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UNIVERSIDADE DO GRANDE RIO UNIGRANRIO PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA PROPEP Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Culturas e Artes ISIS MAIA DE ALMEIDA FIGURAÇÕES DOS PRECONCEITOS E DA MARGINALIDADE EM CLARA DOS ANJOS DUQUE DE CAXIAS 2015

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UNIVERSIDADE DO GRANDE RIO – UNIGRANRIO

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA – PROPEP

Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Culturas e Artes

ISIS MAIA DE ALMEIDA

FIGURAÇÕES DOS PRECONCEITOS E DA MARGINALIDADE EM CLARA

DOS ANJOS

DUQUE DE CAXIAS

2015

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UNIVERSIDADE DO GRANDE RIO – UNIGRANRIO

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA – PROPEP

Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Culturas e Artes

ISIS MAIA DE ALMEIDA

FIGURAÇÕES DOS PRECONCEITOS E DA MARGINALIDADE EM CLARA

DOS ANJOS

DUQUE DE CAXIAS

2015

Dissertação apresentada à Banca de defesa junto à UNIGRANRIO-Universidade do Grande Rio “Professor José de Souza Herdy”, como requisito parcial para a obtenção de grau de Mestre em Humanidades, Culturas e Artes.

Orientador: Professor Doutor Idemburgo Pereira Frazão Félix

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CATALOGAÇÃO NA FONTE/BIBLIOTECA - UNIGRANRIO

ISIS MAIA DE ALMEIDA

A447f Almeida, Isis Maia de.

Figurações dos preconceitos e da marginalidade em Clara dos Anjos / Isis Maia de Almeida. – 2015.

104 f. ; 30 cm. Dissertação (mestrado em Humanidades, Culturas e Artes) – Universidade do Grande Rio “Prof. José de Souza Herdy”, Escola de Educação, Ciências, Letras, Artes e Humanidades, 2015.

“Orientador: Prof°. Idemburgo Pereira Frazão Félix”. Bibliografia: f. 98-99.

1. Educação. 2. Clara dos Anjos - Romance. 3. Preconceitos.

4. Identidades. 5. Marginalidade. I. Félix, Idemburgo Pereira Frazão. II. Universidade do Grande Rio “Prof. José de Souza Herdy”. III. Título.

CDD – 370

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FIGURAÇÕES DOS PRECONCEITOS E DA MARGINALIDADE EM CLARA

DOS ANJOS

Banca examinadora:

Prof. Dr. Idemburgo Pereira Frazão Félix (Orientador)

Prof. Dr. Renato Alves Barrozo (UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES)

Prof. Dra. Vera Lúcia Teixeira Kauss (UNIGRANRIO)

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A glória das letras só as tem quem a elas se dá inteiramente; como no amor, só

é amado quem se esquece de si inteiramente e se entrega com fé cega.

Lima Barreto

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço a Deus pela oportunidade que me foi dada de

elaborar este trabalho, que precisou de muito empenho, comprometimento e

determinação.

Agradeço aos meus familiares e amigos que, ao longo do processo, me

incentivaram nos momentos de cansaço, foram bons ouvintes e contribuíram

com sugestões e palavras afetuosas.

Agradeço ao querido orientador, Professor Dr. Idemburgo Frazão, que

me aceitou como orientanda e esteve presente em todo o processo da

preparação deste trabalho, fazendo intervenções, sugerindo leituras, clareando

as ideias, e me acolhendo nos momentos de incertezas e de alegrias.

Agradeço a paciência e carinho de todos que de alguma maneira se

fizeram presente durante este processo árduo e ao mesmo tempo prazeroso.

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RESUMO

No presente trabalho, refletiremos sobre as figurações do preconceito e da marginalidade no romance Clara dos Anjos, de Lima Barreto, entendendo que o preconceito é um dos fatores mais perversos das relações sociais, que leva à exclusão e, consequentemente, à marginalidade. Entende-se como marginal, nesta dissertação, o indivíduo que, por motivos diversos, é postergado, excluído, mas não tendo relação, necessariamente, com a prática de atos ilícitos. O criador de Clara dos Anjos é considerado, aqui, como um autor marginal, por viver no subúrbio do Rio de Janeiro, ser negro, pobre e sofrer as consequências desses estigmas. Mais que isso, afirma-se que é um precursor dos atuais autores Marginais de Periferia, como Ferréz e Sérgio Vaz. Trata-se do preconceito, em algumas de suas vertentes, partindo de elementos e aspectos detectados na análise literária do romance Clara dos Anjos. Para esse fim, intentando aprofundar essa imbricação do preconceito com a exclusão social (um dos aspectos principais da ”marginalidade”, como aqui é entendida), procurou-se aprofundar reflexões sobre as principais vertentes do preconceito sofrido por Lima Barreto e sua obra: o preconceito social, propriamente dito - centrado na problemática da pobreza -; o de gênero; o de raça e o de linguagem. Têm-se, como fios temáticos condutores principais, aspectos identitários da “Era da Globalização” e a questão da marginalidade na literatura contemporânea. Uma das premissas do trabalho está centrada no fato de que Lima Barreto foi considerado desleixado, em termos literários, por alguns críticos importantes de sua época. Em consequência disso, a obra limabarretiana foi classificada, por muitas décadas, como menor, por diferenciar-se do padrão literário tradicional. Dá-se ênfase, também, à problemática do preconceito em relação à língua, pois a mesma permanece sendo uma ferramenta a serviço das hierarquias sociais. Na prática, quem não se encaixa no padrão estabelecido pode ser considerado “subalterno” - para lembrar do termo utilizado por Gayatri Spivac, em sua obra Pode o subalterno falar? Por fim, este trabalho apresenta uma abordagem interdisciplinar, bibliográfica e interpretativa. Busca-se contribuições de vários campos do saber, com ênfase nas reflexões no campo da Língua Portuguesa, da Literatura, da Antropologia, da História, tendo como escopo teórico mais relevante as obras de Stuart Hall; Zygmunt Bauman, Carlos Bagno, Gayatri Spivak; Alfredo Bosi; Joel Rufino dos Santos, Érica Peçanha do Nascimento e João César de Castro Rocha.

Palavras-Chave: preconceitos, Lima Barreto, Clara dos Anjos, identidades,

marginalidade.

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ABSTRACT

This work reflects on the figurations of prejudice and marginality in the

novel Clara dos Anjos, Lima Barreto, understanding that prejudice is one of the

evil factors of social relationships, which leads to exclusion and therefore

marginality. It is understood as marginal, in this thesis, the individual who for

various reasons, is delayed, deleted, but not being related necessarily to the

commission of unlawful acts. The creator of Clara dos Anjos is considered here

as a marginal author, to live on the outskirts of Rio de Janeiro, being black,

poor, and suffer the consequences of stigma. Moreover, it is stated that is a

precursor of today's authors Marginal Peripherals such as Ferréz and Sérgio

Vaz. This is the bias in some of its aspects, starting from elements and aspects

detected in literary analysis of the novel Clara dos Anjos. For this purpose,

intending to deepen this overlapping of prejudice against social exclusion (one

of the main aspects of "marginality" as is understood here), I tried to deepen

reflections on the main aspects of prejudice suffered by Lima Barreto and his

work: social prejudice, itself - focusing on poverty issues -; the gender; the race

and language. They have been key drivers as thematic thread, identity aspects

of the "Era of Globalization" and the issue of marginalization in contemporary

literature. One of the working assumptions is centered on the fact that Lima

Barreto was considered sloppy, in literary terms, by some important critics of his

day. As a result, the work limabarretiana was classified for decades, such as

lower by differentiating the traditional standard literature. The emphasis is also

the problem of prejudice in relation to language, because it remains a tool in the

service of social hierarchies. In practice, anyone who does not fit the

established pattern can be considered "subordinate" - to remember the term

used by Gayatri Spivac in his book Can the subaltern speak? Finally, this paper

presents an interdisciplinary, literature and interpretive approach. Seeks to

contributions from various fields of knowledge, emphasizing the reflections in

the field of Portuguese Language, Literature, Anthropology, History, with the

most relevant theoretical scope of the works of Stuart Hall; Zygmunt Bauman,

Carlos Bagno, Gayatri Spivak; Alfredo Bosi; Joel Rufino dos Santos, Erica

Peçanha do Nascimento and João César de Castro Rocha.

Keywords: prejudices, Lima Barreto, Clara dos Anjos, identities, marginality.

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SUMÁRIO

RESUMO.............................................................................................................6

ABSTRACT.........................................................................................................7

INTRODUÇÃO...................................................................................................10

CAPÍTULO I

1. Estigmas e identidades: do biográfico ao literário..................................16

1.2 - Lima Barreto e sua literatura à deriva.......................................................16

1.3 - Cenário da exclusão: a “Belle Époque” e o embelezamento da cidade....21

1.4 - O mal estar do preconceito.......................................................................32

1.5 - Língua e poder..........................................................................................38

CAPÍTULO II

2. O romance suburbano de Lima Barreto e a subalternidade em Clara dos

Anjos.................................................................................................................50

2.1- O cotidiano do subúrbio como estratégia textual em Clara dos Anjos....50

2.2- Subalternidade: a mulher suburbana..........................................................57

2.3- Cultura popular e preconceito: a linguagem limabarretiana.......................61

2.4- O suburbano e o preconceito.....................................................................67

2.5- Clara dos Anjos e os estigmas sociais.......................................................75

CAPITULO III

3. Subalternos e marginais: Lima Barreto, os estigmas e a literatura da

periferia.............................................................................................................79

3.1- Identidade e subalternidade.......................................................................80

3.2- Identidades subalternas: suburbanos, mulatos e pobres.......................... 84

3.3- Lima Barreto: a voz dos subalternos..........................................................88

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4. Considerações Finais..................................................................................95

5. Referências Bibliográficas..........................................................................98

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho intenta refletir sobre as figurações do preconceito

em campos como o da literatura, da cultura e da linguagem, a partir da

interpretação de uma obra ficcional de Lima Barreto. Explorar-se-á aspectos

como o da crítica e a formação do cânone na literatura brasileira. Trabalhar-se-

á a partir do entendimento de que vários autores, como Lima Barreto, foram

marginalizados e permaneceram por muito tempo fora do centro das atenções

literárias, sofrendo preconceitos advindos de várias instâncias. Como se trata

de um trabalho interdisciplinar, pensou-se em aproximar questões da literatura,

da cultura e da Língua Portuguesa à problemática das identidades e das

marginalidades, tematizando, também, aspectos relativos à questão do

preconceito na linguagem, muito em voga, hoje. O eixo da Dissertação,

portanto, está centrado na reflexão sobre o preconceito social, em suas várias

manifestações apontando para questões como as de gênero, raça e linguagem

tendo como ponto de diálogo com a contemporaneidade, figurações da

marginalidade na literatura brasileira, mais especificamente, no romance Clara

dos Anjos da autoria de Lima Barreto.

O autor de Triste fim de Policarpo Quaresma e sua obra ficcional, aqui

entendida como marginal no sentido de ter sido postergada ao longo de

décadas e tratar da problemática da pobreza pelo ângulo do próprio pobre,

apresenta uma linguagem fora dos padrões literários da época, marcados pela

estética parnasiana. Em suas crônicas e romances, Barreto expressa, também,

forte crítica ao poder, apontando de forma veemente para os problemas da

população menos favorecida e moradora do subúrbio.

Refletir-se-á, também, nesta dissertação, acerca das identidades em

meio ao dinamismo da modernidade e da sua transição para a pós-

modernidade, dialoga-se, ao final, com questões que aproximam a obra de

Lima Barreto à de autores da chamada Literatura marginal.

Entende-se que, a partir do início do século XXI, com a globalização, as

relações humanas passaram por diversas modificações, principalmente depois

do surgimento da problemática da desconstrução. (DERRIDA, 1973). Os

“poderes hegemônicos” começaram a ser questionados, a situação da minoria

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e da exclusão social tornou-se tema relevante. Hoje, recebe, inclusive, a

atenção dos juristas, como é o caso da Lei da Maria da Penha. Chamou-se

também a atenção para a cada vez mais recorrente questão da

homossexualidade e do chamado preconceito de cor. A dissertação parte do

entendimento de que as relações afetivas tornaram-se, desde o final do século

XX, mais frágeis, fluidas (BAUMAN, 2009), o que aponta para o surgimento de

problemas sérios no cotidiano, a partir das incertezas e angústias, que se

tornam características do sujeito Pós-moderno, dialogando com a

fragmentação, com o ecletismo e com a desumanização que marcam a

contemporaneidade.

Juntamente com a ampliação das discussões sobre a desconstrução, a

reflexão acerca das identidades tornou-se um dos assuntos mais recorrentes

no final do século XX e início do XXI. É nessa esteira da temática das

identidades, que tem em Stuart Hall (2006) um de seus principais estudiosos,

que esta dissertação busca pôr em diálogo a questão do preconceito social, no

início do século XX, mais precisamente, a partir da interpretação da obra Clara

dos Anjos, de Lima Barreto. Aspectos sociais receberão ênfase nas análises

dessa obra ficcional, tendo a problemática, já destacada, do preconceito social,

em algumas de suas vertentes, como fio condutor.

A literatura pode ser considerada um campo especial, que serve como

importante espaço para se refletir sobre a forma como o preconceito social (em

suas várias faces e manifestações) atinge de diversas maneiras, os cidadãos e

se torna umas das armas mais eficazes e perversas da exclusão social. Tal

exclusão leva, muitas vezes, o ator social à marginalidade, nos vários sentidos

que esse termo pode receber, em dimensões, muitas vezes inimagináveis,

Lima Barreto foi vítima de preconceito por conta da sua cor, origem, classe

social e inadaptação à linguagem parnasiana, então em voga na virada do

século XIX para o XX. Também a aproximação da linguagem culta à popular

em suas obras literárias, a frequente tematização dos pobres, do subúrbio e

das periferias, colaboraram bastante para que seus romances não fossem bem

aceitos.

Por esse prisma, Lima Barreto pode ser considerado um escritor

marginal, entendendo marginalidade por uma perspectiva diferente da

costumeira, relacionada apenas à poesia marginal dos anos 1970, ou da

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prática de algo ilícito. Parte-se, aqui da noção de marginalidades como espaço

daquilo ou daqueles que não se enquadram nos modelos prescritos ou

esperados por algum grupo ou comunidade e executam ou exercem papeis

sociais não legitimados pela sociedade. Entende-se como marginal, neste

trabalho, aquele que, de alguma forma, é excluído. Tal marginalidade se

direciona à questão do preconceito social. Pensa-se, assim, que esse marginal

pode ser inserido no grupo dos refugados, ou dos subalternos, para utilizar

termos empregados pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2006), e pela

estudiosa indiana Gayatri Spivak (2010), respectivamente.

Este trabalho refletirá também sobre as transformações vividas, pela

população do Rio de Janeiro, no fim do século XIX e início do século XX, nos

contextos sociais, econômicos, culturais e artísticos. O ponto de partida será o

campo da literatura, mas dialogar-se-á com a história, com a antropologia, sem

efetivamente nomeá-las, tendo como questão importante o fato de que alguns

autores, como Lima Barreto - considerado, por muito tempo, um “escritor

menor” -, já se preocupavam com a realidade vivenciada por uma parte

significativa da sociedade que vive em situação de exclusão por conta da

política dominante em sua época.

No final do século XIX e início do século XX, a Europa, primeiramente, e

logo após, o Brasil, passou por momentos de grandes mudanças. Foi um

período de grandes inovações, pois o homem, com sua inteligência e

habilidade, criou invenções como o automóvel, o avião, o cinema

desenvolvendo e ampliando o campo tecnológico e científico. Devido à

velocidade dessas mudanças, o sentimento de euforia foi se transformando em

insegurança e angústia, ocasionando conflitos e manifestações - como a

Revolta dos Canudos na Bahia, dentre outros - causados pelo desagrado da

população, devido a uma grave crise econômica e social e ao custo de vida

elevado. Ao mesmo tempo em que essas mudanças contribuíam para o

desenvolvimento do país, também afastavam ainda mais as classes sociais,

levando algumas delas do centro para a periferia.

A literatura brasileira, nas primeiras décadas do século XX, iniciava seu

ciclo de mudança. Obras de alguns escritores, como: Lima Barreto, Euclides da

Cunha, Monteiro Lobato e Graça Aranha, já continham alguns dos elementos

que iriam revolucionar a literatura brasileira em termos estéticos. Esses

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escritores costumam ser inseridos no rol dos autores do pré-modernismo ou

Belle Époque, que vai de 1902 a 1922. Sem poder, efetivamente, ser

classificados em uma estética específica, principalmente Lima Barreto e

Euclides da Cunha, abriram novos caminhos para as narrativas ficcionais

brasileiras, preocupando-se em retratar problemas relativos à exclusão social.

Esses autores dedicavam-se a mostrar, de maneira crítica, o Brasil que os

brasileiros não conheciam ou evitavam conhecer.

Mesmo com todos os seus problemas e descontentamentos mais

íntimos, o escritor Lima Barreto conseguiu expressar suas aflições e a de seus

contemporâneos, da periferia de sua época, através de textos que foram,

muitas vezes incompreendidos por grande parte da elite literária brasileira.

Barreto dedicou-se, através de seus textos jornalísticos, romances e crônicas,

ao combate às discriminações sociais e trouxe para a discussão problemas dos

subúrbios cariocas e os conflitos vividos pela população esquecida e

marginalizada para o centro de suas narrativas. Ao expor tais problemas e

conflitos no romance, entende-se que a obra do escritor teve papel primordial e

precursor, pois a atenção que Lima Barreto deu a assuntos camuflados da

época e a linguagem simples e direta que, conscientemente, utilizava, fez com

que a literatura brasileira se aproximasse do povo que, com entendimento,

poderia lutar por mudanças.

O primeiro capítulo deste trabalho apresenta questões referentes à

biografia; à bibliografia de Lima Barreto, ao cenário de exclusão gerado pela

modernização da cidade do Rio de Janeiro e como esta modernização foi

realizada no início do século XX. Dar-se-á atenção à problemática do

preconceito social na obra de Lima Barreto em seus desmembramentos,

apontando para a maneira como as diferenças sociais – relativas à pobreza -,

racial, de gênero e de linguagem promovem a exclusão de enorme parte da

população até os dias atuais, gerando um mal estar que afeta o convívio em

sociedade. Lima Barreto também sofreu na pele o preconceito social em

sentido amplo - não apenas o racial - e lutou contra ele, denunciando-o através

do amor que tinha pela literatura.

Já o segundo capítulo, analisa mais efetivamente o romance Clara dos

Anjos, dando ênfase ao enredo. É nessa parte da Dissertação que se aponta

para a maneira como os “subalternos” se comportam em seu próprio lócus, o

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subúrbio do Rio de Janeiro, no início do século XX, no período da “Belle

Époque” e a questões relacionadas à linguagem inovadora – para a época - de

Lima Barreto. Em torno da personagem Clara dos Anjos será discutido o seu

real valor na sociedade e, reitera-se, serão estudadas questões inerentes ao

preconceito social, em sentido amplo, encontradas na obra que servem como

instrumento de exclusão.

No terceiro capítulo, serão ampliadas questões relativas à presença do

preconceito até a atualidade. Serão, também, trazidos para a discussão

aspectos inerentes à identidade e aos estigmas da personagem Clara dos

Anjos: mulher, negra, pobre e suburbana. Refletindo sobre o fato de que Clara

vive em meio à sociedade preconceituosa e excludente, no começo do século

XX, que permanece na contemporaneidade, a dissertação, abordará aspectos

relativos à subalternidade e à marginalidade - ao que João Cézar de Castro

Rocha denomina “Dialética da Marginalidade”. Nesse sentido, destaca-se a

“contemporaneidade” dos problemas sociais desvelados por Lima Barreto em

suas obras e sua sensibilidade artística.

Enfim, Lima Barreto é entendido, nesta dissertação, como uma espécie

de precursor dos atuais movimentos marginais de periferia, como os

integrantes da COOPERIFA – Cooperativa dos escritores marginais de

Periferia (Ver: NASCIMENTO, 2009) - antecipando a luta por eles travada para

ocupar seus espaços e impor sua voz, deixando, de ser “subalternos”. Os

sofrimentos existenciais e psicológicos de Lima Barreto, que o levaram ao

alcoolismo e a ser internado no Hospital dos alienados, atual Pinel, foram

provocados pela dificuldade que o autor teve de se impor e/ou, aceitando sua

condição de negro, suburbano e pobre, enfrentar os preconceitos. Sentia-se só,

empunhando, solitário, sua única arma: a palavra.

Nessa dissertação, será possível que se perceba o quanto os

preconceitos dificultaram o entendimento da obra de Lima Barreto (como hoje

é) como uma das mais importantes da Literatura Brasileira, não apenas em

sentido antropológico, histórico ou sociológico, mas, fundamentalmente,

literário. Seus textos antecipam, em um século, na literatura, as vitórias dos

escritores marginais do século XXI. A maneira como cria seus textos com

elementos advindos do cotidiano dos subúrbios, no início do século XX e,

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principalmente, a busca por dar voz aos “subalternos”, são, em si mesmas,

estratégias textuais.

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CAPÍTULO I

ESTIGMAS E IDENTIDADES: DO BIOGRÁFICO AO LITERÁRIO

No primeiro capítulo, as considerações são tecidas a partir de questões

referentes à biografia de Lima Barreto e ao cenário de revolta gerado pela

reestruturação da cidade do Rio de Janeiro, quando suas obras foram

gestadas. Tratar-se-á do mal estar advindo do preconceito, apontando para

questões inerentes à biografia e à obra do escritor, como a problemática social,

racial e de linguagem, que ocasionaram, muitas vezes, a exclusão das obras

limabarretianas do cânone. A literatura militante e inovadora de Lima Barreto

favoreceu o não reconhecimento de sua obra. O escritor recebeu muitas

críticas, porém o seu olhar contra a discriminação e o seu ideal por mudanças

não o deixaram desistir.

O olhar barretiano ilumina possibilidades de ruptura, pressionando e deslocando velhos conceitos arraigados no imaginário da literatura e da crítica brasileira. Ao tentar empreender essas transformações encontra resistência por parte dos que não aceitam mudar suas convicções em nome de uma voz ainda desautorizada nos meios acadêmicos oficiais. Consciente desse impedimento, Lima Barreto assume o lugar de um ser de fronteira a fim de poder deslizar entre diversificadas experiências culturais que lhe possibilitem abalar os parâmetros estéticos que julga inadequados para a transformação da literatura brasileira (OLIVEIRA, 2007, p. 49).

1.1 LIMA BARRETO E SUA LITERATURA À DERIVA

Brasileiro, contista, romancista e cronista, Lima Barreto nasceu em 13 de

maio de 1881. Sua mãe, Amália Augusta, era professora. Seu pai, João

Henriques de Lima Barreto, era tipógrafo. Durante a maior parte de sua vida o

autor viveu na periferia da então Capital Federal. As expectativas iniciais de

ascensão social e, mais do que isso, de reconhecimento, esvaíram-se ao longo

de sua trajetória. Lima Barreto foi um dos maiores críticos e um dos mais

criticados escritores do período da República Velha no Brasil. Nasceu na zona

sul do Rio de Janeiro, em Botafogo, porém viveu no subúrbio de Todos os

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Santos, na condição de negro e filho de pais pobres, algo que implicou uma

condição de vítima de preconceitos que perdurou ao longo de sua vida. Perdeu

a mãe ainda criança, o que trouxe muito sofrimento para ele ainda menino.

Devido aos momentos difíceis de sua vida, por vezes pensou em suicidar-se.

Lima descreve esse momento em Diário Íntimo:

Outra vez que essa vontade me veio foi aos onze anos ou doze, quando fugi do colégio [Liceu Popular]. Armei um laço numa árvore lá do sítio da ilha, mas não me sobrou coragem para me atirar no vazio com êle no pescoço. Nesse tempo eu me acreditava inteligente e era talvez isso que me fazia ter mêdo de dar fim a mim mesmo (BARRETO, 1956, p. 135).

Acrescente-se a tudo isso, a loucura que o perseguia, vitimando seu pai

e o alcoolismo que o levou algumas vezes ao “hospital dos alienados”. Alguns

dos preconceitos com os quais conviveria, ao longo da vida, tiveram origem no

colégio, uma vez que, por intermédio de Visconde de Ouro Preto, seu padrinho,

teve a oportunidade de estudar em colégios de excelência naquele período.

Contudo, embora a educação fosse de qualidade, os momentos eram de

desconforto, isso porque os outros estudantes e professores apresentavam, em

alguns casos, preconceitos por Lima Barreto ser negro.

Já na velhice, seu pai enlouqueceu. Lima Barreto era quem sustentava

todos os seus irmãos. Sendo assim, o escritor, mesmo apaixonado por

literatura e filosofia, foi obrigado a abandonar a escola politécnica que

frequentava para trabalhar e sustentar seus irmãos, pois seu pai já não mais

possuía condições de fazê-lo. Neste sentido, prestou concurso para o

Ministério da Guerra, conquistando um cargo de escriturário que garantiu o

sustento de seus irmãos e sua aproximação com a atividade de escrita.

