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Limite. ISSN: 1888-4067 nº 4, 2010, pp. 119-139 Português L2 / L1: compreensão na leitura Carolina Gonçalves / Otília Costa e Sousa Escola Superior de Educação de Lisboa [email protected] / [email protected] Data de aceitação: 06-09-2010 Resumo Este texto resulta de um estudo que pretendia avaliar comparativamente a compreensão na leitura de alunos de ascendência africana e de alunos lusos, em final de escolaridade obrigatória, em Portugal. Para recolha e análise dos dados, aplicou- se um teste de língua a um universo de 170 alunos, metade de ascendência africana e metade de ascendência lusa a frequentar escolas da periferia de Lisboa. Os resultados parecem sugerir que ambas as populações têm dificuldades ao nível desta competência. Dos resultados pode inferir-se que as condições socioeconómicas parecem ser mais importantes do que a condição linguística, no que diz respeito ao desenvolvimento da compreensão leitora. Palavras-chave: compreensão na leitura – língua materna – língua segunda Abstract This paper examines the reading comprehension skills of 170 9 th - grade Portuguese students. Half of these students are of African descent and the other half come from Portuguese families. All are from low-income families and attending the final year of compulsory education at Portuguese schools on the outskirts of Lisbon. Applying a part of the PISA 2000 test, results showed that the groups were not significantly different and that all subjects featured low levels of reading comprehension. From the results, it can be inferred that socioeconomic background is the most important issue regarding reading comprehension. Keywords: reading comprehension – mother tongue – second language

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Limite. ISSN: 1888-4067 nº 4, 2010, pp. 119-139

Português L2 / L1: compreensão na leitura

Carolina Gonçalves / Otília Costa e Sousa Escola Superior de Educação de Lisboa

[email protected] / [email protected] Data de aceitação: 06-09-2010

Resumo

Este texto resulta de um estudo que pretendia avaliar comparativamente a compreensão na leitura de alunos de ascendência africana e de alunos lusos, em final de escolaridade obrigatória, em Portugal. Para recolha e análise dos dados, aplicou-se um teste de língua a um universo de 170 alunos, metade de ascendência africana e metade de ascendência lusa a frequentar escolas da periferia de Lisboa. Os resultados parecem sugerir que ambas as populações têm dificuldades ao nível desta competência. Dos resultados pode inferir-se que as condições socioeconómicas parecem ser mais importantes do que a condição linguística, no que diz respeito ao desenvolvimento da compreensão leitora.

Palavras-chave: compreensão na leitura – língua materna – língua segunda

Abstract

This paper examines the reading comprehension skills of 170 9th-grade Portuguese students. Half of these students are of African descent and the other half come from Portuguese families. All are from low-income families and attending the final year of compulsory education at Portuguese schools on the outskirts of Lisbon. Applying a part of the PISA 2000 test, results showed that the groups were not significantly different and that all subjects featured low levels of reading comprehension. From the results, it can be inferred that socioeconomic background is the most important issue regarding reading comprehension.

Keywords: reading comprehension – mother tongue – second language

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Introdução

O estudo apresentado é parte de uma investigação mais vasta que pretende estudar comparativamente as representações sobre a escola e as competências de leitura e de escrita de alunos portugueses e de alunos de ascendência africana a terminar o ensino básico (9.º ano). Os sujeitos são oriundos de classes desfavorecidas, frequentando a mesma escola pública de bairro.

Neste trabalho apresentam-se os resultados relativos à compreensão de leitura de alunos que têm o português como língua materna (L1) e de alunos que têm o português como língua segunda (L2). O teste incidia na compreensão de um texto informativo sobre a morte de um jovem vítima de bullying, retirado da prova PISA (2000).

É consensual que a proficiência linguística na língua de escolarização é um factor fundamental na compreensão da leitura. Segundo Hirsch (2006), o desenvolvimento da competência de leitura é inseparável do desenvolvimento geral da linguagem e do conhecimento. Um bom desenvolvimento linguístico e um bom conhecimento do mundo permitem à criança continuar a aprender com qualidade. De acordo com o autor (ibidem: 34-35), é no ensino inicial da língua que o efeito Mateus começa a ganhar forma. As crianças que sabem muitas palavras e que possuem conhecimento do mundo que lhes permite compreendê-las continuam a adquirir mais palavras e mais conhecimento do mundo, enquanto os que têm um léxico mais reduzido no início da escolarização vão ficando cada vez mais para trás à medida que os anos vão passando. Também Chall e Jacobs (2003) enfatizam a relação entre desenvolvimento da linguagem (nomeadamente vocabulário), meio social de origem e compreensão leitora. A mesma relação entre bons resultados em leitura e meio sociocultural é reconhecida no relatório PISA 2006, que aponta que os alunos oriundos de contextos familiares mais favoráveis tendem a alcançar melhores resultados no PISA.

