de Castro (Oaristos, 1890) e Camilo Pessanha (Clepsidra, editado apenas em

1920). O simbolismo, a que se associaram por vezes temas característicos do

decadentismo, influenciou fortemente as vanguardas modernistas e, nomeadamente, a

geração de Orpheu

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Interseccionismo

• Características

Processo típico da poesia do Modernismo, paralelo às sobreposições dinâmicas da

pintura futurista, e de que Fernando Pessoa nos deu exemplos acabados nas seis

partes de «Chuva Oblíqua» (in Orpheu n.º 2, 1915) - demonstração brilhante de

inteligência estética e de capacidade inovadora. Cruzam-se aí a paisagem presente e

a ausente, o actual e o pretérito, o real e o onírico: «Atravessa esta paisagem o meu

sonho dum porto infinito / E a cor das flores é transparente de as velas de grandes

navios / Que largam do cais...». A alma está lucidamente dividida, a hora é «dupla», o

autor capta subtis correspondências de sensações: «Ilumina-se a igreja por dentro da

chuva deste dia, / E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...» Mas

F. Pessoa cedo poria de lado esta experiência lúdica, dos «arredores da sua

sinceridade».

Coelho, Jacinto do Prado, DICIONÁRIO DE LITERATURA (in Modernismo), 3.ª

edição, 2.º volume, Porto, Figueirinhas, 1979

• Interseccionismo, uma tentativa para o aperfeiçoamento do Simbolismo

As teorias estético-literárias elaboradas por Pessoa depois do Paulismo servem

essencialmente para justificar os heterónimos e fundamentar a produção deles, pelo

menos na sua primeira fase. De certa maneira excepção é, apenas, o

Interseccionismo que coexiste com a criação dos heterónimos. Mas como já notámos,

o Interseccionismo manteve-se desde o princípio muito próximo do Sensacionismo,

acabando por se fundir com ele. Se, não obstante, o consideramos separadamente,

isto deve-se ao facto de o Interseccionismo, tal como o Paulismo, poder ser

interpretado mais facilmente à base dos poemas que lhes servem de modelo. Deve-

se, pois, considerar conjuntamente a poesia programática «Chuva Oblíqua» e as

passagens das cartas relacionadas com o Interseccionismo, se quisermos definir

tanto quanto possível com exactidão a fase de transição entre o Paulismo e as teorias

dos heterónimos.

Na data 4-10-1914 - meio ano depois da criação de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e

Álvaro de Campos -, Pessoa escreve a Cortes-Rodrigues: «Verdade seja que

descobri um novo género de paulismo. Mas preciso completar o feito.»1 Com a sua

habitual paixão pelas ideias, «caratteristica dei pigri fantasiosi e complessati»2

(Luciana Stegagno Picchio), Pessoa começa logo vasta acção de propaganda para

divulgação da nova corrente. Há que sair com uma revista interseccionista, ou melhor

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ainda, com uma antologia do Interseccionismo e, para colaboradores, são mais uma

vez convocados todos os amigos que, há pouco ainda ligados ao Paulismo, de ora em

diante passam a assinar-se de interseccionistas: Sá-Carneiro, A. P. Guisado e Cortes-

Rodrigues. Para os espíritos inferiores prevê-se o auxílio por meio de gráficos ou

desenhos em que o Interseccionismo apareça como cruzamento ou intersecção de

todas as correntes anteriores. O projecto não se chega a concretizar, tal como

acontecerá com a antologia do Sensacionismo em 1916. Parece, porém, ter existido

um manifesto do Interseccionismo, pelo menos em fragmento, pois que Pessoa se lhe

refere numa carta a Cortes-Rodrigues a 4-1-1915, na qual declara: «Não publicarei o

Manifesto «escandaloso»». Tratava-se talvez dum texto precursor do «Ultimatum»

publicado por Álvaro de Campos em 1917 na revista «Portugal Futurista»? O carácter

escandaloso do «Ultimatum» poderia justificar esta conjectura, tanto mais que é um

facto não ter aparecido no espólio, onde de resto se encontram todos os

apontamentos manuscritos do autor, qualquer manifesto interseccionista.

De qualquer maneira, é certo que Pessoa quis, no seu primeiro entusiasmo,

interpretar o Interseccionismo como «Paulismo a sério» e que considerou o «Orpheu»

do seu amigo Sá-Carneiro como o órgão próprio para dar a ressonância devida à

nova escola. J. G. Simões3 sustenta esta opinião e afirma, noutro local, que o

Interseccionismo representa na obra de Pessoa a transposição do Cubismo e do

Futurismo para a literatura.4 O próprio Pessoa, porém, defende-se, como

mostraremos, categoricamente contra a confusão do Interseccionismo com o

Futurismo. Simões sugere, mas injustamente com certeza, que Pessoa tivesse sido

encaminhado para as suas novas teorias através das cartas de Sá-Carneiro, vindas

de Paris. Mas as cartas de Sá-carneiro dos anos de 1913 a 1914, embora contenham

de facto alusões ao Cubismo, ao fascínio de Picasso e aos teoremas loucos do

futurista Santa Rita Pintor, não fornecem quaisquer pontos de referência a partir dos

quais Pessoa pudesse ter feito derivar o seu Interseccionismo. Só em 13-8-1915,

muito depois do aparecimento do poema programático do Interseccionismo, é que Sá-

Carneiro participa ao amigo a compra dum volume com poemas futuristas de

Marinetti, Bétuda e Altomare, elogiando as exclamações aí contidas «Fu, fu, cri, cri e

corcuruco» como muito recomendáveis adentro da nova poesia.

[...]

«Chuva Oblíqua» é uma amostra de virtuosismo poético e como tal, para

demonstrar as variações do novo programa, desdobra-se em seis partes [...]. Para

exemplo, tomemos dois excertos especialmente característicos. O poema na sua

totalidade data de Junho de 1914, seguindo-se aos primeiros versos de Caeiro, e foi

publicado em 1915, no segundo número de «Orpheu».

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CHUVA OBLÍQUA

I

Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito

E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios

Que largam do cais arrastando nas águas por sombra

Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...

O porto que sonho é sombrio e pálido

E esta paisagem é cheia de sol deste lado...

Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio

E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...

O vulto do cais é a estrada nítida e calma

Que se levanta e se ergue como um muro,

E os navios passam por dentro dos troncos das árvores

Com uma horizontalidade vertical,

E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...

Não sei quem me sonho...

Súbito toda a água do mar do porto é transparente

E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,

Esta paisagem toda, renque de árvores, estrada a arder em aquele porto,

E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa

Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem

E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,

E passa para o outro lado da minha alma...

