Povos Indígenas - Manifesto contra os decretos de extermínio

download Povos Indígenas - Manifesto contra os   decretos de extermínio

of 196

description

Livro Cimi 40 Anos

Transcript of Povos Indígenas - Manifesto contra os decretos de extermínio

  • Manifesto contra os decretos de exterMnio

    PovosIndgenas

    aqueles que devem viver

  • PovosIndgenas

    aqueles que devem viver

    Manifesto contra os decretos de exterMnio

    A P O I O

    DIOCESE DE

    Wrzburg

  • Publicao do Conselho Indigenista Missionrio CIMIOrganismo vinculado Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil CNBB

    PresIdeNte

    Dom Erwin Krutler

    eNdereO

    sds ed. Venncio III, salas 309-314CeP 70393-902 Braslia/dF

    tel: (61) 2106-1650Fax: (61) 2106-1651www.cimi.org.br

    POVOS INDGENAS: AQUELES QUE DEVEM VIVERMANIFESTO CONTRA OS DECRETOS DE EXTERMNIO

    OrgaNIzadOres

    egon dionsio Heckrenato santana da silva

    saulo Ferreira Feitosa

    edIO

    renato santana da silva

    PrOjetO grFICO e edItOraO

    Licurgo s. Botelho

    esCreVeraM O textO dO MaNIFestO:

    Carlos Mesters, Cleber Cesar Buzatto, egon dionsio Heck, genter Francisco Loebens, Iara Bonin, Paulo suess, renato santana da silva, roberto Liebgott e saulo Ferreira Feitosa.

    FOtOs

    arquivo Cimi e equipes regionais, adriel Lima guimares, antonio Carlos Moura (in memoriam), Cleymenne Cerqueira, Clarissa tavares, Cristiano Navarro,

    diego Pelizari, eden Magalhes, egon Heck, egydio schwade, eliseu guarani Kaiow, gnter Francisco Loebens, geertje Van der Pas, j. rosha, juma xipaia, Laila Menezes,

    Marcy Picano, Paul Wolters, Priscila d. Carvalho, renato santana da silva, ruy sposati. seleo das fotos: aida Cruz/setor de documentao do Cimi

    ILustraes

    Mariosan gonalves

    grFICOs e PesquIsa

    eduardo Holanda, Leda Bosi e Marluce ngelo da silva/setor de documentao do Cimi

    dados internacionais de catalogao na Publicao

    Povos indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio. Heck, dionsio egon; silva, renato santana da; Feitosa, saulo Ferreira (organizadores) Braslia : Cimi Conselho Indigenista Missionrio, 2012, 192p.

    IsBN 978-85-87433-06-0

    Brasil 2. Indigenismo 3. Violncia-povos indgenas 3. Cimi

    Cdu (39=981)

  • Este livro dedicado a Antonio Brand, que aos povos indgenas entregou sua vida antes mesmo que ela fosse ceifada de forma prematura.

    Aos Guarani Kaiow Nisio Gomes e Zezinho e a todos os mrtires indgenas que seguem caindo em defesa de seus povos, terras e vidas nestes 512 anos de invaso.

    Aos mrtires do Cimi e suas caminhadas junto aos povos desta terra, resistentes e vivos.

  • apresentao O sonho da terra sem Males .........................................................................9 Por Dom Pedro Casaldliga

    Prefcio O ndio: aquele que deve viver .................................................................................11 Por Dom Erwin Krutler

    Captulo I Povos indgenas: aqueles que devem viver .................................13 Manifesto contra os decretos de extermnio

    Captulo II Os projetos de vida dos povos da abya ayala ..........................71

    Captulo III O Movimento Indgena por ele mesmo .........................................91Manifestos e documentos

    Captulo IV Y juca Pirama O ndio: aquele que deve morrer .............151documento de urgncia de Bispos e Missionrios 1974

    aNexOs ..............................................................................................................................................181Cartazes de campanhas realizadas pelas organizaes indgenas com o apoio do cimi

    Povos e terras indgenas impactadas pelos grandes empreendimentos na ltima dcada

    Sumrio

  • Ovidem. Il et voluptatis nihit eos im quiant.Nis reiumquam endisqui od et assint fuga. Tur, odit rerum imo te pos mo est, sit fugit lia core sitaque aut et endis aborias volo et, cum eossi rehenem porrum que cupid magnis sit, corum evererum aditibus, sequia aut eum nis acitae nim id mincid molorem auda ipsum et quis et re, omnimus asperio experem expe simus.

    X Assembleia Indgena, 1977, aldeia Tapirap, Mato Grosso

  • Porum illupta temporiam nos dolest, untias cusam et que occus, to id minte sa volescia culparc illorum rent, simin plia ipsaercia et vendant volorendebit aceatat laceptatis alis vollese es volo el esedipic tet aut et quam abo. Itatistem ex explaccullab ium susam voles sit quatur sa con pos quatqui im dolut haribusdam, odi officiusam dolorat ureprae. Roris re et offici doluptatium nia dolores

    Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio 9

    Apresentao

    Dom Pedro CasaldligaBispo emrito da Prelazia de So Flix do Araguaia/MT

    H 500 anos que o ndio aquele que deve morrer. 500 anos proibidos para esses povos classificados com um genrico apelido, negadas as identidades, criminalizada a vida dife-rente e alternativa. 500 anos de sucessivos imprios invasores e de sucessivas oligarquias herdeiras da secular dominao. 500 anos sob a prepotncia de uma civilizao hegemnica, que vem massacrando os corpos com as armas e o trabalho escravo e as almas com um deus em exclusiva. Por economia de mercado, por poltica imperial, por religio imposta, por bulas e decretos e portarias pseudocivilizados e pseudocrstos. j se passaram, ento, 500 anos para aquele povo de povos que tinha que morrer e finalmente, mesmo continuando as vrias formas de extermnio, os Povos Indgenas so aqueles que devem Viver.

    No h vontade poltica se diz. Pior ainda: h positiva vontade poltica contra a causa indgena. Os povos indgenas teriam o pleno direito a exigir vontade e ao polticas oficiais para sua sobrevivncia e realizao, mas no esperam, no vamos esperar, que as autoridades responsveis se responsabilizem mesmo. Os povos indgenas, atravs de vrias organizaes e com gestos emblemticos ou hericos rasgam as portarias, recuperam suas terras, arriscam a prpria vida.

    Felizmente h muitos setores da sociedade e da Igreja, na ame-rndia e no Mundo, que somam a sua solidariedade luta indgena. e a entrou, faz agora 40 anos, nosso CIMI, pequeno, mas teimosamente fiel. Podemos celebrar a data com ares de jubileu. Pela cotidiana fidelidade de tantos irmos e irms, pela acolhida que os povos indgenas tm dado ao Cimi, pelo testemunho maior de nossos mrtires. e queremos celebrar o jubileu reassumindo o compromisso de por vida com a Causa Indgena, derrotada e invencvel como causa evanglica que . apesar de tanta cobia e idolatria sobre as terras indgenas, contra suas culturas alternativas, contra o sonho divino da terra sem Males.

    Para isso queremos rebatizar em converso diria nossa espiri-tualidade e nossa pastoral. Com indignao proftica, com solida-riedade militante, com esperana pascal. Na caminhada fraterna e sororal com todos os movimentos de libertao, seguindo aquele que o Caminho verdadeiramente alternativo, a Verdade de deus feito humana histria e a Vida plena contra todo sistema de morte. Nessa caminhada so particularmente os Povos Indgenas aqueles que devem Viver.

    O sonho da Terra Sem Males

  • XVII Assembleia do Cimi, 2007, Luzinia, Gois

  • Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio 11

    Prefcio

    Dom Erwin KrutlerBispo a Prelazia do Xingu/PA e presidente do Cimi

    O ndio: aquele que deve VIVER

    H 40 anos o Brasil encontrava-se mergulhado no perodo mais repressivo dos chamados anos de chumbo. sob a gide da ditadura militar, o pas vivia segundo a ordem do terror e do medo. O silncio se impunha como arma letal utilizada pelo estado contra a sociedade. romper o silncio podia significar uma sentena de morte. a doutrina da segurana Nacional, imposta pelos estados unidos a todos os pases da amrica Latina, justificava a tortura e a morte dos filhos e filhas da ptria nos pores da ditadura brasileira.

    enquanto nas cidades trabalhadores, estudantes e militantes polticos foram perseguidos e presos, cam-poneses e indgenas na rea rural so massacrados ou expulsos de suas terras para dar lugar ao progresso que chegava como alternativa ao atraso. Nesse perodo (1972) inaugurada a rodovia transamaznica (Br-230), smbolo do delrio desenvolvimentista da poca que representava a destruio de pelo menos 30 territrios indgenas e a morte de muitos ndios.

    Mesmo assim, em meio a toda aquela realidade de de-sesperana, era possvel ouvir vozes corajosas e destemidas, como a do bispo-profeta dom Hlder Cmara que insistia em dizer que por mais longa e tenebrosa que seja a noite, sempre haver um alvorecer. Convencidos dessa certeza, muitos segmentos da sociedade brasileira construram espaos de articulao e luta como forma de organizar a esperana, romper as correntes da ditadura e projetar um futuro promissor. exatamente nesse contexto nasce o Cimi, formado a partir da reunio de 25 missionrios e mission-rias, inicialmente convocados pelo ento secretrio geral da CNBB, dom Ivo Lorscheiter, para discutir o Projeto de Lei n. 2328, uma proposta de criao do estatuto do ndio, na poca em tramitao na Cmara Federal.

    No mesmo ano, os bispos da amaznia reuniram-se em santarm (24 30 de maio) num encontro que se tornaria marco histrico para a Igreja na amaznia. Os bispos escolhem a pastoral indgena como uma das quatro prioridades de sua ao evangelizadora. afirmam que a

    Igreja na amaznia est cumprindo misso que lhe vem de Cristo e que a impele em busca, preferencialmente, dos agrupamentos mais frgeis, mais reduzidos e mais suscet-veis de esmagamento nos seus valores e no seu destino e consideram o Cimi recm-criado rgo providencial (...) a servio do ndio e das misses indgenas.

    O Cimi sempre entendeu o empenho em favor dos Povos Indgenas, por seus direitos vida e ao Bem Viver como cumprimento da misso que lhe vem de Cristo. jesus no exige apenas uma ateno especial aos pobres e ameaados em sua sobrevivncia. ele se identifica com os famintos e sedentos, com os expulsos de suas terras, com os presos e injustiados (cf. Mt 25,31-46). e muito mais se identifica ainda com quem agredido em seus direitos mais elementares e em sua dignidade fundamental de filhas e filhos de deus, feitos sua imagem e semelhana (cf. gn 1,27).

    Por isso, j em 1973, o Cimi publica o Y-juca-Pirama: o ndio aquele que deve morrer documento que denun-cia a poltica genocida do governo brasileiro contra os povos indgenas do pas. a consistncia das informaes e anlises apresentadas causou to grande impacto junto opinio pblica nacional e internacional a ponto de ofuscar a publicao da Lei 6001/73 (estatuto do ndio) que os militares pretendiam utilizar como propaganda para amenizar os efeitos das denncias sobre o extermnio de indgenas brasileiros frequentemente denunciados no exterior.

