Precarizar para crescer?

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Razões para se buscar o desenvolvimento do Brasil sem a eliminação de direitos trabalhistasAutor: Rafael de Araújo Gomes, Procurador do Trabalho em Araraquara/SP

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PRECARIZAR

PARA

CRESCER?

Razões para se buscar o

desenvolvimento do Brasil

sem a eliminação de direitos

trabalhistas

Rafael de Araújo Gomes

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

CAPÍTULO 1: A retomada da agenda neoliberal e o projeto do

Código do Trabalho

1.1) Origem do projeto do Código do Trabalho

1.2) Justificativa do projeto

1.3) Alguns pontos de destaque do projeto do Código

1.4) Principais alterações contidas no projeto: prevalência

do negociado sobre o legislado, terceirização e abolição

da anotação de CTPS.

1.4.1) Prevalência do negociado sobre o legislado

1.4.2) Terceirização

1.4.3) Abolição da anotação da Carteira de

Trabalho

CAPÍTULO 2: Flexibilização, o que é?

2.1) Velhos projetos, novas palavras

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2.2) Flexibilizar “para cima” ou “para baixo”?

2.3) Promessas não cumpridas

2.4) Flexibilizar o quê?

CAPÍTULO 3: Corrida global ao fundo do poço

3.1) E que vença o pior...

3.2) Reformas na Espanha

3.3) Exemplos concretos de acentuada “competitividade”

3.4) Comparação internacional do custo do trabalho na

indústria

3.5) Sociedade X Mercado

CAPÍTULO 4: Direito trabalhista, alicerce para a paz

4.1) OIT, internacionalização de direitos e as duas guerras

mundiais

4.2) As guerras da perspectiva da elite econômica

4.3) Preparando as guerras de amanhã

CAPÍTULO 5: Mais bilionários, menos direitos trabalhistas

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5.1) O mais rico dos mundos, mas não para todos

5.2) Bilionários em profusão

5.3) A apropriação do estado e a gestação de grandes

fortunas

5.4) Sem compensações à sociedade

5.5) A bomba relógio do descontrole financeiro

5.6) Trabalhadores ficando para trás

5.7) O desafio atual dos trabalhadores brasileiros

CAPÍTULO 6: Direito do trabalho, alavanca para o

desenvolvimento

6.1) Crescer sem eliminar direitos: o “mau exemplo”

brasileiro dos últimos oito anos

6.2) Contribuição empresarial ao “Custo Brasil” e à perda

de competitividade

6.3) Favorecendo o desenvolvimento através dos direitos

trabalhistas

CONCLUSÃO

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ÚLTIMAS PALAVRAS

BIBLIOGRAFIA

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01 de novembro de 2011

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INTRODUÇÃO

Em maio de 2011, foi apresentado pelo deputado federal Sílvio

Costa, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), atual presidente da Comissão

de Trabalho, Administração e Serviço Público da Câmara dos deputados, o

projeto de lei n° 1.463/2011, que propõe a criação de um Código do

Trabalho. O Código substituiria a atual Consolidação das Leis do Trabalho

(CLT) e inúmeras leis trabalhistas esparsas.

O projeto possui 280 artigos, e formalmente mostra-se

razoavelmente bem escrito, formando um todo coeso e articulado.

Materialmente, como será demonstrado no capítulo 1, sua incompatibilidade

com o direito do trabalho é total. Não haverá qualquer exagero ou ironia em

se afirmar que a proposta, a bem da verdade, poderia ser denominada, ao

invés de “Código do Trabalho”, “Código (do Fim do Direito) do Trabalho”.

Tal afirmação, lançada em uma introdução, provavelmente

parecerá exagerada ou demasiadamente polêmica, mas os fatos e as ideias

falarão por si, como veremos.

A análise do projeto do Código, entretanto, será neste estudo

apenas o ponto de partida para uma discussão mais ampla, focada no

contexto e espírito nos quais se insere a proposta, que é o da retomada do

discurso “flexibilizador” (leia-se: eliminador) de direitos sociais, aí incluídos os

direitos trabalhistas e previdenciários.

De fato, o que tem sido observado, desde o início de 2011, é um

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significativo avanço e fortalecimento do discurso e de iniciativas de cunho

conservador, claramente afinados com os interesses da elite econômica

nacional.

Trata-se de um discurso que se encontrava em grande voga na

década de 1990, particularmente durante o mandato do presidente Fernando

Henrique Cardoso, com a defesa e efetiva implementação de reformas que

se convencionou denominar de neoliberais1, incluindo privatizações de

empresas estatais, redução de gastos sociais, “flexibilização” (expressão

cujo sentido será melhor aclarado no capítulo 2) de direitos trabalhistas e

previdenciários, relaxamento das regras a serem observadas pelo sistema

financeiro, criação de obstáculos à atuação fiscalizadora do Ministério

Público e do Judiciário, entre outras medidas.

O resultado de tal “década neoliberal” pode ser resumido – para

os fins desta introdução – no seguinte: o PIB (produto interno bruto) do Brasil

passou, no ranking mundial de países, da 10ª colocação, em 1990, para a

13ª, em 1999, com crescente diminuição da participação dos salários no PIB,

durante o período.

Na década seguinte, já durante o Governo Lula, tal discurso,

embora sempre repetido, particularmente pelas publicações mais

conservadoras, como a revista Veja, perdeu parte de sua força, e não

encontrou o espaço que esperava.

Percebe-se que o presidente Lula manteve, durante todo o seu

governo, uma proximidade bastante grande com a elite econômica nacional,

1 “Neoliberalismo é uma nova etapa do capitalismo que surgiu na esteira da crise estrutural da década de1970. Ela expressa a estratégia das classes capitalistas em aliança com a alta gerência [inclusivepolítica], e particularmente com a alta gerência financeira, com a intenção de fortalecer sua hegemonia ede expandi-la globalmente.” Em “The crisis of neoliberalism”, Gérard Duménil e Dominique Lévy, livretradução.

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incluindo grandes bancos e grandes empresas do agronegócio, beneficiados,

por exemplo, com bilionárias operações de salvamento, com aproveitamento

de dinheiro público via Banco Central ou BNDES. O Governo Lula foi,

inegavelmente, um bom período para os grandes negócios.

Ao mesmo tempo, entretanto, Lula não se deixou seduzir por 

completo com tal proximidade, e não implementou a agenda de reformas

pretendidas pelas mesmas elites. Evitou comprometer-se com um

peremptório “não” a certas pretensões conservadoras, mas não as

consumou em seus dois mandatos.

Com isso, se em seu governo não foram registrados avanços na

legislação trabalhista, tampouco se verificou sensível retrocesso. De um

modo geral, o patamar de direitos foi mantido, e a condição de vida dos

trabalhadores melhorou graças ao cenário econômico positivo. Além disso,

foram implementadas medidas, através de políticas de assistência social, de

combate à miséria, com considerável sucesso.

O corrente ano – 2011 – marca uma retomada do ímpeto das

propostas neoliberais, das quais o projeto do Código do Trabalho constitui

um dos exemplos. Vários outros podem ser elencados, como: 1) a retomada

das privatizações (aeroportos); 2) o inédito acordo celebrado pela Advocacia-

Geral da União com a Cosan (hoje Raizen), maior produtora de etanol do

país, para livrá-la da “lista suja” do trabalho escravo; 3) o avanço, no

Congresso, do projeto de lei n° 4330/2004, de Sandro Mabel, que prevê a

admissão quase que irrestrita da terceirização de mão de obra, projeto que

há seis anos encontrava-se parado, e conseguiu ser recentemente aprovado

na Comissão do Trabalho da Câmara; 4) a edição da Portaria nº 373, de 25

de fevereiro de 2011, do Ministério do Trabalho e Emprego, que pretenderespaldar a implantação de sistemas de controle de jornada de trabalho não

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autorizados por lei (como, por exemplo, o “ponto por exceção”), mediante

celebração de convenções ou acordos coletivos (permitindo-se a supressão,

na prática, do registro fidedigno da jornada).

Um dos maiores exemplos do novo ímpeto conservador, fora da

esfera trabalhista, é sem dúvida o Código Florestal, que propõe sem meias

palavras, e à revelia das evidências científicas e apelos internacionais, que a

preservação ambiental desapareça como obstáculo ao avanço do

agronegócio. Entre outras lamentáveis novidades, já aprovadas na Câmara,

está o perdão a bilhões de reais em multas aplicadas por infrações

ambientais que foram cometidas, representando fabuloso estímulo a novos

ilícitos, pela expectativa de novos perdões futuros.

É de fato surpreendente que, enquanto a comunidade

internacional se conscientiza do fato que a degradação ambiental está

prestes a tornar a vida humana no planeta insustentável, enquanto se assiste

à extinção em massa de espécies animais, e enquanto avança a

desertificação em centenas de municípios brasileiros, conseguem os

defensores mais intransigentes do agronegócio encontrar espaço político

para defender e aprovar o indefensável, em nome de nenhum outro interesse

senão o econômico de curto prazo, condenando as futuras gerações a

buscar sua sobrevivência em uma terra arrasada.

Percebe-se que as elites tomaram a iniciativa de avançar com

sua agenda conservadora, aproveitando o período de incerteza política que

surge quando da troca de governantes. Existe um volume muito grande de

expectativas conservadores represadas, e a percepção, por parte das elites,

de que o momento político é capaz de favorecê-las.

Tenta-se, claramente, engolfar o governo que se inicia, tal como

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 já ocorreu em países como Grécia, Espanha e Portugal, onde partidos em

tese (ou que se diziam) socialistas, uma vez no poder, implementaram a

cartilha neoliberal, sendo tanto melhor às elites locais que, no processo, tais

partidos tenham destruído a base popular e capacidade eleitoral que tinham.

Sob outro viés, naturalmente, tal momento de mobilização das

elites econômicas foi revelado pelo atual presidente da Confederação

Nacional da Indústria, Robson Braga de Andrade, em artigo publicado no

 jornal Valor Econômico: “Competitividade, já! (…) O momento é favorável,

visto que, renovado pelas últimas eleições, o poder Legislativo dispõe de

capital político para decidir sobre questões estratégicas para o país. (…)

Num mundo competitivo, flexibilidade é essencial para a sobrevivência das

empresas. O Congresso tem a grave responsabilidade de refletir sobre

essas iniciativas que, imersas numa aparência de boas intenções, estão em

contradição com as necessidades do mundo econômico contemporâneo.2 ”

Precisará a nova Presidente, para que seu mandato não seja

caracterizado como um retorno às políticas neoliberais da década de 1990,

de pulso firme e coragem para resistir às pretensões conservadoras,

sabendo que parte delas parte de sua própria base aliada.

A questão trabalhista mostra-se absolutamente central à agenda

conservadora, estando em jogo nada menos que a reversão de direitos

sociais reconhecidos há décadas, e a reconquista de parcelas de poder 

econômico e político então perdidas pelas elites econômicas aos

trabalhadores e aos mais pobres.

A palavra de ordem é uma só: FLEXIBILIZAR. Tal palavra é

utilizada, como veremos, para ocultar seu verdadeiro sentido, que é também2 Acessível em http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/selecao-diaria-de-noticias/midias-

nacionais/brasil/valor-economico/2011/04/06/competitividade-ja

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um só: ELIMINAR DIREITOS SOCIAIS. As justificativas são as mesmas do

passado: modernidade, competitividade e globalização. O discurso é idêntico

ao da década de 1990 (por sua vez uma repetição do discurso estrangeiro,

procedente de Estados Unidos e Reino Unido, em circulação desde meados

da década de 1970), com a reedição dos mesmos e velhos preconceitos,

contando-se, basicamente, com a desmobilização e a capacidade de

esquecimento da população, particularmente dos trabalhadores. Espera-se

que estes não reajam ao desaparecimento de seus direitos.

É nesse contexto que se insere e que se explica o projeto do

Código do Trabalho, que será discutido no primeiro capítulo.

Será demonstrado nos capítulos seguintes em que medida a

agenda neoliberal é prejudicial não apenas aos trabalhadores, mas ao país

como um todo, por conduzir ao aumento da desigualdade social em um

momento em que as grandes fortunas crescem como nunca, com a

multiplicação do número de bilionários brasileiros.

Será visto, por fim, como a manutenção e a ampliação dos

direitos sociais são medidas que contribuem, decisivamente, ao

desenvolvimento econômico e social do país, ao passo que o projeto

conservador traduz-se em obstáculo até mesmo à continuidade do

crescimento econômico.

ESCLARECIMENTO AO LEITOR:

A presente obra contém inúmeras transcrições, especialmente de

notícias jornalísticas, por vezes extensas. Tal característica faz com que o

ritmo da narrativa seja por vezes, após transcrições mais longas,interrompido além do que seria desejável em termos de estilo. Optei,

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entretanto, por manter tais transcrições, apesar da quebra que imprimem ao

fluxo narrativo, dado o interesse de aumentar o valor da obra como um

compêndio de informações relacionadas à defesa do trabalhador, reunindo

textos que estão originalmente bastante dispersos na internet, em jornais e

revistas.

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CAPÍTULO 1: A retomada da agenda neoliberal e o projeto do

Código do Trabalho

1.1) Origem do projeto do Código do Trabalho

Códigos são leis de enorme complexidade, já que reúnem grande

número de regras jurídicas que precisam ser organizadas de forma

sistemática e técnica, de modo a formar um todo coeso. Além disso,

precisam ser levadas em consideração, sempre, as repercussões que a

inovação irá representar à disciplina jurídica na qual se insere o código, e ao

ordenamento como um todo.

Por tais motivos, projetos de códigos não costumam ser 

elaborados por uma única pessoa, mas sim por uma comissão de

especialistas, profundos conhecedores da matéria em questão. Quando, em

casos excepcionais, o rascunho inicial de um código parte de um grande

especialista, o texto costuma passar, antes de ser transformado em projeto,

pelo crivo de outros peritos. Em quaisquer das hipóteses, o trabalho se

desenvolve ao longo de vários meses ou anos, passando o texto em

elaboração por inúmeras mudanças.

Por tais razões é que se tem a gênese do projeto de lei n°

1.463/2011, apresentado pelo deputado federal Sílvio Costa, como muito

surpreendente. A sua justificativa, assim como o discurso de apresentação

do projeto pelo parlamentar, não mencionam o envolvimento de qualquer 

grupo de pessoas, especialistas ou não, em sua elaboração. Nenhumanotícia jornalística, dentre as várias que circularam acerca da propositura do

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projeto do Código, menciona a origem do texto.

Ou seja, o projeto de lei foi apresentado com a sugestão implícita

de que sua elaboração teria envolvido exclusivamente o seu autor, deputado

Sílvio Costa.

Relembre-se aqui o que se mencionou na introdução, quanto ao

fato da proposta, do ponto de vista formal, estar bem redigida, envolvendo

um trabalho complexo de sistematização de matérias que estão contidas na

CLT e em grande número de leis esparsas, além de súmulas de tribunais.

Trata-se, sem sombra de dúvida, do trabalho de uma ou várias pessoas bem

familiarizadas com o direito laboral.

Ora, sabe-se que o deputado Sílvio Costa não é em absoluto um

expert  da área trabalhista. O deputado é proprietário, em Pernambuco, de

uma rede de colégios (Grupo Decisão). Em sua biografia constante na

página da Câmara na internet, figura como sendo sua atividade profissional

“empresário da educação”, e no campo “estudos e cursos diversos”,

Graduação em Técnicas Agrícolas. Foi vereador, deputado estadual, e está

em seu segundo mandato como deputado federal. Em nenhum desses

momentos notabilizou-se ou mesmo demonstrou especial interesse por 

questões trabalhistas. De fato, em seu primeiro mandato na Câmara de

deputados (legislatura 2007-2011), estando à época filiado ao Partido da

Mobilização Nacional (PMN), não apresentou qualquer projeto de lei

relacionado a questões trabalhistas, mas apresentou projetos relacionados

com a área da educação, de forma coerente com sua história profissional.

Notabilizou-se, naquela legislatura, pela defesa da legalização dos jogos de

bingo no Brasil, envolveu-se em questões vinculadas ao direito do

consumidor, e não participou, sequer como suplente, da Comissão deTrabalho (CTASP) que hoje preside.

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Diante disso, parece razoável concluir que o deputado Sílvio

Costa não teria condições de, sozinho, redigir o texto do Código do Trabalho

por ele apresentado, e não poderia ser o autor intelectual da proposta. A

origem do longo texto precisa ser procurada alhures.

O mistério parece começar a ser explicado quando se leva em

consideração que o deputado Sílvio Costa ingressou no Partido Trabalhista

Brasileiro (PTB), em 2009, pelas mãos de Armando Monteiro Neto, à época

Presidente do PTB em Pernambuco e Presidente da Confederação Nacional

da Indústria (CNI). A proximidade do deputado ao grupo do hoje Senador 

Monteiro Neto é tanta que, quando do término do mandato de oito anos de

Armando Monteiro à frente da CNI, em 2010, foi ele agraciado com uma

homenagem pela Assembleia Legislativa de Pernambuco, através de

requerimento do deputado estadual Sílvio Costa Filho, também do PTB e

filho do deputado federal Sílvio Costa.

É revelador, outrossim, que os termos da justificação do projeto

n° 1.463/2011, que serão transcritos a seguir, praticamente espelham os

argumentos contidos no documento Agenda Legislativa da Indústria, que

vem sendo reeditada anualmente, tendo sido sua versão 2011 lançada pela

CNI em março deste ano.

Compare o leitor a justificativa do projeto de lei, reproduzida mais

à frente neste capítulo, com os seguintes trechos da Agenda Legislativa 2011

da CNI: “  A extensa e rígida legislação trabalhista compromete a

competitividade e desestimula o mercado formal - A modernização da

legislação do trabalho é fundamental para a expansão dos empregos

formais, o aumento da produtividade e da qualidade da indústria brasileira eo crescimento de sua participação no mercado global. A moderna concepção

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das relações de trabalho pressupõe: * sistema regulatório flexível, que

 permita modalidades de contratos mais adequadas à realidade produtiva e

às necessidades do mercado de trabalho; * maior liberdade e legitimidade

  para o estabelecimento de normas coletivas de trabalho, que reflitam a

efetiva necessidade e interesse das partes; * ágeis mecanismos autônomos

de solução de conflitos, com garantia de segurança jurídica; * normatização

clara e concisa que estabeleça segurança jurídica às empresas e

trabalhadores.”

Parece razoável concluir – sem qualquer pretensão de

onisciência –, com base nos elementos disponíveis, que o texto do projeto de

lei apresentado pelo deputado Sílvio Costa pode ter sido redigido no âmbito

da Confederação Nacional da Indústria, provavelmente em seu Conselho

Temático de Assuntos Legislativos (que era até pouco tempo coordenado

pelo atual presidente da Confederação, Robson Braga de Andrade), sob os

auspícios de seu então presidente Armando Monteiro Neto, hoje senador e

padrinho político de Sílvio Costa no PTB.

De modo que – novamente, sem pretensões de onisciência, e

levando em conta que o próprio deputado não se encarregou de esclarecer a

origem do texto – mostra-se razoável concluir que o projeto é o Código do

Trabalho da CNI. A partir disso, a ninguém causará grande surpresa o fato da

proposta apresentar acentuada incompatibilidade com os princípios que

regem o direito do trabalho, entre eles o princípio da proteção.

Quanto à filiação partidária do proponente do projeto, tem-se que,

em uma época na qual um parlamentar, como parece ser o caso do

deputado (agora ministro) Aldo Rebelo, pode continuar sendo designado

como “comunista”, não obstante sua conversão a defensor do agronegócio,não mais chamará atenção o fato de um deputado supostamente

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“trabalhista” (filiado ao Partido Trabalhista Brasileiro) defender,

explicitamente, o fim da Justiça do Trabalho. Não obstante, chama sim a

atenção o fato de constar atualmente como preâmbulo do Programa e

Estatuto do PTB o que segue3:

“O PTB NÃO VAI DEIXAR MEXER NOS DIREITOS DO

TRABALHADOR” 

1- CONTEXTO NACIONAL

O segundo mandato do governo Lula se inicia sob o desafio de

fazer o Brasil crescer a taxas mais robustas, no mínimo próximas

de 5%, depois de cerca de 25 anos de baixo crescimento

econômico - a despeito de cenário econômico internacional 

extremamente favorável no período recente. O debate público

gira em torno de como atingir esse objetivo.

 A Reforma da Previdência Social e da CLT retornam ao centro

das discussões como instrumento de ajuste econômico. Do ponto

de vista do governo, a Reforma da Previdência é considerada

 peça fundamental para o ajuste fiscal. Para o setor privado, a

redução dos custos do trabalho é encarada como condição para

o alcance de maior competitividade e a livre negociação

fundamental para liberar o estabelecimento de relações

capital/trabalho próprias a cada empresa.

2 – POSICIONAMENTO DO PTB

Os trabalhos desenvolvidos no âmbito do I Congresso Trabalhista

Brasileiro – durante os dias 07 e 08 de fevereiro de 2007 em

Brasília – produziram duas agendas referentes à posição

 partidária no debate sobre as reformas em questão.

Chegou-se ao consenso de que há necessidade de manutenção3 Disponível em http://www.ptb.org.br/?page=ConteudoPage&cod=22081, conforme acesso

realizado em 09/08/11.

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da rede vigente de proteção social. Reiteraram-se os princípios

da defesa das conquistas trabalhistas – traço histórico do PTB –

no momento em que o governo discute, mais uma vez, a redução

dos direitos sociais como mecanismo para o ajuste das contas

 públicas e o setor privado propõe maior desoneração dos custos

do trabalho para enfrentar a globalização.

Na visão trabalhista, os ajustes macroeconômicos devem se

concentrar na diminuição do pagamento dos juros da dívida

 pública e no estabelecimento de menor nível de superávit fiscal.

 Assim como, dar andamento urgente a Reforma Tributária como

meio de diminuir custos de produção, aumentando a

competitividade do setor privado.

3 - PRINCÍPIO INALIENÁVEL

Quaisquer alterações propostas na Reforma da Previdência

Social e na CLT devem ser submetidas, obrigatoriamente, ao

Referendo Popular.

Neste diapasão, considerando cumprida esta formalidade legal,

Os órgãos de ação parlamentar, ou seja: as bancadas do PTB no

Senado da República e na Câmara Federal deverão adotar o

seguinte posicionamento, determinado pelo diretório nacional, por 

unanimidade de votos como Diretriz na forma do disposto nos

artigos 73 e 74 inciso I do estatuto partidário, sendo as seguintes

as novas diretrizes eleitas neste evento.

(...)

5 -REFORMA TRABALHISTA

1 Ser contrário às alterações na CLT que subtraiam direitos

conquistados pelos trabalhadores;

2 Propor que possíveis ajustes trabalhistas só se façam por 

meio de reforma fiscal e tributária objetivando a geração deemprego e renda;

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3 Propor a modernização da gestão das instituições

responsáveis pelas conquistas trabalhistas (ex: FGTS; Seguro de

 Acidente do Trabalhador – SAT);

4 Defender o princípio da liberdade sindical com vistas a

assinatura da Convenção 87 da OIT;

5 Propor a CO-responsabilidade onerosa, sindical e

governamental, no amparo ao desempregado.

Resta saber se o deputado Sílvio Costa, ao propor o contrário do

que exige o programa partidário do PTB, será em algum momento

questionado no âmbito de seu partido, ou se o “princípio inalienável” acima

referido já foi, na prática, alienado.

1.2) Justificativa do projeto

Como é habitual em projetos de lei, a proposta do deputado Sílvio

Costa traz, ao seu fim, um texto de justificativa, com a apresentação das

razões de ser do que está sendo proposto.

Merecem ser aqui transcritos alguns trechos de tal justificativa,

bastante reveladora das intenções por trás da proposta:

“... embora a grande maioria dos dispositivos da Consolidação

das Leis do Trabalho (CLT), aprovada em 1943, ainda esteja em vigor,

muitos deles já estão claramente ultrapassados”;

“As mudanças frequentes promovidas por este mundo

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globalizado nas relações de trabalho não foram acompanhadas, no Brasil, da

necessária alteração legislativa.” 

“a inflexibilidade para se contratar é, sem dúvida, o mais grave

  problema da legislação trabalhista, pois impede a competitividade das

empresas. Como a concorrência nos mercados internos e externos é cada

vez mais acirrada, e só vence quem oferece o menor preço, as empresas

não hesitam em transferir fábricas para países onde o custo de produção é

baixo”.

“há que se permitir que o empregado, sabedor dos termos mais

vantajosos de seu contrato de trabalho possa abrir mão de alguns direitos

em benefício de um conjunto de benefícios”;

“O protecionismo exagerado da legislação laboral brasileira é,

hoje, um óbice ao dinamismo do mercado de trabalho”;

“Nosso objetivo maior não é propor uma revolução na legislação

trabalhista, mas reduzir a complexidade e o anacronismo da legislação atual 

e permitir que empregados e empregadores possam negociar condições de

trabalho diferentes da lei”;

“Flexibilizar, garantindo-se direitos mínimos, vem ao encontro da

tendência mundial de afastamento do intervencionismo e protecionismo

exacerbado do Estado, dando força à composição entre as partes como

forma reguladora das relações laborais.” 

“Por isso, a necessidade de a cooperação substituir o confronto

nas relações trabalhistas, e de fazer prevalecer o negociado sobre olegislado.” 

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Em suma: a legislação trabalhista brasileira é velha e

ultrapassada, prevê direitos e garantias demais, devendo os trabalhadores e

os empregadores serem livres para, sem a interferência do estado, ajustar as

condições do contrato de trabalho que bem quiserem.

A proposta portanto é simples, simplíssima: trata-se de fazer 

retroceder as práticas trabalhistas ao modelo em voga no século XIX e antes

disso. Afinal, nessa época prevalecia exatamente o que agora se propõe:

menos interferência do estado, menos direitos e garantias legais, liberdade

para as partes negociarem as condições dos contratos.

São essas também as condições laborais que contribuíram, no

século XX, graças à instabilidade social e tensão internacional criadas (dado

que todos os países seguiam tal modelo, à época chamado, naturalmente,

apenas de liberal, e não de neoliberal), a duas guerras mundiais e a um

nunca antes visto período de colapso econômico global, do qual a parte mais

visível foi o crash da bolsa de valores de 1929, sobre o que se falará mais no

capítulo 4.

A antinomia do projeto de lei ao direito do trabalho e, na verdade,

aos interesses de toda a sociedade, não poderia ser maior.

Afinal, o que significa reconhecer a livre composição entre as

partes, em um contrato de trabalho? De que partes estamos falando? Ora,

de um lado temos o trabalhador, que precisa assegurar alguma fonte de

renda sob pena de morrerem, ele e seus filhos, de fome. De outro temos o

capitalista, dono dos meios de produção, que necessita da mão de obra do

trabalhador.

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No passado, por força da tradição – ou ficção – liberal, essas

duas partes – o trabalhador faminto e o capitalista rico – foram consideradas

iguais, não sendo reconhecida aos olhos da lei qualquer vantagem de um

sobre o outro, estando os dois em pé de igualdade, de modo que qualquer 

coisa que ajustassem de livre e espontânea vontade seria justo e apropriado.

Séculos de misérias, guerras, convulsões sociais e sofrimento

levaram a humanidade, no século XX, a concluir que as coisas não se davam

exatamente assim. Trabalhadores e capitalistas não estão em pé de

igualdade, e na ausência da intervenção do estado, a tendência natural é a

exploração sem limites do economicamente mais fraco pelo mais forte.

Trata-se da tendência que levou à utilização do trabalho de

crianças de seis anos de idade em minas de carvão, e à imposição de

  jornadas de trabalho diárias de dezoito horas ou mais, até que se viu a

necessidade do estado intervir, não por bondade, mas para evitar novas

guerras e calamidades, além do risco (para o capitalista) de que o povo

tomasse o poder pela força, como ocorreu na Rússia.

Pode alguém imaginar, agora, que empregadores do século 19

que utilizavam mão de obra de crianças de seis anos em uma atividade

acentuadamente perigosa e insalubre, ou exigiam jornadas de trabalho

brutais, eram pessoas perversas, desumanas. Na verdade, provavelmente

na maioria dos casos não o eram, e ao menos à época eram considerados

membros exemplares da sociedade. A degeneração sem limites das

condições de vida dos trabalhadores correspondia, normalmente, não a um

propósito doloso de infligir dor a milhões de pessoas (como o foi o projeto

nazista), mas à mera prevalência das regras do jogo capitalista (aliada à

indiferença quanto à geração ou não de dor aos mais pobres), na ausênciade qualquer intervenção protetiva do estado, com a busca do maior lucro e

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da maior redução de custos possíveis, incluindo os custos trabalhistas.

Propõe-se agora, entretanto, que o “longo século XX” seja

esquecido, e que voltemos ao modelo anterior, que era muito bom.

E de fato o modelo antigo era muito bom... mas bom para quem?

Para a esmagadora maioria da população? Para a sociedade? Ou para os

mais ricos?

Ao propor, em pleno século 21, a substituição de direitos e

garantias legais, impostos pelo estado, pela “livre negociação entre as

partes”, o que está sendo efetivamente defendido é o retorno à antiga prática

da mercantilização do trabalho, com o reconhecimento de que trabalhadores

e empregadores devem ser “livres” para pactuar o preço da venda da força

de trabalho, sob as regras do mercado.

Ignora-se que toda a luta dos trabalhadores, desde o alvorecer da

era moderna, e toda a razão de ser da disciplina direito do trabalho está na

intenção de se impor limites à conversão da força de trabalho em

mercadoria, que transforma seres humanos em coisas.

O autor das palavras contidas na justificativa do projeto, quem

quer que seja, certamente não desconhece, já que o texto revela

familiaridade com a questão trabalhista, mas parece nutrir completo

menosprezo pelo princípio da proteção, sobre o qual se estrutura o direito do

trabalho.

Tal princípio, há décadas reconhecido como universal, parte do

pressuposto que entre trabalhadores e capitalistas há uma desigualdadefática (econômica, social e política) essencial, que justifica o abandono das

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regras que regem os contratos comerciais e civis em geral – baseadas na

plena liberdade contratual e igualdade formal entre as partes – em favor de

regras capazes de proteger o mais fraco dos abusos do mais forte.

Não há direito do trabalho sem a disposição de proteger o mais

fraco, e de assegurar ao mais fraco um patamar mínimo existencial,

traduzido em direitos que não podem ser eliminados e que precisam ser 

respeitados.

Tampouco há direito do trabalho sem o reconhecimento de que as

partes de um contrato do trabalho são desiguais, e merecem tratamento

desigual, justamente para compensar tal desigualdade, não criada pelo

direito pois decorre dos fatos, das condições sociais, econômicas e políticas

existentes.

Sem o princípio da proteção, nenhuma lei trabalhista faz sentido.

Sem o princípio da proteção, a rigor cessa a existência de leis ou

de direitos de natureza trabalhista, e passa-se a ter apenas direitos civis ou

comerciais.

Não obstante, o que a justificativa do projeto do Código do

Trabalho sustenta em nome da “modernização” e da “competitividade” é

  justamente isso: a virtual eliminação do princípio da proteção do direito

brasileiro, a mercantilização das relações de trabalho, a transformação do

direito do trabalho em um capítulo dos direitos civil e comercial.

Veja-se que poderia ser proposta, sem agressão ao princípio da

proteção, a pontual alteração de regras trabalhistas, como a diminuição daamplitude de um direito específico.

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Por exemplo, quando se propõe que o intervalo mínimo para

repouso e alimentação (intervalo intrajornada) seja reduzido de uma hora

para quarenta e cinco minutos, por exemplo, não há aí incompatibilidade com

o principio da proteção, embora possa se falar em retrocesso social e na

indesejabilidade da mudança.

De fato, não decorre dos princípios trabalhistas que o intervalo

para almoço seja necessariamente de uma hora, ou de meia hora, ou de

duas horas, mas sim que exista algum intervalo, e que ele seja suficiente

para a recomposição das forças do trabalhador. Em certo momento,

prevalecerá um critério fixado em lei, mas em outra época o critério pode vir 

a ser mudado, sem incompatibilidade com os princípios.

