POVO TRADICIONAL POMERANO E INTERCULTURALIDADE: APONTAMENTOS PARA PESQUISA Erineu ... · 2016. 5....

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POVO TRADICIONAL POMERANO E INTERCULTURALIDADE: APONTAMENTOS PARA PESQUISA Erineu Foerste/UFES 1 Resumo: Problematizam-se aspectos das culturas, saberes e educação do povo tradicional pomerano (Decreto 6.040/2007). Propõe debates para questionamento principalmente da inexistência de políticas públicas na oferta de ensino bilíngue em comunidades com presença pomerana em municípios, como: Vila Pavão, Pancas, Laranja da Terra, Santa Maria de Jetibá e Domingos Martins no Estado do Espírito Santo, Brasil. Análise apoiam-se em Fichtner et al (2013), para aprofundamento de reflexões sobre praxis das denominadas políticas afirmativas junto a sujeitos excluyídos socialmente. O foco investigativo busca no Programa de Educação Pomerana PROEPO argumentos que sugerem algumas conquistas consideradas importantes. A inclusão dos povos tradicionais na agenda de pesquisa das universidades é considerada um aspecto que contribui para fortalecimentos de lutas coletivas dos pomeranos e povos tradiciobnais de modo geral por direitos sociais. Há impactos concretos na valorização da identidade do povo tradicional pomerano, sobretudo no que se refere às discussões sobre cultura e interculturalidade. Palavras-chave: Pomeranos; Povos tradicionais; Educação intercultural. Introdução Os primeiros pomeranos ao chegar no Brasil há 150 anos atrás desembarcaram no Porto de Vitória no Estado do Espírito Santo na Região Sudeste do Brasil e ajudaram a fundar a cidade de Santa Leopoldina em meio às montanhas, acerca de 50 Km do litoral. Aos poucos migraram para outras regiões do Estado, onde hoje vivem em municípios como Santa Maria de Jetibá, Laranja da Terra, Pancas, Vila Pavão entre outros. Este povo tradicional (BRASIL: 2007) 2 produz sua existência material e simbólica na sua relação com o mundo do trabalho, principalmente a partir da agricultura familiar agroecológica (Merler et al.: 2012). 1 Professor Associado da Universidade Federal do Espírito Santo. 2 O Decreto Federal nº 6.040 de 07 de fevereiro de 2007 institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Foi criada uma comissão nacional de povos tradicionais em que os pomeranos têm assento.

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POVO TRADICIONAL POMERANO E INTERCULTURALIDADE:

APONTAMENTOS PARA PESQUISA

Erineu Foerste/UFES1

Resumo: Problematizam-se aspectos das culturas, saberes e educação do povo

tradicional pomerano (Decreto 6.040/2007). Propõe debates para questionamento

principalmente da inexistência de políticas públicas na oferta de ensino bilíngue em

comunidades com presença pomerana em municípios, como: Vila Pavão, Pancas,

Laranja da Terra, Santa Maria de Jetibá e Domingos Martins no Estado do Espírito

Santo, Brasil. Análise apoiam-se em Fichtner et al (2013), para aprofundamento de

reflexões sobre praxis das denominadas políticas afirmativas junto a sujeitos excluyídos

socialmente. O foco investigativo busca no Programa de Educação Pomerana –

PROEPO argumentos que sugerem algumas conquistas consideradas importantes. A

inclusão dos povos tradicionais na agenda de pesquisa das universidades é considerada

um aspecto que contribui para fortalecimentos de lutas coletivas dos pomeranos e povos

tradiciobnais de modo geral por direitos sociais. Há impactos concretos na valorização

da identidade do povo tradicional pomerano, sobretudo no que se refere às discussões

sobre cultura e interculturalidade.

Palavras-chave: Pomeranos; Povos tradicionais; Educação intercultural.