Se chamamos a este poema paradigma da corrente interseccionista é porque a sua

estrutura segue com uma nitidez geométrica uma única directriz fundamental: a

intersecção de duas superfícies, ou sejam, uma paisagem vivida e um porto

imaginado. Desta intersecção resulta uma sequência imagética de grande nitidez

plástica. [...] O poema é muito mais, de princípio a fim, uma montagem em dois

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planos e os efeitos de contraste são produzidos pela sobreposição de dois todos, o

sonhado e o vivido.

Com tudo isto pode dizer-se que nos encontramos ainda em terreno romântico; pois

que, como no Paulismo, o sonho é mais forte do que a realidade exterior. O porto

imaginário liberta o poeta da realidade («liberto em duplo, abandonei-me da

paisagem abaixo...»). Na segunda metade do poema processa-se abertamente uma

permuta entre o sonho e a realidade: o porto imaginário ganha supremacia,

usurpando o lugar à paisagem real que, por sua vez, assume a forma imaginária,

emergindo diante dos nossos olhos como ficção, como «estampa» no fundo das

águas do porto imaginário. Desta dupla paisagem estática solta-se a imagem mítica

da nau ou caravela que, apesar do seu carácter imaginário, adquire tais foros de

realidade que o poeta a distingue ou percepciona em ambos os planos

simultaneamente, e sente que entra por ele dentro. Este fenómeno - a entrada da

caravela na alma do poeta - sublinha mais uma vez a duplicidade da vivência,

duplicidade esta provocada pela intersecção do sonho com a realidade.

Se nos lembrarmos de que o que os pintores cubistas pretendiam era representar

simultaneamente as várias superfícies dum objecto, as visíveis e as encobertas, é-

nos fácil descobrir que o Interseccionismo nada tem a ver com a técnica dos cubistas.

O processo da intersecção de superfícies não pode ter derivado do cubismo nem

pode, legitimamente, ser relacionado com ele. A primazia dada ao sonho no final do

poema mostra muito mais que a desvalorização paulista do mundo exterior, em favor

dum mundo fictício criado pela imaginação do poeta, continua a existir também no

Interseccionismo. O novo estilo de Pessoa está mais próximo do Paulismo do que o

querem admitir críticos como J. G. Simões.

A que efeitos requintados pode conduzir a técnica da intersecção, quando aplicada

rigorosa e consequentemente, podemos avaliá-lo numa outra passagem de «Chuva

Oblíqua»:

III

A Grande Esfinge do Egipto sonha pôr este papel dentro...

Escrevo - e ela aparece-me através da minha mão transparente

E ao canto do papel erguem-se as pirâmides...

Escrevo - perturbo-me de ver o bico da minha pena

Ser o perfil do rei Quéops...

De repente paro...

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Escureceu tudo... Caio por um abismo feito de tempo...

Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro

E todo o Egipto me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena...

Ouço a Esfinge rir por dentro

O som da minha pena a correr no papel...

Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme,

Varre tudo para o canto do tecto que fica por detrás de mim,

E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve

Jaz o cadáver do rei Quéops, olhando-me com olhos muito abertos,

E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo

E uma alegria de barcos embandeirados erra

Numa diagonal difusa

Entre mim e o que eu penso...

Funerais do rei Quéops em ouro velho e Mim!...

A técnica interseccionista - aliás caracterizada em ambas as passagens por termos

geométricos, aqui através da «diagonal difusa», na primeira parte através da

«horizontal vertical» - faz com que se entrecruzem aqui os planos do presente e do

passado. Nos três primeiros versos o presente real e o passado imaginário começam

por se apresentar desligados um do outro. O poeta ao escrever está a pensar no

Egipto, e as imagens da esfinge e das pirâmides surgem diante dele. A visão e a

realidade encadeiam-se. A junção das duas conduz ao desfecho quase humorístico

da imagem seguinte: no bico da pena do poeta aparece o perfil do rei Queóps. A

técnica da intercalação, como vemos, é utilizada a rigor. Feita a advertência («de

repente paro... Escureceu tudo...»), consuma-se a permuta dos dois planos: o sonho

ganha a primazia e o poeta deixa-se dominar pelas imagens que ele próprio criou ao

ponto de, neste caso, se sentir esmagado pelas pirâmides. De novo se entrecruzam

os dois planos: o bico da caneta transforma-se no riso da esfinge. Ao contrário do

primeiro exemplo que transcrevemos, parece-nos aqui evidente a existência dum

maior requinte na aplicação da técnica interseccionista: o perfil do rei Queóps

transforma-se em cadáver, cadáver sete que, como convém a um sonho, fita de olhos

abertos o poeta, iniciando com ele uma espécie de diálogo mudo do qual resultam

novas imagens: o Nilo, barcos embandeirados, preparativos para «os funerais. O

«ouro velho» do verso final, metáfora predilecta não só de Sá-Carneiro mas também

de Pessoa na fase paulista, indica-nos que a visão acontece numa esfera ideal; os

funerais do rei têm lugar simultaneamente no passado e no presente do Eu sensível.

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Como principal inovação em relação ao Paulismo assinalam-se, além da nitidez

plástica de cada uma das imagens, nitidez esta já antecipada em poemas como o

«Ela canta, pobre ceifeira», a transição da métrica tradicional para o verso livre e sem

rima. Para o que o Marine de Rimbaud poderia bem ter servido de exemplo.

Também o Interseccionismo permanece ainda preso nas malhas da poesia

simbolista e subjectiva. Ninguém o soube ver mais claramente que o próprio Pessoa.

Na carta ao «Diário de Notícias» de 4-6-1915 temo-lo a protestar contra a confusão

que os jornalistas daquele diário, dada a sua ignorância, praticam, entre Futurismo e

Interseccionismo; Pessoa explica: «A atitude principal do futurismo á a Objectividade

Absoluta, a eliminação, da arte, de tudo quanto é ALMA, quanto é sentimento,

emoção, lirismo, subjectividade em suma. O futurismo é dinâmico e analítico por

excelência. Ora se há cousa que [seja] típica do Interseccionismo (tal é o nome do

movimento português) é a subjectividade excessiva, a síntese levada ao máximo, o

exagero da atitude estática.»5

Se procurámos dar uma ideia da técnica interseccionista à base do exemplo de

«Chuva Oblíqua», é porque a estrutura deste ciclo de poemas não é de modo algum

compreensível sem a teoria que lhe está por detrás. De resto o número de poemas

claramente derivados do Interseccionismo é muito reduzido. Isto provém do facto,

com certeza, de Pessoa ter esboçado num período de tempo relativamente curto

várias teorias totalmente diferentes; não é, pois para admirar que cada uma das

teorias de per si só se possa encontrar, em estado puro, em poucos poemas padrão.

