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PÓS-GRADUAÇÃO

CIÊNCIAS PENAIS

Política Criminal

PÓS-GRADUAÇÃO

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CursoCiências Penais

Disciplina Política Criminal

Autores David Leal da Silva,

Yuri Felix, Clecio Lemos,

Danilo Dias Ticami e Maurício Futryk Bohn

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Índice ÍNDICE

Tema 01: Bases Epistemológicas da Política Criminal 05

Tema 02: Punição, Seletividade e Conflito sobre a Política Criminal: por trás dos discursos do consenso

35

Tema 03: Verdade, Sistema Inquisitório e Política Criminal 55

Tema 04: Penologia (Re)pensando a Punição na Sociedade Contemporânea 77

© 2015 Kroton Educacional

Proibida a reprodução final ou parcial por qualquer meio de impressão, em forma idêntica, resumida ou modificada em língua portuguesa ou qualquer outro idioma.

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Como citar este material:

SILVA, David Leal da Silva; FELIX Yuri; LEMOS, Clecio; TICAMI, Danilo Dias; BOHN, Maurício Futryk. Política Criminal. Valinhos: 2015.

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TEMA 01Bases Epistemológicas da Política Criminal

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LEGENDA DE ÍCONES seções

5

Início

Referências

Gabarito

Verificaçãode leitura

Pontuando

Vamos pensar

Glossário

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Aula

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01

Bases Epistemológicas da Política Criminal

David Leal da SilvaDoutorando e Mestre do Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia

Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Advogado.

Yuri FelixDoutorando e Mestre do Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia

Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Pós-graduado em Direito Penal

Econômico pela Universidade de Coimbra/IBCCrim. Pós-graduado em Ciências Penais

pela Universidade Anhanguera – Uniderp LFG. Presidente da Comissão de Direito Penal e

Direito Processual Penal da 40ª Subseção da OAB/SP. Professor e palestrante com artigos

publicados em diversas revistas especializadas. Advogado criminal.

Objetivo

A aula tem por objetivo elucidar as bases do conhecimento da Política Criminal e sua

comunicação com os demais ramos do direito. Trabalha-se com uma perspectiva política,

na medida em que se adota a premissa de que o direito penal e suas correlações interferem

de forma contundente na vida de cada cidadão, sendo em sua essência um extremado

mecanismo de controle.

Resumo da Aula

Prezado aluno, no presente estudo que inicia a nossa disciplina, que versa a respeito da

Política Criminal, você conhecerá a função desta na sociedade contemporânea, exercitando

uma reflexão no que tange à relação saber-poder. Além disso, você terá acesso à discussão

acerca das relações da Política Criminal com os demais saberes das ciências criminais. Seja

bem-vindo ao debate.

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Aula 01 | Bases Epistemológicas da Política Criminal

1. A função da moderna política criminal: o controle da criminalidade e a relação saber-poder

A política criminal é definida, tradicionalmente, como conjunto de princípios e

recomendações que tem por objetivo reformar ou modificar a legislação penal, para que

esta seja aplicada por parte dos órgãos responsáveis. A política criminal, no entanto, pode

ser mais bem compreendida “como programa que estabelece as condutas para repressão e

prevenção da criminalidade e controle de suas consequências”1. Daí que sua função consiste

em estabelecer como devem ser determinadas decisões no âmbito do controle social, com

a finalidade de proteger a sociedade de modo eficiente2. Nilo Batista entende que a política

criminal - definitivamente, assunto de ciência política - abarca assuntos que envolvem a

política de segurança pública, a política judiciária e a política penitenciária3.

Desde logo, é relevante notar o seguinte aspecto: considerada como prima pobre da

criminologia, quando vista como disciplina autônoma, a política criminal (além de outsider no

espaço acadêmico, observando-se a parca quantidade e qualidade de pesquisas) depara-se

com certa resistência ao seu próprio desenvolvimento no espaço burocrático-institucional.

Para Maurício Dieter, as orientações das políticas públicas de segurança pouco se conformam

às exigências da lógica científica – que demanda constante renovação. É que a política

criminal condensa mais facilmente, em seu campo, o senso comum teórico e as máximas do

conhecimento vulgar, articulação feita, costumeiramente, por atores políticos interessados4.

Neste contexto, percebe-se que determinar os limites de cada campo do saber não é algo

que se possa fazer com precisão cirúrgica, exceto se se acreditar (por equívoco ou por má-

fé) que a criminologia seja uma ciência desvinculada de juízos de valor (a exemplo das

pretensões do paradigma etiológico-positivista), cabendo à política criminal o cuidado de

utilizar devidamente os dados da realidade.

1 DIETER, Maurício Stegemann. Política Criminal Atuarial: a criminologia do fim da história. Tese Apresentada ao Programa de Doutorado em Direito da Universidade Federal do Paraná. Curitiba: UFPR, 2012, p. 3.

2 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal. v. 1. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 274.

3 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 34.

4 DIETER, Maurício Stegemann. Política Criminal Atuarial: a criminologia do fim da história. Tese Apresentada ao Programa de Doutorado em Direito da Universidade Federal do Paraná. Curitiba: UFPR, 2012, p. 3-4.

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Também é válido dizer que a política (não apenas a

criminal) se deixa influenciar pelos saberes. Basta

analisar, por exemplo, a Lei nº 12.654/2012 - que

passou a permitir a extração compulsória de material

genético - para perceber que o crédito que se

confere à ciência genética na atualidade influenciou

negativamente o campo político-legislativo,

autorizando a violação do direito de não produzir

prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere)5.

É nesse sentido que se pode aproximar a questão

criminal da dinâmica da relação saber-poder, como

demonstrou Michel Foucault, quando descreveu

a lógica de produção do saber segundo práticas

envolvendo o exercício do poder, o que, certamente,

dificulta o reconhecimento de uma linha divisória entre teoria e prática6.

Constata-se, por essa leitura, que não há poder que não se vincule a um complexo arranjo de

saberes. O juiz que toma uma decisão que, além do mais, é política7; o dogmático que produz

teoria e discurso; ou a pesquisa criminológica que legitima, discursivamente, uma técnica

punitiva específica ou se projeta criticamente sobre as respostas institucionais8; em suma,

todas essas práticas compõem o quadro que concerne à questão criminal, que compreende

uma série de relações de poder muito mais intensas quando o assunto é violência.

Com isso, percebe-se que a política criminal não diz respeito a assuntos destinados tão

somente aos legisladores. Entender que sua missão seria o combate da criminalidade, ao

passo que a criminologia seria a ciência objetiva que produziria os dados materiais para

5 Sobre o tema, analisar o texto de David Leal da Silva. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-out-17/david-silva-lei-1265412-destroca-nemo-tenetur-detegere>. Acesso em: 16 mar. 2015.

6 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

7 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal. v. 1. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 274.

8 DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 109.

Saiba MaisA respeito do tema, ver: FELIX, Yuri. Identificação Genética no Processo Penal: Verdade, Ciência e Processo na Sociedade Complexa. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS para a ob-tenção do título de Mestre. FELIX, Yuri; GUEDES, G. P. A identificação genéti-ca na Lei n° 12.654/12 e os Princípios de Direito Processual Penal no Estado Democrático de Direito. Revista de Es-tudos Criminais, Porto Alegre, v. 53, p. 157-179, 2014.

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a tomada de decisões na esfera política, faz parte de uma visão criticamente insuficiente,

porquanto sobrevaloriza o saber dogmático e formal, relegando à condição auxiliar qualquer

outro saber9. Essa perspectiva foi apresentada por Fraz Von Liszt, quando o autor definiu o

direito penal como a carta magna do delinquente ao estabelecer limites à política criminal.

Assim, a ciência total, para Lizst, seria composta por três campos: criminologia, direito penal

e política criminal. Conforme apontado, o equívoco está em acreditar que se possa separar,

por exemplo, criminologia, direito penal e processo penal da política criminal10, pois se deixa

de perceber que todos estes campos estão implicados politicamente nos problemas mais

sérios da questão criminal.

A propósito, por questão criminal também se pode entender o conjunto heterogêneo de objetos

com os quais se empenham distintos pensamentos11. Eis os motivos de não se poder descurar

de uma perspectiva interdisciplinar que conte com o auxílio de diversos saberes para entender

mais adequadamente a questão criminal. Para Vera Malaguti Batista, “a questão criminal

se relaciona então com a posição de poder e as necessidades de ordem de determinada

classe social”12. Essa expressão bastante genérica - questão criminal - abarca o universo de

temas que interessam à política criminal, mas a este não se reduz. Isso porque estratégias e

medidas de caráter extrapenal também são adotadas com a finalidade de coibir a prática de

crimes13. Assim sendo, é importante entender que determinados discursos produzidos pelos

pensamentos criminológicos têm uma relação bastante íntima com as estratégias de controle

social, quer legitimando-as, quer criticando-as. Essas orientações políticas (a política criminal)

dispõem de concepções próprias de bem e mal, uma vez que sempre trazem consigo certa

carga de ideologia.

9 CARVALHO, Salo. Anti-Manual de Criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008, p. 11.

10 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Las Palabras de los Muertos: conferencias de criminologia cautelar. Buenos Aires: Ediar, 2011, p. 10.

11 ANITUA, Gabriel Ignácio. História dos Pensamentos Criminológicos. Tradução de Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 15.

12 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 23.

13 É o exemplo da nova Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 12.683/2012), que impõe uma série de deveres compliance a fim de evitar a prática de crimes financeiros. Sobre o tema: GLOECKER, Ricardo Jacobsen; LEAL, David. Criminal Compliance, Controle e Lógica Atuarial: a relativização do nemo tenetur se detegere. Revista de Direito da Universidade de Brasília, v. 1, p. 147-172, 2014.

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Não obstante, é lícito dizer que as exigências da política criminal podem definir o formato

da pesquisa criminológica, como se pode perceber na atual tendência em se empenhar na

colheita de dados a fim de oferecê-los aos órgãos estatais, comprometendo-se com os fins

das agências punitivas e abandonando as teorias críticas14. Trata-se da chamada criminologia

administrativa, pretensamente pós-crítica e pós-ideológica.

Postas essas questões, no tópico seguinte serão analisadas as relações entre política criminal

e criminologia.

2. A política criminal em contato com a(s) criminologia(s): o saber e o poder no presente histórico

Analisar a relação de qualquer saber penal com a política criminal exige considerar a

relação do saber (o pensamento criminológico) com o exercício do poder (punitivo). Isso

porque a criminologia também procura oferecer uma resposta política às necessidades

de ordem15, conformando-se às demandas sociais e chegando a transformar-se em saber

instrumental, de acordo com determinadas técnicas de governo.

No interesse de se abordar os contatos existentes entre política criminal e criminologia,

apresentar-se-á uma visão panorâmica sobre esse campo que apenas didaticamente se pode

denominar como criminologia. O que existem são diversos pensamentos criminológicos ou

diversas “criminologias”. Veja que o discurso sobre o crime e a criminalidade não é unívoco,

podendo-se dizer que há uma pluralidade discursiva sobre “o crime, o criminoso, a vítima, a

criminalidade, os processos de criminalização e as violências institucionais produzidas pelo

sistema penal”16.

A pergunta que sempre se faz sobre uma disciplina diz respeito ao seu status científico,

e essa pergunta está atrelada a sua legitimidade a partir da noção de verdade. Quando

14 CARVALHO, Salo. Anti-Manual de Criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008, p. 12.

15 ANITUA, Gabriel Ignácio. História dos Pensamentos Criminológicos. Tradução de Sergio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2008.

16 CARVALHO, Salo de. Anti-Manual de Criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008, p. 2.

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se pretende compreender a criminologia como ciência17a fim de lhe reconhecer autonomia,

é comum que se pretenda identificar seu método e também seu objeto. Para tanto, seria

infrutífera essa empreitada se uma leitura histórica - ainda que breve - fosse deixada de

lado. É que as modificações a respeito do destinatário da política criminal na história se

alinharam às viragens criminológicas. A criminologia foi, historicamente, retroalimentada

por influxos ideológicos marcantes, trazendo consigo traços peculiares do tempo e lugar a

que pertenceu. Igualmente, foi relevante na(s) criminologia(s) que questões consideradas

ultrapassadas pelos teóricos retomassem o espaço de embate discursivo, demonstrando,

com isso, a necessidade de perceber as continuidades dos problemas que concernem à

questão criminal18.

É, normalmente, no período de triunfo dos modelos positivistas que se considera que a

criminologia adquiriu status científico, ainda que alguns autores afirmem que a criminologia

nasceu com a escola clássica. Zaffaroni19, por sua vez, defende que a criminologia, enquanto

saber em sua forma orgânica, apareceu claramente com o poder punitivo da Inquisição

romana e com os demonólogos20.

É que, ao se analisar a invenção da pena pública no séc. XIII, tem-se em vista um marco

importante de reconfiguração do poder. A pena pública confiscou o conflito da vítima,

conferindo-lhe um papel secundário. Instituiu-se um procedimento de busca da verdade com

17 Conceito que é estabelecido pelo poder: é este que diz o que é ou não ciência. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Las Palabras de los Muertos: conferencias de criminologia cautelar. Buenos Aires: Ediar, 2011, p. 14.

18 “O iluminismo dirigiu suas reivindicações contra a ‘lei’; o positivismo quis reagir sobre o ‘delinquente’; a criminologia clássica americana pretendeu reformar a ‘sociedade’; o interaccionismo quis modificar a reação à ‘delinquência’; a criminologia radical propõe-se contestar o ‘sistema social’!”. DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 3-4.

19 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Las Palabras de los Muertos: conferencias de criminologia cautelar. Buenos Aires: Ediar, 2011.

20 O nascimento da criminologia, contudo, não se explica, necessariamente, pela adoção de um método e pela definição de um objeto, semelhante ao estudo etiológico-explicativo do crime como fez o positivismo criminológico. É muito mais a reflexão sistemática sobre o problema do crime que permite situar historicamente os marcos criminológicos. DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 6. A necessidade de compreender historicamente o que passou a ser da ordem do criminal, dos séculos XIII ao XVIII, chegando ao XX, tem relevância por sua permanência histórica. Conforme Batista: “a objetivação do ‘herege’ ou da ‘bruxa’ pressupunha uma possibilidade técnica de domínio: técnicas de interrogatório, diagnóstico, construção de identidade ‘criminal’ e incorporação de identidades ‘criminosas’”. BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 24.

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o método de averiguação, a partir da relação de poder exercida sobre o objeto analisado. Essa forma de racionalidade conjugou o discurso médico e o discurso jurídico, incrementados por técnicas de domínio sobre seus objetos. Basta ver os manuais dos inquisidores, que foram instrumentos sobre as técnicas de apuração da verdade21.

A história da criminologia como ciência, entretanto, conta com pouco mais de um século. Essa é, nas palavras de Jorge Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, “a história de um ‘tempo’ enriquecido pela contínua sucessão, alternância ou confluência de métodos, de técnicas de investigação, de áreas de interesse, de envolvimentos teóricos e ideológicos – em suma, de escolas criminológicas”22. Tais escolas definiam os problemas determinantes da questão criminal a partir dos problemas e dos métodos que empregavam.

Entre os séculos XIII e XVIII, as técnicas da Inquisição se depararam com fatores como a expansão das cidades, a noção de contrato e o fortalecimento da burguesia e do absolutismo. De acordo com Batista, a revolução industrial fomentou a sociedade de classes e promoveu o disciplinamento do trabalhador a fim de extrair a mais-valia. Daí que foi preciso o emprego da ideologia em parceria com uma racionalidade utilitarista para legitimar o domínio sobre os homens e sobre a natureza. Mas é a partir do séc. XVIII que, reconfiguradas as demandas por ordem, as execuções públicas se tornam problemáticas, tendo em vista o protagonismo das multidões com suas críticas ao poder absolutista. Multidões de pobres gerados pelo processo de acumulação do capital, que aspiravam a uma revolução estrutural da sociedade, contribuíram para que o poder punitivo se redefinisse segundo novas técnicas que correspondessem à dinâmica que se desenhava com a nova realidade social. Neste cenário, o discurso jurídico do direito penal - principalmente na obra Dei Delitti e Delle Pene23(1764), de Cesare Beccaria - procurou limitar o poder punitivo do Antigo Regime por meio de garantias do cidadão (burguês), como o princípio da legalidade e o conceito de pena e delito, que, desde então, tornaram-se noções-chave para a estruturação do direito penal clássico. Com a ascensão da burguesia, surgiram novos discursos criminológicos, mas também novas instituições e novas políticas de

controle penal. A prisão tornou-se a principal forma de punir no ocidente24.

21 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 24.

22 DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 4.

23 BECCARIA, Cesare. Dei Delitti e Delle Pene. Milão: Feltrinelli, 2008.

24 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 25-26.

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Além disso, a chamada Escola Clássica levou adiante o ideário do humanismo racionalista,

segundo o qual o homem era concebido como ser racional e, assim, caberia questionar

as irracionalidades do poder punitivo daquele período para implementar uma nova política

criminal. O objetivo primordial da ciência penal seria limitar os abusos das autoridades.

O crime foi definido não como uma entidade de fato, mas de direito. A escola clássica foi

fruto do movimento iluminista que abarcou um amplo grupo de pensadores que refletiam

diretamente sobre os problemas do crime (Beccaria, Feuerbach, Benthan, Blackstone, Rossi,

Carrara, Mello Freire, Romilly)25. Por sua importância histórica, a obra de Beccaria se insere

como a principal referência do liberalismo penal, que persiste como arquétipo do moderno

ordenamento jurídico penal. Com base no contrato social, Beccaria procurou legitimar o

poder punitivo - do direito penal ao processual penal - definindo critérios para a sua utilidade.

Com isso, seriam ilegítimas todas as penas que excedessem os limites do contrato social e

ineficazes aquelas que não servissem à prevenção geral. Desta forma, Beccaria reivindicava

que as sanções penais fossem certas e imediatas26.

A crítica que se pode fazer aos pressupostos de Beccaria diz respeito à ambiguidade

ideológica das noções de contrato social, que seria a expressão dos valores fundamentais

dos cidadãos. O discurso da igualdade de interesses e deveres esconde a desigualdade de

oportunidades da vida em sociedade. Neste sentido, a escola clássica procurou frear o poder

punitivo arbitrário, mas promoveu uma nova estratégia de poder que ampliou a luta contra o

crime – em especial a criminalidade patrimonial27.

Passado um século do aparecimento da obra de Beccaria, a atmosfera político-intelectual

apresentou sérias mudanças em relação ao otimismo iluminista. A dimensão da criminalidade

não foi minimizada. Ao contrário, verificou-se a ampliação das taxas de delito. Em termos

político-criminais, ocorreu uma mudança de foco do sistema de justiça criminal sobre o

delinquente, passando-se a investigar a natureza e as causas do crime. É a partir da obra

25 DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 8.

26 DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 6-9.

27 DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 9-10.

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de Lombroso - O Homem Delinquente (1876) - que se consagra o nascimento da Escola

Positiva italiana. Pode-se elencar como características principais desta escola: a negação

do livre-arbítrio, a crença no determinismo e na previsibilidade comportamental, a separação

entre ciência e moral, a neutralidade axiológica da ciência e a utilização do método indutivo

qualitativo28.

