Praça do Brasil (PB) em Setúbal, Histórias da Malta dos Anos 80/90

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1 Capa: Praça do Brasil (PB) em Setúbal Histórias da Malta dos Anos 80/90 Escola Santana, Ciclo Preparatório Bocage, Liceu, Discotecas, a Baixa, sonhos de crianças e jovens e a descoberta da vida com os amigos do bairro Vítor Caldeirinha

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Capa:

Praça do Brasil (PB) em Setúbal  Histórias da Malta dos Anos 80/90

Escola Santana, Ciclo Preparatório Bocage, Liceu, Discotecas, a Baixa, sonhos de crianças e jovens e a descoberta da vida com os amigos do bairro

Vítor Caldeirinha

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  Introdução    

Com este livro quero abrir nos meus antigos amigos de rua, a descoberta de memórias e de sentimentos que há muito ficaram para trás, mas que devemos cuidar e relembrar, já que foram de grande importância para a nossa vida, na nossa formação, na nossa forma de ser e de pensar, na nossa forma de estar no mundo.Quero ainda deixar para as gerações seguintes uma memória, ainda que ligeira, do que foi a vida de criança e adolescente da minha geração na cidade de Setúbal, para que compreendam, para que se riam e para que vejam como as coisas certamente se irão repetir, ainda que com ligeiras diferenças.Quero ainda deixar à minha família e amigos um livro através do qual me possam compreender melhor, passando-me a ver como o produto do que descrevo, de forma mais completa, e que me venham pedir para contar outras histórias que não estão neste livro.Fica a memória de um clã de rua que andou junto anos e anos a fio, desde a quarta classe até ao casamento nos trintas. Foram muitos anos de memórias conjuntas diárias, num tempo em que mais que sermos um indivíduo, éramos parte de um grupo, um membro de uma equipa que tinha regras próprias e estava organizada para se manter unida, ligeiramente fechada a novos membros. Um grupo que se ajudava, se defendia, competia entre si e com outros grupos. Um grupo com uma linguagem própria, com mitos, crenças e histórias próprias formadas ao longo de anos.Um grupo que se desmoronou com o casamento dos seus elementos, lentamente, até desaparecer como grupo, dando lugar a indivíduos bem integrados na sociedade, com novos amigos e colegas de trabalho, com família e filhos, cumprindo bem os seus papéis para a sociedade. Um grupo educado, com pessoas com princípios, que não deixou de ter as suas loucuras e desvarios, sempre de forma controlada e ordeira. Um grupo cerca de 20 amigos que ainda se encontram de vez em quando.

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  Escola Santana       Sempre me lembro de ter ouvido o mar. As ondas a bater nas rochas da costa e na areia da praia. Nesta de forma mais suave. Mas sempre de mistura com o vento, ora do lado Sul do mar, soprando mais forte, ora em forma de brisa correndo a Serra da Arrábida, trazendo-nos os odores silvestres. Mal os primeiros raios de luz da manhã pousam em formato de quadrículas sobre o tecto do meu quarto, parecendo dezenas de pequeninas lâmpadas que brincam com os meus olhos, trespassando as pálpebras, acordo a chorar e a gritar pela minha mãe, como tinha sido hábito na última semana, enquanto estive doente com febres altas e borbulhas por todo o corpo. Da minha caminha de ferro fundido pintado de branco, que me deu a minha avó, vejo o meu irmão mais pequenino ainda deitado, a dormir no berço, no outro lado do quarto, junto à janela que nos separa da rua, duma altura de cinco andares, das traseiras do campo de futebol dos amigos do meu primo. O quarto parece-me enorme como sempre, com espaço para mais irmãos se necessário. Hoje parece-me tão pequeno, mas continuam a caber todos os nossos velhos brinquedos no armário central, e podemos sentar-nos todos no sofá que agora ocupa quase todo o espaço. Não muito longe, no quarto em frente, os meus pais ouvem-me e acordaram de repente, e apesar de ainda ser cedo, a minha mãe levanta-se muito rápido, calça os chinelos e corre para o meu quarto, para me acalmar antes que acorde o meu irmão pequenino. Hoje é o primeiro dia de escola e parece que estou a adivinhar, tenho as faces muito vermelhas e os olhos grandes e brilhantes cheios de lágrimas, com os rebordos rubescidos. Não quero ir para a escola. A minha mãe senta-me na cama, em pijaminha, com os meus pés pequeninos a penderem para o lado, e começa a vestir-me umas calças pretas novas, uma camisola às riscas e um chapéu azul para proteger a minha cabeça do sol. Eu continuo a chorar ainda por algum tempo, até que deixo de perceber o que tinha, passa-me a birra da manhã e espero que a minha mãe se despache da casa de banho, enquanto me entretenho a passar um carrinho pequeno por toda a cama. -Mãe, quero água. Logo que a minha mãe se despacha, dá-me água e seguimos para o corredor de saída da casa. Ela abre a fechadura da porta com o seu pequeno molhe de chaves que tintilam de forma familiar e passamos para o corredor de fora onde esperamos o elevador. Descemos e, no final, a minha mãe fecha as portas do elevador e entala-me ligeiramente o dedo que eu meto para tentar ajudar a fechar a porta de ferro. Choro outra vez, ainda que a dor seja ligeira.

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Saímos do prédio para a rua, pela porta castanha, e eu a gritar, depois de passarmos por entre os vasos de flores da entrada do prédio, a minha mãe a acalmar-me, e olhamos a azáfama da manhã, das pessoas a atravessarem a estrada para irem para o comboio que vai sair da estação de Setúbal, mesmo em frente à nossa casa, com o apito a tocar e o ruído da locomotiva que já deixei de ouvir, por habituação, apesar de ainda ser pequenino. O meu nervosismo aumenta, baixo a cabeça e deixo-me ficar para trás, mas logo sou arrastado pela minha mãe: “Anda”.

Estação de Setúbal na PB

Andamos um pouco até à Praça do Brasil, deixando a Estrada dos Ciprestes para trás e deparamos com a estrada que circunda a praça no sentido Oeste, em direcção ao estádio do Bonfim, e que daí a alguns anos dará lugar a um passeio enorme. Do outro lado da estrada é o parque verde, com a estátua do Olavo Bilac e o jardim infantil de chão vermelho, rodeado por um muro branco descendente, onde costumo brincar. Seguimos e passamos a estrada seguinte, que sobe a Praça do Brasil, olhando para ver se vem algum carro, mas naquela altura havia poucos. Não vem nenhum e seguimos em direcção à Escola Santana, contornando o buraco de areia que no futuro será um prédio, onde morarão os pais do Manuel, mas hoje ainda é um amontoado de lixo, lagos de água da chuva e rãs, descemos junto ao edifício da escola e seguimos pelo empedrado da zona baixa, depois de saltarmos a vala das chuvas. Junto às escadas de pedra, a porta verde da escola está aberta, deixando as crianças entrar. Não quero entrar na escola e desato numa choradeira incurável, agarrado à perna da minha mãe, não quero largar a única pessoa que conheço desde que vim ao mundo, com quem quero estar sempre. Não me deixes aqui com estranhos Mãe! Nunca mais esqueci este dia, aquela porta. Passado algum tempo já brincava pela escola toda como se fosse só minha e passara a gostar daquela escola para sempre, como fazendo

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parte de mim. E de facto faz parte de mim cada uma das suas colunas, das suas pedras, das portas e janelas. Hoje, quando caminho pela escola, para levar os meus filhos gémeos para as aulas da classe infantil, mesmo ao lado da sala da mesma professora que eu tinha e que ainda dá aulas aos meninos, a Vina, cada passo, cada olhar, cada buraco traz-me à lembrança histórias, risos, choros, corridas, combinações de ouvido, jogos, enfim felicidade de criança espalhada por todas aquelas pedras, cimento e ferros que formam a escola.