    Passadas quase quatro dcadas da publicao daquele primeiro manifesto, muitas das situaes denunciadas ain-da persistem, mas podemos afirmar com toda segurana que os povos indgenas, graas sua grande capacidade de resistncia, luta e organizao, conseguiram expulsar de uma vez por todas a ameaa da extino. Motivado pela celebrao de seus 40 anos, o Cimi publica hoje esse segundo manifesto no intuito de concretizar a profecia anunciada pelo Y juca Pirama: Chegou o momento de anunciar, na esperana, que aquele que deveria morrer aquele que deve viver.

  • I

  • Povos indgenas: aqueles que devem viver

    Manifesto de denncia contra os decretos de exterMnio

  • A violncia imposta pela colonizao intermitente chegou a vislumbrar, durante a ditadura militar, na dcada de 1970, que o xito do desaparecimento dos povos indgenas viria exatamente neste incio de sculo XXI. Chegaramos aos novos tempos com os sobreviventes do massacre quase que totalmente integrados sociedade imposta a eles por um padro de poder com projeto antagnico aos das comunidades ento relacionadas s listas de inimigos do Estado. Como um cdigo no escrito, o decreto de extermnio estava posto em prtica.

  • Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio 15

    VERUm grito ressoa Brasil afora o grito dos povos indgenas. Subjugados ao qui-nho mais cruel de um novo padro de poder trazido pelas velhas madeiras das caravelas europeias, caram aos milhares sob os ferros da opresso no decorrer da histria. A tentativa de aniquil-los perpassa, inclusive, pela construo mental dos dominadores de que os indgenas so seres inferiores, no produzem e mantm hbitos primitivos. Esse grito o grito da resistncia de povos vivos em seus complexos dinamismos culturais, organizaes sociais enraizadas na tradio e cosmologia, busca por alteridade e luta pelos territrios de ocupao tradicional.

    O sculo XXI desfolha os novos caminhos rumo ao interior do pas, fazendo com que a mquina neodesenvolvimentista encontre como obstculos as comuni-dades tradicionais e o meio ambiente preservado, que garante a subsistncia desses povos. A reterritorializao do capital busca as fronteiras e as brenhas de um Brasil profundo e profcuo de povos indgenas que vivem em harmonia com a natureza, seguindo rumos prprios. Porm, o decreto de extermnio est dado, como outrora.

    A violncia imposta pela colonizao intermitente chegou a vislumbrar, du-rante a ditadura militar, na dcada de 1970, que o xito do desaparecimento dos povos indgenas viria exatamente neste incio de sculo XXI. Chegaramos aos no-vos tempos com os sobreviventes do massacre quase que totalmente integrados sociedade imposta a eles por um padro de poder com projeto antagnico aos das comunidades ento relacionadas s listas de inimigos do Estado. Como um cdigo no escrito, o decreto de extermnio estava posto em prtica.

    No perodo militar se registrou o resultado mais efetivo da dizimao secular destes povos: estavam, naquele momento da histria, reduzidos a 170 mil indge-nas resistindo s espoliaes e assassinatos, ao massacre silencioso de centenas de vtimas pelas mos de polticos e governantes, militares, madeireiros, construtoras, fazendeiros, grileiros e toda sorte de aventureiros financiados pela ideia estatal de ocupao do territrio brasileiro, sobretudo das fronteiras com os demais vizinhos latino-americanos, integrao de povos e comunidades tradicionais sociedade e explorao de recursos da natureza existentes nas brenhas do pas.

    Aps o fim do regime militar, em 1985, no cessaram os ataques aos povos mesmo com a vitria do movimento indgena quanto ao artigo 231 da Constitui-o Federal, fruto de intensa luta junto aos deputados constituintes. Ainda assim se seguiu o decreto, j com o pas em democracia plena: No vai haver ndio no sculo 21. A ideia de congelar o homem no estado primrio da sua evoluo , na verdade, cruel e hipcrita, disse Hlio Jaguaribe, ex-ministro da Cincia e Tecnologia

  • 16 Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio

    do governo Fernando Collor de Melo, em 30 de agosto de 1994 a militares durante seminrio no Quartel General do Exrcito, em Braslia.

    Ao que os povos indgenas seguem resistindo: O fogo da morte passou no corpo da terra, secando suas veias. O ardume do fogo torra sua pele. A mata chora e depois morre. O veneno intoxica. O lixo sufoca. A pisada do boi magoa o solo. O trator revira a terra. Fora de nossas terras, ouvimos seu choro e sua morte sem termos como socorrer a Vida, diz trecho de carta de lderes e professores Guarani Kaiow publicada em 17 de maro de 2007. No Censo 2010, ltimo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), a populao indgena brasilei-ra saltou para 817 mil indivduos, sendo que 315 mil vivem nas cidades e 502 mil esto em comunidades nas reas rurais. Conforme o censo so 305 povos fluentes em 274 lnguas distintas - mesmo longe de serem os cinco milhes de indivduos organizados em quase 2000 povos quando do incio da invaso europeia em 1500.

    arbtrios do desenvolvimento: herana maldita da ditadura militar

    Para os adeptos do desenvolvimento tudo e todos que se opem ou criam problemas para o acesso, ex-plorao e controle dos chamados recursos naturais, so obstculos a serem removidos. Essa premissa, presente na implantao dos megaprojetos da ditadura militar na Amaznia (estradas, hidreltricas, projetos de minerao), que por onde passaram deixaram um rasto de destruio e milhares de indgenas mortos, defendida abertamente e igualmente norteia a implantao dos megaprojetos atualmente.

    Para a construo da estrada BR-174 de Manaus (AM) a Boa Vista (RR), nas dcadas de 1960 e 1970, a resistn-cia do povo WaimiriAtroari foi reprimida com bombas, metralhadoras e at armas qumicas. Mais de dois mil indgenas foram mortos. O caso est sendo investigado pela Comisso da Verdade, criada pelo governo Dilma Rousseff para apurar os crimes praticados pela ditadura militar. Assim ocorreu com diversos outros povos indgenas, dizimados, nesta poca, na Amaznia.

    Em entrevista ao jornal O Globo, na edio de 5 de janeiro de 1974, Sebastio Amncio, coordenador dos trabalhos da Funai da Frente de Atrao Waimiri-Atroari, declarou que iria deter alguns ndios (Waimiri-Atroari) e mant-los numa fortaleza, numa espcie de priso, no s como punio, mas tambm para fazer-lhes pregaes que os levem a ter medo dos brancos.

    Amncio disse ainda que ele e outros agentes esta-vam cansados da guerra sem armas da Funai. Afirmou que a tradicional estratgia de pacificao do rgo havia fracassado. Chegara a hora de usar meios mais diretos, tais como dinamite, granadas, gs lacrimogneo e rajadas de metralhadora para dar aos ndios uma demonstrao de fora de nossa civilizao. O que se v neste incio de sculo XXI a reproduo dos mesmos mtodos, porm as armas foram substitudas, em parte, pela mquina estatal, flexibilizao de legislaes e injees de recursos privados para impor o desenvolvimento nacional aos povos que habitam as terras alvos do capital.

  • Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio 17

    Nas ltimas dcadas, o extermnio das populaes indgenas seguiu sendo implementado, com mecanismos cada vez mais sutis e eficazes, imbudos de um teor diferente a premissa da integrao indgena em favor de uma identidade nacional unificada cede lugar a outra, a de um nico caminho para o desenvolvimento.

    Nas ltimas dcadas, o extermnio das populaes indgenas seguiu sendo im-plementado, com mecanismos cada vez mais sutis e eficazes, imbudos de um teor diferente a premissa da integrao indgena em favor de uma identidade nacional unificada cede lugar a outra, a de um nico caminho para o desenvolvimento. Se, por um lado, h certo consenso sobre a importncia da pluralidade cultural e tni-ca que compem o pas, o que gera simpatia pela diversidade e pelo seu potencial num mercado vido por variaes em produtos e em nichos de consumo, por outro essa simpatia no se reverte em aes polticas concretas de defesa e proteo das diferentes culturas e etnias, garantindo-lhes as condies de existncia e, o mais importante, demarcando as terras tradicionais destes diferentes povos, condio primordial para o seu Bem Viver.

    Esta terra que pisamos um ser vivo, gente, nosso irmo. Tem corpo, tem veias, tem sangue. por isso que o Guarani respeita a terra, que tambm um Guarani. O Guarani no polui a gua, pois o rio o sangue de um Karai. Esta terra tem vida, s que muita gente no percebe. uma pessoa, tem alma. Quando um Guarani entra na mata e precisa cortar uma rvore, ele conversa com ela, pede licena, pois sabe que se trata de um ser vivo, de uma pessoa, que nosso parente e est acima de ns, Alexandre Acosta, da aldeia de Cantagalo, Rio Grande do Sul.

    A invaso das terras indgenas promovida pelos mais variados grupos e setores, hoje referendada por um modelo de desenvolvimento entendido como o nico capaz de promover o crescimento e a projeo do Brasil ao patamar de grande nao. Tudo se converte em recurso na nova ordem desenvolvimentista recursos ambientais, recursos culturais, recursos humanos e estes so incorporados a uma lgica mercantil e concorrencial, a partir da qual as coisas valem pelo retorno que podem gerar e pelo potencial de explorao. Neste sentido, a demarcao das terras indgenas e a garantia de formas variadas de pensar e de produzir no tm lugar, sendo os espaos indgenas pretendidos para outras finalidades, vistas como bem mais lucrativas. Tem-se, assim, o massacre, a agresso, a discriminao e o racismo contra as populaes indgenas que vivem em reas visadas para a expanso de um modelo rural baseado no agronegcio, e tambm de um modelo urbano cuja marca principal a especulao imobiliria. No campo ou na cidade as comunidades e famlias indgenas so desrespeitadas, so confinadas, so transformadas em empe-cilhos ao modelo pretendido em mbito local, regional e nacional.

    Comunidade Patax H-h-he, da Terra Indgena Caramuru Catarina-Paraguau, Bahia, reza diante do tmulo de Galdino.

  • 18 Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio

    A crescente criminalizao das aes indgenas particularmente na Bahia, Pernambuco, Maranho e Mato Grosso do Sul - tambm torna evidente a poltica de extermnio e de negao dos direitos de expresso, de manifestao, de cidadania e de defesa da vida. Chamam tambm a nossa ateno as dezenas de acampamentos beira de rodovias, espalhados na regio sul do pas, nos quais os povos Guarani e Kaingang enfrentam baixas temperaturas e o perigo dos atropelamentos.