Questões de leitura

A finalidade da leitura é a compreensão (Chall 1983; Colomer 1999; Costa 1992; Giasson 2000; Morais 1997). Uma proficiência linguística limitada na língua de escolarização será um entrave para

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aceder aos sentidos dos textos. A competência de leitura assenta num conjunto de competências: competência gramatical, sociolinguística, discursiva e estratégica (Gascoigne 2005). São apontados como entraves à compreensão uma deficiente descodificação automática, falta de fluência, desconhecimento de léxico, incapacidade para inferir sentidos (Araújo 2007: 11). Ainda que a competência de leitura em L1 partilhe elementos básicos com a leitura em L2 ou em língua estrangeira, há também diferenças nos processos. Uma das questões reside em saber se a L1 e a L2 desencadeiam processos cognitivos paralelos ou se as estratégias de processamento implicam ambas as línguas (Singhal 1998).

Como já afirmámos, para além da proficiência linguística, o meio de origem dos alunos é uma variável a ter em conta. O relatório PISA 2006 reconhece que em todos os países os alunos com contextos familiares mais favoráveis tendem a alcançar melhores resultados na avaliação. Em Portugal, os resultados da avaliação da competência de leitura, através do PISA, são além disso influenciados pelo tipo de texto. Os alunos portugueses, em geral, situam-se acima da média europeia quando lêem textos narrativos e bastante abaixo quando se trata de compreender textos informativos (PISA 2001, 2007). Para Giasson (2000: 163) «(...) os alunos têm mais dificuldades em compreender os textos informativos do que os narrativos (...)», porque estes contêm, a maior parte das vezes, conteúdo não-familiar, novos conceitos, frases longas e estruturas sintácticas demasiado complexas. Em Portugal, tal pode dever-se também ao facto de o texto narrativo ser o tipo de texto mais trabalhado em sala de aula (Sousa e Silva 2003).

Estudo empírico

Este trabalho avalia a compreensão de leitura de alunos de ascendência africana e de alunos lusos, em final da escolaridade obrigatória. Apesar de não ser possível tecer generalizações, pretende-se, com esta recolha de dados, em primeiro lugar, traçar um diagnóstico ao nível desta competência nos dois grupos.

Vários estudos têm confirmado a hipótese de que o sucesso escolar dos alunos, em particular daqueles para quem a língua de escolarização não é a sua língua materna, está estreitamente ligado ao domínio da língua de escolarização (Bialystok 1991; Villas-Boas 1999; Bautier 2001; Terrise 2006; Duranleau 2008). Acresce a este

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domínio, a habilidade no domínio da leitura e no domínio da escrita, na medida em que se apresentam como competências basilares para a realização de todas as aprendizagens e, como tal, são fundamentais no sucesso académico. Por isso, neste estudo, optou-se por dar robustez à avaliação das dificuldades linguísticas já apresentadas por estes alunos no estudo realizado por Gonçalves (2007), privilegiando-se a avaliação da compreensão de leitura por parte de alunos lusos cuja língua materna é o português e alunos de ascendência africana para quem, em muitos casos, o português é língua segunda.

Metodologia

Participantes

O estudo teve uma amostra composta por 170 jovens: 85 de ascendência africana e 85 alunos lusos. Os participantes frequentavam o 9.º ano de escolaridade do Ensino Básico em escolas da rede pública, situadas na periferia de Lisboa. Estas escolas, segundo dados do IESE (Instituto de Estudos Sociais e Económicos) (2005), apresentam elevadas percentagens de alunos que têm o português como língua não materna, provenientes dos PALOP, de países de Europa de Leste, da América do Sul e da Ásia. As escolas inserem-se em zonas de baixo nível socioeconómico.

Na análise das características dos sujeitos que compõem a amostra, verifica-se que, no grupo dos alunos lusos, 40 são do género feminino (47.1%) e 45 do género masculino (52.9%). No grupo dos alunos de ascendência africana, 48 são do género feminino (56.5%) e 37 do género masculino (43.5%). Esta diferença na distribuição não é estatisticamente significativa (teste de Fisher para verificação de diferenças).

Relativamente às idades, o grupo de alunos de origem portuguesa possui um valor médio de idade de 15.33 (DP=1.18) anos, enquanto o grupo de alunos de origem africana possui um valor médio de 16.22 (DP=1.28) anos. Esta diferença é estatisticamente significativa [t(168)=4.745; p=.000], revelando que os alunos do segundo grupo são, em média, mais velhos (cf. Quadro 1).

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Quadro 1: Médias (M) e desvios-padrão (DP) idade por grupo de ascendência (Teste t de Student para verificação das diferenças).