Caminho da Barraca

Aviões Um dia lembro-me em especial. Os aviões bombardeiam intensamente a cidade de Setúbal e a minha escola. Passam de um lado para o outro, rasgando o céu cinzento da manhã fresca de Outono, em esquadras de três e quatro jactos militares, disparando saraivadas de balas em todas as direcções para as estradas, campos e casas. Não há ninguém na rua, apenas nós crianças. Não existem aviões amigos e sempre que vimos aquelas aves de ferro surgir por cima de nós, sabemos o que vem e corremos para as paredes e muros da escola ainda de pé, para nos escondermos e proteger-nos das bombas e do fogo. Eles passam ruidosos na sua rota rectilínea e alinhada e só temos tempo de rodar a cabeça de um lado ao outro com os olhos

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pregados no céu, para acompanhar o seu percurso, e eles vão largando traços de fumo que maculam ainda mais o céu sombrio. Mal passam, oiço o estrondo intenso dos motores e nós levantamo-nos dos esconderijos e dos cantos da nossa escola, como bichinhos, sentindo o cheiro da guerra, e de arma nos braços corremos para o centro das ruas, disparando para os céus com esperança que alguma das balas atinja e fure o metal, fazendo cair e explodir no chão um daqueles intrusos do nosso recreio. Quando desaparecem no horizonte acalmamos um pouco, para logo de seguida corrermos novamente e descermos a rua da escola até que surjam mais aviões. A escola é composta por um edifício grande e amarelo, que forma um “U” aberto em direcção a poente, às serras verde-escuras da Arrábida e de São Luis, com vista sobranceira sobre uma enorme quinta verde, agrícola que se estende até ao Jardim do Bonfim, e de onde as freiras, que gerem a escola e que também é um convento e um internato de meninas abandonadas pelos pais ou em dificuldades, tiram o sustento alimentar diário. Desde cedo que me maravilharam as silhuetas das serras mães da cidade, locais isolados e elevados, longínquos e solitários, onde eu passei o tempo de escola a desejar ir. Todos os dias ficava muito tempo a olhar e admirar as serras verdes, ora com nevoeiro, ora com fogos, ora com chuva, sempre presentes, sempre imponentes. No interior do “U” do edifício, existe um pátio de jogos com o pavimento em cimento, marcado e pintado com dois campos de basquete e um campo de futebol. É o local onde mais nos divertimos a brincar, a jogar e a correr, quando toca para o intervalo. Em redor de todo o pátio, o acesso ao edifício faz-se por escadas com quatro grandes degraus e por muitas colunas redondas alinhadas em comboios de “emes”, que acompanham todo o “U” do edifício e separam a zona do recreio da zona das aulas a Sul e da área de dormitórios e da igreja a Nascente e a Norte.

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Colégio Santana

A Poente, o pátio é separado da quinta por um muro branco, grosso de meio metro de altura, tendo umas pequenas escadas ao centro que descem para a quinta, através de pequenas portinholas de ferro. Mas antes da quinta está o armazém das ferramentas agrícolas e, antes ainda, um jardim em areia com baloiços, ferros e cavalinhos de brincar, onde gostamos de ir, em especial para ficarmos junto ao damasqueiro e comermos os seus frutos agres amarelos, subindo aos ramos mais baixos, quando é tempo deles.       Enterprise

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Logo que descemos toda a rua traseira do “U” em corrida, dirigimo-nos ao pátio interior e daí ao jardim, para perto do damasqueiro. Colocamo-nos logo nas nossas posições habituais. Eu ao comando da Nave “Enterprise”, o Manuel no posto do “Doctor”, o Paulo no posto do “Spock” e começamos de imediato o voo de intersecção das naves inimigas, preparando os nossos raios laser e gama super poderosos. A proa da nave está orientada a Poente, como que a comandar toda a escola. Olho para a escola e para os meus colegas e rumamos ao infinito, com o braço esticado em frente, apontando a direcção. No pátio, os miúdos jogam ao “mata” com uma bola pequena, mas pesada, sei bem porque um dia levei com ela na cara e chorei muito, indiferentes ao que se passa no céu. Correr pela nossa metade do campo sem levar com a bola é o objectivo. Quando nos acertam, vamos para o final do campo do adversário e só saíamos caso consigamos passar por todos, sem sermos apanhados e voltarmos ao nosso campo. Passámos assim divertidos na escola Santana um dos dias com mais actividade da aviação militar, logo após o 25 de Abril de 1974. Nunca mais esqueci.      

João, Vítor, Samuel e Manuel

Quinta Foi mais ou menos por essa altura que fizemos as primeiras visitas à quinta, que se mantinha misteriosa a maior parte do ano. Ainda hoje acredito que aquela quinta possui mistérios por desvendar maravilhosos. Vamos todos em grupo com chapéuzinhos na cabeça para que o sol não nos queime as cabecinhas pequeninas e nos deixe com febre. Na quinta

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sinto-me livre, talvez retornado ao campo de que os meus pais sempre me falaram, de quando eram pequenos em Castelo Branco. Um campo onde namoravam, onde os seus amigos trabalhavam, onde iam a festas, por onde passavam quando iam para casa. Choveu há poucos dias e o sol de hoje secou uma pequena camada de terra superficial, que engana, mas se desintegra quando colocamos os nossos pés, os nossos sapatinhos pequenos de couro ou borracha, enchendo de lama as suas solas. Umas solas de lama. Salto para evitar as poças de água, passando os pés pelo arvoredo para tentar tirar a maior parte da lama dos sapatos, e corro pelo caminho de terra, entre os terrenos cultivados, evitando a zona das silvas e a parte de canavial. A quinta parece-me enorme e deixando para trás os meus colegas e as Irmãs que nos acompanham, cruzo longitudinalmente a quinta, passando pela figura da nossa senhora de pedra, que serve túmulo ou de memória à  irmã fundadora do convento e sento-me no seu banco de pedra, que mais parece um sofá com um grande encosto para as costas. As teias de arranha sentem-se bater na cara e no cabelo, flutuando ao sol e os cheiros a terra molhada e seiva misturam-se com o chilrear dos pássaros que saltam, de ramo em ramo, apanhando ocasionalmente bichinhos no chão lavrado recentemente. Sento-me na areia e cavando com um pau começo por encontrar pedaços de cacos de barro, de vidro e de azulejo branco e azul. Tinha já, desde cedo, o gosto pela arqueologia, pelo que me intrigou tal descoberta numa quinta que deverá existir desde sempre na zona de Setúbal. Como ali foram parar aqueles restos de actividade humana e que tão antigos me pareciam? Um pouco mais à frente, vejo um muro pequeno feito de pedras e de cimento. Entre as pedras uma maior sobressai. Limpo as ervas daninhas que a tapam, talvez há vários anos, e verifico a existência de riscos na sua superfície com terra por cima, que eu destapo com o pau que trazia na mão, com um bico na ponta. E ao destapar deparo com algo que me deixou intrigado até hoje e que foi a razão da busca que empreendi o resto da minha vida. Nem sabia o impacto que tal descoberta teria em mim, nem a sua profundidade. A pedra é escura e grande, com uma superfície lisa voltada para a escola. Passando com a mão verifico que tem uma série de riscos fundos que parecem formar um desenho sem sentido. Num olhar mais atento percebo que a linha tem uma forma que me é muito familiar. A linha principal sobe e desce, sobe e desce, formando um perfil que é o perfil da serra da Arrábida e de S. Luis, embora não se veja hoje do local devido aos prédios e casas, lá de cima, da escola, percebe-se perfeitamente. Alguém, talvez há dezenas ou centenas de anos, terá esculpido na rocha lisa o perfil da serrania que se via no horizonte. E no cimo da serra de S. Luis estava marcado um “X”. Liguei pouco na altura ao desenho e

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prossegui a minha jornada pela quinta, a ver os animais, as galinhas e os porcos, até que voltámos às salas de aula.      

Samuel, Manuel, João e Vitor

Missa Um dia, num dos anos mais avançados, entramos na sala de aula de rompante e um dos miúdos grita com toda a força da sua garganta, numa histeria desregrada. Só podia ser o Paulo Amante, a quem no dia anterior eu tinha partido a cabeça com uma pedra da calçada, no lote vazio do lado Norte da escola, quando ele se recusara entregar-me os cromos que me havia roubado, dos bonecos da bola, aqueles cabeçudos que representavam os jogadores de futebol, que eu via na televisão a preto e branco. A gritaria continua e ele não quer estar na aula, pelo que se levanta, com as Irmãs a agarrarem-lhe o casaco, que ele cede, tirando dele os braços enfiados e num salto quase único, corre para a janela aberta e pula, para espanto de todos, que se levantam e correm para a janela para ver o resultado de tal façanha. Mas ele não se estatelou no chão, antes ficou de pé e correu, dobrando rapidamente a esquina do edifício em direcção ao parque infantil de areia, onde costumamos jogar à nave Enterprise. Só o voltámos a ver no dia seguinte. Entretanto, levantamo-nos e seguimos em grupo para o portão, eu com o Manuel, o meu parceiro de brincadeiras habitual, e descemos alegremente em fila dois a dois, a Avenida da Portela até à Praça do Quebedo, enfiámos depois pela rua da Igreja de Santa Maria, até à sua entrada