As alterações propostas no projeto do Código do Trabalho,

entretanto, não são apenas dessa natureza – embora essas também

existam, inclusive a diminuição do intervalo, como veremos – havendo outras

mais importantes, de cunho fundamental, que são justamente aquelas que a

 justificativa do projeto procura defender.

A defesa da prevalência do negociado sobre o legislado e da

“cooperação” entre trabalhadores e capitalistas, os apelos à cessação da

intervenção estatal, a denúncia à “exagerada” manutenção de direitos

“excessivos”, não são intervenções pontuais à legislação, mas um ataque

direto aos princípios e aos valores que informam o direito do trabalho.

Sem a intervenção estatal, e com a transformação de normas

trabalhistas em civis e comerciais, não se altera apenas a amplitude de

determinados direitos, mas a própria existência de uma ampla gama dedireitos, inclusive direitos fundamentais da pessoa humana, como os direitos

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à saúde e à dignidade, por exemplo.

Como mencionado na introdução, trata-se – não havendo na

afirmação qualquer exagero – de um “Código (pelo Fim do Direito) do

Trabalho”, cujos propósitos – inversão da atuação do estado, deslocando-se

da proteção do mais fraco para a adesão aos interesses econômicos do mais

rico – estão bem claros.

Aliás, em seu discurso na Câmara para apresentação do projeto

de lei, no dia 26/05/2011, o deputado Sílvio Costa conseguiu ser ainda mais

claro quanto aos valores e pretensões por ele representados:

“Quero dizer a V. Exas. que, entre as economias mais modernas

do mundo, o Brasil é a única na qual ainda existe a Justiça do Trabalho. Para

mim, acabaria a Justiça do Trabalho. Não faz sentido, num país que é a

sétima economia do mundo, ainda haver uma Justiça paternalista, uma

Justiça getulista.4”  

Como veremos a seguir, tais valores e pretensões não ficam

contidos apenas na justificativa do projeto. O Código é coerente nesse

sentido, pois o propósito de eliminar, tanto quanto possível, o princípio da

proteção do ordenamento pátrio traduz-se, no bojo do texto, em propostas de

inovação legislativa concretas.

1.3) Alguns pontos de destaque do projeto do Código

O projeto do Código do Trabalho é bastante extenso, possui 280

4 Conforme nota taquigráfica disponível no site da Câmara dos Deputados.

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artigos, fugindo ao escopo deste estudo a discussão de cada um de seus

elementos.

Em várias questões o projeto não inova a legislação atual,

limitando-se a realizar uma sistematização de regras já existentes.

Em outros pontos são apresentadas inovações, muitas vezes –

mas não sempre – de cunho adverso aos trabalhadores, envolvendo redução

do patamar de proteção atual.

Destaco as seguintes mudanças propostas:

a) Suprime-se o intervalo intrajornada de 01 hora para descanso

e alimentação, não sendo fixado qualquer patamar mínimo. Ao invés disso,

prevê-se intervalos “cuja duração será estabelecida em acordo escrito ou 

convenção ou acordo coletivo de trabalho, observando-se os usos e

costumes da atividade e da região” (art. 22, caput).

Pode-se prever com facilidade que empregadores rurais

alegarão, em reclamatórias trabalhistas, que os “usos e costumes” no interior 

de Mato Grosso, Pará e Minas Gerais, por exemplo, implicam em descansos

de apenas 20 minutos ou menos. Os trabalhadores rurais limitar-se-ão a

assinar o documento que lhes for apresentado quando da contratação, sob

pena de não obter emprego, no qual constará tal reconhecimento. E não

estarão os empregadores faltando de todo com a verdade, pois em várias

regiões o costume (não no sentido de “direito costumeiro” mas de “prática

ilícita habitual”, como pude constatar ao atuar no norte de Mato Grosso e

norte e oeste de Minas Gerais, na condição de Procurador do Trabalho) é

descumprir sem cerimônia a legislação atual.

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b) Incentiva-se o descumprimento de embargos e interdições

administrativas determinados pela inspeção do trabalho, em situações

envolvendo a existência de grave e iminente risco à vida e à saúde do

trabalhador, pois se prevê que qualquer punição, em caso de violação do

embargo ou interdição, dependerá da comprovação de prejuízo a terceiros.

Nesse sentido: “Responderá por desobediência, além das medidas penais

cabíveis, quem, após determinada a interdição ou o embargo, ordenar ou 

 permitir o funcionamento do estabelecimento ou de um dos seus setores, a

utilização de máquina ou de equipamento, ou o prosseguimento de obra, se,

em consequência, resultarem danos a terceiros” (art. 50, § 1º).

Trata-se na verdade de regra de assustadora irresponsabilidade,

revelando verdadeiro descaso do autor do projeto para com a vida dos

trabalhadores.

Exemplifiquemos com a seguinte situação: digamos que em

determinada obra da construção civil não há qualquer tipo de proteção contra

quedas no trabalho executado em alturas, embora os trabalhadores estejam

laborando a treze andares do solo. Diante disso, a inspeção do trabalho,

tendo flagrado a infração, determina a interdição das atividades

desenvolvidas em altura.

O empregador, então, desconsidera por completo a ordem da

autoridade, e continua a exigir de seus operários trabalho em alturas sem

proteção, sendo que, por sorte ou milagre, até o final da obra não ocorrem

óbitos.

Pelo projeto de Código, tal empregador não poderia ser punido.

Só poderá ser punido se alguém cair e morrer!

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Previsivelmente, o empregador do exemplo dado continuará,

depois disso, a descumprir todas as futuras interdições decretadas

(provavelmente dará boas gargalhadas ao receber novas ordens

administrativas, antes de jogar o papel no lixo), tão convicto estará de que

nunca enfrentará problemas (pois é sempre essa a convicção, em se

tratando de violações a normas de segurança no trabalho: despreza-se o

risco), até que certo dia, um ou mais trabalhadores cairão e morrerão, o que

inevitavelmente ocorrerá, mais cedo ou mais tarde. Só então, a teor do

projeto do Código do Trabalho, é que se poderia cogitar de alguma punição

ao empregador.

Vejamos um exemplo recente, de agosto de 2011, dessa espécie

de situação: “Elevador despenca do 20º andar e mata nove em canteiro de

obras na Bahia. Funcionários relataram problemas em equipamento. Falha

mecânica e excesso de peso são possíveis causas5”.

É esse tipo de comportamento irresponsável (melhor dizendo,

homicida) que o estado deseja encorajar, com o total menosprezo à vida

humana?

c) Elimina a regra, hoje contida no art. 468 da CLT, de que as

alterações das condições inicialmente pactuadas do contrato individual só

poderão ocorrer “desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos

ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia”.

O projeto preserva apenas a necessidade de mútuo consentimento,

autorizando alterações contratuais lesivas: “  Art. 125. Nos contratos

individuais de trabalho, só é lícita a alteração das respectivas condições por 

mútuo consentimento”. Como a liberdade do trabalhador, em situações tais,

5 Emhttp://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/ba/elevador+despenca+do+20+andar+e+mata+nove+em+canteiro+de+obras+na+bahia/n1597125985901.html

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resume-se a duas opções, acatar o que o empregador lhe exige ou ser 

demitido, pode-se imaginar o que significaria na prática tal inovação

legislativa.

d) Suprime-se a vedação hoje existente, salvo exceções legais,

de trabalho em dias de feriado, autorizando-se que a folga seja concedida

em outro dia ou que o dia trabalhado seja remunerado em dobro (art. 28).

e) Institui multa administrativa ínfima, fixada em R$ 400,00

(quatrocentos reais) para a esmagadora maioria das infrações

administrativas passiveis de cometimento. Apenas o descumprimento de 07

dos 280 artigos do Código conduziriam a multa em valor diverso.

Essa seria a única multa exigível, por exemplo, para a hipótese

de violação do dever de formalizar o contrato de trabalho, previsto no art. 81

do projeto. Assim, caso o empregador deixe de registrar o contrato de 1, 10,

100 ou 1.000 empregados, a punição será a mesma, multa de R$ 400,00.

Da mesma forma, se um empregador for flagrado expondo a vida

de seus 100 empregados ao risco de morte, pela inexistência de quaisquer 

medidas de proteção individuais ou coletivas em atividade de risco, será

“punido” com uma multa de R$ 400,00.

Em casos de “fraude, simulação, artifício, ardil, resistência,

embaraço ou desacato à fiscalização, assim como na reincidência”, o valor 

da multa dobraria, atingindo R$ 800,00, quantia máxima exigível de um

empregador que, por exemplo, seja flagrado pela vigésima vez suprimindo a

formalização do contrato de seus 500 empregados, com o cometimento de

embaraço e desacato ao auditor-fiscal (por exemplo, por ameaçar o fiscal deagressão física).

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Nessas condições, não se trata tal multa de uma punição, mas de

um prêmio ao empregador que mais descumprir a lei. O encorajamento à

prática de violações ao próprio Código é enfático, evidente e incondicional. A

proposta é clara: tornar irrelevante a função da inspeção do trabalho no

Brasil, privando-a de qualquer efetividade.

A previsão é tão absurda, tão assustadoramente irresponsável

que, a bem da verdade, causa espanto que alguém tenha a coragem de

apresentá-la e defendê-la de público, sem constrangimento.

Não se deve, entretanto, perder de vista que os pontos acima

destacados do projeto de lei, embora preocupantes, não constituem as

maiores ameças por ele criadas, relativamente à preservação de alguma

proteção a ser proporcionada aos trabalhadores. O cerne da proposta não

está aí, mas em outras três medidas, analisadas a seguir.

1.4) Principais alterações contidas no projeto: prevalência

do negociado sobre o legislado, terceirização e abolição da anotação de

CTPS.

Como mencionado, o projeto de lei do Código do Trabalho

contém muitos dispositivos e propõe diversas inovações legislativas, a

maioria das quais contrárias aos interesses dos trabalhadores.

Do ponto de vista da concretização daquilo a que se propõe a

  justificativa do projeto – abolição, tanto quanto possível, do princípio daproteção e da intervenção do estado em favor do trabalhador, parte mais

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fraca da relação de trabalho –, a maior parte das mudanças possui caráter 

secundário se comparadas a três outras alterações, que constituem sem

dúvida o cerno do projeto, eis que capazes de gerar consequências

consideravelmente mais profundas e drásticas.

Tais três alterações são:

* prevalência do negociado sobre o legislado (abolição do

caráter cogente de todas as normas trabalhistas não contidas na

Constituição Federal);

* terceirização, autorizada de forma amplíssima;

* abolição, na prática, da anotação na Carteira de Trabalho.

A aprovação de apenas uma dessas três medidas redundaria,

seguramente, em um “ferimento de morte” ao princípio da proteção. A

aprovação de duas delas ou mais, simultaneamente, tornaria sem sentido a

manutenção da Justiça do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho, da

inspeção do trabalho e de todo corpo estatal voltado à implementação de

normas trabalhistas, eis que nada sobraria do princípio da proteção a ser 

acompanhado pelo estado. Voltaríamos à época de império da

mercantilização da força de trabalho, não obstante a condenação a isso

contida na Constituição Federal (dado o reconhecimento do valor social do

trabalho) e, explicitamente, na Constituição da Organização Internacional do

Trabalho.

Aprovada uma só das medidas acima, tem-se que as condições

de vida e de trabalho dos trabalhadores brasileiros sofrerão considerável

mudança para pior. Aprovadas duas ou mais dessas medidas, deixa de

existir, para efeitos práticos, algo que mereça ser chamado direito dotrabalho no Brasil.

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Demonstrar que tal conclusão não possui o caráter espetacular 

ou provocativo que pode parecer à primeira vista, correspondendo isto sim a

uma visão realista do significado das alterações legislativas propostas, será o

foco de toda a discussão que se desenvolverá a seguir.

1.4.1) Prevalência do negociado sobre o legislado

Prevê o art. 2º do projeto do Código:

 Art. 2º O contrato individual de trabalho rege-se pelas normas

estabelecidas entre as partes, respeitados os direitos mínimos

assegurados neste Código e na Constituição Federal.

Parágrafo único. As condições de trabalho previstas neste

Código podem ser alteradas por meio de:

I – convenção ou acordo coletivo de trabalho; ou 

II – acordo individual, desde que o trabalhador perceba salário

mensal igual ou superior a dez vezes o limite máximo do salário

de contribuição da previdência social.

A previsão contida no inciso II do parágrafo único, acima

transcrito, atingiria quantidade ínfima de trabalhadores brasileiros (em

valores de agosto de 2011, apenas empregados que percebam salário

mensal superior a trinta mil reais), de modo que não será aqui discutida.

Muito mais significativo é o impacto do estabelecido no inciso I, capaz deremover da proteção proporcionada pela legislação dezenas de milhões de

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trabalhadores.

De acordo com o inc. I, todos os direitos trabalhistas, à exceção

daqueles previstos na Constituição Federal, poderiam ser afastados ou

limitados através de negociação coletiva, seja por convenção, seja por 

acordo coletivo, portanto com a participação do sindicato de trabalhadores.

Tal regra implica no afastamento do caráter cogente (obrigatório,

impositivo) de normas trabalhistas que dispõem sobre direitos indisponíveis,

como o são muitos dos direitos trabalhistas (dado que se relacionam com a

manutenção de um mínimo existencial), entre os quais os direitos à saúde e

à dignidade. Tal tipo de norma, cogente, proibitiva, constitui um limite à

edição de normas autônomas privadas, como aquelas decorrentes de

negociação coletiva. Onde se faz presente a norma cogente, é permitida a

ampliação, mas não a diminuição do direito que ela institui.

Exemplo evidente de normas trabalhistas proibitivas são aquelas

relacionadas ao meio ambiente do trabalho, à segurança e à medicina do

trabalho, entre as quais se inserem as limitações à jornada de trabalho.

Entende-se que tal tipo de norma não pode ter sua aplicação limitada, ainda

que com a concordância do sindicato de trabalhadores, eis que não há, aí,

poder ou legitimidade da entidade sindical para dispor (leia-se: abrir mão) do

direito do trabalhador.

O que hoje prevalece, portanto, é algo mais ou menos óbvio: não

se pode dispor do que é, por sua própria natureza, indisponível.

O projeto do Código propõe, na esteira da reforma neoliberal,

uma solução singela ao “problema” da “rigidez” de direitos trabalhistas: nãohaverá mais direitos indisponíveis. Tudo poderá ser negociado, e portanto

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limitado e eliminado, desde que não se encontre previsto na Constituição

Federal.

A proposta na verdade não é nova. Trata-se da reedição do

projeto de lei n. 5.483, de 2001, apresentado pelo então Presidente da

República Fernando Henrique Cardoso, só que em uma versão piorada.

O Projeto de Lei n. 5.483, que chegou a ser aprovado na Câmara

dos Deputados, previa:

“O art. 618 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo

Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943, passa a vigorar com a seguinte

redação: 'Art. 618. As condições de trabalho ajustadas mediante convenção

ou acordo coletivo prevalecem sobre o disposto em lei, desde que não

contrariem a Constituição Federal e as normas de segurança e saúde do

trabalho'”.

A parte final do texto é o que justifica a afirmação de que o atual

projeto do Código do Trabalho constitui uma versão piorada do projeto de lei

de FHC: a nova proposta sequer excepciona normas de segurança e saúde

do trabalho, tamanho o afã atual de tudo tornar passível de “flexibilização”.

Na exposição de motivos do projeto de 2001, encontramos a

origem das justificativas que ecoaram no projeto de 2011: “ A economia corre

em tempo real, pede direitos negociáveis e contratualizados. E não, apenas,

direitos inegociáveis e legislados”.

Tanto em 2001 quanto em 2011 sustentou-se que a

“modernidade” está a exigir a criação de um mecanismo capaz de permitir asupressão total ou parcial de direitos trabalhistas, quaisquer que sejam.

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O projeto n. 5.483/2001, não obstante sua aprovação na Câmara,

teve a tramitação conturbada e envolvida em intenso conflito, sendo a

resistência a ele capitaneada na época pela Central Única dos Trabalhadores

(CUT) e pelo Partido dos Trabalhadores (PT), com a participação de grande

número de outras entidades e especialistas em matéria trabalhista, que

defenderam inclusive a inconstitucionalidade do projeto.

Basta ver que, à época, queixava-se José Pastore, expoente do

ideário neoliberal na seara trabalhista brasileira, quanto às dificuldades para

a célere aprovação do projeto nos seguintes termos6:

“O PT e a CUT fizeram um estrondoso alarde durante a

discussão do projeto de lei 5.483 que alterou o art. 618 da CLT. Pelos

decibéis do alarido, estávamos próximos do fim do mundo. Isso criou no

  povo um sentimento de grande apreensão. Dizia-se que a nova lei iria

revogar toda a CLT; que acabaria com o 13º salário, férias, licença à

gestante; que os empregadores imporiam aos empregados condições

selvagens; que sindicatos fracos fariam acordos em favor das empresas.”

A tramitação chegou ao fim quando, em 2003, o Presidente Luiz

Inácio Lula da Silva requereu, através da Mensagem n. 78, a retirada do

projeto, que então se encontrava no Senado (sob o n. 134/2001)

Na Mensagem Presidencial era mencionado:

“3. Sem embargo dos argumentos em prol da modernização

laboral e da flexibilização legislativa em um mundo em constante câmbio

  pela globalização, ao se buscar identificar um conjunto de efeitos

6 Publicado em O Estado de São Paulo, 12/02/2002.

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subjacentes a uma alteração assim levada a cabo, encontra-se a obscura e

temida precarização dos direitos trabalhistas. Na realidade concreta, o objeto

da negociação pode vir a ser o que a lei assegura como mínimo: os próprios

direitos dos trabalhadores.

4. Outra ordem de questões ressurge, nesta oportunidade,

com vigor suficiente para sugerir a mudança de rumos no debate que

envolve a chamada Reforma Trabalhista. Trata-se daquele conjunto de

medidas voltadas à superação da atual estrutura sindical, marcadamente

corporativista, tutelar e pouco afeta ao controle social, onde, ao lado de

honrosas e combativa agremiações, cada vez mais proliferam sindicatos

carentes de legitimidade ou representatividade.” 

Os argumentos contidos na Mensagem continuam, a rigor,

plenamente válidos. A estrutura sindical permanece a mesma de 2003, se

não estiver pior, já que não foi levada a termo até hoje a referida reforma

sindical. Em especial, continuam proliferando sindicatos carentes de

legitimidade ou representatividade (ao lado, naturalmente, de sindicatos

atuantes e firmes na defesa dos interesses dos trabalhadores). E a

identificação dos efeitos subjacentes ao que estava sendo proposto, que

agora volta a ser pretendido, como a “obscura e temida precarização dos

direitos trabalhistas”, tampouco mudou, sendo na verdade atemporal.

Nesse sentido, cabe menção ao estudo “Diagnóstico das relações

de trabalho no Brasil”, elaborado pelo Fórum Nacional do Trabalho, criado

pelo Governo Lula justamente para discutir a reforma sindical7:

“Entre 2002 e 2004, foram emitidas, pelo MTE, 1.013 novas

certidões de registro sindical, e até dezembro de 2004 existiam em

7 Em http://www.mte.gov.br/fnt/DIAGNOSTICO_DAS_RELACOES_DE_TRABALHO_NO_BRASIL.pdf 

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tramitação na Coordenação-Geral de Registro Sindical-CGRS 4.547 pedidos

de registro. Nesse período, foi criado, em média, um sindicato por dia. A

atual situação do sistema sindical brasileiro fica mais evidente quando se

analisa o levantamento realizado entre junho e julho de 2005 pela Secretaria

de Relações do Trabalho – SRT do MTE, onde foi identificada a existência

de 23.726 entidades sindicais com registro no MTE, sendo 23.077 

sindicatos, 620 federações e 29 confederações. Além disso, existem outros

8.405 processo em tramitação, dentre estes, 5.529 são novos pedidos de

registro e 2.876 pedidos de alteração estatutária em tramitação no MTE.

No entanto, o dado mais impressionante é a existência de cerca

de 1950 categorias profissionais e 1.070 categorias econômicas que se

organizaram em sindicatos após 1990. Esse dado mostra que o processo de

criação de um sindicato hoje no país acaba tendo como único limite a

criatividade dos interessados para a denominação das categorias, muitas

vezes sem nenhum compromisso com a real segmentação da atividade

econômica e profissional.

(…)

Como pode ser constatado a partir dos dados mencionados, o

aumento do número de sindicatos resultou menos do avanço na organização

sindical e bem mais da fragmentação de entidades já existentes. A

  pulverização trouxe consigo o enfraquecimento da representação de

trabalhadores e de empregadores.” 

Pude constatar em primeira mão, através de minha atuação como

procurador do trabalho, evidências de tal desolador enfraquecimento da

atuação sindical, e abandono da defesa aguerrida dos interesses dos

trabalhadores.

Em 2008, por exemplo, realizei em conjunto com a colega Larissa

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Lima uma audiência pública, com a presença de dezenas de sindicatos de

trabalhadores e de empregadores rurais da região abrangida pela

Procuradoria do Trabalho no Município de Patos de Minas (oeste de Minas

Gerais, com forte presença de lavouras de café e feijão, entre outras), que

foram alertados quanto a cláusulas que não deveriam ser incluídas em

convenções e acordos coletivos.

O necessidade de tal audiência pública se fez óbvia ante a

descoberta da proliferação, em toda a região, de acordos coletivos firmados

com grandes fazendeiros que previam, entre outras coisas, que: a) o custo

das ferramentas de trabalho (enxada e rastelo, por exemplo) seria suportado

pelos trabalhadores rurais; b) o empregador era dispensado de fornecer na

fazenda água potável e fresca; c) seria considerado como falta o dia em que

o empregado não apresentasse a produtividade esperada pelo empregador,

d) não haveria limitação ao número de horas extras diárias durante a

colheita; entre outros absurdos.

Todos os sindicatos que foram flagrados celebrando acordos

assim terminaram assinando com o Ministério Público termos de ajuste de

conduta, comprometendo-se a não mais pactuar tais cláusulas, sob pena de

multa.

Por justiça, registro que tal tipo de postura não era verificada

relativamente a todos os sindicatos de trabalhadores rurais – embora fossem

muitos os que celebravam acordos espúrios dessa forma -, sendo um óbvio

exemplo de atuação valorosa e corajosa na defesa dos rurícolas o Sindicato

dos Trabalhadores Rurais de Araxá e Região.

Mais recentemente, em 2011, ouvi de dirigente sindical emAraraquara, interior de São Paulo, reclamações sobre as dificuldades

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financeiras experimentadas pelo seu sindicato de trabalhadores. Indaguei,

então, sobre a quantia arrecadada a título de mensalidades dos filiados. A

resposta foi surpreendente: “nós não temos filiados”. E por que não são

organizadas campanhas de sindicalização, perguntei. “ Ah, doutor, eles não

colaboram, o sindicato tem uns dez convênios com lanchonetes, farmácias,

e ainda assim eles não se filiam”.

Por outro procurador do trabalho foi ouvido também neste ano de

2011, em situação envolvendo obstáculos criados à filiação de trabalhadores

no sindicato, a seguinte declaração de seu presidente: “mas eu preciso

impedir mesmo que entrem, doutor, senão eles formam uma chapa para

concorrer contra mim! ”

Imagine o leitor, então, o que sindicatos com esse perfil,

absolutamente subservientes aos interesses patronais, e avessos à liberdade

e à democracia sindicais, serão capazes de fazer se acaso lhes for dado,

como pretende o projeto do Código do Trabalho, o poder de vida e de morte

sobre quase todos os direitos trabalhistas?

Ora, no primeiro exemplo dado, aquilo que foi revertido graças à

atuação do Ministério Público tornar-se-ia norma autônoma plenamente

válida, e os trabalhadores rurais do interior de Minas Gerais, já premidos

pelos baixos salários (pois mesmo trabalhando não ultrapassam a linha da

pobreza), seriam obrigados a pagar para trabalhar (teriam que adquirir as

ferramentas de trabalho com o dinheiro do próprio bolso), a beber água

quente (trazida de casa ou do alojamento pela manhã, submetida a sol

inclemente durante todo o dia), e a ser privado de salário por um dia inteiro

de trabalho, por não ter atingido as metas de produção impostas

unilateralmente pelo empregador.

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Pergunta-se: isso é moderno e avançado? É isso o que se deseja

para as relações trabalhistas no Brasil?

Pois é exatamente isso o que ocorrerá, ou coisas ainda piores, na

eventualidade de ser aprovada a alteração proposta, dado o cenário sindical

existente.

Alavancaremos, sem sombra de dúvida, a “competitividade” das

empresas e empregadores brasileiros, mediante formidável redução de seus

custos financeiros. Mas qual o custo humano implicado?

Frise-se que não se deseja, de modo algum, lançar mácula sobre

o movimento sindical obreiro como um todo. Pelo contrário, os sindicatos são

os mais legítimos representantes dos interesses da classe trabalhadora que

há, e não fosse a luta dos movimentos operários, sequer existiriam direitos

trabalhistas. Além do que, existe no Brasil considerável número de sindicatos

(vale dizer, de dirigentes sindicais) que honram seu nome, que respeitam a

liberdade sindical e que não se furtam ao papel de efetivamente defender os

trabalhadores. Mas, pelo que já se expôs, pode-se dizer que sindicatos com

tal perfil não constituem a maioria.

Grande número dos sindicatos são, ao revés, entidades débeis,

sem qualquer representatividade, mantidas por número reduzido de pessoas

que agem como se o sindicato fosse propriedade particular sua,

interessadas apenas na arrecadação de contribuições sindicais, ativas em

impedir a democracia interna e despreocupadas em beneficiar os

trabalhadores da categoria, ficando o sindicato sem força para resistir a

qualquer avanço patronal.

Registre-se ainda a profundamente lamentável situação de

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sindicatos de trabalhadores que pecam não por uma atuação deficiente em

favor dos trabalhadores, mas por uma atuação firme e consistente, só que

em favor dos empregadores. Trata-se de sindicatos, a rigor, de mentira,

coaptados pelos interesses empresariais aos quais servem, sem que os

trabalhadores da categoria consigam reverter a situação.

Exemplo disso é mencionado em brilhante ação civil pública

ajuizada, em 2009, pela Procuradoria Regional do Trabalho da 21ª Região

(Rio Grande do Norte), de cuja inicial é extraído o seguinte trecho:

“A criação do [sindicato], consoante já se demonstrou,

caracterizou-se como uma fraude perpetrada por um grupo de pessoas,

  proprietárias de empresas do ramo econômico, ou a elas vinculadas,

capitaneadas por (...).

  A existência do ente sindical refletiu, desde o seu início, o

objetivo almejado pelos seus principais idealizadores e criadores: servir de

instrumento de sonegação e burla aos direitos dos trabalhadores da

categoria, em favorecimento de empresas do ramo da prestação de serviços

e locação de mão de obra, geridas e administradas pelos próprios

empresários e empregadores, igualmente beneficiados pelas práticas ilícitas.

Evidencia-se que o sindicato, sob a vestimenta e aparência

formal de uma entidade classista, sempre atuou como um vigoroso 'braço' 

empresarial, a chancelar arranjos espúrios em acordos trabalhistas, a iludir 

os trabalhadores, a subtrair os seus direitos irrenunciáveis, a coagi-los a

aceitar transações prejudiciais, a privá-los da proteção de direitos

fundamentais e a extorqui-los por meio de contribuições sindicais abusivas,

 para se dizer o mínimo.” 

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Nessas condições, não poderia causar qualquer surpresa que a

Confederação Nacional da Indústria e José Pastore, dentre outros, mostrem-

se intransigentes defensores da proposta, apresentada como “moderna” e

“benéfica” aos trabalhadores.

De fato, na eventualidade de ser consagrada a prevalência do

negociado sobre o legislado, assistiremos à proliferação de acordos e

convenções espúrios em todo o país, com a supressão pura e simples de

direitos trabalhistas. Tais negociações não poderão ser questionadas

  judicialmente (salvo reconhecimento da inconstitucionalidade da própria

alteração legislativa que vier a respaldá-las), ao mesmo tempo em que

teremos, além do avanço do patrimônio particular de alguns sindicalistas,

quiçá um punhado de acordos e convenções contemplando conquistas aos

trabalhadores, celebrados por sindicatos dotados de grande

representatividade.

Além disso, tem-se por certo que o direito objeto de desistência,

em um acordo ou convenção, jamais retornaria aos trabalhadores

posteriormente, pois o patamar mais vantajoso obtido pelo empregador, em

um ano, será para ele o piso a partir do qual novas negociações se

desenrolarão. Como regra, aquilo que se perde porque se abriu mão não

retorna jamais, senão após novo, demorado e penoso processo de luta.

Por exemplo, digamos que no primeiro ano um sindicato aceite

aumentar o número máximo de horas extras por dia, de duas para três ou

quatro, como forma de obter maior reajuste salarial. No ano seguinte, o

reajuste obtido já terá sido em parte ou totalmente consumido pela inflação,

mas a ampliação do número de horas extras será, para o empregador, ponto

fora da pauta de discussões. Entre outras coisas, insistirá o empregador,previsivelmente, que o processo produtivo já se organizou em torno da

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mudança, e que a reversão causará graves prejuízos, inviabilizando a

empresa. Caso o sindicato de trabalhadores insista no retorno ao teto de

horas extras previsto em lei, descobrirá que sua capacidade de reivindicação

se esgotará nisso, e não obterá o reajuste salarial pretendido pelos

trabalhadores e cobrado pelos filiados. De modo que, para assegurar o

reajuste, deixará de lado o que foi objeto de desistência anterior. Com o

passar dos anos, a elevação do número de horas extras se tornará prática

usual, com a qual se conformarão tanto os trabalhadores (cujos índices de

adoecimento aumentarão) quanto o empregador. E novas negociações, em

termos um pouco mais vantajosos aos trabalhadores (como, por exemplo,

um aumento salarial levemente acima dos índices de inflação, ou a

concessão de uma cesta básica) se darão apenas com nova contrapartida

em termos de supressão de direitos.

Vale repetir a lição, que é universal e não específica às relações

trabalhistas: aquilo que eu entrego “de mão beijada” a outrem, aquilo a que

eu renuncio em favor de outrem, torna-se patrimônio dessa outra pessoa, e o

mais provável é que ela não será tão displicente quanto fui na defesa de seu

patrimônio.

Trata-se de um caminho sem volta, que segue em uma só

direção: a remoção progressiva do mínimo existencial garantido pela

legislação aos trabalhadores.

Saibam os trabalhadores brasileiros, portanto, isto: uma vez

aprovada a prevalência do negociado sobre o legislado, todos os direitos

trabalhistas, à exceção daqueles previstos na Constituição Federal (até que

apareçam propostas conservadoras de reforma constitucional para

supressão também destes direitos), estarão sob risco.

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A longo prazo a maioria dos direitos (30 dias de férias anuais,

limite de 2 horas extras por dia, indenização na dispensa sem justa causa de

40% sobre depósitos do FGTS, vale transporte, horas in itinere, prazo para

pagamento do salário – que hoje é até o quinto dia útil –, prazos para

pagamento das verbas rescisórias, intervalos para descanso e alimentação,

redução de tempo da hora noturna, registro de jornada, etc.) efetivamente

perecerá, pois não há no Brasil estrutura sindical capaz de defender tais

direitos à voracidade patronal, à exceção, talvez, de um punhado de

categorias profissionais mais organizadas.

O risco de restrição às normas de saúde e segurança no trabalho

mostra-se ainda maior. Afinal, sabe-se que o cumprimento de tais normas

significa, em muitos casos, elevados investimentos pelo empregador,

necessários à salvaguarda da vida de seus empregados. Em razão de tal

custo, esse tipo de norma está entre as mais comumente violadas no dia a

dia, e são objeto de permanentes críticas e contestações pela classe

empresarial.

