Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

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Humberto Gessinger

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Título: PRA SER SINCERO - 123 VARIAÇÕES SOBRE UM MESMO TEMA Autor: Gessinger, Humberto Editora: Belas Letras Gênero: Artes/Música Dimensões: 21 cm X 15 cm X 1 cm. Ano: 2009 Edição: 1ª/2009 Paginas: 304 Sinopse: Em 11 de janeiro de 1985, mesmo dia da abertura da primeira edição do Rock in Rio, Humberto Gessinger subia ao palco do auditório da Faculdade de Arquitetura da UFRGS de cabelo new wave e bombacha, para o primeiro show de uma banda que tinha nascido para durar uma noite só. Era para ter se chamado Frumelo & Os Sete Belos, mas ninguém gostou, então os integrantes da banda resolveram fazer uma brincadeira com os estudantes de Engenharia e os surfistas que frequentavam o bar da universidade, que estava a pelo menos 100 quilômetros do mar. Engenheiros do Hawaii. Vinte e cinco anos depois dessa estreia, Humberto Gessinger – que acompanhou todas as formações desde o primeiro show – lança neste livro seu olhar sobre a trajetória do grupo, sobre cada uma das composições e revela curiosidades e bastidores das gravações. Com fotografias inéditas, informações sobre cada um dos discos, letras comentadas e um diário de 1984 a 2009, Pra Ser Sincero é um livro sobre uma banda que era para ter durado uma noite só, mas que acabou escrevendo um capítulo da história do rock brasileiro, mesmo estando longe demais das capitais

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não me pergunte em que dia eu nascinão me pergunte em que cidade eu nascio filme favorito, o time do coraçãoo lugar mais esquisito em que escrevi uma cançãose tu quiseres saber quem eu souvem ver com os próprios olhosvem ver a vida como ela é

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1ª Edição/2ª Reimpressão2012

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copyright 2009 Humberto Gessinger

Editor | Gustavo GuertlerAssistente editorial | Aline C. OrsoProjeto gráfico | Melissa Mattos Luis SaguarRevisão | Alessandra Rech Karina de Castilhos Lucena Luís Augusto FischerCapa | Melissa Mattos, sobre foto de Marco de Bari/Editora Abril

[2010]© Todos os direitos desta edição reservados àEditora Belas-Letras Ltda.Rua Coronel Camisão, 167CEP 95020-420 – Caxias do Sul – RSFone: (54) 3025.3888www.belasletras.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Fonte (CIP)

Biblioteca Pública Municipal Dr.Demetrio Niederauer

Caxias do Sul, RS

G392c Gessinger, Humberto

Pra Ser Sincero: 123 Variações Sobre Um Mesmo Tema /

Humberto Gessinger. _Caxias do Sul, RS: Belas-Letras, 2010.

304 p.

ISBN 978-85-60174-45-4

1. Autobiografia. I. Título

09/34

CDU : 869.0(81)-94

1. Autobiografia 869.0(81)-94

Catalogação na fonte elaborada pela bibliotecária

Maria Nair Sodré Monteiro da Cruz CRB 10/904

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123 Letras

Luís Augusto Fischer

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(ao som de baquetas contando o início da canção: 1… 2… 3…)

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Nasci em Porto Alegre, misturando famílias com origem no interior. Colonos italianos por parte de mãe, colonos alemães por parte de pai. Geral-mente falam dos gaúchos como se fôssemos um povo homogêneo, os branque-los do fim do mapa. Até pode ser assim, visto de longe. Visto de dentro, tudo é maior. Só entre a gringalhada da Serra e a alemoada do Vale já há um abismo de diferenças. Sem falar das outras peças do quebra-cabeça.

Não havia nenhum músico na família da minha mãe. Havia músi-ca. Lembro de uma canção que meus tios cantavam quando me colocavam a esmagar uvas com os pés. A tradução poderia ser: Itália tá doente / desen-ganada pelos doutores / para salvar a Itália / tem que cortar a cabeça dos ricos. Não que fosse um pessoal politizado. Só eram sempre contra. E eram muito católicos.

Eram muito católicos, também, na família do meu pai. Reza a lenda que todos tocavam algum instrumento. Piano, acordeón, violino, cítara alemã. Dez irmãos, uma pequena orquestra para quando chegasse visita naquelas noi-tes do interior gaúcho. Noites de tempos sem TV. Não cheguei a vê-los tocar. Herdei o acordeón da tia Hildegard. No dia em que ela recebeu o diploma, fechou a tampa e nunca mais tocou.

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Nasci no dia 24 de dezembro, o que me deixou sem festa de aniversá-rio a vida inteira. A vida inteira estudei numa mesma escola de classe alta. Só porque meu pai trabalhava lá. Ele vivia correndo de colégio em colégio, dando aulas de latim, depois francês, depois português. Enquanto os currículos esco-lares eliminavam idiomas, o professor Huberto corria atrás do leite das crian-ças. Quatro filhos pra criar. Nunca nos faltou nada, material ou espiritual.

Minha mãe também lecionava. Eram dela os livros mais bacanas da casa. Grandes, com capa dura e muito mais figuras do que texto. Infeliz-mente, em vez de aprender geografia nesses livros, tomei gosto por gráficos e tabelas. Deve ser o que chamam de efeito colateral. Dona Casilda tem seus mistérios. Um motor que não faz barulho. E anda! Na próxima encarnação, quero ser neto dela.

Não tenho nada muito interessante pra contar dos tempos de colégio. Quem não me conhecia me achava antipático. Ninguém me conhecia. Nenhum dos meus colegas frequentava as mesmas ruas, quadras e esquinas que eu. A cidade devia ser bem pequena vista de um avião. Por dentro, era enorme.

nossa cidade é muito grande e tão pequenaestamos longe demais das capitais

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Da escola não tenho nada muito interessante pra contar, a não ser que eu era goleiro. Uma pequena vaidade. Sofrer solitariamente? Sim, mas com fardamento diferente. Luva, bandana e joelheira.

Do gol, passei a jogar tênis. Bjorn Borg era o cara. E era frio, o Ice-borg. Podia jogar 123 horas, ganhar ou perder, sem que seu rosto revelasse al-guma emoção. Parecia saber algo que ninguém mais sabia. E parecia não poder dividir o segredo com mais ninguém.

Com seu jeito de goleiro argentino, Borg parou de jogar no auge da carreira. Há lendas nebulosas sobre tentativas de suicídio. Um tango nórdico escrito por Wagner. Como geralmente acontece na dança dos ci-clos, as características dele ficaram mais nítidas contrastadas com a manei-ra de ser do cara que o sucedeu no topo do tênis mundial: John McEnroe, um fanfarrão.

Eu nunca tive muito saco nem talento para competição. Depois de al-guns minutos, me parecia absurdo ficar correndo atrás de uma bolinha que ou-tro cara teimava em jogar cada vez mais longe. Treinar, eu achava legal. Passava horas no paredão, só ouvindo minha respiração e os três sons que a bolinha fazia: raquete-parede-chão, raquete-parede-chão. Um compasso ternário, uma valsa, um chamamé, um-dois-três, 1-2-3, raquete-parede-chão.

Resumindo minha carreira tenística, desenvolvi um saque muito bom. Acima de qualquer outro golpe, pois era o único que eu podia aperfeiçoar sozinho. O golpe que começa e termina em si mesmo. Cordel Kill Bill.

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Cordel Kill Bill. Mente desligada. Hoje, consigo essa boa sensação es-tranha percorrendo, mecanicamente, sem emoção, escalas no piano ou violão. Lavar louça ou pregar botões também funciona, algumas vezes.

se Capricórnio fosse Câncerse Califórnia fosse França

a rampa que lança o skate ao céuseria nosso chão

se eu fosse um cara diferente, sabe lá como eu seria

Nasci no fim de dezembro, o que me aprisionou a um signo zodiacal pouco glamouroso. Dizem que a hora também é importante, pode desenhar ou-tros elementos no mapa, suavizar o diálogo entre os astros. Nasci às 18h30min. Meia hora antes, aos trinta minutos negativos da minha vida, freiras passaram pelo quarto cantando ave-maria.

Imagino que fossem freiras com fardamento completo. Como tia Rosina, que viveu 123 anos, sempre de hábito. Ela contava histórias de quando esteve na Itália em plena Segunda Guerra Mundial. Sempre me trazia um licor de anis que ela mesma fazia. Para cuidar da voz. 123%, o teor de álcool.

enfermeiras em filmes de guerraviolinos nas canções de amor

Nasci em 1963. Tinha seis anos e uma camiseta do Jairzinho quando o Brasil foi tri na Copa do México. Minha camiseta era verde e amarela, a da Seleção foi cinza até a Copa de 74, quando uma Telefunken trouxe cores para os jogos. Aí eu já tinha onze anos e a TV, ainda, só três canais.

Uma TV, colorida ou não, não era nada comparada ao toca-discos que apareceu lá em casa quando eu tinha cinco anos. A Eletrola. Tudo nela era fascinante: os pés-palito, o pano ortofônico, os enormes botões, a luz dentro da logomarca da Philips, o mecanismo de empilhar vários discos, o seletor de velocidades, 33, 45, 78 rpm… Uma joia.

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Um conhecido dos meus pais trabalhava numa sociedade arrecadadora de direitos autorais, por isso ganhava uma quantidade enorme de discos. Sem ter o que fazer com eles, deixou todos com a gente. Era uma coleção fascinante por ser completamente aleatória. Ninguém compraria aqueles, e só aqueles, discos.

No meio de todas as possibilidades musicais que os LPs ofereciam, eu voltava sempre para Os Incríveis, conjunto da Jovem Guarda, e José Mendes, cantor missioneiro. A causa do fascínio eram duas canções com uma caracterís-tica comum: narravam uma história. Como um filme ou uma ópera. Histórias tristes, sem final feliz.

Era um Garoto que como Eu Amava os Beatles e os Rolling Stones começava com uma rajada de metralhadora e contava a história de um jovem morto na guerra. Em Picaço Velho, era um cavalo que morria. Culpa de um boi brasino. Foi por querer muito tocar essas duas músicas que ganhei meu primeiro violão.

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Quem me deu o presente foi tia Bambina. Eu adorava esse nome até o dia em que ela me explicou por que não gostava dele: Bambina quer dizer “menina” em italiano. Era um antinome, nome nenhum.

Desde sempre escrevi, com a pior caligrafia da turma, letras de músicas que não existiam. O violão foi ficando pra trás, acumulando poeira. Quando eu tinha doze anos, meu pai adoeceu. Faleceu quando eu tinha catorze. Tudo ficou em stand-by, nesse período, lá em casa. Acumulando poeira. Muita coisa ficou em stand-by pra sempre. Não deu tempo pra ele me ensi-nar a fazer a barba.

Enquanto meus colegas brigavam com seus pais na saudável busca de identidade, à noite, eu colocava os chinelos do meu pai para andar no escuro da casa. Fisicamente não nos parecíamos, mas o som dos chinelos caminhando era igual. Matava um pouco da saudade.

toda vez que falta luztoda vez que algo nos falta

(alguém que parte e não volta)o invisível nos salta aos olhosum salto no escuro da piscina

O que havia de bom nessa época era ouvir música. Descobrir no-vos grupos nas revistas compradas no segundo andar do mercado público. Mais do que ouvintes, éramos torcedores das bandas. Quanto mais obscura e menos conhecida, mais gostávamos. O ideal de todo fã é ter uma banda só para si. Pelo menos era. Em algum ponto da estrada, vender mais discos e dar mais entrevistas passou a ter valor, mesmo nas tribos que deveriam oferecer alternativas.

Até no minúsculo mundo do rock inglês havia territórios e fronteiras, uma divisão bem nítida entre estilos. Rock Pesado versus Rock Progressivo. Este último era o meu time. Apesar de também gostarmos de outras bandas, não podíamos admitir. Tínhamos que fazer pose de maduros defensores do rock mais cabeça, desdenhando os cantores que só ficavam no baby, baby, baby...

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Concordávamos todos no pavor à Disco Music. É engraçado: o que considerávamos mais superficial vingou e influencia o pop de hoje. O que achávamos perene, micou. Continuo resistindo, achando que isso é só uma con-sequência matemática da maior exposição do que chamávamos de som comer-cial. Certamente não estou com a razão.

Meu coração de fã continua intacto. Não é pouca coisa, manter as ilusões depois de ver a máquina por dentro. Sou completista: quando gosto de algum artista, quero saber tudo sobre seu trabalho. Adoro as fases estranhas pelas quais todos os artistas de longa carreira passam. Sempre tive um pé atrás com as novas ondas, por isso, frequentemente me atraso. Fui o último cara da minha turma a me dar conta de que Bob Marley era o que é.

pra entender é preciso fé cega e pé atrásuma canção da banda preferida, uma descida ao porão

seis cordas pra guitarra, seis sentidos na mesma direção600 anos de estudos ou seis segundos de atenção

Meu presente de quinze anos foi dinheiro suficiente pra comprar uma guitarra e um amplificador. Faltou pro táxi e tive que levar a tralha pra casa de ônibus. Decepção total com a guitarra. Não era um instrumento introspectivo. Resolvi tomar aulas de violão. Cordas de náilon. Yankees go home!

Quando cheguei, na primeira aula, o professor estava tocando um choro ao bandolim. Foi o fim do violão. Falei que queria aprender aquilo. Ele disse que eu deveria formar um regional para me acompanhar. Consegui três colegas, dois violões e um cavaquinho.

O chorinho virou uma paixão. Nos sábados, o professor nos passava uma música e eu ia direto para as lojas de disco do centro catar tudo que eu achava de Jacob do Bandolim e Valdir Azevedo. Os álbuns do Arthur Moreira Lima interpretando Ernesto Nazareth estavam no topo de qualquer lista.

Fui ficando sozinho na paixão pelo choro. O regional de um homem só. Na época, abriu-se uma janela de receptividade, até comercial, para uma música instrumental bem mais complexa: jazz, Gismonti, Jean Luc-Ponty, Pat

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Metheny, Stanley Clarke, Weather Report... Assisti a John McLauglin num Gi-gantinho quase lotado! Ainda que maravilhosa, essa música trazia uma sensa-ção desestimulante. Tocar parecia algo reservado a poucos eleitos. Segui ouvin-do meus discos e tocando meu violãozinho no quarto fechado.

interessa o que não foi impresso e continua sendo escrito à mãoescrito à luz de velas, quase na escuridão, longe da multidão

Resolvi cursar Arquitetura, não sei bem por quê. Até não descarto uma influência inconsciente de músicos que fizeram esse curso. Alguns da Bossa Nova, outros da MPB. Até os caras do Pink Floyd, em biografias mal traduzidas, estudaram Arquitetura.

Meu traço não era bom, mas eu gostava das matérias teóricas, história da arte, história das cidades. Aquela esquina entre Artes Plásticas e Engenharia era um lugar legal pra ficar olhando o movimento.

Entrei na Escola de Arquitetura da UFRGS em 1981. Havia dois gru-pos de professores ideologicamente opostos. Dependendo de quem avaliasse os nossos trabalhos, poderíamos tirar a melhor nota ou sermos reprovados. Bela lição de relativismo cultural. Me foi muito útil fora da escola.

o sonho é popular eu li isso em algum lugar

se não me engano, é Ferreira Gullarfalando da arquitetura de um Oscar

o concreto paira no armais aqui do que em Chandigarh

o sonho é popular

No fim de 1984 rolou uma greve que fez as aulas se estenderem ja-neiro adentro. Sem muito o que fazer no verão porto-alegrense, a estudantada inventava atividades paralelas: exposições, festas, happenings… Numa des-sas, me juntei a três colegas para fazer um show no auditório da faculdade.

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O baterista era Carlos Maltz, figuraça. Muito inteligente. A piada que diz serem necessários dois bateristas pra trocar uma lâmpada (um pra segurar a lâmpada e outro pra beber até a sala girar) não se aplica a ele. Mais inquieto e rodado do que eu, Carlos já era casado e havia passado um tempo em Israel e na Europa. Nossas diferenças ajudavam muito na invenção de uma banda. Seguimos tocando juntos por muito tempo. Até brigarmos sem brigar. Cada um foi pro seu canto e cada canto virou um mundo à parte. De-pois de um tempo, voltamos a fazer algumas coisas juntos. Carlos é um dos responsáveis por eu ter seguido escrevendo e tocando. 123 vezes resolvi largar tudo e ele sempre me dizia, às vezes sem falar nada, pra continuar.

seguir viagem, tirar os pés do chãojá vi o fim do mundo algumas vezes

e, na manhã seguinte, tava tudo bem

No início, escrever releases pretensiosos e desenhar cartazes espertos nos interessava tanto quanto fazer música. Estou mentindo: os cartazes eram nossa preferência.

Sempre ensaiávamos na casa da família Maltz. Na garagem ou na sala, dependendo da moral da banda no momento. Flap, o irmão me-nor, sempre ficava por ali. Era muito engraçado na sua incorreção polí-tica. Se não era um profundo conhecedor de aviões e carros antigos, nos enganava muito bem.

Estreia e despedida dos Engenheiros do Hawaii aconteceriam no dia 11 de janeiro de 1985, dia da abertura do primeiro Rock in Rio. Tentamos con-vencer algumas pessoas de que seria melhor nos ver tocar ao vivo do que assis-tir aos monstros sagrados pela TV.

Eu tinha alguns cadernos de canções que incluíam trechos do que viria a ser Infinita Highway, Nada a Ver, e outras músicas que eu gravaria depois. Não mostrei nenhuma delas. Escrevi uma dúzia de canções no espírito da época, pós-punk. Tinham aquele humor nonsense, niilista. Engenheiros do Hawaii, uma delas, acabou dando nome ao grupo.

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Lembro de ter sugerido Frumelo & Os 7 Belos, brincando com o nome das balas. Todo o mundo odiou. Engenheiros do Hawaii era uma brin-cadeira com os estudantes de Engenharia e surfistas que frequentavam nosso bar atrás das nossas colegas. Péssima escolha. Até hoje não sei nadar. Até hoje tenho que explicar que nunca estudei Engenharia pra gente que não acredita e jura que conhece outralguém que estudou comigo, Engenharia. Mas há uma autoironia, no nome, que me agrada.

to be or not to beengenheiros do Havaí

eles odeiam Albert Camuseles só querem ler gibi

Li, em algum lugar, que, no início da banda Metallica, falaram para os músicos que eles nunca fariam sucesso com aquele nome, porque era uni-dimensional. Péssima previsão. Aqui rolou algo parecido, ao contrário. Ban-das com nomes unidimensionais e heroicos como Ratos do Porão e Legião Urbana tendiam a ser levadas mais a sério. Os Titãs, que no início eram “do Iê-Iê-Iê”, deixaram essa questão explícita quando simplificaram o nome para se adequar aos ares menos sutis que se aproximavam com os anos 90.

meninos de engenhosanta ingenuidade

santíssima trindadesexo, drogas, rock’n’roll

Voltando ao primeiro show, encontraremos minha guitarra Giannini Diamond fingindo ser uma Gibson 335. Eu, de bombacha e ca-belo new wave, não sei o que fingia ser. O repertório era meio performá-tico. Além das músicas que escrevi, tocamos uma versão reggae de Lady Laura, do Roberto Carlos, e jingles dos biscoitos Sem Parar e do Extrato de Tomate Elefante.

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Não lembro bem do show, pois estava bêbado. Era a primeira vez que eu tocava em público. Tracei uma linha na lista das músicas que ficava aos meus pés, exatamente no que seria a metade do show. Enquanto tocava, olhava o roteiro e pensava que, se chegasse até aquela linha vivo, iria até o fim. Essa mania me acompanhou por alguns anos.

Em princípio, eu nem deveria cantar todas as canções, mas, no pro-cesso, o pessoal foi tirando o corpo e sobrou pra mim. Cantar não era algo que me dava prazer. O que eu queria fazer era tocar algum instrumento. E compor.

Esse primeiro show parece ter ido bem. Pintaram convites pra apresen-tações em outras faculdades e alguns bares. A banda que montamos pra durar uma única noite estava virando uma banda pra durar algumas semanas. Já como um trio, tocávamos onde dava pra tocar. Onde não dava, também tocávamos.

O repertório ia mudando rapidamente. As colagens performáticas foram dando lugar a um material mais pessoal, saído do velho caderno. Dos bares, começamos a andar pelo interior. Era algo que as outras bandas menos-prezavam. Ficavam umas tocando para as outras, no mesmo bar. Dizem as más línguas que são necessários 100 guitarristas gaúchos para gravar um solo (um para tocar e 99 para dizer que fariam melhor). Não é bem assim, mas é quase.

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A agenda da época mandava ser completamente urbano e cos-mopolita, romper com qualquer influência da MPB ou de sua versão gaú-cha, a MPG. Inventou-se que o rock no Brasil foi inventado nos anos 80. Muita gente jogou fora seus discos antigos. Depois se arrependeu.

Nós éramos estranhos porque tínhamos e mantínhamos um pé em cada um desses mundos: rock clássico, MPB, MPG e atitude punk do-it-yourself. Deve ter sido essa salada que chamou a atenção de uma gravadora do centro do país, que lançaria um disco com cinco bandas gaúchas. Éramos a banda na qual ninguém acreditava e a banda que es-tourou. O disco se chamou Rock Grande do Sul.

Vendo em retrospectiva, acho que, sem querer, os caras fizeram uma seleção emblemática da cena local. Das cinco bandas, duas faziam um rock clássico, sessentista e setentista. Outras duas bandas tinham pretensões de pós-modernidade, rezavam pela cartilha das revistas e jornais de São Paulo.

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e nós ali no meiono meio da cegueira

nós ali no meiono meio das bandeiras

Os clássicos me pareciam mal informados para menos. Os moder-nos, mal informados para mais. Nós estávamos mais prontos para o que viria. O BRock acabou transcendendo as gracinhas do Rio e o mau humor de São Paulo, criando um ambiente que nos favoreceria.

Com o sucesso da coletânea, pudemos gravar um disco só nosso. Durante as gravações, em São Paulo, ainda éramos o patinho feio. Gra-vávamos nas horas que sobravam de outros artistas. Infelizmente, quase sempre pela manhã.

Toda Forma de Poder, primeira música do nosso primeiro disco, co-meteu quatro pecados capitais: colocou Fidel e Pinochet na mesma frase, tinha participação de um ícone da MPG, estourou no Brasil inteiro e entrou numa novela (nessa ordem).

Eu era completamente despreparado para tudo o que estava acon-tecendo. Não sabia como me relacionar com outros artistas, gravadora, im-prensa e público. Só depois me dei conta de que rolava um subtexto nas rela- ções São Paulo/Rio/Província. Misteriosamente, sobrevivi sem aprender a fazer a coisa certa. Aquele destemor de quem não sabe onde está se metendo deve ter ajudado.

Ganhamos um Disco de Ouro raro na cena e começamos a viajar pelo Brasil inteiro. No fim da turnê, Marcelo Pitz, nosso baixista, resolveu saltar fora. Peguei emprestado o baixo dele, um lindo Rickenbacker Sunburst, para gravar, com Carlos, a demo do que viria a ser o próximo disco. As músicas já estavam todas prontas.

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Sempre achei as limitações de um trio estimulantes. Compor, fazer arranjos e tocar nesse formato é estar numa interessante esquina entre arte e ofício. Um lugar bom para ficar ouvindo o movimento. Pensei que, se eu passasse para o baixo e encontrássemos alguém que também tocasse mais de um instrumento, estaríamos livres para explorar o trio de uma maneira mais versátil. Sem cair nas armadilhas de heroísmo dos power trios.

Talvez eu esteja mentindo. O real motivo para eu ter virado baixis-ta pode ter sido aquele Rickenbacker Sunburst. E os Rickenbacker Creme e Madeira que vieram depois. E os Steinberger, fretless e de dois braços. Podem ter me feito baixista os Fender Precision do Roger Waters e do Phil Lynnot, o Fender Jazz Bass do Jaco Pastorius, os amplificadores do Chris Squire e do Jack Bruce, a palhetada do cara do New Model Army, de quem, até hoje, não sei o nome.

Mais físico do que a guitarra, mais espiritual do que a bateria, o contrabaixo fica na esquina entre ritmo e harmonia. Lugar legal para ficar sentindo o movimento. Por acaso, virei baixista. Instrumento pelo qual a maior parte dos fãs me identifica, mais do que guitarra, violão, teclado, har-mônica ou viola caipira. Sou autodidata em todos esses instrumentos, mas é o baixo que deixa minha precariedade técnica mais evidente. Não deixa de ser constrangedor receber elogios nessa área. Talvez quem goste da maneira como toco baixo saiba mais da vida do que eu. É impossível ser, ao mesmo tempo, um coração e um cardiologista.

Falei com Maltz sobre a mudança. Ele achou legal a atitude irres-ponsável de mexer no time que estava ganhando. Alguns dias depois, ao encontrar Augusto Licks, num show, no Rio, Carlos o convidou para tocar guitarra com a gente.

Conhecíamos o Augusto de trabalhos com o pessoal da MPG e de um show, dos Engenheiros do Hawaii, no qual ele havia sido técnico de som. Além do grande talento musical, achávamos que ele traria um estranhamento legal, já que vinha de outro ambiente.

As mudanças de formação se tornaram frequentes na história dos Engenheiros do Hawaii. Não que eu gostasse. Não que eu evitasse.

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Num mundo ideal, as pessoas ficariam juntas para sempre. Mas, num mun-do ideal, talvez não se precise de música.

hoje eu sei, só a mudança é permanentede repente tudo está no seu lugar

O disco que gravamos em seguida fez uma história bacana. No lança-mento, não repetiu o sucesso do anterior, mas seguiria vendendo até o fim da in-dústria fonográfica, no início do século seguinte. Saber que nossa música estava chegando a lugares que não imaginávamos existir era estranho. Não posso dizer que me sentisse muito à vontade com a perda de controle que essa nova escala trazia. Boa sensação estranha.

Nossa gravadora, à época, era fraca no ambiente pop rock. O cast se baseava em artistas românticos e populares. Foi bom para nós. Fazíamos sucesso e os caras não entendiam como ou por quê. Então, nos deixavam em paz. Sempre gravei o que eu queria, da maneira que eu queria gravar. Os nú-meros que gerávamos eram confortáveis e nossa maneira de ser deixava claro que não queríamos, nem poderíamos, fazer outra coisa. Impossível nos trans-formar em dançarinos ou rostinhos bonitos. Isso nos protegeu.

Claro que a divulgação sempre era mais leviana e grosseira do que eu gostaria que fosse. Eu me consolava pensando que, se Bach fizesse parte do cast, tratariam-no da mesma forma. Cabia ao trabalho sobreviver, ou não, às intempéries.

Enquanto gravávamos nosso segundo disco, em São Paulo, o pes-soal da gravadora, no Rio, ficou sabendo que havia uma música com po-tencial para fazer sucesso. Era Terra de Gigantes. Os caras estavam apre-ensivos porque nosso arranjo não tinha bateria. Achavam um desperdício, nenhuma música sem bateria tocava nas rádios. Muito amigavelmente, nos sugeriram que seguíssemos a fórmula das baladas da época: que a canção começasse só com guitarra e voz e a bateria entrasse depois, seguindo até o fim. A música cresceria, os pés bateriam no ritmo e as lágrimas rolariam. Não estávamos muito interessados em fórmulas. Como uma brincadeira

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interna, gravamos uma virada de bateria que caía no vazio. A levada não seguia, morria ali, na entrada. Além disso, tiramos a letra dessa música do encarte do LP.

Pode ser irrelevante, e certamente é ingênuo, mas algumas ati-tudes como essa reforçavam a mistura de teimosia e irresponsabilidade que fazia com que nossas impressões digitais sobrevivessem aos apertos de mão. É natural que, ao conhecer um artista, a indústria, os críticos e os fãs se perguntem com quem ele se parece. Mas é preciso que o artista se pergunte o que é que só ele tem.

Na reunião em que mostramos o disco com Terra de Gigantes para a gravadora, o clima foi de decepção total. Lembro das palavras do chefão: “Esse disco é um Boeing com tanque cheio. Pode ir longe… Se não explodir na decolagem”. Não creio que ele acreditasse na pri-meira hipótese.

Saí da reunião direto para o aeroporto, achando que havíamos grava-do nosso último disco. No voo para Porto Alegre, encontrei um grande artista pop que estava indo ao Sul fazer alguns shows. Ele me mostrou, na fita K7 do seu walkman, a música que lançaria em alguns dias. A canção, que seria um grande hit, era bacana, seguia o formato dos singles radiofônicos da época. Fiquei com a boa sensação estranha de que ele havia feito a coisa certa, nós havíamos feito a coisa certa, os caras da gravadora estavam certos, tudo es-tava certo. As luzes de Porto Alegre, lá embaixo, estavam certas, as estrelas, lá em cima, estavam certas. Cada um na sua.

as chances estão contra nósmas nós estamos por aí

a fim de sobrevivercomo um avião sobrevoa

a cidade em chamas

O disco saiu, a turnê seguiu, e minha conexão com o ambiente ex-terno foi nublando e minguando. A banda virou um casulo. Não consigo mais

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situar o que fizemos nas correntes e tribos da época. Contribuiu para esse alheamento, além da minha introspecção, a preguiça de encarar os clichês que se realimentavam.

No Sul, éramos a trena pela qual o possível sucesso de outras bandas era medido, o que gerava um justificado ciúme (são necessários 100 guitarristas gaúchos para gravar um solo…). Nunca quisemos ser por-ta-vozes de nada. Nossa viagem era extremamente pessoal. Mas, infeliz-mente, nos coube, no Sul, ser a banda que atravessou o Mampituba. Era muito pouco e era chato.

No resto do país, depois de rock-chimarrão e rock de bombacha, caiu sobre nós o clichê de odiados-pela-crítica-amados-pelo-público. Nada disso era muito verdadeiro. Tudo isso era muito desestimulante. Não havia diálogo acima dos clichês.

Enfim… Aproveitando a autonomia que conquistamos na indús-tria, fui me fechando no meu próprio trabalho, que foi ficando cada vez mais autorreferente. Era consciente disso e nunca me preocupei. Sempre achei que tua maior virtude e teu maior defeito são irmãos siameses.

Discos compunham trilogias, melodias e capas se repetiam anos depois, letras de músicas voltavam transformadas. Duas letras na mesma melodia, duas melodias com a mesma letra… Um mundo à parte, um mun-dinho à parte. Daqui pra frente, acho que as músicas falam por si.

tudo se resume a uma cruz e uma espadae o principal, fica fora do resumo

(caberia aqui toda a letra de Camuflagem)

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P.S.: quando não quero perder tempo falando da minha trajetória, costumo dizer que tive muita sorte. É menos cansativo do que reviver todo o trabalho, as alegrias e as frustrações.

Pra ser sincero, sorte mesmo, e sorte grande, foi casar com Adriane. Luz que não produz sombra. Estudamos no mesmo colégio e fomos colegas na Arquitetura. Uma das primeiras coisas que ela me disse foi que eu era diferente do que parecia ser. O tom de voz sugeria ser um elogio. Até hoje tenho dúvidas. Será que ver de perto ou de longe muda tanto as coisas?

juntos para sempreobjeto e observador

física modernavelhas canções de amor

Diga-se, a meu favor, que tenho o raríssimo dom da monogamia. Pelos meus cálculos, só 12,3% das pessoas deveriam se casar. E, destas, 12,3% deve-riam ter filhos. Coisas para iniciados. Segue sendo um mistério, para mim, que as pessoas achem que casar e ter filhos é o caminho normal. Ninguém é igual a nin-guém, né? Eu, por exemplo, não gosto de flores. E acho um tédio ir ao cinema.

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Em 1992, nasceu minha filha, Clara. E o mundo se refez. Um dia, quando eu estava cantando uma das minhas músicas favoritas para fazê-la dormir (índia teus cabelos nos ombros caídos / negros como a noite que não tem luar), ela me perguntou por que a tal índia tinha os ombros caídos.

Acostumada com CDs, quando Clara viu, pela primeira vez, meus LPs perguntou o que era aquilo. Respondi que eram discos, pra tocar música. Ela falou: “Que legal, agora os discos vão ser grandões!”. Um mundo novo pode ser uma nova forma de ver o velho mundo.

morte anunciada: direitos autoraispela tv a cabo uma baleia acaba de nascer

nascer pode ser uma passagem violentao futuro se impõe, o passado não se aguenta

Por Deus Nosso Senhor, eu achava mesmo que o fim do texto era ali, no parágrafo anterior. O pessoal que me convenceu a fazer o livro me convenceu também de que seria legal o texto chegar aos dias de hoje. Enquanto eu explicava com belos argumentos por que não continuaria, de jeito nenhum, nem pensar, imagina, claro que não, comecei a achar que era pretensioso demais parar ali. Quantas vezes posso fazer o que fiz com a bateria de Terra de Gigantes? Não muitas, certamente.

Prometo que, se me convencerem de mais alguma coisa, eu aviso. Fiquem tranquilos. No mais, os erros são todos meus. Daqui pra frente, vou me valer desta abstração que é a contagem do tempo em anos, pois me falta ciência para situar bem o que fiz em relação às tribos e ondas do momento.

Efeito colateral dos coloridos livros de geografia da minha mãe, tenho gráficos e tabelas com todos os shows, gravações, videoclips e progra-mas que fiz. Por si só, dizem muito pouco, quase nada. Serão úteis para criar um quadro pontilhista. Impressões numa imagem sem linhas. Curioso caso em que quadro será moldura. Continuo achando que, falem bem ou falem mal, os discos falam por si. É só ouvir.

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• 1986 •Após o sucesso de Segurança e Sopa de Letrinhas, na coletânea Rock

Grande do Sul, gravamos, em São Paulo, nosso primeiro LP, Longe Demais das Capitais. Não consigo me lembrar se a canção deu nome ao disco ou se o nome do disco sugeriu a canção. O que significa que canção e conceito nasceram mui-to próximos um do outro.

Fizemos as fotos da capa perto de Porto Alegre, no lugar mais pare-cido com o Pampa que encontramos. Sinalizava nossa falta de interesse pela agenda da época, com suas paredes pichadas, latas de lixo em becos escuros e bússolas apontando para Nova Iorque e Londres.

O disco teve Carlos Maltz na bateria, Marcelo Pitz no baixo e as participações de Nei Lisboa em Toda Forma de Poder e Manito, saxofinista d’Os Incríveis, em Segurança. MPG e Jovem Guarda engrossando nosso caldo.

Não era fácil conseguir instrumentos importados, na época. Consegui que um-colega-do-primo-do-pai-da-irmã-do-vizinho-de-um-cara-que-tinha- uma-kombi trouxesse dos EUA uma Fender Telecaster. Encomendei um modelo clássico, anos 60. Para minha decepção, veio uma guitarra moderninha, pratea-da, de metaleiro. Mas era minha e eu a adorava. Gravei esse disco com ela.

Surpresa foi a gravadora ter pintado a foto da capa, originalmen-te P&B. A estética new wave impunha um colorido atroz. Mas o tiro saiu pela culatra. A capa até ficou bacana com as cores artificiais. Parecia-se com aqueles retratos antigos, artificialmente coloridos. Bucólico. Na edição do CD restaurou-se o P&B outonal original.

um cão sem donouma árvore no outonoo nono mês de gravidez

eu perco o sonoao som de Yoko Onotelefono pra vocês

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Longe Demaisdas Capitais1986

Humberto Gessingervoz & guitarra

Marcelo Pitzbaixo & voz

Carlos Maltzbateria

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Longe Demaisdas Capitais1986

TODA FORMA DE PODERSEGURANÇA

EU LIGO PRA VOCÊNOSSAS VIDAS

FÉ NENHUMABEIJOS PRA TORCIDA

TODO MUNDO É UMA ILHALONGE DEMAIS DAS CAPITAIS

SWEET BEGONIANADA A VER

CRÔNICASOPA DE LETRINHAS

123456

789101112

gessingergessingergessingergessingergessingergessinger

gessingergessingergessingergessingergessingergessinger/pitz

Lado

ALa

do B

A boa estranha Telecaster. Aquela mangueira presa ao segundo microfone faz parte do sistema Voice Box. Por ela vem o som da guitarra. A boca se transforma numa caixa de ressonância e o som é captado pelo microfone. Som de guitarra articulado como voz, mais ou menos isso…

<

>Cartão-postal

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• 1987 •Seguimos na estrada todo o primeiro semestre, até a saída do

Pitz. Augusto, que assumiria a guitarra com minha passagem para o bai-xo, não teve muito tempo para se ambientar. Éramos dois neófitos. Eu no baixo, ele na banda. Isso fez muito bem ao disco que gravaríamos em São Paulo e se chamaria A Revolta dos Dândis. O nome veio de um capítulo do livro O Homem Revoltado, de Albert Camus. Julio Reny, que circulava nos mesmos palcos que a gente, no início da carreira, dividia comigo os vocais em Guardas da Fronteira.

O álbum tinha um som esparso e bem cru. Já começava a pintar a digitalização dos equipamentos, mas não usamos nada que fosse posterior ao início dos anos 70. Não por bravata ou estilo. Era o que nos bastava. Eu achava muito xinfrim nós, aqui no terceiro mundo, nos arvorarmos à ponta tecnológica. Não era o bom combate. Hoje é diferente, centro e periferia tecnológica já não desenham um mapa linear.

As fotos da capa foram feitas no mesmo lugar do disco anterior. O projeto gráfico iria se repetir no disco posterior. Assim como trechos de músicas e letras reapareciam. Eterno retorno, pensando em loop. Minha ladainha, longa milonga. Lenga-lenga, lero-lero. Pensando em loop para sublinhar a continuidade.

O mundo pop é muito novidadeiro. A onda é vir, a cada ano, com outra onda. Como se novidade fosse um valor em si. Sempre achei empobre-cedor pensar assim. Prefiro artistas que abrem poucas portas e se jogam na sala escura a artistas que abrem todas as portas só pra dar uma espiadinha.

Simples preferência, não vai nenhum juízo aí. Questão de escolher a distância da qual se vai ver o quadro. Uma sinfonia de Berlioz, com aquele mundaréu de gente, pode ter o tamanho do violão e voz do João Gilberto. Depende de nós. Longe ou perto, dentro ou fora.

há tantos quadros na paredehá tantas formas de ver o mesmo quadro

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A partir desse disco, começamos a usar engrenagens nas capas. Num ensaio na casa do Maltz, chegou correspondência para o pai dele, vinda do sin-dicato dos engenheiros. O símbolo era uma engrenagem. Carlos sugeriu criar uma, para usarmos como assinatura visual.

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A Revoltados Dândis

Humberto Gessingervoz, baixo & guitarra

Augusto Licks guitarra, violão, harmônica & voz

Carlos Maltzbateria, percussão & voz

1987

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A Revoltados Dândis1987

A REVOLTA DOS DÂNDIS parte 1TERRA DE GIGANTES

INFINITA HIGHWAYREFRÃO DE BOLERO

FILMES DE GUERRA, CANÇÕES DE AMOR

A REVOLTA DOS DÂNDIS parte 2ALÉM DOS OUTDOORS

VOZESQUEM TEM PRESSA NÃO SE INTERESSA

DESD’AQUELE DIAGUARDAS DA FRONTEIRA

12345

67891011

gessingergessingergessingergessingergessinger

gessingergessingergessingergessinger/maltzgessingergessingerLa

do B

Escrevi, com Nei Lisboa, Deixa o Bixo. Está no disco Carecas da Jamaica. Neste mesmo disco participei da faixa Carecas da Jamaica.

+

>Rickenbacker

Sunburst

Gravação do disco>

Lado

A

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• 1988 •Continuava a rotina de muitos shows, quase sempre em ginásios,

mesmo durante as gravações do Ouça o Que Eu Digo: Não Ouça Ninguém. Gravado na mesma época do ano e no mesmo estúdio em que gravamos o disco anterior, ambos compartilhavam, também, o mesmo estado de espírito. Não havíamos amadurecido muito, mas estávamos mais entrosados como banda, o que é bom, mas é ruim, mas é bom…

O disco abre com a música de mesmo nome. Eu queria que começasse com um burburinho, vozes incompreensíveis. O produtor do disco estava me aju-dando a gravar essas vozes e, do nada, começou a falar palavrões ligados ao nome de pessoas bem conhecidas. Não me aguentei e comecei a rir. Na mixagem, ob-viamente, tiramos as ofensas. Até hoje, quando ouço a música, fico com medo de que elas voltem do além. Não seria nada engraçado, mas não me surpreenderia.

Na real, o que me intriga é que sempre escutemos a mesma versão quando colocamos um disco. Me surpreende que a bola que estufou as redes, num estádio qualquer no domingo à tarde, continue entrando nas inúmeras repetições da TV à noite. Que, nas fotos das capas, não apareçam as rugas que eu vejo no espelho, me espanta. Segura a onda agora, Dorian Gray.

A capa seguia a mesma matriz d’A Revolta dos Dândis, só mudava a cor, de amarela para vermelha. Nos amarrávamos em cores primárias, na lin-guagem de sinais de trânsito, placas de estrada e bandeiras.

