PRÁTICAS LETRADAS GUARANI: produção e usos da escrita indígena
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7/21/2019 PRTICAS LETRADAS GUARANI: produo e usos da escrita indgena
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Eduardo Santos Neumann
PRTICAS LETRADAS GUARANI: produo e usos da escrita indgena(sculos XVII e XVIII)
Tese de Doutorado apresentada ao Programade Ps-Graduao em Histria Social daUniversidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessrios obteno dograu de Doutor em Histria Social
Orientadora: ProfaDraAndrea Viana Daher
Rio de Janeiro2005
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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAO-NA-PUBLICAO (CIP)BIBLIOTECRIOS RESPONSVEIS: Leonardo Ferreira Scaglioni
CRB-10 023/2004
Raquel da Rocha SchimittCRB-10/1138
N489T Neumann, Eduardo SantosPrticas letradas Guarani : produo e usos
da escrita indgena (Sculos XVII e XVIII) /Eduardo Santos Neumann. Rio de Janeiro,2005.
381 f.
Tese (Doutorado em Histria)Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Instituto de Filosofia e Cincias Sociais,Programa de Ps-Graduao em Histria Social.Rio de Janeiro, BR-RJ, 2005. Orientador: Prof.Dra. Andra Viana Daher.
1. Escrita indgena. 2. Guerra guarantica. 3.ndios guaranis. 4. Povos indgenas. 5. Lnguaguarani. 6. Lngua indgena. I. Ttulo.
CDD 572.98
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Eduardo Santos Neumann
PRTICAS LETRADAS GUARANI: produo e usos da escrita indgena(sculos XVII e XVIII)
Tese de Doutorado apresentada ao Programade Ps-Graduao em Histria Social daUniversidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessrios obteno dograu de Doutor em Histria Social
Aprovada em
_________________________________________ProfaDraAndrea Viana Daher (Orientadora)
_________________________________________Prof. Dr. Bernard Vincent (EHESS)
_________________________________________Prof. Dr. Arno Alvarez Kern (PUC-RS)
_________________________________________Prof. Dr. Pedro Puntoni (USP)
_________________________________________ProfaDraFrancisca L. Nogueira de Azevedo (UFRJ)
Rio de Janeiro
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Para Denise e Thales, em ordem alfabtica ede altura. Sem vocs nada disso seria possvelou faria sentido.
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AGRADECIMENTOS
A trajetria que envolve um trabalho de doutorado costuma ser longa e, por vezes,
cheia de angstias e vacilos. Ao longo do percurso que representa uma pesquisa acadmica,em geral, acrescentamos novas amizades e experincia ao curriculum vitae (e Lattes). A
possibilidade de completar esta etapa, e superar as adversidades que se apresentam, est
relacionada solidariedade de algumas pessoas e instituies.
Portanto, gostaria de aproveitar este espao para expressar meu agradecimento tanto
a essas pessoas quanto s instituies envolvidas nesse perodo de qualificao.
Inicio por minha orientadora, professora DraAndra Viana Daher, que no mediu
esforos em viabilizar o que foi necessrio execuo desta tese.Agradeo ao Programa de Ps-Graduao em Histria Social da UFRJ e ao seu corpo
docente. Nesse programa, as contribuies da professora Jacqueline Hermann, leitora das
primeiras verses do projeto que resultou nesta tese, foram valiosas. Aproveito para gradecer
a Sandra, secretria do PPGHIS, pela pacincia e ateno com as dvidas dos alunos
forasteiros.
Ao Departamento de Histria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pela
liberao de encargos docentes, condio fundamental para a consulta aos diversos arquivos e
bibliotecas que permitiram a realizao desse trabalho. Aproveito para recordar e agradecer a
dois colegas que iniciaram suas respectivas qualificaes na mesma poca e cidade, e que em
algumas oportunidades me deram guarida: Cludia Mauch e Luis Alberto Grij.
Capes/PICDT, pela concesso de uma bolsa de estudos que possibilitou arcar com
os custos dos deslocamentos que a pesquisa demandava. Capes agradeo especialmente a
concesso de uma bolsa do Programa de Doutorado com Estgio no Exterior (PDEE),
conhecida como bolsa-sanduche (em espanhol beca-bocadillo), que viabilizou a consulta
aos arquivos e bibliotecas espanholas, facultando o meu acesso ao universo documental,
sejam fontes primrias ou de parte da bibliografia que compem esta pesquisa. Capes e seu
corpo de funcionrios, desde j, o meu muito obrigado.
Durante minha estada em Madri contei com a co-orientao do professor Dr.
Fernando Bouza, catedrtico de Histria Moderna da Universidade Complutense de Madri,
que alm de sugestes muito oportunas ao trabalho sempre contribuiu de maneira
fundamental para viabilizar minhas atividades nas diferentes instituies de pesquisa
existentes na Espanha.Fernando, muchsimas gracias!
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Ainda na Espanha, fui muito bem recebido pelo professor Dr. Antonio Castillo
Gmez, professor titular junto Universidade de Alcal de Henares. O referido professor
permitiu gentilmente a minha presena, na qualidade de aluno ouvinte, s sesses de seu
seminrio de doutorado, Leer y escribir em el Siglo de Oro, a quem expresso meu enorme
agradecimento por esta oportunidade de interlocuo e pelo espao de reflexo que
constituram suas aulas. Gracias, Antonio.
Durante o perodo de permanncia na Espanha estabeleci contatos com
pesquisadores voltados temtica colonial ou indgena, como Capucine Bodin, professora em
Lille III (Frana), que me facilitou material e informaes de grande importncia. Em Madri
contei com a colaborao de Beatriz Vitar, pesquisadora argentina radicada na capital
espanhola h muitos anos, vinculada poca ao Centro de Estudios Hispnicos eIberoamericanos (Fundacin Carolina), que generosamente compartilhou comigo sua
experincia de pesquisa em temas correlatos (misses, jesutas, Amrica colonial), alm de
informaes utis a um recm-chegado.
Em Madri, passados dez anos, reencontrei um casal de amigos, Carmen Garrido e
Eduardo Sanchez, a quem agradeo os momentos agradavis en la granja e por expressarem
suas diferenas castelhanas e catals diante de minhas indagaes sobre uma Espanha to
diversa e plural. Vale, tios!Na Argentina, agradeo a Guillermo Wilde pela amizade e acolhida em Buenos Aires
e, principalmente, pela interlocuo referente aos temas missioneiros. Nessas ocasies
Guillermo facilitou-me caminhos quando dividimos impresses sobre as potencialidades
dessa rea de pesquisa, alm de ler e comentar alguns de meus trabalhos. Gracias, hombre.
No poderia deixar de mencionar o Instituto Anchietano de Pesquisa (So Leopoldo,
RS), e a sua secretria, Ivone, sempre muito amvel e atenciosa permitindo, meu acesso
biblioteca dessa instituio.Aproveito, igualmente, para agradecer ao Centro de Cultura Missioneira (CCM), em
Santo ngelo (RS), e sua coordenadora, Claudete Boff, pela disposio em colaborar com
minhas demandas de pesquisa e por permitir fotocopiar obras do seu acervo.
Gostaria de agradecer a Isabel Aguirre, diretora do Archivo General de Simancas
(Valladolid), por seu profissionalismo e competncia, alm do fato de ter facilitado o que
fosse necessrio para o meu acesso aos fundos documentais desse excelente arquivo.
Agradeo a Delicia Villagra-Batoux, que generosamente ocupou-se das primeiras
tradues que este trabalho requeria, vertendo do guarani missioneiro ou jesutico para o
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trabalho. E a Anglica Otazu, por aceitar o trabalho de traduo de outros documentos-chaves
para a redao desta tese.
A fase de redao e concluso deste trabalho, que costuma ser uma tarefa bastante
solitria, foi superada graas s palavras de estmulo e incentivo de algumas pessoas, s quais
gostaria de prestar meu agradecimento. Refiro-me, em ordem alfabtica, a: Artur Henrique
Franco Barcelos, Eduardo Salgado, Fbio Khn, Fabrcio Prado (distante geograficamente,
mas sempre em contato), e ao meu amigo e cumpadre Temstocles Cezar. Vocs, cada um
sua maneira, foram o apoio necessrio nos momentos mais crticos.
Este trabalho dedico a duas pessoas, meu filho Thales uma inspirao para pensar a
oralidade e os efeitos da escrita a partir de sua alfabetizao e minha esposa, Denise Jardim.
O apoio e carinho constante de Denise, aliados sua pacincia em me escutar, foramfundamentais para que chegasse o momento de redigir os agradecimentos. Agradeo a tua
disposio, sempre que possvel, em me acompanhar nas tantas viagens que esta pesquisa
demandou. Mas creio que esses foram os melhores momentos dessa longa jornada.
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Aquella frase que se cita siempre: Scriptamaner verba volat, no significa que la palabraoral sea efmera, sino que la palabra oral tienealgo de alado, de liviano; alado y sagrado,como dijo Platn.
Jorge Luis Borges
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RESUMO
NEUMANN, Eduardo Santos. Prticas letradas Guarani: produo e usos da escrita indgena(sculos XVII e XVIII). Rio de Janeiro, 2005. Tese (Doutorado em Histria Social)Programade Ps-Graduao em Histria Social, Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.
Este trabalho analisa os usos, funes e prticas da escrita indgena nas redues doParaguai nos sculos XVII e XVIII. A pesquisa visa demonstrar o valor conferido escrita
pelos Guarani como uma adeso s regras do jogo poltico e s estratgias de negociao,atravs do domnio dos cdigos escritos. Os documentos redigidos em guarani e,
posteriormente, em espanhol, possibilitam examinar a difuso da escrita nas redues.
A instruo letrada, indissocivel da catequese promovida nas redues,proporcionou aos ndios missioneiros as condies para produzirem novas formas deexpresso. Atravs das atividades religiosas e administrativas, houve um convvio com as
prticas letradas que produziram efeitos sobre toda coletividade. A alfabetizao nas reduesesteve limitada aos ndios mais aptos ou de maior confiana dos missionrios, ou seja, quelesque integravam a elite missioneira. O que se prope analisar so os aspectos relacionados escrita como uma prtica sociocultural, demonstrando em que circunstncias os Guaranifizeram uso da habilidade grfica ou recorreram aptido de outros para produzirem relatos.