Introdução

Os primeiros pomeranos ao chegar no Brasil há 150 anos atrás desembarcaram no Porto

de Vitória no Estado do Espírito Santo na Região Sudeste do Brasil e ajudaram a fundar

a cidade de Santa Leopoldina em meio às montanhas, acerca de 50 Km do litoral. Aos

poucos migraram para outras regiões do Estado, onde hoje vivem em municípios como

Santa Maria de Jetibá, Laranja da Terra, Pancas, Vila Pavão entre outros. Este povo

tradicional (BRASIL: 2007)2 produz sua existência material e simbólica na sua relação

com o mundo do trabalho, principalmente a partir da agricultura familiar agroecológica

(Merler et al.: 2012).

1 Professor Associado da Universidade Federal do Espírito Santo.

2 O Decreto Federal nº 6.040 de 07 de fevereiro de 2007 institui a Política Nacional de

Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Foi criada uma comissão nacional

de povos tradicionais em que os pomeranos têm assento.

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Os pomeranos, juntamente com outros povos tradicionais (indígenas, quilombolas,

ribeirinhos etc.) fazem história não apenas sob as condições que lhes são dadas, como

dizia Marx, mas nas contradições da sociedade de classes, conforme Fornet-Bitancourt

(2001), colocando-a sempre em questão nas lutas coletivas por direitos sociais. Como o

povo tradicional pomerno produz práticas sociais e políticas interculturais?

Constituindo sua humanidade, ao mesmo tempo em que humanizam o mundo pela

práxis, os trabalhadores em geral e os povos tradicionais de modo especial produzem

culturas como forma de resistência ao projeto hegemônico de desenvolvimento e de

educação do capitalismo (Fichtner et al: 2013; Merler et al: 2013). Partindo desses

pressupostos, este trabalho objetiva analisar, compreender e dar visibilidade a aspectos

do patrimônio material e imaterial do povo tradicional pomerano. Aqui daremos ênfase

às práticas políticas e pedagógicas que têm sido produzidas como ação coletiva para

superar injustiças sociais e processos de exclusão cultural, especificamente no que se

refere às comunidades pomeranas no Estado do Espírito Santo, Brasil.

Uma apresentação do Povo Tradicional Pomerano

Nossas investigações emergem dos trabalhos desenvolvidos no Grupo de Pesquisa

(CNPq) Culturas, parcerias e educação do campo do Programa de Pós-Graduação em

Educação - PPGE do Centro de Educação - CE da Universidade Federal do Espírito

Santo – UFES. Estabelecem-se interlocuções com a produção acadêmica acumulada

sobre a questão pomerana no Brasil, em especial com o trabalho de mestrado de

Adriana Vieira Guedes Hartwig, intitulado Professores (as) pomeranos (as): um estudo

de caso sobre o Programa de Educação Escola Pomerana – PROEPO no município de

Santa Maria de Jetibá/ES (Hartwig: 2011). Os debates identificam-se com a perspectiva

teórico-prática de que é na luta pela redistribuição e pelo reconhecimento, conforme

Semeraro (2006 e 2009), que os oprimidos produzem praxis sociais e culturais

alternativas de emancipação humana.

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No geral essas pesquisas apontam para reivindicações dos pomeranos, articulados com

outros povos tradicionais, por direitos sociais como luta intercultural (Fornet-

Betancourt: 2001). O povo pomerano no Brasil (BRASIL: 2007) organiza-se

internamente de forma crescente nos últimos decênios e é reconhecido publicamente

para fortalecer lutas coletivas pelos direitos sociais com povos indígenas (Tupinikim e

Guarani), quilombolas, assentados de reforma agrária, caiçaras, ribeirinhos, pescadores,

ciganos etc. Inscreve-se assim, no contexto de lutas históricas dos povos tradicionais e

outras comunidades do campo (agricultores familiares em geral, trabalhadores rurais

vinculados ao Movimento Sem Terra – MST, ao Movimento dos Pequenos Agricultores

- MPA etc.) como protagonismo na conquista de políticas afirmativas de inclusão

social.