Ascendência N Média DP T P

Lusa 85 15.33 1.18 4.745 .000 Idade

Africana 85 16.22 1.28

Segundo os perfis linguísticos definidos pelo Ministério da Educação (Leiria et al. 2005), os alunos de ascendência africana caracterizam-se maioritariamente como «(...) alunos para quem a língua materna, a língua de comunicação com os seus pares e com a família, é geralmente um crioulo de base lexical portuguesa e, eventualmente, uma variedade do português».

Na auscultação das línguas faladas com as pessoas com quem vivem, todos os alunos de ascendência lusa assinalaram apenas o português, com excepção de dois que para além desta língua falavam igualmente o espanhol. Enquanto a maioria dos sujeitos de ascendência africana diz falar somente o português com as pessoas com quem vive (n=46; 54.8%), seguido do português e do crioulo (n=22; 26.2%) e do crioulo (n=13; 15.4%). Referidos apenas por 1 aluno (1.2%) encontram-se o angolano e português, o kimbundo e o português e o português e o inglês (cf. Quadro 2).

Quadro 2: Distribuição das línguas faladas pelos alunos de ascendência africana

Línguas faladas N %

Português 46 54.8

Crioulo/Português 22 26.2

Angolano/Português 1 1.2

Kimbundo/Português 1 1.2

Crioulo 13 15.4

Português/Inglês 1 1.2

Total 84 100.0

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Tendo em consideração não só os diferentes perfis linguísticos que relacionam a língua materna de cada aluno com o português — apresentados no documento de Orientação Nacional (Leiria et al., 2005: 5-6) —, mas também os resultados obtidos na aplicação do inquérito sociolinguístico, estes alunos caracterizam-se como pertencentes a três grandes grupos: (i) «alunos cujos pais têm o português como língua materna; faz parte deste grupo a maior parte dos filhos de portugueses e de brasileiros e de alguns africanos»; (ii) «alunos cujos pais são originários de um país africano em que o português é língua oficial e que têm como língua materna uma língua africana (na maior parte dos casos, uma língua ou línguas do grupo bantu); fazem parte deste grupo os filhos de angolanos e moçambicanos»; e (iii) «alunos cujos pais são originários de um país em que o Português é língua oficial e que têm como língua materna ou como língua veicular uma língua crioula de base lexical portuguesa; fazem parte deste grupo os filhos de cabo-verdianos, de guineenses e de são-tomenses».

O documento de Orientação Nacional (2005: 15-18), a partir dos perfis linguísticos traçados, estabelece cinco grandes grupos que requerem atitudes diferentes por parte da escola, enumerando-se aqui aqueles que abrangem os alunos da amostra: (i) «alunos para quem o PE (Português Europeu) ou o PB (Português Brasileiro) sempre foi língua materna, língua de comunicação com os seus pares e foi sempre língua da escola e da família», sendo esta a norma que qualquer jovem à saída da escola deve saber usar; (ii) «alunos para quem a língua materna, a língua de comunicação com os seus pares e com a família é geralmente um crioulo de base lexical portuguesa e, eventualmente, uma variedade não escolarizada do português». Estes alunos, fora da sala de aula, têm um contacto muito próximo com falantes de crioulo de base lexical portuguesa. Tendo em conta a proximidade destes dois sistemas, os alunos podem enfrentar algumas dificuldades para isolar o léxico e a gramática dos sistemas; e (iii) «alunos com um quadro linguístico complexo: a língua da primeira infância, de comunicação com os seus pares e com a família, é uma (ou mais do que uma) língua genética e tipologicamente afastada do português; em dado momento, esta pode ter sido abandonada e substituída por uma variedade não escolarizada do português». Fazem parte deste grupo, os alunos que, vivendo em contexto multilingue, passaram a usar com os seus pares uma variedade não escolarizada do português,

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podendo esta norma apresentar «graus de afastamento em relação à norma de referência». Estas crianças e jovens «podem não ter estabilizado e desenvolvido suficientemente uma gramática de uma outra língua, antes de terem adquirido esta variedade [norma] do português à qual poderão ter ficado expostos durante muito tempo». Grande parte deste grupo de jovens vive em condições socioeconómicas desfavorecidas e raramente tem acesso ao texto escrito antes da escola. Além do afastamento da cultura escrita, a variedade da língua que conhecem fica distante da variedade usada na escola, havendo dificuldades na compreensão desta (Gonçalves 2007).

Ainda que os sujeitos do estudo afirmem ter maioritariamente o português como língua materna, o grupo dos jovens de ascendência africana identifica a falta de proficiência nesta língua como um factor muito importante para a explicação do seu insucesso escolar (Gonçalves 2007).

Análise da avaliação da compreensão na leitura

As respostas dadas pelos alunos foram categorizadas seguindo a matriz proposta pelo PISA (2000). O teste apresentava quatro questões: duas de compreensão inferencial explicativa, uma de compreensão literal e uma de compreensão inferencial dedutiva (Tapia 2003; Araújo 2007).