O intenso uso da escrita por parte dos Guarani letrados foi verificado a partir dacelebrao do Tratado de Madri, em 1750, pelas monarquias ibricas. Este fato desencadeou areao escrita desses indgenas que, como mecanismo de protesto, redigiram vrios textos,
esgrimindo argumentos contrrios execuo da permuta das misses orientais pela Colniado Sacramento. Com o incio dos trabalhos de demarcao e o rompimento da aliana quesustentava as relaes entre as lideranas indgenas e os jesutas, os Guarani destinaram escrita uma finalidade poltica, como instrumento de seu autogoverno. Atravs do envio decartas e bilhetes, procuraram estabelecer redes de comunicao e organizar a resistnciamissioneira diante da presena das comisses demarcadoras. Aps a expulso dos jesutas, acapacidade alfabtica se apresenta de maneira desvinculda da reescrita religiosa. Oconhecimento das regras epistologrficas permitiu aos ndios estabelecer canais decomunicao diretamente com a administrao colonial. Atravs do envio de cartas ememoriais, procuravam atuar dentro do legalismo das regras escritas.
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ABSTRACT
NEUMANN, Eduardo Santos. Prticas letradas Guarani: produo e usos da escrita indgena(sculos XVII e XVIII). Rio de Janeiro, 2005. Tese (Doutorado em Histria Social)Programade Ps-Graduao em Histria Social, Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.
The aim of this thesis is to analyse the ways in which indigenous people fromParaguays Jesuit missions in the 16th and 17th centuries used the written word. This researchdemonstrates what the written word was worth to the Guarani. For the Guarani, using thewritten word was a way of playing Spains political game. The documents were first writtenin Guarani. Afterwards, they were also written in Spanish. Both types of documents give us
the opportunity to examine the spread of the written word in the missions. The teaching ofwriting and reading, always connected to religious instructions within the missions, gave theGuarani a new communication tool. Only those considered more capable and those the Jesuitstrusted the so be called elite was taught how to read and write. This research analyses thewritten word as a social and cultural aspect of life in the missions.
The number of letters and notes increased dramatically after Treaty of Madrid in1750. As a way of protesting, the Guarani wrote to argue against the exchange of Colonia doSacramento for the land in which the missions were located. As the work of fixing the
boundaries started and the alliance between the Jesuits and the Guarani ended, the indigenouspeople used the written word to manage and organize their villages. With letters and notes,there was an effort to build up a resistance against the demarcation groups. After the Jesuits
were expelled, the use of the written word lost its connection to the religious instruction. Dueto the fact that many Guarani were able to read and write, they managed to establish a directcommunication link with the representatives of the colonial power. In that sense, they playeda role recognized as legitimate by the Spanish crown.
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INSTITUIES CONSULTADAS
Argentina
A.G.N./BA Archivo General de la Nacin (Buenos Aires)B.N./BA Biblioteca Nacional (Buenos Aires)M.M. Museo Mitre (Buenos Aires)
Brasil
B.N./RJ Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro)B.P.R.S. Biblioteca Pblica do Rio Grande do Sul (Porto Alegre)C.C.M. Centro de Cultura Missioneira (Santo ngelo, RS)
I.A.P. Instituto Anchietano de Pesquisas (So Leopoldo, RS)I.H.G.B. Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro (Rio de Janeiro)I.H.G.R.S. Instituto Histrico e Geogrfico do Rio Grande do Sul (Porto Alegre)
Espanha
A.G.I. Archivo General de Indias (Sevilla)A.G.S. Archivo General de Simancas (Valladolid)A.H.N. Archivo Histrico Nacional (Madrid)B.H. Biblioteca Hispnica (Madrid)
B.N./M Biblioteca Nacional (Madrid)R.A.H. Real Academia de la Historia (Madrid)
Paraguai
A.N.A. Archivo Nacional de AsuncinM.A.B. Museo Andrs Barbedo (Asuncin)
Portugal
A.H.U. Arquivo Histrico Ultramarino (Lisboa)B.N./LSB Biblioteca Nacional (Lisboa)
Uruguai
A.G.N./MTV Archivo General de la Nacin (Montevideo)B.N./MTV Biblioteca Nacional (Montevideo)
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SUMRIO
Introduo ...............................................................................................................................13
Primeira parte: a razo grfica guarani
1 A lngua guarani ..................................................................................................................301.1 O guarani, lngua geral .......................................................................................................30
1.2 Escrita e antropologia: a razo grfica ...............................................................................33
1.3 A reduo gramatical da lngua guarani.............................................................................36
1.4 O guarani jesutico ou missioneiro .....................................................................................41
2 Os usos sociais da escrita guarani ......................................................................................48
2.1 Oralidade e escrita nas redues guarani............................................................................482.2 ndios principais e elite letrada: mestiagem cultural nas redues...................................56
2.3 O cabildo e as lideranas nativas: a tenso entre caciques e corregedores.........................61
2.4 A delegao das prticas letradas nas misses ...................................................................69
2.5 As congregaes e as nminas: espaos e formas de contatos com a escrita.....................76
2.6 Os usos da escrita: a visitao de Andrs de Rada e o controle das prticas letradas........79
2.7 Ladinos e bilingismo nas redues guarani......................................................................87
3 A produo escrita guarani ................................................................................................96
3.1.1 Materialidades e suportes da escrita guarani ...................................................................963.1.2 Copistas e imprensa nas redues .................................................................................102
3.1.3 Os textos impressos nas redues: autores, mediadores e leituras controladas.........105
3.2 As formas textuais e suas funes sociais ........................................................................111
3.2.1 As cartas ........................................................................................................................114
3.2.2 Os memoriais.................................................................................................................122
3.2.3 As atas de cabildo..........................................................................................................123
3.2.4 O dirio ..........................................................................................................................128
3.2.5 Narrativa histrica .........................................................................................................132
3.2.6 A diversificao das formas textuais .............................................................................1353.2.7 Os mayordomos escrevem.............................................................................................136
3.2.8 O relato de Nerenda.......................................................................................................139
3.2.9 O informe de Arazaye ...................................................................................................145
3.2.10 Os textos de Pasqual Yaguapo ....................................................................................147
3.3 Os novos usos da escrita: memria e temporalidade nas redues ..................................149
Segunda parte: escritofilia indgena
4 A demarcao de limites e os usos da escrita ..................................................................1654.1 O Tratado de Madri e o conflito nas redues..................................................................1654 2 R i it d t 169
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4.3 Mientras volaban correos por los pueblos: a escrita emancipada................................178
4.3.1 Cartas ao fogo: escrita e lealdade ..................................................................................187
4.3.2 As vantagens da escrita: as tomadas de decises ..........................................................190
4.4 O autogoverno dos Guarani: o poder de deciso indgena ...............................................193
4.4.1 A escrita epistolar dos cabildos: os comunicados oficiais ao governador.....................199
4.4.2 A palavra escrita e a palavra falada ...............................................................................202
5 A ecloso do conflito e a comunicao epistolar .............................................................2065.1 A primeira campanha nas redues ..................................................................................206
5.1.1 Contatos com os portugueses: a escrita mediando acordos...........................................207
5.1.2 Contatos com os espanhis: a escrita definindo aliados e rivais...................................215
5.1.3 Estratgias indgenas em tempos de armistcio .............................................................222
5.2 1756: a ecloso do conflito ...............................................................................................2245.2.1 A guerra guarantica...................................................................................................224
5.2.2 Resistncia nas redues orientais.................................................................................232
5.2.3 A manuteno da escrita: entre a desconfiana e a adeso............................................243
6 A expulso dos jesutas: funes da escrita indgena .....................................................2506.1 ARelao abreviada: as polmicas quanto aos documentos e a escrita indgena...........251
6.2 As manifestaes escritas dos Guarani diante da expulso (1768) ..................................254
6.2.1 Escrita e trajetrias nas redues...................................................................................260
6.3 Funes da escrita indgena no perodo ps-jesutico ......................................................2666.3.1 As listas .........................................................................................................................269
6.3.2 Escrita e liderana poltica.............................................................................................272
6.3.3 Todo el pueblo me oblig a escrivir con ellos a pedir...............................................273
6.3.4 Por mi y los demas del cavildo que no saven firmar: os secretrios .........................276
6.3.5 Certificados, recibos, razn .......................................................................................278
6.3.6 Os memoriais.................................................................................................................280
Consideraes finais .............................................................................................................291
Fontes primrias ...................................................................................................................296Manuscritas.............................................................................................................................296
Impressas ................................................................................................................................312
Referncias ............................................................................................................................317
Anexo
Lista de documentos indgenas (guarani missioneiro) ...........................................................342
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INTRODUO
I
Os ndios das redues, ao contrrio do que se pensa geralmente, sabiam escrever.
Em guarani, espanhol e mesmo latim. A elite letrada guarani, no sculo XVIII, escreveu com
freqncia e, por vezes, com maior desenvoltura do que os colonizadores hispano-americanos.
Neste trabalho foram analisados os usos, funes e prticas da escrita indgena nas
redues do Paraguai nos sculos XVII e XVIII. Mais precisamente, foram examinadas as
maneiras pelas quais os Guarani1apropriaram-se da escrita introduzida pelos missionrios, e
em que momentos produziram registros de suas experincias e inquietaes.A Provncia Jesutica do Paraguai, estabelecida em 1609, nos domnios meridionais
da Amrica de colonizao espanhola, apresentou resultados inesperados por sua poltica de
converso das parcialidades indgenas, principalmente os grupos guarani.
As Leyes de Indias prescreviam entre as suas disposies tanto a fundao de
pueblos de indios ou de reducciones quanto uma medida visando arregimentar as distintas
populaes indgenas em um mesmo local.2No Paraguai, os missionrios jesutas adotaram
uma prtica distinta da verificada nas demais regies hispano-americanas, estabelecendo suas
redues em reas afastadas das cidades coloniais para evitar o contato dos ndios conversos
com os moradores desses ncleos populacionais, o que julgavam poderia comprometer o xito
do seu projeto evangelizador.