[...]

Pessoa tinha, aliás, todos os motivos para se opor à confusão entre

Interseccionismo e Futurismo. Logo que a palavra de ordem das tendências

modernistas na arte europeia começara a circular, todas as outras teorias estavam

em risco de serem classificadas sob a mesma etiqueta. O Interseccionismo de

Pessoa não era, de resto, uma doutrina cuidadosamente formulada, como o futurismo

de Marinetti, mas apenas uma técnica de composição, cujas características

peculiares só se podiam avaliar pelos poemas que lhe serviam de exemplo. Quem

observasse de fora podia imputar ao Interseccionismo tudo aquilo que,

pessoalmente, tinha por modernista. Daí a confusão do Interseccionismo com o

Futurismo ter sido acatada, inadvertidamente, mesmo pelo amigo mais chegado de

Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, como no-lo mostra o seu poema «Manicure». [...]

Os vários planos caoticamente agrupados no poema e a referência expressa a

«inúmeras intersecções» (em vez do entrecruzar de dois planos apenas, utilizado por

Pessoa), afastam o poema para perto do Simultaneísmo e do Sensacionismo.

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1 - F. P., Cartas a A. Cortes-Rodrigues, p. 60;

2 - «Características dos preguiçosos fantasistas e complexados» (N. do T.);

3 - Cf. J. G. Simões, Literatura, Literatura, Literatura, Lisboa, 1964, pp. 60 e segs.;

4 - J. G. Simões, Vida e Obra de F. P., vol. I, p. 250;

5 - F. P., Páginas Íntimas, p. 413.

Lind, Georg Rudolf, «Duas Tentativas para o Aperfeiçoamento do Simbolismo: o

Paùlismo e o Interseccionismo» in Estudos Sobre Fernando Pessoa, Imprensa

Nacional - Casa da Moeda, 1981

Sensacionismo

Termo criado por Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro e explicado pelo primeiro

ao longo de vários ensaios, apontamentos e escritos. O sensacionismo assume-se

como princípio psicológico e estético. Concebendo a sensação como única realidade,

Pessoa defendia que a arte deveria levar a cabo uma decomposição das sensações,

de forma a tornar consciente, no homem, a estrutura da realidade, decomposta nos

seus vários elementos, concebidos como dimensões geométricas.

Na base da arte estaria, portanto, a sensação. Esta estava sujeita a uma

intelectualização (tomada de consciência dessa sensação), e esta consciência, por

sua vez, seria também intelectualizada (como consciência da consciência da

sensação), o que lhe permitiria ser expressa. Pessoa pretendeu estender este

princípio à análise de vários autores seus contemporâneos, incluindo-se a si mesmo, e

a uma perspectiva histórico-literária. As contradições na teorização do sensacionismo

são reflexo da própria complexidade das ideias de Pessoa. O Interseccionismo era,

para este poeta, uma das formas de concretizar o sensacionismo.

Futurismo

Movimento artístico europeu influente entre 1909 e 1914, com origem na cidade de

Paris. Nas suas obras, os futuristas fizeram a exaltação do mundo moderno, da

«beleza da velocidade e da energia», do dinamismo, da vertigem febril, e,

inclusivamente, da beleza bélica. O poeta italiano Filippo Marinetti publicou o

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Manifesto Futurista em 1909, exortando os artistas italianos a juntarem-se a ele e a

aderirem ao futurismo. Nas artes plásticas, combinando o jogo de planos e formas

geométricas do cubismo com cores vibrantes, pretendiam atingir o dinamismo de um

automóvel ou um comboio em movimento, por exemplo, através da repetição

simultânea de formas. Na literatura, a expressão do movimento passaria pela

dissolução das estruturas sintácticas e semânticas tradicionais, pela expressão

totalmente livre e pelo aproveitamento da palavra enquanto elemento sensível. Como

movimento, o futurismo desapareceu durante a I Guerra Mundial.

Em Portugal, expressões do movimento futurista integraram as primeiras incursões

modernistas no país, contemporâneas da revista Orpheu. Estreitamente ligado ao

futurismo esteve o sensacionismo, de Fernando Pessoa. Almada Negreiros (Manifesto

Anti-Dantas) e Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa («Ode Triunfal»,

«Ode Marítima») foram pioneiros no futurismo português, em que se integram também

alguns textos de Mário de Sá-Carneiro. A agitação provocada nos meios artísticos

académicos pelo movimento ficou marcada, em 1917, pela primeira conferência

futurista, no Teatro República. O apoio dado ao movimento por José de Almada

Negreiros, que se autodesignou como «poeta futurista», era já evidente nessa

conferência, com o seu Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX,

publicado no único número do Portugal Futurista (1917), órgão do movimento. Nas

artes plásticas destacaram-se Santa-Rita Pintor e Amadeo de Souza Cardoso.

Portugal Futurista

• Época Contemporânea I

Revista modernista da qual se publicou um número único em 1917. Foi publicada em

Lisboa sob a direcção de Carlos Filipe Porfírio, que pretendia que a revista fosse o

porta-voz do movimento futurista português, que com ela despontava. Nesse número

vinham incluídos um artigo e o «Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do

Século XX», da autoria de Almada Negreiros, um ensaio e um manifesto de Marinetti,

o «Manifeste des Peintres Futuristes», da autoria de cinco pintores italianos, o

«Ultimatum» de Álvaro de Campos, os poemas «Episódios» e «Ficções» de Fernando

Pessoa, e poemas de Mário de Sá-Carneiro e Guillaume Apollinaire. A revista Portugal

Futurista foi apreendida à saída da tipografia

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Orpheu

• Época Contemporânea I

Revista literária portuguesa de que saíram dois números, em Março e em Junho de

1915. Constituiu um marco fundamental na história da literatura portuguesa, devendo-

se-lhe a introdução do movimento modernista. Nela colaboraram Luís de Montalvor,

Mário de Sá-Carneiro, Ronald de Carvalho, Almada Negreiros, Fernando Pessoa

(ortónimo e Álvaro de Campos) e Ângelo de Lima, entre outros. Entre os textos

publicados, contam-se poemas célebres de Pessoa, como «Ode Triunfal», e «Chuva

Oblíqua», e «Manicure», de Mário de Sá-Carneiro.