Além de Lombroso, também se destacaram E. Ferri e R. Garófalo como representantes da

criminologia positivista. Esses autores apresentaram as noções fundamentais vinculadas

ao determinismo e a rejeição do livre-arbítrio. Existem, no entanto, algumas divergências

consideráveis entre os três29, que se devem, principalmente, ao campo de saber originário

de cada teórico. Lombroso deu ênfase ao fator antropológico, ao passo que Ferri conferiu

importância às condições sociológicas e Garófalo destacou o elemento psicológico30. A

sociedade do séc. XIX, nestes moldes, criou sua rede de prisões, manicômios, internatos e

asilos, permitindo ao saber criminológico ser retrabalhado pela orientação de caráter científico.

O discurso médico, a partir do paradigma etiológico, explicou a causalidade criminal pela

28 Essa escola procurou encontrar as causas individuais do delinquente, tendo algumas vertentes como as teorias dos fisionomistas, que pretenderam identificar no rosto o diferencial do criminoso, a escola frenológica, que apontava a configuração do crânio como forma de reconhecer o delinquente (craneoscopia), e a psiquiatria, que compreendeu a loucura como uma doença mental, desvinculada de influências ou questões demoníacas. Dessas concepções médicas é que se passou a entender o crime vinculado à degenerescência, inversão da seleção natural da espécie. DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 10-14.

29 Lombroso entendia que o criminoso atávico, homem menos civilizado, era exteriormente reconhecível. Ferri procurou contrapor a definição lombrosiana apresentando cinco categorias de criminoso: o criminoso nato, o ocasional, o passional, o habitual e o louco. Pela perspectiva multifatorial, ou seja, múltiplas causas para o crime (individuais ou antropológicas, físicas, naturais ou sociais), Ferri se distancia do monismo de Lombroso. Já Garófalo, com ênfase na questão psicológica, tentou desenvolver uma teoria que satisfizesse a necessidade de qualificar a criminologia enquanto ciência. Para tanto, sua explicação se situaria na concepção segundo a qual o crime seria visto como uma violação a sentimentos universais. DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 15-17.

30 Ainda que algumas dessas teorias pareçam ultrapassadas, muito se herdou e perdura na atualidade, não tanto na sua linha metodológica, mas, sobretudo, por força ideológica da sua política criminal. Quanto ao positivismo, percebe-se a configuração de uma ideologia do tratamento em suas concepções fundamentais, invertendo a orientação da escola clássica. No lugar de limitar os excessos do poder punitivo, preconizou-se a defesa da sociedade contra o criminoso. No mesmo sentido, à ideia de responsabilidade pessoal fazia suceder a da responsabilidade social; não era questão de punir segundo a gravidade da culpa, mas de reforçar a defesa da sociedade. Por isso à reação criminal se adotava a medida da necessidade em função da ameaça – temebilità (Garófalo) ou periculosità (Ferri) – do delinquente, o que leva Garófalo a considerar natural a decisão de eliminar o criminoso: a morte será legítima sempre que o crime exprima “uma anomalia psicológica permanente que torna o criminoso incapaz para a vida social”. DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 18-19. A reativação dos postulados lombrosianos aparecem, por exemplo, com as teses da neurociência que sustentam que o ser humano não dispõe do livre-arbítrio, pois seria possível, com algum nível de precisão, prever a tomada de decisão humana, antes mesmo que esta atingisse o registro da consciência.

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figura do autor do crime, cuja tendência para o ato punível diz respeito a um fator biológico.

O que o positivismo criminológico fez, portanto, foi deslocar o objeto do delito - antes definido

juridicamente - para a figura do delinquente. Enquanto estratégia de poder, a artimanha

científica de desigualdade congênita acabou viabilizando uma resposta aos problemas

oriundos das críticas revolucionárias pautadas pelo princípio da igualdade.

No séc. XX, os EUA produzem uma nova ruptura criminológica. Do positivismo segregador,

passa-se ao funcionalismo integrador. O conceito de anomia de Durkheim é adaptado por

Merton, que o emprega para explicar que o desviante compõe a estrutura social e dispõe

de funções integradoras. Em razão disso, o limite do desvio não é outro senão a anomia,

verdadeira ruptura da coesão compactuada. As concentrações urbanas heterogêneas (grupos

de migrantes e imigrantes diferenciados culturalmente) provocaram profundos conflitos

sociais, os quais levaram os intelectuais estadunidenses a pensar em alguma saída para

que fossem superadas as noções que limitavam o fenômeno do crime a um dado natural. Os

teóricos da sociologia do desvio perceberam que existia uma relação bastante importante

entre o gueto e a criminalidade. Logo, as instituições e as formas de controle social tornaram-

se objetos de estudo31.

Essa nova criminologia deu início ao giro do labeling approach, que do delinquente ou do

crime, passou a direcionar o olhar crítico ao sistema de controle penal, procurando saber

o motivo de algumas pessoas, as estigmatizadas, serem tratadas como criminosas32.

Assim, as propostas de política criminal do labeling approach deram ênfase a programas de

descriminalização. Posteriormente, junto com a ebulição política dos anos 1960 e 1970, teve

início a discussão produzida pela criminologia crítica, que viu no sistema capitalista a fonte dos

problemas sociais, principalmente da violência. Esses saberes criminológicos representaram

novas perspectivas que não mais compactuavam com a resposta estatal meramente punitiva.

31 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 26.

32 DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 45.

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Vale notar que alguns criminólogos críticos não aceitaram sequer a ideia de ressocialização33,

pois, para eles, não se trata de mudar a pessoa que comete o crime, senão a própria estrutura

social34.

A passagem do séc. XX para o XXI desenha outro quadro. Declara-se o fim do socialismo

e celebra-se a vitória do capitalismo hegemônico. Pobreza, desigualdade social e violência

atingem níveis alarmantes. Nos EUA, o Estado de bem-estar social dá lugar ao Estado

Penal. Então, para gerir as massas empobrecidas e sem trabalho, o chamado neoliberalismo

desenvolveu estratégias de criminalização e de controle social de abrangência global, a

exemplo de redução de garantias, penas mais duras, criminalização da vida cotidiana, etc. A

pena é colocada no centro das discussões, quer da direita, quer da esquerda. Nesse rumo,

criminal e bélico se confundem e as figuras do traficante, do “predador sexual” e do terrorista

definem o atual inimigo a ser perseguido pelo Estado. Eis que os níveis de encarceramento

explodem e a indústria do controle do crime se torna um campo absurdamente rentável.

Novos discursos científicos precisam ser produzidos para legitimar o exercício do poder

que se configura em todo esse complexo cenário. Aparecem os argumentos das ciências

biológicas que apresentam a nova face do criminoso nato35. Importante notar que, mesmo

superados os pressupostos teóricos mais grotescos que fundamentaram o paradigma

positivista, é recorrente que os programas políticos ofereçam espaço para o discurso médico,

que sempre diz oferecer formas de intervenção mais eficientes sobre o crime e suas causas.

Atualmente, a ciência genética36 representa um amplo depósito de esperanças para toda

sorte de problemas sociais, não só para a questão da criminalidade, mas especialmente para

a cura de doenças no futuro37.

33 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 27-28.

34 DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 45, 61.

35 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 28-29.

36 A respeito do assunto, por uma perspectiva filosófica, leia o texto de David Leal Silva e Ricardo Jacobsen Gloeckner. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/sistemapenaleviolencia/article/view/18642/0>. Acesso em: 16 mar. 2015. Leia também o texto de David Leal da Silva. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-out-17/david-silva-lei-1265412-destroca-nemo-tenetur-detegere>. Acesso em: 16 mar. 2015.

37 Sobre o tema, veja: LEITE, Marcelo. Retórica Determinista no Genoma Humano. Scientiæ Zudia, São Paulo, v. 4, n. 3, p. 421-52, 2006.

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Neste rumo, a principal tendência da política criminal norte-americana passou a adotar a

lógica atuarial como ferramenta construída com o interesse de gerir a criminalidade de modo

eficiente. O emprego de instrumentos de medição de risco torna-se o mecanismo utilizado

para a formulação de prognósticos que objetivam potencializar a gestão da criminalidade

com base no perfil do criminoso. Essa é a chamada política criminal atuarial. Desvinculada

dos ideais de regeneração disciplinar, apresenta-se como uma prática de inocuização dos

irrecuperáveis. A configuração do sistema de justiça criminal norte-americano encontra

ressonância em outros países do globo, em especial por se assumir que a prisão não dispõe

de outra finalidade senão a de manter perigosos fora do contato com a sociedade.

É precisamente neste sentido que está em processo uma mudança de configuração do

sistema de justiça criminal. Essa mudança pode ser visualizada nos discursos que procuram

conferir fundamento às formas de punir. Os discursos humanistas que se institucionalizavam

e justificavam as práticas punitivas sob o véu da correção38 perdem o espaço que lhes era

reservado. Certo é que quando critérios de justificação são exonerados, outros assumem

seus postos. A partir disso, ganham terreno abordagens do risco e do cálculo, que integram

o chamado modelo neoliberal de influência, na orientação das práticas institucionais, em

sintonia com o emprego de métodos preventivos e no lugar de respostas a posteriori na

gestão da criminalidade39, tal como no reconhecido ocaso do modelo disciplinar.

Nessa mesma direção, constitui-se um tipo de racionalidade pautada por critérios econômicos,

verdadeira mimese dos setores privados40. Logicamente, quando se pretende ampliar ganhos

e minorar custos, os fundamentos das decisões institucionais41 tornam-se pragmáticos: as

utopias são lembradas como fragmentos de um tempo fracassado (um fracasso interessado,

diriam Foucault e Nietzsche). Na formação desse cenário criminológico menos requintado

e livre de promessas de regeneração, a justiça penal torna-se um campo meramente

38 Raúl Zaffaroni acredita que estamos no tempo de assumir uma decisão fundamental: se promoveremos uma sociedade inclusiva, com a incorporação de toda a população, ou se assumiremos que “se terminó la história y es irremisible que um percentaje de población quede excluído y se limite a controlarlo para que no moleste”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Las Palabras de los Muertos: conferencias de criminologia cautelar. Buenos Aires: Ediar, 2011, p. 5.

39 O'MALLEY, Pat. Governmental Criminology. London: Sage, 2009, p. 9-11.

40 GARLAND, David. As Contradições da “Sociedade Punitiva”: o caso britânico. Revista de Sociologia e Política, n. 13, p. 65, 1999.

41 BRAITHWAITE, John. What’s Wrong with the sociology of punishment? London: Sage, 2003, p. 10, 20-23.

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administrativo, ainda que no uso de vestes judiciais. O gerencialismo cuida de (re)definir a

formação das mentalidades que operam a partir da justaposição de sentidos antagônicos,

sem que esse processo gere qualquer problema sistêmico e operacional. Ocorre um duplo

aproveitamento dos influxos sociais na gestão do caos da violência: de um lado, eclodem as

demandas com tendências histérico-populistas; e, de outro, são levadas a sério projeções

paranoicas reivindicadoras do aumento da criminalização em dimensões globalizantes.

Ambos os sentidos estão apoiados no medo constante oriundo da sensação de ameaça

externa.

Em termos de estratégias de poder, instrumentaliza-se o direito penal simbólico por meio da

criminalização segundo interesses de mercado. A expansão punitiva também se compreende

como resultado do unilateralismo cultural norte-americano. Num mesmo ritmo, confirma-se a

tendência bestializante da prisão, totalmente dissociada do ideal de fabricar sujeitos dóceis e

úteis. Então, a animalização do humano, esquematizada por uma lógica eficientista, eleva o

princípio da especialidade prisional a uma utilidade indefensável: conter e destruir os indóceis,

afastando-os do contato com os docilizados42.

3. As relações da política criminal com o direito penal, o direito processual penal e a execução penal

3.1 Direito penal e política criminal

Sabe-se que a política criminal, conforme Juarez Cirino dos Santos43, constitui-se como

“programa oficial de controle do crime e da criminalidade”, ao passo que o direito penal

“representa o sistema de normas que define crimes, comina penas e estabelece os princípios

de sua aplicação”.

No contexto brasileiro e em países periféricos, a política criminal não procura formular

programas que modifiquem as condições de desigualdade social, como políticas públicas de

42 DIETER, Maurício Stegemann. Política Criminal Atuarial: a criminologia do fim da história. Tese Apresentada ao Programa de Doutorado em Direito da Universidade Federal do Paraná. Curitiba: UFPR, 2012, p. 86.

43 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. Curitiba: Lumen Júris, 2007, p. 453.

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emprego, salário digno, saúde, moradia, etc., fatores

estes que representam determinações estruturais

do crime e da criminalidade. Significa que a política

criminal existe como mera política penal, reduzida a

leis penais e complementares, ou seja, “a formulação

legal do programa oficial de controle social do crime

e da criminalidade: a definição de crimes, a aplicação de penas e a execução penal, como

níveis sucessivos da política penal do Estado, representam a única resposta oficial para a

questão criminal”44. O direito penal, em síntese, sendo a formulação legal desse programa

oficial - ao descrever crimes e aplicação de penas e ao conceitualizar princípios da execução

penal -, dá sequência ao programa social de controle da criminalidade45.

Neste sentido, o direito penal procura legitimar sua política criminal pelas teorias da pena,

que apresentam os discursos de retribuição do delito e de prevenção geral e especial como

funções atribuídas à punição. Logicamente, as funções da pena não podem ser vistas pela

lente do discurso oficial, tendo em vista que existem funções reais ou latentes da pena, bem

como funções declaradas pelo discurso oficial das teorias jurídicas. No cenário brasileiro, as

funções declaradas diante das funções latentes explicam a contradição que se constata entre

discurso penal e realidade da punição46. As funções manifestas têm sua razão de existir,

pois, enquanto necessidade republicana, satisfazem o critério de fundamento do exercício do

poder estatal. Logo, se existe um distanciamento entre o discurso manifesto e a função real

da pena, a crítica se torna a maneira de controlar a racionalidade do poder de punir47.

Nesta linha, quando são creditadas funções manifestas à pena, acaba-se por fundamentar

um discurso decorrente da ideologia da defesa social, mesmo que essas funções estejam

desvinculadas de qualquer interesse pragmático, como nas teorias absolutas.

44 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. Curitiba: Lumen Júris, 2007, p. 453.

45 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. Curitiba: Lumen Júris, 2007, p. 453-454.

46 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. Curitiba: Lumen Júris, 2007, p. 454.

47 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal. v. 1. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 88.

LinkPara mais informações das ciências penais na atualidade, ver: <http://www.ibccrim.org.br>.

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3.1.1 Pena como retribuição do crime

Kant foi o maior epresentante desta noção de pena, em que, no seu entendimento, só

se vislumbraria qualquer conteúdo ético se o homem não fosse tratado como meio para fins

alheios. Hegel, por outro lado, entendia que a punição seria a negação da negação do direito

que representa o ato criminoso. Logo, a pena seria a afirmação do direito.

As teorias absolutas não procuram conferir qualquer finalidade à pena, retribuindo apenas

a dimensão da culpabilidade conforme o mal praticado. O limite da intervenção estatal

corresponderia à extensão da culpabilidade, a fim de atender a um critério de justiça amparado

no conceito de livre-arbítrio. Tal função, no entanto, não permite que, por exemplo, o ideal

ressocializador seja empregado no discurso penal.

3.1.2 Teorias da prevenção geral e especial

Quanto às teorias que legitimam o poder punitivo segundo funções manifestas, tem-se a

teoria da prevenção geral (que atua sobre aqueles que não delinquiram), que apresenta sua

versão negativa e positiva.

A teoria da prevenção geral negativa procura dissuadir a prática de crimes, incentivando a

obediência ao Estado e o respeito aos valores socialmente partilhados. A pena tem a tarefa de

servir de exemplo dissuasivo ou amedrontador. As teorias da prevenção geral positiva, numa

versão eticizada (Welzel), procuram reforçar intersubjetivamente os valores dos sujeitos que

não praticam crime, ou seja, os valores ético-sociais mais necessários. Somente a medida de

pena que corresponda a esses valores é aceitável. Na versão sistêmica (Jakobs), pretende-

se confirmar simbolicamente a confiança no direito que o delito procurou abalar, sendo a

pena a medida que garantiria o reequilíbrio do sistema48.

Quanto às teorias da prevenção especial, o que se pretende produzir é um efeito sobre o

indivíduo por meio da pena. A teoria da prevenção especial pode ser negativa ou positiva. No

que toca à negativa, a função atribuída à pena não é outra senão a de neutralizar o criminoso

48 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal. v. 1. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 116.

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ou até eliminá-lo fisicamente (conforme Garófalo defendeu), a fim de que a sociedade possa

ser protegida. A medida a ser empregada é aquela necessária à neutralização do perigo

que o criminoso representa. Já as teorias da prevenção especial positiva estão atreladas ao

conjunto das ideologias re: ressocialização, reeducação, reinserção, etc. Também podem

representar uma função de aprimoramento moral do criminoso, impulsionando o progresso

da sociedade com a medida necessária da pena49.

3.2 Política criminal e processo penal

No processo penal, a política criminal se depara com um impasse de ordem não só

jurídica, mas também civilizacional, que se pode sintetizar pela maior observância ao tipo de

sistema que fundamenta o processo. Trata-se de falar do sistema inquisitorial e do sistema

acusatório. Quer um quer outro dirá sobre o nível de respeito às liberdades e aos direitos

mais fundamentais do cidadão, bem como servirá de termômetro do autoritarismo da política

estatal de controle da criminalidade via processo penal.

O que, basicamente, estabelece a diferença entre os sistemas processuais é a gestão da

prova. O sistema inquisitivo concentra a gestão probatória nas mãos do julgador, sendo o

acusado nada mais do que objeto da investigação sobre a verdade do crime50, que deve ser

encontrada a qualquer custo. Por outro lado, o sistema acusatório pressupõe a separação

entre os sujeitos processuais (acusação, defesa, julgador). Desta feita, conforme Salo de

Carvalho, “a atividade cognoscitiva estaria assegurada por garantias primárias (formulação

49 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal. v. 1. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 116.

50 Seguindo a lição de Winfried Hassemer, existem três motivos essenciais para se abandonar a busca por uma verdade objetiva ou a verdade real no processo penal, a saber: (1) O conhecimento da verdade passa pelo sujeito cognoscente e é influenciado pelas circunstâncias particulares do processo de obtenção do conhecimento, bem como pelas especificidades que dizem respeito à realidade; (2) um processo penal próprio ao Estado de Direito deve respeitar limites na verificação da verdade, tais como o direito de o acusado não se autoincriminar ou o direito ao silêncio (nemo tenetur se detegere), o limite imposto ao juiz no que diz respeito à iniciativa probatória (noção básica do sistema acusatório), etc.; (3) por fim, a verdade no sentido processual é aquela que ampara a absolvição ou a condenação, não numa verdade objetiva, mas no que se deu por comprovado no processo. HASSEMER, Winfried. Crítica al Derecho Pebal de Hoy: norma, interpretación, procedimiento, límites de la prisión preventiva. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2003, p. 84-88.