Por sua localizao, justamente nos limites fronteirios entre os imprios ibricos na
Amrica do Sul, as redues estabelecidas no Paraguai, na primeira metade do sculo XVII,
foram alvo das investidas dos mamelucos del Brazil(bandeirantes) provenientes do planalto
1Em 1953, a Associao Brasileira de Antropologia (ABA) definiu normas a serem utilizadas para a grafia dosnomes de povos indgenas e suas lnguas. Foi convencionado que a grafia de etnnimos deveria ser com inicialmaiscula apenas no substantivo e sem flexo de gnero ou nmero. Neste trabalho optei por seguir essa antigaregra, mesmo que possa causar surpresa ao leitor deparar-se com uma expresso como os Guarani e no osguaranis.2A palavra reduo refere-se a reduzir, reconduzir a um local, significando tambm diminuio, podendoser facilmente compreendida pejorativamente. Sem dvida o princpio geral da reduo foi o de congregar empovoados vrias parcialidades indgenas. Quanto ao termo reduo, sua etimologia est relacionada colonizao hispnica, e h referncias pelo menos desde 1503. A reduo a expresso da poltica global decatequese espanhola. NasLeyes de Indias, h uma prescrio do que deveria ser a reduo, porm na histria daAmrica espanhola existiram muitas variantes. A partir de 1655 as redues passam a ser denominadasdoctrinas; contudo, essa distino no se apresenta de maneira clara na documentao. Geralmente, os termos
redues, misses ou pueblos de indios aparecem como sinnimos tanto nos documentos como nabibliografia sobre o tema. Nesse trabalho sero utilizados os termos redues ou misses para designar aspovoaes de indgenas guarani convertidos cristandade pelos missionrios jesutas
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de Piratininga, interessados em cativar os ndios aldeados.3 Essa situao levou o rei de
Espanha a atender o pedido dos jesutas, concedendo o direito de equipar os indgenas sob sua
tutela com armas de fogo, situao nica em toda Amrica colonial.
A condio fronteiria das redues administradas pelos jesutas, especialmente as
do Uruguai,4mantiveram os Guarani missioneiros em constante estado de alerta diante das
investidas promovidas pelos lusitanos em direo ao rio da Prata.
Superadas as adversidades iniciais, as redues guarani orientadas pelos padres
inacianos entraram em uma fase de desenvolvimento social e material. Alm da orientao
religiosa os ndios tambm receberam instruo nas artes e ofcios, sendo capacitados em
tarefas intelectuais e manuais.
As misses guarani vivenciavam um crescimento acentuado, tanto de ordemeconmica como demogrfica.5Em meados do sculo XVIII a Provncia Jesutica, que nunca
teve as suas fronteiras claramente definidas, contabilizava aproximadamente 30 povoados de
indgenas cristianizados.6Os resultados positivos atingidos nas redues foram decorrentes
3Para uma leitura renovada das expedies paulistas voltadas ao apresamento de indgenas, e rompendo com averso convencional da historiografia brasileira quanto ao papel dos bandeirantes como responsveis pelaexpanso territorial da Amrica portuguesa, ver: MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: ndios e
bandeirantes nas origens de So Paulo. So Paulo: Companhia das Letras, 1994.4 Antonio Sepp, jesuta missioneiro responsvel pela diviso da reduo de So Miguel e posteriormente afundao de So Joo em 1697, possua conhecimento da condio fronteiria do povoado recm-instalado e,segundo Werner Hoffman, ms de medio siglo haba pasado desde las ltimas incursiones de los paulistas. Sinembargo el misionero, que no en balde haba estudiado la historia de las misiones, nunca olvidada que SanJuan era una reduccin fronteriza. No es de extraar, entonces, que formara inmediatamente despus deconstituir el pueblo, una milicia de mosqueteros, de piqueteros, de arqueros y gente armada de boleadoras .(SEPP, Antonio. Continuacin de las labores apostlicas. Edicin crtica de las obras del padre a cargo deWerner Hoffman. Buenos Aires: EUDEBA, 1973. t. 2, p.77).5 A populao dessas redues em meados do sculo XVIII atingiu aproximadamente a cifra de 150 milhabitantes. O crescimento demogrfico estava relacionado ao nvel de vida e aos recursos disponveis aosGuarani missioneiros, tais como alimentao, vesturio e medidas sanitrias. Para uma descrio e dadospormenorizados das condies gerais desse crescimento, ver: MAEDER, Ernesto. La poblacin y el nmero de
reducciones: nivel de vida. In: CARBONELL DE MASY, Rafael. Estrategias de desarrollo rural en los pueblosGuaranes (1609-1767). Con las colaboraciones indicadas de los Dres. Teresa Blumers y Ernesto J. A. Maeder.Barcelona: A. Bosch, 1992a. (Monografias Economia Quinto Centenario). p. 91-111.6 Apesar dessas redues serem conhecidas historicamente como Trinta Povos Missioneiros, no devemosimagin-las como o resultado de uma ocupao idealizada. No ltimo quarto do sculo XVII essas reduesestavam estabilizadas, atingindo o nmero de 22 povoaes, na sua maioria localizadas entre os rios Paran eUruguai. Mudanas exgenas organizao das redues determinaram a ampliao da rea de catequese, quefoi estendida margem esquerda do rio Uruguai, s terras conhecidas como Banda Oriental. A ocupao desseterritrio foi decorrncia de interesses geopolticos, expressos no intento de assegurar esta rea de fronteira aoimprio espanhol diante dos interesses expansionistas lusitanos em direo ao rio da Prata. Assim, em 1682, instalada a reduo de So Borja; cinco anos mais tarde so transferidas trs redues da margem direita do rioUruguai para a margem oriental: So Nicolau, So Lus e So Miguel. Em 1690, a partir da diviso da reduode Santa Maria Maior, fundada So Loureno e anos mais tarde, em 1697, estabelecida a reduo de So Joo
a partir da diviso de So Miguel, devido ao seu crescimento populacional. Em 1707 foi fundada Santo ngelo,totalizando os sete povos da Banda Oriental. Contudo, somente em 1718, com o estabelecimento de So Cosmee Damio as redues atingiram o nmero de 30
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das medidas polticas, sociais e culturais visando envolver os Guarani e coopt-los como
participantes dessa nova realidade.7
Nesse aspecto, a escrita desempenhou papel de destaque nas estratgias de catequese
no momento de estabelecimento das redues. O domnio dos idiomas indgenas, por parte
dos missionrios, aliado alfabetizao praticada com segmentos da populao missioneira
constituram-se em medidas decisivas para o xito da evangelizao no Paraguai. Porm,
mesmo diante desses procedimentos, a historiografia sobre as misses guarani, durante muito
tempo, esteve condicionada pela idia de que esses ndios, durante a sua vida em reduo, no
elaboraram registros escritos. A documentao produzida pelos jesutas seria, assim, a
principal forma de testemunho dessa experincia missional.8
Todavia, essa avaliao deve ser contraposta, por exemplo, ao fato de que osprprios missionrios, ao executarem seus trabalhos de evangelizao, valorizaram o ensino
das artes y ofciosaos seus tutelados, habilitando-os, dessa forma, em vrias tarefas, como a
de copiar e, at mesmo, de escrever documentos. Nesse aspecto, so de grande valia as
contribuies presentes nos trabalhos de Serge Gruzinski voltados para a abordagem das
manifestaes dos indgenas diante dos modelos de conduta e pensamento introduzidos pelos
europeus, destacando as permeabilidades culturais resultantes do contato entre a cultura do
colonizador e a cultura indgena. Em seus trabalhos, Gruzinski problematiza importantescategorias dadas como naturais, enfatizando as adaptaes e reapropriaes praticadas pelos
ndios diante dos modelos da cultura ocidental.9
Assim, a instruo alfabtica promovida nas redues, inicialmente restrita aos
caciques e aos ndios considerados mais aptos pelos jesutas, proporcionava as condies para
os Guarani produzirem novas formas de expresso. Portanto, diante de situaes diferenciadas
7 A criao dos cabildos indgenas como instituies locais, nos mesmos moldes dos existentes nas cidadeshispano-americanas, foi outra medida que contribuiu para integrar, por exemplo, os caciques nova ordem
poltica. Ver: KERN, Arno Alvarez. Misses: uma utopia poltica. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982, p. 17-81.8Como se pode imaginar, os trabalhos elaborados pelos jesutas nos sculos XVII e XVIII esto caracterizadospor uma tica voltada para exaltar os feitos da Companhia de Jesus em terras paraguaias, o que equivale a umadescrio apologtica e, em muitos casos, o estilo hagiogrfico predominante. As excees so as obrasescritas pelos jesutas no exlio, aps a sua expulso. Ver a esse respeito: CARBONELL DE MASY, Rafael.Estrategias de desarrollo rural en los pueblos Guaranes (1609-1767). Con las colaboraciones indicadas de losDres. Teresa Blumers y Ernesto J. A. Maeder. Barcelona: A. Bosch, 1992. (Monografias Economia QuintoCentenario), p. 8-13.9Ao analisar o caso do Mxico colonial, Gruzinski recorreu ao conceito de ocidentalizao para descrever asreaes indgenas aos valores e comportamentos introduzidos pelos colonizadores, resultando na reestruturaodas formas de pensamento indgena que deflagraram a mestiagem cultural (GRUZINSKI, Serge. Lacolonizacin de lo imaginario: sociedades indgenas y occidentalizacin en el Mxico espaol: siglos XVI-
XVIII. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1991; GRUZINSKI, Serge. La guerra de las imgenes: deCristbal Coln a Blader Runner (1492-2019). Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1995; GRUZINSKI,Serge O pensamento mestio So Paulo: Companhia das Letras 2001)
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de contato com o universo letrado, as potencialidades da cultura escrita eram acessveis
queles que integravam a elite missioneira, no caso corregedores, capites, mayordomos
(administradores) e secretrios, enfim, os cabildoiguara (cabildantes). Tambm havia os
professores indgenas que ensinavam os demais a ler e a escrever alm dos maestros de
capilla, encarregados do ensino musical. As atividades de escrita costumavam estar
conjugadas com as artes musicais, integrando as artes y oficiosministradas nas redues. Em
suma, mesmo de forma seletiva foi facultado aos Guarani o acesso alfabetizao. A partir
desse convvio com as prticas de escrita, apesar do controle exercido pelos jesutas, esses
ndios, em determinadas ocasies, serviram-se da sua capacidade letrada de maneiras, muitas
vezes, inesperadas.
O meu interesse em estudar as prticas letradas dos Guarani acompanha, de certomodo, a minha trajetria acadmica, que remonta experincia adquirida como pesquisador
na temtica colonial rio-platense.10Assim, o tema desta tese insere-se em um debate mais
amplo que vem sendo feito sobre o passado missioneiro, centrado, sobretudo, nas dinmicas
socioculturais. Este trabalho aproxima-se da etno-histria a fim de buscar uma maior
interlocuo com a antropologia e com as indagaes sobre a prpria natureza dos contatos
culturais, de modo a compreender como os Guarani reorganizaram suas atitudes e seus
costumes diante das novas demandas e desafios da sociedade colonial.Nesse aspecto, as contribuies de Bartomeu Meli, tanto no campo da lingstica
quanto no da antropologia, so referncias obrigatrias e presentes neste trabalho. Meli
inicialmente dedicou sua ateno para a criao de uma lngua crist nas redues,
estabelecida a partir da poltica lingstica implantada pelos missionrios. A abrangncia
sociocultural da lngua guarani no Paraguai colonial foi decorrncia de mudanas e
transformaes nos valores semnticos do idioma.11 Recentemente, Meli abordou os
documentos escritos pelos Guarani como fontes para a histria paraguaia.