Os povos europeus da imigração tardia (esses povos não estão alinhados ao projeto

predatório de colonização promovido pelas coroas portuguesa e espanhola) chegaram ao

Brasil no final da primeira metade do século XIX. No Estado do Espírito Santo os

primeiros imigrantes alemães vieram a partir de 18473. As primeiras Comunidades

Pomeranas começaram a se constituir nas montanhas espírito-santenses em 1859.

A imigração fez parte do processo acelerado de transformações sociais que ocorreram

no Brasil na segunda metade do século XIX e início do século XX. A ascensão das

ideias republicanas, em substituição ao Brasil Império, com transformações políticas,

sociais e culturais, teve impacto direto na população de imigrantes germânicos

assentados em diversos Estados da Região Sudeste e Sul do país.

3 A primeira colônia de imigrantes germânicos estabelece-se em Santa Isabel, Domingos Martins

no Estado do Espírito Santo.

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Fonte: Acervo Família Foerste; Autor Emílio Schultz (Pancas); Data 1942.

Especificamente no que se refere à educação escolar, o período inicial do século XX

caracteriza-se pela forte influência do Projeto Escolanovista, criado por John Dewey,

sobretudo através da Escola de Chicago. Este ideário norte-americano serve de base

para incremento do projeto educacional nacionalista brasileiro de Getúlio Vargas. Isso

significa, concretamente, a construção de estratégias pedagógicas e políticas para

fortalecer a identidade nacional.

A passagem do Brasil Colônia à consolidação da República é acompanhada de

mudanças desde a reconstrução arquitetônica das cidades às esferas administrativas do

estado brasileiro. No bojo das transformações por que passava o Brasil naquele período,

vale destacar as reformas educacionais da era do Presidente Getúlio Vargas4, com

atenção à Reforma Educacional Francisco Campos (1931) e a Reforma Gustavo

Capanema (1942), que são orientadas ideologicamente pelo discurso modernista e dão

sustentação aos projetos de nacionalização do estado brasileiro, na lógica do Estado

ditatorial. A educação, nessa perspectiva, ocupa papel fundamental na propaganda

nacionalista. Segundo Nagle (1974), o movimento do otimismo pedagógico atribui à

4 A assim chamada Era Getúlio Vargas da história do governo brasileiro inicia-se em 1930 com a

eleição democrática do caudilho legado pelo Estado do Rio Grande do Sul e termina com o seu suicídio

em 1945.

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educação a tarefa redentora e unificadora do estado brasileiro; também favorece as

medidas de nacionalização das escolas comunitárias, a proibição do ensino da língua e

cultura alemãs em escolas das comunidades de imigrantes situadas grosso modo no Rio

Grande do sul, Santa Catarina e Espírito Santo e a institucionalização da escola primária

como “democratizadora” do acesso à formação dos trabalhadores. Também, na esteira

da discussão nacionalista ganha força o movimento do ruralismo pedagógico, que

defendia maior equidade na relação campo e cidade, para justificar formas de cobrança

tributária. Este movimento suscita olhar do poder central da união sobre as escolas

campesinas de comunidades de imigrantes para incremento da nacionalização dos

projetos de educação locais como estratégia fundamental à unificação do Estado

nacional e como campo de disseminação ideológica das concepções hegemônicas do

“Estado Novo”.

Conforme discussões da época, a imigração representava um mal necessário. Segundo

Menucci (1934) a presença de imigrantes apresentou-se, sobretudo na primeira metade

do século XX, como um problema que explicitava a dialética do progresso e da

civilização. O estrangeiro foi considerado peça chave, ao mesmo tempo em que era

tomado como indesejável. Para fazer frente ao problema, medidas foram tomadas como

a obrigatoriedade do domínio da língua portuguesa, sobretudo pelas crianças em idade

escolar.

À revelia desse processo de nacionalização, em cujo movimento a educação foi afetada

de forma muito especial, o povo tradicional pomerano (BRASIL: 2007) manteve suas

culturas e identidades. A língua pomerana constitui uma das dimensões articuladoras,

para reconhecimento dos pomeranos atualmente no cenário das lutas coletivas por

direitos sociais. Ela é patrimônio cultural de um povo tradicional brasileiro.

