PRÁTICAS RELIGIOSAS PENTECOSTAIS E … Dentro da Nova história Cultural, a história das práticas...
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PRÁTICAS RELIGIOSAS PENTECOSTAIS E PROCESSOS DE INSERÇÃO NA
CULTURA ESCRITA (PERNAMBUCO, 1950-1970)
Sandra Batista de Araujo Silva1
Ana Maria de Oliveira Galvão2
Resumo:
Este estudo investiga a influência das práticas religiosas pentecostais,
especificamente da Assembléia de Deus, tradicionalmente associadas à oralidade,
que favoreceram uma relação estreita dos seus membros com a escrita, no período
de 1950 a 1970 em Pernambuco. Está baseado primordialmente em depoimentos
orais, baseados na “História” Oral, e fundamentado nos pressupostos da Nova
História Cultural e na História da Educação. Constatamos que a igreja, desde a sua
origem, possui práticas religiosas possivelmente influenciadoras de uma cultura
escrita em seus membros. Ao lado da escolarização, da formação e ocupação
profissionais e da inserção na cultura urbana, alguns fatores diretamente
relacionados à pratica religiosa foram importantes para uma maior familiaridade
dos sujeitos com a leitura e a escrita, principalmente quando foram ocupando
progressivamente funções de liderança.
Palavras-Chave: pentecostais - práticas religiosas – história da cultura escrita
1. INTRODUÇÃO:
A pesquisa que deu origem a este artigo buscou investigar a influência das práticas
religiosas pentecostais, especificamente da Assembléia de Deus, tradicionalmente
associadas à oralidade, no processo de inserção de seus membros na cultura
escrita, no período de 1950 a 1970, em Pernambuco.
O estudo está inserido em uma pesquisa mais ampla denominada "Entrando na
cultura escrita: percursos individuais, familiares e sociais nos séculos XIX e XX"3
que visa, através de estudos monográficos em diferentes escalas de observação,
reunir elementos para a construção de uma história da cultura escrita no Brasil.
Busca-se verificar e apresentar as estratégias desenvolvidas por sujeitos, grupos 1 Graduada em Pedagogia - Centro de Educação - UFPE. [email protected] 2 Orientadora e Doutora em Educação - Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPE e Professora da Faculdade de Educação da UFMG. [email protected] 3 O projeto está sendo realizado, desde março de 2003, em conjunto com o Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita - CEALE - da UFMG, o Núcleo de Estudos e Pesquisas História da Educação em Pernambuco - NEPHEPE - da UFPE, e com o Centre de Recherches sur le Brésil Contemporain, da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), França. Apoio CNPq. Ver Batista, et al (2002).
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familiares e sociais tradicionalmente associados ao mundo do oral para se inserirem
na cultura escrita.
Foi com base no estudo que está sendo desenvolvido pelo pesquisador francês Jean
Hébrard4, participante da equipe de pesquisa, que decidimos investigar como as
práticas religiosas pentecostais, tradicionalmente associadas à oralidade,
influenciaram indivíduos pertencentes à denominação Assembléia de Deus no
estabelecimento de relações estreitas5 com a escrita. Tradicionalmente, os
pentecostais são vistos como praticantes de uma cultura predominantemente oral6,
principalmente em relação às tradicionais igrejas protestantes históricas7.
O interesse em investigar o tema também veio da nossa experiência8 como
membro da referida igreja. A igreja Assembléia de Deus de hoje é ainda muito
marcada pela utilização da oralidade como forma de participação da maioria dos
membros nas práticas religiosas e cultos, mesmo sendo uma igreja classificada
como pertencente ao ramo protestante9. No entanto, conseguimos identificar
alguns membros da Assembléia de Deus entre 1950 a 1970 que demonstravam
certa intimidade com as práticas de leitura e de escrita. Logo, questionávamo-nos:
que fatores haviam sido decisivos para um relacionamento tão estreito com a
escrita? Que práticas de escrita e de leitura foram construídas por eles? Que usos
tais práticas possibilitaram? Como tais práticas influenciaram esses indivíduos a se
inserirem em uma cultura que tradicionalmente lhes é oposta? Para responder a
4 O seu estudo se detém sobre uma família do sertão baiano dividida entre dois ramos da religião protestante, o Presbiteriano e o Pentecostal, cujos membros estabeleceram relações diferenciadas com a cultura escrita no final do século XIX e início do XX. O estudo visa investigar se a opção religiosa determina, de maneira central e decisiva, em termos de linhagem familiar, relações diferenciadas com a cultura escrita; e como as práticas religiosas, em um contexto de diversas práticas de sociabilidade, contribuem para o acesso e o estabelecimento de uma relação específica com a escrita. Ver Batista, et al (2002). 5 Entendemos "relação estreita", neste contexto, como uma relação de grande intimidade com as práticas de leitura e de escrita que proporciona um certo destaque desses indivíduos em relação aos demais do grupo social no qual estão inseridos. 6 A igreja Congregação Cristã no Brasil, primeira igreja pentecostal fundada no Brasil, é considerada como uma igreja de tradição oral, porque não tem publicações, a não ser o seu relatório anual e não recomenda a leitura de nenhuma literatura religiosa a não ser a Bíblia. Ver Mendonça e Velásques Filho (1990). 7 Alguns países europeus adeptos do protestantismo, como a Prússia, Escócia e Suécia, apresentavam, em meados do século XIX, taxas de analfabetismo inferiores a 30%; em contrapartida, países católicos, como a Itália, Espanha e Império Russo possuíam população de mais 75% de analfabetos. A Europa se dividia entre dois pólos: o Norte, protestante e alfabetizado, e o Sul, católico e analfabeto. Essa dicotomia se devia a processos de alfabetização muito distintos. O protestantismo, aliado à imprensa, enfatizava como forma de proselitismo a difusão da leitura pessoal e/ ou familiar da Bíblia, dos escritos dos líderes da reforma ou dos textos resumidos de ambos, em língua vernácula. Ver Frago (1993). 8 Da primeira autora do presente artigo. 9 Segundo Mendonça e Velásques Filho (1990), a moldura eclesiástica e teológica dos pentecostais é protestante, no entanto os pentecostais não aceitam que os identifiquem como protestantes e nem mesmo os protestantes históricos admite-os como pertencentes a sua família. No entanto, os autores levam em conta que os pentecostais possuem matrizes protestantes.
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essas inquietações fundamentamo-nos nos pressupostos da Nova História Cultural10
que possibilitou o trabalho de investigação com “indivíduos comuns” e com fontes
antes desprezadas na investigação histórica, como a oral. Logo, os indícios trazidos
pela memória dos indivíduos constituem a fonte principal da pesquisa. No entanto,
procuramos também utilizar outras fontes, como dados estatísticos.
O período escolhido para o estudo marca um crescimento significativo da
Assembléia de Deus em relação às demais igrejas pentecostais. Uma das
explicações para esse crescimento está na idéia de que o pentecostalismo, desde a
sua origem, aceitaria e compreenderia os analfabetos e aqueles com pouca
formação profissional, como também lhes ofereceria oportunidade de melhoria das
condições de vida em que viviam (ROLIM, 1980; SIERPIESKI, 1999).
As análises acerca do pentecostalismo concentram-se na discussão das
interpretações sociológicas, antropológicas e teológicas desse fenômeno religioso.
São poucos os estudos, portanto, que tratam dos pentecostais em uma perspectiva
histórica, porém interdisciplinar. São ainda mais raras pesquisas que tratem das
práticas de leitura e de escrita dos indivíduos da Assembléia de Deus. Acreditamos,
no entanto, que a religiosidade, no nosso caso a pentecostal, é um fragmento da
cultura que pode contribuir para o letramento dos indivíduos e, portanto, deve ser
investigado. Por muito tempo, a religiosidade vem se configurando como um
requisito importante para a efetiva prática da leitura - religiosa e/ou secular11 -,
assim como da escrita, numa sociedade tão marcada historicamente pelo
analfabetismo como a nossa. É por isso que nos valemos da investigação histórica,
na medida em que o passado pode nos auxiliar a compreender os fatos que
acontecem no presente. Acreditamos, também, que o nosso trabalho pode
contribuir para as discussões, realizadas na área de educação, sobre
multiculturalismo e letramento.
Portanto, o nosso objetivo é investigar a influência das práticas religiosas
pentecostais, especificamente da Assembléia de Deus, tradicionalmente associadas
à oralidade, no estabelecimento de uma relação estreita dos seus membros com a
escrita, no período de 1950 a 1970 em Pernambuco. Procuramos caracterizar a
igreja Assembléia de Deus na época estudada e o movimento que a originou, bem
10 Para uma discussão sobre a Nova História Cultural, ver, entre outros, Burke (1992) e Pesavento (2003). 11Classificamos como “secular” todas as leituras e/ou escritas de cunho não religioso.