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da imputação, carga da prova e direito de defesa) e secundárias (publicidade, oralidade,

legalidade e motivação)”51.

No contexto atual da sociedade do risco, regida pela lógica da aceleração, o processo penal

é atingido fortemente pelos princípios da eficiência, da economia processual e da celeridade,

que, a fim de obedecer aos seus próprios critérios, concebem as garantias do acusado

como óbices ao bom funcionamento da máquina burocrática do Estado. Medidas cautelares

assumem o lugar do contraditório, são manejadas como decisões interlocutórias e se

configuram como pena sem processo (na ofensa ao princípio da estrita jurisdicionalidade).

O processo penal já não se inscreve nessa ordem como caminho necessário à pena.

Inversões do ônus da prova e presunções que aniquilam os direitos do acusado (o primado

da hipótese sobre os fatos, conforme Cordero52,53)54 são traços de uma política criminal que

atravessa o processo penal contemporâneo.

Nestes moldes, a legislação brasileira passou, a partir dos anos 1990, a produzir uma legislação

penal especial, que tornou possível empregar mecanismos como o arrependimento eficaz e

a delação premiada. Além disso, o próprio rito sumaríssimo – previsto na Lei nº 9.099/95

– torna-se referência para outras leis, como o Estatuto do Idoso, que prevê que os delitos

(exceto dois deles) de que dispõe terão como orientação os juizados especiais criminais.

Nessa lógica, o princípio da celeridade processual, consagrado pela emenda constitucional

n. 45, torna-se a orientação processual penal, o que, em outras palavras, significa que o

51 CARVALHO, Salo de. Anti-Manual de Criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008, p. 75.

52 Para Alexandre Morais da Rosa: “[...] a estrutura ‘paranoica’, no Processo Penal, aparece sutilmente, eis que encoberta por recursos retóricos ordenados, tanto na assunção de uma postura inquisitória na gestão a prova, quanto na interpretação da conduta”. Continua o autor: “[...] pelo menos nesses dois momentos pode assumir uma postura paranoica, agravada se partidário de movimentos de recrudescimento da repressão, como ‘tolerância zero’, ‘Lei e Ordem’”. Logo, tal Juiz não nos serve. MORAIS DA ROSA, Alexandre. Decisão Penal: a bricolage de significantes. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 315-316.

53 Jacinto Coutinho dirá que, nos quadros mentais paranoicos: “[...] o sujeito toma as imagens que tem na cabeça como reais e, portanto, possíveis. O imaginário, para ele, passa a ser real. Não foi por outro motivo que a Europa Medieval esteve, no medievo, tão ‘invadida’ por ‘demônios’, ‘bruxas’ e tantos agentes do inferno. Por eles, tudo o que fosse contra (na medida do inquisidor, obviamente) a Igreja seria heresia e, assim, quase que invariavelmente levava à fogueira”. COUTINHO, Jacinto Nelson Miranda de. O Sistema Inquisitório e o Processo em “O Mercador de Veneza”. In: Direito e Psicanálise: interseções a partir de “O Mercador de Veneza” de William Shakespeare. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 167.

54 GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Risco e Processo Penal: uma análise a partir dos direitos fundamentais do acusado. Salvador: JusPodium, 2009, p. 207.

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processo deve ter uma duração reduzida ao máximo. Com isso, deixa-se de observar que o

tempo do processo, em prazo razoável, também é uma garantia55.

O que se verifica é que, atendendo à lógica da aceleração e da urgência56, a política criminal

que ganha forma com o processo penal acaba por atender a interesses repressores e

desvinculados de uma leitura constitucional. Em suma, o processo penal perde a capacidade

de limitar os excessos do Estado e de preservar os direitos fundamentais do acusado,

conforme o sistema acusatório.

3.3 Execução penal e política criminal

A maneira de lidar com a violência no Brasil, em termos de política criminal e política

penitenciária, encontra sua motivação para o debate em situações extremas, como, por

exemplo, violência institucional, massacres, fugas, motins, etc., normalmente, exploradas

pelas mídias em razão do seu conteúdo político-autoritário. Não é incomum que o argumento

dos altos gastos estatais com a manutenção dos presídios, acompanhado do descrédito

quanto à regeneração dos apenados, leve a conclusões que, em síntese, apoiam a eliminação

dos criminosos. Constata-se uma lógica belicista de defesa social presente nessa atmosfera

violenta que afeta, inclusive, os funcionários do sistema de justiça criminal57.

Neste cenário, uma das principais falácias a respeito da execução penal consiste em dizer que o

problema da violação dos direitos mais básicos dos apenados se concentra na incompetência

do Estado, que não cumpre a Lei de Execução Penal. Partindo dessa ideia, se os órgãos do

Estado atuassem de modo satisfatório, a crise do sistema estaria resolvida. Ora, tal discurso

55 GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Risco e Processo Penal: uma análise a partir dos direitos fundamentais do acusado. Salvador: JusPodium, 2009, p. 207-211.

56 Aspecto interessante de observar é que a ideologia neoliberal procura propagar a fratura social não mais entre classes, senão entre bem-sucedidos e malsucedidos. O resultado pelo insucesso é responsabilidade de cada um. Eis uma nova amoralidade autointitulada apolítica, que sustenta um discurso perverso direcionado ao Estado do Mal-Estar penal aos ontologicamente incapazes, em detrimento do Estado Social, abusando do sistema penal cautelar, prendendo-se com fundamento na prevenção. Aliás, dois terços da massa encarcerada latino-americana se justifica com a prisão cautelar. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas Mãos da Criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 293.

57 CARVALHO, Salo de. Da Necessidade de Efetivação do Sistema Acusatório no Processo de Execução Penal. In: Critica à Execução Penal. Coordenação de Salo de Carvalho. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 417.

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tem sido empregado para mascarar a própria irresponsabilidade dos juristas que a transferem

ao Estado-administração58.

Assim sendo, a questão fundamental que se coloca diz respeito à distinção entre atos de

administração e atos de jurisdição frente aos problemas que concernem à execução penal.

Sustenta-se que a função administrativa se diferencia da jurisdicional, pois naquela o

administrador tem a possibilidade de agir espontaneamente, bem como adotar medidas de

caráter preventivo a fim de coibir a violação legal; ao passo que o juiz age por provocação e sua

atuação ocorre quando a lei já resultou violada. Por ser de interesse coletivo, a administração

pública, voltada para o interesse público, deveria cuidar da aplicação da pena. Com isso, o

direito penitenciário ganharia autonomia em relação ao direito penal e ao processo penal59.

De acordo com a tradição teórica, o direito penitenciário - enquanto conjunto de normas

reguladoras da organização carcerária e de diretrizes administrativas - dispõe de autonomia

funcional e principiológica. Em razão de tal natureza administrativa, a atuação dos órgãos do

serviço penitenciário não estaria subordinada ao juízo de execução, nem mesmo ao Ministério

Público60. A questão é que, se depois de transitada em julgado a sentença condenatória

estaria esgotada a jurisdição, surge aqui o impasse, por exemplo, sobre as intervenções

judiciais nos chamados incidentes da execução. Teoricamente, tais incidentes permitiram

conceber um modelo híbrido sobre a natureza da execução. Assim, às disposições atinentes

ao direito penitenciário estariam sujeitos os incidentes de caráter administrativo, enquanto que

os incidentes de caráter judicial ou misto estariam sujeitos ao controle judicial, em especial

para a concessão de “benesses legais”. Tal distinção, inegavelmente, refere-se à estratégia

de política criminal de gestão disciplinar da massa carcerária. Não procede, contudo, que

direitos decorrentes de incidentes sejam considerados benefícios, medidas político-criminais

58 CARVALHO, Salo de. Da Necessidade de Efetivação do Sistema Acusatório no Processo de Execução Penal. In: Critica à Execução Penal. Coordenação de Salo de Carvalho. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 418.

59 “Imprescindível notar, preliminarmente, a impossibilidade de existência de um sistema jurídico híbrido ou misto, seja ele processual, penal ou penalógico, como inúmeros autores postulam. A característica dos sistemas, como a dos paradigmas e dos tipos ideais, é sua identificação a partir de alguns rígidos princípios unificadores. Deles apenas se aproximam tendências opostas, sendo impossível fusão sistemática ou paradigmática. O modelo jurídico é garantista ou antigarantista. O sistema processual é acusatório ou inquisitório. O sistema executivo é jurisdicional ou administrativo”. CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 156, 170.

60 CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 156.

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que dependeriam do espaço de discricionariedade do juiz. Essa discricionariedade é geradora

de lesões aos direitos dos presos. Daí que a Lei nº 7.210/84 normatizou a execução penal a

fim de garantir minimamente seus direitos61.

Neste contexto, a LEP estabeleceu um processo de jurisdicionalização, conforme os artigos

1º (conteúdo jurídico da execução penal), 2º (jurisdição e processo), 66 (competência do juiz

da execução penal) e 194 (procedimento judicial), que, no entanto, não efetivou a mudança

da natureza jurídica da execução. O problema que logo surge é que o modelo jurisdicional

adotado pela LEP é autoritário, pois submete o seu direito processual penal às regras do

procedimento administrativo, o que significa, em outras palavras, que existe um embate

entre os direitos do apenado e a ação administrativa, que se fundamenta na disciplina e na

segurança. Nessa esteira de argumentos, o procedimento de instrução e julgamento das faltas

disciplinares é gerido pela administração penitenciária, operando como verdadeira atividade

extensiva do juízo de execução (conforme seu art. 47)62. Assim, o juiz, na execução, tem o

poder de controlar os atos administrativos com o intuito de proteger a dignidade do preso. A

ideia de não intervenção judicial, sem dúvida, permite que os apenados sejam deixados à

mercê da negligência estatal.

Ressalta-se que uma série de direitos e garantias passa a existir a partir do momento em que

alguém é colocado na condição de apenado. Contudo, a efetividade de direitos e garantias

somente se torna viável na execução penal se houver instrumentalidade garantista, filtro

constitucional que deveria pautar as práticas institucionais. Também, é fundamental que

se diga que os problemas do sistema carcerário não estão adstritos às suas condições

materiais ou domesticas, mas à incapacidade administrativa do poder público. Mesmo que

fossem observadas as condições mínimas da vida prisional, ainda assim não cessariam os

problemas da execução da pena. É que existe uma grande diversidade de problemas nas

estruturas normativas, demonstrando que, mesmo que a LEP fosse cumprida, os direitos da

massa carcerária continuariam sendo violados em razão da estrutura processual inquisitória

que modela o último estágio do processo penal. Noutras palavras: “a estrutura normativa do

61 CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 165-166.

62 CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 165-167.

Aula 01 | Bases Epistemológicas da Política Criminal

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processo de Execução Penal, longe de estar preparada para garantir os direitos do apenado,

não possui instrumentalidade mínima em decorrência de sua sistematicidade inquisitória”63.

O que se conclui é que a juriscionalização do processo de execução continuará insatisfatória

e ineficaz se o sistema de execução se mantiver operando segundo a linha inquisitorial.

O grau mínimo de garantias a partir da principiologia acusatória, com a ampla defesa, o

contraditório, a oralidade e a livre apreciação da prova, possibilita a imparcialidade do julgador

em suas decisões, já que se trata também de uma abordagem de política criminal redutora

dos danos e da barbárie da vida em sociedade. A execução penal, em suma, exige uma

leitura constitucional que reverta a realidade do sistema de justiça criminal vigente64.

63 CARVALHO, Salo de. Da Necessidade de Efetivação do Sistema Acusatório no Processo de Execução Penal. In: Critica à Execução Penal. Coordenação de Salo de Carvalho. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 419.

64 CARVALHO, Salo de. Da Necessidade de Efetivação do Sistema Acusatório no Processo de Execução Penal. In: Critica à Execução Penal. Coordenação de Salo de Carvalho. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 426.

Vamos pensar

Elabore um breve texto a respeito da influência do pensamento positivista no desenvol-

vimento do estudo brasileiro. Indica-se como referência os textos de Raimundo Nina Rodri-

gues, conhecido como o “Lombroso dos trópicos”

• A função da moderna política criminal.

• O controle da criminalidade e a relação saber-poder.

Pontuando

Aula 01 | Bases Epistemológicas da Política Criminal

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Ideologia: “conjunto de ideias, crenças, tradições, princípios e mitos, sustentados por um

indivíduo ou grupo social, de uma época, de uma sociedade”. Fonte: INSTITUTO Antônio

Houaiss (Org.). Dicionário Houaiss Conciso. São Paulo: Moderna, 2011, p. 511.

Glossário

• A política criminal em contato com a(s) criminologia(s).

• As relações da política criminal com o direito penal, o direito processual penal e a

execução penal.

Verificaçãode leitura

INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 1

Tradicionalmente, como é definida a Política

Criminal?

a) Como um conjunto de princípios e recomen-dações que tem por objetivo a manutenção da legislação penal.

b) Como um conjunto de princípios e reco-mendações que tem por objetivo reformar ou modificar a legislação penal, para que esta seja aplicada por parte dos órgãos responsáveis.

c) Como um conjunto de princípios e recomen-dações que tem por objetivo a manutenção da legislação constitucional, para que esta seja aplicada por parte dos órgãos responsáveis.

d) Superar e modificar a execução penal.

e) Promover a manutenção dos princípios da execução penal.

Pontuando

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INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 2

A função da Política Criminal consiste em:

a) Estabelecer como devem ser determinadas decisões no âmbito do controle legislativo, com a finalidade de proteger a sociedade.

b) Estabelecer como devem ser determinadas decisões no âmbito do controle de constitucio-nalidade, com a finalidade de proteger a socie-dade de modo eficiente.

c) Promover o controle social.

d) Estabelecer como devem ser determinadas decisões no âmbito do controle social, com a finalidade de proteger a sociedade de modo eficiente.

e) Promover o controle legiferante.

INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 3

Qual autor nacional, na obra “Introdução Crí-

tica ao Direito Penal Brasileiro” (2002), en-

tende que a política criminal é assunto de

ciência política, envolvendo a política de se-

gurança pública, a política judiciária e a polí-

tica penitenciária?

a) Aury Lopes Jr.

b) Heleno Fragoso.

c) Nilo Batista.

d) Alberto Silva Franco.

e) Yuri Felix.

INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 4

Qual autor contemporâneo trabalha a ques-

tão criminal na dinâmica da relação saber--poder?

a) Becker.

b) Radbruch.

c) Anibal Bruno.

d) Michel Foucault.

e) Levi-Strass.

INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 5

A negação do livre-arbítrio, a crença no de-

terminismo e na previsibilidade comporta-

mental, a separação entre ciência e moral,

a neutralidade axiológica da ciência e a utili-

zação do método indutivo qualitativo são ca-

racterísticas da Escola:

a) Nacionalista.

b) Moralista.

c) Positiva.

d) Científica.

e) Materialista.

Verificação de Leitura

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Referências

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Questão 1

Resposta: Alternativa B.

Resolução: A política criminal é definida, tradicionalmente, como um conjunto de princípios e

recomendações que tem por objetivo reformar ou modificar a legislação penal, para que esta

seja aplicada por parte dos órgãos responsáveis.

Questão 2

Resposta: Alternativa D.

Resolução: A política criminal pode ser mais bem compreendida como programa que

estabelece as condutas para repressão e prevenção da criminalidade e controle de suas

consequências. Daí que sua função consiste em estabelecer como devem ser determinadas

decisões no âmbito do controle social, com a finalidade de proteger a sociedade de modo

eficiente.

Questão 3

Resposta: Alternativa C.

Resolução: Nilo Batista entende que a política criminal - definitivamente, assunto de ciência

política - abarca assuntos que envolvem a política de segurança pública, a política judiciária

e a política penitenciária.

Gabarito

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Questão 4

Resposta: Alternativa D.

Resolução: Pode-se aproximar a questão criminal da dinâmica da relação saber-poder, como demonstrou Michel Foucault em Microfísica do Poder, quando descreveu a lógica de

produção do saber segundo práticas envolvendo o exercício do poder, o que, certamente,

dificulta o reconhecimento de uma linha divisória entre teoria e prática.

Questão 5

Resposta: Alternativa C.

Resolução: É a partir da obra de Lombroso - O Homem Delinquente (1876) - que se consagra

o nascimento da Escola Positiva italiana. Pode-se elencar como características principais

desta escola: a negação do livre-arbítrio, a crença no determinismo e na previsibilidade

comportamental, a separação entre ciência e moral, a neutralidade axiológica da ciência e a

utilização do método indutivo qualitativo.

Gabarito

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TEMA 02Punição, Seletividade e Conflito sobre a Política Criminal: por trás dos discursos do consenso

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LEGENDA DE ÍCONES seções

35

Início

Referências

Gabarito

Verificaçãode leitura

Pontuando

Vamos pensar

Glossário

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Aula

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02

Punição, Seletividade e Conflito sobre a Política Criminal: por trás dos discursos do consenso

Clécio LemosDoutorando em Direito pela PUC-Rio

Mestre em Direito pela UERJ

Coordenador do IBCCrim no Espírito Santo

Correspondente do ICC no Espírito Santo

Objetivo

O presente escrito tem por objetivo informar as relações da punição, a seletividade inerente

ao poder punitivo e o conflito gerado na complexidade do mundo da incerteza.

Resumo da Aula

Caro aluno, o presente texto avalia o sistema penal como uma ferramenta política de

conformação do social, localizando as variações punitivas fora dos discursos tradicionais.

Além disso, verifica o teor político da impunidade e da aplicação das penas, relacionando tais

fenômenos com a organização pretendida pelos grupos de poder.

“O crime, neste sentido, é comportamento político, e o criminoso torna-se, na realidade, um membro de um ‘grupo minoritário’, sem a base pública suficiente para dominar e controlar o poder de polícia do Estado.”

Alessandro Baratta

1. Introdução

Lendo a grande obra de Zaffaroni e Nilo Batista, deparo-me com a seguinte afirmação:

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Aula 02 | Punição, Seletividade e Conflito sobre a Política Criminal: por trás dos discursos do consenso

De qualquer maneira, a circunstância de que todos os que pensaram política tenham se ocupado do poder punitivo, a partir da filosofia, comprova que não erraram em seu diagnóstico quanto a considerá-lo uma questão central do poder político, o que contrasta marcantemente com a atitude dos cientistas políticos do século XX, que negligenciaram o tema e minimizaram-no até deixá-lo oculto, ao mesmo tempo que os penalistas também ocultavam a dimensão política básica de suas propostas.1

Anunciam os autores, portanto, que é hora da ciência penal despertar definitivamente para o

cerne político do sistema punitivo. Indicam, assim, que a compreensão da forma com que os

Estados usam suas penas deve ter primazia no fator político.