Viesse depois um disco com capa verde, e teríamos uma trilogia com as cores da bandeira rio-grandense. Mais do que um manifesto de regionalismo mal focado, um piscar de olhos para os dinossauros do rock progressivo. Um aceno aos seus pretensiosos álbuns conceituais a serem continuados, recheados de músicas com várias partes. Sigo nesse time. Perder a guerra não significa aderir. Éramos uma miniatura de dinossauro, o que deve ser uma lagartixa.

eles têm razãomas a razão é só o que eles têm

e a ilha não se curvaàs águas turvas desse mar

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Sugeri que as engrenagens, em vez de um conteúdo original, tivessem, em seu interior, símbolos pré-existentes. O lance hippie, o céu da bandeira do Bra-sil, o ying-yang, a cobra mordendo o próprio rabo. Deixava a coisa mais divertida e menos aleatória. Os signos deveriam ter relação com o conceito do disco. Trazia uma boa sensação estranha vê-los subordinados a engrenagens. É provável que eu e Carlos tenhamos virado noites falando de Walter Gropius, Duchamp e Dalí, tecendo longas teses sobre bigodes na Mona Lisa, relógios derretendo e mictórios fora do lugar, enquanto especulávamos pequenas subversões visuais.

jagunço hi techperua low profile

cabelo vermelho ferrarijoia rara para a multidão

Marcante foi o show Alternativa Nativa, no Maracanazinho. Nesses shows coletivos, sempre rola um clima de competição, que nada tem a ver com música. É assim, não adianta. Quem foi melhor, a laranja ou o poema?, ne-nhum dos dois, preferi o mês de abril. Não adianta, é assim. Para nossa sorte, no dia seguinte, estava no jornal: “A Vitória dos Dândis”. Desde esse maracana-ço, começamos a nos chamar de “a maior banda do futebol uruguaio”.

No fim desse ano, fui morar no Rio de Janeiro. Eu estava me casan-do, de qualquer forma teria que me mudar. Algumas centenas de quilômetros mais ao norte não fariam diferença. Nossos shows já eram, em sua maioria, fora do RS. Era mais cômodo ficar mais perto de onde nos queriam mais.

Aluguei um apartamento em Copacabana. No primeiro dia como inqui- lino, encontrei, no elevador, João Saldanha, ex-técnico da Seleção e do Bota-fogo. Comentarista esportivo dos mais interessantes. Me declarei fã e pedi que ele escrevesse o release do nosso disco. Ele disse que não manjava nada do assunto. Estou quase certo de que o termo foi este mesmo, “manjar”. Falei que seria melhor assim, que ele escrevesse qualquer coisa. E assim foi.

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Ouça o Que Eu Digo:Não Ouça Ninguém

Humberto Gessingervoz, baixo & guitarra

Augusto Licksguitarra, violão, teclados & voz

Carlos Maltzbateria & percussão

1988

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Ouça o Que Eu Digo:Não Ouça Ninguém1988

OUÇA O QUE EU DIGO: NÃO OUÇA NINGUÉMCIDADE EM CHAMAS

SOMOS QUEM PODEMOS SERSOB O TAPETE

? DESDE QUANDO ?NUNCA SE SABE

A VERDADE A VER NAVIOSTRIBOS E TRIBUNAIS

PRA ENTENDER? QUEM DIRIA ?

VARIAÇÕES SOBRE O MESMO TEMA

123456

7891011

gessingergessingergessingergessinger / licksgessingergessinger

gessingergessinger / licksgessingergessingergessinger / licksLa

do B

Escrevi a letra de O Que Você Faz à Noite, uma parceria com Dé, então baixista do Barão Vermelho. Está no disco Carnaval.

+

Lado

A

16 de julho, o maracanaço. Minhas lembranças de shows nunca são visuais. Seja por ter olho claro ou por timidez, fico cego no palco. Talvez por isso tenha levado um tombo logo nas primeiras músicas. Tropecei em algo. Estava de botas, não era a chuteira certa para o tipo de gramado. Tenho mania de colar crucifixos nos meus instrumentos. No tombo, entortou uma cravelha do Rickenbacker e sumiu o crucifixo. Mau presságio. Será que levaríamos uma goleada? Que nada, o show decolou e foi uma maravilha. Um roadie achou o crucifixo embaixo do praticável da bateria.

<

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• 1989 •Pretendo tirar este parágrafo da edição gaúcha, pois vou falar que

simpatizo com o Botafogo e vão me cobrar monogamia tricolor. Bah, nem falei do Grêmio ainda! Melhor pra vocês. Se começar a falar, não paro mais! Do Botafogo, é mais fácil falar, é só um namoro passageiro.

Nesse ano, o Botafogo saiu de uma fila de 123 anos e foi campeão carioca. Com técnico e alguns jogadores gaúchos. Aos poucos, foi ficando alvinegro o meu ponto de vista nos bate-papos sobre o futebol do Rio. Se, hoje, os cariocas são supercentrados no futebol deles, imaginem nos jurássicos tempos de antes da internet.

Será que foi o escudo do Botafogo que me fez adotá-lo como time filial? Nesse caso, desde minha infância, já estava escrito, não nas estre-las, mas nos meus cadernos. Adorava desenhar escudos de times. Eu divi-dia os distintivos em três tipos: os naturalistas (Vasco com sua caravela e Corinthians com sua âncora), os artísticos, com suas letras entrelaçadas (Inter, Flamengo e Fluminense) e os geométricos, feitos com esquadros e alguns pontos de compasso (São Paulo e Grêmio). A estrela solitária, mais do que as estrelas do Cruzeiro, fica num grupo particular, esquina entre poesia e geometria. Um lugar legal pra ver o jogo.

Outro pecado capital para torcedor gaúcho: enquanto morava no Rio, comecei, gradualmente, a parar de secar o Internacional. Perdesse Grêmio ou perdesse Inter, algum carioca sempre pegava no meu pé. Não adiantava dizer que só torcia pra um dos times, a resposta era sempre “é tudo gaúcho!”. A si-tuação chegou ao máximo no dia em que o Figueirense perdeu para um time carioca e alguém pegou no meu pé. “Figueirense é de Florianópolis!”, protestei. Ouvi a frase de sempre: “É tudo gaúcho!”. Para desespero do meu lado racional, bastou eu voltar a morar em Porto Alegre para que o secador renascesse.

Nesse ano, lançamos Alívio Imediato, que inauguraria o padrão de um disco ao vivo entre cada três de estúdio. Tínhamos só dois dias, no Canecão,

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para gravar o show. Eu gosto dos altos e baixos de uma estreia. O pessoal da técnica sempre prefere a tranquilidade dos outros dias. Antes do segundo show, ouvindo as gravações do dia anterior, descobrimos que não poderíamos utilizar quase nada. Havia fãs com buzinas bem embaixo dos microfones que captavam a audiência. Assim, o segundo dia virou estreia de novo. Altos e baixos, tensão legal. O disco capturou bem o show.

Comecei a usar os baixos Steinberger. Perdia um pouco da impetuo-sidade dos Rickenbacker, ganhava um pouco de chão, a âncora. Que maravilha, um trio! Parece que expulsaram dois jogadores de cada time. Um campo enor-me para correr e mandar às favas esquemas táticos.

Entre a gravação e o lançamento do disco, faríamos nossos primei-ros shows internacionais. EUA, Europa ou América Latina seria muito linear para uma banda como a nossa. Para onde o destino nos levou? URSS! Um sonho em extinção? Um pesadelo a minutos de o despertador tocar? Você decide. Já botei Fidel e Pinochet na mesma linha e, de lá para cá, só fiquei mais confuso.

Na bagagem que levaríamos nessa expedição ao outro lado da cortina de ferro, levamos um material impresso sobre a banda. Nele, uma letra tradu-zida: a juventude é uma banda numa propaganda de refrigerantes. No avião, eu pensava: que sentido isso pode fazer lá? Será que tem refri? E propaganda? Banda tem? Juventude deve ter.

Foram cinco shows em Moscou, abrindo para uma banda russa bem conhecida lá. Eles viriam ao Brasil e retribuiríamos a acolhida. Mas caiu o muro antes, não rolou. Não sei se a banda sobreviveu às transformações que vieram com o colapso do império. O som deles era heavy metal clássico, aque-le bem cantado e bem tocado, com guitarras voando em escalas melódicas. O estranho é que tocavam baixinho. Mesmo nas músicas sem bateria, parecia que soávamos mais alto. Estavam acostumados a tocar em teatros e, nós, em ginásios, deve ser a causa.

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Os horários dos shows eram esquisitos. Num dia tocamos às 12h e às 16h30min. O teatro era muito bacana. No primeiro show, levei um esporro tão grande do zelador que, mesmo sem entender russo, entendi tudo o que ele ber-rava. Eu estava entrando no palco com um copo de conhaque e ele esbravejava que grandes bailarinos, atores e músicos tinham pisado naquele chão e nunca ninguém com um copo de bebida alcoólica na mão. Ponto para ele. Estava cer-to. Mas, cá pra nós, o conhaque era maravilhoso. Muito melhor do que a vodka. Vinha numa garrafinha despretensiosa como as nossas de guaraná.

Ficamos hospedados num conjunto de vários prédios idênticos. Um dia me perdi, entrei no prédio errado. Fiquei tentando abrir uma porta que não era a minha. A enorme senhora que cuidava do corredor veio ver qual era. Não conseguíamos nos comunicar. Um monte de portas se abriram. Todos os filmes sobre espiões na Guerra Fria passaram pela minha cabeça. Um caos. Uma fita K7 do Roger Waters (Radio K.A.O.S) no meu bolso fez com que um cara falasse comigo no que parecia, remotamente, ser o idioma inglês. O cara ganhou a fita e eu, uma orientação para chegar ao meu quarto.

Com cachê pago numa moeda que não poderia trazer para o Brasil, eu quis comprar uma camisa da Seleção ou de qualquer time russo. Não tinha pra vender. Quis comprar um instrumento. Eram intocáveis, vinham com o braço separado do corpo e pregos para juntar.

O que eu trouxe foram uns pôsteres revolucionários e, na mente, imagens das estações do metrô, o barulho dos limpadores de para-brisa, o frio que era diferente do frio que eu conhecia. Trouxe também os olhos esbu-galhados na janela do Aeroflot quando o avião pousou em Moscou, o cheiro do cigarro russo, os pedidos de cigarro americano e a sensação de transe ao passar dez dias ouvindo um idioma tão diferente. Parecia uma fita tocada ao contrário, num velho álbum de rock progressivo. Restou uma contradição. Como se, num quadro pontilhista, cada ponto fosse cinza e a imagem formada fosse colorida.

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Dizem que um especialista é um cara que está num lugar há mais de vinte anos, ou há menos de vinte minutos. É verdade. Em cada paralelepípedo de Moscou, eu via o Kremlin. Reverberava tudo que eu pensava saber sobre aquele povo. Drops de Dostoiévski. Como uma série de bonecas russas, umas dentro das outras, tudo depende de quão fundo queremos ou podemos ir. Perto ou longe, dentro ou fora.

tudo que era certo, sólidotudo que era líquido e certo

dissolve, desaba, diluidesmancha no ar

De volta ao Brasil, promessas utópicas de um socialismo moreno. Era a primeira eleição direta para presidente, depois de 123 anos. Tocamos em qua-tro comícios do candidato Leonel Brizola. Não cobramos nada. Num deles, as atrações éramos nós e Arthur Moreira Lima, num palco mambembe. Do lado de lá, Collor tinha os artistas mais populares do momento, num palco de primeira. Não sei o que teria acontecido se Brizola tivesse ganhado. Talvez a mesma coisa que aconteceu com Collor, mas com sinal contrário. Vinte e seis anos atrás, não haviam derrubado outro? Há quem diga que, naquela vez, pelas virtudes e não pelos defeitos. À luz do que se viu depois, me parece que tudo fica mais tranqui-lo com um paulista na presidência. Seja de que lado for.

esquerda e direita, direitos e deveres, os três patetas, os três poderes

ascensão e queda são dois lados da mesma moeda

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Alívio Imediato

Humberto Gessingervoz, baixo & guitarra Augusto Licksguitarra & teclado

Carlos Maltzbateria

1989

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Alívio Imediato1989

NAU À DERIVAALÍVIO IMEDIATO

A REVOLTA DOS DÂNDIS parte 1A REVOLTA DOS DÂNDIS parte 2

INFINITA HIGHWAY

A VERDADE A VER NAVIOSTODA FORMA DE PODER

TERRA DE GIGANTESSOMOS QUEM PODEMOS SER

OUÇA O QUE EU DIGO: NÃO OUÇA NINGUÉMLONGE DEMAIS DAS CAPITAIS

12345

67891011

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gessingergessingergessingergessingergessingergessingerLa

do B

Lado

ATambém estavam programados shows em Leningrado mas, infelizmente, ficamos só em Moscou. Guardo na mente, então, a São Petersburgo dos livros de arquitetura.

<

Escrevi a letra de Olhos Abertos, música da banda Capital Inicial, gravada no disco Todos os Lados.

+

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• 1990 •Começamos esse ano participando de um festival que reunia grandes

bandas nacionais e gringas. No Estádio do Morumbi, em São Paulo, e na Praça da Apoteose, no Rio. Dezenas de milhares de pessoas ali, milhões de olhos e ouvidos pela TV.

Numa das últimas músicas do show no Morumbi, tentei olhar o horizonte acima das pessoas e vi uma goleira (só gaúcho chama de golei-ra o que, para ser mais universal, deve ser a meta, o gol, o arco, a cida-dela adversária). Emocionado com a calorosa acolhida, agradeci mais ou menos assim: “Valeu, São Paulo! Foi um prazer tocar aqui, olhando para a goleira onde Baltazar fez o gol que deu ao Grêmio o título de Campeão Brasileiro de 1981”.

Metade das pessoas vaiou, outra metade riu. Um ou outro gremis-ta perdido na terra da garoa deve ter aplaudido. Na hora, me arrependi de misturar futebol e música. Da mesma forma que não queria começar a falar do Grêmio, aqui, senão não paro. Olhei pra trás meio envergonhado e cru-zei olhares com Carlos, colorado convicto, descendo a lenha na bateria. Ele sorriu em aprovação. Talvez só nós dois, ganhando fora de casa, entendês-semos a analogia.

Alguns meses depois, eu estava em São Paulo e resolvi assistir à se-mifinal do Campeonato Brasileiro: Grêmio e São Paulo. Quarta-feira à noite, no Morumbi. Na chegada ao estádio, algumas pessoas apontavam para mim. Legal, sou famoso! Nada disso, começaram a me ofender! Caramba, eram tor-cedores que estavam naquele show do festival!

Entrei no estádio, tudo tranquilo. Aquelas piadas normais, pega-ção de pé de torcida sobre gaúchos. Começa o jogo, São Paulo 1 a 0. Mais pegação de pé. São Paulo 2 a 0, um olé. Mais pegação de pé. Foi então que começou uma briga generalizada entre os jogadores. Aquele baixo-astral foi saindo do campo, contaminando a arquibancada. A pegação de pé virou ameaça e eu saí, corrido, do estádio.

Sem conseguir tirar o carro do estacionamento nem pegar táxi, na rua deserta, eu e meus parceiros rolávamos de rir. Que bela noite! Ecos de

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um show. Irradiação fóssil. Eu vi a nuvem de baixo astral vinda do gramado envolver tudo. Quando penso no ofício de estar do lado de cá do microfone, sempre lembro dessa imagem. Afinal, que frequências estamos emitindo? Uma questão interessante para a cena rock’n’roll, tantas vezes gigolô da transgressão e prisioneira da pose.

No grande esquema geral das coisas, era ano de início de mandato. Obviamente, o dito “Caçador de Marajás” venceu aquela eleição. Bateu, em se-gundo turno, um Lula parecido com o que veio a ser presidente, anos depois. Lá pelas tantas, no início de seu reinado, o cara segurou a grana de todo mundo no banco! O motivo seria uma inflação surreal que fazia andar de táxi ser mais barato do que andar de ônibus (porque se paga depois).

Estávamos fazendo uma temporada em São Paulo, no Anhembi. Na noite do anúncio da chinelagem financeira, só cheques na bilheteria. O dinheiro sumiu. Os mercados, em geral, e a indústria fonográfica, em particular, ficaram bem perdidos. Números despencando. Nós, pela fidelidade dos fãs, seguráva-mos a onda. Assim, sem mudar nada, acabamos virando o grupo que mais ven-dia no cast da gravadora. Surreal. Salvamos o Natal dos caras.

O Papa É Pop, disco deste ano, foi o primeiro a também sair em CD. Desde o início, esse formato parecia transitório. Já nasceu morrendo. Uma vez digitalizados, obviamente, os arquivos de áudio achariam um meio mais ele-gante de chegar às pessoas. Sem o irritante estojo de acrílico, que sempre vinha com os dentes que prendiam o disco já quebrados. Sem o plástico irritante-mente difícil de romper (problema que qualquer embalagem de cigarro barato já tinha resolvido, com uma pequena fita vermelha). Mesmo com toda a moral que tínhamos na gravadora, nunca conseguimos uma capa de papel, se possí-vel, reciclado. As grandes estruturas têm raciocínios que só fazem sentido fora da escala humana.

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É lugar-comum reclamar da redução de possibilidades gráficas do CD comparado ao LP. Acho que é só uma questão de distância em relação ao qua-dro. Sinto mais falta das duas aberturas e dos dois finais que o LP oferecia. Lado A e lado B. Montar esses dois programas envolvia arte e ofício. Além do lance musical, havia a matemática de fazer com que os dois lados tivessem a menor diferença de tempo possível. Para equilibrar os sulcos no vinil e evitar que, na fita K7, um dos lados ficasse muito tempo girando em silêncio.

O CD oferece mais tempo de música do que o LP, mas, com a facilidade de, apertando um botão, irmos direto à faixa desejada, acho que se ouve menos o disco na sua totalidade. A música que abria o lado B, espaço nobre num LP, fica no meio de uma longa lista no CD. Co-meçou a se desfazer a magia do álbum, que teve início nos anos 60 e apogeu no meio dos 70.

Deixando de lado os discos em geral e voltando ao nosso, em particular, havia um conceito legal alinhavando todo o projeto. Um bailado entre profano e profundo. Várias simetrias. Pelo menos para mim, olhando de dentro, vendo de perto. Essas sutilezas foram encobertas pelo enorme sucesso do disco.

Era um Garoto…, que começamos a tocar, por acaso, num comí-cio, era, para mim, quase uma sessão de análise. Virou, simplesmente, a regravação de um hit da Jovem Guarda. Ainda não eram muito bem vistas citações a esse período da MPB. A simultaneidade com a Guerra do Golfo deixou tudo mais confuso. Seria uma canção de protesto? Mas de quem era aquela guerra, afinal?

U2 ainda não tinha resgatado do limbo o termo pop. Acreditem se puderem: ser pop ou rock era uma questão. E nós, ali no meio. A foto do papa tomando chimarrão desagradou crentes e ateus. Quando comecei a receber elogios emocionados aos vocais que simulavam um jingle nos refrões da faixa-título, aprendi uma lição: deixar Andy Warhol quieto. Acho que hoje já dá pra ouvir o disco como ele é.

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eu entendo você que não me entendeencare a ilusão da sua ótica

Minhas faixas favoritas são as longas: Anoiteceu em POA e A Violên-cia Travestida Faz seu Trottoir. Colagens épicas que estariam bem em um LP de alguma banda progressiva obscura, gravado em setenta e poucos, com uma capa de surrealismo barato. Tocamos elas pouco, em shows. Mesmo entre os fãs, são mais valorizadas agora do que naquele momento.

Se não me engano, foi por essa época que chegou ao Brasil a MTV, reforçando, por algum tempo, a utilidade desta inutilidade que é o videoclip. Diretores bacanas como Cacá Diegues (O Exército de um Homem Só, Her-deiro da Pampa Pobre) e Zelito Viana (Piano Bar) fizeram clips com a gente. Depois pintou uma gurizada especializada na linguagem, muito legal. Tudo certo, bons trabalhos. Mesmo assim, nunca vi nexo no formato. Problema meu, certamente.

Descubro mais significados quando revejo antigas gravações de pro-gramas de auditório, do tipo Chacrinha. Só se fazia uma dublagem rudimentar, mas, pelo menos, o risco era maior. Para Terceira do Plural e O Papa É Pop lembro de ter escrito roteiros, motivado pelas possibilidades que as letras ofe-recem. Me disseram que eram inviáveis. Deviam ser mesmo, coisa de quem está acostumado a depender só de lápis e papel para criar um mundo. Tudo bem, tudo certo. Cada um na sua.

na outra janela o sol sempre brilhao risco é calculado

vídeo-guerra, vídeo-reino-dos-céus

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O Papa É Pop

Humberto Gessinger voz, baixo & teclados

Augusto Licksviolão, guitarra & teclados

Carlos Maltzbateria

1990

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O Papa É Pop1990

O EXÉRCITO DE UM HOMEM SÓ parte 1ERA UM GAROTO…

O EXÉRCITO DE UM HOMEM SÓ parte 2NUNCA MAIS PODER

PRA SER SINCEROOLHOS IGUAIS AOS SEUS

O PAPA É POPA VIOLÊNCIA TRAVESTIDA FAZ SEU TROTTOIR

ANOITECEU EM PORTO ALEGREILUSÃO DE ÓTICA

PERFEITA SIMETRIA

123456

7891011

gessinger/licksluzini/migliaci/vs: brancatogessinger/licksgessinger/licksgessinger/licksgessinger

gessingergessingergessingergessingergessingerLa

do B

Lado

A

Singles Era um Garoto...e O Papa É Pop

<

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64

• 1991 •Desnecessário dizer que, entre um disco e outro, seguimos na

estrada. Sempre foi assim. Logo no início do ano, tocamos na segunda edição do Rock in Rio. Durante o show, eu ficava imaginando se haveria alguma banda em alguma escola de Arquitetura fazendo seu primeiro e úl-timo show. O cachorro correndo atrás do próprio rabo, a cobra engolindo o próprio rabo.

Gravamos, no Rio, Várias Variáveis, o disco com capa verde que fe-charia a trilogia da tricolor bandeira pampeana. Paradoxalmente, é nosso disco mais paulista. A beleza de flutuar num país do tamanho e com a diversidade do nosso é que os centros gravitacionais vão se alternando, girando pelo salão. Além de Rio e São Paulo, Belo Horizonte entraria nesse bailado em breve. E Fortaleza. E Porto Alegre voltaria…

Paradoxalmente, no nosso disco mais paulista, gravamos Herdeiro da Pampa Pobre, do Gaúcho da Fronteira. Não é bem o filtro pelo qual a inteligência gaúcha gosta de se ver, mas sempre me amarrei nos tradicio-nalistas mais populares, como Gildo de Freitas. Da mesma forma, gosto de Astor Piazzolla e Athauapa Yupanqui, dois dos melhores shows da minha vida. Na esquina de onde vejo o movimento, laranjas, poemas e o mês de abril convivem bem.

Paradoxalmente, somos mais gaúchos fora do RS. No estado de ori-gem, somos só mais um. Se não te deixar insensível, a distância pode colocar tudo em perspectiva. Na capa, estou de bombacha. Fiz toda a turnê assim. Um gaúcho “para exportação”, ainda assim, um gaúcho.

Pelo terceiro ano consecutivo, o ginásio Gigantinho foi o lu-gar onde tocamos em Porto Alegre. Acho que nenhum artista gaúcho conseguiu isso. O mais legal foi ter chegado ali passando por todos os outros degraus. Bares, danceterias, teatros, auditório Araújo Viana.

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Era comum, na maioria das cidades, tocarmos no maior espaço. Mas só em Porto Alegre tocamos em todos os espaços.

da janela do avião eu vejo Porto Alegrevejo o futuro em flash-back

meu pai, minha filha, nossa casada janela do avião eu vejo por acaso

Foi por essa época que desenvolvi um terrível defeito: aprendi todas as piadas de gaúcho a que tive acesso. Basta o estrangeiro contar uma, esperan-do uma reação mal humorada, eu disparo todas as outras. Infalivelmente, meu interlocutor fica com cara de criança cujo balão foi estourado. Também pos-so usar meu arsenal de piadas de gaúcho contra gauchistas. Paradoxalmente. Quase um fogo amigo. Quase sempre divertido.

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Várias Variáveis

Humberto Gessingervoz, baixo & teclado

Augusto Licksguitarra, violão & teclado

Carlos Maltzbateria & percussão

1991

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Várias Variáveis1991

O SONHO É POPULARHERDEIRO DA PAMPA POBRE

SALA VIPPIANO BAR

ANDO SÓQUARTOS DE HOTEL

VÁRIAS VARIÁVEISSAMPA NO WALKMAN

MUROS E GRADESMUSEU DE CERA

CURTAMETRAGEMDESCENDO A SERRA

NÃO É SEMPRENUNCA É SEMPRE

123456

7891011121314

gessingergaúcho da fronteira/dardegessingergessingergessingergessinger

gessinger/licks/maltzgessingergessinger/licksgessinger/licksgessinger/licksgessingergessingergessingerLa

do B

Escrevi Onde Menos Se Espera, gravada por Patrícia Marx no disco Incertezas.

Lado

A

+

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70

• 1992 •O início do ano trouxe Clara. Eu e Adriane a esperávamos desde

1963. Nenhuma mudança radical, ela estava desde sempre nas entrelinhas do horizonte. Escrevi a letra de Parabólica para ela, num quarto de hotel. Havia uma antena ao lado da janela e eu, tri a fim de que ela me levasse para casa. Saudade.

longe, longe, longe, aqui do ladoparadoxo: nada nos separa

Natural que o disco em que menos trabalhamos juntos levasse nossos nomes e suas muitas consoantes no título. Gessinger, Licks & Maltz foi o lança-mento desse ano. Nossos parceiros da indústria reclamaram por ser impronun-ciável, o que nos deu a certeza de que era o nome certo.

Nunca gostei de compor no estúdio. Herança dos tempos de vacas magras em que os estúdios, em Porto Alegre, eram poucos e, para um estu-dante sem grana, caros. Entrávamos de costas para sair mais rápido. Sempre superensaiados. Com o GL&M foi diferente. Escrevi febrilmente, não conseguia parar. Gravávamos alguma coisa, vinham outras ideias, eu refazia, remontava.

Na época, as gravadoras tinham seus próprios estúdios. Era legal pas-sar pelas portas de vidro que tinham, estampado, o logotipo do cachorrinho ouvindo gramofone. Mas os horários eram rígidos e caretas. Comecei a chegar ao estúdio cada vez mais cedo. Quando o resto do pessoal chegava, eu já estava acabado. Numa segunda-feira, cheguei tão cedo que tive que esperar abrirem o prédio. Havia passado o fim de semana inteiro escrevendo e reescrevendo coisas. Entrei no estúdio junto com o pessoal da limpeza e tive uma visão ines-quecível quando acendi as luzes: a sala, que sempre víamos limpa e brilhante, estava coberta de pó de madeira e asas de cupim. Estúdios são os lugares ideais para eles. Fizeram um banquete no fim de semana. Até hoje essa imagem me volta em alguns sonhos.

Descobri algo que não sabia, por acordar normalmente muito tarde: as principais avenidas da Zona Sul do Rio mudavam de sentido nas primeiras

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horas da manhã. Por pouco não descobri da pior maneira possível. Por sorte, as únicas consequências foram as buzinas e os palavrões que ouvi. Injusta fama de indisciplinados têm os cariocas. Não sei em que outra cidade do mun-do seria possível, por algumas horas, mudar o sentido de quase tudo sem que o caos se instaurasse.

Percebo que esse é o disco favorito de uma segunda geração de fãs. Minhas influências do rock progressivo estão mais explícitas aqui e, por incrível que pareça, encontraram ressonância num pessoal bem mais moço. Estávamos bem expostos, do título ao desenho do palco, que tinha nossos rostos cobrindo os amplificadores. Se o cara quiser fazer um lance verdadeiro, não há como

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fugir do risco de se tornar muito pessoal. Era pra ser uma afirmação da vida real. Nome e sobrenome, foto 3x4. Acabou imprimindo um tom heroico ao pro-jeto. Descambar para egotrip é ruim, mas é bom, mas é ruim, mas é a vida…

O som da época era dominado pelas guitarras. Esse disco, para nos-sos parâmetros, tem muito teclado. Li numa resenha, um tempo depois, um cara nos elogiando por termos antecipado a volta dos sintetizadores analógi-cos. Adoraria que fosse assim, mas, na verdade, eu não estava um par de anos adiantado. Estava uns vinte anos atrasado.

Em meio a shows por todo o país, voltamos ao Maracanazinho, ago-ra num show só nosso. Maravilha. No inconsciente de todo gaúcho espreita uma necessidade de validação por parte do chamado “centro do país”. Somos um tanto oficialistas, é só ver como cantamos nosso hino. Parecia que séculos haviam se passado desde o maracanaço de 88. Nesse pouco tempo, havíamos passado de zebras a favoritos.

Entrei em contato com algo que não imaginava existir: a sombra do passado, aumentando como se fosse fim de tarde. Observando as longas carreiras de artistas consagrados, eu imaginava a delícia de ter um grande repertório pelo qual passear. Desconhecia o efeito colateral, a ocasional falta de sintonia entre nossa vontade de avançar e o amor conservador dos fãs. Nunca imaginei que pudessem querer menos do que tínhamos a dar. Feitas as contas, acho que consegui, ao longo dos anos, equacionar as várias variáveis de forma legal. Revisitar os clássicos e trazer a novidade.

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Gessinger, Licks & Maltz

Humberto Gessingervoz, baixo, violão & teclado

Augusto Licksguitarra, violão & teclado

Carlos Maltzbateria & percussão

1992

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Gessinger, Licks & Maltz1992

NINGUÉM = NINGUÉM?ATÉ QUANDO VOCÊ VAI FICAR?

PAMPA NO WALKMANTÚNEL DO TEMPO

CHUVA DE CONTAINERSPOSE

NO INVERNO FICA TARDE + CEDOCANIBAL VEGETARIANO DEVORA PLANTA CARNÍVORA

PARABÓLICAA CONQUISTA DO ESPELHO

PROBLEMAS… SEMPRE EXISTIRAMA CONQUISTA DO ESPAÇO

123456

789101112

gessingergessingergessingergessingergessingergessinger

gessingergessinger/licksgessinger/licksgessingergessingergessinger

Lado

ALa

do B

Meus primeiros anos como baixista passei com vários

Rickenbacker. Sunburst, creme ou cor de madeira

como o que está pendurado na foto. Com a histeria de

renovação de equipamentos que rolava na época,

eram difíceis de encontrar. Estavam fora de linha. Melhor assim, os que

eu tinha já vinham com muitas horas de voo,

sabe-se lá em que palcos, fazendo qual som…

O pêndulo foi para o outro extremo quando

comecei a tocar com instrumentos Steinberger. High tech, com um novo sistema de afinação que

dispensava a cravelha e feito de carbono.

Os puristas torciam o nariz, as árvores que deixavam de

ser cortadas agradeciam. Inspirado por antigas duplas

caipiras como Tonico e Tinoco, que tocavam

sempre com instrumentos iguais, convenci Augusto

a também usá-los.

<

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78

• 1993 •Voltamos a participar daquele grande festival com bandas nacio-

nais e gringas, no Rio e em São Paulo. O show no Morumbi, novamente, foi emblemático.

É cíclico, no mundo pop, pintarem algumas ondas mais selvagens. Era o auge do grunge com suas camisas de flanela xadrez, calças rasgadas, sangue nas paredes e guitarras Fender Jaguar. Abrimos para a melhor banda do movimento, Nirvana. A imprensa fez a papagaiada de sempre. Nós fizemos o show de sempre. A onda era escarrar? Sinto muito, aí vai uma canção que eu fiz pra minha filha. Com meu violãozinho de cordas de náilon. Pra que se monta uma banda, senão para noites como esta?

tô fora vodoo, ranço, baixo astralnão vou perder meu tempo brincando de ser mau

não vou viver pra sempre nem morrer a toda horafeito rasgos pré-fabricados num novo velho blue jeans

Não aderir a um movimento pode ser um sinal de respeito a ele. Pensassem todos assim e não afundariam, por excesso de peso, tantas ideias bacanas. Ser datado é legal. Ser ultrapassado também pode ser, pois não se trata de uma corrida. O carro que tu vias pelo retrovisor te ultra-passa, tu vês o caroneiro de perfil, depois uma criança te abana pelo vidro traseiro. Nunca te aconteceu? É bonito. Algumas crianças mostram a lín-gua, depois sorriem. É bonito. Depois eles param pra tomar um refri, ir ao banheiro, tu passas pelo carro parado, assim vai… Na verdade, ninguém ultrapassa ninguém. Isso aqui é um imenso transporte coletivo. Estamos no mesmo barco e ele ainda flutua.

todo mundo é moderno, todo mundo é eternocomo um relógio antigo como a Holanda de 74

um símbolo sexual dos anos 60

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Se a agenda da cena manda requentar a rebeldia, qual a coisa certa a fazer? O contrário. Raspei meu cabelo. O próximo disco seria o mais leve pos-sível, com orquestra, gravado ao vivo na sala Cecília Meireles. Este é o Filmes de Guerra, Canções de Amor. Arranjos e regência de Wagner Tiso, um mestre. Participação muito especial de Paulo Moura. Dei um tempo no baixo, Carlos deu um tempo na bateria. O trio ficou com duas guitarras semiacústicas e per-cussão. Também toquei acordeón.

O show foi lançado em LP, CD, K7 e VHS. Anos depois, em DVD. Boa sensação estranha de sobreviver aos suportes. Acho que é por isso que não me fascino por novos formatos, convergência, essa espuma toda. São ferramentas, instrumentos. O cerne está onde sempre esteve, desde antes das palavras, em volta de uma fogueira pré-histórica.

O repertório não era muito óbvio, mesmo para os fãs. Os arranjos eram bem diferentes, cheguei a reescrever algumas letras. Era muito bacana ver o estranhamento do público se transformando em cumplicidade enquanto o show avançava. As adaptações que rolam quando dois seres vivos começam a se relacionar podem ser uma pegada de Deus. Aquele que, se não existisse, teríamos que criar.

novos horizontes, se não for isso, o que será?quem constrói a ponte não conhece o lado de lá

No meio do ano nos apresentamos, pela segunda vez, fora do Brasil. EUA, Europa ou América Latina seria muito linear para uma banda como a nossa. Para onde o destino nos levou? Lá para o outro lado da esfera: Japão.

Volto ao papel de especialista que conhece o assunto há menos de vinte minutos. Tudo que eu esperava sentir em Moscou, senti em Nagoya e Iwita, ci-dades onde fizemos cinco shows. Me senti em casa, no Japão. Apesar de, quando criança, ter mais medo de japoneses em filmes de guerra do que de índios em filmes de cowboy (estranhas fobias os estadunidenses exportam via película).

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Todo país tem seus problemas. Quanto mais avançado, mais pessoais são esses problemas. O que não os torna problemas menores. Defeito ou virtu-de, achei a formalidade japonesa muito liberadora. Disciplina não é liberdade? Aqui nos trópicos, temos o vezo de nos acharmos muito íntimos e chegados. Infantilmente informais, vivemos nos tocando. Se fosse tão bom, estaríamos no paraíso. Estamos?

se as cores vão berrando num sol ensurdecedorfecho os olhos, outro mundo, vou morar no interior

Dia 6 de agosto, aniversário da estupidez em Hiroshima, eu estava parado numa esquina de Nagoya, sacando o movimento. Encantado com o si-lêncio, mesmo em ruas movimentadíssimas. A luz dos semáforos era comple-mentada por gravações de sons suaves que ajudavam deficientes visuais a atra-vessar a rua em segurança. Olho para o lado e vejo um mendigo. Não pode ser! Esse cara deveria ser o único mendigo em todo o Japão. Ele começa a me fazer sinais. Caramba, acho que está me ofendendo. Deve achar que sou americano. Deve estar se lembrando da bomba! Fiquei chateado e apressei o passo para chegar ao hotel. Ele me seguia, juntando as pontas do polegar e indicador. Só no dia seguinte, quando nosso intérprete avisou que era um simples pedido de moeda, a fumaça da bomba se desfez na minha mente.

Nesses tempos, futebol fazia o maior sucesso no Japão. Na TV, o tem-po inteiro. Vi dois meninos jogando bola numa quadra sob um viaduto. Um ficava cobrando lateral para o outro. Não usavam os pés. Arremesso lateral deve ser um lance emocionante para quem vem da cultura do beisebol.

Voltamos ao Brasil via EUA. Tocamos em Los Angeles e San Diego. Gravamos imagens para um clip no deserto Mojave. Esses shows internacionais eram divulgados, principalmente, nas comunidades de brasileiros. Era emocio-nante entrar em contato com um pessoal que tinha saído mundo afora atrás de vida digna, sem certeza de que a encontraria. Ajudá-los a matar um pouco da sau-dade era muito bom. A viagem dentro da viagem era sentir que canções escritas na solidão escura de um quarto poderiam fazer sentido no outro lado do planeta.

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Filmes de Guerra,Canções de Amor

Humberto Gessingervoz, baixo, guitarra, acordeón & teclado

Augusto Licksguitarra, harmônica & violão

Carlos Maltzbateria & percussão

1993

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Filmes de Guerra,Canções de Amor1993

MAPAS DO ACASOALÉM DOS OUTDOORS

PRA ENTENDER? QUANTO VALE A VIDA ?

* PARABÓLICA* NINGUÉM = NINGUÉM

* REFRÃO DE BOLERO* TODO MUNDO É UMA ILHA

CRÔNICAÀS VEZES NUNCA

MUROS E GRADESALÍVIO IMEDIATO

* PERFEITA SIMETRIAANDO SÓ

O EXÉRCITO DE UM HOMEM SÓ 1 e 2REALIDADE VIRTUAL

* ? ATÉ QUANDO VOCÊ VAI FICAR ?PRA SER SINCERO

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gessingergessingergessingergessingergessinger/licksgessingergessingergessingergessingergessingergessinger/licksgessingergessingergessingergessinger/licksgessingergessingergessinger/licks

* Faixas que só entraram nas versões em vídeo

Musiquei Amor Quente, uma letra de Cazuza, para uma campanha de prevenção à AIDS.

+

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• 1994 •Augustinho saiu da banda. Brigamos sem brigar, cada um foi ficando

no seu canto. A culpa deve ter sido minha. Enquanto ele via a árvore e Carlos via a floresta, eu deveria ter sido mais maduro para guiar aquela nau.

tenho feito meu caminho, volta e meia fico sóreconheço meus defeitos e o efeito dominó

Não ter tido festas de aniversário a vida inteira não me redime, pois, mesmo sem apagar as velinhas, a gente envelhece. Deveria aproveitar para amadurecer. O lado bom é que fizemos, juntos, o que tínhamos que fazer e só o que deveríamos fazer. O que emitimos continua a soar. Irradiação fóssil? Pode ser, mas o que é o presente? Existe?

agora que o tempo é relativonão há tempo perdido, não há tempo a perder

num piscar de olhos, tudo se transformatá vendo? já passou…

Ficamos um tempo parados e voltamos na metade do ano. Na gui-tarra, Ricardo Horn, que fazia parte do grupo que montei para tocar chori-nho, no colégio.

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87

Trago sempre comigo a lembrança de um show desse ano. Mais na boca do que na memória: um dente de ouro. Tocávamos na Chapada dos Guimarães, Mato Grosso. Lugar mágico, show ao ar livre, um mar de gente. No fim da primeira música, subi no praticável da bateria. Adorava me jogar de lá, a sensação de aterrissar no exato momento da última nota da canção é muito boa. Os saltos viraram uma marca dos shows, rendendo, até hoje, ótimas fotos. Nesse dia, não me dei conta de que havia um tirante de ferro ligando duas colunas, acima da bateria. No voo, dei, literalmente, de cara com o ferro. Quando pousei, uns três ou quatro dentes estavam esmigalha-dos. Cuspi os cacos e, não sei como, consegui levar o show até o fim. Só a adrenalina do palco explica. Lembro de pedir para reposicionarem uma das câmeras de TV que cobriam o show, a que estava no lado atingido. Nunca fi-quei nu na frente de milhares de pessoas, suponho que a sensação não deva ser pior do que aparecer sem dentes.

No avião, voltando para casa, a dor era terrível. Para piorar a situação, era domingo e eu havia combinado de participar de um show do Lulu Santos. Sem chance de passar num dentista antes. Não queria can-celar, pois já havia rolado uns mal-entendidos entre a gente. Seria bacana participar do show. Toquei Parabólica, numa versão desproporcionalmen-te emocionada, pois, cada que vez que passava ar pelos dentes quebrados, eu via estrelas.

planos de vootava tudo em cima, céu de brigadeiro sobre nós

pane, pânicoperdemos altura, puxaram o tapete voador

Pela segunda vez, toquei num comício. Pela candidatura de Olívio Dutra ao governo do RS. Eu, e certamente só eu, acho ele parecido com Brizola. Mas o clima era bem mais racional, o que é bom, mas é ruim, mas é melhor assim…

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• 1995 •Nunca estive tão perto do mainstream quanto nesse ano. Me faltou

saco. Ou culhões. Apesar de anatomicamente próximos, são coisas opostas. Algo me faltou para que esse ano desse mais frutos.

Um clima estranho no ar culminou num acidente de carro, a cami-nho de um show no Espírito Santo. De repente, os pneus seguiram em frente sem girar. Os faróis apontaram para o lado direito, para trás, para o lado es-querdo, para frente, para o lado direito… Os dois fachos de luz já não eram paralelos ao chão. O asfalto ficou mais perto da cabeça do que dos pés. Dois giros, duas voltas. Dois pra lá e dois pra cá. No fim da dança, silêncio total, total escuridão.

Quem viu a foto do carro depois do acidente não acreditou que al-guém tivesse sobrevivido. Algum projetista da BMW, que nunca conhecerei, salvou minha vida. Só machuquei a mão, fiquei sem tocar um mês. Não faltou quem dissesse que era algo sintomático. Nessas horas, o que menos precisa-mos é ouvir papos esotéricos tecendo mitos entre causa e efeito.

no fundo tudo é ritmo a dança foge do salãoe invade a autoestradado átomo ao caminhão

O show para o qual eu estava indo já tinha músicas do Simples de Coração, disco que gravamos em Los Angeles depois que me restabeleci do acidente. O projeto teve as participações de Fernando Deluqui (guitarra) e Pau-lo Casarin (teclados). Nossa gravadora fez tudo certo. Tava tudo certo. Talvez certo demais. Demorou para que eu entendesse o disco. Foram os fãs que me deram a chave pra entrar na onda dele. Por algum tempo, suspeitei que ele ti-vesse sido superproduzido. Simples de coração teria virado simples decoração. Bobagem. O disco tá certo, é como deveria ser.