Na análise da pergunta de compreensão inferencial explicativa, a partir da leitura do texto, os alunos teriam de inferir e explicar por que razão se menciona a morte de um jovem no artigo.

No quadro 3, apresentam-se os resultados da análise das respostas dadas pelos alunos à questão 1:

Quadro 3: Distribuição da compreensão inferencial explicativa (Teste de qui-quadrado para verificação de diferenças).

Compreensão leitora – Q1

Máximo Intermédio Zero Total Ascendência

N % N % N % N %

!2 P

Lusa 9 11.1 41 50.6 31 38.3 81 100.0

Africana 7 9.2 25 32.9 44 57.9 76 100.0

Total 16 10.2 66 42.0 75 47.8 157 100.0

6.229 .044

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Analisando as categorias das respostas dadas, verifica-se que 9% dos alunos de ascendência africana contra 11% de alunos lusos responderam totalmente correcto, obtendo a classificação Máximo. Para esta classificação ser considerada, os alunos teriam de desenvolver e interpretar, estando atentos aos elementos de coesão local e global. Contudo, apesar de os alunos focarem conteúdos essenciais, verificam-se ocorrências de desvios de sintaxe e de semântica.

Vejamos algumas respostas: «A morte de Kiyoteru Okouchi é mencionada porque foi a partir do seu suicídio que começaram a dar mais importância á violência na escola.»; «É mencionada para alertar as pessoas que a violência pode se agravar de uma maneira que a vítima pode tentar suicidar-se ou pode ser morta pelo agressor. É para que esse incidente não se volte a repetir.»; «A razão que é mencionada no artigo a morte de Kiyoteru Okouchi foi que ele se enforcou porque os colegas o tinham mergulhado no rio várias vezes seguidas e lhe tinham extorquido dinheiro.» De acordo com os indicadores de avaliação, 33% dos alunos de ascendência africana, contra 51% de alunos lusos deram respostas de nível Intermédio – «A morte de Kiyoteru Okouchi é mencionada para alertar os alunos, pais e professores que a violência nas escolas pode ser muito prejudicial.»; «No artigo a morte Kiyoteru Okouchi é mencionada para alertar os pais, e não só pessoas que ocorrem actos de violência nas escolas, e que os seus filhos podem estar a passar, pela mesma situação.»

Em síntese, da análise comparativa dos resultados obtidos pelos dois grupos, realça-se o fraco número de respostas de nível Máximo (M) e a elevada percentagem de respostas de nível zero e de não respostas. Observa-se ainda que os alunos de ascendência lusa se situam na sua maioria num nível intermédio (n=41; 50.6%), contrastando com os seus colegas de origem africana, cuja maioria se situa no nível zero (n=44; 57.9%). Também na categoria de maior complexidade, encontramos mais alunos de ascendência lusa que africana (n=9; 11.1% > n=7; 9.2%). Contudo, esta diferença não se revelou estatisticamente significativa.

A segunda questão, apesar de ser uma questão de compreensão literal, exigindo aos alunos a localização da informação no texto, supõe uma leitura de gráficos, ou seja, de

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acordo com a classificação do relatório da OCDE (2003), os alunos teriam de ler um texto não-contínuo. No quadro abaixo, podem observar-se os resultados das respostas dadas à questão 2:

Quadro 4: Distribuição da compreensão literal (Teste de Fisher para verificação de diferenças)

Compreensão leitora – Q2

Correcto Incorrecto Total Ascendência

N % N % N %

P

Lusa 62 74.7 21 25.3 83 100.0

Africana 50 63.3 29 36.7 79 100.0

Total 112 69.1 50 30.9 170 100.0

.128

Da leitura do quadro, ressalta a percentagem de resultados correctos. Por contraste com estes resultados, verifica-se que nos dois grupos se regista ainda um número elevado de respostas incorrectas. Ainda que a percentagem de alunos com respostas incorrectas seja mais elevada no grupo de ascendência africana, esta diferença não é estatisticamente significativa.

Problemas de compreensão neste tipo de texto são identificados no relatório da OCDE (2003: 45), referindo uma elevada percentagem de omissões de resposta ou respostas correctas muito baixas, quando os alunos portugueses têm de analisar um texto não-contínuo e, a partir daí, produzir uma argumentação ou elaborar uma fundamentação que requeira conceitos mais complexos, como a relação entre duas variáveis, ou quando a análise exige a leitura conjugada de dois gráficos.

A terceira questão apelava novamente à compreensão inferencial explicativa. A partir da leitura do texto, os alunos teriam de seleccionar informação específica do texto e explicar as razões que estiveram na base da sua escolha.

As respostas dadas pelos alunos agruparam-se em quatro níveis (cf. Quadro 5):

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Quadro 5: Distribuição da compreensão inferencial explicativa (Teste de qui-quadrado para verificação de diferenças).