Parece fundamental trazer algumas contribuições para compreender tal afirmação. Se os

autores estão certos em sua assertiva, a tarefa não se encontra facilitada diante do campo

discursivo predominante. Há uma forte percepção do fenômeno criminal absolutamente

distante de sua gênese política, produzida tanto pelas correntes midiáticas, quanto pelos

penalistas dos últimos séculos.

Cabe aqui tentar promover informações para um reencontro da pena com sua raiz política.

Um resgate da Política Criminal, como forma de possibilitar as modificações necessárias para

uma leitura adequada do fenômeno punitivo.

2. Desvio e impunidade

Começarei pelo lado menos óbvio da questão: o sistema penal é político quando não

pune. Seja naquilo que não é fixado como crime (criminalização primária), seja naquilo que

não é perseguido concretamente pelo Estado (criminalização secundária), há uma rede de

seletividade intrínseca ao funcionamento de todos os sistemas penais existentes até hoje.

Por isso, Albert K. Cohen teria afirmado ainda em meados do século XX que uma dose de cifra

oculta funciona como válvula de segurança necessária ao sistema. A famosa “impunidade”,

tradicional vilã dos discursos hegemônicos liberais, é apresentada pelo autor como algo

salutar, ou mesmo desejado.2

1 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 532.

2 COHEN, Albert K. Transgressão e controle. São Paulo: Pioneira editora, 1968, p. 24.

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Não é difícil perceber o quanto esta ideia afronta o status quo do penalismo tradicional de

matriz iluminista, cujas luzes ainda brilham intensas sobre os pensamentos acerca da questão

criminal. Cohen sugere ainda outra questão de suma importância, qual seja, a possível relação

entre a quantidade de desvios punidos e a dita “ordem legítima”. Uma cumplicidade entre o

crime e o Estado.

Os círculos científicos penais nos trouxeram a impunidade como o grande mal a ser aplacado.

Isso ronda o imaginário científico e popular há quase três séculos e foi reforçado por um

conjunto de autores de referência nos estudos de Política Criminal.

Talvez encontremos em Beccaria a mais tradicional dessas falas. Como todos sabem, o

italiano foi um marco na instauração do penalismo ilustrado, apresentando-se com uma

ruptura no pensamento de seu tempo, na medida em que defende penas mais humanizadas

e assegura que o caráter preventivo do sistema penal está mais relacionado com o fim da

impunidade do que com o rigor das punições.3

Montesquieu também foi um entusiasta do caráter preventivo das penas. Mesmo em sua obra

mais famosa se encontra a defesa eloquente de um sistema implacável com os delinquentes.

A pena teria seu caráter de dissuadir das práticas criminosas à medida que os delinquentes

a percebessem como uma consequência inevitável.4

Francesco Carrara deve ser igualmente lembrado como um ícone destes pensamentos.

Seu famoso Curso de Direito Criminal, elaborado em 1859, se debruça de forma acentuada

sobre a perseguição da impunidade como meta final, o que seria supostamente essencial à

formação de uma ordem pacífica.5

A lista não para por aqui, outros tantos poderiam se inserir.6 Mas o que desejo destacar é que

tal pensamento traz no seu coração uma ideia profundamente equivocada: que é possível

punir todos os crimes e, assim, que o Estado é capaz de extirpar a criminalidade.

3 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 60.

4 MONTESQUIEU. O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 95.

5 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 37.

6 Ainda podem ser citados como penalistas ilustrados de grande relevância: Jean-Paul Marat, Paul Johann Anselm Feuerbach e Giandomenico Romagnosi.

Aula 02 | Punição, Seletividade e Conflito sobre a Política Criminal: por trás dos discursos do consenso

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A inviabilidade de se punir todos os crimes é um fato incontestável. Nunca houve nem haverá um Estado com tamanha efetividade, e é desejável que realmente não venha a existir. Eis uma pretensão absolutamente totalitária, obsessiva, tal como a sociedade do Big Brother tão bem idealizada por George Orwel em sua obra “1984”.

Dada a quantidade de crimes existentes em países como o Brasil, é francamente inimaginável um Estado que tenha a capacidade de alcançar todos os delitos. Não é factível, simplesmente, bastando perceber a incapacidade material do Estado de estar em todos os lugares ao mesmo tempo, ou mesmo a sua deficiência de aparato para processar e punir todas as práticas delituosas.7

Pretender uma sociedade sem desvio é ainda mais ilusório. São famosas as afirmações de Durkheim sobre o fato de que o crime é um fator normal e inafastável. O autor foi um dos primeiros responsáveis por estabelecer um olhar não patológico sobre o crime. O criminoso é visto como uma figura regular de qualquer organização social.

Contrariamente ás ideias correntes, o criminoso não mais aparece como um ser radicalmente insociável, como uma espécie de elemento parasitário, corpo estranho e inassimilável, introduzido no seio da sociedade; ele é um agente regular da vida social.8

Em outra passagem da mesma obra, o autor chega mesmo a afirmar que o delinquente pode

representar um papel salutar na organização social, o que lembra a execução de Sócrates

como demonstração de que alguns daqueles considerados delinquentes, em verdade, podem

estar apresentando uma evolução na escala moral.

Aliás, vale aqui lembrar outro sociólogo. Robert Merton, em sua teoria da anomia, defende

que o desvio é um descompasso com as vias da estrutura social. Se a organização definida

indica apenas certos meios lícitos, e naturalmente esta é uma forma de estreitar o número de

eleitos para alcançar o status desejado, é inevitável que haja o delito como uma consequência

do que é protegido pelo Estado.9

7 A título de curiosidade, o Conselho Nacional de Justiça divulgou em 2013 que havia cerca de 200.000 mandados de prisão em aberto, o que equivale a quase um terço do sistema prisional. Disponível em: <http://aasp.jusbrasil.com.br/noticias/100369095/cnj-brasil-tem-mais-de-192-mil-mandados-de-prisao-aguardando-cumprimento>. Acesso em: 04 fev. 2015.

8 DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 73.

9 MERTON, Robert K. Sociologia: teoria e estrutura. São Paulo: Mestre Jou, 1970, p. 207.

Aula 02 | Punição, Seletividade e Conflito sobre a Política Criminal: por trás dos discursos do consenso

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Fato é que os crimes não irão parar e o sistema punitivo nunca terá como dar conta de

todas as punições pretensamente programadas. A simbiose funcional entre o lícito e ilícito

acaba por representar um desinteresse preordenado contra a repressão absoluta. A própria

carência de estrutura (polícia, justiça e presídios) é produzida para isso.

No Brasil não há dados estatísticos confiáveis acerca do índice de fatos criminalizáveis

efetivamente não punidos. Em outras palavras, não existem pesquisas de vitimização

capazes de afirmar o volume de crimes que não são investigados e reprimidos. Os índices

de condenação ou de aumento do sistema carcerário nada contribuem para alcançar tal

percepção, pois nos fornecem apenas a quantidade de casos que o Estado conseguiu

descobrir e punir, ou seja, os casos selecionados.

Uma estimativa muito otimista nos remeteria tranquilamente a porcentagens acima de 95%

de impunidade no Brasil. Basta pensar no volume de crimes econômicos absolutamente

invisíveis (destacaria aqui a sonegação fiscal10) e perceber o que nos sobra.

Como a cifra oculta de delitos é nitidamente alta,

variações no volume de pessoas presas em nada

indicam um real aumento de criminalidade. A elevação

do número de casos que o Estado conseguiu punir

pode representar uma mera queda dos índices de

cifra negra, não guardando relação com o volume de

delitos praticados.

Parece incontestável que a população de nosso país convive bem mais com crimes não

punidos do que o contrário. É fácil afirmar que a regra é verdadeiramente a dita “impunidade”.

Não seria muito dizer que convivemos numa realidade fática de mais ausência de punição,

ainda que não devamos esquecer que nosso sistema penal está no seu ápice histórico. A

última estimativa, realizada pelo CNJ em 2014, indica que há 711.463 presos no Brasil.11 Com

10 Conforme relatórios da Tax Justice Network, o Brasil sempre se encontra entre os países com os maiores índices de sonegação do mundo. A estimativa foi de 280 bilhões sonegados no ano de 2011, de forma que perdemos apenas para os EUA. Disponível em: <http://www.taxjustice.net/>. Acesso em: 05 jan. 2015.

11 Disponível em: <http://wagnerfrancesco.jusbrasil.com.br/noticias/129733348/cnj-divulga-dados-sobre-nova-populacao-carceraria-brasileira>. Acesso em: 15 jan. 2015.

LinkPara informações sobre índices de cri-minalidade e população carcerária, ver: <http://portal.mj.gov.br>.

Aula 02 | Punição, Seletividade e Conflito sobre a Política Criminal: por trás dos discursos do consenso

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relação às penas e medidas alternativas, o Ministério da Justiça informou em 2009 que havia

então 671.078 pessoas cumprindo sanções nestes moldes. Punições que se complementam,

perfazendo nossa teia punitiva.12

É normal ver nos jornais discursos atribuindo a grande impunidade à leniência das leis

brasileiras, ou ainda relacionando-a com a ineficácia da justiça. A mídia brasileira tem se

mantido firme em seu propósito de manejar o alarme popular, reduzindo os problemas sociais

aos conflitos criminalizáveis e apagando do campo discursivo o debate sobre a estrutura

política.

Em verdade, o discurso da crença no sistema penal como solução, ou mesmo a ideia de fim

da impunidade como remédio, é uma opção simplista que esconde o fato óbvio de que o

sistema punitivo é uma ferramenta política, um filtro que cumpre função estrutural na forma

de organização social instaurada.

Como negar então que a impunidade predominante nos crimes de colarinho branco é uma

expressão nítida do caráter político do sistema penal? Não há quem conteste que a cifra

oculta nos ditos crimes econômicos é absolutamente superior aos crimes das classes baixas,

e resta cristalino que essa seletividade é manejada. Há um desinteresse pelos desvios das

classes poderosas e um ímpeto especial pelos crimes das “classes perigosas”.

Não por outro motivo, Foucault percebeu em tempo que o discurso dos penalistas falseava

sua real funcionalidade. O objetivo nunca foi efetivamente suprimir os crimes, mas instituir

uma forma de gerir as ilicitudes criadas pela lei e manejar o social a partir de cima.

Quer dizer que se, aparentemente, a nova legislação criminal se caracteriza por uma suavização das penas, uma codificação mais nítida, uma considerável diminuição do arbitrário, um consenso mais bem estabelecido a respeito do poder de punir (na falta de uma partilha mais real de seu exercício), ela é apoiada basicamente por uma profunda alteração na economia tradicional das ilegalidades e uma rigorosa coerção para manter seu novo ajustamento. Um sistema penal deve ser concebido como um instrumento para gerir diferencialmente as ilegalidades, não para suprimi-las todas.13

12 CARVALHO, Salo. Substitutivos penais na era do grande encarceramento. In: ABRAMOVAY, Pedro Vieira; BATISTA, Vera Malaguti (Org.). Depois do grande encarceramento. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 379.

13 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 38. ed. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 75.

Aula 02 | Punição, Seletividade e Conflito sobre a Política Criminal: por trás dos discursos do consenso

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Portanto, o foco deve estar no campo político, na funcionalidade real dos aparatos oficiais de

punição, e a compreensão de sua mecânica para além dos discursos que o legitimam.14

3. Todo Crime é político

Todo crime é político, e o sistema penal é igualmente político quando pune. Para uma conduta se tornar crime, basta que o Estado assim decida. Aí, portanto, está a primeira apropriação necessária e clara de que uma conduta só passa a ser crime a partir de uma diretiva política: a lei. A própria criminalização primária é uma opção nas mãos dos legisladores, bastando ver que condutas hoje consideradas crimes antes não o eram, ou mesmo o fato de que certas condutas são tidas como crimes em certos países e em outros não.15

O crime não está na natureza. Até mesmo o homicídio certas vezes é tolerado pelo Estado e pela sociedade, perceba-se. Matar alguém sob legítima defesa não configura crime, mas ainda assim significa ceifar a vida de outra pessoa. O mesmo se pode dizer da execução da pena de morte em países como EUA e China. Morte legitimada pelo Estado, homicídio oficial, porém, ainda homicídio.

Não há nenhum dado comum entre as condutas criminalizadas, sobretudo em tempos de legiferação excessiva. Nem mesmo é unânime a rejeição social às condutas, bastando aqui lembrar os movimentos pela legalização da Maconha (Marcha da Maconha) em todo o território brasileiro. Enfim, o único dado que une a imensa quantidade de crimes estipulados pela programação criminalizante é o próprio dado político, ou seja, o próprio ato político de criminalizar.16

É a política que define o que é crime, logo, todo crime é político. E a prática de uma conduta criminalizável só ganha relevo na medida em que afronta um aparato manejado para estabelecer certo padrão social de conduta. Assim, ao afrontar a programação legal definida

por um grupo político, o delito ganha expressão por negar um poder instituído.

14 RUSCHE, George; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 19.

15 Vale destacar a iniciativa corajosa e louvável do Uruguai de se tornar o primeiro país a legalizar o cultivo e venda da cannabis.16 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 135.

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Não há como fugir do fato de que todo crime punido é uma espécie de contestação política,

ainda que na maioria das vezes o seu autor não tenha consciência disso. A presença de

certas práticas formalmente criminosas e que acintosamente não são perseguidas pelas

autoridades policiais, como percebemos fartamente com relação ao jogo do bicho, casas de

prostituição e venda de DVDs piratas no Brasil, é uma boa demonstração de que o sistema

penal só atua preferencialmente quando a prática ofende a “ordem” instituída, ou seja, o

praticante é perseguido porque ameaça uma conformação política.

Desde as descobertas sociológicas do Rotulacionismo, estamos devidamente informados de

que o fator definitivo de criminalização não está na conduta, mas na reação social. Todavia,

é preciso ir além e verificar que a “reação social” é criada politicamente, para assim não

incorrermos nas ditas teorias de médio alcance, como sempre lembra Baratta.17

Despidos das teorias do consenso, já não podemos acreditar no contratualismo que vende a

ideia das leis como projeção do social. Toda a tradição da Criminologia Crítica informa que a

atuação do sistema punitivo é estruturada de forma a favorecer interesses de certos grupos

em detrimento de outros. Logo, nem as leis, nem as agências executivas penais são movidas

pelo interesse de todos, pela defesa social, ou por algo que o valha.

É preciso fugir do engodo de querer filiar o rótulo “crime” a uma objeção social. Se não

podemos negar que certa parte dos crimes realmente produz um efeito de rejeição por

parte da sociedade, todavia, não é este o fator central no estabelecimento da programação

criminalizante.

Becker foi suficientemente claro ao indicar que os empreendedores morais não raro se prestam

a promover suas cruzadas de criminalização para servir a interesses egoístas de pequenos

grupos, por vezes conflitantes com o bem-estar social. Talvez esta seja verdadeiramente a

regra em tempos neoliberais, levando à mão o Direito Penal simbólico como mais um produto

de consumo.18

17 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 99.

18 BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 161.

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Dentro dessa inevitabilidade do delito e de sua cada vez mais ampla possibilidade de

incursão, por causa da inflação legislativa típica de nossos tempos, o Estado encontra um

potente mecanismo de poder, já que cria para si a legitimação necessária para incidir de

forma rigorosa sobre a maior parte dos cidadãos. A etiqueta de crime, criada pelo Estado, é

justamente o código que deflagra sua atuação mais potente: a pena.

Mas, é preciso ir além e penetrar no campo da Política Criminal e sua relação com as

estruturas sociais. Partindo da premissa de que o crime é um ente politicamente manejado,

estamos aptos a analisar o sistema prisional como parte de um todo engendrado, envolvendo

o sistema econômico e social (modo de produção).

Vera Malaguti lembra que analisar o fluxo punitivo não pode dispensar a verificação da

“demanda por ordem” dos grupos de poder existentes em cada organização social.

A questão criminal, depois do marxismo, só pode ser pensada em sociedades concretas e específicas. O direito aparece então como um corpo de interpretações que são aceitas como válidas numa determinada conjuntura, a partir de uma demanda por ordem oriunda das necessidades econômicas, sociais e culturais. É importante ter em foco que as estratégias de controle social podem ser formais ou informais.19

Uma interessante passagem pode ser encontrada na obra de Nils Christie. O autor põe-se

a verificar por que os índices de encarceramento dos EUA são tão próximos dos índices da

Rússia e tão destoantes dos índices do seu vizinho Canadá.20 Percebendo as semelhanças

entre os EUA e a Rússia, o autor indica que ambos: 1) promovem grande distância social

(desigualdade no poder); 2) possuem um judiciário enfraquecido; 3) possuem suas raízes na

servidão e na escravidão.

Por sua vez, os EUA estão ladeados por um país cujo sistema prisional é absolutamente

distinto. Segundo o autor, o índice norte-americano aponta 730 presos para cada 100.000

habitantes, enquanto o índice canadense é de menos de 116. Para Christie, o fator decisivo é

que o Canadá permanece no modelo político de bem-estar social e seus servidores civis são

conscientes da necessidade de manter a população carcerária em níveis reduzidos.

19 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 81.

20 CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 89-96.

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É também nesta relação entre a face socioeconômica e a face punitiva que se insere o foco

de Loïc Wacquant. Analisando a escalada prisional dos EUA nas últimas três décadas21, o

autor indica que a elevação do sistema penal só pode ser explicada por uma manobra política

de controle das classes pobres em função do aumento da “insegurança social”.

Instituídas as mudanças socioeconômicas típicas do neoliberalismo, sobretudo a desregulação

econômica, a precarização do trabalho e o decréscimo rigoroso das medidas assistenciais

(desmantelamento previdenciário), houve um incremento da pobreza e da desigualdade

social, que passaram a ser administradas pelo sistema punitivo. Surge o Estado Centauro.22

Todo esse cenário demonstra que o fluxo punitivo foi alterado não por modificações culturais

(demanda social), ou por alterações nos parâmetros científicos (jurídico-penais), mas por

uma mudança política manejada para atender à nova estrutura social desejada pela classe

dominante. Esse é o verdadeiro dado constante dos sistemas penais: seu volume e estilo

acompanham uma estrutura social politicamente manejada.23

Nesses termos, a seletividade é estrutural e qualificada. O sistema recai de forma desigual

porque seu fluxo é político, e não isonômico. A incidência penal concreta não se guia por

teorias jurídicas, pelo menos não em sua origem, mas por uma demanda que atende ao

interesse por um tipo específico de estrutura socioeconômica.

Obviamente, tão estrutural quanto a essência

política seletiva do sistema penal é a existência

dos discursos que falseiam sua funcionalidade.