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principal, já cheia de gente que aguardava a abertura das portas. A Igreja apresentava-se com as suas duas torres engalanadas, e subimos num ápice o lanço de escadas de pedra, gastas pelos anos e pés, que nos leva à porta. Eu e o Manuel ficamos próximos e estamos de camisa branca, era o dia da nossa primeira comunhão. A Missa começa com as palavras do Sr. Padre Graça, que diz as orações e os ensinamentos devidos. A igreja transborda de crianças bem vestidas para a primeira comunhão. A ligação de amizade entre mim e o Manuel é muito grande na altura, ainda hoje não diminuiu tanto como seria de esperar, que éramos capazes de olhar um para o outro e, sem palavras, adivinhar o que o outro estava a pensar. E não era normalmente boa coisa. Foi assim que estalou o riso entre nós, sem uma palavra, apenas com um olhar, um riso de não aguentar mais sem se tornar muito ruidoso a ponto de incomodar o padre e parar a missa. Não podíamos trocar um olhar, nem que fosse de lado, sem que o riso jorrasse a potes, em grandes caudais incomodativos para os outros, tal era a cumplicidade. Com este perfil comportamental, separam-nos a grande distância, para que a missa possa prosseguir no seu rito normal. Mas não há solução, pois não são precisas palavras e, naquela altura, a apurada visão permitia vislumbrar os pormenores da cara do outro, que diziam tudo, e faziam de imediato soltarem-se comboios de gargalhadas ruidosas. Como fazer? Voltar os dois de costas foi a nova solução das freiras, mas o centro cerebral da risota estava tão sensível que o mínimo olhar de soslaio, ou o mínimo vislumbre da cor da roupa do outro, oferecia de imediato o motivo com a consequente gargalhada que não conseguia ser contida, senão quando nos puseram na rua, onde pudemos espraiar todos os risos que estavam há tempos contidos. Era o cabelo vermelho daquela senhora, a bengala da outra, o batom a mais de uma, o vestido estranho de outra ainda, o boné de um homem, ao falarmos percebemos que riamos com gosto pelos mesmos motivos que adivinhávamos lá dentro e que cá fora pudemos vocalizar e confirmar. Nem sempre tínhamos rido do mesmo, mas que interessava, se em comum tínhamos sempre a forte intensidade do riso em conjunto. Tudo era motivo para rir. Lembro-me de anos mais tarde ir no autocarro para a universidade diariamente com o Manuel, em Lisboa, e os mesmos risos de cumplicidade continuarem a incomodar os utilizadores do autocarro.       Mario, Manuel e Cromos Alguns dos nossos colegas tinham mais meios que nós e os pais eram um pouco mais abastados, a ponto de os considerarmos ricos, embora esse seja um conceito muito relativo. Certa manhã, estamos a correr pelo campo de futebol central da escola, tendo por moldura as colunas e os arcos que circundavam o “U” do edifício, quando entra o Mário trazido pelos seus pais. Pensámos de

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imediato “que bolo de creme trará hoje o Mário”. Todos os dias ele trazia um bolo de creme muito superior ao lanche dos restantes colegas, do nosso ponto de vista, pois tinha sempre muito creme doce e era muito grande. Muitas vezes ele não gostava de certo tipo de bolo e dava-nos, para nossa delícia. “Mário, que bolo trazes hoje na lancheira?”, pergunta um dos meus colegas. “Tomem, este de hoje não gosto!”, e desatamos numa corrida para ver quem chega ao bolo. O João, apanha-o primeiro, e divide com os outros colegas. Calha-me uma parte com pouco creme, o que me deixa ligeiramente triste, mas pode ser que tenha mais sorte da próxima vez.

Papelaria Bica e banco onde nos reuníamos todos os dias

À hora do lanche da manhã, “Mário, queres que a gente vá comprar os cromos do futebol para ti?”, Pergunto eu, “Claro, têm aqui os meus vinte escudos!”. Todos os dias o Mário trazia para a escola uma nota de vinte escudos para comprar o que quisesse, e muitas das vezes, eu e o Manuel íamos ao Bica comprar-lhe os cromos. Agarramos nos vinte escudos e saímos a correr pela porta da escola. Naquela altura as escolas ainda deixavam sair os alunos durante o intervalo, o que penso que não sucede hoje, pelo menos na escola Santana, mesmo para os alunos de anos mais avançados da primária. Saímos pelo portão de ferro verde e caminhámos juntos e alegres pelas pedras da parte rebaixada que seguia sempre junto à escola até  à Praça

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do Brasil, saltando por cima das duas escadas que dão acesso à parte mais elevada do passeio e, quando chegamos ao terreno descampado, a Norte da escola, descemos por um caminho de terra, quase tapado por ervas altas e picos, por ser Primavera. O caminho cortava caminho, passando pelo centro do nosso matagal preferido para brincadeiras fora da escola, a nossa selva de que já falarei. Passamos todo o caminho, saltando alguns resquícios de lama seca que ainda perduravam, fugimos de abelhas que nos cercavam e procurámos saltar sobre os sacos de lixo que para ali atiravam de alguns prédios. Do outro lado, junto à parede do outro prédio, tinham uma subida íngreme, que fizemos numa corrida e saímos já no passeio da Praça do Brasil, onde se podia ver todo o parque infantil que aí ainda se encontrava. Descemos então calmamente, muito juntos, a rua até ao supermercado Delta, passando pelo prédio do Manuel e saltamos o muro para os Delta, e num pulo estamos na papelaria Bica, com uma montra com ferros em vermelho e uma pequena porta de entrada que dava para um balcão longitudinal. O Sr. Bica e a sua esposa lá estavam a atender os clientes dos jornais, dos livros do Mickey e das pastilhas elásticas. “Queremos cromo! Vinte escudos em cromos da bola!”. Entregue o dinheiro vieram os inúmeros pacotes de cromos, muito bem dobrados, com cada um com 5 cromos lá dentro, um de cada jogador, sorteados de forma aleatória. Claro que nunca saíam os mais custosos, como chamávamos aos cromos que ninguém tinha. Normalmente levávamos os cromos directamente para a escola para entregar ao Mário. Mas daquela vez, não sei porquê, resolvemos abrir um dos pacotes por curiosidade. E tinha dois dos cromos mais difíceis. Não os mais custos, mas suficientemente difíceis para não os termos. Que fazer? Tirámos os cromos para nós e introduzimos na carteira outros dois que tínhamos repetidos, procurando colar suavemente a borda da carteira de cromos. Estávamos alegríssimos, pois tínhamos dado um avanço espantoso na nossa colecção. A partir daí, passámos a fazer o mesmo regularmente e lá fomos completando a nossa colecção como sendo o pagamento do nosso trabalho de ir à papelaria. Mas as carteiras chegavam sempre impecáveis às mãos do Mário, que nunca notou nada de especial, e ficava satisfeito com os muitos que ainda assim lhe saíam. O espaço que atrás referi, o lote vazio entre a escola Santana e a Praça do Brasil, hoje ocupado, era o local predilecto de divertimento na altura, pois nele vivíamos as nossas maiores aventuras, fosse na caça de tesouros, no abate de perus com alfinetes presos a pontas de cigarro atiradas através de tubos brancos das obras, fosse para apanhar sapos ou simplesmente dezenas de joaninhas, quando era altura delas. Uma vez espalhámo-las pela entrada do prédio do Manuel e ninguém percebia o que se passava.       Carnaval

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O Carvanal era uma festa na nossa escola Santana. Eu e o Manuel criámos uma cumplicidade no molhanço dos nossos colegas com as nossas pistolas de água, que até há poucos anos ainda íamos os dois sozinhos todos os anos a Sesimbra, mascarados e com cada vez maiores pistolas de água, para brincarmos ao Carnaval e molharmos os outros foliões. Nesse aspecto o Carnaval de Sesimbra é espantoso. Quando as tropas inimigas se acercaram da casa de banho, um porta verde de madeira que está ao centro, do lado Oeste do edifício da escola Santana, sabíamos que tínhamos que defender a todo o custo aquele centro de munições que era a torneira da casa de banho dos meninos. O Manuel à frente com o seu pistolão novo verde, uma arma superior a qualquer uma dos restantes meninos e que era o seu orgulho, cobria-nos em perfeição enquanto enchíamos as nossas bisnagas mais pequenas, transparentes amarelas, que deitavam um esguincho mais fraco e menos certeiro que a do Manuel.

Colégio Santana

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A torneira estava constantemente aberta, numa aflição de meter água antes dos outros, várias pistolas voltadas de cano para baixo lutavam por acertar o seu orifício de enchimento com a torrente que saída da torneira, procurando simultaneamente que o vedante de plástico transparente, em forma de rolha com uma cruz na ponta, que segurava à pistola, não atrapalhasse a entrada de água. Cheia a arma, era preciso chupar pelo cano para que o líquido fluísse devidamente à ponta e a pistola estivesse pronta a disparar à primeira gatilhada, não deixando mal o seu dono, ou seja não deixando que a molhadela não tivesse resposta à altura. Lembro-me bem da festa de anos do Manuel, onde vi pela primeira vez um gravador de voz e ficámos todos impressionados com a reprodução das nossas palavras por aquela coisa. Eu, o Jorge Mau, o Django. O Manuel tinha sempre ideias e coisas que nos impressionavam e embora fosse um pouco forreta, aliás como eu era, adorava partilhar os seus objectos novos para seu e nosso deleite. Era fantástico o ambiente vivido na escola, em tempo de festas, lembro-me da fogueira das castanhas assadas, que todos comíamos com tanto agrado e das festas no velho teatro da escola.       Festa e Teatro As festas no colégio Santana eram sempre de arromba, com o salão do palco cheios de pais e familiares dos alunos, grande parte em pé, por já não caberem, e nós, os mais pequenos ficávamos sentados na parte de cima, para onde se ía por umas escadas e onde ficávamos amigos lado a lado, mas sempre de olho na rapariga mais bonita da classe. As danças e as peças de teatro seguiam-se, classe após classe, numas tardes maravilhosas, que deixavam todos muito cheios de alegria. Um dia o salão está vazio, as portas de entrada fechadas e lá  fora chove, e as crianças estão todas recolhidas no recreio sob o telheiro, em redor dos arcos, a fazer brincadeiras mais curtas, em pequenos grupos, em jogos de Primavera. Sob o palco está tudo escuro, tudo parece misterioso, e abro o alçapão para subir e abrir as cortinas, puxando as grandes cordas com algum esforço. Estamos no ecrã, imaginando já a sala cheia na próxima festa da escola e prosseguimos o treino da peça. Por sermos bons alunos e do último ano, as Irmãs tinham-nos deixado escrever, ensaiar e apresentar uma peça só nossa, sem intervenção de qualquer tipo de pessoas mais velhas. Escolhi uma história dos livros do Patinhas, que muito apreciava, em que um irmão Metralha rouba moedas do Pateta quando este passava numa rua, sendo mais tarde apanhado e obrigado pelo polícia a devolver o dinheiro, numa parábola que tinha também subjacente um tema moral, “não roubar”.