De fato, há casos de sindicatos e federações patronais que

ingressaram com mandados de segurança coletivos com o propósito de

obter manifestação judicial eximindo todas as empresas do setor de cumprir 

as Normas Regulamentadoras expedidas pelo MTE, ao fundamento de que

não seriam autorizados por lei.

A pretensão de eliminar direitos assegurados em normas de

saúde e segurança do trabalho encontra-se, aliás, expressamente

mencionada no documento Agenda Legislativa da Indústria 2011, nos

seguintes termos: “Segurança e Saúde do Trabalho - A Lei deve privilegiar a

cooperação entre empregados e empregadores e adotar fiscalização maisorientadora que punitiva (…) É também necessário restringir a extensa

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regulação existente a normas essenciais, privilegiando a negociação

coletiva, capaz de atender com eficácia as questões específicas de cada

setor.”

Então, nenhuma norma de saúde e segurança estaria a salvo em

sendo aprovada a alteração legislativa proposta. A matéria não estaria

indisponível à negociação espúria, eis que a Constituição Federal, em seu

art. 7º, inc. XXXII, prevê como direito tão somente a “redução dos riscos

inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”.

Ora, as “normas de saúde, higiene e segurança”, hoje previstas em leis e

portarias que as regulamentam, poderiam ser substituídas por normas

contidas em acordos ou convenções coletivos (normas autônomas, não

heterônomas), sem ofensa à Lei Maior, com a redução do patamar de

cuidados e de investimentos por parte dos empregadores.

Ocorre que “flexibilizar” (leia-se eliminar) o cumprimento de

normas legais de saúde e segurança significa sempre “flexibilizar” o direito à

vida e à integridade física do trabalhador, o que é não apenas inaceitável

mas abominável, particularmente em um país onde o número de acidentes

do trabalho tem crescido nos últimos anos.

Basta aqui ser mencionado um dado particularmente assustador:

o número de acidentes de trabalho notificados (que constituem uma pequena

porção do total) tendo como vítimas crianças e adolescentes trabalhadores,

em 2010, foi de 2.101 ocorrências, incluindo casos de acidentes fatais (fonte:

Sinan/MS).

Exemplo de norma de saúde e segurança que seria

instantaneamente removida através de convenções e acordos coletivosespúrios seria, é óbvio, a Norma Regulamentadora n. 31 do MTE, que dispõe

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sobre a segurança e saúde no trabalho na agricultura e pecuária, e que é

alvo de permanentes ataques pelos empregadores rurais. Veja-se como

exemplo as declarações da Senadora Kátia Abreu, presidente da

Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária, na seguinte entrevista8:

“Ocorre que a norma que rege o trabalho no campo, a NR-31,

tem 252 itens. Em qualquer atividade, cumprir 252 critérios é muito difícil.

Nas fazendas, isso é uma exorbitância. Até em uma fazenda-modelo um

fiscal vai encontrar pelo menos um item dos 252 que não está de acordo

com a norma.

(…)

Quero fazer um desafio aos ministros: administrar uma fazenda

de qualquer tamanho em uma nova fronteira agrícola e aplicar as leis

trabalhistas, ambientais e agrárias completas na propriedade.

(…)

  A NR-31 é uma punição à existência em si da propriedade

 privada no campo.” 

Logo, levando em conta que os sindicatos de trabalhadores rurais

estão entre os mais fracos que existem, ressalvadas nobres exceções,

teríamos em breve acordos autorizando, nos estados de Mato Grosso e Pará

dentre outros, “alojamentos” de trabalhadores constituídos por barracos de

lona plástica, que praticamente nenhuma proteção oferecem contra as

intempéries, desprovidos de sanitários ou de água potável, e que ainda hoje

são muito comuns, não obstante a condição degradante em que são

mantidos os trabalhadores.

Recordo-me, da época em que atuei como procurador em Alta

Floresta/MT (2007/2008), de conversa mantida em audiência administrativa

8 Disponível em http://www.faepapb.com.br/noticias.php?id=538, acessado em 09/08/2011.

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com um grande fazendeiro, dono de várias propriedades rurais, nas quais

criava dezenas de milhares de cabeças de gado, sendo que em uma delas

localizei, em diligência realizada com o apoio da Polícia Militar, trabalhadores

mantidos em barraco de lona (no período de chuvas, de modo que o solo do

“alojamento” era apenas barro), sem banheiros e sem água potável (a água

consumida, para todos os fins, provinha de córrego vizinho, dentro do qual foi

achado, há poucas dezenas de metros do “alojamento”, um boi morto em

decomposição). Procurou o fazendeiro justificar a condição em que eram

mantidos os empregados dizendo-me, com invulgar sinceridade: “doutor, a

vida de 'peão' é essa mesmo, eles já estão acostumados. Não adianta pagar 

mais para eles, eles vão gastar tudo em bebida”.

Tais barracos de lona, de degradantes aos olhos da lei passariam

a ser lícitos, inquestionáveis, autorizados mediante acordos coletivos sob o

fundamento de que correspondem às “práticas locais”, em regiões pouco

acostumadas a reconhecer o direito dos rurícolas à dignidade.

Em acréscimo, a alteração legislativa permitiria o

descumprimento de convenções internacionais, entre elas as emanadas da

Organização Internacional do Trabalho (OIT), já ratificadas pelo Brasil, na

medida em que tais normas, no entender atual do STF, ingressam no

ordenamento pátrio com o status de lei ordinária e não de regra

constitucional.

Como resultado, através da prevalência do negociado sobre o

legislado, e admitindo-se como exceção apenas o contido na Constituição

Federal, poderia ser no Brasil afastada por negociação coletiva a incidência

de normas internacionais trabalhistas.

Vejamos um exemplo: um dos primeiros direitos que se tornariam

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objeto de limitação, através de convenções e acordos coletivos, seria sem

dúvida o gozo de 30 dias de férias anuais, alvo frequente de reclamações

empresariais. Nesse sentido a Nota Técnica n. 4, de janeiro de 2005, da CNI:

“  A regulação das relações de trabalho no Brasil é antiga, extensa e

 paternalista. A maioria das normas é ainda oriunda do Governo Vargas, na

década de 40, e pressupõe que cabe ao Estado suprimir o conflito entre

capital e trabalho. (…) Trabalhadores e empregadores não podem negociar,

 por exemplo, tempo de férias, aviso prévio ou o pagamento do 13º salário,

mesmo que isso interesse a ambas as partes para evitar alternativa pior.”

A redução do número de dias de férias seria possível, já que a

Constituição Federal assegura o direito ao gozo de férias, sem definir seu

prazo mínimo. Então, em algum momento seriam celebrados acordos

coletivos (talvez pelos mesmos sindicatos que consideraram muito

apropriado que o próprio empregado pague pelas ferramentas de trabalho)

instituindo o gozo de apenas 10 dias de férias. Tal acordo não agrediria a

Constituição e, na forma do Código do Trabalho, seria válido.

Ocorre que o Brasil é também signatário da Convenção n° 132 da

OIT, de 1970, que dispõe sobre férias anuais remuneradas, e que prevê o

patamar mínimo de três semanas (21 dias) de férias para cada ano de

serviço prestado (artigo 3º, § 1º a § 4º), sem contar os dias de feriados.

Diante disso, eventual acordo coletivo limitando o número de

férias para aquém de 21 dias representará, fatalmente, ofensa à convenção

internacional ratificada pelo Brasil.

Esse, é claro, é apenas um exemplo, e dezenas de outros

poderiam ser apresentados, já que o Brasil é signatário de grande parte das189 convenções da OIT.

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Tais acordos coletivos não seriam passíveis de impugnação

interna perante tribunais brasileiros (salvo se a própria reforma legislativa,

que os autorizou, vier a ser reconhecida como inconstitucional), mas ao

permiti-los estaria a República Federativa do Brasil violando compromissos

que assumiu formalmente perante a comunidade internacional, e tornar-se-ia

alvo de questionamento e até mesmo de sanções perante a OIT e outros

organismos internacionais, com desgaste político e diplomático considerável,

comprometendo as pretensões nacionais de se firmar como uma liderança

geopolítica mundial e referência a outros países em desenvolvimento.

Além disso, experimentaria o Brasil consideráveis prejuízos

comerciais, já que seguramente a violação de normas internacionais

ratificadas, seguida de condenação pela OIT, seria um precedente utilizado

como justificativa – plenamente fundamentada, aliás – para a criação de

restrições à inserção de produtos brasileiros em mercados estrangeiros.

Mercados interessados em obstaculizar, por exemplo, o ingresso da carne

brasileira teriam no descumprimento de normas da OIT a prova da prática de

dumping social pelo Brasil, ficando autorizada a retaliação comercial.

Registre-se que em 2001, por ocasião das discussões em torno

do projeto de lei encaminhado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso,

o mesmo problema – contrariedade às normas internacionais – foi

amplamente reconhecido, merecendo transcrição o seguinte artigo,

elaborado à época pela assessoria parlamentar do Partido dos

Trabalhadores9:

“Respondendo a consulta apresentada pela CUT, a OIT, através

9 “O desrespeito do governo FHC às normas internacionais do trabalho - Condenação da OIT ao projeto de flexibilização da CLT ”, autor Maximiliano Nagl Garcez. Emwww.assessoriadopt.org/CondenacaoOIT.doc

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do diretor do departamento de Normas Internacionais do Trabalho, Jean-

Claude Javillier, condenou formalmente o projeto de flexibilização do artigo

618 da Consolidação das Leis do Trabalho (P.L n. 5.483/01, na Câmara, e

agora sob o n. 134/01, no Senado).

 A Organização Internacional do Trabalho considera que o projeto,

caso transformado em lei, afrontará diversas convenções da OIT 

reconhecidas pelo Brasil, eis que as convenções e acordos coletivos de

trabalho teriam força superior às convenções internacionais ratificadas por 

nosso país.

O documento da OIT foi encaminhado ao governo brasileiro e às

centrais sindicais, e condena a possibilidade de que os acordos coletivos

contenham 'disposições que impliquem menor nível de proteção do que

 prevêem as convenções da OIT ratificadas pelo Brasil'” .

Preocupantemente, o mesmo tipo de reação à reforma neoliberal

de 2001 não está sendo reeditada em 2011, muito embora as propostas

precarizantes sejam agora as mesmas do passado, e os riscos aos

trabalhadores, maiores.

1.4.2) Terceirização

A segunda proposta fundamental contida no projeto do Código do

Trabalho consiste na completa abertura do instituto da terceirização no

Brasil, hoje disciplinada precipuamente não por lei específica, mas por 

  jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (com destaque para asúmula 331).

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De acordo com Godinho Delgado10, “ para o Direito do Trabalho

terceirização é o fenômeno pelo qual se dissocia a relação econômica de

trabalho da relação justrabalhista que lhe seria correspondente. Por tal 

fenômeno insere-se o trabalhador no processo produtivo do tomador de

serviços sem que se estendam a este os laços justrabalhistas, que se

 preservam fixados com um entidade interveniente”.

A matéria é tratada em diversos dispositivos do projeto, mas seu

cerne está nos seguintes artigos:

 Art. 186. Contratante é a pessoa física ou jurídica que celebra

contrato de prestação de serviços determinados e específicos

com empresa prestadora de serviços a terceiros.

§ 1º É vedada à contratante a utilização dos trabalhadores em

atividades distintas daquelas que foram objeto do contrato com a

empresa prestadora de serviços.

§ 2º O contrato de prestação de serviços pode versar sobre o

desenvolvimento de atividades meio e atividades fim da

contratante.

 Art. 187. São permitidas sucessivas contratações do trabalhador 

 por diferentes empresas prestadoras de serviços a terceiros, que

 prestem serviços à mesma contratante de forma consecutiva.

  Art. 188. Os serviços contratados podem ser executados no

estabelecimento da empresa contratante ou em outro local, de

10 Em Curso de Direito do Trabalho, 7ª edição, LTr, p. 430.

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comum acordo entre as partes.

 Art. 189. É responsabilidade subsidiária da contratante garantir 

as condições de segurança, higiene e salubridade dos

trabalhadores, quando o trabalho é realizado em suas

dependências.

A proposta quase que se limita a repetir o projeto de lei n.

4330/2004, de autoria do deputado Sandro Mabel (presidente do grupo

empresarial Mabel, segundo maior produtor de biscoitos da América Latina),

que dispõe especificamente sobre a terceirização, de modo que os

comentários que aqui se fará dizem respeito a ambos os projetos. Compare-

se, por exemplo, o art. 186 do projeto do Código com o art. 4° da proposta

original contida no projeto 4330/2004:

 Art. 4º Contratante é a pessoa física ou jurídica que celebra

contrato de prestação de serviços determinados e específicos

com empresa prestadora de serviços a terceiros.

§ 1º É vedada à contratante a utilização dos trabalhadores em

atividades distintas daquelas que foram objeto do contrato com a

empresa prestadora de serviços.

§ 2º O contrato de prestação de serviços pode versar sobre o

desenvolvimento de atividades inerentes, acessórias ou 

complementares à atividade econômica da contratante.

As diferenças existentes entre os dois projetos são pontuais, mas

o Código do Trabalho consegue ser um pouco pior, como pode ser visto pelacomparação dos seguintes dispositivos:

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Do Código:   Art. 189. É responsabilidade subsidiária da

contratante garantir as condições de segurança, higiene e

salubridade dos trabalhadores, quando o trabalho é realizado em

suas dependências.

Do projeto Mabel: Art. 7º É responsabilidade da contratante

garantir as condições de segurança e saúde dos trabalhadores,

enquanto estes estiverem a seu serviço e em suas

dependências, ou em local por ela designado.

O proposta do Código não tem pudores, portanto, em atentar até

mesmo contra a realidade dos fatos, pois se o trabalho é prestado no

estabelecimento da tomadora, é óbvio que a prestadora de serviços não terá

poder ou liberdade para alterar, a seu bel prazer, o espaço físico, o prédio, o

maquinário, etc., que sequer lhe pertencem, para garantir a adequação do

meio ambiente de trabalho.

O projeto Mabel aguardava desde novembro de 2004 para ser 

submetido a votação na Comissão do Trabalho da Câmara. Em uma

surpreendente manobra regimental, entretanto, o projeto foi aprovado pela

Comissão em 08/06/2011, mediante parecer favorável do deputado Sílvio

Costa, também autor do projeto do Código do Trabalho, presidente da

referida Comissão.

Diz-se surpreendente porque, poucos dias antes, a Câmara dos

Deputados havia constituído uma Comissão Especial “destinada a promover 

estudos e proposições voltadas à regulamentação do trabalho terceirizado

no Brasil ”, tendo sido combinado pelas lideranças partidárias que até aconclusão dos trabalhos da Comissão seriam suspensos todos os projetos

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em tramitação sobre o tema. De alguma forma, o projeto Mabel conseguiu

escapar de tal suspensão, para a surpresa, real ou simulada de muitos

parlamentares.

Mais recentemente, em outubro de 2011, através de nova

manobra regimental deu-se início à votação de um substitutivo ao projeto

Mabel - texto que mantém toda a essência do projeto -, sem prévia inclusão

em pauta. Tenta-se, em suma, aprovar esse projeto o mais rapidamente

possível, enquanto ninguém estiver olhando.

Em seu parecer, mencionava o deputado Sílvio Costa em defesa

do projeto Mabel:

“O mundo empresarial de hoje exige, cada vez mais, perfeição e

especialização técnica. As novidades tecnológicas, a complexidade das

máquinas e equipamentos e a especialidade de serviços fazem com que, a

cada dia, seja mais difícil para as empresas dominarem todos os serviços

direta ou indiretamente necessários à consecução de seus objetivos.

  A terceirização é, frequentemente, o melhor meio encontrado

 pelas empresas para ter, à sua disposição, os serviços especializados que

sua produção exige.

  A opção pela terceirização costuma gerar, porém, enorme

insegurança jurídica para os tomadores de serviços, para as empresas

 prestadoras de serviços e também para os trabalhadores. Isso se deve à

inexistência, no ordenamento jurídico brasileiro, de uma legislação que

regule a matéria, deixando claras as responsabilidades de cada parte desse

tipo de contrato.

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  A transformação da proposta sob exame em norma jurídica

certamente virá em benefício de todos. Entendemos que, para a proteção do

trabalhador, o mais importante não é o tipo de contratação – equívoco em

que muitos caem – mas a sua efetiva proteção jurídica seja qual for a

modalidade do contrato.” 

 

Verifica-se aí uma clara contradição entre os argumentos e

razões invocados para a aprovação, e o real conteúdo da proposta

efetivamente aprovada. Fala-se em “serviços especializados”, em

necessidade de “especialização”, quando na verdade a proposta não exige

em momento algum que a terceirização se dê apenas com relação a serviços

especializados. Pelo contrário, tanto o projeto Mabel quanto o projeto do

Código são cuidadosos em assegurar a possibilidade de que todo e qualquer 

tipo de atividade desenvolvida pela empresa contratante possa ser 

terceirizado, sem quaisquer restrições.

A mesma contradição era cometida pelo deputado Sandro Mabel,

em 2004, no texto de justificativa de seu projeto:

“O mundo assistiu, nos últimos 20 anos, a uma verdadeira

revolução na organização da produção. Como consequência, observamos

também profundas reformulações na organização do trabalho. Novas formas

de contratação foram adotadas para atender à nova empresa.

Nesse contexto, a terceirização é uma das técnicas de

administração do trabalho que têm maior crescimento, tendo em vista a

necessidade que a empresa moderna tem de concentrar-se em seu negócio

 principal e na melhoria da qualidade do produto ou da prestação de serviço” .

Não obstante tais razões, o que se observa é que o projeto em

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momento algum obstaculiza a terceirização de atividades relacionadas ao

negocio principal da empresa, nas quais ela deveria se concentrar. Admite-se

que toda e qualquer atividade, mesmo que não especializada, e mesmo que

relacionada ao negócio principal da empresa, possa ter terceirizada, e em

qualquer amplitude.

O motivo da contradição está na circunstância de ambos os

deputados terem evitado mencionar o óbvio: a principal razão pela qual

recorrem as empresas, na maioria dos casos, à terceirização,

particularmente quando praticada na atividade-fim (nas atividades

relacionadas diretamente ao negócio desenvolvido pela empresa), é a

intenção de reduzir custos, pura e simplesmente.

De fato, que atividades altamente especializadas – aquelas que

demandam a intervenção de profissionais muito qualificados, em atividades

não relacionadas com o negócio principal e diário da empresa tomadora –

possam ser terceirizadas é ponto que raramente se questiona no país, e que

dificilmente costuma ser objeto de qualquer manifestação contrária pelo

Poder Judiciário ou pelo Ministério Público do Trabalho. Se a pretensão fosse

garantir a possibilidade legal de se implementar tal tipo de terceirização,

  jamais se justificaria a aprovação de uma lei específica, eis que

desnecessária.

A inovação legislativa faz-se sim necessária, sob a ótica da

reforma conservadora, na medida em que a terceirização que se quer 

assegurar não é essa, que é excepcional e rara. O que se pretende é

permitir, sem quaisquer limites, terceirizações constituídas como forma de

reduzir e repassar adiante encargos trabalhistas, como o são a maioria das

terceirizações realizadas no Brasil.

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Observe-se que no caso de serviços altamente especializados,

prestados por profissionais muito qualificados, é costumeiro que estes

cobrem mais, e não menos, pelo seu trabalho. O preço é elevado porque o

investimento na obtenção do “saber como” (know-how) é grande, e o espaço

para sua utilização é muito específico, de modo que só haverá demanda por 

um mesmo cliente de forma esporádica. Ao mesmo tempo, há pouca oferta

de serviços assim no mercado, de modo que a empresa prestadora de

serviços está na posição de exigir preços que lhe asseguram maior margem

de lucro.

O oposto exato disso se dá na maioria das terceirizações levadas

a termo hoje. A empresa prestadora de serviço recebe como pagamento

menos dinheiro do que a empresa tomadora gastaria acaso desenvolvesse a

atividade por conta própria. Os salários e benefícios pagos aos trabalhadores

terceirizados, não dotados de qualquer formação especial ou diferenciada,

não são maiores mas sim bem inferiores que os pagos pela empresa

tomadora. E a empresa prestadora costuma depender economicamente da

tomadora, sem a qual não sobrevive, não possuindo a autonomia e o poder 

de escolha que possui uma verdadeira prestadora de serviços

especializados.

Do ponto de vista da produtividade e da qualidade do produto ou

serviço final, tal arranjo revela-se, via de regra, uma péssima opção. O

resultado do trabalho terceirizado só pode ser de pior qualidade, pois o

investimento nele – inclusive em termos de investimento em recursos

humanos – é inferior àquele que ocorreria se a própria empresa tomadora

realizasse o serviço por sua conta.

Ora, para que a empresa terceirizada, recebendo menos dinheiro,consiga obter algum lucro precisará necessariamente pagar salários

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inferiores e utilizar insumos de qualidade inferior, de modo que não terá

condições de garantir grande qualidade.

Essa é uma premissa básica dos serviços terceirizados, no Brasil

e no mundo, salvo em casos de terceirização plenamente justificada (e muito

bem paga) pela especialização: a qualidade será inferior.

Não é por outro motivo, aliás, que a terceirização de serviços de

vigilância e de limpeza se tornou tão costumeira, a ponto de ser 

expressamente admitida (em uma primeira “flexibilização” introduzida no

Brasil quanto ao tema), através de súmula do TST. A razão econômica de tal

popularidade não está, por óbvio, no fato de serem limpeza e vigilância

relacionadas à atividade-meio e não à atividade-fim da maioria dos

empreendimentos. Essa é a explicação jurídica, que vem na esteira do

fenômeno econômico pré-existente. O motivo é que, como regra, supõem os

administradores e empresários que tais atividades não precisam ser 

desenvolvidas com excelência para que o resultado final do negócio principal

da tomadora seja bem sucedido.

Realmente, a suposição é que limpeza e vigilância não

interferem, no habitual das vezes, com a atividade fim da qual a empresa

tomadora extrai seu lucro. Nesse sentido, se os corredores da empresa que

produz motores, por exemplo, estiverem passavelmente limpos, ao invés de

muito limpos, isso em nada prejudica o negócio de construir e vender 

motores. Bastará que os corredores não estejam imundos.

Da mesma forma, se o vigilante terceirizado não for muito

diligente mas só passavelmente diligente, tal circunstância como regra não

interferirá muito no negócio, pois a necessidade de sua efetiva atuação – naprevenção de assaltos, por exemplo – é esporádica, e o risco envolvido –

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prejuízo decorrente da ausência de excelência na vigilância patrimonial – é

desprezado na maioria dos casos (com ou sem razão). Acredita-se como

princípio geral que a simples presença física de uma pessoa armada inibirá a

maior parte dos problemas que se deseja inibir, mesmo que, em uma

situação de crise real, tal pessoa não possua treinamento para de forma

eficaz (quer dizer, com grande presença de espírito e capacidade de reação,

próprias de um agente de elite da Polícia Federal, por exemplo) repelir a

ameaça.

Entretanto, sempre que a necessidade de limpeza é vista pelo

administrador ou empresário como fundamental ao desenvolvimento e ao

resultado do próprio negócio, e que a ausência de boa limpeza possa vir a

comprometer os lucros, percebe-se que a opção pela terceirização torna-se

muito menos comum.

Imagine-se, por exemplo, a limpeza da cozinha de um restaurante

conceituado (bem cotado pela revista Quatro Rodas), cuja eventual

deficiência pode conduzir à interdição sanitária ou, pelo menos, à destruição

do bom nome da casa. Em tais casos, sendo necessário que a limpeza não

seja apenas feita, mas muito bem feita, a opção pela terceirização é pouco

usual, sendo a tarefa realizada por empregados próprios.

Da mesma forma, se a necessidade de segurança mostra-se vital

à própria preservação do negócio e dos lucros, os serviços de vigilância não

costumam ser terceirizados. O exemplo mais óbvio disso, embora não seja

familiar no Brasil, são os cassinos. Via de regra um cassino não opta pela

terceirização de sua segurança, pois isso acrescentaria um risco

(trabalhadores sem vínculo e sem compromisso com a empresa, em elevada

rotatividade) e diminuiria os lucros, que dependem da estrita vigilância contragolpistas, internos e externos à organização. Da mesma forma, grandes

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empresas multinacionais, preocupadas com a preservação do sigilo de suas

descobertas (dado que uma inovação tecnológica exclusiva pode se traduzir 

em enorme vantagem competitiva e bilhões de dólares de lucro), também

costumam possuir corpo próprio de funcionários envolvidos com segurança e

proteção da privacidade, dado que o compromisso de funcionários

terceirizados, com rotatividade superior, jamais será o mesmo que o de

empregados próprios.

Por tais razões é que se chega à conclusão que terceirizar 

funções relacionadas à atividade-fim, vale dizer, relacionadas ao próprio

negócio principal desenvolvido pela empresa, do qual ela extrai seu lucro, é

quase sempre uma opção pouco inteligente do ponto de vista da

manutenção da qualidade do produto ou serviço final. A opção inteligente e

estratégica seria a prestação de um serviço ou disponibilização no mercado

de um produto de boa qualidade, que agradará aos consumidores e clientes,

assegurando o sucesso futuro e a superação da concorrência.

A escolha pela terceirização em atividades-fins significa, quase

que invariavelmente, uma escolha pela redução de custos em prejuízo da

qualidade. A alternativa é pouco recomendável porque, para a garantia do

futuro da empresa, a redução de custos deveria ser buscada sem

comprometer a qualidade, compromisso este que é quase impossível de ser 

assegurado na terceirização, tendo em vista que a empresa prestadora não

terá senão como prestar um serviço inferior, eis que recebe menos por ele.

Trata-se de uma regra que não se manifesta apenas nas relações

trabalhistas ou nas relações de mercado, mas na vida em geral: o tamanho

do resultado obtido depende do grau de investimento aplicado. Quanto

menor o investimento (de tempo, de energia e/ou de dinheiro), pior oresultado. Se eu não me preocupo em cuidar bem da planta que tenho em

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um vaso, e limito-me a regá-la de vez em quando, previsivelmente obterei

um resultado pior que meu vizinho, que tem o cuidado em adubar sua planta,

acrescentar nutrientes e realizar controle de pragas.

Da mesma forma, se o que se deseja é pagar salários piores aos

trabalhadores, removendo-os inclusive dos quadros da empresa (e

repassando-os aos quadros de uma empresa terceirizada) para obter o

mesmo serviço, pode-se ter certeza que o resultado será pior.

Necessariamente. Ninguém trabalha melhor recebendo salário pior. Sequer 

se conseguirá manter os melhores funcionários, indispensáveis ao sucesso

futuro de qualquer empresa, dado que em pouco tempo eles procurarão

opções mais atraentes de emprego, sendo substituídos por funcionários

menos competentes.

Sobre o tema - qualidade dos produtos e serviços proporcionados

pela terceirização - realizei pesquisa (limitada, dado que esse não é o foco

principal deste estudo) na literatura especializada, sob a ótica da

administração empresarial. Causou-me surpresa descobrir que a maior parte

dos autores (devo ter analisado em torno de vinte artigos e teses) mostrou-se

claramente mais interessada em "vender" a ideia da terceirização do que em

analisar com objetividade o grau de eficiência atingida com relação à

qualidade. Em vários estudos, a variável mal era mencionada, e em outros,

confundia-se resultados quantitativos com qualitativos, por exemplo,

tomando-se sem qualquer crítica o aumento do volume de produção como

evidência de maior eficiência.

Chega-se ao ponto, em um estudo11, dos autores apresentarem

dados empíricos, colhidos com relação a uma empresa concreta, que

11 “Terceirização e parceirização de serviços em saneamento em Minas Gerais: um estudoteórico-empírico”, autores Magnus Luiz Emmendoerfer e Luiz Cláudio Andrade Silva,disponível em http://rbgdr.net/revista/index.php/rbgdr/article/viewArticle/240

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apontam inquestionavelmente para importante perda de qualidade, apenas

para ao final desmerecer essas constatações e concluir em sentido contrário.

Veja-se:

"Quadro 4: Resultados Alcançados com a Terceirização de

Serviços Operacionais

Qualidade dos serviços: em Belo Horizonte, redução; em

Ipatinga, redução;

Qualidade do atendimento aos clientes: em Belo Horizonte,

redução; em Ipatinga, redução;

(...)

Quadro 8: Diferenças Qualitativas Entre os Serviços

Terceirizados e Não Terceirizados

Serviços terceirizados: alta produtividade, serviços de menor 

qualidade, Menor comprometimento com a qualidade dos serviços,

Qualidade inferior de atendimento aos clientes, Clientes menos satisfeitos

(...)

Frente aos resultados auferidos com a pesquisa na organização,

conclui-se ser perfeitamente justificável e benéfico para a gestão das

empresas de saneamento a prestação de serviços operacionais com equipes

 próprias e com terceiros. Nota-se que as diferenças qualitativas entre os

serviços terceirizados e não terceirizados são complementares, podendo-se

transferir as qualidades de um como aprendizado às deficiências do outro.” 

Pouco impressionou os autores, também, a circunstância da

empresa analisada estar proporcionando, em razão da terceirização,

serviços de pior qualidade em uma atividade diretamente relacionada à

saúde da população, dado que a empresa se dedica à "prestação de

serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário". Tremo aopensar o que significa, na prática, "serviços de menor qualidade" quando se

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está a falar em tratamento de água que será consumida pela população.

Um dos poucos estudos que fugiam a tal tipo de abordagem, de

autoria de Walmir Maia Rocha Lima Neto, discutia as razões que levaram

uma empresa a reverter um processo de terceirização, voltando a realizar a

atividade de forma direta (processo de "primeirização")12:

“O quadro 4.2 a seguir apresenta o quadro comparativo entre as

vantagens na contratação de pessoal terceirizado e 'primeirizado' elaborado

 pela Caraíba Metais:

Pessoal terceirizado: baixa qualificação da mão-de-obra;

 precários níveis de satisfação, motivação e comprometimento; baixo nível de

confiabilidade na entrega dos serviços (técnica e prazo); descontinuidade

técnica, administrativa e psicossocial de novos empregados terceirizados

com a mudança de empresa terceirizada (2 anos); (...) suscetibilidade a

acidentes de empregados das contratadas; retrabalho, perda ou extravio de

materiais; perda de referencial sobre contingente adequado de mão-de-obra;

quadro de pessoal superdimensionado; necessidades situadas nos fatores

de segurança, pertença e necessidades básicas, gerando reclamações e

reivindicações; grande quantidade de processos trabalhistas de empregados

de empresas terceirizadas (com maior quantidade por terceirizados do que

 por pessoal próprio”.

(...)

 A baixa qualificação dos trabalhadores em atividades ligadas à

 produção e que necessitam de conhecimento técnico, é fator responsável 

 pela pouca qualidade na execução das atividades e perda de produtividade,

12  Trata-se de uma tese de mestrado defendida em uma universidade federal, o que talvezexplique a maior objetividade científica: “Quando a terceirização não funciona: a'primeirização' das atividades de manutenção industrial na Caraíba Metais”, UFBA, Escola deAdministração, 2008, disponível emhttp://www.bibliotecadigital.ufba.br/tde_arquivos/44/TDE-2008-07-18T080041Z-618/Publico/Dissertacao%20Walmir%20Maia%20seg.pdf 

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segundo a empresa.

(...)

 A prática da terceirização tem gerado a falta de investimento na

qualificação e no desenvolvimento profissional dos trabalhadores. Isto é

  justificado pelas contratantes e contratadas em função da rotatividade de

funcionários e pela instabilidade causada pelas licitações no vencimento dos

contratos com as empresas, a cada dois anos, não havendo certeza de que

o funcionário ao qual a empresa está investindo permanecerá em seu 

quadro.

(...)

'As terceiras contratam pessoas sem experiência e qualificação,

sem critério nenhum (...)' (relato em entrevista na empresa).

(...)