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como identificar e caracterizar as práticas religiosas da igreja. Com base nos
depoimentos orais, investigamos que fatores permitiram a influência das práticas
religiosas no letramento dos sujeitos investigados, procurando identificar que
práticas de leitura e de escrita foram construídas por eles, assim como a influência
de outros fatores no estabelecimento dessa relação com o mundo da escrita, como
a escolarização, a ocupação profissional e a inserção no mundo urbano.
2. FUNDAMENTAÇÃO TÉORICA
2.1. A Nova História Cultural
Influenciada pela Antropologia, a Nova História pressupõe que a realidade é social e
culturalmente construída; dessa forma, interessa-se por toda atividade humana,
pois nesse paradigma "tudo tem história". O foco de investigação passou a ser as
pessoas comuns inseridas em seus cotidianos, em oposição ao paradigma
tradicional que se interessava pelos governantes e fatos políticos, narrados
objetivamente com base exclusiva nos documentos oficiais, valorizados como
fontes únicas e absolutas. A Nova História se baseia na análise das estruturas
sociais, observando, principalmente, as limitações, as potencialidades e as
especificidades das várias fontes (como os documentos oficiais, as estatísticas, a
fonte visual e os depoimentos orais). Trata-se de uma perspectiva que busca
"novos problemas", "novos objetos" e "novas abordagens", em uma reação ao
paradigma tradicional de escrever a história. Busca, dessa maneira, superar
modelos deterministas de explicação social, associando, como explicita Burke
(1992), a liberdade de escolha das pessoas comuns, as suas estratégias e
capacidades de explorar as inconsistências e incoerências dos sistemas sociais e
políticos para se introduzir em frestas em que consigam sobreviver.
É com base nessa abordagem historiográfica que podemos analisar a influência das
práticas religiosas nos sujeitos comuns quanto às estratégias desenvolvidas por
eles para se inserirem e participarem do mundo da escrita. Através do alargamento
dos objetos, das fontes e das abordagens proporcionados pela Nova História
Cultural, a investigação sobre pessoas oriundas de um grupo social ainda à margem
da sociedade, como é o caso dos pentecostais, pode contribuir para a História da
Educação e para o campo mais amplo da Educação, principalmente para a reflexão
daqueles estudos que investigam o multiculturalismo e o letramento.
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Dentro da Nova história Cultural, a história das práticas de leitura e de escrita12
também subsidiaram nosso estudo, principalmente para apreendermos melhor as
condições sociais e culturais que orientam o acesso à escrita. Estudos sobre as
práticas de escrita, no contexto francês, fornecem-nos informações sobre a
variedade de formas impressas praticadas em algumas cidades do século XVIII e
uma reflexão sobre a apropriação desigual da escrita no interior dos mesmos meios
sociais. Além disso, ajuda-nos a compreender o processo de circulação de um
produto cultural, como é o impresso, que permite o aprendizado da escrita, seus
usos efetivos e as formas de legitimação pelos diferentes meios e grupos sociais.
Um estudo particularmente importante que nos forneceu elementos para a pesquisa
foi realizado por Hébrard (2001) e verifica a apropriação do escrito pelo leitor
Valentin Jamerey-Duval, no início do século XVIII, efetuada por um processo de
aprendizagem marcado pelo autodidatismo, resultando em competências diferentes
das do grupo social no qual estava inserido.
No entanto sabemos que o passado nunca será plenamente conhecido e
compreendido por inteiro, mas sim entendido através de seus fragmentos, mesmo
que se aposte no rigor metodológico e se tente a aproximação de uma “verdade”. A
história é, pois, constituída de pedaços que o pesquisador apenas tenta reconstruir,
traços que foram deixados ou vestígios que ainda existem e que representam parte
da vida das pessoas das sociedades passadas. (LOPES; GALVÃO, 2001).
2.2 A oralidade, o letramento e a “herança”
A linha de investigação na qual a nossa pesquisa se insere volta-se para o estudo
de práticas de leitura e escrita, de modos de inserção de indivíduos em culturas
escritas e da maneira que essas culturas adquirem uma identidade específica, seja
em razão das finalidades e dos usos que nela se fazem da escrita, seja em razão do
modo como essa inserção se dá, por exemplo, através da oralidade (ver BATISTA,
et al, 2002).
Um estudo importante que discute a oralidade e o letramento13 de sujeitos de
meios populares e com baixos níveis de escolarização é aquele realizado por Galvão
(2001 e 2002). A autora discute como leitores e ouvintes de cordel estabelecem
uma relação intensa com a cultura escrita. A pesquisa destaca alguns fatores 12 Para aprofundamento sobre o tema ver, por exemplo, Chartier (2001). 13 Compreendemos letramento como a prática social da leitura e da escrita. Ver Soares (2002).
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importantes que contribuíram para a inserção de sujeitos mesmo analfabetos e
outros semi-alfabetizados na cultura escrita, como a memorização resultante das
situações de leitura e a leitura intensiva, coletiva e em voz alta dos cordéis. Essas
pessoas experienciaram práticas de letramento nas quais utilizaram a palavra
escrita e impressa mesmo não estando na escola; mantiveram relação de
intimidade com a escrita através da própria prática da oralidade. Esse estudo nos
auxiliou a compreender a oralidade nas práticas religiosas pentecostais e os fatores
que influenciaram os sujeitos pentecostais a se inserirem e a participarem da
cultura escrita.
Também foi importante para a nossa pesquisa os estudos de Bourdieu (1998) sobre
a questão da herança e a teoria dos capitais, já que o critério de escolha dos
sujeitos se baseou na condição de eles serem "não herdeiros". Entendemos a
herança como a transmissão aos filhos de um certo capital que pode ser cultural,
social e/ou econômico. O nosso estudo se propôs a investigar indivíduos que não
obtiveram, especificamente, uma herança cultural que lhes pudessem garantir uma
inserção na cultura escrita de um modo mais "natural", mais facilitado.
Compreendemos a herança cultural como um bem simbólico transmitido pelos pais
aos filhos, como investimento para perpetuar o capital cultural incorporado,
objetivado ou institucionalizado pela família.
Segundo Bourdieu (1998), o capital cultural incorporado é aquele transmitido
através da inculcação e assimilação de uma propriedade que se fez corpo e tornou-
se parte integrante da pessoa. O capital cultural objetivado compreende o que é
transmitido como suporte material, ou seja, a propriedade jurídica é transmitida,
mas não existe garantia da condição de incorporação do bem cultural. O capital
cultural institucionalizado se refere ao bem que lhe confere certo valor
convencional, constante e juridicamente garantido no que diz respeito à cultura. O
capital social, por sua vez, compreende a vinculação a um grupo, como conjunto de
agentes que não somente são dotados de propriedades comuns, mas unidos por
ligações permanentes e úteis aos sujeitos. O pertencimento a determinado grupo
proporciona, consciente ou inconscientemente, trocas materiais e simbólicas cuja
instauração e perpetuação lhes geram lucros também materiais ou simbólicos.
Baseando-nos nesses conceitos procuramos investigar sujeitos não herdeiros, mas
que consciente ou inconscientemente, desenvolveram ao longo de suas trajetórias
estratégias próprias e peculiares que lhes fizeram adquirir um capital cultural não
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transmitido pela família para eles, principalmente no que diz respeito ao gosto e à
intimidade em relação às práticas de práticas de leitura e de escrita.
As pesquisas realizadas, principalmente no campo da Sociologia da Educação, nos
fornecem subsídios para compreender como, muitas vezes, as relações que os
“novos letrados14” e “não herdeiros” estabelecem com o mundo escrito são
marcadas por uma certa tensão e por um grande esforço autodidata (Ver, por
exemplo, LAHIRE, 1997; HÉBRARD, 1990).
2.3 A Assembléia de Deus: história e práticas religiosas
As igrejas pentecostais cresceram significativamente no Brasil15 no período
estudado, principalmente a Assembléia de Deus16 que, em 1966, por exemplo,
apresentou uma taxa de crescimento de 8,7%, índice superior ao da Congregação
Cristã no Brasil17, com 5,9%. Essas duas denominações são consideradas as
pioneiras e principais igrejas pentecostais a se estabelecerem em território nacional
(MENDONÇA; VELASQUES FILHO, 1990). A Assembléia de Deus, criada a partir da
cisão com a igreja Batista em Belém do Pará em 1911, foi fundada por dois
missionários suecos, Gunnar Vingren e Daniel Berg, que vieram para o país em
1897.