12
Entretanto, nochega a contemplar os usos e prticas relacionados com a escrita.
10NEUMANN, Eduardo Santos. O trabalho guarani missioneiro no rio da Prata colonial 1640/1750. PortoAlegre: Martins Livreiro, 1996. 156 p; NEUMANN, Eduardo Santos. Fronteira e identidade: confrontos luso-guarani na Banda Oriental 1680/1757. Revista Complutense de Historia de Amrica, Madrid, n. 26, p. 73-92,2000a.; NEUMANN, Eduardo Santos. A fronteira tripartida: a formao do continente do Rio Grande sculoXVIII. In: GRIJ, Luiz Alberto; KUHN, Fbio; GUAZZELLI, Cesr Augusto Barcellos; NEUMANN, EduardoSantos (Org.).Captulos de histria do Rio Grande do Sul. Prefcio de Helga Iracema Landgraf Piccolo. PortoAlegre: Editora da UFRGS, 2004. p. 25-46.11MELI, Bartomeu. La cration dun langage chrtien dans les rductions des Guarani au Paraguay. Tese(Doutorado)Facult de Thologie, Universit de Strasbourg, Strasbourg, 1969. 2 v.; MELI, Bartolomeu. La
lengua Guaran del Paraguay: historia, sociedad y literatura. Madrid: MAPFRE, 1992.12 MELI, Bartomeu. La reduccin segn los Guaranes: dichos y escritos. In: GADELHA, Regina A. F.Misses Guarani: impacto na sociedade contempornea So Paulo: Educ 1999 p 55-64 ; MELI Bartomeu
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Assim, a partir do impulso gerado por trabalhos de antroplogos,13tem-se valorizado
a anlise de algumas questes at ento pouco exploradas, como as das resistncias iniciais
evangelizao14 e os modos pelos quais os Guarani viveram a reduo, atravs da
reelaborao de seus rituais ou de seus padres de comportamento.15Nos ltimos anos, foram
elaboradas pesquisas enfatizando o papel desempenhado por esses indgenas enquanto agentes
sociais, privilegiando as estratgias adotadas frente s situaes de conflitos e o seu papel
como lideranas.16
Enfim, esses trabalhos tm apresentado como prerrogativa a transformao cultural
resultante da vida em reduo, enfatizando as adaptaes e recriaes a partir da perspectiva
indgena e estabelecendo um contraponto imagem de passividade comumente associada ao
comportamento dos Guarani.17Todavia, muito h de ser feito ainda no campo da histria, no
Escritos guaranes como fuente documentales de la historia paraguaya. Discurso de entrada como miembro denmero en la Academia Paraguaya de la Historia, 15 abr. 2004. Dactiloescrito. 30 p.13Trata-se, principalmente, dos trabalhos da antroploga Branislava Susnik e de Pierre e Hlene Clastres, quedurante muitos anos foram referncias obrigatrias em qualquer estudo sobre os Guarani. Para uma crtica sarmadilhas que a leitura de clssicos dos Guarani pode pregar aos mais desavisados nefitos, diante dasgeneralizaes e imprecises contidas nos trabalhos desses autores, ver: SANTOS, Maria Cristina dos. Clastres eSusnik: uma traduo do Guarani de papel. In: GADELHA, Regina. A. F. Misses Guarani: impacto nasociedade contempornea. So Paulo: Educ, 1999. p. 205-219.14 SANTOS, Maria Cristina dos. Os movimentos guarani de resistncia colonizao da bacia platina :1537/1660. Dissertao (Mestrado em Histria)Ps-Graduao em Histria, PUCRS, Porto Alegre, 1988.15FLECK, Eliane Cristina Deckmann. Sentir, adoecer e morrer: sensibilidade e devoo no discurso missioneirojesutico do sculo XVII. Tese (Doutorado em Histria)Programa de Ps-Graduao em Histria, PontifciaUniversidade Catlica, Porto Alegre, 1999. 353 p.; MARTINS, Maria Cristina Bohn. A festa Guarani nasredues: perdas, permanncias e recriao. Tese (Doutorado em Histria)PUCRS, Porto Alegre, 1999. 304 p.;MARTINS, Maria Cristina Bohn. Sobre as prticas guarani nas Redues.Histria, So Leopoldo, v. 8, n. 9, p.104-128, 2004.16Trata-se, especialmente, dos trabalhos realizados na Seccin de Etnohistoria, vinculada ao Departamento deCiencias Antropolgicas da Faculdad de Filosofa y Letras de la Universidad de Buenos Aires, coordenado pelaDra Ana Maria Lorandi. Ver AVELLANEDA, Mercedes. Orgenes de la alianza jesuita-guaran y suconsolidacin en el siglo XVII. Memoria Americana: Cuadernos de Etnohistoria, Buenos Aires: Instituto deCiencias Antropolgicas, Facultad de Filosofia y Letras, UBA, n. 8, p. 173-202, 1999; HERNNDEZ, JuanLuis. Desobediencia y fuga: estrategias guaranes tras la expulsin de los jesuitas (1768-1799). In: JORNADASINTERNACIONALES SOBRE LAS MISIONES JESUTICAS, 7., 1998, Resistencia. Anales Resistencia:
Instituto de Investigaciones Geohistoricas/Conicet: UNNE, Facultad de Humanidades, 1998. p. 281-297;HERNNDEZ, Juan Luis. Tumultos y motines: la conflictividad social en los pueblos guaranes de la reginmisionera (1768-1799). Memoria Americana: Cuadernos de Etnohistoria, Buenos Aires: Instituto de CienciasAntropolgicas, Facultad de Filosofia y Letras, UBA, n. 8, p. 83-100, 1999; WILDE, Guillermo. La actitudguaran ante la expulsin de los jesuitas: ritualidad, reciprocidad y espacio social. Memoria Americana:Cuadernos de Etnohistoria, Buenos Aires: Instituto de Ciencias Antropolgicas, Facultad de Filosofia y Letras,UBA, n. 8, p. 141-173, 1999; WILDE, Guillermo. Los guaranes despus de la expulsin de los jesuitas:dinmicas polticas y transacciones simblicas. Revista Complutense de Historia de Amrica, Madrid, n. 27, p.69-106, 2001; WILDE, Guillermo. Antropologia histrica del liderazgo Guaran misionero (1750/1850). Tese(Doutorado)Facultad de Filosofa y Letras, Universidad de Buenos Aires, Buenos Aires, 2003a; WILDE,Guillermo. Poderes del ritual y rituales del poder: un anlisis de las celebraciones em los pueblos jesuticos deGuaranes.Revista Espaola de Antropologa Americana, Madrid, v. 33, p. 203-229, 2003b.17 oportuno referir o comentrio de John Manuel Monteiro a respeito do lugar dos Guarani em relao a
pesquisa histrica no Brasil at o final dos anos 80 (do sculo passado): De modo geral a historiografia sobretudo a brasileira tem reservado ao ndio o papel de figurante mudo ou vtima passiva dos processoscoloniais que o envolveram (MONTEIRO John Manuel Os guaranis e a histria do Brasil meridional: sculos
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que diz respeito anlise do impacto ocasionado pelas prticas da escrita na organizao
social das redues e sua relao com os usos sociais destinados instruo alfabtica por
parte dos Guarani missioneiros.
A destreza atingida pelos Guarani na prtica da escrita, inclusive, lhes permitiu
elaborar obras de carter devocional18 livros, na sua maioria com finalidade litrgica ou
catequtica , participando diretamente na elaborao de vocabulrios, catecismos e
gramticas.19 Escreveram documentos na forma de bilhetes, cartas e memoriais, alm de
narrativas pessoais. Esses documentos redigidos em guarani e, posteriormente, em espanhol,
localizados em diferentes arquivos, bibliotecas e colees, indicam a necessidade de revisar
os diagnsticos existentes quanto difuso da escrita nas redues guarani, nos sculos XVII
e XVIII.Nesse aspecto, apesar da relevncia da escrita nas redues desde os momentos
iniciais da evangelizao, como parte das estratgias de catequese, como j foi dito, no h
estudos que analisem as apropriaes efetuadas pelos ndios diante da alfabetizao. Mesmo
que essa instruo tenha sido limitada e acessvel somente a uma elite, relacionada s
atividades religiosas e administrativas, o convvio com as prticas letradas produziu efeitos
sobre toda a coletividade.
A escritofilia guarani foi deflagrada durante o perodo de conflitos nas redues,chamando a ateno o nmero de bilhetes, cartas e avisos trocados entre indgenas, jesutas e
autoridades coloniais. O uso intenso da escrita pelos Guarani letrados foi verificado a partir da
celebrao do Tratado de Madri, em 1750, pelas monarquias ibricas. Esse fato desencadeou
uma reao escrita dos ndios, que como mecanismo de protesto redigiram vrios textos,
XVI-XVII. In: CUNHA, Manoela Carneiro da.Histria dos ndios do Brasil. So Paulo: Companhia das Letras:Secretaria Municipal de Cultura: Fapesp, 1992, p. 476). Certamente, essa avaliao sofreu alteraes nos anos 90e incio deste milnio, a partir de pesquisas recentes que tm procurado restituir o protagonismo dos indgenas,
principalmente no perodo colonial. Ver: ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Metamorfoses indgenas:identidade e cultura nas aldeias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003; POMPA, Cristina.Religio como traduo: missionrios, Tupi e Tapuia no Brasil colonial. Tese (Doutorado em CinciasSocias)Unicamp, Campinas, 2001; VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos ndios: catolicismo e rebeldia no Brasilcolonial. So Paulo: Companhia das Letras, 1995.18No sculo XVII, segundo uma das fontes da poca, os Guarani j estavam exercitando sua instruo alfabtica.Por meio do jesuta Francisco Jarque, que compilou informaes de outros religiosos, somos informados que umcacique da reduo de Loreto comps platicas y sermones en su lengua e, uma vez concluda a redao dossermes, ofereceu aos padres seus textos (JARQUE, Francisco. Insignes misioneros de la Conmpaia de Jessen la Provincia del Paraguay. Pamplona: Joan Micoan, 1687, p. 361).19As primeiras produes textuais visavam a catequese, servindo de instrumento para a converso. Nos sculosXVI e XVII, havia uma co-extensividade entre duas formas textuais, os catecismos e as gramticas. Asgramticas, alm de promover a codificao do guarani, estabelecendo novas categorias, proporcionavam
lngua indgena um estatuto semelhante ao das lnguas vernculas (DAHER, Andra. crire la langue indigne:la grammaire Tupi et les catchismes bilingues au Brsil (XVI sicle). Mlanges de lcole Franaise de Rome.Italie et Mditerrane Roma v 111 n 1 p 231-250 1999)
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esgrimindo argumentos contrrios execuo da permuta das misses orientais pela Colnia
do Sacramento.