    O extermnio continua atravs do confinamento de povos e comunidades em terras insuficientes; da morosidade do governo na conduo dos procedimentos de demarcao das terras de povos que vivem em acampamentos provisrios; do descaso nas reas de sade e educao; da omisso do poder pblico diante das agresses cotidianas, da invaso de terras por madeireiros, grileiros, fazendeiros, nar-cotraficantes; das violncias sistemticas praticadas contra indgenas em diferentes regies e estados brasileiros. As ameaas contra a vida desses povos no so, portanto, menores do que foram em outros tempos de nossa histria. Alguns exemplos con-cretos podem ser apresentados, como o caso do povo Xavante de Mariwatsd, no Mato Grosso, em luta pela extruso do seu territrio invadido por fazendeiros; dos Guarani Kaiow e Terena do Mato Grosso do Sul expropriados de suas terras pelo agronegcio, vivendo em situaes desumanas, muitos em acampamentos ao longo das estradas; dos Kadiwu, tambm em Mato Grosso do Sul, que tiveram suas terras demarcadas h mais de 100 anos e correm o risco de serem novamente expulsos, depois de terem retornado aos seus territrios; dos AwGuaj (isolados e de recente contato) e demais povos indgenas do Maranho que sofrem com a violncia dos madeireiros que devastam as suas matas e que esto com suas terras invadidas; dos povos Tupinamb, Bahia, Xakriab, Minas Gerais, Kreny, Maranho, e numerosos outros povos que foram expulsos de suas terras tradicionais. A cres-cente criminalizao das aes indgenas particularmente na Bahia, Pernambuco, Maranho e Mato Grosso do Sul - tambm torna evidente a poltica de extermnio e de negao dos direitos de expresso, de manifestao, de cidadania e de defesa da vida. Chamam tambm a nossa ateno as dezenas de acampamentos beira de rodovias, espalhados na regio sul do pas, nos quais os povos Guarani e Kaingang enfrentam baixas temperaturas e o perigo dos atropelamentos.

    O Estado brasileiro no mais empunha a bandeira da soluo final atravs de prticas de limpeza tnica, tal como no incio do sculo XX, ou pela via de um projeto integracionista explcito, como o que vigorou at a promulgao da Constituio Federal de 1988. Hoje o que se concretiza um amplo e incondicional apoio ao capitalismo agroindustrial, para o qual urgente incorporar os territrios ancestrais dos povos indgenas, gradualmente, na monocultura, no latifndio, no

    Indgenas Guarani Mby do acampamento Arroio Divisa, Rio Grande do Sul

  • Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio 19

    Hoje o que se concretiza um amplo e incondicional apoio ao capitalismo agroindustrial, para o qual urgente incorporar os territrios ancestrais dos povos indgenas, gradualmente, na monocultura, no latifndio, no agronegcio e na minerao.

    agronegcio e na minerao. A voracidade destes setores saciada custa do bem estar social de trabalhadores do campo, de pequenos agricultores, de povos ind-genas, de quilombolas e outras comunidades tradicionais.

    Os direitos sociais e cidados so substitudos por uma poltica de base as-sistencialista, expressa em bolsas e pequenos financiamentos que se destinam a demandas pontuais que minimizam os impactos imediatos da desigualdade, mas no viabilizam a redistribuio efetiva dos bens ou maior equidade no acesso aos recursos disponveis. No caso dos povos indgenas, a omisso a opo poltica do governo federal e tal atitude oficializa e avaliza a continuidade do decreto de morte.

    Em tempos de alardeada tolerncia e respeito diversidade o que concreta-mente se tem observado a dramtica realidade dos povos indgenas, cujos ndices de mortalidade so comparveis aos de pases que vivem em conflito e guerra civil. Mais do que isso, os indgenas tm sido assassinados com requintes de crueldade, como o caso de homicdios de jovens Guarani Kaiow, disfarados sob a forma de suicdio, sem contar os casos de efetivo suicdio, que denunciam as condies insuportveis de vida, a tortura cotidiana e o desalento da falta de opo a que esto submetidos. Em diferentes estados e municpios brasileiros observa-se o acirramento do preconceito, da discriminao e do racismo, objetivamente manifestados em pronunciamentos de fazendeiros que incitam a violncia, nos ataques feitos por milcias aos frgeis acampamentos indgenas, na morosidade com que se investigam os casos de agresses e na quase inexistncia de punies aos agressores. So essas manifestaes explcitas de racismo, aliada a uma crescente concentrao de terras e ao total alinhamento com a perspectiva desenvolvimentista em voga que coloca o Mato Grosso do Sul em primeiro lugar no ranking das violncias praticadas contra os ndios e registradas nos relatrios de violncia do Cimi h anos.

    Acampamento Guarani Kaiow s margens de estrada no Mato Grosso do Sul

  • 20 Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio

    Para as comunidades negado o direito de opinar, participar das decises e de exercer qualquer tipo de controle de uma maneira geral, direito negado tambm ao conjunto da sociedade brasileira

    Os projetos desenvolvimentistas das ltimas dcadas tm por base os grandes empreendimentos e sua expresso mxima, na atualidade, o Programa de Acele-rao do Crescimento (PAC). Estimulado e financiado pelo governo brasileiro, este programa ataca de modo violento o meio ambiente e as terras indgenas em todo o pas (inclusive as terras de povos isolados), para prestigiar e fazer prosperar setores econmicos especficos, vinculados ao grande capital. Essa poltica desenvolvimen-tista, que enriquece empreiteiras, madeireiras, empresas de minerao, agronegcio, setores tursticos e empresas de gerao de energia hidrulica e nuclear pode ser exemplificada com as obras de transposio das guas do rio So Francisco, os complexos hidreltricos do rio Madeira, do rio Xingu (UHE Belo Monte), do rio Tocantins e as demais hidreltricas em construo ou previstas nos rios Tapajs, Juruena, Teles Pires e Araguaia, bem como a construo e duplicao de rodovias. So mais de 500 empreendimentos que atingem os territrios indgenas e geram impactos em 182 terras de pelo menos 108 povos. Para as comunidades negado o direito de opinar, participar das decises e de exercer qualquer tipo de controle de uma maneira geral, direito negado tambm ao conjunto da sociedade brasileira.

    assassinatos de indgenas no Brasil e no mato grosso do sul

    Ano 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012* Total

    Total Brasil 42 37 43 58 92 60 60 60 51 51 503

    N absoluto MS 13 16 28 28 53 42 33 34 32 31 279

    N absoluto restante 29 21 15 30 39 18 27 26 19 20 224

    MS (%): 33% 43% 65% 48% 58% 70% 54% 57% 62% 61% 55%Fonte: Cimi. *De Janeiro a novembro de 2012. Dados sujeitos a reviso e alterao.

    suicdio e tentativa de suicdio

    Ano 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 Total

    N de Suicdios 45 41 55 53 42 50 40 40 60 42 42 45 555

    Dados do DIASI/DSEI-MS 2000 a 2011.

    Ocupao de ensecadeira da UHE Belo Monte, Par, pelo movimento indgena

  • Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio 21

    Para todos aqueles que no se enquadram no perfil de clientes e consumidores, resta o nus, a dramtica deteriorao das condies de vida, j que a parte volumosa dos recursos pblicos canalizada para o PAC; j os escassos recursos previstos para as polticas pblicas so contingenciados para garantir metas de supervit e reformas calcadas em teses ps-neoliberais.

    As obras beneficiam tambm, e muito, as empreiteiras, os bancos, os conglome-rados financeiros e os especuladores de um capital flutuante, nada comprometido com os impactos locais, uma vez que os recursos naturais foram incorporados como insumos a um grande mercado global. No por acaso, os bancos e as empreiteiras obtiveram maior lucratividade nestas ltimas duas dcadas. Para todos aqueles que no se enquadram no perfil de clientes e consumidores, resta o nus, a dramtica deteriorao das condies de vida, j que a parte volumosa dos recursos pblicos canalizada para o PAC; j os escassos recursos previstos para as polticas pblicas so contingenciados para garantir metas de supervit e reformas calcadas em teses ps-neoliberais.

    empreendimentos que afetam Terras indgenas

    Tipo de empreendimento n de empreendimentos

    Energia 263

    Infraestrutura 195

    Minerao 20

    Agronegcio 19

    Ecoturismo 16

    Meio ambiente 11

    Empreendimento turstico 2

    Expanso fabril 1

    Total geral 527

    regio n de empreendimentos

    Centro-Oeste 187

    Nordeste 69

    Norte 126

    Sudeste 35

    Sul 140Fonte: Cimi, Inesc e PAC.

    Trecho de um dos canais da Transposio do Rio So Francisco, no serto Nordestino

  • 22 Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio

    A desregulamentao de certos setores, a fragilizao das leis ambientais, o desmonte da legislao trabalhista, o desrespeito aos preceitos constitucionais, a morosidade nos procedimentos de demarcao das terras indgenas: estratgias deliberadamente assumidas pelo governo, com consequncias para a vida de centenas de pessoas.

    Em relao aos povos indgenas, nem mesmo os pfios recursos oramentrios (previstos para assistncia em sade, educao, saneamento, preveno de doenas, demarcao de terras, entre outras aes) tm sido executados na sua totalidade, demonstrando assim que a vida destas populaes no tida como prioritria. Pode-se dizer que a produo desse modelo unilateral de desenvolvimento, base-ado no fortalecimento de setores econmicos vistos como estratgicos submete outros segmentos da populao condio residual. Assim, os povos indgenas e seus direitos especficos so vistos como inteis, inadaptveis, indesejveis e so-cialmente desnecessrios. dentro desta lgica que se produzem, na atualidade, diversos pronunciamentos em defesa do agronegcio, afirmando-se a incompetncia das comunidades indgenas na gesto dos recursos naturais de seus territrios e o enorme potencial que representariam se estivessem nas mos de quem faria estas terras produzirem de fato.

    O decreto de extermnio contemporneo tem, portanto, sustentao em ar-gumentos que so ao mesmo tempo etnocntricos que s vislumbram o mundo a partir das lentes do desenvolvimentismo dominante e antropocntricos que desconsideram a importncia de outros seres, dos animais, das plantas em favor da expanso das fronteiras agropecurias para o monocultivo de gros, produo de biocombustveis, plantio de eucaliptos, criao de gado em larga escala. Vale ressaltar que grandes empreendimentos econmicos impactam no s a vida dos povos indgenas, como tambm as terras, as guas, as matas, ameaando o equil-brio ecolgico.

    E h um alto preo a pagar pela projeo de um nico modelo de desenvol-vimento econmico que, na prtica, fortalece apenas os grandes capitalistas sem o devido cuidado com o mbito social. A desregulamentao de certos setores, a fragilizao das leis ambientais, o desmonte da legislao trabalhista, o desrespeito aos preceitos constitucionais, a morosidade nos procedimentos de demarcao das terras indgenas: estratgias deliberadamente assumidas pelo governo, com conse-quncias para a vida de centenas de pessoas.