O que eu acho mais legal, ouvindo agora, é um erro que cometi: ten-tar escrever certo. O culpado é você. Quer dizer, o pronome “você”. Eu sempre

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começo a frase com “você” e sigo errando a concordância. Na hora de cantar “consigo”, não consigo. Canto “contigo”.

Até aí, tudo bem. Rima com alguns pequenos pecados harmôni-cos que gosto de cometer. O que mais me intriga é que, na vida real, na vida falada, nunca uso “você”. Só falo “tu”. Quando uso “você”, soa como palavrões falados em filmes brasileiros dos anos 70. Naturalidade zero. Quando canto, ocorre o inverso. Cantando “tu”, me sinto como a estátua do Laçador: olhar no horizonte, insensível aos aviões que pousam e deco-lam no aeroporto ali ao lado.

Será porque “tu” é muito duro? Será porque “você” rima com qual-quer verbo que acabe em “er”? Será só macaquice, de tanto ouvir os outros?

Hoje, quando ouço o disco, sinto uma boa sensação estranha. Nem todo o mundo pode ser gilchicaetano, juntar forma e conteúdo, correção política e gramatical. Nem todo colombiano escreve 123 anos de solidão. Se psicanálise fosse uma possibilidade, falaria sobre isso n’alguma sessão.

às vezes nunca sei se “às vezes” leva craseàs vezes nunca sei em que ponto acaba a frase

“ao encontro de”, “de encontro a” o bom português não vai nos salvar

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Simples de Coração

Humberto Gessingervoz, baixo & violão

Carlos Maltzbateria & percussão

Ricardo Hornguitarra, violão, viola & bandolim

Fernando Deluquiguitarra

Paulo Casarinteclado & acordeón

1995

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Simples de Coração1995

HORA DO MERGULHOA PERIGO

SIMPLES DE CORAÇÃOLANCE DE DADOS

A PROMESSAPOR ACASO

ILEX PARAGUARIENSISO CASTELO DOS DESTINOS CRUZADOS

VÍCIOS DE LINGUAGEMALGO POR VOCÊ

LADO A LADO

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7891011

gessingergessingergessingergessingergessinger/casaringessinger

gessingermaltz/horn/lúciogessingergessinger/deluquigessinger/casarin

Lado

ALa

do B

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• 1996 •O pêndulo, que havia viajado a um dos extremos com o quinteto

beirando o mainstream, dispara, mola encolhida, para o outro lado. Com Lu-ciano Granja (guitarra) e Adal Fonseca (bateria), gravei, no Rio de Janeiro, o Humberto Gessinger Trio. Mixei em Nova Iorque com um técnico de som que, vez por outra, ficava melancólico e repetia uma história triste: ele havia chama-do o elevador para John Lennon sair do estúdio minutos antes da estupidez.

John Lennon levou um tiro à queima-roupa

o pop não poupa ninguém

Mais do que uma mudança no som, o HG3 era fruto da vontade de circular por outros ambientes, recomeçar. Nem pensava em gravar. Em prin-cípio, ficaríamos só na estrada. Foi legal ter virado disco. O lançamento foi no Teatro Ipanema, no Rio, local significativo por remeter a grandes temporadas que fizemos ali em 1986 e 1987.

O disco tem músicas das quais gosto muito e pareço ser o único (Bola da Vez, Irradiação Fóssil), músicas que não precisam explicação (Vida Real, O Preço, A Onda), músicas que parecem ter dado voz a sentimentos de quem é fã de fé (Freud Flintstone, De Fé) e uma música dos primeiros meses de carreira (Causa Mortis).

Hoje, vendo daqui pra lá, HG3 é mais um disco dos Engenheiros do Hawaii. Mais continuidade do que ruptura. Como alfinetavam os críticos, mu-dava para não mudar.

Deixei os Steinberger em casa e gravei quase todo o disco com um baixo Yamaha de seis cordas. Modelo que, teoricamente, não tinha nada a ver comigo. São desenhados para jazzistas virtuoses. Inventei um encordoamento estranho para ele. Usava as quatro cordas de um baixo normal e acrescentava duas cordas de guitarra.

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Sempre desconfiei dos atalhos. Não gosto de seguir literalmente carti-lhas. As indústrias que crescem na periferia da produção artística têm os mesmos vícios de qualquer indústria. Vivem criando seus presets. Camisas pretas e gui-tarras pontudas para o heavy metal. Meninas tocando baixo para os alternativos. Guitarras semiacústicas e terninhos para os retrôs. Bonés dos Yankees e Adidas pros rappers. Se vacilar, até o tipo de droga, ou a não-utilização de drogas, já vem no cardápio do estilo. Quando eu acabar de escrever essa frase, os modelos podem ter mudado, mas a existência de um modelo certamente persistirá.

não sermos literais às vezes faz nossa beleza

Esses atalhos seriam bons se chegar mais rápido fosse o objetivo. Há objetivo? Por que não uma bailarina de coturno? Alguém vibrando em outras frequências, um canibal vegetariano devorando planta carnívora, por que não? Sair desses escaninhos faz a beleza de um duo como White Stripes. Até pinta-rem 123 mil réplicas. Turistas que afundarão o barco por excesso de peso.

a vida imita o vídeogarotos inventam um novo inglês

Uma coletânea de videoclips dos Engenheiros do Hawaii foi lançada nesse ano. Não tenho a menor ideia do que representam, se representam algo. No início, eram feitos por uma grande rede de TV, para passar no seu programa de domingo. Depois, viraram simples peças promocionais. Não sei se deixaram de ser, se agora são obras de arte em si. Nunca vi muito nexo no formato. Eu paro de zapear, na hora, para ver qualquer músico tocar ao vivo. Mas colar ou-tras imagens numa música, acho que só a empobrece.

Convergência? Divirjo. Obra de arte total me parece uma contradição. Me interessa mais o que é parcial. Não quero ser uma colcha de retalhos. Quero ser só um retalho na colcha. A soma pode ser menor do que as partes. Não se trata de empilhar sentidos (Cinco? Bingo!). Se a pomba desenhada por Picasso voasse, seria um fracasso.

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Humberto Gessinger Trio1996

Humberto Gessingervoz & baixo

Luciano Granjaguitarra & violão

Adal Fonsecabateria & percussão

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Humberto Gessinger Trio1996

IRRADIAÇÃO FÓSSILSEM VOCÊ (!É FODA!)

A ONDAO PREÇO

FREUD FLINTSTONEVIDA REAL

CAUSA MORTIS?PRA QUÊ?

DE FÉBOLA DA VEZ

ELA SABEA FERRO E FOGO

123456789101112

gessingergessingergessingergessingergessingergessingergessingergessinger/granja/adalgessingergessingergessinger/granjagessinger/granja

Há palcos especiais espalhados pelas cidades por onde passamos.

Em São Paulo, o Pallace, onde gravamos dois discos e que já teve tantos nomes

que nem sei como se chama hoje. A Concha do Teatro Castro Alves em Salvador. Teatro Guaíra em Curitiba.

Auditório Araujo Vianna em Porto Alegre. Palácio da Artes ou qualquer lugar

em Belo Horizonte…

Nesta foto, eu e Clara estamos no Teatro Ipanema. Além do Gessinger Trio,

Longe Demais das Capitais e A Revolta dos Dândis foram lançados

neste pequeno teatro. Lembro com carinho do som do público aumentando

enquanto subíamos as escadas que levavam ao palco, da parede de tijolos,

do ar-condicionado no máximo, do Libertango de Piazzolla que tocava

antes dos shows, da eterna dúvida sobre meu pequeno amplificador,

da peça Artaud que dividia o teatro com a gente e tinha uma camiseta

bacana, do cheiro do mar depois dos shows…

<

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100

• 1997 •Com a saída do Carlos dos Engenheiros do Hawaii, mantive o pes-

soal do Trio. Com adição de Lúcio Dorfman, nos teclados, gravamos Minuano. O disco tem várias referências ao Sul: a capa, o próprio nome, a participação de Kleiton Ramil no violino de A Montanha. Algumas letras e melodias são bem sulinas. Sob tudo isso, a vontade, que se concretizaria, de voltar a morar em Porto Alegre.

Simétrica à ida, minha volta não teve nenhum grande motivo. Nem pessoal, nem profissional. Como um quadro pontilhista do qual estou mui-to perto, lembro só de motivos irrelevantes. Caminhar por Porto Alegre, por exemplo. Ouvir os jogos do Grêmio (sim, leitor, houve um breve período da história em que o homem viveu sem internet).

outono em Porto Alegresou o dono dos meus passos

sobre folhas mortaso mundo fica para outro dia

andar por aí era tudo que eu queria

Clara, desde que começou a falar, tinha um sotaque fascinan-te. Misturava Porto Alegre, Rio e Fortaleza, influência de sua babá. Uma fala muito musical e afetuosa, era o único motivo que, talvez, me fizesse permanecer. Por outro lado, em Porto Alegre ela ficaria mais perto da família.

Foi fundamental para mim conviver com pessoas mais velhas. Mi-nha mãe era a caçula de uma família de dez irmãos. Só ali, tive vários avôs e avós. Acho muito empobrecedor quando pessoas só se relacionam num gru-po de mesma idade. Adolescentes com adolescentes, velhos com velhos, gre-mistas com gremistas, metaleiros com metaleiros, baixistas com baixistas, ateus com ateus, goleiros com goleiros, fascistas de direita com fascistas de esquerda. Há quem diga que um prato de comida saudável deve ser colorido (desde que não seja composto só por M&Ms).

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Quando eu deveria ficar mais no eixo Rio-São Paulo para gravar e divulgar o disco, voltei para o Sul. Meu apartamento, na Lagoa, só tinha cama, TV e telefone. A família e as tralhas todas já estavam em Porto Alegre.

a bandeira tricolor na sacada em frente ao martudo aqui parece estar fora do lugarno pampa o vento violino minuanona fria janela de um apartamento

O estúdio onde eu ensaiava ficava em Botafogo, eu ia para casa a pé. Gosto muito de caminhar. As baterias dos meus carros sempre morrem antes que eles percam o cheiro de carro novo. Uma dessas caminhadas eu fiz no fim da tarde de um dia especial. No Maracanã, Flamengo e Grêmio disputariam o título da Copa do Brasil. Passavam ônibus cheios de flamenguistas. Os que me reconheciam mandavam recados pouco amigáveis, extensivos a todos os habitantes do RS.

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Assisti ao jogo sozinho, no apartamento escuro, só iluminado pela TV. A cidade, parada. Excepcionalmente silenciosa. Abrimos o mar-cador, Grêmio 1 a 0. Uma gritaria de vascaínos vinda dos prédios vizinhos dialogou com meus próprios gritos. Segue o jogo, 1 a 1. Euforia na noite carioca, só superada pelo carnaval de vozes que explodiu quando Romário virou o jogo. Flamengo 2 a 1. Faltando alguns minutos para terminar a partida, desliguei a TV. Sempre acho que, se eu não estiver assistindo ao jogo, o tempo passará mais lentamente. Mais tempo de jogo aumentaria as chances de acontecer o empate que daria o título ao Grêmio. Uma visão otimista da covardia da avestruz.

Tinha dúvida de que o gol aconteceria, mas tinha certeza de que, se acontecesse, a vizinhança vascaína me avisaria. Passava o tempo e eu não olhava para o relógio. A velha esperança de que, se não olhasse, o tem-po passaria mais devagar. Silêncio total. Quantos minutos teriam passado? Mais silêncio, tempo demais. Por que ninguém gritava, nem vascaínos se-cadores nem flamenguistas campeões? Não resisto, ligo a TV. Já não esta-vam transmitindo o jogo. Toca o telefone, minha irmã, chorando, desfaz o suspense: éramos campeões. Havia mais de quinze minutos! Os vascaínos

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devem ter ido dormir antes do fim do jogo. Não me avisaram. Sofri quinze minutos desnecessários, já campeão.

Futebol é uma bobagem, né? Vendo a vida como um maravilhoso quadro pontilhista, cada ponto em si é uma bobagem. Os pontos se misturam e se transformam. Lá vai a aranha tecendo sua inescapável tapeçaria. Minha irmã certamente não chorava só por um bando de caras com camisas iguais corren-do atrás de uma bola. Projetamos muitas coisas sobre muitas outras coisas. Se misturam e se transformam.

Um dos grenais de que me lembro com mais carinho foi o de 1977. Ganhamos por 1 a 0, quebrando uma série de 123 anos correndo atrás. Meu pai estava internado num hospital perto do Estádio Olímpico. No fim do jogo, assisti, pela janela do quarto, à caravana das bandeiras tricolores. Carros e tor-cedores silenciosos por respeito. Sensação boa de pertencimento. Consolo de não estar sozinho. A vida seria uma bobagem sem essas bobagens.

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Minuano1997

Humberto Gessingervoz & baixo Luciano Granjaguitarra & violão

Lúcio Dorfmanteclado

Adal Fonsecabateria & percussão

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Minuano1997

BANCOA MONTANHA

FAZ PARTESEM PROBLEMA

3 MINUTOSNUVEM

NOVE ZERO CINCO UMDESERTO FREEZER

ALUCINAÇÃOA ILHA NÃO SE CURVA

HUMANO DEMAISOUTROS TEMPOS

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gessingergessingergessingergessingergessingergessingergessingergessingerbelchiorgessinger/granja/adalgessinger/granja/adalgessinger

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• 1998 •Ano sem disco, mas com muitos shows. Tocamos, pela primeira vez,

na Argentina e no Uruguai. Nos mapas, esses países parecem estar mais próxi-mos de nós do que Japão e Rússia. Na vida real, vieram depois.

123 mil anjos sempre me guardaram e guiaram. Mundo afora, noite adentro. Reto por linhas tortas, como nenhum GPS faria. 123 mil anjos. Alguns me fazendo seguir viagem, uma me dizendo que eu era diferente do que parecia ser, outra simplesmente nascendo.

Um desses anjos é fumante e tem barba sempre mal feita. O último existencialista, Alexandre Master, nunca leu escritores franceses. Trabalha co-migo desde sempre. Deve ter sido técnico de som da orquestra familiar do meu avô, lá no interior do RS, na primeira metade do século passado. Deve ter sido roadie das freiras que cantaram ave-maria meia hora antes de eu nascer. Certo é que gravou a primeira demo da banda. 123 vezes nos mandamos, reciproca-mente, pastar. Passa um tempo, lá está ele de volta na mesa de som.

Em Belém, na manhã seguinte a um show, acordei com alguém gritando “Arara! Arara! Fala comigo, arara!”. Era Alexandre, agarrado às grades de um viveiro de pássaros do hotel, querendo dialogar com o bicho. Tá fora, tá fora!

No longo voo noturno de volta a Porto Alegre, eu achava que era o único acordado, quando ouvi uma voz beirando o choro. Olho para o fim do corredor e vejo o que parecia ser Jesus Menino no colo de Nossa Senhora. Era Master, sentado no chão, com a cabeça sobre os joelhos de uma aeromoça. Desolado, ele repetia: “Meu pai acha que o que faço não é trabalho…” A aero-moça só parava de fazer cafuné nele para secar algumas lágrimas. Surreal. Tá dentro, tá dentro!

A alcunha “Master” eu coloquei porque ele sabe tudo. Além disso, o nome dele é hilário. Alexandre Hilário. Não dá pra levar a sério.

um anjo caído procura alguém pra guardare dança um tango sem par e sem parar

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Um anjo me conectou à rede mundial de computadores. Melissa me conta que era fã desde pequena. Quando a conheci, já era web designer e fo-tógrafa. Hoje é arquiteta, professora. Traduziu Pouca Vogal para traços, cores e telas de computadores. Putz, as crianças vão crescendo!

De 1998 a 2003, Melissa organizou, no site www.engenheirosdo-hawaii.com.br, chats mensais. Sempre no dia 11, para lembrar a data do pri-meiro show. Às vezes eu estava em casa, às vezes, na estrada. Ela, sempre em Florianópolis. Outros anjos, espalhados pelo mundo, se encontravam na rede. As perguntas variavam de “Que tipo de cordas você usa?” a “Qual é o sentido da vida?”. Rolavam, também, as inevitáveis “Quem foi Ana?” e “O que quer dizer trottoir?”. Eu respondia todas com a mesma falta de ciência. Cordel Kill Bill. Sem pensar, com a rapidez que meus dedos nas teclas permitissem. Papo de boteco virtual.

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>>> 11.08.1998 – Tocar aos 60 anos deve ser o máximo. Acho que a vida deve

começar a ficar boa depois dos 58. Tomara que eu chegue lá. 11.10.1998 – Ouço vozes, tenho

pavor de cobras e às vezes tenho medo de começar a flutuar e não conseguir descer. Fico atento às

árvores e aos fios elétricos para me agarrar caso aconteça. 11.11.1998 – A pirataria de bootlegs é

algo necessário, eu diria. 11.12.1998 – Acho que sou o último fã de rock progressivo do mundo.

11.02.1999 – Uma possível medida de felicidade seria o número de relações não capitalistas que

um cara tem… tem gente que até com a mãe tem uma relação de custo/benefício. 11.04.1999

– Hoje, acho que a obra de arte não pode ser só o disco… tem que ser a vida, 24 horas por dia.

11.06.1999 – Cada dia é mais percentagem da minha vida. E cada vez me sinto menos profis-

sional. 11.07.1999 – Acho que sou meio de lua e muito exigente em relação à banda. Não passo

tanto tempo fora de casa para fazer a coisa mal feita. Quero a perfeição sabendo que é impossível.

11.08.1999 – Minha única dúvida é se eu deveria ter continuado depois de gravar o Longe Demais

das Capitais. 11.09.1999 – O medo do medo é uma merda… o medo de ser frágil, sincero... medo

de depender. E depender de alguém é o limite máximo do amor. 11.10.1999 – Ser livre cansa mais,

né? Mas não adianta, não dá pra escolher. 11.01.2000 – Política tá me dando nos nervos… nin-

guém sonha mais… parece que todo o mundo descobriu que vai morrer amanhã… não há mais a

noção de transcendência, inclusive na arte. 11.02.2000 – Não sei me expressar bem, tenho aquela

ética silenciosa do cowboy numa cidade estranha… não faço juras de amor. 11.04.2000 – A ten-

tativa de autoconhecimento é o que me faz cair na estrada, a busca de um espelho que não esteja

embaçado pela minha própria respiração. 11.05.2000 – Jogo horas de tênis tentando compreender

algumas canções que eu não alcancei por outras vias… vou dormir muito cansado e não tenho so-

nhado. 24.06.2000 – Destino? Essa é a questão, tava escrito ou nós é que escrevemos? Acho que

nós escrevemos com a caneta que nos foi dada e suas limitações… de fato, é lápis e não caneta…

qualquer coisa, o tempo apaga. 11.08.2000 – Não há mais juventude… todos são jovens: Clara e

a vó dela têm a mesma idade, são os tempos pós-modernos… eu sou o último velho do mundo.

11.10.2000 – O sentido da vida é aprender a respirar certo. 24.12.2000 – Vamos descobrir que o

que enxergamos são as sombras do fogo na caverna. 11.01.2001 – Dá vontade de ser menor, invi-

sível, algumas vezes… se transformar em pura passagem de tempo… estranhar o tamanho e a voz

da filha ao telefone. 11.02.2001 – Não sei falar e agradecer entre as músicas, muita gente me acha

frio por isso. Sou do tempo em que entreter, mais do que objetivo, era consequência da tentativa de

comunicar. Somos todos peixes, cada um num aquário diferente. Cantar é tentar trazer todos para

o mesmo mar, eu acho. 13.04.2001 – De cada 10 palavras, sete se perdem. 11.06.2001 – Sobre

>>>

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rádio e mídia, não sei, não me interessa, nunca me interessou tão pouco. 27.07.2001 – Não me

arrependo de nada pois o erro faz parte… isso é importante para entender os EngHaw. 30.07.2001

– Eu dissolvo a banda quase toda segunda-feira. 11.09.2001 – Concreto e Asfalto, para mim, é uma

oração. Gostaria de cantar para Jesus Cristo… ele ia achar uma merda e eu ia entender. 11.11.2001

– O disco novo tá superbom, mas é diferente de tudo que tenho ouvido. Seria mais fácil fazer parte

de alguma bruxaria do showbizz… é meio solitário aqui. 11.12.2001 – Este ano foi maravilhoso…

gravamos dois discos, renovei contrato, participei do disco do Carlos, encontrei uma galera nova

e, principalmente, reencontrei minha fé na produção musical. 11.02.2002 – O tempo fortalece…

o que não mata, engorda. A juvenilização é uma das armadilhas deste último capitalismo. Sigo

tecendo minhas teias, não são para prender ninguém… só pra não pisar no chão. 11.03.2002 – Os

discos novos são como refil… sabe como é, já tens a caneta, não joga fora, só compra a carga…

ecológico. 11.05.2002 – Gostaria de continuar minha guerrilha emocional… tenho muito orgulho

do meu artesanato. 11.06.2002 – O show é transe, não vejo nada direito. Não gosto de falar entre

as músicas. Santana toca horas sem dizer nada, Miles tocava de costas… mas no Brasil pós-axé

tem gente que acha que é estrelismo. 11.07.2002 – Ainda não fiz minha música, nem meu disco…

talvez nunca faça, talvez eu nem seja um artista… o artista que preciso ser. 11.09.2002 – Há,

no fundo de tudo, uma luta entre as luzes e o obscurantismo. 30.09.2002 – Não quero virar uma

indústria. Sou artesanal. 16.12.2002 – Felicidade é como preparo físico: dá pra melhorar ou piorar

um pouco, mas sempre há limites… não sou hedonista, as coisas que mais me deixam feliz são

corriqueiras e sem importância… uma rajada de vento, por exemplo. 11.02.2003 – Inconsciente

coletivo, sei lá… há quem ache que nada é fortuito… não vou a tanto. Na verdade, o universo da

música popular ocidental é, tecnicamente, bem limitado. 10.04.2003 – Cada vez tenho menos inte-

resse em falar… comecei a pensar na divulgação do disco, é um calvário. 17.07.2003 – A banda é

mais do que uns caras tocando. É difícil saber o que é… mas dá pra sentir. 11.08.2003 – Na escola

eu fazia muito avião de papel. Os raros que voavam bem me davam a mesma sensação que a

música Dom Quixote dá. 11.11.2003 – Cada disco tem sua vibração, seu momento. Eles não estão

competindo… estão se complementando. Não dá pra escolher um. 04.11.2004 – Sempre gostei

de ler, mas as influências nem sempre se manifestam de forma linear. Geralmente é difícil saber o

que gerou o quê. 16.03.2005 – Semana passada, num show, tocando O Papa É Pop, troquei a frase

“uma palavra na tua camiseta” por “Che Guevara na tua camiseta”. Putz, ficou muito melhor. Agora

ficou pronta… 15 anos depois de gravar. 17.03.2005 – O mundo anda estranho… melhor aprender

a lidar com a velocidade. Tecnologia não é boa, nem má. Depende do uso. <<<

>>>

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• 1999 •Ano de mudança de gravadora. A antiga lançou a lata Infinita High-

way, com dez CDs remasterizados. Pela nova, lançamos !Tchau Radar!. Tecni-camente, talvez seja o disco com melhor som, todo analógico. Gosto muito do título, é meu preferido, ao lado de Surfando Karmas & DNA. A capa revela que eu não tive nenhuma ideia para capa ou, visto pelo lado positivo, a vontade de deixar as músicas livres de um conceito norteador. Afinal, era !Tchau Radar!.

Foi gravado no Rio e mixado em Los Angeles. Arranjos de cordas bacanas feitos por Jaques Morelenbaum e Eduardo Souto Neto. Nos tempos pós-iPod é, ao lado do Dançando no Campo Minado, o disco que mais ouço. Dado insignificante, pois raramente ouço meus discos. É como filmar o parto do próprio filho, assitir a um show pelo display da filmadora de um telefone ce-lular. Substituir a vida pela representação da vida é legal, mas tem sua medida. As músicas estão todas vivas, o disco é uma foto de como elas foram um dia.

Fechamos e abrimos o século tocando no réveillon da Avenida Paulista. As pessoas geralmente acham que esses grandes eventos e festivais de verão são o melhor ambiente para se tocar. Não é bem assim. Não que sejam ruins, mas, de onde olho, são mais um passeio turístico do que uma viagem coletiva.

os cachorros da vizinhança vão latir sob fogos de artifíciopensarão que é o fim, mas será só o início

que venha em paz o ano que vemque venha em paz o que o futuro trouxer

Posso estar falando uma grande bobagem. Mas é uma bobagem que tenho direito de falar, pois toquei em todos os maiores festivais da mi-nha época no meu país. Também toquei em um bar minúsculo em que o roadie passou o show inteiro segurando um “T” na tomada que alimentava todo nosso equipamento. A diferença é bem menor do que parece. A diferen-ça está em tocar sozinho ou tocar para alguém. Quantos são, e quem é esse alguém, muda quase nada.

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Falta de educação desmitificar coisas tão legais? É só minha opinião, e ela não quer hegemonia. Então, viva os festivais! Você não pode perder! Todo o mundo vai estar lá! Quem não for é mané! Quem não for é diferente, e to-dos temos que ser diferentes da mesma forma, na mesma hora, pois somos a juventude, um exército movido a um refrigerante preto que é completamente diferente de outro refrigerante preto que tem o mesmo sabor.

Outra coisa que “não é bem assim”, ao menos para mim, é o ato de compor. Nem sempre é linear como as pessoas imaginam. É sempre autobio-gráfico, mas a biografia pode ser escrita num código indecifrável até pra quem escreve. Pintam músicas alegres quando a gente está triste. O contrário disso também pinta. Se escrevêssemos só para nos revelarmos, seria mais lógico um boletim semanal com gráficos. Coloridos livros de geografia sentimental. Mui-tas vezes a gente escreve em busca de balanço. Um balanço dos quadris ou um balanço de tudo que passou. Geralmente é um balanço de equilíbrio.

Para fechar o tema “não é bem assim”, um pequeno comentário sobre as influências. A pergunta que acho mais chata, nas entrevistas, sempre é fei-ta com a melhor das boas intenções: “O que estás ouvindo?”. Que diabos isso quer dizer? Querem saber de fato o que está tocando no meu aparelho? Querem saber quem eu acho legal? Querem saber quem é que eu quero que as pessoas pensem que eu acho legal? Querem saber o trabalho de quem eu gostaria de imitar descaradamente? Não é bem assim. Como o caráter autobiográfico, a influência não é linear. Ela é processada. A gente ouve um tango e escreve um rock pesado. A gente lê um poema e faz música instrumental. Leonard Cohen te leva a um frevo, e um samba da Mangueira te traz um réquiem.

Um amigo músico sempre me dizia que as canções dele uniam Bob Dylan e Van Halen. Eu brincava: espero que não seja a guitarra do Dylan e as letras do Van Halen. Como naquela história do gaúcho que se dizia “O Centauro dos Pampas”, meio homem, meio cavalo. A metade de cima seria homem ou cavalo?

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¡Tchau Radar!1999

Humberto Gessingervoz & baixo

Luciano Granjaguitarra

Lúcio Dorfmanteclado

Adal Fonsecabateria

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¡Tchau Radar!1999

EU QUE NÃO AMO VOCÊNEGRO AMOR

CONCRETO E ASFALTOATÉ MAIS

NADA FÁCILO OLHO DO FURACÃO

SEGUIR VIAGEM10.000 DESTINOS

NA REAL3x4

MELHOR ASSIMCRUZADA

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gessingerdylan/vs: veloso/cavalcantigessingergessingergessinger/dorfman/granja/adalgessingergessingergessinger/dorfmangessingergessinger gessinger/granjamoura/borges

Depois das fases Rickenbacker e Steinberger, para onde iria o pêndulo? Qual a terceira margem? Nem retrô, nem high tech. Fiquei menos rígido na escolha dos instrumentos. Toquei com vários baixos de várias marcas. Zeta, Warwick, Yamaha, Tobias, Rivoli… Guiando a escolha, uma mistura: som, visual, história, casca grossa para aguentar os abusos da estrada e, principalmente, astral.

Os Discos de Ouro: Longe Demais das Capitais (1986), Ouça o Que Eu Digo: Não Ouça Ninguém (1988), Alívio Imediato (1989), O Papa É Pop (1990, Ouro e Platina), Várias Variáveis (1991), Simples de Coração (1995), 10.000 Destinos (2000), Acústico MTV (disco e DVD de Ouro). Novos Horizontes (2007) não está na parede mas também é DVD de Ouro.

O que os números não contam: A Revolta dos Dândis vendeu mais do que vários desses discos. Até hoje vende, mas o critério são as vendas no primeiro ano. Gessinger Trio teve uma tiragem muito pequena, mas é um disco fundamental na trajetória. Hoje é vendido a preços absurdos pela www…

<

Participei do projeto Tons da Natureza gravando Planeta Água, de Guilherme Arantes. No CD/DVD Tributo a Cazuza gravei Subproduto do Rock.No projeto Tributo a Renato Russo, gravei Índios.

+

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• 2000 •deve ser o que chamam túnel do tempo

ano 2000 era futuro há pouco tempo atrás

Mantivemos, neste ano, o padrão de um disco ao vivo entre cada três discos de estúdio. O CD/DVD 10.000 Destinos teve as participações de Paulo Ricardo e Borghetinho. BRock e o melhor da música instrumen-tal gaúcha engrossando nosso caldo. Gravamos o show em São Paulo e algumas músicas inéditas, no Rio. Mixamos em Buenos Aires. E segui-mos na estrada...

há mais de mil destinosem cada esquina

outras vidas esperandoem cada esquina

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• 2001 •Em janeiro participamos da terceira edição do Rock in Rio. Desta

vez, durante o show, não fiquei imaginando se haveria alguma banda em al-guma escola de arquitetura fazendo seu primeiro e último show. O mundo já era bem outro.

lembranças do futuroque a gente imaginava

Tenho um defeito que não consigo ver como virtude, nem de perto nem de longe: uma enorme dificuldade de reconhecer rostos, guardar fisiono-mias. Fui piorando com o tempo. Estou sempre encontrando pessoas que di-zem que fomos colegas em escolas onde nunca estudei, vizinhos em ruas onde nunca morei. Sem querer, fui me acostumando a ficar à meia-distância. Muitas vezes pode passar uma impressão antipática.

No dia do show no Rock in Rio, encontrei, no elevador do hotel, um cara que julguei ser o presidente da nossa antiga gravadora. Perguntei como iam as coisas e ele não respondeu. Ficou um clima péssimo, ele olhando para o chão e eu olhando para a luzinha vermelha que demorou uma eternidade para pular do “11” ao “T”. O tempo amplificado pelo silêncio do elevador. Imaginei que ele estivesse indignado com minha ida para outra gravadora. Quando, fi-nalmente, a porta se abriu, várias pessoas vieram falar em inglês com o cara que estava ao meu lado no elevador. Um menino mostrava uma guitarra pedindo autógrafo. Putz, só aí caiu a ficha: era o Jimmy Page, guitarrista do Led Zeppe-lin! Imagem superpresente na minha adolescência. Nem é muito parecido com o tal presidente da gravadora. E eu, puxando conversa em português! Imagino quantos autógrafos com o nome errado eu devo ter dado na minha vida.

Também acontece o contrário disso. Em algumas cidades rolam uns HG covers. Na gravação de um programa, em São Paulo, alguém da produção me disse: “Espero que o camarim esteja melhor, do teu agrado, agora”. “Como assim, melhor, do meu agrado?”, perguntei. Um cara tinha estado ali, antes, se fazendo passar por mim. Meu sósia havia armado o maior barraco reclamando da disposição dos móveis no camarim.

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No mundo virtual, essas malas se multiplicam, pela facilidade do ano-nimato. Não estou no Orkut nem no Facebook, mas há um monte de “eus” lá. Quando eu acabar de escrever esta frase, os pontos de encontro digitais serão outros, mas a vontade de ser outra pessoa na escuridão do anonimato persistirá.

os homens são o que são e são todos iguaiso difícil é saber quem é clone de quem

Os discos ao vivo sempre fecharam ciclos. Os guris que me acompa-nhavam resolveram montar uma banda própria. Também é um padrão que se repete e deixa uma sensação bacana. Semente, flor e fruto. Apesar das várias mu-danças de formação, sempre penso como banda, gravando e caindo na estrada com o mesmo pessoal. Procuro escrever algumas canções em parceria com quem me acompanha. Muitos estrearam como compositores comigo. Claro que não faz sentido fingir que estamos em pé de igualdade, que saímos todos juntos do bar da faculdade. A diferença de idade, a cada troca de pele, aumenta, mas gosto de pensar como banda. Uma unidade autônoma, cujos defeitos podem ser virtudes.

a serpente troca de pele, a gente não esqueceo avião reabastece sem deixar de voar

Já havia procurado companheiros entre velhos amigos e entre novos gaúchos. Desta vez, tentei algo novo. Deixei o destino trazer um pessoal que eu só conhecia de ouvir falar. Todos cariocas, com ótimas recomendações. No primeiro ensaio, enquanto nos cumprimentávamos, eu pensava: qual deles será o baterista? E o baixista?

Sim, baixista, pois decidi voltar a tocar guitarra. Guiar uma banda no contrabaixo oferece seus riscos. A sutileza do instrumento pode se perder quan-do ele se transforma na batuta. Baixistas gostam de se sentir silenciosamente poderosos. Esquina entre ritmo e harmonia, som e pausa. Visto por outro ân-gulo, aparece a dependência de outras frequências, sentida por quem só circula pelas regiões graves.

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Vem à mente a história dos teclados QWERT. No início, as máquinas de escrever tinham teclas dispostas de maneira a facilitar a digitação. Digitar rápido virou um esporte, até competições aconteciam. Com o aumento da ve-locidade, as hastes com os tipos acabavam acavalando, trancando umas nas outras. Para resolver essa questão, mudaram a disposição das letras para que a digitação ficasse mais difícil. Batendo à máquina mais lentamente, o proble-ma não existiria. Com a chegada das máquinas elétricas e dos computadores, se manteve a disposição QWERT, já sem necessidade. Um arranjo de letras absurdo para uma tecnologia que não oferece riscos de embaralhar hastes. O processo já não é mecânico, não existem mais hastes. Persistiu esse arranjo de teclas pela cultura, pelo costume.

Essa história expressa como me sentia tocando baixo nos últimos tempos: seguindo minhas próprias pegadas. É claro que todo instrumento, por mais limitado que seja, é, em tese, inesgotável. Mas teses não têm só cinco de-dos em cada mão, nem só uma cabeça sobre o pescoço.

Com a guitarra, eu voltava ao instrumento com o qual comecei a tocar para os outros. Será que estou mentindo? Será que a verdadeira razão da volta é o desenho das Gibson SG? Foi esse modelo de guitarra que comecei a usar. A SG é uma irmã bastarda das heroicas Fender Stratocaster e Gibson Les Paul. Sem o astral coitadinho das Fender Jazzmaster e Jaguar.

contra toda expectativacontra qualquer previsãohá um ponto de partidahá um ponto de união

A nova escalação deu muito certo. Não demorou para soarmos legal. Veio a vontade de registrar, em disco, o momento. Sublinhando a continuida-de num momento de mudança, gravamos o 10.001 Destinos. Mais um disco com espírito de refil, recarga de bateria. Mesmo projeto gráfico do disco an-terior, só mudava a cor. Um disco duplo, unindo o show do 10.000 Destinos com músicas gravadas em estúdio. Nenhuma nova composição no repertório.

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O foco estava na busca de identidade instrumental. Resultou algo interessan-te, fundamental para quem acompanha a banda.

Gravado no estúdio onde ensaiávamos, sinalizava que nosso namoro com o mainstream já era só um retrato na parede. Sem muita paciência para ves-tir o uniforme underground, sobrava a boa sensação estranha de estar num lim-bo, sem obrigações com nenhuma cena, nenhuma agenda. O que não quer dizer que a venda de discos ou o volume de shows tenha mudado muito. Os fãs de fé es-tavam sempre ao lado. Já havíamos vendido discos em cruzeiros, cruzeiros novos, cruzados, cruzados novos, reais… Boa sensação estranha de sobreviver às moedas.

vida afora, noite adentro

Antes do fim do ano, gravamos Surfando Karmas & DNA, o primeiro disco de inéditas com o novo pessoal. Gláucio Ayala (bateria), Paulinho Galvão (guitarra) e Bernardo Fonseca (baixo). Abriu a série de discos com títulos no gerúndio e ilustrações de Luis Trimano na capa.

Sonhei com cravelhas, o mecanismo que regula a tensão das cordas, afinando um instrumento. Tínhamos usado a imagem de uma cravelha de con-trabaixo no Minuano. Sonhei com cravelhas que eram asas. Asas mecânicas. Alguns intervalos musicais bem afinados dão mesmo a sensação de elevação.

quem salva quer salvação, canta só pra ouvir a cançãoprocura como um cego procura a própria cura

anjo da guarda, ajuda-me

Nesse disco, Carlos Maltz voltou a aparecer. Não nos falávamos fazia al-guns anos. Eu recebia muitos e-mails de pessoas dizendo ser ele. Anonimato calhor-da digital. Uma das mensagens me chamou atenção. Resolvi replicar fazendo uma pergunta que só o verdadeiro Maltz saberia responder. Era ele. Estava morando em Brasília, trabalhando com astrologia e estudando psicologia. Escrevemos por e-mail a letra de e-Stória. A música eu já tinha desde os tempos da Arquitetura. Gravamos juntos a faixa, que teve a participação sempre especial de Renato Borghetti.

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Humberto Gessingervoz & guitarra Paulo Galvãoguitarra

Gláucio Ayalabateria

Bernardo Fonsecabaixo

10.000 Destinos2000

10.001 Destinos2001

Humberto Gessingervoz, baixo & violão Luciano Granjaguitarra & violão

Lúcio Dorfmanteclado

Adal Fonsecabateria

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10.000 Destinos2000

10.001 Destinos2001

A MONTANHA* SOPA DE LETRINHAS

* OUÇA O QUE EU DIGO: NÃO OUÇA NINGUÉM* EU QUE NÃO AMO VOCÊ

PRA SER SINCEROSOMOS QUEM PODEMOS SER

PIANO BARNINGUÉM = NINGUÉM

ALÍVIO IMEDIATOILEX PARAGUARIENSIS

TERRA DE GIGANTES? QUANTO VALE A VIDA ?

ERA UM GAROTO…TODA FORMA DE PODER

ILUSÃO DE ÓTICAREFRÃO DE BOLERO

PARABÓLICAINFINITA HIGHWAY

A PROMESSA* NEGRO AMOR

O PAPA É POPRÁDIO PIRATA

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gessingergessinger/pitzgessingergessingergessinger/licksgessingergessingergessingergessingergessingergessingergessingerluzini/migliaci/vs: brancatogessingergessingergessingergessinger/licksgessingergessinger/casarindylan/vs: veloso/cavalcantigessingerschiavon/p. ricardo

* Só em video** Só em CD*** Só no 10.001 Destinos

** NÚMEROS** NOVOS HORIZONTES

** QUANDO O CARNAVAL CHEGAR*** SEM VOCÊ (!É FODA!)

*** FREUD FLINTSTONE*** A PERIGO

*** NUNCA SE SABE*** CONCRETO E ASFALTO

2021222324252627

gessingergessingerchico buarquegessingergessingergessingergessingergessinger

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• 2002 •Surfando Karmas e DNA chegou às lojas no início do ano. A música

chamada “de trabalho” era Terceira do Plural. Adorei que fosse. Nunca meti minha colher nessas escolhas. Depois de gravar várias canções para um disco, era irritante escolher só uma para mandar para as rádios. Antes da era dos ví-deos, o lance era menos homogêneo, músicas diferentes rolavam em diferentes lugares. Com os vídeos custando cada vez mais caro, tudo ficava mais lento. A lógica da indústria era massificar uma canção de cada vez.

Geralmente escolhiam a canção mais parecida com o que estivesse fazendo sucesso. Nem sempre, quase nunca, tínhamos muito a oferecer nesse sentido. Uma vez que eu só gravava o que quisesse e da maneira como quisesse, por mim, podiam mandar qualquer música para as rádios. As canções têm uma sabedoria própria, dão um jeito de achar os ouvidos a que estão destinadas. As menos óbvias acabam ganhando o divertido status de “lado B”, a delícia dos fãs mais radicais.

A ideia de surfar karmas e DNA recorre no disco como uma onda. A grande sabedoria: saber ser pequeno. As ondas nem sempre são naturais, aque-las dependentes de marés e fases da lua. Às vezes é um transatlântico que passa pela nossa jangada fazendo onda.

nau à deriva

no asfalto ou em alto marPerigo! Perigo!

perdidos no espaço sideral

Os filtros da época, as agendas da cena, podem ser um peso opressor, abafando qualquer nota dissonante. Um tempo atrás lembro que a questão das drogas era central. Várias canções e até nomes de bandas eram pautados pelo tema. Haviam decidido que era prioritário no momento.

Fui entrevistado por uma revista, papo normal, assuntos gerais. Quando a matéria saiu, o título era: “Livre das Drogas”. Pô, fiquei indigna-do! Falei que não usava drogas e davam a entender que eu era um ex-usuário.

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Não acho importante o que penso sobre o assunto, não quero dizer a ninguém o que fazer. Não uso porque não me fazem bem e não me dão prazer. Só acho um desperdício, uma falta de colorido e variedade reduzirem-se os pontos de vista.