Atualmente, os estudos sobre a escrita tm sinalizado o impacto dessa tecnologia nas
maneiras de pensar e traduzir realidades socioculturais.20Em funo disso, nesta tese h uma
tenso constante entre a idia de uma passividade dos ndios, afirmada pela historiografia
sobre o perodo, e a anlise da ao de uma elite ilustrada com sua heterogeneidade e suas
clivagens internas. Diante dos usos estratgicos destinados alfabetizao nas redues, os
Guarani missioneiros no parecem mais os mesmos indgenas merc de mediadores. So
eles, homens letrados, que interagem de modo direto e decisivo como sujeitos polticos no
mundo colonial. A escrita civiliza e, nesse sentido, os ndios letrados passam a atuar de
forma gradativa na tomada de decises e na interao com diferentes agentes sociais. Esta tesepretende demonstrar em que condies e circunstncias os indgenas escreveram.
II
Durante muito tempo a histria da escrita esteve circunscrita a uma descrio dos
materiais, refm da paleografia de cunho positivista, desconectada dos contextos sociais de
produo. Estava to-somente interessada nos documentos emanados do poder poltico ereligioso, sem contemplar, por exemplo, documentos de carter privado, ou relativos s
atividades cotidianas. Nas ltimas dcadas foram verificadas mudanas significativas nesta
rea de conhecimento, no sentido do estudo global da histria dos usos e das prticas do
escrito.
O desenvolvimento alcanado por outras disciplinas, como sinalizou Giorgio
Cardona, possibilitou abordar com maior segurana aspectos externos da escrita, ampliando as
possibilidades de anlise relacionadas aos produtos grficos.
21
Nesse sentido, esta tese tambm se beneficiou da contribuio de outras disciplinas,
particularmente as dos antroplogos e dos lingistas, posto que os Guarani desconheciam
20Para uma aproximao a este tema ver: CASTILLO, GMEZ, Antonio (Org). Historia de la cultura escrita:del Prximo Oriente antiguo a la sociedad informatizada. Gijn: Trea, 2002; ESCOLANO BENITO, Agustn(Dir.). Leer y escribir en Espaa: doscientos aos de alfabetizacin. Madrid: Fundacin Germn SnchezRuiprez, 1992.; PRATIQUES decriture.Annales: Histoire, Sciences Sociales, Paris, n. 4-5, juil./oct. 200121Segundo Cardona, a etnolingstica e a sociolingstica permitiram um amadurecimento dos estudos a respeito
da escrita, possibilitando a formao de especialistas dos aspectos antropolgicos e sociolgicos dos sistemas decomunicao grfica (CARDONA, Giorgio Raimondo. Antropologa de la escritura. Barcelona: Gedisa, 1994,p 9)
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inicialmente a escrita, e, uma vez cristianizados e vivendo em reduo, passaram a conviver
com o impacto da alfabetizao e das inovaes operadas com a aquisio da cultura letrada.22
Este trabalho utiliza como referencial terico as noes presentes histria cultural,
que tem apresentado, nos ltimos anos, caminhos inovadores para a investigao histrica. O
historiador Roger Chartier23prope repensar a questo do consumo cultural no apenas a
partir de uma distribuio desigual dos objetos escritos, mas no tocante aos seus usos
diferenciais, aplicando a noo de apropriao proposta por Michael de Certeau. Dessa
maneira, Chartier problematiza os critrios segundo os quais so estabelecidas as clivagens, e
os distintos empregos da pluralidade dos materiais da cultura escrita.
Por sua parte, Michel de Certeau procurou explicitar as operaes realizadas por
grupos ou indivduos considerados submetidos como capacidades inventivas.24Atravsdo exame dessas criaes cotidianas,25 possvel entender de que modo os Guarani
adaptaram a tecnologia da escrita s suas necessidades e destinaram-lhe outras funes, apesar
da vigilncia exercida sobre eles.
Ainda, segundo Michel de Certeau, escrever uma prtica mtica moderna, pois
permite reorganizar aos poucos os domnios por onde se estendia a ambio ocidental de fazer
sua histria. Assim, a escrita vista como uma forma de progresso, possibilitando um
afastamento, um apartar-se do mundo mgico das vozes e da tradio (oral). Dessa maneira,se esboa uma fronteira (e uma frente) da cultura ocidental.26Com isso, uma nova forma de
22 Essas mudanas de registro j foram pensadas por antroplogos, como Jack Goody, que estabeleceu asdiferenas gerais entre sociedade com e sem escrita (GOODY, Jack.A domesticao do pensamento selvagem.Lisboa: Editorial Presena, 1988).23CHARTIER, Roger. A histria cultural: entre prticas e representaes. Lisboa: Difel, 1988; CHARTIER,Roger. As prticas da escrita. In: ARIS, Philippe; CHARTIER, Roger (Org.). Histria da Vida Privada 3: daRenascena ao Sculo das Luzes. So Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 113-162; CHARTIER, Roger.Libros, lecturas y lectores en la Edad Moderna. Madrid: Alianza Editorial, 1993; CHARTIER, Roger. A histriahoje: dvidas, desafios, propostas. Estudos Histricos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, p. 97-113, 1994a;
CHARTIER, Roger. A ordem dos livros. Braslia: Editora da UnB, 1994b; CHARTIER, Roger. Leituras eleitores populares da Renascena ao perodo clssico. In: CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER Roger.Histria da leitura no mundo ocidental. So Paulo: tica, 1999. v. 2, p. 117-134; CHARTIER, Roger. Culturecrite et littrature lge moderne. Annales: Histoire, Sciences Sociales, Paris, n. 4-5, p. 783-802, juil./oct.2001a; CHARTIER, Roger. Cultura escrita, literatura e histria. Porto Alegre: Artmed, 2001b; CHARTIER,Roger. (Org.). Prticas da leitura. 2. ed. So Paulo: Estao Liberdade, 2001c; CHARTIER, Roger. Leituras eleitores na Frana do Antigo Regime. So Paulo: Unesp, 2004.24CERTEAU, Michel de.A inveno do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petpolis:Vozes, 1994.25Apesar de haver mostras de sua inventividade, as informaes provenientes dos jesutas, em geral, apenasenfatizavam a capacidade de imitao dos Guarani, especialmente na execuo de trabalhos manuais, sem sereferir a suas potencialidades criativas. Segundo o padre Aguilar, []fueron excelentes copistas-escultores ecopistas-pintores [] pero faltos de toda creatividad y tambien de una adecuacin espontanea [] (SUSNIK, Branislava.Los aborgenes del Paraguai, II: Etnohistoria de los Guaranes: poca colonial. Asuncin:
Museo Etnografico Andrs Barbedo, 1979-1980, p. 255). Esta polmica est muito difundida no que se refere msica e escultura.26 CERTEAU 1994 p 224
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configurar as diferenas culturais se impe, pois se alteram as possibilidades de registro dos
acontecimentos.
necessrio levar em conta que o fato de ler na Amrica colonial no implicava
obrigatoriamente o domnio da escrita, o que dificulta igualmente especificar distines entre
competncias dspares. Para determinar o nmero de provveis leitores, os historiadores tm
recorrido quantificao de livros e textos como indicadores do nvel de alfabetizao. Certas
potencialidades das prticas letradas, todavia, esto bem alm dos ndices mensurveis de
alfabetizao, remetendo, portanto, s diferentes formas de apropriao do texto pelo leitor. A
preocupao de Chartier, por exemplo, em definir quem eram os leitores populares no Antigo
Regime possibilitou apontar os diferentes usos das leituras e dos textos. Exatamente por causa
da definio a prioride partilhas sociais relacionadas ao consumo cultural, Chartier afirmaque a histria cultural deve dar conta de determinar as classificaes e excluses numa dada
sociedade, priorizando a anlise dos processos pelos quais se constri o sentido.27
Outra referncia terica importante deste trabalho so as anlises de Armando
Petrucci, que tem dedicado sua ateno s potencialidades e aos usos da escrita, buscando
extrair dos materias escritos informaes sobre as funes que cada produto grfico assume
em diferentes sociedades, rompendo com uma viso esttica da histria da escrita.28
A escrita, inserida em contextos mais amplos, permite desentranhar dos materiasescritos distintas intenes que nortearam o ato de escrever e as suas relaes com o poder.
Concebida nesses termos, a cultura escrita reveladora dos valores e condutas de uma
determinada poca. Estudos relacionados s prticas da escrita tm tido contribuies
importantes na Espanha, onde os trabalhos de Francisco M. Gimeno Blay, Fernando J. Bouza
lvarez e Antonio Castillo Gmez tm trazido inovaes instigantes ao explorem os
parmetros relacionados escrita e seus vnculos com diferentes demandas sociais.
Francisco M. Gimeno Blay, partindo de sua formao de palegrafo, investiu emuma reviso histrica da paleografia, considerada tradicionalmente como uma cincia
auxiliar. Interessado em renovar o conceito e a abrangncia dessa disciplina, tem formulado e
27CHARTIER, 1988, p .16.28Para uma viso geral da produo desse autor, ver: PETRUCCI, Armando. Alfabetismo, escritura, sociedad.