Contudo, Lima Barreto não se manteve mais do que três anos nessa função,

pois, em 1905, iniciou uma nova jornada como jornalista na mídia impressa

intitulada “Correio da Manhã”. Cabe ressaltar que, concomitante a essa nova

função, também iniciava sua prática de escritor de textos do gênero romanesco

que eram divulgados nos jornais. Em 1911, publicou seu primeiro livro com o

título de Recordações do Escrivão Isaías Caminha.

A obra literária do romancista Lima Barreto implicou no desmoronamento

de extraordinárias barreiras de pensamento por meio de seus textos. O

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rompimento com barreiras pode se observar em suas diversas obras como: O

Homem que Sabia Javanês (1911), Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915),

Numa e a Ninfa (1915), História e Sonhos (1020), Diário Íntimo (1953), Feiras e

Mafuás (1953), Coisas do Reino Jambom (1956), Vida Urbana (1956) e -

destaca-se neste trabalho -, o romance Clara dos Anjos (1922).

As obras literárias referenciadas acima, bem como outras tantas,

apresentam como temática o subúrbio carioca, a prática e a atuação na

imprensa e na literatura, questões acerca da identidade nacional, segregação

social e racial. Tais temáticas, os traços e atributos dos personagens, a

linguagem simples, distante da linguagem rebuscada dos parnasianos, em

voga em sua época, são características apresentadas nos textos de Lima

Barreto que o fazem alvo de críticas, uma vez que as mesmas não estariam de

acordo com a prática textual literária e do pensamento daquela época. Essas e

outras questões, também implicaram na não aceitação do escritor como

membro da Academia Brasileira de Letras.

Essa recusa da ABL, posteriormente foi criticada por Zélia Nolasco de

Freire (2005, p. 13) na apresentação do livro intitulado Lima Barreto: Imagem e

Linguagem na qual argumenta que “a hipocrisia dominante não poderia aceitar,

em hipótese alguma, que um mulato pobre, filho de escrava, se equiparasse

aos medalhões e tivesse o seu nome literariamente reconhecido”.

Essa crítica foi realizada pela não inserção de Lima Barreto ao lado dos

literatos de sua época, uma das justificativas era fundada no entendimento de

que o escritor incorria em erros, pois não utilizava rigidamente a norma culta da

língua. Não obstante, embora houvessem críticas, o estudioso da língua

portuguesa, Antônio Houaiss (1956) não entendia a escrita de Lima Barreto

desta forma. Na percepção desse importante filólogo, escrita no prefácio da

obra Vida urbana: artigos e crônicas. Obras de Lima Barreto, as críticas

emergentes eram levianas, uma vez que ele considera Lima Barreto um

escritor consciente, senão o maior dos escritores da fase crítica da evolução

social daquele período, afirmando ainda sua riqueza de comunicação e de

expressão que, indubitavelmente, qualquer orientação estilística pode

compreender.

De acordo com Zélia Nolasco-Freire, a escrita de Lima

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antecipa o retorno às origens, promovendo uma aproximação entre a literatura e o povo. Isto é possível através do uso de uma linguagem equivalente ao público leitor ao qual a obra literária é destinada. Pode-se afirmar que esta seja, talvez, a grande preocupação do escritor: transformar a sociedade (2005, p. 120).

Como grande crítico do período, Lima Barreto escreveu seus textos para

demonstrar o que pensava sobre as coisas e o mundo, na tentativa de

despertar a sociedade para outras práticas e reflexões e por isso foi causador

de grandes insatisfações. Nesta perspectiva, o historiador brasileiro, jornalista e

crítico literário, Sérgio Buarque de Holanda costumava afirmar que os

personagens e os enredos dos contos, romances e crônicas do autor carioca

muito tinham a ver com a sua própria biografia. Buarque de Holanda argumenta

que “a obra deste escritor é, em grande parte, uma confissão mal escondida,

confissão de amarguras íntimas, de ressentimentos, de malogros pessoais, que

nos seus melhores momentos ele soube transfigurar em arte” (HOLANDA,

1956, p. 9).

Outro historiador brasileiro respeitado, Nelson Werneck Sodré, mostrou

outra visão. De acordo com ele, Lima Barreto estava à frente de seu tempo.

Sendo assim, argumenta que:

A crítica, e até mesmo a análise biográfica, tem permanecido amarrada, pelas suas notórias insuficiências, e pelo seu desinteresse em ir às verdadeiras razões, aos aspectos pessoais, ao que foi individual no romancista carioca, pretendendo demonstrar, com virtuosismo algumas vezes, que a sua maneira de colocar as criaturas e os problemas derivava de tudo o que, nele, era ressentimento. A verdade é muito diversa, entretanto, Lima Barreto realizou, e nisso está precisamente o seu mérito, nisso é que domina as suas insuficiências, uma crítica social muito viva, muito profunda, mostrando em sua ficção as injustiças da sociedade, o que era falso nela, o que era postiço, artificial, o que a deformava. Não procedeu assim porque fosse mulato, doente, pobre e sentisse vontade de vingar-se das injustiças feitas ao seu talento. Procedeu assim porque compreendeu cedo, e o ângulo pessoal apenas ajudou essa compreensão, as anomalias de um conjunto em que a sociedade denunciava a sua transformação, quando repontavam visíveis sinais de mudança. Sentiu a presença do que era novo, com sua apurada e aguda percepção, antes que os outros sentissem (SODRÉ, 1969, p. 506).

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Lima Barreto, considerado, na perspectiva desta dissertação, um escritor

marginal, deixou uma grande e importante obra para a sociedade, tendo como

objetivo principal a denúncia.

Mesmo com o trabalho que gostava de realizar, a vida de Lima Barreto

também estava rodeada pela depressão e pelo alcoolismo que o acompanhou

até o final de seus dias.

O escritor ao encontrar o desprezo e a exclusão devido o fato de ser pobre, alcoólatra e ter passagens pelo hospício- mas, principalmente, por ser negro – poderia ter desistido da arte literária. Porém, era exatamente esta a dor que o alimentava e fazia com que se tornasse mais forte em frente às intempéries que teimavam em boicotar-lhe o sucesso (FREIRE, 2005, p.66).

O escritor foi internado em um hospício mais de uma vez e passou por

momentos ingratos e de reflexão, como descreve o próprio em O cemitério dos

vivos:

Digo com franqueza, cem anos que eu viva, nunca poderá apagar-se da minha memória essas humilhações que sofri. Não por elas mesmo, que pouco valem; mas pela convicção que me trouxeram de que esta vida não vale nada, todas as posições falham e todas as precauções para um grande futuro são vãs (BARRETO, 1956, p. 67).

Os primeiros modernistas, como Mário e Oswald de Andrade, viam em

Lima Barreto um precursor, em termos de narrativa, do modernismo que

“engatinhava” no início do século XX. Pela dificuldade de impor seu estilo e não

figurar na lista dos melhores ficcionistas em sua época e mesmo por tornar-se

alcoólatra (ter sido internado como louco) e sentir-se injustiçado por seus

contemporâneos, pode ser considerado, por esse viés, um escritor marginal.

No artigo “A biografia e o biografado: reflexões sobre Afonso Henriques de

Lima Barreto”, Luciana da Costa Ferreira (2009, p. 4) argumenta que: “A

imagem que o indivíduo Afonso Henriques de Lima Barreto fazia de si era, em

muitos momentos, marcada por uma forte negatividade. Apesar de se

reconhecer como um escritor de talento via-se esmagado pelo preconceito”. O

escritor não passou despercebido, recebeu críticas positivas, mas, na maioria,

negativas.

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Lima Barreto faleceu em 1 de novembro de 1922, aos 41 anos, sofrendo

um colapso cardíaco. “Lima Barreto, por sinal, mesmo criticando enfaticamente

as falcatruas, os desmandos e o arrivismo, não desiste. Só para de lutar

forçado pela doença e pela morte” (FRAZÃO, 2000, p. 152).

Lima Barreto possuía um gosto pela morte. Segundo Freire, “o escritor

deixa transparecer -na vida e na obra- que a “Morte” equipara a todos. Brancos

e negros, pobres e ricos, todos se curvam e se igualam diante dela” (2005, p.

127). Lima queria um mundo mais justo, sem preconceito, no qual, todas as

pessoas fossem tratadas com dignidade, não só uma parcela da sociedade,

independente de cor e classe social. Sua literatura é a forma autêntica de

militância contra uma sociedade discriminadora.

Lima Barreto deixou em seu texto marcas que o imortalizariam. Sua

criticada maneira de escrever e seu estilo crítico e combativo tornaram-se,

após o modernismo, motivo de inúmeras pesquisas e estudos. “O escritor Lima

Barreto antecipa a revolução estética de 1922 através da linguagem, daí o fato

de se reivindicar e demonstrar o quanto moderno está presente na obra de

Lima Barreto” (FREIRE, 2005, p. 102). Lima Barreto criou novas possibilidades

para a literatura e influenciou muitos escritores brasileiros, principalmente os

modernistas e continua influenciando gerações.

1.2 CENÁRIO DA EXCLUSÃO: A “BELLE ÉPOQUE” E O

EMBELEZAMENTO DA CIDADE

No final do século XIX e início do século XX, momento em que a obra de

Lima Barreto é gestada, a Europa passa por numerosas transformações em

diversos campos das atividades humanas modificando e renovando o cenário

das artes. Surgia, aí, os primeiros prenúncios da “arte moderna”. Nesse

período histórico, o homem, com seu talento, criou muitas invenções como o

automóvel, o telefone, a lâmpada elétrica, a televisão, o cinema, a fotografia, a

coca-cola, os aviões, entre outros, desenvolvendo o campo tecnológico e

científico.

Os homens na busca incessante de satisfazer suas múltiplas e sempre históricas necessidades de natureza biológica,

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intelectual, cultural, afetiva e estética estabelecem as mais diversas relações sociais. A produção do conhecimento e sua socialização ou negação para determinados grupos ou classes não é alheia ao conjunto de práticas e relações que produzem os homens num determinado tempo e espaço. Pelo contrário nelas encontra a sua efetiva materialidade histórica (FRIGOTO, 2008, p. 43).

As inovações, entretanto, não deixaram de ocasionar lutas sociais, a

grande guerra mundial, a revolução comunista e outros conflitos. É importante

ressaltar que a inclinação da arte moderna foi “o desejo de libertar-se das

amarras do passado e buscar uma nova forma de expressão artística, de

acordo com a mentalidade do século que se inicia” (FREIRE, 2005, p. 28-29).

O grande otimismo e entusiasmo da população com o progresso do homem e

suas ideias, o desenvolvimento econômico que se consolidava e o crescimento

industrial caracterizaram esse momento, que foi chamado de “Belle Époque”. A

época é representada, simbolicamente, pela luz e pela velocidade. Apesar de

ter sido um momento de muitas evoluções também foi um período em que os

sentimentos de alegria e medo se misturaram devido à rapidez das mudanças

e sua falta de controle.

As relações de produção humana capitalistas efetivam-se diferentes processos de alienação e de cisão. Mas esta alienação se dá no plano do conjunto das práticas sociais e atinge, ainda que de forma diversa, todos os homens. Como bem evidencia Marx, na sociedade de classes o “humano se perde” (FRIGOTO, 2008, p.43).

Artisticamente, esse período, também de angústias e ansiedades, foi

representado na tela de Edvard Munch, “O grito” (1893), abrindo o caminho das

vanguardas europeias. Com o acontecimento da Primeira Guerra, a economia

europeia declinou e os Estados Unidos tornaram-se a grande potência mundial.

Esse conflito causou muitas crises na economia atingindo a América Latina, até

mesmo o Brasil.

Nesse período histórico, no Brasil, o poder hegemônico era mantido

pelos grandes proprietários de terra. Havia uma alternância de poder entre São

Paulo (produtores de café) e Minas Gerais (produtores de leite). Tal período -

denominado república do café com leite - gerou alguns conflitos sociais, pois o

governo atendia só a elite enquanto a população menos favorecida

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economicamente não recebia assistência. São Paulo se desenvolveu de

maneira rápida e o Rio de Janeiro passou por uma reestruturação urbana,

principalmente, aos moldes franceses, absorvendo a reforma urbana

comandada pelo prefeito de Paris no século XIX, barão Georges-Eugène

Haussmann. Entusiasmado com a reforma europeia, o novo prefeito do Rio de

Janeiro, Francisco Pereira Passos, em 1903, deu início à modernização da,

então, capital federal, que tinha como principal meta a erradicação dos cortiços

que eram os principais focos das doenças e a modernização das áreas do

centro com a finalidade de facilitar e favorecer a livre circulação de pessoas e

transportes, além de obras de saneamento. Jeffrey Needell na obra Belle

époque tropical: sociedade e cultura no Rio de Janeiro na virada do século

menciona que:

Um lugar-comum pouco investigado é a afirmação de que as reformas empreendidas por Pereira Passos em 1903-6 relacionavam-se de algum modo com sua formação francesa ou com os projetos da década de 1870. Documentos do engenheiro e publicações da época confirmam isso, ressaltando a importância de Haussamann (NEEDELL, 1993, p.55).

Para tais mudanças, muitos morros, vielas, favelas, habitações coletivas

e quarteirões foram demolidos e transformados em ruas e praças largas e

arborizadas, prédios com arquitetura francesa e um comércio ostentoso. Esse

período de remodelação da cidade nos moldes parisienses foi denominado

como “bota-abaixo”, por Pereira Passos.

O refazer da cidade, período conhecido como “Bota-Abaixo” aproximava-se de uma tentativa de renovação urbana, que dependeu não só da construção de novos prédios, como da destruição do que antes existia. A reforma urbana não só possuía uma dimensão física, mas também simbólica, já que o espaço estava sendo transformado na pretensão de que o Rio de Janeiro se tornasse àquilo que então era entendido como uma capital moderna (LIMA, 2005, s/p).

Como consequência do processo de demolição e desapropriação nos

espaços centrais, a população mais pobre é expulsa e vai morar nos subúrbios,

áreas afastadas do centro, ou em morros. As demolições dos cortiços e de

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outras residências populares foram essenciais para a concretização da

reforma, sendo feita de maneira desrespeitosa e arrogante, ocorrendo sem

indenização e sem preocupação do governo em destinar as famílias

despejadas, interferindo fortemente no cotidiano da população menos

favorecida modificando seus hábitos e provocando um grande

descontentamento e um cenário de revolta. A população é afastada de seus

locais de trabalho e vive em condições precárias.

As reformas tiveram como um dos efeitos a redução da promiscuidade social em que vivia a população da cidade, especialmente no centro. A população que se comprimia nas áreas afetadas pelo bota-abaixo de Pereira Passos teve ou de apertar-se mais no que ficou intocado, ou de subir os morros adjacentes, ou de deslocar-se para a Cidade Nova e para os subúrbios da Central. Abriu-se espaço para o mundo elegante que anteriormente se limitava aos bairros chiques, como Botafogo, e se espremia na rua do Ouvidor (CARVALHO,1987, p.40).

Esse processo de segregação da população pobre e de sua cultura por

parte da elite carioca foi contestada na literatura de Lima Barreto, dentre elas

em Os Bruzundangas criticando a maneira como foi realizada a modernização

do espaço urbano e em Clara dos Anjos, mostrando a realidade dos subúrbios.

Para Joachin Neto, Lima Barreto era “um intérprete do cotidiano urbano que

soube demonstrar a relação afetiva que possuía com a realidade dos subúrbios

e a ojeriza que possuía pelos projetos cartesianos da República que visavam a

perseguir e extinguir as práticas populares” (NETO, 2011, p. 64-65). Para Lima

Barreto a remodelação estética da cidade não era o bastante, faltava uma

mudança de dentro para fora, uma mudança do pensamento inflexível da elite

para se pensar em uma sociedade mais justa e democrática.

Para Lima Barreto o preço da mudança era muito alto: a influência estrangeira em seu país, segundo ele, não tinha trazido consigo nada inovador ou revitalizante, mas sim novas causas e formas de corrupção. A influência estrangeira era para ele uma forma autêntica de invasão, que estava intensificando o processo de alienação, do qual a transformação física da Capital Federal é, em sua obra, um poderoso indício (OAKLEY, 2011, p.169).

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Segundo Freire, o posicionamento de Lima Barreto contra a

remodelagem da cidade do Rio de Janeiro justificava-se, principalmente, pelos

problemas sociais vividos pelo escritor.

Lima Barreto manifesta-se contrário à modernização da cidade do Rio de Janeiro, mas não diretamente contra o progresso. Manifesta-se, sim, adversamente ao fato de que os governantes querem fazer do Rio de Janeiro uma imitação das cidades europeias, principalmente de Paris. As consequências resultantes dessa modernização se refletem diretamente na população pobre, que é expulsa da onde mora, sendo obrigada a se instalar em áreas mais distantes ou nos morros, sem nenhuma infra-estrutura (FREIRE, 2005, p.103).

Rio de Janeiro e São Paulo passaram a centralizar a economia e se

tornaram os principais estados que influenciavam a moda e os costumes do

período. O consumo da elite social se torna muito acelerado e surge a classe

média composta pelos comerciantes e burocratas que impõem sua participação

no processo econômico do país. Com o desenvolvimento da agricultura e

ausência da mão-de-obra escrava, houve a abertura para o trabalho imigrante

que, naquele momento, passou a atender às demandas agrícolas. Vale

ressaltar que, nesse período, o café era o produto que mais se destacava na

economia brasileira. Com a presença dos imigrantes e o crescimento dos

setores operários, mulatos, negros e brancos começam a buscar melhores

condições de vida. A maioria dos ex-escravos e negros estavam fora das

fábricas e viviam de biscates.

Esses brasileiros foram duas vezes excluídos: primeiro, do trabalho assalariado nas indústrias; segundo, são enxotados de suas casas, para os subúrbios. Isto por causa do processo de urbanização que leva à especulação imobiliária e os força a se mudarem (FREIRE, 2005, p. 31).

Pensando a cidade atual e as transformações urbanas que o Rio de

Janeiro está passando para atender às “ditas exigências” por parte da

Comissão Olímpica e do governo atual, a cidade, novamente, passa por

grandes mudanças urbanas ao comando do prefeito Eduardo Paes com

construções de arenas, vias, e novos meios de transporte que facilitam a

circulação das pessoas durante o evento das Olimpíadas de 2016. Para isso,

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não muito diferente das mudanças de infraestrutura urbana do início do século

XX, recentemente casas foram demolidas deslocando as pessoas de seus

lares, alterando suas rotinas e gerando desconforto, angústia e a incerteza com

base nas consequências do deslocamento e porque não de recomeço longe do

centro e de seus meios de subsistência.

Na virada do século XIX, a imprensa também se destaca e passa por

adequações, surge, entre tantas, algumas revistas voltadas para a classe

média e uma imprensa de protesto no Rio de Janeiro. Em São Paulo, o redator

Euclides da Cunha escreve O proletário e no Rio de Janeiro, Lima Barreto

participa e colabora com o periódico A Lanterna.

Nesse contexto em que as contradições sociais começam a aparecer de

fato, devido ao abolicionismo, aos ideais republicanos e à crise da Monarquia,

a literatura do final do século XIX e início do século XX também entra em um

período conturbado em que correntes estéticas e literárias, o Realismo e suas

ramificações, a poesia parnasiana e o romance naturalista, o Simbolismo e o

Pré-modernismo caminham simultaneamente, algumas vezes entrelaçando-se

uma sobre as outras ou se distanciando. Enquanto a Europa se via invadida

pelos movimentos das Vanguardas Modernistas, a literatura brasileira ainda se

encontrava presa pelos estilos surgidos no século anterior.

O realismo surgiu no Brasil no momento em que o país vivenciava o

início do socialismo e da segunda revolução industrial. Esse movimento literário

confrontava os ideais românticos, pois apresentava uma linguagem objetiva e

representava a arte sem sentimentalismo, dando lugar ao materialismo. O

realismo, no Brasil, teve como marco inicial a publicação da obra Memórias

Póstumas de Brás Cubas (1881) do escritor Machado de Assis, que apesar de

ter escrito obras românticas, se destacou como romancista realista. Observe o

trecho do romance:

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a

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sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco (...) (ASSIS, 2011, p. 2).

Como se pode observar no trecho acima, Machado de Assis cria um

narrador que resolve contar a sua vida depois de morto, mudando

drasticamente os rumos da literatura brasileira. O escritor utilizou em seu

romance recursos como a ironia, o humor e jogos de palavras e, além do mais,

cita os livros bíblicos atribuídos a Moisés. Já os poetas desse movimento

cultural apresentavam-se “com uma fluência na linguagem e na métrica, uma

sensibilidade à flor da pele que tornava muito mais acessível ao grande

público” (BANDEIRA, 1965, p.135, apud. FISHER, 2003).

Entre os autores do parnasianismo destacou-se Olavo Bilac (1865 –

1918) com o poema Profissão de fé, no qual o autor se preocupava em

endeusar a forma buscando a rima perfeita, apresentando uma sequência

métrica, utilizando vocábulos refinados e se adequando às regras gramaticais

desse período. Destacam-se, também, as referências que o autor faz aos

personagens da mitologia grega no corpo do poema, temática recorrente e

expressiva da época. Observe as características citadas em alguns trechos do

poema:

Profissão de fé (Olavo Bilac)

Não quero o Zeus Capitolino Hercúleo e belo, Talhar no mármore divino Com o camartelo. Que outro - não eu! - a pedra corte Para, brutal, Erguer de Atene o altivo porte Descomunal. Mais que esse vulto extraordinário, Que assombra a vista, Seduz-me um leve relicário De fino artista. Invejo o ourives quando escrevo: Imito o amor Com que ele, em ouro, o alto relevo Faz de uma flor.

Por isso, corre, por servir-me, Sobre o papel A pena, como em prata firme Corre o cinzel. Corre; desenha, enfeita a imagem, A idéia veste: Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem Azul-celeste. Torce, aprimora, alteia, lima A frase; e, enfim, No verso de ouro engasta a rima, Como um rubim. Quero que a estrofe cristalina, Dobrada ao jeito Do ourives, saia da oficina Sem um defeito:

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Imito-o. E, pois, nem de Carrara A pedra firo: O alvo cristal, a pedra rara, O ônix prefiro.

E que o lavor do verso, acaso, Por tão subtil, Possa o lavor lembrar de um vaso De Becerril.

Nesse mesmo período, o naturalismo brasileiro teve sua gênese com a

publicação do romance O Mulato (1881) de Aluízio de Azevedo. O autor refletiu

sobre problemas raciais e sociais de sua época e destacou, nesta obra, a

história de uma paixão entre um mulato chamado Raimundo, filho de português

com uma escrava, por sua prima Ana Rosa, que era branca.

O protagonista, o mulato Raimundo, ignora a própria cor e a condição de filho de escrava: não consegue entender as reservas que lhe faz a alta sociedade de São Luís, a ele que voltara doutor da Europa. Aluízio cumula-o de encantos e de poder sedutor junto às mulheres e o faz amado e amante da prima, Ana Rosa, cuja família dá exemplo do mais virulento preconceito (BOSI, 1994, p. 189).

Naquela época, a sociedade não aceitava o casamento de um mestiço

com uma moça branca. Observe o trecho do romance:

Tire-me, por uma vez, deste maldito inferno da dúvida! Declare-me o segredo de sua recusa, seja qual for, ainda que uma revelação esmagadora! [...] se sabe alguma coisa dos meus antepassados e do meu nascimento, conte-me tudo! [...] E o senhor promete não se revoltar com o que eu disser? [...] Juro. Fale! [...] Recusei-lhe a mão de minha filha, porque o senhor é... é filho de uma escrava... Eu?! O senhor é um homem de cor!... Infelizmente essa é a verdade... [...] Já vê o amigo que não é por mim que lhe recusei Ana Rosa, mas é por tudo! A família de minha mulher sempre foi muito escrupulosa a esse respeito, e como ela é toda a sociedade do Maranhão! Concordo que seja uma asneira; concordo que seja um prejuízo tolo! O senhor porém não imagina o que é por cá a prevenção contra os mulatos!... Nunca me perdoaria um tal casamento; além do que, para realizá-lo, teria de quebrar a promessa que fiz a minha sogra, de não dar a neta senão a um branco de lei, português ou descendente direto de portugueses!... O senhor é um moço muito digno, muito merecedor de considerações, mas... foi forro à pia, e aqui ninguém ignora. Eu nasci escravo?!... Sim, pesa-me dizê-lo e não se a isso fosse constrangido, mas o senhor é filho de uma escrava e nasceu também cativo (AZEVEDO, 1994, p.154).