Compreensão leitora – Q1

Máximo Intermédio Zero Total Ascendência

N % N % N % N %

!2 P

Lusa 5 6.6 35 46.1 36 47.4 76 100.0

Africana 4 5.6 23 31.9 45 62.5 72 100.0

Total 9 6.1 58 39.2 81 54.7 81 100.0

3.488 .175

O teste estatístico não apresentou valor de probabilidade associado considerado estatisticamente significativo. Na análise da distribuição das respostas por grupo, observa-se que os alunos lusos se situam entre os níveis zero (n=35; 46.1%) e intermédio (n=35; 46.1%), enquanto 62.5% dos alunos do outro grupo (n=45) em estudo se encontram no nível zero. Destes últimos alunos, 31.9% (n=23) foram colocados na categoria designada intermédio.

Apresentam-se algumas das respostas de nível máximo: «Uma das recomendações do Ministério da Educação é proibir a entrada de alunos violentos nas escolas. Para mim isso resultaria apenas a curto prazo, porque apesar de violentos não se deve abandonar esses alunos. Devia tira-los das escolas acompanha-los e quando não apresentassem qualquer tipo de perigo para os outro alunos reentegrados.»; «Uma das recomendações do Ministério da Educação aconselhava os professores a proibir aos alunos violentos o acesso à escola. Eu acho que não seria eficaz, porque se ao afastarem esse aluno da escola, ficava sem rumo e concerteza fazia mais asneiras na rua, era um indeliquente, o Ministerio perdia um aluno, mas ganhava um criminoso.»

Apresentam-se também respostas de tipo intermédio: «‘…aconselhava os professores a proibir os alunos violentos o acesso à escola.’ Eu não concordo com esta recomendação, acho que o Ministério deveria tentar encontrar outra maneira melhor de diminuir a violência nas escolas porque todos os jovens, violentos ou não tem direito a ir à escola.»; «‘…pais e professores deveriam ter um contacto mais estreito com os alunos, a fim de evitar actos violentos.’ Eu penso que se os pais dessem mais carinho e afecto aos filhos com certeza que não os tornariam mais revoltados e violentos, porque muitos dos alunos violentos têm uma mãe ou um pai

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alcoólicos, ou é órfão. É também na escola que os professores dão alguma educação mas a família tem a obrigação de educar.»

Mais uma vez se chama a atenção para o facto de, nesta categoria, nos dois grupos, as respostas de nível zero e as não respostas se situarem acima dos 50%. Vejam-se dois exemplos de respostas de nível zero: «O Ministério da Educaco seria eficaz para diminuir a violencia porque divia aconceliar os alunos que não deve fazer essas violencias porque é crime.»; «Na minha opinião sim. Porque assim os alunos violentos não perturbam os alunos mais pequenos e assim não existia violencia». Finalmente, a última questão, sendo de compreensão inferencial dedutiva, exigia aos alunos que, a partir de informação apresentada no texto, deduzissem a fonte de informação e de opinião que serve o conteúdo do texto.

Observem-se resultados obtidos no quadro abaixo:

Quadro 6: Distribuição da compreensão inferencial dedutiva (Teste de Fisher para verificação de diferenças).

Compreensão leitora – Q4

Correcto Incorrecto Total Ascendência

N % N % N %

p

Lusa 21 26.9 57 73.1 78 100.0

Africana 30 42.3 41 57.7 71 100.0

Total 51 34.2 98 65.8 149 100.0

.058

Esta questão revela um maior afastamento entre os grupos, mas invertem-se as posições: os alunos de ascendência lusa (n=57) apresentam 73.1% de respostas incorrectas, enquanto os alunos de ascendência africana (n=41) apresentam 57.7%. À semelhança dos aspectos anteriores, esta diferença não se revelou estatisticamente significava.

Comparativamente, o grupo de alunos africanos obteve melhores resultados do que o grupo de alunos lusos. É interessante notar que, não havendo compreensão, as estratégias usadas pelos dois grupos são diferentes: o grupo de lusos arrisca mais e erra mais, enquanto o grupo de africanos opta mais por não responder.

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Em síntese, um terço ou menos dos alunos respondeu correctamente a esta questão, o que permite concluir que os alunos continuam a revelar dificuldades em responder de forma correcta às questões de compreensão inferencial.

Discussão dos resultados da compreensão de leitura

Dos dados apresentados, conclui-se que, relativamente à compreensão na leitura, estes alunos ainda não sabem utilizar estratégias complexas para compreenderem um texto informativo. Se os sujeitos revelaram mais facilidade na compreensão literal, em particular na localização de informação específica no texto, quando precisaram de articular essa informação com a leitura de um texto não-contínuo acabaram por manifestar dificuldades acima da média. Os sujeitos revelam ainda dificuldade na compreensão inferencial, sobretudo quando têm de extrair e recuperar informação específica. Verificam-se, também, dificuldades na interpretação e reflexão sobre determinada informação do texto.