Prlogo de Roger Chartier y Jean Hbran. Barcelona: Gedisa, 1999a; PETRUCCI, Armando; GIMENO BLAY,Francisco M. (Org.). Escribir y leer en Occidente. Valencia: Universidad de Valencia, Departamento de Historiade la Antiguedad y de la Cultura Escrita 1995
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aplicado sua proposta a partir dos parmetros de uma historia sociocultural da cultura
escrita.29
J os trabalhos de Fernando J. Bouza lvarez tm apontado para a crescente
centralidade das prticas de escrita no comeo da Idade Moderna particularmente a
praticada pela elite levando-o a definir o perodo como o de uma civilizao escrita.30A
monarquia hispnica, ao procurar exercer o seu poder e assim assegurar a homogenizao
religiosa do seu imprio, conferiu importncia comunicao escrita e s publicaes
impressas.31Contudo, o recurso imprensa no destronou a cultura manuscrita.32
Antonio Castillo Gmez, por sua vez, tem investigado as expresses grficas
presentes sociedade castelhana a partir de diferentes modalidades de textos, analisando
distintas formas de registro, tais como censos, escritos expostos ou cartazes fixados em portasde igrejas.33 Este autor, igualmente, tem dedicado ateno escrita epistolar,34 como a
29Os trabalhos de Francisco M. Gimeno Blay tm aplicado para o caso espanhol as perspectivas abertas pelosestudos italianos sobre alfabetizao e cultura escrita, enfatizando as condies sociais da escrita. Ver: GIMENOBLAY, Francisco M. Scripta manent: materiales para una historia de la cultura escrita. Valencia: Universitad deValencia: Seminari Internacional dEstudis sobre la Cultura Escrita, 1998; GIMENO BLAY, Francisco M.Quemar libros qu extrao placer!Valencia: Universitad de Valencia: Seminari Internacional dEstudis sobrela Cultura Escrita, 2001a. 32 p. ; GIMENO BLAY, Francisco M. Conservar la memoria, representar la sociedad.Signo: revista de Historia de la Cultura Escrita, Alcal de Henares: Universidad de Alcal de Henares, v. 8, p.
275-293, 2001b.30Fernando J. Bouza lvarez utiliza o termo civilizao escrita, para definir a crescente importncia que osmonarcas europeus atriburam aos recursos grficos para a afirmao do seu poder, pois essa tecnologia permitiapreservar os conhecimentos, e transmitir ou provar algo de forma mais eficiente, frente oralidade ou simagens. Sendo que a forma de comunicao escrita, aliada tipogrfica, impregnou toda a sociedade,inclusive os iletrados (BOUZA LVAREZ, Fernando J. Del escribano a la biblioteca: la civilizacin escritaeuropea en la Alta Edad Moderna (siglos XV-XVII). Madrid: Sntesis, 1992, p. 31).31 As medidas adotadas pelos monarcas espanhis para otimizar o gerenciamento dos seus vastos domniosestiveram amparadas na comunicao escrita e acabaram produzindo uma paulatina escriturizao, afetando dediferentes maneiras toda a sociedade (BOUZA LVAREZ, Fernando J. Imagen y propaganda: captulos dehistoria cultural del reinado de Felipe II. Madrid: Akal, 1998; BOUZA LVAREZ, Fernando J. Comunicacin,conocimiento y memoria en la Espaa de los siglos XVI y XVII. Salamanca: Seminario de Estudios Medievales yRenacentistas, 1999).32Apesar da difuso dos textos impressos, a posse de livros manuscritos manteve-se arraigada entre a nobreza,como uma forma de distino. Com o advento da imprensa ocorre uma democratizao no acesso s publicaes,rompendo com a hierarquia existente no Antigo Regime, possibilitando constituir novos pblicos (BOUZALVAREZ, Fernando J. Corre manuscrito: una histria cultural del Siglo de Oro. Madrid: Marcial Pons,Ediciones de Historia, 2001).33 Os trabalhos de Castillo Gmez tm procurando descrever atravs dos materias escritos, sejam elespermanentes ou efmeros, os significados relacionados presena da escrita, indagando a respeito dos efeitos daalfabetizao entre as camadas mdias e subalternas, principalmente nos espaos urbanos (CASTILLO GMEZ,Antonio. Escrituras y escribientes: prcticas de la cultura escrita en una ciudad del renacimiento. Las Palmas deGran Canaria: Gobierno de Canarias, Fundacin de Enseanza Superior a Distancia, 1997. 440 p.).34A comunicao epistolar assume um papel decisivo na Idade Moderna, quando verificado um aumento novolume de missivas. Entretanto, as cartas ordinrias e cotidianas so preferidas em detrimento dascorrespondncias nobilirias (CASTILLO GMEZ, Antonio. Del tratado a la prctica: la escritura epistolar en la
Edad Moderna. In: SEZ SANCHEZ, Carlos; CASTILLO GMEZ, Antonio (Ed.). La correspondencia en laHistoria: modelos y prcticas de la escritura epistolar. Madrid: Calumbur, 2000. (Volume I: Actas del VICongreso Internacional de Historia de la Cultura Escrita) p 79-107)
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praticada pelos grupos subalternos no Sculo de Ouro espanhol.35Por meio de uma anlise de
diferentes tipos de escrita, atenta s materialidades, Castillo Gmez tem procurado relacionar
o contedo s funes, analisando como determinados acontecimentos desencadearam a
necessidade de gerar memrias.36
III
As dificuldades enfrentadas para realizar esta pesquisa foram muitas. A disperso das
fontes foi uma delas, aliada ao problema da compreenso de documentos redigidos em uma
lngua dada como desaparecida, no caso o guarani missioneiro ou jesutico. Isso me obrigou a
trabalhar com as tradues realizadas epoca, quando existentes, ou a recorrer ao trabalho detradutores especializados (pouqussimos). A inexistncia de trabalhos prvios tratando
especificamente da escrita indgena nas redues constituiu-se em um obstculo a mais a ser
superado.37
A necessidade de verificar os conjuntos documentais relativos prtica da escrita
indgena implicou percorrer os acervos de vrias instituies,38 em busca de maiores
informaes. O interesse pela consulta direta aos documentos indgenas, tanto os manuscritos
quanto as cpias de suas tradues, refere-se ao cuidado com os suportes da escrita e possibilidade de cotejar suas verses, pois muitos documentos, ao serem impressos, tiveram
alterados elementos que podem ser reveladores, como a prpria disposio do texto. No
momento em que so reproduzidos, certas marcaes presentes nos manuscritos, voltadas, por
35As suas indagaes esto dirigidas tanto aos efeitos da conquista social da competncia letrada entre as classessubalternas quanto escrita privada do Sculo de Ouro espanhol como instrumento de lembrana e depossibilidade de configurao de uma memria pessoal, familiar e social (CASTILLO GMEZ, Antonio. Tras lahuella escrita de la gente comn. In: CASTILLO GMEZ, Antonio (Ed.). Cultura escrita y clases subalternas:
una mirada espaola. Gipuzkoa: Sendoa, 2001b. p. 9-34).36 CASTILLO GMEZ, Antonio. Entre public et priv: stratgies de lcrit dans lEspagne du Sicle dor.Annales: Histoire, Sciences Sociales, Paris, ane 56, n. 4-5, p. 803-829, juil./oct. 2001a; CASTILLO GMEZ,Antonio. Hojas embetunadas y libros en papel: escrita y memoria personal en la Espaa moderna. HorizontesAntropolgicos, Porto Alegre, ano 10, n. 22, p. 37-65, jul./dez. 2004. p. 37-65).37Uma rara exceo, e assim mesmo voltada a esboar fases da evoluo da escrita entre os Guarani, o artigode THUN, Harald. Evolucin de la escriptualidad entre los indgenas Guaranes. In: SIMPOSIO ANTONIOTOVAR SOBRE LENGUAS AMERINDIAS, 1., 2000, Tordesillas (Valladolid). I SimposioCoord. EmilioRidruejo y Maria Fuentes. Valladolid: Universidad de Valladolid, 2003. p. 9-23.38Os acervos que apresentaram maiores informaes a respeito da escrita Guarani foram na Argentina, no caso oArchivo General de la Nacin e o Museo Mitre, ambos em Buenos Aires. Na Espanha, localizei informaesvaliosas no Archivo Histrico Nacional, na Biblioteca Nacional e na Real Academia de la Historia, em Madri.Em Valhadoli, o Archivo General de Simancas apresenta documentos fundamentais para compreender as reaes
do Guarani diante do Tratado de Limites de 1750, principalmente os localizados na seo Estado. Em Sevilha,no Archivo General de Indias, tambm h cpias de documentos referentes escrita indgena, principalmentenos documento indexados na audincia de Buenos Aires
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exemplo, a uma determinada recepo, deixam de apresentar destaque. Os ttulos, as
marcaes de pargrafos e outros detalhes grficos presentes no texto manuscrito so
dispositivos visuais voltados para facilitar a leitura diante dos distintos nveis de alfabetizao
da sociedade missioneira. Lamentavelmente, muitos documentos foram transcritos sem
identificao de sua forma textual, apenas contendo a reproduo do seu contedo, sem
especificao da modalidade de mensagem reproduzida.
Outro aspecto que deve ser enfatizado que alguns documentos indgenas, quando
publicados como anexos de determinadas obras, sobretudo por jesutas, aparecem mutilados
ou apresentam dados manipulados. Um exemplo so os anexos presentes na Historia de la
Compaa de Jess, de Pablo Pastells, que alm de omitir trechos importantes de alguns
documentos, por vezes, altera a referncia autoria do texto.O caso mais notrio o de um documento de 1753, conservado no Archivo General
de Indias (Sevilha), redigido por Primo Ybarenda.39 Pastells, ao publicar esse documento,
creditou a Ybarenda a traduo, e no a prpria autoria do texto.40
Os documentos indgenas apresentam distintas vias de sobrevivncia nos arquivos
e nas bibliotecas, no existindo uma classificao arquivstica prpria para eles. A
possibilidade de localizar alguns textos depende da procura paciente em meio a sries de
documentos relacionadas ao perodo. Entre as dezenas de pacotes de papis gerados pelapresena dos demarcadores e por parte das autoridades coloniais possvel identificar alguns
cuja autoria indgena. Em geral, esses papis esto preservados de maneira aleatria em
meio a maos de documentos coloniais, e que no haviam despertado a ateno dos
historiadores.
IV
H inmeras limitaes de ordem metodolgica, sobretudo para se definir sries
tipolgicas diante de indcios de alguns gneros textuais. Alguns documentos remanescem
como originais (manuscritos). Outros, entretanto, apenas como informao histrica na forma
39 Archivo General de Indias, Sevilla (doravante A.G.I.): Audiencia de Buenos Aires, Legajo 42 [anexos dacorrespondncia enviada a Espanha]. Copia 3: Copia de la traduccin de uma carta escrita por Ybarenda de SanMiguel que empieza. Seor Governador [].40 Cpia de la carta traducida al castellano por primo Ibarenda de San Miguel as seor Gobernador(Andonaegui) (PASTELLS, Pablo.Historia de la Compaia de Jess en la Provincia del Paraguay(Argentina,
Paraguay, Uruguay, Per, Bolivia y Brasil): segn los documentos originales del Archivo General de Indias,extractado y anotados por Pablo Pastells, S.J.: tomo VIII. Por Francisco Mateos. Madrid, Libreria General deVictoriano Suarez: C S I C 1949 t 8 p 246-247 Doc 4 761
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de citao em alguma crnica ou narrativa. Apesar da natureza lacunar da documentao, foi
possvel identificar algumas das temticas e classificar as formas adotadas pela escrita
indgena.