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Os naturalistas preocupavam-se em retratar a sociedade de uma

maneira objetiva e encarando a existência do homem como um produto

biológico com instintos assim como os animais, desprovido de livre-arbítrio. Os

temas abordados nos romances naturalistas faziam referência aos problemas

sociais, como a miséria, o adultério, o crime, o preconceito racial com a

perspectiva de propor uma análise e denunciar esses problemas sem se

preocupar com a reação ou resposta do leitor, mas sim tentar modificar o

comportamento social e humano. Com a proposta semelhante ao realismo, os

romances naturalistas tinham uma linguagem econômica e objetiva, e se

preocupavam com o rigor e a forma do texto. Para os naturalistas, o homem e

a sociedade precisavam ser estudados cientificamente. A ênfase é dada a

aspectos patológicos. No artigo, “O Realismo e o naturalismo: a questão

terminológica”, Paula Alves Carvalho Corrêa, diz que:

O escritor naturalista apoia-se no método científico para escrever romances. A ciência permite a apresentação de uma visão específica do homem que, por sua vez, opõe-se à visão de neutralidade do realismo. O naturalismo é, pois, resultado da fusão de um realismo mimético com os elementos das ciências naturais, aos quais os naturalistas deram grande ênfase (CORRÊA, 2010, p. 11).

Outro movimento literário que merece atenção é o simbolismo, que tinha

por característica o não cumprimento de regras rígidas do formalismo como

prioridade, mas nem por isso deixava de desenvolver uma estética formal e

requintada voltada para a subjetividade e para o misticismo, buscando a

essência do homem e fazendo associações entre ideias e imagens, além de

preocupar-se com a sonoridade e a harmonia dos sons, diretamente contrária à

estética do parnasianismo. Gilberto Mendonça Teles, comenta que:

Inimiga do ensino da declamação, da falsa sensibilidade, da descrição objetiva a poesia simbolista busca: vestir a Ideia de uma forma sensível que, entretanto, não terá seu fim em si mesma, mas que servindo para exprimir a Ideia, dela se tornaria submissa (TELES, 1976, p.57).

No período do simbolismo, pode-se destacar o poeta brasileiro João da

Cruz e Souza, conhecido como um dos mais importantes escritores desse

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movimento. O escritor também sofreu muito com o preconceito racial por ser

negro e filho de escravos, mesmo que alforriados.

A linguagem do autor é rebuscada, porém criativa, dando ênfase à

musicalidade e ao universo simbólico da subjetividade. No poema “Ângelus”

(1893) as palavras perdem o sentido denotativo e racional, transcendendo as

dimensões do mundo por intermédio da comparação, sinestesias e analogias

apresentadas pelo autor, além de revelar nuances suaves e marcantes do

poema por conta da sonoridade. Nos versos a seguir, é possível observar a

sonoridade por conta da repetição do “s” recorrente:

Ah! lilazes de Ângelus harmoniosos, Neblina vesperais, crepusculares,

Guslas gementes, bandolins saudosos, Plangências magoadíssimas dos ares (CRUZ E SOUSA, 1893,

p. 48).

As mudanças, nesse período, geraram uma grande contradição, pois,

por um lado, elas contribuíram para o crescimento do país, mas, por outro,

distanciaram as classes sociais, numa divisão em que muitos tinham pouco e

poucos tinham muito, contribuindo para as manifestações populares com o

intuito de se mostrarem insatisfeitos com o alto custo de vida, a falta de

emprego e com o governo republicano. São eles: a Revolta de Canudos na

Bahia, que acontece no fim do século XIX – tema de Os Sertões (1902) de

Euclides da Cunha; a Revolta da Vacina (1904) no Rio de Janeiro – idealizada

por Oswaldo Cruz, entre outras. Como afirma Zélia Nolasco-Freire na obra

Lima Barreto: imagem e linguagem:

Esses acontecimentos sociais e políticos estão presentes na obra barretiana e em muito influenciaram na produção literária do escritor. Além de contribuírem para a compreensão da mesma, pois temas, motivos, valores, normas ou revoltas barretianas, todos foram fornecidos ou sugeridos pela sociedade e pelo contexto social da virada do século XIX (FREIRE, 2005, p.33).

Lima Barreto é considerado o grande precursor das reivindicações por

mudanças que se intensificam na Semana da Arte Moderna em 1922.

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A Semana foi, ao mesmo tempo, o ponto de encontro das várias tendências que desde a I Guerra se vinham firmando em São Paulo e no Rio, e a plataforma que permitiu a consolidação de grupos, publicação de livros, revistas e manifestos, numa palavra, o seu desdobrar-se em viva realidade cultural (BOSI, 1994.p.340).

Fabiana Pastore Brasil, em sua dissertação: “A discriminação em Clara dos

Anjos, de Lima Barreto, à luz da avaliatividade: uma perspectiva sistêmico-

funcional”, diz que:

A obra de Lima Barreto nos revela, de um lado, o autor em que se chocam, frente a frente, a visão do novo e a permanência do velho, e, de outro, o intelectual que traz consigo a voz do inconformismo apontando para a ruptura com a tradição, por meio de atitudes claramente favoráveis à renovação que viria a partir de 1922, com a Semana de Arte Moderna. Lima Barreto inaugura o desgaste dos velhos modelos e antecipa uma resistência significativa na transição para o Modernismo. Uma das características mais marcantes das obras de Lima Barreto é, sem dúvida, a questão da inovação da linguagem (2012. p. 5).

Através do descontentamento com a realidade que afetava a sociedade

da virada do século XIX, Lima Barreto e outros escritores, como Monteiro

Lobato, Graça Aranha e Euclides da Cunha, considerados pré-modernistas,

retrataram, em suas produções, um novo Brasil, denunciando e criticando os

interesses da política que dominava e os problemas e desequilíbrios da

sociedade, assumindo uma postura nacionalista e mostrando as tensões que

eram vivenciadas, principalmente, nas regiões não centrais do Brasil. Os

autores mencionados apresentaram ideias inovadoras para a época rompendo

com a estética simbolista e parnasiana, pois não atendiam mais à realidade do

país. Segundo Afredo Bosi: “caberia a esses escritores o papel histórico de

mover águas estagnadas da belle époque, revelando, antes dos modernistas,

as tensões que sofria a vida nacional” (BOSI, 1994, p.306/307).

Euclides da Cunha retratou as regiões Norte e Nordeste, Graça Aranha

o Espírito Santo; Monteiro Lobato, o Vale do Paraíba e o interior paulista; e

Lima Barreto, o subúrbio carioca. Nesse contexto, as temáticas se voltaram

para os grupos estigmatizados, os nordestinos, os sertanejos, os funcionários

públicos, os pobres, os mulatos trazendo à tona os acontecimentos

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socioeconômicos e políticos vivenciados pela sociedade da época. Para Freire,

Lima Barreto mostra a acertada concepção de literatura que – ao contrário dos

parnasianos e simbolistas – passava a ter um papel social, isto é, como

delineada, na condição da Literatura Brasileira na virada do século XIX, uma

literatura engajada.

Todos os segmentos apresentados, político, social, artístico e cultural

sofreram uma grande transformação nesse período inconstante, denominado

de “Belle Époque”. Pode-se observar o quanto a literatura se fez presente

nesse período histórico.

1.3 O MAL ESTAR DO PRECONCEITO

O livro “12 faces do preconceito” organizado pelo escritor e historiador

Jaime Pinsky foi dividido em doze artigos escritos por profissionais de

diferentes áreas, como, História, Direito, Medicina, entre outras, e traz um

material bastante elucidador sobre os diversos tipos de preconceito existente

na relação entre os brasileiros. Os preconceitos foram separados por 12 faces,

são eles: Preconceito contra mulheres, “O lugar de mulher é na cozinha”;

Racial, “Serviço de negro”; Homossexual, “Ser ou não ser não é a questão”;

Idosos, “Quem gosta de velho é reumatismo”; Índios, “Índio não produz nada”;

Linguístico, “Preconceito linguístico? Tô fora!”; Gordos, “Baleia é a mãe”;

Baixinhos, “Tamanho é documento?”; Antissemitismo, “A raiz da intolerância”;

Deficientes, “Casa de bonecas”; Migrantes, “Cidadãos de segunda classe”;

Social, “Feios, sujos, pobres”.

Os autores se preocuparam em mostrar, com essa obra, as

manifestações do preconceito em nossa sociedade, inclusive, os mais velados.

Jaime Pinsky, na apresentação do seu livro, dá ênfase ao fato de que a escola

é um lugar onde se percebe com frequência atitudes e olhares

preconceituosos, portanto é um ambiente favorável e adequado para discutir a

temática, criar debates e ajudar a formar cidadãos com valores críticos e

reflexivos.

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A seguir, serão apresentados alguns comentários sobre preconceitos

como o de gênero, o racial, o social, e o de linguagem - ao qual se dedicará um

espaço maior - mostrando a visão de autores importantes sobre cada um dos

tipos de preconceitos citados, com base na temática proposta.

O artigo escrito por Luiza Nagib Eluf, “Lugar de mulher é na cozinha?”

retrata o olhar da sociedade para as mulheres vistas como incapazes e

submissas e enfatiza que, hoje em dia, esse preconceito ainda apresenta suas

formas, porém de maneira mais camuflada. A autora discute a superioridade do

homem diante do sexo oposto e aborda a questão dos direitos iguais entre

homens e mulheres. Ao longo da história da humanidade, o homem sempre foi

o provedor, saía para caçar, pescar e coletar e as mulheres viviam para cuidar

do lar e da família. Na contemporaneidade, estes paradigmas começaram a ser

questionados, os movimentos feministas mudaram algumas concepções e as

mulheres começaram a lutar por seus direitos. A autora fala sobre o direito à

igualdade de gêneros:

A igualdade de que tanto se fala diz respeito aos direitos de cada um. Durante muito tempo, as diferenças biológicas foram usadas para inferiorizar a mulher. O fato das mulheres terem o corpo diferente dos homens foi interpretado como sinal de fraqueza física e de incompetência intelectual (ELUF, 2013, p.13).

A questão biológica e os hormônios femininos são constantemente

associados à emoção das mulheres. A emoção afeta o ser humano de maneira

diferente e cria uma tensão entre os gêneros. Os homens costumam ser

considerados mais fortes e objetivos do que as mulheres que, durante muito

tempo, foram submissas e donas de casa de acordo com regras e

pensamentos da época. Apesar desses estigmas, algumas mulheres, que não

se conformavam com esse modo de vida, lutaram por igualdade de direito entre

os gêneros e lançaram o primeiro movimento feminista nos Estados Unidos,

que teve início na primeira metade do século XIX. Este movimento foi visto

como liberal, pois objetivava, no primeiro momento, o direito ao sufrágio por

parte das mulheres. O segundo movimento feminista, ocorrido na década de

1970, visto como radical, criticou a cultura patriarcal, questionou o capitalismo

exacerbado e as práticas racistas da época e passou a lutar contra a

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supremacia masculina. O terceiro movimento teve seu início na década de

1990, visto como socialista, segue a tradição feminista, pois centrava sua

discussão na opressão e na exploração feminina.

Com toda essa luta, vieram, aos poucos, às mudanças; hoje, as

mulheres já conquistaram mais espaço e têm um papel atuante na sociedade,

tanto na área econômica e política quanto social do país. Mas, mesmo com

toda essa força e determinação, as mulheres não deixaram de ser sensíveis e

emotivas. Por muito tempo, o corpo foi fragmentado em duas principais partes,

o homem representa a razão, “o cérebro” e a mulher a emoção, “coração”.

Ainda temos alguns resquícios desse pensamento, porém a grande maioria

reconhece que a mulher tem os mesmos direitos, deveres e capacidades que

os homens. “Com seus comportamentos tidos pelo senso comum e pela

medicina como estreitamente regulados pelos hormônios, as mulheres seriam

mais instáveis emocionalmente e, portanto, menos racionais” (COELHO e

REZENDE, 2010, p.26).

Nessa perspectiva, compreende-se que não há um indivíduo igual ao

outro, homens e mulheres são diferentes e nem por isso devem ser

classificados como superiores e inferiores. As mulheres, até hoje, seguem

mostrando suas capacidades, entretanto, elas ainda são consideradas mais

sentimentais devido aos hormônios e a momentos especiais e afetivos pelos

quais passa durante a vida. Quando se fala em “igualdade”, se está referindo à

igualdade de direitos e oportunidades para todos.

Essa fragilidade emocional se torna bastante presente quando o

indivíduo não se sente aceito pela sociedade, até hoje são presenciadas muitas

formas de preconceitos não só contra as mulheres, mas também contra os

negros, pobres, deficientes, homossexuais. Esses movimentos se destacaram

no país por causa da luta do povo nas ruas e pelos direitos conquistados.

No artigo “Serviço de Negro”, Jaime Pinsky afirma que o preconceito

contra os negros é uma herança oriunda dos acontecimentos do Brasil desde a

escravidão e que ainda hoje está presente em diversos grupos sociais, o negro,

muitas vezes, é classificado como preguiçoso, pobre e submisso. O brasileiro

se apresenta como um povo branco que recebeu “contribuições” de outras

raças, pois é dessa maneira que muitos livros didáticos mostram e minimizam a

história do país. Trata-se de uma das heranças do ensino do século XIX, que

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pode ser percebido a partir da interpretação de obras naturalistas como O Bom

crioulo (1895) em que, na mesma narrativa, são apresentadas duas das teses

mais fortes da ciência da época: o negro como sub-raça e a homossexualidade

como anomalia. Também o índio era considerado sub-raça. O determinismo

era uma das vertentes mais excludentes do cientificismo do século XIX.

Cercando e reforçando os aspectos patológicos que marcam o período

naturalista no Brasil, o Positivismo de Comte transformava a razão na grande

soberana, o que fazia recrudescer a ideia de que a ciência, a ordem e o

progresso eram definitivamente o esteio da boa educação.

Partindo dessas rápidas reflexões sobre as “bases científicas” dos

preconceitos deixados como herança pelo período naturalista, pode-se

entender que o fato de o branco se sentir superior ao negro não é apenas

resquício da escravidão, mas dos parâmetros educacionais ministrados,

durante longo tempo, na escola brasileira. Foi um período que deixou marcas,

dentre elas a ideia de que o trabalho braçal é para os negros e o trabalho

intelectual é para os brancos. O preconceito contra os negros, no trabalho,

ainda é realidade; em algumas instituições ainda há diferença entre salários,

jornada de trabalho e oportunidade de crescimento profissional, com base na

problemática da diferença de sexo e, camufladamente, de cor e sexualidade.

Pinsky argumenta sobre o preconceito racial dizendo que: “Estabelecer

juízos a partir de algo tão periférico e superficial como a cor da pele não resiste

a uma avaliação mais aprofundada" (PINSKY, 2013, p. 24), ou seja, não é pela

cor da pele que se deve manifestar juízos de valor. O preconceito racial é uma

realidade vivida no Brasil, os anos passam, os pensamentos mudam e os

preconceitos, como se pode constatar no cotidiano, continuam presentes.

Lima Barreto não foi o primeiro escritor a tratar o preconceito racial em

seus romances, Adolfo Caminha em Bom Crioulo (1895) e Aloísio de Azevedo

em O Mulato (1891) já haviam escrito sobre o tema. Entretanto, Lima Barreto,

segundo Joel Rufino dos Santos, deixou uma grande contribuição: “Seu mérito

foi ver o preconceito racial como peça de um conjunto ideológico, situação em

que se tornava muitíssimo mais grave, passando de simples preconceito a

racismo – modalidade de poder mais do que pré-juízo” (SANTOS, 2004, p.

119). Lima sentiu na pele o preconceito e tratou da questão racial, de maneira

direta ou indireta, em seus livros.

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Considerar que o branco é superior ao negro ou ao índio (preconceito

racial); ou que o homem é superior à mulher (preconceito de gênero); são

situações que traduzem uma forma de preconceito social ou de classe em que

um indivíduo se sente melhor que o outro. Segundo Aldaíza Sposati (2013), o

preconceito social é a base para que outros preconceitos apareçam. No artigo

“Feios, sujos e malvados”, de sua autoria, ela salienta que:

O preconceito de classe tem sempre um conteúdo de intolerância, uma forma de ver que não aceita a diferença ou os diferentes. É a tradicional situação em que alguns são “barrados no baile”. Mais que barrados, são tratados como pessoas inferiores que não são toleradas por suas características, estilo de vida, etc (SPOSATI, 2013, p.116).

Em realidade, toda a obra limabarretiana tangencia ou permite que se

discuta diretamente a problemática do preconceito. Segundo Joachin Azevedo

Neto:

A escrita barretiana está repleta de uma coerente fundamentação social. Ao fazer uso de um estilo simples, didático e repleto de premissas humanitárias, o cronista estava concebendo o exercício literário como um instrumento capaz de atuar frente à preocupação ética maior, que seria a restauração dos laços de solidariedade humana que, para Lima Barreto, haviam sido dissolvidos no mar do arrivismo, brutalidade e intolerância nos quais navegava a jovem república brasileira (AZEVEDO NETO, 2011, p.87).

Torna-se importante destacar momentos em que, no romance Clara dos

Anjos, a questão da diferença social é exposta como fator distintivo.

Principalmente na relação entre as famílias de Clara e Cassi Jones, mas não

apenas nela, as condições sociais servem como importante elemento

diferenciador. Através da personagem Dona Salustiana, mãe de Cassi, essa

mulher vaidosa, o autor enfatiza a presença do preconceito social:

Tinha fumaças de grande dama, de ser muito superior às pessoas de sua vizinhança e mesmo às dos seus conhecimentos. O seu orgulho provinha de duas fontes: a primeira, por ter um irmão médico do Exército, com o posto de capitão; e a segunda, por ter andado no Colégio das Irmãs de Caridade (BARRETO, 2005, p.25).

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A presença do capital se apresenta como uma ferramenta que exclui e

classifica as pessoas. A personagem citada não aceita as diferenças e é

intolerante, mesmo morando no subúrbio, tem um pensamento moralista e

preconceituoso. Dona Salustiana não aceita que seus filhos se casem com

pessoas da classe pobre. Como se pensava na época, a mistura das classes

causava desprestígio perante a sociedade. Observe como Joel Rufino dos

Santos define os pobres

Pobres são os despossuídos, não de qualquer posse, mas de território, de casa, de emprego (embora não de trabalho), de local (embora não de lugar), de família (embora não de nome) e enfim do próprio corpo (no caso dos escravos e servos da Colônia e Império). São, em suma, um estado nômade ou vagabundo – e é curioso como “se virar” designa geralmente, para os pobres, o ato de trabalhar. Pobre é quem se vira (já miserável não tem essa capacidade) e isso demarca um lugar preciso, quantificável, na estrutura social. Pobre é quem só tem amigos pobres, pobre é quem mora em locais pobres (os territórios de pobreza) quase sem água, esgoto e coleta de lixo (SANTOS, 2004, p. 29).

O subúrbio, espaço em que a narrativa de Clara dos Anjos transcorre, é

o lugar dos pobres, das pessoas simples, precário, onde vai morar quem é ou

ficou pobre por algum motivo. Lima Barreto, morador do subúrbio e conhecedor

de seu “lócus”, denuncia a hipocrisia da época e o olhar preconceituoso da elite

para com a classe pobre suburbana.

No que diz respeito à linguagem, pode-se observar que, no decorrer da

história do Brasil, desde a colonização de Portugal até a contemporaneidade,

há uma forte inclinação da sociedade em absorver os preconceitos. Tais

preconceitos são culturalmente criados e disseminados por grupos

hegemônicos em termos socioeconômicos, que se intitulam ou se impõem

como superiores e por isso oprimem os demais com a força negativa do

discurso ou até mesmo com atitudes desumanas e agressivas. O preconceito

tem sua gênese nas práticas etnocêntricas, atitudes facilmente percebidas em

determinados grupos sociais que apresentam seus hábitos culturais como

superiores aos da cultura alheia. Marcos Bagno, por exemplo, diz que “O

preconceito é algo que nasce de dentro de uma pessoa que vive em

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determinado ambiente cultural. Esse ambiente reflete uma realidade vivida,

seja no passado, seja no presente” (BAGNO, 2013, p. 49-50).

Existem inúmeros tipos de preconceito. Um dos mais vivenciados e que

vem, desde o final do século XX recebendo atenção de autores como Bagno

(1999) e causando polêmicas, por tocar em problemas crônicos em termos de

Língua Portuguesa é o preconceito gerado pela utilização da língua fora dos

padrões esperados pelos grupos hegemônicos, de explícita visão eurocêntrica.

Como é notório, a Língua Portuguesa sofreu e continua sofrendo muitas

transformações e estas, nem sempre, são bem aceitas no universo acadêmico,

mesmo sob a intervenção de autores como Bagno, Mário Perini, Celso Pedro

Luft e Evanildo Bechara, só para citar alguns dos mais respeitados estudiosos

do assunto. Como entendem esses autores, a língua é viva, portanto as

mudanças são inevitáveis. A sociedade se depara com alguns mitos em

relação à Língua Portuguesa, que podem ser resumidas em algumas

perguntas, como: Será que no Brasil só se fala uma língua, o português?

(BECHARA,1995), E as variações linguísticas, que espaço elas ocupam na

sociedade? (BAGNO,1999), O que é falar certo? Existe “certo” e “errado”?

(LUFT, 2008). Essas e outras questões serão refletidas ao longo do trabalho,

também com base em questionamentos apontados por Bagno em sua obra

Preconceito Linguístico- o que é, como se faz (1999).

1.4 LÍNGUA E PODER

No início do século XVI, os portugueses chegaram ao continente e

impuseram a sua língua como oficial, desconsiderando a linguagem dos

indígenas, os verdadeiros ocupantes deste território. Com a fusão das raças ao

longo deste século, a miscigenação foi inevitável, tornando ainda mais

complexa a língua imposta como oficial e obrigatória por Marquês de Pombal, a

Língua Portuguesa. A diversidade cultural existente no povo brasileiro é

resultante das contribuições interétnicas tornando o português brasileiro ainda

mais rico em suas variações. Com o processo de deslocamento interno a partir

da década de 40 e ao longo do século XX, em direção a grandes capitais do

sudeste, do centro-oeste e do norte, as variações linguísticas passaram a fazer

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parte do cotidiano desses povos que aceitaram esta diversidade como parte

integrante da língua local. Entende-se, então, que a língua faz parte do

processo de vida do homem, por isso o indivíduo também pode ser

representado por aquilo que fala, o ser humano busca com ela significados e

maneiras de expressar pensamentos, ações e sentimentos vividos.

Toda língua apresenta variações de uso ou mesmo estruturais, devido a

diferenças regionais, etárias, sociais, dentre outras, também passíveis de

preconceito. Nesta perspectiva, pode-se dizer que existem algumas variedades

do português, a variedade padrão é considerada um modelo efetivo e nobre

utilizado por escritores, autoridades, por grupos sociais de prestígio, e é a

ensinada no ambiente escolar simplificando e excluindo a realidade global em

que vivemos, e a variedade não-padrão é usada principalmente por pessoas de

classes pobres e está presente muitas vezes nas periferias. Sabe-se que a

utilização da linguagem não-padrão é desvalorizada pelo saber acadêmico e

essa exclusão atinge a vida e a identidade de muitas pessoas. A linguagem se

tornou um instrumento de poder, afastando cada vez mais os diferentes grupos

sociais, deixando as classes desprestigiadas à margem da sociedade.

Entende-se que a maneira de falar do homem também tem influenciado em

suas relações no mundo, o homem tem sido substituído facilmente, portanto

descartado, assim como o lixo, lembrando aqui da obra Vidas desperdiçadas,

de Bauman (2007)

Marcos Bagno caracteriza o preconceito na linguagem como “invisível”,

pois poucas pessoas estudam ou reconhecem a existência desse problema,

tornando-o mais poderoso. O mesmo autor menciona os seguintes mitos: “O

“Brasileiro não sabe português; Só em Portugal se fala bem português”;

“Português é muito difícil”; “As pessoas sem instrução falam tudo errado”, “O

lugar onde melhor se fala português no Brasil é o Maranhão”, “O certo é falar

assim porque se escreve assim”, “É preciso saber gramática para falar e

escrever bem” e “O domínio da norma-padrão é um instrumento de ascensão

social”. Bagno, como se pode depreender, aqui, apresenta uma grande

preocupação com essas falsas ideias, pois até os estudiosos e intelectuais se

deixam equivocar por falsas ideologias.

O preconceito da Língua é danoso para a educação quando não se

distingue a pluralidade do “português brasileiro”, estabelecendo a norma culta

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como superior ou comum a todos os falantes dentro do ambiente escolar. É

possível observar que a educação de boa qualidade no país ainda não é para

todos, deixando uma grande parte da população sem oportunidade de

conhecer todas as formas do uso do português brasileiro. O Brasil é um país

riquíssimo, porém esta riqueza está condensada nas mãos de uma pequena

parcela da sociedade brasileira e essa grande diferença socioeconômica leva a

uma grande exclusão dos falantes das variedades estigmatizadas. Os

moradores das zonas rurais e periferias, analfabetos e pobres são deixados à

margem das variedades privilegiadas. O país possui mais de duzentas línguas

distintas, pois sofreu influências de outras línguas, indígenas, africanas,

europeias e asiáticas e se tornou plural através de suas variações. Observe-se

o que Bagno afirma:

O fato é que, como a ciência linguística moderna já provou e comprovou, não existe nenhuma língua no mundo que seja “una”, uniforme e homogênea. O monolinguismo é uma ficção. Toda e qualquer língua humana viva é, intrinsecamente e inevitavelmente, heterogênea, ou seja, apresenta variação em todos os seus níveis estruturais (fonologia, morfologia, sintaxe, léxico etc.) e em todos os seus níveis de uso social (variação regional, social, etária, estilística etc) (BAGNO, 1999, p. 27-28).