A revista respondia ao desejo deste grupo de artistas, influenciados pelo

cosmopolitismo e pelas vanguardas europeias, de escandalizar a sociedade burguesa,

agitando o meio cultural português — o que foi conseguido, tornando-se os autores

objecto da troça geral. O terceiro número da revista, embora já impresso, acabou por

não ser publicado. Na esteira da Orpheu estiveram outras revistas ligadas ao

modernismo, como a Centauro (1916) e a Portugal Futurista (1917), inaugurando a

Presença (1927) um segundo ciclo do modernismo em Portugal.

Negreiros, José Sobral de Almada

(1893 - 1970)

Artista plástico e escritor português, natural de São Tomé e Príncipe, onde o pai era

administrador do concelho da cidade. Estudou no colégio jesuíta de Campolide, para

onde entrou em 1900, aos sete anos de idade, após a morte prematura da mãe, em

1896, e a partida definitiva do pai para Paris nesse mesmo ano. Aí realizou os jornais

manuscritos República, Mundo e Pátria. Após o encerramento do colégio frequentou,

entre 1910 e 1911, o liceu de Coimbra, de onde passou para a Escola Nacional de

Belas-Artes, em Lisboa. Em 1915, integrado no grupo Orpheu, centrou a sua polémica

ideológica numa crítica cerrada a uma geração e a um país que se deixava

representar por uma figura como Júlio Dantas. Mostrando-se convicto de que

«Portugal há-de abrir os olhos um dia», lançou, em 1917, um Ultimatum Futurista às

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Gerações Portuguesas do Século XX, precavendo-as contra a «decadência nacional»,

em que a «indiferença absorveu o patriotismo».

Entre 1919 e 1920 retomou os estudos de pintura em Paris, onde criou a sua

característica assinatura, com o «d» do seu nome a elevar-se, marcando a sua

individualidade. De regresso a Lisboa, adquiriu uma serenidade bem expressa na sua

afirmação de que «entre mim e a vida não há mal entendidos». Mas, em 1927, de

novo desgostoso com a falta de abertura do país às novas correntes ideológicas e

culturais, foi para Madrid. Aí, como já antes o fizera em Lisboa, a par da sua actividade

nas artes plásticas, colaborou com a imprensa. Com o agravamento da crise

económica e social espanhola, após a proclamação da República, Almada regressou a

Lisboa, em Abril de 1932. À consciência nacional que Paris lhe trouxera acrescentou

agora uma «consciência ibérica culturalmente definida por valores líricos de uma certa

lusitaneidade». Em 1934, casou com a pintora Sara Afonso.

Almada Negreiros, conhecido como «Mestre Almada», colaborou nas revistas de

vanguarda Orpheu (de que foi co-fundador), Contemporânea, Athena, Portugal

Futurista e Sudoeste (que dirigiu). Participou em exposições de arte, nomeadamente

na I Exposição dos Humoristas Portugueses (1911), a primeira do modernismo

nacional. Como artista plástico, são de realçar os seus murais na gare marítima de

Lisboa, os trabalhos para a Igreja de Nossa Senhora de Fátima (mosaico e pintura) e o

célebre retrato de Fernando Pessoa. Pintor do advento do cubismo, a sua actividade

artística estendeu-se ainda à tapeçaria, à decoração e ao bailado.

Como escritor, publicou peças de teatro (Antes de Começar, 1919; Pierrot e Arlequim,

1924; e Deseja-se Mulher, 1928); o romance Nome de Guerra (escrito em 1925, mas

publicado apenas em 1938, é considerado um dos romances fundamentais do século

XX português e o primeiro em que se manifesta já a arte modernista); os poemas

Meninos de Olhos de Gigante (1921), A Cena do Ódio (escrito em 1915 durante a

Revolução de Maio contra a ditadura de Pimenta de Castro e publicado apenas em

1923, consiste numa descrição violenta do Portugal da época, em que se exprime uma

dialéctica de amor-ódio que seria a tónica dominante das relações do artista com a

pátria), As Quatro Manhãs (1935) e Começar (1969); e uma série de textos de crítica e

polémica, dispersos pelas publicações em que colaborava. De entre estes, destacam-

se o Manifesto Anti-Dantas (1915), verdadeiro libelo de reacção ao ambiente cultural

estagnado e academizante da época, o Manifesto (1916), o Ultimatum Futurista às

Gerações Portuguesas (1917) e A Invenção do Dia Claro (1921), conferência sob a

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forma de poema. A sua obra representa uma síntese, única na sua geração, das

tendências modernistas e futuristas de então, não apenas por, como artista, ser

multifacetado, mas também pela sua capacidade de fusão e conjugação, nas letras e

na pintura, das vertentes plástica, gráfica e poética. Em 1970 e 1988, foram publicadas

duas edições de Obras Completas de Almada Negreiros, comemorando a última o

centenário do autor.

Artista da novidade e da provocação, em demanda de «uma pátria portuguesa do

século XX», atento à busca de uma unanimidade universal e profundamente marcado

pela herança e o sentido da civilização europeia, foi uma das grandes figuras da

cultura portuguesa do século XX. Artisticamente activo ao longo de toda a sua vida, o

seu valor foi reconhecido por inúmeros prémios.

Pessoa, Fernando António Nogueira(1888 - 1935)

Escritor português, nasceu a 13 de Junho, numa casa do Largo de São Carlos, em

Lisboa. Aos cinco anos morreu-lhe o pai, vitimado pela tuberculose, e, no ano

seguinte, o irmão, Jorge. Devido ao segundo casamento da mãe, em 1896, com o

cônsul português em Durban, na África do Sul, viveu nesse país entre 1895 e 1905, aí

seguindo, no Liceu de Durban, os estudos secundários.

Frequentou, durante um ano, uma escola comercial e a Durban High School e

concluiu, ainda, o «Intermediate Examination in Arts», na Universidade do Cabo (onde

obteve o «Queen Victoria Memorial Prize», pelo melhor ensaio de estilo inglês), com

que terminou os seus estudos na África do Sul. No tempo em que viveu neste país,

passou um ano de férias (entre 1901 e 1902), em Portugal, tendo residido em Lisboa e

viajado para Tavira, para contactar com a família paterna, e para a Ilha Terceira, onde

vivia a família materna. Já nesse tempo redigiu, sozinho, vários jornais, assinados com

diferentes nomes.

De regresso definitivo a Lisboa, em 1905, frequentou, por um período breve (1906-

1907), o Curso Superior de Letras. Após uma tentativa falhada de montar uma

tipografia e editora, «Empresa Íbis — Tipográfica e Editora», dedicou-se, a partir de

1908, e a tempo parcial, à tradução de correspondência estrangeira de várias casas

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comerciais, sendo o restante tempo dedicado à escrita e ao estudo de filosofia (grega

e alemã), ciências humanas e políticas, teosofia e literatura moderna, que assim

acrescentava à sua formação cultural anglo-saxónica, determinante na sua

personalidade.

