Pracinhas na Segunda Guerra

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Dezembro 2011 - Revista Ragga

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Heróis da resistênciaJá se passaram quase 70 anos, mas a vida dos brasileiros que foram à Segunda Guerra Mundial nunca mais foi a mesma. Entre terror, lembranças e alegrias, os ex-combatentes eternizaram seus nomes na história

POR BRUNO MATEUSFOTOS CARLOS HAUCK

“Era uma tarde de janeiro. Daquelas tardes chuvosas de janeiro. Talvez de 1992, não se sabe ao certo, mas foi por aquele começo de década. O garoto havia saído com a mãe para fazer-lhe companhia pelo Centro de Belo Horizonte. An-danças. Ele adorava comer pastel com caldo de cana, o que inegavelmente deu ao passeio um tom mais atraente. No fim da tarde, com o céu ameaçando chuva, foram ao museu da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Quando chegaram, um senhor estava trancando a porta solenemente. O horário de visitação havia se encerrado e mãe e filho perderam viagem. Uma pena, disse, trouxe meu filho para conhecer o museu, o avô dele foi combatente na guerra. E qual é o nome dele, per-guntou o senhor, e quando ouviu, abriu um largo sorriso. Se

é para o neto do Jair, faço questão, disse, recuando e abrindo a porta. Ao entrar no museu, a imaginação tomou conta da cabeça do menino e as histórias que ele ouviu ganharam contorno nas fardas, armas e gra-nadas; nos mapas, nos relatos. Em 2008, com todas as honras que lhe eram devidas, o ex-combatente Jair foi enterrado e o garoto de outrora, agora já homem feito, não pôde estar lá, já que morava em outro país. Hoje, ele até se arrepende um pouco de não ter con-versado mais sobre os horrores e a solidão da guerra com seu avô, mas são coisas da vida. E hoje, também, sobram o respeito, as lembranças e algumas palavras como homenagem.”

BRASIL

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Vinte e cinco mil trezentos e vinte e quatro solda-dos. Dois mil setecentos e sessenta e dois feridos e 465 mortos. Esse foi o saldo da participação do Brasil, único país latino-americano a enviar tropas para a Eu-ropa, na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Com Getúlio Vargas como presidente entre 1937 e 1945, no chamado Estado Novo, o país mantinha uma boa relação com os Estados Unidos, ao mesmo tempo em que Getúlio governava com medidas ditatoriais, o que era visto com preocupação pelos norte-americanos. O Brasil adotou uma posição neutra até 1942, quan-do decidiu se juntar aos Aliados, declarando guerra aos alemães e italianos em agosto. Em novembro de

1943, criou-se, então, a Força Expedicionária Brasileira (FEB); em junho de 1944, a primeira tropa embarcou para a Europa. A ocupação dos pracinhas — como os veteranos brasilei-ros são conhecidos —, durou quase um ano: em maio de 1945 foi declarado o fim da guer-ra, mas retornaram ao Brasil somente em agosto. Desde então, milhares de brasileiros convivem com as lembranças das batalhas, do frio rigorosíssimo e da alegria e alívio que sentiram naquele 8 de maio de 1945, o Dia da Vitória. Dali pra frente, seus nomes ganha-ram a eternidade.

Josino Aguiar Filho, Divaldo Medrado e Geraldo Taitson (à frente): a Segunda Guerra

Mundial marcou a vida dos três pracinhas e ainda

permanece viva na memória

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,PELAS ONDAS DO RÁDIOGeraldo Campos Taitson soube que iria para a guerra pela

Rádio Inconfidência. Como se fosse ontem, ele lembra o que sentiu quando recebeu a notícia: “Expectativa, ninguém se sen-te bem com a guerra, né? A família ficou muito apreensiva, mas eu tinha que me apresentar”, diz o senhor que deixou pais e oito irmãos no Brasil. Hoje, aos 90 anos, Geraldo é 1° tenente refor-mado do Exército e foi à Itália como soldado do 11° RI de São João del Rei. Geraldo, juntamente com seu batalhão, recebeu instruções no Rio de Janeiro antes de embarcar para a Itália em setembro de 1944. Em 29 de novembro do mesmo ano, en-trou em combate na região de Monte Castelo. “Atacamos várias vezes Monte Castelo. Não participei da tomada, mas a minha tropa, sim”, comenta a importante conquista dos Aliados.