O reconhecimento do valor histrico desses documentos indica que a deciso
conjunta das Coroas ibricas deflagrou entre os indgenas missioneiros a preocupao quanto
aos cuidados com os procedimentos letrados. A deciso dos Guarani letrados de comunicarem
suas opinies legou aos historiadores documentos que permitem avaliar a elevada insatisfao
e a mobilizao desses ndios, comprovando a importncia atribuda palavra escrita nessa
sociedade.
Os documentos consultados, originais e cpias traduzidas do idioma guarani, assim
como as referncias historiogrficas a determinadas obras, foram organizados visandoconstituir um corpus documental orientado pelo critrio da escrita indgena, relacionando-os
com suas funes sociais. Os documentos estudados relacionam-se capacidade grfica
indgena, e no especificamente lngua guarani, visando uma anlise das prticas de escrita
entre os indgenas missioneiros.
Os textos escritos pelos Guarani missioneiros, em boa parte por seu carter de
material apreendido, muitas vezes, receberam a devida traduo.41Quando no h traduo,
ao que parece, foi decorrncia do desinteresse das autoridades, ou porque talvez suacirculao estava prevista apenas para o mbito colonial, pois sabidamente havia intrpretes
para esses papis. Quando os documentos foram enviados para a pennsula Ibrica e, portanto,
previa-se que os leitores desconheciam os idiomas nativos americanos, foram acompanhados
de sua respectiva traduo. Muitos dos documentos escritos pelos Guarani apenas so
conhecidos atualmente atravs das suas tradues em espanhol, pois quando foram
apreendidos, durante o conflito, receberam o tratamento de material de guerra como parte da
estratgia de combate ao inimigo, tendo sido traduzidos nos prprios acampamentos.Eventualmente, quando esses textos paravam nas mos de algum jesuta, eram conservados o
original e a sua traduo, pois esses documentos eram remetidos para os ministros espanhis,
como prova da oposio indgena. O envio desses documentos visava comprovar que os
Guarani agiam por conta prpria, sem a interveno dos jesutas.
41A documentao aqui apresentada sofreu uma pequena atualizao ortogrfica, sempre que necessria, mas
tomando o cuidado em no alterar o sentido ou contedo das informaes histricas. Tal medida foi adotada parafacilitar a inteligibilidade ao leitor, sendo igualmente uma decorrncia da impossibilidade de reproduzirgraficamente alguns caracteres obsoletos
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Inmeros documentos confirmam os distintos nveis de destreza e domnio que esses
Guarani apresentaram nas prticas da cultura grfica. Uma leitura atenta do material permite
identificar o grau de familiaridade do escrevente com os instrumentos bsicos para essas
tarefas, como eram a tinta e o papel, e permite inferir o nvel de destreza com a instruo
alfabtica.
A quantidade de textos elaborados pelos Guarani, em meados do sculo XVIII,
permite, portanto, repensar as relaes entre as funes sociais, a memria coletiva e as
estrtegias associadas ao uso da escrita, em uma organizao social que se emancipava da
tutela exercida pelos jesutas. Os Guarani nesse momento demonstraram uma aguda
percepo dos vnculos entre escrita e poder, atravs dos quais procuraram exercer o seu
autogoverno.
V
Quanto organizao da tese ela est estruturada em duas partes. A primeira,
intitulada A Razo Grfica Guarani, divide-se em trs captulos sem uma preocupao com
um ordenamento estritamente cronolgico, analisando os aspectos sociolingsticos da
gramaticalizao da lngua guarani e os efeitos da alfabetizao praticada nas redues. Asegunda parte nomeada de Escritofilia Indgena, igualmente disposta em trs captulos,
mas ordenada de maneira cronolgica, seguindo os acontecimentos desencadeados pela
demarcao de limites e culminando com as manifestaes escritas indgenas aps a expulso
dos jesutas.
A trama da tese, dividida em duas partes, corresponde preocupao de abarcar os
diversos elementos que permitiram elucidar os meandros que envolveram as prticas da
escrita indgena e analisar as distintas modalidades de textos produzidos pelos Guaraniletrados. Nesse sentido, buscou-se demonstrar que a prtica da escrita entre os indgenas
missioneiros foi bem mais estendida do que a historiografia tem alegado, diante de evidncias
da competncia alfabtica guarani desde o sculo XVII, quando os ndios apropriaram-se da
escrita e conferiram-lhe funes inesperadas pelos jesutas.
No primeiro captulo da primeira parte so enfocados aspectos da lngua guarani,
agora reduzida gramtica, e de sua abrangncia sociocultural como lngua geral do Paraguai,
demonstrando a importncia que o guarani apresentou como veculo de comunicao na
Provncia Gigante das Indias ao desempenhar o papel de lngua franca na regio. A seguir,
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conseqncias da chamada domesticao do pensamento selvagem. Logo depois so
descritos os aspectos relacionadas escrita em lngua guarani, alm do estabelecimento das
primeiras gramticas e dicionrios, primeiro por franciscanos e depois por jesutas. A seguir,
so abordados os aspectos da configurao do guarani jesutico ou missioneiro diferenciando-
o das demais variantes desse idioma no Paraguai colonial.
No segundo captulo, foram tratados aspectos relacionados situao de oralidade
primria da sociedade guarani, e que passa a conviver com a transliterao de seu idioma
discuso essa inserida nos debates histricos sobre a equao oral-escrito. Logo a seguir,
discute-se a poltica de valorizao das lideranas nativas e o papel da elite indgena no
gerenciamento das redues, destacando os efeitos da ocidentalizao a partir da instruo
ministrada aos ndios principais. Busca-se destacar como, nas redues, a delegao dasprticas letradas foi um expediente presente entre os indgenas iletrados, como parte dos
valores inerentes cultura do escrito. A seguir, so enfatizadas as medidas adotadas pelo
provincial Andrs de Rada visando controlar o acesso dos Guarani aos escritos. As proibies
e medidas restritivas servem de indcios de prticas que se queria controlar, diante das
apropriaes dos Guarani. E, por fim, so problematizados aspectos relacionados conduta
dos ladinos e os efeitos do bilingismo oralizado frente poltica lingstica restritiva adotada
pelos jesutas.No terceiro captulo o eixo de abordagem so os textos resultantes da escrita
indgena, a partir das materialidades dos textos escritos nas redues. A seguir, so
classificadas as formas textuais, e relacionadas s suas funes sociais, para determinar os
usos atribudos a cada um dos gneros: as cartas, os memoriais, as atas de cabildo, os dirios e
uma narrativa elaborada por um indgena. O conjunto de documentos compulsados permitiu
constatar uma diversificao nas formas textuais e identificar entre os Guarani letrados
aqueles que por suas funes exerceram de maneira mais assdua a prtica da escrita. Poisalm dos secretrios escreventes natos os mayordomostambm exerceram suas aptides
letradas. Por fim, a prtica da escrita entre os Guarani analisada frente a uma preocupao
relacionada com a produo de registros, que se vincula preservao de acontecimentos
passados. A escrita, nesse contexto, proporciona uma nova maneira de organizar os fatos e de
mensurar os acontecimentos, impondo uma nova forma de temporalidade, linear.
A segunda parte inicia com o quarto captulo e trata das implicaes do Tratado de
Madri para os Guarani. A seguir, a partir da demarcao de limites e da notificao aos ndios
missioneiros dos termos presentes nas ordens de mudana, analisada a finalidade de
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demarcadores quanto bilhetes aos seus companheiros, convocando-os para resistiram
presena das comitivas encarregadas de fixar os novos limites entre os domnios ibero-
americanos. Nesse perodo comearam a voar bilhetes, sendo essa uma das expresses da
reao escrita dos Guarani contra a presena dos funcionrios demarcadores em seu
territrio e a condio de possibilidade de seu autogoverno.
No quinto captulo, tratada a ecloso do conflito nas redues e os usos estratgios
destinados comunicao epistolar pelos Guarani, atravs da anlise dos contatos
estabelecidos com os espanhis, e da troca de correspondncia pelos ndios de Yapeyu como
um recurso destinado a organizar a resistncia indgena presena do exrcito espanhol em
terras missioneiras. O contato com os portugueses foi pensado como uma negociao
envolvendo os poderes do escrito, quando, inclusive, foi estabelecido um acordo de paz, nosmesmos moldes de uma negociao entre dois Estados. reveladora, nesse sentido, a ttica
indgena de disseminar avisos pelo territrio como maneira de previnir os inimigos. Com a
ecloso da guerra guarantica esteve presente a tenso entre escrita e oralidade nas
redues. Encerrado o conflito, um grupo de Guarani seguiu resistindo, e a comunicao
epistolar manteve-se operante entre as lideranas que tencionavam rearticular-se militarmente.
No sexto e ltimo captulo, abordo os usos e funes atribudos escrita pelos
Guarani depois da expulso dos jesutas, e como a capacidade alfabtica passou a seapresentar desvinculada da reescrita religiosa. Foram analisados alguns documentos indgenas
logo aps a nova administrao estabelecer-se nas redues. Nesse captulo, dedico ateno
trajetria de dois Guarani, que diante das evidncias documentais permitiram acompanhar
mais detidamente suas manifestaes escritas. Por fim, procuro delinear algumas das funes
conferidas escrita pela elite missioneira diante do trmino do controle exercido pelos
jesutas. Nesse momento, a escrita passou a refletir as alteraes verificadas na organizao
socioeconmica das redues, atuando como um recurso voltado reivindicao poltica.Enfim, a escrita passou a ser um instrumento a servio de uma elite e, de modo geral, a
expresso das aspiraes desse grupo.
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PRIMEIRA PARTE
A RAZO GRFICA GUARANI
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1 A LNGUA GUARANI
1.1 O guarani, lngua geral
Os troncos lingsticos de maior abrangncia na Amrica do Sul so o quchua e o
aimar, ao lado do tupi e do guarani.42 As principais lnguas do tronco tupi-guarani so
conhecidas atrves dos trabalhos impressos de Azpilcueta Navarro (1550), Jos de Anchieta
(1595), Antonio Araujo (1630) e Antonio Ruiz de Montoya (1639); o idioma quchua
originou notveis estudos, como os do padre Diego Torres Rubio (1603) e os do frei Domingo
de Santo Toms (1560); o padre Diego Gonzales Holguin (1603) foi considerado um mestre
da lngua inca. O aimar, por sua vez, foi estudado exausto pelo padre Ludovico Bertonio
(1612) e tambm pelo j mencionado padre Torres Rubio.43
Das muitas lnguas do tronco tupi-guarani, duas delas foram amplamente
documentadas durante o perodo colonial e adquiriram uma importncia histrica especial no
contexto da ocupao europia do continente: o tupinamb, ou tupi antigo, e o guarani antigo.