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Durante vários dias, ensaiamos a peça durante os intervalos da escola, passando em revista cada quadradinho da história do livro do Patinhas, ensaiando as frases, as entradas e saídas de pessoas, os fatos, até ao dia de estreia na festa da escola. Não foi certamente a melhor peça da festa, mas deu-nos um gozo, um poder de realização que perdurou até hoje, apesar de já não me lembrar quais foram os colegas que estiveram na peça comigo, mas terá certamente sido o Manuel e o Paulo Amante, entre outros.      

Entrada lá para trás

Vanda e Botas      Estamos na quarta classe e enfrentamos com apreensão a dura realidade de estarmos quase a deixar a escola Santana onde somos tão felizes. O que irá acontecer? Como será o ciclo preparatório? Eu gosto de uma rapariga que de tanto a achar linda não lhe consigo dirigir-lhe uma única palavra, pois fico completamente paralisado e envergonhado ao pé dela ao ponto de fugir constantemente de onde ela está e fico todo vemelho. Na sei o que ela sente pois nunca lhe dou oportunidade de me dizer. Um dia, ao sair da sala de aula, os meus colegas, que sabem que eu tenho um fraco por ela, a Vanda, querem que eu vá ter com ela e lhe dê um beijinho ou pelo menos lhe diga o que sinto. Mas eu nem pensar, nem me aproximar, nem olhar para ela tal era a vergonha. Os meus colegas puxam-me, "Vá lá, vai lá!", mas eu nada. Ficou-me na memória e durante muito tempo sentia-me envergonhado e quase não falava com uma

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menina quando gostava muito dela. Sentia-me mais à vontade a brincar com rapazes e com raparigas por quem nada sentia e fugia de quem gostava. Na altura era o melhor aluno da turma. Não porque estudasse muito, pois o que fazia era brincar, brincar. Mas porque compreendia bem as aulas. Isso aconteceu-me sempre, mesmo na universidade, embora aí houvesse melhores alunos que eu, excepto na matemática. A minha capacidade de estudo era muita baixa e inversa da capacidade de apreensão da matéria nas aulas. Cansava-me muito estudar, não tinha essa faculdade de trabalho, preferia a brincadeira o dia todo. Um dia uma irmã vem ter comigo e deu-me umas botas de prata que ainda guardo com muito carinho. Disse-me que me iriam ajudar na minha caminhada ao longo da vida e nos estudos. De facto ajudaram, nem que seja psicologicamente, pois foram dadas ao melhor aluno do ano na quarta classe da escola Santana e representam muito para mim.   Operação à Garganta         Na primaria andava sempre com muitas dores de garganta e por isso resolveram operar para retirar as amígdalas. Uma semana passada no hospital com a companhia de muitos outros miúdos. Não me lembro da operação, mas sim de todos me trazerem muitos gelados, os meus tios, padrinho, pais. Era só comer gelados o dia todo. De noite é super divertido, as bruxas passam por cima das nossas camas a voar e entram pela parede do hospital. Cada vez que um miúdo diz "vem aí uma bruxa!" todos nós nos escondemos por baixo dos lençóis muito assustados e imaginamos dezenas de bruxas a sobrevoar-nos.   Lá Trás     Lá atrás, era o termo utilizado para designar as traseiras norte dos prédios da Praça do Brasil, onde havia um largo de terra para brincarmos em pequenos. Havia um campo de futebol antigo, do tempo do meu primo Tozé. Havia ainda a cabana do velho Badio, guarda dos prédios em construção nas imediações, e que andava sempre a correr atrás de nós. Para lá de lá atrás, estavam pequenos quintais de agricultura de entretenimento de moradores dos prédios, como era o caso do avô  do Jorge, consentidos pelo Tavares da Quinta.        

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Traseiras de PB. Ao fundo a zona da Barraca

Soldadinhos na Barraca de Tijolo     Recordo os pães com manteiga e tuli-creme, de chocolate e avelã, que as nossas mães lançavam, das varandas de nossas casas, nos prédios, para o nosso lanche da tarde, dentro de sacos de plástico, e o copo de água que sempre bebia na casa da avó do Jorge, no R/C do meu prédio, depois de muito corrermos lá atrás.    

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Traseiras da PB

Após as aulas na escola Santana, a 5 minutos, ia sempre lá  para trás. Lembro-me do grupo de soldadinhos que em meninos formávamos com 7 ou 8, comandados pelo Paulo, marchando, brincando e fazendo muitas traquinices.     Uma vez fizemos uma barraquinha de tijolos, com tábuas por cima, e quando começou a chover, fomos todos lá para dentro, protegidos. Belos tempos.     Lembro-me de ter pegado fogo ao prado lá trás, ter espetado um prego na sandália e ter derrubado um poste de telefone, que por sua vez fez cair as telhas de uma casa velha, tudo numa manhã.     Além dos tijolos, brincávamos muito com azulejos quadrados de 1 cm de lado, que utilizávamos para tudo. Havia muitos lá atrás.  

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O caminho da quinta do Ti Zé, que ligava ao portão da Estrada dos Ciprestes, seguia por entre duas partes da quinta, cultivadas, com umas cercas pequenas de arame a separar, que tinham sempre bichos muito interessantes.

No final do caminho estava a casa do Ti Zé, pequena casa de um só  quarto, isolada, com um cão sempre preso que nos assustava, e galinhas aqui e ali.Por ali em frente, à direita, iamos para as quintas, guardadas e cultivadas. Quase nunca arriscávamos lá ir. À esquerda, tínhamos pequenos montes e vales de terra, de torrões amarelos, ervas altas e cobras, até à zona de obras. Esta zona de obras tinha prédios, trabalhadores e um portão para o outro lado. Ao meio tinha um moinho para mistura de cimento, com montes de areia. Em redor, prédios que nunca mais acabavam, com as paredes abertas, onde era perigoso entrar.     Lá  atrás, havia lixo por todo o lado, que caía dos sacos rebentados que os moradores lançavam lá para trás, ao fim do dia.     Brincávamos com muita coisa gira, comprimidos, seringas, pomadas, latas de spray.    

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Traseiras da PB ou Lá Trás

As Bicicletas     Houve um momento em que aprendi a andar de bicicleta, na que a minha avó  me tinha dado, laranja e moderna. Não sem cair muitas vezes. Tinha sempre os joelhos com sangue.     Depois começámos todos a ir mais longe de bicicleta, até ao Bonfim, até ao Liceu. Andávamos sempre de bicicleta.     O Couto tinha uma bicicleta especial com guiador em "V" elevado para trás e com banco de encosto e mudanças ao meio. Era um sucesso. Chegávamos a dar voltas ao campo do vitória e a ir ver a estação ou até à beira-mar.    

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PB ou Lá à Frente

Folhas de Amoreira       Tínhamos sempre muitas épocas de entretenimento diferentes, ciclicamente. A época do pião, do espeta com um ferro para jogar ao mundo, do lencinho, das escondidas, das bicicletas, das fogueiras, dos bugalhos, etc. Os dois prédios em construção, lá atrás, eram locais óptimos para as escondidas.     Saltávamos de janela para janela, da varanda do primeiro andar cá  para baixo, para o cimo de um monte de entulho. Havia buracos para as caves. Havia o buraco do elevador muito perigoso. De lá tirávamos inocentemente fios de cobre que usávamos para fazer fisgas e seus grampos de arame.     Havia o tempo das fisgas de pedra, dos tubos de atirar milho a sopro, da apanhada, do mata, do futebol, do rei manda, do lá vai alho.     E havia também o tempo das folhas de amoreira e dos bichos da seda. Alguém arranjava bichos da seda que distribuía, que faziam casulo e se transformavam em borboletas. Mas a melhor parte, era ir, em grupo,

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apanhar folhas de amoreira para os bichos. Só conhecíamos uma árvore junto a um tanque de água, muito bonito, no interior das quintas para lá de lá atrás. Eram belas tardes passadas a subir às árvores.       Os Micheys da PB    

O nosso designer

Como todos os grupos de bairro, na Praça do Brasil também tínhamos os nossos rivais. Por exemplo, um grupo de miúdos das traseiras Oeste da Praça do Brasil, onde raramente íamos, mas muito semelhante às nossas, também com lixo. O Ciga liderava aquele grupo. Muito simpático e sempre cheio de ideias e de energia.     Na altura, formámos um clube de futebol e fomos pedir quotas aos vizinhos, tínhamos o campo nas traseiras, lá atrás. Eram os Mickeys e havia equipamento de camisola branca e calções vermelhos, se bem me lembro, que íamos sempre comprar às sete de manhã lá frente. Também lá combinávamos para jogar à bola. No final já ninguém aparecia.    