A estratégia dos grandes ataques era decidida pelos gene-rais ou coronéis. Nos intervalos de folga, os soldados jogavam baralho, batiam papo, e “quando era para atacar, às vezes ficá-vamos sabendo duas horas antes”. Quanto às refeições, ele não tem nada do que reclamar. “Tinha de tudo, tudo que é bom. Co-míamos ração americana, biscoito, chocolate, tudo vitaminado. Tinha sopa também. Recebíamos duas caixinhas para passar o dia, almoço e jantar. Cigarro, dois maços por dia. Cigarro ame-ricano muito bom, Philip Morris, Camel”, recorda-se. A saudade de casa era aliviada pelas cartas que recebia e mandava para a família. Cartas essas que eram lidas pelos superiores, que es-colhiam o que eles podiam ou não ler. A carta podia cair na mão do inimigo. “E só podia mandar ou receber notícia boa”, afirma.

Geraldo teve um ferimento leve por estilhaços de uma gra-nada. O medo da morte não era o pior sentimento do então soldado. “Ver colegas morrendo, como vi um colega morrer a oito metros da minha posição, é a pior sensação possível. A gente procura até esquecer coisa ruim, mas alguma coisa fica, a gente não consegue esquecer tudo. É uma tragédia”, lamenta.

A volta ao Brasil, em agosto de 1945, foi uma alegria pura, como o sorriso de Geraldo não deixa dúvidas. “Fomos muito

bem recebidos. O governo [do Rio] decretou feriado municipal para desfilarmos”, lembra. Mas a valorização parece ter sido fugaz. Para o veterano, os pracinhas foram esquecidos pelo governo brasileiro até 1988, quando a nova Constituição da República assegurou os direitos a todos que estiveram na guerra. Entretanto, a pecha de salvadores da pátria é rechaçada por Geraldo. “Nós não somos heróis, cumprimos com o nosso dever quando fomos convocados”.

,DEVER CUMPRIDO“Quando soube que iria para a guerra, senti um

prazer, uma emoção muito grande.” Muitos tinham um sentimento radicalmente contrário, mas foi exatamen-te assim que Divaldo Medrado, capitão reformado pelo Exército, se sentiu quando soube que lutaria nos cam-pos da Itália. Divaldo já tinha um certo destaque dentro de seu batalhão e fez questão de ir à guerra. Não quis abandonar os companheiros.

O veterano, que lutou como 3° sargento coman-dante de grupo de combate, foi gravemente ferido — tomou uma rajada de 13 tiros no ombro. “Isso foi em 12 de dezembro de 1944”, lembra-se vivamente o senhor que no dia seguinte a esta entrevista comple-tou 90 anos. Mesmo baleado, Divaldo teve força para pedir ao bazuqueiro “um tiro naquela janela daquele prédio”. E ele foi ao local. Só havia um alemão que não fora atingido. “Eu poderia ter matado o sujeito que ati-rou em mim, poderia ter atirado no olho dele, mas não tive coragem de matar o sujeito. Trouxe ele comigo, foi prisioneiro”, diz. Como o ferimento foi gravíssimo, Divaldo teve que retornar ao Brasil em fevereiro de 1945. “Cheguei da guerra e encontrei minha mãe com dois calos no joelho. Ela passou ajoelhada rezando o tempo todo. A apreensão era muito grande.” No Dia da

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Vitória, internado em um hospital no Rio de Janeiro, Divaldo recebeu a notícia com a sensação de dever cumprido e a sau-dade dos companheiros.

As situações complicadas, segundo o veterano, foram os primeiros avanços, os primeiros encontros com o inimigo. Res-tava aceitar a morte como realidade: “Depois que aceitamos isso, a coisa ficou mais branda. O que mais poderia me acon-tecer?”. Para ele, o lado mais terrível da guerra estava a poucos metros: “Muitos tomaram tiro do meu lado, muitos. Na guerra, a gente se torna uma fera indominável. Você vê os companheiros caírem, te pedirem socorro e você sem poder socorrer. Imagine o nosso sentimento”.

Hoje, Divaldo lembra da guerra com serenidade, sem dor. Seja no Museu da FEB, no Bairro Floresta, em Belo Horizonte, com os amigos pracinhas, ou em colégios e palestras das quais participa, ele fala daqueles tempos sombrios com tranquilida-de. Os sonhos ainda teimam em visitá-lo vez ou outra, mas os traumas foram superados. Bem humorado, quando perguntan-do se matou alguém na guerra, ele só ri: “Não sei, atirei muito, quem matou foi a bala”.