Mais chato do que papo de drogado, só papo de ex-drogado. Papo de quem é histericamente contra ou radicalmente a favor também é um saco. Como uma questão tão interessante pode ser discutida sem sutileza? Quanta riqueza se perde! É um dos papos mais interessantes: alteração de percepção, aumento ou diminuição de consciência, e se fala disso na linguagem do “foi impedimento ou não”.

ninguém sabe como serão os filhos deste casamentoindústria da informação + indústria do entretenimento

É assim, não adianta. Há quem defenda essas simplificações, por ser um papo reto. Gosto das curvas. Do Niemeyer e da highway. Papo direto? Eu acho que é preguiça. Coisa de quem quer consertar relógio usando luvas de boxe. Vão passando esses transatlânticos burros pra caramba, com suas ideias fixas e a gente, ali, buscando nossa ilha numa jangada.

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Surfando Karmas & DNA2002

Humberto Gessingervoz, guitarra, violão & teclado

Paulinho Galvãoguitarra & violão

Bernardo Fonsecabaixo

Gláucio Ayalabateria & percussão

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Surfando Karmas & DNA2002

SURFANDO KARMAS & DNA3ª DO PLURAL

PRA FICAR LEGALESPORTES RADICAIS

NUNCA MAISNEM + 1 DIA

RITOS DE PASSAGEMSEI NÃO

e-STÓRIADATAS E NOMES

ARAME FARPADO

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gessinger gessingergessinger/galvãogessingermullins/vs: gessingergessingergessinger/galvãogessinger/galvãogessinger/maltzgessingergessinger

Participei do CD/DVD Um Barzinho, Um Violão cantando Revelação. Gravei alguns baixos, guitarras e vozes no disco Farinha do Mesmo Saco, de Carlos Maltz.Musiquei o Soneto Revista, de Glauco Matoso. Está no disco Melopéia.

+

Quando decido mudar do baixo para a guitarra ou da guitarra para a viola caipira, não penso muito. Por outro lado, sou muito específico em relação

a marcas e modelos. Como se houvesse mais diferenças entre duas guitarras Gibson SG do que entre um baixo e um acordeón. Não me pergunte a razão dessa diferença de atitude, no geral e no

particular. Eu seria obrigado a confessar que vejo mais diferenças entre dois baixos Steinberger

do que entre um bandolim e um piano.

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• 2003 •Estávamos no estúdio gravando Dançando no Campo Minado

quando Bush Filho abriu a temporada de caça a Saddam Hussein. O Rio, em paralelo, estava vivendo mais um capítulo de sua guerrilha particular. Numa madrugada, depois de horas no estúdio, eu estava deitado no hotel, com o fone a mil, conferindo o que tínhamos gravado. Ouvi um som grave, estranho, pensei que fosse erro de mixagem. Segundos depois, um cheiro de pólvora invadiu o quarto. Fui pra sacada e vi os porteiros de todos os prédios da redondeza correndo para a esquina onde ficava o hotel, no Leblon. Ali embaixo, haviam jogado uma bomba. Um atentado. Horas depois, chegou uma viatura, ficou por alguns minutos e foi embora. No dia seguinte, no jornal, poucas linhas.

aonde leva esta loucura?qual é a lógica do sistema?

onde estavam as armas químicas?o que diziam os poemas?

Uma bailarina de coturno dançando num campo minado é a imagem que vem quando me lembro do disco. Há que endurecer sem perder a ternura. Na capa, o corte da tesoura sendo evitado pela corda de um instrumento. Terá fim o velho jogo pedra-tesoura-papel? O disco continuava os caminhos aber-tos no Surfando Karmas & DNA. Gravado no mesmo estúdio, com a mesma formação, título no gerúndio, imagens do Trimano, participação do Maltz… Músicas de um poderiam estar no outro. Mas não estão. No mundo lá fora, a atmosfera estava mais violenta.

Aqui dentro, no nosso mundinho, a banda estava soando muito bem. Explicitamente rock’n’roll, sem os adjetivos que mudam a cada ano. Gibson SG plugada num Marshall e vamos nessa. Livres de duas pragas que infestam a cena ciclicamente: os caras que se orgulham de tocar bem e os caras que se orgulham de tocar mal. Ambos equivocados. O lance é não saber que estamos tocando, sem ego nem orgulho. Cordel Kill Bill.

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Fizemos uma das turnês mais bonitas. O show era denso, quase ten-so. O cenário, bonitaço. Tudo encaixava. É bom quando acontece, amplifica a sensação de estar vivo. Voltamos aos Estados Unidos para fazer shows em sete cidades. A viagem dentro da viagem foi tocar para pessoas que não conheciam a banda nem seu idioma, como dois policiais que ficaram no palco, fazendo a segurança, em Boston. É a sensação de estar começando de novo. Um espelho zero km, desembaçado, pra gente sacar a quantas anda.

Senti na pele os reflexos da paranoia que tomou conta dos EUA de-pois do ataque às torres gêmeas. Ficar sem sapatos naqueles aeroportos tão modernos não fazia sentido para um cara tão formal quanto eu.

Dois anos atrás, no dia 11 de setembro, eu estava ouvindo o som da bolinha (raquete-parede-chão, raquete-parede-chão), quando fiquei sabendo da estupidez no céu de Nova Iorque. À noite, fizemos o chat mensal. Entre per-guntas sobre músicas e shows, rolou o seguinte diálogo:

Humberto, você acha q a 3a Guerra Mundial está mais próxima?

Não... fiquei assistindo a tudo desde o início, ali pelas sete horas a agitação virava depressão, fui caminhar um pouco, voltei agora... não sei os lances mais recentes... Talvez vá ser teocracia esquisita versus democracia desvirtuada... alguém falou que o atentado foi LoTech, mas de alta concep-ção… exatamente o calcanhar de Aquiles da América: eles são HiTech e de baixa profundidade... ainda tem o Bush, figura triste, despreparada.

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Dançando noCampo Minado2003

Humberto Gessingervoz, guitarra, violão, harmônica & teclado Paulinho Galvãoguitarra

Bernardo Fonsecabaixo

Gláucio Ayalabateria, percussão & voz

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Dançando noCampo Minado2003

CAMUFLAGEMDUAS NOITES NO DESERTO

ROTA DE COLISÃODANÇANDO NO CAMPO MINADOSEGUNDA-FEIRA BLUES parte 1

DOM QUIXOTEATÉ O FIM

NA VEIAFUSÃO A FRIO

SEGUNDA-FEIRA BLUES parte 2OUTONO EM PORTO ALEGRE

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gessinger/galvãogessingergessinger/fonsecagessingergessinger/maltzgessinger/galvãogessingergessingergessinger/galvãogessinger/maltzgessinger/galvão

Tenho uma relação bem intensa com os instrumentos. Nela, o som é só um dos aspectos. Design, a história e astral entram na equação. Assim como acontece com minhas raquetes, acho um mau sinal quando o modelo que está em milhares de lojas pelo mundo me satisfaz

sem necessidade de alguma alteração. As guitarras que fiz com o luthier gaúcho Cheruti misturam corpo de Gibson SG, captação de Fender Telecaster e braço da Stratocaster

do Jeff Beck. A doubleneck branca construí juntando dois Steinbergers. Mas depois de tirar deles os sons que estavam esperando, não me apego aos instrumentos. Não gosto de vê-los

nos cases, parecem mortos. Não tenho mais comigo os Rickenbackers do início nem as Gibson 335 e 350 que usei no FGCA.

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• 2004 •Um ano sabático. Desde o início da banda, só em 1994 eu havia

tirado o time de campo por alguns meses. Depois dos shows de verão, me recolhi. No fim do ano, o pêndulo, que havia viajado a um extremo, num disco pesado, disparou no sentido oposto. Gravaríamos o CD/DVD Acústico MTV.

Já havíamos feito o que se convencionou chamar “disco acústico” em 1993, no Filmes de Guerra, Canções de Amor. Desde 86, com o acor-deón na demo de Segurança, essa sonoridade estava presente no nosso trabalho. Instrumentos acústicos, músicas sem bateria, não eram novida-de para nós.

Me diverti muito selecionando o material e fazendo os arranjos para violão, harmônica, bandolim e piano. Meu único medo era de que o projeto fosse algo episódico na história da banda, um disco entre parênteses. Não te-nho muita paciência para coisas que não vêm de lugar nenhum e não vão a nenhum lugar. Acabou dando frutos. Nos próximos trabalhos, eu mergulharia ainda mais nessa viagem.

verticalde corpo e alma

mergulho ou decolagemtanto faz

Gosto muito das duas músicas inéditas do disco, Armas Químicas e Poemas e Outras Frequências. Precisava escrevê-las, faltavam. É a única ra-zão para fazer uma canção, sentir falta. A cada música que escrevemos, menos faltam. Em tese, a fonte das canções é inesgotável. Mas teses não têm só um coração no peito. Com o tempo, escrever fica um pouco mais difícil e muito mais divertido.

As participações eram uma tradição da série Acústico. Serviam para agregar novos públicos, homenagear ídolos ou, simplesmente, ro-lar um som. No nosso caso, além do lance musical, as participações

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enfatizavam o caráter “desproduzido”, quase caseiro, que eu queria dar ao projeto.

Com Carlos Maltz nos vocais gravamos Depois de Nós, uma bela can-ção que ele escreveu. Clara cantou Pose. A participação dela foi bem casual. Enquanto eu ia planejando o disco, fazendo os arranjos e as demo, em casa, ela estava sempre por ali. Nem lembro quando cantou pela primeira vez, foi muito natural. A versão original da canção era bem mais longa. Reescrita, virou uma música dela.

Lincoln Olivetti fez os arranjos de cordas e, a partir desse disco, Fernan-do Aranha, no violão, e Pedro Augusto, nos teclados, engrossavam nosso caldo.

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Acústico MTV2004

Humberto Gessingervoz, violão, harmônica, bandolim & teclado

Paulinho Galvãoviolão

Fernando Aranhaviolão

Bernardo Fonsecabaixo

Humberto Barrosteclado

Gláucio Ayalabateria & voz

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Acústico MTV2004

O PAPA É POPATÉ O FIM

ARMAS QUÍMICAS E POEMASO PREÇO

A REVOLTA DOS DÂNDIS 1 e 2POSE

INFINITA HIGHWAYDOM QUIXOTE

VIDA REALSURFANDO KARMAS & DNA

OUTRAS FREQUÊNCIASTERRA DE GIGANTES

NÚMEROS3x4

* EU QUE NÃO AMO VOCÊREFRÃO DE BOLERO

3ª DO PLURALDEPOIS DE NÓS

SOMOS QUEM PODEMOS SERERA UM GAROTO...

* DE FÉ

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Participei do CD/DVD Um Barzinho, Um Violão Jovem Guarda, tocando O Vagabundo.

No CD/DVD Teixeirinha - Coração do Rio Grande, gravei, ao lado de Luis Carlos Borges, Coração de Luto.

Participei do CD/DVD Cidadão Quem No Theatro São Pedro. TocamosTerra de Gigantes.

+

* Apenas no DVD

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• 2005 •A turnê do Acústico MTV engrenou a quinta marcha. Direto na es-

trada. A cada ano, havia maior diversidade no nosso público. Estranha sensa-ção boa de tocar para um pessoal que nem havia nascido no início na banda. Filhos de fãs, pais de fãs. Há tanta coisa para separar as pessoas: time de futebol, classe social, partido político… Bacana que a música nade contra a corrente e junte o pessoal.

Só meu lado gremista sofreu, neste ano. Penamos na segunda di-visão. O jogo que nos trouxe de volta ao salão principal virou lenda: A Ba-talha dos Aflitos. Explico com um trecho do livro que escrevi, Meu Pequeno Gremista:

“Precisávamos só de um empate contra o Náutico, em Recife, no Estádio dos Aflitos. No primeiro tempo, pênalti contra o Grêmio. Chutaram na trave. No segundo tempo, mais um pênalti marcado contra nós. Depois de muita confusão e reclamação, o juiz expulsou quatro jogadores do Grê-mio. Parecia impossível segurar o empate com apenas sete jogadores em campo e com um pênalti a ser cobrado contra nós. Aí aconteceu o momento mágico. Nosso goleiro defendeu o pênalti e, em seguida, fizemos um gol. Inacreditável!”

Visto de cá para lá, até parece uma história bonita, épica. Com a co-ragem que a distância dá, tudo é mais fácil. Na hora, em tempo real, que so-frimento! Esse drama todo se desenrolou, para mim, pela TV, num quarto de hotel na cidade de Jaú, interior paulista.

Quando o juiz marcou o segundo pênalti, foi inevitável desligar a TV. O velho pensamento mágico: sem assistir, o tempo passaria mais len-tamente. Faríamos 123 gols se meus olhos não fizessem o relógio andar na velocidade normal.

Ligaram da recepção, avisando que a van que nos levaria ao ginásio para testar o som estava esperando. Preferi não conferir o resultado do jogo an-tes de sair. Caí na real. Era impossível termos escapado daquela sinuca de bico. Passaríamos mais um ano na segunda divisão, jogando em gramados esquisitos contra times estranhos, nunca aos domingos.

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No elevador, encontrei Gláucio, grande batera. Ele começou o que se transformaria num diálogo surreal. Não me lembro das palavras exatas pois o papo foi sucedido por uma explosão de euforia:

– Caraca, que lance incrível, meu irmão!– É…– Nunca vi disso!– Nem me fala…– É muita sorte. Que gol!– Sorte é o c… Vamos amargar mais um ano na segundona!– Como assim? Você não viu? Os caras erraram o pênalti e o Grêmio fez um gol!

Nunca na história dos elevadores alguém havia entrado com uma cara tão diferente da cara com que tinha saído! Durante a passagem de som e por algumas horas me senti um super-homem, imortal. Tirei a maior onda com o pessoal da banda e da equipe, todos cariocas. Incorporei por um tempo todos os trejeitos e frases de valentia gaúchos. Sem confessar que havia agido, mais uma vez, como uma avestruz, no quarto do hotel.

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• 2006 •Os shows acústicos pareciam mais atemporais. Abriam a possibili-

dade de renovação permanente do repertório. Buscar coisas esquecidas e reler com novos arranjos. Geralmente, passávamos mais de uma vez pelas cidades. A turnê foi se estendendo e novos elementos, aparecendo.

Comecei a tocar viola caipira, instrumento que a gente passa metade do tempo afinando e metade do tempo tocando desafinado. Não é comum no Sul. Violão com cordas de náilon é a nossa tradição. Talvez por isso eu tenha demorado tanto a chegar à viola que, há muito tempo, me fascinava. O som do Brasil profundo. Um presente que Minas me deu. Com nenhum outro ins-trumento me senti tão à vontade em tão pouco tempo. Novas músicas e novos arranjos para velhas músicas começaram a brotar, trazendo a vontade de regis-trar esse processo.

Nem sempre, e quase nunca, nosso relógio interno bate em uníssono com o relógio do ambiente. Nos primeiros tempos de banda, eu não queria nem saber, o relógio interno mandava sempre. Depois de tantos anos de es-trada e de janela, comecei a respirar mais fundo, esperando um terreno mais propício para jogar a semente. Tínhamos um novo disco pronto, mas não gra-varíamos agora.

Coloquei vídeos de algumas canções novas no site da banda. Uma experiência bacana, compartilhar a feitura de um álbum. Brincava que eram “VideOsamas”, propositadamente rudimentares. Mensagens enviadas de uma caverna. Câmera num tripé, eu tocando a música, sem cortes, na versão mais primitiva possível, assim que eu achasse que ela estava pronta (aí vai mais uma mentira: nunca se sabe se uma canção está pronta. Mas, tudo bem, se formos literais, a vida em sociedade fica impossível. Então, fazemos de conta que uma canção, um dia, fica pronta). Outro conjunto de canções já disponi-bilizei num estágio mais avançado. Só áudio, mas gravado com toda a banda, em estúdio.

É uma questão delicada, essa: o jogo entre claro e escuro. O que mostrar, o que sugerir, o que esconder. Que poder dar ao ouvinte, ao fã? Pra ser sincero, eu, como fã, não quero poder nenhum. Não quero que meus

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artistas favoritos me perguntem que músicas gravar, que roupas usar. Não quero que políticos me perguntem que palavras gosto de ouvir. A função deles (a minha) é buscar a voz interior. E torcer para que alguns malucos queiram acompanhar a caminhada. Correndo o risco de ficar falando sozinho, tocando para as poltronas, num teatro vazio.

Por outro lado, a possibilidade de chegar às pessoas com o menor nú-mero de filtros possível é sempre bem-vinda. Boa sensação estranha, sobreviver ao funil da divulgação via meios de comunicação de massas.

sem filtro, na veiaquem tem pressa não se interessa

por questões de estilo

Na próxima encarnação quero ser aquele tipo de artista que nunca troca de instrumento e usa, por toda carreira, o mesmo corte de cabelo. Sinal de maturidade. Nesta, que periga ser a única vida, devo confessar que fiz um corte moicano e por alguns meses fui a pessoa mais feliz do mundo. Aquela era mesmo a minha cara. Adorei a sensação de passar a gilete no crânio.

Um tempo atrás havia tentado fazer dreadlocks. Passei de tudo no cabelo para sustentar o emaranhado, mas a genética riu da minha cara e da minha pretensão. Deus me disse: “Não usarás cabelo rastafári, nem inventa!”. Me curvei diante de Sua onipotência. Com o moicano, Ele parece ter concorda-do. Parei de usar porque ainda não havia sido popularizado pelos jogadores de futebol e ficava parecendo que eu queria conversar sobre cortes de cabelo. Se vira assunto, perde o sentido.

Também andei cultivando um bigode. Por amor à diversidade cul-tural. Estavam em extinção, algo deveria ser feito. Nunca achei que cuidar da imagem fizesse parte da minha arte e do meu ofício. Certamente estou errado, mas este sou eu.

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• 2007 •Chegava a hora do velho disco novo, Novos Horizontes, lançado em

CD e DVD. Foi gravado ao vivo no mesmo local onde gravamos o 10.000 Desti-nos. Quase todas as turnês passaram por essa tradicional casa de shows de São Paulo. Ela já teve vários nomes, os últimos vinculados a patrocinadores. Boa sensação estranha de sobreviver aos nomes.

O disco aprofundava a viagem iniciada no Acústico MTV. A principal diferença, além da viola caipira, era o número maior de músicas inéditas: oito. Gravar ao vivo passou a ser fundamental para mim. Quanto mais cosméticos a tecnologia de estúdio oferece, mais me fascina o que só acontece uma vez, numa noite, em frente a algumas pessoas.

A diferença entre músicas inéditas e regravações foi ficando cada vez mais irrelevante para mim. Boa sensação estranha de que tudo se misturava e construía uma única infinita canção. Esses são os novos horizontes: livres, desformatados.

na falta de algo melhor nunca me faltou coragemna falta do que fazer inventei a minha liberdade

As mesmas participações do disco anterior, Carlos e Clara, reforça-vam os nós na tapeçaria, os elos na corrente. Maltz inseriu um rap em Cinza, uma música que eu havia lhe enviado. Mandou bem. Clara cantou A Onda e Parabólica, música que escrevi para ela e em cujo clip ela apareceu, antes de completar um ano de vida. Em poucos minutos, cantando com minha filha, aprendi mais sobre o ciclo da vida do que aprenderia lendo todas as bibliotecas do mundo. No palco, com os “de fé”, boa sensação estranha de que tudo se mis-tura e constrói uma única infinita família.

Tudo às 123 mil maravilhas. Exceto numa questão de logística: imperava o caos aéreo no país, transformando num inferno a vida de quem voava todo fim de semana. Que saudade dos tempos em que eu saía de manhã, de Porto Alegre, para tocar em Manaus, à noite, sem receio de perder a hora. Já não era só a nebli-na do inverno porto-alegrense que parava tudo e entupia o saguão do Aeroporto Salgado Filho. O sistema colapsou. Envelheci dez anos ou mais nesses meses.

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Novos Horizontes2007

Humberto Gessingervoz, violão, viola caipira, bandolim, harmônica & teclado

Fernando Aranhaviolão

Bernardo Fonsecabaixo

Gláucio Ayalabateria & voz

Pedro Augustoteclado

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Novos Horizontes2007

TODA FORMA DE PODERCHUVA DE CONTAINERS

VERTICALGUANTÁNAMOA MONTANHA

QUEBRA-CABEÇANO MEIO DE TUDO, VOCÊ

NÃO CONSIGO ODIAR NINGUÉMCINZA

CORAÇÃO BLINDADOA ONDA

PARABÓLICAFAZ DE CONTA

NOVOS HORIZONTESALÍVIO IMEDIATO

SIMPLES DE CORAÇÃOPIANO BAR

LUZPRA SER SINCERO

1

2345678910111213

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Com Maltz em Cinza

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• 2008 •Resolvi dar um tempo nos Engenheiros do Hawaii. Voltei ao baixo

para os últimos shows. Querem que eu pinte um quadro geral? Não dá. Só vejo pontos. O caos aéreo, a rotina em que tudo se transforma, a satisfação de ter fei-to os discos e shows que queria fazer… Isso mesmo, a insatisfação pode ser um combustível que a felicidade não é. As duas últimas turnês foram as mais bem-sucedidas da história da banda. Os discos dessa última fase, dois no gerúndio e dois acústicos ao vivo, me satisfizeram completamente.

Resolvi parar por tempo indeterminado. Ok, também odeio a expres-são “tempo indeterminado”. Mas ela pode ser uma definição interessante da vida. Talvez, quando tu estiveres lendo, eu já tenha voltado, talvez não volte nunca mais. Não é nada tão dramático, é a vida.

O último show (dessa fase?) foi no Crato, A Princesa do Cariri, no Cea-rá. Na última música do último bis, desajeitadamente, improvisei uma versão: só deixo o meu cariri no último pau-de-arara.

pode ser pra sempre, pode não ser maispode ter certeza e voltar atrás

pode correr risco, arriscado sempre ésó não pode o medo te paralisar

No início de 2007, quando recebi uma homenagem no Prêmio Açorianos, em Porto Alegre, convidei Duca Leindecker para tocar umas canções comigo. Desde então, vez por outra, falávamos em fazer alguma coisa juntos. Por coincidência, Duca também estava dando um tempo na sua banda, Cidadão Quem. A hora havia chegado.

123 bandas podem se considerar “a maior banda do rock gaúcho”. Nós criamos o duo Pouca Vogal para ser “a menor banda do rock gaúcho”. Es-crevemos algumas músicas e as colocamos no site www.poucavogal.com.br para download gratuito. Boa sensação estranha de sobreviver à indústria fonográfica. Abaixo, trechos de uma entrevista que fiz comigo mesmo para servir de release. Devo dizer que não me achei um artista arrogante nem um

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repórter muito chato. Até combinei de ligar para mim mesmo, hora dessas, para continuar o papo.

HG: Por que o nome Pouca Vogal?AgAgê: É um chiste com nossos sobrenomes, Leindecker e Gessin-

ger. Se quisermos fazer um pouco de sociologia de boteco, podemos falar de como as vogais vão rareando à medida que descemos pelo mapa do Brasil. O frio vai aumentando, a vegetação fica mais tímida, o verde vai ficando mais parecido com o azul, as pessoas mais introspectivas. Imigrantes com suas consoantes. Ao mesmo tempo que exageram, algo de verdadeiro guardam es-sas generalizações.

Pelo Aurélio, vogal é o fonema que se produz com o livre escapamen-to de ar pela boca. Consoante é o fonema que resulta do fechamento ou estrei-tamento de qualquer região acima da glote. Consoantes são mais intimistas. Um pedido de silêncio não tem vogais. Numa montanha russa, num grito de gol, as vogais são dominantes.

HG: Há outros músicos acompanhando vocês?AgAgê: Não. Só nós dois. É um formato que sempre me fascinou.

Seja um duo de violões clássicos como os irmãos Assad, uma dupla caipira

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como Pena Branca & Xavantinho, um lance pop como Simon & Garfunkel ou jazz como Larry Coryell & Philip Catherine, há algo especial quando duas pes-soas estão tocando. Depois do solo, é o mínimo. Mas, nesse mínimo, pode rolar o máximo diálogo musical.

HG: Quais instrumentos vocês usam?AgAgê: Eu sigo nos instrumentos acústicos: violão, viola caipira,

harmônicas, piano. Além da MIDI Pedalboard, que é um teclado que toco com os pés. Duca toca guitarra e violão. Com os pés, ele faz percussão, bombo le-guero e pandeiro.

É bem intenso. Geralmente, quando um artista chega à quilometra-gem a que chegamos, pensa em desfrutar do conforto de um repertório já co-nhecido e de vários bons músicos aparando arestas. Mas nós estamos vibran-do em outras frequências. Queremos sair da zona de conforto, por achar que só tensa a corda vibra legal. A vida é mesmo muito curta pra ser pequena.

HG: Que tipo de reação vocês esperam dos fãs das bandas Engenheiros do Hawaii e Cidadão Quem?

AgAgê: Acho que o maior sinal de respeito de um artista em relação ao seu público é não pensar nele na hora em que cria. Eu não quero que os artistas dos quais eu gosto pensem em mim quando criam. Não quero que os políticos nos quais eu voto façam pesquisas pra saber como quero que eles fa-lem e atuem. Quero que eles tenham uma visão e corram o risco de encontrar ou não quem se interesse por ela.

Resumir todas as pessoas que gostam do teu trabalho num estere-ótipo de “fã” também me parece grosseiro. Cada fã é fã da sua forma, com suas particularidades. Cada um tem seu caminho, sua maneira de passear pela obra. Não gosto que me vejam como produto, por isso não penso ne-les como consumidores. Obviamente será maravilhoso se todos gostarem de tudo. Se os teatros estiverem todos lotados e as bocas todas sorrindo e pedin-do bis. Caso esse mundo ideal não se concretize, estaremos tranquilos, por estar seguindo nossa visão.

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• 2009 •É o ano em que estou escrevendo este texto. Ainda não terminou.

Gravamos o CD/DVD Pouca Vogal Ao Vivo em Porto Alegre. Ainda não lança-mos. Vida que segue. Escrevo agora dentro de um ônibus, depois de um show.

Uma pergunta que ouvi recorrentemente nesses anos todos é sobre inspiração. Quando pintam as canções? Algum lugar especial para compor? De onde vêm as canções? Não há resposta. Elas chegam a qualquer hora, em qualquer lugar. Vindas não sei de onde.

O que mais se aproximaria, no meu caso, de um lugar inspirador, seria, exatamente, um ônibus. Na escuridão da madrugada. Depois de um show, às vésperas de outro. Enquanto músicos e equipe estão dormindo. Os faróis iluminando uma fatia mínima de asfalto, as músicas que tocamos e a reação da plateia ainda na cabeça. Para mim, sempre foi inspirador. Muitas ideias nasceram assim.

Caminhar e jogar tênis também são momentos bons para pen-sar sem pensar. Muitas lembranças para este livro me vieram na quadra, entre sets e games. Foi péssimo para o nível técnico do meu jogo, espero que tenha sido bom para o texto. Até um tempo atrás eu gostava de imagi-nar jogos entre o jovem Agagê e o veterano HG. Quem venceria? O maior preparo físico ou a maior experiência? Nunca cheguei a nenhuma conclu-são. Talvez porque nossa jornada seja mais parecida com frescobol do que com tênis. Mais diálogo do que competição. Conversas entre quem fomos e quem queremos ser.

Gostaria muito de ler o que escrevi, sem ter escrito, sem ter vivido o que narrei. Ver meu próprio corpo como se fosse outra pessoa. Talvez entendes-se melhor “qual é”. Imagino que várias frases do texto, tiradas do seu contexto, podem dizer o contrário do que dizem. Minhas canelas cheias de marcas de chuteira provam que sempre corri esse risco.

Parece que Nietzsche disse que “o que não aniquila, fortalece”. Na dúvida, fico com o que dizia minha vó: “O que não mata, engorda”. Canelas lanhadas, mãos cheias de calos, olhos cansados e ouvidos impacientes são me-dalhas que trago no peito.

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Escrevi com o coração e tentei não ser um cardiologista. Ignorei a proporcionalidade racional entre fatos importantes e irrelevantes. Se me esten-di sobre bobagens e esqueci lances cruciais, deve haver algum motivo. Depende da distância, longe ou perto, dentro ou fora.

O próprio tempo é uma questão de distância, basta olhar a irradiação fóssil das estrelas lá fora. Continuam brilhando e já não existem. É como sem-pre digo para meu amigo Freud Flintstone, quando ele aparece na escuridão do ônibus, refletido na janela: “Você, que tem ideias tão modernas, é o mesmo homem que vivia nas cavernas”.

voltamos enfim ao inícioquando se anda em círculonunca se é bastante rápido

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Pouca Vogal2009

Humberto Gessingervoz, viola caipira, violão, harmônica & teclado Duca Leindeckervoz, violão, guitarra & percussão

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Pouca Vogal2009

DEPOIS DA CURVAATÉ O FIM

GIRASSÓISBREVE

DIA ESPECIALALÉM DA MÁSCARA

SOMOS QUEM PODEMOS SERO VOO DO BESOURO

MÚSICA INÉDITANA PAZ E NA PRESSÃO

PINHALPRA QUEM GOSTA DE NÓS

TODA FORMA DE PODER + BANCOREFRÃO DE BOLERO

AO FIM DE TUDOTENTENTENDER

O AMANHÃ COLORIDOPOUCA VOGALA MONTANHA

A FORÇA DO SILÊNCIO

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gessinger/leindeckergessingerleindeckergessinger/leindeckerleindeckergessingergessingergessingerleindeckerleindeckerleindeckergessingergessingergessingerleindeckergessinger/leindeckerleindeckergessingergessingergessinger/leindecker

Gravei She Came In Through The Bathroom Window, dos Beatles, para a coletânea Abbey Road.

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123 Letras • Engenheiros do HawaiiInéditas • Humberto Gessinger TrioPouca Vogal

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Por que escolhi 123 letras? Encasquetei com o número, queria usar no título. Ainda bem que me avisaram que havia 123 mil livros com nome parecido. Para quem vive de invenções, ser desinformado é fundamental e perigoso.

O disco Novos Horizontes iria se chamar Dezoito. Foi na última hora que me mostraram um disco gringo bem conhecido que usava o mesmo número. Ser desinformado ajuda muito, mas atrapalha um pouco, quem vive de invenções.

Escolher as músicas foi legal, me forçou a olhar o material de forma objetiva. Pra ser sincero, acho que foi a primeira vez. Selecionei o repertório como se estivesse fazendo o roteiro de um show.

Com o tempo, aprendi que todo show é feito por músicas que a gente toca e músicas que a gente deixa de tocar. Som e pausa. Se a música favorita de alguém ficou de fora, aí está um bom início de conversa.

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ENGENHEIROS DO HAWAII, A CANÇÃOletra e música: gessinger 1984

to be or not to be engenheiros do Havaí

to be or not to be reis do rock pós-IAPI

to be or not to be um bando de guri

to be or not to be enrolados em Colomy

eles odeiam Albert Camuseles só querem ler gibi

to be or not to be engenheiros do Havaí

to be or not to be Beach Boys de Tramandaí

to be or not to be uma banda tri-li-li

to be or not to be fãs da Família Dó Ré Mi

eles odeiam Albert Camuseles só querem ler gibi

eles odeiam Alber Camuseles só querem Le Corbusier

ENGENHEIROS DO HAWAII, A CANÇÃO

É simbólica por alguns motivos, além de ter dado nome à banda. Tem o humor da minha turma da faculdade. Algo que contrastava muito com minha seriedade no colégio. Eu era bem mais velho no ensino médio do que sou hoje.

No solo, eu tocava as melodias dos seriados de TV Hawaii 5.0 e Bonanza. A en- xurrada de referências reflete o ambiente e nossa ansiedade.

O escritor Camus, o ar-quiteto Le Corbusier, o seriado de TV Família Dó Ré Mi, a praia sem onda de Tramandaí, a antiga gíria gaúcha tri-li-li, o papel para enrolar fumo Colomy e o bairro I.A.P.I..

É um bairro operário dos anos 40, com um desenho de ruas maravilhoso, humano, com muitas curvas. Minha mãe dava aula num colégio desse bairro. Na faculdade projetamos uma escola para ele. Mas o I.A.P.I. entrou na música por ser um bairro historicamente roqueiro, desde o fim dos 60.

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CAUSA MORTISletra e música: gessinger 1984

dia após dia, cada vez mais fria você matou sua mãe pra estudar anatomia ano após ano, seu sorriso insano você matou seu pai com veneno no cinzano

você matou o presidente norte-americano você era democrata, ele republicano você matou sua avó ouvindo Mano a Mano matou seu avô — não me diz que foi engano

não! não vou ficar aqui pra alimentar seu bisturi não! você não me seduz com seu jeitinho cão andaluz você matou sua tia, morte por asfixia matou seu tio com tiro de fuzil matou sua irmã com veneno na maçã com tiros de canhão, matou seu irmão

você matou todo mundo (era esse seu plano) matou sua sede bebendo sangue humano matou a charada (vai entrar pelo cano) matou muita aula (vai repetir o ano)

não! não vou ficar aqui pra alimentar seu bisturinão! você não me seduz com seu jeitinho cão andaluz

CAUSA MORTIS

O jeitinho cão andaluz vem da cena da navalha no olho do filme de Buñuel. Aguentar os punks de butique da época era um saco. Sempre há quem ache que a credibilidade está em falar alto.

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SEGURANÇAletra e música: gessinger 1985

você precisa de alguém que te dê segurança senão você dançasenão você dança

ele era o talcheio de moral

bon vivant parecia um galã

usando óculos Ray Ban (don juan)corria em Tarumã

combateu no Vietnã (ra-ta-ta-tá) vestia Yves Saint-Laurent (Pierre Cardin)

você precisa de alguém que te dê segurança senão você dançasenão você dança

ele era o talum cara tão legal

fascinava vocêtinha um Puma-GT com vidro fumê

tinha sauna no apêsó pra você ver (pode crer)

lutava karatê como nos filmes da tv

você precisa de alguém que te dê segurança senão você dançasenão você dança

o que mais me impressiona é que tudo nasceu numa carona que ele te deu

o que mais me impressiona é que tudo se deuno banco traseiro de um Alfa-Romeo

você precisa de alguém que te dê segurança senão você cança

senão você se cansa e rança

SEGURANÇA

Um curso pré-vestibular usou o refrão como propa- ganda. Estava lá, estampado num outdoor, meu erro de português favorito. Às vezes as ironias de uma canção trans- bordam para a vida real. Algumas das grifes citadas na letra já dançaram. Boa sensa-ção estranha de sobreviver às marcas.

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TODA FORMA DE PODER letra e música: gessinger 1986

eu presto atenção no que eles dizem mas eles não dizem nada Fidel e Pinochet tiram sarro de você que não faz nada começo a achar normalque algum boçal atire bombas na embaixada

se tudo passatalvez você passe por aqui e me faça esquecer tudo que eu vi

toda forma de poder é uma forma de morrer por nada toda forma de conduta se transforma numa luta armada a stória se repetemas a força deixa a stória mal contada

se tudo passatalvez você passe por aqui e me faça esquecer tudo que eu vi

o fascismo é fascinante deixa gente ignorante fascinada é tão fácil ir adiante esquecer que a coisa toda tá erradaeu presto atenção no que eles dizem mas eles não dizem nada

se tudo passatalvez você passe por aqui e me faça esquecer tudo que eu vi

TODA FORMA DE PODER

Adoro desmontar e re-montar minhas músicas. Jun-tar duas em uma, quebrar uma em duas. Deve ser herança da Arquitetura ou das bandas progressivas. Módulos. Tijolos em prédios. Prédios numa cidade.

TODA FORMA DE PODER, no DVD Novos Horizontes, está unida à CHUVA DE CONTAINERS. No DVD Pouca Vogal, a ligação é com BANCO. A primeira junção enfatiza o lado político da canção. A segunda, o lado pessoal.

Há ainda a ligação com ILUSÃO DE ÓTICA, presen-te no DVD 10.000 Destinos.

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CRÔNICAletra e música: gessinger 1986

já não passa nenhum carro por aqui já não passa nenhum filme na tvvocê enrola outro cigarro por aí

e não dá bola pro que vai acontecer

mais um pouco e mais um século termina mais um louco pede troco na esquina

tudo isso já faz parte da rotina e a rotina já faz parte de você

você que tem ideias tão modernas é o mesmo homem que vivia nas cavernas

todo mundo já tomou a Coca-Cola a Coca-Cola já tomou conta da China

todo cara luta por uma menina e a Palestina luta pra sobreviver

a cidade, cada vez mais violenta(tipo Chicago nos anos quarenta)

e você, cada vez mais violentono seu apartamento ninguém fala com você

que tem ideias tão modernas e é o mesmo homem que vivia nas cavernas

LONGE DEMAIS DAS CAPITAIS letra e música: gessinger 1986

suave é a noiteé à noite que eu saiopra conhecer a cidadee me perder por aí

nossa cidade é muito grandee tão pequenatão distante do horizonte do país

suave é a cidadepra quem gosta da cidadepra quem tem necessidadede se esconder

nossa cidade é tão pequenae tão ingênuaestamos longe demais das capitais

eu sempre quis viver no velho mundona velha forma de vivero 3º sexoa 3ª guerrao 3º mundosão tão difíceis de entender

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FÉ NENHUMAletra e música: gessinger 1986

não levo fé nenhuma em nada! não levo fé nenhuma em nada!

mas ninguém tem o direito de me achar reacionário não acredito no teu jeito revolucionário

eu sei que você acredita nas notícias do jornal mas tudo isso me irrita, me enoja e me faz mal

por incrível que pareça teu discurso é tão seguro talvez você esqueça: você também não tem futuro

não levo fé nenhuma em nada! não levo fé nenhuma em nada!

você quer me pôr no agito do movimento estudantil mas eu não acredito no futuro do Brasil

eu não vou morrer de fome eu não vou morrer de tédio eu não vou morrer pensando qual seria o remédio

sei de cor seus comentários sobre o mal da alienação mas eu não vivo de salário eu não vivo de ilusão

não levo fé nenhuma em nada!não levo fé nenhuma em nada!

FÉ NENHUMA

Parei de tocá-la quando me dei conta de que estava falando o contrário do que queria dizer. Mas sempre senti saudade do riff de guitarra e do Voice Box (um efeito de guitarra: o som vem por uma mangueira e, usando a boca como caixa de ressonância, se pode alterá-lo. Jeff Beck e Peter Frampton foram mestres nisso).

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BEIJOS PRA TORCIDA letra e música: gessinger 1986

quando eu abro a janela quando eu abro o jornal

eu vejo a cara dela a terceira guerra mundial

jogam bombas em Nova Iorque jogam bombas em Moscou

como se jogassem beijos pra torcida depois de marcar um gol

falam tanto sobre guerra e paz mas tanto faz falar ou não

todas as bombas e os generais são restos mortais da civilização

rebeldes sem rebeldia viciados em anestesia

fantasmas sem fantasia gripados na guerra fria

pão e circo, que pé no saco quem não fica frio fica fraco

procuro entender qualé a desses caras procuro um cigarro no bolso do casaco

em todo lugarum pedaço do fim

um furo de balaum muro de Berlim

muito sangue sai da tela do drive-in

um filme de guerraum filme sem fim

BEIJOS PRA TORCIDA

Gosto de imaginar que músicas do primeiro e do úl- timo disco poderiam trocar de lugar sem parecerem deslo-cadas. Não acredito que tenha melhorado ou piorado, nem é o caso de usar as palavras progresso e retrocesso. Claro que o tom da época pinta, é bom que seja assim.

Há muitas referências à guerra nas letras dessa fase. O absurdo acúmulo de armas atômicas e as incertezas do fim da Guerra Fria pintavam muito no rock da época, principalmente inglês.