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Prédios da PB

Tínhamos a sede do clube no edifício do junta de freguesia, depois do colégio Santana, e não deixávamos mais nenhum menino entrar. Foi então que o grupo rival de lá trás formou o clube dos Pelezinhos, que cresceu e hoje é um grande clube da cidade de Setúbal. Os Mickeys desapareceram, pois nós também passámos a ter outros interesses com o tempo.     Lembro-me que, na altura, se chegou a fazer um ou dois pequenos foguetões movidos com pólvora de fósforos que levantaram voo.  O Ciga 1 e o Ciga 2 Houve uma altura em que fizemos colecção de latas de bebida vazias em alumínio, coisa que ainda não havia em Portugal. As mais apreciadas eram as latas de coke e de cerveja japonesa. Íamos pelo interior de um buraco na rede do Porto de Setubal e chegávamos aos navios e pedíamos"empty teens" (diziamos “m ti tins”) e os asiáticos davam-nos sempre. Não era pobreza mas sim coleccionismo de prestígio para por no quarto e ser apreciado por todos os amigos.   Ciclo Preparatório    

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O nosso supermercado na PB

Achei o ciclo muito impessoal, cheio de gente desconhecida sem interesse pela escola, sem regras e sem moral. Não gostei. Deixei de jogar futebol nessa altura. Era considerado marrão apesar de não estudar nada. Mas sabia. Mas era respeitado por pertencer à Malta da PB Praça do Brasil. Lembro-me da Susana e do Pedro, da Secil, onde o Avô morava e trabalhava. O ciclo teve poucas histórias para além das aulas de biologia e de electricidade e metalomecânica e educação visual, novidades giras. Havia o pessoal do cantinho que fumava. As melhores histórias são as do caminho a pé para a escola onde fui assaltado onze vezes, mas como não levava nunca nada comigo, nunca me roubaram nada. Principalmente por ciganitos com facas ou paus que nos ameaçavam e levavam o relógio ou algum dinheiro de colegas que iam comigo.

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Uma vez, um estava com um canivete pequeno a assaltar-nos e o Roger meteu-se por detrás com um grande barrote e perguntava, sem ele ver, bato? Não bato? Eu disse não pois ainda o mata ou, senão, podia-se zangar e depois ainda nos espetava o canivete. Ao fim ao cabo não nos roubava nada, pois não tínhamos nada nunca. Só a roupa. Lembro-me também das aulas de música com a tia do Nuno, muito difíceis e que eu não gostava nada. E de plantar uma das árvores na escola. E nos intervalos das aulas brincávamos na zona da turma rodeada de pequenos muros junto à sala. Brincávamos ao lencinho e ao lá vai alho. Um dos putos bateu uma vez com a cabeça na parede e aleijou-se, pois o pessoal desviou-se. E brincávamos a apertar o peito do pessoal depois de fazerem flexões e encherem o peito de ar, logo desmaiando temporariamento. Não sei se era perigoso.   Liceu        A ida para o liceu foi novidade. E embora no primeiro ano tenha ficado muito envergonhado e andei semanas sem ouvir de um ouvido devido a uma constipacao, logo me habituei e adorei aquela escola com pessoas mais adultas.   Apesar disso a turma do oitavo foi muito complicada com muitos repetentes mais velhos. Os bons alunos chamados marrões sofriam largamente as mãos dos repetentes todos muito traquinas, um pouco selvagens quando em grupo. Fiz na altura amizade com o Carrajola, já na altura muito alto e respeitado. E como era miúdo da rua apesar de ter boas notas, sem marrar, respeitavam-me quase como a mascote da turma. Ajudava o pessoal nos testes. Um dia estávamos a rever os testes de matemática corrigidos e, com base no meu, puseram tudo certo num teste de zero. Perguntou-se o porquê da nota à professora e ela ficou zangada. Depois virou a página e estava um símbolo que ela não gostou e fomos todos para ao conselho directivo. Durante as aulas havia mil e uma travessuras. Queimavam borrachas e pediam para fechar a janela pois o cheiro vinha lá de fora, atiravam gravilha à professora quando fechavam a luz. Rolavam pedras de calçada no chão. Punham todos os relógios electrónicos a tocar. Colavam papéis com dizeres nas costas da professora e ria tudo a aula inteira. Colocávamos cábulas para os testes nos cartazes nas paredes. Uma vez fui convidado assistir a uma aula do Nuno na escola comercial e eles faziam ainda pior. Caraté ao professor sem ele se mexer, fazendo golpes a frente da cara dele sem lhe tocarem. Uma confusão. Era o Neves, o rui, o Nuno, entre outros. Dava-me bem com o Vasco e o João e o Miguel Bulhosa.

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Quimicotecnia     No 9º Ano tive aulas de Quimicotecnia e fizemos montes de experiências engraçadas. Lembro-me de uma em que quase engoli ácido de bário a chupar por uma pipeta e noutra vez em que saltou um composto qualquer que estava a aquecer no bico de Bunsen.

Comprado no Palma Bica (papelaria da PB)

Turma do 10º     No 10º ano voltei a encontrar o meu amigo Manuel da escola primária, e fizemos dois grandes novos amigos, o Samuel, o super árbitro e o João, o homem da música.

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Primeiro PC da malta

Um quarteto que segui na turma até ao primeiro ano da universidade do ISE, Instituto Superior de Economia, hoje ISEG e que muito se divertiu nos trabalhos e estudos escolares.Mas a turma tinha outras pessoas muito interessantes e dedicadas à escola, ao contrário das turmas que tinha tido em anos anteriores, como a Vanda, a Ana e o Luís, entre outros.Na altura lembro-me de termos feito uma festa na quinta do Luís, em que saí arrastado para um táxi onde vomitei e dormi na casa do Samuel. Andei depois uma semana sem sapatos, pois não tinha meias e fui picado por milhares de mosquitos nos pés. Andava a trabalhar na empresa do pai da Ana e ia sempre de chinelos ou ténis abertos.Foi nesta altura que conheci a primeira vez a paixão a sério por uma menina de 13 anos da Escola Comercial, mas acabou passado pouco mais de um ano.Neste tempo escrevi muito e li muito, poesia e textos, conheci o Zé Cristo, um rapaz de barbas que escrevia muito bem, mas tinha algumas dificuldades em socializar. Um princípio de esgotamento, levou-me a deixar de escrever e até de ler.

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Eu aos 17 anos

12º  ano    

O 12º foi o ano mais interessante, já que apenas tinha três cadeiras e tinha imenso tempo livre que utilizei a ir as todas as festas em discotecas da zona, Seagull, Cubata e Rosamar em Tróia e ir à praia e a beber tardes inteiras.Neste tempo desenvolvi uma forte amizade com o Ângelo, pois ficávamos imensas noites inteiras a jogar jogos de computador, a programar e íamos passear para montes de sítios. Ainda hoje é uma grande amizade.Nesta altura ainda não sabia se queria ir para a Universidade e lembro-me de uma pega que tive com uma miúda que não gostou que tivesse acabado com ela e resolveu por o pai e o irmão a chatearem-me, tendo-me expulsado de um curso profissional que ia frequentar. O irmão até era fixe.Assim, resolvi ir para a faculdade de economia, com grande incentivo dos meus quatro amigos da escola secundária, o Manuel, o Samuel e o João, apesar das dificuldades financeiras, tendo recebido uma bolsa.