Ao compararmos o desempenho dos dois grupos, constatamos que ambos obtêm resultados mais fracos nas respostas que exigem a utilização de estratégias de compreensão leitora inferencial. Não se registou, em nenhuma das questões de compreensão inferencial, mais de 33% de respostas de nível Máximo, ao passo que, no nível Incorrecto, os alunos atingiram os 67%.

Apenas na questão de compreensão literal é que os alunos conseguiram obter resultados satisfatórios, mas mesmo assim regista-se um número considerável de respostas incorrectas.

Da análise comparativa do desempenho dos dois grupos no que diz respeito à compreensão de leitura, conclui-se que não há diferenças estatisticamente significativas entre os grupos. O grupo de alunos de ascendência africana é, em média, um ano mais velho do que o grupo de alunos lusos, o que significa que no seu percurso escolar há mais um ano de escolarização, provavelmente há mais experiência de reprovação. O relatório PISA refere que as reprovações não são sinónimo de aprendizagem. A questão da ascendência (africana ou lusa) parece não ter influência na competência de leitura. Ligada à ascendência, surge a questão linguística (língua materna versus língua de escolarização), a qual parece também não introduzir diferenças no desempenho dos alunos na compreensão leitora.

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A questão da origem sócio-económica parece ser a questão mais importante nos resultados obtidos. Os resultados do estudo mostram que estes jovens (africanos e lusos) têm dificuldades em reconstruir os sentidos dos textos. Os textos constituem-se como repositório de saber. Os sujeitos não conseguem aceder aos sentidos dos textos e, por isso, podem ter o percurso académico comprometido. Sem compreenderem o que lêem, dificilmente querem ler e sem lerem não continuarão a aprender na escola. O que parece esperar estes jovens é o abandono ou a reprovação, dado não terem autonomia para lerem textos informativos - os textos dos manuais das diferentes disciplinas do currículo.

Os resultados obtidos não se afastam dos resultados obtidos no PISA 2000. Numa análise interpretativa da OCDE, comparando os itens em que os alunos obtiveram maior e menor sucesso com outros países participantes do estudo, concluiu-se que:

(...) os alunos portugueses obtêm globalmente um maior sucesso relativo quando o texto proposto é uma narrativa. Com efeito, é neste tipo de texto que a média dos alunos, independentemente da competência ou da tarefa de leitura proposta, supera os valores médios da OCDE. Em contrapartida, quando se trata de um texto dramático, como é o caso de um excerto de uma peça de teatro, ou de textos informativos extensos, em que as respostas exigem grande precisão, os alunos portugueses alargam negativamente a amplitude que os separa dos valores médios da OCDE. (2001: 29)

A análise interpretativa da OCDE (2001: 29) permitiu ainda identificar que os alunos portugueses são bem sucedidos quando têm de executar tarefas que mobilizam mecanismos cognitivos de interpretação, ou seja, quando é necessário mobilizar «(...) a capacidade para obter significado e construir inferências (...)» (em particular com os textos narrativos). Mas o mesmo já não se verifica quando «(...) a interpretação requer identificação rigorosa e localização precisa da informação contida no texto, quer se trate de texto dramático ou de um texto informativo». Como vimos, a este respeito, os dois grupos comportam-se de forma similar.

O relatório (OCDE 2001: 29) levanta mesmo a possibilidade de as «(...) práticas de leitura dos alunos e as práticas de ensino da leitura na escola [exercerem] alguma influência nas discrepâncias de

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pendor, mais positivo ou mais negativo, apresentadas pelos alunos portugueses em comparação com os seus pares dos países que integraram o estudo». Segundo o mesmo relatório, os alunos portugueses têm dificuldades em compreender textos informativos.

O desafio maior será então ensinar os alunos a lerem os textos que precisam de ler quando estudam História, Ciências, Física. Este é um desafio que se coloca em diferentes latitudes, pois a falta de competências de literacia de jovens adolescentes ao interagirem com textos das áreas disciplinares é um dos problemas mais importantes quando se trata de aprender (Fang e Schleppegrell 2010). Aprender a ler na primária não é sinónimo de sucesso, dado que a competência de leitura não é um processo homogéneo desde a decifração até à aprendizagem de uma leitura madura e competente. Antes é um processo qualitativamente diferente à medida que o leitor se torna mais capaz e proficiente, precisando, por isso, de ser ensinada nas suas diferentes dimensões (Chall 1983) ao longo de toda a escolaridade.