Uma das explicações para o crescimento das igrejas pentecostais no Brasil está na
idéia de que o pentecostalismo, desde a sua origem, aceitava e compreendia os
analfabetos e aqueles com pouca qualificação profissional, como também lhes
oferecia oportunidade de melhoria das condições de vida em que viviam, não
havendo, conseqüentemente, distinção entre letrados e não-letrados. Os
pentecostais, desde sua origem, criticavam as igrejas protestantes históricas de
missão pelo "excessivo rigor, formalismo e contenção"; logo, a Assembléia de Deus
14 A expressão remete à condição não-herdada dos sujeitos de praticarem a leitura e a escrita socialmente. 15 A fragmentação do pentecostalismo brasileiro também teve início na década de 50, com o surgimento de mais três igrejas: a Igreja do Evangelho Quadrangular, O Brasil para Cristo e a Deus é amor. As demais posteriores a essas são denominadas "neo-pentecostais". como é o caso, por exemplo, da Universal do Reino de Deus. 16 Em 1966, as Assembléias de Deus tinham em torno de 636.370 membros em 9.939 igrejas e congregações satélites. Ver Mendonça e Velásques Filho (1990) 17 A Congregação Cristã foi fundada em 1910 em São Paulo, pelo imigrante italiano Luigi Francescon, oriundo da Igreja Presbiteriana do Brás. No início, era formada por imigrantes italianos e seus descendentes, mas a partir de 1950 os brasileiros, principalmente os nordestinos migrantes, passam a fazer parte do rol de seguidores. Estabeleceu-se, inicialmente, nas áreas cafeeiras do interior de São Paulo, do sul de Minas Gerais e do oeste do Paraná, mas posteriormente já se encontrava em todos os estados do país. Ver Mendonça e Velásques Filho (1990) e Siepierski (1999).
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adotou na dinâmica de seus cultos a liderança de "leigos", considerados
"irreverentes" e "improvisadores" da palavra (MAFRA, 2001). Essas características
parecem ter permitido que ela fosse conhecida como uma igreja que influenciava os
seus seguidores no desenvolvimento de uma cultura predominantemente oral.
Segundo Rolim (1980):
[...] eram recebidos de braços abertos por um tipo de evangelismo, falando a linguagem deles, abrindo-lhes um espaço a espontaneidade de suas crenças. A maioria não sabia ler. Mas sabia escutar a Bíblia. E sabia reproduzir em sua fala cabocla os trechos bíblicos aprendidos de cor. Era essa gente – objeto de evangelização nas igrejas católica e protestante – que agora ia se tornar sujeito da sua evangelização e da dos outros. Os dispositivos religiosos disseminadores das crenças não seriam mais monopólio dos possuidores de cursos teológicos. Estavam ao alcance de cada um. Pela pregação, pelos depoimentos, pela leitura às vezes truncada de trechos bíblicos, o pedreiro com seu terno bem passado, tornava-se o pregador a outros pedreiros [...] a linguagem era de todos eles. [...] Descobriu o pentecostalismo que essa gente podia falar, não tinha respeito humano de falar de sua fé, nem medo de pregar. Abria em seus templos um espaço onde todos tinham suas vozes, e não apenas o pastor (p.143).
O termo "pentecostal" parte da crença na "infusão do Espírito Santo", ou "batismo
com o Espírito Santo"18, terceira pessoa da trindade, como um ser espiritual que
deveria ser atuante na vida dos membros das igrejas protestantes e que
estabeleceria normas de comportamento e de conduta para a perfeição cristã ou
total santificação dos membros (OLIVEIRA, 2003; SIERPIESKI, 1999). Assim, todo
pentecostal “inspirado” pelo Espírito Santo teria a oportunidade de falar nos cultos,
isto é, de se expressar oralmente sobre os assuntos bíblicos.
Embora, desse modo, o pentecostalismo esteja associado a práticas
predominantemente orais, identificamos e caracterizamos algumas práticas
religiosas19 da igreja como possíveis influenciadoras de uma cultura escrita nos
seus membros, baseando-nos principalmente em Oliveira (1998) e Rolim (1980).
Entre essas práticas, destacam-se a evangelização, o ensinamento da Bíblia e o
cântico religioso, que parecem permanecer na dinâmica da igreja desde sua
origem.
A prática da evangelização incluía ações de divulgação dos evangelhos e doutrinas
da denominação (como a pregação em público) e tinha o objetivo de promover a
18 O "falar em línguas" ou glossolalia seria a evidência inicial do batismo com o Espírito Santo. 19 Essas práticas religiosas presentes nas igrejas protestantes históricas, como a Batista, por exemplo, foram mantidas pelos pentecostais da Assembléia de Deus, assumindo um caráter mais informal e espontâneo em relação ao formalismo e as regras escritas das igrejas não-pentecostais. Para um aprofundamento sobre o tema ver, por exemplo, Mafra (2001), Rolim (1980) e Sellaro (1987).
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conversão de novos seguidores e o incentivo à leitura da Bíblia. O ensinamento da
Bíblia envolvia as ações de ensino dos pressupostos bíblicos realizado pelas escolas
dominicais, através de momentos de incentivo à leitura; nessas práticas, como
material de ensino e aprendizado utilizavam a Bíblia e as “lições bíblicas”. A terceira
prática era o cântico religioso. As lideranças da igreja editaram hinários, como a
Harpa Cristã, livreto de músicas religiosas da igreja que, em 1937, já estava na
quarta edição, e servia de veículo de conversão de pessoas à denominação e
animação dos cultos. Além disso, a Assembléia de Deus tinha uma preocupação em
editar20 livros escritos por vários autores da igreja destinados principalmente
àqueles que desejassem se aprofundar nos estudos sobre a Bíblia, como, por
exemplo, a teologia, como também alguns periódicos, como o jornal "Mensageiro
da Paz", fundado em 1930, que tinha a missão de ser o "órgão oficial da
Assembléia de Deus", e a revista "A Seara", lançada em 1956, que tinha como
características ser “portadora de idéias novas da igreja e de valorização à cultura":
Nela se enfatizava o valor da cultura, estimulavam-se os jovens a estudar e divulgavam-se notícias sobre formaturas e outros acontecimentos que serviam de incentivo para muitos. Os crentes eram convocados a serem o "sal da terra", a influir na sociedade, a recusar o papel de alienados. A revista era usada como incontestável resposta às palavras depreciativas dos que apresentavam os pentecostais como incultos e obscurantistas. […] Ao revelar grande apreço pelos pastores e sem minimizar-lhes a colaboração, "A Seara" abria à mocidade o espaço de que carecia para sua iniciação nas letras, revelando vários talentos. (OLIVEIRA, 1998, p.156)
Alguns escritores apontavam a influência da religião na instrução popular, com
também incentivavam os crentes21 a buscarem uma melhor formação bíblica e uma
maior escolaridade. Quando algum crente alcançava a formação superior era
motivo de orgulho para a igreja, sendo o fato merecedor de destaque em suas
publicações:
Alegramo-nos por observar mais uma vitória de nossa igreja, pois Alcídio Donato, jovem membro da igreja de origem muito simples, pôde com o auxílio de uma bolsa do estado [sic. Em lugar de 'de estudos'] terminar os seus estudos de medicina. (A SEARA, 1956 apud OLIVEIRA, 1998, p. 157)
[...] Assim seja em grêmio do colégio, seja em associação outra qualquer, nossa atividade deve ser exclusiva na parte que se refere às letras e ao intelecto. Sempre que hajam conferências, estudos, etc; nossa presença deve ser frequente" […] Através das colunas do "Mensageiro da Paz", órgão oficial das Assembléias de Deus no Brasil, dou meu sincero testemunho para que seja conhecido de toda juventude, principalmente, evangélica nacional. […] Primeiramente agradeço a Deus a imensa vitória que ele me concedeu -
20 Os materiais religiosos da igreja eram editados pela Casa Publicadora das Assembléias de Deus (CPAD) fundada em 1940. Ver, entre outros, Encarnação (1999). 21 Utilizamos a expressão “crentes” nos referindo aos membros ou seguidores da igreja.