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A REVOLTA DOS DÂNDISletra e música: gessinger 1987

1entre um rosto e um retratoo real e o abstrato entre a loucura e a lucidez entre o uniforme e a nudez entre o fim do mundo e o fim do mês entre a verdade e o rock inglês entre os outros e vocês

eu me sinto um estrangeiro passageiro de algum trem que não passa por aqui que não passa de ilusão

entre mortos e feridosentre gritos e gemidosa mentira e a verdadea solidão e a cidade entre um copo e outro da mesma bebidaentre tantos corpos com a mesma ferida

eu me sinto um estrangeiro passageiro de algum trem que não passa por aqui que não passa de ilusão

entre americanos e soviéticosgregos e troianos entra ano e sai anosempre os mesmos planos entre a minha boca e a tuahá tanto tempo, há tantos planos mas eu nunca sei pra onde vamos

eu me sinto um estrangeiro passageiro de algum trem que não passa por aqui que não passa de ilusão

2já não vejo diferença

entre os dedos e os anéis já não vejo diferença

entre a crença e os fiéistudo é igual quando se pensa

em como tudo deveria ser há tão pouca diferença

há tanta coisa a fazer

esquerda & direita, direitos & deveres, os 3 patetas, os 3 poderes

ascensão & queda são dois lados da mesma moeda

tudo é igual quando se pensa em como tudo deveria ser

há tão pouca diferençahá tanta coisa a escolher

nossos sonhos são os mesmos há muito tempo mas não há mais muito tempo pra sonhar

pensei que houvesse um muro entre o lado claro e o lado escuro

pensei que houvesse diferença entre gritos e sussurros

mas foi um engano, foi tudo em vão já não há mais diferença entre a raiva e a razão

esquerda & direita, direitos & deveres, os 3 porquinhos, os 3 poderes

ascensão & queda são dois lados da mesma moeda

tudo é igual quando se pensa em como tudo poderia ser há tantos sonhos a sonhar

há tantas vidas a viver

nossos sonhos são os mesmos há muito tempo mas não há mais muito tempo pra sonhar

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TERRA DE GIGANTES letra e música: gessinger 1987

hey, mãeeu tenho uma guitarra elétrica durante muito tempoisso foi tudo que eu queria ter

mas hey, mãealguma coisa ficou pra trás antigamente eu sabia exatamente o que fazer

hey, mãetenho uns amigos tocando comigo eles são legais e além do mais não querem nem saber

mas agora, lá foratodo mundo é uma ilha a milhas e milhas de qualquer lugar

nessa terra de gigantes que trocam vidas por diamantes a juventude é uma banda numa propaganda de refrigerantes

as revistas, as revoltas as conquistas da juventude são heranças, são motivos pr’as mudanças de atitude

os discos, as danças os riscos da juventude a cara limpa, a roupa suja esperando que o tempo mude

nessa terra de gigantes (tudo isso já foi dito antes) a juventude é uma banda numa propaganda de refrigerantes

hey, mãejá não esquento a cabeça

durante muito tempo isso foi só o que eu podia fazer

mas hey, mãepor mais que a gente cresça

há sempre coisas que a gente não pode entender

por isso, mãesó me acorda quando o sol tiver se posto

eu não quero ver meu rosto antes de anoitecer

pois agora lá forao mundo todo é uma ilha

a milhas e milhas e milhas...

nessa terra de gigantes(eu sei, já ouvimos tudo isso antes)

a juventude é uma banda numa propaganda de refrigerantes

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FILMES DE GUERRA, CANÇÕES DE AMORletra e música: gessinger 1987 os dias parecem séculos quando a gente anda em círculos seguindo ideais ridículos querer, lutar & poder

as roupas na lavanderiao analista passeando na Europaas encomendas na Bolívianas fotos um sorriso idiota

os dias parecem séculos e se parecem uns com os outros como enfermeiras em filmes de guerra e violinos nas canções de amor

a seguir cenas obscenas do próximo capítulo é só virar a página e o futuro virá

filmes de guerra, canções de amor manchetes de jornal ou seja lá o que for há sempre uma stória infeliz esperando uma atriz e um ator

há vida na terra, há rumores no ar dizendo que tudo vai acabar mais uma stória infeliz esperando um ator e uma atriz

não tenho medo de perder a guerra pois no fim da guerra todos perdem no fim das contas as nações unidas ‘tão sempre prontas pra desunião

não tenho medo de perder você desde o início eu sabia era só questão de dias um dia iria acontecer

preciso beber qualquer coisa não me lembre que eu não bebo

o que só nós dois sabemos nós sabemos que é segredo

há um guarda em cada esquinaesperando um sinal

pra transformar um banho de piscina numa batalha naval

agora sinto um medo infantil mas na hora certa afundaremos o navio

então dê um copo de aguardente para um corpo sentindo frio

preciso beber qualquer coisavocê sabe que eu preciso

o que só nós dois sabemosjá não é mais segredo

se alguém, seja lá quem fortiver que morrer

na guerra ou no amornão me peça pra entendernão me peça pra esquecer

não me peça para entender não me peça pra escolher

entre o fio ciumento da navalha e o frio de um campo de batalha

chegamos ao fim do dia chegamos, quem diria?

ninguém é bastante lúcidopra andar tão rápido

chegamos ao fim do século voltamos enfim ao início

quando se anda em círculosnunca se é bastante rápido

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INFINITA HIGHWAYletra e música: gessinger 1987

você me faz correr demaisos riscos desta highwayvocê me faz correr atrás

do horizonte desta highwayninguém por perto, silêncio no deserto

deserta highwayestamos sós e nenhum de nós

sabe exatamente onde vai parar

mas não precisamos saber pra onde vamosnós só precisamos ir

não queremos ter o que não temosnós só queremos viver

sem motivos nem objetivosestamos vivos e isto é tudo

é sobretudo a lei da infinita highway

quando eu vivia e morria na cidadeeu não tinha nada, nada a temer

mas eu tinha medo, medo desta estradaolhe só! veja você!

quando eu vivia e morria na cidadeeu tinha de tudo, tudo ao meu redor

mas tudo que eu sentia era que algo me faltavae à noite eu acordava encharcado em suor

não queremos lembrar o que esquecemosnós só queremos viver

não queremos aprender o que já sabemosnão queremos nem saber

sem motivos nem objetivosestamos vivos e é só

só obedecemos a lei da infinita highway

INFINITA HIGHWAY

Eu tinha trechos da le-tra desde sempre. Na noite em que virou canção, tudo aconteceu muito rápido, qua-se em tempo real.

É um lugar-comum, o tema da estrada sem fim. Aqui e no country americano. Variações da mesma longa estrada da vida cantada por Milionário e José Rico.

Nós, no RS, desde os anos 70 estamos acostuma-dos com o termo freeway, acho que daí veio highway, mais do que de alguma música gringa.

Não sei como virou um hit. Até a logística sinalizava contra: os cartuchos que as rádios usavam tinham um tempo me- nor do que a duração da música.

Depois que estourou, su- geriram fazer um remix, nós topamos. Escolheram um pro-dutor legal, superconceituado. Achávamos que trabalhariam com o que já havíamos gra-vado. Quando fui ao Rio ouvir, me surpreendi, pois estavam gravando metais e percussão. Tudo muito bom, grandes músicos. Mas ia contra a nossa onda. Ser trio era um dado mais do que formal no nosso som. No fim, pedimos para não usarem o remix.

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escute, garota o vento canta uma cançãodessas que a gente nunca canta sem razãome diga, garota “Será a estrada uma prisão?”eu acho que sim, você finge que nãomas nem por isso ficaremos paradoscom a cabeça nas nuvens e os pés no chãotudo bem, garota, não adianta mesmo ser livrese tanta gente vive sem ter como viver

estamos sósnenhum de nós sabe onde quer chegarestamos vivos sem motivosque motivos temos pra estaratrás de palavras escondidasnas entrelinhas do horizonte desta highwaysilenciosa highway

eu vejo o horizonte trêmulotenho os olhos úmidoseu posso estar completamente enganadoposso estar correndo pro lado erradomas “a dúvida é o preço da pureza”é inútil ter certezaeu vejo as placas dizendo“não corra”, “não morra”, “não fume”eu vejo as placas cortando o horizonteelas parecem facas de dois gumes

minha vida é tão confusaquanto a América Central

por isso não me acuse de ser irracionalescute garota, façamos um trato:

você desliga o telefonese eu ficar muito abstrato

eu posso ser um beatleum beatnik ou um bitolado

mas eu não sou atoreu não ‘tô à toa do teu lado

por isso garota, façamos um pacto:não usar a highway pra causar impacto

110, 120, 160 só pra ver até quando o motor aguenta

na boca, em vez de um beijo um chiclete de menta

e a sombra de um sorriso que eu deixeinuma das curvas da highway

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ALÉM DOS OUTDOORSletra e música: gessinger 1987

no ar da nossa aldeia há rádio, cinema & televisão mas o sangue só corre nas veias por pura falta de opção

as aranhas não tecem suas teiaspor loucura ou por paixão se o sangue ainda corre nas veias é por pura falta de opção

no céu, além de nuvenshá sexo, drogas & talk-shows as coisas mudam de nome mas continuam sendo religiões

no dia-a-dia da nossa aldeia há infelizes enfartados de informação as coisas mudam de nome mas continuam sendo o que sempre serão

você sabe, o que eu quero dizernão tá escrito nos outdoors por mais que a gente canteo silêncio é sempre maior

você sabe o que eu quero dizernão tá escrito nos outdoors por mais que a gente griteo silêncio é sempre maior

no ar da nossa aldeia há mais do que poluição há poucos que já foram

e muitos que nunca serão

as aranhas não tecem suas teiaspor loucura ou por paixão

se o sangue ainda corre nas veiasé por pura falta de opção

você sabe, o que eu quero dizernão tá escrito nos outdoors por mais que a gente cante

o silêncio é sempre maior

você sabe, o que eu quero dizer não cabe na canção

por pura falta de opção púrpura é a cor do coração

você sabe, o que eu quero dizer nunca foi dito num talk-show

por mais que a gente cante o silêncio, o silêncio, o silêncio, o silêncio...

Page 184: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

185

VOZESletra e música: gessinger 1987

se você ouvisse as vozes que ouço à noite

acharia tudo que eu faço natural se você sentisse

o medo que eu sinto no escuro se você soubesse

o mal que o sol me faznão me pediria pra repetir

revoltas banais das quais eu já me esqueci

se você ouvisse as vozes que ouço à noite

às vezes me assustam, outras vezes me atraem

se você sofresse tanto quanto eu sofro

com a solidão se você soubesse

o quanto eu preciso da solidãonão me pediria pra repetir

frases banais das quais já me arrependi

duas pessoas são duas verdades e, na verdade, são dois mundos

a cada segundo o pânico aumenta uma sombra arrebenta

a porta dos fundos

se você sofresse tanto quanto eu sofro

com a solidão e precisasse

tanto quanto eu preciso da solidão

não me pediria pra repetir gestos banais

iguais aos que eu nunca fiz

QUEM TEM PRESSA NÃO SE INTERESSAletra: gessinger 1987 | música: gessinger/maltz

quando você me olha com seu olhar tranquilosempre diz que falta algo (ou isto ou aquilo) você não entende e se surpreende seu olhar já não está tranquilo mas quem tem pressa não se interessa por questões de estilo

as vozes oficiais dizem: “quem sabe...” dizem: “talvez...” enquanto os vídeos e as revistasmostram imagens sem nitidez você se espanta:“há tanta coisa nos jornais!” mas quem tem pressa não se interessaem andar rápido demais

eles têm razãomas a razão é só o que eles têma lâmina ilumina a mãoa lâmpada cria a escuridãohá muita grana atrás de uma cançãoninguém se engana com uma cançãoo tempo que nos gera também gera generaiso tempo nunca espera que cheguem os comerciais

nas veias abertas da américa, meninaum mar vermelho de sangue leva navios piratasnegociatasconcordatascandidatos democratassucos e sucatasternos e gravatassecando cataratas e lavando as mãosdando a impressãode que nessa areia movediçanada se desperdiça

Page 185: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

186

GUARDAS DA FRONTEIRAletra e música: gessinger 1987

antes de atirar o vaso na tveu ouvi o que ela dizia:“quando não houver mais amanhãserá um belo dia”estranha coisa pra se dizerantes de dizer os números da loteriamas é assim que eles fazem e fazem muito bemnós não fazemos nada, nada, nada, nada além

além do mito que limita o infinitoe da cegueira dos guardas da fronteira

antes de atirar minha tv pela janelaeu ouvi o que ela dizia“quando não houver mais ninguémserá um belo dia”estranha coisa pra se dizerantes de vender mais mercadoriamas é assim o mundo que nos cerca:nos cerca muito beme as crises e cicatrizes não nos deixam ir além

além do mito que limita o infinitoalém da cegueiradas barreiras, das fronteiras

foi então que eu resolvi jogaras cartas na mesa e o vaso pela janelasó pra ver o que acontece na vidaquando alguém faz o que quer com ela

acontece que eu não tenho escolhapor isso mesmo é que eu sou livrenão sou eu o mentirosofoi Sartre quem escreveu o livronão sou a fim de violênciamas paciência tem limite

além do mito que limita o infinitoalém do dia a dia que esvazia a fantasia

REFRÃO DE BOLERO letra e música: gessinger 1987

eu que falei “nem pensar” agora me arrependo

roendo as unhas frágeis testemunhas

de um crime sem perdão

mas eu falei sem pensar coração na mão

como refrão de bolero eu fui sincero como não se pode ser

um erro assim tão vulgar nos persegue a noite inteira

e, quando acaba a bebedeiraele consegue nos achar

num bar com um vinho barato

um cigarro no cinzeiroe uma cara embriagada

no espelho do banheiro

teus lábios são labirintos, Anaque atraem os meus instintos mais sacanas

teu olhar sempre distante sempre me enganaeu sigo a tua pista todo dia da semana

teus lábios são labirintos, Anaque atraem os meus amigos mais sacanas

eu entro sempre na tua dança de ciganaé o fim do mundo todo dia da semana

Page 186: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

187

CIDADE EM CHAMAS letra e música: gessinger 1988

as chances estão contra nósmas nós estamos por aía fim de sobrevivercomo um avião sobrevoaa cidade em chamas

no meio da confusãoandando sem direçãoa fim de sobreviversó pra ver como brilhaa cidade em chamas

se o que eu digo não faz sentidonão faz sentido ficar ouvindomas o que eu digo não é mentiranão faz sentido ficar mentindoenquanto as bombas caem do aviãodeixando de recordaçãoa cidade em chamas

já ouvimos esta stóriasabemos como acabaacontece quase tudonão muda quase nada

já vimos este filmesabemos como acabaexplodem quase tudonão sobra quase nada

entãosó resta uma soluçãosair no meio da sessãopra ver a cidade em chamas

as chances estão contra nósmas nós estamos por aí

a fim de sobreviver

no meio da confusão andando sem direção

a fim de sobreviver

enquanto as bombas caem do aviãodeixando de recordação

a cidade em chamas

não basta ter coragemé preciso estar sozinho

é preciso trair tudo trazer a solidão

eu sei que eles têm razãomas a razão é só o que eles têm

quantas bocas se fecharãoquando a bomba beijar o chão

da cidade em chamas

Page 187: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

188

SOMOS QUEM PODEMOS SER

Já toquei essa música na guitarra, baixo fretless, acor-deón, piano, bandolim, viola caipira e violão. Ergo 123 mãos aos céus por ter um público que acompanha e até incen-tiva essa maneira de tratar as canções, como organismos vivos. Não precisei virar cover de mim mesmo.

Nada contra bandas cover. Tenho até inveja de quem consegue simular o som dos outros, é um talento que não tenho. Desde criança, sempre que eu tentava tocar músicas de outras pessoas, acabava escrevendo uma nova antes de conseguir.

Outro pessoal que invejo são os compositores de jingle. Não consigo escrever nada “de propósito”. O que se con-vencionou chamar “talento musical”, na verdade, tem vá-rias facetas: reproduzir, criar instintivamente, criar racio-nalmente, ouvir… Esta, para mim, é a mais importante.

Conheço um monte de gente que aprendeu a tocar. Não conheço ninguém que tenha aprendido a ouvir.

OUÇA O QUE EU DIGO: NÃO OUÇA NINGUÉM

letra e música: gessinger 1988

tantas pessoas paradas na esquina assistindo à cena:

pele morena vendendo jornais vendendo muito mais do que queria vender

vozes à toa ecos na esquina narrando a cena

pele morena vendendo jornais precisando de mais venenos mortais

o que nos devem queremos em dobro queremos em dólar

o que nos devem queremos em dobro queremos agora

se te disseram pra não virar a mesa se te disseram que o ataque é a pior defesa

se te imploraram: “por favor, não vire a mesa” ouça o que eu digo: não ouça ninguém ouça o que eu digo: não ouça ninguém

tantas pessoas paradas na esquinafingindo pena

criança pequena cheirando cola beijando a sola dos sapatos

o que nos devem queremos em dobro queremos em dólar

o que nos devem queremos em dobro queremos agora

se te disseram pra não virar a mesa se te disseram que o ataque é a pior defesa

se te disseram pra esperar a sobremesa ouça o que eu digo: não ouça ninguém ouça o que eu digo: não ouça ninguém

Page 188: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

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SOMOS QUEM PODEMOS SER letra e música: gessinger 1988

um dia me disseram que as nuvens não eram de algodão um dia me disseram que os ventos às vezes erram a direção

e tudo ficou tão claro um intervalo na escuridão uma estrela de brilho raro um disparo para um coração

a vida imita o vídeo garotos inventam um novo inglês vivendo num país sedento um momento de embriaguez

somos quem podemos sersonhos que podemos ter

um dia me disseram quem eram os donos da situação

sem querer eles me deram as chaves que abrem esta prisão

e tudo ficou tão claroo que era raro ficou comum

como um dia depois do outro como um dia, um dia comum

a vida imita o vídeo garotos inventam um novo inglês

vivendo num país sedento um momento de embriaguez

somos quem podemos ser sonhos que podemos ter

um dia me disseram que as nuvens não eram de algodão

sem querer eles me deram as chaves que abrem esta prisão

quem ocupa o trono tem culpa quem oculta o crime também

quem duvida da vida tem culpa quem evita a dúvida também tem

somos quem podemos sersonhos que podemos ter

e teremos

Page 189: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

190

TRIBOS E TRIBUNAIS

Acho que foi a primeira música que fiz com Augusto Licks. Nas parcerias com ele, era mais frequente eu mandar a letra antes.

Gosto de fazer minha parte sozinho. Criações cole-tivas oferecem o risco do denominador comum. Além disso, variações de humor não me fazem uma boa companhia quando estou escrevendo.

A imagem do cara come-çando um livro pelo título e acabando com a palavra “fim” não pode ser menos real, pelo menos para mim. Raramente é linear, a criação.

PRA ENTENDER letra e música: gessinger 1988

pra entender basta um tapa num cigarro

uma olhada no mapa do Brasil uma caminhada

por qualquer caminho um carinho qualquer

basta ver o que não se enxerga e só se enxerga

nos olhos de uma mulher basta olhar pro que acontece

esteja onde estiver

pra entender, nada disso é tudo tudo isso é fundamental

pra entender basta a cara e a coragema cor, o corpo, o coração

uma canção da banda preferida uma descida ao porão

seis pilhas pro meu rádio seis minutos pra canção

basta olhar pro que acontece aconteça o que acontecer

pra entender, nada disso é tudo tudo isso é fundamental

pra entender basta uma noite de insônia um sonho que não tem fim um filme sem muita graça uma praça sem muito sol

seis cordas pra guitarra seis sentidos na mesma direção

seiscentos anos de estudo ou seis segundos de atenção

pra entender, nada disso é tudo tudo isso é fundamental

Page 190: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

191

TRIBOS E TRIBUNAISletra: gessinger 1988 | música: licks

todo dia a gente inventa uma alegriaa gente esquenta água friae ignora a bola fora

toda hora a gente dá um descontoa gente faz de contamas chega a um pontoem que ninguém mais quer saber

crimes passionaisprofissionais liberais demaissegredos de estadocentroavante recuado

isso me sugere muita sujeiraisso não me cheira nada bemtem muita gente se queimando na fogueirae muito pouca gente se dando muito bem

agente secretoagente imobiliário

gente como a gentepresidente operário

empresas estataisestátuas de generais

heróis de guerraguerra pela paz

hindus, industriaistribos e tribunais

pessoas que nunca aparecemou aparecem demais

isso me sugere muita sujeiraisso não me cheira nada bem

tem muita gente se queimando na fogueira

e muito pouca gente se dando muito bem

críticos de artearte pela arte

Pink Floyd sem Roger Watersforma sem função

fascistas de direitafascistas de esquerda

empresas sem fins lucrativosempresas que lucram demais

todo dia a gente inventa e fantasiaa gente tenta todo dia

feito cegos, egos em agonia

isso me sugere muita sujeiraisso não me cheira nada bem

tem muita gente se queimando na fogueirae muito pouca gente se dando muito bem

Page 191: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

192

NUNCA SE SABEletra e música: gessinger 1988

sei que parecem idiotas as rotas que eu traçomas tento traçá-las eu mesmo

e, se chego sempre atrasadose nunca sei que horas sãoé porque nunca se sabe até que horas os relógios funcionarão

sem dúvida, a dúvida é um fatosem fatos não sai um jornalsem saída ficamos todos presos aqui dentro faz muito calor

sempre parecem idiotas as rotas que eu façosempre tarde da noite

se ando sempre apressadose nunca sei que horas sãoé porque nunca se sabe

nem sempre faço o que é melhor pra mimmas nunca faço o que eu não tô a fim de fazer

não quero perder a razão pra ganhar a vida

nem perder a vida pra ganhar o pão

não é que eu faça questão de ser felizeu só queria que parassem de morrer de fome

a um palmo do meu nariz

mesmo que pareçam bobagensas viagens que eu faço

eu traço meus rumos eu mesmo (a esmo)

e, se nunca sei a quantas andose ando sem direção

é porque nunca se sabe

nem sempre faço o que é melhor pra mim

mas nunca façoo que eu não tô a fim de fazer

não viro vampiro eu prefiro sangrar

me obrigue a morrer mas não me peça pra matar

Page 192: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

193

?DESDE QUANDO? letra e música: gessinger 1988

desde quando errar é humano? desde quando humano é normal? desde quando errando é que se aprende?

desde quando poluição é progresso? desde quando progresso é melhor? acho melhor começar tudo de novo do que acabar pela primeira vez

desde quando? até quando?

você insiste em dizer que enxerga na escuridão você insiste em dizer que controla a situação não minta agora, agora não

desde quando viver é um sonho? desde quando um sonho é preciso?

eu preciso do que eu quero eu espero que você me dê

desde quando ordem e progresso nos levarão a algum lugar? nem tudo que brilha é ouro

nem todo ouro pode nos salvar

desde quando? até quando?

você insiste em dizer que enxerga na escuridão

você insiste em dizer que controla a situação

não minta agora, agora não

desde quando poesia é verdade? desde quando verdade vicia?

eu tô esperando que você me diga desd’aquele dia

rock’n’roll não é o que se pensa o que se pensa não é o que se faz

o que se faz só faz sentido quando vivemos em paz

desde quando?até quando?

você insiste em dizerque resiste à tentação

não minta agora, agora não

Page 193: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

194

A VERDADE A VER NAVIOS letra e música: gessinger 1988

na hora H no dia D na hora de pagar pra ver ninguém diz o que disse (não era bem assim)

na hora H no dia D na hora de acender a luz ninguém dá nome aos bois (tudo fica pra depois)

na hora H no dia D ninguém paga pra ver tudo fica pra trás (querem mais é esquecer)

mas é impossível repetir o que só acontece uma vez é impossível reprimir o que acontece toda vezque alguém acorda porque já não aguenta mais e a corda arrebenta no lado mais forte

é muito engraçado que todos tenham os mesmos sonhos

e que o sonho nunca vire realidade

é muito engraçado que estejam do mesmo lado

os que querem iluminare os que querem iludir

é muito engraçado que todo mundo tenhaarmas capazes de tudo de todo mundo acabar

no dia D na hora H

é impossível repetir o que só acontece uma vez

é impossível reprimir o que acontece toda vez

que chega a horade dizer chega a hora de dizer…

chega!

não pagar pra ver a verdade a ver navios

onde já se viu?

Page 194: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

195

NAU À DERIVA letra e música: gessinger 1989

nau à deriva no asfalto ou em alto mar “perigo, perigo” perdidos no espaço sideral

apocalipse now à deriva talvez um parto talvez aborto destroços da nave-mãe

apocalipse now à deriva longe demais do cais do porto perto do caos

meu coração é um porta-aviões perdido no mar esperando alguém pousar meu coração é um porto sem endereço certo é um deserto em pleno mar

NAU À DERIVA

Me dou conta agora das muitas referências ao mar. É um símbolo mais interessante se considerarmos que não sei nadar. Não estou dizendo que não sei nadar bem. Eu não sei nadar nada! Nem sei se sei, pois nunca tentei. Isso diz mais sobre minha pessoa do que eu gostaria de revelar.

Frequentemente sonho que estou nadando. No sonho, é tão bom que chego a duvidar de que, na vida real, nadar seja tão divertido.

Devo ser a única pessoa do mundo que mandou tirar a piscina de sua casa. Eu queria substituí-la por uma pequena horta. O pátio vazio virou um monumento às coisas que ficam pelo meio do caminho.

Page 195: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

196

ALÍVIO IMEDIATOletra e música: gessinger 1989

o melhor esconderijoa maior escuridãojá não servem de abrigojá não dão proteçãoa Líbia bombardeadaa libido e o víruso poder, o pudoros lábios e o batom

que a chuva caia como uma luvaum dilúvio, um delírioque a chuva traga alívio imediato

que a noite caia de repentecaia tão demente quanto um raioque a noite traga alívio imediato

há espaço pra todoshá um imenso vazionesse espelho quebradopor alguém que partiua noite cai de alturas impossíveisquebra o silêncioparte o coração

há um muro de concretoentre nossos lábioshá um muro de Berlimdentro de mimtudo se divide, todos se separamduas Alemanhas, duas Coreiastudo se divide, todos se separam

que a chuva caia como uma luvaum dilúvio, um delírioque a chuva traga alívio imediato

que a noite caia de repentecaia tão demente quanto um raioque a noite traga alívio imediato

ALÍVIO IMEDIATOletra e música : gessinger 1993

o melhor esconderijoa maior escuridão

já não servem de abrigojá não dão proteçãoholofotes iluminam

a libido e o víruso álibi perdidoelo de ligação

não há nada de concretoentre nossos lábios

só um muro de batome frases sem fim

tudo se dividetodos se separam

uma república no pampacom pompa e circunstância

um muro nos divideuma grade nos separa

o melhor esconderijoa maior escuridão

já não servem de abrigojá não dão proteção

a noite caide alturas clandestinas

cai o aparelhoo espelho vai ao chão

que a chuva caia como uma luvaum dilúvio, um delírio

que a chuva traga alívio imediato

que a noite caia de repentecaia tão demente quanto um raioque a noite traga alívio imediato

eque os muros e as grades caiam

Page 196: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

197

EM PAZletra e música: gessinger 1990

há quem faça contashá quem faça comprasquando mais um ano chega ao fim

hora de escrever cartõeshora de rever os planosmais um ano chega ao fim

que venha em pazo ano que vemque venha em pazo que o futuro trouxer

cai a neve na vitrine e a gente derrete ao solneste natal tropical

os cachorros da vizinhança vão latirsob fogos de artifíciopensarão que é o fimmas será só o início

que venha em pazo ano que vemque venha em pazo que o futuro trouxer

há quem ignore o calendáriohá quem fique de olho no horárioquando mais um ano chega ao fim

que venha em pazo ano que vemque venha em pazo que o futuro trouxer

ALÍVIO IMEDIATO

As músicas mudam na estrada. Nada tão radical quanto essas duas gravações. Variações são mais frequentes na música do que na letra. Arranjo, tom, andamento, tudo pode mudar. Às vezes dá um branco no meio do show, por uma fração de segundo fico no ar: como é mesmo que toco essa música com esses caras?

Page 197: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

198

O EXÉRCITO DE UM HOMEM SÓletra: gessinger 1990 | música: licks

1não importa se só tocam o primeiro acorde da canção a gente escreve o resto em linhas tortas nas portas da percepção

em paredes de banheiro nas folhas que o outono leva ao chão em livros de stória seremos a memória dos dias que virão (se é que eles virão)

não importa se só tocam o primeiro verso da canção a gente escreve o restosem muita pressa com muita precisão

nos interessa o que não foi impresso e continua sendo escrito a mão escrito à luz de velasquase na escuridão longe da multidão

não importa se só ouvem a primeira nota da canção a gente escreve o resto e o resto é restoé falsificação

sangue falso, bang-bang italiano suingue falso, turista americano livres dessa stória nossa trajetória não precisa explicação (e não tem explicação)

somos um exércitoo exército de um homem só

no difícil exercício de viver em paz

somos um exércitoo exército de um homem só

sem bandeirassem fronteiras para defender

não interessa o que o bom senso diz não interessa o que diz o rei

se no jogo não há juiznão há jogada fora da lei

não interessa o que diz o ditado não interessa o que o estado diz

nós falamos outra línguamoramos em outro país

somos um exércitoo exército de um homem só

no difícil exercício de viver em paz

neste exércitono exército de um homem só

todos sabem que tanto faz ser culpado ou ser capaz

tanto faz

Page 198: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

199

2somos kamikazesincapazes de ir à lutasomos quase livres(isto é pior do que a prisão)

somos um exércitoo exército de um homem sóum bando de vampirosque odeiam sangue

sem bandeirasem fronteiras para defendersomos um exércitoo exército de um homem só

nesse exércitono exército de um homem sótodos sabem que tanto fazser culpado ou ser capaztanto faz

O EXÉRCITO DE UM HOMEM SÓ

É título de um livro do Moacyr Scliar. Já fazia muito tempo que eu tinha lido quando escrevi a letra. Confesso que não sei se os dois têm algo a ver além do título.

Importante para mim era que as duas partes, junto com Era um Garoto…, compu-sessem um tríptico. A versão d’Os Incríveis com aquele sotaque paulista é imbatível (quando ouço a rajada de me- tralhadora da introdução vol- to imediatamente à minha in-fância. Suspeito que guitarra e baixo sejam influência da versão de Mr. Tambourine Man do Byrds). Não acho que a nossa gravação tenha acrescentado muita coisa. O segredo dela está nas circunstâncias.

Page 199: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

200

O PAPA É POP letra e música: gessinger 1990

todo mundo tá relendo o que nunca foi lido todo mundo tá comprando os mais vendidos

qualquer notaqualquer notícia páginas em branco, fotos coloridas

qualquer novaqualquer notícia qualquer coisa que se mova é um alvoninguém tá salvo

todo mundo tá revendo o que nunca foi visto tá na cara, tá na capa da revista

qualquer notauma nota preta páginas em branco, fotos coloridas

qualquer rotarotatividade qualquer coisa que se mova é um alvoninguém tá salvo um disparo... um estouro

o papa é popo papa é popo pop não poupa ninguém o papa levou um tiro à queima-roupa o pop não poupa ninguém

o presidente é popum indigente é popnós somos pop tambéma minha mente é popa tua mente é popo pop não poupa ninguém

Che Guevara na tua camiseta (o planeta na tua cama)

uma palavra escrita a lápis (eternidades da semana)

qualquer notaqualquer notícia

páginas em branco, fotos coloridas

qualquer coisa quase nova qualquer coisa que se mova é um alvo

ninguém tá salvo um disparoum estouro

o papa é popo papa é pop

o pop não poupa ninguém o papa levou um tiro à queima-roupa

o pop não poupa ninguém

o presidente é popum indigente é pop

nós somos pop tambémantigamente é pop

atualmente é popo pop não poupa ninguém

toda catedral é populista é pop

é macumba pra turista afinal, o que é rock’n’roll?

os óculos do John ou o olhar do Paul?

Page 200: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

201

PERFEITA SIMETRIA letra e música: gessinger 1990

toda vez que toca o telefone eu penso que é você toda noite de insônia eu penso em te escrever

pra dizer que teu silêncio me agride e não me agradaser um calendário do ano passado

pra dizer que teu crime me cansa e não compensa entrar na dança depois que a música parou

toda vez que toca o telefone eu penso que é você toda noite de insônia eu penso em te escrever

escrever uma carta definitiva que não dê alternativa pra quem lê te chamar de carta fora do baralho descartar, embaralhar vocêe fazer você voltar

ao tempo em que nada nos dividia havia motivo pra tudotudo era motivo pra mais era perfeita simetriaéramos duas metades iguais

teu maior defeitotalvez seja a perfeição

tuas virtudestalvez não tenham solução

entãopega o telefone ou um avião

deixa de lado os compromissos marcadosperdoa o que puder ser perdoado

esquece o que não tiver perdãoe vamos voltar àquele lugar

vamos voltar

ao tempo em que nada nos dividia havia motivo pra tudo

tudo era motivo pra mais era perfeita simetria

éramos duas metades iguais

Page 201: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

202

A VIOLÊNCIA TRAVESTIDA FAZ SEU TROTTOIRletra e música: gessinger 1990

no ar que se respiranos gestos mais banaisem regras, mandamentosjulgamentos, tribunaisna vitória do mais fortena derrota dos iguaisa violência travestida faz seu trottoir

na procura doentia de qualquer prazerna arquitetura metafísica das catedraisnas arquibancadas, nas cadeiras, nas geraisa violência travestida faz seu trottoir

na maioria silenciosaorgulhosa de não ter vontade de gritar(nada pra dizer)a violência travestida faz seu trottoirnos anúncios de cigarro que avisam que fumar faz mal

a violência travestida faz seu trottoirem anúncios luminososlâminas de barbeararmas de brinquedomedo de brincara violência travestida faz seu trottoir

no vídeo, idiotice intergalácticana mídia, na moda, nas farmáciasno quarto de dormir, na sala de jantara morte anda tão vivaa vida anda pra trásé a livre iniciativaigualdade aos desiguaisna hora de dormir, na sala de estara violência travestida faz seu trottoir

uma bala perdidaencontra alguém perdido

encontra abrigonum corpo que passa por ali

e estraga tudo, enterra tudo, pá de calenterra todos na vala comum

de um discurso liberal

a violência travestida faz seu trottoirem anúncios luminosos

lâminas de barbeararmas de brinquedo

medo de brincara violência travestida faz seu trottoir

tudo que ele deixoufoi uma carta de amorpr’uma apresentadora

de programa infantil

nela ele dizia que já não era criançaque a esperança também dança

como monstros de um filme japonês

tudo que ele tinhaera uma foto desbotada

recortada de revista especializada em vida de artista

tudo que ele queriaera encontrá-la um dia

(todo suicida acredita na vidadepois da morte)

tudo que ele tinhacabia no bolso da jaqueta

a vida, quando acaba,cabe em qualquer lugar

e a violência travestida faz seu trottoir

Page 202: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

203

PRA SER SINCEROletra: gessinger 1990 | música: licks

pra ser sincero não espero de você mais do que educação

beijos sem paixão, crimes sem castigo aperto de mãos, apenas bons amigos

pra ser sincero não espero que você minta

não se sinta capaz de enganar quem não engana a si mesmo

nós dois temos os mesmos defeitos sabemos tudo a nosso respeito

somos suspeitos de um crime perfeito mas crimes perfeitos não deixam suspeitos

pra ser sincero não espero que você me perdoe

por ter perdido a calma por ter vendido a alma ao diabo

um dia desses num desses encontros casuais

talvez a gente se encontre talvez a gente encontre explicação

um dia desses num desses encontros casuais

talvez eu diga, minha amiga pra ser sincero

prazer em vê-la… até mais

nós dois temos os mesmos defeitos sabemos tudo a nosso respeito

somos suspeitos de um crime perfeito mas crimes perfeitos não deixam suspeitos

não se renda às evidênciasnão se prenda à primeira impressãoeles dizem com ternura“o que vale é a intenção”e te dão um cheque sem fundos do fundo do coração

no ar que se respiranessa total falta de ara violência travestida faz seu trottoir

em armas de brinquedomedo de brincarem anúncios luminososlâminas de barbearnos anúncios de cigarro que avisam que fumar faz mala violência travestida faz seu trottoir

Page 203: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

204

ANOITECEU EM PORTO ALEGRE letra e música: gessinger 1990

na escuridãoa luz vermelha do walkmansobre edifíciosa luz vermelha avisa aviõesnas esquinas que passaram nas esquinas que virão verde, amarelo, vermelho, espelho retrovisor

anoiteceu em Porto Alegre

na escuridãosó você ouve a canção eu vejo a luz vermelha do seu walkmansobre edifícios, no 30º andar uma flor vermelha nasceunas esquinas que passaramnas esquinas que virão há sempre alguém correndo fugindo da “Hora do Brasil”

anoiteceu em Porto Alegre

na zona sul existe um rionesse rio mergulha o sole arde fins-de-tarde de luz vermelhade dor vermelhavermelho anil

atrás do muro existe um rio que na verdade nunca existiu mas arde fins-de-tarde de luz vermelhade dor vermelhavermelho anil

aconteceu à meia-noiteanoiteceu em Porto Alegreaconteceu a noite inteiraaconteceu em Porto Alegre

quinze pr’as duas, ruas escuras quem tem o mapa? qual é a direção?

duas e meia, castelos de areia cabelos castanhos, estranhos sinais

já passa das três... pela última vezde hoje em diante, só uísque escocês

cinco da manhã, nada diferente chegamos finalmente ao dia de amanhã

eu trago comigo os estragos da noiteescondo meu rosto entre escombros da noite

um ditador depostomarcas no rosto

um gosto amargo na boca uma certeza, só uma certeza

da próxima vez, só uísque escocês

duas fichas telefônicas um telefone que não para de tocar

ninguém atendeeu não entendo

‘tão fazendo onda ‘tão fazendo charme

um alarme de carro que não para de tocar

eu trago comigo os estragos da noiteeu trago comigo os estragos da noite

Page 204: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

205

uma canção no rádioversão mal traduzida um pastor exorciza no rádio de um táxiuma certa impressãouma certeza imprecisa quem não precisa de uma versão uma tradução?

um ditador deposto, marcas no rostoum gosto amargo na bocae a certeza de que o último dia de dezembro é sempre igual ao primeiro de janeiro

eu trago comigo os estragos da noitemeu reino por um rosto pelo resto da noite

noites que passaram, noites que virão noites que passamos lado a lado em solidão noites de inverno, noites de verão noites que viramos esperando o sol nascer esperando amanhecer

amanheceu em Porto Alegre

recomeça tudo lá fora “here comes the sun” “the sun is the same in the relative waybut you are older”

recomeça tudo lá fora nas esquinas, nas escolas um litro de leite e meio quilo de pão

recomeça tudo lá fora neguinho da Zero Hora vende manchetes quinze pr’as sete da manhã

nada diferente chegamos finalmente ao dia de amanhãem Porto Alegre

ANOITECEU EM PORTO ALEGRE

Me perguntam muito so-bre músicas relacionadas ao futebol e ao Grêmio. Não sou a pessoa certa para escrever hinos. O estilo militar, moti- vacional, ou a brejeirice de um samba exaltando o futebol arte nunca me seduziram.

Na gravação dessa mú-sica há uma colagem usando a narração de um jogo. Mas é o jogo do solitário, na noite, ouvindo rádio.

Page 205: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

206

OLHOS IGUAIS AOS SEUS letra e musica: gessinger 1990

uma nuvem cobre o céu uma sombra envolve o seu olhar

você olha ao seu redor e acha melhor parar de olhar

são olhos iguais aos seus iguais ao céu ao seu redor

são olhos iguais aos seus

o que faz as pessoas parecerem tão iguais?

o que faz as pessoas parecerem tão iguais?

por que razão essa igualdade se desfaz?

qual é a razão desse disfarce no olhar?

o que faz as pessoas parecerem tão iguais?

o que fazem as pessoas para serem tão iguais?

A NOITE INTEIRAletra e música: gessinger 1990

a gente poderia conversar a noite inteiramas amanhã é segunda-feiraeu tenho contas a pagareu tenho que apagar a luzeu quero estar dormindo quando o despertador tocar

a gente poderia conversar a noite inteirafalando sério só de brincadeiramas eu quero dormir um sono profundoeu quero estar em outro mundo quando o sol raiar

a gente poderia conversar a noite inteirapoderia até deixar a luz acesaa noite inteiramas, por favor, esqueçaeu quero tirar da cabeçatudo que mereça atenção

a gente pode conversar sobre o que há de mais sagradoao mesmo tempo cometer os maiores pecadosa gente pode falar de liberdade sem sair da prisãopode falar sobre o céu sem tirar os pés do chão

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QUARTOS DE HOTEL letra e música: gessinger 1991

tô num lugar comum onde qualquer um se esconde pra fazer a frase feita e sentir os efeitos colaterais

tô em lugar nenhum onde qualquer um se esconde pra fazer a frase feita contrabando de uma seita oriental

não tenho estado muito em casa ultimamente nem me lembro quanto tempo faz aprendi a não olhar pra trás

eu conto as horas que passam eu conto estrelas no céu na solidão das noites sem graça nos quartos de hotel

como se chama essa cidade? como se chama atençãode uma cidade que dorme enquanto a gente, infelizmente, não?

bobeiras na noite, noites inteiras pensando bobagens, bebendo besteiras sem companhia, sem companheira nos quartos de hotel

a cada cena as paredes mudam de cor no quarto quase escuro

à luz apenas do aparelho televisor espelho retrovisor futuro

a duras penas eu apago a televisão o quarto fica quase escuro

iluminado apenas pela letra “H” da palavra HOTEL escrita em neon

amanhã numa cidade diferente não haverá diferenças no ar

as noites passarão do mesmo jeito as estrelas estarão no mesmo lugar

como se chama essa cidade? como se chama atenção

de uma cidade que morre enquanto a gente mente que não?

meias verdades, noites inteiras bebendo bobagens, pensando besteiras

sem entender o que sempre acontece nos quartos de hotel

a cada cena as paredes mudam de cor no quarto quase escuro

à luz apenas do aparelho televisor espelho retrovisor futuro

a duras penas eu apago a televisão o quarto fica quase escuro

iluminado apenas pela letra “H” da palavra HOTEL escrita em neon

pra chamar a atençãode quem passa na rua

contando as horas que passamcontando estrelas no céu

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O SONHO É POPULAR letra e música: gessinger 1991

a pampa é popo país é pobre

é pobre à pampao PIB é pouco

o povo pena mas não para poesia é um porre

o poder, o pudor (várias variáveis)o pão, o peão (grana, engrenagens)

a pátria à flor da pele pede passagem (p... q... p...)

o sonho é popular eu li isso em algum lugar

se não me engano é Ferreira Gullar falando da arquitetura de um Oscar

o concreto paira no ar mais aqui do que em Chandigarh

o sonho é popular

uma página arrancada um segredo mantido

em passagens subterrâneas sob a praça da matriz

uma stória mal contada uma mentira repetida

até virar verdade uma página virada

uma página subterrâneaum segredo arrancado

em passagens mal contadas até virar verdade

a verdade a ver navios (o sonho é) uma mentira repetida

um golpe em 61 um golpe qualquer num lugar-comum

PIANO BAR

PIANO BAR e POUCA VOGAL compartilham a mes-ma imagem: uma música ou- vida no rádio de um táxi. Ouvir uma música no rádio já é um lance aleatório. Ouvir no rádio de um táxi, sem o controle das estações, é mais aleatório ainda.

Em PIANO BAR, a cada show, mudo a música que es- taria tocando no táxi. Nas gra-vações, já foi Julio Iglesias, Willie Nelson e Bob Marley. Em POUCA VOGAL, os dois irmãos são Kleiton e Kledir.