Esta desqualificação acarreta diversas consequências negativas

  para a contratante o que, segundo a empresa, não estava previsto na

implantação do processo de terceirização. Uma das desvantagens

apontadas pela Caraíba Metais é o baixo nível de confiabilidade nos serviços

 já que, uma equipe pouco qualificada não executará suas atividades com a

qualidade exigida pela contratante. Desta forma, a empresa concluiu que

suas equipes efetivas executavam as atividades de forma mais adequada.

(...)

Outro ponto considerado na avaliação da terceirização realizada

 pela Caraíba Metais, é que os trabalhadores terceirizados são considerados

mais 'suscetíveis' a acidentes de trabalho e a afastamentos por doenças

ocupacionais. Essa informação foi confirmada em entrevistas com os

representantes da empresa, que buscavam a redução de acidentes de

trabalho na empresa com a reintegração.

(...)

 As estatísticas da empresa sobre acidentes de trabalho revelamque o número de acidentes com os funcionários terceirizados tem sido

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consideravelmente superior aos acidentes com funcionários efetivos da

Caraíba Metais.

(...)

  A estratégia da terceirização não foi apresentada de forma

  planejada e estruturada, seu objetivo era os resultados focados

  principalmente em perspectivas econômico-contábeis. Visualizaram na

terceirização uma oportunidade de reduzir custo e não se preocuparam com

os resultados em longo prazo. Não houve uma análise e um planejamento

 para implantação, ela simplesmente foi acontecendo, conforme relato de um

dos entrevistados. O relato de outro entrevistado complementa esta

observação: 'O início da terceirização não teve uma preparação. Foi aquela

febre de terceirizar, basicamente as pessoas buscavam redução de custo'.

(...)

Quando a Caraíba Metais terceirizou todas as atividades de

manutenção, ela não perdeu diretamente o foco no seu negócio pois

continuou a produzir o cobre eletrolítico, mas perdeu o foco na eficiência do

seu processo e na qualidade do seu produto, que estão diretamente

associados ao seu negócio. (...)

Quando o foco está principalmente na redução de custos, as

empresas não se preocupam com quem ficará com a perda que acarretará

nesta redução. A partir do momento que uma empresa subcontrata uma

outra de forma pouco planejada para prestar-lhe algum serviço, o dono desta

empresa, também, buscará a sua parcela de lucro. Ou seja, recebendo uma

quantia menor que a gasta antes pela contratante, a contratada recruta sua

equipe e a coloca para trabalhar executando as mesmas tarefas, antes

executadas por funcionários da contratante. Sem qualquer esforço, é

 possível perceber que o salário pago aos funcionários da contratada será

muito menor. Como a contratante está isenta de responsabilidade com estes'novos funcionários', ela não conhece os critérios adotados pela contratada

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  para selecioná-los, e estes funcionários, certamente, serão menos

qualificados que os anteriores.

  Além disso, há uma redução no vínculo e aumento na

rotatividade dos empregados, levando a um menor investimento em

treinamento e, portanto, um baixo nível de qualificação de mão-de-obra. As

consequências deste baixo nível de qualificação foram percebidas

diretamente na maior dificuldade em assegurar a qualidade do serviço

 prestado, na redução da produtividade e no aumento do custo. (...)” 

Em suma, a opção pela terceirização de atividades-fim é na

maioria dos casos uma escolha nada inteligente (sob uma perspectiva

estratégica, focada no futuro da empresa e não em resultados financeiros de

curto prazo), além de prejudicial aos trabalhadores. Então, por que é levada

a termo tão entusiasticamente?

Duas razões conspiram para tanto. A primeira é que os

empresários e administradores, com a notável exceção daqueles poucos que

enxergam mais longe, tomam suas decisões com base em uma perspectiva

de curto ou curtíssimo prazo. A prioridade é fechar o ano com o maior lucro

possível, mesmo que a médio e longo prazos a viabilidade da empresa seja

comprometida e os lucros despenquem. Tal ameaça futura sequer é

considerada. As pressões inerentes ao sistema capitalista nos dias atuais

predispõem a tal pensamento limitado ao curto prazo, pois a necessidade de

sobreviver à concorrência é imediata, os contratos são frequentemente de

curta duração e as expectativas dos donos – sócios ou acionistas – são

também imediatas. Fechar um único ano “no vermelho” já costuma ser a

senha para a troca de diretores e administradores.

Assim sendo, não obstante o discurso amplamente difundido no

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meio empresarial acerca da necessidade de “qualidade total”, “eficiência”,

“competitividade”, “excelência no atendimento ao cliente”, “planejamento

estratégico”, etc., na prática, no dia a dia da maioria das empresas, as

decisões passam a margem de tudo isso e resumem-se a: reduzir custos e

aumentar lucros, imediatamente.

A segunda razão está no fato de que, na prática, muitas

empresas acreditam que o consumidor irá aceitar qualquer coisa que lhe for 

oferecida, mesmo que seja de qualidade ruim. Trata-se de uma tendência

especialmente sentida no Brasil, sobre a qual voltaremos a falar no último

capítulo. Os usuários dos serviços de telefonia móvel, por exemplo, que

alguma vez precisaram recorrer ao teleatendimento para resolver qualquer 

tipo de problema, sabem exatamente do que estamos a falar.

Tal descaso com o consumidor apenas se sustenta na ausência

de verdadeira concorrência no mercado, pois onde de fato existe competição

entre fornecedores, o mais competente, que oferece melhores produtos e

serviços, e melhor atende o consumidor, prevalecerá.

Na prática, não obstante os universais elogios dispensados pelo

pensamento empresarial aos benefícios da competição e da concorrência,

mostra-se comum a implantação de concertação entre as empresas de um

mesmo setor, para excluir da concorrência um ou todos os aspectos do

negócio.. Cartéis são os exemplos mais visíveis, mas em absoluto os únicos,

desse tipo de acordo entre empresas em tese rivais, para prejuízo dos

consumidores.

Sobre isso, já advertia Adam Smith: "Pessoas do mesmo ofício

raramente se encontram, mesmo que em alegria ou diversão, mas se tiver lugar, a conversa acaba na conspiração contra o público, ou em qualquer 

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artifício para fazer subir os preços."

Exemplo da “racionalidade” inerente ao pensamento capitalista de

curto prazo, que tive a oportunidade de conhecer, está na disposição de

muitos produtores rurais de devastar a maior quantidade de floresta possível,

transformando-a em pasto ou plantação. É exatamente a disposição que está

a inspirar a aprovação de um Código Florestal destinado a respaldar o

avanço do desmatamento e a transformação das últimas grandes florestas

do planeta em pastos. Em Mato Grosso, por ocasião de inspeções em

fazendas para apuração de denúncias – confirmadas, aliás – de trabalho

escravo, estive em uma propriedade rural na qual a desertificação avançava

a passos largos, já que o fazendeiro havia desmatado tudo o que pode, de

castanheiras centenárias a matas ciliares, no entorno de mananciais.

Resultado: os córregos secaram, permanecendo agora no local apenas leitos

empoeirados, e os pastos definham. Trata-se de um exemplo bastante claro

do pensamento de curto prazo – aumentar ao máximo o tamanho da minha

pastagem, para criar a maior quantidade de gado possível, e obter 

imediatamente muito lucro – destruindo a própria continuidade do negócio, a

longo prazo.

No caso da terceirização de atividades-fim, um exemplo bastante

recente dos resultados que se obtém com tal estratégia é o da companhia

Light, na cidade do Rio de Janeiro, cuja população encontra-se assustada

com a explosão em série de bueiros, o que vem causando danos materiais e

lesões à integridade física dos transeuntes.

Veja-se, nesse sentido, as seguintes reportagens jornalísticas:

a) “Presidente da Light culpa terceirização de equipes técnicas pelos incidentes com bueiros no Rio

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RIO - O presidente da Light, Jerson Kellman, disse, em entrevista

à Rádio CBN, que a terceirização das equipes técnicas, responsáveis pela

manutenção das câmaras subterrâneas, pode ser a culpada pelos incidentes

que têm acontecido com bueiros na cidade. Na última terça-feira, chamas

que saíram de uma câmara assustaram moradores e pedestres que

 passavam pela Rua Senador Vergueiro, no Flamengo, na Zona Sul do Rio .

Um telefone público foi queimado e os bairros de Laranjeiras e Botafogo,

além do Flamengo, ficaram sem luz.

- O sistema subterrâneo da Light foi instalado nos anos 1950 e

1960, e agora apresenta sinal de velhice. Durante muito tempo não deu 

 problema para os clientes e nem para a empresa, e acabou renegado a

segundo plano. Também houve terceirização das equipes técnicas e a Light 

  perdeu o controle da memória técnica - explicou, acrescentando que "a

frequência de eventos que assusta a população está como nunca antes

visto. É grave".

Como medidas mais urgentes para evitar outros acidentes,

Kellman disse que a empresa acabou com o serviço técnico terceirizado nas

galerias subterrâneas e está priorizando a reforma das instalações nas

câmaras onde existam transformadores.” 13

b) “Especialista: economia da Light está 'explodindo' sob cariocas

(…)

Para o coordenador do Gesel, os problemas na Light vêm desde

a privatização da empresa, em 1996, inicialmente controlada pelo grupo

francês EDF e atualmente sob comando da Companhia Elétrica de Minas

Gerais (Cemig). "A Light fez uma gestão administrativa centrada na

13 Publicada em 30/06/2011 às 13h10m, O Globo ([email protected]) com CBN.

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 performance financeira, maximizando os ganhos em detrimento da qualidade

no atendimento à população. O resultado disso é que em vez dela gastar em

manutenção de equipamento deixou os gastos se transformarem em lucro.

 Agora, a atual diretoria está pagando esta conta, do acionista anterior, de

gastos que deveriam ter sido feitos no passado e que estão explodindo sob

os cariocas", afirmou.

Segundo Nivaldo de Castro, um dos erros cometidos pela

empresa foi prescindir dos quadros experientes em troca da contratação de

funcionários terceirizados. "São pessoas que não têm compromisso com a

empresa e que não vestem a camisa. Se economiza na equipe, a empresa

ganha, mas o consumidor perde", disse. A Light informou, por meio de nota

divulgada pela assessoria de imprensa, que aumentou os recursos aplicados

no sistema de distribuição em 2011, totalizando R$ 88 milhões para a

recuperação da rede subterrânea, representando mais de dez vezes o que

se gastava anualmente no período de 2004 a 2008 e mais de três vezes o

gasto do ano passado.

Sobre as críticas ao processo de terceirização de mão de obra, a

assessoria informou que a concessionária decidiu contratar diretamente 250 

funcionários. "Até 2010, a mão de obra utilizada para executar as tarefas na

rede subterrânea era majoritariamente terceirizada. Hoje é o contrário:

apenas uma minoria de técnicos é terceirizada", diz a nota.” 14

Não se imagine que o caso da Light seja excepcional. Na verdade

ele é bastante emblemático dos efeitos normalmente proporcionados pela

terceirização. A diferença é que, na maioria das vezes, os problemas criados

não explodem, literalmente, na face da população, e costumam se manifestar 

de formas menos visíveis, ainda que não menos gravosas.14 Em http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI5224665-EI306,00-

Especialista+economia+da+Light+esta+explodindo+sob+cariocas.html

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Outra consequência da terceirização, quando utilizada como

simples estratégia de redução de custos, é a deterioração das condições de

trabalho e de vida dos trabalhadores terceirizados. Trata-se de consequência

igualmente previsível: quanto menos se investe, menos se obtém de

resultado. Quando se opta por gastar menos com a manutenção das

condições de trabalho, elas necessariamente irão piorar. O efeito é direto e

imediato.

A matéria já foi objeto de inúmeros estudos, parte deles

resgatados por Carlos Roberto Miranda, médico do trabalho, mestre em

saúde comunitária e ex-Delegado Regional do Trabalho no Estado da

Bahia15:

“Estudo do DIEESE, realizado com 40 empresas de diversos

ramos econômicos e instaladas na região sudeste do país, revelou que em

67,5% das empresas os níveis salariais nas subcontratadas eram bem

inferiores aos da empresa contratante. Em 72,5% dos casos os benefícios

sociais eram também menores que os praticados pelas contratantes. Além

disso, em 32% das empresas, a terceirização estava associada à ausência

de equipamentos de proteção individual, menor segurança e maior 

insalubridade.

O Sindicato dos Metalúrgicos realizou pesquisa em 12 empresas

da região do ABC e constatou que em todas elas (100%) tinha ocorrido

algum tipo de terceirização, sendo que os principais motivos declarados

 pelas empresas foram redução de custos (75%), maior eficiência (50%) e

especialização (33%). Além disso, foi possível evidenciar que em 92% dos

casos a terceirização tinha resultado em redução dos salários, em 58% das15 Em http://www.saudeetrabalho.com.br/download/ataque-miranda.doc, acessado em

10/08/2011.

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empresas houve perda de benefícios e em 42% ocorreu deterioração das

condições de segurança e saúde no trabalho.

 

  A precarização das condições de trabalho e de emprego

associada à terceirização foi também evidenciada em pesquisas realizadas

na indústria de confecções no Rio de Janeiro e na indústria de calçados no

Rio Grande do Sul.

 As conseqüências da terceirização sobre o mercado de trabalho

no Complexo Petroquímico de Camaçari foram estudadas, em 1994/95, em

um projeto de pesquisa desenvolvido pela Delegacia Regional do Trabalho

na Bahia, em parceria com o PNUD e com o Centro de Recursos Humanos

da Universidade Federal da Bahia (CRH/UFBA). Os resultados apontaram

uma drástica redução do número de postos de trabalho, dos salários e dos

benefícios nas empresas químicas/petroquímicas. Os dados indicam que as

demissões ocorridas entre 1988 e 1994 situam-se em torno de 30% e 40%

do quadro de pessoal existente no início do período. A redução de pessoal 

ocorreu em 92,1% das empresas. Além disso, em 63,6% dos casos houve

 perda de benefícios. As áreas mais atingidas pela terceirização foram os

serviços de apoio (higiene/limpeza e vigilância e segurança patrimonial) e as

áreas de manutenção. Entre os motivos declarados para adotar a

terceirização, 97% das empresas destacaram a redução de custos, redução

de pessoal, maior produtividade e melhor qualidade. Todas as empresas

(100%) apontaram como motivo a maior especialização. A qualidade de vida

e a participação dos trabalhadores foram motivos apontados por apenas

12% das empresas. Entre os problemas indicados pelas empresas, 61%

declararam ter sofrido reclamação trabalhista por parte de empregados das

empresas subcontratadas. Em 78% dos casos, as reclamações

relacionavam-se ao reconhecimento de vínculo empregatício e em 65% ànecessidade de assumir compromissos trabalhistas da subcontratada.

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Druck, estudando a indústria química e petroquímica da Bahia,

assinalou que os achados empíricos demonstraram que a terceirização tem

levado a uma quádrupla precarização: do trabalho, da saúde dos

trabalhadores, do emprego e das ações coletivas. A autora destacou que a

terceirização tem implicado num processo de precarização intra e extrafabril.

No interior da fábrica, evidencia-se nas condições de trabalho e salariais e

na criação de duas categorias de trabalhadores: os efetivos (de primeira

classe) e os subcontratados (de segunda classe). No plano extrafabril, a

terceirização tem levado a um crescimento acelerado do mercado informal 

de trabalho, com a precarização dos vínculos empregatícios e com o

aumento dos trabalhadores por conta própria.” 

Em processo judicial recente, tive a oportunidade de constatar tal

precarização ocorrendo na prática. Abaixo trecho colhido das razões finais

apresentadas pelo Ministério Público:

“Veja-se, por exemplo, a foto de fl. 577, muito ilustrativa. O

funcionário da [prestadora] é aquele à esquerda da linha divisória amarela, e

está abastecendo o “ponto de uso” da linha de montagem. O trabalhador à

direita é o funcionário da [tomadora]. Entre os dois há três ou quatro passos

de distância! E os braços do funcionário da [prestadora] estão claramente

além da referida linha, sendo óbvio, pelas circunstâncias em que a atividade

se dá, que isso há de ocorrer sempre (pois a prateleira que é por ele

abastecida, localizada há dois passos da esteira de montagem, está do lado

direito da linha).

Tal foto demonstra, de forma inconfundível, a artificial construção,

meramente retórica, levada a termo pelos réus. A realidade do processo produtivo é só uma, e o meio ambiente de trabalho é apenas um. Para as

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demandadas, ao revés, o meio ambiente dos funcionários da [prestadora] é

um, e os dos funcionários da [tomadora] é outro completamente diverso, em

uma gritante deturpação do que efetivamente ocorre, na prática.

Veja-se que a proximidade não é apenas física, mas temporal: ao

mesmo tempo em que o funcionário da [prestadora] vai municiando a

 prateleira, o funcionário da [tomadora] vai retirando dela as peças de que

necessita.

  A foto de fl. 577 reproduz UMA LINHA DE PRODUÇÃO DE 

MOTORES, e os dois trabalhadores vistos na foto estão obviamente

envolvidos NA MESMA LINHA DE PRODUÇÃO DE MOTORES, no mesmo

  processo produtivo. Não há separação real do espaço laboral ou das

atividades desenvolvidas.

(…)

Para qualquer pessoa neste planeta, exceto para a defesa, os

dois trabalhadores da fl. 577 são COMPANHEIROS DA TRABALHO,

operários que laboram NO MESMO AMBIENTE DE TRABALHO, LADO A

LADO, QUASE OMBRO A OMBRO.”

Registre-se que, nesse caso concreto, os funcionários da

prestadora de serviços recebiam salários e benefícios em média 50%

inferiores que os pagos pela tomadora, além de serem privados – pela ficção

criada pelas empresas – da proteção proporcionada pela vinculação a um

sindicato mais forte, como o é o dos metalúrgicos.

A situação pode ser resumida da seguinte forma: se para manter 

um ambiente de trabalho razoavelmente seguro, livre de riscos à vida e à

saúde dos trabalhadores, a empresa principal gastava 100, além de saláriose encargos trabalhistas da ordem de 300, e agora, graças à terceirização,

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todos esses ônus serão assumidos pela empresa prestadora, que receberá

como pagamento apenas 200, é evidente que haverá deterioração. Não se

pode fazer mais, ou o mesmo, com menos. E se fosse para pagar à empresa

prestadora de serviços 400 – que é o real custo implicado nesse exemplo –,

obviamente a tomadora não se daria ao trabalho de terceirizar. Só irá fazê-lo

porque espera obter mais por menos.

A diferença de custo, que significa economia para a tomadora, é

paga por alguém, como tudo na vida. Sempre que há um preço, alguém o

acaba pagando. A diferença, na terceirização, é que quem o paga são os

trabalhadores.

Quando o trabalhador se submete a um ambiente de trabalho

ruim, pior do que aquele que existia anteriormente, e quando recebe menos,

pelo mesmo labor prestado, do que outro trabalhador percebia anteriormente

na mesma posição, o custo de tal piora é pago pelo operário, em termos de

desgaste adicional, físico e psíquico, de deterioração de sua qualidade de

vida, de prejuízos à sua família (que será privada de seu convívio por horas

adicionais, gastas no trabalho), etc. Apenas porque tais custos não

ingressam na contabilidade das empresas, seja da tomadora, seja da

prestadora, não significa que não existam.

De modo que concluo que a opção pela terceirização,

particularmente de atividades-fim (relacionadas ao negócio do qual extrai a

empresa tomadora seu lucro, atividades sem as quais não há lucro algum),

consiste em uma estratégia planejada a partir de uma perspectiva de curto

prazo, voltada à produção de produtos e serviços de pior qualidade (que

comprometerão o amanhã da empresa tomadora), com a transferência do

custo da redução de investimentos aos trabalhadores, que os suportarãosozinhos ou em conjunto com o restante da sociedade (como no caso da

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Light, em que a população como um todo vê-se privada do serviço público

indispensável, chegando-se ao ponto da lesão corporal e da criação de risco

de morte), ainda que tais custos não ingressem na contabilidade de qualquer 

empresa.

Mas as agruras enfrentadas pelos trabalhadores terceirizados

não se limitam a ter que trabalhar em condições piores e mais inseguras,

recebendo de forma discriminatória salário menor, pois se tornou costumeiro

no Brasil que tais trabalhadores nem salário recebam. De fato, assiste a

sociedade brasileira há vários anos à proliferação incontrolável de empresas

terceirizadas que desaparecem, de um instante para o outro, deixando para

trás enorme passivo trabalhista descoberto, e centenas ou milhares de

empregados em situação desesperadora.

Veja-se, nesse sentido, a seguinte reportagem16, idêntica a

centenas de outras:

“Terceirizados são vítimas de calote

Prestadoras de serviço cometem um festival de irregularidades,

como o atraso de salários e a falta de recolhimento do FGTS

Sai Lula, entra Dilma Rousseff, mas os problemas para os

trabalhadores de empresas terceirizadas continuam. Na Esplanada dos

Ministérios, empregados convivem diariamente com o desrespeito aos

direitos trabalhistas, o atraso no pagamento dos salários, do 13º e das férias,

entre outras irregularidades. A administração pública paga as companhias,

mas elas não repassam o dinheiro aos trabalhadores. Muitas vezes, fecham

as portas e desaparecem. Uma das campeãs de reclamações é a Visual 

Locação de Serviços e Construção Civil, que presta serviços de limpeza e

16 Em Correio Braziliense, 12-01-2010.

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conservação para o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT).

Contratada pela Visual, a auxiliar de serviços gerais Sônia P.*, 40 

anos, ainda não recebeu o salário de dezembro. Há um ano e 11 meses no

cargo, não tirou férias e nem sequer consegue uma resposta satisfatória da

empresa. No fim do ano, ela foi a unidades do Instituto Nacional do Seguro

Social (INSS) e da Caixa Econômica Federal e descobriu que, embora seja

descontada todo mês no contracheque, a contribuição previdenciária não é

repassada ao governo. O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS)

nunca foi depositado. “Está tudo irregular. Temos problemas todos os meses

  para receber o vale-alimentação e o vale-transporte. Minhas faturas do

cartão de crédito, contas de água e de luz estão atrasadas”, reclamou.

Indignada com a situação, Sônia e cerca de 30 colegas foram à

Delegacia Regional do Trabalho (DRT) na segunda-feira. “Eles prometeram

que mandariam um fiscal aqui, mas ainda não vimos movimento”, disse.

 Atualmente, na Justiça do Trabalho da 10ª Região, que abrange o Distrito

Federal e Tocantins, há cerca de 410 processos contra a Visual, 3,5 mil 

contra a Fiança e 5,4 mil contra a Conservo. A situação dos empregados

ficou mais complicada depois que, em novembro, o Supremo Tribunal 

Federal (STF) desobrigou União, estados e municípios a arcar com os

custos trabalhistas que não são pagos pelas empresas terceirizadas.

Sem caixa

Na prática, a decisão do STF restringe as possibilidades de

conquista dos direitos trabalhistas por parte de empregados como a auxiliar 

de serviços gerais Carlita T.*, 54 anos. Ela é contratada pela Visual há cinco

anos e foi transferida do Ministério da Fazenda para o MCT. “Estou há doisanos sem tirar férias. A empresa simplesmente diz que não tem dinheiro em

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caixa”, queixou-se. A auxiliar Renata S.* também foi conferir a situação do

depósito do FGTS e descobriu que ele está irregular. “Somos mais de 60 

 pessoas nessa situação”, denunciou.

(...)

Não apenas no MCT a Visual causou problemas. No Ministério da

Fazenda, onde era responsável pela conservação e limpeza até o ano

 passado, funcionários reclamam que a empresa não repassou à Previdência

os valores relativos ao recolhimento do INSS, além de não ter pagado o

FGTS. Uma funcionária da área de limpeza, de 35 anos, que só aceitou falar 

 por telefone, relatou que os funcionários da Visual foram orientados a abrir 

mão de 20% do valor devido pela empresa, mediante a promessa de

recontratação pela Condon, terceirizada que a substituiu no fim do ano

 passado.

(...)

Funcionários terceirizados do Ministério da Saúde aguardam o

 pagamento de dois meses de trabalho de 2010. No ano passado, a Ágape

Empreendimentos e Serviços, empresa contratada na época para prestar 

serviços, não efetuou o depósito dos salários para 81 empregados que

atuam como recepcionistas na sede do órgão. A Procuradoria Regional do

Trabalho propôs o repasse direto dos vencimentos por parte do ministério.

Mas, até agora, nada saiu do papel.

“Não recebemos os salários de setembro e outubro. Agora, a

empresa responsável é a GVP Consultoria e Produção de Eventos, mas

continuamos sem receber o vale-alimentação. Estou com três aluguéis e três

mensalidades da faculdade atrasadas”, disse um recepcionista. “Estou 

devendo contas de água, luz, telefone e aluguel. Tenho quase R$ 900 a

receber”, afirmou outra funcionária.” 

Resta evidente, portanto, que as terceirizações estão criando

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situações de verdadeira comoção social, com a supressão diária e em larga

escala de direitos trabalhistas, e a solução proposta para enfrentamento

dessa crise, para os deputados autores dos projetos de lei referidos e para

as entidades patronais que eles representam, é facilitar ainda mais tais

terceirizações e restringir a responsabilização do tomador dos serviços. Em

outras palavras, para aplacar o incêndio, propõe-se usar gasolina.

Outro aspecto que merece ser destacado, contido tanto no

projeto do Código do Trabalho quanto no projeto Mabel, está na amplitude da

terceirização autorizada. Ambos os projetos, além de autorizarem a

terceirização de qualquer tipo de atividade, não impõem qualquer limite à

utilização do instituto por uma mesma empresa, em termos de setores

envolvidos ou número de funções terceirizadas.

A consequência disso é que, na eventualidade de ser aprovado

algum dos dois projetos (ou qualquer outro dentre os vários que tramitam no

Congresso com idêntico conteúdo), poderá uma empresa, se assim desejar,

terceirizar não apenas parte de suas atividades, mas todas elas, não

permanecendo com qualquer empregado. Teríamos então uma empresa em

funcionamento, com atividade econômica, mas sem nenhum funcionário.

Tomemos, para melhor visualização de tal disparate, autorizado

pelos projetos, o caso do banco Bradesco, empresa com capital social

superior a 30 bilhões de reais e mais de setenta mil empregados.

Aprovada a terceirização nos moldes pretendidos, nada haverá

na legislação que impeça o Bradesco de livrar-se de todos os seus

empregados, permanecendo com nenhum, mediante a terceirização de todas

as funções. Se tal opção for economicamente vantajosa ao banco, elapoderá ser adotada. Teremos então uma empresa com capital social,

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faturamento e lucro da ordem de vários bilhões de reais, e nenhum

empregado, ou seja, nenhum ônus trabalhista.

Parece o cenário com o qual sonharam os banqueiros de todas

as épocas em seus devaneios mais loucos, não? Todos os lucros, e

nenhuma responsabilidade. Pois tal sonho de qualquer capitalista poderá

enfim se transformar em realidade, em nome da “modernidade” e da

“competitividade”.

Podemos imaginar, então, a seguinte situação futura: o cliente do

Bradesco (ou de qualquer outro banco) irá a três agências diferentes, e após

aguardar em longas filas, perguntará ao caixa na primeira agência: “Você é

funcionário do Bradesco?”. A resposta será, “não, sou funcionário da Alfa

Finanças”. “E quanto você recebe de salário?”. “Mil e duzentos reais”. Na

segunda agência, não distante da primeira, perguntará a outro caixa: “e

você, é funcionário do Bradesco?”. “Não, sou empregado da Beta Serviços

Terceirizados, e recebo mil e quinhentos reais por mês”. O cliente

perguntará, então, ao caixa da terceira agência: “e você?” “Eu sou 

funcionário da Gama & Gama, terceirizada da Alfa Finanças, que por sua vez 

é contratada pelo Bradesco, e meu salário é de mil reais”.

Três funcionários, empregados de três empresas diferentes,

desempenhando a mesma função, prestando os mesmos serviços ao mesmo

banco multibilionário, percebendo salários diferentes, e não existindo nisso

qualquer tipo de ofensa à legislação trabalhista!

Que belo e maravilhoso mundo estará sendo construído então!

Belo e maravilhoso à elite econômica, bem entendido... e a mais ninguém,

nem a trabalhadores, nem a consumidores, nem à população em geral.

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Ou então poderá o Bradesco chegar à conclusão de que não lhe

é tão vantajoso terceirizar todos os pontos de trabalho em todas as suas

agências, mas apenas sessenta por cento deles, por exemplo. Nesse caso,

na situação hipotética acima, um dos três caixas seria empregado do banco,

e os outros dois não, recebendo cada qual um salário diferente, não existindo

aos olhos da “moderna” legislação trabalhista qualquer problema nisso.

Aos olhos do restante da humanidade, entretanto, haverá sim

problemas, pelos quais poderá o Brasil ser responsabilizado, e com toda

 justiça, na esfera internacional (por exemplo, perante a Corte Interamericana

de Direitos Humanos), dado que tal forma de terceirização contraria o

disposto no art. XXIII da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Toda

 pessoa, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual 

trabalho.”

Ou seja, a terceirização proposta nos projetos Sílvio Costa e

Sandro Mabel não representa agressão, apenas, aos princípios

fundamentais do direito do trabalho e às normas trabalhistas internacionais

(no caso duas convenções da OIT, a 111, que proíbe medidas tendentes a

“destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em

matéria de emprego ou profissão”, e a 100, que prevê a “igualdade de

remuneração de homens e mulheres por trabalho de igual valor ”), mas

também a um direito humano universal, reconhecido por todas as nações.

É portanto desumano, além de injusto e precarizante, manter 

trabalhadores laborando na mesma função, em proveito da mesma empresa,

recebendo remunerações diferentes.

Nenhuma proposta legislativa que conduza a tal arrematadoabsurdo, em direta contrariedade à Declaração Universal dos Direitos

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Humanos, deveria ser sequer considerada, que o diga aprovada.

Não obstante, hoje como no passado, o afã de se atender aos

interesses da elite econômica fala mais alto, mais até que os princípios, os

valores, a justiça e os direitos humanos.

1.4.3) Abolição da anotação da Carteira de Trabalho

A terceira proposta de inovação legislativa contida no projeto do

Código de Trabalho que considero fundamental está em seu artigo 81:

 Art. 81. O contrato individual de trabalho poderá ser acordado por 

 prazo determinado ou indeterminado e deverá ser formalizado

mediante o registro do empregado e:

I – anotação na Carteira de Trabalho e Previdência Social 

(CTPS); ou 

II – contrato escrito, em duas vias, uma para cada parte, do qual 

conste, no mínimo, a data da admissão, a natureza do trabalho, a

remuneração e a forma de seu pagamento.

Veja-se que, em tese, o projeto mantém a existência da Carteira

de Trabalho. Na prática, como resta evidente, o que ele propõe é a abolição

da anotação do contrato de trabalho na CTPS em favor da hipótese prevista

no inciso II, que permite e facilita a fraude generalizada.

Considero que, através deste artigo, os redatores do projeto

revelaram mais acerca de suas reais intenções do que, em retrospectiva,  julgarão conveniente ter feito. Entretanto, reconheça-se que a proposta é

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coerente: para alguém interessado em eliminar o direito do trabalho

enquanto instrumento de proteção do trabalhador no Brasil, mostra-se em

tese necessário remover o símbolo máximo de tal disciplina jurídica e de tais

direitos, que é a Carteira de Trabalho.

Para destruir uma ideia (no caso, a de que “trabalhadores

merecem especial proteção do estado”), é preciso destruir o símbolo que a

corporifica, em torno do qual as pessoas se unem e se tornam capazes de

mobilização coletiva.

A Carteira do Trabalho está, para as relações do trabalho, assim

como a bandeira nacional está para a nação: é o símbolo que desperta

reações emocionais imediatas, bastante enraizadas no imaginário popular.

Está a Carteira firmemente associada à noção de cidadania e à afirmação

individual do trabalhador enquanto sujeito de direitos.