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Hoje há cerca de 300 mil pomeranos no Brasil.5 No Estado do Espírito Santo estima-se

uma população de 120 a 150 mil pomeranos, conforme levantamentos preliminares

realizados por Jacob (2012), apresentados no quadro abaixo:

Quadro: População Pomerana do Estado do Espírito Santo - Brasil (dados aproximados)

Representantes dos municípios de Santa Maria de Jetibá, Domingos Martins, Laranja da

Terra, Vila Pavão e Pancas no Estado do Espírito Santo – Brasil articularam esforços

interinstitucionais e estabeleceram parcerias (Foerste: 2005) para elaboração do Projeto

de Educação Escolar Pomerana - PROEPO que visa valorizar e fortalecer a cultura e

língua pomeranas.

Educação Pomerana no Estado do Espírito Santo: Um diálogo

O ano de 2003 é um marco importante nesse processo, quando foi implementado o

PROEPO. Surgiu a partir da preocupação de lideranças comunitárias articuladas a

5 O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE não incluiu ainda no censo nacional

questões específicas sobre o povo pomerano, a exemplo do que já vem sendo feito oficialmete no caso

dos indígenas e quilombolas.

MUNICÍPIOS

POPULAÇÃO

(IBGE\2010)

PERCENTUAL

ESTIMATIVA

POMERANOS 1 - Santa Maria de Jetibá 34.774 80% 27.819

2 - Laranja da Terra 10.826 70% 7.578 3 - Vila Pavão 8.672 60% 5.203 4 - Domingos Martins 31.847 60% 19.108 5 - Pancas 21.548 40% 8.619 6 - Afonso Cláudio 31.091 60% 18.654 7 - Baixo Guandú 29.081 40% 11.632 8 – Itaguaçu 14.134 40% 5.653 9 – Itarana 10.881 50% 5.440 10 - Vila Valério 21.823 30% 6.546 11 - São Gabriel da Palha 31.859 10% 3.186 12 – Colatina 111.788 5% 5.589 13 - Marechal Floriano 14.262 30% 4.278 14 - outros Municípios 16.000 TOTAL 145.309

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alguns dirigentes municipais, por um lado, a partir de avaliações que apontam situações

concretas em que parte das gerações mais novas das comunidades pomeranas não se

interessam mais em falar pomerano em contexto familiar e público. De outro lado, pais,

mães, membros das comunidades (igreja, lideranças da sociedade civil), professores,

pesquisadores, etc. manifestam há muito tempo preocupação com o fracasso escolar de

crianças de origem pomerana, principalmente nas séries iniciais, pelo fato de

dominarem o pomerano como língua materna e não falarem a língua portuguesa ao

ingressarem na escola.

Dentre as dificuldades mais preocupantes em relação à escolarização desses estudantes,

as pesquisas de Mian (1993), Weber (1998), Siller (1999), Ramlow (2004) e Hartwig

(2011) destacam: a) alto índice de reprovação; b) currículo desvinculado do contexto

social; c) contratação de professores que não falam pomerano; d) gestores educacionais

e equipe pedagógica que desconhecem a realidade local campesina e promovem

fechamento de escolas locais (Merler et al: 2013; Foerste et al: 2013); e) subestimação

da capacidade de aprendizagem das crianças pomeranas; f) exclusão dos alunos das

práticas escolares por não serem compreendidos em sua língua nem compreender a

língua portuguesa; g) reprodução do mito de que os pomeranos são tímidos.

A criança de origem pomerana, ao ingressar na escola de Ensino Fundamental, é

incumbida de duas tarefas simultâneas: aprender outra língua e atender aos objetivos do

período de alfabetização (1º ao 2º anos do Ensino Fundamental, para desenvolver

habilidades de leitura e produção de textos escritos na língua oficial (Língua

Portuguesa), muitas vezes isso é feito em detrimento da língua materna (Língua

Pomerana) 6.