,NA GUERRA POR ACASOJosino Aguiar Filho entrou na guerra por acaso. Mineiro de

Várzea da Palma, ele chegou em Belo Horizonte em 1943, aos 16 anos. No ano seguinte, prestou concurso para um banco e foi aprovado, mas não tinha documentos. Como era menor de idade, o chefe de pessoal do banco aconselhou que ele fosse buscar o documento de isenção do serviço militar. Na manhã seguinte, fez os exames necessários e foi aprovado. O que ele não contava é que seria incorporado ao batalhão. Ele disse para o comandante que não era aquilo que queria, mas se negasse a farda seria considerado submisso. O sonho de trabalhar no banco havia acabado.

Quando Getúlio Vargas decidiu enviar os pracinhas à guer-ra, Josino participou de uma seleção em seu batalhão. Quem

quisesse ir à guerra, um passo a frente. Poucos deram — Josino foi um deles. “A minha expectativa era de receber baixa e ir trabalhar. Eu era muito novo, tinha só 17 anos. Eu nunca quis estar lá, nem me passava pela cabeça. Não tinha nem noção o que era mar, o que era embarcar em um navio. Não tinha noção de perigo, de responsabilidade, do que era uma guerra”, afirma o veterano, que já havia perdido pai e mãe e era o caçula de oito irmãos. Mas não teve jeito. Josino, de 85 anos, hoje 2º tenente reformado, embarcou em setembro de 1944 e, logo quando atracou em Nápo-les, na Itália, viu a cena que nunca mais sairia de sua memória. “Já havíamos jantado e subimos para o con-vés do navio. Uma chuva sem fim, aquela multidão no cais do porto. Começamos a jogar pedaços de pães que tínhamos trazido e aquela multidão avançava.. .”, o pracinha não se contém e a lembrança é atropelada pelo choro.

De todos os horrores, o medo da morte não é o pior, mas o que a guerra deixa como herança: “O pior não é a morte em si, mas são os traumas que a guerra deixa. É ver pais de família entregando esposa e filhas em troca de comida, de sapato, é a perda de colegas. Alguns a gente podia socorrer, outros não. E quando não podia e tinha que passar por cima?”. Nos momen-tos de folga, aproveitavam para ir à cidade mais pró-xima, “coisa rápida, desanuviar a cabeça, tomar um vinho, ver umas meninas”.

A Segunda Guerra Mundial acabou em maio de 1945. Alívio para Josino, o pesadelo havia terminado. Quando chegou ao Brasil, em agosto daquele ano, a primeira coisa que fez foi prestar concurso para os Cor-reios. Pediu licença do Exército e voltou à vida civil. Em novembro, tomou posse no concurso e realizou o sonho interrompido pelos horrores da guerra.

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EM NOVEMBRO DE 1943, CRIOU-SE, ENTÃO, A FORÇA

EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA (FEB);

EM JUNHO DE 1944, A PRIMEIRA TROPA

EMBARCOU PARA A EUROPA. A OCUPAÇÃO

DOS PRACINHAS NA ITÁLIA DUROU QUASE

UM ANO

A GUERRA NAS TELAS Em 2011, produções cinematográficas

jogaram luz sobre a participação brasileira na Segunda Guerra Mundial. Heróis, do diretor Guto Aeraphe, mostra a saga de três pracinhas mineiros que se viram em combate contra uma tropa alemã nos campos da Itália. O mé-dia-metragem foi lançado em agosto e exibido em cinco capítulos no portal do Jornal Esta-do de Minas. Outra produção de destaque é o filme A montanha, rodado no inverno europeu entre dezembro de 2010 e março deste ano, com previsão de lançamento para o segundo semestre do ano que vem. Segundo o diretor Vicente Ferraz, “A montanha não é um típico filme de guerra. É a história de brasileiros, ita-lianos e alemães que se encontram durante o maior conflito do século 20. E esse inusitado encontro mostra que, mesmo durante a guerra, os aspectos humanos podem sobreviver”. Os documentários O Lapa Azul (2007), de Durval Jr., e Um brasileiro no Dia D (2006), dirigido por Victor Lopes e produzido e codirigido pelo baterista do Paralamas, João Barone, são ou-tros exemplos de produções temáticas sobre os veteranos brasileiros na Segunda Guerra.

A guerra em três momentos: antes do embarque para a Europa, os

pracinhas recebem a visita de Getúlio Vargas; chegando à Itália, em fevereiro

de 1945; o rigoroso frio também era um dos inimigos (abaixo)

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