Em 1920, ano em que a mãe, viúva, regressou a Portugal com os irmãos e em que

Fernando Pessoa foi viver de novo com a família, iniciou uma relação sentimental com

Ophélia Queiroz (interrompida nesse mesmo ano e retomada, para rápida e

definitivamente terminar, em 1929) testemunhada pelas Cartas de Amor de Pessoa,

organizadas e anotadas por David Mourão-Ferreira, e editadas em 1978. Em 1925,

ocorreria a morte da mãe. Fernando Pessoa viria a morrer uma década depois, a 30

de Novembro de 1935 no Hospital de S. Luís dos Franceses, onde foi internado com

uma cólica hepática, causada provavelmente pelo consumo excessivo de álcool.

Levando uma vida relativamente apagada, movimentando-se num círculo restrito de

amigos que frequentavam as tertúlias intelectuais dos cafés da capital, envolveu-se

nas discussões literárias e até políticas da época. Colaborou na revista A Águia, da

Renascença Portuguesa, com artigos de crítica literária sobre a nova poesia

portuguesa, imbuídos de um sebastianismo animado pela crença no surgimento de um

grande poeta nacional, o «super-Camões» (ele próprio?). Data de 1913 a publicação

de «Impressões do Crepúsculo» (poema tomado como exemplo de uma nova

corrente, o Paùlismo, designação advinda da primeira palavra do poema) e de 1914 o

aparecimento dos seus três principais heterónimos, segundo indicação do próprio

Fernando Pessoa, em carta dirigida a Adolfo Casais Monteiro, sobre a origem destes.

Em 1915, com Mário de Sá-Carneiro (seu dilecto amigo, com o qual trocou intensa

correspondência e cujas crises acompanhou de perto), Luís de Montalvor e outros

poetas e artistas plásticos com os quais formou o grupo «Orpheu», lançou a revista

Orpheu, marco do modernismo português, onde publicou, no primeiro número, Opiário

e Ode Triunfal, de Campos, e O Marinheiro, de Pessoa ortónimo, e, no segundo,

Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa ortónimo, e a Ode Marítima, de Campos.

Publicou, ainda em vida, Antinous (1918), 35 Sonnets (1918), e três séries de English

Poems (publicados, em 1921, na editora Olisipo, fundada por si). Em 1934, concorreu

com Mensagem a um prémio da Secretaria de Propaganda Nacional, que conquistou

na categoria B, devido à reduzida extensão do livro. Colaborou ainda nas revistas

Exílio (1916), Portugal Futurista (1917), Contemporânea (1922-1926, de que foi co-

director e onde publicou O Banqueiro Anarquista, conto de raciocínio e dedução, e o

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poema Mar Português), Athena (1924-1925, igualmente como co-director e onde

foram publicadas algumas odes de Ricardo Reis e excertos de poemas de Alberto

Caeiro) e Presença.

A sua obra, que permaneceu maioritariamente inédita, foi difundida e valorizada pelo

grupo da Presença. A partir de 1943, Luís de Montalvor deu início à edição das obras

completas de Fernando Pessoa, abrangendo os textos em poesia dos heterónimos e

de Pessoa ortónimo. Foram ainda sucessivamente editados escritos seus sobre temas

de doutrina e crítica literárias, filosofia, política e páginas íntimas. Entre estes, contam-

se a organização dos volumes poéticos de Poesias (de Fernando Pessoa), Poemas

Dramáticos (de Fernando Pessoa), Poemas (de Alberto Caeiro), Poesias (de Álvaro de

Campos), Odes (de Ricardo Reis), Poesias Inéditas (de Fernando Pessoa, dois

volumes), Quadras ao Gosto Popular (de Fernando Pessoa), e os textos de prosa de

Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Páginas de Estética e de Teoria e Crítica

Literárias, Textos Filosóficos, Sobre Portugal — Introdução ao Problema Nacional, Da

República (1910-1935) e Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Do seu vasto

espólio foram também retirados o Livro do Desassossego por Bernardo Soares e uma

série de outros textos.

A questão humana dos heterónimos, tanto ou mais que a questão puramente literária,

tem atraído as atenções gerais. Concebidos como individualidades distintas da do

autor, este criou-lhes uma biografia e até um horóscopo próprios. Encontram-se

ligados a alguns dos problemas centrais da sua obra: a unidade ou a pluralidade do

eu, a sinceridade, a noção de realidade e a estranheza da existência. Traduzem, por

assim dizer, a consciência da fragmentação do eu, reduzindo o eu «real» de Pessoa a

um papel que não é maior que o de qualquer um dos seus heterónimos na existência

literária do poeta. Assim questiona Pessoa o conceito metafísico de tradição romântica

da unidade do sujeito e da sinceridade da expressão da sua emotividade através da

linguagem. Enveredando por vários fingimentos, que aprofundam uma teia de

polémicas entre si, opondo-se e completando-se, os heterónimos são a mentalização

de certas emoções e perspectivas, a sua representação irónica pela inteligência. Deles

se destacam três: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.

Segundo a carta de Fernando Pessoa sobre a génese dos seus heterónimos, Caeiro

(1885-1915) é o Mestre, inclusive do próprio Pessoa ortónimo. Nasceu em Lisboa e aí

morreu, tuberculoso, em 1915, embora a maior parte da sua vida tenha decorrido

numa quinta no Ribatejo, onde foram escritos quase todos os seus poemas, os do livro

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O Guardador de Rebanhos, os de O Pastor Amoroso e os Poemas Inconjuntos, sendo

os do último período da sua vida escritos em Lisboa, quando se encontrava já

gravemente doente (daí, segundo Pessoa, a «novidade um pouco estranha ao

carácter geral da obra»). Sem profissão e pouco instruído (teria apenas a instrução

primária), e, por isso, «escrevendo mal o português», órfão desde muito cedo, vivia de

pequenos rendimentos, com uma tia-avó. Caeiro era, segundo ele próprio, «o único

poeta da natureza», procurando viver a exterioridade das sensações e recusando a

metafísica, caracterizando-se pelo seu panteísmo e sensacionismo que, de modo

diferente, Álvaro de Campos e Ricardo Reis iriam assimilar.