Todos os sistemas penais sempre preservaram seu

verniz ideológico, mantendo a legitimação de sua

atuação para longe de seu caráter político. Nada

mais político do que camuflar o caráter político.

21 Segundo dados oficiais dos próprios EUA, a população prisional do país em 1980 era de 501.886, saltando em 2009 para 2.284.913. Disponível em: <http://bjs.ojp.usdoj.gov/>. Acesso em: 2 fev. 2015.

22 WACQUANT, Loïc. Apêndice teórico: um esboço do Estado neoliberal. In: Discursos sediciosos. Rio de Janeiro, ano 15, n. 17/18, 1º e 2º sem. 2010, p. 155.

23 RUSCHE, George; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 25.

Saiba MaisPara análise, ver: BATISTA, Nilo. Po-lítica criminal com derramamento de sangue. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n° 20, out./dez. 1997.

Aula 02 | Punição, Seletividade e Conflito sobre a Política Criminal: por trás dos discursos do consenso

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Atualmente, a principal agência de preservação da alta performance punitiva se encontra no

que Zaffaroni denominou “criminologia midiática”. Assim como faz propagandas para vender

shampoos e carros, a grande mídia se encarrega de produzir o dito consenso sobre o suposto

caos social e o rigor penal como solução.

A mais clara e elaborada tática völkisch de nossos dias é a própria criminologia midiática, pois sintetiza, em seus estereótipos, os piores preconceitos discriminatórios de cada sociedade e os manipula e aprofunda para criar um eles de inimigos que são a imundice e a escória dos homicidas que ainda não mataram.24

Naturalmente, tal como não tem compromisso com a qualidade dos produtos que anuncia,

a mídia igualmente não traz consigo o rigor científico com relação à defesa do punitivismo

como forma de gestão social, nem com o pânico que produz na comunidade.

Longe de atender a um reclamo contra o aumento da criminalidade, pode-se afirmar com

segurança que o aumento do sistema prisional, típico das últimas décadas (tal como ocorrido

nos EUA e no Brasil), corresponde a uma estratégia de poder pela dominação de novo

fôlego das classes baixas. Como já foi dito, não há estatísticas sobre o aumento real da

criminalidade, e os estudos mais competentes sobre política criminal remetem ao fato de que

as variações históricas dos sistemas penais estão sempre mais relacionadas ao modo de

produção do que propriamente à segurança.25

O aumento do sistema penal sob o argumento de fortalecimento da segurança não se

sustenta. Há uma contradição óbvia entre esta lógica atuarial e a eficiência na construção de

uma sociedade pacífica, como ensina Maurício Dieter.26

Por tudo, ainda que por vezes se tente relacionar o grande encarceramento da virada do

século XXI ao aumento da criminalidade, como parece sugerir o próprio David Garland27,

não podemos afirmar tal elevação e, acima de tudo, possuímos em mãos um corpo teórico

24 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 330.

25 SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. 3. ed. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2008, p. 125.

26 DIETER, Maurício Stegemann. Política Criminal Atuarial: a criminologia do fim da história. Rio de Janeiro: Revan, 2013, p. 224-225.

27 GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 332-335.

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suficiente para demonstrar que o aumento do sistema punitivo guarda relação predominante

com uma mecânica de poder, cujos interesses estão mais relacionados a uma gestão

interessada da estrutura de privilégios econômicos e desigualdades sociais.

4. Conclusão

Por tudo exposto, falha quem pretende encontrar explicação para as variações no volume

do sistema punitivo com base na cultura, nas teorias da pena, ou mesmo no índice de

criminalidade. Por isso, adentrar na Política Criminal hoje em dia é remar contra o discurso

hegemônico.

A herança deixada pela Criminologia Crítica é suficientemente consistente para deixar claro

que tais fatores, ainda que relevantes, são secundários, quando, em verdade, a única forma

de encontrar uma base para os fluxos punitivos está necessariamente na organização política

de cada povo (não necessariamente feita pelo povo) e na estrutura social (macrossociológica)

pretendida por aqueles que controlam o poder.

Resgatar a base política que movimenta toda a seletividade penal, da tipificação da conduta

até a execução penal, é uma demanda urgente nos estudos de Ciências Criminais, pois

somente assim se poderá descobrir a que se presta o aparato punitivo e, então, aprenderemos

a guiar seu percurso, ainda que seu destino possa ser a sua própria extinção.

A superação definitiva do ideário iluminista do fim da impunidade e dos paradigmas positivistas

que relacionam o crime a uma perversão moral é uma questão chave. Por séculos os discursos

que guiaram a explicação do sistema penal não fizeram mais do que esconder seu próprio

cerne, qual seja, as penas são uma expressão de submissão política e de poder de um grupo

sobre o outro. Tal como o direito de guerra, diria Tobias Barreto.

Resgatar a política, trazê-la ao campo de discussão, repolitizar o debate. O reconhecimento

definitivo do caráter político e manejável dos sistemas penais abre as portas para realmente

se pensar em estratégias eficazes e democráticas para uma organização social mais justa e

pacífica.

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Vamos pensar

Elabore uma resenha que verse a respeito da denominada teoria da rotulação/

etiquetamento. Recomenda-se como leitura fundamental a obra: BECKER, Howard Saul.

Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

Assertiva: “afirmação categórica”. Fonte: INSTITUTO Antônio Houaiss (Org.). (Dicionário

Houaiss Conciso - italico). São Paulo: Moderna, 2011, p. 88.

• Política Criminal, pena e desvio.

• Desvio e impunidade.

• Todo crime é político.

• Incremento do poder punitivo.

• Dominação das classes baixas.

Pontuando

Glossário

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INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 1

Segundo Albert K. Cohen, a impunidade:

a) Não é algo salutar e desejado.

b) Não é algo salutar e muito menos desejado.

c) É algo salutar e desejado.

d) É algo salutar, mas de forma alguma dese-jado.

e) É algo nocivo.

INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 2

Qual autor pode ser identificado como um

entusiasta do caráter preventivo das penas?

a) Carrara.

b) Montesquieu.

c) Byron.

d) Platão.

e) Rui Barbosa.

INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 3

“Contrariamente às ideias correntes, o crimi-

noso não mais aparece como um ser radi-

calmente insociável, como uma espécie de

elemento parasitário, corpo estranho e inas-

similável, introduzido no seio da sociedade;

ele é um agente regular da vida social”.

Qual autor exercitou a reflexão anteriormen-

te exposta?

a) Alcala-Zamora.

b) Beccaria.

c) Foucault.

d) Durkheim.

e) Jesus.

INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 4

Qual é a função dos denominados “empre-

endedores morais”?

a) Função de promover suas cruzadas de cri-minalização.

b) Função de defender o abolicionismo.

c) Função de defender o cristianismo.

d) Função de afastar a punição.

e) Função de negociar a pena e a moral.

INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 5

Como é denominada por Zaffaroni a principal

agência de preservação da alta performance

punitiva na atualidade?

a) Criminologia astrológica.

b) Criminologia punitiva.

c) Criminologia midiática.

d) Criminologia escatológica.

e) Criminologia pós-moderna.

Verificaçãode leitura

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50

ABRAMOVAY, Pedro Vieira; BATISTA, Vera Malaguti (Coord.). Depois do grande encarceramento. Rio de Janeiro: Revan, 2010.

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia. Rio de Janeiro: Revan, 2013.

ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008.

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

CARVALHO, Salo. Antimanual de Criminologia. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2005.

CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

COHEN, Albert K. Transgressão e controle. São Paulo: Pioneira Editora, 1968.

DIETER, Maurício Stegemann. Política Criminal Atuarial: a criminologia do fim da história. Rio de Janeiro: Revan, 2013.

DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 38. ed. Petrópolis: Vozes, 2010.

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002.

GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008.

KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. In: Discursos Sediosos, ano 1, n. 2. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, 1996.

MERTON, Robert K. Sociologia: teoria e estrutura. São Paulo: Mestre Jou, 1970.

MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Referências

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Questão 1

Resposta: Alternativa C.

Resolução: Albert K. Cohen afirmou ainda em meados do século XX que uma dose de cifra

oculta funciona como válvula de segurança necessária ao sistema. A famosa “impunidade”,

tradicional vilã dos discursos hegemônicos liberais, é apresentada pelo autor como algo

salutar, ou mesmo desejado.

Gabarito

RUSCHE, George; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004.

SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. 3. ed. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2008.

WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

WACQUANT, Loïc. Apêndice teórico: um esboço do Estado neoliberal. In: Discursos sediciosos. Rio de Janeiro, ano 15, n. 17/18, 1º e 2º sem. 2010.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012.

Referências

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Questão 2

Resposta: Alternativa B.

Resolução: Montesquieu foi um entusiasta do caráter preventivo das penas. Mesmo em

sua obra mais famosa se encontra a defesa eloquente de um sistema implacável com os

delinquentes. A pena teria seu caráter de dissuadir das práticas criminosas à medida que os

delinquentes a percebessem como uma consequência inevitável.

Questão 3

Resposta: Alternativa D.

Resolução: Pretender uma sociedade sem desvio é ainda mais ilusório. São famosas as

afirmações de Durkheim sobre o fato de que o crime é um fator normal e inafastável. O autor

foi um dos primeiros responsáveis a estabelecer um olhar não patológico sobre o crime. O

criminoso é visto como uma figura regular de qualquer organização social.

Questão 4

Resposta: Alternativa A.

Resolução: Becker, em Outsiders: Estudos de Sociologia do Desvio (2008), foi suficientemente

claro ao indicar que os empreendedores morais não raro se prestam a promover suas

cruzadas de criminalização para servir a interesses egoístas de pequenos grupos, por vezes

conflitantes com o bem-estar social. Talvez esta seja verdadeiramente a regra em tempos

neoliberais, levando à mão o Direito Penal simbólico como mais um produto de consumo.

Gabarito

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Gabarito

Questão 5

Resposta: Alternativa C.

Resolução: Atualmente, a principal agência de preservação da alta performance punitiva se

encontra no que Zaffaroni denominou “criminologia midiática”. Assim como faz propagandas

para vender shampoos e carros, a grande mídia se encarrega de produzir o dito consenso

sobre o suposto caos social e o rigor penal como solução.

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TEMA 03Verdade, Sistema Inquisitório e Política Criminal

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LEGENDA DE ÍCONES seções

55

Início

Referências

Gabarito

Verificaçãode leitura

Pontuando

Vamos pensar

Glossário

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Aula

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03

Verdade, Sistema Inquisitório e Política Criminal

Danilo Dias Ticami

Mestrando em Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da USP. Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-Graduado

em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/IBCCRIM.

Objetivo

Esta aula tem por objetivo estabelecer pertinentes conexões a respeito da verdade, do

sistema inquisitório e da política criminal na sociedade contemporânea, exercitando reflexões

teóricas e práticas, em uma perspectiva que seja capaz de cotejar as bases da política criminal

com o processo penal democrático.

Resumo da Aula

Este texto abordará os delineamentos históricos e conceituais do Sistema Inquisitório,

apontando questões relacionadas a tão conhecida e denominada “Verdade Real”. Além disso,

fará uma análise crítica da legitimação da perversidade punitiva, tendo como pano de fundo

o debate a respeito da influência da busca da verdade na Política Criminal, questionando os

fins e os meios utilizados.

Introdução

Embora persista embate doutrinário acerca do Sistema Processual Penal acolhido em

nosso ordenamento jurídico, não restam dúvidas de que nossa codificação e legislação

esparsa processual penal sofreu forte influência da índole autoritária da Política Criminal

ditatorial de Vargas e, posteriormente, dos militares. Apesar de decorridas mais de duas

décadas de liberdades democráticas, percebe-se a manutenção de demasiado apego a

práticas inquisitoriais incompatíveis com a nova sistemática, em evidente prejuízo de direitos fundamentais, mas em prevalência de uma falsa sensação de segurança (de uma minoria).

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Aula 03 | Verdade, Sistema Inquisitório e Política Criminal

O cotidiano do Processo Penal brasileiro prossegue

enfurnado nas trevas de um modelo retrógrado

e ultrapassado: a seletividade do sistema penal

permanece praticamente inalterada, com a

perseguição implacável de um inimigo eleito; a

imposição de custódia cautelar com cristalina

finalidade de reduzir as capacidades físicas,

psicológicas e morais dos réus; julgadores midiáticos,

influenciados por uma cultura punitivista e distante da imparcialidade desejável para o exercício

de sua função, continuam como participantes extremamente ativos na colheita de todos os

elementos de prova que consideram confirmatórias da hipótese condenatória previamente

formulada.

Provoca perplexidade tamanha coincidência com o modelo de Política Criminal do Sistema

Inquisitório, guiado por uma insana procura de uma mitológica “verdade real” produzida e

que correspondia somente aos intentos de seus aplicadores. Todavia, apesar de o discurso

autoritário seduzir com a simplicidade de seus paradigmas fundados na ira, vingança e

extermínio da alteridade, não se torna inviável qualquer esperança de infiltração democrática.

Nas próximas linhas, trataremos dos principais aspectos do Sistema Inquisitório, da Verdade

(sur)real, dos reflexos de sua adoção na Política Criminal e da notória incompatibilidade com

o Estado Democrático de Direito propugnado pela Carta Magna de 1988.

1. Delineamentos Históricos e Conceituais do Sistema Inquisitório: o Berço da “Verdade Real”

Para atingir os propósitos desta aula, antes de prosseguirmos com a exposição das

características do Sistema Inquisitório e suas nuances, exige-se um breve cotejo do contexto

histórico da época de seu surgimento e seu apogeu, uma vez que a necessidade de

manutenção e expansão do poder centralizado influenciou a criação de um sistema processual

verticalizado, guiado pelo obsessivo desejo da busca da “verdade real”.

Saiba MaisPara uma leitura crítica a respeito de cidadania e direitos sociais, veja: OLI-VEIRA, Marcos Alcyr Brito de. Cidada-nia Plena: A cidadania modelando o Estado. São Paulo: Alfa-Omega, 2004.

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O cenário europeu ao final do século XII era dotado de intensa instabilidade sociopolítica,

provocada pelo crescimento das cidades localizadas fora das muralhas dos feudos, o

que diminuía a influência da força dos senhores feudais e líderes locais. Em um primeiro

momento, essas cidades realizaram eleições para definir seus líderes, mas, posteriormente, a

escolha popular foi substituída pela sucessão hereditária. Assim, surgiram os “Signores” e os

Principados como novos detentores do poder político e cultural, com interesse em preservar

e ampliar seus domínios territoriais, militares e econômicos.

Da mesma maneira que o Estado Romano, o Poder Real Centralizado dos Signores e

Principados começou a expandir e conquistar povos e territórios, de forma que o poder imposto

às populações demandava rígidas regras de subserviência inconteste, cuja discordância

acarretava forte repressão. Neste ponto, percebe-se a perda da tendência dos antigos povos

bárbaros ou invasores de somente destruírem e saquearem riquezas, adotando uma ideologia

de dominação da população derrotada e fixação regional para implementar seus costumes e

interesses. Com a vontade de introduzir sua nova ordem, o sistema punitivo à disposição do

Poder Real adquiriu extrema relevância política.

Este deslocamento de focos de poder foi acompanhado pela Igreja Católica, que, ao final do

Baixo Império Romano, assistiu à sua redução de influência e poder em razão da invasão dos

povos bárbaros que professavam outras religiões. Por força das catequizações empreendidas

pelos clérigos e pela reconquista dos territórios perdidos, a Igreja Católica retomou o lugar

de importância neste período. Cumpre ressaltar que, neste contexto, a Igreja Católica e o

Poder Real compartilhavam alguns interesses em comum, corroborando a criação de uma

vantajosa relação mutualística guiada para a busca

de novos territórios e povos: enquanto o Poder Real

necessitava expandir para outras terras e, assim,

fortalecer e proteger seus domínios, a Igreja precisava

conquistar novos fiéis e combater firmemente a heresia (para não ter sua influência reduzida).

Aula 03 | Verdade, Sistema Inquisitório e Política Criminal

LinkPara mais detalhes, consultar as obras citadas em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Nicolas_Eymerich>.

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Como parte da doutrina católica é regida pelo embate entre o Divino e o diabólico (O Bem

contra O Mal), desde sua descendência romana, o Direito Canônico havia estruturado uma

sistemática guiada para solucionar problemas internos, imbuída da tarefa de punir o traidor

das ideias católicas. Essa sistemática abrigava algumas características básicas:

a) Iniciativa de ação ex officio: se no Sistema acusatório romano predominava a ação penal

privada, isto é, um procedimento criminal somente tinha início pela vontade do ofendido ou

de seus familiares, tal regra não encontrava cabimento na sistemática canônica, pois toda

violação infringia uma ordem de Deus e não poderia passar impune. Ademais, dificilmente

os ofendidos denunciariam estes desvios de conduta se fossem perpetrados por clérigos.

b) Sigilo procedimental: constituída para proteção da credibilidade da Igreja, uma vez que

o povo não poderia tomar conhecimento das mazelas internas que poderiam demonstrar

sua fragilidade e acarretar perda de adeptos e poder.

c) Iniciativa persecutória/instrutória do juiz: em decorrência das dificuldades de produção

probatória advinda do receio e da incapacidade dos ofendidos, o julgador encontra-se

incumbido deste ônus.

d) Confissão como rainha das provas: em um sistema de prova tarifada, a confissão

assumiu posição de destaque, especialmente porque era confirmação da hipótese

acusatória formulada antecipadamente pelo juiz-instrutor. Além disso, era uma forma de

reconciliação do pecador com Deus.

Como este sistema atribuiu enormes poderes ao órgão investido da fiscalização e punição, não

tardou ao Poder Real acolher integralmente suas principais características para implementar

seus desígnios. Enquanto na ordem anteriormente vigente prevalecia a imposição da pena

pelos Senhores Feudais, o deslocamento do poder punitivo passou a se concentrar totalmente

na figura da autoridade real, desde a iniciativa investigatória até o julgamento. Neste aspecto,

é salutar o apontamento de Maurício Zanoide de Moraes:

Aula 03 | Verdade, Sistema Inquisitório e Política Criminal

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O processo penal, como já antes acontecera na fase romana, torna-se instrumento estatal de implementação da (nova) política reinante. É meio pelo qual, mais que controle da criminalidade, atinge-se o mais forte e desmedido controle social. Determinando não apenas o que seja crime, mas também quem o praticou e a pena a ser aplicada, tudo de forma sigilosa, parcial e dirigida conforme a vontade do poder central. Inimigo e criminoso passam a ser expressões sinônimas, assim como criminoso e herege e, silogisticamente, herege torna-se inimigo.1

Basicamente, o processo adquiriu a marca de principal instrumento para atingir fins políticos

e religiosos. A adoção desta sistemática culminou na formulação de duas premissas basilares

do Sistema Inquisitório:

a) A forma como o Poder (real ou católico) enxergava e considerava o imputado: por

contrariar as regras divinas, o herege era um traidor, assim como o acusado também era

um inimigo a ser combatido.

b) Incremento do aparato instrutório em detrimento do corpo do imputado: as persecuções

criminais precisavam elucidar completamente os fatos, e, para tanto, o juiz-instrutor possuía

ampla discricionariedade para utilizar todos os meios de obtenção de prova disponíveis

para alcançar a confissão, inclusive a tortura.