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Minha formatura pela faculdade de Medicina. (MENSAGEIRO DA PAZ, 1966 apud ENCARNAÇÃO, 1999, p. 133)
A necessidade de preparo dos pregadores motivava alguns autores, principalmente
da revista A Seara, a incentivarem a procura pela leitura de outros livros, além da
Bíblia. Para eles, os membros da igreja precisavam de maior instrução, e isto
jamais seria adquirido com a leitura apenas do livro sagrado:
Cumpre-nos frisar, logo de início, que somos frontalmente discordantes do conceito de alguns, quando afiaçam ser a Bíblia Sagrada o único livro que merece consideração e estudo. É o livro dos livros, indubitalvelmente não é, porém, o único livro.[…] Muitos há que intentam usá-la com leitura esclarecedora para quaisquer assuntos de natureza diversa, não raro inteiramente afastados das questões de ordem espiritual. […] Os evangélicos que escalam altas montanhas do fanatismo com o risco de tombarem ao profundo abismo da loucura, querem-na não somente para orientação de sua vida espiritual, mas do Livro Santo procuram fazer uso como se fora ele um manual original, enciclopédia no qual se deveriam encontrar lições para a resolução de problemas de qualquer natureza.[…] Pastores que procurem instruir-se, lendo bons livros sobre o assunto (nós mesmos lhes poderemos indicar algumas obras importantes), […] (OLIVEIRA, 1957 apud ENCARNAÇÃO, 1999 p. 110-111)
Ainda segundo Encarnação (1999), o Mensageiro da Paz convidava os seus leitores
a ajudarem o jornal com uma contribuição, para uma melhor produção e a
circulação dos materiais impressos, já que a Casa Publicadora não tinha sede
própria. Com a ajuda prestada, os impressos continuariam circulando, e,
conseqüentemente, o leitor era quem estaria se beneficiando, pois não deixaria de
ler os materiais produzidos pela igreja:
“Pague o valor de um metro quadrado do edifício-sede da Casa Publicadora… mande uma oferta mensal para a conta da sua Publicadora!" […] Ajudando a construir a sede da sua PUBLICADORA você estará ajudando a si próprio, com a leitura de livros, jornais, revistas, folhetos etc, que invadem os lares de milhões de brasileiros levando gloriosa palavra que lhe produzirá salvação. […] A página IMPRESSA é a maior forma de evangelização do povo. (OLIVEIRA, 1956 apud ENCARNAÇÃO, 1999, p.115-116)
No entanto, segundo Encarnação (1999), as antigas lideranças da igreja
discriminavam fortemente a idéia de uma formação bíblica ou de preparação,
inclusive teológica, para a prática, por exemplo, da pregação; assim, os impressos
publicados pela igreja também traziam matérias nas quais ficava evidente a não
aceitação por parte deles ao que chamavam de "modernismo":
"Cuidado com o Modernismo" Naquele tempo não se cogitava de pregadores de forma… nem era preciso andar com a gramática na maleta, para aprender a conjugar verbos, o Espírito Santo, não faltava nas igrejas, e estas possuiam o verdadeiro alimento. (MENSAGEIRO DA PAZ, 1963 apud ENCARNAÇÃO, 1999, p.134)
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Essa dicotomia de idéias sobre o preparo ou não dos crentes para as práticas
religiosas do ensino e da pregação permaneceu nas discussões entre os líderes da
Assembléia de Deus pelo menos até meados de 1970, período final de nossa
investigação.
3. METODOLOGIA
3.1 Procedimentos metodológicos
Como a pesquisa trata de um período recente, utilizamos os depoimentos orais
como fonte primordial para tentarmos reconstruir as histórias de vida dos sujeitos
investigados. Logo, baseamo-nos na “História”22 Oral, que constitui uma
abordagem teórico-metodológica que possui determinadas especificidades quanto
aos procedimentos de recolhimento dos depoimentos, mas também de transcrição,
categorização e análise dos indícios da memória como fonte historiográfica.
Assim, a História Oral permite "dar vozes" a indivíduos e/ou grupos sociais (como
as mulheres, os negros, os índios, e, no nosso caso, os pentecostais) que durante
muito tempo não ocuparam o lugar dos que podiam falar e serem ouvidos pelos
historiadores da história tradicional.
Algumas atenções peculiares para se trabalhar com a fonte oral foram importantes
durante o desenvolvimento da pesquisa para o não comprometimento de seus
resultados: em primeiro lugar, observar a melhor situação para a entrevista para
um recolhimento bem sucedido do depoimento do indivíduo, em relação à qualidade
das gravações; em segundo lugar, um cuidado para tentar controlar a influência
que entrevistador acaba tendo em relação ao entrevistado.
A narrativa gravada em uma entrevista não se constitui na memória propriamente, pois esta é inacessível: configura-se como a construção de uma determinada vivência a partir da memória. Durante o processo de rememoração o depoente estabelece relações entre as suas próprias experiências que o permite reconstruir seu passado segundo uma determinada estrutura, consciente ou não. (FERNANDES; MONTENEGRO, 2001, p. 92)
22 Utilizamos o termo “História” entre aspas na medida em que comungamos da concepção de alguns autores de que a “história” em si não é oral, mas as fontes utilizadas para construí-la. Ver Ferreira e Amado (1996).
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As entrevistas enfatizam a memória dos sujeitos em relação a vários aspectos de
suas vidas, como suas origens familiares, a escolarização, a profissionalização, o
processo de conversão à igreja, seus envolvimentos com as práticas religiosas,
suas formações e práticas de leitura e de escrita. As entrevistas não obedeceram a
um roteiro rígido, os sujeitos eram livres para falar sobre suas trajetórias de vida.
Porém, em alguns momentos, apresentamos questões, a partir das afirmações
postas pelos próprios sujeitos a fim de que eles ativassem os indícios de suas
memórias, já que o historiador que trabalha com a memória deve levar em conta
as múltiplas mediações nesse processo (THOMPSON, 2001).
Embora os depoimentos orais constituam a principal fonte utilizada na pesquisa,
também procuramos buscar a reconstrução de dados estatísticos referentes às
taxas de alfabetização e escolarização23 e à participação da população nas
diferentes denominações religiosas24 nos espaços e períodos investigados tomando
como base dados estatísticos do IBGE e de estudos já realizados sobre o tema.
Buscamos também pesquisar dados nos próprios acervos da Assembléia de Deus o
que, infelizmente, não foi possível, pois não existe acervo na igreja matriz da
Assembléia de Deus no Recife-PE que possa ser consultado: sabemos, no entanto,
da existência de fichas individuais dos membros da igreja nas quais constam dados
que seriam úteis ao desenvolvimento da pesquisa, como a profissionalização, a
escolaridade, a naturalidade etc. No entanto, segundo os representantes da igreja,
as fichas são confidenciais e se restringem a interesses da hierarquia da igreja.
Consultamos também a dissertação de mestrado de Encarnação (1999), em que
foram utilizados fontes do período que estamos estudando, como revistas e jornais
da Assembléia de Deus. As fontes utilizadas na dissertação encontram-se na
23 Esses dados, que são importantes para fazermos uma leitura sociológica dos períodos e espaços estudados, referem-se à religião protestante como um todo, pois não conseguimos encontrar nas fontes pesquisadas, como nos Censos Demográficos e nos Anuários Estatísticos, informações que tratassem especificamente dos pentecostais. No entanto, como podemos perceber na tabela 1 em anexo, os protestantes, no contexto brasileiro, apresentam um crescimento significativo no período de 1960 a 1970. Observa-se, também, no mesmo momento, um crescimento dos índices de alfabetização. A tabela também mostra um número relevante de pessoas que não declararam a religião, talvez – é uma hipótese –, por não se auto-denominarem ou se auto-identificarem com as religiões apresentadas. Em contrapartida, podemos ver na tabela 2 em anexo, que desdobra o número de evangélicos ou protestantes em tradicionais e pentecostais, que os pentecostais no período de 1960 a 1970 apresentam um grande crescimento em relação aos evangélicos tradicionais ou protestantes históricos. Ver também Mendonça e Velásques Filho (1990), assim como Silva e Barbosa (2003). 24 Dentre as religiões apresentadas na tabela em anexo percebemos também a manutenção da religião católica como predominante da maioria da população do país.
13
Biblioteca da Casa Publicadora das Assembléias de Deus (CPAD) no Rio de Janeiro.
A CPAD do Recife não possui biblioteca ou acervo.
3.2 Os sujeitos investigados
A quantidade de sujeitos a serem investigados para o desenvolvimento da pesquisa
não foi determinada a priori, na medida em que nosso objetivo era tentar
compreender o papel desempenhado pelas práticas religiosas pentecostais na
inserção de indivíduos na cultura escrita. Não buscamos, assim, generalizar
resultados, mas buscar compreender os modos pelos quais essa inserção se deu na
trajetória particular de sujeitos. Dessa forma, o processo de escolha dos indivíduos
investigados se baseou no critério da intimidade que eles demonstravam possuir
com a leitura e a escrita a partir de suas conversões e atuações nas práticas
religiosas da igreja; logo, para o estudo, era importante identificar indivíduos
membros da Assembléia de Deus entre 1950 e 1970, “não herdeiros”, que
demonstrassem uma certa intimidade ou gosto pelas práticas de leitura e escrita,
construídos, sobretudo, nas suas experiências religiosas.
Considerando os critérios expostos, identificamos, ao longo do processo de
pesquisa, apenas três sujeitos que atenderam àquele perfil que nos propomos a
investigar25 e foi com base nos depoimentos desses sujeitos que realizamos a
pesquisa. Nesse sentido, a escala de observação com a qual trabalhamos foi a
micro-histórica26. Como afirma Jacques Revel (1998):
A aposta da análise microssocial (...) é que a experiência mais elementar, a do grupo restrito, e até mesmo do indivíduo, é a mais complexa e porque se inscreve no maior número de contextos diferentes (p.32)
No entanto, como afirma o mesmo autor, não se trata de opor o nível micro ao
macro ou estabelecer uma hierarquia entre eles, mas “reconhecer que uma
realidade social não é a mesma dependendo do nível de análise (...), da escala de
observação” (p.12):
Não para ceder novamente à vertigem do individual, quando não do excepcional, mas com a convicção de que essas vidas minúsculas também participam, à sua maneira, da ‘grande história’ da qual elas dão uma versão diferente, distinta, complexa. (p.12)
25 Durante o processo de entrevista percebemos que os sujeitos, ao longo de suas trajetórias na igreja, foram ocupando certas posições de liderança. 26 Sobre a micro-história, ver, entre outros, Revel (1998), Ginzburg, (1989), Levi (1992).