    Crianas Aw-Guaj (MA) brincam em tronco de rvore derrubada por madeireiros dentro de terra indgena

  • Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio 23

    O governo e setores agregados ao projeto de desenvolvimento tm apostado na ocupao do interior do pas e no afrouxamento de regras e leis que impedem a destruio do meio ambiente e protegem comunidades tradicionais, caso dos povos indgenas, quilombolas, ribeirinhos, pescadores.

    aprofundamento do capitalismo na amrica latina

    Asuperao do modelo neoliberal na Amrica Latina rumou, paradoxalmente, para o aprofundamento do capitalismo em alguns pases do continente. O Estado brasileiro, nesta fase ps-neoliberalismo, se recomps do desmonte privatista e se fortaleceu para proteger os interesses do capital. O governo federal passou a usar o Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social (BNDES) para escoar recursos s empresas privadas, financiando o incio de uma nova ida ao interior do Brasil para a explorao de recursos naturais, sobretudo a construo de hidreltri-cas e minerao, alm do aproveitamento do solo para a agropecuria, derrubando florestas para pastos e monoculturas elementos que apontam para a reprimari-zao da economia, tornando o Brasil o maior exportador de riquezas da natureza.

    Para manter tal vocao, o governo e setores agregados ao projeto de desen-volvimento tm apostado na ocupao do interior do pas e no afrouxamento de regras e leis que impedem a destruio do meio ambiente e protegem comunidades tradicionais, caso dos povos indgenas, quilombolas, ribeirinhos, pescadores. Com os grandes projetos (estradas, usinas hidreltricas) chegam tambm aventureiros para se locupletar da onda desenvolvimentista de boa ou m f: madeireiros, grileiros, garimpeiros. As bolhas imobilirias se formam e o que se v o caos instalado em cidades como Altamira, no Par, que depois da chegada dos canteiros de obras da Usina Hidreltrica de Belo Monte passou a conviver com o aprofundamento de problemas j existentes: explorao sexual de crianas e adultos, colapso na sade pblica, aumento da violncia, xodos rurais e urbanos, alta dos alugueis, dificul-tando a vida dos mais pobres.

    Frum Social Mundial de Cochabamba, Bolvia, 2006

  • Nessa estratgia, o BNDES assume um papel central emprestando dinheiro aos outros pases para viabilizar os projetos de infraestrutura de interesse do Brasil, de preferncia contratando construtoras brasileiras. Transnacionalizando o capital, o governo brasileiro vem conseguindo adentrar outras fronteiras com tal aparato de cunho pblico/privado para a explorao de recursos naturais, financiamentos aos moldes do Fundo Monetrio Internacional (FMI) e reproduzindo uma lgica nefasta de explorao de naes empobrecidas. O governo brasileiro negociou com o governo de Moambique, que colocou disposio do Brasil 6 milhes de hecta-res em quatro provncias do pas, para explor-las em regime de concesso por 50 anos, mediante o pagamento de imposto de R$ 21 ao ano por hectare. Por sua vez, o Palcio do Planalto destinou tal acordo para os latifundirios brasileiros planta-rem na nao africana soja, cana, algodo e milho. Os recursos para tal empreitada estiveram disponveis nos guichs do BNDES. Para a Amrica Latina, a situao no diferente e perpassa diversos governos nacionais.

    Est em curso, desde o ano 2000, a Iniciativa de Integrao da Infraestrutura Regional Sul Americana (IIRSA) com grandes investimentos em energia, transporte e comunicao para promover a integrao fsica do continente sul americano, su-perando os obstculos geogrficos. A finalidade garantir a rpida explorao dos recursos naturais e a livre circulao de mercadorias. O Brasil, atravs da IIRSA, tenta assumir um papel de liderana na Amrica Latina ps-neoliberalismo, impondo os seus interesses polticos e econmicos aos demais pases sul americanos. Interessa ao Brasil criar as condies para que suas empresas transnacionais possam explorar os recursos naturais dentro do pas e nos pases vizinhos e acessar, com menos custos de transporte, os mercados asiticos e europeus para a exportao dos produtos.

    A IIRSA, a partir de 2011, assumiu um novo formato com o Plano de Ao Es-tratgico (PAE) 2012-2022 e a Agenda de Projetos Prioritrios de Integrao (API)

  • Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio 25

    Os obstculos de hoje continuam sendo os povos indgenas, as comunidades tradicionais e seus direitos a terra, bem como os direitos da natureza. As terras indgenas, unidades de conservao e outras reas protegidas esto sendo consideradas estratgicas para a territorializao e acumulao do Capital.

    lanados pelo CONSIPAN (Conselho Sul-americano de Infraestrutura e Planejamen-to), institudo em 2009, no mbito da UNASUL (Unio das Naes Sul Americanas). Um dos objetivos do COSIPLAN consiste na atualizao do Portflio de Projetos para a Integrao da Infraestrutura Regional Sul-americana, elaborado a partir do Portflio de Projetos IIRSA.

    A iniciativa voltada para o mercado internacional atende a expectativa de pode-rosas corporaes econmicas, sobretudo transnacionais, nas reas da minerao, de petrleo e gs, de monocultivos da soja, da cana de acar, da pecuria, da celulose, produo de agrocombustvel, explorao madeireira e demais recursos naturais. Tambm se beneficiam as grandes empresas construtoras, que doam generosas quantias em dinheiro para abastecer os caixas de campanha eleitoral dos partidos polticos, com a certeza de que recebero tudo de volta, em dobro. Fazem parte da carteira de projetos da IIRSA, que aqui no Brasil integram o PAC (Programa de Acelerao do Crescimento) a construo de hidreltricas, linhas de transmisso, estradas, ferrovias, hidrovias, portos e aeroportos, sistemas de comunicao.

    A IIRSA traz no seu bojo uma concepo de desenvolvimento, entendido como crescimento econmico, a partir da super explorao dos recursos naturais e alimen-tando padres insustentveis de consumo, para assegurar a acumulao capitalista.

    Um dos principais focos da IIRSA a Amaznia, com o discurso de que uma regio desabitada, um vazio demogrfico e atrasada economicamente. O olhar de fora no enxerga nela nada alm do que um grande estoque de recursos a serem explorados. Essa viso mercantilista, por isso, promove inevitavelmente a devastao da natureza.

    Os povos indgenas, que a partir de sua experincia milenar, estabeleceram uma relao harmnica com a terra questionam duramente essa lgica depredadora: Somos filhos da Pachamama, no seus donos nem dominadores, vendedores ou destruidores. Nossa vida depende dela e por isso desde milnios construmos nossas prprias formas do mal chamado desenvolvimento, o Sumaq Kawsay/ Sumaq Qa-maa. Nosso Bem Viver como alternativa legtima de bem estar em equilbrio com a natureza e espiritualidade est longe da IIRSA, que nos quer converter em territrios de trnsito de mercadorias, buracos da minerao e rios poludos de petrleo. (Resolucin de Pueblos Indgenas sobre el IIRSA, CAOI Coordinadora Andina de Organizaciones Indgenas, La Paz, 19/01/08).

    Os obstculos de hoje continuam sendo os povos indgenas, as comunidades tradicionais e seus direitos a terra, bem como os direitos da natureza. As terras ind-genas, unidades de conservao e outras reas protegidas esto sendo consideradas estratgicas para a territorializao e acumulao do Capital.

    Para facilitar o acesso aos recursos naturais nestes espaos est sendo modifi-cado o Cdigo Florestal e est em curso um violento ataque aos direitos indgenas e dos quilombolas, no Congresso Nacional e pelos grandes meios de comunicao, articulado pelas foras do latifndio e do agronegcio, com a conivncia e omisso do governo que abdica de seu papel central de cuidar do bem comum e zelar o patrimnio pblico. Insere-se tambm neste contexto a ameaa dos mercados de carbono e de contratos de REDD que comprometem a soberania, a autonomia e o controle dos territrios dos povos indgenas. Mesmo sem nenhuma base legal vigente no pas, vm a pblico, a cada momento, notcias sobre o assdio de indivduos, empresas e Organizaes No Governamentais mercantilistas junto a povos indgenas para que estes formalizem contratos de Reduo de Emisses por Desmatamento e Degradao (REDD). Alm de setores privados, o prprio governo tem investido na consumao dessa poltica perversa aos povos indgenas.

    Mquinas trabalham em ensecadeira da UHE Belo Monte, Par

  • 26 Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio

    Grande parte da energia a ser produzida com as hidreltricas pagas com o di-nheiro pblico vai ser destinada, a preos subsidiados, para a expanso dos projetos de minerao. Para isso, o governo federal est propondo um novo marco regula-trio da minerao no pas e est tramitando no Congresso Nacional em regime de urgncia o PL 1610/96 que visa escancarar as terras indgenas para a pesquisa e explorao mineral.

    Na Amaznia a lgica desenvolvimentista, pensada em funo de interesses de fora est esvaziando o interior da regio. Ribeirinhos, indgenas, comunidades tradicionais e pequenos agricultores, que historicamente protegeram a regio, esto sendo expulsos da floresta para as cidades. Esto sendo desalojados de suas terras e foradas a migrar pelos impactos dos megaprojetos de infraestrutura, pelo avan-o do agronegcio, pelos projetos de explorao dos recursos naturais e devido a ausncia ou a precarizao das polticas pblicas.

    leis, medidas e portarias: tentativas de legalizao do decreto de extermnio

    Para promover a territorializao e a acumulao do capital e implementar o desenvolvimentismo agroextratitivista exportador, os setores anti-indgenas e o governo brasileiro esto empenhados a ampliar o acesso, o controle e a explorao dos territrios indgenas no pas. Atuam, por um lado, para impedir o reconhecimento e a demarcao das terras tradicionais que continuam usurpadas, na posse de no ndios, e, por outro, para invadir, explorar e mercantilizar as terras demarcadas, que esto na posse e sendo preservadas pelos povos. Para tanto, declararam guerra e buscam desconstruir os direitos histricos e arduamente conquistados pelos povos indgenas, fazendo uso de instrumentos polticos altamente danosos.

    ntida a estratgia governamental que aponta para uma marcante retrao do ritmo na conduo de procedimentos administrativos que visam demarcar as terras indgenas tradicionais ainda no reconhecidas pelo Estado brasileiro. Em 2010, Lula homologou 2 terras e Dilma, em 2011, homologou apenas 3 terras indgenas. No mesmo perodo, o Ministrio da Justia declarou como tradicionais somente 13 terras indgenas, enquanto apenas 11 terras foram identificadas e delimitadas por meio de portarias da presidncia da Funai. Esse , sem sombra de dvida, o pior desempenho das ltimas dcadas em termos de demarcao de terras indgenas no Brasil.

    situao fundiria das terra indgenas no Brasil

    situao geral das Terras indgenas quantidade

    Registradas 361

    Homologadas 44

    Declaradas 58

    Identificadas 37

    A identificar 154

    Sem providncia 339

    Reservadas/Dominiais 40

    Com Restrio 05

    GT constitudo no MS como Terra Indgena 06

    Total 1.044Fonte: Cimi

    Cacique Nisio Gomes Guarani-Kaiow, do tekoha Guaivyry, sul do Mato Grosso do Sul, assassinado por pistoleiros em novembro de 2011

  • Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio 27

    A bancada ruralista no Congresso Nacional pretende impedir toda e qualquer demarcao de terra indgena no Brasil. Para efetivar esse objetivo, foram definidos instrumentos tanto no Senado Federal, quanto na Cmara dos Deputados. Esses instrumentos so a Proposta de Emenda Constituio (PEC) 38/99, de autoria do senador Mozarildo Cavalcanti, de Roraima, no Senado, e a PEC 215/00 de autoria do deputado Almir S, na Cmara dos Deputados.