Lá à Frente    

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Lá à Frente, Imatrónica e café IPSI

Lá  à frente, era o termo que utilizávamos para designar a Praça do Brasil propriamente dita, a frente de lá atrás.Antes, era toda ela um jardim verde e passava uma estrada mesmo junto ao café  Brasília. Tinha um largo de piso vermelho, com um muro branco descente, com o busto de Olavo Bilac na parte mais alta e um banquinho de pedra em volta. Havia caminhos pelo meio da relva e cavalinhos e baloiços a Norte. E uma árvore que eu gostava muito subir.Após passar a parque de estacionamento, fizeram os bancos lá da frente, onde nos encontrávamos habitualmente, junto ao café Bilac.  Lá  atrás fizeram o novo parque infantil e um pequeno campo de futebol com um muro, onde não podíamos jogar depois dos 11 anos. Uma vez mudei o sinal com tinta e gozei o pagode. Era o tempo da velha da Sopa.     Lá à frente, passávamos horas e horas, dia e noite, sempre a conversar, alguns a fumar, víamos as pessoas, os vizinhos passar. À noite fazíamos barulho e chamavam a polícia, que nessa altura ainda ligava a esse tipo de chamadas, hoje nem que estejam a assaltar aparece.Quando fazia mais frio colocávamo-nos debaixo da porta do prédio do Toninho e aí ficávamos horas a conversar. O Guarda-Nocturno falava-nos sempre bem. Foi aí que vimos a violência a aumentar, as ruas a mudarem, os emigrantes a chegarem, as pessoas a deixarem de passear à noite com medo. Foi aí que decidi que queria morar fora de Setúbal. Um dia mataram o guarda-nocturno na violência da noite.

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Por vezes íamos ao café Portugal jogar snocker com o Arvela e o pessoal do Bonfim. Um jogo difícil. O golfe dos pobres.Lá à frente namorávamos, mas as meninas pouco tempo se aguentavam no grupo, que era tudo homens. Por vezes partíamos da frente para passeios na noite a Lisboa, a discotecas da zona ou para a baixa. Tínhamos pouco dinheiro e íamos sempre à boleia com amigos ou desconhecidos na estrada.A Praça do Brasil era nossa e só passavam por ela os meninos de outros bairros que nós queríamos. Por vezes chegavam colegas nossos a serem perseguidos por outros miúdos, pediam ajuda e nós saíamos a correr todos atrás dos outros. 

PB Café Brasília

A Baixa de Setúbal  Lá  à frente nos encontrávamos e de lá partíamos para a baixa, pelo Bonfim ou pelo Bairro Salgado. Vi os primeiro filmes de cinema na esplanada no Bairro Salgado e um filme do Bucha e do Estica no antigo cinema Bocage, no centro comercial com o mesmo nome, junto ao Bonfim.De lá à frente íamos em grupo à baixa e às escolas uns dos outros. Não falarei aqui da escola, pois separava já  muito bem esses dois mundos, que nada tinham um a ver com o outro. Na Praça do Brasil era um rapaz da rua e na escola era um bom aluno.Lá  em baixo procurávamos conhecer miúdas. Fazíamos voltas sem fim à baixa. 

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Piscinas. Sempre a olhar para as miúdas, mas poucas conhecíamos. Acabava-se por ir à beira-mar, para o castelo de S. Filipe ou para os conventos de S. Paulo, brincar.Em S. Paulo brincávamos muito. É um local de floresta a dois quilómetros de Setúbal, com dois conventos antigos e abandonados, o convento velho e o novo, o primeiro com maior grau de destruição. Levávamos lanche e andávamos pelos túneis da água, descíamos ao poço, subíamos aos telhados a cair, saltávamos de parede para parede, sempre em risco de nos acontecer alguma coisa e as nossas mães nem desconfiavam do que fazíamos.Jogávamos aos polícias e ladrões no convento velho que era o mais bonito. Pum, pum, estás morto.Nesta altura, tínhamos sempre muitos inimigos na rua. Cães, ciganos, tipos chanfrados, pedófilos e grupos de miúdos de outros bairros, vizinhos, a bófia que não tinha nada para fazer se não chatear os miúdos, etc.

  Noites      

Convite muito procurado da discoteca fina do Seagull

Uma coisa que nunca mais me vou esquecer, são as noites passadas de mota com o Toninho. Íamos para todo o lado com os nossos capacetes desenhados, sempre devagar. Ele é que conduzia, pois a mota era dele e

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eu não tinha carta. Íamos ao snooker, às festas, à praia. Sempre de noite, depois de ele vir do trabalho.     Mas o giro foi cairmos várias vezes. Uma na Figueirinha, parámos e caímos. Outra junto à PSP da Avenida da Portela, onde ele deixava a mota presa. Caí-lhe em cima, literalmente. A melhor foi na descida da Restinguinha, quando vínhamos da Figueirinha. Andámos a rojo mais de 50 metros e fiquei com as calças de ganga como se fossem saias, todas abertas.Foi a mania das motas e das Casal Boss. O Jorge tinha, o Angelo tinha. Vá  lá que nunca ninguém se aleijou a sério. Depois veio a época dos carros. O Angelo tinha o Max, no qual íamos para todo o lado. Chegámos a vir aos esses do Seagull.O Francisco tinha o Fiat 127, que um dia se virou na descida da Restinguinha e começámos a andar em sentido contrário.  O Carlos comprou o Alfaromeu cuja porta foi reconstruída com cimento-cola e tirámos o motor para reparar na PB, e que se virou na ida para S. Paulo e só mais tarde os outros tiveram os seus primeiros carros. Ele vinha sempre de Lisboa com o guincho do seguro, pois não tinha dinheiro para a gasolina.Lembro-me de ir pé a todo o lado. Lisboa, Tróia, Santo André, para acampar. Sempre à boleia. Uma vez ficámos apeados uma noite em Tróia e só no dia seguinte tivemos boleia para Santo André. “ minha é minhoca tua” era a frase do dia.A primeira vez que fui a Palmela, foi a pé, para ir às vindimas. Mas pouco vindimei e foi mais para me divertir. E ia de bicicleta a Azeitão, Palmela, Sesimbra e Barreiro, de onde regressei a pé uma vez, com um pneu furado.As noites eram sempre engraçadas a beber nas discotecas ou bares. E bebíamos muito ou aguentávamos pouco. Depois armava-se sempre confusão, mas naquela altura ninguém se aleijava e acabava sempre tudo a bem. Muitas vezes a Cubata era do nosso grupo, que ocupava a pista a dançar e as meninas não percebiam porque gostávamos de dançar todos uns com os outros, alguns vinte, em vez de dançarmos com elas.

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Recriação do Seagull em Tróia em 2010

Café Bilac      

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Estátua do Bilac, que esteve antes onde estão os carros hoje

Quando não estávamos lá à frente nos bancos, sentados na parte de baixo ou em cima, a colar pastilhas no poste de luz, estávamos no café Bilac, onde nos encontrávamos todos numa ou duas mesas para beber café.

Passei várias horas sentado no Bilac, sozinho ou acompanhado. Era para onde ia quando saía da escola e não tinha nada para fazer. Ali toda a malta se juntava e falava do que tinha feito do que estava a fazer. Ou por vezes estávamos todos calados a passar o tempo.Tínhamos sempre o nosso canto reservado e dali podia-se ver toda a Praça do Brasil.

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PB canteiros que serviam de balisas para o futebol

Praia       De vez enquanto íamos à praia. Íamos para Tróia todos juntos, em grande grupo, cerca de 20 miúdos, tudo rapazes. Levávamos a bola e sandes.    

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Vista normal quando íamos para a praia em Tróia

Em grupo, na praia, ocupávamos uma grande superfície e escolhíamos estas ou aquelas raparigas para conhecer. Mas como éramos muitos, descambava quase sempre para a parvoíce e acabávamos por não conhecer nenhuma. Mas chateávamo-las. Só tropelias.“Formação” era a palavra de ordem e queria dizer que todos tinham que ir a correr para o alvo, uma rapariga previamente escolhida, e saltar para cima, fazendo um molho de pessoas em cima da vítima. Normalmente estávamos a jogar à bola e a bola ia parar em cima da pessoa. Perguntávamos se tinha aleijado. Se a resposta fosse sim, então alguém gritava de imediato “formação!” e íamos todos a correr.Passávamos horas na água a nadar e nas ondas, sem nunca gelarmos. Quando saíamos ficávamos na areia a fazer uma bolinha de areia com as mãos, abanando muito as mãos. Quando as raparigas passavam, ficavam a olhar muito admiradas e, depois de passarem, atirávamos-lhes a bolas de areia às costas e corríamos para dentro de água.Uma vez, na praia, estavam umas raparigas deitadas ao sol nas dunas e fomos quatro para perto delas, começando a fazer nudismo, sem elas se desmancharem. Só ao fim de algum tempo e de várias aproximações se chatearam.As praias da Costa Alentejana eram as nossas favoritas com as grandes ondas. Mas por vezes, devido aos fundões e à corrente tínhamos dificuldade em voltar a terra. Só com calma e aproveitando as ondas, conseguíamos.Em alguns Verões, íamos todos os dias para a Figueirinha à boleia. Formávamos um grupo grande junto ao esporão, de onde nos atirávamos para a água a partir das rochas. O pessoal em volta ia-se afastando para não levar com nada, na guerra de conchas e de areia que era normal acontecer. A meio do dia já tínhamos um grande buraco sem gente em redor.Divertíamo-nos muito e ouvíamos o Tonight I'm Yours, do Rod Stewart. As boleias por vezes eram perigosas. Já havia pedófilos.