Da janela de meu gabinete, na Procuradoria do Trabalho, tenho

atualmente um exemplo de quão profundo e generalizado é tal

reconhecimento: para anunciar, em um outdoor, que no município de

Araraquara vem sendo criados muitos empregos, optou a Prefeitura

Municipal por usar a foto de vários trabalhadores sorridentes, cada qual

empunhando e mostrando com orgulho sua carteira de trabalho. Nenhuma

outra imagem, realmente, conseguiria transmitir a mesma ideia

(“trabalhadores satisfeitos com seus novos empregos”) de forma tão clara.

Ocorre que, além de ser um símbolo histórico das pretensões e

conquistas da classe trabalhadora, a Carteira também é um instrumento

bastante eficiente, apesar de simples, de inibição de ilícitos trabalhistas.

Dado que a Carteira precisa, por exigência legal, permanecer em poder doempregado, sendo entregue ao empregador apenas para anotação e pronta

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devolução, torna-se possível a qualquer momento verificar se o empregador 

cumpriu ou não certas obrigações, sendo a primeira a de anotar a Carteira.

A formalização do contrato de trabalho na Carteira mostra-se

imperiosa porque é através dela que se garante o cumprimento de todos os

demais direitos contemplados em lei ou, pelo menos, obtém-se a punição

pelos descumprimentos. Já o trabalhador informal é, a princípio (vale dizer,

até que recorra ao Poder Judiciário e obtenha o reconhecimento da

existência da relação de trabalho, coisa que nem todos os trabalhadores

informais fazem ou conseguem fazer, por diversos motivos), um trabalhador 

sem direitos, sejam trabalhistas, sejam previdenciários.

Não existe outro motivo que justifique a rejeição patronal à

Carteira de Trabalho senão este: ela dificulta a informalidade e a sonegação

de direitos trabalhistas e previdenciários. Obviamente não impede, mas

dificulta a prática dos ilícitos, pois é um meio de prova bastante direto.

Do ponto de vista dos custos administrativos arcados pelo

empregador que deseja contratar, a anotação da Carteira é procedimento

muito mais fácil, rápido e econômico do que qualquer outra alternativa,

inclusive a contida no inc. II acima transcrito (elaboração de “contrato escrito,

em duas vias”). A Carteira já existe, para formalização do contrato basta uma

caneta, e é fornecida sem qualquer custo, ao passo que a elaboração e a

impressão de instrumentos de contrato exigirão algum tempo e dinheiro.

A formalização através de “contrato escrito em duas vias”, ao

invés da Carteira, presta-se a apenas uma finalidade concebível: permitir que

os instrumentos de contrato sejam assinados em branco, e possam ser 

completados – obviamente apenas na eventualidade de comparecer aoestabelecimento um fiscal do trabalho, ou de ser o empregador demandado

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em juízo – a qualquer tempo, com a indicação de data da contratação

diversa da real, ou de salário inferior ao verdadeiro, entre outras

discrepâncias.

É esperado, também, que aos trabalhadores não venham a ser 

fornecidas cópias desses instrumentos de contrato avulsos, sendo muito

simples ao empregador alegar, depois, que o trabalhador a recebeu e

perdeu, ou, é claro, que o contrato nunca existiu, já que não houve relação

de emprego. Será simples, também, exigir do trabalhador, no ato da

contratação (e como condição a ela), a assinatura de documento informando

 – em desconformidade com a realidade – que a ele está sendo entregue

cópia do contrato.

Consumidores são lesados há muitos anos dessa forma, com a

supressão da entrega do instrumento de contrato. Mas enquanto os

consumidores podem, via de regra, simplesmente não celebrar o contrato

oferecido nessas condições adversas, procurando outro fornecedor, o

trabalhador desempregado não pode recusar, premido pela necessidade (de

comer, de morar, de vestir-se, de assegurar a sobrevivência de seus filhos).

E assinará o que quer que lhe seja exigido como condição ao recebimento

de um salário, preocupando-se com as consequências depois.

Foi exatamente para evitar a disseminação de fraudes assim que

a Carteira foi criada, muitas décadas atrás. E agora propõe-se o retorno ao

passado, e sob o fundamento de que isso seria “moderno” e estaria em

sintonia com a “globalização”. Moderno, portanto, para os reformadores

neoliberais, seria facilitar fraudes e reimplantar práticas laborais de quase um

século atrás, mediante a permissão a contratos trabalhistas “de gaveta”.

A proposta sem dúvida insere-se na linha de medidas

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propugnadas pela CNI, Fiesp e outras entidades empresariais para resolver 

o problema do mercado informal de trabalho no Brasil. A “solução” seria, bem

se vê, a seguinte: ao invés de se acabar com a informalidade, acaba-se com

a formalidade, e assim não há mais problema, já que todos os trabalhadores

estarão na mesma condição, em pé de igualdade. E sem direitos.

Acredito, entretanto, que os autores da proposta descobrirão que

o povo brasileiro não aceitará entregar sem luta uma de suas bandeiras mais

queridas, que é a Carteira de Trabalho.

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CAPÍTULO 2: Flexibilização, o que é?

2.1) Velhos projetos, novas palavras

Como se faz para convencer milhões de trabalhadores, e a

sociedade como um todo, que as medidas referidas no capítulo anterior são

boas, benéficas àqueles que serão penalizados por elas? Como convencer,

por exemplo, um trabalhador que irá perder seus 30 dias de férias, que

passarão a ser 10, ou um operário que hoje trabalha oito horas por dia, e

passará a trabalhar onze, ou um trabalhador da construção civil que terá que

continuar trabalhando em uma obra interditada, sem que o empregador seja

punido pelo risco de morte criado, que isso tudo é bom para o trabalhador e

não mau, péssimo, inaceitável? E como dizer, no cenário político brasileiro,

que se deseja abolir na prática a anotação de Carteira de Trabalho e facilitar 

fraudes trabalhistas?

Não é um trabalho fácil.

Mesmo com a conivência de muitos veículos de comunicação,

que reproduzem sem qualquer crítica o discurso neoliberal (e não informam

quanto às consequências das medidas), ainda assim mostra-se dificílimo

defender as propostas precarizantes de forma aberta, dizendo: “olhe,

trabalhador, nós vamos diminuir os seus dias de férias, e eliminar o limite

diário de horas extras, e ampliar o prazo para pagamento de verbas

rescisórias, e dispensá-lo do seu atual emprego para recontratá-lo como

terceirizado pela metade do salário, mas você vai ver depois que tudo issoserá bom para você”. Não funciona.

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O discurso é direto demais, e ao invés de convencer os

trabalhadores de que aquilo que é ruim na verdade é bom, dessa forma o

que se obtém é alertá-los para o (real) perigo a que estão expostos, levando-

os à revolta. Afinal, por mais desmobilizados que estejam os trabalhadores

nos tempos atuais, qualquer porta-voz do ideário neoliberal sabe que

anunciar abertamente que o que se quer é eliminar parte dos salários e das

férias levará à ocupação espontânea de fábricas e a paralisações,

independentemente (e, às vezes, contrariamente) de qualquer convocação

de lideranças sindicais.

Ou seja, convencer os trabalhadores a abrir mão de seus parcos

direitos é mesmo uma tarefa dura. Mas já foram inventadas formas de torná-

la mais fácil, desviando a atenção dos trabalhadores até que seja tarde

demais.

A estratégia é a seguinte: você não usa as palavras certas,

correntes na língua falada. Se você deseja eliminar direitos, você não diz

“eliminar direitos”, você diz “flexibilizar”. Se você deseja promover demissões

em massa, você não diz “eu vou demitir em massa”, você diz “nós vamos

realizar um processo de reengenharia organizacional para maximizar a

eficiência” ou coisas do gênero. Até mesmo porque a consequência, por 

vezes, diante de pessoas que estão desesperadas, pode ser esta:

“Executivo linchado após anunciar demissões - A empresa

chinesa Jianlong Steel Group desistiu dos planos de comprar a Tonghua

Iron, a maior produtora de aço da província de Jilin, no Nordeste da China,

depois que violentos protestos de operários culminaram na morte de um

executivo, na sexta-feira. Chen Guojun, da Jianlong, foi linchado por manifestantes depois de anunciar que a empresa, depois da aquisição,

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cortaria o número de funcionários de 30 mil para 5 mil. O jornal “China Daily” 

informou que os protestos reuniram mais de 3 mil pessoas.17”

“Flexibilizar”, entretanto, é a palavra da moda, a que mais tem

dado certo, pois abrange um amplo leque de medidas e soa doce aos

ouvidos. “Flexível” é bom, é atual, é ágil e pós-moderno. Quem pode ser 

contra o “flexível”? “Rígido”, ao revés, soa ruim, atrasado, pesado,

retrógrado. Quem pode ser a favor da “rigidez”?

Com os habituais bom humor e perspicácia, o escritor Luiz

Fernando Veríssimo18 descreveu essa estratégia linguística da seguinte

forma:

“Na recente reunião dos sete de ouro para tratar do custo social 

da nova ordem econômica, os países mais ricos do mundo chegaram a uma

conclusão sobre como conter o desemprego. Surpresa! Deve-se continuar 

·enfatizando e receitando aos pobres austeridade fiscal sobre qualquer 

 política de desenvolvimento e pedindo ao trabalhador que coopere, trocando

a proteção social que tem pela possibilidade de mais empregos. Algo como

continuar batendo no supercílio que já está sangrando. Chama-se isso não

de crueldade ou chantagem, mas de flexibilização do mercado de trabalho.

Podia se chamar de Maria Helena, não faria diferença - o neoliberalismo

triunfante conquistou o direito de pôr os rótulos que quiser nos seus bíceps.

Quem chama a volta ao capitalismo do século dezenove de modernidade e

consegue vendê-la merece o privilégio.” 

Tal “flexibilização” constitui palavra que poderia ter saído, sem

17 Em http://www.clicrbs.com.br/anoticia/jsp/default2.jsp?uf=2&local=18&source=a2596947.xml&template=4187.dwt&edition=12804&section=886

18 Citado por Salete Maria Polita Maccaloz, em Globalização e Flexibilização, Revista doInstituto de Pesquisas e Estudos, n. 18, disponível emhttp://bdjur.stj.gov.br/xmlui/bitstream/handle/2011/20353/globalizacao_flexibilizacao.pdf?sequence=1

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dúvida, da Novalíngua (Newspeak) descrita pelo escritor George Orwell no

livro “1984” (uma das obras seminais do século XX), língua cujo objetivo é

impedir a capacidade de reflexão e o pensamento crítico, permitindo que

apenas sejam passíveis de expressão aquelas ideias compatíveis com a

visão de mundo da classe dominante.

Outro escritor que admiro, Ambrose Bierce, cujas críticas

mordazes ao poder e aos costumes eram muito temidas em sua época,

talvez incluísse se vivo estivesse um novo verbete na sua obra satírica “O

Dicionário do Diabo”:

Flexibilização, s. Processo através do qual se busca convencer 

os trabalhadores que trabalhar mais horas, com menor remuneração, na

verdade é bom para eles.

Lembrando que no mesmo Dicionário já consta o seguinte

verbete:

LABOR, n. One of the processes by which A acquires property for 

B. [Trabalho, s. Um dos processos pelos quais A adquire propriedade para

B].

“Flexibilização”, portanto, não é um novo fenômeno econômico,

social ou político. Reconhecê-la como tal é cair na ilusão que o uso da

palavra pretende criar. A novidade que existe em torno da “flexibilização” é

meramente linguística.

De fato, não existe uma nova tendência em voga no mundo que

mereça ser chamada de “flexibilizadora”, relacionada à globalização ou àcontemporaneidade, assim como não existe um inédito projeto “flexibilizador”

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em andamento, a novidade está no uso dessa palavra como máscara para

dificultar a identificação de um projeto bastante antigo, já chamado por outros

nomes no passado, que é o de eliminar direitos dos mais pobres.

Ou seja, o fenômeno subjacente (político e econômico) de fato

existe, mas não é novo e não está em uma necessidade contemporânea de

“flexibilização”, mas na pretensão por parte da elite econômica e de seus

vassalos, de extrair dos trabalhadores direitos hoje consagrados.

Sinteticamente, trata-se da mesma pretensão de sempre, mas com outro

nome.

2.2) Flexibilizar “para cima” ou “para baixo”?

Mas a invenção da “flexibilização” não foi uma grande descoberta

apenas por tornar possível a eliminação de direitos sem que precise ser dito,

pela elite e por seus veículos de comunicação, que direitos estão sendo

eliminados. Ela também possui a curiosa característica de fazer as pessoas,

e em particular os trabalhadores, esquecer um fato que deveria ser óbvio:

“flexibilizar” para mais, para cima, sempre foi possível. Não há qualquer 

novidade aí. Sempre foi admitido que empregados e empregadores

chegassem a acordos para ampliar a quantidade de direitos trabalhistas

previstos em lei.

Portanto, a legislação trabalhista jamais constituiu obstáculo à

“flexibilização”, desde que esta significasse acrescentar e não retirar direitos.

É o que nos lembra Salete Maria Polita Maccaloz19:19 “Globalização e Flexibilização”, em Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, n. 18,

ago/nov 1997.

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“O direito do trabalho para cumprir a sua finalidade de disciplina

  jurídica tutelar, protegendo o trabalhador como o sujeito economicamente

fraco da relação contratual de trabalho, estabelece comandos mínimos e

inflexíveis, melhor dizendo, irrenunciáveis por parte dos empregados, mas

acima desses mínimos tudo é negociável, tudo será estabelecido segundo a

vontade das partes.” 

Ora, se a “flexibilização” é apresentada como sendo boa aos

trabalhadores, é porque estes são seduzidos pela ilusão de que, através dela

e da reforma da legislação trabalhista, o seu número de direitos irá aumentar 

com o tempo. A “flexibilização”, quando convence, convence por transmitir a

ideia de que a condição do trabalhador irá melhorar. Mas para aumentar 

direitos nunca foi necessário alterar a lei. Direitos sempre puderam ser 

acrescentados e ampliados. A legislação trabalhista sempre foi

irrestritamente “flexível” nesse sentido.

A qualquer instante os empregadores brasileiros podem, se

quiserem, ampliar a quantidade de dias de férias remuneradas, de 30 para

40 por exemplo, ou criar uma autolimitação ao número de horas extras, para

que jamais excedam a uma por dia, ou proporcionar condições de meio

ambiente do trabalho melhores do que o exige a legislação. Tal forma de

“flexibilização” pode ser feita já, sem alterar a lei.

De modo que o sentido dado à “flexibilização” atual mostra-se

bastante específico: não se trata de “flexibilizar” para cima, para alcançar a

ampliação de direitos, dado que isso sempre foi possível, e nunca se supôs

que houvesse a necessidade de se inventar uma nova palavra para designar 

tal possibilidade. Quando se fala comumente em “flexibilizar”, o sentidoinequívoco é sempre “flexibilizar para baixo”, “flexibilizar para menos”.

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Então, quando o presidente da CNI diz que “Num mundo

competitivo, flexibilidade é essencial para a sobrevivência das empresas”, ele

não está a dizer que “Num mundo competitivo, flexibilizar para cima, para

criar direitos, é essencial para a sobrevivência das empresas”, mas sim que

“Num mundo competitivo, flexibilizar para baixo, para eliminar direitos, é

essencial para a sobrevivência das empresas.”

Da mesma forma, quando o deputado Sílvio Costa afirma que

“Flexibilizar, garantindo-se direitos mínimos, vem ao encontro da tendência

mundial ”, ele não está a dizer “Flexibilizar para criar novos direitos, além dos

direitos mínimos, vem ao encontro da tendência mundial ”, mas sim que

“Flexibilizar para retirar direitos, mantendo-se apenas o mínimo, vem ao

encontro da tendência mundial ”.

Igualmente, quando o periódico inglês The Economist declarou

em março de 2011 que “Quando Luiz Inácio Lula da Silva, um ex-lider 

sindical, tornou-se presidente em 2003, eles [os empresários] esperavam

que ele estivesse em melhor posição que seus predecessores para

convencer os trabalhadores que leis mais frouxas [ flexíveis ] seriam melhores

 para eles20”, ele não estava a declarar que” eles [os empresários] esperavam

que ele estivesse em melhor posição que seus predecessores para

convencer os trabalhadores a ter seus direitos ampliados”, e sim que “eles

[os empresários] esperavam que ele estive em melhor posição que seus

 predecessores para mentir aos trabalhadores que leis mais frouxas [ flexíveis ] 

seriam melhores para eles”.

Percebe-se que as propostas de alteração legislativa

20 “When Luiz Inácio Lula da Silva, a former union leader, became Brazil’s president in 2003,they hoped he would be better placed than his predecessors to persuade workers that looserrules would be better for them.” Em http://www.economist.com/node/18332906

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apresentadas pelo deputado Silvio Costa, pelo deputado Sandro Mabel e

tantos outros, no sentido de “flexibilizar” a legislação trabalhista, não tem em

momento algum o sentido de “flexibilizar” para cima, para permitir a criação

de novos direitos e melhores condições de trabalho, dado que para isso não

é necessária qualquer mudança da legislação. O sentido de tais reformas só

pode ser, então, “flexibilizar” para baixo, para retirar direitos, para piorar as

condições de trabalho no Brasil.

Então que fique bem claro a todos os trabalhadores brasileiros

que, se acaso vier a ser dado espaço à “flexibilização” mediante as reformas

legislativas aqui discutidas, nenhum trabalhador irá adquirir qualquer direito

adicional. Não haverá qualquer ganho. Se a intenção do parlamentar,

proponente do projeto, fosse assegurar ganhos ao trabalhador, ele o faria

diretamente, mediante lei ampliativa. E se a intenção do patronato fosse

conceder ganhos ao trabalhador, ele o faria desde já, pois aumentar direitos

é possível sem mudar a lei, no contexto de negociações coletivas ou não.

Ou seja, se vier a ser implementada a “flexibilização” pretendida

em tais reformas, nenhum trabalhador irá ganhar dias de férias a mais, ou

receberá adicionais salariais a mais, ou horas de trabalho a menos, ou

salários melhores. O que ocorrerá é o exato oposto disso: perderão os

trabalhadores dias de férias, perderão os adicionais não previstos na

Constituição, trabalharão mais horas por pior remuneração. Pois esse é o

significado – o único significado – de “flexibilizar”.

Seria conveniente, por tudo isso, que cada trabalhador tivesse

gravada em sua mente a tradução para a língua portuguesa coloquial, falada

diariamente pelos brasileiros, da palavra “flexibilização”, da seguinte forma:

1) “flexibilização” quer dizer, em bom português, “eliminação de direitos”; 2)“Flexibilizar” significa eliminar, e nada mais; 3) trabalhador, a pessoa que vier 

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lhe propor a “flexibilização” de direitos está pretendendo, nada mais nada

menos, tomar direitos seus. Tal pessoa não quer ajudá-lo, mas prejudicá-lo.

2.3) Promessas não cumpridas

Em acréscimo, a propalada “flexibilização” jamais resolve

quaisquer dos problemas que ela promete exterminar. Jamais se gerou

grande quantidade de empregos, por exemplo, eliminando-se direitos dos

trabalhadores.

Nesse sentido, Óscar Ermida Uriarte21, após relatar experiências

de flexibilização da legislação trabalhista ocorridas na Espanha (a partir de

1984), Argentina (a partir de 1991), Chile (1978/79) e Colômbia (1985 e

2002), todas acompanhadas do crescimento dos índices de desemprego nos

anos subsequentes, comenta:

“Si se trazara un gráfico com estos datos, señalando las fechas

de las reformas desreguladoras o flexibilizadoras y se las superpusiera com

la línea del desempleo, podría demostrarse que la flexibilización genera

desempleo. Problablemente no sea así, sino que el nivel de empleo sea

mucho más susceptible a las grandes variables macroeconómicas (tasa de

interés, tasa de cambio, inversión, ahorro) que a la firmeza o debilidad de la

legislación laboral.

(…)

Es que el verdadero problema del empleo no es el Derecho del 

trabajo ni el sistema de relaciones laborales, cuya incidencia sobre aquél es

muy relativa. El verdadero problema es que tenemos un sistema económico21 Em “La flexibilidad laboral: perspectiva latinoamericana”, em Responsa iurisperitorum

digesta, Volume 5, Universidad de Salamanca, 2004.

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que destruye más puestos de trabajo que los que genera”.

A completa ineficácia da “flexibilização” em resolver problemas,

entretanto, não é um defeito dessa estratégia mas uma vantagem: já que os

problemas não são resolvidos, sentem-se muito à vontade os arautos do

neoliberalismo para continuar propondo novas doses da mesma

“flexibilização”. Simplesmente se defende que a dose anterior de eliminação

de direitos não foi o bastante, ou então ignora-se a experiência pregressa,

como se ela jamais tivesse existido, contando-se com a curta memória da

população.

Reconheça-se então a “flexibilização” pelo que ela realmente é:

não uma proposta ou estratégia econômica genuína, mas um projeto

linguístico de contornos ideológicos muito bem definidos, defendido por 

pessoas que jamais se deixarão curvar pelos fatos e pelas evidências em

contrário, já que tais fatos pouco lhes interessam. O que sim interessa a tal

ideologia é reverter certas conquistas obtidas décadas atrás pela classe

trabalhadora, de modo a facilitar o processo de concentração da riqueza nas

mãos dos mais ricos.

2.4) Flexibilizar o quê?

Mas vejamos que direitos são esses que precisariam ser 

“flexibilizados”. Fala-se muito em “flexibilizar” a legislação trabalhista sem

que se esclareça exatamente qual a “gordura” que se deseja eliminar, quais

os direitos inúteis e descartáveis que estariam incomodando tanto o

processo de geração de empregos, a melhoria da eficiência das empresas eo progresso da sociedade como um todo.

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Tomemos a CLT, na qual está contemplada a maior parte desses

direitos. Denuncia-se com frequência que a CLT contém regras demais,

artigos demais, mas na verdade grande parte deles não se relaciona

propriamente com a enunciação de direitos trabalhistas.

Em síntese, o que está contido na CLT sobre direitos

reconhecidos aos trabalhadores limita-se a:

1) registro do contrato de trabalho, para que os direitos não

sejam totalmente suprimidos mediante fraude;

2) limitação à jornada e intervalos mínimos de descanso, para

preservação da saúde do trabalhador;

3) férias, também necessárias à saúde do trabalhador;

4) normas de segurança e medicina do trabalho, para

preservação da vida e da integridade física e mental do

trabalhador;

5) proteção do trabalho da mulher (inclusive em função da

maternidade) e do menor de idade;

6) proteção do salário, para que a remuneração prometida seja

efetivamente paga e não suprimida sob a forma de descontos

ilegais, por exemplo;

7) aviso prévio e verbas rescisórias, para que o trabalhador possa assegurar a continuidade da sobrevivência própria e de

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sua família logo após a perda inesperada do emprego, e tenha

tempo para procurar nova colocação e fonte de renda.

Há ainda na CLT algumas peculiaridades relativas a um pequeno

número de profissões específicas, regulamentadas de forma especial, quase

todas relacionadas aos mesmos pontos acima (limite de jornada, saúde e

segurança, etc.).

De resto trata a CLT sobre direito coletivo do trabalho, normas

processuais, procedimentos administrativos, etc., ou seja, normas que não

se relacionam com a enunciação de direitos individuais passíveis de

“flexibilização” (eliminação) para fins de redução de custos.

Peço ao leitor que leia novamente a lista acima e diga: onde está

a “gordura”? Onde está o excesso?

Na verdade não há excesso algum. Não há nada ali que não

esteja diretamente relacionado ao mínimo necessário à preservação da

saúde, da vida e da dignidade dos trabalhadores e de suas famílias.

Todos os direitos enunciados na CLT guardam relação com

imperativos decorrentes da biologia, da medicina e da economia. Da biologia

extrai-se a existência de ritmos biológicos, que impõem respeito à alternância

entre períodos de vigilância e atividade com os de repouso. Da biologia

também provém a necessidade de cuidados com a prole, que inspiram as

medidas de proteção à maternidade e à infância. Da medicina extrai-se que o

excesso de trabalho conduz à fadiga crônica, a doenças conhecidas e ao

aumento do número de acidentes, em decorrência da menor capacidade de

concentração do trabalhador. Da economia extrai-se a óbvia constatação deque trabalhadores que foram dispensados, sem estar esperando por isso,

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precisarão de tempo para obter uma nova colocação, e de dinheiro para se

sustentar até lá, visto que os credores e o supermercado da esquina não se

importarão se o trabalhador tiver perdido o emprego sem justa causa e de

forma inesperada, imprevista.

O que é que se pretender, então, “flexibilizar”? A saúde do

trabalhador, mediante a ampliação da jornada? A garantia de sua

sobrevivência diante do desemprego, e da incerteza quanto à pronta

obtenção de novo emprego, mediante redução ou eliminação de verbas

rescisórias?

Portanto não existe na CLT “gordura” alguma, existe apenas e tão

somente o mínimo necessário para que o trabalhador possa viver com saúde

e com um pouco de dignidade.

Que fique então claro que remover esses poucos direitos

significa, necessariamente, isto: subtrair a saúde e a dignidade do

trabalhador e de seus filhos.

É isso o que propõem, por trás dos neologismos, os arautos da

“flexibilização”: menos dignidade e saúde à população.

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CAPÍTULO 3: Corrida global ao fundo do poço

3.1) E que vença o pior...

Como visto no capítulo 1, o projeto do Código do Trabalho, assim

como o projeto Mabel, representam mais um passo da tentativa de se

implementar no Brasil uma agenda de reformas neoliberais, em sintonia com

os interesses da elite econômica, mediante a eliminação de direitos

trabalhistas.

Frequentemente tal eliminação (termo evitado em prol do

neologismo “flexibilização”) de direitos (palavra que também se evita, em

favor de “encargos”) é defendida, em primeiro lugar, pela necessidade da

competição internacional, supostamente agravada pelo fenômeno de

globalização.

Nesse sentido, vale repetir, alerta-nos o texto da justificativa do

projeto do Código:

“A realidade de uma sociedade pósindustrial mostra que muitos

hábitos foram alterados pelo avanço tecnológico e pela globalização.

(…)

Hoje, a inflexibilidade para se contratar é, sem dúvida, o mais

grave problema da legislação trabalhista, pois impede a competitividade das

empresas. Como a concorrência nos mercados internos e externos é cada

vez mais acirrada, e só vence quem oferece o menor preço, as empresasnão hesitam em transferir fábricas para países onde o custo de produção é

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baixo.” 

Na mesma linha adverte-nos a revista Exame, em março de

201122:

“A busca por um Brasil competitivo - Num mundo onde os

 padrões de concorrência são dados pela China, o Brasil não tem outra saída

senão tornar sua economia competitiva. Há muito a fazer. É preciso começar 

 já.

São Paulo – A competição é uma das mais poderosas forças na

evolução do homem. Não conhecemos o futuro, mas uma coisa é certa: à

medida que a competição continue a evoluir, ela será a fonte de muito de

nossa prosperidade.

(…)

Os especialistas ouvidos por EXAME são unânimes em apontar 

um cenário extremamente promissor caso o Brasil opte por se livrar de

amarras em quatro terrenos — o sistema tributário sufocante, a legislação

trabalhista esclerosada, a infraestrutura precária e uma taxa de juro única no

mundo.” 

Tal tipo de advertência não é escutada, entretanto, apenas pelos

brasileiros. Trabalhadores e cidadãos de outras partes do mundo, entre eles

argentinos, norte-americanos, mexicanos e franceses, escutam tais avisos

há tempos: para continuar crescendo, para chegar ao desenvolvimento ou

para mantê-lo, em suma, para se construir um país melhor, mais forte e

poderoso, com pessoas mais felizes que aproveitam excelente qualidade de

vida, é preciso abrir mão de direitos, particularmente dos trabalhistas, pois

22 Em http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/0987/noticias/a-busca-por-um-brasil-competitivo?page=1&slug_name=a-busca-por-um-brasil-competitivo, acessado em11/08/2011.

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direitos são obstáculos à competitividade e ao crescimento em uma

economia globalizada.

Então, enquanto no Brasil o grande projeto destinado a

transformar o país em um paraíso econômico passa, como se alardeia, pela

supressão de direitos trabalhistas, projetos idênticos estão sendo defendidos

na Argentina, Estados Unidos, México e outros países, cujas populações são

também condicionadas, tanto quanto a brasileira, acerca da necessidade

imperiosa do país vencer, chegando-se ao primeiro lugar em uma verdadeira

guerra comercial permanente, um vale-tudo de todos (os países, as

empresas, os indivíduos) contra todos pela conquista de mais mercados, de

mais divisas, de mais lucros, enfim do maior crescimento econômico possível

ou mesmo imaginável, entendido muito naturalmente como condição

indispensável à felicidade humana.

Na Espanha, por exemplo, a população é alertada pela CEOE

(Confederação Espanhola de Organizações Empresariais) que23: “En una

economía globalizada, la competitividad debería ser una auténtica obsesión

nacional. La economía española lleva muchos años perdiendo

competitividad, y esta pérdida explica, em gran parte, nuestros abultados

déficits exteriores”; “el marco legal e institucional del mercado de trabajo está

desfasado. Las reglas que rigen la negociación colectiva son, prácticamente,

las mismas que existían hace treinta años. La multiplicidad de contratos

laborales no sólo carece de la flexibilidad necesaria, sin oque, además,

aumenta los costes administrativos y de gestión.”

Digamos, então, que a sociedade brasileira, convencida da

necessidade da medida para assegurar a vitória no cenário competitivo

internacional, aceite a redução de direitos trabalhistas. Isso assegurará ao23 Em http://www.ceoe.es/ceoe/contenidos.downloadatt.action?id=8077629, acesso em

12/08/2011.

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Brasil o sonhado “primeiro lugar”, garantindo maior competitividade de

empresas brasileiras?

Ora, pelo visto não, pois ao mesmo tempo os demais países, à

frente dos quais o Brasil quer permanecer em termos de “competitividade”,

também deverão ceder à necessidade de se manter competitivos, e estarão

ao mesmo tempo reduzindo seu patamar de direitos trabalhistas.

Isso levará, previsivelmente, a um novo “round” na guerra para se

manter competitivo e à frente dos demais, pois agora todos os países mais

uma vez se nivelaram (ou mantiveram suas posições relativas) em termos de

custos trabalhistas, não obstante a queda do nível de direitos em todos eles.

Haverá alguns países em que os custos permanecerão ainda menores, pois

 já o eram antes, e foram reduzidos em sintonia com a tendência mundial, de

modo que, para permanecer “competitivo”, se fará necessário ao Brasil e a

todos os outros países novos cortes de direitos trabalhistas, e após isso

novos cortes, e novos cortes, e novos cortes.

Esse é o processo, lógico e necessário, ao qual se chega quando

se supõe que, para assegurar a competitividade, é necessário reduzir direitos

(ou como preferem alguns, reduzir “encargos”) trabalhistas: todos os países

terão que fazê-lo, e inicia-se uma corrida internacional para ver quem terá

menos direitos e será como resultado o mais “competitivo”. Como a

competição, em um sistema capitalista, nunca terá fim, jamais desaparecerá

a pressão para a realização de novos cortes de direitos.

O título deste capítulo é um bom nome para designar tal

processo, apregoado pela elite econômica brasileira ou de qualquer outro

país: corrida global ao fundo do poço, vale dizer, uma corrida internacionalrumo ao estabelecimento, em todo o planeta, das piores condições

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trabalhistas possíveis, competição que por sua própria lógica apenas

chegará ao fim quando, em todos os países, passarem a ganhar os

trabalhadores o suficiente para permanecerem vivos e nada mais, já que do

contrário, mortos, não fornecerão qualquer força de trabalho.