A diversidade linguística já foi reconhecida pelos órgãos responsáveis

pela educação do Brasil, assim, em 1998, foi publicado, nos Parâmetros

Curriculares Nacionais (PCN), que “[...] quando se fala em “Língua Portuguesa”

está se tratando de uma unidade que se constitui de muitas variedades”

(BAGNO, 1999, p. 35). Um importante passo foi dado. Agora, é necessário que

essas constatações sejam incluídas no dia a dia dos cidadãos, inclusive

através dos meios de comunicação, que são os principais propagadores dos

mitos desse e de outros preconceitos.

Marcos Bagno trata da ideia de inferioridade que o brasileiro tem de si e

de sua língua e o sentimento que traz ao longo da história de ainda sermos

colônia de Portugal. Esse pensamento equivocado é passado ao longo das

gerações, através do ensino da gramática tradicional nas escolas, gerando

efeitos negativos para a sociedade. No que diz respeito ao ensino do português

no Brasil, o grande problema é que esse ensino, até hoje, depois de mais de

cento e setenta anos de independência política, continua com os olhos voltados

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para a norma linguística de Portugal (BAGNO, 1999, p. 42). Essa ideia de que

brasileiro não sabe português é completamente sem fundamento. O brasileiro

conhece sua língua materna, pois nasceu e cresceu aqui enquanto os

portugueses também sabem o português deles. A língua e suas variações são

criadas para atender às necessidades linguísticas de seus falantes, pois a

necessidade de cada país também é distinta uma da outra.

O ensino do “português brasileiro” sempre se baseou nas regras

gramaticais de Portugal e o jeito que internalizamos as regras na escola, em

grande parte, não se encaixa no uso cotidiano da língua que é falada e escrita

no Brasil. Autores como Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus, dentre outros,

voltaram a ser estudados, sob esse viés, exatamente pela desconstrução

desses mitos em relação ao uso da Língua, anteriormente apontados. O

conceito de “saber português” para muitas pessoas é saber o nome de termos

e orações, excluindo os valiosos recursos que a língua nos oferece. O autor de

A língua de Eulália declara que: “Todo falante nativo de uma língua sabe essa

língua, na concepção da linguística moderna, significa conhecer intuitivamente

e empregar com facilidade e naturalidade as regras básicas de funcionamento

dela” (BAGNO, 1999, p. 51).

A suposta ideia de que Português é difícil é mais um instrumento criado

pelas instituições sociopolíticas para afastar e bloquear o acesso ao poder que

a língua proporciona. Do mesmo modo que o preconceito da língua está

presente em específicas classes sociais, as variações regionais também são

bastante ironizadas e criticadas, principalmente nos meios de comunicação,

que, com seu grande poder e influência, retratam o nordestino nas novelas

como rude, pobre, engraçado e eles se tornam motivos de deboche. Qualquer

maneira de se expressar linguisticamente que fuja da forma “ideal” escola-

gramática-dicionário é visto como feio e errado, uma visão preconceituosa e

presente em nossa sociedade. Não se deve condenar nenhuma forma da

língua, e sim valorizá-la, pois a língua que hoje é criticada pode ser a língua de

prestígio amanhã. Segundo Bagno, não existe nenhum tipo de variação

linguística “mais correta”, ou “melhor” que a outra. Ele completa dizendo que

“toda variedade linguística é também o resultado de um processo histórico

próprio, com suas vicissitudes e peripécias particulares” (BAGNO, 1999, p. 64).

Cada comunidade possui sua história, suas necessidades individuais e se

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adaptam a elas. O autor exemplifica em sua obra a ideia errônea de que no

Maranhão é o lugar onde melhor se fala o português, devido a algumas

proximidades com o português de Portugal. As pessoas tendem a classificar as

coisas em melhores e piores, é preciso entender as diversidades da nossa

língua como um grande tesouro da nossa cultura.

A variação linguística está presente em todos os lugares, nenhuma

língua é falada da mesma maneira em todos os locais. Nas escolas, existe a

prática de querer impor ao aluno que ele fale do mesmo jeito que escreve como

se fosse a única maneira correta de falar a nossa língua. Muitos livros e

gramáticas desprezam as variações da língua falada, e supervalorizam a língua

escrita e tentam padronizar a maneira como os alunos devem falar. O autor

não quer dizer, com essa análise, que não se deva ensinar aos alunos a

ortografia oficial da Língua Portuguesa, porém não se deve fazer isso tentando

uniformizar as pronúncias e o modo de cada comunidade linguística se

expressar. Cada grupo deve preservar suas características próprias. Bagno

analisa: “Quando digo que a escrita é uma tentativa de representação é porque

sabemos que não existe nenhuma ortografia em que nenhuma língua do

mundo consiga reproduzir a fala com fidelidade” (BAGNO, 1999, p. 70).

A gramática normativa menospreza os fenômenos da língua falada e a

diversidade linguística do país acaba ficando fora dos livros. As gramáticas

foram criadas para registrar e memorizar as “regras” usadas pelos escritores

considerados como modelos da sociedade, porém as pessoas esquecem que a

língua falada precede a escrita das gramáticas. Na verdade, a gramática

normativa é que depende da língua. A gramática se tornou um instrumento de

poder e de exclusão e com isso há um pensamento irreal de que o que não

está na gramática não é português. Bagno destaca a real função da gramática:

“A verdadeira utilidade da gramática para os brasileiros seria definir, identificar

e localizar os falantes mais letrados, coletar a língua usada por eles e

descrever essa língua de forma clara, objetiva e com critérios teóricos e

metodológicos coerentes” (BAGNO, 1999, p. 81). A escola tem o papel de

intermediar, incentivar e proporcionar aos alunos a possibilidade de conhecer

textos variados e de todos os gêneros e capacitar o aluno a realizar leituras e

escrever bem, porém, essa realidade ainda não parece ser democrática. Edgar

Morin, um dos principais pensadores da contemporaneidade, em sua obra

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Cabeça bem- feita - repensar a reforma reformar o pensamento - mostra a

enorme resistência a essa reforma: “A máquina da educação é rígida, inflexível,

fechada, burocratizada. Muitos professores estão instalados em seus hábitos e

autonomias disciplinares” (MORIN, 2003, p. 99). Apesar da resistência, é

preciso acreditar e lutar por essa reforma do pensamento e das instituições, o

autor acredita que: “A reforma também começará de maneira periférica e

marginal. Como sempre a iniciativa só pode partir de uma minoria, a princípio

incompreendida, às vezes perseguida. Depois a ideia é disseminada e, quando

se difunde, torna-se uma força atuante” (MORIN, 2003, p.101).

Em sociedades culturais, social e economicamente diversas e desiguais

compreende-se que não é possível haver uma homogeneidade. Na Língua

Portuguesa, a heterogeneidade se faz presente pela diversidade e mescla1 dos

povos, das línguas e das culturas. Partindo do pressuposto de que a variação

linguística sempre esteve presente na formação da nossa língua, pode-se

afirmar que a língua, desde sua estruturação até os dias atuais, vem sofrendo

transformações à medida que os falantes e gramáticos sentem a necessidade

de criar novos vocábulos e outras representações estilísticas. A variação da

língua é a maneira pela qual ela se diferencia e é manifestada em seus

diversos contextos, geográfico, histórico e sociocultural. Existem, portanto,

variedades da língua a serem consideradas e aceitas pelas instituições, são

elas: as diferenças fonéticas, a forma de pronunciar os sons da língua;

diferenças sintáticas, a maneira como se estruturam as orações e frases;

diferenças lexicais, palavras que existem em um determinado lugar e em outro

não; diferenças semânticas, significados diferentes para a mesma palavra; e

diferenças no uso da língua, maneiras de falar de acordo com a pessoa que se

fala e circunstância. Nos Parâmetros Curriculares Nacionais, 1998, é possível

encontrar por escrito uma homologação da realidade linguística do Brasil

movida pela aceitação da pluralidade cultural:

A variação é constitutiva das línguas humanas, ocorrendo em todos os níveis. Ela sempre existiu e sempre existirá, independentemente de qualquer ação normativa. Assim, quando se fala em “Língua Portuguesa” está se falando de uma unidade que se constitui de muitas variedades. [...] A imagem

1CANCLINI, Nestor García. Culturas Híbridas.

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de uma língua única, mais próxima da modalidade escrita da linguagem, subjacente às prescrições normativas da gramática escolar, dos manuais e mesmo dos programas de difusão da mídia sobre “o que se deve e o que se não deve falar”, não se sustenta na análise empírica dos usos da língua (BAGNO, 2013, p.35).

É preciso que a teoria de fato se concretize dentro da prática diária das

instituições escolares, um local de grande importância para a formação dos

cidadãos e na construção de ideias e de conhecimento, devendo ser este um

local acolhedor, inclusivo e preparado para apresentar a riqueza e a

diversidade cultural do país aos seus alunos. Segundo Marcos Bagno, Evanildo

Bechara e Celso Pedro Luft, a escola deve ensinar a norma culta e deve

apresentar também as variedades da língua e diferentes gêneros textuais,

estimulando a leitura e a escrita, porém ainda estamos caminhando e aos

poucos tentando modificar a prática ainda resistente que impõe a gramática

artificial como sendo o centro.

Ler e escrever- é isso que importa. Ler e escrever textos variados, de todos os tipos e de todos os gêneros que circulam na sociedade. Somente assim a pessoa vai estar minimamente habilitada a se mover em meio ao universo letrado que é a sociedade contemporânea, que exige de nós capacidades de leitura e escrita cada vez mais variadas, que se transformam e se complexificam mais a cada dia (BAGNO, 1999, p. 86). A boa comunicação verbal nada tem a ver com a memorização de regras de linguagem nem com a disciplina escolar que trata dessas regras, e que geralmente, em nossas escolas, toma o lugar do que deveriam ser as aulas de Português: leitura, comentário, análise e interpretação de bons textos, e tentativa constante de produzir, pessoalmente, textos bons, --- enfim, vivência criativa com o idioma (LUFT, 2008, p.19).

Mais valiam aos alunos, para aquisição dos recursos idiomáticos que lhes permitissem desenvolver e aperfeiçoar as formas de expressão mais elevadas, o convívio com os textos escritos e o contacto com as pessoas que, falando ou escrevendo, manejavam cabalmente o idioma, do que a lição da gramática (...) (BECHARA, 1995, p.35).

A língua escrita é conservadora, as regras são impostas com base na

gramática artificial, expressão utilizada por Celso Pedro Luft, propagada nas

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escolas. A escrita constitui-se de maneira mais consistente e duradoura, as

mudanças acontecem, porém não com a mesma frequência da língua falada.

Ela possui o encargo de registrar as ideias, os conceitos, os saberes de forma

geral e, embora tenha se manifestado depois da fala, a escrita é a forma que

possui maior prestígio, pelo seu poder de documentar e registrar. Já a língua

falada é livre e dá ao falante a possibilidade de criar, de ser espontâneo, pois

não é dependente das regras gramaticais. “O talento de bem falar e escrever

tem a ver com a gramática. Mas com a gramática natural, o sistema de regras

que os falantes internalizam ouvindo e falando” (LUFT, 2008, p. 19). Durante a

fala, o indivíduo se utiliza de entonação, pausas, além da linguagem não verbal

bastante característica dessa modalidade, como os gestos e expressões do

rosto. É na língua falada que mais são identificadas as variações regionais,

social, estilística e etária.

O preconceito da língua é um problema considerado perigoso por ser

muitas vezes imperceptível. A diversidade do “português brasileiro” está sendo

desprezado e considerado menor por alguns grupos da sociedade que

apontam a norma culta como uma modalidade que consiga atender à

necessidade linguística dos falantes dentro do ambiente escolar. É preciso

mencionar que a educação no Brasil não é igualitária, as oportunidades de

aprendizagem não são as mesmas, ocasionando mais desigualdades e a

exclusão dos falantes das variedades classificadas como inferiores, os pobres,

os moradores das periferias e das zonas rurais e analfabetos.

A variação linguística está presente em todos os cantos, toda língua

possui sua própria característica de acordo com a necessidade de cada

“comunidade linguística” e por isso não é falada do mesmo jeito em todos os

lugares. No ambiente escolar, ainda existe a imposição de ensinar ao aluno

que ele fale da mesma maneira que escreve, como se fosse uma fórmula

exclusiva e correta de falar a Língua Portuguesa. Muitos livros didáticos e

gramáticas depreciam as variações da língua falada, contemplam a língua

escrita e tentam uniformizar a maneira com que os alunos devem se manifestar

linguisticamente.

Todas as variedades da língua são valores positivos. Não será negando-as, perseguindo-as, humilhando quem as usa, que se fará um trabalho produtivo no ensino. Nem se mudarão em

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nada esses usos de níveis culturalmente inferiores, como alguns equivocadamente pensam. Cada falante fala como sabe e consegue falar, não como ele ou outros desejariam que falasse (LUFT, 2008, p. 69).

Magda Soares, em seu livro Linguagem e Escola uma perspectiva social

(2008), fala sobre a ideia errônea de alguns sociólogos e psicólogos que

criaram o conceito de deficiência linguística, a ideia de que exista língua e

variações linguísticas superiores as outras, contribuindo para a discriminação

das diferentes culturas.

O estudo das línguas de diferentes culturas deixa claro, da mesma forma, que não há línguas mais complexas ou mais simples, mais lógicas ou menos lógicas: todas elas são adequadas às necessidades e características da cultura a que servem, e igualmente válidas como instrumentos de comunicação social (SOARES, 2008, p.39).

Para os especialistas na área da linguagem, não existe a ideia de

deficiência na gramática natural dos falantes, apenas diferenças. Celso Pedro

Luft dialoga com o pensamento de Magda Soares quando diz que:

Não pode haver deficiência na teoria natural de um falante --- estou cansado de repetir: ou ela é integral ou não funciona. Deficiências existem, sim, nas teorias artificiais, dos gramáticos e linguistas, na sua tarefa de dar conta da competência dos falantes nativos. Não existe até hoje (e não é preciso ser profeta para dizer que não haverá jamais) uma teoria explícita COMPLETA, reprodução integral da teoria implícita dos falantes (LUFT, 2008, p.85).

A língua, em suas diferentes possibilidades, é dinâmica, por isso sofre

transformações assim como o ser humano que encontrou na fala e na escrita

uma forma de se expressar e se comunicar com o seu semelhante. Apesar de

identificarmos a renovação e evolução contínua da língua, é possível constatar

que, em uma era contemporânea e globalizada, há dificuldades de aceitação

dos múltiplos falares constatando, assim, muitas vezes a presença do

preconceito e exclusão social.

O objetivo desta abordagem inicial, relacionada aos usos da língua, é o

de afirmar que as obras ficcionais de Lima Barreto são precursoras, também no

que diz respeito à tematização de várias questões, dentre elas a linguagem que

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ainda hoje se discute em termos de uso da língua Portuguesa. Mas outra

preocupação importante se impôs para o desenvolvimento dessa parte do

texto: a intenção de mostrar, mais adiante, através da interpretação do

romance Clara dos Anjos, como o caráter inovador limabarretiano dificultou sua

carreira de romancista. O destaque dado à problemática da linguagem

possibilitará um melhor entendimento sobre a profundidade dos preconceitos

sofridos pela obra ficcional de Lima Barreto em sua época. Entende-se,

portanto, preconceito da Língua, como foi mencionado anteriormente, não é um

problema só atual, ele sempre existiu, apenas foi se transformando conforme a

sociedade se modificava. Na literatura Brasileira, alguns autores, como Lima

Barreto, pré-modernista, sofreram preconceito por conta da sua escrita

coloquial e fora dos padrões da época.

Já no modernismo, o escritor Mário de Andrade, estudioso do folclore e

da Língua Portuguesa, criador de obras memoráveis, dentre elas, Macunaíma

o Herói sem nenhum caráter, participou ativamente desse movimento

buscando uma narrativa inovadora, na qual a linguagem original e diferente dos

padrões rígidos se tornou uma das principais características de sua obra. Na

dissertação “Língua brasileira”: Identidade, discurso e contextualização literária,

Áurea Maria Bezerra Machado (2013) diz que:

Mario de Andrade sempre demonstrou interesse em estudar a questão linguística, melhor dizendo, o português do Brasil, em sua rica oralidade, no cotidiano popular das várias regiões. Enveredando pelo universo das letras nacionais, preocupou-se, então, com a língua em que se fazia literatura no país, passando a refletir sobre o processo de nacionalização linguístico brasileiro (BEZERRA, 2013, p. 68).

A obra Macunaíma é a “prova que é possível se expressar, de maneira

bem clara e original, através dos ditos populares, que podem ser chamados,

com bastante propriedade, de “discurso do povo” (BEZERRA, 2013, p. 73).

Carla Rosane, em Macunaíma: Um experimento da língua brasileira, diz que:

“O livro é um exercício dos ideais desvairistas, por ignorar pontuações, criar

lendas e mitos, desbancar o herói de seu pedestal, relativizar valores sociais e

reproduzir a expressão da língua brasileira (no lugar da portuguesa europeia)”

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(2003,p.65/66). Observe o trecho retirado da obra Macunaíma, capítulo XI, “A

velha Ceiuci”:

Mas estava muito contrariado por ter perdido a aposta e se lembrou de fazer uma pescaria. Porém, não podia pescar nem de flecha enem com timbó nem cunambi nem tigui nem macerá nem no pari nem com linha cassuá nem itapuã em de jiqui nem de grozera nem de jererê guê tresmalho aparador gungá cambango arinque batebate gradeira caicaii penca anzol de vara covo, todos esses objetos armadilhas e venenos porque não possuía nada disso não. Fez um anzol com cera de mandaguari mas bagre mordia, levava o anzol e tudo (ANDRADE, 1992, p. 108).

Lima Barreto, assim como Mário de Andrade, escreveu com o intuito de

ser lido, de surpreender e de inovar através da linguagem. Segundo Luft:

Ninguém escreve para não ser lido; não considero elogio a um autor chamá-lo de hermético. Não confundir isto com estilo, criatividade, trabalho no texto. Há visões únicas, visões pessoais, paixões, amor e ódio, êxtase e desespero, que exigem expressão verbal própria, original. Para isso, é necessário talento (LUFT, 2008, p.19).

Em específico, Lima Barreto recebeu uma crítica negativa, foi

considerado desleixado, pois, ao escrever seus textos, muitas vezes não

utilizava a pontuação de acordo com a tradição castiça, rígida, da Língua

Portuguesa, o que coincide com os pressupostos das vanguardas europeias e

com a busca de liberdade dos jovens modernistas que, logo após a morte de

Lima Barreto, venceriam a batalha contra o preciosismo parnasiano. Segundo

Gilberto Mendonça Teles, o futurismo foi um dos primeiros movimentos da

vanguarda da Europa a influenciar e inspirar os artistas para a necessidade de

mudança da cultura brasileira.

O futurismo foi, em linhas gerais, um movimento estético mais de manifestos que de obras. Assim, mais pelos manifestos do que pelas obras o futurismo exaltou a vida moderna, procurou estabelecer o culto da máquina e da velocidade, pregando ao mesmo tempo a destruição do passado e dos meios tradicionais da expressão literária, no caso, a sintaxe: usando as palavras em liberdade, rompia a cadeia sintática e as relações passavam a se fazer através da analogia (TELES, 1972, p.61 apud FEIRE, 2005, p. 102).

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Reitera-se, portanto que o autor de Triste fim de Policarpo Quaresma é

um corajoso precursor e pode ser considerado um artista da língua.

O escritor, o bom escritor, domina seu instrumento de trabalho, usa-o como respira --- com desembaraço, naturalidade e segurança. Quando luta em busca de um texto melhor, cada vez mais perfeito e mais original, é porque persegue a palavra exata e mais expressiva, não por se debater com regras que eventualmente tenha aprendido na escola e esqueceu (LUFT, 2008, p.19).

A seguir, será possível observar mais efetivamente as características

peculiares das narrativas ficcionais de Lima Barreto, relacionadas aos

preconceitos, apontadas na obra Clara dos Anjos. Perceber-se-á como a

linguagem e as temáticas apresentadas em sua obra e sua dedicação

possibilitaram um novo direcionamento para a literatura, ao denunciarem as

descriminações e os problemas vividos pelos pobres e desprivilegiados,

mostrando a vida cotidiana do subúrbio carioca. Delimita-se, neste capítulo, o

olhar social do escritor por tratar de questões voltadas para a sociedade

através de uma linguagem inovadora que era utilizada de forma consciente

pelo escritor e que incomodava a elite.

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CAPÍTULO II

O ROMANCE SUBURBANO DE LIMA BARRETO E A

SUBALTERNIDADE EM CLARA DOS ANJOS

O romance de Lima Barreto será analisado sob a perspectiva social e

seus desmembramentos. Neste capítulo, serão abordadas questões

relacionadas ao preconceito e à linguagem mostrando, com base na análise

literária, como Clara dos Anjos é apresentada e descrita pelo narrador como

catalizadora do sofrimento das mulheres de sua época. As mazelas sociais, os

sofrimentos das mulheres subalternas são, de certa maneira, transformados

em estratégias textuais. O romancista, nesta obra, descreve os personagens e

o subúrbio do Rio de Janeiro com muitos detalhes e, devido a isso, amplia as

possibilidades de interpretação e reflexão sobre questões que se evitavam

abordar na virada do século XIX para o XX e no início deste último.

Há escritores em que o leitor vê atrás deles uma biblioteca, uma sapientia, uma sofisticação intelectual, uma aflição estética, antes de ver os personagens. E há escritores atrás, e mesmo ao lado, dos quais logo se vê, de pronto, um povo - com suas caras, roupas, cheiros, as maneiras todas de ser. Assim era e é Lima Barreto (ANTÔNIO,1995, p.10).

2.1 O COTIDIANO DO SUBÚRBIO COMO ESTRATÉGIA TEXTUAL EM

CLARA DOS ANJOS

Percebe-se, em Clara dos Anjos, obra concluída em 1922 e publicada

somente em 1948, que Lima Barreto se apropria de forma peculiar da

problemática social como marca principal de sua obra, havendo temas voltados

diretamente para questões relacionadas à exclusão social, racial e de gênero.

Lima Barreto é um escritor cuja fala e ideias originam-se no conhecimento dos

problemas dos oprimidos e humilhados.

Clara dos Anjos é um romance urbano, mais propriamente, suburbano.

Como afirma Antônio Cândido, em um romance,

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O enredo existe através dos personagens; as personagens vivem do enredo. Enredo e personagem exprimem, ligados, os intuitos do romance, a visão da vida que decorre dele, os significados e valores que o animam” (CANDIDO, 1987. p. 534).

Lima Barreto consegue prender a atenção dos leitores pelo viés da

crítica, da ironia, através da criação de narrativas que mostram o pensamento

preconceituoso da sociedade brasileira. E o objeto de tal preconceito (social) é

o subúrbio. Não apenas o subúrbio em si, mas o que ele representa. Lima

Barreto se apropria dos acontecimentos e das peculiaridades dos subúrbios

para criar um tipo de romance precursor. A apresentação das mazelas funciona

como forte elemento estratégico romanesco. Aparentemente se trata de um

romance urbano, por ter seu enredo instalado em um espaço da cidade. É

importante refletir sobre o fato de que como par antagônico de cidade,

costuma-se ter o meio rural. Mas no caso das narrativas limabarretianas nem

se tem um romance rural, nem urbano, pois, de acordo com os narradores e

mesmo com o cronista Lima Barreto, nega-se ao espaço físico ocupado pelos

personagens de Lima Barreto as benesses da cidade. Se não se deixa de estar

na cidade, o subúrbio, entretanto não vive sob a lógica urbana, propriamente

dita. Assim, o romance limabarretiano é, não um romance urbano, mas

suburbano e Clara dos Anjos é um bom exemplo disso. Para o autor o subúrbio

era um espaço habitado pela população marginalizada e ignorada. “...Lima

Barreto nos mergulha nos subúrbios pobres e humildes do Rio de Janeiro dos

primeiros anos do século XX. O retrato do meio suburbano no romance

póstumo encaixa perfeitamente os personagens menores que circundam a

heroína patética...” (OAKLEY, 2011, p. 204/205).