Estudiosos do campo da educação, vinculados a diferentes linhas de pesquisa no

Programa de Pós-Graduação em Educação - PPGE da Universidade Federal do Espírito

Santo - UFES7 na produção de dissertações de mestrado e teses de doutorado,

aprofundaram pesquisas em comunidades pomeranas (Mian: 1993; Weber: 1998; Siller:

6 Sobre o conceito de língua pomerana consultar: Tressmann (2005) e Tressmann et al (2009).

7 Consultar as homepage: www.ufes.br e www.ppge.ufes.br

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1999; Ramlow: 2004; Delboni: 2006; Hartwig: 2011; Cosmo: 2014). Denunciam os

ataques à alteridade e às especificidades do povo pomerano e sinalizam para a

importância e a necessidade de reflexões, com implementação de políticas públicas que

superem problemas que entravam a escolarização dos pomeranos.

As práticas escolares desconsideram a cultura e a língua pomerana. Existem relatos de

professoras que são orientadas a proibir que as crianças façam uso da língua materna

pomerana durante os períodos escolares regulares, sob a alegação de que a função da

escola é ensinar a ler e escrever na língua oficial. Este processo remete ao período de

nacionalização instituído no Brasil, sobretudo no período da Segunda Guerra Mundial.

O fato de muitas crianças falarem o pomerano como língua materna ao ingressarem na

escola é apontado por muitos professores e gestores educacionais como causa de

fracasso escolar em contextos sociais com presença do povo tradicional pomerano. As

pesquisas colocam em evidência os impactos desse quadro. As crianças de descendência

pomerana de modo geral, destacadamente as que ainda vivem com seus familiares em

comunidades tradicionais, sentem-se na escola e são vistas pelos profissionais do

ensino, no dizer de muitos pais, como estranhos fora do ninho ou estrangeiros na

própria comunidade tradicional, onde a absoluta maioria da população fala o pomerano

no dia-a-dia. As dificuldades de se comunicar em português geram extremo

constrangimento (confundido muitas vezes com timidez) para essas crianças e

respectivas comunidades, impedindo-lhes de participar de forma espontânea e ativa da

vida da escola, tornando a prática pedagógica cheia de significados culturais (Mclaren:

1997) ainda pouco estudado academicamente. Mesmo quando solicitadas a falar em sua

língua ou em português, preferem ficar silenciosas. Presenciamos em nossas pesquisas,

relatos de crianças que têm medo de fazer perguntas referentes aos conhecimentos

escolares por causa da dificuldade de comunicação na Língua Portuguesa. Elas têm

“medo” de falar errado. O recreio é, não raras vezes, o momento em que as crianças se

sentem livres no contexto escolar para conversarem em pomerano, longe do controle da

equipe pedagógica.

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Narrativas das famílias de crianças de origem pomerana explicitam sentimento de

tristeza face ao fato dos filhos resistirem de forma crescente para falar a língua materna

(o pomerano) de forma crescente também em casa, depois de ingressarem na escola. Ao

mesmo tempo há aqueles que se sentem culpados por não ensinarem a língua pomerana

aos filhos; chegam a confessar que agindo assim, podem proteger as gerações mais

novas de enfrentar as mesmas dificuldades pelas quais passaram no período da

escolarização, decorrentes de sofrimentos relacionados ao preconceito e exclusão

vividos na própria pele.

As pesquisas de Siller (1998), desenvolvidas no contexto da Educação Infantil em Santa

Maria de Jetibá, demonstraram o desejo das famílias em ver uma escola que incentiva a

valorização da cultura e da língua pomeranas. Há relatos de pais dizendo que as crianças

deveriam aprender os saberes da escola por meio das duas línguas, português e

pomerano; outras sugeriram duas professoras: uma professora para falar pomerano e

outra para falar português. O bilingüismo foi apresentado como proposta de trabalho

pela maioria das famílias entrevistadas.