Ricardo Reis nasceu no Porto, em 1887. Foi educado num colégio de jesuítas,

recebeu uma educação clássica (latina) e estudou, por vontade própria, o helenismo

(sendo Horácio o seu modelo literário). Essa formação clássica reflecte-se, quer a

nível formal (odes à maneira clássica), quer a nível dos temas por si tratados e da

própria linguagem utilizada, com um purismo que Pessoa considerava exagerado.

Médico, não exercia, no entanto, a profissão. De convicções monárquicas, emigrou

para o Brasil após a implantação da República. Pagão intelectual, lúcido e consciente,

reflectia uma moral estoico-epicurista, misto de altivez resignada e gozo dos prazeres

que o não comprometessem na sua liberdade interior, e que é a resposta possível do

homem à dureza ou ao desprezo dos deuses e à efemeridade da vida.

Álvaro de Campos, nascido em Tavira em 1890, era um homem viajado. Depois de

uma educação vulgar de liceu formou-se em engenharia mecânica e naval na Escócia

e, numas férias, fez uma viagem ao Oriente, de que resultou o poema Opiário. Viveu

depois em Lisboa, sem exercer a sua profissão. Dedicou-se à literatura, intervindo em

polémicas literárias e políticas. É da sua autoria o Ultimatum, publicado no Portugal

Futurista, manifesto contra os literatos instalados da época. Apesar dos pontos de

contacto entre ambos, travou com Pessoa ortónimo uma polémica aberta. Protótipo do

vanguardismo modernista, é o cantor da energia bruta e da velocidade, da vertigem

agressiva do progresso, de que a Ode Triunfal é um dos melhores exemplos,

evoluindo depois no sentido de um tédio, de um desencanto e de um cansaço da vida,

progressivos e auto-irónicos.

De entre outros, de menor expressão, destaca-se ainda o semi-heterónimo Bernardo

Soares, ajudante de guarda-livros que sempre viveu sozinho em Lisboa e revela, no

seu Livro do Desassossego, uma lucidez extrema na análise e na capacidade de

exploração da alma humana.

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Quanto a Fernando Pessoa ortónimo, segue, formalmente, os modelos da poesia

tradicional portuguesa, em textos de grande suavidade rítmica e musical. Poeta

introvertido e meditativo, anti-sentimental, reflecte inquietações e estranhezas que

questionam os limites da realidade da sua existência e do mundo. O poema

Mensagem, exaltação sebastiânica que se cruza com um certo desalento, numa

expectativa ansiosa de ressurgimento nacional, revela uma faceta esotérica e mística

do poeta, manifestada também nas suas incursões pelas ciências ocultas e pelo rosa-

crucianismo.

Figura cimeira da literatura portuguesa e da poesia europeia do século XX, se o seu

virtuosismo é, sobretudo inicialmente, uma forma de abalar a sociedade e a literatura

burguesas decrépitas (nomeadamente através dos seus «ismos»: Paùlismo,

Interseccionismo, sensacionismo), ele fundamenta a resposta revolucionária à

concepção romântica, sentimentalmente metafísica, da literatura. O apagamento da

sua vida pessoal não obviou ao exercício activo da crítica e da polémica em vida, e

sobretudo a uma grande influência na literatura portuguesa do século XX.

Existe presentemente, em Lisboa, a Casa Fernando Pessoa, instalada na última

morada do autor.

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FERNANDO PESSOA ORTÓNIMO

Características temáticas

• Identidade perdida (“Quem me dirá sou?”) e incapacidade de auto-definição

(“Gato que brincas na rua (...)/ Todo o nada que és é teu./ Eu vejo-me e estou sem

mim./ Conhece-me e não sou eu.”)

• Consciência do absurdo da existência

• Recusa da realidade, enquanto aparência (“Há entre mim e o real um véu/à própria

concepção impenetrável”)

• Tensão sinceridade/fingimento, consciência/inconsciência

• Oposição sentir/pensar, pensamento/vontade, esperança/desilusão

• Anti-sentimentalismo: intelectualização da emoção (“Eu simplesmente sinto/

Com a imaginação./ Não uso o coração.” – Isto)

• Estados negativos: egotismo, solidão, cepticismo, tédio, angústia, cansaço,

náusea, desespero

• Inquietação metafísica, dor de viver

• Neoplatonismo

• Tentativa de superação da dor, do presente, etc., através de:- evocação da infância, idade de ouro, onde a felicidade ficou perdida e onde

não existia o doloroso sentir: “Com que ânsia tão raiva/ Quero aquele outrora!” –

“Pobre velha música”

- refúgio no sonho, na música e na noite

- ocultismo (correspondência entre o visível e o invisível)

- criação dos heterónimos (“Sê plural como o Universo!”)

• Intuição de um destino colectivo e épico para o seu País (Mensagem)

• Renovador de mitos

• Parte de uma percepção da realidade exterior para uma atitude reflexiva (constrói

uma analogia entre as duas realidades transmitidas: a visão do mundo exterior é

fabricada em função do sentimento interior)

• Reflexão sobre o problema do tempo como vivência e como factor de fragmentação

do “eu”

• A vida é sentida como uma cadeia de instantes que uns aos outros se vão

sucedendo, sem qualquer relação entre eles, provocando no poeta o sentimento da

fragmentação e da falta de identidade

• O presente é o único tempo por ele experimentado (em cada momento se é diferente

do que se foi)

• O passado não existe numa relação de continuidade com o presente

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• Tem uma visão negativa e pessimista da existência; o futuro aumentará a sua

angústia porque é o resultado de sucessivos presentes carregados denegatividade

Características estilísticas

• A simplicidade formal; rimas externas e internas; redondilha maior (gosto pelo

popular) que dá uma ideia de simplicidade e espontaneidade

• Grande sensibilidade musical:

- eufonia – harmonia de sons

- aliterações, encavalgamentos, transportes, rimas, ritmo

- verso geralmente curto (2 a 7 sílabas)

- predomínio da quadra e da quintilha

• Adjectivação expressiva

• Economia de meios:

- Linguagem sóbria e nobre – equilíbrio clássico

• Pontuação emotiva

• Uso frequente de frases nominais

• Associações inesperadas [por vezes desvios sintácticos – enálage (“Pobre velha

música”)]

• Comparações, metáforas originais, oxímoros

• Uso de símbolos

• Reaproveitamento de símbolos tradicionais (água, rio, mar...)