Apesar dessa necessidade, observam-se extensas variações na forma como o currículo, os manuais e os professores trabalham a compreensão. Araújo (2005: 14) refere estudos que provam que «(...) a compreensão literal é muito privilegiada em detrimento da compreensão inferencial». Também Giasson (2000) alega que as perguntas sempre fizeram parte das estratégias utilizadas pelos professores, no entanto as questões são demasiado literais e incidem sobre informação menos relevante no texto. Por outro lado, critica-se igualmente que as perguntas estejam ao serviço da avaliação e não do ensino, servindo unicamente para avaliar os conhecimentos dos alunos, desvalorizando a progressão no percurso de desenvolvimento de competências.

Uma análise mais cuidada dos manuais escolares permite verificar que predominam os excertos de textos narrativos e as questões colocadas apelam, na sua grande maioria, à compreensão literal. Refere igualmente Araújo (2005), numa análise feita aos manuais portugueses, que 57% das questões colocadas são de compreensão literal e apenas 28% das questões são de natureza inferencial, sendo os restantes 15% aproveitados em questões livres. A inclusão de pequenos excertos dos textos nos manuais portugueses acaba por ser outro aspecto com impacto na qualidade e no tipo das questões colocadas. Será mais difícil para os alunos fazerem inferências, suposições ou deduções, quando os textos que

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lhes servem de base estão incompletos. Contudo, este trabalho poderia ser contornado em contexto formal de aprendizagem, se os professores levassem os textos na íntegra para a sua aula, complementando assim as informações dos manuais e focalizando a sua prática no desenvolvimento de competências de nível superior nos seus alunos. Só poderemos ter bons leitores, a partir do momento em que os alunos contactarem e lerem livros autênticos e forem ensinados a utilizar estratégias que lhes permitam um raciocínio de nível superior, imprescindível na compreensão dos textos.

Também os documentos orientadores, tanto o Currículo Nacional, como o Programa de Língua Portuguesa do 3.º Ciclo do Ensino Básico, não são claros relativamente à importância e à necessidade de se ensinar estratégias de compreensão leitora, nem quanto aos processos inferenciais que merecem ser privilegiados. Nas competências de leitura, o Currículo Nacional apenas refere estratégias de leitura e compreensão de sentidos implícitos para o 3.º Ciclo do Ensino Básico. Ora se se analisar os resultados de outros países da OCDE que obtiveram melhor desempenho nos testes internacionais, assim como as suas orientações curriculares, verifica-se que claramente manifestam a importância de ensinar os diferentes processos de compreensão, dando especial atenção aos processos inferenciais.

Outros estudos também associam o fraco desempenho dos alunos ao nível da compreensão leitora às práticas escolares. Giasson (2000) e Sim-Sim e Micaelo (2006) referem que é comum o professor ensinar a recontar o que se leu, a responder a questões colocadas por si, mas é raro ensinar a mobilizar os conhecimentos prévios ou a seleccionar conscientemente a informação necessária e a identificar a informação irrelevante. Verifica-se ainda que os professores dão pouca importância a actividades de antecipação e verificação do conteúdo do texto, desvalorizando assim o estabelecimento de relações entre os conteúdos do texto e assuntos temáticos relacionados. As actividades de metacognição que fomentam a auto-regulação e a autonomia também são práticas desvalorizadas em sala de aula.

Sabe-se que a articulação com os conhecimentos prévios e o ensino de estratégias de leitura se revela fundamental para a aprendizagem deste processo. Sim-Sim e Micaelo (2006) sugerem algumas práticas que fomentam a independência, tais como a

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definição dos objectivos de leitura; a identificação do cerne do conteúdo; a utilização da estrutura do texto como recurso; elaboração de questões sobre o texto; o desenvolvimento de representações mentais sobre o lido e pensar em voz alta após a leitura. Um leitor só é fluente quando é capaz de, autónoma e eficazmente, controlar a sua própria compreensão em cada momento da leitura. Sousa (2007) chama a atenção para a importância de se ensinarem explicitamente estratégias de leitura a utilizar antes, durante e depois da leitura, no sentido de desenvolver a metacognição. Na realidade, a aprendizagem da leitura é um percurso longo e complexo em que o leitor passa por várias fases – de uma leitura incipiente a uma leitura crítica (Chall 1983), cada uma das fases exigindo ensino explícito.

Araújo (2005) aponta alguns resultados de estudos empíricos, nos quais os bons leitores recorrem a diferentes estratégias para compreender os textos que lêem, enquanto os leitores mais fracos podem também aceder à compreensão dos textos, mas, no entanto, precisam de um treino e de um acompanhamento mais individualizado na implementação de estratégias de compreensão leitora. Esta reflexão realça a importância de se explorarem os diferentes níveis de compreensão leitora e a necessidade de se atingir uma compreensão inferencial, pois só assim o leitor pode desenvolver capacidades de ordem superior.