Pelo bem da cronologia, o primeiro rádio de táxi que toca é o de ANOITECEU EM PORTO ALEGRE. Madrugada adentro, uma canção mal traduzida e um pastor que exorciza.

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PIANO BAR letra e música: gessinger 1991

o que você me pede eu não posso fazer assim você me perde, eu perco você como um barco perde o rumo como uma árvore no outono perde a cor

o que você não pode eu não vou lhe pedir o que você não quer eu não quero insistir diga a verdade, doa a quem doer doe sangue e me dê seu telefone

todos os dias eu venho ao mesmo lugar às vezes fica longe, difícil de encontrar mas quando o neon é bomtoda noite é noite de luar

no táxi que me trouxe até aqui Julio Iglesias me dava razão “as últimas do esporte, hora certa, crime e religião”na verdade, “nada” é uma palavra esperando tradução

toda vez que falta luztoda vez que algo nos falta

(alguém que parte e não volta) o invisível nos salta aos olhosum salto no escuro da piscina

o fogo ilumina muito por muito pouco tempo em muito pouco tempo

o fogo apaga tudo tudo um dia vira luz

toda vez que falta luz o invisível nos salta aos olhos

ontem à noite eu conheci uma guria já era tarde, era quase dia

era o princípionum precipício era o meu corpo que caía

ontem à noite, a noite tava fria tudo queimava, nada aquecia

ela apareceu, parecia tão sozinha parecia que era minha aquela solidão

eu conheci uma guria que eu já conheciade outros carnavais, com outras fantasias

ela apareceu, parecia tão sozinha parecia que era minha aquela solidão

no início era um precipício (um corpo que caía)

depois virou um vício foi tão difícil acordar no outro dia ela apareceu, parecia tão sozinha

parecia que era minha aquela solidão

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MUROS & GRADESletra: gessinger 1991 | música: licks

nas grandes cidadesno pequeno dia a diao medo nos leva tudosobretudo a fantasia

então erguemos muros que nos dão a garantia

de que morreremos cheios de uma vida tão vazia

nas grandes cidades de um país tão violento

os muros e as grades nos protegem de quase tudo

mas o quase tudo quase sempre é quase nada

e nada nos protege de uma vida sem sentido

um dia súper uma noite súper

uma vida superficial entre cobras

entre as sobras da nossa escassez

um dia súperuma noite súper

uma vida superficialentre sombras

entre escombros da nossa solidez

MUROS E GRADES

Talvez por escrever a maior parte das canções so-zinho, quando pinta possi- bilidade de parceria, sempre priorizo. É mais estimulante, pois as limitações são maiores.

Quando Augusto me pas- sou o riff de MUROS E GRA-DES, achei legal, mas não me veio nenhuma ideia para a letra. Eu tinha outra música pronta cuja letra me parecia ter mais a ver com o novo riff. Fiz o transplante. Com nova letra, a música doadora virou 9051, do disco Minuano.

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nas grandes cidades de um país tão surrealos muros e as grades nos protegem de nosso próprio mal

levamos uma vidaque não nos leva a nadalevamos muito tempopra descobrirque não é por aí

não é por nada nãonão, não, não pode seré claro que não é!será?

meninos de ruadelírios de ruína

violência nua e cruaverdade clandestina

delírios de ruínadelitos & delícias

a violência travestidafaz seu trottoir

em armas de brinquedomedo de brincar

em anúncios luminososlâminas de barbear

um dia súper uma noite súper

uma vida superficial entre cobras

entre escombros da nossa solidez

uma voz sublimeuma palavra sublime

um discurso subliminarentre sombras

entre sobras da nossa escassez

viver assim é um absurdocomo outro qualquer

como tentar o suicídioou amar uma mulher

viver assim é um absurdo

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NÃO É SEMPRE letra e música: gessinger 1991

às vezes parece que eu não tenho medo às vezes parece que eu não tenho dúvidasàs vezes parece que eu não tenho nenhuma razão pra chorar

você esquece que eu não sou de ferro e até o ferro pode enferrujarvocê esquece que não sou de aço e faço questão de provar:olhe pra mim enquanto eu me quebro

às vezes parece que eu tenho muito medo às vezes parece que eu só tenho dúvidasàs vezes parece que eu não tenho nenhuma chance de escapar

acontece que eu não nasci ontem e até hoje sempre escapei com vidapra quem duvida de tudo que eu façoeu faço questão de mostrar:olhe pra mim enquanto desapareço no ar

não queira estar no meu lugarnão queira estar em lugar nenhum

às vezes tudo mudae continua tudo no mesmo lugar

não queira estar no meu lugarnão queira estar em lugar nenhum

às vezes uma prece ajudaàs vezes não adianta rezar

já desisti de ser uma pessoa sójá desisti de ser uma multidão

já não ponho todas as fichas na mesa agora, jogo algumas no chão

às vezes tudoàs vezes nada

às vezes tudo ou nadaàs vezes 50%

às vezes a todo momentoàs vezes nunca

como tudo na vidanão é sempre

às vezes de bem com a vidaàs vezes de mau humor

às vezes sem saídaàs vezes seja onde for

não é sempre, não é semprecomo tudo na vida, nunca é sempre

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NUNCA É SEMPRE letra e música: gessinger 1991

eu já estive a fimeu já não tô a fim a gente vive assimum dia aqui, o outro ali

aqui onde ninguém nos vêali no rádio, na tva gente vive assimsabendo de tudo sem saber por quê

só tô começando e já cheguei ao fima gente vive assimsempre acabando o que não tem fimacabando o que não tem fimquerendo o que não temfim

ANDO SÓletra e música: gessinger 1991

ando sópois só eu sei

pra onde irpor onde andei

ando sónem sei por quê

não me pergunteo que eu não sei

pergunte ao pódesça ao porão

siga aquele carroou as pegadas que eu deixei

pergunte ao pó por onde andei

há um mapa dos meus passosnos pedaços que eu deixei

desate o nó que te prendeua uma pessoa que nunca te mereceu

desate o nó que nos uniunum desatino um desafio

ando só como um pássaro voando

ando só como se voasse em bando

ando só pois só eu sei andar

sem saber até quandoando só

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DESCENDO A SERRA letra e música: gessinger 1991

‘tô descendo a serra cego pela cerração salvo pela imagem

pela imaginação de uma bailarina no asfalto fazendo curvas sobre patins

‘tô descendo a serra cego pela neblina

você nem imagina como tem curvas esta estrada

ela parece uma serpente morta às portas do paraíso

o inferno ficou para trás com as luzes lá em cima

o céu não seria rima nem seria solução

um dia de cão um mês de cães danados

ordem no caos olhos nublados

um cão anda em círculos atrás do próprio rabo

um dia de cão um mês de cães danados

ordem no caos olhos cansados

não há nada de novo no ovo da serpente

é sempre a mesma stória (é tão difícil partir)

é sempre a mesma stória (é impossível ficar)

é sempre mais difícil dizer adeus quando não há nada mais pra dizer

SAMPA NO WALKMAN

Não tive a pretensão de me meter no diálogo de Caetano Veloso com São Paulo. É uma homenagem. Aos dois.

SAMPA NO WALKMAN é irmã de PAMPA NO WALKMAN e tem o mesmo riff de QUARTOS DE HOTEL.

Uma corda de violão po-de vibrar sem ser tocada, se soar a mesma nota vinda de outra fonte. Vibra por sim-patia. Gosto de pensar que isso também acontece com canções, quadros, poemas. Podem formar interessantes acordes.

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SAMPA NO WALKMAN letra e música: gessinger 1991

este sou euparado na esquina (o barulho termina, começa a canção)a mesma esquina em outra canção

é a verdadea-ver-a-cidade alguma coisa acontece no meu coração

estas são elastuas meninas nordestinas erundinastua mais completa contradição

esta São Paulo são tantas cidades nunca tantas quantas gostaria de ser

ouvindo Sampa no walkman vidro, concreto e metalouvindo Sampa no walkman duvido de qualquer cartão-postal

este sou eu parado na esquina

a-ver-a-cidade ouvindo a canção

deuses da chuva demônios da garoa

garotas-propaganda além dos outdoors

FIESPfavelas

ouro & ferro velho surfista ferroviário

(o contrário do contrário da contradição)

esta São Paulo são tantas cidades

nessas cidades eu vejo a canção

ouvindo Sampa no walkman vidro, concreto e metal

ouvindo Sampa no walkman duvido de qualquer cartão-postal

ouvindo Sampa no walkman samples de sons audiovisuais ouvindo Sampa no walkman

na ponte aérea, no metrôouvindo Sampa no walkman

“a walk on the wild side”

este sou eu na esquina de novo

tudo é tão novo quanto esta cançãoserá que alguém presta atenção?

Page 215: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

216

PAMPA NO WALKMAN

Adoro milongas. A grava-ção dessa foi especialmente dolorida. Durante a gravação, vários cabos iam de uma sala a outra, fazendo com que ti- véssemos que usar muita força para fechar a porta do estúdio. São aquelas portas duplas, enormes, para isola- mento acústico. Só faltava gravar meu violão nessa mú-sica quando os cabos foram retirados. Sem me dar conta de que não era mais necessário, puxei a porta com toda a força, e acabei esmagando um dedo.

Que dor! Eram as últimas horas no estúdio, o jeito foi gra-var. Até o contato da palheta na corda doía. Acabei usando um pedaço de papelão por ser mais macio.

NINGUÉM = NINGUÉMletra e música: gessinger 1992

há tantos quadros na paredehá tantas formas de ver o mesmo quadro

há tanta gente pelas ruashá tantas ruas e nenhuma é igual a outra

(ninguém = ninguém)me espanta que tanta gente sinta

(se é que sente) a mesma indiferença

há tantos quadros na paredehá tantas formas de ver o mesmo quadro

há palavras que nunca são ditashá muitas vozes repetindo a mesma frase

(ninguém = ninguém)me espanta que tanta gente minta

(descaradamente) a mesma mentira

todos iguaistodos iguais

mas uns mais iguais que os outros

há pouca água e muita sedeuma represa, um apartheid

(a vida seca — os olhos úmidos)entre duas pessoas, entre quatro paredestudo fica claro: ninguém fica indiferente

(ninguém = ninguém)me assusta que justamente agora

todo mundo (tanta gente) tenha ido embora

todos iguaistodos iguais

mas uns mais iguais que os outros

o que me encanta é que tanta gentesinta (se é que sente)

ou minta (desesperadamente)da mesma forma

todos iguaistão desiguais

Page 216: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

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PAMPA NO WALKMANletra e música: gessinger 1992

se em uma fração nos parecêssemosse algum som nos fosse comumse a comunhão nos abrigasseda mesma noite, mesma chuvase me coubesses feito luvase eu procurasse a tua mão

eu ficaria aqui pra sempresempre seria diferentecada dia a dia amanhecer

se uma razão nos parecessea natureza inevitávelqual fronteiras separando estes estados nada estáveisquando eu procurasse a tua mãoencontraria a nossa gente

e ficaria ali pra sempresempre seria diferente cada cara a cara reconhecer

se meu passado fosse outrose fosse outro o presentese o futuro nos trouxesseo que faltava antigamenteeu cantaria as cançõesque se fazia de repente

sacro sino compunhaminha sina, tua unhacarne, sangue & pus

sinto muito bluessinto muito blues

eu já fui cegojá vi de tudo

já disse tudo e fiquei mudojá fui tão pouco e fui demais

eu estive longelongas tardes à procura

a loucura esteve pertoeu estive longe dela

longe da cidadecidades por toda parte

sempre estive por pertopor pouco Porto Alegre

por certo estive louco de satisfação

ouvindo pampa no walkman eu ficaria ali pra sempre

sempre seria diferentecada dia a dia renascer

Page 217: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

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A CONQUISTA DO ESPAÇOletra e música: gessinger 1992

costas quentes (sempre em frente)frente fria (sempre em frente)sangue quente (sempre em frente)demente sangria (sempre, sempre)

passo a passo à eternidadeum passo em falso: a cara no chãoum grande passo pra humanidadeum pequeno veneno pra cada um de nós

— lá do alto deve ser bonito!— aqui de cima é muito legal...— no asfalto meus tênis derretem!— aqui em cima, nem frio nem calor...

bola nas costas (sempre em frente)atrás vem gente (sempre em frente)sempre alerta (sangue frio)sempre em frente (sempre, sempre)

passo a passopégasuspegadaspelo espaço a conquistar

bola de neve morro abaixosempre em frentepra cimapro alto

— lá do alto deve ser esquisito...— aqui de cima até que é normal

— minha cabeça pesa quase dois séculos...— meu corpo flutua, peso nenhum!

cara a cara (a conquista do espelho)passo a passo (a conquista do espaço)

— lá do alto deve ser bonito!— aqui de cima até que é normal...

— minha cabeça presa entre dois mundos...— meu corpo flutua: mundo nenhum!

a mídiaa mediocracia

muito Zorro e nenhum Sargento Garciafrancamente!

há muito já não somos como já fomos:todos iguais

iguais aos poucos que ainda andamiguais a tantos que andam loucosiguais a loucos que ainda andam

iguais a santos que andam loucos de satisfação

ouvindo pampa no walkman descubro um passado que não me pertence

ouvindo pampa no walkman 3rd world music, mito e nonsense

ouvindo pampa no walkman pertenço a um país que não me pertence

ouvindo pampa no walkman não sou gaúcho: sou porto-alegrense

francamente!

Page 218: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

219

A CONQUISTA DO ESPELHOletra e música: gessinger 1992

eu roubei esses versoscomo quem rouba pãocom a mão urgentecom urgência no coração

eu contei stóriasinventei vitóriascomo quem tem preguiçacomo quem faz justiçacom as próprias mãos

eu roubei quase tudo que eu tenhosó pra chamar a atençãoe quando cheguei em casavi que lá morava um ladrão

eu perdi quase tudo que eu tinhaa paz, a paciência,a urgência que me levava pela mão

uma noite interminávelnuma cela escurasentido! senhores!censores sem poder de censura

o ruído dos motoresnuma sala de torturassenhoras & senhorescensores sem talento sensorial

nunca mais saiu da minha bocao gosto amargo da palavra traiçãonunca mais saiu da minha bocanenhum elogio a nenhuma paixão

uma noite mal dormidaum país em maus lençóissem sono, sem censura100% de nada não é nada:é muito pouco

NO INVERNO FICA TARDE + CEDOletra e música: gessinger 1992

escuridãonoite liquefeita

tudo toma formado corpo que se deita na escuridão

escuridãonenhum olhar aceita

tudo se transformanuma cama desfeita na escuridão

escuridãohora da colheita

pra quem semeou ventonuma cama desfeita na escuridão

um corpo que se deitaum corpo em tempestade

agora já é tarde

solidãohora da colheita

pra quem semeou o ventonum corpo que se deita na solidão

de uma cama desfeitaum corpo em tempestade

agora já é tarde

(no inverno fica tarde + cedo)

só depois de perdervocê descobre que era um jogoum jogo que não acaba nunca

nunca acaba empatado

se foi um jogo, você ganhou:eu perdi a direção

se foi um sonho, se foi o céueu não sei

eu que não sei perderperdi o sono na escuridão

Page 219: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

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POSE (ANOS 90)

Para cantar com Clara, limei uma enorme parte da letra. Um tempo depois, o texto integral voltou ao arranjo, na forma de um rap.

PARABÓLICAletra: gessinger 1992 | música: licks

ela para e fica ali parada

olha-se para nada (paraná)

fica parecida (paraguaia)

para-raios em dia de sol só para mim

prenda minha parabólica princesinha parabólica o pecado mora ao lado

o paraíso paira no ar

... pecados no paraíso ...

se a TV estiver fora do ar quando passarem

os melhores momentos da sua vida pela janela alguém estará

de olho em você (paranoia)

prenda minha parabólica princesinha parabólica

paralelas que se cruzam em Belém do Pará

longe, longe, longe(aqui do lado)

paradoxo: nada nos separa

eu paro e fico aqui parado

olho-me para longe a distância não separabólica

Clara no show de gravação do CD/DVD Novos Horizontes.

Page 220: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

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POSE (ANOS 90) letra e música: gessinger 1992

vamos passear depois do tiroteiovamos dançar num cemitério de automóveiscolher as flores que nascerem no asfaltovamos todo mundotudo que se possa imaginar

vamos duvidar de tudo que é certovamos namorar à luz do pólo petroquímicovoltar pra casa num navio fantasmavamos todo mundoninguém pode faltar

se faltar calor, a gente esquentase ficar pequeno, a gente aumentase não for possível, a gente tenta

vamos ficar acimavelejar no mar de lamase faltar o vento, a gente inventavamos esquecer o dia da semanatem que ser agora: anos 90

vamos remar contra a correntedesafinar do coro dos contentesse for impossívelse não for importantemesmo assim a gente tenta

não é posenão é positivismoquanto pior, pior

não é poseno pasarán!

não passaremos por isso

tô fora, voodoo, ranço, baixo astralnão vou perder meu tempo

brincando de ser mau

não vou viver pra semprenem morrer a toda hora

como rasgos pré-fabricados num novo-velho blue-jeans

morte anunciada, direitos autoraispela tv a cabo uma baleia acaba de nascer

nascer pode ser uma passagem violentao futuro se impõe, o passado não se aguenta

meninos de engenho, santa ingenuidadesantíssima trindade: sexo, drogas & rock’n’roll

é pura posepois é

pós-qualquer coisae o pior não é isso

é pura poseé dose

posteridadee o pior não é isso

Page 221: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

222

TÚNEL DO TEMPO letra e música: gessinger 1992

te vejo infinitainvejo quem gritao fim do silêncio:canção que não acabou

interna luz em fugalanterna sangra e sugapra ouvir melhor:melhor apagar a luz

deve ser o que chamamCanto Do Cisne44 minutos do 2º tempo

pra frente é que se andapara a praça, ver a banda passarse você for, eu vouse você vier, eu estou no mesmo lugar

pra frente é que se andana rua a banda continua a tocarsem você eu fico longecom você tudo volta ao lugar

há vida na terrahá chances de erro

não há nada que possa nos proteger

acontece a qualquer horaacontece a qualquer um

não há nada de errado com a gente

deve ser o que chamam Telhado De Vidrochuva de granizovitrines & vitrais

atire a 1ª pedra quem nunca atirouespere pelo sangue

que o bumerangue despertou

atire a 2ª pedra, a 3ª, o milharna idade das pedras que não criam limo

os Flintstones continuam a rolar

deve ser o que chamam Túnel Do Tempo

ano 2000 era futuro há pouco tempo atrás

há uma luz no fim do túnele não é um trem na contramão

(eterna luz em fuga)há um tempo certo para tudo

para tudo uma razão (ou não)

há uma luz no fim do túnelchama que nos chama, nos atrai

(lanterna sangra e suga)é a luz do fim do túnel do tempo

fogo fátuo, falta de ar

Page 222: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

223

PROBLEMAS... SEMPRE EXISTIRAMletra e música: gessinger 1992

não fui eu não foi você nem foi a máquina de escrever que matou a poesia

não foram os Deuses nem foi a morte de Deus não foi o jabá da academia que matou a poesia

o fim de semana o fim do planeta a palavra “sarjeta” no fim do poema problemas... sempre existiram

esteroides anabolizantes (samplers) dicionários de rima o medo do fim no final das contas problemas... sempre existiram sempre existirão

a última palavra é a mãe de todo o silêncio façamos silêncio para ouvir o último suspiro descanse em paz a mãe de todas as batalhas

a última palavra é a mãe de todo o silêncio descanse em paz, dê o último suspiro façamos silêncio para ouvir o último poema

por que você não soa quando toca? por que você não sua quando ama?

ninguém derrama sangue quando perde guerras de fliperama

por que você não sua quando toca? por que você não soa quando ama? por que você não soa quando toca? por que você não sua quando ama?

as mentiras da arte são tantassão plantas artificiais

artifícios que usamos para sermos (ou parecermos) mais reais

um pedaço do paraíso uma estação no inferno

uma soma muito maior do que as partes:as mentiras da arte

o último poema

Page 223: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

224

CHUVA DE CONTAINERS letra e música: gessinger 1992

falta pãoo pão nosso de cada diasobra pão o pão que o diabo amassou

triste vocaçãoa nossa elite burrase empanturra de biscoito fino

somos todos nordestinospassageiros clandestinosdos destinos da nação

triste destinoengolir sem mastigarchuva de containersentertainers no ar

triste vocação a nossa(elite burra)se empanturra de biscoito fino

triste sinaAmérica Latinanão escaparemos do vexamenão caberemos todos em Miamiame-o ou deixe-o

“ouviram do ipiranga as margens plácidas

os trovões da chuva ácidaa acidez oceânica

de uma laranja mecânica”

falta pãoo pão nosso de cada dia

sobra pãoo pão que o diabo amassou

falta circono mundo que nos cerca

sobra circoé só pular a cerca

sobra circo, falta pãofalta circo, sobra pão

Page 224: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

225

?QUANTO VALE A VIDA? letra e música: gessinger 1993

quanto vale a vida de qualquer um de nós? quanto vale a vida em qualquer situação? quanto valia a vida perdida sem razão? num beco sem saída, quanto vale a vida?

são segredos que a gente não conta contas que a gente não faz quem souber quanto valefale em alto e bom som

quantas vidas vale o tesouro nacional? quantas vidas cabem na foto do jornal? às sete da manhã, quanto vale a vida? depois da meia-noite? antes de abrir o sinal?

são segredos que a gente não conta faz de conta que não quer nem saber quem souber, fale agoraou cale-se para sempre

quanto vale a vida acima de qualquer supeita? quanto vale a vida debaixo dos viadutos? quanto vale a vida perto do fim do mês? quanto vale a vida longe de quem nos faz viver?

são segredos que a gente não conta contas que a gente não faz coisas que o dinheiro não compra perguntas que a gente não faz: quanto vale a vida?

nas garras da águia nas asas da pomba

em poucas palavras no silêncio total

no olho do furacão na ilha da fantasia

quanto vale a vida?

quanto vale a vida na última cena quando todo mundo pode ser herói?

quanto vale a vida quando vale a pena? quanto vale quando dói?

são coisas que o dinheiro não compra perguntas que a gente não faz

quanto vale a vida?

Page 225: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

226

REALIDADE VIRTUAL letra e música: gessinger 1993

é preciso fé cega e pé atrásolho vivo, faro fino

e tanto faz

é preciso saber de tudo e esquecer de tudo

fé cega e pé atrás

tá legal, eu desisto:tudo já foi visto

olhos atentos a qualquer momentoé preciso acreditar

tudo bem, eu acredito:tudo já foi dito

olhos atentos a todo movimentoé preciso duvidar

viver não é preciso e nem sempre faz sentido

é preciso muito mais fé cega e pé atrás

a neblina encobre o Cristo e a lagoa se ilumina

com edifícios de cabeça para baixoe refletores do Jockey Club

na outra janela o sol sempre brilhao risco é calculado

videoguerravideoreinodoscéus

é preciso fé cega e pé atrásolho vivo, faro fino

e tanto faz

é preciso saber de tudoe não pensar em nada

fé cega e pé atrás

REALIDADE VIRTUAL

Artistas instintivos nem sempre (quase nunca) enxer-gam no que fazem mais do que os outros.

Já ouvi interpretações bem interessantes sobre a par te que fala do Cristo en-cober to, prédios de cabeça para baixo e refletores do Jockey. Para mim, foi só uma descrição literal do que vi da janela do meu apar tamento: paisagem refletida na Lagoa Rodrigo de Freitas. A outra janela é a TV, com suas guerras por controle remoto e tele-evangelistas.

Page 226: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

227

ÀS VEZES NUNCAletra e música: gessinger 1993

‘tô sempre escrevendo cartasque nunca vou mandar pra amores secretosrevistas semanais e deputados federais

às vezes nunca sei se “às vezes” leva crase às vezes nunca sei em que ponto acaba a frase.,;?!...

você sempre soube (eu não sabia) toda frase acaba num riso de autoironia você sempre soube (eu não sabia) toda tarde acaba com melancolia

e se eu escrevesse “sem” com “s”ou escrevesse “cem” com “c”? por acaso faria alguma diferença? que diferença faria?

o que você faria no meu lugarse tivesse pr’aonde ir e não tivesse que esperar? o que você faria se estivesse no meu lugarse tivesse que fugir e não pudesse escapar?

você sempre soube que eu não conseguiria quando a frase acaba tarde tudo fica pr’outro dia você sempre soube (eu não sabia)toda tarde acaba em melancolia

às vezes não entendo minha própria letra minha própria caneta me trai

às vezes não entendo o que você quer dizer quando fica calada

você sempre soube (eu não sabia) quando a frase acaba o mundo silencia

às vezes não entendo onde você quer chegar quando fica parada

é como ficar esperando cartas que nunca vão chegar

não vão xegar com “x” não vão chegar com “ch”

é como ficar esperandohoras que custam a passar enquanto ficamos parados

andando pra lá e pra cá

é como ficar desesperadode tanto esperar

olhando pela janelaaté onde a vista alcançar

é como ficar esperandocartas que nunca vão chegar

é como ficar relendo velhas cartasaté a vista cansar

você sempre soube - eu não sabia você sempre soube - eu não sabia

Page 227: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

228

MAPAS DO ACASOletra e música: gessinger 1993

não peça perdãoa culpa não é sua

estamos no mesmo barcoe ele ainda flutua

não perca a razãoela já não é sua

onda após onda após ondao barco ainda flutua

ao sabor do acasoapesar dos pesares

ao sabor do acasoflutua

então, preste atenção: o mar não ensina

ele insinuaestamos no mesmo barco

sob a mesma lua

no marem marte

em qualquer parteestaremos sempre sob a mesma lua

ao sabor das correntestão fortes quanto o elo mais fraco

ao sabor da correntesob a mesma lua

âncoravela

qual me leva?qual me prende?

mapas e bússolasorte e acaso

quem sabe do que depende?

MAPAS DO ACASO

Ouvi essa música inú-meras vezes enquanto gravava, escolhia o melhor take, mi- xava e masterizava. Só depois de pronto o CD, me dei conta de que, em vez de cantar “no” mar, em marte, em qualquer parte, eu havia cantado “em” mar, em marte, em qualquer parte.

Como pode ter passado ba- tido o engano? Será que as mú-sicas, mesmo depois de impres- sas num suporte, podem mu-dar, como o retrato de Dorian Gray? Será que, em algum ponto do caminho, a palavra perde o significado e vira só uma nota musical, dando na mesma cantar “no” ou “em”?

Acredito piamente que ob- jetos como canetas e, principal-mente, tampas de canetas, possam desaparecer, ir para outro mundo. No meu estú- dio, sempre acontece. Deve haver um universo paralelo entulhado de canetas minhas, onde toca a versão certa de Mapas do Acaso.

Estou curioso para saber quais palavras vão sumir ou apa- recer depois que este livro for lançado. Por via das dúvidas, se seu time for campeão numa tar-de de domingo, melhor não ver a repetição do gol na TV, domingo à noite. Talvez a bola não entre!

Page 228: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

229

SIMPLES DE CORAÇÃO letra e música: gessinger 1995

volta pra casame traz na bagagemtua viagem sou eunovas paisagensdestino, passagemtua tatuagem sou eu

casa vazia, luzes acesassó pra dar a impressãocores e vozesconversa animadaé só a televisão

já perdemos muito tempo brincando de perfeiçãoesquecemos o que somossimples de coração

volta voando, vinda do altoderrete o chumbo do céuantes que eu saia pela tangenteno giro do carrossel

falta uma voltaponteiros paradostudo dança em torno de tivolta voando, fim da viagembem-vinda à vida real

já perdemos muito tempobrincando de perfeiçãoagora é bola pra frenteagora é bola no chão

já brincamos muito tempoaté perder a direçãona santa paz de Deusno mais perfeito caos

simples de coração

HORA DO MERGULHOletra e música: gessinger 1995

feche a portaesqueça o barulho

feche os olhostome ar

é hora do mergulhoeu sou moço, seu moço

e o poço não é tão fundo

Super-Homem não supera a superfícienós mortais viemos do fundo

eu sou velho, meu velhotão velho quanto o mundo

eu quero pazuma trégua

do lilás-neon-Las-Vegasprofundidade: 20.000 léguas

“se queres paz, te prepara para a guerra”se não queres nada, descansa em paz

“Luz!” pediu o poeta(últimas palavras, lucidez completa)

depois: silêncio

esqueça a luzrespire o fundo

eu sou um déspota esclarecido nessa escura e profunda mediocracia

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230

ILEX PARAGUARIENSIS

Uma atividade sem ob-jetivo prático, centrada em si mesma, que nos acom- panhe vida afora, com regu-laridade, acaba sendo um ótimo espelho. Placas mos-trando os quilômetros da estrada.

Jogar tênis e tomar chi- marrão são isso, para mim. Em princípio, seriam ativi-dades para socializar, mas um paredão e uma cuia pe-quena podem transformá-las em cerimônias solitárias. Quase ioga.

LANCE DE DADOS letra e música: gessinger 1995

daqui não tem mais voltapra frente é sem saber

pequenos paraísosriscos a correr

os deuses jogam pôquere bebem no saloon

doses generosas de BR 101

tá escrito há 6.000 anos em parachoques de caminhão

atalhos perigososfeito frases feitas

os deuses dão as cartaso resto é com você

no fundo tudo é ritmo a dança foge do salão invade a autoestrada

do átomo ao caminhão

o fim é puro ritmo o último suspiro

é purificação

os deuses dão as costasagora é só você

os deuses dão as cartasagora é só você

querer

Page 230: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

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ILEX PARAGUARIENSISletra e música: gessinger 1995

hoje eu acordei mais cedotomei sozinho o chimarrão procurei a noite na memóriaprocurei em vão

hoje eu acordei mais leve nem li o jornaltudo deve estar suspensonada deve pesar

já vivi tanta coisatenho tantas a viver tô no meio da estradanenhuma derrota vai me vencer

hoje eu acordei livrenão devo nada a ninguém não há nada que me prenda aqui

ainda era noiteesperei o dia amanhecer como quem aquece a águasem deixar ferver

eu acordeiagora eu sei viver no escuro até que a chama se acenda

verde... quente... erva ventre... dentro... entranhas mate amargo noite adentroestrada estranha

nunca me deram mole, nãomelhor assim

não sou a fim de pactuarsai pra lá

se pensam que tenho as mãos vazias e frias se pensam que as minhas mãos estão presas

surpresa: mãos e coração, livres e quentes chimarrão e leveza

ilex paraguariensisilex paraguariensis

relaxagora, paciência

Page 231: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

232

VÍCIOS DE LINGUAGEM

A parte em inglês tem origem bem pragmática. Gra- vamos em Los Angeles, as meninas que fizeram os vocais eram americanas. Em portu-guês, soava estranho.

LADO A LADOletra: gessinger 1995 | música: casarin

não me pergunte em que dia eu nascinão me pergunte em que cidade eu nasci

esqueça as curvas da estrada de Santosse tu quiseres saber quem eu sou

me dá a tua mãovem viver, vem lutar

lado a lado

desarme as armadilhasnão me peça explicação

o filme favoritotime do coração

o lugar mais esquisito onde já fiz uma canção

esqueça o roteironão pergunte que horas são

eu não sei

me dá a tua mãovem lutar, vem viver

ao meu ladovem aprender

a ganhar e a perderlado a lado

se tu quiseres saber quem eu souvem

se tu quiseres saber quem eu sou

me dá a tua mãovem viver, vem lutar

lado a ladome dá a tua mão

me protege e terás proteçãominha mãomeu irmão

Com Francisco, meu sobrinho, gravando a demo de Lado a Lado. Escrevi a letra pensando nele.

Page 232: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

233

VÍCIOS DE LINGUAGEM letra e música: gessinger 1995

tudo se resumea uma briga de torcidase a gente ali no meiono meio das bandeiras

o jogo não importaninguém tá assistindoe a gente ali no meiono meio da cegueira

tudo se reduza um campo de batalha e a gente ali no meio

tudo se resumea disputa entre partidoslama na imprensasangue nas bandeiras

a verdade passa ao largocomo se não existissee a gente ali no meiocomo se não existisse

tudo se reduza uma cruz e uma espada

tchê, de que lado tu estás?ninguém pode agradar aos dois ladoshey, it’s time to make a choicewe all want to hear your voice (it’s true) faça a sua aposta, tome a sua decisão

tudo se produzna mesma linha de montagem

apogeu e decadênciana mais nobre linhagem

votos de silêncio

vícios de linguagemnada traduz

hey, don’t you know that you arein the middle of a war (yes, you are)?

tchê, de que lado tu estás?ninguém pode ficar no meio do tiroteio

now it’s time to say whose side you’re on

tudo se presumese resume

se reduz

e o principal fica fora do resumo

Page 233: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

234

DE FÉ letra e música: gessinger 1996

sempre que eu preciso me desconectartodos os caminhos levam ao mesmo lugar

meu esconderijo, meu altarquando todo mundo quer me crucificar

eu só quero estar com vocêficar com você

quando o tempo fecha e o céu quer desabarperto do limite, difícil de aguentareu volto pra casa te peço pra ficar

em silêncio, só ficar

eu tenho muitos amigostenho discos e livros

mas quando eu mais precisoeu só tenho você

tenho sorte e juízocartão de crédito

e um imenso disco rígidomas quando eu mais preciso

eu só tenho você

tenho a consciência em paztenho mais do que preciso

mas, se eu preciso de pazeu só tenho você

tenho muito mais dúvidasdo que certezas

hoje, com certezaeu só tenho você

tenho medo de cobrasjá tive medo do escuro

tenho medo de te perder

PORÃOletra: gessinger 1995 | música: deluqui

numa jaula qualquerdo prédio em frente ao teuvive a bela-fera-adormecida-mulhertu só pensas nelaela só toma sol de madrugada quando nada é imoral

numa janela qualquerdo teu zoológico moralvive um morto-vivoum bom-selvagem-animalno fundo é bom sujeitocumpre condicional de madrugada quando nada é ilegal

e o que se escondia no porãosai pelos poros pela transpiraçãolava tua alma, lava de vulcão

um curto-circuito no teu círculo socialapaga toda a tua memóriablack-out totalum porta-retratos quebrado no chãoenterra todo o teu passadoqueiras ou não

numa vala qualquer do teu cemitério racionalnuma esquina qualquer da tua cidade natalé um Deus-nos-acudaninguém te ajuda de madrugada quando as fadas dizem: “tchau!”

o que se escondia no porãosai pelos poros pela transpiraçãopetróleo das veias, panela de pressão

transborda, porão!alivia a pressão!

Page 234: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

235

SEM VOCÊ (É FODA!)letra e música: gessinger 1996

um calor do cãoum frio de rachartudo aqui parece estar fora do lugar

uma sensaçãodifícil de explicartudo aqui parece estar fora do lugar

dia, noiteterra, fogo, água e arsem você tudo fica fora do lugar

a bandeira tricolor na sacada em frente ao mara caça e o caçador saindo pra jantar

a fila do cinemao sistema fora do artudo aqui parece estar fora do lugar

sul e norteterra, fogo, água e arsem você tudo fica fora do lugar

sem você tudo fica fora do lugarfora de focodifícil de enxergar

sem você tudo fica fora do lugarfora de sifoda de se aguentar

SEM VOCÊ (É FODA!)

Escrever é entrar num es- tado de santa ignorância. Uma mistura de foco e ingenuidade.

Uma das imagens de ina-dequação da letra é a bandeira tricolor na sacada em frente ao mar. Pra mim, sempre foi uma bandeira do RS. Conversando com os colorados Luciano e Adal, durante a gravação dos backing vocals, descobri que poderia ser a bandeira do Grêmio. Tudo bem, ainda fun- cionava, gaúcho ou gremista em frente ao mar do Rio. Foi aí que o técnico de gravação falou: “Pensei que fosse a bandeira do Fluzão!”.

Page 235: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

236

VIDA REALletra e música: gessinger 1996

cai a noite sobre a minha indecisão sobrevoa o inferno minha timidez um telefonema bastariapassaria a limpo a vida inteira

cai a noite sem explicaçãosem fazer a ligação

esperei chegar a hora certa por acreditar que ela viria deixei no ar a porta aberta no final de cada dia

cai a noite, doce escuridão de madura vai ao chão

na hora da canção em que eles dizem baby eu não soube o que dizer ah, vida real! como é que eu troco de canal?

na hora da canção em que eles dizem baby eu não soube o que dizer ah, vida real! tchau!

IRRADIAÇÃO FÓSSIL letra e música: gessinger 1996

eu vi meu próprio corpo como fosse outra pessoa

não me era um corpo estranho visto das alturas

eu estava livreum corpo em queda livre

livre

pra voltar à realidade procurei um rosto amigo

e vi meu próprio corpo como fosse outra pessoa

luz: tempo-espaçocomo se fosse fácil

como se fosse possívelcomo se preciso fosse

irradiação fóssilfóssil

eu estava livreassim no céu como na terra

livre

luz da estrela que não brilha maisvoz de alguém que já não fala mais

eu vejo a luz sem acreditarque aquela estrela não existe mais

irradiação fóssilfóssil

Page 236: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

237

FREUD FLINTSTONEletra e música: gessinger 1996

querem sanguequerem lama querem à força o beijo na lona e querem ao vivo

querem a lágrima doída do ídolo caindoem câmera lenta

querem lutar pelo que amamconquistar e destruir o que amavam tanto

faça uma prece pra Freud Flintstoneacenda uma vela pra Freud Flintstone sacrifique o bom-senso no seu altar

na areia da arenasai de cena por decreto a flor do deserto

gran finale, última cenano ar pelas antenas a morte do toureiro

faça uma prece pra Freud Flintstoneacenda uma vela pra Freud Flintstone que o satélite lhe seja leve

esqueça a prece pra Freud Flintstoneacenda a fogueira pra Freud Flintstonevamos queimá-lo vivo, enterrá-lo vivo

o preço é uma precepague pra ver compre o ingressoadeus Pink Freud Flintstone

fama fogo fúria féfã-clube Freud Flintstoneque o satélite lhe seja leve

FREUD FLINTSTONE

Enquanto eu escrevia, pas- sava, na TV, Sangue e Areia, an- tigo filme sobre um toureiro.

Não sei se me influenciou ou se o fato de eu estar escre-vendo a música fez o progra-mador da TV escolher esse filme. Talvez tudo no mundo esteja ligado mais profunda-mente do que numa relação de causa e consequência.

Outra possível influência é o texto Hircocervos, de Umberto Eco. Ele faz uma lista muito divertida combinando nomes: Fred Asterix, Freud Astaire, Marcel Prost, John Lenin, Moby Duck, Mohammed Dalí, Ronald Reggae, Woody Alien. A união dos nomes não é feita só pela semelhança sonora, há um conceito.

Page 237: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

238

A BOLA DA VEZ letra e música: gessinger 1996

a bola da vez brilha em teu olharmatar ou morreré a impressão que ela dá

no verde do veludotua chance ao teu alcance

a bola da vezo paraíso e a mação arqueiro zen e sua fé pagã

tudo ou nadaagora ou nuncaum lancea tua chance

o jogador é um fogo a queimarbeleza e horror de um jogo de azara gente sempre está a fima gente sempre está pela bola da vez

pela enésima vezvamos recomeçartudo outra vezcada bola em seu lugar

no verde do veludo é tudo expostoé tudo aposta

o jogador é um fogo a queimarbeleza e horror de um jogo de azara gente sempre está a fima gente sempre está pela bola da vez

BANCOletra e música: gessinger 1997

deve haver alguma coisaque ainda te emocione

tudo errado no teu banco de dados futuro presetado, passado deletado

sinto te informar: tu estás mal informado!

deve haver alguma coisaque ainda te emocione

uma garotaum bom combate

um gol aos 46 deve haver alguma coisa

que ainda te emocione

te vejo sentado no banco dos réus pra falir a banca bancando o coitado

quanto mais culpado melhor o advogado

deve haver alguma coisaque ainda te emocione

um cavalo em disparada pijamas

nada pra fazer deve haver alguma coisa

que ainda te emocione

tudo guardado num banco americanoa sete chaves, o sétimo selo, o sétimo céu

eu sinto te informar: o banco foi roubado! é o velho jogo: pedra, tesoura, papel

deve haver alguma coisaque ainda te emocione

um vinho tintoum copo d’água

a chuva no telhadoum pôr de sol

deve haver alguma coisaque ainda te emocione

Page 238: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

239

DESERTO FREEZERletra e música: gessinger 1997

se é o medo que te move“não se mexa, fique onde está”se é o ódio que te inspiranão respire o ar viciado deste lugar

eu tenho medo do medo que as pessoas têmo sol nasce pra todos todo dia de manhão mal nasce do medo da escuridão

nesse deserto freezer carnaval e solidão andam lado a ladoem perfeito estado de conservação

é um navio fantasmaum cemitério de automóveisé um deserto freezer zero Kelvin, perfeição

eu tenho medo do medo que as pessoas têmo mal nasce do medo como o ovo e a galinhanasce do medo do medo que as pessoas têm

eu tenho medo do medo que as pessoas têmo sol nasce pra todos todo dia de manhãeu tenho medo da escuridão

DESERTO FREEZER

Aqui e ali brotam algumas músicas mais explicitamente gaúchas. Nunca deixa de me espantar a lembrança de que o grande Luiz Gonzaga forma- tou suas apresentações sob a influência do gaúcho Pedro Raimundo. Os gaúchos deve-riam pensar mais sobre o que se seguiu a essa esquina nas respectivas músicas regionais.