Porém, foi só a partir de fevereiro de 2005 que o PROEPO consolidou-se. Por iniciativa

de novos administradores de Santa Maria de Jetibá, o debate foi retomado junto com os

demais municípios envolvidos e resultou na contratação do etnolinguista Ismael

Tressmann como assessor de educação pomerana, responsável de ministrar curso de

formação em serviço para os professores dos cinco municípios que adotaram um

programa específico de educação nas comunidades pomerana. Objetivou-se instituir o

bilinguismo nas escolas a partir de ações do poder público local.

A adesão dos professores nesse projeto vem sendo crescente, porém sempre de forma

voluntária. Para participar do PROEPO exige-se que o professor seja falante da língua

pomerana, uma vez que um dos objetivos é também promover o ensino da escrita do

pomerano. Utiliza-se como material de apoio um dicionário pomerano/português

elaborado pelo assessor do PROEPO e publicado em parceria com a Secretaria de

Estado de Educação do Espírito Santo - SEDU (Tressmann: 2006a). Em 2007, o projeto

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foi transformado em programa por se acreditar que esse seria um trabalho permanente e

consistente.

A criação deste programa concretizou-se através de parcerias interinstitucionais,

fortalecendo formas antigas de organização social nas comunidades tradicionais

pomeranas e práticas culturais diversas. Referem-se a práticas comunitárias

identificadas entre os pomeranos já na época da imigração, mantendo-se até os dias

atuais. O sentimento coletivo pode ser observado em narrativas de memórias. Ainda

hoje, como nos primeiros tempos de formação das comunidades locais, quando esse

povo tradicional se organizava em mutirões para realizar festas comunitárias, religiosas

e casamentos, construção de casas, abertura de estradas, etc. As pesquisas de Ismael

Tressmann recuperam narrativas populares, contadas de geração em geração; registram-

se receitas da culinária pomerana (sopa de pêssego, sopa de frango com aipim, pão de

banana etc.), tradições do casamento pomerano (Tressmann: 2006b).

Filmes e documentários8 sobre a cultura pomerana retratam eventos comunitários e em

contextos familiares de um povo tradicional, alegre, participativo, solidário e

interessado no trabalho coletivo. Os pomeranos, independente da faixa etária ou do

gênero de cada pessoa, participam ativamente da organização do processo produtivo na

da agricultura familiar agroecológica, integram-se aos momentos em que promovem

trabalho coletivo para construir pontes, estradas, casas, organizar festas comunitárias,

casamentos etc. até os dias atuais. O trabalho em mutirão é referência para o cultivo de

8 Ver filmes e documentários sobre os pomeranos: Jacob (2005) – Bate-paus; Krüger (2009) – A

trajetória de um povo; Sá e Foerste (2010) – A estrada silvestre; entre outros.

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uma forma tradicional peculiar do modo de se viver em comunidade. É uma tradição

trazida da antiga Pomerânia e aqui, no contato e diálogo com outras culturas de povos

tradicionais em seus respectivos territórios (indígenas, quilombolas, caiçaras,

extrativistas, pescadores etc.), ressignifica-se e abre possibilidades de produzir outras

culturas, apesar de manter muitos dos traços originais dos tempos ancestrais dessas

práticas.

Este encontro de culturas produz modos de se viver que podem ser definidos como

práticas interculturais. Para Fornet-Betancourt (2001) a interculturalidade caracteriza-se

como alternativa de lutas coletivas produzidas em contextos específicos por sujeitos

excluídos, quando se articulam para a conquista de direitos sociais. Os grupos se

organizam e passam a lutar por condições dignas de vida para todos (educação, saúde,

moradia, direito à terra etc.). Para Gramsci (1978), conforme dicute Semeraro (2006 e

2009), os sujeitos no mundo capitalista, considerada a correlação de forças entre os que

detêm o processo produtivo (classe dirigente) e aqueles que vendem sua força de

trabalho (os trabalhadores), produzem formas de ideologias que garantem a hegemonia

daqueles que estão no comando. A interculturalidade é compreendida como alternativa

de resistência dos povos tradicionais face ao projeto de desenvolvimento e de progresso

do capital, que se institui a partir do agronegócio, do latifúndio, da industrialização etc.