Possivelmente o não domínio destas estratégias poderá ter interferido no bom desempenho dos alunos desta investigação. É consensual que o ambiente cultural em que a criança se desenvolve é determinante para a aquisição adequada de vocabulário, dos conhecimentos e das experiências que potenciam as aprendizagens posteriores e interferem na compreensão da leitura. Os modelos explicativos da leitura incluem componentes cognitivos, psicológicos e ecológicos que compreendem aspectos como motivação, estilos de aprendizagem, expectativas, diferenças de género, contexto familiar, social e cultural (Tolchinsky 2008: 39).

Apesar de, durante a investigação, não se ter feito o levantamento dos hábitos de leitura dos alunos e dos seus familiares, sabe-se que decorreu num contexto socioeconómico bastante desfavorecido em que os pais confiam simplesmente a educação dos seus filhos à escola (Detry e Cardoso 1996).

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Um conhecimento do mundo alargado é fundamental na compreensão da leitura e na construção de novo conhecimento, pois o novo conhecimento ancora em conhecimentos prévios (Piaget 1932). Villas-Boas (1999) alerta para o facto de os quadros de referência cultural poderem interferir na compreensão, quer dos textos, quer do vocabulário.

Chegados ao final da escolaridade obrigatória, os alunos ainda não adquiriram competências essenciais que lhes permitam a médio e a longo prazo uma plena integração social e profissional, dificultando-lhes, a curto prazo, a realização de um percurso escolar bem sucedido. De acordo com o relatório da OCDE (2001: 20-21), o ano de escolaridade está directamente ligado ao desempenho dos alunos. Assim alunos de 15 anos, que frequentam o secundário, apresentam melhores resultados em compreensão do que os que frequentam o ensino básico, verificando-se que, quanto mais baixo o ano de escolaridade, maior a dificuldade de compreensão. Segundo o relatório, a mesma tendência tinha sido observada em 1991, aquando do estudo internacional Reading Literacy (Sim-Sim e Ramalho 1993). Se esta conclusão põe em causa o sistema português de reprovações, pode também ajudar a explicar os resultados mais fracos dos alunos de ascendência africana, mais velhos e com uma média de reprovações mais elevada.

Sabe-se que na compreensão leitora conflui um conjunto de competências (ver, entre outros, Costa 1992, Gascoine 2005): a) competência gramatical (conhecimento da morfologia, sintaxe, vocabulário), b) competência sociolinguística (saber o que é esperado social e culturalmente pelos autores do texto), c) competência discursiva (capacidade para compreender mecanismos coesivos tais como pronomes, conjunções e articuladores discursivos e também a capacidade para reconhecer como é que a coerência é estabelecida) e d) competência estratégica (a capacidade para mobilizar estratégias que compensem a falta de conhecimento). Sabe-se também que os alunos beneficiam do ensino explícito dessas competências. Deste modo, a análise das dificuldades dos alunos deveria implicar estratégias de ensino diferenciadas.

Acreditando-se que o aluno é um «(...) aprendiz que procura sentido naquilo que faz» (Giasson 2000: 48), o professor deve ensinar explicitamente, modelizando os comportamentos dos bons leitores (Sousa 2007).

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Na verdade, os alunos mostram uma forte consciência das suas dificuldades, neste caso, na compreensão de texto. Refira-se o estudo realizado por Gonçalves (2007), no qual os alunos do 7.º e do 9.º ano de escolaridade de ascendência africana afirmavam que a compreensão/interpretação de textos era uma das suas principais dificuldades sentidas na disciplina de Língua Portuguesa, afectando directamente a sua aprendizagem nessa e nas restantes disciplinas. O que é então necessário ensinar a estes alunos? Estratégias de leitura (questionar o texto, predizer, inferir, esquematizar, sumariar), vocabulário, fluência, mas também ensinar o modo como o conhecimento é produzido nas diferentes disciplinas. Compreender os textos das diferentes disciplinas é compreender os padrões linguísticos e os significados desses textos (Fan e Schleppegrell 2010: 588).

Segundo Solé (2008), a consciência das dificuldades é um grande passo para a sua superação. Contudo, os alunos, apesar de conseguirem reconhecer as áreas que lhes são mais difíceis, parecem não reconhecer ainda quais os entraves com que se defrontam quando estão a ler um texto, e muito menos parecem saber a que estratégias devem recorrer para compreender um texto. A escola parece ainda não ter dado conta que é necessário continuar a ensinar a ler ao longo de toda a escolaridade e ensinar a ler os textos das diferentes disciplinas.

Assim, além da aprendizagem de estratégias adequadas para resolver problemas na leitura, é importante que o aluno as possa mobilizar em actividades de leitura significativa, implicando uma finalidade e objectivos claros. A leitura eficaz mobiliza um conjunto de estratégias, articuladas em situações de aprendizagem da leitura, que assegurem aos alunos uma aprendizagem significativa (Solé 2008). As diferentes disciplinas são contextos significativos para aprender a ler, falta certamente um ensino explícito das estratégias cognitivas necessárias, das estruturas linguísticas, do vocabulário específico de cada disciplina.

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