As autoridades públicas do início do século XX eram conservadoras e

partilhavam das mesmas ideias da elite. Lima, através de seus textos literários

e de uma linguagem mais popular, denuncia as humilhações impostas à mulher

mulata, pobre e moradora do subúrbio. Escritor e também morador do

subúrbio, Lima Barreto sofreu na pele o descaso por ser suburbano e negro,

devido a isso, pretendia, com suas obras, aguçar no seu público leitor, uma

reflexão e um comportamento contra estes valores preconceituosos. Assim

como Lima Barreto, é importante citar, aqui, o escritor e professor de literatura

Joel Rufino dos Santos e a escritora Carolina Maria de Jesus que são figuras

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importantes para a história brasileira por tratarem de questões que, para a

sociedade, era pano de fundo, sendo postergadas por muito tempo. A crítica

indiana Gayatri Chakravorty Spivak, ao escrever sobre o subalterno dando

ênfase à questão da mulher, mais especificamente, permite que se discuta que,

de certa forma, a mulher e o suburbano são subalternos. Lima Barreto,

portanto, não lutou sozinho e tem sido cada vez mais reconhecido e “vem

entrando para o cânone literário brasileiro” (FRAZÃO, 2013, p. 550). Lima

Barreto era um intelectual que trazia os seus inconformismos para a literatura

e, portanto, rompia com a tradição, buscando uma literatura militante e

diferenciada “que lhe permitisse travar diálogos no intuito de combater os

problemas sociais e culturais que percebia na cidade do Rio de Janeiro,

espelho naquele momento do país” (NORONHA, 2009, p.45).

Sérgio Buarque de Holanda, no prefácio da obra, edição de 1974, de

Clara dos Anjos, retrata o subúrbio como um lugar dos refugiados onde Lima

Barreto viveu e escolheu como cenário, um ambiente em que tinha o privilégio

de conhecer bem e onde os moradores compartilhavam dos mesmos

problemas e se ajudavam.

“O subúrbio”, diz, “é o refúgio dos infelizes. Os que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam a sua situação normal vão se aninhar lá; e todos os dias, bem cedo, lá descem à procura de amigos fiéis que os amparem, que lhes deem alguma coisa, para o sustento seu e dos filhos (HOLANDA, 1956, p.7).

A solidariedade suburbana, como se pode depreender do fragmento

citado, é um elemento que se distancia da individualidade própria dos espaços

mais privilegiados da cidade. Mas o vírus da cidade, como poderia afirmar o

cronista Lima Barreto, infesta também as periferias. A periferia imita o centro.

Isso é comum. O comportamento da família de Cassi Jones é um exemplo

disso. Dona Salustiana e suas filhas Catarina e Irene eram vaidosas e

ambiciosas. A mãe de Cassi é um exemplo de uma participante da sociedade

brasileira do início do século XX que se esmerava em ser uma senhora

elegante da elite e se achava superior aos seus “vizinhos” do subúrbio e as

irmãs de Cassi tinham grande desprezo por ele, por conta de sua conduta

moral e a falta de modos educados e ignorância do rapaz.

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Chico Buarque de Holanda compôs a canção “Gente Humilde”, em

parceria com Garoto e Vinícius de Morais, que retrata o olhar de quem vive na

cidade e percebe o subúrbio, as suas características, a sua gente, o seu modo

de viver e também a força do pobre que vive às margens e consegue seguir em

frente apesar dos descuidos e esquecimento do poder público.

Gente Humilde

Tem certos dias

Em que eu penso em minha gente

E sinto assim

Todo o meu peito se apertar

Porque parece

Que acontece de repente

Feito um desejo de eu viver

Sem me notar

Igual a como

Quando eu passo no subúrbio

Eu muito bem

Vindo de trem de algum lugar

E aí me dá

Como uma inveja dessa gente

Que vai em frente

Sem nem ter com quem contar

São casas simples

Com cadeiras na calçada

E na fachada

Escrito em cima que é um lar

Pela varanda

Flores tristes e baldias

Como a alegria

Que não tem onde encostar

E aí me dá uma tristeza

No meu peito

Feito um despeito

De eu não ter como lutar

E eu que não creio

Peço a Deus por minha gente

É gente humilde

Que vontade de chorar

É possível perceber características semelhantes entre a vida de Lima

Barreto e sua obra. O escritor, em Clara dos Anjos, retrata com muitos detalhes

o subúrbio carioca para onde precisou deslocar-se junto com sua família e

viveu grande parte de sua vida. Conheceu muito bem as ruas, as casas, os

problemas e moradores do lugar.

O subúrbio propriamente dito é uma longa faixa de terra que se alonga, desde o Rocha ou São Francisco Xavier, até Sapopemba, tendo para eixo a linha férrea da Central. Para os lados não se aprofunda muito, sobretudo quando encontra

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colinas e montanhas que tenham a sua expansão; mas, assim mesmo, o subúrbio continua invadindo, com as suas azinhagas e trilhos, charnecas e morrotes... Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças, por toda a parte onde se possa fincar quatro estacas de pau e uni-las por paredes duvidosas (BARRETO, 2005, p.68).

Lima andava pelas ruas do subúrbio com o seu olhar atento às

transformações com a criação dos bondes e trens. Diariamente, o escritor

embarcava na estação do Méier até a estação de Todos os Santos, para

chegar ao seu destino, a Secretaria da Guerra, seu local de trabalho, e ficava a

observar os espaços geográficos do subúrbio.

Essa limitação geográfica é a primeira marca social em Lima Barreto. Não tendo escrito senão sobre pessoas e coisas de uma parte de sua cidade, pode retratá-las contra um fundo claro e preciso. Esse pequeno espaço físico, olhado por ele, mais parecia uma boca de poço, abertura para uma funda trama de relações sociais (SANTOS, 2004, p.106).

Os espaços periféricos ganharam destaque em sua obra, dando ênfase

ao preconceito social, à exclusão dos pobres. Pode-se se dizer que, na obra de

Lima Barreto, a vida está constantemente a misturar-se com a arte. Joel Rufino

destaca o movimento dialético da vida e obra do autor.

O movimento real vida-obra nunca é mecânico, como acreditam os biografistas – até mesmo aqueles que prezam o autor de Policarpo Quaresma. É dialético: sofrimentos do escritor o aproximaram da corrente renovadora das ideias da sua época – que em literatura era antiestetizante – o que lhe permitiu enxergar a dimensão social de certos fenômenos, o que, pôr sua vez, o levou à criação literária de situações, personagens e ambientes típicos. O final deste processo foi o escritor fazer-se personagem de si mesmo, se retratando quando retratava a classe média pobre do primeiro subúrbio carioca. Essa auto retratação foi encarada, frequentemente, como deficiência, intemperança, imaturidade etc., o que não se sustenta (SANTOS, 2004, p. 107).

Lima Barreto também observava o cotidiano da população suburbana e

criticava os problemas que os moradores do subúrbio sofriam: “Por esse

intrincado labirinto de ruas e bibocas é que vive uma grande parte da

população da cidade, a cuja existência o governo fecha os olhos, embora lhe

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cobre atrozes impostos, empregados em obras inúteis e suntuárias noutros

pontos do Rio de Janeiro” (BARRETO, 1974, p. 69). Não escapava aos olhos

do escritor a desigualdade entre o espaço do subúrbio e da cidade do Rio de

Janeiro, entre a elite e os pobres, o luxo e o lixo, os holofotes em direção ao

centro da cidade e a invisibilidade e exclusão daquela gente humilde do

subúrbio. A elite carioca “tentava esconder, qual sujeira, essa população

embaixo do tapete, isto é, empurrava-a para os lugares mais recônditos da

cidade, com a justificativa da necessidade de modernizar a cidade”. (LIMA,

2012, p.1)

O escritor ousa trazer para a ficção elementos comuns, do dia-a-dia. Totalmente despido de qualquer subterfúgio, quer seja com a linguagem rebuscada ou quanto à posição social. Trouxe para a obra: pessoas, fatos e acontecimentos, que antes dignos de uma nota apenas nas páginas policiais, podendo resumir em uma única palavra: o subúrbio (FREIRE, 2005, p.99).

No romance Clara dos Anjos, o narrador mostra através do olhar do

personagem Cassi Jones, o sentimento de pertencimento que o personagem

sentia em seu lócus, o subúrbio, e a estranheza que sentia ao estar no centro

da cidade. Cassi se sentia importante e influente no subúrbio, entretanto na

cidade, ele era só mais um, sentia-se perdido e inferior.

.

No subúrbio, tinha os seus ódios e os seus amores; no subúrbio tinha os seus companheiros, e a sua fama de violeiro percorria todo ele, e, em qualquer parte, era apontado; no subúrbio, enfim, ele tinha sua personalidade, era Cassi Jones de Azevedo; mas ali, sobretudo do Campo de Sant’Ana para baixo, o que era ele? Não era nada. Onde acabavam os trilhos da Central, acabava a sua fama e o seu valimento, a sua fanfarronice evaporava-se, e representava-se a si mesmo como esmagado por aqueles “caras” todos, que nem olhavam (BARRETO, 2005, p. 112/113).

Ao se deparar com uma realidade social diferente da sua, outras regras,

condutas, linguagem, gostos, vestimenta, Cassi percebe sua subalternidade

por não se enquadrar nos costumes da cidade.

Na “cidade”, como se diz, ele percebia toda a sua inferioridade de inteligência, de educação; a sua rusticidade, diante

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daqueles rapazes a conversar sobre coisas de que ele não entendia e a trocar pilhérias; em face da sofreguião com que liam o placards dos jornais, tratando de assuntos cuja importância ele não avaliava, Cassi vexava-se de não suportar a leitura; comparando o desembaraço com que os fregueses pediam bebidas variadas e esquisitas, lembrava-se que nem mesmo o nome delas sabia pronunciar; olhando aquelas senhoras e moças que lhe pareciam rainhas e princesas, tal e qual o bárbaro que viu, no Senado de Roma, só reis, sentia-se humilde; enfim, todo aquele conjunto de coisas finas, atitudes apuradas, de hábitos de polidez e urbanidade, de fraqueza no gastar, reduziam-lhe a personalidade de medíocre urbano suburbano, de vagabundo doméstico, a quase coisa alguma (BARRETO, 2005, p. 113).

Pode-se observar que os problemas do subúrbio apresentados no

século XIX continuam sendo bem parecidos com os atuais, e os suburbanos,

como costumava dizer o autor, continuam sendo alvo do descaso.

A rua em que estava situada a sua casa desenvolvia-se no plano e, quando chovia, encharcava e ficava que nem um pântano; entretanto, era povoada e se fazia caminho obrigado das margens da Central para a longínqua e habitada freguesia de Inhaúma. Carroções, carros, autocaminhões que, quase diariamente, andam por aquelas bandas a suprir os retalhistas de gêneros que os atacadistas lhes fornecem, percorriam-na do começo ao fim, indicando que tal via pública devia merecer mais atenção da edilidade (BARRETO, 1974, p. 11).

Joel Rufino, em sua obra Épuras do social, mostra o pobre, também,

pelo viés da literatura, que ele caracteriza como uma área capaz de comunicar

sobre afeições e desejos e não apenas estatísticas socioeconômicas.

Pobre é uma categoria fluida mas real – é um estado, uma maneira de ser, instituída no passado pela vadiagem e vagabundagem, produtos da desterritorialização primitiva ( e sua variante, a despossessão) e, hoje, pela desclassificação. Um proletário (ou semiproletário) vendedor de mão-de-obra no mercado de trocas capitalistas pode ser pobre por qualquer dos indicativos sociais à disposição, mas um pobre não é necessariamente um proletário (ou mesmo semiproletário). Frequentemente em nosso país ele é o que se vira, uma mão de obra informal, um trabalhador livre da economia não-capitalista que, desde a liquidação do escravismo se desenvolveu ao lado da outra. Pobre é o proletário mais uma certa afeição e um certo desejo – o desejo sobrante -, é aquele a quem falta vocação para o trabalho continuado e espírito de poupança, requisitos da condição de proletário do capital (sic),

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sem falar que lhe falta, absolutamente, a habilidade de explorar o trabalho de outrem (iniciativa privada) (SANTOS, 2004, p. 72/73).

2.2 SUBALTERNIDADE: A MULHER SUBURBANA

Clara dos Anjos, a protagonista do romance, é uma jovem por volta de

seus dezessete anos, proveniente de uma família pobre e moradora do

subúrbio que “era tratada pelos pais com muito desvelo, recato e carinho, e, a

não ser com a mãe ou pai, só saía com Dona Margarida, uma viúva muito

séria, que morava nas vizinhanças e ensinava Clara bordados e costuras”

(BARRETO, 2005, p. 18). Pode-se perceber que, neste fragmento inicial, o

narrador apresenta Clara para o leitor como uma menina frágil e ingênua, dócil,

prendada e obediente aos pais. O recato - tido por muitos como ultrapassado

também é um elemento tradicional do suburbano que o diferenciava da cidade

no início do século XX.

A jovem era a segunda filha, a única sobrevivente, da dona de casa

Engrácia, uma mulher católica, caseira e sedentária e do carteiro Joaquim dos

Anjos, um homem de boa fé, também caseiro, acreditava-se músico, gostava

de tocar flauta, cantar modinhas e adorava passar as tardes de domingo

jogando solo com seu compadre Marramaque e seu amigo Eduardo Lafões. É

possível perceber a aproximação dos moradores do subúrbio, as pessoas se

conhecem e se reconhecem e frequentam uns as casas dos outros.

Criada ao som das modinhas melancólicas e superprotegida pelos pais,

Clara era uma menina romântica que sonhava, timidamente, com o dia do seu

casamento. A idealização romântica faz da mulher uma sonhadora.

Em uma conversa na casa de Clara, Lafões pede a autorização de

Joaquim para levar em sua casa “um mestre do violão e da modinha” (2005,

p.22) no dia em que Clara aniversariasse, porém, quando o padrinho de Clara

descobre que o violeiro era Cassi Jones, fica enfurecido, pois já conhecia a

fama do rapaz através dos jornais e “viu logo os perigos que a presença do

profissional da desonra das famílias podia trazer à paz e ao sossego que

reinavam na casa de Joaquim dos Anjos” (2005, p.41). Marramaque era poeta,

convivia com escritores, literatos e por isso tinha o hábito da leitura e um

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conhecimento mais atento e crítico. Observe como o narrador descreve o

padrinho de Clara:

Na sua vida, tão agitada e tão variada, ele sempre observou a atmosfera da corrupção que cerca as raparigas do nascimento e da cor de sua afilhada; e também o mau conceito em que se têm as virtudes de mulher. A priori, estão condenadas; e tudo e todos pareciam condenar os seus esforços e os dos seus para elevar a sua condição moral e social (BARRETO, 2005, p.42).

O autor expôs, nesse fragmento, aspectos da discriminação social, racial

e de gênero sofridos por mulheres, devido ao pensamento conservador da

época, no período ainda do fim da escravidão, através de um personagem que

também é escritor e demonstra uma consciência mais criteriosa. Pode-se

refletir: Se uma mulher da raça branca sofre preconceito somente por ser

mulher, o que pensar de uma mulher mulata e pobre, moradora do subúrbio,

que vive em uma sociedade apegada às tradições e cercada por estigmas?

Para aquela sociedade, toda mulher negra e pobre tinha o destino

determinado: ser seduzida, enganada e desprezada.

Gayatri Chakravorty Spivak, estudiosa indiana, nascida em 1942, mais

conhecida por sua obra Pode o subalterno falar?, dialoga com temáticas

semelhantes às de Lima Barreto, pois aborda questões e reflexões sobre o

sujeito subalterno, mais especificamente com um olhar para a mulher indiana.

Para Spivak, o sujeito subalterno é aquele que pertence “às camadas mais

baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos

mercados da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem

membros plenos no estrato social dominante” (SPIVAK, 2010, p.13 e 14).

A classe subalterna, também denominada de “povo” na tradução da obra

de Spivak, era criada para continuar na mesma classe, excluídos pela elite,

sem a oportunidade de crescimento intelectual, cultural e social, e sem ter voz

naquela sociedade de opressão. Será Clara dos Anjos uma mulher subalterna?

Para a mulher, a situação se complicava ainda mais: se a fala do subalterno é

ofuscada, “a mulher subalterna encontra-se em uma posição ainda mais

periférica pelos problemas subjacentes às questões de gênero” (SPIVAK,

p.17). No período colonial, o cenário era dominado pelo gênero masculino,

portanto o poder estava nas mãos dos homens e as mulheres não podiam se

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expressar e posicionar-se diante de seus ideais, sendo sempre subordinadas a

eles e as suas decisões. Por muito tempo, a mulher teve, na sociedade, o

papel de subalterna, deveria ser dona de casa, religiosa, submissa e “muda”,

enquanto o sexo masculino era considerado a parcela dos intelectuais, donos

do poder e da fala.

Assim como Lima Barreto faz em Clara dos Anjos, obra analisada neste

trabalho, Spivak também destaca o lugar periférico reservado à mulher pobre e

negra que, assim como Clara, carrega consigo todas as questões e

estereótipos que se referem à condição de marginalidade e subalternidade

feminina: a questão do gênero, da cor e da pobreza. Refletindo sobre o título

da obra O subalterno pode falar? percebe-se que, nesse contexto, o silêncio da

mulher não era uma opção e sim uma imposição sociocultural.

A única filha do carteiro, Clara, fora criada com o recato e os mimos que, na sua condição, talvez lhe fossem prejudiciais. Puxava a ambos os pais. O carteiro era pardo-claro, mas com o cabelo ruim, como diz; a mulher, porém, apesar de mais escura, tinha o cabelo liso. Na tez, a filha tirava ao pai; e no cabelo, à mãe (BARRETO, 2005, p. 42).

Quando o narrador de Lima Barreto descreve as características físicas

do pai de Clara dizendo que ele é “pardo-claro, mas com o cabelo ruim”

destaca-se o sentido da palavra “mas” nesta oração. Neste caso, “mas”, como

se sabe, é uma conjunção coordenativa de adversidade. Esta oposição

provoca no leitor a ideia de que não é comum uma pessoa que é parda-clara,

ter o cabelo ruim, pois essa característica é comum à raça negra. Para além do

sentido semântico da palavra isolada, pensando no contexto do final do século

XIX e início do século XX, o autor, ao utilizar a conjunção “mas”, apresenta a

ideia de que ser pardo-claro, naquele período, era melhor do que ter um cabelo

ruim, por conta do preconceito racial da época, mostrando a superioridade do

branco em relação ao mulato e ao negro. Um outro exemplo que podemos dar

é quando o autor mostra, ao apresentar as características físicas da mãe de

Clara, que “apesar de mais escura, tinha o cabelo liso”. Neste caso, o autor

utiliza a palavra “mais com i” que nesta oração tem a função de advérbio de

intensidade, para enfatizar e permitir que o leitor perceba que a mulher que é

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muito escura, o autor quis dizer negra, sendo também ex-escrava. Não era

comum negros terem cabelos lisos. Essa era uma característica da raça

branca. Clara é a mistura das raças, mulata e de cabelo liso. Por isso, acaba

também sofrendo preconceito por ser filha de uma negra e pobre. Esse era o

estigma e o destino da figura feminina apresentada por Lima Barreto.

Um aspecto importante a ser observado está na dessemelhança entre a

escolha do título da obra e a personagem principal, visto que “Clara”, de fato

não é clara, branca, mas mulata. Já, “Anjos” se deve à compreensão de

pureza, que também perde seu sentido ao longo do enredo, quando a

personagem é seduzida por Cassi. Percebe-se, através dessas contradições, a

ironia construída pelo autor com o propósito de provocar e despertar o leitor

para a reflexão. “A contradição do nome também serve para reafirmar a crítica

à fatalidade sócio-racial na obra. Dessa forma, o nome Clara dos Anjos e as

referências evocadas assumem o papel de polo contraditório da denúncia”

(FURTADO, 2003, p.82). Outra contradição se encontra na presença dos

personagens Cassi e Dona Salustiana, mãe e filho. Pode-se perceber que a

maneira de ser desses personagens mostra que o subúrbio não é um espaço

onde moram somente pessoas que se ajudam e se respeitam, também existem

pessoas preconceituosas e arrogantes. Enquanto Cassi gostava de morar no

subúrbio, porque lá conseguia realizar suas falcatruas, o mesmo se vestia de

acordo com a moda, porém não se sentia bem quando tinha que andar pelas

ruas da cidade, pois ninguém o conhecia e sentia-se inferior. Sua mãe,

entretanto, que tinha um ar de superioridade, preferia morar na cidade. Porque

o vilão do romance era um homem branco? Seria Lima Barreto

preconceituoso? São questões a serem refletidas ao longo da análise.

Clara dos Anjos é um romance pautado na denúncia. O autor, através da

história dos personagens, apresenta críticas a uma sociedade racista, restritiva

e excludente, e a uma cultura que determina as pessoas pela cor e pela classe

social. É possível muitas vezes confundir a realidade com a ficção, pois,

conhecendo a biografia de Lima Barreto, sabe-se que o autor sofreu com a

discriminação. Destaca-se que o Barreto “fez sua opção pelos pobres,

oprimidos, negros, mulatos e afro-descendentes, denunciando a sociedade

hipócrita, a corrupção, o literato empoado da belle époque e aproveitadores de

mulatas ingênuas” (SOUZA, 2008, p. 2).

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Clara era uma menina sonhadora. “Habituada às musicatas do pai e dos

amigos, crescera cheia de vapores de modinhas e enfumaçara a sua pequena

alma de rapariga pobre e de cor com os dengues e o simplório sentimentalismo

amoroso dos descantes e cantarolas populares” (2005, p.42). O pouco que

Clara pôde ouvir da conversa do seu pai com os amigos, fez a jovem suspirar

como se estivesse ouvindo poesias, pois a ingenuidade da menina não a

deixava perceber o perigo.

Com esse estado de espírito, o seu anseio era que o pai consentisse a visita do famoso violeiro, cuja má fama ela não conhecia nem suspeitava, devido ao cerco desvelado que a mãe lhe punha à vida; entretanto, supunha que ele tirava do violão sons mágicos e cantava coisas celestiais (BARRETO, 2005, p. 43).

2.3 CULTURA POPULAR E PRECONCEITO: A LINGUAGEM

LIMABARRETIANA

Com o consentimento dos pais de Clara e, principalmente, por conta da

curiosidade de Joaquim, que gostava de música, lá esperavam Cassi Jones, o

violeiro sedutor, dentro da casa do carteiro. Observe a descrição minuciosa que

o autor faz de Cassi:

“um rapaz de pouco menos de trinta anos, branco, sardento, insignificante, de rosto e de corpo; e conquanto fosse conhecido como consumado “modinhoso”, além de o ser também por outras façanhas verdadeiramente ignóbeis, não tinha as melenas do virtuose do violão, nem outro qualquer traço de capadócio. Vestia-se seriamente, segundo as modas da rua do Ouvidor; mas pelo apuro forçado e o degagé suburbanos, as suas roupas chamavam a atenção dos outros, que teimavam em descobrir aquele aperfeiçoadíssimo “Brandão”, das margens da Central, que lhe talhava as roupas. A única pelintragem, adequada ao seu mister, que apresentava, consistia em trazer o cabelo ensopado de óleo e repartido no alto da cabeça, dividido muito exatamente ao meio – a famosa “pastinha”. Não usava topete, nem bigode. O calçado era conforme a moda, mas com os aperfeiçoamentos exigidos por um elegante dos subúrbios, que encanta e seduz as damas com o seu irresistível violão (BARRETO, 2005, p. 23).

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O narrador não se limita a descrever as características de Cassi apenas

fisicamente. É possível perceber que o mesmo apresenta o personagem com

palavras ríspidas e coloquiais, com conotações negativas. Descreve um

personagem branco sem conteúdo, que pensa apenas em ter o seu

momentâneo prazer.

Nessa passagem, impõe-se a questão do uso que o narrador

limabarretiano faz de termos populares, como pelintragem. Tal utilização da

linguagem é contrária aos usos parnasianos, beletristas da época de Lima

Barreto e, mais importante ainda, antecipa a escrita modernista, ainda que

timidamente. Percebe-se, também, nesse mesmo trecho, o uso de um

estrangeirismo, “degagé”. Mas tal estrangeirismo era de uso comum entre os

literatos, funcionando como fator distintivo, por tratar-se do conhecimento de

uma língua estrangeira. O erro linguístico, no caso, é entendido pelas elites da

linguagem como fator benéfico, quando, em realidade, pode funcionar como

fator social opressivo. Esse costume é corriqueiro nos meios acadêmicos, em

que pedantismo, muitas vezes funciona, ainda, como cartão de visitas.

Nesse mesmo fragmento, apresenta-se um elemento que aponta para

outra forma de preconceito que não o relativo à linguagem, tratado no

parágrafo anterior. Trata-se do preconceito relativo à cultura popular. O violão

era considerado instrumento de “pelintras” sedutores como o personagem.