Com o decorrer do tempo, os doutores da Igreja passaram a compor a totalidade dos

julgadores, especialmente porque a defesa da Fé Católica (religião oficial dos Estados) virou

a principal finalidade dos processos. Na fusão de duas entidades supremas, a confusão

entre herege e inimigo legitimou uma cruzada implacável contra todos aqueles que não se

encaixavam no modelo idealizado. Exclusivamente para a minoria considerada desviante,

havia pessimismo quanto à sua culpa natural (decorrente do pecado original), pois isso o

tornava suscetível a carregar um mal emergente e vir a cometer heresias ou ações contra os

detentores do poder real. Em outras palavras, a persecução criminal nascia com a presunção

de culpa, contaminando a fase investigativa, instrutória e, consequentemente, a fase decisória

(notoriamente predeterminada para a condenação).

Sobretudo, a reconstrução dos fatos na fase instrutória por meio de expedientes cruéis era

legitimada para que houvesse confirmação da hipótese acusatória, vista como resultado

1 ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Presunção de Inocência no Processo Penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, p. 51.

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atingível somente por agentes investidos desta missão pelo Divino. Na Inquisição, os juízes

eram bispos ou padres, legítimos intérpretes das palavras divinas contidas na Bíblia Sagrada,

e, portanto, eram dotados de um privilégio único: a infalibilidade.

Basicamente, o imputado perdia sua condição de sujeito processual e se convertia em

simples objeto de prova. Desta forma, entendia-se que o investigado constituía a melhor

fonte de conhecimento acerca dos fatos, e, sob o dogma da verdade real, o inquisidor estava

legitimado a adotar qualquer método de perquirição, tais como a tortura.

Em um cenário de paranoia e medo, a busca por conceitos inabaláveis era contínua e

somente atingível pelos representantes da Santa Igreja, de modo que nascia o mito da busca

da verdade real. Naquele contexto histórico, a Inquisição refutava todos os posicionamentos

divergentes a seu entendimento, pautada por uma ideologia de máxima intolerância. Assim,

qualquer abalo na lógica absoluta constituía um perigo e deveria ser enfrentado com extremo

rigor, pois consistia em heresia, na oposição do dogma e no afastamento do caminho para a

eternidade. Sob essa ótica de repressão a tudo aquilo fora do entendimento padrão imposto

por um sistema, a Santa Inquisição se mostrou similar aos regimes militares ou autoritários,

como os que predominaram na América Latina ou nas políticas de limpeza social e genética

do nazifascismo.

Neste desolador cenário, nasceu o Sistema Inquisitório. Enquanto o Sistema Acusatório

implementava um regramento, cujo escopo se fundamentava em um embate igualitário

entre acusação e defesa, com estabelecimento de paridade de oportunidades para ambos

se manifestarem, o Sistema Inquisitório transformava radicalmente a feição do processo e

estabelecia uma disputa desigual entre juiz-inquisidor e imputado. Na fusão da atividade

acusatória com a de julgador, o juiz iniciava o procedimento investigatório, colhendo o material

indiciário e probatório que formaria seu convencimento (formado previamente...).

Por sua vez, o procedimento era escrito, sem contraditório e secreto. Vigorava a tarifa

probatória, em que era possível valorar determinada prova acima das demais e inexistia a coisa

julgada, de modo que o processo poderia ser reaberto segundo interesse do inquisidor. Uma

vez a principal prova dos autos consistir na figura do imputado, havia imperiosa necessidade

de resguardá-lo preventivamente em uma prisão, deixando-o à disposição do juiz.

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Semelhante aos moldes atuais do procedimento de persecução penal brasileiro, o processo

inquisitório era dividido em dois momentos: inquisição geral e inquisição especial:

a) Inquisição geral: esta fase inaugural buscava delimitar a autoria e a materialidade dos

fatos e tinha caráter de investigação preliminar. Sua função consistia unicamente em

alimentar e preparar o processamento da fase seguinte.

b) Inquisição especial: nesta etapa, o processamento consistia em condenar o acusado e

aplicar o melhor castigo.

Em linhas gerais, o Sistema Inquisitório do Santo Ofício continha caracteres únicos, ainda

inexistentes até então:

a) Possibilidade de denúncias anônimas.

b) Constante uso de testemunhas sigilosas.

c) Bastava um rumor para iniciar a investigação, com seus procedimentos aflitivos ao

corpo do indivíduo, com o objetivo de conseguir a confissão. Bastava dois testemunhos

para comprovar o rumor que sustentava o começo do procedimento preliminar. Uma única

testemunha, todavia, já autorizava a tortura.2

d) Busca pela verdade absoluta, atingível somente pelos métodos eleitos pelos reais

representantes da vontade divina.

2 Em franca contrariedade à adoção da tortura, Cesare Beccaria pontua em sua clássica obra: “Aí está uma proposição muito simples: ou o crime é certo, ou é incerto. Se é certo, apenas deve ser punido com a pena que a lei fixa, e a tortura é inútil, porque não se tem mais necessidade das confissões do acusado. Se o crime é incerto, não é hediondo atormentar um inocente? Efetivamente, perante as leis, é inocente aquele cujo delito não está provado”. Qual a finalidade política dos castigos? O terror que imprimem nos corações com tendências ao crime. Contudo, o que pensar das torturas, esses suplícios secretos que a tirania utiliza na obscuridade das prisões e que são reservados tanto ao inocente como ao culpado? O que importa é que nenhum crime conhecido fique sem punição; porém, nem sempre é útil descobrir o autor de um crime encoberto nas trevas da incerteza. [...] Outra consequência ainda muito visível advém do uso das torturas: é que o inocente se encontra em situação pior que a do culpado. Efetivamente, o inocente submetido à tortura tem tudo contra si: ou será condenado por confessar o crime que não cometeu, ou será absolvido, porém após ter passado por tormentos que não mereceu. O culpado, ao contrário, tem por si um conjunto favorável; será absolvido se souber suportar a tortura com coragem, e fugirá aos suplícios que pesavam sobre si, sofrendo uma pena muito mais leve. Desse modo, o inocente tem tudo a perder, o culpado apenas pode ganhar”. (BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Editora Martin Claret, 2006, p. 37-38 e 40)

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e) A adoção de um Sistema de Prova Tarifada, com a confissão como a rainha probatória.3

f) Fundamentação do Sistema Inquisitório em bases e conceitos favoráveis ao entendimento

do Santo Ofício, especialmente em dogmas religiosos incontestáveis.

Neste sentido, Geraldo Prado sintetiza:

A maior parte da doutrina refere como características do Sistema Inquisitório a concentração das três funções do processo penal – de acusar, defender e julgar – em um só sujeito, o que conduz, nas palavras de Alcala-Zamora e Levene, a um processo unilateral de um juiz com atividade multiforme, relegando ao acusador privado uma posição secundária e proporcionando o princípio do processo (rectius, da persecução penal) independentemente da manifestação da pessoa distinta da do juiz (procedat iudex ex officio); procedimento extremamente secreto e destituído do contraditório, quase sempre marcado pela prisão provisória e disparidade de poderes entre juiz-acusador e acusado; forma escrita e exclusão de juízes populares, historicamente preocupado com o descobrimento da verdade real, via de regra a partir da confissão do imputado, muito embora tenha havido intensa liberdade de o juiz pesquisar e introduzir outros meios de prova.4

Com a queda dos regimes absolutistas por força da supremacia do ideário Iluminista, práticas

da Santa Inquisição foram gradualmente abandonadas, embora não sejam inéditas nos

regimes totalitários ainda vigentes, que seguem utilizando seus principais fundamentos.

Entretanto, vale salientar três aspectos essenciais ao Sistema Inquisitório:

a) Desumanização do imputado e afastamento de sua condição de sujeito de direitos:

partindo da premissa de que a confissão era a “rainha das provas” e o imputado era um

inimigo/herege, o objeto de prova poderia ser examinado e aproveitado pela autoridade

instrutória e sentenciadora.

b) Fusão das atividades investigativas, acusatórias, instrutórias e decisórias: em uma

sistemática cuja imparcialidade era rechaçável, o juiz-instrutor cumulou todas as funções

relevantes para o desfecho premeditado do procedimento.

3 Com o Sistema da Prova tarifada, limita-se o arbítrio dos julgadores, permitindo decisões mais racionais e previsíveis. “Com ele, previa-se em lei, de forma minudente, o valor de cada prova, sua classificação (plena, semi-plena, perfeita, imperfeita e, também valores para os indícios e presunções) e, ainda, fixava-se em que quantidade e qualidade eram necessárias para cada espécie de decisão (condenação, absolvição plena, absolvição de instância, etc.)” (ZANOIDE DE MORAES, 2010, p. 64).

4 PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, p. 87-88.

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c) “Verdade” como instrumento a serviço do poder: a manipulação deste conceito (tática

ainda muito utilizada nos dias de hoje) atribuía justificativa para aplicação da metodologia

torturante, mas, a rigor, não estava comprometida com a obtenção de todos os elementos

de prova necessários para elucidar o ocorrido, mas, sim, com a manutenção e promoção

do poder investido.

2. A Legitimação da Perversidade Punitiva: da Quixotesca Jornada em Busca da Mitológica Verdade (Sur)Real

A disseminação da cultura inquisitorial, com seus deletérios (d)efeitos, fora provocada,

especialmente, pela ideia de busca pela “verdade real” como meta principal do processo penal.

Como veremos neste tópico, por perseguir um suposto nobre propósito (verdade absoluta),

a sistemática inquisitorial encontrava justificativa para a instalação de práticas probatórias

abusivas e manutenção da esquizofrênica natureza acusatória do julgador, tendo recepção

calorosa dos ordenamentos jurídicos autoritários.5

Inicialmente, mostra-se como medida de bom alvitre salientar que a definição de verdade

causa perturbação no âmbito filosófico e constitui um problema de difícil solução. Com efeito,

uma verdade absoluta somente atinge este status caso esteja vinculada ao poder, tendo

em vista que sua feição intolerante apenas subjuga por ser imposta. Em decorrência de

seu caráter totalizante, a verdade exige intensa simbiose com o poder, pois o legitima e se

alimenta dele, simultaneamente.

Esta natureza totalizante e sua intrínseca relação com a temática deste trabalho é sintetizada

com maestria por Salah H. Khaled Jr.:

Em grego, a verdade se diz aletheia, e é uma qualidade das próprias coisas. Logo, conhecer é dizer a verdade que está na própria realidade. Trata-se da ideia de verdade como correspondência. Sendo assim, uma frase é verdadeira quando diz o que é, é, ou que o que não é, não é. Uma frase é falsa quando diz que o que é não é, ou que o que não é, é. Esta é uma verdade tendentemente dogmática, vinculada à ideia de totalidade e de excesso, que conduz à hybris.

5 Nesta esteira, OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 17. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2013, p. 331.

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Isto se expressa materialmente no sistema inquisitório, no decisionismo e no substancialismo. Portanto, é uma concepção de verdade apta a servir aos propósitos do poder: legitima-o enquanto soberano incontestável no exercício do poder punitivo, ou seja, trata-se da “verdade real”.6

Obviamente, as práticas judiciárias de um sistema pautado por ideologia de absoluto controle

social de índole autoritária pressupõem um modelo de processo penal que esteja em busca da

“verdade real” como garantia de uma persecução que conduza a uma prestação jurisdicional

infalível. Assim como nos moldes do Sistema Inquisitório analisado no tópico anterior, há

profunda crença de que o resultado da marcha procedimental (como um sacerdócio sagrado)

corresponde à revelação da verdade. Para lograr êxito neste desiderato, a subversão do

Princípio acusatório (fundado na separação das funções de acusar e julgar e a gestão da

prova a cargo das partes) demonstra-se imprescindível.

Todavia, em sua gênese, a verdade servia como instrumento de limitação da repressão imposta

pelo autoritarismo, ou seja, surgia para restringir o poder e proteger seus opositores. Em uma

concepção originariamente ligada à ideia de produção da verdade por meio da exploração

racional das provas através da retórica, a verdade funcionava como antídoto contra o arbítrio,

pois impedia a imposição de castigo sem cabimento e fundada puramente na força.

Entretanto, se a sistemática grega acolhia a separação das atividades de acusar e julgar,

a accusatio romana seguinte (pautada igualmente pelo ideário de busca da verdade

atingível somente em procedimento em contraditório) começou a perder esta característica,

por causa das mudanças sociais e históricas daquele período. Logo, com a derrocada do

modelo acusatório, o Estado se encontrou encarregado de buscar a verdade, adotando os

expedientes que considerava adequados a estes propósitos, de maneira que o Poder Real/

Católico passou a predeterminar o formato e as condições para se chegar a este resultado.

O caminho ritualizado imposto pela nobreza/clero para elucidar os fatos (denominado inquérito

ou inquisitio) se tornou o absoluto instrumento supremo de reconstrução do passado, sendo

que se acreditava que era efetivamente mecanismo para capturar e representar com fidelidade

o acontecimento sob apuração. Não obstante, em evidente tentativa de fundamentar a adoção

deste método, sua finalidade dependia da inexistência de limitações probatórias. Conforme

6 KHALED JR., Salah H. Ambição de verdade no processo penal (desconstrução hermenêutica do mito da verdade real). Salvador: Editora JusPodivm, 2009, p. 29-30.

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alerta Salah H. Khaled Jr., “de certa forma, o inquérito inaugurou a ideia de correspondência entre o fato investigado e a verdade. Com essa invenção surgiu o germe da ideia de verdade real”.7 Portanto, aos poucos, restou notória a transformação da verdade para veneno da liberdade.

Durante a Inquisição, o cenário da verdade adquiriu contornos ainda mais dramáticos e destoantes da sua finalidade inicial de limitação do poder e de correspondência com o real. Neste momento histórico, a verdade era mera reprodução das convicções internas do juiz-instrutor e legitimador da adoção de táticas cruéis para dominar o imputado e forçar a confissão, confirmando a “verdade real” previamente construída.8 Em outros termos, conforme destacado por Cordero, a atribuição de poderes instrutórios ao julgador terminou por conduzir este ao primato dell’ipotesi sui fatti, gerador de quadri mentali paranoide, explicado por Aury

Lopes Jr.:

Isso significa que se opera um primado (prevalência) das hipóteses sobre os fatos, porque o juiz que vai atrás da prova primeiro decide (definição da hipótese) e depois vai atrás dos fatos (prova) que justificam a decisão (que na verdade já foi tomada). O juiz, nesse cenário, passa a fazer quadros mentais paranoicos.9

Entretanto, especialmente pelo revestimento dogmático atribuído à “verdade real” (com sua intrincada ritualística fundamentada no respeito pela autoridade, em que qualquer contestação figurava como profanação ao sagrado), desde seus primórdios no século XII e sua afinada sintonia com ideologias autoritárias, seus principais caracteres permanecem fortemente presentes na cultura judicial. A inserção da busca pela “verdade real” pode ser constatada no

moderno direito processual penal brasileiro:

7 KHALED JR., Salah H. Ambição de verdade no processo penal (desconstrução hermenêutica do mito da verdade real). Salvador: Editora JusPodivm, 2009, p. 42.

8 O distanciamento entre a verdade e sua correspondência com o real se mostra patente, sendo que mentiras poderiam ser utilizadas para descobrir a “verdade”, como pode ser visto no comentário de Maurício Zanoide de Moraes: “Nicolau Eymerich, em 1376, escreveu um ‘verdadeiro tratado sistemático’ aos inquisidores, o Directorium Inquisitorium (Manual dos Inquisidores), pelo qual se estruturaram as regras de comportamento e conduta aos inquisidores/julgadores daquele momento histórico do processo penal. [...] Acerca das estratagemas dos inquisidores, vale mencionar o acréscimo de Francisco de la Peña, em 1578: ‘XVI. Um comentário se impõe: não se há de objetar que malícia é sempre proibido? Deve-se fazer uma distinção entre mentira e mentira, malícia e malícia! A malícia cuja única finalidade é enganar deve ser proibida e não tem nada a ver com a prática do Direito; mas a mentira que se prega judicialmente, em benefício do Direito, do bem comum e da razão, é absolutamente louvável. Quanto mais, a mentira que se prega para detectar a heresia, erradicar os vícios e converter os pecadores. Lembremo-nos do julgamento de Salomão’” (ZANOIDE DE MORAES, 2010, p. 57).

9 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. 9. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. p. 138-139.

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No processo penal sempre predominou o sistema da livre investigação da prova. Mesmo quando, no processo civil, se confiava exclusivamente no interesse das partes para o descobrimento da verdade, tal critério não poderia ser seguido nos casos em que o interesse público limitasse ou excluísse a autonomia privada. Isso porque, enquanto no processo civil em princípio o juiz pode satisfazer-se com a verdade formal (ou seja, aquilo que resulta ser verdadeiro em face das provas carreadas aos autos), no processo penal o juiz deve atender à averiguação e ao descobrimento da verdade real (ou verdade material), como fundamento da sentença.10

Entretanto, vagarosamente, este posicionamento, anteriormente dominante, começou a

ruir, conforme podemos ver em Gustavo Badaró: “Não existe mais a outrora tão propalada

‘verdade real’, muito menos o atingimento de tal verdade é o fim último do processo penal”.11

Em igual sentido, Rubens Casara e Antonio Pedro Melchior:

De fato, a verdade real é um mito. A verdade, como correspondência entre um dato e a realidade, é uma só. A verdade está no plano ideal: a plena correspondência que não pode ser reconstruída no mundo sensível. Para falar em verdade real, é necessário supor a existência de uma outra verdade, que seria, então, irreal e, portanto, não verdadeira. [...]

O conhecimento é, portanto, sempre parcial. Em que pese a existência de procedimentos de otimização do processo de reconstrução histórica de fatos, o julgador e demais atores jurídicos não podem se esquecer da impossibilidade humana de descobrir a verdade.12

Além de legitimar a adoção de expedientes probatórios de reduzida constitucionalidade

pelos agentes de persecução penal, a quixotesca jornada em busca da “verdade real”

impulsiona o julgador a adotar hipóteses paranoicas para montar linhas de investigação,

aniquilando a presunção de inocência como ponto de partida do processo criminal de um

Estado Democrático de Direito. Assim, a concepção de “verdade real”, como a completa

reconstrução do passado, com todo seu detalhamento, figura como uma falsa escusa para

aplicação de políticas criminais voltadas ao combate de inimigos eleitos em nome de uma

utópica sensação de segurança (para os detentores do poder).

10 GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel e; CINTRA, Antonio Carlos de Araújo. Teoria Geral do Processo. 22. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 71.