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O primeiro entrevistado foi identificado através de indicação de uma colega e
mestranda em educação. Trata-se de Armando Severino da Silva, nascido em 1941,
em Aliança-PE, filho de um supervisor de usina de açúcar e de uma dona de casa
pouco escolarizados e católicos, converso à igreja aos 23 anos. Trabalhou parte da
sua vida como eletricista e, tardiamente, concluiu o curso superior em Teologia.
Armando foi entrevistado para a pesquisa em três ocasiões, resultando em um
depoimento de cerca de cinco horas de duração.
O segundo sujeito foi identificado a partir de uma rede de relações no interior da
própria igreja: depois de uma conversa com duas senhoras, que não se
enquadraram no perfil investigado, conseguimos a indicação de um sujeito que
também não atendia aos critérios da pesquisa, mas que nos indicou um outro
indivíduo que faz parte de nossa investigação. Trata-se de Ademir Alves, nascido
em 1955 em Timbaúba-PE, filho de um pedreiro e pequeno comerciante e de uma
costureira semi-alfabetizados e católicos. Converso à igreja desde os 12 anos,
cursa, atualmente, o ensino superior. Trabalhou, inicialmente, em uma oficina
mecânica e, posteriormente, em uma distribuidora de discos evangélicos e em um
escritório. Foi entrevistado duas vezes, o que resultou, também, em um
depoimento de aproximadamente cinco horas.
Conseguimos identificar outros sujeitos que pareciam se aproximar do perfil
pesquisado, através de indicação de pessoas conhecidas e que são membros de
igrejas vizinhas a que freqüentamos: um total de 8 (oito) pessoas. Dentre esses
sujeitos, apenas um se aproximou realmente do perfil pesquisado; foi entrevistado
depois de recuperar-se de um tratamento de saúde. Trata-se de Elias Antonio dos
Prazeres, nascido em 1945 em Paudalho-PE, filho de plantadores de roça de
mandioca e também feitor e vendedor de farinha, semi-alfabetizados e pentecostais
da Assembléia de Deus. Nasceu em uma família formada por onze irmãos e pais
evangélicos, que o levavam desde criança para a igreja Assembléia de Deus em
Paudalho. Sua primeira profissão foi a mesma do pai e ensinada por ele. Devido à
necessidade de trabalhar estudou primeiro até a 4a série, e só depois de casado
chegou até a 8a série. Foi entrevistado duas vezes gerando um depoimento de
duas horas e meia, aproximadamente.
4. ALGUNS RESULTADOS
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4.1 A intimidade dos pentecostais com as práticas de leitura e escrita:
fatores influenciadores e usos possibilitados
Alguns fatores diretamente relacionados às práticas religiosas parecem ter sido
fundamentais para uma maior familiaridade dos sujeitos entrevistados com a leitura
e a escrita, como, por exemplo, a tradição da igreja em permitir que qualquer
membro se expressasse oralmente na dinâmica dos cultos e das práticas religiosas,
como se pode perceber nos depoimentos abaixo:
[…] nas outras classes era: “Irmão, dê uma palavrinha aqui na minha classe, outra palavrinha aqui”. Quando eu terminava de uma já tinha outra me chamando, eu ficava rodando muito assim, porque eu estudava a minha lição […] a semana toda, todo dia eu estudava a lição [...] eu tinha uma facilidade [...] (Armando).
[...] como aluno da escola dominical [...] sempre estive presente, freqüente, bastante aplicado, tanto que às vezes o professor na época, ainda assim criança, me chamava pra ler alguma coisa, dizer na classe [...] quando tinha [...] meus doze, treze anos, que ele me chamava pra falar, muito tímido assim... Também saía pra evangelizar, desde criança que praticava a evangelização porque a Assembléia de Deus tem esse trabalho de evangelhismo [...] e eu sempre pratiquei e logo cedo, não apenas como acompanhante no grupo, mas falando mesmo, ensinando mesmo [...] (Ademir).
[…] comecei muito novo, quando já garotinho, pequeno […] eu tive o privilégio de estar na igreja já pregando, recitando poesia… isso eu andava de onde morava três quilômetros ou quatro pra chegar ali, então eu fazia esse trabalho e, por aí fui me desenvolvendo tomei partida certa naquilo que eu estava fazendo […] (Elias)
Como ouvintes, Armando e Ademir procuravam marcar os trechos dos assuntos
lidos da “Lição bíblica” considerados importantes. Escreviam as suas opiniões sobre
o assunto a ser discutido na escola dominical ou mesmo em um culto de estudo
bíblico antecipadamente, ou seja, durante a semana em suas residências.
[…] às vezes eu levava mais folhas do que tinha na minha lição (risos) era um outro estudo pegando só os tópicos da lição e com outros estudos, […] sempre o assunto que surgisse eu meu interessava […] (Armando)
No momento da discussão, eles se remetiam, através da fala, às observações
escritas em casa, para que suas opiniões fossem socializadas com os demais
participantes na escola dominical e na campanha de evangelização, inclusive em
momentos de estudo. Um fator interessante observado na pesquisa é que esses
dois sujeitos entrevistados tinham o apoio da igreja para realizar estudos paralelos
16
aos cultos da igreja. Eles organizavam esses estudos – cujo público era formado
por jovens – com o objetivo de formar “melhores pregadores”, pois acreditavam
que o improviso não era interessante e que todo pregador da igreja tinha que ter o
mínimo de preparo para evangelizar:
[…] no começo assim, já no fim da adolescência, no início, assim, dos meus 20 anos, porque além de eu ensinar na ESTEADENE, hoje ESTEADEB27, eu ensinava na escola dominical [...] e dirigia a campanha de lá também [...] como eu dirigia a campanha [...] tinha certa liberdade de agir, trabalhar com os jovens, então sempre organizei estudos com jovens [...] no sábado de manhã passava a manhã estudando com base na Bíblia [...] eu preparava um material pra passar pra eles assim, como uma preleção, ensinando, falando mesmo, agora, sempre fazia uma avaliação. (Ademir).
[…] eu fazia os estudos independentes, assim aos sábados [...] eu fazia dois estudos […] sempre incentivando a mocidade a estudar […] especificamente a Bíblia […] aí eu fazia estudos detalhados pra eles, estudos seqüenciados […] muitos deles tava lá tentando sair do ostracismo e não conseguia, não é que não quisessem, não sabiam como sair. O [...] dirigente […] tem que dar noções pra eles saberem como extrair um estudo, fazer um estudo, uma seqüência de estudos, como começar um sermão […] Eu pegava o pessoal no sábado ao invés de ir pra campanha tinha instrução de como é que se prega […] (Armando)
O fato dos três sujeitos se tornarem, aos poucos, líderes das práticas que antes
participavam como ouvintes é um fator importante em suas trajetórias como
leitores e escritores. O conhecimento que demonstravam através da oralidade nas
práticas da igreja era evidente e parece ter permitido que se destacassem entre os
membros pelo conhecimento bíblico e pelo gosto pelo ensino, principalmente na
escola dominical e na campanha de evangelização. Em pouco tempo Armando e
Ademir tornaram-se adjuntos de professores, professores e depois líderes da escola
dominical. A posição que ocupavam permitia o acesso deles, no templo central, ao
chamado “estudo” dos professores, reunião que acontecia regularmente aos
sábados à noite que tinha o objetivo de reunir os professores para estudarem o
assunto da “Lição bíblica” a ser ensinada por eles mesmos na manhã do dia
seguinte na escola dominical. Antes das reuniões, Armando e Ademir procuravam a
livraria da igreja situada ao lado do templo central na busca por mais informações,
ou seja, por leituras que complementassem o que ensinavam:
“[...] quase todo sábado que eu ia pra o templo central, eu ia mais cedo e ficava ali na livraria […] aí eu sempre comprava um livro novo […] Eu sempre gostei muito de livro, meus assuntos, eu nunca me baseei exclusivamente no que a pessoa me diz, eu sempre gosto de investigar, aprender um pouco mais […]” (Armando).
27 A ESTEADENE era a Escola de Teologia das Assembléias de Deus no Nordeste e a ESTEADEB, a Escola de Teologia das Assembléias de Deus no Brasil.