Page 239: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

240

A MONTANHAletra e música: gessinger 1997

nem tão longe que eu não possa vernem tão perto que eu possa tocarnem tão longe que eu não possa crer que um dia chego lánem tão perto que eu possa acreditarque o dia já chegou

no alto da montanhanum arranha-céu

se eu pudesse ao menos te contaro que se enxerga lá do altocom o céu aberto, limpo e claroou com os olhos fechadosse eu pudesse ao menos te levar comigo

pr’o alto da montanhanum arranha-céusem final feliz ou infelizatores sem papelno alto da montanhaà toa...ao léu

nem tão longe, impossívelnem tampouco lá jáno alto da montanhanum arranha-céu

3 MINUTOS letra e música: gessinger 1997

se você me der 3 minutos vai entender o que eu sinto

eu não sou santomas não minto não vou mentir

se você me der 3 minutos

se você me der uma chance não vou deixar que a gente dance

esqueça o que pensa que sabe duvide da crença e, quem sabe

vai sentir o que eu sintose você me der 3 minutos

só acredito no que pode ser dito em 3 minutos

por isso eu gritosó te peço 3 minutos

no caos me sinto à vontade: a tempestade é meu elemento

no pampa o vento violino minuano na fria janela de um apartamento

à espera do salto: perigo, suspenseno alto inverno porto-alegrense

só acredito no que pode ser dito em 3 minutos

eu grito e repito só te peço 3 minutos

só acredito no que pode ser dito em 3 minutos

por isso eu peço aos 4 ventos 3 minutos

Page 240: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

241

OUTROS TEMPOS letra e música: gessinger 1997

quando te vi tive a impressãode que não era a primeira vez quando te vi tive certezade que não seria a última vez

quem vem lá? quem será?que passa como um filme na fumaça de um bar

quem vem lá? quem será? que vai me salvar a vida outra vezvai fazer de novo o que nunca fez

os tempos são outrosos erros, os mesmos me diz como é que eu possote encontrar mais uma vez

os tempos são outros os erros, os mesmos me diz como é que eu faço me diz como é que eu posso te encontrar mais uma vezpela primeira vez

OUTROS TEMPOS

Quem gravou os teclados foi Humberto Barros, que vol-taria a trabalhar com a gente no Acústico MTV.

A cada tentativa, eu pedia que ele tocasse, cada vez mais, como se estivesse numa velha banda de rock progresivo. Após fazer uma cara enigmática, ele voltava às teclas. Depois me explicou que há muito tempo queria fazer um som assim. Mas as bandas com quem ele tocava sempre achavam que rock progressivo era um palavrão. Assim era a cena. Acho que ainda é.

Page 241: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

242

NUVEMletra e música: gessinger 1997

se está com ele, está sozinhae sozinha não quer mais ficarse está com ele é porque querporque não quer mudar

diga adeusdiga adeus ou não diga nadadiga adeus

se está chegando o fim da linhatá na hora de saltarse está com ele, está sozinhae sozinha não quer mais ficar

diga adeusdiga adeus ou não diga nadadiga adeus

não vá perder a hora certacom a pessoa erradadiga adeus

a vida não pode ser um conta-gotas na tua mãochuva que não chove, sol que não saia vida não pode ser medida com precisãomotor que não se move, nuvem que não se vai

se está com ele, está sozinhae sozinha não quer mais ficarse está chegando o fim da linhatá na hora de saltar

não vá perder a vida inteiracom a pessoa erradadiga adeus

vai chover, vai secarserão águas passadasdiga adeus

NA REAL letra e música: gessinger 1999

encontrei

depois de tanto tempoviajei

passei o passado a limpo dei rewind

revi tudo em fast-forwardencontrei

depois de tanto procurarserá que você existe?

12:00hhá mais de uma semana

piscam as luzes no videocassete12 meses

lá se vai um anoe o outono parece não passar

será que você existe?

encontreidepois de tanto tempo

em vidas passadasem noites passadas em branco

olho para o lado e nada vejojá não sei

o que é verdade e o que é desejoserá que você existe?

será fruto da imaginação?

miragens, fantasmas, OVNIse o que mais for preciso para ser feliz

meu coração visionário tá legale dispensa comentários

ele nem pensa na real

miragens, fantasmas, viagens no tempodelírio, desejo, vozes e visões

será que você existe?será fruto da imaginação?

Page 242: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

243

3x4letra e música: gessinger 1999

diga a verdadeao menos uma vez na vidavocê se apaixonou pelos meus erros

não fique pela metadevá em frente, minha amigadestrua a razão desse beco sem saída

diga a verdadeponha o dedo na feridavocê se apaixonou pelos meus erros

eu perdi as chavesmas que cabeça a minha!agora vai ter que ser para toda a vida

somos o que há de melhorsomos o que dá pra fazero que não dá pra evitare não se pode escolher

se eu tivesse a forçaque você pensa que eu tenhoeu gravaria no metal da minha peleo teu desenho

feitos um pro outrofeitos pra duraruma luz que não produz sombra

somos o que há de melhorsomos o que dá pra fazero que não dá pra imitare não se pode esconder

3x4

Dedicada à Adriane. De fato, perdi minhas

chaves na primeira vez que fui à casa dela. Tri a fim de causar uma boa impressão, acabei fazendo todo mundo revirar móveis procurando um chaveiro do Snoopy. Não tive coragem de expor minha tese sobre sumiço de objetos, mundos paralelos, etc. Melhor ficar com fama de trapalhão do que de maluco.

Anos depois, me dei conta de que era um sinal. Uma premonição que não tive. Tava na cara que ia ser pra toda vida.

Page 243: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

244

EU QUE NÃO AMO VOCÊletra e música: gessinger 1999

eu que não fumoqueria um cigarroeu que não amo vocêenvelheci dez anos ou maisnesse último mês

senti saudadevontade de voltarfazer a coisa certaaqui é o meu lugar

mas, sabe como édifícil encontrara palavra certaa hora certa de voltara porta abertaa hora certa de chegar

eu que não fumoqueria um cigarroeu que não amo vocêenvelheci dez anos ou maisnesse último mês

eu que não bebopedi um conhaquepra enfrentar o invernoque entra pela portaque você deixou aberta ao sair

o certo é que eu danceisem querer dançar

agora já nem seiqual é o meu lugar

dia e noite sem pararprocurei sem encontrar

a palavra certaa hora certa de voltar

a porta abertaa hora certa de chegar

eu que não fumoqueria um cigarro

eu que não amo vocêenvelheci dez anos ou mais

nesse último mês

eu que não bebopedi um conhaque

pra enfrentar o invernoque entra pela porta

que você deixou aberta ao sair

Page 244: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

245

CONCRETO E ASFALTO letra e música: gessinger 1999

se eu fosse embora agoraserá que você entenderiaque há um tempo certo para tudocedo ou tarde chega o dia

se eu fosse sem dizer palavraserá que você escutariao silêncio lhe dizendo que a culpa não foi sua

é que eu nasci com o pé na estradacom a cabeça lá na lua

não vou ficarnão vou ficarfiz bandeira desses traposdevorei concreto e asfalto

tenho feito meu caminhovolta e meia fico sóreconheço meus defeitos e o efeito dominó

mas, se eu ficasse ao seu lado de nada adiantariase eu fosse um cara diferentesabe lá como eu seria

não vou ficarnão vou ficarfiz bandeira desses traposdevorei concreto e asfaltofiz o meu caminhodevorei concreto e asfalto

SEGUIR VIAGEM letra e música: gessinger 1999

seguir viagemtirar os pés do chão

viver à margemcorrer na contramão

a tua imagem e perfeiçãosegue comigo

e me dá a direção

se dizem que é impossíveleu digo: é necessário!

se dizem que estou louco(fazendo tudo ao contrário)

eu digo que é precisoeu preciso... é necessário

seguir viagemtirar os pés da terra firme

e seguir viagem

seguir viagemtirar os pés do chão

outros ares, sete maresvoar, mergulhar

o que nos dá coragemnão é o mar nem o abismo

é a margemo limite e sua negação

se dizem que é impossíveleu digo: é necessário!

se dizem que é loucuraeu provo o contrárioe digo que é preciso

eu preciso... é necessário

seguir viagemtirar os pés da terra firme

e seguir viagem

Page 245: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

246

PERDÃO É UMA BORRACHA MACIA letra e música: gessinger 1999

escrever é quebrar a pontaapontar o lápislivrar da casca que protege o grafiteimpedir que a mão aceite o limiteamassar o papelerrar a cestair do céu ao chão por vocaçãodeixar em brancodeixar no arensinar a mosca a sair da garrafaesperar que a garrafa sobreviva ao mar

O OLHO DO FURACÃOletra e música: gessinger 1999

tudo muda ao teu redoro que era certo, sólidodissolve, desaba, dilui

desmancha no ar

no moinho giram as páse o tempo vira pó

de grão em grãopor entre os dedos

tudo parece escapar

estamos no centropor dentro de tudono olho do furacão

estamos no centrode tudo que gira

na mira do canhão

se for parar pra pensarnão vai sair do lugar

não tem parada errada, nãono olho do furacão

tudo gira ao teu redoro que era certo, sólido

evapora, vai-se embora o que era líquido e certo

Page 246: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

247

10.000 DESTINOSletra: gessinger 1999 | música: dorfman

há mais de mil destinosem cada esquinaoutras vidas esperandoem cada esquina

há quase mil motivospra gente ignoraro que ouve, o que vêem cada esquina

uma vitrine muito bandeiraum ímã na geladeira

alça de miralente de aumentovampiro em frente ao espelho

por que será? me diz, por que seráque a gente cruza o rio atrás de águae diz que não está nem aífinge que não está nem aí

gritos na torcidasinos da catedraluma palavra omitida do hino nacional

tamboresmotorespulso e coração

um minuto de silêncio antes da explosão

por que será? me diz, por que seráque a gente cruza o rio atrás de águae diz que não está nem aífinge que não está nem aí

10.000 DESTINOS

Devorando concreto e asfalto e fazendo as contas na ponta dos lápis:

• mais de 1234 shows• em 467 cidades• nos 27 estados brasileiros• por 6 países

E eu, o que faço com esses números?

Page 247: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

248

NÚMEROSletra e música: gessinger 2000

última edição do Guiness Bookcorações a mais de 1.000e eu com esses números?

5 extinções em massa400 humanidades

e eu com esses números?

solidão a 2dívida externa

anos-luzaos 33 Jesus na cruz

Cabral no mar aos 33e eu, o que faço com estes números?

a medida de amar é amar sem medidavelocidade máxima permitida

a medida de amar é amar sem medida

Nascimento Silva 107Corrientes 348

e eu com estes números?

traço de audiênciatração nas 4 rodas

e eu, o que faço com estes números?

7 vidasmais de 1.000 destinos

todos foram tão cretinosquando elas se beijaram

a medida de amar é amar sem medidapreparar a decolagem

contagem regressivaa medida de amar é amar sem medida

mega, ultra, híper, micro, baixas caloriaskilowatts, gigabytes

e eu, o que faço com esses números?

NÚMEROS

Li, não lembro onde, que o mundo está na quatrocen-tésima humanidade. Fiquei pensando com que cálculo se chega a esse número. Quantos anos constituem uma geração? Segundo alguns, teriam acon-tecido cinco extinções em massa na história do planeta. Outro número com o qual é difícil se relacionar. Estranha tendência de quantificar tudo. Costurando o conceito, a frase de Santo Agostinho sobre a medida do amor.

Nascimento Silva 107 é o endereço citado na música Carta ao Tom, de Vinícius de Moraes. Corrientes 348 é o endereço no tango Media Luz. Dois clássicos.

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249

NOVOS HORIZONTES letra e música: gessinger 2000

corpos em movimentouniverso em expansãoo apartamento que era tão pequenonão acaba mais

vamos dar um temponão sei quem deu a sugestãoaquele sentimento que era passageironão acaba mais

novos horizontesse não for isto, o que será?quem constrói a pontenão conhece o lado de lá

quero explodir as gradese voarnão tenho pra onde irmas não quero ficar

suspender a queda livrelibertaro que não tem fimsempre acaba assim

SURFANDO KARMAS & DNAletra e música: gessinger 2002

quantas vezes eu estive cara a cara com a pior metade

a lembrança no espelhoa esperança na outra margem

quantas vezes a gente sobreviveà hora da verdade

na falta de algo melhornunca me faltou coragem

se eu soubesse antes o que sei agoraerraria tudo exatamente igual

tenho vivido um dia por semanaacaba a grana, mês ainda tem

sem passado nem futuroeu vivo um dia de cada vez

quantas vezes eu estive cara a cara com a pior metade

quantas vezes a gente sobrevive à hora da verdade

se eu soubesse antes o que sei agorairia embora antes do final

surfando karmas e DNAnão quero ter o que eu não tenho

não tenho medo de errar

surfando karmas e DNAnão quero ser o que eu não sou

eu não sou maior que o mar

na falta do que fazerinventei a minha liberdade

surfando karmas e DNA

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NEM + 1 DIA letra e música: gessinger 2002

o café me deixou ligadovocê ficou de ligar

a noite foi um infernodesespero de esperar

o passado voltou rasgandovocê ficou de voltar

antes que eu sentisse faltaantes que faltasse o ar

o sol voou rasantepra me bombardear

boca de extinguir espéciesmãos de acelerar partículas

antenas para radioatividadeolhos de ler código de barras

se viver fosse viver sem vocêque bom seria

mas não dá mais pra viver sem você nem mais um dia

chame de exagerodiga que é bobagem

vou deletar meu corpo da tua tatuagem

puro desesperoautossabotagem

tô fora do seu programa de milhagem

boca de extinguir espéciesmãos de acelerar partículas

antenas para radioatividadeolhos de ler código de barras

se viver fosse viver sem vocêque bom seria

mas não dá mais pra viver sem você nem mais um dia

PRA FICAR LEGAL letra: gessinger 2002 | música: galvão

agora nãoainda é cedo pra entendervou sair do ar um tempo

na contramãodo que está por acontecervou respirar com paciência

sei que lá forabrilham luzes artificiaislá forao fogo das caldeiras pede mais e maisquerem sempre mais

louco pra ficar legallonge da euforia industriallouco pra ficar legallonge da histeria carnaval

agora nãoé muito tarde pra entendereu tô fechado pra balanço

na contramãode tudo que dizem que aconteceuvou sair da área de alcance

sei que lá foraa banda toca em outro tomlá foraainda rimam soluçõeslá foraviolência vende mais

louco pra ficar legallonge de um romance policiallouco pra ficar legallonge Porto Alegre-Rio-Nepallouco pra ficar em pazlouco pra ficar legal

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ESPORTES RADICAIS letra e música: gessinger 2002

preso no trânsito de astros imóveisfaço as contas na ponta do lápise nada faz sentido

adrenalina é uma menina dormindodançando em silêncio imaginando um reggaecansei de alimentar os motoresagora quero freios e airbagpois nada faz sentido

se capricórnio fosse câncerse Califórnia fosse Françaa rampa que lança o skate ao céuseria nosso chão180, 360, 540 grausgirando, esquentandosó pra ver até quandoo motor aguenta o caos

não vou ficar paradonão vou passar batidose nada faz sentido há muito que fazer

não há alternativaé a única opçãounir o otimismo da vontadee o pessimismo da razão

contra toda expectativacontra qualquer previsãohá um ponto de partidahá um ponto de união

sentir com inteligênciapensar com emoção

não vou ficar paradonão vou passar batidose nada faz sentido há muito que fazer

ESPORTES RADICAIS

Me parece a continua-ção musical e temática de INFINITA HIGHWAY. Ambas vêm do mesmo lugar. Pra seguir usando carros e estradas na metáfora, ESPORTES RADICAIS fala daquele momento em que a gente sai da estrada e entra na cidade. Menos velocidade, mais gente em volta. A estrada é sempre uma coisa solitária, parece que foi construída só para nós. As ruas são de todos, por isso tantas esqui-nas, sentidos obrigatórios e semáforos.

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e-STÓRIA letra: gessinger/carlos maltz 2002

música: gessinger

cara, tú não vai nem acreditar:continuo mergulhando sem saber nadar

cara, ‘cê não vai acreditá:tô plantando manga na margem do Paranoá

não acredito, cara! quer trocar de lugar?(às vezes fico a fim de mandar tudo pro espaço)

calma aí maninho...tô voltando pro pedaço!(se isso não der samba, pelo menos dá um abraço)

agora...agora, virando as voltas que essa vida dáagora...agora, surfando karmas e DNA

cara, tú não vai nem acreditar:aqui em Porto Alegre anda tudo ZH

cara, ‘cê não vai acreditá:aqui em Brasília tem gente que gosta de trabalhá

cara, tú não vai nem acreditar:andei pensando no futuro com ortomolecular

legal mano, também vou experimentá!mas se a coisa ficá preta o negócio é aquele chá

cara, tú não vai nem acreditar:tava pensando mesmo nisso antes de conectar

agora...agora, virando as voltas que essa vida dáagora...agora, surfando karmas e DNA

e-STÓRIA

Eu não falava com Carlos fazia muito tempo. Nos reen-contramos na www. A con- versa resultou nessa letra. A música, eu tinha desde o primeiro show em 1985.

As parcerias com Maltz seguiram um mesmo formato: eu já mandava música com letra e estabelecíamos um diálogo. Em e-STÓRIA, lite- ralmente um diálogo. Em SEGUNDA FEIRA BLUES, Maltz acrescentou alguns versos. Em CINZA fez um rap. Estas par tes estão em vermelho.

Com Master e Carlos no estúdio.

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Pequeno Dicionário Afetivo:

• SP-2 e TC são carros espor-tivos tupiniquins dos anos 70. Carros e bandas sempre dividem garagens.

• O camburão da polícia na avenida Carlos Gomes se refere aos vários ataques que sofríamos. Mais por conta dos nossos cabelos do que pelo nosso comportamento.

• Silva Jardim 433 era o endereço de uma danceteria onde tocávamos muito no início da banda.

• Qual era o crepe favorito do Pitz? Foi a pergunta que fiz ao Carlos no primeiro e-mail. Para saber se era com ele mesmo que eu estava falando.

• Várias vezes quis mudar o nome de Engenheiros do Hawaii para Advogados de Havana. Não faz sentido mudar nome, né? Marketing zero.

• Se eu ganhasse um centavo cada vez que me peguntam quem foi Ana e o que quer dizer “trottoir”, estaria rico. Sem dúvida, as maiores dúvidas.

• Rosana é filha do Carlos.

Adriane e Clara mandam beijos pra vocês(coisas que não cabem nos encartes dos CDs)talvez no final do ano ou talvez no final do mêsdou um pulo em Porto Alegre (Silva Jardim 433)

jogam bombas em Nova Iorquejogam bombas em Cabulcomo se jogassem a lata foradepois de beber um Red Bull

Master de TCFlap de SP-2nós dois a pé na Carlos Gomescamburão pintou depois

crepe de bananaAdvogados de Havananão pergunte quem foi Ananem o que é “trottoir”

agora... agoravirando as voltas que essa vida dáo passado já foi, o futuro virásurfando karmas e DNA

virando e-Stória, e-StóriasRosana chegou o futuro verá

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3a DO PLURAL letra e música: gessinger 2002

corrida pra vender cigarrocigarro pra vender remédio

remédio pra curar a tossetossir, cuspir, jogar pra fora

corrida pra vender os carrospneu, cerveja e gasolina

cabeça pra usar bonée professar a fé de quem patrocina

eles querem te vendereles querem te comprarquerem te matar a sede

eles querem te sedar

quem são eles?quem eles pensam que são?

corrida contra o relógiosilicone contra a gravidade

dedo no gatilho, velocidadequem mente antes diz a verdade

satisfação garantidaobsolescência programada

eles ganham a corridaantes mesmo da largada

eles querem te vendereles querem te comprarquerem te matar de rirquerem te fazer chorar

quem são eles?quem eles pensam que são?

vender, comprar, vedar os olhosjogar a rede contra a paredequerem te deixar com sede

não querem te deixar pensar

3a DO PLURAL

Não acompanho as cor- ridas de Fórmula 1 desde que meu Autorama quebrou, mas ela me deu imagens para duas canções: em TERCEIRA DO PLURAL pinta o lado co-mercial, os patrocínios; em OUTRAS FREQUÊNCIAS, um cara, sentado no sofá com uma cerveja na mão e alguns quilos a mais, reclama da lentidão da Ferrari do Barrichello.

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SEI NÃO letra: gessinger 2002 | música: galvão

não sei qual foi a causae quais serão as consequênciasa borboleta bate as asas e o vento vira violência

não sei a soma exatasó a ordem de grandezanão sermos literais às vezes faz nossa beleza

às vezes faz nossa cabeçaum par de olhos, um pôr do solàs vezes faz a diferença

tentei ficar na minhatentei ficar contigoo que há de mais modernoé um sonho muito antigo

tentei ser teu futurotentei ser teu amigoo que há de mais segurotambém corre perigo

não sei a quantas andaé da nossa naturezanão saber o que fazer às vezes faz nossa certeza

às vezes faz nossa cabeçaum par de olhos, um pôr do solàs vezes faz a diferença

tentei ficar na minhatentei ficar contigoo que há de mais modernoé um sonho muito antigo

tentei ser teu futurotentei ser teu amigoo que há de mais segurotambém corre perigo

SEI NÃO

Quando a Teor ia do Caos ficou pop, com vários livros de divulgação científica falando do assunto, era co-mum resumi-la dizendo que o bater de asas de uma borboleta na China pode provocar um furacão no Caribe. Há quem se pergunte, nesse caso, que dano causaria o bater de asas de um urubu. O fim do mundo? Não sei quanto o elástico que une causa e consequência po- de ser esticado antes de romper-se. Imagino que a toda hora borboletas batam asas na China…

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DATAS E NOMESletra e música: gessinger 2002

aceite o mal que eu fiz a mim mesmocomo um cachimbo da paz

depois da explosão

e, se não for pedir demaisum último beijo

e, se não for pedir demaismata esta vontade de viver

amanhã vamos rir de tudo issoamanhã vamos trocar datas e nomes

amanhã o vinho vai brindar a uvaamanhã

entenda os sinaisa mudança dos tempos

lá vem vendaval na loja de cristais

e, se não for pedir demaisbola pra frente

semente no chãobomba-relógio na mão

amanhã vamos rir de tudo issoamanhã vamos trocar datas e nomes

amanhã o vinho vai brindar a uvaamanhã

hey, meninasei que o tempo cicatriza

hey, meninavamos rir do que nos fez chorar

amanhã

DATAS E NOMES

Gosto muito da forma como as pausas musicais, na primeira frase, vão alte-rando seu sentido:

aceite o mal (parece que é um mal metafísico) que eu fiz (agora é um mal pessoal) a mim mesmo (fica mais do que pessoal: suicida) como um cachimbo da paz (agora se trata de aceitar um presente e não resignar-se, como sugeria o início).

Só me dei conta disso depois de ter escrito a música. Tentei, várias vezes, repetir o efeito e nunca consegui.

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ARAME FARPADO letra e música: gessinger 2002

seria engraçadose não fosse tristeacesso negadoa gente não existe

arame farpadosilêncio de chumboseria absurdose não fosse lei

a serpente troca de pelea gente não esqueceo avião reabastecesem deixar de voar

não sofro maisagora eu seio que nos faz sobreviver

seria ruídose não fosse um sinalsó para iniciadostranse tribal

seriam ruínasmas a gente não esqueceo avião reabasteceem pleno ar

não sofro maisagora eu seio que nos fez sobreviver

DANÇANDO NO CAMPO MINADOletra e música: gessinger 2003

eu devo estar ficando loucoserá que eu escutei errado?

a vida no maior sufocoe os caras de papo furado

todo o cuidado é pouconem pense em ficar paradoestamos no melhor da festa

dançando no campo minado

os sinais estão no arnas esquinas do país

mensagem pelo celularágua batendo no nariz

eu devo estar ficando loucoserá que eu escutei errado?

a vida no maior sufocoe os caras de papo furado

será que eu vivo em outro mundodistante e inexplorado

na hora da invasão, silênciodançamos num campo minado

os sinais estão no ar no chão da praça da matriz

mensagem pelo celularcortar o mal pela raiz

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DOM QUIXOTEletra: gessinger 2003 música: galvão

muito prazer, meu nome é otáriovindo de outros tempos mas sempre no horáriopeixe fora d’águaborboletas no aquário

muito prazer, meu nome é otáriona ponta dos cascos e fora do páreopuro-sangue puxando carroça

um prazer cada vez mais raroaerodinâmica num tanque de guerravaidades que a terra um dia há de comer

ás de espadas fora do baralhograndes negócios, pequeno empresáriomuito prazer, me chamam de otário

por amor às causas perdidas

tudo bem, até pode ser que os dragões sejam moinhos de ventotudo bem, seja o que forseja por amor às causas perdidaspor amor às causas perdidas

tudo bem, até pode ser que os dragões sejam moinhos de ventomuito prazer, ao seu disporse for por amor às causas perdidaspor amor às causas perdidas

FUSÃO A FRIOletra: gessinger 2003

música: galvão

ninguém sabe como serão os filhos deste casamento

indústria da informação+

indústria do entretenimento

promessas de fusão a friodesvio de comportamento

indústria da informação+

indústria do entretenimento

ninguém sabe como serãoos filhos deste casamento

indústria da informação+

indústria do entretenimento

promessas de fusão a friodiversão e conhecimento

a única escolha que temosé a forma de pagamento

em doses homeopáticasem escala industrial

tudo acaba em sambaé sempre carnaval

tudo acaba em sombrasé sempre vendaval

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CAMUFLAGEMletra: gessinger 2003 música: galvão

foto de satélitevisão de raio-Xcães farejadoresdetectores de metalcurrículo escolarteste de QIprevisões do tempo no telejornalnão captarão

capa de revistalista de dez maisgrampo telefônicomalha finaa lei da selva e dos tribunaisleitura de mãosregressão a outras vidasnão captarão

sem soar o alarmesem fazer alardevai passar batido, despercebidotalvez até já tenha acontecido

sondas e radares não captarãorevisores ortográficos também nãopesquisa de opiniãocâmera escondidaos caras ligados se atrasarãoe não captarão

sem soar o alarmesem fazer alardesem bater na portasem mandar avisosem passar recibosem hora certavai passar batido, despercebidotalvez até já tenha acontecido

OUTONO EM PORTO ALEGREletra: gessinger 2003

música: galvão

nem tudo está perdidonem sinal de pedra no peito

o horóscopo do jornal arriscou “um belo dia”

liguei o rádio na hora certaera a canção que eu queria

nem tudo está perdidotudo em paz no reino da química

ninguém me telefonouenquanto eu dormia

sonhei com meu pai e ele sorriachimarrão pra acordarera só o que eu queria

veja você, que surpresaque coisa incrível

descobri que sou feliz

veja você, quem diriaque ironia

sem você eu sou feliz

nem tudo está perdidooutono em Porto Alegre

sou o dono dos meus passos sobre folhas mortas

o mundo fica para outro diaandar por aí era tudo que eu queria

veja você, que surpresaque coisa incrível

descobri que sou feliz

veja você, quem diriaque ironia

sem você eu sou feliz

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ROTA DE COLISÃOletra: gessinger 2003música: fonseca

as fases da luaa crise dos mercadoso movimento das marés

a hora da verdadea idade da razãoa diferençado que se pensa e o que se faz

isso nos coloca em rota de colisãoestamos em rota de colisão

“ao encontro de”“de encontro a”seja o que foro bom português não vai nos salvar

o lado escuro da luaas luzes da cidadea diferença do que se pensa e o que se faz

isso nos coloca em rota de colisãoestamos em rota de colisãoseja o que forisso nos coloca em rota de colisão

SEGUNDA FEIRA BLUES letra: gessinger/maltz 2003

música: gessinger

1.onde estão os caras

que lutavam dia a diasem perder a ternura jamais?

onde estão os caras que desmaterializavam

moedas de dez mil reais?

onde estão os caras que desconheciam limites

(universal e singular)?

onde estão os caras que desenhavam novas cidades

em guardanapos na mesa de um bar?

onde estão as provas?onde estão os fatos?

as boas novas eram só boatos?onde estão os atos de bravura e rebeldia

ternura guerreada dia a diaserá que estamos sós?

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2.onde estão os caras

que diziam que a guerra ia acabar?

onde estão os caras que diziam que a maré ia virar?

(eles garantiam que Freud explicava tudo)onde estão os sobreviventes daquele mundo?

onde estão os caras que usavam palavras precisas

pra nos livrar da tirania do mal?

onde estão os filhos da revolução sexual?donde están los herderos de la falacia liberal?

onde estão as provas?onde estão os fatos?

as boas novas eram só boatos?onde estão os caras que lutavam e cantavam?

por um mundo ideal se perguntavam: onde estamos nós?

onde estão os caras que pregavam no deserto?(o deserto continua lá)

onde estão os caras que deixavam as portas abertaspara a vida poder circular?

onde está o teatro mágicosó para iniciados? onde está o espaço não privatizado?

onde estão os caras que acenavam com a mão invisívelum mercado para todos nós?

onde estão as provas?onde estão os fatos?as boas novas eram só boatos?onde estão os caras que lutavam e cantavampor um mundo ideal eles gritavam:não estamos sós!

onde estão os caras que espalharam o vírusprometeram a cura e viraram as costas?onde está o outro, onde está o diferente?onde está o comum a toda gente?

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NA VEIA letra e música: gessinger 2003

se você perguntar por mimvão dizer que eu ando muito estranho

vão dizer que eu ando por aíse você perguntar por mim

quando você perguntar por mimvão dizer as coisas mais estranhas

nenhuma resposta vai satisfazerquando você perguntar por mim

vem! ver com os próprios olhosvem! ver a vida como ela é

se você está mesmo a fimde saber por onde eu ando

de saber por que eu ando assimé melhor nem perguntar por mim

vem! ver com os próprios olhosvem! ver a vida como ela é

sem filtro, na veiasem filtro, na veia

NA VEIA

Nesta música voltou a aparecer o Voice Box que eu hav ia usado em FÉ NENHUMA.

Fizemos um clip em que Bernardo toca fogo num baixo e eu estou com meu casaco favorito: uma réplica do modelo que Borg usava. Comprei também a camiseta dele. Desde então, passo todas as noites de Ano-Novo com ela. Misto de superstição e saudosismo.

No futuro, pretendo substituí-la pelo macacão branco que Elvis usava em Las Vegas. Vai melhorar muito a dublagem que faço de Suspicious Mind. Sem-pre depois da meia-noite. Sempre sem testemunhas.

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ATÉ O FIM letra e música: gessinger 2003

não vim até aqui pra desistir agoraentendo você se você quiser ir emboranão vai ser a primeira veznas últimas 24 horasmas eu não vim até aqui pra desistir agora

minhas raízes estão no arminha casa é qualquer lugarse depender de mim eu vou até o fim

voando sem instrumentosao sabor do ventose depender de mim eu vou até o fim

não vim até aqui pra desistir agoraentendo você se você quiser ir emboranão vai ser a primeira vezem menos de 24 horasa ilha não se curva noite adentro, vida afora

toda a vida, o dia inteironão seria exagerose depender de mim eu vou até o fim

cada célula, todo fio de cabelofalando assim parece exageromas se depender de mim eu vou até o fim

não vim até aqui pra desistir agora

OUTRAS FREQUÊNCIASletra e música: gessinger 2004

seria mais fácilfazer como todo mundo faz

o caminho mais curtoproduto que rende mais

seria mais fácilfazer como todo mundo faz

um tiro certeiromodelo que vende mais

mas nós dançamos no silênciochoramos no carnaval

não vemos graça nas gracinhas da tvmorremos de rir no horário eleitoral

seria mais fácilfazer como todo mundo faz

sem sair do sofádeixar a Ferrari pra trás

como todo mundo fazo milésimo gol

sentado na mesa de um bar

mas nós vibramos em outra frequênciasabemos que não é bem assim

se fosse fácil achar o caminho das pedrastantas pedras no caminho não seria ruim

Page 263: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

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ARMAS QUÍMICAS E POEMASletra e música: gessinger 2004

eu me lembro muito bemcomo se fosse a manhã

o sol nascendo sem saber o que iria iluminar

eu abri meu coraçãocomo se fosse um motor

e, na hora de voltarsobravam peças pelo chãomesmo assim eu fui à luta

eu quis pagar pra ver

aonde leva essa loucuraqual é a lógica do sistema

onde estavam as armas químicaso que diziam os poemas

afinal de contaso que nos trouxe até aqui?

medo ou coragem?talvez nenhum dos dois

sopra o vento um carro passa pela praça

e já foi… já foipor acaso eu fui à lutaeu quis pagar pra ver

aonde leva essa loucuraqual é a lógica do sistema

onde estavam as armas químicaso que diziam os poemas

o tempo nos faz esquecero que nos trouxe até aqui

mas eu lembro muito bemcomo se fosse amanhã

quem prometeu descanso em paz pra depois dos comerciais?

quem ficou pedindo maisarmas químicas e poemas?

Page 264: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

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NO MEIO DE TUDO, VOCÊ letra e música: gessinger 2006

selvaa gente se acostuma a muito pouco a gente fica achando que é demaisquando chega em casa do trabalho quase vivo

selvaa gente se acostuma a muito pouco a gente fica achando que é o máximoliberdade pra escolher a cor da embalagem

nessa selvaa gente se acostuma a muito poucoa gente fica achando que é normalentrar na fila, comprar ingressopra levar porrada

no meio de tudo, vocême salva da selvasalva da selva

selvaa gente se acostuma a muito pouco a gente fica achando que é demaisum pouco de silêncioum copo de água pura

selvaa gente se acostuma a muito pouco a gente fica achando que é o máximose o cara mente mas tem cara de honesto

nessa selvaa gente se acostuma a muito poucoa gente fica achando que é normalfinge que não vê, diz que não foi nadae leva mais porrada

no meio de tudo, vocême salva da selvasalva da selva

CORAÇÃO BLINDADO letra: gessinger 2006

música: fonseca/ayala/aranha/pedro a.

fácil falarfazer previsões depois que aconteceu

fácil pintar o quadro geralda janela de um arranha-céu

sem ter que sujar as mãossem ter nada a perder

sem o risco de pagarpelos erros que cometeu

fácil achar o caminho a seguirnum mapa, com lápis de cor

moleza mandar a tropa atacar na tela do computador

sem o cheirosem o som

sem ter nunca estado lásem ter que voltar pra ver o que restou

com a coragem que a distância dáem outro tempo

em outro lugarfica mais fácil

fácil demais fazer previsões depois que aconteceu

fácil sonhar condições ideaisque nunca existirão

sempre à distânciasem noção

o que rola pelo chãonão são as peças de um jogo de xadrez

com a coragem que a distância dáem outro tempo

em outro lugartudo é tão fácil

Page 265: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

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NÃO CONSIGO ODIAR NINGUÉM letra: gessinger 2006

música: fonseca/ayala/aranha/pedro a.

não quero seduzirteu coração turista

não quero te vendermeu ponto de vista

eu tive um sonhohá muito não sonhavalembranças do futuro

que a gente imaginava

nem sempre foi assimoutro mundo é possível

pode até ser o fimmas será que é inevitável?

não vá dizerque eu estou ficando louco

só porque não consigo odiar ninguémdo goleiro ao centroavante

do juiz ao presidenteeu não consigo odiar ninguém

o tempo parou feito fotografiaamarelou tudo que não se movia

o tempo passou, claro que passariacomo passam as vontades

que voltam no outro dia

não vá dizerque eu estou ficando louco

só porque não consigo odiar ninguémdo goleiro ao centroavante

do juiz ao presidenteeu não consigo odiar ninguém

eu tive um sonhoo mesmo do outro dialembranças do futuro

que a gente merecia

Nas músicas que com-pus com Bernardo, Gláucio, Aranha e Pedro, eles me man-davam bases gravadas sobre as quais eu escrevia as letras. Funcionavam assim, também, as parcerias com Paulinho Galvão, Fernando Deluqui e com o trio Luciano, Lúcio e Adal.

Os estúdios caseiros sim-plificaram o processo. Mas, às vezes, é necessário driblar os enfeites de uma demo para descobrir onde está, na real, a música.

Page 266: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

267

GUANTÁNAMOletra: gessinger 2006música: fonseca/ayala/aranha/pedro a.

quem foi que disse “te quero”?qual era mesmo a canção?quem viu a cor do dinheiro?qual a melhor tradução?

quem foi ao Rio de Janeiro?qual era a intenção?qual foi o dia e a hora?quem foi embora?adeus!

— me tira daqui! — não adianta gritar— me ajuda a fugir! — ninguém vai escutarnão aguento mais! eu não sei a resposta!

quem sabe o que vem primeiro?quem sabe o que vem depois?quem cabe no mundo inteiro?quem mais além de nós dois?

quem chama ao telefone?por que não bate na porta?que chama arde teu nome?será que alguém se importa?

— me tira daqui! — não adianta gritar— me ajuda a fugir! — ninguém vai escutarnão aguento mais! eu não sei a resposta!

qual é a droga que salva?qual é a dose letal?quem quer saber tudo issoserá que aguenta a pressão?

QUEBRA-CABEÇAletra: gessinger 2006

música:fonseca/ayala/aranha/pedro a.

pode ser pra semprepode não ser mais

pode ter certeza e voltar atrás

pode ser perfeitofruto da imaginação

pode ter defeito de fabricação

tá faltando peça no quebra-cabeçaeu não tenho pressa

o meu tempo é todo teu

é tudo que eu posso ofereceré pouco

mas é tudo que eu posso ofereceré quase nada

mas é tudo que eu posso oferecer

pode estar no pontoponto de interrogação

pode ser encontro ou separação

pode correr riscoarriscado sempre é

só não pode o medo te paralisar

tá faltando peça no quebra-cabeçaeu não tenho pressa

o meu tempo é todo teu

é tudo que eu posso ofereceré pouco

mas é tudo que eu posso ofereceré quase nada

mas é tudo que eu tenhotudo que eu posso oferecer

Page 267: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

268

FAZ DE CONTA letra: gessinger/melissa mattos 2006

música: gessinger

era claro espelho d’água

perfeição que a pedra destruiu

uma ondamais uma onda

outras ondas e já não tem fim

agora é centro do movimentoa qualquer momento pode transbordar

quando a pedra caiu na águaquando o espelho foi ao chão

quem estava ao teu lado? quem estava com a razão?

a pedra afundoua onda inundou

faz de conta que eu fui mais legal

malas prontasde hoje em diante

mais distantetalvez menos mal

desencanto na gargantafaz de conta que eu fui mais legal

quando a pedra caiu na águaquando o espelho foi ao chão

quem estava ao teu lado? quem estava com a razão?

a pedra afundoua onda inundou

faz de conta que eu fui mais legal

Com Melissa, no backstage em SC.

Page 268: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

269

CINZA letra: gessinger/carlos maltz 2006música: gessinger

o mundo é teu, é teu umbigochapado e aquecidodeve ser o fogo amigo queimando tudo, joio e trigo

corre mundo um aviso:corre risco teu umbigose correr, o bicho pegase ficar, corre perigo

bruxas dançam na fogueirainimigos na trincheiraum calor infernalcongela teu sorrisoe o paraíso tropical

sangue suor e óleo dieselcom limão e muito gelo arco-íris made in chinade bobeira à beira da piscinao mundo é teu até o finalpra sempre em tempo real

bruxas dançam na fogueirainimigos na trincheiraum calor infernal congela o paraísoo sorriso é glacial

vamos visitar o passadomundo distante passado muito além

onde a pessoa não valia pelo que ela ésó valia por aquilo que ela tem

vamos assistir o naufrágiode um Titanic pesado e frágil

que foi a pique sem dó nem piedade pela febre da ganância pela falta de humildade

vamos perdoar aquela genteque não soube enxergar um pouquinho na frente

e secou tudo até a última fontequeimou a floresta, matou a semente

vamos celebrar a nova civilizaçãoque nasceu da destruição

e já nasceu cuidando do que tempra não ter que aprender perdendo tudo também

bruxas dançam na fogueirabruxas dançam na fogueira

inimigos na trincheiracelebrando a nova civilização

um calor infernalcongela teu sorrisoo paraíso é virtual

corre risco teu sorrisocorre atrás do pre-juízo-final

Page 269: Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger [Livro]

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PRA QUEM GOSTA DE NÓSletra e música: gessinger 2006

formataram a mentiraderam nome: nickname

sem a senha só em sonhoimpossível acessar

pra quem gosta de nós é um prato cheiolenço no pescoço, laço no rodeio

pra quem gosta de nós

mapearam o genomao acaso vai dançar

sem a senha nem em sonhoimpossível disfarçar

pra quem gosta de nós é um prato cheiovela vai veloz, vamos sem receio

pra quem gosta de nós

asfaltaram os caminhosque voltam ao mesmo lugar

sem a senha só em sonhoimpossível avançar

pra quem gosta de nós é um prato cheiotudo amarrado, caminho do meio

pra quem gosta de nós

pra quem gosta de nós é um prato cheiocorda no pescoço, vamos sem rodeio

pra quem gosta de nós é um prato cheiovento vai veloz, vamos sem receiotudo amarrado, caminho do meio

pra quem gosta de nós é um prato cheio

PRA QUEM GOSTA DE NÓS

Um nó nos prende ou nos leva na velocidade de uma milha marítima por hora. Um nó amarra o laço ou o lenço.

Foi esta música que me fez voltar a utilizar o PK5, um teclado que fica no chão para ser tocado com os pés. Eu usava nos tempos de trio. Funciona bem em ambientes minimalistas.

A primeira demo foi um dos vídeos colocados no site antes da gravação do Novos Horizontes. Só no Pouca Vogal achou sua casa. As canções sempre sabem o que querem.