11 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. Rio de Janeiro: Campus Elsevier, 2012, p. 267.

12 CASARA, Rubens e; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do Processo Penal brasileiro: dogmática e crítica: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013, v. 1, p. 579-580.

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Conclusão: A Influência da Busca da Verdade na Política Criminal sob as Diretrizes do Sistema Inquisitório: os Fins Justificam os Meios?

É inegável que a Política Criminal de qualquer Estado sofrerá inspirações autoritárias,

tendo em vista sua função na sistemática de controle social, e, exatamente por isso, espaços

de arbitrariedades e subjetivismo devem ser excepcionais e limitados por critérios objetivos ou

amarras que impeçam a desumanização do cidadão. Enquanto as agências punitivas estatais,

como autoridades policiais ou órgão de acusação, fatalmente sofrerão influxos punitivistas da

tradição inquisitorial, a figura do julgador não pode se deixar contaminar psicologicamente,

sob o risco da formação de quadros mentais paranoicos, perturbando fatalmente a produção

probatória.

Pelo exposto, constatou-se que a inclusão da “verdade” no Processo Penal serviu como

instrumento de repressão excessiva, adequado a Estados de cultura autoritária, especialmente

pelo seu apogeu no período da Inquisição. Entretanto, não se pode negar que a “verdade”

ainda exerce um papel relevante no processo, embora não como fim último do processo, mas

como condição de justiça da decisão.13 Por esta razão, enquanto a “verdade real” deve ser

exilada e extirpada de qualquer sistema processual penal idôneo, voltado para maximização

da racionalidade para minimização de prejuízos, também não se pode conceber um processo

sem um mínimo interesse em apurar o acontecimento, sob o risco de retornar para modelos

irracionais. De tal feita, a narrativa presente na tese acusatória (figura do acusador apartado

do órgão julgador) demanda capacidade de refutação defensiva (antítese) e sua verificação

em ambiente de completa imparcialidade judicial.

13 “Naturalmente, a verificação da verdade dos fatos que dizem respeito ao caso concreto constitui apenas uma das condições para justiça da decisão, que para ser justa pressupõe também que tenha sido desenvolvido de modo correto e legítimo o processo da qual constitui o resultado final e – obviamente – também venha interpretada corretamente a norma que o juiz adota como regra de juízo. Pois, trata-se de condição por si só insuficiente, mas ainda assim necessária para justiça da decisão: se os fatos não vêm apurados de maneira verdadeira, isso basta para que a decisão seja injusta, ainda que o processo tenha se desenvolvido corretamente e a norma de direito tenha sido interpretada de modo válido. Por assim dizer, nenhuma das três condições indicadas é em si suficiente para determinar a justiça da decisão, já que tais condições são todas conjuntamente necessárias para que a decisão seja justa.” (TARUFFO, Michele. Verdade e Processo. In_______. Processo Civil comparado: ensaios. Tradução de Daniel Mitidiero. São Paulo: Marcial Pons, 2013, p. 36).

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Por esta razão, deve-se retirar a busca da verdade de sua posição central no processo penal,

pois as limitações probatórias decorrentes do respeito à dignidade da pessoa humana (em

todas suas dimensões) afrontam ideologias de política criminal14 com base na premissa de

que os fins justificam os meios.

Nestes termos, o ritual de cognição criminal não pode manter qualquer fetiche de que

pode acessar a mitológica “verdade real”, por conta da sanha punitiva que guia políticas de

persecução penal, cuja eficiência é calculada de acordo com a potência da repressão aos

inimigos do Poder. Desta maneira, a Política Criminal de um Estado Democrático de Direito

não compactua com a seleção de uma verdade previamente produzida, mas pode trabalhar

com uma espécie de “verossimilhança”,15 compatível com o Sistema acusatório idealizado

pela Constituição Federal.

14 Para fins deste trabalho, adota-se o conceito de Política Criminal de Eugênio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangeli: “Podemos afirmar que a política criminal é a ciência ou a arte de selecionar os bens (ou direitos), que devem ser tutelados jurídica e penalmente, e escolher os caminhos para efetivar tal tutela, o que iniludivelmente implica a crítica dos valores e caminhos já eleitos” (ZAFFARONI, Eugenio Raul e; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004).

15 Conforme idealizado por Salah H. Khaled Jr.: “Em latim, verdade se diz veritas e se refere à precisão de um relato quanto a sua finalidade em relação ao que aconteceu. Logo, se refere a uma narrativa sobre eventos ocorridos no passado e a possibilidade de adequação, em alguma medida, entre essa narrativa e o que aconteceu. Ao contrário da aletheia, veritas (no sentido aqui empregado) assuma caráter de verdade tendentemente problemática, dada ao reconhecimento da diversidade, da complexidade e dos perigos da hybris. Logo, pode se vincular à phronesis. Suas características conduzem ao sistema acusatório. Portanto, conduzem à existência de garantias, bem como à separação das funções de acusar e julgar. É, portanto, uma verdade apta a limitar o poder: ou seja, verossimilhança” (KHALED JR., 2009, p. 33).

Vamos pensar

Desenvolva uma breve reflexão apontando características do Sistema Inquisitório e sua

função política na época. Recomenda-se como leitura inicial a obra “O Martelo das Feiticeiras

(malleus Malleficarum)”, escrito pelo inquisidor Heinrich Kraemer.

Aula 03 | Verdade, Sistema Inquisitório e Política Criminal

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Real: “que tem existência palpável concreta; que existe de fato, de verdade; fato verdadeiro;

realidade”. Fonte: Dicionário Houaiss Conciso (2011, p. 794).

• Sistema Inquisitório e “Verdade Real”.

• Características do Sistema Inquisitório.

• Iniciativa de ação, sigilo, iniciativa persecutória.

• Confissão como Rainha das Provas.

• Santo Ofício e suas características.

• Os fins justificam os meios?

Pontuando

Glossário

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INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 1

Qual Presidente brasileiro influenciou forte-

mente a legislação processual penal pátria?

a) Plínio de Arruda Sampaio.

b) Itamar Franco.

c) João Batista Figueiredo.

d) José Sarney.

e) Getúlio Vargas.

INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 2

Qual Sistema Processual visa, prioritaria-

mente, a busca e obtenção da “Verdade”?

a) Misto.

b) Normativo.

c) Inquisitório.

d) Adversativo.

e) Acusatório.

INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 3

O sigilo procedimental tem origem no direito:

a) Inglês.

b) Alemão.

c) Francês.

d) Canônico.

e) Brasileiro.

INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 4

Aponte aquela que ficou denominada a “rai-

nha das provas”, principal meio de prova do

Sistema Inquisitório:

a) Perícia.

b) Confissão.

c) Delação.

d) Penitência.

e) Banimento.

INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 5

Na Inquisição, quais pessoas estavam inves-

tidas da condição de julgadores?

a) Qualquer pessoa do povo.

b) Militares católicos.

c) Bispos ou padres.

d) Leigos da Igreja Anglicana.

e) Leigos católicos.

Verificaçãode leitura

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72

BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. Rio de Janeiro: Campus Elsevier, 2012.

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Editora Martin Claret, 2006.

CASARA, Rubens e; MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do Processo Penal brasileiro: dogmática e crítica: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013, v. 1.

GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel e; CINTRA, Antonio Carlos de Araújo. Teoria Geral do Processo. 22. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006.

KHALED JR., Salah H. Ambição de verdade no processo penal (desconstrução hermenêutica do

mito da verdade real). Salvador:^Editora JusPodivm, 2009.

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. 9. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 17. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2013.

PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006.

TARUFFO, Michele. Verdade e Processo. In: _______. Processo Civil comparado: ensaios. Tradução de Daniel Mitidiero. São Paulo: Marcial Pons, 2013.

ZAFFARONI, Eugenio Raul e; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro –

Parte Geral. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Presunção de Inocência no Processo Penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010.

Referências

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Questão 1

Resposta: Alternativa E.

Resolução: Embora persista embate doutrinário acerca do Sistema Processual Penal acolhido em nosso ordenamento jurídico, não restam dúvidas de que nossa codificação e legislação esparsa processual penal sofreu forte influência da índole autoritária da Política

Criminal ditatorial de Vargas e, posteriormente, dos militares.

Questão 2

Resposta: Alternativa C.

Resolução: Provoca perplexidade tamanha coincidência com o modelo de Política Criminal do Sistema Inquisitório, guiado por uma insana procura de uma mitológica “verdade real”

produzida e que correspondia somente aos intentos de seus aplicadores.

Questão 3

Resposta: Alternativa D.

Resolução: Sigilo procedimental: constituído para proteção da credibilidade da Igreja, uma vez que o povo não poderia tomar conhecimento das mazelas internas que poderiam

demonstrar sua fragilidade e acarretar perda de adeptos e poder.

Questão 4

Resposta: Alternativa B.

Resolução: Confissão como rainha das provas: em um sistema de prova tarifada, a confissão assumiu posição de destaque, especialmente porque era confirmação da hipótese acusatória formulada antecipadamente pelo juiz-instrutor. Além disso, era uma forma de reconciliação

do pecador com Deus.

Gabarito

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Questão 5

Resposta: Alternativa C.

Resolução: Na Inquisição, os juízes eram bispos ou padres, legítimos intérpretes das

palavras divinas contidas na Bíblia Sagrada e, portanto, eram dotados de um privilégio único:

a infalibilidade.

Gabarito

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TEMA 04Penologia(Re)pensando a Punição na Sociedade Contemporânea

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LEGENDA DE ÍCONES seções

77

Início

Referências

Gabarito

Verificaçãode leitura

Pontuando

Vamos pensar

Glossário

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Aula

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04

Penologia (Re)pensando a Punição na Sociedade Contemporânea

Maurício Futryk Bohn

Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

(PUCRS). Policial Militar (Brigada Militar/RS)

Objetivo

Neste texto, você terá acesso ao debate envolvendo a cultural da pena em uma sociedade

punitivista, midiática e desigual. Seja bem-vindo(a) à última aula da disciplina Política Criminal.

Resumo da Aula

Caro(a) aluno(a), nas próximas linhas teremos uma detida reflexão envolvendo o poder

punitivo na sociedade contemporânea, na perspectiva das influências da sociedade que

cotidianamente fomenta uma cultura punitivista, sob o argumento de mais proteção e

segurança. Assim, elabora-se uma breve discussão sobre um modelo de polícia para uma

sociedade drasticamente desigual.

1. A Política Criminal Contemporânea

A política criminal teve início na segunda metade do século XVIII, na Itália, a partir da

publicação da obra Dos Delitos e das Penas, do Marquês de Beccaria (1738-1794), o qual

apresentava sua preocupação com maneiras eficazes de prevenir o delito e os meios

legislativos necessários para atingir tal finalidade.1 Em sua obra, Beccaria pronuncia-se pela

origem contratual do direito a castigar e sustenta que a aplicação da lei não é uma função

divina, mas, sim, social, e deve ter limites. A tortura não deve ser aplicada nem penas

1 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 93.

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Aula 04 | Penologia (Re)pensando a Punição na Sociedade Contemporânea

inumanas, as penas devem ser proporcionais ao

delito e aplicadas igualmente a todos os cidadãos,

a lei e o juiz devem ser prévios ao juízo, sendo este

público, e admitir o princípio da inocência e o direito

de defesa.2

O conceito de política criminal é apresentado por

Zaffaroni e Pierangeli como “a ciência ou a arte de

selecionar os bens (ou direitos) que devem ser tutelados jurídica e penalmente, e escolher

os caminhos para efetivar tal tutela, o que indubitavelmente implica a crítica dos valores e

caminhos já eleitos”.3

A política criminal contemporânea no Brasil é pautada por uma corrente populista, a qual

determina a atuação dos agentes do sistema criminal. Essa corrente torna-se uma postura

ou tática adotada para a obtenção de dividendos políticos a curto prazo, os quais podem ser

rapidamente revertidos e manipulados caso deixem de coincidir com os cálculos do lucro

político.4

A opinião pública se torna, então, ponto de referência para determinar as decisões políticas

criminais. Os especialistas têm menos influência, e os políticos têm mais autoridade. Desta

maneira, a justiça criminal está mais sensível às mudanças ao humor público e à reação

política, fazendo com que a influência populista de fazer política interfira a tal ponto que

novas leis e políticas sejam rapidamente instituídas sem ao menos uma consulta prévia aos

profissionais do sistema penal.5

2 ELBERT, Carlos Alberto. Novo Manual Básico de Criminologia.Trad. Ney Fayet Júnior. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 54.

3 ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 129.

4 GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 372.

5 GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 372.

Saiba MaisPara mais detalhes a respeito do tema “tortura”, ver: JESUS, Maria Gorete Marques de. O crime de tortura e a justiça criminal. São Paulo: IBCCRIM, 2010.

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Os meios utilizados para controle da criminalidade e da violência estão voltados para um

discurso punitivista de combate ao crime, guerra contra as drogas, mais repressão, mais

policiais, mais punição. Em detrimento disto, os direitos e as garantias acabam sendo

suprimidos e violados.

Isto reflete a sociedade brasileira, desigual e hierárquica, pautada por relações de clientelismo e compadrio, em total desacordo com o princípio da igualdade. Como consequência, o

criminoso é sempre visto como o “outro”, ou seja, é aquele que não está ao abrigo da lei e do

direito, estando sujeito ao arbítrio e à violência.6

Da mesma forma, Da Matta denuncia esse clientelismo e compadrio nesta sociedade

hierárquica e desigual. Esta separação de valores é apenas um reflexo da própria sociedade,

que impõe um tratamento diferenciado conforme a hierarquia social, como podemos perceber

na célebre frase “Sabe com quem está falando?”,7 muito recorrente nas abordagens policiais,

pois, no momento de uma eventual infração cometida pelo cidadão, este apresenta sua

posição social hierárquica para tentar receber alguma vantagem.

O sistema de justiça criminal, da mesma maneira, interpreta o conflito que tem de mediar

de acordo com o lugar que as partes envolvidas ocupam na estrutura social. Portanto, a

função da polícia torna-se interpretativa: não parte apenas dos fatos ocorridos, mas, sim, da

decifração do lugar que as partes ocupam.8

Podemos perceber que a política criminal adotada no Brasil é reflexo de um contexto social

de extrema desigualdade, refletindo-se nos mecanismos adotados pelo sistema de justiça

criminal para conter a criminalidade e a violência, os quais, muitas vezes, são pautados em

medidas meramente paliativas sem resultados a longo prazo, sem um devido processo de

análise.

6 AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli; VASCONCELLOS, Fernanda Bestetti. Punição e democracia em busca de novas possibilidades para lidar com o delito e a exclusão social. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.) Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012, p. 69.

7 DA MATTA, Roberto. Carnavais malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 175.

8 KANTE DE LIMA, Roberto. Direitos Civis, Estado de direito e “cultura policial”: a formação policial em questão. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 41, n. 11, p. 241-256, 2003.

Aula 04 | Penologia (Re)pensando a Punição na Sociedade Contemporânea

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2. A Sociedade Fomentando a Política Criminal Punitiva

Diante do contexto atual, o Estado parece ser incapaz de resguardar a segurança dos

cidadãos. Pesquisas de opinião pública revelam que os crimes não são punidos com o rigor

necessário. As taxas alarmantes do aumento da criminalidade e da violência estariam indicando

que a prevenção do crime estaria sendo ineficaz por parte das polícias e demais atores da

justiça criminal. Este fato, conforme explica Adorno e Peralva,9 gera uma ambiguidade no

trabalho policial, pois, por um lado, exige-se mais produtividade dos policiais, medida pelo

maior número de prisões, mas, por outro lado, exige-se que respeitem rigorosamente os

ditames legais.

Fato é que esta contradição engendra, na cultura

organizacional da polícia, uma verdadeira epidemia

de práticas ilegais em detrimento de padrões éticos

de conduta profissional. Esta ambiguidade que se

instala no trabalho policial ganha força e destaque

na produtividade policial no que se refere a mais

prisões, mais repressão policial.

É preciso observar, também, que existe certa conivência e apelo pelas práticas policiais de

“guerra ao crime” de “tolerância zero” por parte da sociedade. Em pesquisa de Ignácio Cano,10

em 2011, o pesquisador revela que cerca de 45% da sociedade é conivente com a letalidade

policial contra os criminosos, concordando com a frase “bandido bom é bandido morto”. Outra

pesquisa, esta realizada por Nancy Cardia,11 em 2010, revelou que 47,5% dos brasileiros

são favoráveis à tortura para a obtenção de provas, o que demonstra que grande parcela da

sociedade apoia a violência policial.

9 ADORNO, Sérgio; PERALVA, Angelina. Estratégias de intervenção policial no estado contemporâneo. Revista Tempo Social, São Paulo, v. 9, n. 1, p. 2, maio 1997.

10 CANO, Ignácio. Direitos para os bandidos? Direitos humanos e criminalidade no Brasil. In: MAYBURY-LEWIS, B.; RANINCHESKI, S. Desafios aos direitos humanos no Brasil contemporâneo. Brasília: Capes: Verbana, 2011, p. 33-46.

11 CARDIA, Nancy et al. (Coord.) Pesquisa nacional, por amostragem domiciliar, sobre atitudes, normas culturais e valores em relação à violação de direitos humanos e violência: um estudo em 11 capitais de estado. São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, 2012.

Aula 04 | Penologia (Re)pensando a Punição na Sociedade Contemporânea

LinkPara dados estatísticos, ver: <http://www.infopen.gov.br/>.

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Observa-se que o discurso punitivista encontra guarida na sociedade e, consequentemente,

legitima e valida as práticas policiais violentas e arbitrárias. A opinião pública, frente à sensação

de insegurança e de impunidade com o aumento da criminalidade, reforça a ideia de mais

policiais nas ruas, mais repressão, mais recrudescimento penal e mais encarceramento.

É neste contexto que as campanhas de lei e ordem e as políticas de endurecimento penal

encontram guarida, criando-se uma ideia distorcida da realidade, como aponta Zaffaroni:

[...] são os meios de massa que desencadeiam as campanhas de ‘lei e ordem’ quando o poder das agências encontra-se ameaçado. Estas campanhas realizam-se através da ‘invenção da realidade’ (distorção pelo aumento de espaço publicitário dedicado a fatos de sangue, invenção direta de fatos que não aconteceram), ‘profecias que se autorrealizam’ (instigação pública para a prática de delitos mediante metamensagens de ‘slogans’ tais como ‘a impunidade é absoluta’, os menores podem fazer qualquer coisa’, ‘os presos entram por uma porta e saem pela outra’, etc; publicidade de novos métodos para a prática de delitos, de facilidades, etc.). ‘produção de indignação moral’ (instigação à violência coletiva, à autodefesa, glorificação de ‘justiceiros’, apresentação de grupos de extermínio como ‘justiceiros’, etc.)12

Observa-se que boa parcela da sociedade ainda legitima, autoriza e até exige estas práticas

arbitrárias e violentas, visando o combate à criminalidade, mesmo que sejam colocados em

risco os direitos e as garantias dos cidadãos em um Estado Democrático de Direito.