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Fernando Pessoa

- Coexistem 2 correntes: - Tradicional: continuidade do lirismo português (saudosismo)

- Modernista: processo de ruptura - heterónimos- Pessoa ortónimo (simbolismo,Paùlismo, Interseccionismo)

Ortónimo

Poesia:

- Escreve: - Mensagem – ocultismo - Lírica simples e tradicional – desencanto e melancolia

- Características: - dor de pensar - Angústia existencial - Nostalgia - Desilusão - Visão negativa do mundo e da vida - Solidão interior - Inquietação perante o enigma indecifrável do mundo - Tédio - Falta de impulsos afectivos de quem já nada espera da vida - Obsessão de análise - Vagos acenos do inexplicável - Recordações da infância - Cepticismo

- Estilo e Linguagem: - preferência pela métrica curta - Linguagem simples, espontânea, mas sóbria - Pontuação (diversidade) - Gosto pelo popular (quadra) - Métrica tradicional: redondilha (7) - MusicalidadeTemas

Sinceridade/fingimento- Intelectualização do sentimento para exprimir a arte -> poeta fingidor

- despersonalização do poeta fingidor que fala e que se identifica com a própriacriação poética

- uso da ironia para pôr tudo em causa, inclusive a própria sinceridade - Crítica de sinceridade ou teoria do fingimento está bem patente na união decontrários - Mentira: linguagem ideal da alma, pois usamos as palavras para traduziremoções e pensamentos (incomunicável)

Consciência/inconsciência - Aumento da autoconsciência humana (despersonalização) - tentativa de resposta a várias inquietações que perturbam o poeta

Sentir/pensar - concilia o pensar e o sentir

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- nega o que as suas percepções lhe transmitem - recusa o mundo sensível, privilegiando o mundo inteligível

- Fragmentação do eu à Interseccionismo entre o material e o sonho; arealidade e a idealidade; realidades psíquicas e físicas; interiores e exteriores;sonhos e paisagens reais; espiritual e material; tempos e espaços;horizontalidade e verticalidade.

O tempo e a degradação: o regresso à infância - desencanto e angústia acompanham o sentido da brevidade da vida e dapassagem dos dias - busca múltiplas emoções e abraça sonhos impossíveis, mas acaba “semalegria nem aspirações”, inquieto, só e ansioso. - o passado pesa “como a realidade de nada” e o futuro “como a possibilidadede tudo”. O tempo é para ele um factor de desagregação na medida em que tudo ébreve e efémero. - procura superar a angústia existencial através da evocação da infância e desaudade desse tempo feliz.

Poemas:

- “Meu coração é 1 pórtico partido” - fragmentação do “eu”

- “Hora Absurda” - fragmentação do “eu” - Interseccionismo

- “Chuva Oblíqua” - fragmentação do “eu”: o sujeito poético revela-se duplo, nabusca de sensações que lhe permitem antever a felicidadeansiada, mas inacessível.- Interseccionismo impressionista: recria vivências que seinterseccionam com outras que, por sua vez, dão origem anovas combinações de realidade/idealidade.

- “Autopsicografia” - dialéctica entre o eu do escritor e o eu poético, personalidadefictícia e criadora.- criação de 1 personalidade livre nos seus sentidos e emoções<> sinceridade de sentimentos- o poeta codifica o poema q o receptor descodifica à suamaneira, sem necessidade de encontrar a pessoa real doescritor- o acto poético apenas comunica 1 dor fingida, pois a dor realcontinua no sujeito que tenta 1 representação.- os leitores tendem a considerar uma dor que não é sua, masque apreendem de acordo com a sua experiência de dor.- A dor surge em 3 níveis: a dor real, a dor fingida e a “dor lida”

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Heteronímia

Processo literário em que um autor escreve encarnando personalidades fictícias querepresentam a pluralidade da sua mundividência. Na literatura portuguesa osheterónimos mais conhecidos são os de Fernando Pessoa, nomeadamente AlbertoCaeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Bernardo Soares.

ALBERTO CAEIRO – O MESTRE INGÉNUO

Para Caeiro fazer poesia é uma atitude involuntária, espontânea, pois vive nopresente, não querendo saber de outros tempos, e de impressões, sobretudo visuais,e porque recusa a introspecção, a subjectividade, sendo o poeta do real objectivo.

Caeiro canta o viver sem dor, o envelhecer sem angústia, o morrer sem desespero,o fazer coincidir o ser com o estar, o combate ao vício de pensar, o ser um ser uno, enão fragmentado.• Discurso poético de características oralizantes (de acordo com a simplicidade dasideias que apresenta): vocabulário corrente, simples, frases curtas, repetições, frasesinterrogativas, recurso a perguntas e respostas, reticências;• Apologia da visão como valor essencial (ciência de ver)• Relação de harmonia com a Natureza (poeta da natureza)• Rejeita o pensamento, os sentimentos, e a linguagem porque desvirtuam a realidade(a nostalgia, o anseio, o receio são emoções que perturbam a nitidez da visão de quedepende a clareza de espírito)

• Objectivismo- apagamento do sujeito- atitude antilírica- atenção à “eterna novidade do mundo”- integração e comunhão com a Natureza- poeta deambulatório

• Sensacionismo- poeta das sensações tal como elas são- poeta do olhar- predomínio das sensações visuais (“Vicomo um danado”) e das auditivas- o “Argonauta das sensaçõesverdadeiras”

• Anti-metafísico (“Há bastantemetafísica em não pensar em nada.”)- recusa do pensamento (“Pensar é estardoente dos olhos”)- recusa do mistério- recusa do misticismo

• Panteísmo Naturalista- tudo é Deus, as coisas são divinas(“Deus é as árvores e as flores/ E osmontes e o luar e o sol...”)- paganismo- desvalorização do tempo enquantocategoria conceptual (“Não quero incluir otempo no meu esquema”)- contradição entre “teoria” e “prática”

q CARACTERÍSTICAS ESTILÍSTICAS- Verso livre- Métrica irregular- Despreocupação a nível fónico- Pobreza lexical (linguagem simples,familiar)- Adjectivação objectiva

- Pontuação lógica- Predomínio do presente do indicativo- Frases simples- Predomínio da coordenação- Comparações simples- Raras metáforas

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ÁLVARO DE CAMPOS

q TRAÇOS DA SUA POÉTICA- poeta modernista- poeta sensacionista (odes)- cantor das cidades e do cosmopolitanismo (“Ode Triunfal”)- cantor da vida marítima em todas as suas dimensões (“Ode Marítima”)- cultor das sensações sem limite- poeta do verso torrencial e livre- poeta em que o tema do cansaço se torna fulcral- poeta da condição humana partilhada entre o nada da realidade e o tudo dos sonhos(“Tabacaria”)- observador do quotidiano da cidade através do seu desencanto- poeta da angústia existencial e da auto-ironia-q 1ª FASE DE ÁLVARO DE CAMPOS – DECADENTISMO (“Opiário”, somente)- abulia, tédio de viver- procura de sensações novas- busca de evasão

q 2ª FASE DE ÁLVARO DE CAMPOS• Futurismo

- elogio da civilização industrial e da técnica (“Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-reterno!”, Ode Triunfal)- ruptura com o subjectivismo da lírica tradicional- atitude escandalosa: transgressão da moral estabelecida