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Apanhar o barco para Tróia e namorar – Asa do Avião

Acampar e Grutas    

Quando acampávamos em Santo André ou em Milfontes, era uma festa. Levávamos tendas pequenas, latas de sardinha e o dinheiro contado para comida e bebida. As manhãs eram passadas a curar a ressaca do dia anterior na tenda, ao sol, em plena transpiração. À tarde íamos para a praia e à noite íamos para a discoteca.Em Tróia a saída era para engatar espanholas e francesas que vinham nas férias com grupos escolares. Tínhamos que fugir da segurança. E no final tínhamos que ir para o parque de campismo pela estrada de Tróia a pé, cheia de mosquitos enormes.Lembro-me de haver uma nave espacial amarela no parque de campismo, onde o pessoal ia fazer as necessidades. Uma vez um amigo cortou o dedo durante a noite a abrir uma lata de salsichas e teve que ir para o posto médico.Uma outra actividade engraçada era andar pelo campo. Subíamos ao cimo da serra de São Luís e do Formosinho, e íamos à procura de grutas. Havia

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uma gruta próxima do Convento da Arrábida que gostávamos em especial e perdíamos muito tempo lá dentro. Ia sempre com o Carlos.

Tróia vista da Arrábida

O dia está azul e radioso. No Palmeiras, estou sentado a beber um café quando chega do Carlos, já equipado com calças de ganga velhas. Tínhamos passado os dias anteriores na figueirinha e agora queríamos fazer outra coisa diferente.-Então Carlos, vamos à gruta das aranhas ou à dos morcegos? Ou preferes a do Convento da Arrábida?- Epá, vamos à da Arrábida, no meu carro!Entramos no carro, o Fiat 127 amarelo, com o espelho retrovisor a abanar, com as mochilas e zarpamos em direcção à estrada da figueirinha, ao som da rádio.Apanhamos um pouco de fila para as praias, normal depois do almoço e depressa chegamos ao cruzamento para serra, passando pelas pedreiras da Secil e pelo quartel com os canhões apontados a quem passa.Subimos a vertente da serra até ao cimo, onde ficamos sempre deslumbrados com a vista sobre Tróia e sobre Lisboa ao mesmo tempo. Basta virar a cabeça para um lado e para o outro.Depois das antenas, mais à frente, passamos pelo caminho para a mata protegida e começamos a descer a encosta, sempre a travar. Começamos a ver o convento da Arrábida, por onde passamos e, depois da curva apertada à direita com o miradouro para o convento, entramos numa curva

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larga à esquerda, pelo interior da serra, sem vista. Só se vê verde. Nova curva à direita e paramos.- É aqui, É aqui!Saímos e o Carlos vai à frente a desce com a sua mochila saco, agarrando-se aos ramos e pedras. Eu vou logo depois. Chegamos a um caminho mais direito, aí 20 metros abaixo e começamos a andar para o lado do convento, pelo meio de arbustos, até encontrar a entrada da caverna.- Bem, já cá tivemos, mas nunca fomos lá abaixo. Mas hoje trazemos lanternas. Vamos a isso.À porta da caverna, tiramos as lanternas e descemos pelo primeiro buraco, cheio de mosquinhas pequenas e chegámos a uma grande galeria que vai escurecendo para o fim. No final da galeria, um novo buraco desce muito, mas as nossas lanternas fracas não permitem ver além.Vou na frente e tiro a corda do meu saco, amarrando uma ponta às rochas, mando a outra para baixo. Agarro-me e vou descendo aos pouco, com a lanterna na boca. De repente, esta cai e vai para o fundo. Não é muito fundo afinal, cerca de 4 metros.Descemos os dois e mais à frente, entre escuro e luzes fracas das lanternas, enfiamos por pequenos túneis horizontais, como serpentes, avançando e olhando as estalactites e as estalagmites. Por fim, depois de 20 minutos a descer a custo, chegamos a um salão grande sem mais saídas, que quase parecia uma sala de cinema pequena, a descer, muito húmida.- Que maravilha, não fazia ideia que isto aqui estava.- Estamos muito abaixo do solo.Fizemos um rico lanche com as sandes e fruta que tínhamos levado e depois voltamos à Praça do Brasil para contar a aventura. Voltámos à gruta diversas vezes.

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O nosso antigo parque infantil transformado em estacionamento

Festas       Muitas vezes íamos a festas. A primeira que fui, foi numa discoteca da tarde que havia junto à antiga sede da judiciária, em Setúbal. O Stringfellows.     Depois começámos a ir à Cubata a pé, onde havia sempre confusão e porrada. Também  íamos ao "10" e depois ao Seagull. Íamos ao Leo Taurus, a antiga Ostra, a Tróia, ao Rosamar e ao Montijo. Por vezes íamos ao Bairro Alto. Dependendo de que alguém do grupo se lembrasse e da boleia que tivéssemos.     No Seagull nadávamos na pista. Passávamos pela Varanda onde se namorava ou vomitava. O regresso de carro era sempre muito perigoso e alguns carros caíam na ravina. Por vezes íamos ao Bingo à noite, mas não jogava.

Carnaval     O carnaval era em Sesimbra. Desde cedo o pessoal começou a ir para Sesimbra, tradição que se manteve. Ia-se para ficar na rua a deambular, mascarados e com bisnagas de água, entrando em cafés e molhando toda a gente. Bebia-se e conheciam-se miúdas giras. Era a noite toda.

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Uma das vezes o José António aparecia-me sempre deitado nos locais mais loucos e eu ficava preocupado. Uma vez estava no meio do passeio, por onde todas as pessoas passavam. Outra vez estava na estrada, sem ver se vinham automóveis. Outra estava a cair do muro para a praia. E puxei muito por ele até ficar com o braço roxo. Mas afinal a queda era apenas de um metro e eu não tinha visto bem. Coitado.

 Droga       A droga sempre foi um dos problemas de 3 ou 4 rapazes da nossa rua, mas que não andavam tanto com o nosso grupo de amigos. Alguns resistiram poucos anos, apesar de serem dos mais duros da rua. Outros ainda estão nesse flagelo.Lembro o Rui e o Miguel que faleceram por isso. 

A Barraca       Estas histórias não podiam passar sem a barraca, marco fundamental da vida da nossa geração na PB. Construída pelo Carlos, Couto, Nuno, Jorge, etc., enfim por todos, aos poucos, tinha um poço de água e um quintal com portão e horta. Tinha um poste ao meio e quatro postes em redor. Nunca caiu. Alguns dos construtores tornaram-se engenheiros civis. Tinha tábuas nos lados e em cima, onde o plástico e as alcatifas protegiam da chuva. No chão estava um pavimento de cimento, que por vezes levava creolina para desinfectar. Localizava-se onde hoje está uma bomba de gasolina da Repsol, junto à Praça do Brasil.    

A barraca era a nossa segunda casa. Por vezes a primeira, onde nos encontrávamos diariamente. "Vou à barraca" dizia à  minha mãe vezes sem conta. Como vivíamos em prédios, aquele era o nosso quintal, que desejávamos ter em nossas casas. Além disso, ali estávamos sós. Ali nos encontrávamos, jogávamos às cartas e dali partíamos para todo o lado.     Lembro das tardes de domingo de chuva na barraca a jogar cartas (keips, lerpa), a beber ou a comer e a contar anedotas.Uma vez discutíamos e destruímos as cercas do quintal. Jogávamos a dinheiro às cartas. Ao escudo e a vinte e cinco tostões. Ouvíamos música, contávamos histórias. A nossa vida rodava em torno da barraca. Tínhamos bancos e velas para a noite. Uma vez até tivemos um sofá. As nossas namoradas também lá iam.    

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Havia os cães, nossos grandes amigos. O Capeto e o Beizi (baptizado com letras que cada um disse). Era sempre muito osso e arroz aguado que levávamos p'ró cão. Adoravam-nos.     O Capeto era um cão muito inteligente, preto, mas arraçado de pastor alemão. Andava sempre com a gente, defendia-nos. Era o cão da PB, uma companhia e muito meigo. Até que um dia lhe deram uma paulada na cabeça, saindo os olhos e ficou cego. Nada via, mas conseguia andar por todo o lado sem bater em nada, levantando as patinhas da frente.    

Localização do capeto quando estava cego

  "Non ou a Vã Glória de Mandar"       Um dia juntámo-nos na Barraca e bebemos e comemos durante a noite toda. De manhã, fomos para a Praça do Bocage, apanhar o autocarro, para sermos actores no filme de Manuel de Oliveira.     No caminho, o condutor parou milhares de vezes devido às coisas que lhe diziam, ameaçando deitar a viatura para uma ribanceira. Toda a gente lhe chamava nomes e à sua esposa. Um monte de miúdos endiabrados e mal educados, principalmente malta da baixa que se juntou. A caneta do pessoal da filmagem desapareceu e eu disse para verem o último a assinar a folha de presença, pois devia estar por ali e estava.