3. O Discurso Midiático Punitivista

Imprescindível se torna retratarmos o papel da mídia para percebermos seu discurso e

consequente influência na construção de uma política criminal. Com o advento da globalização,

os meios de comunicação de massa, televisão, rádio, internet, jornais e revistas, tornaram-se

os grandes responsáveis pela formação da opinião sobre os mais diversos temas. É neste

contexto que a mídia tomou para si o discurso repressivo-jurídico-criminal em face do poder

de convencimento, assumindo verdades absolutas e, por vezes, executando tarefas inerentes

às agências do sistema penal, realizando a produção de inquéritos com direito a gravações

12 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 129.

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de imagens e voz, acusando, condenando e ainda executando a pena.13 Mas com interesses

muito bem determinados, como afirma Souza:

A mídia consagra, então, o discurso do risco, que passa a ser objeto de sua atenção, a qual, obviamente, não é lúcida e sim com interesses políticos ou, fundamentalmente, econômicos, já que os meios de comunicação representam grupos econômicos com ampla capacidade lucrativa. A sociedade do risco tem, portanto, um poderoso protagonista, que em sua missão de informar e entreter representa um papel muito além do imaginado por cientistas políticos e juristas de outrora.14

A informação jornalística deveria trazer uma ideia de um observador desinteressado seguindo

preceitos de uma ética profissional, de modo neutro e imparcial,15 ensejando que o próprio

público pudesse formar sua opinião. Mas o que assistimos atualmente é uma manipulação de

dados e informações, a fim de conquistar a audiência do público, vendendo seu produto, “o

crime”, deixando o espetáculo mais atraente e, consequentemente, gerando a sensação de

insegurança e medo na população. Aponta Callegari:

Em decorrência de interesses meramente mercadológicos, os meios de comunicação de massa promovem um falseamento dos dados da realidade social, gerando enorme alarde ao vender o “crime” como um rentável produto, respondendo às expectativas da audiência ao transfor mar casos absolutamente sui generis em paradigmas, aumentando, assim, o catálogo dos medos e, consequentemente e de forma simplista como convém a um discurso vendável, o clamor popular pelo recrudescimento da intervenção punitiva.16

O efeito desta manipulação de dados, estatísticas e informações tem reflexos nas políticas de

segurança pública, em que a sensação de insegurança gerada pela mídia reforça a ideia na

sociedade de uma intervenção estatal violenta, no combate à criminalidade, com o aumento de

efetivos policiais, com mais repressão e mais prisões. Apelando-se para práticas e mudanças

13 BUDÓ, Marília Denardin. O Espetáculo do crime no jornal: Da construção social da criminalidade à relegitimação do sistema penal. Disponível em: <www.buscalegis.ufsc.br/revistas/budo/view>. Acesso em: 15 mar. 2014.

14 SOUZA, Luciano Anderson de; FERREIRA, Regina Cirino Alves. Discurso midiático penal e exasperação repressiva. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 20, n. 94, p. 363-382, jan. 2012.

15 O código de ética da Federação Nacional dos Jornalistas - FENAJ 1987 traz em seu Art. 2º - A divulgação de informação, precisa e correta, é dever dos meios de comunicação pública, independente da natureza de sua propriedade. O art. 7 retrata da importância da verdade dos fatos: Art. 7º - O compromisso fundamental do jornalista é com a verdade dos fatos, e seu trabalho se pauta pela precisa apuração dos acontecimentos e sua correta divulgação.

16 CALLEGARI, André Luis; Wermuth, MAIQUEL Ângelo Dezordi. Políticas (Simbólicas) de endurecimento do combate ao crime, discursos punitivos midiáticos e direitos humanos. Revista Direitos Humanos e Democracia, Editora Unijui, Ano 1, n. 2, p. 108, jul./dez. 2013.

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imediatistas, sem que se tenha o menor cuidado em avaliar a verdadeira realidade. Fato que

os políticos aproveitam muito bem para ganhar votos e popularidade. Como retrata Bauman:

A construção de novas prisões, a redação de novos estatutos que multiplicam as infrações puníveis com prisão e o aumento das penas – todas essas medidas aumentam a popularidade dos governos, dando-lhes a imagem de severos, capazes, decididos e, acima de tudo, a de que ‘fazem algo’ não apenas explicitamente pela segurança individual dos governados, mas por extensão, também pela garantia e certeza deles – e fazê-lo de uma forma altamente dramática, palpável, visível e tão convincente. A espetaculosidade – versatilidade, severidade e disposição – das operações punitivas importa mais que a sua eficácia, que de qualquer forma, dada a indiferença geral e a curta duração da memória pública, raramente é testada.17

Podemos identificar o quanto a mídia influencia neste processo de construção e apropriação

do medo, gerando por consequência uma racionalização da política, a qual se utiliza do

direito penal como “arma política”18 para compra de votos e para popularidade. Determinadas

informações acabam gerando no espectador desinformado um sentimento de caos, medo,

pânico e sensação de insegurança. Este procedimento terá consequências diretas nas políticas

criminais adotadas e criadas pelo poder legislativo e demais instituições responsáveis pelo

controle da criminalidade.

4. Um Modelo de Polícia para uma Sociedade Desigual

Um dos grandes desafios do processo de redemocratização do Brasil consiste na reforma

das instituições policiais. A permanência de padrões de condutas autoritárias, arbitrárias

e violentas representa graves obstáculos na consolidação democrática. Diante das novas

demandas de cidadania, de um Estado Democrático de Direito, tornou-se necessária a

substituição das velhas práticas policiais por novas práticas direcionadas para a efetivação e

garantia dos direitos humanos fundamentais de todos os cidadãos.

Porém, muito pouco se avançou neste processo de reforma das instituições de segurança

pública, fato que percebemos a partir da análise do modus operandi que as polícias adotaram

17 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 126.

18 CALLEGARI, André Luis; Wermuth, MAIQUEL Ângelo Dezordi. Políticas (Simbólicas) de endurecimento do combate ao crime, discursos punitivos midiáticos e direitos humanos. Revista Direitos Humanos e Democracia, Editora Unijui, Ano 1, n. 2, jul./dez. 2013.

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ao longo da história e que se perpetua até os dias de hoje; seu papel, função e maneira de

atuação são observados a partir da análise das políticas criminais desenvolvidas no Brasil.

Apesar de todas as definições possíveis do que venha a ser a polícia, suas funções e os

papéis que desempenha, ela exerce papéis contraditórios. Para Zaverucha,19 “[...] ela tanto

protege quanto reprime. Protege uma ordem baseada em interesses coletivos comuns e

reprime os conflitos entre grupos que não aceitam tal ordem”. O autor define, ainda, que

a polícia é uma instituição típica de um Estado Moderno, com objetivos de propagar uma

concepção de paz e propriedade em seu território; porém, quando da ausência da concepção

dominante de paz, esta mesma polícia deixa de ser um instrumento de aplicação da lei e se

transforma em um agente coercitivo da minoria sobre a maioria.

A polícia é um produto social e por isso faz parte de um projeto de poder que varia de acordo com as circunstâncias históricas. Toda sociedade desenvolve procedimentos que podem ser chamados a operar quando surgem as disputas violentas de poder. Deste modo, a polícia é um bem social imprescindível para a sociedade, por representa o teste da dominação. Por isso mesmo ela carrega uma dimensão política, pois intervém para favorecer a concepção de ordem publica predominante no momento da ação.20

Para isso, retratamos o entendimento de Pinheiro acerca do papel da polícia no Brasil a partir

do século XIX, o qual pode ser descrito como uma demarcação de fronteiras entre escravos e

homens livres, trabalhadores e grevistas, cidadãos honestos e criminosos, homens de bem e

vadios. Hoje, no Brasil contemporâneo, percebe-se esta demarcação entre produtores rurais

e sem terra, moradores e sem-teto, brancos e negros, crianças e jovens versus meninos de

rua e menores criminalizados.21

Ao retratar a história da violência privada e secular no Brasil, Alba Zaluar relembra o poderio

pessoal e a violência privada dos senhores de engenho e de outros grandes proprietários

rurais a partir dos “coronéis” que tinham tropas de “jagunços”, homens armados sob seu comando imbuídos de proteger suas propriedades rurais e que formaram a Guarda Nacional

19 ZAVERUCHA, Jorge. Polícia, democracia, estado de direito e direitos humanos. Revista Brasileira de Direito Constitucional, São Paulo, v. 3, p. 37-54, jan./jun. 2004.

20 ZAVERUCHA, Jorge. Polícia, democracia, estado de direito e direitos humanos. Revista Brasileira de Direito Constitucional, São Paulo, v. 3, p. 37-54, jan./jun. 2004.

21 PINHEIRO, Paulo Sérgio. Polícia e consolidação democrática: o caso brasileiro. In: PINHEIRO, Paulo Sério et al. São Paulo sem medo: um diagnóstico da violência urbana. Rio de Janeiro: Garamond, 1998, p. 175-190.

Aula 04 | Penologia (Re)pensando a Punição na Sociedade Contemporânea

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durante o Império no século XIX. Esta violência privada e as desigualdades social, econômica e jurídica foram as marcas mais importantes da sociedade brasileira que persistem até hoje. A formação da polícia tradicional, com suas peculiaridades, passa por este processo histórico secular: “Os policiais também foram formados para satisfazer os proprietários de terra e a eles submeterem-se, reprimindo somente os pobres, os negros e os indígenas.”22

Esta intrincada maneira como a polícia tradicional foi sendo moldada e constituída ao longo da história tornou-a uma instituição responsável por fazer a distinção entre quais indivíduos têm direitos e quais não têm.23 Desta forma, o policial tem de si mesmo uma autoimagem de “lixeiro da sociedade”.24 São eles os responsáveis por limpar a “escória” do sistema social, o que contribui para seu distanciamento frente à sociedade e, consequentemente, favorece o descontrole das atividades policiais e também a violência policial.

Para Ratton,25 o estigma de “lixeiro da sociedade” cria no policial uma autoimagem de sacralidade em sua missão, qual seja, livrar a sociedade deste mal. Para tal, a utilização da violência seria legitimada como recurso técnico, instrumental e moral.

A violência policial, na produção da ordem e nas questões internas do Estado, funcionaria como último recurso na contenção dos indivíduos que se encontram à margem do sistema. No entendimento de Paixão e Beato,26 este seria o papel da polícia.

Poderíamos dizer que a atuação das polícias seria uma espécie de “termômetro” para medirmos as políticas criminais e analisarmos que caminho elas estão tomando e se estão pautadas nas diretrizes de um Estado Democrático de Direito, no respeito ao princípio da igualdade e se estão respeitando os direitos e as garantias dos cidadãos.

22 ZALUAR, Alba. Democratização inacabada: fracasso da segurança pública. Estudos Avançados: Instituto de Estudos Avançados da USP, São Paulo, v. 21, n. 61, p. 31-49, set./dez. 2007.

23 PAIXÃO, Antonio Luiz. Crime, controle social e consolidação democrática: as metáforas da cidadania. In: REIS, F. W.; O'DONNELL, G. (Org.) A Democracia no Brasil, dilemas e perspectivas. São Paulo: Vértice, 1985. p. 168-199.

24 PAIXÃO, Antonio Luiz. Organização policial em uma área metropolitana: dados. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, IUPERJ, v. 25, n. 1, p. 63-85, 1982.

25 RATTON, José Luiz. Aspectos organizacionais e culturais da violência policial. In: RATTON, José Luiz; BARROS, Marcelo (Org.). Polícia, democracia e sociedade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 139-151.

26 PAIXÃO, Antônio Luiz; BEATO F.; Claudio C. Crimes, vítimas e policiais. Tempo Social: Rev. Sociol. USP, São Paulo, v. 9, n. 1, p. 233-248, maio 1997.

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Vamos pensar

Elabore uma resenha que verse a respeito de um modelo de polícia no mundo

contemporâneo, levando em consideração a realidade brasileira. Como leitura inicial,

recomenda-se: “MARIANO, Benedito Domingos. Por um novo modelo de polícia no Brasil: a inclusão dos municípios no sistema de segurança pública. São Paulo: Fundação Perseu

Abramo, 2004”.

Clientelismo: “prática eleitoreira de privilegiar um conjunto de indivíduos em troca de seus

votos”. Fonte: Dicionário Houaiss Conciso (2011, p. 200).

• A política criminal contemporânea.

• A sociedade fomentando a política criminal punitiva.

• O discurso midiático punitivista.

• Um modelo de polícia para uma sociedade desigual.

Pontuando

Glossário

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INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 1

Zaffaroni e Pierangeli (2004, p. 129), na obra

Manual de direito penal brasileiro, apresen-

tam a seguinte proposição: “a ciência ou a

arte de selecionar os bens (ou direitos) que

devem ser tutelados jurídica e penalmente, e

escolher os caminhos para efetivar tal tutela,

o que indubitavelmente implica a crítica dos

valores e caminhos já eleitos”. Esta constru-

ção pode ser identificada como:

a) O conceito de política da legalidade.

b) O conceito de política ambiental.

c) O conceito de política legislativa.

d) O conceito de política criminal.

e) O conceito de política penitenciária.

INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 2

Qual o traço característico da sociedade bra-

sileira na visão do autor Roberto Da Matta?

a) Uma sociedade hierárquica e desigual.

b) Uma sociedade livre.

c) Uma sociedade alternativa.

d) Uma sociedade igualitária.

e) Uma sociedade plural.

INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 3

Com o desenvolvimento tecnológico e a glo-

balização, a mídia, sobretudo a televisiva,

exerceu um papel de:

a) Difusão da solidariedade.

b) Difusão do discurso repressivo-jurídico-cri-minal.

c) Difusão do discurso da igualdade social.

d) Difusão do discurso humanizador.

e) Difusão do discurso da participação popular.

INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 4

Quais foram os indivíduos que formaram a

Guarda Nacional durante o Império no sécu-

lo XIX, embrião da polícia brasileira?

a) Jagunços armados.

b) Padres jesuítas.

c) Mendigos.

d) Nobres.

e) Estrangeiros.

Verificaçãode leitura

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INDIQUE A ALTERNATIVA CORRETAQuestão 5

Na visão de José Luiz Ratton, em “Aspec-

tos organizacionais e culturais da violência

policial” (In: RATTON, José Luiz; BARROS,

Marcelo (Org.) Polícia, democracia e socie-dade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.

139-151), o policial é identificado como:

a) O “caçador da sociedade”.

b) O “lixeiro da sociedade”.

c) O “anjo da sociedade”.

d) O “herói da sociedade”.

e) O “lado forte da sociedade”.

Verificação de Leitura

Referências

ADORNO, Sérgio; PERALVA, Angelina. Estratégias de intervenção policial no estado contemporâneo. Revista Tempo Social, São Paulo, v. 9, n. 1, maio 1997.

AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli; VASCONCELLOS, Fernanda Bestetti. Punição e democracia em busca de novas possibilidades para lidar com o delito e a exclusão social. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.) Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012.

BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

BUDÓ, Marília Denardin. O Espetáculo do crime no jornal: Da construção social da criminalidade à relegitimação do sistema penal. p. 14. Disponível em: <www.buscalegis.ufsc.br/revistas/budo/view>. Acesso em: 15 mar. 2015.

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CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 93.

DA MATTA, Roberto. Carnavais malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6. ed. Rio de janeiro: Rocco, 1997.

ELBERT, Carlos Alberto. Novo Manual Básico de Criminologia.Trad. Ney Fayet Júnior. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan. 2008.

CALLEGARI, André Luis; Wermuth, MAIQUEL Ângelo Dezordi. Políticas (Simbólicas) de endurecimento do combate ao crime, discursos punitivos midiáticos e direitos humanos. Revista

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CANO, Ignácio. Direitos para os bandidos?: direitos humanos e criminalidade no Brasil. In: MAYBURY-LEWIS, B.; RANINCHESKI, S. Desafios aos direitos humanos no Brasil contemporâneo. Brasília: Capes: Verbana, 2011, p. 33-46.

CARDIA, Nancy et al. (Coord.) Pesquisa nacional, por amostragem domiciliar, sobre atitudes, normas

culturais e valores em relação à violação de direitos humanos e violência: um estudo em 11 capitais de estado. São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, 2012.

KANTE DE LIMA, Roberto. Direitos civis, Estado de direito e “cultura policial”: a formação policial em questão. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 41, n. 11, p. 241-256, 2003.

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Referências

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ZAVERUCHA, Jorge. Polícia, democracia, estado de direito e direitos humanos. Revista Brasileira de

Direito Constitucional, São Paulo, v. 3, p. 37-54, jan./jun. 2004.

Gabarito

Questão 1

Resposta: Alternativa D.

Resolução: O conceito de política criminal é apresentado por Zaffaroni e Pierangeli como

“a ciência ou a arte de selecionar os bens (ou direitos) que devem ser tutelados jurídica e

penalmente, e escolher os caminhos para efetivar tal tutela, o que indubitavelmente implica a

crítica dos valores e caminhos já eleitos”.

Referências

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Gabarito

Questão 2

Resposta: Alternativa A.

Resolução: Da Matta (1997, p. 175), em Carnavais malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro, denuncia o clientelismo e compadrio nesta sociedade hierárquica e

desigual. Esta separação de valores é apenas um reflexo da própria sociedade, que impõe

um tratamento diferenciado conforme a hierarquia social, como podemos perceber na célebre

frase “Sabe com quem está falando?”, muito recorrente nas abordagens policiais, pois, no

momento de uma eventual infração cometida pelo cidadão, este apresenta sua posição social

hierárquica para tentar receber alguma vantagem.

Questão 3

Resposta: Alternativa B.

Resolução: Com o advento da globalização os meios de comunicação de massa televisão,

rádio, internet, jornais e revistas, tornaram-se os grandes responsáveis pela formação da

opinião sobre os mais diversos temas. É neste contexto que a mídia tomou para si o discurso

repressivo- jurídico-criminal, em face do poder de convencimento assumindo verdades

absolutas.

Questão 4

Resposta: Altenativa A.

Resolução: Ao retratar a história da violência privada e secular no Brasil, Alba Zaluar relembra

o poderio pessoal e a violência privada dos senhores de engenho e de outros grandes

proprietários rurais, a partir dos “coronéis” que tinham tropas de “jagunços”, homens armados

sob seu comando responsáveis por proteger suas propriedades rurais e que formaram a

Guarda Nacional durante o Império no século XIX.

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Gabarito

Questão 5

Resposta: Alternativa B.

Resolução: Para José Luiz Ratton, o estigma de “lixeiro da sociedade” cria no policial uma

autoimagem de sacralidade na sua missão, qual seja, livrar a sociedade deste mal. Para tal,

a utilização da violência seria legitimada como recurso técnico, instrumental e moral.

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