17
Para Elias, a escola dominical foi um espaço inicialmente de aprendizado da leitura
quando criança e o material de leitura importante foi a Lição Bíblica, acompanhada
da leitura da Bíblia. O fato de freqüentar um espaço em que tanto a escrita como a
oralidade estavam presentes parece ter contribuído para a melhoria de seu
conhecimento; mesmo com um nível baixo de escolarização, ele chega a alcançar
o pastorado, uma das maiores posições de liderança da Igreja:
Continuei lendo a Bíblia, fui crescendo ficando mais idôneo e logo depois de um tempo já comecei trabalhando na igreja acompanhando a escola dominical… um livro que me ajudou muito: a Lição […] Bíblica da escola dominical que eu tive o privilégio de acompanhar […] desde criança, mesmo antes de saber ler, estava ali sentado numa classe de escola dominical aprendendo […] aprendia algumas coisas, mas quando aprendi ler aprendi mais, então continuei lendo a lição da escola dominical e fui tendo mais prazer de ler a Bíblia. Pegava a Bíblia, a lição, a Bíblia, a lição e lia em conjunto, e fui me desenvolvendo, tendo conhecimento, apesar de não ter um estudo tão elevado para ser o que sou hoje, um pastor evangélico da igreja evangélica Assembléia de Deus, mas o homem que estuda a Bíblia ele tem conhecimento […] (Elias)
O gosto pelo ensino bíblico advinha, segundo Armando e Ademir, do grande
interesse que começaram a ter pela leitura da Bíblia e por materiais escritos
religiosos, principalmente livros sobre assuntos e temas teológicos e outros, mais
didáticos, que orientavam o leitor como pregar, como evangelizar e como ensinar.
Entre esses, incluem-se revistas como as “Lições bíblicas”, utilizada no ensino da
escola dominical e “A Seara”, utilizada para o conhecimento das atuações e idéias
da igreja; jornais, como “O Mensageiro da Paz”, utilizado como fonte de informação
sobre as notícias da igreja e apostilas sobre diversos temas ou assuntos religiosos.
Esses impressos, já referidos anteriormente, foram utilizados pelos sujeitos tanto
para suas formações religiosas como para a atuação, mais adiante, como
professores da escola teológica das Assembléias de Deus.
[…] Lia aquela revista da escola dominical […] tinha uma revistinha que eu lia […] acho que era A Seara, tava sempre por lá essa revista, muita informação muita coisa, muitos trabalhos, eu lia aquilo ali […] material evangélico lá em casa não faltava pra gente ler, e eu sempre eu gostei de ler, uma coisa que eu sempre tive comigo foi gostar de ler, eu sempre gostei muito de ler, independente do que for eu gosto muito de ler, e no caso eu estava interessado nessa área religiosa, eu lia muito material que estava lá na casa […] (Armando) [...] eu escutava uma pregação, eu não me conformava de só ouvir e achar que se eu repetisse aquilo seria bom, não era! Saber as fontes daquilo ali. Por quê? Como ele chegou àquilo ali? E isso precisa de você estudar mais.” [Armando].
O fato de morar no interior era uma dificuldade para Elias ter acesso a outras
18
leituras além da Bíblia; no entanto, as posições de liderança na igreja
progressivamente alcançadas parecem servir de grande impulso para que ele enfim
se inserisse na cultura urbana e buscasse uma estratégia de adquirir as leituras que
agora lhe interessavam. A forma de ele obter os livros foi através de pregadores de
outros lugares que vinham à capital para serem preletores de estudos promovidos
pela igreja central e venderem seus livros nos eventos.
Mas naquele tempo, quando eu comecei na escola dominical, […] lendo a lição da escola dominical e tal […] foi quando eu fui tendo o interesse de conhecer mais, foi quando foi surgindo […] alguns livros ainda muito novo, tinha dificuldade pra isso de conseguir os livros, não era muito fácil, porque eu morava no interior […] tinha pouco acesso […] aqui à cidade, o Recife, pra conseguir esses livros, então […] eu me acomodei um pouco de pegar livro, pegava um livro e ficava ali, quando eu comecei já sendo aproveitado na obra: dirigindo uma campanha evangelizadora, já dirigindo um culto como auxiliar, e foi por ali como diácono, foi nesse tempo que eu fui sentindo a necessidade de ler mais, de conhecer mais, então eu comecei já andando pra dentro, pra cidade, já fui pegando já outros livros, tinha a escola bíblica, então tinha aqueles irmãos que vinha de fora mesmo trazendo, vindo de São Paulo, vinha dos Estados Unidos, vinha de Brasília, vinha do Rio de Janeiro, homens que vinham dar estudo, o missionário Eurico Begi, também vinha e aqueles livros que eles traziam pra vender aos irmãos, aí eu sempre comprava um, dois, […] aí eu fui fazendo uma coleção […] (Elias)
Ao longo de suas trajetórias como leitores, Armando e Ademir também
demonstraram interesse pela prática social da escrita, uma escrita de cunho
religioso, como esboços, utilizados na prática da oralidade na dinâmica dos cultos e,
posteriormente, apostilas, sobre diversos assuntos/temas lidos na Bíblia e em livros
religiosos, com o objetivo de subsidiar uma melhor formação religiosa dos seus
liderados, a princípio, da escola dominical e da campanha de evangelização, e
depois, da escola teológica da igreja. Alguns desses escritos, como é o caso das
apostilas, passaram a ser material didático do curso teológico da igreja:
Eu tenho muitos assim… anotações assim… esboços… dezenas... tenho mais de cem prontinhos, digitadinhos, impressos, e alguns até impressos antigos ainda de máquina de datilografia, mas que eu xeroquei e estão guardados e que eu uso pra falar na igreja: esboços, bastante anotações das minhas coisas, que eu tenho muita coisa anotada que se eu fosse desenvolver dava pra fazer um livro […] e rascunhado também […] anotações esquematizadas para uma necessidade de uma palestra pra ensinar, que eu gosto muito de ensinar […] (Ademir).
No entanto, constatamos que a relação dos três sujeitos entrevistados com a leitura
e a escrita não é somente determinada pelas práticas religiosas. Os próprios
entrevistados atribuem essa relação a outros fatores, dentre eles a experiência de
já serem leitores antes do ingresso na igreja, no caso de Armando e de Ademir, a
influência da família, a escolarização, a ocupação profissional e a inserção na
19
cultura urbana. Tanto Armando quanto Ademir afirmam que já eram leitores
mesmo antes de ingressarem na Assembléia de Deus e possuíam muitos livros que
faziam parte de suas bibliotecas pessoais. Logo, o hábito e o gosto pela leitura já
existiam, embora ampliados pela nova condição/experiência vivenciada:
Depois que eu fui crente, aí eu passei a […] comprar livros bíblicos: então, eu comprei dicionário bíblico [...], teologia sistemática [...] é um compêndio das doutrinas [...] vários livros [...] sobre sermões. Eu comprei livro de pregação, que é de homilética [...] homilética é assim como falar, como pregar, comportamento no púlpito, tinha esse livro aí. Tinha outro livro também muito interessante que era livro prático [...] de um pregador [...] americano, o livro dele é muito espiritualista, ele faz cruzadas [...] me impressionou muito aquele livro dele [...] ele trabalha com uma profundidade, com fatos reais, contando as campanhas dele, contanto que cada crente pode ser uma pessoa igual a ele, com fundamentos bíblicos [...] aquele livro era o livro de minha cabeceira [...] Acho que ainda hoje eu devo ter ele em casa. […] Eu tenho muitos livros perdidos, mas tem muito livro também ainda em casa, muito livro [...] tem de tudo, de eletrotécnica […] livros de eletricidade, livros de inglês [...] esses cursos de correspondência você trabalha com muita apostila, então eu tinha um pacote assim de apostila […] você quase não precisa comprar muito livro, mas tinha assim […] manual de eletricidade […] coleções de desenho mecânico, coleções de torneiro mecânico […] eletrônica […] (Armando) Ah... Desde a minha infância [...] gostava de ler […] Depois de um tempo aí quando comecei a ler, assim por volta dos nove anos, um livro mesmo foi A História Sagrada. […] eu li ele todinho, ele todinho […] as coisas que comprava gostava de ler, até, até folheto! […] uma vez eu peguei, achei uma literatura evangélica, […] eu me lembro com dez anos de idade, e li aquela literatura […] daquela época duma associação missionária […] esse folheto evangélico com quatro páginas, perto dos dez anos, […] revistas eu gostava de ler, antes desses folhetos evangélicos, revistas, aqueles gibis, […] histórias em quadrinhos, também aquelas histórias […] dos super-heróis daquela época […] farwest, […] eu me recordo que gostava de ler, mas a vontade maior, a motivação maior pra ler veio depois que eu me decidi pra valer […] depois que eu comecei a ler a Bíblia, ai criei gosto, […] de estrutura assim a Bíblia é um livro […] diferente, que me motivou muito a ler, ler ele todo, inclusive, ler ele várias vezes […] (Ademir)
Os depoimentos anteriores mostram as preferências de leitura dos entrevistados e,
no caso de Armando, especificamente, a posse de livros e apostilas de seu
interesse. Com base em Galvão, et al (2004), reconhecemos, como os historiadores
da leitura já fizeram, que a posse desses materiais não significa, necessariamente,
a sua leitura, enquanto a não posse, por outro lado, não é sinônimo de não leitura.