Essas duas lnguas, pelo papel que desempenharam no processo histrico das suas respectivas
regies, do perodo colonial at nossos dias, podem ser consideradas, como fez o lingista
Aryon Rodrigues, lnguas clssicas da Amrica do Sul, ao lado do quchua da regio andina.44
Uma outra caracterstica em comum entre a lngua quchua e o tupi-guarani que nesses
idiomas se denominam muitos dos domnios geogrficos da Amrica do Sul. Atrves da
toponmia instrumento fundamental para os pesquisadores da linguagem diante da ausncia
de registros escritos antigos uma ampla nomenclatura se mantm expressa em lngua
indgena, passados cinco sculos da conquista ibrica.45
O tupi-guarani destacou-se dos outros idiomas tanto por sua extenso territorial como
por sua unidade cultural.46Atravs do mtodo de reconstruo desenvolvido pela lingstica
42Sobre esses temas, ver: SUAREZ, Jorge A. Estudios sobre lenguas indgenas sudamericanas. Bahia Blanca:Universidade Nacional del Sur, Departamento de Humanidades, 1988. 127 p.; TOVAR, Antonio. Catlogo delenguas de Amrica del Sur. Buenos Aires: Sudamericana, 1961.43Para uma aproximao produo desses evangelizadores-lingistas, ver: VIAZA, Conde de. Bibliografiaespaola de lenguas indgenas. 2. ed. Madrid: Atlas, 1977 (Prlogo). Para um amplo levantamentobibliogrfico de temas referentes lngua e lingstica indgena sul-americana, ver: FABRE, Alain. Manual delas lenguas indgenas sudamericanas. Mnchen: Lincom Europa, 1998 (Bibliografa general, p. 49-200).44RODRIGUES, Aryon DallIgna.Lnguas brasileiras: para o conhecimento das lnguas indgenas. So Paulo:Loyola, 1994, p. 34.45VILLAGRA-BATOUX, Sara Delicia. La toponimia y la historia de la lengua. Estudios Paraguayos: revista dela Universidad Catlica Nuestra Seora de la Asuncin, Asuncin, v. 7, n. 1, p. 157-163, 1979.46A disperso guarani originou diversos dialetos, distribudos em trs grandes grupos: 1) o grupo amaznico ou
eengatu a lngua boa ou polida; 2) o grupo conhecido genericamente como tupi ou tupinamb (guaranifalado na costa leste da Amrica do Sul); e 3) o grupo conhecido como guarani ou aba e (lngua doshomens) abrangendo os dialetos falados na bacia do Prata com abundante documentao do perodo colonial
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comparada, tem-se avanado bastante em relao ao conhecimento dessas lnguas. No sculo
XVI, encontraram-se lnguas dessa famlia sendo faladas em praticamente todo o litoral leste
da Amrica do Sul e na bacia do rio Paran. Segundo Greg Urban, restam poucas dvidas
quanto s ligaes genticas entre as lnguas tupi-guarani, e a disperso final teria ocorrido
aps o ano 1000, j que h dados indicando que vrias lnguas seriam, ento, uma nica
lngua, reunida sob o mesmo nome de Tupi-Guarani, que no deve ser confundida com a
famlia mais ampla.47Apesar dessa enorme disperso geogrfica, as principais lnguas do
tronco tupi-guarani revelam mais semelhanas do que diferenas,48configurando, de acordo
com os dados arqueolgicos, uma unidade de pelo menos dois mil anos.49
poca do descobrimento e da conquista da Amrica, a lngua guarani estava em
uma fase de vigor e fora expansiva, tanto que passou a dominar reas significativas daAmrica meridional e da costa leste. No Paraguai colonial, no entanto, os Guarani no eram
os nicos ocupantes das terras meridionais, tampouco a sua lngua era a nica falada.
Diferentes grupos lingsticos disputavam o predomnio, ainda que inutilmente, visto que
necessitavam recorrer ao idioma guarani, ou a suas variantes dialetais, para manter relaes
polticas e como meio de comunicao com povos vizinhos de lnguas distintas.
disperso geogrfica do tupi-guarani correspondem as prticas migratrias dos
povos pr-colombianos, mantidas mesmo depois da chegada dos europeus Amrica.Segundo Graciela Chamorro, a difuso dessa lngua, da Amaznia at o rio da Prata e desde a
costa atlntica at os Andes, mesmo que de modo descontnuo, como verificado na cultura
material, indica um componente fundamental do modo de ser guarani: o estar a caminho
sobretudo missioneiro (SERRANO, Antonio. Etnografa de la antigua Provincia del Uruguay. Paran: [s.n.],1936, p. 143).47URBAN, Greg. A histria da cultura brasileira segundo as lnguas nativas. In: CUNHA, Manuela Carneiro da(Org.).Histria dos ndios no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 92.48As semelhanas entre essas duas lnguas sempre foram enfatizadas: Son lenguas muy afines, ambas s doshan sido muchas veces consideradas como una sola y misma lengua. Gilig, un antiguo misionero, asegur quela diferencia no era tan grande como la que hay entre el espaol y el portugus. No fu solamente laimportancia, sino tambin la belleza y excelencias propias de las lenguas americanas las que tanpoderosamente excitaron al estudio del tupi y del guaran. (DAHLMANN, Joseph. El estudio de las lenguas ylas misiones. Traducido del alemn por Jernimo Rojas, S.J. Madrid: Viuda e Hija de Gomez Fuentenebro, 1893,p. 129).49A esse respeito, ver: BROCHADO, Jos Proenza. An ecological model of spread of pottery and agricultureinto Eastern South America. Tese (Doutorado em Antropologia)University of Illinois, Urbana-Champaign,USA, 1984. 574 p.; sobre essa mesma questo, mas enfocando atravs da tecnologia, especialmente o manejoagroflorestal, os mecanismos na ocupao e organizao do espao, ver: NOELLI, Francisco. Sem tekoh no h
tek: em busca de um modelo etnoarqueolgico da aldeia e da subsistncia guarani e sua aplicao a uma rea dedomnio no Delta do Rio Jacu RS. Dissertao (Mestrado em Histria)Instituto de Filosofia e CinciasHumanas Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul Porto Alegre 1993
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(oguata).50Assim, segundo a antroploga, as pesquisas arqueolgicas tm mostrado que a
extenso do territrio ocupado pela cultura tupi-guarani resultou das contnuas migraes
guaranticas e das conquistas e guaranizaes que operaram sobre os protopovoadores das
regies ocupadas. A imposio da lngua, portanto, foi uma decorrncia dessa movimentao
humana. Porm, isso no implica, obrigatoriamente, outras formas de dominao.
A importncia da lngua guarani se comprova indiretamente com a influncia que
teve sobre o lxico usado por cronistas e sobre a lngua de exploradores e conquistadores. A
grande unidade lingstica verificada em textos do sculo XVI, como o de Jean de Lery
(1576), as frases em guarani que foram registradas por Hans Staden (1556), as anotaes
contidas em Singularits de la France Antartique, de Andr Thevet (1557-1558) e na Vera
Historia, de Ulrico Schmidel, publicada em 1567.No Paraguai colonial, o guarani foi assumido com lngua geral,51da mesma maneira
que o idioma quchua foi considerado a lngua geral de Cuzco, ou dos incas,52 diante do
reconhecimento do potencial desses idiomas como lingua franca. Essas lnguas gerais
gramaticalizadas e dicionarizadas constituam-se na possibilidade de controlar a
evangelizao, pois permitiam uma maior circulao de documentos de contedo doutrinrio,
como os catecismos e sermonrios.
A grande abrangncia desses idiomas na Amrica foi objeto de registro, em 1605,por Giovanni Botero, membro da Companhia de Jesus (que trabalhou com Jos Acosta no
Peru), que publicou em Veneza um livro intituladoLe relazioni universali. Nessa obra, Botero
adaptou o sistema de classificao proposto inicialmente por Acosta e afirmou que com as
lnguas guarani, cuzcana (quchua) e mexicana (nuatle) se podia viajar por todo o Novo
Mundo.53E na quarta parte do livro segundo, Botero enfatizou que, entre as lnguas indgenas,
[] ma niuna piu universali, che la Varaa. Questa si parla per tutto il Paraguay, e per
tutto il Brasil. Lintendono glItatini, e latre gente innumerabili dallo stretto quasi de
50 CHAMORRO, Graciela. A espiritualidade guarani: uma teologia amerndia da palavra. So Leopoldo:Sinodal, 1998. (Teses e Dissertaes, 10), p. 42, 43.51 MELI, 1969, p. 53-56; MELI, Bartolomeu. El guaran como lengua general. In: JORNADASINTERNACIONALES MISIONES JESUTICAS, 5., 1994, Montevideo. AnalesMontevideo: [s.n.], 1994. p.77-90.52 DEDENBACH, Sabine; SENZ, Salazar. Las lenguas andinas. In: LUMBRERAS, Luis Guillermo (Ed.).
Histria de Amrica Andina. Quito: Universidad Andina Simon Bolivar: Libresa, 1999. p. 501-536.53BOTERO, Giovanni.Le relationi universali. Venezia, 1605, p. 21.
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Magaglianes sino Santa Marta.54 O jesuta, por meio dessa descrio, documentou a
abrangncia comunicativa do guarani, no final do sculo XVI.55
Assim, para atender s exigncias da evangelizao, os religiosos em misso no
Paraguai dedicaram-se com bastante afinco ao aprendizado do guarani. Incontvies foram as
horas dedicadas ao estudo e exerccio do idioma. Ao cpiar e recpiar manuscritos de
catecismos ou sermonrios os catequistas introduziam modificaes e novos vocbulos,
dicionarizando a lngua gramaticalizada.56
1.2 Escrita e antropologia: a razo grfica
O impacto da alfabetizao na organizao social e as inovaes operadas a partir docontato com a cultura letrada e o letramento j foram investigados por Jack Goody, que
estabeleceu as diferenas gerais entre sociedades com e sem escrita e as conseqncias do
que denominou razo grfica, ou seja, o resultado mais visvel da domesticao do
pensamento selvagem.57
Essa obra seminal no campo da antropologia social aprofundava e dava seqncia ao
ao trabalho anterior de Goody, dedicado s conseqncias da cultur