• Sensacionismo- vivência em excesso das sensações (“Sentir tudo de todas as maneiras” –afastamento de Caeiro)- sadismo e masoquismo (“Rasgar-me todo, abrir-me completamente,/ tornar-mepassento/ A todos os perfumes de óleos e calores e carvões...”, Ode Triunfal)- cantor lúcido do mundo moderno

q 3ª FASE DE ÁLVARO DE CAMPOS – PESSIMISMO- dissolução do “eu”- a dor de pensar- conflito entre a realidade e o poeta- cansaço, tédio, abulia- angústia existencial- solidão- nostalgia da infância irremediavelmente perdida (“Raiva de não ter trazido o passadoroubado na algibeira!”, Aniversário)

q TRAÇOS ESTILÍSTICOS- verso livre, em geral, muito longo- assonâncias, onomatopeias (por vezes ousadas), aliterações (por vezes ousadas)- grafismos expressivos- mistura de níveis de língua- enumerações excessivas, exclamações, interjeições, pontuação emotiva- desvios sintácticos- estrangeirismos, neologismos- subordinação de fonemas

“E afinal o que quero é fé, é calma/ E não terestas sensações confusas.”“E eu vou buscar o ópio que consola.”

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RICARDO REIS – O POETA DA RAZÃO

A filosofia de Reis rege-se pelo ideal “Carpe Diem” – a sabedoria consiste em saber-se aproveitar o presente, porque se sabe que a vida é breve. Há que noscontentarmos com o que o destino nos trouxe. Há que viver com moderação, sem nosapegarmos às coisas, e por isso as paixões devem ser comedidas, para que a hora damorte não seja demasiado dolorosa.

- A concepção dos deuses como um ideal humano- As referências aos deuses da Antiguidade (neo-paganismo) greco-latina são umaforma de referir a primazia do corpo, das formas, da natureza, dos aspectos exteriores,da realidade, sem cuidar da subjectividade ou da interioridade - ensinamentos deCaeiro, o mestre de todos os heterónimos- A recusa de envolvimento nas coisas do mundo e dos homens-

• Epicurismo- busca da felicidade relativa- moderação nos prazeres- fuga à dor- ataraxia (tranquilidade capaz de evitar aperturbação)

• Estoicismo- aceitação das leis do destino (“... a vida/passa e não fica, nada deixa e nuncaregressa.”)- indiferença face às paixões e à dor- abdicação de lutar- autodisciplina

• Horacianismo- carpe diem: vive o momento- aurea mediocritas: a felicidade possívelno sossego do campo (proximidade deCaeiro)

• Paganismo- crença nos deuses- crença na civilização da Grécia- sente-se um “estrangeiro” fora da suapátria, a Grécia

• Culto do Belo, como forma de superar aefemeridade dos bens e a miséria da vida• Intelectualização das emoções• Medo da morte• Quase ausência de erotismo, emcontraste com o seu mestre Horácio

• Neoclassicismo- poesia construída com base em ideiaselevada- Odes (forma métrica por excelência)

q CARACTERÍSTICAS ESTILÍSTICAS

- Submissão da expressão ao conteúdo: auma ideia perfeita corresponde umaexpressão perfeita- Estrofes regulares de verso decassílaboalternadas ou não com hexassílabo- Verso branco- Recurso frequente à assonância, à rimainterior e à aliteração- Predomínio da subordinação

- Uso frequente do hipérbato- Uso frequente do gerúndio e doimperativo- Uso de latinismos (astro, ínfero,insciente...)- Metáforas, eufemismos, comparações,imagens- Estilo construído com muito rigor e muitodenso

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Ricardo Reis

- Poeta clássico e epicurista

- Classicismo erudito: - precisão verbal - recurso à mitologia (crença e culto aos deuses) - princípios de moral e da estética epicurista e estóica - tranquila resignação ao destino

- Epicurismo: - prazer do momento - Carpe Diem (caminho da felicidade, alcançada pela indiferença àperturbação) - Não cede aos impulsos dos instintos - ataraxia (tranquilidade sem qualquer perturbação) - calma, ou pelo menos, a sua ilusão - ideal ético de apatia que permite a ausência da paixão e a liberdade

- Estoicismo: considera ser possível encontrar a felicidade desde que se viva emconformidade com as leis do destino que regem o mundo, permanecendo indiferenteaos males e às paixões, que são perturbações da razão

- Poeta Intelectual, sabe contemplar: ver intelectualmente a realidade

- Aceita a relatividade e a fugacidade das coisas

- verdadeira sabedoria da vida é viver de forma equilibrada e serena

- Características modernas no poeta: angústia e tristeza

- Linguagem e estilo: - privilegia a ode, o epigrama e a elegia. - usa a inversão da ordem lógica, favorecendo o ritmo das suas ideiasdisciplinadas - estilo densamente trabalhado, de sintaxe alatinada, hipérbatos,apóstrofes, metáforas, comparações, gerúndio e imperativo. - verso irregular e decassilábico

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Fernando Pessoa Ortónimo e a Heteronímia

Ricardo Reis

- epicurismo: carpe diem edisciplina estóica

- indiferença céptica; ataraxia

- semipaganismo; classicismo

- vive o drama da fugacidadeda vida e da fatalidade damorte

FERNANDOPESSOA

Despersonalização

DissimulaçãoFragmentação

Fingimento

Alberto Caeiro

- paganista existencial- poeta da Natureza e dasimplicidade- interpreta o mundo a partirdos sentidos- interessa-lhe a realidadeimediata e o real objectivoque as sensações lheoferecem- nega a utilidade dopensamento; é antimetafísico

Álvaro de Campos

- decadentismo: o tédio, ocansaço e a necessidade denovas sensações- futurismo e sensacionismo:exaltação da força, daviolência, do excesso;apologia da civilizaçãoindustrial; intensidade evelocidade ( a euforiadesmedida)- intimismo: a depressão, ocansaço e a melancoliaperante a incapacidade dasrealizações; as saudades dainfância

Pessoa Ortónimo

- tensão sinceridade/fingimento consciência/inconsciência sentir/pensar

- intelectualização dossentimentos

- Interseccionismo entre omaterial e o sonho, arealidade e a idealidade

- uma explicação através doocultismo