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No local da filmagem, não havia comida e bebida suficiente para todos e ficámos de seca com centenas de pessoas, cheios de fome e sede. Horas e horas. Logo que pude saí dali. Nem cheguei a filmar. Outros ficaram.             O Palmeiras    

Programa de Rádio do Couto

O café Palmeira foi a nossa segunda casa um pouco mais tarde. Íamos todos os dias para lá. O Couto fazia parte do mobiliário da casa e depois veio a casar com a São, dona do café. Bebíamos, estudávamos, conversávamos lá. Era o local de encontro.     Dali saíamos para todo o lado. Ali havia sempre alguém quando não tínhamos com quem estar ou falar. Ali se chorava e ria. Ria-se mais sem dúvida. Juntavam-se grandes bandos a beber café e ao fim-de-semana, era ali que começava a bebedeira, que depois se prolongava na baixa. Um dia chegámos lá na abertura, ao final da nossa noite de apanha de lagostins numa lagoa no meio do Alentejo, sempre a beber.Estava por nossa conta. "Aquece-me uma sopa" era a frase da época. Era ao almoço, à noite, de manhã.

  Jantares    

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Por essa altura começaram as namoradas e os jantares com bebidas alcoólicas. Era sempre até não poder mais ou ficar com a dupla. Ou seja ficar outro. Muitas, muitas histórias. Conto apenas aquela em que fiquei todo mordido por mosquitos nos pés e tive que andar uma semana sem sapatos, depois de ter vomitado dentro dum táxi. A primeira vez foi na Barraca com o Jorge, durante a tarde e a noite toda. Até bebi beatas de tabaco de não sei quem. Enfim.Depois algumas farras em Lisboa, na casa do Couto. A famosa casa, onde estudantes perdidos de bêbados se juntavam até cair. Na Cubata e nas jantaradas dos Melros ou a acampar em Milfontes ou Santo André, a ver a via láctea. O pior eram as misturas, que acabavam sempre mal.     O pessoal não tinha dinheiro, mas andava sempre a curtir, nem me lembro bem como. Bebendo e comendo do mais barato certamente.       

Almoçajantas          

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Banda da Almoçajanta – Paulo e Marco

Numa fase mais final da PB, juntávamo-nos nas almoçajantas, numa quinta para lá  da Bela Vista. Febras e sangria corriam ao som de conjuntos que tocavam. Era um concerto da PB. O pessoal rebolava com a roupa cheia de vinho roxo, pelo chão, onde e como calhava.   O melhor de tudo era quando juntávamos o dinheiro de todos e íamos ao Jumbo comprar carne e bebidas. Era uma festa de rir e rir.    

Início da Almoçajanta - Jorge  Afastamento da Malta     Por fim começámos a ir a casamentos uns dos outros, de arromba claro, e a malta foi-se afastando lentamente, pouco a pouco, até se ver muito pouco… Ficaram as lendas.

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Nasceram filhos e já só nos encontramos em algumas saídas esporádicas de rapazes para ir jantar e ao cinema. Ainda assim ficámos amigos para sempre.

Alguma Malta em 2009

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Lista da Malta da Praça do Brasil

Angelo Alberto CarlosCouto Elsa Eduardo Eduardo II Filipe FranciscoHenrique João Pedro João Jorge José Luís (irmão)Luís II Manuel MarcoNuno Nuno II Paulo PauloPedro Rogério Rui António Valter Vítor (eu) Entre outros.

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Poemas e outras

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Canibal

Um Medico legista trazia todos os dias para casa um pedaço dos corpos que analisava de vitimas de acidentes violentos, no hospital.Partes que pensava Não fazerem muita falta nos enterros dos mutilados.Todos os dias jantava carne humana, mantendo secreto o seu vício canibal.Era um artista perfeccionista na cozinha, fazendo a carne de mil maneiras e, por vezes, tinha convidados.

Robot hipnotizadoUm homem tinha uma doença na cabeça e não lhe apetecia trabalhar, apenas passear e ver coisas novas. No entanto, pensava que todos os outros homens tinham um problema na cabeça, porque trabalhavam de manhã à noite como robots hipnotizados.Mas tinha família que não podia abandonar e tinha que trabalhar para a sustentar, para terem carros, casa, TVs digitais e brinquedos chineses, por isso resolveu entrar num tratamento de choque com médicos.Ficou bom e voltou a trabalhar de manhã à noite como robot hipnotizado.

A pedra

Uma pedra grande e redonda caiu de uma montanha para a praia. Com os séculos, o mar afastou-se quilómetros e uma vila cresceu em redor da pedra, sendo a pedra muito apreciada por todos. A vila transformou-se em cidade e em metrópole. A pedra foi sendo tapada por camadas e camadas de areia. No final a pedra já só via o sol por um olho pequeno e as pessoas e os carros passavam-lhe constantemente por cima.

Tempestade

Um homem passeia numa pequena praia no fundo de uma falésia num dia cinzento.As ondas chegam revoltadas a querem trepar terra dentro como que a fugir de algo agitadas e altas, apenas para morrerem na praia.Faz frio e cai uma chuva molha parvos, mas este homem não o era apesar de se molhar também.O homem olha o mar com atenção enquanto anda, como que à procura do que afugenta as ondas daquela maneira mas apenas vê o vento e o céu muito escuro ao longe.No cimo da falésia uma gaivota olha o homem admirada porque não foge, sabendo ela há muito o que se vai passar.Tudo culmina para o desastre.

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Natal

Uma inutilidade aguarda satisfeita a sua santa oportunidade num canto de uma prateleira remota, numa loja no fim da rua. Lá fora, homens e mulheres correm feitos loucos rua acima e rua abaixo, à procura, à procura, como formigas tontas. Nesta época tem que se oferecer, dar alguma coisa a toda a gente e não há tempo a perder, os duendes humanos ajudam o pai Natal a encontrar a prenda certa para cada sapatinho. Uma oportunidade a não desperdiçar por uma inutilidade que se preze, pois nesta época marcha tudo desde que faça volume por baixo do papel de embrulho e do laço de oferta. Fortalece os laços humanos.

Sorriso Feliz

Um menino acordou de manha com grande adrenalina, que trouxe o pai Natal?Mãe, Mãe, é dia de Natal e devem estar os presentes na árvore trazidos pelo pai Natal! Desliga o alarme para poder descer. Toc toc toc, correu pelas escadas abaixo em alta velocidade, mãe esteve cá, deixou ali as prendes eeeehhhh. Atirou-se as prendas abrindo todas, sem saber qual abrir primeiro, olha esta, e esta, que bom, tão giro. Queria mesmo isto. Vou jogar com esta. Mas aquela é muito divertida. Mãe põe este jogo na consola.

Business man

Um homem descobriu que deixando de ir ao trabalho ninguém notava e lhe aparecia sempre o ordenado ao fim do mês na sua conta bancária.De início sentiu-se revoltado com a empresa que não controlada os funcionários e não valorizava o seu contributo de longos anos.Depois descobriu um novo mundo lá fora, que podia gozar em pleno com tempo e dinheiro no banco sempre fresco.Ia a museus, teatros, visitava jardins, áreas comerciais,Dividia a manhã em duas partes fazendo coisas diferentes em cada uma delas, reservando destinos diferentes para almoço em cada dia da semana. À tarde fazia apenas uma coisa, pois já tinha menos energia, mas habitualmente coisas mais importantes ou distantes. Por volta das 5, 6 horas voltava a casa, para junto da família como de tivesse saído do trabalho naquele momento. Por vezes levava a família nos seus passeios dizendo que estava de folga.Reforçou laços com antigos amigos, fez coisas que sempre desejou desde novo, aprendeu muito e viu muitos lugares.Tinha fundado aquela empresa de sucesso de que era único proprietário. Mais tarde deu quotas menores aos principais funcionários e deixou-os gradualmente a tomar

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conta de todos os negócios ao ponto de já não ser necessário e de ser visto como um estorvo quando aparecia.Descobriu uma vida nova, emocionante para ser vivida em pleno com os rendimentos da empresa. Contrariamente aos ensinamentos morais e sociais, vale a pena não trabalhar quando não falta o dinheiro, gozando a vida em pleno, sem stress, sem vícios, sem monotonia, aproveitando o melhor dos anos com alguma juventude.Nunca mais foi à empresa.

Dois homens

Um homem sentado à porta da sua casa numa pequena cidade do Alentejo, sob um sol abrasador, vê um homem a correr pela rua na sua direcção. Quem será aquele homem? Devo parar ou agarrar o homem? Pensa sentado enquanto desenha círculos no chão de terra junto à sua porta. Será que é um homem mau ou mesmo armado? Será um ladrão em fuga? Ou só está a correr? Depois vê outro homem que corre atrás do primeiro. Dois homens a correrem. Continua os seus círculos na terra e pensa. Devo parar o primeiro por ser um homem mau perseguido pelo segundo? E se o segundo esta armado e participo num assassinato? E se o segundo é que é mau e quer apanhar o primeiro. Devo parar o segundo? E se ele esta armado? E se vão os dois a correr para casa para as suas mulheres e nem se conhecem? Pensou mais um pouco...Para o diabo. O melhor é não me mexer.