Cassi James. Para reforçar a presença desse preconceito, pode-se remeter a

outro personagem conhecido, da galeria de artistas populares de Lima Barreto,

Ricardo Coração dos Outros. Esse personagem, amigo inseparável do Major

Policarpo Quaresma, era professor de violão e modinheiro. “Um violão em casa

tão respeitável! Qual seria?” (BARRETO,1956, p. 7). Causava estranheza na

vizinhança a presença de Coração dos Outros na casa do respeitado Major. “É

preconceito supor-se que todo homem que toca violão é um desclassificado. A

modinha é a mais genuína expressão da poesia nacional e o violão é o

instrumento que ela pede” (BARRETO,1956, p. 8). O narrador ressalta mais

uma vez o preconceito que envolve a temática limabarretiana.

Cassi era “modinhoso” e praticava “ações ignóbeis”, embora não

apresentasse explicitamente traços de capadócio, de malandro, pois vestia-se

como os homens da elite, da rua do Ouvidor. Usava “pastinha”, penteava-se,

também, à moda, mas não conseguia ocultar sua origem suburbana. Era, em

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realidade, um “galã” suburbano, habitante das “margens da Central”. A visão

crítica do narrador em relação ao suburbano que imita a moda da rua do

Ouvidor é potente.

Acrescenta-se ao que se disse acima, que Cassi é apresentado como

um “pelintra”, um homem pobre que se acha superior e que se aproveita das

outras pessoas e oculta o fato de ser trapaceiro. O personagem se disfarça de

bom moço. O sedutor usa o violão, instrumento popular da época, para

conquistar as moças humildes. Para a elite, as pessoas que costumavam tocar

esse instrumento não eram bem vistas, o violão era sinônimo de malandragem

e de uma vida sem regras e de vícios. O autor se refere a Cassi muitas vezes

como violeiro e em nenhum momento como violonista, utilizando, assim, uma

expressão bem popular, fora dos padrões da Academia e pejorativa para se

referir ao personagem.

A escrita de Lima Barreto, como se disse anteriormente, foi considerada

como menor. Foi criticada por conta do estilo e de supostas imperfeições

gramaticais, portanto, considerada errada e de mau gosto, pois a forma de

prestígio usada pelos escritores da elite carioca era a norma culta.

José Veríssimo foi um dos críticos a se manifestar sobre a obra de Lima

Barreto, neste momento, por uma carta enviada ao escritor fazendo referência

ao livro Recordações do Escrivão Isaías Caminha, em 1910:

Sincera e cordialmente felicito pelo seu livro. Há nele o elemento principal para o fazer superior, talento. Tem muitas imperfeições de composição, de linguagem, de estilo, e outras mesmo, estou certo, será o primeiro a reconhecer-lhe, mas com todos os senões é um livro distinto, revelador, sem engano possível, de talento real (BARRETO, 1956, p. 204).

Nelson Werneck Sodré também faz sua crítica sobre o conjunto da obra

de Lima Barreto: “Numa obra desigual, pontilhada de graves defeitos, realizada

com deficiências insanáveis, descuidada na forma, por vezes desconexa, Lima

Barreto situou precisamente, no quadro em que era possível situar, os

contrastes de uma sociedade em fase de mudança” (1969, p. 462).

As obras de Lima Barreto não foram reconhecidas em vida por conta da

linguagem que utilizava em seus textos, o mesmo era considerado desleixado

pela crítica e pelos assuntos “menores” que abordava. Para Lima Barreto “o

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escrever só beneficia aquele que adapta sua obra escrita ao discurso daqueles

que estão no poder” (OKLEY, 2011, 121). Lima tinha consciência da sua

escolha, entretanto, apesar das consequências de não reconhecimento, o autor

foi fiel ao estilo da sua literatura militante utilizando a linguagem como

estratégia.

Como exemplo do que aqui se afirma, temos a renomada crítica Lúcia

Miguel Pereira que apontava o cacófato existente no título da obra Vida e morte

de M. J. Gonzaga de Sá como puro desleixo. Já Machado de Assis, com quem

era e continua sendo comparado até os dias atuais, sempre foi elogiado e

considerado um dos mais importantes escritores da literatura brasileira por

vários motivos, dentre eles, por ter utilizado uma linguagem acadêmica e

dentro dos padrões da época. Para Antônio Houaiss, a questão do cacófato ou,

pseudo-cacófato, não indica fraqueza textual, para ele,

parece descabida a crítica que se quer – levianamente – fazer ao pseudocacofônico M. J. Gonzaga De Sá. Quem acompanhar, [...], os escritos em que a eleição desse título se torna definitiva no ânimo de Lima Barreto saberá quanto de deliberação há nele, já no que pudesse encerrar de tradicional, já no que possa ter de sonoridade e evocação; não há dúvida, de outro lado, que “emijó”, ou melhor, “emijota”, só por má fé, aliás, responsável por tanto estilo falso, mercê de inversões e sinonímias ad hoc, não expressivas, que, satisfazendo ao medo de incidir em cacofonias, empobrece a efetividade da comunicação e da expressão, criando coerções – tal o horror às repetições, aos cognatismos – horror que muitas vezes é responsável por imprecisões, obscuridades, ambigüidades e defeitos outros (HOUAISS, 1956, p. 33).

Pode-se perceber através das avaliações apresentadas que, ressaltando

sempre a linguagem considerada desleixada utilizada por Lima Barreto, alguns

críticos não tiveram a sensibilidade para perceber o início de um novo processo

que rompia com os modelos tradicionais da época.

Suas ideias literárias são reforçadas através do uso da metalinguagem nos romances. Assim sendo, compreende-se que a decisão do escritor em romper com os modelos literários vigentes era mais do que uma necessidade, pois a linguagem usada não mais atendia à evolução cultural e às exigências do período (FREIRE, 2005, p. 115).

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O escritor privilegiava uma literatura e uma linguagem acessíveis e

diretas que fossem compreendidas por todos, ao invés de se preocupar apenas

com os preceitos gramaticais da academia. A escrita de Lima Barreto é

compreensível e, portanto, o mesmo recebeu uma crítica considerada

exagerada por parte da elite.

Antônio Houaiss foi um dos poucos críticos que não via a escrita de Lima

Barreto como problema, pelo contrário, para ele, a escrita era um recurso

conscientemente usado pelo autor e que enriquecia seus textos realistas.

Lima Barreto não poderá, porém – senão levianamente – ser considerado um absenteísta ou ignorante da problemática da correção e da eficácia da estética da linguagem. E, correto ou incorreto, de bom ou mau gosto, foi incontestavelmente um escritor muito consciente dos móveis e fins, recurso e meios – inscrevendo-se como um dos maiores, senão o maior, dos escritores realistas desta fase crítica de nossa evolução social. E isso com tal riqueza de “comunicação” e de “expressão”, que qualquer orientação gramatical ou estilística se pode comprazer em ver quantas questões queira, ligadas à formulação prática, lúdica, expositiva, silogística, impressiva- a, expressiva, automática ou trabalhada do problema da arte literária (HOUAISS 1956, p. 10).

Os personagens e os enredos dos contos, romances e crônicas muito

tinham a ver com a vida do autor. “A obra deste escritor é, em grande parte,

uma confissão mal escondida, confissão de amarguras íntimas, de

ressentimentos, de malogros pessoais, que nos seus melhores momentos ele

soube transfigurar em arte” (HOLANDA, 1956, p. 9).

Lima Barreto foi um escritor de coragem que escreveu seus textos para

demonstrar o que pensava sobre o mundo para, de alguma forma, despertar a

sociedade para outras práticas e reflexões, e, por isso, na época, causou

grandes insatisfações. A linguagem coloquial utilizada foi um recurso

estratégico para demonstrar seu descontentamento. “Lima Barreto, ao

posicionar-se contra os padrões linguísticos vigentes, tem pleno domínio de

suas convicções e de seus limites. E, por isso, não esconde a preocupação em

dominar a forma, mesmo que, depois, estrategicamente a repudie” (FREIRE,

2005, p.107).

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Para o autor, era de extrema importância dominar a norma culta, assim

podia cometer falhas em relação ao padrão tradicional da língua com

segurança. “Enquanto rechaçava – no plano do conteúdo – os mandos e

desmandos de uma sociedade discriminativa, preconceituosa, no tratamento da

linguagem imprimia processo semelhante negando toda e qualquer forma

representativa do status oficial, abrindo, assim, espaço para o olhar do novo”

(FREIRE, 2005, p.106 e 107).

O que aparentava ser o grande problema da obra limabarretiana por

muito tempo, a linguagem “deficitária” e de “mau gosto”, passou a ser visto

como uma possibilidade de transformação com a criação de um novo estilo, um

estilo revolucionário se pensarmos no período em que o autor escreveu, final

do século XIX e as primeiras décadas do século XX, e na estética gramatical

vigente e imposta pela sociedade elitista.

Ao adotar uma linguagem popular, deixa de lado toda a pompa, os floreios de uma linguagem rebuscada, acadêmica, fortemente em uso e defendida como critério para uma literatura de valor. Somado a isso, Lima posiciona-se contra o distanciamento que os escritores mantêm do público, ou melhor, do povo (FREIRE, 2005, p. 65).

O autor levantava a bandeira da liberdade através da linguagem.

“Liberdade de uma linguagem que – mais próxima do receptor – pode,

expressar e denunciar questões da realidade nacional pouco visitadas: o

preconceito racial, a luta pela sobrevivência, a manutenção da vida fora dos

eventos sociais” (FREIRE, 2005. p. 22).

Segundo Freire, a literatura de Lima Barreto passava a ter uma função

social, por dois motivos:

Primeiro, o homem de Lima Barreto vê-se impedido de ter aquilo que lhe é direito, devido ao preconceito racial e aos inúmeros sofrimentos que o acompanham por toda a vida. Segundo, o intelectual Lima Barreto percebe a grande distância entre o poder público e o indivíduo. Ou melhor, as classes dirigentes e o povo. Quando reivindica sempre inclui o próximo, transformando a obra literária em uma reivindicação coletiva (FREIRE, 2005, p.67).

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A obra literária de Lima Barreto apresenta um forte olhar crítico e uma

tensão provocada pelas denúncias e questões da época que eram camufladas.

O posicionamento a favor do povo custou-lhe o reconhecimento que tanto

ansiava. Beatriz Rezende destaca:

Lima Barreto não é “um escritor-proletário” (haverá algum?), mas é certamente, por sua obra literária e jornalística, por sua biografia e opção ideológica, dos escritores mais profundamente ligados aos pobres e empobrecidos, aos trabalhadores e desempregados, em nossa literatura (RESENDE, 1983, p.74).

Esse tom de crítica é uma característica advinda do período do realismo

que antecede o movimento em que o autor está inserido, pré-modernismo, mas

que também influenciou sua maneira de se expressar e de apresentar seus

inconformismos. “A apresentação do real para o autor reflete a tentativa de

recompor, na literatura, o homem e realidade em relação a ele mesmo,

objetivando uma auto-reflexão sobre a própria imagem. Por isso, para o escritor

a obra literária tem o poder de atuar como elemento de transformação social”

(FREIRE, 2005, p.112).

2.4 O SUBURBANO E O PRECONCEITO

A personagem Clara dos Anjos não disfarçava o descontentamento por

não ver Cassi em seu aniversário, ela estava bem vestida e ansiosa, pronta

para encontrá-lo. Quando Cassi chega, para o desgosto dos rapazes, as

damas da festa ficam alvoroçadas e o jovem logo é apresentado aos donos da

casa e à menina de personalidade frágil, Clara que, apesar da má fama do

rapaz, estava encantada e curiosa para conhecê-lo.

O violeiro, expressão utilizada pelo autor ao se referir a Cassi Jones,

ficava a observar a beleza de Clara e a devorar com seu olhar os movimentos

da moça, enquanto ela dançava. Observa-se que, na literatura brasileira,

devido aos resquícios do período escravista, uma forte inclinação a se tratar as

personagens mulatas pelo viés da sexualidade e sensualidade. Lima Barreto,

através de sua ironia e crítica, mais uma vez, destaca o preconceito de gênero

e raça, visto que elas são consideradas e reduzidas a objeto de uso sexual.

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Pela visão expressa pelo narrador, Cassi é mais um homem branco a exercer o

seu poder viril sobre os corpos das negras e mulatas, “presas fáceis” as quais

eram subordinadas às necessidades sexuais de seus senhores e não era

necessário se estabelecer entre eles uma união legal.

A pedido de Clara, Cassi, que havia recusado o convite do pai da moça,

resolve cantar uma modinha para impressioná-la. Clara sente um

contentamento e se perde em seus próprios pensamentos sonhadores ao

sentir a emoção de Cassi ao dizer os versos daquela modinha.

Clara, que sempre a modinha transfigurava, levando-a a regiões de perpétua felicidade, de amor, de satisfação, de alegria, a ponto de quase ela suspender, quando as ouvia, a vida de relação, ficar num êxtase místico, absorvida totalmente nas palavras sonoras da trova, impressionou-se profundamente com aquele jogo de olhar, com que Cassi comentava os versos da modinha. Ele sofria, por força, senão não punha tanta expressão de mágoa, quando cantava- pensava ela (BARRETO, 2005, p.49).

Segundo o que afirma o narrador, Cassi sabia como seduzir as moças

humildes, forçava um sentimento que não existia e Marramaque, um poeta

inteligente e padrinho de Clara, percebe a má intenção do rapaz com sua

afilhada e expressa a sua insatisfação através do seu olhar fixo para aquele

rapaz. Logo, Cassi se despede dos donos da casa, de Clara e se vai.

Ao final da festa, surpreendentemente, Dona Engrácia, uma mulher

pacata, passiva e submissa, expressa sua opinião sobre o violeiro. Alertada por

Dona Margarida sobre a má conduta de Cassi, a mãe de Clara, que sempre

protegeu a menina e a isolou do mundo ao em vez de instruí-la, diz que não

quer mais que o rapaz entre em sua casa e Joaquim concorda com aquela

opinião. Clara, inexperiente, não entende a injustiça de seus pais e sofre em

silêncio.

Clara foi educada e criada sob o olhar de uma família patriarcal, cujo pai

sustentava a família e a mãe cuidava rigorosamente da jovem e a preparava

para ser uma boa esposa e mãe. A maior preocupação de Dona Engrácia,

mulher sem ambições, era garantir o matrimônio à filha de acordo com a moral

prevalecente da época e livrá-la do infeliz destino das mulheres, que assim

como Clara, negras, mulatas e pobres, eram desencaminhas, desonradas e

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abandonadas carregando o fardo da imoralidade ao longo da vida. Clara era

uma menina desprovida de visão crítica, pois não foi criada para ter suas

próprias ideias e sim para ser submissa à realidade, sem perceber que era

mais uma vítima daquele sistema. “Clara não possui uma ideia transparente

sobre a sua situação dentro da sociedade, em parte pela educação que

recebera de seus pais” (GILENO, 2001, p.135). Lima faz uma crítica à

educação recebida pela menina, pois a mesma não conhecia o cenário

preconceituoso da época em que vivia, portanto, não teria como se defender do

perigo e das humilhações que viria a sofrer. Refletindo a cerca do preconceito

de gênero, pode-se afirmar que o sexo masculino sempre teve privilégios. Os

meninos recebiam uma educação com regalias e liberdade, enquanto as

meninas eram superprotegidas e submissas, educadas para servir o marido.

Cassi Jones, herdeiro do pensamento de uma sociedade machista,

aproveitando-se da fragilidade das moças, já havia engravidado várias

donzelas e mantido relações amorosas com mulheres casadas e, devido a

isso, já havia criado muita desordem na cidade. “Na vida, ele só via o seu

prazer, se esse prazer era o mais imediato possível. Nenhuma consideração de

amizade, de respeito pela dor dos outros (...). Só se detinha diante da força, da

decisão de um revólver empunhado com decisão” (BARRETO, 2005, p. 29 e

30). Cassi se aproveitava de sua condição socioeconômica um pouco mais

elevada que a de suas vítimas e da proteção de sua mãe, que o acudia com a

interferência de advogados para aproveitar-se das moças sem sofrer nenhuma

punição severa. Elas acabavam sempre humilhadas, sem o reconhecimento e

credibilidade da sociedade. “O seu sentimento ficava reduzido ao mais simples

elemento do Amor - a posse. Obtida esta, bem cedo se enfarava, desprezava a

vítima, com a qual não sentia ter mais nenhuma ligação especial; e procurava

outra” (BARRETO, 2005, p. 62). Apesar dos escândalos conseguia livrar-se

dos casamentos forçados, pois Dona Salustiana, que apesar de não acreditar

na inocência do filho, não admitia vê-lo casado com uma mulher sem prestígio.

Para Dona Salustiana, ter prestígio significava ter dinheiro. O preconceito social

é enfatizado quando o narrador menciona o fato de que, por Cassi ter um

pouco mais de condição social que suas vítimas, faz com que ele saia ileso das

punições aos seus atos. O autor mostra, neste caso, a força negativa do

capital, como um instrumento que gera a exclusão e a discriminação. Dona

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Salustiana queria ver o filho casado com uma moça de “prestígio”, vinda de

uma família de posses, provavelmente do centro da cidade.

Dona Salustiana era uma personagem imponente, expressiva e também

preconceituosa, que exercia sua voz mesmo contra o pensamento do marido. A

mãe de Cassi, como afirma o narrador, “tinha fumaças de grande dama, de ser

muito superior às pessoas de sua vizinhança e mesmo as dos seus

conhecimentos” (2005, p 25). Ela se engrandecia de sua raça, valorizava os

seus e era avessa à mistura das raças. Ela era uma mulher fora dos padrões

vigentes da época, tinha sua própria opinião, lutava por seus ideais e se sentia

pertencente à fidalguia por ter um irmão capitão do exército. O autor critica,

através da personagem de Dona Salustiana, o pensamento da elite

socioeconômica carioca, o qual não aceitava a mistura entre raças e classes

sociais. Naquela época, seguindo a visão das classes hegemônicas, a

miscigenação causava o declínio da notabilidade das famílias, às quais os

negros e mulatos não deveriam pertencer, sair de seu lócus e ascender para as

classes superiores.

Entretanto, o pai de Cassi, Manuel Borges, era um homem sério e de

princípios, que mesmo amando os filhos não abdicava de puni-los por suas

falhas, “era deveras um velho simpático e respeitável; e, apesar de sua

imponência de antigo burocrata, dos seus modos um tanto ríspidos e secos,

todos o estimavam na proporção em que seu filho era desprezado e odiado”

(2005, p. 25). Nesse cenário familiar, há um enfraquecimento da família

patriarcal, no qual a mulher tem mais voz ativa que o homem.

Cassi já era mal visto pela sociedade, pois havia causado dor e

sofrimento a diversas mulheres e por isso sua família, seu pai e suas irmãs,

Catarina e Irene, não lhe dirigiam a palavra. “A mórbida ternura da mãe por ele,

a que não eram estranhas as suas vaidades, junto a indiferença desdenhosa

do pai, com o tempo, fizeram de Cassi o tipo mais completo de vagabundo

doméstico que se pode imaginar. É um tipo bem brasileiro” (2005, p. 29).

Desde muito cedo, Cassi já demonstrava um comportamento rebelde,

faltava na aula e foi expulso de um colégio católico, era viciado em cigarro e já

tinha sido preso algumas vezes. A sua criação não foi das mais favoráveis, pois

seu pai, por precisar trabalhar de dia e de noite, pouco ficava em casa para

repreendê-lo, enquanto a mãe ignorava o mau comportamento do filho e dava-

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lhe muitos privilégios em uma sociedade em que os homens tinham liberdade

para fazer o que quisessem e as mulheres eram proibidas de tudo, precisavam

somente saber cuidar da casa, lugar onde o patriarcado prosperava e, por fim,

procriar. Cassi era um rapaz desapegado dos sentimentos, nem por sua mãe,

que lhe protegia e tão pouco pelos amigos ele demonstrava carinho,

excepcionalmente, quando precisava e possuía algum interesse, assim como

fazia com as mulheres que enganava. Suas falcatruas eram extremamente

calculadas. Através da descrição do narrador, é possível perceber a frieza de

seus planos:

Escolhia bem a vítima, simulava amor, escrevia detestavelmente cartas langorosas, fingia sofrer, empregava, enfim, todo o arsenal do amor antigo, que impressiona tanto a fraqueza de coração das pobres moças daquelas paragens, nas quais a pobreza, a estreiteza de inteligência e a reduzida instrução concentram a esperança de felicidade num Amor, num grande e eterno Amor, na Paixão correspondida (BARRETO, 2005, p. 35).

Cassi Jones gostava de luxo e riqueza, entretanto, não trabalhava, não

conseguia se fixar em um emprego e gostava de ganhar dinheiro fácil. Não

pagava suas dívidas e até sua atividade sexual era gratuita, desonrando moças

de pouca instrução, seduzindo as casadas e, depois, fugindo da

responsabilidade, com a ajuda de seu companheiro inseparável, o violão, um

instrumento que mexia com o sentimentalismo das mulheres.

Cassi, que não teve muitas regras a cumprir por ser filho homem e não

ter pais tão presentes, tornou-se uma pessoa fria e interesseira. Entretanto,

Clara dos Anjos, que sempre foi muito protegida por seus pais, e de acordo

com o pensamento da época, vivia reclusa dentro de casa, não tinha amizades

e não sabia nada da vida, era doce, ingênua e cheia de anseios nunca

compreendidos. O excesso de proteção de seus pais a fizera viver de seus

sonhos de amor, longe de qualquer perigo e totalmente fora da realidade. O

narrador mostra uma mulher que, em meio a uma sociedade machista e

preconceituosa, parece já ter nascido para ser vítima, principalmente por ser

uma mulher mulata e pobre. Por isso precisava de tanta proteção e zelo

familiar.

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Uma dúvida lhe veio; ele era branco; e ela, mulata. Mas que tinha isso? Havia tantos casos...Lembra-se de alguns... E ela estava tão convencida de haver uma paixão sincera no valdevinos, que, ao fazer esse inquérito, já recolhida, ofegava, suspirava, chorava; e os seus seios duros quase estouravam de virgindade e ansiedade de amar (BARRETO, 2005, p. 56).

Não levando em conta o preconceito social, Clara não tinha o

discernimento de que ser mulata era um problema. Mesmo tendo acesso à

educação, essa educação não servia para a conscientização crítica de sua

identidade e sim para disfarçar o preconceito e marginalização que sofria. Dona

Engrácia educou sua filha nos mesmos parâmetros em que foi educada, nos

moldes dos filhos brancos, pois mesmo sendo filha de escravos teve esse

privilégio, porém não orientou a filha de sua situação dentro da sociedade. Para

Lima o negro deveria ser educado para lutar contra a discriminação e as

injustiças. Ser negro em uma sociedade preconceituosa é difícil ainda mais

sendo mulher.

No caso das mulheres negras o problema é ainda mais crucial, pois, impedidas pela organização patriarcal da sociedade de exercerem atividades remuneradas que não fossem ligadas ao serviço doméstico e com acesso negado à educação formal, o destino destas só poderia ser mesmo a prostituição ou o amancebamento (BORGES, 2011, p. 574).

Cassi já havia conquistado Clara e já possuía lugar nos mais profundos

pensamentos da moça, porém isso não era o suficiente, pois, para o rapaz,

Dona Margarida e Marramaque, pessoas influentes e queridas pelos pais de

Clara, estavam querendo atrapalhar e se intrometer entre dois corações que se

amavam. Era assim que Cassi, ironicamente, se referia quando falava dele e

de Clara. O fragmento a seguir confirma isso:

O que lhe parecia, por indícios aqui e ali, é que alguém se havia interposto entre ele e ela, “entre dois corações que se amam”, denunciando aos pais dela os seus maus precedentes de conquistador contumaz, de forma a trancarem-lhe aqueles

as portas de sua casa, a ele, Cassi (BARRETO, 2005, p.67).

O sedutor Cassi, com a ajuda dos colegas, tenta descobrir o que se

falava sobre sua reputação, como se pode ver no fragmento destacado

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“fraqueza de coração das pobres moças daquelas paragens”. A problemática

da reputação, a questão da virgindade, como se viu nos(s) trecho(s)

destacado(s), era muito importante para a comunidade na qual a protagonista

se inseria. O narrador põe em destaque um elemento ligado à moral

suburbana. É comum, na obra ficcional limabarretiana, a exposição desse tipo

de aspecto dos subúrbios, muitas vezes deixado de lado por outros escritores

da época. O que aqui se diz ratifica as afirmativas de que a obra

limabarretiana, muitas vezes foi entendida como menor, por tratar de questões

“politicamente incorretas”, para usar uma expressão popular, como faria, talvez

o autor de Os Bruzundangas.

Para o desespero do rapaz, os escândalos em que havia se envolvido

não estava somente na boca do povo, estava registrado em um documento que

também tinha sido enviado a Marramaque que, por sua vez, já havia repassado

a Seu Joaquim, pai de Clara dos Anjos, para que o mesmo pudesse prevenir-

se.... “A sua fama, a sua má fama, se tinha corporificado naquele fantástico

caderno que ia ter a todas as mãos. Não era mais formada de boquejos daqui e

dali, em geral anônimos; agora, vinha documentada, com todas as indicações e

referências precisas” (BARRETO, 2005, p.75).