Os depoimentos também revelam uma incorporação de bens culturais não-
herdados pelos sujeitos, como os materiais escritos.
O fato de Elias ter nascido num lar de família evangélica parece ter influenciado a
sua preferência desde criança pela leitura religiosa. A Bíblia, para ele, tem um
20
grande valor simbólico; logo, tratava-se de uma leitura indispensável na sua
formação religiosa e que deveria ser complementada e não totalmente substituída
por outras leituras.
[…] Mais tarde quando aprendi ler, aprendi ler a Bíblia e tomei gosto em ler a Bíblia, eu achei que o melhor livro que tem pra se ler no mundo e o mais certo e mais correto […] é a Bíblia e não existe outro. Pode vir todo tipo de livro, mas todo ele só pode ser depois da Bíblia, […] e nesse período de tempo acompanhei outros livros. […] eu gostei de ler muito […] livros que falavam sobre a igreja, como a igreja se originou, a história da igreja, gostei muito, entre outros livros que eram extraídos da Bíblia, confeccionados por alguns escritores que tiravam da Bíblia para levar esse conhecimento já a outras pessoas que se ligavam a Bíblia e se confrontavam com esses livros para ter mais conhecimento. Então eu li bastante livro, comprei bastante livro. […] Eu gostava, às vezes eu pegava o catecismo com alguém […] pegava […] jornais da igreja mesmo […] da igreja católica que distribui na cidade […] gostava de ler pra tomar conhecimento também daquelas coisas que acontecia lá. […] jornal. […] eu nunca fui de tá olhando televisão, essas coisas então eu gostava de ler jornal pra puder […] ficar a par de alguma coisa, então a gente tinha conhecimento por isso ai, hoje eu não leio mais jornal, eu gosto de assistir o repórter num rádio que eu tenho […] Eu lia a Bíblia Católica, gostava de ler Católica, porque até que encontrei nela verdade da palavra de Deus […] a gente chama Bíblia Católica, mas não tem nada de Bíblia Católica é Bíblia Evangélica […] (Elias)
A família, principalmente a mãe28, para os entrevistados, teve um peso
fundamental em suas trajetórias como leitores e “escritores”. Mesmo tendo pouca
escolaridade, ela aparece como grande incentivadora tanto de suas formações
escolares como de sua formação como leitores, principalmente da Bíblia:
[...] quando nos tornamos evangélicos, mamãe tinha esse Novo Testamento e essa foi a Bíblia que a gente começou a ler, eu recordo como era interessante: depois das refeições ela se sentava [...] sentava-se à mesa e ela chamava a gente pra cercar a mesa juntamente com ela e papai também se assentava quando estava em casa disponível pra ler a Bíblia e quem lia era ela, todos nós ali assentados e ouvindo ela ler a Bíblia, eu achava interessante uma pessoa sem cultura [...] às vezes as pessoas fazem isso porque têm uma orientação pra fazer [...] educar os filhos dessa forma, mas ela não tinha nenhuma orientação, mas foi levada, creio, pelo gosto de ler a Bíblia e a gente também: gostávamos de ouvir ela lendo, até era uma descoberta pra gente [...] (Ademir). […] De repente eu comecei a ler a Bíblia, trechinhos, de repente por quê? Antes de eu começar a ver alguma coisa de Bíblia a gente tinha lá a Bíblia Católica, a minha família era católica, bem católica mesmo […] minha mãe, meu pai […] essa estrutura católica existia […] Depois começou a infiltrar o evangelho na minha família, começou com o meu irmão […], depois minha mãe foi crente, foi a maior coisa que aconteceu foi ela ser crente! […] (Armando)
28 Outros estudos também têm mostrado o papel da mãe na inserção de indivíduos não herdeiros na cultura escrita e na construção de uma bem sucedida trajetória de escolarização. Ver Silva (2005).
21
Armando relata que a cunhada recém-conversa à igreja também teve um papel
muito importante no processo de sua conversão, pois ela incentivava-o a ler
trechos da Bíblia e da Harpa Cristã. A atitude dela parece motivá-lo ainda mais pela
leitura religiosa, como demonstra o depoimento a seguir:
"[…] através dessa esposa de meu irmão, ela tava sempre lá em casa, muito minha amiga, ela ficava marcando os versículos, olha lê isso aqui, viu? Ó, lê isso aqui […] ela chegou a me mostrar algumas partes do Apocalipse […] aquilo ali eu achei muito interessante […] os trechos que ela indicava […] trechos relacionados à salvação, marcava assim alguns hinos da Harpa [..] e eu lia, realmente eu lia o que ela marcava assim, o que ela não marcava eu também lia, e aquele ambiente de mudança me chamou atenção […] (Armando)
Os pais de Elias desempenharam papel importante na sua formação como leitor.
Ambos semi-alfabetizados, eram bastante atuantes nos trabalhos da igreja,
pregavam nos cultos, mas nunca ocuparam posição de liderança. No entanto,
realizavam cultos com toda a família dentro de casa, onde todos, sem exceção,
participavam seja através do cântico, seja através da leitura de textos bíblicos:
[…] Meu pai não estudava, leitura pouca […] minha mãe também muito pouco […] mas mesmo assim sabia pregar a palavra de Deus, todos dois permaneceram crentes [...] e minha família toda era evangélica, minha mãe […] eu muito novo, ela me levava pra igreja […] e eu aprendi a caminhar, os primeiros passos dei com a minha mãe […] Meu pai nunca ele foi, nem um auxiliar de trabalho, ajudava, pregava […] tinha muitos momentos naquele culto de louvor em casa: cantava, se lia e fazia o trabalho da família […] o trabalho da casa dá-se o nome de culto doméstico. Tinha trabalho também da igreja dentro de nossa casa […] muitos anos, anos […] de ser construído o templo […] a gente tinha ali um trabalho maravilhoso com bem pouquinho crente [...] parte da família [...] moravam perto e com que se fazia o culto [...] (Elias)
Em relação à escola, Armando e Ademir, quando crianças, destacavam-se como
primeiros alunos, muitas vezes eram chamados para ensinar ou mesmo
encarregados de substituir o professor no caso de uma doença29. Ambos possuem
uma escolarização até o nível superior (completo e incompleto), com muitas
interrupções ao longo de suas trajetórias30, que parece ter sido alcançada pelo
desejo de “progredir” ou de “avançar” e, em alguns casos, motivada pela
religiosidade: um deles fez curso superior na área de teologia em um instituto de
formação teológica quando morou por um tempo em São Paulo, com a finalidade de
utilizar o conhecimento adquirido pela formação nos trabalhos que foram aos
poucos se consolidando na igreja, como a escola de teologia das Assembléias de
Deus, da qual ambos foram, durante certo tempo, professores. Ademir, em sua
trajetória, fez vestibular para economia, cursou apenas três períodos e depois
29 Para um aprofundamento sobre a adequação aos papéis escolares das crianças de camadas populares que obtêm sucesso escolar na França contemporânea, ver o já clássico estudo de Bernard Lahire (1997). 30 Para um estudo sobre a não linearidade que caracteriza, em geral, as trajetórias de escolarização das camadas populares no Brasil contemporâneo, ver Nadir Zago (2000).
22
acabou trancando porque não se identificava com o curso e por problemas
pessoais. Atualmente, faz o curso de graduação em História em uma universidade
federal. Em contrapartida, Elias, ainda muito jovem, foi obrigado a trabalhar com o
pai na lavoura para ajudar no sustento da família, por isso precisou parar por um
tempo de estudar chegando inicialmente até a 4a série; depois passou a estudar à
noite e só chegou até a 8a série depois de casado. Mesmo assim, o pai incentivava-
o a estudar, pois desejava que os filhos tivessem uma melhor formação que a dele.
Um outro fator relevante para a inserção na cultura escrita dos sujeitos é a
ocupação profissional por eles desempenhada. Armando trabalhou dos doze aos
dezenove anos em uma oficina de rolamento de motores, na área de eletricidade,
que exigia apenas o conhecimento prático da atividade. Foi observando o
conhecimento do seu chefe, um profundo conhecedor da área e, segundo ele, a
partir da necessidade de conhecimento teórico que a profissão exigia, começou a
fazer vários cursos por correspondência sobre o tema e outros afins. Para Armando,
tratava-se de um tipo de leitura muito importante naquele momento de sua vida,
principalmente porque ele desejava se profissionalizar na área. Outros cursos por
correspondência também foram feitos por ele como os de inglês e eletrônica.
[…] eu comprava livros, eu pedia por correspondência cursos de eletricidade, de eletrônica […] fiz eletrotécnica por correspondência, fiz eletrônica por correspondência, fiz desenho técnico por correspondência, fiz inglês, iniciei inglês por correspondência, isso entre doze e dezenove anos […] (Armando)
Ademir, no início da juventude, trabalhou informalmente em uma oficina mecânica
e depois na distribuidora de discos evangélicos de um dos irmãos mais velhos; era
nessa última atividade que tinha contato com materiais escritos como notas fiscais,
recibos e cobranças que exigiam dele leitura atenta devido às ausências
costumeiras do chefe. Para Ademir, a ausência do chefe acabava exigindo dele
certa responsabilidade pelo negócio do seu irmão e conseqüente interesse e
atenção sobre todos os materiais escritos (documentos) emitidos ou recebidos.