Ilustremos assim: a Espanha, para continuar competitiva,

eliminará os custos para a dispensa de empregados. O Brasil, para

acompanhar a Espanha, faz o mesmo, e para superar a Espanha (dado que

a intenção é vencer, e não apenas se igualar aos demais) elimina também o

direito às férias (reduzindo-a para quantidade ínfima de dias). A Alemanha,

estando a perder competitividade em relação à Espanha e ao Brasil, faz o

mesmo, e providencia a eliminação dos custos da dispensa, das férias e,

para continuar à frente como uma das economias mais competitivas, desfaz-

se também do repouso semanal. A China, assistindo a isso, e percebendo

que seus custos trabalhistas, que eram antes bastante baixos e

“competitivos”, tornaram-se após o “round” mundial de eliminação de direitos,

mais elevados que o desejado, acompanha tais mudanças e suprime,

também, o pagamento por horas extras. No que terá que ser acompanhada

pela Argentina, forçando novas mudanças por Espanha e Brasil. E assim por 

diante.

Esse, grosso modo, é o mundo imaginado e desejado pelos

arautos da competitividade na perspectiva neoliberal: um mundo sem

direitos, em toda parte, mas com empresas extremamente competitivas, o

que é o mesmo que dizer lucrativas para os seus donos.

Percebe-se que o entendimento de que é necessário reduzir 

direitos trabalhistas para tornar o país mais competitivo, relativamente a

outros países nos quais o custo trabalhista é menor, leva fatalmente àdegeneração das condições de trabalho no plano internacional. Sempre

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haverá algum país mais pobre no qual, em tese, o custo do trabalho será

menor, e para o qual empresas multinacionais ameaçarão remover suas

operações. Tal possibilidade, admitida como natural (e não denunciada como

viciosa), leva ao nivelamento por baixo das condições de vida e de trabalho

em todo o globo.

Veja-se que o entendimento de que reduzir direitos trabalhistas

leva à prosperidade econômica já vem sendo repetidamente testado há

décadas, e jamais produziu o resultado alardeado. Em todas as situações em

que foi posta em prática, após o reaparecimento dos mesmos problemas que

a “flexibilização” pretendia resolver, voltou-se a defender, com a total

desconsideração das lições do passado (contando-se com a elevada

capacidade dos cidadãos “pós-modernos” para esquecer, inclusive a história

recente), o mesmo “remédio amargo” de antes, reapresentado como grande

novidade.

3.2) Reformas na Espanha

O caso espanhol, nesse sentido, é paradigmático. Durante o

mandato do presidente José Maria Aznar, de 1996 a 2004, foram

implementadas inúmeras alterações à legislação trabalhista no sentido de

torná-la mais “flexível”. Dessa forma, foram eliminados direitos, facilitando-

se, em especial, a dispensa do empregado.

O resultado de tais reformas, com a redução dos elevados

índices de desemprego na Espanha nos anos imediatamente seguintes,

foram saudados como um grande sucesso, e exemplo a ser seguido peloresto do mundo.

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Em abril de 2006, por exemplo, noticiava-se na página do

Tribunal Superior do Trabalho na internet24:

“Reforma trabalhista na Espanha é tema de palestra no TST: (…)

 A recente experiência espanhola no campo das reformas trabalhistas foi 

apresentada aos Ministros do Tribunal Superior do Trabalho hoje (27) pelo

consultor da Fundação de Análises e Estudos Sociais de Madri, Jaime

García Legaz. O espanhol acompanhou diretamente as reformas trabalhistas

espanholas entre os anos de 1996 e 2000, quando foi assessor econômico

do presidente José María Aznar.

(…)

 A redução da indenização – pagamento de 45 para 33 dias por 

ano trabalhado – impulsionou as contratações, fazendo com que a Espanha

reduzisse a taxa de desemprego de 22,3%, em 1995, para 8,7%, em 2005.

Segundo García Legaz, o país ibérico caminha para uma situação de pleno

emprego”. 

Também em 2006, José Pastore, como esperado, tecia rasgados

elogios à reforma espanhola, saudando-a como um exemplo a ser seguido

pelo Brasil25:

“Hoje em dia, a Espanha é uma referência em matéria econômica

e laboral em toda a Europa. Além da vigorosa criação de novos empregos, o

 país reduziu drasticamente os gastos com seguro desemprego, o que ajudou 

a equilibrar as contas públicas.

(…)

Esta é uma quarta lição importante. As mudanças trabalhistas,

24 Em http://ext02.tst.jus.br/pls/no01/NO_NOTICIASNOVO.Exibe_Noticia?p_cod_noticia=6446&p_cod_area_noticia=ASCS, acessado em 12/08/2011.

25 Em http://www.josepastore.com.br/artigos/rt/rt_136.htm, acessado em 12/08/2011.

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quando bem realizadas, contribuem para equilibrar as contas de Previdência

Social e, indiretamente, todas as contas públicas e, com isso, estimula os

investimentos e a geração de empregos.

(…)

Por meio das várias reformas, a Espanha criou instituições do

trabalho que (1) estimularam novas formas de contratar; (2) reduziram o

custo da admissão; (3) cortaram o custo da demissão; (4) estimularam um

aumento de horas trabalhadas; (5) diminuíram o custo unitário do trabalho; e

(6) tudo isso associado a uma força de trabalho bem preparada.” 

Comparece-se as declarações acima com a seguinte notícia,

mais recente, da agência de notícias BBC Brasil, de abril de 2011:

“O índice de desemprego na Espanha atingiu seu nível mais alto

nos últimos 14 anos, chegando a 21,3% no primeiro trimestre de 2011” .

Que curioso! A Espanha, que estava prestes a atingir, em meados

de 2006, uma “situação de pleno emprego” graças à “flexibilização” (redução)

de direitos trabalhistas, implementada para reduzir o desemprego, enfrenta

poucos anos depois desemprego recorde.

E como a eliminação anterior de direitos não atingiu os propósitos

planejados, o que se fez na Espanha, então? Abandonou-se a tese, que

obviamente não vingou, de que eliminar direitos garante a redução do

desemprego?

Não. Fez-se o seguinte: já que o “remédio doloroso” de poucos

anos atrás não funcionou – embora quase ninguém lembre disso, nem se

considere desejável lembrar disso – aplicou-se uma nova dose do mesmoremédio. Claro! Já que algo não está dando certo, continuemos a fazer a

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mesma coisa. Nesse sentido dá conta a notícia de junho de 2010:

“Espanha: reforma trabalhista é aprovada no Congresso

“A Câmara dos Deputados da Espanha aprovou nesta terça-feira

o decreto-lei sobre a reforma trabalhista adotada na semana passada pelo

governo, uma das medidas do socialista José Luis Rodríguez Zapatero para

enfrentar a crise econômica e aliviar em 20% o desemprego existente entre

a população ativa.

 A reforma, que foi aprovada pelo executivo de forma urgente com

um decreto-lei e já entrou em vigor, foi apoiada na Câmara por 168 votos a

favor dos deputados do governista Partido Socialista Operário Espanhol 

(PSOE), 173 abstenções e oito votos contrários.

(…)

Corbacho negou que a nova legislação diminua a indenização

 por demissão, o que foi reprovado por vários deputados. A reforma pretende

ampliar o uso do chamado contrato de fomento ao emprego, que tem uma

indenização menor que um contrato normal, de 33 dias em vez de 45, e na

demissão por causas econômicas, uma indenização de 20 dias.

'Esta não é a reforma trabalhista que a Espanha precisa. É a

reforma da demissão. Pretendemos melhorá-la com nossas emendas",

declarou a deputada Soraya Sáenz de Santamaría, do principal partido de

oposição, o Partido Popular (PP)26 .” 

O resultado acumulado das duas reformas (a de ontem e a de

hoje) “flexibilizadoras” de direitos trabalhistas, na Espanha, foi até o

26 Ironicamente, o Partido Popular da referida deputada é o mesmo do ex-Presidente Aznar,durante cujo governo foi aprovada reforma trabalhista para facilitar demissões. Emhttp://www.istoedinheiro.com.br/noticias/26532_ESPANHA+REFORMA+TRABALHISTA+E+APROVADA+NO+CONGRESSO.

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momento o seguinte:

a) “Desemprego na Espanha é o maior dos últimos 35 anos

Taxa sobe para 21,3% no 1º tri; país já tem quase 5 milhões de

desempregados

O número de desempregados na Espanha chegou a 4.910.200 

no primeiro trimestre deste ano, enquanto o índice de desemprego subiu 

quase um ponto percentual, até 21,29%, segundo os dados oficiais

divulgados nesta sexta-feira.

Trata-se do índice de desemprego mais alto desde o segundo

trimestre de 1997, quando alcançou 20,72%, e também do número total de

 pessoas sem emprego mais elevado desde o início dessa estatística, em

1976, de acordo com a Enquete de População Ativa (EPA), divulgada nesta

sexta-feira pelo Instituto Nacional de Estatística (INE).27 ” 

b) “Na Espanha, o mesmo trabalhador é contratado e demitido

várias vezes

No que vem sendo conhecido como ''rodízio à espanhola'',

empresas usam contratos de curtíssimo prazo para pagar menos encargos

Todo primeiro dia do mês tem sido igual na Espanha: dezenas de

milhares de pessoas assinam um novo contrato de trabalho. Mas, ignorando

o fato de a taxa de desemprego estar em 20,3%, poucos comemoram

 porque a vaga só vale por algumas semanas. Além disso, boa parte dos

contratados já tem um emprego. Na verdade, é exatamente o mesmo que27 Em http://veja.abril.com.br/noticia/economia/desemprego-na-espanha-sobe-e-chega-a-21-3,

acessado em 12/08/2011.

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está no "novo contrato".

Essa situação, de cores paradoxais, acontece porque, sem

confiança no futuro, as empresas têm usado contratos de curtíssimo prazo

 para manter funcionários precariamente e, assim, pagar menos encargos. O

resultado é que os mesmos empregados têm sido contratados e demitidos

mês após mês.

(...)

Hoje, trabalhadores temporários já compõem um terço da força

de trabalho na Espanha. Há 20 anos, a fatia era próxima de zero e,

recentemente, cresceu com a evolução da crise. Nesses contratos, o período

de trabalho pode ser desde poucas horas - para, por exemplo, um serviço

que durará apenas uma tarde - até meses. Em todos os casos, há uma data

certa para o fim do contrato e nenhuma certeza de que o cargo temporário

 poderá ser transformado em permanente.28 ” 

Como a última reforma trabalhista tampouco resolverá os

problemas que conduzem ao desemprego na Espanha, é previsível que em

breve os espanhóis serão convocados a “apertar mais uma vez o cinto” e a

aceitar novos sacrifícios, como a aprovação de uma terceira reforma

“flexibilizadora”, com a eliminação de adicionais direitos.

E o motivo é simples: em momento algum tais reformas atacam a

causa dos problemas. O “remédio amargo” proposto não possui quaisquer 

das propriedades “terapêuticas” esperadas mas, pelo contrário, agrava o

problema, eis que torna mais difícil a recuperação econômica,

particularmente em momentos de crise, como veremos a seguir.

Mais recentemente, Portugal vem dando mostras de que28 Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,na-espanha-o-mesmo-

trabalhador-e-contratado-e-demitido-varias vezes,704179,0.htm, acessado em 12/08/2011.

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pretende seguir de perto o exemplo espanhol. Nesse sentido, em outubro de

2011 anunciou o governo português medidas de “austeridade”, visando

melhorar a “competitividade” das empresas do país, como informam as

seguintes noticias:

a) “Sector privado obrigado a trabalhar mais sem receber 

13/10/11 20:12 

O Governo decidiu alargar em meia hora o horário diário de

trabalho do sector privado.

 A proposta do Orçamento do Estado para 2012 prevê que o

horário de trabalho diário passe de 8 horas, para 8 horas e meia. São mais

duas horas e meia por semana.

Esta medida vai afectar todos os trabalhadores do sector privado

e estará em vigor durante dois anos. O alargamento do horário de trabalho

era uma reivindicação do patronato e nos últimos dias foram vários os

economistas a defender mais horas de trabalho e menos férias.29”

b) “Num discurso ao país, a partir do Palácio de São Bento,

Pedro Passos Coelho anunciou novas medidas de austeridade para o

 próximo ano.

'Para contrariar o risco de deterioração económica, incluindo uma

contracção profunda e prolongada do nosso produto e do nosso tecido

empresarial, o Governo decidiu permitir a expansão do horário de trabalho

no sector privado em meia hora por dia durante os próximos dois anos, e29 Em http://economico.sapo.pt/noticias/sector-privado-obrigado-a-trabalhar-mais-sem-

receber_128965.html

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ajustar o calendário dos feriados', afirmou Passos Coelho.

O primeiro-ministro salientou que estas medidas respondem

directamente à necessidade de recuperar a competitividade da economia,

considerando tratar-se do 'modo mais eficaz e mais seguro de operar um

efeito de competitividade'.30 ” 

Basicamente, está o governo português a assumir o papel de um

feitor de escravos, estalando o chicote para extrair dos “preguiçosos”

trabalhadores lusitanos mais trabalho sem qualquer pagamento. Dá-se o

nome a isso de “competitividade”.

Veja-se, entretanto, que o maior problema a afligir os portugueses

hoje em dia é o elevado índice de desemprego, o quarto maior de toda a

Europa. A ponto do ministro do trabalho português ser chamado pela mídia

local de “ministro do desemprego”.

Nessas condições, percebe-se que se trata de uma verdadeira

loucura a medida anunciada, de ampliação da jornada de trabalho diária. Ao

invés de se estimular as contratações e a atividade econômica, está o

governo a garantir que as empresas terão acesso ao mesmo número de

horas trabalhadas com menor quantidade de empregados, o que constitui

poderoso encorajamento a novas demissões.

Assim, se antes uma empresa portuguesa obtinha 800 horas de

trabalho por semana com 20 empregados, agora ela obterá 807,5 horas de

trabalho com apenas 19 empregados.

Parece claro que a elite econômica portuguesa, em conluio com a30 Em http://economico.sapo.pt/noticias/governo-permite-acumulacao-da-meia-hora-de-

trabalho-extra_130115.html

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classe política, está a utilizar a crise econômica que ronda a Europa como

desculpa para reverter conquistas dos trabalhadores e ampliar os lucros. As

reformas legislativas neoliberais não guardam qualquer relação com o

problema a ser enfrentado, pelo contrário, seguramente elas o agravarão, e

muito.

Mas a capacidade de governos minimamente democráticos

implementarem reformas supressoras de direitos, mesmo que diante da

adesão de todos os partidos políticos e do silêncio dos principais veículos de

comunicação, não é infinita. Como resultado do achatamento das condições

de vida e de trabalho, crescem as tensões sociais e a insatisfação popular,

sendo indício disso, no caso espanhol, o aumento em três vezes do número

de votos nulos nas últimas eleições municipais (de 2011), em comparação à

eleição anterior. Também é indício disso o surgimento naquele país do

movimento dos “indignados”, com dezenas de milhares de pessoas tomando

as ruas para protestar contra a classe política como um todo,

independentemente da filiação partidária.

De modo que a progressão da crise levará em algum momento

ou à interrupção da supressão de direitos, sob pena de convulsão social

violenta, ou ao desaparecimento do regime democrático, para que as

mesmas medidas continuem sendo impostas manu militari . Nesse último

caso, como tantas vezes se viu no século XX, contando-se com a

contribuição de pessoas que veem na perda de competitividade perigo maior 

do que a perda da democracia.

3.3) Exemplos concretos de acentuada “competitividade”

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Enquanto não se atinge tal ponto, continua-se a defender a

“flexibilização” em nome da competitividade, particularmente no Brasil, sob o

pretexto, hoje bastante em voga, de que os custos trabalhistas na China são

inferiores, e que o Brasil acabará sendo “engolido” pela economia chinesa.

Mas o que significa exatamente essa maior “competitividade” do

mercado de trabalho chinês? O que há na China de tão “competitivo”, a

ponto de servir de modelo para o Brasil, merecendo ser transplantado para

cá?

Vejamos um exemplo fulgurante de sucesso econômico, a

Foxconn, maior fabricante de componentes eletrônicos e de computadores

do mundo, com sede em Taiwan e que possui suas maiores fábricas na

China continental. A seguir algumas notícias:

a) “26/05/2011 - Explosão em planta de fabricante de iPads

agrava crise de imagem da empresa

  A maior fabricante terceirizada de eletrônicos do mundo, a

taiwanesa Foxconn, enfrenta o agravamento de sua crise de imagem após a

explosão que matou três funcionários e feriu outros 15 em sua fábrica em

Chengdu, no sul da China, na última sexta-feira.

  A empresa, conhecida internacionalmente pela produção de

equipamentos para a Apple, como o iPhone e o iPad, já havia enfrentado no

ano passado uma onda de suicídios de trabalhadores, levantando

questionamentos sobre segurança e adequação das condições de trabalho.

 A Foxconn, que além da Apple tem entre seus clientes empresascomo Sony, Dell, Nokia e HP, emprega um milhão de trabalhadores na China

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e tem uma receita anual estimada em US$ 80 bilhões.

(…)

"Os problemas com as condições de trabalho na empresa

voltaram à cabeça de todo mundo, refrescando a memória fresca dos

suicídios", observa.

Em um período de menos de um ano, até maio do ano passado,

11 funcionários da Foxconn se suicidaram saltando do alto de prédios da

fábrica, principalmente em Shenzhen, no sul do país, onde estão

concentrados metade de seus funcionários.

Os motivos dos suicídios estariam ligados à longa jornada de

trabalho, aos salários baixos, à falta de um ambiente social e à natureza

excessivamente repetitiva do trabalho nas linhas de produção31.” 

b) “Foxconn cria termo contra suicídio para seus novos

empregados

Contratados, chineses não poderão responsabilizar a empresa,

caso cometam suicídio

 A Foxconn, empresa tailandesa que fabrica o iPhone e o iPad,

 passou a exigir que os novos funcionários contratados na China assinem um

termo de comprometimento. Segundo o documento, eles não poderão

responsabilizar a empresa, caso cometam suicídio.

De acordo com uma reportagem publicada no Daily Mail nesta

semana, 14 funcionários da Foxconn cometeram suicídio nos últimos 16 

meses. A matéria também traz alguns casos de tratamento desumano da31 Em http://www1.folha.uol.com.br/bbc/921115-explosao-em-planta-de-fabricante-de-ipads-

agrava-crise-de-imagem-da-empresa.shtml.

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empresa para com os seus funcionários:

- Funcionários proibidos de falar. Todos devem trabalhar em

turnos de 12 horas;

- Durante o período de maior demanda para iPad, os empregados

tiveram apenas uma folga após 13 dias de trabalho;

- Excesso de horas extras. Apesar do limite de 36 horas por mês,

um holerite mostrou que um trabalhador tinha 98 horas acumuladas neste

mesmo período;

- Trabalhadores que cometem erros são humilhados na frente dos

colegas.

Um trecho do documento criado para evitar que os funcionários

da Foxconn cometam suicídios diz: "Em caso de ferimentos não acidentais

(incluindo suicídio, automutilação etc.), concordo que a companhia agiu de

acordo com as leis e as regulamentações aplicáveis. Eu não irei fazer 

demandas excessivas, realizar ações drásticas que prejudicariam a

reputação da empresa32 ".

Realmente, tal nível de “competitividade” há de ser insuperável,

não se admitindo sequer que o trabalhador, levado ao suicídio pelas

péssimas condições de trabalho, venha a reclamar da empresa depois de

morto...

Algumas outras notícias:

a) “Trabalhadores vivem em banheiro público na China

32 Em http://www.superdownloads.com.br/materias/foxconn-cria-termo-contra-suicidio-seus-novos-

empregados.html#ixzz1PkZ1uIiz

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 As autoridades de Hangzhou, no sudeste da China, descobriram

dez trabalhadores migrantes morando em um banheiro público da cidade,

informou a mídia local.

 Acredita-se que o grupo estava vivendo no banheiro havia vários

meses. No local há uma cama, panelas e um fogareiro e uma televisão.

Uma das mulheres disse que não tem como pagar o aluguel de

um quarto e suas despesas, e ainda enviar dinheiro para a família.

 A China tem cerca de 20 milhões de trabalhadores migrantes,

que saem de regiões pobres rurais para trabalhar nas cidades que crescem

rapidamente, ou nos polos industriais.

O caso, que foi amplamente noticiado pela mídia chinesa,

destaca as condições de pobreza e os baixos salários de muitos desses

migrantes.33”

b) “28 mineiros chineses soterrados

Vinte e oito mineiros ficaram hoje, domingo, soterrados devido a

uma inundação numa mina de carvão no sudoeste da China, indicou hoje,

domingo, a agência Nova China.

O acidente ocorreu ao fim da manhã, cerca das 11 horas (3 horas

em Portugal) perto da cidade de Neijiang, na província de Sichuan, precisou 

a Nova China que cita responsáveis locais.

Quarenta e um mineiros estavam a trabalhar na mina de carvão33 Em http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/02/100202_banheiromigrantes_ba.shtml,

acessado em 12/08/2011.

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Batian quando ocorreu a inundação, mas 13 conseguiram subir.

 A Nova China também informou que outros três mineiros estão

soterrados desde sábado devido a uma inundação na mina de ferro da

região autónoma Zhuang du Guangxi.

  As minas chinesas são consideradas as mais perigosas do

Mundo devido a negligência em termos de segurança e à corrupção, bem

como a prioridade atribuída aos imperativos da produção.

No ano passado, 2631 pessoas morreram, segundo dados

oficiais.34”  

Ora, se tais fatos forem indícios da acentuada “competitividade”

de um país, pela manutenção de um patamar trabalhista baixo, convidativo

às empresas, então precisaremos reconhecer, como certamente já é

reconhecido pelo restante do mundo, que os padrões de “competitividade”

brasileira não ficam muito a dever aos chineses. Vejamos apenas alguns

exemplos:

a) “Destilaria Araguaia explora trabalho escravo pela 4ª vez em 8 

anos

Sob administração do Grupo Eduardo Queiroz Monteiro, a usina

(ex-Gameleira) mantinha 55 migrantes em condições análogas à escravidão.

Para auditores, ausência de salários cerceava empregados, que se

afundavam em dívidas

Três libertações nos últimos oito anos (em 2005, 1.003 foram34 Em http://www.jn.pt/PaginaInicial/Mundo/Interior.aspx?content_id=1716719, acessado em

12/08/2011.

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resgatados da escravidão; em 2003, 272 foram libertados; e, em 2001, 76)

não foram suficientes para que a Destilaria Araguaia - antiga Gameleira -,

situada no município de Confresa (MT), mudasse a sua conduta. Operação

ocorrida de 6 a 16 do mês passado flagrou 55 pessoas submetidas à

escravidão na usina sucroalcooleira, que já figurou na "lista suja" e está sob

a alçada do Grupo EQM (Eduardo Queiroz Monteiro) - conglomerado

econômico dotado de poderosos tentáculos na política, com sede em

Pernambuco.

Nesta última operação, 55 trabalhadores foram flagrados em

condições análogas à escravidão, segundo o grupo móvel. O auditor fiscal 

do trabalho Leandro de Andrade Carvalho, coordenador da operação, afirma

que a empresa permanecia há três meses "sem pagar ninguém" - inclusive

na planta industrial - e alguns estavam há seis meses sem receber 

vencimentos.

 A inexistência de salários fazia com que os migrantes (vindos de

lugares distantes do Mato Grosso e de outros Estados como Tocantins,

Goiás, Pernambuco, Maranhão e Alagoas) tivessem o direito de ir e vir 

cerceado. Sequer dinheiro para voltar eles possuíam. Também eram

 pressionados pela escassez e se enradavam no sistema de servidão por 

dívida por meio de empréstimos para o aluguel e compra de alimentos. Sem

recursos, muitos deles foram despejados. Impedidos de continuar nos

alojamentos da empresa, parte dos empregados acabou se juntando em

moradias precárias (em termos de conservação e higiene) no núcleo urbano

de Confresa (MT).

Os trabalhadores também eram submetidos a jornadas

exaustivas - sem descanso semanal garantido por lei e sob risco deacidentes. Havia larvas no recipiente que conservava, de modo inadequado,

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a água para beber. Um dos espaços de alojamento mantido pela empresa foi 

definido pela fiscalização trabalhista como "sujo, povoado com insetos

 possivelmente peçonhentos e com estrutura deteriorada". Para completar, o

Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) não vinha sendo

devidamente recolhido e agrotóxicos eram armazenados sem nenhum tipo

de cuidado extra.

Mesmo sendo dono de vários empreendimentos, o Grupo EQM 

se recusou a pagar as verbas rescisórias. Diante disso, o MPT - que compôs

o grupo móvel de fiscalização junto com auditores fiscais do Ministério do

Trabalho e Emprego (MTE) e agentes da Polícia Federal (PF) - ajuizou ação

civil pública (ACP) na Vara do Trabalho de São Félix do Araguaia (MT), no

dia 15 de outubro, a fim de garantir o direito dos trabalhadores.

(…)

Grupo EQM 

Em junho de 2005, a Gameleira, hoje chamada de Destilaria

  Araguaia, foi palco da segunda maior libertação de trabalhadores em

situação análoga à escravidão da história: 1.003 libertados [e um total de R$ 

800 mil em indenizações, independentemente do intenso lobby político

capitaneado pelo então presidente da Câmara Federal, Severino Cavalcanti 

(PP-PE), para amenizar as punições], contra 1.064 da Fazenda e Usina

Pagrisa, em Ulianópolis (PA), no ano de 2007. Em 2006, o Grupo EQM optou 

 por mudar o nome da empresa. Segundo o MPT, a diretoria do grupo

 prometeu na época que cerca de 240 trabalhadores fixos e 750 temporários

teriam acesso a alojamentos decentes, alimentação de qualidade e carteira

assinada.

(…)

Segundo o procurador, o grupo EQM controla, entre outros

empreendimentos, três usinas de açúcar e álcool nos estados dePernambuco (Usina Cucaú Açúcar e Álcool), Tocantins (Destilaria de Álcool 

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Tocantins) e Maranhão (Destilaria de Álcool Tuntum), bem como uma

empresa no setor de agronegócio (Tupaciguara Agricultura e Pecuária). Além

disso, o conglomerado tem conexões com meios de comunicação: Jornal 

Folha de Pernambuco, Rádio Folha de Pernambuco, Folha Digital de

Pernambuco e Agência Nordeste. Eduardo Queiroz Monteiro é irmão de

  Armando Monteiro Neto, deputado federal (PTB/PE) e presidente da

Confederação Nacional da Indústria (CNI).35”

b) “Campinas instala CPI para investigar trabalho escravo na

construção civil 

Foi instalada na Câmara dos Vereadores de Campinas, interior 

do Estado de São Paulo, uma Comissão Parlamentar de Inquérito para

investigar ocorrências de trabalho escravo na construção civil. No primeiro

trimestre de 2010, 17 denúncias envolvendo empresas do setor foram

recebidas pela Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região enquanto

que, no mesmo período deste ano, foram 25 – um aumento de 50%. Desde

março, foram flagrados seis casos de trabalho escravo no entorno da cidade.

O quadro encontrado se repete: trabalhadores arregimentados

 por empreiteiras subcontratadas são submetidos a condições precárias de

trabalho e moradia, com indícios de aliciamento.

'Não podemos aceitar que pessoas abandonem suas famílias e

venham de tão longe para serem exploradas por grandes construtoras dessa

forma', afirma Jairson Canário (PT), que preside a CPI. Os jornalistas Bianca

Pyl e Maurício Hashizume, da Repórter Brasil, informam em reportagem que

os integrantes da CPI realizarão visitas in loco em canteiros de obras e

alojamentos.

35 Em http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=1666, acessado em 12/08/2011.

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(...)

 Abaixo cinco casos de fiscalizações na região de Campinas (com

informações da PRT-15 e da Repórter Brasil):

Jardim Florence, Campinas (SP)

No início de março, a Polícia Federal (PF) chegou a prender em

flagrante três empreiteiros por crime de trabalho escravo. O alojamento

utilizado pelas vítimas estava em condições precárias de higiene e oferecia

risco à segurança dos trabalhadores. O grupo foi contratado por “gatos” 

(aliciadores) no Maranhão para trabalhar em uma obra da Goldfarb e

Odebrecht. As construtoras se responsabilizaram pelos trabalhadores,

fizeram os pagamentos e regularizaram os alojamentos.

Escola Estadual, Hortolândia (SP)

Sob falsas promessas de salários e condições de trabalho, 40 

  pessoas foram trazidas de Pernambuco. A construtora Itajaí, responsável 

 pela obra da escola estadual, subcontratou a empreiteira Irmãos Moura, que

trouxe os migrantes encontrados em moradias precárias, alimentando-se

mal, com documentos retidos e sem receber salários. O MPT firmou Termo

de Ajustamento de Conduta (TAC) com a Itajaí, que rescindiu contrato com

23 trabalhadores e enviou o grupo de volta para a casa. Os demais foram

registrados diretamente pela empresa, que também se obrigou a adequar 

alojamentos e condições de trabalho.

Jardim Chapadão, Campinas (SP)

Obra administrada pela construtora Norpal foi embargada por falta de segurança e condições ruins de moradia. O proprietário foi multado.

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Na ocasião, foram visitadas cinco moradias de empresas que prestavam

serviços para a Norpal. Todas estavam irregularidades [sic]. Os alojamentos

estavam superlotados e não havia ventilação suficiente. A fiação elétrica

ficava exposta, aumentando o risco de curto-circuito e até de incêndios. O

número de banheiros era insuficiente para a quantidade de pessoas. Parte

das moradias era improvisada em barracões industriais, e um deles era feito

de madeira compensada.

Nova Aparecida, Campinas (SP)

Foram encontrados problemas nas áreas de vivência dos

operários, com banheiros e refeitórios precários, além de falta de

fornecimento de equipamentos de proteção individual (EPIs) e uniformes aos

trabalhadores.

Beach Park, Americana (SP)

Duas empreiteiras subcontratadas (Maria Ilza de Souza Ferreira

Ltda. e Cardoso e Xavier Construção Civil Ltda.) pela MRV mantinham

trabalhadores oriundos do Maranhão e de Alagoas em condições precárias

no canteiro do empreendimento “Beach Park”. As vítimas viviam em

alojamentos superlotados, sem ventilação, com fiação exposta, problemas

de mobiliário e sem higienização. A locação das casas e o fornecimento de

camas, colchões e armários ficavam a encargo da MRV. A empresa chegou 

a assinar um TAC com se comprometendo a providenciar o retorno dos 48 

empregados envolvidos.36 ” 

Acrescento um exemplo de minha atuação, extraído da petição

inicial de uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público do Trabalho36 Em http://envolverde.com.br/noticias/campinas-instala-cpi-para-investigar-trabalho-escravo-

na-construcao-civil/, acessado em 12/08/2011.

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em 2010:

“Segundo o mesmo Laudo, em 2004 a empresa auferiu lucro

líquido de quase 40 milhões de reais (R$ 39.575.000,00), e distribuiu aos

seus acionistas dividendos no valor de trinta milhões de reais. Nesse mesmo

ano, as despesas administrativas, que incluem despesas com pessoal,

chegaram a R$ 11.757.000,00, quase um terço, portanto, do total de

dividendos embolsados pelos acionistas.

(…)

Veja-se que era nada menos que esperado que a reclamada não

 pagasse, por exemplo, as horas extras laboradas mas não consignadas nos

cartões-ponto, afinal, essa é justamente a razão primeira para tais cartões

serem adulterados pela empresa, diariamente.

Mas a [empresa] vai além disso: ela sonega aos empregados,

todos os meses, inclusive o pagamento devido pelas horas extras

incontroversas, consignadas nos cartões. Suprime o pagamento de salários,

ao mesmo tempo em que distribui milhões de reais aos donos da empresa.

(…)

Efetuaram os Auditores-Fiscais do Trabalho, então, laborioso

levantamento dos débitos trabalhistas da empresa, decorrentes do não

 pagamento integral de horas extras, chegando, em valores de abril de 2008,

ao total de R$ 714.117,70 (setecentos e quatorze mil, cento e dezessete

reais e setenta centavos), compreendendo o período de 01/2003 a 01/2008.