    Em 31 de outubro de 2011, o governo, por meio do Ministrio da Justia, pu-blicou a Portaria 2498, que determina a intimao dos entes federados para que participem dos procedimentos de identificao e delimitao de terras indgenas. Com isso, estendeu o alcance de condicionante estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Petio 3388, que trata especificamente da legalidade da demarcao da Terra Indgena Raposa Serra do Sol.

    Ao mesmo tempo, os procedimentos administrativos de demarcao de terras indgenas vem sendo, invariavelmente, questionados judicialmente. Essa estratgia est bem delineada na perspectiva de atuao da Confederao Nacional da Agricultura (CNA) e dos sindicatos a ela filiados. Os ataques aos direitos dos povos indgenas faz-se sentir tambm com muita fora, no mbito do Poder Legislativo brasileiro.

    Os latifundirios, histricos e encarniados inimigos dos povos indgenas, tm feito uso de seu poderio econmico para fortalecer sua presena e influncia poltica nas diferentes esferas de poder, especialmente junto s Cmaras Legislativas e ao Congresso Nacional. Nesses espaos, buscam a ampliao dos prprios privilgios, historicamente concedidos a esse setor pelo Estado brasileiro. Para tanto, fazem uso de tticas extremamente agressivas contra setores da sociedade portadores de direitos que se contrapem sua avidez sem limites por novos territrios.

    A bancada ruralista no Congresso Nacional pretende impedir toda e qualquer demarcao de terra indgena no Brasil. Para efetivar esse objetivo, foram definidos instrumentos tanto no Senado Federal, quanto na Cmara dos Deputados. Esses instrumentos so a Proposta de Emenda Constituio (PEC) 38/99, de autoria do senador Mozarildo Cavalcanti, de Roraima, no Senado, e a PEC 215/00 de autoria do deputado Almir S, na Cmara dos Deputados.

    A PEC 38/99, caso aprovada na forma do relatrio e voto em separado do Sena-dor Romero Juc1, alterar os artigos 52 e 231 da Constituio Federal e determinar que as demarcaes de terras indgenas devero ser aprovadas pelo Senado Federal.

    A PEC 215/00 especialmente danosa aos direitos dos povos indgenas s ter-ras tradicionais. Sua admissibilidade foi aprovada pela Comisso de Constituio, Justia e Cidadania (CCJC) da Cmara dos Deputados no primeiro semestre de

    1 http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/56835.pdf

    Manifestao pede justia diante da morte de Nisio Gomes e outra dezena de Guarani-Kaiow

  • 28 Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio

    2012. Caso aprovada, a matria alterar os artigos 49, 225 e 231 da CF e, em ltima instncia, determinar: a) que toda e qualquer demarcao de terra indgena ainda no concluda dever ser submetida aprovao do Congresso Nacional; b) que as reas predominantemente ocupadas por pequenas propriedades rurais que sejam exploradas em regime de economia familiar no sero demarcadas como terras tradicionalmente ocupadas por povo indgena; c) que as Assembleias Legislativas sejam obrigatoriamente consultadas em casos de demarcao de terras indgenas em seus respectivos estados; d) que a demarcao de terras indgenas; expedio de ttulos das terras pertencentes a quilombolas e definio de espaos territoriais especialmente protegidos pelo Poder Pblico sejam regulamentados por uma lei e no mais por um decreto como ocorre atualmente; e) que ser autorizada a per-muta de terras indgenas em processo de demarcao litigiosa, ad referendum do Congresso Nacional.

    A composio amplamente anti-indgena do Congresso Nacional nos permite afirmar que a aprovao em definitivo de qualquer uma das duas PECs em questo poder significar, de fato, a paralisao absoluta do processo de demarcao de terras indgenas no Brasil. Se extremamente difcil a sensibilizao do Poder Executivo Federal para que este reconhea e demarque as terras tradicionais, ser ainda possvel um determinado povo ou comunidade indgena convencer a maioria dos deputados federais e dos senadores da Repblica a aprovar a demarcao de suas terras.

    Essa situao muito grave uma vez que das 1.046 terras indgenas catalogadas no banco de terras do Cimi, apenas 363 esto regularizadas. 335 terras se encontram em alguma fase do procedimento de demarcao e outras 348 so reivindicadas por povos indgenas no Brasil, mas at o momento o rgo indigenista no tomou nenhuma providncia a fim de dar incio demarcao das mesmas.

    Em 28 de outubro de 2011, o governo federal publicou a Portaria Interministerial 419, que regulamenta a atuao de rgos e entidades da administrao pblica en-volvidos no licenciamento ambiental de empreendimentos. Alm de conceder prazo

    A composio amplamente anti-indgena do Congresso Nacional nos permite afirmar que a aprovao em definitivo de qualquer uma das duas PECs em questo poder significar, de fato, a paralisao absoluta do processo de demarcao de terras indgenas no Brasil.

    Mobilizao de 200 indgenas do Maranho em frente ao Palcio do Planalto, em Braslia

  • Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio 29

    As aes judiciais que questionam a legalidade das obras permanecem paralisadas em alguma de suas instncias sem deciso. Com isso, as obras tm sido executadas sem exceo.

    irrisrio de 15 dias para que a Funai se manifeste em relao a uma determinada obra que atinge terra indgena no pas, no artigo 2. da Portaria, fica estabelecido que o governo s ir considerar como Terra Indgena aquela que j tem seus limites estabelecidos pela Funai. Com isso, contraria o artigo 231 da Constituio ao restringir o conceito de Terra Indgena. Com uma canetada, o governo ignora a existncia de aproximadamente 350 terras indgenas reivindicadas pelos povos, mas que ainda no tiveram seus limites estabelecidos pela Funai. A iniciativa governamental provocou revolta e indignao junto aos povos indgenas. Cerca de 75 organizaes indgenas e indigenistas denunciaram o fato da referida portaria restringir e desconstruir direitos territoriais indgenas e quilombolas no Brasil. O governo no acatou o pedido de revogao da portaria e a mesma continua em vigor.

    Na mesma toada e de forma ainda mais virulenta, o governo brasileiro, por meio da Advocacia Geral da Unio, atacou os povos indgenas e seus direitos ao publicar, no dia 17 de julho de 2012, a Portaria 303. Resultado de lobby poltico de grupos poltico-econmicos anti-indgenas, a Portaria, de forma equivocada, estende a apli-cabilidade das condicionantes listadas pelo STF no caso da Petio 3388 (referente Terra Indgena Raposa Serra do Sol) para todas as demais terras indgenas do pas, alm de retroagir a vigncia das mesmas. Entre outros, ela determina a reviso das demarcaes em curso, bem como, a reviso e adequao dos procedimentos j concludos; cria problemas para a reviso de limites de terras indgenas demarcadas que no observaram integralmente o direito indgena sobre a ocupao tradicional; limita e relativiza o direito dos povos sobre o usufruto exclusivo das terras indge-nas; desrespeita o direito consulta prvia, livre e informada aos povos em casos de construo de unidades, postos e demais intervenes militares,malhas virias, empreendimentos hidreltricos e minerais em terras indgenas;

    Fazem parte ainda desta ofensiva a Publicao do Decreto 7056/2009 e da Por-taria 7778/2012, que modificam a estrutura da Funai sem que os povos indgenas tenham sido sequer informados previamente sobre os mesmos.

    Judicirio

    No que tange s aes judiciais que questionam a legalidade dos processos que culminam na construo de empreendimentos em terras ind-genas, o Judicirio tem se mostrado perfeitamente alinhado com o Poder Executivo. Nesses casos, est muito evidente que a estratgia de agir pela omisso. As aes judiciais que questionam a legalidade das obras permanecem paralisadas em alguma de suas instncias sem deciso. Com isso, as obras tm sido executadas sem exceo. Assim, o fato consumado sem que sejam pronunciadas sentenas sobre o mrito das respectivas aes judiciais. Inmeros casos saltam aos olhos nesse sentido, caso das usinas

    hidreltricas. Manifestao de delegao indgena dos estados de Gois e Tocantins contra a Portaria 303, da Advocacia Geral da Unio (AGU), diante do Supremo Tribunal Federal (STF)

  • 30 Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio

    Hidreltricas: energia ao capital, destruio aos povos

    Assim como no passado recente dos anos de chumbo do regime militar, os grandes projetos da IIRSA e do PAC provocam violncia e disseminam os conflitos. Com estratgias de seduo ou de intimidao como a criminalizao das lutas populares, tpica de governos autoritrios, tenta-se quebrar toda e qualquer resistncia. Existe pressa em criar a infraestrutura de suporte aos exploradores da terra e nenhuma preocupao ou cuidado com a vida. Essa perspectiva pre-dadora aprofunda as causas do aquecimento global e das mudanas climticas e compromete todo o planeta.

    Alguns exemplos ilustram como estes mega empreendimentos esto sendo erguidos de forma autoritria, rpida, inconsequente e ao arrepio da legislao que assegura os direitos dos povos e comunidades tradicionais e da natureza.

    A construo da hidreltrica de Belo Monte, no rio Xingu (PA), que compro-mete o ecossistema da regio e a vida das comunidades indgenas e ribeirinhas, est sendo empurrada goela abaixo daqueles que ousaram contest-la com argumentos tcnicos e legais. Desrespeita o direito a consulta prvia, livre e informada dos povos e populaes locais, assegurado na Constituio Federal e na Conveno 169 da OIT, e desconsidera os questionamentos consistentes de um painel de 40 especialistas que apontam a inviabilidade do empreendimento do ponto de vista social e ambiental.

    Nem o gesto simblico da indgena Tura Kayap passando a lmina do terado no rosto do ento diretor da Eletronorte, em 1989, mostrando todo o descontenta-mento dos povos indgenas do Xingu, com a hidreltrica, conhecida na poca por Karara, que teve grande repercusso mundial, foi capaz de parar definitivamente o projeto. Belo Monte seca uma extenso de 100 km do rio Xingu. Baseia-se num Estudo de Impacto Ambiental medocre e mesmo assim muitas condicionantes nele previstas para o incio das obras no foram cumpridas. Um projeto carssimo, de mais de 30 bilhes de reais, mesmo no mensurando os prejuzos sociais, culturais e ambientais, sendo arcado em grande medida com o dinheiro do povo, para gerar na poca seca no mais do que mil MW de energia.

    Da mesma forma est sendo conduzi-do o processo de construo do complexo hidreltrico do rio Madeira em Rondnia. Os povos indgenas no foram ouvidos e os estudos de impacto ambiental so limitados e inconsistentes, com o agra-vante de terem omitido propositalmente a existncia de grupos indgenas isolados na rea de influncia das hidreltricas. A existncia destes grupos na regio somente foi reconhecida pelos rgos oficiais depois que todas as licenas de instalao das obras das hidreltricas de Santo Antnio e Jirau haviam sido concedidas.