Paulo Freire (1970 e 1996) e Bakhtin (1991) falam-nos das práticas culturais como

possibilidades de diálogo entre sujeitos que articulam esforços coletivos e desse modo

produzem libertação de dominados e dominadores. Segundo Semeraro (Op. cit.) a

emancipação humana pressupõe crítica ao capital internacional e ruptura com as

desigualdades sociais por ele produzidas. Interculturalidade, portanto, é luta por direitos

sociais dos oprimidos, como forma de resistência ao projeto hegemônico de progresso

da elite. Por isso se define essencialmente como diálogo libertador, pelo qual opressor e

oprimido se emancipam e superam as desigualdades sociais.

Assim podemos dizer que o povo pomerano produz interculturalidade ao fortalecer lutas

coletivas juntamente com outros povos tradicionais, o que se traduz, por exemplo, nas

agendas específicas deste grupo social (e o PROEPO é uma causa apoiada pelos

coletivos dos pomeranos) e/ou nas pautas discutidas e encaminhadas na Comissão

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Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (Decreto 6040/2007). São práticas de

resistência e por isso mesmo também ações articuladas de libertação. A conquista de

direitos sociais pelos excluídos é, portanto, mola propulsora da interculturalidade no

cenário da América Latina.

Algumas considerações

Os indivíduos do povo pomerano por muito tempo se consideraram e foram chamados

pelos outros como alemães. Havia, porém, muito preconceito em relação à cultura

pomerana, considerada inferior aos costumes dos alemães (Tressmann: 2005; Thum:

2009; Bahia: 2011; Siller: 1999). Hoje se produzem reconhecimentos acadêmicos com

pesquisas sobre a cultura e língua pomeranas. Uma das formas de dominação de um

povo sobre outro se dá pela imposição da língua, a exemplo do que ocorreu e continua

muito presente no Brasil em relação aos povos indígenas. Esse é o modo eficaz, apesar

de se constituir um processo lento, de um grupo dominante impor sua cultura a outro

grupo não hegemônico. De certa maneira, a nacionalização do ensino no Brasil cumpriu

este papel em relação aos povos de cultura germânica no século passado.

No ano de 1530, a Reforma Luterana é introduzida na Pomerânia (Röelke, 1996), assim,

a língua alemã foi imposta e estabelecida nas igrejas, escolas e repartições públicas da

Pomerânia. Depois da imigração do pomeranos, os pastores luteranos enviados para as

comunidades realizavam os cultos nas igrejas e ministravam aulas nas primeiras escolas

também na língua alemã. Durante a Segunda Guerra Mundial, com a nacionalização do

ensino, a política de Getúlio Vargas instituiu a proibição da língua alemã, tornando

obrigatório somente o uso nas comunidades e nas escolas da Língua Portuguesa.

Porém, mesmo à margem do projeto cultural hegemônico no país, os praticantes da

língua pomerana falada, por inúmeras vezes, optaram por estratégias de transgressão

ideológica e recusa à opressão das classes dominantes. Assim mantiveram sua língua

materna em diferentes contextos sociais, longe do controle do poder oficial (lar, trabalho

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na lavoura, mutirões, festas comunitárias, casamentos etc.). A resistência dos

pomeranos indica uma postura de luta pelos direitos sociais na perspectiva das práticas

iterculturais, da mesma forma que outros povos tradicionais o fizeram e continuam

fazendo no cenário brasileiro e da América Latina. Hoje os pomeranos se fortalecem no

contato mais direto com outros povos tradicionais, como, entre outros, os indígenas e

quilombolas, ribeirinhos, o que coloca para a universidade o desafio de aprofundamento

de estudos na perspectiva intercultural, no esforço de se interpretar aspectos da língua e

culturas do povo tradicional pomerano no Brasil.

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