(…) a empresa utiliza a eliminação habitual de direitos

trabalhistas, inclusive privação de salário, como procedimento-padrão,

estudado e rigorosamente implementado, de maximização dos lucros à custa

do trabalhador. Trata-se de uma lógica perversa, pois, comparado aomontante do lucro a ser distribuído, o pagamento devido aos empregados

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representa valor quase desprezível. Mas, infelizmente, os acionistas e

diretores da [empresa] ilustram com precisão a veracidade da antiga

máxima: “QUANTO MAIS SE TEM, MAIS SE QUER”.

Nesse caso concreto, a situação trabalhista envolvia, também,

 jornadas de trabalho para motoristas de caminhão de 12 a 18 horas por dia,

entre muitos outros problemas.

É importante destacar que casos como esses, acima

mencionados, são investigados e comprovados pelo Ministério Público do

Trabalho, em todo o país, aos milhares. Todos os dias os procuradores do

trabalho lidam com situações assim, ao mesmo tempo em que percebem que

o número de ilícitos é muito maior do que a capacidade – inclusive em

termos de recursos humanos – do estado dar a resposta devida, com rapidez

e eficácia. O que me faz concluir que já há muita “flexibilização” ocorrendo no

Brasil, na prática, através da violação da lei.

Outra evidência contundente disso: “Os trabalhadores brasileiros

deixam de receber por ano R$ 20 bilhões em horas extras sonegada pelos

empregadores. O principal motivo, segundo a Associação Nacional dos

Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), seria a manipulação dos

registros da jornada pelas empresas. 'O brasileiro trabalha muito mais do

que 44 horas semanais e nem recebe por isso', disse o desembargador Luiz 

 Alberto de Vargas, diretor da entidade.37”

Merece destaque, também, a circunstância revelada pelas das

notícias de que não são apenas descapitalizados empresários individuais ou

pequenos produtores rurais que cometem ilícitos trabalhistas graves como

trabalho escravo, mas também, e principalmente, grandes e organizadas37 Em http://www.diap.org.br/index.php/noticias/agencia-diap/18664-patroes-sonegam-r-20-bi-

em-hora-extra-de-trabalhador-diz-anamatra

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empresas e empresários, que auferem por ano lucros da ordem de vários

milhões. Trata-se de violações cometidas por grande construtoras, grandes

frigoríficos, usinas, indústrias de porte, grandes proprietários rurais. Não são

circunstâncias marginais à economia brasileira, mas centrais, inseridas no

contexto de (em tese) modernas cadeias produtivas.

Ora, quão mais “competitivo” precisa se tornar um país

acostumado a situações de trabalho análogo ao de escravo, no meio rural e

também no urbano, inclusive pela manutenção de condições degradantes,

por responsabilidade de empresas de grande porte?

Parece mais razoável concluir que, aos olhos de boa parte do

mundo, o Brasil se encontra entre os “vilões”, e não entre as “vítimas”, da

pressão por “competitividade” mediante achatamento das condições

trabalhistas, com consequente redução de custos e nivelamento para baixo

dos padrões trabalhistas. Nesse sentido a Espanha, por exemplo, com todos

os seus problemas, é muito mais atingida por tal “pressão para baixo”, criada

pelas práticas que prevalecem no Brasil e na China, do que o Brasil o é pela

China.

Claro que as coisas não se dão, em absoluto, da forma alardeada

pela elite econômica e por seus porta-vozes, não havendo pertinência,

inclusive do ponto de vista econômico, na afirmação de que, para ser 

competitivo, é necessário reduzir direitos trabalhistas. E mesmo que

houvesse pertinência econômica nessa conclusão, não haveria conveniência

política ou social em se seguir tal orientação, pelas consequências adversas

a toda a sociedade, e mesmo à humanidade.

Se os arautos da competitividade tivessem razão, Haiti e Somália,por exemplo, seriam paraísos de prosperidade e desenvoltura econômica, e

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estariam a atrair empresas e investidores de todo o planeta, já que os custos

trabalhistas neles são ínfimos, inferiores até aos da China.

Então, por que o paradigma de competitividade, mesmo para os

paladinos do neoliberalismo, é a China, e não o Haiti ou a Somália?

Pelo visto, há vários outros fatores que interferem na construção

da condição de um país como mais “competitivo”, inclusive do ponto de vista

estritamente econômico, como a manutenção de um mercado consumidor 

forte e diversificado, ou o acesso dos trabalhadores a uma educação de

qualidade (que custa dinheiro, por sinal), capaz de proporcional superior 

capacitação profissional.

Outrossim, não interessa à humanidade como um todo

universalizar as condições de trabalho prevalentes na China, muito menos no

Haiti ou Somália. A intenção é justamente o oposto disso: elevar a condição

de vida e de trabalho dos países onde é ela mais baixa ao patamar de,

digamos, Alemanha e Suécia (tanto quanto o permitam os condicionantes

ambientais, sendo este um outro debate, extremamente necessário e ainda

mais fundamental).

E em resposta à pergunta acima, o grande diferencial competitivo

da China é, notoriamente, sua enorme população, alçada à condição de

mercado consumidor de gigantescas proporções. Esse é o motor que a

impulsiona, cujo potencial está longe de se esgotar. Enquanto tal população

permaneceu alheia ao mercado de consumo, ninguém sonhava apresentar a

China como exemplo de competitividade econômica.

3.4) Comparação internacional do custo do trabalho na

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indústria

Tais fatos não impedem, é claro, que os defensores da reforma

conservadora sustentem justamente o contrário, e encontrem espaço para

dizer que o Brasil é um dos países menos “competitivos” do mundo, dado

que os custos aqui seriam “exorbitantes”, muito maiores que a média

mundial. Mas a tais conclusões só se chega mediante laborioso trabalho de

desinformação, quer dizer, de apresentação de falsidades que, pela

insistência com que são repetidas, passam a soar como verdades.

Exemplo recente de tal trabalho de desinformação – mediante

pura deturpação da fonte – é dado pela reportagem a seguir, publicada em

23 de julho pelo jornal O Estado de São Paulo 38, a partir de um “estudo” (o

sentido das aspas ficará claro a seguir) da Federação das Indústrias do

Estado de São Paulo:

“Brasil é nº 1 em encargos trabalhistas

Estudo da Fiesp confirma posição do País, onde indústrias

gastam com contribuições 32,4% dos custos da contratação de empregados

Confirmado: o Brasil é mesmo o campeão mundial dos encargos

trabalhistas. Levantamento inédito da Federação das Indústrias do Estado

de São Paulo (Fiesp), feito com base em dados compilados pelo

Departamento de Estatística do Trabalho dos Estados Unidos (BLS, sigla em

inglês de Bureau of Labor Statistics), mostra que os encargos já

correspondem a praticamente um terço (32,4%) dos custos com mão de

obra na indústria de transformação brasileira.38 Em http://economia.estadao.com.br/noticias/economia,brasil-e-n-1-em-encargos-

trabalhistas,77080,0.htm, acessado em 17/08/2011.

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Trata-se do valor mais alto de toda a amostra, 11 pontos

 percentuais superior à média dos 34 países estudados pelo BLS (21,4%). Na

Europa, por exemplo, o peso dos encargos no custo da mão de obra é de

apenas 25%.

Quando comparado aos países em desenvolvimento, com os

quais o Brasil compete comercialmente em escala mundial, a posição do

País é ainda pior. Os encargos são 14,7% dos custos em Taiwan, 17% na

 Argentina e Coreia do Sul e 27% no México.

(...)

Porém, como o custo em dólar da mão de obra no País ainda é

relativamente baixo em comparação com a maioria das economias

avaliadas, o valor dos encargos no Brasil, de US$ 2,70 a hora, é inferior à

média dos 34 países (US$ 5,80 a hora).

(...)

'O valor em dólares dos encargos incidentes em uma hora da

mão de obra industrial no País é inferior ao da maioria das economias

desenvolvidas, mas supera o de nações em desenvolvimento e mesmo de

algumas desenvolvidas, como Coreia do Sul', argumenta o diretor da Fiesp.”

O extraordinário da reportagem e do “estudo” da Fiesp é que a

leitura da fonte citada, de onde teriam sido extraídos os dados – o

Departamento de Estatística do Trabalho dos Estados Unidos (Bureau of 

Labor Statistics) – revela justamente o contrário: segundo o BLS, o Brasil é

um dos países do mundo onde o custo do trabalho é mais baixo.

A fonte da informação está no relatório “International comparisons

of hourly compensantion costs in manufacturing, 2009” , divulgado em março

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de 201139. E o que se diz em tal relatório é que, dos 34 países analisados, o

custo da hora de trabalho no setor industrial no Brasil é o 30º menor,

correspondendo a 8,32 dólares, inferior ao da Irlanda, Espanha, Grécia,

Portugal, Eslováquia, Argentina e Estônia, entre tantos outros. O custo da

hora de trabalho industrial no Brasil só é maior que em Taiwan, Polônia,

México e Filipinas. Além disso, segundo a publicação, o custo do trabalho

industrial no Brasil corresponde a 25% do custo do trabalho nos Estados

Unidos.

Veja-se que o Bureau of Labor Statistics realmente identifica que

o tamanho dos benefícios que correspondem a despesas com encargos

sociais (social insurance) é maior no Brasil, em termos percentuais, que em

outros países. Conforme tabela contida no estudo, do custo de 8,32 dólares,

2,70 corresponderiam a encargos sociais, 1,18 a benefícios diretos, e 4,45 a

salário direto (observação: o erro de cálculo está no original, com a soma dos

três elementos correspondendo a 8,33, e não a 8,32). Já o número de

benefícios diretamente pagos ao empregado (descanso semanal, férias,

bônus, etc.) é significativamente menor que a média dos demais países. E o

custo de 2,70 dólares que corresponde a encargos sociais faz com que o

Brasil figure, em termos objetivos (que é o que realmente importa), em 23º

lugar dentre 34 países, muito longe da alardeada posição de “campeão de

encargos”. Já no quesito salário direto, por exemplo, o Brasil fica em 32º, na

frente apenas de Filipinas e México, ou seja, dentro do escopo do

levantamento, o Brasil possui um dos três piores salários do mundo.

Outra informação muito relevante, trazida pelo Bureau of Labor 

Statistics, consiste na variação do custo da hora de trabalho industrial de

1997 a 2009. A partir da tabela apresentada foi possível descobrir que, dos

34 países analisados, o Brasil apresentou a segunda menor variação de

39 Disponível em http://www.bls.gov/news.release/pdf/ichcc.pdf, acessado em 17/08/2011.

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custo no período, passando de 7,11 dólares em 1997 para 8,32 em 2009,

uma variação de apenas 17,02%. Somente Taiwan apresentou, nesses doze

anos, variação menor, de 10,23%. O que mais chama a atenção, entretanto,

é que a elevação do custo do trabalho nos demais países foi muito superior à

ocorrida no Brasil e Taiwan. Alguns exemplos: México, 63%; Argentina,

36,47%; Polônia, 139,62%; Filipinas, 31,58%; Irlanda, 127,52%; Coréia,

50,74%; República Tcheca, 245%; Espanha, 99%; Portugal, 87,30%.

Portanto, os trabalhadores brasileiros na indústria foram, de 1997 a 2009,

nada menos que brutalmente penalizados com o segundo pior índice de

reajuste do custo do trabalho de todo o mundo.

Ou seja, o que o Bureau of Labor Statistics afirma, em seu

relatório, não é que o “Brasil é nº 1 em encargos trabalhistas”, mas

 justamente o contrário disso: no Brasil o custo do trabalho é baixíssimo se

comparado à maioria dos demais países analisados. Não apenas isso:

nenhum outro país do mundo, à exceção de Taiwan, manteve tão baixos os

custos trabalhistas, de 1997 a 2009, quanto o Brasil.

E não se diga que tal fato pode ser explicado pela variação

cambial, já que o relatório do BLS apresenta também dados sobre a matéria,

sendo observado que a variação cambial experimentada no Brasil, com

relação ao dólar, foi no período menor que a registrada na Argentina, e

praticamente igual à verificada pelo México, para citarmos dois exemplos.

No que diz respeito à limitação de jornada, podemos chegar a

conclusão semelhante, a partir de consulta ao banco de dados de legislação

de duração do trabalho da Organização Internacional do Trabalho40.

Observa-se que o Brasil possui jornada de trabalho legal superior ao

Equador, Canadá, Espanha, Estados Unidos, Japão, Portugal, Camarões,

40 Em http://www.ilo.org.

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Senegal, China, Indonésia e Rússia, entre outros países.

O sentido do relatório do Bureau of Labor Statistics é um evidente

exemplo da “corrida ao fundo do poço” a que me referi anteriormente, pois

constitui um alerta oficial (voltado à população e ao governo norte-

americanos, claro) de uma suposta “perda de competitividade” dos Estados

Unidos relativamente ao Brasil (e ao México, Taiwan, etc.), dado que lá o

custo do trabalho é muito maior. O propósito do relatório, então, pode

relacionar-se a pretensões “flexibilizantes” em curso nos Estados Unidos, no

sentido de se promover a redução de direitos como forma do país

acompanhar a “superior competitividade” brasileira. Assim, buscar-se-á

convencer os trabalhadores norte-americanos de que eles precisam aceitar o

corte de direitos e garantias, sob pena das empresas de lá se transferirem

para o Brasil ou o México.

E quando o patamar de direitos nos Estados Unidos for reduzido

ao nível brasileiro, terão ambos os países, Estados Unidos e Brasil, que

promover adicionais reduções para acompanhar a China, e assim por diante

até que em toda a parte do mundo prevaleçam, quem sabe, salários de fome

e condições de trabalho incompatíveis com o direito à saúde.

Tal risco já foi identificado pela Organização Internacional do

Trabalho, que aprovou uma resolução chamando a atenção da comunidade

internacional para o perigo da globalização se transformar um mecanismo

para a precarização internacional do trabalho. Transcrevo, aqui, trechos da

“Declaração da OIT sobre justiça social para uma globalização justa41”:

“Considerando que o actual contexto de globalização,

caracterizado pela divulgação das novas tecnologias, circulação de ideias,

41 Em http://www.ilo.org/public/portugue/region/eurpro/lisbon/pdf/resolucao_justicasocial.pdf 

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intercâmbio de bens e serviços, aumento dos fluxos de capitais e financeiros,

internacionalização do mundo dos negócios e dos seus processos, bem

como pelo aumento do diálogo e circulação de pessoas, em particular, das

trabalhadoras e trabalhadores, está a transformar profundamente o mundo

do trabalho:

  – Por um lado, o processo de cooperação e integração

económicas tem ajudado vários países a atingir elevadas taxas de

crescimento económico e criação de emprego, a integrar muitos dos pobres

das zonas rurais na economia urbana moderna, bem como na prossecução,

das suas metas de desenvolvimento, promoção da inovação no

desenvolvimento de produtos e circulação de ideias;

  – Por outro lado, a integração económica à escala mundial 

colocou muitos países e sectores perante importantes desafios como as

desigualdades de rendimentos, persistência de elevados níveis de

desemprego e pobreza, vulnerabilidade das economias aos choques

externos e aumento do trabalho precário e da economia informal, os quais

têm um impacto na relação de trabalho e na protecção que a mesma pode

 proporcionar;

Reconhecendo que, nestas circunstâncias, impõe-se mais do que

nunca alcançar melhores resultados, equitativamente repartidos entre todos,

 para dar resposta à aspiração universal de justiça social, atingir o pleno

emprego, garantir a sustentabilidade de sociedades abertas e da economia

global, assegurar a coesão social e combater a pobreza e as crescentes

desigualdades;” 

3.5) Sociedade X Mercado

Mas a corrida ao fundo do poço a nível planetário não se traduz,

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apenas, na deterioração das condições de trabalho em toda a parte, com o

aumento da insatisfação popular e das tensões sociais – que conduzirão,

muito claramente, ao recrudescimento da violência, entre os indivíduos e

entre os países –, mas também na criação de ciclos duradouros de profunda

recessão econômica em escala mundial.

O motivo disso é que salários e demais benefícios pagos aos

trabalhadores são, de um ponto de vista, custo para as empresas, mas sob

outra perspectiva, a principal fonte de renda das empresas, pois os

assalariados constituem a maior parte do mercado consumidor, e, além

disso, assalariados transformam em consumo a maior parte do que auferem.

De fato, mais da metade do mercado consumidor é formada por 

trabalhadores assalariados e seus familiares. E tais famílias consomem

quase tudo o que recebem, sendo pequena a margem poupada ou investida

no sistema financeiro. Já a elite econômica converte em consumo, sob a

forma de produtos e serviços, apenas uma pequena parte do que aufere, de

modo que pouco movimentam a economia de um país, com a notável

exceção do sistema financeiro, e particularmente do setor especulativo.

Diante disso, temos que quanto menos direitos trabalhistas forem

garantidos, menor será o consumo. E se os salários e os direitos trabalhistas

forem muito baixos, não há consumo diversificado, mas apenas o consumo

de bens relacionados à sobrevivência física, de gêneros de primeira

necessidade. Não há, nessas condições, consumo de automóveis, por 

exemplo, salvo o de modelos de luxo, cuja produção e demanda são

insuficientes para sustentar a indústria automobilística como um todo.

Ademais, menos direitos usufruídos pelos trabalhadores traduz-se também em menor chance de acesso, por seus filhos, a uma educação

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diferenciada, de maior qualidade, o que conduz à perpetuação da

desigualdade e à carência de profissionais qualificados que as empresas

modernas necessitam.

O prejuízo ao mercado consumidor e à economia nacional se dá

mesmo que a redução de direitos não atinja diretamente o salário. Nesse

sentido, a supressão de normas de saúde e segurança, por exemplo,

conduzem inevitavelmente a um aumento do número de mortes, acidentes e

doenças, que eliminam a fonte de renda de famílias inteiras (pela perda ou

redução da capacidade laboral do marido e/ou mulher), lançadas na miséria

e assim excluídas do mercado consumidor.

Já a “flexibilização” de limites de jornada e de férias conduz à

necessidade do trabalhador trabalhar mais horas por dia e por ano, ficando

mais tempo afastado de sua família. Tal sobrejornada acabará prejudicando

sua saúde, o que conduzirá a gastos com medicação e tratamento médico,

além do abalo às relações familiares. Por sua vez, relações familiares

desarmoniosas e pais ausentes também constituem significativo prejuízo ao

desempenho do estudante, e podem conduzir o adolescente ao uso de

drogas (com aumento dos índices de criminalidade) e ao abandono escolar,

com efeitos deletérios a toda a sociedade.

Os efeitos nocivos do excesso de trabalho sobre a saúde dos

trabalhadores, a propósito, já foram bem esclarecidos pela medicina. Por 

exemplo, de acordo com estudo publicado na “ Annals of Internal Medicine”42 

e divulgado pelo jornal New York Times, em 2011, quem trabalha mais do

que 11 horas por dia tem 66% maiores chances de sofrer ataque cardíaco.

De modo que um mundo no qual não prevaleçam quaisquer limites de

 jornada, e no qual se considere normal trabalhar 12 horas ou mais por dia

42 Em http://www.annals.org/content/154/7/457.full

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será, também, um mundo em que os trabalhadores passarão a morrer mais

cedo, deixando em condição adversa suas famílias e, por consequência,

provocando abalo à sociedade.

Veja-se que empresários, nos dias atuais, também costumam

trabalhar muitas horas, por vezes mais que 11 horas por dia. Mas o resultado

disso (longas horas de trabalho, vida sedentária) está em que muitos

empresários efetivamente sofrem do coração e experimentam ataques

cardíacos. A diferença é que tais empresários terão acesso aos melhores

recursos de atendimento à saúde, melhores médicos e hospitais, e terão

dinheiro para comprar a medicação recomendada, ao passo que a massa de

trabalhadores não terá acesso a tal tipo de tratamento, que poderia lhes

salvar a vida.

Do ponto de vista estritamente econômico, um trabalhador morto

significa uma família empobrecida (primeiramente, pelas despesas médicas

durante a convalescença, depois pela perda da fonte de renda, que por 

vezes era a única), com capacidade de consumo reduzida ou praticamente

eliminada (caso em que demandará algum gasto público sob a forma de

assistência social, isso se o país estiver comprometido em não permitir o

aumento da mortalidade infantil por desnutrição).

Percebe-se então que, embora a tentação do capitalista seja

pagar o salário mais baixo possível, para reduzir custos, ao fazê-lo ele

contribui para a retração do mercado consumidor, o que acabará por afetar 

seu negócio.

De fato, a elite econômica quer pagar o menos possível aos

trabalhadores, em termos de salário e outros benefícios, mas ao mesmotempo deseja ter acesso a um pujante e diversificado mercado consumidor.

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Exemplo desse paradoxo pode ser visto no comportamento da CNI. A

Confederação, ao mesmo tempo em que defende uma agenda legislativa

focada na redução de direitos trabalhistas, mantém um “Índice Nacional de

Expectativa do Consumidor”, que avalia periodicamente a confiança dos

consumidores brasileiros, levando em conta os seguintes parâmetros de

pesquisa: preocupações com desemprego, com a renda própria, com o

endividamento e planejamento da aquisição de bens de maior valor.

Se tiver a CNI interesse, poderá ela acompanhar o impacto de

uma de suas pretensões sobre a outra, e provavelmente constatará que, a

cada direito trabalhista que conseguir eliminar, através de seu lobby no

Congresso, verá crescer a preocupação do consumidor com a renda própria

e com o endividamento, e verá cair a expectativa de adquirir bens de maior 

valor. Pois com que outro dinheiro supõe a CNI que a maioria dos

consumidores irá adquirir bens mais caros, senão com o de seus salários?

Tal contradição, levada às últimas consequências em todos os

países desenvolvidos ou em desenvolvimento simultaneamente, conduz à

competição desenfreada, à recessão global e a guerras, pois, esgotado o

potencial de seu próprio mercado interno, as empresas de cada país

desejarão acesso ao mercado consumidor estrangeiro como forma de

preservar o nível de atividade econômica, sendo que as empresas desse

outro país repelirão tal pretensão como forma de autodefesa. De modo que a

retração dos mercados consumidores domésticos leva à exacerbação

internacional da luta pelo acesso a outros mercados, para escoamento da

produção.

Tal quadro é agravado pelo fenômeno da financeirização da

economia, em curso há várias décadas, com o sistema financeiro – incluindoseu inflado segmento especulativo – sobrepujando em importância o setor 

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produtivo. Há em voga a ilusão de que o mercado financeiro especulativo

gera riqueza, faz ela jorrar onde antes nada existia. Trata-se de uma mentira,

pois toda a riqueza que de fato conta precisa ter uma base real, em termos

de capital e trabalho aplicados, embora a ilusão de fato proporcione, para

alguns e por certo tempo, grandes fortunas obtidas de forma muito rápida.

Há então a tentação de não se aplicar recursos em investimentos produtivos

(como construção de fábricas, modernização de máquinas, melhorias em

transportes, etc.), mas sim na ciranda financeira.

Ora, a economia proporcionada pela supressão de direitos

trabalhistas traduz-se na retenção de mais dinheiro pelos mais ricos, os

quais não fazem retornar a maior parte do que recebem ao setor produtivo,

através do consumo de produtos e serviços, mas sim ao sistema financeiro,

através de novas aplicações. De fato, quando as pessoas mais ricas do

planeta desejam investir em produção, solicitam financiamento e incentivos

públicos (pagos por toda a sociedade), já que o destino de seu próprio

patrimônio é normalmente o sistema financeiro, através do qual espera

multiplicar ainda mais seus ganhos.

De modo que o dinheiro retirado dos trabalhadores/consumidores

realmente não voltará, de outras formas, a movimentar o mercado de

consumo e o setor produtivo (vale dizer, a economia real), passando isto sim

a alimentar a crescente financeirização da economia. Tal fenômeno,

entretanto, é insustentável a longo prazo, sendo que a economia mundial

aparentemente já atingiu e mesmo ultrapassou o limite do suportável, tendo

em vista as crises financeiras que se sucedem com força crescente e

intervalos cada vez menores. Em algum momento, para a surpresa de

ninguém – exceto, talvez, de alguns veículos de comunicação de massa –

atingiremos uma crise superior à que estourou em 1929. O que será péssimopara os trabalhadores e a população em geral, mas também para os

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negócios.

Mas se as coisas realmente se dão de tal forma, se a supressão

de direitos trabalhistas contribui para a recessão mundial e para crises

financeiras, com prejuízos aos próprios capitalistas, por que estes defendem

tais medidas?

Mais uma vez, a resposta está no imediatismo a que se

circunscreve a maioria das decisões da elite em um sistema capitalista,

particularmente em sua fase atual, neoliberal. Não se leva de fato em

consideração as consequências de longo prazo daquilo que se pretende

fazer hoje. As decisões são tomadas visando o lucro que pode ser obtido nos

próximos meses ou, no máximo, nos próximos anos. Se a consequência

previsível de uma decisão assim levará, além de assegurar lucro no final do

ano, também a um desastre dentro de 10 anos, tal ameaça futura sequer é

considerada, e quem a menciona costuma ser rotulado de “catastrofista” ou

“agourento”.

Ocorre que capitalistas não são, a rigor, grandes estrategistas,

preocupados com cenários socioeconômicos futuros ou com a prevenção de

crises vindouras. E se porventura vierem a se preocupar com isso, não estão

dispostos a investir tempo e dinheiro (o seu, especialmente) no problema.

Capitalistas em geral preocupam-se com o lucro que pode ser obtido neste

instante, acima de tudo.

No que diz respeito ao custo do trabalho, a perspectiva é: “se eu

reduzir direitos trabalhistas dos meus empregados, eu sou diretamente

beneficiado, e meus lucros aumentarão imediatamente, mas se eu manter 

um patamar de direitos mais alto, ampliando o poder de compra de meusempregados enquanto consumidores, eu não sou diretamente beneficiado na

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mesma medida, pois eles não irão consumir apenas os produtos e serviços

que eu produzo. Então, não é um bom negócio para mim.”

A falha de tal linha de raciocínio está em não levar em

consideração que todos os demais empregadores estarão pensando a

mesma coisa, e se todos fizerem o mesmo, todos os trabalhadores ganharão

menos, e então o mercado consumidor sofrerá retração, o que por sua vez

afetará todos os empregadores. De modo que o que é um bom negócio para

uma empresa, pode ser um péssimo negócio para todas as empresas.

Age-se como o dono da galinha (espero que os trabalhadores

perdoem a comparação) que põe ovos de ouro, mas contrário do

personagem da estória, que mata e abre a galinha esperando achar ouro

dentro, ficando sem nada, os capitalistas querem dar cada vez menos milho

à galinha, esperando receber em troca a mesma quantidade de ovos de

ouro, até que a galinha vem a morrer de inanição. A moral é a mesma: “quem

tudo quer, tudo perde”.

Tal perspectiva mais ampla, entretanto, é desprezada em favor de

considerações centradas tão somente no aqui e agora, com vista ao ganho

que se pode obter já.

Age-se, em suma, como se o amanhã não existisse, sendo essa

a marca dominante dos tempos contemporâneos.

E se a degradação ambiental colocar a sobrevivência humana em

perigo? E se o aquecimento global elevar o nível dos oceanos, fazendo

submergir os valiosos imóveis litorâneos? E se a “bolha” especulativa

estourar? E se retração do mercado consumidor comprometer os negócios?E se a deterioração das condições sociais conduzir a uma explosão da

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criminalidade, hoje já bastante elevada? E se a concorrência internacional,

aliada à retração de mercados consumidores, provocar novas guerras? Nada

disso é levado em conta, pois não vai acontecer hoje e sim amanhã, então

não é considerado tão importante quanto a necessidade de se obter maior 

lucro, que é imediata e permanente.

O problema é que o futuro, mesmo aquele que se supunha

distante, um dia chega e cobra um preço, por vezes terrível. No que diz

respeito à degradação ambiental, aliás, tal preço talvez seja impagável.

A média das pessoas, com base em noções de bom senso,

imagina que tal tipo de situação limite jamais chegará a ocorrer. Creem que

“de alguma forma” os líderes e governantes, em algum momento, evitarão o

pior. E continuam a pensar assim mesmo diante de todas as evidências do

passado no sentido de que o pior não costuma ser evitado pela ação

preventiva de líderes e governantes, que atuam via de regra apenas por 

reação depois do eclosão da crise. Sessenta milhões de mortos na segunda

guerra mundial, por exemplo, deveria ser motivo forte o bastante para

lembrar que situações hediondas podem ocorrer se não forem prevenidas a

tempo, com atenção às suas causas.

As expectativas nascidas do bom senso falham na medida em

que o sistema capitalista move-se a partir de regras econômicas muito

específicas, não estando entre elas o bom senso, ou mesmo a moral. Se o

bom senso exigir um coisa, e a segunda opção proporcionar mais lucro, tanto

pior para o bom senso.

Tal sistema não reconhece, em particular, limites calcados na

natureza humana, ou no respeito à dignidade humana, dado que todas asvariáveis cedem sempre à lógica de reduzir custos e aumentar lucros. O

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respeito à dignidade da pessoa humana, ou mesmo ao bom senso, precisa

ser imposto ao mercado pela sociedade, através de leis, pois não surgirá de

forma espontânea.

Insista-se que essa não é necessariamente a perspectiva pessoal

de todos os capitalistas, que obviamente podem ser pessoas éticas e

sensatas em suas vidas privadas, e até preocupadas com problemas sociais

e ambientais. Mas o sistema econômico como um todo não se move em

razão de considerações éticas. Seu mecanismo é frio e previsível, e impõe

sempre a busca do maior lucro possível. O empresário que não souber 

reconhecer tal realidade não sobrevive à competição. Se os seus

concorrentes reduzirem direitos trabalhistas, passando a oferecer graças à

economia assim obtida produtos a um preço mais convidativo, ele também

terá que fazê-lo, mesmo que não ache bom, ou então acabará fechando as

portas.

Desse modo, qualquer obstáculo que se fizer necessário fixar a

partir de imperativos calcados na ética, na moral, no bom senso, no respeito

à dignidade humana, nos direitos fundamentais, na prevenção de recessões

econômicas e de guerras, e até mesmo – por espantoso que pareça – para a

preservação do próprio sistema capitalista, quando ameaçado de colapso por 

seus próprios excessos, enfim, qualquer obstáculo desejável precisará ser 

reconhecido pela sociedade e imposto ao mercado e a seus operadores,

através da lei, neste caso veículo para a expressão da vontade coletiva.

É uma marca de nossos tempos, lamentavelmente, que tal

perspectiva esteja sendo perdida, e que se pretenda agora fazer exatamente

o oposto, permitindo-se que o mercado, que nenhum outro imperativo

reconhece senão o de se obter o maior lucro possível, imponha à sociedadeo que será ou não será admitido, o que pode ou não ser feito, mediante

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reformas legislativas.

Ou seja, ao invés da sociedade manter o mercado sob suas

rédeas, com vista ao interesse coletivo, pretende-se que o mercado

mantenha a sociedade sob suas rédeas, com vista ao interesse privado, de

modo a livrá-lo do cumprimento de leis concebidas para a defesa da

dignidade da pessoa humana, da justiça, da prevenção de guerras e crises,

etc.

Tal redefinição de papéis vem sendo buscada desde a década de

1970, particularmente a partir dos governos Reagan e Tatcher (após a

experiência-piloto no Chile de Pinochet), e se tornou explícita na

administração de George W. Bush nos Estados Unidos, que logrou aprovar 

leis expressamente dirigidas à redução de impostos pagos pelos mais ricos,

flagrante quase que “fotográfico” do sistema capitalista no instante em que

este se desprega das amarras criadas em nome do interesse público para a

defesa da sociedade.

Ocorre que tais amarras, entre as quais estão as garantias

trabalhistas, não estão na lei por acaso. Há excelentes motivos para que elas

existam, reconhecidos após amargas lições do passado (hoje cada vez mais

esquecidas), e um desses motivos será discutido no próximo capítulo. Pois a

verdade é que antes de se chegar, pelo prosseguimento da corrida ao fundo

do poço, ao desaparecimento de direitos trabalhistas em toda a parte (antes

de se chegar ao teórico “fundo do fundo do poço”), o mundo já se

transformaria em um barril de pólvora, e explodiria em guerras de

abominável violência. Outra vez.