A situação de Cassi se complicava, porém o rapaz, espertamente,

encontrou uma maneira de conseguir o que tanto queria. Ele enxergou em

Doutor Meneses, um velho que cuidava dos dentes de Clara, a esperança e a

possibilidade de poder conversar com a moça. Não importava se desta vez ele

precisasse gastar algum dinheiro, o que não era comum. Neste caso, era uma

questão de honra.

O violeiro pediu a Meneses que entregasse uma carta para Clara.

Aquele homem, mesmo com remorso, mas vulnerável à pobreza, se rende ao

pedido do rapaz, que vinha acompanhado de alguns contos de réis. Cassi tinha

habilidade para corromper as pessoas, além das moças humildes, ele se

aproveitou de um senhor sem muitas expectativas na vida para conseguir o

que queria. Doutor Meneses intermediou aquela conversa durante um pouco

mais de um mês, enquanto tratava os dentes da moça. “Clara recebia aquelas

cartas com uma emoção de quem recebe mensagens divinas” (2005, p.99).

Apesar das cartas mal escritas, não era isso que importava, ela sonhava com

aquele violeiro que, para ela, era um cavalheiro leal, amoroso e injustiçado. As

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palavras de Cassi deixavam as emoções da jovem à flor da pele, ora chorava,

ora estava alegre, desatenta, malcriada e esquecida. Joaquim e Dona Engrária

estranharam o comportamento da filha e a levaram ao médico. Como se podia

imaginar, não era problema de saúde e sim questões da idade e emocionais, a

menina precisava se distrair e passear um pouco.

Dona Margarida, que acompanhava Clara em seus passeios, uma

mulher sagaz, honesta, como sustenta o narrador, consegue fazer com que a

jovem diga o motivo do seu estranho comportamento. Dona Margarida também

é uma personagem expressiva dentro do enredo, sendo mulher, viúva e mais

esclarecida não se intimida por sua condição de mulher solitária. Então, Clara

conta o que sente e seus pais logo ficam sabendo, sua mãe tem uma crise de

ódio, pois ela criara a filha com tanto amor e cuidados para ela gostar logo de

um modinheiro perverso, já Joaquim não fica abismado com aquela notícia e

pensa em aceitar.

Joaquim recebeu a notícia sem demonstrar espanto. Não gostava também de Cassi. Era para ele, homem morigerado e trabalhador, um capadócio, um desclassificado, réu de polícia, muitas vezes, de quem tanto mal se dizia; mas, se ele quisesse casar com a filha, apesar de todos os seus maus precedentes, não se oporia (BARRETO, 2005, p. 100).

A opinião de seu compadre era muito importante, por isso resolveu ouvi-

lo mais uma vez. “Se o pai não quer saber dele, é porque boa coisa ele não é.

Ele não só desonra a família dos outros, como envergonha a própria” (2005, p.

101). Clara sofria ao ouvir aquelas palavras, não se manifestava, apenas

chorava. “Você não vê que, se ele quisesse casar, não escolheria Clara, uma

mulatinha pobre, filha de um simples carteiro?” (2005, p. 101). Clara não

entendia muito as coisas, menina ingênua e de pouca idade, com um raciocínio

muito limitado por conta da falta de contato com o mundo, pensava que o

sentimento de Cassi era verdadeiro e o que prevalecia era o amor entre duas

pessoas, independente de cor e classe social. “As ideias mais absurdas lhe

passavam pela cabeça. Pensou em fugir, em ir ter com Cassi, em matar-se...

Enchia-se de raiva do padrinho. Por fim, resolveu relatar, por carta, tudo o que

se passou ao namorado” (2005, p.102). Clara, iludida, acredita no futuro dessa

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relação. E mais uma vez Meneses, que já não se achava mais uma pessoa

digna, entregou a carta a pedido de Clara.

Cassi leu a carta com os olhos fervendo e deixando transparecer toda a

sua raiva. Planejava, com frieza, dar uma surra naquele aleijado abusado,

como ele costumava dizer. Dois capangas, contratados por Cassi, bateram em

Marramaque, que acabou morrendo brutalmente devido a sua coragem de

dizer o que pensava e por sua boa índole. Morreu como um herói. Cassi, como

afirma o narrador, não tinha caráter, só pensava em si mesmo e mandou matar

um homem honesto e deficiente físico, pois o mesmo estava atrapalhando as

suas falcatruas.

Clara, ao saber do assassinato de seu padrinho, lembra-se das ameaças

que Cassi fazia a Marramaque em suas cartas, a jovem estava se sentindo

cúmplice de todo aquele acontecimento, pois havia alertado o namorado sobre

a opinião de seu padrinho. A jovem mulata começava a sentir medo do amado

e duvidar de suas boas intenções, porém eram apenas por alguns instantes,

logo voltava a sonhar e a criar desculpas para a loucura do amado, pois, para

ela, Cassi estaria defendendo e lutando pelo amor dos dois. Clara, suspirando

de amor, escreve mais uma carta para o Doutor Meneses entregar a Cassi,

além das juras de amor, a jovem consente que Cassi vá ao encontro dela.

Como toda mulher sem instrução, Clara pegou na pena e não tinha vontade de a largar. Contava detalhes, repisava juras e pedia juramentos. Um destes era o de que ele a respeitaria sempre; e, se não fizesse isso, romperia as relações com ele. Estava disposta a esperá-lo, às dez horas, na grade, daí a oito dias, e isso o fazia, porque “Seu” Meneses tinha dado o serviço dos dentes por terminado (BARRETO, 2005, p.108).

2.5- CLARA DOS ANJOS E OS ESTIGMAS SOCIAIS

As conversas de Clara e Cassi, em sua janela, deixavam a menina mais

apaixonada, pois ele usava de todo o seu talento e sedução para iludi-la com

suas palavras de amor, prometendo empregar-se e casar-se com a jovem.

Clara sonhava em se casar, foi criada para isso e via, em Cassi, a possibilidade

da concretização de seu sonho. Aquelas palavras eram músicas para o ouvido

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de Clara, que observava aquele céu estrelado de sua janela e sonhava com o

grande dia do casamento. O casamento era o grande sonho das meninas da

época, pois era a única alternativa de sair da casa dos pais e ter a própria

família e entregar a filha virgem para o marido era uma grande

responsabilidade e honra para os pais.

Aos poucos, Cassi vai ganhando ainda mais a confiança de Clara que,

certa vez, fora de si como o narrador afirma, permite que Cassi entre em seu

quarto.

Ela não sabia decompô-lo, não sabia compreendê-lo. Lembrando-se, parecia-lhe que ela deixou de ser ela mesma, para ser uma coisa, uma boneca nas mãos dele. Cerrou-se-lhe uma neblina nos olhos, veio-lhe um esquecimento de tudo, agruparam-se-lhe as lembranças e as recordações e toda ela se sentiu sair fora de si, ficar mais leve, aligeirada não sabia de quê; e, insensivelmente, sem brutalidade, nem violência de espécie alguma, ele a tomou para si, tomou a sua única riqueza, perdendo-a para toda a vida e vexando-a, daí em diante, perante todos, sem esperança de reabilitação (BARRETO, 2005, p.119).

O narrador mostra Clara sendo manipulada e envolvida pelo violeiro

como uma menina frágil e sem escolhas ou como um objeto fácil de ser

manuseado. Ao cair em si, Clara chorava sem saber o que seria de seu

destino, pede perdão a Deus e também que Ele a salvasse da desgraça e do

abandono. A tristeza de Clara estava só começando, a jovem sonhadora se

sentia perdida, pois além de grávida, seu amado havia fugido para São Paulo.

Com toda a dor e sem grande resposta para seus anseios, Clara

começa a perceber que seu padrinho e todas as outras pessoas que falavam

das falcatruas de Cassi estavam certos e que ele não era aquele homem que

ela imaginava em seus sonhos de amor. A ingenuidade de Clara se perdera

pelo caminho. “Era mesmo o que diziam... Por que a escolhera? Porque era

pobre e, além de pobre, mulata. Seu desgraçado padrinho tinha razão...Fora

Cassi quem o matara” (2005, p.126). O preconceito social e racial é ratificado

ao dizer que Cassi sabia escolher suas vítimas, que pertencendo elas a

famílias humildes e de cor, nada poderiam fazer para prejudicá-lo. Segundo o

autor, Clara foi mais uma vítima desse covarde violeiro. “Pensou em morrer;

pensou em se matar; mas, por fim, chorou e rogou a Nossa Senhora que lhe

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desse coragem. Se pudesse esconder?...- acudiu-lhe repentinamente este

pensamento. Se pudesse “desfazê-lo”? Seria um crime, havia perigo de sua

vida; mas era bom tentar” (BARRETO, 2005, p. 126).

Em um ato de desespero por aquele ato imoral, Clara pensa em fazer

um aborto e planeja o que fazer para conseguir o remédio abortivo. A moça

resolve, então, pedir a Dona Margarida uns trocados para comprar um presente

para a mãe. Dona Margarida, mulher séria e bastante intuitiva, estranha aquele

pedido e percebe que a jovem está enganando-a e passando por sérios

problemas. Ao olhar atento daquela senhora, Clara não consegue mais mentir,

não contém as lágrimas e confessa o acontecido para aquela que era a única

amiga que podia contar.

A primeira ordem imediata de Dona Margarida foi que Clara contasse a

verdade para a mãe, que ao saber da tragédia em que sua filha se envolvera,

não para de chorar e de questionar Deus pelo que havia acontecido com seu

bem precioso. Clara, desolada e arrependida pede perdão à mãe. Cassi

conseguira mais uma vez destruir um lar honesto e de paz, como previa o

padrinho de Clara antes de morrer.

Logo depois daquela cena, Dona Margarida e Clara seguem em direção

à casa da família de Cassi para tentar resolver aquela situação lamentável.

Dona Salustiana, mãe de Cassi, ao ouvir o que lhe contava Dona Margarida e

ao perceber que aquela mulata era mais uma vítima de seu filho, as trata com

desaforos e desdém. “Por acaso, meu filho as amarra, as amordaça, as

ameaça com faca e revólver? Não. A culpa é delas, só delas...” (2005, p. 132).

Clara não suportava mais aquela humilhação “A moça foi notando isso e

encheu-se de raiva, de rancor por aquela humilhação por que passava, além

de tudo o que sofria e havia ainda de sofrer (2005, p. 131).Clara representa as

mulheres que não tinham voz naquela sociedade, diante daquela difícil

situação, ela só queria que Cassi reparasse seu erro. Mas para aquela

sociedade preconceituosa o erro foi de quem? Do sexo feminino.

Dona Salustiana, vaidosa, com ares de neta de Lord, sempre protegeu

o filho e nunca admitiu que o obrigassem a casar com uma moça pobre, mulata

e sem instrução e não seria agora que isso mudaria. Seu Azevedo, pai de

Cassi, desolado lamenta o sofrimento daquela menina, mas nada pode fazer,

pois já havia perdido a sua autoridade de pai.

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No caminho de casa, Clara tem a consciência de seu real valor na

sociedade por conta do preconceito e percebe que a proteção de seus pais

serviu para iludi-la, pois sua condição era de inferioridade. Clara diz por fim

“Nós não somos nada nesta vida” (2005, p.133). Que chances teria uma mulher

ingênua, sonhadora, sem instrução, humilde, de cor e moradora do subúrbio

em ter um final feliz? Mais uma vez, Cassi, em uma sociedade em que o

homem tem o poder da fala, foge deixando uma vítima a ser pré-julgada por

aquela mesma sociedade hipócrita.

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CAPÍTULO III

SUBALTERNOS E MARGINAIS: LIMA BARRETO, OS ESTIGMAS

E A LITERATURA DA PERIFERIA

Este capítulo abordará a contemporaneidade das questões e dos temas

contidos na obra Clara dos Anjos de Lima Barreto. O romance, ainda hoje,

provoca fortes reflexões sobre a sociedade brasileira, ao tratar problemas

relativos ao preconceito, em algumas de suas vertentes, mostrando sua

permanência, ainda nos dias atuais - na pós-modernidade -, ampliando as

discussões implementadas no capítulo anterior, sobre a identidade da

personagem Clara dos Anjos - mulher, negra, pobre e suburbana. Recebem

ênfase neste último capítulo, as problemáticas da subalternidade e da

marginalidade. As mesmas são inseridas nas atuais questões relativas às

marginalidades na contemporaneidade e ao que João César de Castro Rocha

denomina “Dialética da Marginalidade”.

Lima Barreto sentia-se um autor marginalizado e periférico. Não se trata, em seu caso, de simplesmente domiciliar-se nos subúrbios e ter crises provocadas pelo alcoolismo. O mulato pobre, jornalista temido e romancista pouco reconhecido, internalizava o que entendia ser uma exclusão e sofria muito

por isso (FRAZÃO, 2012, p.1213).

É importante destacar, antes de se iniciar o capítulo, propriamente, que

os autores da obra Modos da Margem: figurações da marginalidade na

Literatura brasileira, Alexandre Faria, João Camilo Penna e Paulo Roberto

Tonani do Patrocínio (2015, p. 31) não fazem distinção entre os termos

periférico e subalterno. Optam pela palavra marginal e entendem que ela

reflete melhor, criticamente, a problemática da exclusão no Brasil. Na obra

citada, os autores se interessam

em pensar os mecanismos teóricos que ligam autores como Carolina Maria de Jesus, Ferréz, Paulo Lins e Allan dos Santos Rosa às questões elaboradas pelos críticos pós-coloniais, no processo de construção do discurso literário marginal, mas de forma livre, prestando especial atenção aos desdobramentos

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específicos, brasileiros, da ancoragem produzidas pelos Estudos Subalternos (FARIA; PENNA E PATROCÍNIO, 2015, P. 30-31).

Lima Barreto pode ser incluído nesta lista dos autores de Os modos da

margem e se liga, em termos de trajetória na periferia, a autores como Ferréz,

e Carolina de Jesus, pelos estigmas que eles carregam (ou carregaram) e –

pelos preconceitos decorrentes - e que foram transformados em instrumento

discursivo de luta dos autodenominados autores marginais de periferia.

3.1 IDENTIDADE E SUBALTERNIDADE

A temática identidade está sendo discutida, na sociedade ocidental, à

proporção que se observa as mudanças e as angústias vivenciadas pelo

indivíduo pós-moderno em contextos sociais, culturais, religiosos, linguísticos e

sexuais. As indagações e reflexões trazidas sobre “identidade” e “modernidade”

tornaram-se bastante consideráveis para o entendimento das mudanças

sociais e desse novo modo de viver.

A sociedade moderna se diferencia das sociedades tradicionais, pois é

dinâmica, traz consigo mudanças, fragilidades e com elas as identidades

fragmentadas de um sujeito inconstante e inseguro. Anthony Giddens,

sociólogo britânico, fala sobre a instituição moderna:

A vida social moderna é caracterizada por profundos processos de reorganização do tempo e do espaço, associados à expansão de mecanismos de desencaixe – mecanismos que descolam as relações sociais de seus lugares específicos, recombinando-as através de grandes distâncias no tempo e no espaço. A reorganização do tempo e do espaço, somada aos mecanismos de desencaixe, radicaliza e globaliza traços institucionais preestabelecidos da modernidade; e atua na transformação do conteúdo e da natureza da vida social cotidiana (GIDDENS, 2002, p.10).

A globalização é um aspecto fundamental para caracterizar a

modernidade e sua passagem para a pós-modernidade, pois muitas vezes

interfere no cotidiano das pessoas, na relação com o próprio eu e na relação

com o outro, no modo de pensar e agir de cada indivíduo. Boaventura de

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Souza Santos (SOUZA, 2008), doutor em Sociologia do Direito, destaca sua

visão sobre a contemporaneidade, entendendo que a sociedade

contemporânea está imersa em um cenário de sombras e dúvidas, com

resquícios do passado e desconfianças do futuro. Segundo o mesmo autor, na

pós-modernidade as percepções de mundo são ambíguas e complexas. Isso,

ainda segundo Boaventura, cria novas possibilidades de vida, e ao mesmo

tempo, gera instabilidade. Na atualidade, é predominante a desconstrução de

conceitos até pouco tempo incontestáveis pela ciência. Estamos vivendo uma

crise científica, o “desfecho” de uma fase hegemônica e, como toda crise, um

período de difícil compreensão e aceitação, pois por muito tempo as ciências

eram inquestionáveis e indiferentes à realidade e as necessidades do homem

e, hoje em dia, são questionáveis, havendo a perda da confiança dos

resultados da ciência por conta da sua fluidez. Boaventura afirma que:

Perdemos a confiança epistemológica; instalou-se em nós uma sensação de perda irreparável tanto mais estranha quanto não sabemos ao certo o que estamos em vias de perder; admitimos mesmo, noutros momentos, que essa sensação de perda seja apenas a cortina de medo atrás da qual se escondem as novas abundâncias da nossa vida individual e coletiva. Mas mesmo aí volta a perplexidade de não sabermos o que abundará em nós nessa abundância (SOUZA, 2008, p. 47).

Na sociedade contemporânea, a quantidade de informação adquirida

pelas pessoas e a validade dessas informações se desfazem rapidamente em

um curto espaço de tempo. O tempo é um fator importante, podendo levar o

homem a se hibridizar, pois tudo se agrega e mescla dando a sensação de que

se evapora num descuido. O termo hibridismo “trata de um processo de

tradução cultural, agonístico uma vez que nunca se completa, mas que

permanece em sua indecibilidade” (HALL, 2006, p.71). Já dizia Giddens que a

modernidade é considerada uma cultura do risco, ou seja, uma sociedade em

processos. O autor reforça essa ideia, pois a vida se tornou bem mais

movimentada, as possibilidades são muitas, é preciso fazer escolhas, as

dúvidas são constantes e os pensamentos são construídos e desconstruídos

com mais rapidez, porém de modo mais reflexivo.

Em Vidas desperdiçadas, Zygmunt Bauman salienta que “A mente

moderna nasceu juntamente com a ideia de que o mundo pode ser

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transformado. A modernidade refere-se à rejeição do mundo tal como ele tem

sido até agora e à decisão de transformá-lo” (2006, p.34). Nesta perspectiva, o

homem não soube lidar com as transformações da modernidade, evidenciando

assim, o distanciamento e as desigualdades socioeconômicas. Assim sendo,

esse estilo de vida proveniente do capitalismo desenfreado, exclui, segrega, e

discrimina grupos sociais periféricos e marginalizados, pois os mesmos, sem

possibilidades de escolha, se excluem do processo de ascensão social. O autor

ao falar sobre a sociedade contemporânea, costuma mencionar o lixo como

símbolo da mudança advinda do capitalismo, na qual os indivíduos são

transformados em mercadoria e em refugo humano.

A nova plenitude do planeta significa, essencialmente, uma crise aguda na indústria de remoção do refugo humano. Enquanto a produção do refugo humano prossegue inquebrantável e atinge novos ápices, o planeta passa rapidamente a precisar de locais de despejo e de ferramenta para a reciclagem do lixo (BAUMAN, 2005, p. 13).

O mundo globalizado e capitalista é um mundo tenso e ambicioso que

tem o poder de afetar a vida do ser humano, tudo se torna descartável, pensar

em algo durável ou permanente é algo fora da realidade em que vivemos. “A

velocidade da mudança dá um golpe mortal no valor da durabilidade: “antigo”

ou “de longa duração” se torna sinônimo de fora de moda, ultrapassado, algo

que “sobreviveu à sua utilidade” e, portanto está destinado a acabar em breve

numa pilha de lixo” (BAUMAN, 2005, p.80).

É na transição da modernidade para a pós-modernidade que a solidez

perde sua forma para a liquidez, principalmente as identidades. Esta nova Era

tecnológica, globalizada, sem fronteiras abre novas possibilidades agregando e

mesclando culturas antes impenetráveis e os deslocamentos migratórios e a

linguagem passaram também a interferir precisamente nestas transformações,

ora vista como problemática, ora vista como inclusiva, uma vez que valores,

costumes, hábitos e tradições foram compartilhados entre grupos interétnicos

que, neste mundo globalizado, comungam das mesmas diversidades. Observe-

se o que Bauman fala sobre a linguagem:

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A linguagem pode nos informar como as coisas são, mas também é uma faca que nos cerca, a nós ao mesmo tempo produtores, usuários e criaturas das palavras, livres das coisas como elas são e da proximidade de sua presença. Usando palavras como fios, podemos tecer telas que não representem realidade alguma experimentada por nós (BAUMAN, 2006, p.125).

O indivíduo vai se moldando de acordo com as transformações globais,

pois aquele sujeito que tinha uma identidade sólida, que tinha domínio sobre

seu próprio eu, hoje, contemporâneo a estas mudanças, não tem mais esse

mesmo controle, pois as ansiedades e as insatisfações são maiores e estão

atreladas aos constantes acontecimentos que nos cercam e, dependendo das

circunstâncias, assumimos novas identidades. “A identidade plenamente

unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia” (HALL, 2006, p.13). A

identidade é uma luta constante com o “próprio eu” e a expressão “crise de

identidade” expressa que viver no mundo moderno é viver em crise, é ser

incoerente, reflexivo e instável. “Essa perda de um “sentido de si” estável é

chamada algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito” (HALL,

2006, p.9). Nesse sentido o indivíduo não se desloca em tempo e espaço, mas

sim se fragmenta, se encontra e se perde inúmeras vezes dentro de seus

pensamentos e desejos mais profundos.

Diz Zygmunt Bauman, em seu livro Globalização - As consequências

humanas, “A globalização tanto divide como une; divide enquanto une”

(BAUMAN, 1998, p.8). Desta forma pode-se refletir que o indivíduo, mesmo

cercado de pessoas, se sente só, que ao mesmo tempo em que está junto,

também está separado, que mesmo livre se sente preso, que mesmo

conectado com o mundo não se sente inserido nele, que mesmo estando

fisicamente presente viaja sem sair do lugar e que mesmo tendo tudo que

deseja quer sempre mais. O capitalismo pode ser considerado um dos

responsáveis pelas insatisfações do ser humano, pois, o consumismo traz uma

felicidade momentânea ou um falso prazer do qual o indivíduo se sente parte

do todo, ou seja, as conquistas de hoje se tornam obsoletas no dia de amanhã.

O ser humano está sempre buscando se satisfazer através dos bens materiais

e precisa disso para se sentir inserido e útil dentro da sociedade que dá mais

valor ao ter do que ao ser.

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Em meio às mudanças geradas pelo capitalismo e pela globalização, os

seres humanos estão sendo deixados de lado, à margem do mundo social. A

globalização exclui e é desleal, causando muitas vezes fome, desemprego e

muita desordem para inúmeros seres humanos, afirma o sociólogo Bauman.

Ela ocasiona sujeira e lixo humano, não há confiança nessa relação, os

indivíduos são descartados e trocados de acordo com os interesses

econômicos como se não tivesse valor algum para a sociedade. Bauman

confirma essa ideia dizendo que “A vida líquida é uma vida de consumo. Ela

projeta o mundo e todos os seus fragmentos animados e inanimados como

objetos de consumo” (BAUMAN, 2009, p.16). O homem moderno se tornou

individualista e por isso não consegue se sentir pleno e contente somente

através de suas relações afetivas.

Hoje, não se fala mais em identidade rígida e inflexível, mas em

identidades, pois as mudanças advindas do mundo moderno e suas

implicações na configuração identitária, ressignifica o termo “identidades” que é

o resultado da mescla cultural fundida no advento da globalização e do fim das

fronteiras culturais. As pessoas não querem mais fixar-se em um único eixo,

querem estar abertas a novas possibilidades, pois a sensação é que tudo pode

mudar em um piscar de olhos.

3.2 IDENTIDADES SUBALTERNAS: SUBURBANOS, MULATOS E POBRES

Para justificar porque, neste trabalho, estuda-se a questão da

identidade, é preciso examinar a maneira como a identidade se insere em

Clara dos Anjos. No início do século XX, a identidade ainda era sólida, vista

apenas como herança cultural; pertencente a um determinado grupo e

exclusiva de uma determinada pessoa.

No cenário da obra Clara dos Anjos, destaca-se a identidade de uma

família de mulatos do subúrbio, constituída por pai, mãe e filha. Esta, por sua

vez, tem uma identidade individual (cada sujeito nasce com sua

individualidade) e coletiva (apesar de nascer com sua individualidade, faz parte

de um grupo social, logo, recebe informações que terminam por interferir em

seu construto sociocultural), construída através do contexto social da época, da

própria percepção e experiências de Lima Barreto e da linguagem do narrador.

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As características, os sentimentos de Clara não foram apresentados

pela personagem, de fato, ganharam voz através do narrador que mostra a sua

subalternidade e a falta de criticidade da jovem, ao aceitar, passivamente - o

contexto em que vivia. Dessa forma, o narrador exerce um papel fundamental

neste romance, pois através da sua fala e de seu olhar crítico mostra seu ponto

de vista sobre as aflições e desgostos da sociedade, destacando as mazelas

do subúrbio carioca e principalmente a condição de Clara e sua família na

sociedade do início do século XX.