    Indgena protesta contra a UHE Belo Monte durante Cpula dos Povos, no Rio de Janeiro

    Cacique Raoni Metuktire Kayap na AGU, em Braslia, contra Portaria 303

  • Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio 31

    Neste contexto, sintomtico o fato de o governo dispor de aproximadamente 30 bilhes de reais para a execuo de uma nica obra, no caso a UHE Belo Monte, enquanto tenha usado 29 milhes de reais na ao Demarcao e Regularizao de Terras Indgenas em todo o territrio nacional ao longo dos anos 2010 e 2011.

    Os projetos de construo de um conjunto de hidreltricas na bacia do Rio Tapajs seguem o mesmo caminho, projetando danos irreversveis para os povos indgenas, comunidades ribeirinhas e ao meio ambiente. Os estudos de impacto ambiental para a construo da hidreltrica de So Luiz, a primeira das cinco hidreltricas projetadas para a bacia do Tapajs j esto em ritmo acelerado, desrespeitando o direito a consulta prvia das comunidades locais e o estudo para dimensionar os impactos em toda a bacia, exigido pelo Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente).

    Citamos, a ttulo de exemplificao, apenas os casos da UHE Estreito, no Rio Tocantins, da Transposio do Rio So Francisco, na regio nordeste do pas, e da UHE Belo Monte. Esta ltima construda a todo o vapor, no Rio Xingu, estado do Par, sem que o Poder Judicirio se pronuncie em definitivo a respeito de ao menos 13 Aes Civis Pblicas impetradas pelo Ministrio Pblico Federal (MPF), Cimi e outras organizaes da sociedade civil brasileira, que apontam vrias ilegalidades no processo de construo da usina.

    Neste contexto, sintomtico o fato de o governo dispor de aproximadamente 30 bilhes de reais para a execuo de uma nica obra, no caso a UHE Belo Mon-te, mesmo com todas as manifestaes contrrias por parte dos povos indgenas, enquanto tenha usado, vergonhosa e descaradamente, mseros 29 milhes de reais na ao Demarcao e Regularizao de Terras Indgenas em todo o territrio nacional ao longo dos anos 2010 e 2011.

    Casai de Altamira, Par, superlotada

  • sade

    No que tange a poltica de ateno sade dos povos indgenas, nas ltimas dcadas, observa-se a ampliao dos aportes legislativos que regulamentam as aes do Estado e, por outro lado, a estruturao de aes e polticas quase sempre transitrias, fragmentadas, de base emergencial, que pouco se revertem em prticas concretas de melhora das condies de vida dos indgenas. No h uma poltica orgnica, que respeite os preceitos constitucionais e permita que os povos indgenas recebam uma ateno diferenciada, eficaz e respeitosa para com seus modelos e concepes de cura.

    Nesse sentido, mesmo tendo sido referendada em Conferncias Nacionais de Sade Indgena, realizadas entre 1986 e 1993, a proposta de criao de um subsis-tema de ateno sade nunca se concretizou. O novo modelo deveria ser gestado por intermdio de uma Secretaria Especial que, por sua vez, teria como referncia os Distritos Sanitrios Especiais Indgenas (DSEI) como unidades gestoras e com autonomia administrativa e financeira. Na prtica, os governos no aceitam o que a legislao determina e procuram manter polticas assistncias desvinculadas das realidades tnicas e culturais - sem a efetiva participao dos povos indgenas.

    Os oramentos para a execuo das aes aos povos indgenas so insuficientes e deficitrios, situao que se agrava pela falta de planejamento e vontade poltica na sua aplicao. A precariedade da ateno sade indgena reflete-se em situa-

  • Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio 33

    Mesmo tendo sido referendada em Conferncias Nacionais de Sade Indgena, realizadas entre 1986 e 1993, a proposta de criao de um subsistema de ateno sade nunca se concretizou. Na prtica, os governos no aceitam o que a legislao determina e procuram manter polticas assistncias desvinculadas das realidades tnicas e culturais - sem a efetiva participao dos povos indgenas.

    es dramticas como aquela reiteradamente denunciada pelos povos indgenas do Vale do Javari, no Amazonas, onde, segundo inqurito sorolgico da Fundao de Medicina Tropical, 87% da populao apresenta algum tipo de hepatite, o que tem provocado uma mortalidade sistemtica.

    Os povos do Vale do Javari sofrem com a falta de atendimento, de medica-mentos, de profissionais em sade, o que tem comprometido a vida e o futuro das comunidades que, de acordo com dados oficiais dos rgos de assistncia, sofrem um acentuado decrscimo populacional.

    educao: escola formadora de guerreiros

    Nas ltimas dcadas os governos brasileiros vm imprimindo um formato cada vez mais privatista para a educao escolar.Direito social assegurado na Constituio, a educao converte-se gradativamente em produto de consu-mo, balizado pelos valores de mercado e as escolas pblicas so convertidas em espaos para a concretizao de polticas assistencialistas - Bolsa Escola, Bolsa Famlia, entre outras.

    No bastasse o fato de ser cada vez menor o oramento para a educao, o governo cria novas formas de assegurar sua destinao aos setores privados um exemplo a soluo criada para o grave problema de falta de vagas no ensino superior, ou seja, mesmo com a expanso desvirtuada da rede pblica, sobretudo as universidades federais, o governo optou por transferir recursos ao setor privado (por meio de financiamentos e medidas que convertem dvidas pblicas em vagas nas instituies devedoras) promovendo o sucateamento e a desregulamentao das universidades pblicas, uma receita que empurra para a busca de fontes de fi-nanciamento e atuao voltada para interesses do mercado. A qualidade do ensino, como consequncia, segue com problemas.

    Em relao educao escolar indgena, persistem os problemas que afetam diretamente as escolas indgenas que enfrentam problemas relativos infraestru-tura, ao atendimento educao, tmida oferta de processos de formao de professores indgenas, com currculo prprio e situado nos contextos culturais dos povos assistidos, contratao dos professores, construo e aprovao de seus projetos poltico-pedaggicos, entre outros. Embora os distintos povos venham exigindo a efetivao de uma poltica indigenista integrada e coerente com as determinaes constitucionais, pouco se fez de concreto nos ltimos anos. Com o objetivo de buscar uma soluo para as distores e contradies existentes na execuo da poltica de educao, foram apresentadas propostas dos movimentos de professores e professoras indgenas, de entidades de apoio e pesquisadores apontando para a criao de um sistema prprio de educao escolar indgena. No entanto, os tcnicos do Ministrio da Educao optaram por um caminho diferente.

    Com o Decreto n. 6861, de 27 de maio de 2009, instituram os chamados Territrios Etnoeducacionais, antes mesmo da realizao de todas as conferncias regionais previstas para avaliar e propor alternativas para a educao escolar in-dgena. Esse processo de reflexo culminou na Conferncia Nacional de Educao que, ao invs de discutir as propostas vindas das diferentes regies, acabou por discutir o fato j consumado do novo modelo. Nos Territrios Etnoeducacionais nada foi debatido e sequer compreendido pela maioria das comunidades e povos indgenas e, porque no dizer, por muitos executores da poltica que, em geral, so os estados e municpios.

    Criana Madja, em aldeia no Alto Rio Purus, Acre, com severo quadro de desnutrio

  • 34 Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio

    A poltica de extermnio continua, particularmente, quando se constitui uma enorme distncia entre os discursos oficiais de valorizao da educao e a realidade na maioria das reas indgenas.

    Assim, ao invs de assegurar o protagonismo na definio dos modelos ade-quados de educao escolar e de proporcionar espaos amplos para discusso e construo de projetos pedaggicos indgenas, os governos tm optado por oferecer pacotes, destinar programas de carter assistencial, que nem sempre chegam aos que deveriam ser beneficiados. Tambm neste campo percebe-se a disposio em terceirizar servios e responsabilidades. Dados oficiais, relativos ao censo escolar realizado pelo INEP/MEC, indicam que a oferta de educao escolar indgena cres-ceu, especialmente nas sries iniciais do ensino fundamental. Contudo, as taxas de matrcula crescentes no indicam, igualmente, um incremento em termos de recursos destinados educao escolar indgena.

    A poltica de extermnio continua, particularmente, quando se constitui uma enorme distncia entre os discursos oficiais de valorizao da educao e a realidade na maioria das reas indgenas. Destacam-se trs exemplos: nos estados do Sul do pas, os povos Kaingang e Guarani tm insistentemente reafirmado a necessidade de repensar o papel das escolas e os processos de formao dos professores. Para eles, a escolarizao indgena que se orienta por modelos de escolas no ndias gera desastrosas consequncias para os modos tradicionais de organizao, pois desrespeita os processos de aprendizagem prprios destes povos.

    por essa razo que comunidades Guarani tm manifestado resistncia implantao de escolas, recusando a oferta dos estados ou municpios. Alguns professores indgenas de Rondnia, reunidos em um encontro que contou com a participao de mais de 10 povos diferentes, afirmaram que a escola cumpre ainda um papel integracionista quando serve de instrumento para o enfraquecimento da sabedoria e da convico dos povos indgenas em torno de seus projetos de futuro, quando no possibilitam a produo de saberes especficos, de pedagogias prprias, de modelos de organizao que deslizem dos estreitos limites impostos pelo sistema de ensino oficial, produzindo rupturas.

    A Comisso de Professores Indgenas de Pernambuco (Copipe) trava, no Nor-deste do pas, discusses acaloradas com o governo do estado para que, por exem-plo, a Secretaria de Educao respeite o currculo desenvolvido pelas organizaes de professores existentes no convvio social de cada povo. A mudana pretendida pelos povos indgenas no pode ocorrer com a criao de estruturas nas quais eles no tm voz ativa e de instncias das quais no participam com poder de deciso e de deliberao.

    De acordo com a Carta da 34 Assembleia dos Povos Indgenas do Estado de Roraima, realizada em fevereiro de 2005, que reuniu 1.030 participantes, vislumbra--se um retrocesso na poltica de educao escolar, com a restrio da participao indgena nos espaos de definio, controle e fiscalizao das polticas educacionais. Uma mudana da perspectiva genocida, racista, integracionista requer que o Estado brasileiro respeite o protagonismo indgena na elaborao de polticas para as escolas e de propostas pedaggicas adequadas s distintas realidades.

    Nesse sentido, faz-se necessrio oferecer possibilidades concretas com do-taes oramentrias especficas para que os povos indgenas sejam autores de seus projetos educativos, polticos e culturais, discutindo coletivamente, buscando sadas e compartilhando experincias em encontros, conferncias, oficinas e cursos especficos. Para os indgenas, o entendimento de que a educao um direito. Porm, as comunidades ainda no conseguiram ter do Estado a garantia de que esse direito seja diferenciado e do jeito que os povos entendem como certo para as prprias vidas.

  • Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio 35

    Em diferentes regies do pas (no sentido horrio, Acre - Ashaninka-, Mato Grosso e Rio Grande do Sul - Kaingang) o retrato da educao escolar indgena: falta de estrutura, autonomia e terras tradicionais

  • O projeto libertador que propomos, um projeto universal. Ns no reduzimos a causa indgena a casos isolados que, com alguns remendos, poderiam ser resolvidos. Sim, a causa dos povos indgenas uma causa libertadora e emancipadora para toda a humanidade. E no horizonte dessa nova humanidade, que sonhamos e propomos a construir passo a passo, tampouco existem solues que deixam outras causas, por menor que sejam, por fora.

  • Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio 37

    Nesta segunda parte procuramos ver as estruturas latentes que produzem o sofrimento no s dos povos indgenas, mas de toda a humanidade. E procuramos ver essas estruturas com a racionalidade das cincias sociais e os imperativos da nossa f, sem confundir ambas as esferas. Assim podemos chegar a um discernimento crtico da histria, que herdamos, e juntar elementos criativos para o projeto de vida que almejamos.

    No seria ambicioso demais fazer da causa indgena uma causa de toda a hu-manidade? Certamente no, porque no mundo globalizado no existem ilhas de salvao para causas particulares nem para grupos privilegiados. A destrutividade do capitalismo globalizado atinge no s os povos indgenas, mas toda humanidade. Por conseguinte, ao pensar o futuro dos povos indgenas pensamos sempre o futuro da humanidade, da natureza e do planeta terra. A causa dos povos indgenas exige de todos ns mudanas de hbitos e converso.

    O projeto libertador que propomos, um projeto universal. Ns no reduzimos a causa indgena a casos isolados que, com alguns remendos, poderiam ser resol-vidos. Sim, a causa dos povos indgenas uma causa libertadora e emancipadora para toda a humanidade. E no horizonte dessa nova humanidade, que sonhamos e propomos a construir passo a passo, tampouco existem solues que deixam outras causas, por menor que sejam, por fora. A causa indgena, sobretudo em condies de minoria, como Brasil, necessita da solidariedade de outras causas como a dos operrios, dos migrantes, dos afro-americanos e dos sem terra. Por outro lado, os povos indgenas aprenderam no decorrer da histria que tambm eles so responsveis pela defesa de todos que almejam o bem viver num outro mundo que possvel e necessrio.

    A seguir propomos nessa segunda parte do nosso documento, que ao mesmo tempo um grito e uma cano, quatro passos: o primeiro, com enfoque na memria (1) do passado; num segundo passo ponderamos o peso das estru-turas herdadas (2) no tempo presente. O terceiro passo, iluminao bblica (3), nos ajuda a identificar, luz da Palavra de Deus, a fora dos pequenos ancorada na espiritualidade que liberta. Atravessando a crise do sistema de crescimento, o quarto passo nos aproxima ao horizonte (4) do bem viver para todos. Esse horizonte encontrar no AGIR da terceira parte desse documento algumas por-menorizaes mais concretas.

    JULGAR

    Lideranas Guarani Kaiow do tekoha Laranjeira Nhanderu, Mato Grosso do Sul

  • 38 Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio

    memria

    Os registros histricos que permitem seguir a trajetria dos povos indgenas no s no decorrer dos 40 anos da segunda metade do sculo XX e do incio do sculo XXI (1972-2012), mas j desde o Brasil Colnia, apontam para um fio condutor vermelho que como um rio de sangue atravessa a histria dos povos indgenas: desde a origem da sociedade brasileira, esses povos com sua autonomia e seus projetos de vida especficos, foram considerados explorveis e, ao mesmo tempo e, em longo prazo, insustentveis. A sociedade brasileira nasceu sob a gide de uma violncia estrutural contra os povos indgenas que se manifestou na invaso e expropriao de seus territrios e na explorao extrema de sua mo de obra. No incio da colonizao foi a mo de obra indgena que garantiu a sobrevivncia de colonizadores e colonos. Para a incipiente indstria aucareira, nas plantaes, nos engenhos e nos moinhos, mas tambm nos servios domsticos, na criao de gado e na pequena agricultura, essa mo de obra logo se tornou mo de obra escrava. Possuir ndios escravos era uma questo de prestgio, poder e crdito monetrio.

    A passagem do Brasil Colnia para o Brasil Imprio e Repblica no modificou a estrutura desse trip de ocupao, desapropriao e explorao substancialmente. Com as caractersticas de uma sociedade de classe no interior de um sistema mono-cultural, sem espao para a alteridade dos povos indgenas, chegamos ao sculo XX e ao perodo da ditadura militar que previu a soluo final atravs da integrao assimilacionista dos povos indgenas.

    O ltimo ciclo da expanso colonial, a globalizao neoliberal, acentuou o combate ao projeto dos povos indgenas pela ocupao e desapropriao de seus territrios, pela acumulao de riquezas baseadas na explorao da mo de obra e

    A sociedade brasileira nasceu sob a gide de uma violncia estrutural contra os povos indgenas que se manifestou na invaso e expropriao de seus territrios e na explorao extrema de sua mo de obra. No incio da colonizao foi a mo de obra indgena que garantiu a sobrevivncia de colonizadores e colonos.

    Gravura de Jean Baptiste Debret sobre ndios Kaingang capturados na regio de Curitiba, Paran, em 1834

  • Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio 39

    O processo histrico de violncia, dominao e expropriao de terras, a intolerncia e o incentivo ao preconceito e discriminao levaram muitos povos indgenas a ocultar suas identidades tnicas, como foi o caso dos povos indgenas resistentes, hoje em luta pelo direito ao autorreconhecimento e pela recuperao de seus territrios tradicionais.

    na homogeneizao cultural. Assistimos a um processo de apropriao dos espaos limitados de reas preservadas que ainda restam em cada pas e cujo esgotamento previsvel.

    A Amaznia um triste exemplo dessa continuidade de mentalidades e aes colonialistas. Na Amaznia, o avano do agronegcio, estimulado por recursos pblicos, produz um desmatamento descontrolado. Em consequncia disso, a maioria dos povos indgenas do Brasil se tornaram vtimas de crimes.1Na Missa de encerramento do 10 Encontro da Igreja na Amaznia, dia 6 de julho de 2012, o Cardeal Cludio Hummes, presidente da Comisso Episcopal para a Amaznia, apontou para a continuidade do colonialismo interno e para a repetio da histria anti-indgena nesta regio:

    Tudo aquilo com que se tentou sempre mais empurrar os ndios para fora das suas terras, tudo continua hoje com os grandes projetos de desenvolvimento, projetos do governo e da iniciativa privada, de grandes indstrias, da agropecuria, tudo isso, enfim. E que simplesmente vo implantando as coisas sem perguntar a ningum. [...] preciso faz-los entender que esto simplesmente esquecendo aquilo que mais importante, que o ser humano que vive aqui h anos. Essas populaes tm direitos. Em primeiro lugar, direito de viver dignamente e de poder desenvolver a sua cultura, a sua vida social, a sua vida de produo e tudo mais; em segundo lugar, aquilo que esses povos acham que importante aceitar, absorver, ver implantando, mas no simplesmente sendo atropelados pelos grandes projetos.2

    So esses grandes projetos, governamentais ou privados, implantados segundo a lgica expansionista do grande capital e com o apoio ativo do Estado, que ferem os direitos fundamentais dos povos indgenas. Estes direitos foram inscritos na Constituio Federal, de 1988, para proteger os povos indgenas face explorao de seus recursos hdricos, minerais e madeireiros de seus territrios. Da mesma forma, instalaes militares e sobreposio de Unidades de Conservao criam grandes problemas para as comunidades indgenas.

    Muitas delas se encontram fora de seus territrios tradicionais, tm suas terras invadidas e degradadas ou habitam pores de terras insuficientes para a sua repro-duo fsica e cultural. Pendncias judiciais, presses polticas e a morosidade do governo federal em proceder demarcao administrativa e regularizao fundiria dessas terras so fatores decisivos para a persistncia dessa situao de anomalia legal.

    O processo histrico de violncia, dominao e expropriao de terras, a in-tolerncia e o incentivo ao preconceito e discriminao levaram muitos povos indgenas a ocultar suas identidades tnicas, como foi o caso dos povos indgenas resistentes, hoje em luta pelo direito ao autorreconhecimento e pela recuperao de seus territrios tradicionais. Esses fatores provocaram e continuam provocando a migrao de populaes indgenas para centros urbanos onde so relegadas s periferias. L, em muitos casos, lhes negada a sua identidade no s pela popula-o envolvente, mas tambm por rgos governamentais, que dessa forma tentam se eximir de sua responsabilidade quanto garantia de seus direitos. As polticas governamentais em nveis federal, estadual e municipal desarticuladas entre si, que assumem no discurso a importncia da ateno especfica e diferenciada, continuam na prtica impondo modelos no indgenas educao, sade e economia.

    1 A violncia contra os povos indgenas no Brasil est documentada nos relatrios anuais do Conselho Indigenista Missionrio (Cimi), Braslia (DF).

    2 Homilia de Dom Cludio Hummes na missa de encerramento do 10 encontro da Igreja na Amaznia. Em: Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil, Igreja na Amaznia. Memria e compromisso. Edies CNBB, Braslia, 2012, p. 35-42, aqui 38s.

  • 40 Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio

    O processo de globalizao econmica, atravs da integrao dos mercados e da homogeneizao dos padres de produo e consumo, forjou, em plano cultural, a sndrome da mesmice de uma monocultura universal.

    Herana

    Memria e anlise do passado colonial nos fazem perceber como a herana colonial est embutida no sistema neoliberal e em suas variantes e adaptaes de hoje. As estruturas do capitalismo formatado pelo neoliberalismo apostam no livre mercado e no indivduo acumulador, na competio exacerbada como regra da convivncia social, na mercantilizao total da vida e da natureza na base de um crescimento contnuo num planeta limitado. Esse crescimento, com seu impacto violento sobre os povos indgenas, se baseia em grandes extenses de terras, no maquinrio, nos insumos qumicos, nas sementes geneticamente modificadas e na exportao das riquezas do pas como commodities. O crescimento em torno de grandes projetos, com sua demanda energtica para o enriquecimento de poucos, incorpora cada vez mais recursos naturais (terra e gua). O modelo de concentrao tem seus reflexos no sistema fundirio, nos meios de comunicao, no acesso aos bens produzidos pela sociedade e no prprio manuseio do sistema poltico com seu autoritarismo incorporado no decorrer de sculos.

    Por um determinado tempo, tecnologias e mercados internos podem ainda garantir taxas razoveis de crescimento, em torno de 3%, mas os mercados vincu-lados a esse crescimento esto viciados pelo capital fictcio (mercados de aes, negcios financeiros, dvidas) e pela violao de princpios ticos e racionais bsicos (desigualdade social crescente, corrupo, terceirizao de servios em condies escandalosas, destruio do meio ambiente, alinhamento da mdia e da estrutura democrtica ao grande capital).