Posteriormente, trabalhou no escritório da distribuidora central de alimentos que
exigia dele o registro das atividades diárias da empresa, como também relatórios
mensais.
Os depoimentos acima demonstram situações em que a relação com a escrita dos
entrevistados é caracterizada pelo contato com a escrita de cunho profissional31.
31 Para compreender melhor o lugar das leituras profissionais na vida de alguns sujeitos, ver, por exemplo, Lahire (2002).
23
O fato de Elias ter trabalhado durante muito tempo ajudando o pai em atividades
manuais, como a lavoura, parece, a princípio, não ter contribuído para sua
intimidade com a prática da leitura. Assim, no caso de Elias, parece que o fato de
ter nascido numa família muito religiosa que o incentivava sempre a freqüentar os
cultos foi mais decisivo na sua trajetória como leitor.
Pode-se observar, nos percursos dos sujeitos entrevistados, o grande esforço
autodidata para se apropriarem da cultura escrita, sobretudo aquela considerada
legítima. Essa apropriação, como ocorre com os “novos letrados”32, não se deu de
forma “natural”, mas parece ter sido marcada por um progressivo crescimento
simbólico – registrado, inclusive – que marca a passagem da condição de “não
herdeiros” para as de leitores e “escritores”, como se pode ver nos depoimentos
abaixo:
Eu tinha uma estante [...] eu tinha de 500 a 600 livros [...] eu acho que eu tenho retrato disso aí, quando eu morava na Várzea, tinha uma casa muito grande [...] eu tenho foto dessa estante” (Armando).
[...] a maioria dos livros que li foram evangélicos [...] até agora eu li 280 livros evangélicos, incluindo a Bíblia que eu li 16 vezes [...] de livros pequenos de 12 páginas, 15 páginas a livros de 500, 600, 700 páginas, até enciclopédia [...] bíblica de 500 e tantas páginas cheguei a ler... [...] já gostei de ler muita revista também, jornais... Jornais evangélicos, O Mensageiro, mas revistas já li, apostilas também, já li muitas [...] tem muita coisa que eu já li e são páginas que não anotei como lidas porque foram apostilas e geralmente eu não coloco nessa minha relação de volumes lidos [...] comprei revistas evangélicas e não evangélicas também, revista Seleções, por exemplo, não evangélica, já li muitas […] já li muitas apostilas […] de seminários, de matérias teológicas e também de matérias não teológicas […] apostilas sobre geografia [...] e outros assuntos […] português... já li duas gramáticas completinhas, a gramática de Bechara, eu já li, a de… Hidelbrando [...] e outras gramáticas […] eu também gosto de ler muito de português. (Ademir)
Nesse último depoimento pode-se observar também, através da análise das
preferências de leitura do entrevistado, tipicamente a presença do autodidatismo
em sua trajetória de vida: os livros lidos são marcadamente de leitura
“interessada”, livros que são considerados úteis, em que sobressai o aspecto ético e
não estético da leitura33.
32 Para um estudo sobre “novos leitores” no século XIX, ver Hébrard (1990). 33 Para uma discussão sobre os aspectos éticos e estéticos da leitura ver Lahire, (1998).
24
5. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Mesmo investigando apenas as trajetórias de três sujeitos, podemos destacar
alguns pontos que nos auxiliam em uma melhor compreensão das relações
estabelecidas entre grupos sociais tradicionalmente associados à oralidade – no
caso, especificamente, os pentecostais da Assembléia de Deus – e suas relações
com a leitura e a escrita.
Os sujeitos entrevistados parecem desenvolver o gosto e a intimidade com a leitura
e a escrita influenciados, a princípio, pelas oportunidades que vão tendo, ao longo
de suas trajetórias na igreja, de participarem e se pronunciarem nas práticas
religiosas - quando ainda são crianças, no caso de Elias e Ademir, e jovem, no caso
de Armando. Aos poucos, eles vão deixando a condição de ouvintes para irem
ocupando determinadas funções de liderança em campanhas evangelizadoras e vão
se constituindo como professores da Escola Dominical. É no envolvimento cada vez
mais intenso com essas práticas religiosas que eles buscam, progressivamente,
novas leituras, sobretudo religiosas, e parecem desenvolver a escrita de esboços e
apostilas sobre temas religiosos - para os seus liderados - que são utilizados por
eles para a oralidade na dinâmica dessas práticas e cultos. Assim, parece que
tradição da igreja em permitir que qualquer pessoa se pronuncie oralmente e o
envolvimento intenso dos sujeitos entrevistados com práticas religiosas
possivelmente influenciadoras de uma cultura escrita foram alguns fatores
diretamente ligados à religiosidade que influenciaram a constituição dos sujeitos
como leitores e escritores.
No entanto, outros fatores como a escolarização - com algumas interrupções ao
longo da trajetória dos sujeitos -, a ocupação profissional - quando exerceram
ocupações onde a prática da escrita e a leitura eram necessárias - e a inserção na
cultura urbana - onde o impresso se encontra em todos os lugares - também foram
fatores importantes para as experiências de letramento dos sujeitos e familiaridade
deles com a cultura escrita. Por outro lado, os depoimentos dos entrevistados
expressam que a aproximação com a cultura escrita foi marcada, em suas
trajetórias de vida, por um grande esforço, sobretudo autodidata. Os entrevistados
apresentam características típicas de “novos letrados” e as relações que
estabelecem com as práticas de letramento são caracterizadas por uma não
“naturalidade” em relação às formas legítimas da cultura escrita. No entanto, por
usarem a leitura e a escrita em um espaço marcado pela oralidade, parecem sentir-
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se relativamente à vontade e em posição de destaque na prática cotidiana da
leitura e da escrita no interior da instituição.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BATISTA, Antônio Augusto Gomes, et al. Entrando na cultura escrita: percursos individuais, familiares e sociais nos séculos XIX e XX. Belo Horizonte, jul de 2002. 52 f. Projeto de pesquisa integrada. Mimeografado. BOURDIEU, Pierre. Os três estados do capital cultural. In: NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio (orgs.). Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998. BURKE, Peter (Org.). A escrita da História: novas pespectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora da Universidade Federal Paulista, 1992. 355 p. CHARTIER, Roger. Práticas de leitura. Tradução de Cristiane Nascimento. 2. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. ______. Textos, impressos, leituras. In: ______. A História Cultural: entre práticas e representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo. 2. ed. Lisboa: Difusão Editorail Ltda, 2002. p. 121-138. ENCARNAÇÃO, Maria Amélia Dantas de. Imprensa Pentecostal: a produção de uma identidade religiosa. 1999. 188 f.. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-graduação em História, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.
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7. Anexos
Tabela 1
População presente, segundo a religião e a alfabetização (1940-1980)
Especificação 1940 (a)
1950 (b)
1960 1970 (c)
1980 (c)
TOTAL
41 236 315 51 944 397 70 191 370 93 139 037 119 002 706
Religião (d)
Católica 39 177 880 48 558 854 65 329 520 85 472 022 105 861 113 Evangélica 1 074 857 1 741 430 2 824 775 4 814 728 7 885 846 Espírita 463 400 824 553 977 561 1 178 293 1 538 230 Outras 330 874 407 518 671 388 954 747 1 473 081
S/religião ou S/declaração
189 304 412 042 388 126 715 056 2 252 782
Alfabetização (e)
Sabem ler e escrever
10 379 990 14 916 779 24 259 284 35 586 771 54 793 268
Não sabem ler e escrever
13 269 381 15 272 632 15 964 852 18 146 977 18 716 847
Sem declaração
60 398 60 012 54 466 274 856 31 828
(a) Exclusive 16 713 pessoas recenseadas cujas declarações não foram apuradas por extravio de material de coleta; (b) Exclusive 31 960 pessoas recenseadas cujas declarações não foram apuradas por extravio de material de coleta; (c) População residente; (d) inclusive separados; (e) Em 1980 e 1991 dados obtidos por amostragem. FONTE: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICAS. (Brasil) Estatísticas Populacionais. In: ______. Anuário Estatístico do Brasil. v. 58, Rio de Janeiro: 1998. p. 8-9.
Tabela 2 Membros Comugantes das igrejas evangélicas tradicionais e pentecostais Evangélicos 1900 1930 1960 1970 Das igrejas tradicionais
33.530 121.879 663.968 990.161
Das igrejas pentecostais
- 44.311 705.031 1.418.933
Total 33.530 166.190 1.368.999 2.409.094 Fonte: ROLIM, Francisco Cartaxo. Religião e classes populares. Petrópoles: Vozes, 1980.