A identidade de Clara se baseia, principalmente, na educação que

recebeu da mãe. Dona Engrácia era uma personagem passiva, não gostava de

tomar decisões e de sair de casa e, assim, criou Clara, aos seus moldes. A

mãe recebeu boas instruções ao estudar com os filhos do senhor que a criava

antes de casar, porém, depois de casada, dedicou-se apenas aos filhos,

marido e afazeres de casa.

A filha, que era protegida ao extremo e tinha amizades restritas, tinha a

mãe como principal referência. Desta maneira, o narrador apresenta uma

personagem que é efeito de uma educação inapropriada, vítima de uma

situação hostil, conforme a cor e condição social, incapaz de enfrentar os

problemas sozinha e transcender a sua realidade social.

Clara era uma natureza amorfa, pastosa, que precisava mãos fortes que a modelassem e fixassem. Seus pais não seriam capazes disso. A mãe não tinha caráter, no bom sentido, para o fazer; limitava-se a vigiá-la caninamente; e o pai, devido aos seus afazeres, passava a maioria do tempo longe dela. E ela vivia toda entregue a um sonho lânguido de modinhas e descantes, entoadas por sestrosos cantores, como o tal de Cassi e outros exploradores da morbidez do violão (BARRETO, 2005, p.90).

O narrador expressa, neste trecho, a subordinação das mulheres, neste

caso, considerando o contexto do romance, principalmente, as mulheres

negras e pobres, mostrando a dominação masculina, na qual o homem é o

chefe da família e tem a responsabilidade de ser o provedor da casa e que a

mulher tem um papel social bem definido de submissão, portanto, de cuidar do

marido, realizar os afazeres domésticos e cuidar da educação dos filhos.

Segundo Spivak:

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No contexto do itinerário obliterado, o caminho da diferença sexual é duplamente obliterado. A questão não é a da participação feminina na insurgência ou das regras básicas da divisão sexual do trabalho, pois, em ambos os casos, há “evidência”. É mais uma questão de que, apesar de ambos serem objetos da historiografia colonialista e sujeitos da insurgência, a construção ideológica de gênero mantém a dominação masculina. Se, no contexto da produção colonial, o sujeito subalterno não tem história e não pode falar, o sujeito subalterno feminino está ainda mais profundamente na obscuridade (SPIVAK, 2010, p.85).

De acordo com a maneira que foi educada, Clara não demonstra

perspectivas e iniciativa de estudar, de ascender socialmente, pelo contrário, o

narrador mostra a fragilidade de uma jovem que vive sonhando a espera de um

marido e deposita no casamento o seu futuro e a sua felicidade. Como é

possível perceber no trecho a seguir:

O mundo se lhe representava como povoado de suas dúvidas, de queixumes de viola, a suspirar amor. Na sua cabeça, não entrava que nossa vida tem muito de sério, de responsabilidade, qualquer que seja a nossa condição e o nosso sexo. [...] Não havia, em Clara, a representação, já não exata, mais aproximada, de sua individualidade social; e concomitantemente, nenhum desejo de elevar-se, de reagir contra essa representação (BARRETO, 2005, p. 90).

Clara era ingênua e apagada, segundo a descrição do narrador e, por

conta também da idade, não tinha a capacidade intelectual de refletir sobre a

vida, de comparar, de criticar, pois a falta de contato com o “mundo real”

influenciou significativamente na construção da sua personalidade e identidade

individual legítima e muito teve a ver com o destino da jovem, ao final, seduzida

e enganada. Mesmo com as melhores intenções, Clara não é instruída a

perceber de maneira crítica a sua real situação, sendo facilmente manipulada.

A filha do carteiro, sem ser leviana, era, entretanto, de um poder reduzido de pensar, que não lhe permitia meditar um instante sobre o destino, observar os fatos e tirar ilações e conclusões. A idade, o sexo e a falsa educação que recebera, tinham muita culpa nisso tudo; mas a sua falta de individualidade não corrigia a sua obliquada visão da vida (BARRETO, 2005, p. 90).

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Devido a sociedade preconceituosa do início do século XX, é possível

analisar porque Dona Engrácia queria proteger a filha da situação de

subalternidade que rodeava as mulheres suburbanas, negras e pobres. A mãe

e, consequentemente, a filha são influenciadas pelo meio, pelo cenário de

dominação e descriminação na qual o romance foi produzido, mas não se trata

de um determinismo cientificista, aos moldes naturalistas, e, sim, de uma

questão de poder hegemônico – no caso, do masculino. Dona Engrácia pensa

encontrar na excessiva proteção um caminho para defender a filha das

humilhações, mas fracassa ao descobrir que Clara havia sido enganada. Neste

momento, ao final do romance, Clara desperta para a realidade e para os

estigmas “absorvidos” por uma mulher negra e pobre, impostos pela sociedade

burguesa. “Fora preciso ser ofendida irremediavelmente nos seus melindres de

solteira, ouvir os desaforos da mãe do seu algoz, para se convencer de que ela

não era uma moça como as outras; era muito menos no conceito de todos”

(BARRETO, 2005, p. 132).

Clara tinha uma visão distorcida de sua própria identidade, pois alheia

aos acontecimentos da vida não percebia o preconceito que a rodeava por não

se enquadrar nos padrões da época. Não sabia, portanto, que a sociedade

fazia distinção entre brancas, negras e mulatas.

A discriminação é determinada pela não aceitação das diferenças, sejam

estas de ordem sócio-cultural, racial, religiosa, linguística e política. É com base

nessas diferenças que o ser humano não assimila e respeita a diversidade e

exclui o outro, ao passo que, este outro não participa do seu grupo próximo ou,

ainda, não tem com ele algum vínculo identitário.

No artigo “Mesmices e novidades: Identidade, diversidades”, José

Almino de Alencar salienta que “Poder-se-ia afirmar sem risco que identidade

implica, obviamente, em alteridade, na diversidade. É na interação com o outro

que a identidade se constitui e as marcas advindas desse contato determinam

o seu formato e o seu escopo” (2005, p.11). Entretanto, pode-se dizer que a

personagem Clara possui uma identidade frágil, pois a jovem teve pouco

contato com o mundo e com outras culturas, ao passo que era protegida pelos

pais e a falta compreensão do mundo externo terminou por prejudicá-la ao

longo da sua vida.

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Porque estudar a identidade e a diferença em Clara dos Anjos? Neste

romance, o narrador apresenta as duas faces de Clara dos Anjos, no primeiro

momento, a jovem, por receber uma educação dentro dos padrões burgueses,

não percebeu sua diferença sociocultural e étnica dentro da sociedade,

tornando-se ainda mais vulnerável. Somente a partir de sua desilusão amorosa

é que a mesma se encontra com sua real identidade e pertencimento cultural,

após sentir-se enganada.

3.3 LIMA BARRETO: A VOZ DOS SUBALTERNOS

Ao se considerar os temas e preocupações voltados para o Brasil real,

presentes em toda a obra de Lima Barreto, percebe-se a atualidade das ideias

do escritor. A maior parte dos problemas apontados pelo escritor continua

atualíssima, basta citar a situação da mulher e a discriminação racial (FREIRE,

2005, p.115). O preconceito de gênero e racial encontrados na obra Clara dos

Anjos são ramificações do preconceito social, que mostra uma sociedade

patriarcal e preconceituosa que exclui o outro por se sentir superior,

inferiorizando a mulher e o negro. Lima Barreto apresenta a personagem Clara

como catalisadora desse preconceito, porém o autor pretendia também

mostrar, de maneira geral, a situação do negro na sociedade, mostrando ao

público leitor o seu próprio descontentamento.

Causando-nos inquietação e desconforto, os escritos de Lima Barreto apresentam-nos dados da época em que viveu e traços marcantes de sua vida cercada pelo embate às ideologias raciais e da luta pelo reconhecimento não só literário, mas também humano. Através de suas personagens, permite-nos, uma releitura da sociedade brasileira contemporânea, de nossa crise identitária e da busca desenfreada pela autoafirmação de uma unidade nacional perante a cultura colonialista (JESUS & FRAZÃO, 2012, p. 8).

Na literatura, no início do século XX, esse cenário de subalternidade e

marginalização das camadas menos favorecidas já era tratado na obra de Lima

Barreto como um mecanismo (literário) para mostrar a insatisfação da

população que vivia à margem e a do próprio autor que sofreu por ser mulato,

pobre e morador do subúrbio. Lima retratou a população brasileira do

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subúrbio/periferia do Rio de Janeiro em um período de grandes mudanças para

a cidade, conhecida como Belle Époque, denunciando os problemas sofridos

pela população pobre, pontuando as temáticas da desigualdade e da exclusão

social na busca pela transformação.

Por sua dedicação em dar voz à população marginalizada através de

seus personagens, Lima Barreto foi considerado um escritor marginal e, de

fato, sentia-se assim, pois, para ele, não morar no centro e não se encaixar nos

padrões da vigência literária (no cânone) significava estar à margem. As

críticas recebidas pelo escritor geraram consequências, dentre elas o vício pela

bebida e a internação no hospício por mais de uma vez, considerado como

louco.

Era um homem tímido, e sabe-se que esta timidez fora exacerbada por sua marginalização intelectual e social. Tudo leva a crer que sua boêmia era um mecanismo de defesa com o qual ele se protegia do meio circundante, e seu alcoolismo funcionava de modo semelhante (OAKLEY, 2011, p.4).

A escritora Carolina Maria de Jesus, assim como Lima Barreto, também

teve um papel importante nessa luta, pois foi uma escritora negra, moradora da

favela e catadora de papel e, por causa dos seus estigmas e da linguagem

simples que utilizava em suas obras, também foi considerada uma escritora

marginal e foi uma das representantes que deu voz àquela população excluída.

O discurso do menor culturalmente, do marginalizado, do periférico,

ainda persiste nos dias atuais por uma série de questões que, mesmo com o

passar do tempo, foram recebendo uma nova roupagem, mas continuam

fazendo parte do cotidiano. O Estado não demonstra interesse em resolver a

questão dos marginalizados, a sociedade, ainda dividida em classes, termina

por segregar socialmente os menos favorecidos e a falta de políticas públicas

contribuem para que as mesmas discriminações aconteçam na sociedade,

mesmo que de forma discreta. Entretanto, a argentina Beatriz Sarlo, estudiosa

das culturas e da pós-modernidade em sua obra: Cenas da vida pós-moderna

salienta que: “...Sabemos o que se perdeu, mas ninguém sabe ao certo o que

se ganhou...”(2006,p.103). Nessa perspectiva, a autora deixa uma reflexão

acerca das transformações sociais no que diz respeito aos direitos e deveres

do cidadão que, aparentemente, adquiriu diversas conquistas mesmo que

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imperceptíveis, por conta do novo padrão de vida social que o capitalismo

impôs à sociedade, através do consumo e das práticas individualistas que

terminam por contribuir ainda mais na divisão social entre pobre, rico, provido e

desprovido de conhecimento.

A democracia e a “liberdade” conquistada na forma da lei não passa de

uma ilusão, uma vez que a democracia e a “liberdade” tão sonhada não

atendem a todas as classes sociais e suas especificidades culturais, digo, não

compreendem todos os cidadãos, independente de sexo, raça e etnia.

Dessa forma, os sujeitos “marginais” terminaram por ficar aprisionados

culturalmente e por muito tempo foram silenciados por não se enquadrar nos

padrões sociais determinadas pelo capitalismo.

Neste trabalho, como já se antecipou, a palavra marginal se insere no

contexto do indivíduo ou grupo que não se enquadra nos padrões sociais e é

excluído de alguma maneira, como afirma Idemburgo Frazão em seu artigo

“Diálogos marginais: As identidades periféricas em João Antônio e Lima

Barreto”:

(...) A palavra marginal serve como adjetivo para aqueles que não seguem efetivamente as leis e também para quem não segue à risca os costumes sociais. Essa duplicidade de sentido que lhe é inerente, faz com que, muitas vezes, o segundo sentido, seja geralmente postergado. Relaciona-se, em termos sociológicos, às pessoas envolvidas por nuanças inerentes à marginalização social. São exemplos disso os mendigos, os loucos, os desempregados, os migrantes, membros de minorias raciais, dentre outros. Os marginalizados, nesse sentido, poucas vezes conseguiram ter voz nos parlamentos, nas tribunas, na sociedade como um todo (FRAZÃO, 2011, p. 3).

Entretanto, alguns escritores insatisfeitos com o papel social de

subalternidade reagem e vem enfrentando as imposições geradas pela

literatura vigente e pelo capitalismo e mostram a sua arte, em especial a

literatura, através do seu próprio discurso de marginalizado voltado para uma

literatura denominada marginal que mostra a realidade da periferia, a

desigualdade social, a violência e a miséria que cotidianamente faz parte desse

lugar. A palavra marginal já fora utilizada no que se refere a outros escritores

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como, Carolina Maria de Jesus, João Antônio e Lima Barreto, que já

abordavam a questão da subalternidade dos excluídos.

Para esses escritores, a associação do termo marginal à literatura remete, ao mesmo tempo, à situação de marginalidade (social, editorial ou jurídica) vivenciada pelo autor e a uma produção literária que visa expressar o que é peculiar aos espaços tidos como marginais, especialmente com relação à periferia (os temas, os problemas, o linguajar, as gírias, os valores, as práticas de certos segmentos, etc.) (NASCIMENTO, 2009, p.20).

Hoje, movimentos literários como a COOPERIFA, Cooperativa Cultural

da Periferia, e que tem Sérgio Vaz como um dos organizadores, reúnem

artistas/autores da periferia e promovem um espaço cultural na Zona Sul de

São Paulo voltado para lançamentos de livros, apresentações de teatro e

música, saraus, debates, no qual os próprios artistas negros são os

protagonistas, imprimindo suas identidades, linguagens próprias e maneiras de

mostrar a cultura da periferia compartilhando experiências e defendendo suas

ideias. Segundo Érica Peçanha, os projetos culturais dos escritores Sérgio Vaz

(COOPERIFA), Ferréz (1da Sul) e Sacolinha (o Literatura no Brasil) tiveram o

objetivo de incentivar a leitura e divulgar as produções dos escritores da

periferia.

Os escritores mencionados no trecho anterior tiveram como referência e

inspiração nessa trajetória literária, João Antônio (1937-1996), que publicou

obras como Bacanaço, Malagueta e Perus entre os anos 1960 e 1970

mostrando as vivências, problemas e os passatempos dos integrantes dos

subúrbios, os “malandros” e trabalhadores, como, por exemplo, os jogadores

de sinuca, e Plínio Marcos (1935-1999), escritor que estreou no campo artístico

nos anos 1960, e escreveu sobre temáticas que retratavam os problemas

sociais dos desassistidos pela elite como a violência e a prostituição.

Ainda no contexto voltado à malandragem e marginalidade, é importante

ressaltar a transição da dialética da marginalidade em substituição à dialética

da malandragem apresentada pelo estudioso da literatura Antônio Cândido,

destacando o papel social do malandro e do marginal na história da realidade

brasileira.

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O discurso do malandro apoia-se na oposição ao trabalho, entretanto,

sem seguir explicitamente pelo caminho da violência e criminalidade. A figura

social do malandro é associada à esperteza, aquele que ganha a vida

procurando caminhos menos trabalhosos na busca de obter vantagens à custa

do outro, com a sua dialética mansa e vestimenta elegante. O malandro

expressava suas insatisfações com as transformações do cenário urbano sem

exercer, pelo menos, como os marginais, a violência, negociando situações de

conflito de maneira mais branda com seu discurso flexível, com seu gingado,

suas composições para alcançar seus objetivos. Já em relação à dialética da

marginalidade, assim denominada pelo crítico João de Castro Rocha, mostra-

se a exclusão e as desigualdades sociais como a temática central em um

contexto de violência, apresentando os excluídos como protagonistas de

romances, poesias e até mesmo em produções cinematográficas como o filme

de Paulo Lins, “Cidade de Deus”, caracterizando a realidade dos

marginalizados em relação ao sistema que oprime e domina. O autor apresenta

a dialética da marginalidade sobre uma perspectiva da realidade brasileira

contemporânea:

O modelo da dialética da marginalidade pressupõe uma nova forma de relacionamento entre as classes sociais. Não se trata mais de conciliar diferenças, mas de evidenciá-las, recusando- se a improvável promessa de meio-termo entre o pequeno círculo dos donos do poder e o crescente universo dos excluídos. Nesse contexto, o termo marginal não possui conotação unicamente pejorativa, representando também o contingente da população que se encontra à margem, no tocante aos direitos mais elementares, sem dispor de uma perspectiva da absorção, ao contrário do malandro (ROCHA, 2004, p.56).

Ainda em relação à problemática da Dialética da Marginalidade, como a

entende Castro Rocha, é de fundamental importância que se destaque aqui a

crítica realizada em relação à sua utilização do termo realizada por Alexandre

Faria, João Camilo Penna e Paulo Tonanni Patrocínio. Para esses autores, a

Dialética da marginalidade não substitui ou suplanta a Dialética da

malandragem, cunhada e estudada por Antônio Cândido. Há, segundos os

mesmos estudiosos, um convívio, uma coexistência entre ambas. Como

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afirmam os autores de Modos da margem, figurações da marginalidade na

literatura brasileira.

Em resumo, não vemos uma oposição entre malandragem e marginalidade, vemos na linha de continuidade e transformação entre essas duas tradições, que confluem e se distanciam. Afinal, a vida do malandro não é o mar de rosas que aparenta ser, como o demonstra um estudo detido da figura histórica em seu tempo, justamente no momento em que ele se transforma em modo de organização social, no início do século XX (FARIA, PENNA E TONANI, 2015, p. 35).

Talvez, em realidade, não haja segundo os mesmos autores, uma

dialética. Mas, segundo esses mesmos autores, a iniciativa de Castro Rocha é

louvável. Assim, pode-se afirmar que a Dialética da Marginalidade traz uma

nuança diferente para que se observe, pelo prisma simbólico, que há uma nova

atitude por parte dos autores da literatura marginal de periferia. Há uma maior

independência por parte dos artistas, marcada por um enfrentamento e não

pela busca de conciliação.

Voltando a Lima Barreto, pode-se afirmar que o autor apresenta, no

romance Clara dos Anjos, uma escrita em forma de denúncia. Por isso deu

destaque a temáticas sociais, como a do preconceito também vivido pelo

escritor, que se sentia marginal, periférico, mas não queria tornar-se

subalterno. Como já foi mencionado anteriormente, a indiana Gayatri

Chakravorty Spivak também escreveu sobre os subalternos em relação à

opressão que sofrem por não terem notalibilidade no campo econômico-cultural

e ideológico e por isso são silenciados. Foi por intermédio das artes, inclusive

da literatura que se pôde mostrar a situação do subalterno e reivindicar

transformações e a obra limabarretiana, assim como de outros autores

mencionados, teve um grande papel social nessa luta.

Pode-se, finalmente, afirmar, ao pôr em diálogo as discussões sobre

subalternidade e marginalidade, que Lima Barreto não poderia ser inserido,

efetivamente, nem na instância da dialética da malandragem, como a entendia

Antônio Cândido, nem na da marginalidade, como a vê João César de Castro

Rocha. Mas pelo enfrentamento dos preconceitos, pela postura crítica em

relação dos desmandos do poder público diante dos problemas das periferias,

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tornou-se, em sua época, na literatura, uma das poucas vozes audíveis da

periferia carioca. Se ainda agiu sob o manto do desgosto e da tristeza pessoal

e não se sentiu vencedor – e recebeu o auxílio luxuoso de estudiosos como

Heloísa Buarque de Holanda e de editoras como a Aeroplano-, como os atuais

autores marginais de periferia, Lima Barreto pode ser entendido como um

efetivo precursor ou, quem sabe, o único que, até hoje, permaneceu até a

morte, marginal.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Lima Barreto foi um escritor à frente de seu tempo, que sofreu muitos

preconceitos ao longo de sua vida pessoal, devido à sua condição social, racial

e profissional, por provocar a elite com temáticas realistas e a linguagem

utilizada em sua obra.

O precursor Lima Barreto, com seu modo crítico de escrever, deu voz a

atores sociais excluídos e suas angústias com o propósito de buscar relações

de igualdade e de ética para uma sociedade com muitos preconceitos, que

exclui e desprestigia o outro. Como se pôde depreender, coloca-se em questão

a problemática da relação do preconceito social e seus desmembramentos,

linguísticos, raciais e de gênero encontrados nas obras de Lima Barreto, que

podem ser observados na recepção delas.

O horizonte de expectativas do leitor, inerente à obra limabarretiana, é

fundado, no entender do presente texto, em olhares preconcebidos, que veem

a periferia e a marginalidade, em vários de seus sentidos, como fator de

inferioridade. Entretanto, exemplos diversos podem ser dados para mostrar que

tais “pré-conceitos” interferiram, durante décadas, na recepção das obras do

autor.

É importante destacar o período da Bélle Époque, durante a

reestruturação do centro do Rio de Janeiro aos moldes europeus, sob comando

do prefeito Pereira Passos, pois foi um momento da história que causou

grandes angústias com a expulsão da população pobre para o subúrbio e a

negação da sua cultura. Esse acontecimento, gerador da exclusão social,

intensifica a condição de subalternidade e marginalidade e a imposição dos

governantes da época ao introduzir bruscamente os costumes da cultura

europeia, principalmente francesa, na cidade.

Lima Barreto se diferencia e se destaca através da sua ironia e crítica

por mostrar o pensamento preconceituoso da sociedade brasileira do final do

século XIX e início do século XX e por apontar para questões até então

camufladas em uma linguagem mais próxima dos moradores da periferia.

A tentativa de aprofundamento da reflexão sobre alguns tipos de

preconceitos, realizados ao longo desta dissertação, serviram como base para

o melhor entendimento do romance Clara dos Anjos, e, por extensão, da

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trajetória biográfica de Lima Barreto. A personagem Clara representa as

mulheres que, por serem negras, pobres e moradoras do subúrbio,

pertencentes à periferia, são tratadas como inferiores e subalternas pelo

próprio narrador. A personagem possuía uma identidade frágil e não tinha

conhecimento de sua situação perante a sociedade da época. A questão da

subalternidade da mulher ainda é mais complexa, como diz Spivak, por conta

da sociedade machista do século XX, porém, Lima através da personagem,

mostrava, também, a condição do negro, em geral.

Lima se sentia um escritor marginal por não morar no centro, mas

também por se sentir excluído socialmente. O escritor se sentia inferior por não

ser reconhecido no campo literário por conta da sua condição de pobre, negro,

morador do subúrbio e por enfrentar a elite com sua literatura militante e sua

linguagem simples e irônica, denunciando os problemas do subúrbio e de seus

moradores e a segregação social que vivia aquela população. Sua maneira de

escrever só foi aceita depois de sua morte.

A contribuição maior desta dissertação é deixar que se perceba a

literatura marginal de Lima Barreto e o quanto os preconceitos, de diversas

ordens, dificultaram que a obra do escritor fosse entendida como uma das mais

importantes da Literatura Brasileira.

É a partir desse trabalho de revisão do olhar preconceituoso

caracterizador (na maioria das vezes) da recepção tradicional das obras de

Lima Barreto, que a dissertação intentou refletir, também, ainda que de

maneira incipiente, sobre a permanência de tais preconceitos na

contemporaneidade.

Pode-se, perceber, na atualidade, como os personagens de Lima

Barreto, na obra Clara dos Anjos, não estão somente na ficção. São atuais,

juntamente com seus estigmas. Lima foi um escritor precursor das questões

relativas à marginalidade, ao tratar de temáticas vivenciadas até hoje, como o

preconceito social, a situação de exclusão dos marginalizados e o descaso dos

governantes em relação à população que vive à margem e por isso foi tão

criticado.

A vida e a obra de Lima Barreto se misturam. O escritor escrevia a sua

literatura a partir de seus próprios descontentamentos, principalmente, por

conta da exclusão social, o que gerou consequências em sua trajetória. Foi

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internado como louco, algumas vezes, e teve uma vida de amarguras. Através

da literatura e o amor pelas letras - junto com outros escritores que também

sofreram preconceito, como Carolina Maria de Jesus - conseguiu passar o seu

recado e denunciar questões até então camufladas pela elite sócio-econômica

brasileira.

Na atualidade, escritores como os já citados Sérgio Vaz, Férrez e

Sacolinha, vêm dando maior visibilidade à questão da literatura marginal,

mostrando a arte, principalmente na literatura, de escritores pobres – pelo

menos quando iniciam sua carreira - e mostrando a identidade do subúrbio e

da periferia através da própria voz do marginalizado que enfrenta, assim como

Lima Barreto, as regras vigentes e luta para impor a sua identidade e sua

cultura, buscando o seu espaço e exigindo respeito à diversidade, em várias de

suas acepções.

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