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LUZ letra e música: gessinger 2006

onde estão teus olhosagora que tô bem na fotoagora que achei o focoonde estão teus olhos

sem eles não existofico cego e invisívelsem eles não existoqueimo o filme e rasgo a foto

onde estão teus olhosagora que domei a feraagora que a dor já eraonde estão teus olhos

sem eles não existofico cego e invisívelsem eles não existosó enxergo o silêncio

juntos para sempreobjeto e observadorfísica modernavelhas canções de amor onde estão teus olhosonde estão teus olhossem eles não existolonge deles nada existe

PLANO Bletra e música: gessinger 2007

todo dia é assimnem me lembro desde quando

hoje não estou afimde seguir nenhum comando

recebi o seu recadovocê só pode estar brincando

hoje a noite é plano Bpra variar e pra valer

no limite é plano Bpra variar e pra valer

todo dia é assimnem me lembro desde quando

sem ensaio nem rascunhoo caminho a gente faz andando

qual seria o plano Bvocê está se perguntando

não existe plano Bno limite é pra valer

não existe plano Bno limite é pra valer

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POUCA VOGALletra e música: gessinger 2008

pouca vogalpolka tri legal

meridionalna serrano vale

oriundi alles blausamba sem know-how

pouca vogalmuito micuim

tem pinguim no litoralem pleno carnaval

são imigrantescom suas consoantes

no táxi que me trouxe até aquicantavam dois irmãos

tchau astral estranho deu pra tivou pegar o avião

pouca vogalclássico grenal

swing esquisitosem favorito

sem nada igualnem a pau

viva a diferençachame de schmier a geleia geral

e o escambaupouca vogal

ó o auê aí

do táxi que me trouxe até aquivi o morro Dois Irmãos

chega de saudade vou sentirouvindo o samba do avião

o táxi que me trouxe até aquipassou por Dois Irmãos

tchau astral estranho já chegueijá botei os pés no chão

Pequeno Dicionário Reflexivo:

• Quem conhece o Morro Dois Irmãos, car tão-postal carioca, talvez não conheça Dois Ir-mãos, uma das primeiras ci-dades da colonização alemã no RS. E vice-versa.

• Terá alguém ouvido os ir-mãos Kleiton e Kledir can- tando “deu pra ti, baixo astral” no mesmo táxi em que Julio Iglesias, Willie Nelson e Bob Marley me davam razão?

• Polka: swing esquisito.

• Oriundi: o descendente de italianos.

• Alles Blau: tudo azul.

• Micuim: aquele bichinho chato da grama. Tem muito por aqui.

• Pinguim no litoral: juro que vi. Não poderia jurar que foi num carnaval.

• O Google não me ensinou a grafia cer ta, será schimier? Geleia é mais fácil. Ximía (ou schimiere) é mais divertido.

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O VOO DO BESOUROletra e música: gessinger 2008

fala sério, o que (é) que háo que falta enxergarnessa noite de luarnesse dia devagarfala sério, o que (é) que háo que falta enxergar

quem não sabe finge saberquando vê o ouro brilharquando vê o couro comere o besouro voar

fala sério, o que (é) que temquem tem medo de enfrentara lembrança sempre vemnuma noite sem luarfala sério, o que (é) que foionde a gente foi parar

quem não sabe finge saberquando vê o ouro brilharquando vê o couro comere o besouro voar

fala agora onde estáquem está no seu lugarno espelhona estradaesperando o inesperadofala sério, o que (é) que háo que falta enxergar

quem não sabe finge saberquando vê o ouro brilharquando vê o couro comere o besouro voar

VOO DO BESOUROO maior empresário do

Brasil andou querendo nos contratar. Não achávamos que tinha a ver com nosso arte-sanato, mas nos reunimos com ele duas ou três vezes. Ele ia ao Rio, almoçávamos e não se falava de negócios. Depois de deixá-lo no aeroporto, um outro cara da empresa falava de números. A proposta era boa, mas não tinha nossa onda. Restou uma frase que ouvi: “Sabendo aonde se quer chegar, já é difícil. Sem saber é impossível”.

Por anos tomei isso como uma grande verdade saída de um livro de autoajuda empre-sarial. Mas sempre ficava um ruído. Grandes frases devem soar como um acorde maior, um sol no violão, um ré no piano. Essa soava estranho. Um dia me deu um estalo: ela não quer dizer nada. O caminho a gente faz andando. Nem sempre, qua- se nunca, se sabe a rota.

Algumas pessoas fingem saber quando veem a força do ouro ou do chicote. Algumas quando veem o improvável voo do besouro. Se um estudante de design tivesse projetado um besouro, certamente teria sido reprovado. Nada ali favorece o voo. Mas, por amor às causas perdidas, ele voa.

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TENTENTENDERletra: gessinger 2008

música: gessinger/leindecker

se eu disser que vi rastejara sombra do avião

feito cobra no chãotent’entender minha alegria:

a sombra mostrouo que a luz escondia

se eu quiser ser mais diretovou me perder

melhor deixar quietotent’entendertent’enxergar

o meu olharpela janela do avião

que amor era esseque não saiu do chão?

não saiu do lugarsó fez rastejar o coração

se eu disserque tive na mão a bola do jogo

não acredite tent’entender a minha ironia

se eu disser que já sabia

o jogo acabou de repenteo céu desabou sobre a gente

tent’entender: eu quero abrigoe não consigo ser mais direto

que amor era esseque não saiu do chão?

não saiu do lugarsó fez rastejar o coração

TENTENTENDER

Numa das rotas de volta a Por to Alegre, os aviões sobrevoam Gramado. Dá pra ver lugares familiares se o céu estiver limpo, se a poltrona for numa janela do lado direito e eu não estiver dormindo. Nesses voos, domingo ou segunda de manhã, sempre estou caindo de sono depois de algum show, algumas horas de asfalto e de aeroporto.

Num dia lindo, fiquei se- guindo a sombra do avião lá embaixo, passando pelas es-tradas da serra que parecem serpentes envolvendo os mor- ros. Escrevi a letra num guar-danapo da TAM. A música pin-tou muito rápido. Duca ajudou a pensar uns acordes no refrão.

Voltando de Gramado, mas pelo asfalto, escrevi DES-CENDO A SERRA. Está no Várias Variáveis, um disco com muitas cobras. Na capa e nas letras.

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ALÉM DA MÁSCARAletra e música: gessinger 2008

agora que a terra é redondae o centro do universo é outro lugaré hora de rever os planoso mundo não é planonão para de girar

agora que o tempo é relativonão há tempo perdidonão há tempo a perder

num piscar de olhostudo se transformatá vendo? já passou!

mas ao mesmo tempofica o sentimentode um mundo sempre igual

igual ao que já erade onde menos se espera dali mesmo é que não vem

agora que tudo está expostoa máscara e o rosto

trocam de lugar

tô fora, se esse é o caminhose a vida é um filmenão conheço diretor

tô fora, sigo o meu caminhoàs vezes tô sozinho

quase sempre tô em paz

num piscar de olhostudo se transforma

tá vendo? já passou!

mas ao mesmo tempoesse mundo em movimento

parece não mudar

é igual ao que já erade onde menos se espera

dali mesmo é que não vem

visão de raio-Xo X dessa questão:

ver além da máscara

além do que é sabidoalém do que é sentido

ver além da máscara

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SEGURA A ONDA AGORA, D.G.letra e música: gessinger 2009

que susto eu levei quando olhei o espelhocaralho, como estou ficando velho!

ainda bem que tu estás comigocada vez mais bela, cada vez mais velha

cada vez mais

que pena ter que ter só 2.000 anoscara, falta tempo, sobram planos!já não sei mais nada que eu sabiacada vez que gira, o ponteiro gira

cada vez mais

segura a onda agora, Dorian Gray“better to burn out, than to fade away”

segura a onda, sai dessa agora, Dorian Gray

que horas este sol vai dar um tempo?que barraco do balacobacoNosferatu já encheu o saco

do verão eterno, infinito invernocada vez mais

que sarro aquela cara no espelhovelho, saca só esse moleque!

fazendo seu caminho pelo mundocada vez que volta, tá cada vez mais longe

cada vez mais

segura a onda agora, Dorian Gray“better to burn out, than to fade away”

segura a onda, sai dessa agora, Dorian Gray

tchê louco, que momento, que viagem!os deuses devem estar de sacanagem

ainda bem que ela está comigocada vez mais bela, cada vez mais velha

cada vez mais linda, agora mais aindacada vez mais

SEGURA A ONDA AGORA, D.G.

Neil Young avisa que a ferrugem não descansa e afirma ser melhor explodir do que ir se apagando aos poucos. Pete Tonwshend deu voz à sua geração cantando a vontade de morrer antes de ficar velho. Parece que estas duas canções tocaram na mente de Kurt Cobain nos seus últimos dias. Oscar Wilde fez o retrato envelhecer no lugar do retratado.

Vaidade, tudo é vaidade? Estaremos todos de joelhos no altar de Peter Pan?

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Luís Augusto Fischer

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Vista a situação daqui do alto, panoramicamente, numa hipotética mesa de bar, o prezado leitor diria que é qual o ideal de um artista? Como se pode saber que um artista deu certo?

Sucesso de público? Pode ser. O cara vive do que faz, pinta, escreve, canta, compõe, desenha, filma, porque tem bastante gente ali, do outro lado, que paga para receber o produto que o artista concebeu e deu à luz, que fica feliz quando entra em sintonia com o que ele inventou, que compartilha sentimen-tos profundos e difíceis de traduzir ao ter contato com a obra dele, que convive melhor com coisas que já estavam dentro de seu coração e sua alma mas que nem pareciam estar ali.

Sucesso de crítica? Também pode ser. O artista acertou a mão no quadro, no romance, na canção, na gravura, no filme, mas acertou num nível sofisticado e sutil, que chamou a atenção da crítica especializada e a fez delirar, a fez pirar o cabeção, a fez vibrar pelo encontro com arte tão significativa. Pode até ser que o público em geral não tenha gostado tanto; mas se aqueles leitores especiais que são (na melhor hipótese) os críticos prestaram atenção e bateram palma, é porque o artista chegou lá.

Outro critério?

Tem um outro: é quando, para além de (apesar de, por fora de) fazer sucesso de público e/ou de crítica, o artista grava, inscreve, engasta uma fra-se, um par de versos, uma metáfora que seja, no repertório da linguagem das gentes, na fala de todo mundo.

Óbvio ululante, por exemplo, é um sucesso mundial no Brasil e tem um criador conhecido, Nelson Rodrigues. Oh, que saudades que eu ten-ho / da aurora da minha vida, não tem jeito, está na alma da língua portu-guesa no Brasil, mas saiu da mão de Casimiro de Abreu. Num plano mais sofisticado, Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da

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nossa miséria é a frase final de Memórias Póstumas de Brás Cubas, criação genial de Machado de Assis. Se a gente fosse para fora do país, encontraria muitas frases assim, clássicas, de autoria de Cervantes, de Edgar Allan Poe (Nunca mais!, Nunca mais!), de Shakespeare (Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia).

No universo da canção, então, aí temos uma agradável fartura, no Brasil. Tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor. Faça como o velho marinheiro, que durante o nevoeiro leva o barco devagar. Estava à toa na vida, o meu amor me chamou pra ver a banda passar cantan-do coisas de amor. Você sabe o que é ter um amor, meu senhor, ter loucura por uma mulher, e depois encontrar esse amor, meu senhor, nos braços de um outro qualquer? Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu.

No momento em que este texto estava sendo concebido, eu caçava um jeito de começar a falar do assunto principal dele, a carreira do Humberto Gessinger e dos Engenheiros do Hawaii. Cogitei iniciar contando de quando o conheci, da nossa amizade silenciosa, um monte de hipóteses. E nada me satisfazia direito.

Até que, lendo uma matéria numa revista carioca, que falava de um evento de lá mesmo, da cidade do Rio de Janeiro, matéria que trazia, num box separado, uma análise feita por um sujeito que é tido como um competente comentarista cultural da geração 2000, me deparo com uma passagem em que ele, em meio ao seu arrazoado, diz, citando uma frase que todo mundo entende sem precisar explicar, que para muitos “a juventude é uma banda numa propaganda de refrigerante”, etcétera e tal.

Estava ali a demonstração viva da presença do Humberto e dos En-genheiros: uma frase de uma canção — e não custa lembrar que milhares de canções e milhões de frases andam por aí, todo o santo dia —, uma particu-

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lar frase de uma específica canção, era citada para compartilhar todo um co-mentário, toda uma visão de mundo, toda uma experiência geracional. (Se eu fosse o autor da frase, nem sei como reagiria. Com vaidade? Com serena sabedoria? Ligaria pro cara exigindo que ele dissesse meu nome? Como é que o prezado leitor agiria se fosse o autor da frase?)

Pois é isso: numa canção que nunca escondeu sua condição de música pop, composta e gravada há impressionantes 22 anos — em 1987 —, se esconde, ou melhor, se revela uma pérola dessas, capaz de nos expressar melhor do que discursos inteiros.

A virtude que combina brevidade com eficácia, no tiro ao alvo que é a empreitada artística — o artista aqui, apontando a arma, lá adiante o público a ser atingido —, se encontra de corpo inteiro na forma chamada canção: negócio rápido, pá-pum, três minutos e quase nada mais, o disparo da arte, a viagem do objeto artístico e, quando dá certo, o coração, o corpo, a cabeça do público.

Outras linguagens e outros gêneros demoram muito mais — um ro-mance pode levar 300 páginas, um filme demora 100 minutos, por aí afora —, mas a canção tem isso de bom, rapidez, como a caricatura, a crônica, quem sabe o conto e a gravura, gêneros assim breves. Mas ela tem a vantagem de ser letra e melodia, poesia e som, ideias em palavras e a instrumentação que pode variar muito e acrescentar enormidades, tudo isso mais a performance, o artista ali remexendo a cabeleira, confidenciando ao microfone, piscando para a plateia, grunhindo, fazendo de conta que chora e se alegra por nós.

Canção, que bela invenção humana. Ao longo de tanto tempo um monte de gente limando, aprimorando, tirando excessos, propondo variações, e aqui estamos nós, fazendo samba e rock, balada e funk, pop aguado e pop cabeça, tango e reggae, e sabe-se lá o que mais, pelos tempos afora.

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Fazendo de conta: aqui temos uma das chaves para abrir o cofre da arte. Ela, qualquer que seja, da pintura à canção, faz de conta e nos convence. Todo mundo conhece, e se não conhece precisa conhecer, o poema do Fernan-do Pessoa que se chama Autopsicografia, título que já é um faz de conta — em vez da psicografia convencional, em que o artista “recebe” a inspiração de outra fonte, de alguma origem fora de si, o genial poeta português inventa a autopsicografia, uma atividade segundo a qual o artista “recebe” a inspiração e o fôlego artístico de fora e (mas) de dentro, como se o artista fosse mais de um. (Bem, Fernando Pessoa era mesmo mais de um, como se sabe; assinou centenas de poemas com seu nome de batismo, mas pilhas de outros com alteregos, que ele chamava de heterônimos, como Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro, entre os mais famosos).

Pois diz a Autopsicografia:

O poeta é um fingidor.Finge tão completamenteQue chega a fingir que é dorA dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,Na dor lida sentem bem,Não as duas que ele teve,Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de rodaGira, a entreter a razão,Este comboio de cordaQue se chama o coração.

A primeira estrofe fala exatamente de fingimento, de faz de conta: o poeta sempre finge. Mas finge de um jeito tão intenso que até mesmo a sua dor verdadeira ele finge. (A segunda estrofe é mais cheia de voltinhas, falando

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do leitor, que ao entrar em contato com a dor fingida do poeta — seja ela de origem inventada ou real — descobre em si, por banal milagre da arte, uma dor que até então não existia. A terceira faz, à maneira portuguesa, um pa-ralelo entre os trilhos de trem e a atividade do coração, que entretém, dribla, desorganiza a razão).

Uma das coisas ao mesmo tempo mais intrigantes e mais charmosas — são a mesma coisa? — da arte de Humberto Gessinger tem a ver exatamente com a natureza de seu fingimento. Em forma de silogismo inicial, ficaria assim: 1. Todo artista mente (inventa, faz de conta). 2. Humberto Gessinger é artista. 3. Logo, ele mente (inventa, faz de conta).

Mas é pouco para o caso dele. Sim, todo artista mente; sim, ele é um artista; e sim, ele mente, inventa, faz de conta. Mas há mais, bem mais que isso em sua obra: ocorre que, há pelo menos 250 anos, desde o Romantismo, a arte ocidental sabe que ela vive no mercado, do mercado, para o mercado, por causa do mercado, tudo isso ou alguma combinação disso. Não existe, ou, vá lá, praticamente não existe artista que possa de cara limpa dizer que não de-pende do mercado; e o mercado, essa diabólica e magnífica invenção humana que nos torna capazes de conviver ao mesmo tempo num mesmo espaço, tem suas exigências.

O mercado, se depender dele apenas, quer é coisas vendáveis, que não façam o comprador sair muito do seu lugar. Aliás, o mercado quer mesmo é que o sujeito deixe de ser propriamente um sujeito, e aja sem pensar muito. O que importa é que compre, que faça girar a roda do consumo puro e sim-ples. Agora me diz: como se faz arte nesse cenário, que nos últimos 50 anos — a idade do rock, mais ou menos — acelerou ainda mais essas exigências? Faz aí que eu quero ver.

O silogismo então complicaria de vez: 1. Todo artista mente (in-venta...). 2. Todo artista vive no/do/pelo/para o mercado. 3. Mas nem todo artista se contenta em viver assim. 4. Humberto Gessinger, como vários ou-

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tros valorosos artistas de nosso tempo, é um que pelo menos levanta a mão pra tomar a palavra dizer que não é bem assim, que nem sempre precisa ser assim, ou ainda, no limite, que a arte, ok, vive mergulhada no mercado, mas isso não anula outras dimensões possíveis. 5. Mas também essa resistência é inútil, porque a força do mercado e a lógica da mercadoria são superiores às coisas que resistem a elas...

O silogismo foi pro espaço, não tem como seguir com ele, porque aqui a gente tem a sensação de ter entrado num labirinto, ou pior ainda, de estar entre dois espelhos, um a refletir a imagem do outro infinitamente, sem parar, gerando aquela sensação de abismo, e abismo perverso, desagradável, que não permite nem o gozo da vertigem.

E de mais a mais os 50 anos mencionados acima são também mais ou menos os anos do pop, e aí já descemos mais um degrau nessa maluquice, en-tramos mais ainda no jogo de espelhos e de fundos falsos. Porque o pop nasceu de dentro do mercado, ao contrário de outros modos de praticar a arte, nascidos nos salões aristocráticos ou nos salões de igreja (como grande parte da música erudita), ou brotados no meio da rua e sem qualquer pedigree (como, falando nisso, a canção para comentar a vida diária e falar mal dos vizinhos, nas feiras medievais). Pop não tem jeito: ou faz sucesso, ou não existe. E fazer sucesso combina com fazer de conta? E pode conviver com aquela onda de fingir uma dor verdadeira, também? (De repente, este comentário aqui se contaminou do paradoxo, espelho contra outro).

Por isso tudo, combinadamente, é que eu aprecio muito a obra do HG (hg não é o mercúrio, aquele que muda de lugar, que não se deixa pegar assim no mais?). Faz tempo. A gente se conhece desde antes de conversar, famílias conhecidas, mesma classe e mesma posição geográfica no mundo. Uns pou-cos anos de diferença, porém, não nos proporcionaram conviver — são aqueles poucos anos que entre os cinco e os 25 impõem uma intransponível barreira, mas que depois viram pó. E calhou que, quando eu comecei a dar aulas, fui

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professor da turma dele: exatamente no meu primeiro ano de profissional ele estava no último do colégio. Duas, três conversas, nada mais.

Aí eu fiquei de longe observando. Tínhamos amigos comuns. E ele em seguida se apresentou no cenário artístico da cidade e do país como uma coisa nova, uma daquelas informações artísticas que azucrinam porque di-vergem, saem do óbvio, ironizam. Parecia com muitos outros, mas já mar-cava diferença. E tudo que se falava dos Engenheiros sugeria que era melhor considerar duas vezes, pensar enviesado, sentir mediadamente. A começar pelo nome, claro.

Na época as bandas se batizavam com nomes regressivos ou retrôs pretendendo um certo chique — Os Titãs do Iê-Iê-Iê (depois caiu a segunda parte desse nome), Barão Vermelho —, ou faziam trocadilho puro e simples — Ultraje a Rigor, Capital Inicial —, ou ostentavam uma atitude mais claramente identificada com o aspecto transgressivo do rock, adotan-do nomes que eram uma espécie de ameaça — Camisa de Vênus (expressão que não se usava na frente dos mais velhos, acredite), TNT —, ou brinca-vam com certo nonsense, namorando ao mesmo tempo as denonimações retrô — Paralamas do Sucesso.

E o nome dos Engenheiros do Hawaii era o que, nesse bolo? Era nonsense também, mas parecia algo que girava em falso, porque as imagens sugeridas no nome não se ancoravam em lugar nenhum. De que se tratava? Logo o próprio Humberto disse, em entrevista, que era uma homenagem a duas grandes comunidades porto-alegrenses, os engenheiros e os havaianos.

Bela piada, excelente ironia. Porto Alegre fica a cem quilômetros do mar mais próximo, mas ali as ondas são fracas, baixas, insuficientes para a prática do famoso esporte havaiano, o surfe. E mesmo esse dado de indes-mentível realidade não impediu a explosão de havaianos na cidade. Fenômeno daquele momento, que o nome inventado ajudou a fixar.

Quanto aos engenheiros, pode ser também piada pura, ironia que flu-tua no espaço infinito sem oferecer ponto de amarração, mas também pode ser colada à rixa entre estudantes de Arquitetura, como era o caso do HG, e estu-dantes de Engenharia, que além de numerosos são também típicos, em grande

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medida. (Tive oportunidade de conviver com parte dessa fauna, quando ingres-sei na universidade para cursar Geologia, que abandonei no terceiro ano. Mas não por causa dos engenheiros).

Pode também não ser nada disso, e ainda assim o aspecto brincalhão do par de nomes fica boiando na percepção, não fica? Fica, como um objeto não muito claramente identificado que no entanto não sai de perto, condição que é tudo que a arte quer e busca.

Primeiro disco, outra declaração indireta, daquelas que quem en-tende entende e quem não entende pode até se perder, mas ficará com a frase ecoando na percepção: Longe Demais das Capitais. Capitais? Quais eram elas mesmo? Longe? Longe demais? Quanto é demais? Estar perto ou longe é um problema sério para quem não está no centro, e simplesmente inexiste para os que lá estão. Simples assim. Mas precisa o artista vir aqui e dizer, inventar, fazer de conta — ou, neste caso, desfazer o faz de conta que renega a distância. (Cai a neve na vitrine, e a gente derrete ao sol, diz uma canção que olha para isso com um mix de crítica e carinho).

Na minha recepção, é como se a gente tivesse ouvido desde sempre na obra do Humberto certas precisas declarações, menos nas palavras pronun-ciadas do que nas entrelinhas: eu estou aqui e não estou, não tenham tanta certeza, mas é certo que é da vida que eu estou falando, sabe como é? Essa mesmo, a que eu vivo e finjo, a que todo mundo vive e finge.

Aquele tempo, meados dos anos 1980, estava ainda fazendo o luto pela perda de força da chamada MPB — aquela música próxima dos gêneros populares brasileiros, com letras de combate à ditadura e ao conservadorismo —, e ainda não celebrava o rock, que estava vendo nascer uma geração de grandes talentos, como os que viriam a ser, nos anos seguintes, reconhecidos como intérpretes legítimos da experiência da juventude. Entre eles, alguns grandes talentos, e três principais, ao que parece — Cazuza, mais perto da

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tradição da canção brasileira, quer dizer, carioca; Renato Russo, com todo o figurino do pop-rock melancólico; HG, pendurado na ironia, mas capaz de grandes momentos líricos (ou vice-versa).

Naquele tempo, o que havia no campo do rock era, ultimamente, a Blitz fazendo canção análoga ao teatro besteirol, leve, carioca, mais os Mu-tantes lá no fundo, inventando mesmo depois de separados, e o enigma Raul Seixas, fora de padrão como sempre, rockeiro portanto. Criou-se o festival com nome de trocadilho, Rock in Rio; as gravadoras viram que cabia; toda uma nova massa de ouvintes queria dançar e cantar, agora já sem o choro setentista pelo advento da ditadura, agora de olhos postos num aqui e agora vivo.

Em todos os discos, a cada ano, mudando a formação da banda e al-terando os instrumentos que entravam em cena para ajudar a dizer, lá estava o Humberto para comentar a vida. Como a obra dele se ancora em fatos, em even-tos significativos, não é? Já viu? Não era nas coisas da província gaúcha, em-bora também elas estivessem ali como paisagem (sonora, temática), nem nas coisas da moda imediata vivida pelos adolescentes: era nos aspectos amplos, que de tão fortes nem apareciam direito — Fidel e Pinochet na mesma linha, terrorismo em qualquer parte, tudo coisa relativamente remota para quem é muito jovem, que a música dos Engenheiros trazia para perto (para perto da conversa, para longe da ingenuidade).

Mas ao mesmo tempo sua obra não é muito dependente de infor-mações localizáveis no tempo e no espaço, já reparou? Vai ver de perto, tá cheio de amadores desiludidos, de andarilhos desenganados, de brincadeira autoirônica alusiva ao massacre que os meios de comunicação massivos perpe-tram cotidianamente, tudo podendo ser referido a uma situação particular ou a qualquer experiência passada nos tempos atuais: tem ali um “eu” que funciona para qualquer um.

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HG funciona muito pelo trocadilho — não passa por aqui, não passa de ilusão —, talvez porque sua arte se oxigene exatamente na linguagem comum, essa matéria-prima rebaixada. Pode bem ser que os jogos de sentido pescados no cotidiano da fala dependam dessa origem para brilhar: ali, na linguagem banal, que se usa sem pensar, o artista vai colher o alimento de sua arte, que porém vai reprocessar o que recolheu mediante aproximações e afastamentos, analogias e contrastes. O resultado é que a gente ouve o que ele faz e reconhece desconhecendo, desconhece reconhecendo.

Uma forma de dizer isso, de explicar esse processo, é meio complicada, mas me parece exata: HG opera por trocadilhos, que acrescentam dimensões no discurso ao aproximar conteúdos inusitados, e por saltos semânticos, que aproxi-mam dimensões distantes. Sua arte caminha mediante reiterações de som e de for-ma — por pura falta de opção, púrpura é cor do coração —, que são recombinações de sentido e não deixam de ter sempre alguma coisa da estrutura do sonho.

Sabe no sonho, na estrutura narrativa do sonho, quando acontece de um evento, uma pessoa, uma frase, alguma coisa repetir-se? Sempre que aparece pela segunda vez, a gente se dá conta de que houve algum movimento, algum deslocamento, de forma que entre as palavras e as coisas referidas por elas parece ter havido uma mudança inesperada, geradora do estranho, que dá prazer, mas pode ser triste, como o tapete que saiu do lugar já manchado sobre o piso, mas a gente só se dá conta depois, quando passou o momento de ajeitar. É uma estrutura que tem muito a ver com o chamado loop, ou looping, um re-torno, seja ele calculado ou inesperado, uma volta ao ponto que se acreditava deixado pra trás, um frio na barriga pelo reencontro com o rastro, por aí.

E onde para isso tudo? Para na percepção do ouvinte da obra dos En-genheiros, na obra desse engenheiro andante chamado Humberto Gessinger. A percepção é um território entre a alma e a inteligência, que a arte visita sem-

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pre que consegue furar a barreira da indiferença. (HG fura essa barreira com o trocadilho, a reiteração que é deslocamento de sentido, a recombinação que proporciona um salto de significado. Mas eu já falei isso). Ouça o que eu digo: não ouça ninguém.

Fico tentado, por temperamento, a fazer uma síntese: qual é a dele? No fim das contas, tudo considerado, o que resta de sua obra no ouvinte? Eu não sei se tem como dizer algo decente aqui, mas desconfio do seguinte: com suas canções ao mesmo tempo simples mas comunicativas, limpas mas com res-saltos, com seu pop que não se conforma com a mera condição de pop (e sabe que o pop não poupa ninguém, mais uma verdade eterna desta semana), ele faz reviver esteticamente algo de muito grave e profundo da experiência deste tempo — este aqui, pós-Guerra Fria e pós-11 de setembro, o tempo da instantaneidade da comunicação, mas que guarda muito ainda do nosso velho jeitão hippie de ser —: como suas canções, também nós vivemos entalados entre o cotidiano, a bana- lidade e a exaltação, a excepcionalidade. Entre a indiferença, ou a falta de sentido, e a paranoia, ou o excesso dele. Entre a afasia, a incapacidade de dizer qualquer coisa, e a falastrice, a urgência de falar sem parar, mesmo sem fazer sentido.

Fazer sentido, aí está: para mim e, muito mais importante, para seus entranhados fãs, Humberto Gessinger ajuda a fazer sentido, a compor signifi-cado na vida, presos que estamos nesses paradoxos, como o de estarmos cor-rendo muito, talvez para o lado errado.

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Agradeço e dedico este livro a todos que participaram desta história, tocando, gravando, fotografando, produzindo, desenhando, ouvindo o que eu digo, não ouvindo ninguém, surfando karmas e dançando em campos minados. Valeu!

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1. 10.000 DESTINOS ___________________________________ 245 2. 3 MINUTOS ________________________________________ 238 3. 3ª DO PLURAL _____________________________________ 252 4. 3x4 ______________________________________________ 241 5. ALÉM DA MÁSCARA _________________________________ 273 6. ALÉM DOS OUTDOORS _______________________________ 182 7. ALÍVIO IMEDIATO ___________________________________ 194 8. ANDO SÓ _________________________________________ 211 9. ANOITECEU EM PORTO ALEGRE ________________________ 202 10. ARAME FARPADO ___________________________________ 255 11. ARMAS QUIMICAS E POEMAS _________________________ 262 12. ÀS VEZES NUNCA ___________________________________ 225 13. ATÉ O FIM _________________________________________ 261 14. BANCO ___________________________________________ 236 15. BEIJOS PRA TORCIDA _______________________________ 176 16. A BOLA DA VEZ _____________________________________ 236 17. CAMUFLAGEM _____________________________________ 257 18. CAUSA MORTIS ____________________________________ 171 19. CHUVA DE CONTAINERS ______________________________ 222 20. CIDADE EM CHAMAS ________________________________ 185 21. CINZA ____________________________________________ 267 22. CONCRETO E ASFALTO _______________________________ 243 23. A CONQUISTA DO ESPAÇO ____________________________ 216 24. A CONQUISTA DO ESPELHO ___________________________ 217 25. CORAÇÃO BLINDADO ________________________________ 263 26. CRÔNICA _________________________________________ 174 27. DANÇANDO NO CAMPO MINADO _______________________ 255 28. DATAS E NOMES ____________________________________ 254 29. DE FÉ ____________________________________________ 232 30. DESCENDO A SERRA ________________________________ 212 31. ?DESDE QUANDO? __________________________________ 191

Índice de Músicas

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32. DESERTO FREEZER __________________________________ 237 33. DOM QUIXOTE _____________________________________ 256 34. e-STÓRIA _________________________________________ 250 35. EM PAZ ___________________________________________ 195 36. ENGENHEIROS DO HAWAII, A CANÇÃO __________________ 170 37. ESPORTES RADICAIS ________________________________ 249 38. EU QUE NÃO AMO VOCÊ ______________________________ 242 39. O EXÉRCITO DE UM HOMEM SÓ ________________________ 196 40. FAZ DE CONTA _____________________________________ 266 41. FÉ NENHUMA ______________________________________ 175 42. FILMES DE GUERRA, CANÇÕES DE AMOR ________________ 179 43. FREUD FLINTSTONE _________________________________ 235 44. FUSÃO A FRIO _____________________________________ 256 45. GUANTÁNAMO _____________________________________ 265 46. GUARDAS DA FRONTEIRA ____________________________ 184 47. HORA DO MERGULHO _______________________________ 227 48. ILEX PARAGUARIENSIS ______________________________ 229 49. INFINITA HIGHWAY __________________________________ 180 50. IRRADIAÇÃO FÓSSIL ________________________________ 234 51. LADO A LADO ______________________________________ 230 52. LANCE DE DADOS ___________________________________ 228 53. LONGE DEMAIS DAS CAPITAIS _________________________ 174 54. LUZ ______________________________________________ 269 55. MAPAS DO ACASO __________________________________ 226 56. A MONTANHA ______________________________________ 238 57. MUROS & GRADES __________________________________ 206 58. NA REAL __________________________________________ 240 59. NA VEIA __________________________________________ 260 60. NÃO CONSIGO ODIAR NINGUÉM _______________________ 264 61. NÃO É SEMPRE_____________________________________ 210 62. NAU À DERIVA _____________________________________ 193

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63. NEM + 1 DIA ______________________________________ 248 64. NINGUÉM=NINGUÉM ________________________________ 214 65. NO INVERNO FICA TARDE MAIS CEDO ___________________ 217 66. NO MEIO DE TUDO, VOCÊ _____________________________ 263 67. A NOITE INTEIRA ___________________________________ 204 68. NOVOS HORIZONTES ________________________________ 247 69. NÚMEROS ________________________________________ 246 70. NUNCA É SEMPRE __________________________________ 211 71. NUNCA SE SABE ____________________________________ 190 72. NUVEM ___________________________________________ 240 73. O OLHO DO FURACÃO _______________________________ 244 74. OLHOS IGUAIS AOS SEUS ____________________________ 204 75. OUÇA O QUE EU DIGO: NÃO OUÇA NINGUÉM ______________ 186 76. OUTONO EM PORTO ALEGRE __________________________ 257 77. OUTRAS FREQUÊNCIAS ______________________________ 261 78. OUTROS TEMPOS ___________________________________ 239 79. PAMPA NO WALKMAN _______________________________ 215 80. O PAPA É POP ______________________________________ 198 81. PARABÓLICA ______________________________________ 218 82. PERDÃO É UMA BORRACHA MACIA _____________________ 244 83. PERFEITA SIMETRIA _________________________________ 199 84. PIANO BAR ________________________________________ 207 85. PLANO B __________________________________________ 269 86. PORÃO ___________________________________________ 232 87. POSE (ANOS 90) ____________________________________ 219 88. POUCA VOGAL _____________________________________ 270 89. PRA ENTENDER ____________________________________ 188 90. PRA FICAR LEGAL __________________________________ 248 91. PRA QUEM GOSTA DE NÓS ____________________________ 268 92. PRA SER SINCERO __________________________________ 201 93. PROBLEMAS… SEMPRE EXISTIRAM ____________________ 221

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94. ?QUANTO VALE A VIDA? _____________________________ 223 95. QUARTOS DE HOTEL ________________________________ 205 96. QUEBRA-CABEÇA ___________________________________ 265 97. QUEM TEM PRESSA NÃO SE INTERESSA _________________ 183 98. REALIDADE VIRTUAL ________________________________ 224 99. REFRÃO DE BOLERO _________________________________ 184 100. A REVOLTA DOS DÂNDIS _____________________________ 177 101. ROTA DE COLISÃO __________________________________ 258 102. SAMPA NO WALKMAN _______________________________ 213 103. SEGUIR VIAGEM ____________________________________ 243 104. SEGUNDA FEIRA BLUES ______________________________ 258 105. SEGURA A ONDA AGORA, D.G. _________________________ 274 106. SEGURANÇA _______________________________________ 172 107. SEI NÃO __________________________________________ 253 108. SEM VOCÊ (É FODA!) ________________________________ 233 109. SIMPLES DE CORAÇÃO ______________________________ 227 110. SOMOS QUEM PODEMOS SER _________________________ 187 111. O SONHO É POPULAR ________________________________ 206 112. SURFANDO KARMAS & DNA __________________________ 247 113. TENTENTENDER ____________________________________ 272 114. TERRA DE GIGANTES ________________________________ 178 115. TODA FORMA DE PODER _____________________________ 173 116. TRIBOS E TRIBUNAIS ________________________________ 189 117. TÚNEL DO TEMPO __________________________________ 220 118. A VERDADE A VER NAVIOS____________________________ 192 119. VÍCIOS DE LINGUAGEM ______________________________ 231 120. VIDA REAL ________________________________________ 234 121. A VIOLÊNCIA TRAVESTIDA FAZ SEU TROTTOIR ____________ 200 122. O VOO DO BESOURO ________________________________ 271 123. VOZES ___________________________________________ 183

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Músicas/EditorasAs letras das canções presentes neste livro foram editadas por:

BMG Music Publishing Brasil3 Minutos; Banco; A Bola da Vez; Causa Mortis; De Fé; Deserto Freezer; Freud Flintstone; Hora do Mergulho; Ilex Paraguariensis; Irradiação Fóssil; Lado a Lado; Lance de Dados; A Montanha; Nuvem; Porão; Sem Você (É Foda!); Simples de Coração; Vícios de Linguagem e Vida Real.

Universal Music Publishing10.000 Destinos; 3a do Plural; 3x4; Além da Máscara; Arame Farpado; Armas Químicas e Poemas; Até o Fim; Camuflagem; Cinza; Concreto e Asfalto; Coração Blindado; Dançando no Campo Minado; Datas e Nomes; Dom Quixote; e-Stória; Em Paz; Esportes Radicais; Eu que Não Amo Você; Faz de Conta; Fusão a Frio; Guantánamo; Luz; Na Real; Na Veia; Não Consigo Odiar Ninguém; Nem + 1 Dia; No Inverno Fica Tarde + Cedo; No Meio de Tudo, Você; Novos Horizontes; Números; O Olho do Furacão; Outono em Porto Alegre; Outras Frequências; Outros Tempos; Pouca Vogal; Pra Ficar Legal; Pra Quem Gosta de Nós; Quebra-Cabeça; Rota de Colisão; Seguir Viagem; Segunda Feira Blues; Sei Não; Surfando Karmas & DNA; Tententender; Tribos e Tribunais e O Voo do Besouro.

Warner ChappelAlém dos OutDoors; Alívio Imediato; Ando Só; Anoiteceu Em Porto Alegre; Às Vezes Nunca; Beijos Pra Torcida; Chuva de Containers; Cidade Em Chamas; A Conquista do Espaço; A Conquista do Espelho; Crônica; Descendo a Serra; ?Desde Quando?; O Exército de Um Homem Só; Fé Nenhuma; Filmes de Guerra, Canções de Amor; Guardas da Fronteira; Infinita Highway; Longe Demais das Capitais; Mapas do Acaso; Muros e Grades; Não é Sempre; Nau à Deriva; Ninguém = Ninguém; A Noite Inteira; Nunca é Sempre; Nunca Se Sabe; Olhos Iguais Aos Seus; Ouça O Que Eu Digo: Não Ouça Ninguém; Pampa No Walkman; O Papa é Pop; Parabólica; Perfeita Simetria; Piano Bar; Pose (Anos 90); Pra Entender; Pra Ser Sincero; Problemas... Sempre Existiram; ?Quanto Vale a Vida?; Quartos de Hotel; Quem Tem Pressa Não Se Interessa; Realidade Virtual; Refrão de Bolero; A Revolta dos Dândis; Sampa No Walkman; Segurança; Somos Quem Podemos Ser; O Sonho é Popular; Terra de Gigantes; Toda Forma de Poder; Túnel do Tempo; A Verdade A Ver Navios; A Violência Travestida Faz Seu Trottoir e Vozes.

Exceto as canções inéditas:Engenheiros do Hawaii - A Canção, Perdão É uma Borracha Macia, Plano B e Segura a Onda Agora, D.G.

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Créditos das ImagensTodos os esforços foram feitos para creditar devidamente os detentores dos direitos das imagens utilizadas neste livro. Eventuais omissões de crédito e copyright não são intencionais e serão devidamente solucionadas nas próximas edições, bastando que seus proprietários contatem os editores.

FOTOGRAFIASArquivo Pessoal Humberto Gessinger | Páginas 8, 9, 10, 12, 18, 19, 20, 25, 26, 28, 32/33, 39B, 49, 69, 74/75, 87, 97, 139, 145, 148A, 153, 157, 159, 230, 250, 266 e 268

Adriane Pitigliani | Páginas 84, 102/103 e 104

Adriano Machado | Página 114

André Diehl | Página 90

Bruno Castaing | Páginas 128/129

Dario Zalis | Páginas 50/51, 58/59, 63, 64/65, 66, 72/73, 80/81, 82, 88/89, 94/95 e 96

Denise Yamassake | Páginas 116 e 136

Eurico Salis | Páginas 30/31, 35, 36/37, 39A e 42/43

Fernando Seixas | Páginas 44/45

Fernando Witt | Página 38

Ivan Capelli | Página 124

Jeff Minchef | Páginas 75, 115, 131, 137 e 203

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Luis Saguar | Páginas 120, 130 e 134/135

Marco de Bari/Editora Abril | Capa e contra-capa

Marcos Hermes | Páginas 5, 122/123, 140/141 e 142

Marisa Cauduro | Página 79

Melissa Mattos | Páginas 6, 100, 101, 112/113, 143, 148B, 148E, 150/151, 152, 160/161, 162, 163, 166, 218, 276, 290/291, 297 e 300/301

Randal de Lima | Página 52

Regina Protskof/La Photo Stúdio | Página 99

Vera Donato | Página 148C

Washington Possato | Página 148D

Fotógrafo não-identificado | Página 60

ILUSTRAÇÕESTodas as ilustrações são de autoria de Andrews & Bola, exceto:• Página 127, de Humberto Gessinger • Página 253, de Luis Trimano (para a capa de Surfando Karmas & DNA) • Página 235 de Fredy Varela

CAPAS DE DISCOS/MATERIAL DE DIVULGAÇÃOBMG Brasil | Páginas 32, 33, 38, 44, 53, 61, 67, 69A, 74, 83, 91, 96 e 105Universal Music Brasil | Páginas 114, 124, 130, 136, 142 e 152Som Livre | Página 162

JORNAIS E REVISTASReprodução | Páginas 71 e 164/165

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1ª edição / 2ª reimpressão / 2012Impresso na Gráfica Pallotti em fevereiro de 2012.