    O processo de globalizao econmica, atravs da integrao dos mercados e da homogeneizao dos padres de produo e consumo, forjou, em plano cul-tural, a sndrome da mesmice de uma monocultura universal. Ao sair em qualquer lugar do mundo de um nibus, navio ou avio, nos encontramos defronte mesma paisagem comercial, mesma rede de supermercados e hotis, diante de telas de TV que transmitem os mesmos programas de diverso, propaganda alienante e noticirio sensacionalista.

    Ao atravessar qualquer centro urbano, somos forados a enfrentar a mesma passarela de misria humana e ostentao de luxo. O prximo, nessa sociedade, visto como cliente, os sujeitos so tratados como objetos de lucro e desejos. O mundo dividido

    Indgenas Pankararu em ritual Prai na comunidade de Real Parque, em So Paulo. Mesmo vivendo na cidade, seguem a cultura secular do povo

  • Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio 41

    A globalizao enquanto expanso econmica e liberao do sistema financeiro de sua responsabilidade social no une a humanidade. Redes de comunicao e o sistema financeiro no tm um compromisso com a unidade ou com o futuro da humanidade. Pelo contrrio, acentuam diviso, segregao e excluso.

    entre compradores e vendedores transformou as nossas sociedades em lojas 24 horas. O dono dessa rede de lojas o mercado ao qual so subordinados conglomerados financeiros, redes de comunicao e a esfera poltica que reproduz as relaes arcaicas e corruptas de apadrinhamento e maquiavelismo. At projetos de Lei progressistas e para o bem da nao, como a aprovao das reformas da Previdncia, Tributria e Lei de Falncias, num parlamento democraticamente eleito pelo povo, s conseguiram ser ratificados por meios corruptos que justificaram fins nobres. Ao construir seu imprio colonizador igual aos mercados e Bancos - quantas vezes a mdia, que hoje se reveste de legalismo e indignao, se beneficiou desse maquiavelismo e colocou a tiragem de seu produto e seu Ibope acima da tica e moral? Mquinas sofisticadas so administradas em relaes sociais e/ou trabalhistas arcaicas e pr-modernas. O socilogo Chico de Oliveira cunhou a palavra da hegemonia s avessas, que significa: o dominado conduz a poltica em benefcio do dominante.

    A globalizao enquanto expanso econmica e liberao do sistema financeiro de sua responsabilidade social no une a humanidade. Redes de comunicao e o sistema financeiro no tm um compromisso com a unidade ou com o futuro da humanidade. Pelo contrrio, acentuam diviso, segregao e excluso. O idioma

    Famlia Guarani Kaiow, Mato Grosso do Sul

  • 42 Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio

    ingls e o dlar unem somente as elites. Sob o escudo de uma legalidade mais formal que real, o neoliberalismo se instalou como a nova ordem protetora das elites. A estas elites se juntaram os dissidentes das antigas oposies da esquerda, que na poca quando estiveram na oposio defenderam mudanas estruturais do sistema econmico. Hoje representam uma terceira via reformista, que, sem tocar no sistema capitalista, procura diminuir a pobreza com medidas de compensaes que substituem uma poltica verdadeiramente social. Com a queda do muro de Berlin assumiram a tese do desmoronamento do pensamento crtico e dialtico.

    Como poderamos atuar eticamente correto, se o pensamento crtico no estabelecesse uma linha divisria entre o justo e o injusto? No podemos dog-maticamente antecipar o mundo novo. Mas na desconstruo e nas runas da violncia, da acumulao, da acelerao e da alienao se encontram vestgios para a construo de um novo caminho. E estes vestgios passam pelo sofrimento dos povos indgenas e de todos os povos explorados e alimentam o pensamento crtico. Sofrimento e pensamento crtico apontam para uma prxis socialmente transformadora. Em sua patologia, o capitalismo despreza os saberes das comu-nidades indgenas e populaes tradicionais, empobrece os solos, contamina as guas, desemprega as pessoas e as obriga a assistir a transformao da biodiver-sidade de sua regio, de suas terras e de sua produo familiar de subsistncia em territrio para a pecuria e as monoculturas de soja e cana-de-acar. A m notcia desse modelo globalmente imposto a sua indiferena micro estrutural, sua excluso global e sua homogeneizao cultural.

    Os povos indgenas continuam ameaados em sua existncia fsica e espiritual; em seus modos de vida; em suas identidades; em sua diversidade; em seus territrios e em sua histria. O modelo de desenvolvimento regido pelas leis do mercado capi-talista ps-neoliberal, que tem no agronegcio uma de suas bases de sustentao,

    Indgenas preparados para o ritual e para a luta

  • Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio 43

    A sua teimosia, que insiste num bem viver e num conviver bem radicalmente diferentes, tornou os povos indgenas inadaptveis ao sistema e, por conseguinte, descartveis para o sistema. Sua mo de obra foi substituda por mquinas e sua produo, que visa o bem viver e no lucro, expanso, exportao, para o sistema econmico sustentado pelas elites do pas, no s insignificante, mas representa o atraso.

    produz contra esses povos uma violncia estrutural, que atenta permanentemente contra seus projetos de vida.

    Os eixos fundamentais do agronegcio, o latifndio, as tcnicas dispendiosas que geram desemprego, a monocultura, a produo voltada para o mercado externo e a devastao da natureza, atentam no s contra a concepo de vida dos povos indgenas, mas contra o futuro da humanidade que habita um planeta limitado. O jeito indgena de viver se expressa no uso coletivo e no aproveitamento dos diferentes produtos da terra, na utilizao de tcnicas de domnio de todos, nas relaes de reciprocidade e de respeito com a natureza, povoada por seres que do significado existncia humana.

    A sua teimosia, que insiste num bem viver e num conviver bem radicalmente diferentes, tornou os povos indgenas inadaptveis ao sistema e, por conseguinte, descartveis para o sistema. Sua mo de obra foi substituda por mquinas e sua produo, que visa o bem viver e no lucro, expanso, exportao, para o sistema econmico sustentado pelas elites do pas, no s insignificante, mas representa o atraso. Alm disso, o sistema hegemnico um sistema monocultural, sem real participao democrtica e sem igualdade, justificado por um legalismo meramente formal. Nesse sistema, a insustentabilidade dos povos indgenas atribuda a sua irracionalidade. Para o sistema econmico em curso, o sistema vivencial dos povos indgenas e sua viso do bem viver considerado irracional e os povos indgenas como trabalhadores e consumidores so irrelevantes, portanto, desnecessrios.

    O sistema colonial ainda precisava dos povos indgenas como mo de obra e os conquistadores se aproveitaram da sabedoria indgena como guia de sobrevivncia numa terra cheia de mistrios. O capitalismo de hoje no s dispensa a colaborao dos povos indgenas, mas os qualifica abertamente como um estorvo para as m-ximas do capital em torno de rentabilidade, expanso, acelerao, excluso, prazer mercantil, autoritarismo, individualismo e consumo. Educao e sade, transporte e moradia, trabalho e lazer so tratados como bens rentveis de consumo.

    Jovens Kalapalo, Mato Grosso

  • 44 Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio

    iluminao Bblica

    YJuca Pirama: o ndio aquele que deve morrer. Assim se dizia, pois os imprios da poca tinham decretado a sua morte. A sentena foi executada, mas ela no vingou. Os povos indgenas continuam vivos at hoje, cada vez mais vivos. De onde tiram a fora para viver e resistir assim, surpreendendo seus prprios assassinos e provocando at a converso de alguns deles?

    Uma resposta: A natureza fala e o indgena entende sua voz e mensagem. Por isso ele est sempre auscultando a natureza e se adequando a ela num jogo complexo de inter-relaes. Importa entender a Terra, no como algo inerte, mas como algo vivo, como Me do ndio a ser respeitada em sua integridade3.

    Auscultar a natureza e adequar-se a ela. por causa desta aliana com a na-tureza que eles sobrevivem, renascendo sempre, com vigor renovado, ensinados e recriados pela prpria natureza. Houve um outro povo, aquele da Bblia, cuja morte foi decretada pelos imprios da poca: Assria, Babilnia, Grcia, Roma e tantos outros. A sentena foi executada. Mas ela no vingou. Esse povo est vivo at hoje, cada vez mais vivo. De onde tiraram e continuam tirando a fora para viver e resistir assim, surpreendendo seus prprios assassinos e provocando at a sua converso?

    Como nos povos indgenas, havia no meio deles homens e mulheres que souberam auscultar as razes da natureza e do corao e, assim, despertaram no povo aquela fora de vida que supera a morte. Jeremias foi um deles. Ele ajudou o povo a olhar a natureza com outros olhos: Assim diz Jav, aquele que estabelece o sol para iluminar o dia e ordena lua e s estrelas para iluminarem a noite, aquele cujo nome Jav dos exrcitos: quando essas leis falharem diante de mim - orculo de Jav - ento o povo de Israel tambm deixar de ser diante de mim uma nao para sempre!4. Nabucodonosor, o rei da Babilnia, pode ser forte, mas ele no consegue impedir o nascimento do sol amanh. A certeza do nascer do sol no depende dos poderosos deste mundo, nem da nossa observncia da lei de Deus, mas est impressa na lgica da criao. pura gratuidade, expres-so do bem-querer do Criador. Cada manh, atravs da sequncia dos dias e das noites, Deus nos fala ao corao e nos diz: Como certo que eu criei o dia e a noite e es-tabeleci as leis do cu e da terra, tambm certo que no rejeitarei a descendncia de Jav e de meu servo Davi5.

    Este novo olhar sobre a natureza levou aquele povo a descobrir que o amor de Deus no um amor qualquer, mas sim um amor eterno: Eu amei voc com amor eterno; por isso conservei o meu amor por voc6. como se Deus, atravs da natureza, dissesse ao povo: Depois de tudo que voc fez, voc j no mereceria ser amado. Mas meu amor por voc no depende daquilo que voc fez por mim ou contra mim. Quando comecei a amar voc, eu o fiz com

    3 L. Boff, O desafio Amaznico, 19.02.2007.4 Jr 31,35-36; 33,20-21.5 Jr 33,25-26. 6 Jr 31,3. Guarani Kaiow, Mato Grosso do Sul

  • Povos Indgenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermnio 45

    A natureza fala e o indgena entende sua voz e mensagem. Por isso ele est sempre auscultando a natureza e se adequando a ela num jogo complexo de inter-relaes. Importa entender a Terra, no como algo inerte, mas como algo vivo, como Me do ndio a ser respeitada em sua integridade.

    um amor eterno. Por isso, apesar de tudo que voc me fez, apesar de todos os seus defeitos, eu gosto de voc, eu amo voc para sempre! A redescoberta deste amor inacreditvel devolveu ao povo a auto-estima, ajudou-o a superar o sentimento de culpa que o mantinha deprimido e sem esperana l no cativeiro da Babilnia. Por isso, at hoje, cada vez de novo, eles se reanimam, pois sabem que nada neste mundo, nem mesmo o fracasso e a morte, pode separ-los do amor de Deus7.

    Auscultando a natureza, como tambm fazem os n