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CAPÍTULO 4: Direito trabalhista, alicerce para a paz

4.1) OIT, internacionalização de direitos e as duas guerras

mundiais

Uma “estranha coincidência” cerca o processo de

internacionalização e universalização dos direitos trabalhistas, a respeito da

qual poucas pessoas refletem hoje em dia.

Durante todo o século XIX, na Europa e Estados Unidos

(tardiamente no Brasil, já no começo do século XX) foram sendo aprovadas

leis de natureza trabalhista, de forma lenta e tortuosa e sujeita a recuos,

avanço marcado por conflitos entre patrões e empregados que se

degeneravam por vezes em verdadeiras batalhas campais.

Greves, mobilizações sindicais e reivindicações operárias eram

reprimidas de forma violenta por forças policiais, pelo exército e por milícias

privadas contratadas pelos empregadores. Por muito tempo, a simples

participação em greves e a filiação a sindicatos eram condutas definidas

como delituosas, sendo punidas como uma forma de conspiração.

Exemplo representativo de tais frequentes conflitos é aquele

ocorrido em 1886 nos Estados Unidos, em memória do qual se comemora

hoje o Dia do Trabalho em 1º de maio. Naquele ano e dia, teve início em

Chicago uma greve cumulada com manifestação coletiva de milhares de

trabalhadores, que pretendiam a redução da jornada de trabalho para oitohoras diárias. Nos dias que se seguiram, tal mobilização foi alvo de violenta

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repressão, até que por fim as forças policiais abriram fogo contra a multidão,

matando doze trabalhadores e ferindo dezenas.

É nesse contexto que foram sendo aprovadas no século 19 leis

protetivas, instituindo-se a progressiva proibição do trabalho infantil e a

fixação de limites à jornada de trabalho, por exemplo. Na prática, entretanto,

durante todo o período tais leis não foram objeto de verdadeira imposição

pelo estado, e as violações dificilmente eram punidas. A maioria dessas leis

 jamais “saiu do papel”, e onde as condições de trabalho foram efetivamente

melhoradas, isso se deu bem mais graças à luta dos próprios operários, a

um custo humano altíssimo (incluindo mortes, prisões e espancamentos43),

que à intervenção do estado.

Esse cenário começou a mudar com a internacionalização da

legislação trabalhista, através do reconhecimento de padrões mínimos

universais a serem seguidos por todas as nações do mundo, e de princípios

que deveriam inspirar a criação, a interpretação e a aplicação das leis.

Tal internacionalização, não obstante tentativas anteriores pouco

eficazes de se criar organismos supranacionais, ganhou verdadeira força

com o aparecimento da Organização Internacional do Trabalho (OIT), cuja

criação se tornou um marco histórico da consolidação do direito do trabalho e

dos direitos humanos em geral.

O Brasil é um bom exemplo da força disseminadora do

surgimento da OIT e da internacionalização do direito do trabalho, pois

43 A violência, a propósito, continua sendo hoje em dia a tônica do tratamento dispensado agrevistas, particularmente servidores públicos. Basta ver que em 2011, para ficarmosapenas com exemplos recentes, já foram no Brasil reprimidas com golpes de cassetete,sprays de pimenta, bombas de efeito moral e prisões arbitrárias as greves de bombeiros noRio de Janeiro e de professores em Minas Gerais e Ceará, servidores notoriamentesubmetidos a um vencimento de fome (o piso salarial dos professores mineiros, porexemplo, era por ocasião do início da greve de R$ 369,00, inferior ao salário mínimonacional).

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apenas depois disso (iniciando em 1923 com a Lei Eloy Chaves, que conferiu

direitos trabalhistas e previdenciários aos ferroviários) o país começou a se

preocupar com a fixação, pelo estado, de patamares mínimos de existência

aos trabalhadores.

A condição brasileira até então foi denunciada por Rui Barbosa

em 1919, meses antes da criação da OIT, nos seguintes termos44:

“A SORTE DO OPERÁRIO

Nada se construiu. Nada se adiantou, nada se fez. A sorte do

operário continua indefesa, desde que a lei, no pressuposto de uma

igualdade imaginária entre ele e o patrão e de uma liberdade não menos

imaginária nas relações contratuais, não estabeleceu, para este caso de

minoridade social, as providências tutelares, que uma tal condição exige.

  As fábricas devoram a vida humana desde os sete anos de

idade. Sobre as mulheres pesam, de ordinário, trabalhos tão árduos quanto

os dos homens; não percebem senão salários reduzidos e, muitas vezes, de

escassez mínima. Equiparam-se aos adultos, para o trabalho, os menores

de quatorze e doze anos. Mas, quando se trata de salário, cessa a

equiparação. Em emergências de necessidade todo esse pessoal concorre

aos serões. O horário, geralmente, nivela sexos e idades, entre os extremos

habituais de nove a dez horas quotidianas de canseira.” 

Ora, é um fato pouco lembrado hoje em dia que a Organização

Internacional do Trabalho foi criada na Conferência de Paz de Versailles, em

1919, exatamente a mesma conferência que pôs fim à Primeira Guerra

Mundial. Por esse motivo é que a aprovação da Constituição da OIT foi44 Em sua obra “A questão Social e Política no Brasil”, disponível em

http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/rui_barbosa/p_a5.pdf 

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incluída na parte XIII do Tratado de Versailles, que consolidou os resultados

daquela conferência.

E em que momento ocorreu a revisão dessa Constituição, com a

reformulação da estrutura e funcionamento da Organização Internacional do

Trabalho?

Precisamente ao final da Segunda Guerra Mundial, na esteira da

criação da Organização das Nações Unidas, em 1945, à qual passou a

pertencer a OIT (para que não existissem duas grandes organizações

internacionais com propósitos semelhantes), e da aprovação da Declaração

de Filadélfia (documento que inspiraria a Carta das Nações Unidas e a

Declaração Universal dos Direitos Humanos), ocorrida em 1944 (portanto

com a guerra ainda em andamento, e poucas semanas antes do “Dia D”, dia

da invasão da Normandia), que atualizou a Constituição da OIT.

Nas décadas seguintes à Segunda Guerra, e com o reforço do

papel da OIT (marcado pela aprovação de muitas de suas mais importantes

convenções), deu-se grande avanço à consolidação dos direitos trabalhistas

na maioria dos países do globo, sendo o mesmo período reconhecido por 

muitos historiadores e economistas como a fase “áurea” do capitalismo,

interrompida com a retomada da contestação conservadora aos direitos

sociais nos anos 1970, no influxo dos governos Nixon e Reagan nos Estados

Unidos e Thatcher no Reino Unido.

Seria uma simples coincidência a vinculação entre os momentos

de criação e reconstrução da OIT e o término das duas guerras mundiais?

Não, em absoluto. Não há coincidência alguma aí. Muito emborahoje tal perspectiva histórica tenha se perdido, a verdade é que, em 1919 e

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em 1945, portanto ao término das duas grandes guerras, era considerado

por todos como óbvio que não poderia haver paz mundial sem atenção às

questões trabalhistas e às injustiças sociais.

Não obstante a persistência até os dias de hoje de conflitos

armados sérios, mas de menor escala, a população de hoje já perdeu a

perspectiva do horror que significou as duas guerras mundiais, que juntas

exterminaram mais de setenta milhões de vidas humanas. Menciona-se

agora tal número como mera abstração estatística, sem maiores

considerações ao monstruoso sofrimento humano implicado. Mas ao final de

cada uma dessas guerras, a extensão da tragédia, incluindo a destruição de

cidades inteiras, estava bem na mente de todos. E exigiam todos os povos a

adoção de medidas para se evitar a repetição de conflitos assim.

Entre as medidas previstas sempre esteve a afirmação de uma

legislação trabalhista, concebida como forma de por fim ao agravamento das

tensões sociais que, se não causam diretamente, em muito contribuem para

os conflitos armados globais e para convulsões coletivas de grandes

proporções. Além disso, todos sabiam ao final dessas guerras que se fazia

necessária a manutenção, no plano internacional, de um patamar mínimo de

direitos sociais, capaz de criar um freio à competição desenfreada entre os

países na busca por novos mercados, esta sim uma das causas econômicas

diretas das guerras.

Com relação à Segunda Grande Guerra, a vinculação entre

problemas sociais e guerra global está ainda mais clara, na medida em que

no período entre-guerras deu-se a grande crise econômica iniciada com a

queda da bolsa de 1929, crise que lançou milhões de pessoas na miséria em

todo o planeta, e favoreceu a ascensão do nazi-fascismo45.45 “ A crise da Bolsa de Nova Iorque, iniciada em outubro de 1929, teve efeito catastrófico na

  Alemanha. De repente, cessou todo ingresso de capitais estrangeiros e as portas do

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Na lição de David Harvey46:

“A reestruturação das formas de Estado e das relações

internacionais após a Segunda Guerra Mundial foi projetada para prevenir o

retorno das condições catastróficas que tanto ameaçaram a ordem

capitalista na grande depressão da década de 1930. Também se buscava

com isso prevenir a reemergência de rivalidades geopolíticas entre estados,

que levam à guerra. Para garantir a paz interna e tranquilidade, alguma

forma de acordo de classes entre o capital e o trabalho teve que ser 

construído”.

Vale lembrar que as duas guerras mundiais e a crise de 1929 (a

maior crise econômica da história, até hoje) foram atingidas após um longo

período de hegemonia absoluta do liberalismo econômico, o qual, portanto,

não assegurou nem a preservação da paz nem a eliminação da miséria,

circunstância que os neoliberais de hoje preferem ignorar.

O papel a ser desempenhado pelo direito do trabalho na

preservação da paz mundial está reconhecido no preâmbulo da Constituição

da OIT, nos seguintes termos:

"Considerando que a paz para ser universal e duradoura deve

assentar sobre a justiça social;

Considerando que existem condições de trabalho que implicam,

  para grande número de indivíduos, miséria e privações, e que o

comércio internacional foram abruptamente fechadas. A fragilidade da economia alemãficava assim claramente demonstrada. Centenas de indústrias faliram e o índice dedesemprego explodiu. No início de 1932 já existiam mais de 6 milhões de desempregados, oque representava cerca de um terço da força de trabalho.” Em:http://pt.wikipedia.org/wiki/Ascensão_do_nazismo

46 Em “A brief history of neoliberalism”, livre tradução.

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descontentamento que daí decorre põe em perigo a paz e a harmonia

universais, e considerando que é urgente melhorar essas condições no que

se refere, por exemplo, à regulamentação das horas de trabalho, à fixação

de uma duração máxima do dia e da semana de trabalho, ao recrutamento

da mão-de-obra, à luta contra o desemprego, à garantia de um salário que

assegure condições de existência convenientes, à proteção dos

trabalhadores contra as moléstias graves ou profissionais e os acidentes do

trabalho, à proteção das crianças, dos adolescentes e das mulheres, às

  pensões de velhice e de invalidez, à defesa dos interesses dos

trabalhadores empregados no estrangeiro, à afirmação do princípio "para

igual trabalho, mesmo salário", à afirmação do princípio de liberdade sindical,

à organização do ensino profissional e técnico, e outras medidas análogas;

Considerando que a não adoção por qualquer nação de um

regime de trabalho realmente humano cria obstáculos aos esforços das

outras nações desejosas de melhorar a sorte dos trabalhadores nos seus

 próprios territórios.

 AS ALTAS PARTES CONTRATANTES, movidas por sentimentos

de justiça e humanidade e pelo desejo de assegurar uma paz mundial 

duradoura, visando os fins enunciados neste preâmbulo, aprovam a presente

Constituição da Organização Internacional do Trabalho”.

Ou seja, a razão primeira de ser da OIT, e portanto da

universalização dos direitos trabalhistas em geral, sempre foi a preservação

da paz, ante o reconhecimento da impossibilidade de existir a harmonia

duradoura entre as nações sem tais direitos.

Sobre as circunstâncias em torno da criação da OIT, ao final da

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Primeira Grande Guerra, comenta Brigid Stafford47:

“Em choque pelos horrores da guerra e inspirados pela

esperança de que de tanto sofrimento e ruína um mundo mais justo iria

nascer, trabalhadores de países aliados e neutros exigiram que os termos da

 paz deveriam salvaguardar os trabalhadores de todas as nações e assegurar 

a eles um mínimo de garantias no que diz respeito à legislação trabalhista,

direitos sindicais, imigração, seguridade social, horas de trabalho e saúde e

segurança na indústria.

Tornou-se, então, uma questão a ser enfrentada pelos Poderes

 Aliados na preparação aos Tratados de Paz, quanto à forma que deveria ser 

dada à organização internacional do trabalho nas propostas de paz.” 

Transcreve a mesma autora discurso de Albert Thomas, primeiro

Diretor-Geral da OIT, pronunciado em 1931 por ocasião do lançamento da

encíclica Quadragesimo Anno (comemorativa dos quarenta anos da Rerum

Novarum, outro marco histórico da afirmação dos direitos dos trabalhadores):

“A Organização Internacional do Trabalho, na qual os povos

depositaram sua confiança imediatamente após o desastre mundial,

confiando a ela o estabelecimento de condições de trabalho humanas como

 parte do esforço de se assegurar paz e harmonia mundiais, lançou-se à sua

imensa tarefa com grande confiança e entusiasmo. Ela sabe que a sua

criação não foi um ato de espontaneidade, resultado de uma erupção de

entusiasmo, mas sim a consumação de prolongados esforços e da atividade

em colaboração de todos os homens de boa vontade e de todos os que se

esforçam por ideais. A semente caiu em bom solo, que havia sido

47 “The International Labour Organization: its origins and story”, em Journal of the Statisticaland Social Inquiry Society of Ireland,Vol. XXIX, Part I, 1952/1953. Disponível em:http://www.tara.tcd.ie/handle/2262/3964

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cuidadosamente preparado há muitos anos por trabalhadores que estavam

ansiosos em assegurar o império da justiça social, sendo que entre eles

estavam aqueles que baseavam suas convicções na Encíclica Rerum

Novarum” .

A mesma percepção prevaleceu novamente por ocasião da

Segunda Grande Guerra, e não apenas após o término, mas inclusive

durante os anos em que ela estava sendo travada.

É muito significativo, nesse sentido, que a OIT tenha sido a única

organização internacional que se manteve em atividade durante a Segunda

Grande Guerra. Todas as demais organizações cessaram de funcionar ou

desapareceram para sempre. Meio mundo ardia em chamas, e ainda assim

as nações entenderam indispensável preservar a entidade dedicada à

promoção de condições dignas de vida aos trabalhadores, fato que

certamente há de soar incompreensível – além de inconveniente – aos atuais

porta-vozes do neoliberalismo.

Sobre as circunstâncias em torno do papel da OIT na Segunda

Guerra, comenta Gerry Rodgers e Outros48:

“Em 1941, 22 anos após ter sido fundada, a Organização

Internacional do Trabalho (OIT) realizou uma Conferência extraordinária em

Nova York. O objeto era sobrevivência. Exilada em Montreal, o seu trabalho

tinha sido severamente atingido pela guerra. A Liga das Nações, com a qual 

a OIT era associada, tinha morrido. Para que a OIT não seguisse o destino

da Liga, era importante estabelecer que a Organização, e tudo o que ela

representava, deveria assumir um papel importante na reconstrução da

48 Em “The Internacional Labour Organization and the quest for social justice, 1919-2009”,autores Gerry Rodgers, Eddy Lee, Lee Swepston e Jasmien Van Daele, disponível em:http://digitalcommons.ilr.cornell.edu/books/53/

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ordem mundial após a guerra. O seu destino estava na balança.

 A posição dos Estados Unidos, que havia aderido à OIT em 1934,

era fundamental. E em 06 de novembro de 1941, o Presidente Franklin

Roosevelt manifestou-se fortemente em favor da OIT. Tendo convidado os

delegados à Casa Branca no último dia da Conferência, disse-lhes que ele

havia ajudado a organizar a primeira Conferência da OIT, em 1919.

'Eu me lembro bem que naqueles anos a OIT era ainda um

sonho. Para muitos era um sonho louco. Quem antes havia ouvido falar em

Governos reunindo-se para melhorar os padrões de trabalho no plano

internacional? Mais louca ainda era a ideia de as pessoas diretamente

afetadas – os trabalhadores e os empregadores dos vários países –

devessem ter um papel junto com o Governo na determinação desses

 padrões trabalhistas. Agora 22 anos se passaram. A OIT foi experimentada e

testada...' 

Ele sublinhou algumas das realizações da Organização desde

sua fundação e, apontando para os desafios à frente após a guerra, concluiu 

que a OIT 

'...será um instrumento inestimável para a paz. A sua organização

terá um papel essencial a cumprir na construção de um sistema internacional 

estável de justiça social para os povos de toda a parte'.

(…)

Os dois gatilhos para a criação da OIT foram guerra e revolução.

O século vinte, mais ainda do que o período anterior, foi um século no qual a

atividade humana mostrou-se largamente estruturada em torno da guerra e

do trabalho. E isso se deu em parte porque tanto a guerra quanto o trabalhose tornaram globais. A amplitude e brutalidade da guerra no século vinte

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excederam em muito tudo o que havia acontecido antes, ao provocar pela

 primeira vez a morte de milhões de civis – e não apenas em duas guerras

mundiais, mas em um imenso número de conflitos de grande e pequena

escala por todo o globo ao longo do século, da Manchúria ao Congo. Ao final 

da Primeira Guerra Mundial, com sua selvageria, mobilização em massa e

amplas repercussões sociais, os líderes políticos estavam abertos a uma

mudança fundamental em política, economia e sociedade, e a construir 

instituições internacionais que pudessem reunir todos os países em um

esforço comum. A mesma abertura a mudanças emergiu novamente após a

Segunda Guerra Mundial, e conduziu à criação das Nações Unidas e à

construção de uma nova agenda de progresso social e direitos humanos.

Esse padrão foi repetido várias vezes a nível local e regional pois a

superação bem sucedida de conflitos tem que ser construída sob a

 perspectiva de direitos e justiça sociais, como os promotores da paz sabem,

ou deveriam saber.

(…)

Na criação da OIT, essas duas correntes se uniram.

'Considerando que a paz para ser universal e duradoura deve assentar sobre

a justiça social', declara sua Constituição, e “considerando que existem

condições de trabalho que implicam, para grande número de indivíduos,

miséria e privações, e que o descontentamento que daí decorre põe em

  perigo a paz e a harmonia universais, e considerando que é urgente

melhorar essas condições'. Nascida do resultado da Primeira Guerra

Mundial, a OIT foi construída sobre a crença de que paz e justiça andam de

mãos dadas. Não no sentido de que a guerra é sempre o resultado da

injustiça, mas de que a justiça social é uma base fundamental à paz”.

Da mesma forma o discurso de Edward Phelan, um dos

arquitetos da Constituição original da OIT e principal redator da Declaração

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de Filadélfia, pronunciado por ocasião da Conferência Internacional de

194849:

“Esta é uma organização que encarna em suas metas e em suas

ações algumas das mais profundas aspirações da humanidade – a aspiração

da humanidade por liberdade e justiça social... É por isso que sobreviveu à

guerra. É por isso que o Canadá a acolheu... quando ela escapava do perigo

da guerra na Europa. É por isso que, depois do choque inicial, começou a

avançar e não a retroceder. É por isso que quando países estavam a

centímetros da destruição, eles estavam dispostos a prover, mesmo na

exaustão de seus recursos, condições para manter a Organização

Internacional do Trabalho viva e permitiram sua expansão. É por isso que

delegados vieram à Conferência de Nova York em 1941 muito embora, como

um pessimista cínico declarou, 'muitos não tivessem países para os quais

voltar'. É por isso que, quando o espírito humano elevava-se para desafiar a

destruição, e o conteúdo essencial da paz a ser buscada foi identificado com

clareza, os homens se voltaram à Organização Internacional do Trabalho

  para assegurar seus objetivos. É por isso que delegados se reuniram

novamente em 1944, embora a guerra ainda estivesse sendo travada, e

utilizaram a Organização Internacional do Trabalho para expressar os

 propósitos de seus povos na Declaração da Filadélfia”.

Vale à pena ser mencionado, também, o testemunho de

Stephane Hessel, herói da resistência francesa durante a segunda guerra, e

que se tornou posteriormente diplomata, tendo participado da elaboração da

Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em seu recente panfleto

“Indignem-se! ”, Hessel narra como o Conselho Nacional de Resistência, ao

mesmo tempo em que combatia os nazistas e o regime de Vichy, já se

preocupava com a elaboração de um programa de direitos sociais, pensando

49 Apud Brigid Stafford, obra citada.

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no pós-guerra, tão óbvio era para todos os resistentes que a paz duradoura

só poderia ser assegurada com a garantia de um mínimo de justiça social.

A propósito, vale mencionar que o General de Gaulle, líder da

Resistência Francesa, cumpriu um papel importante na preservação da

Organização Internacional do Trabalho no pós-guerra, em um momento no

qual havia entre diplomatas envolvidos na criação das Nações Unidas

resistências à manutenção da OIT, em razão de sua vinculação à defunta

Liga das Nações. De Gaulle recebeu os delegados da OIT para uma

conferência em 1945 em Paris, durante a qual foram redigidas as alterações

necessárias para compatibilizar a Constituição da OIT ao modelo que estava

sendo planejado para a ONU.

A avaliação de Hessel sobre os tempos contemporâneos é a

seguinte: “todas as fundações das conquistas sociais da Resistência estão

ameaçadas hoje”, e “a atual ditadura internacional dos mercados financeiros

[…] ameaça a paz e a democracia."

Propostas como a do Código do Trabalho (em tudo semelhantes

àquelas também em curso na França, Espanha, etc.) são exatamente o tipo

de ameaça a que se refere o herói de guerra, e deveria ser desalentador 

para ele, ao final da vida (Hessel tem 93 anos de idade), assistir ao

ressurgimento das mesmas circunstâncias que viu, com seus próprios olhos,

servirem de combustível à segunda guerra mundial, como o avanço das

injustiças sociais.

Surpreendentemente, a conclusão de Hessel não é pessimista,

tão seguro está ele que contra as ameaças de hoje levantar-se-ão outros

resistentes, especialmente os jovens, imbuídos do mesmo espírito queanimava a Resistência Francesa, e lutarão contra o poder econômico que

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não mais conhece limites.

4.2) As guerras da perspectiva da elite econômica

Há de se destacar, entretanto, que não obstante a preservação

da paz mundial fosse o motivo pelo qual exigiram os povos, em 1919 e 1945,

melhorias nas condições de vida dos trabalhadores, através da OIT e da

universalização dos direitos sociais, esse não foi o motivo pelo qual parte dos

capitalistas acabou por aceitar – muito a contragosto – tais reivindicações.

Para grande parte da elite, o importante não era evitar novas guerras

mundiais, mas sim evitar novas revoluções como a Russa de 1917. Afinal,

diante da aguda insatisfação social e do colapso econômico nos períodos de

pós-guerra, temiam o avanço do comunismo, que nesses momentos

despontava como alternativa real.

Da perspectiva da esmagadora maioria da população, incluindo

sem dúvida parte da elite econômica (que também experimentou prejuízos),

o fundamental era impedir novas guerras capazes de exterminar dezenas de

milhões de vidas. Da perspectiva da maior parte da elite, ao revés, era

necessário dar aos trabalhadores alguns anéis, para não se correr o risco de

perder as joias todas, ou mesmo os dedos. Consentiram, então, com o

reconhecimento de novos direitos sociais, mas tratou-se de uma trégua

temporária, pois desde a década de 1970 buscam reconquistar o poder 

perdido, tão seguros estão de que a ameaça do comunismo está para

sempre sepultada, e tão indiferente lhes é a possibilidade de ocorrência de

novos conflitos mundiais.

Pode parecer estranho a parte dos leitores que se venha a

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afirmar que algumas pessoas, ainda que muito ricas, sejam indiferentes à

tragédia representada por guerras mundiais, e não achem muito importante

evitar que se repitam. Seguramente a qualquer pessoa interessará a paz,

dirão, pois mesmo os ricos morrem em guerras, às vezes.

Infelizmente, as coisas não se dão assim, e guerras, inclusive as

mundiais, são vistas por certas pessoas como uma excelente oportunidade

para se fazer negócios e enriquecer como nunca.

Guerras hoje em dia são travadas, por exemplo, para se

assegurar acesso a preciosas reservas de petróleo, como obviamente foi o

caso da invasão norte-americana ao Iraque, sendo nada menos que

embaraçoso o reconhecimento oficial posterior 50 de que “cometemos um

erro, e realmente o Iraque não possuía armas de destruição em massa”,

particularmente após a revelação de que o serviço de inteligência havia

informado o presidente Bush, antes da invasão, que tais armas de destruição

não existiam51. Graças ao “erro”, empresas petrolíferas norte-americanas e

britânicas asseguraram conveniente acesso ao petróleo iraquiano52, e

dezenas de milhares de civis morreram, inclusive grande quantidade de

crianças.

A própria Segunda Guerra Mundial não foi exceção a tal

aproveitamento da guerra para se fazer lucrativos negócios, como narra

Walter Lúcio de Alencar Praxedes53:

“Muito se fala em globalização, mas nem todos entenderam que o

50 Esse discurso do presidente George W. Bush pode ser assistido emhttp://www.youtube.com/watch?v=f_A77N5WKWM (acessado em 22/09/2011).

51 “Bush knew Saddam had no weapons of mass destruction”, emhttp://www.salon.com/news/opinion/blumenthal/2007/09/06/bush_wmd

52 “Western producers like BP, Exxon Mobil, and Shell are enjoying their best access to Iraq'ssouthern oil fields since 1972”, emhttp://www.businessweek.com/globalbiz/content/mar2010/gb2010034_232444.htm

53 Em http://www.espacoacademico.com.br/023/23wlap.htm

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termo surgiu para dar nome ao processo de expansão das grandes

empresas existentes no mundo, principalmente nos países mais ricos do

hemisfério norte.

Somente as 500 maiores empresas do mundo faturaram 5 

trilhões de dólares em 1992. É muita riqueza controlada por pouca gente.

Em 1994, as 10 maiores destas empresas, 7 do Japão, 3 dos

Estados Unidos e uma da Europa, faturaram 1 trilhão e 400 bilhões de

dólares. Isto representava muito mais do que o PIB (soma dos bens e

serviços produzidos anualmente em cada país) de toda a América Latina e

Caribe no mesmo ano.

Vamos discutir um pouco mais sobre como atuam as empresas

transnacionais:

1. Na lista dos dez conglomerados de empresas

transnacionais que mais faturaram em todo o mundo no ano de 1994, nos

dois primeiros lugares encontramos os grupos Mitsubishi e Mitsui, de origem

 japonesa;

2. Numa reportagem do Jornal Folha de São Paulo, de 9 de

dezembro de 1999, os dois conglomerados estão também em outra lista.

Desta vez aparecem entre as principais empresas acionadas judicialmente

 por pessoas que foram vítimas de trabalho escravo durante a Segunda

Guerra Mundial. Segundo consta, muitos milhares de prisioneiros de guerra

foram "cedidos pelo Exército japonês para serem usados por empresas

 privadas na mineração, na siderurgia e na construção em áreas ocupadas";

3. Mitsubishi e Mitsui hoje estão entre os respeitáveis

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gigantes que promovem a globalização da economia mundial;

4. Diretamente envolvidas com trabalho escravo, desta vez na

 Alemanha da época do nazismo, vamos encontrar mais dois conglomerados

que constam da lista dos dez que mais faturaram em 1994, Ford e General 

Motors, e um gigante do mercado financeiro internacional, o Chase

Manhattan;

5. A colaboração da Ford, com o aval direto da família Ford,

ficou mais conhecida internacionalmente: "A Ford colaborou de bom grado

com os nazistas, e isso ao mesmo tempo fortaleceu muito suas perspectivas

econômicas e ajudou Hitler a preparar-se para a guerra (e, após a invasão

da Polônia, em 1939, a conduzi-la)", escreveu Ken Silverstein em artigo

reproduzido pelo Jornal Folha de São Paulo de 27/02/2000;

6. Franceses, russos, ucranianos e belgas trabalhavam na

fábrica da Ford na Alemanha por 12 horas por dia, com apenas um intervalo

de 15 minutos, tendo como alimentação diária uma xícara de café puro e 200 

gramas de pão pela manhã, nada no almoço e três batatas com espinafre no

 jantar;

7. Graças ao trabalho escravo dos prisioneiros a Ford 

"tornou-se uma das maiores fornecedoras de veículos do Exército alemão";

8. Além dos três conglomerados de origem norte-americana

mencionados acima, dezenas de outras empresas multinacionais, dentre as

quais a Bayer, BMW, Volkswagen e Daimler-Chrysler colaboraram

ativamente com o regime nazista e se utilizaram do trabalho dos prisioneiros

dos campos de concentração.

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  Ao avaliarmos a riqueza e o poder concentrados por essas

mesmas empresas na sociedade global construída após a Segunda Guerra

Mundial pode-se concluir que o crime compensou! 

Para entendermos as razões que motivaram os executivos das

transnacionais a promoverem, ontem, a desumanidade do nazismo, e, hoje,

a desumanidade da globalização, no Relatório do Desenvolvimento Humano

1999, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, aparece

uma excelente explicação:

'Quando as motivações de lucro dos atores do mercado ficam

fora de controle, desafiam a ética das pessoas e sacrificam o respeito pela

 justiça e direitos humanos.'" 

4.3) Preparando as guerras de amanhã

O mesmo desafio à ética e desrespeito à justiça e aos direitos

humanos desponta agora, através da insistência na supressão de direitos

trabalhistas. Vende-se a ideia, inclusive no Congresso Nacional e em

importantes veículos de comunicação, como nas revistas Veja e Valor 

Econômico, que a globalização e a competitividade estão a exigir a

supressão (mascarada de “flexibilização”) dos direitos dos mais pobres, e

que isso não será ruim para eles, mas bom.

Tendo consciência disso ou não, o que tais apóstolos da

“flexibilização” estão a plantar, além do enriquecimento da elite econômica,

são as sementes de guerras futuras, quiçá de um nova guerra mundial.

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Tal perspectiva, por alarmante que seja, não é exagerada,

infelizmente. As bases para o recrudescimento das tensões entre as nações

  já existem, e não as vê quem não quer. O culto à competitividade e à

individualidade, o alardeamento de uma suposta necessidade de permanente

mobilização nacional no sentido do país “vencer”, “tornar-se o maior, o mais

desenvolvido” e “superar adversários”, o crescimento da miséria em todo o

planeta, inclusive nos países mais ricos, como os Estados Unidos (onde uma

a cada seis pessoas está abaixo da linha da pobreza), o acirramento da

disputa por mercados estrangeiros, o exaurimento dos recursos naturais e

consequente pressão para se buscar mais recursos em outro lugar, mesmo

que seja em outro país, são todos fatores que prometem tragédias futuras se

continuarem a progredir descontroladamente.

Direitos trabalhistas e direitos sociais em geral são nesse

contexto um freio valioso ao descontrole, pois criam um limite ao

escalonamento da competição desenfreada. De fato, se todos os países

precisarem assegurar o trabalho decente e digno, por exemplo, não haverá

espaço para uma “corrida ao fundo do poço” que leve os países a competir 

rumo à pior condição social possível.

Além disso, a deterioração do padrão de vida dos trabalhadores e

o avanço da miséria levam inevitavelmente, como tantas vezes já ocorreu ao

longo da história, a crises e convulsões sociais, caldo no qual se fortalecem

as correntes político-ideológicas mais intolerantes, imbuídas de valores

antidemocráticos, xenófobos e militaristas. Correntes essas, aliás, que

permanecem ativas hoje em dia, esperando o momento de ascender ao

poder, como preocupantemente já se anuncia no movimento do Tea Party

nos EUA, com sua pregação anti-estado e anti-governo, e no avanço eleitoral

dos partidos de extrema direita na Europa, que promovem a demonizaçãopública de imigrantes, trazendo em seu bojo o germe do nazi-fascismo.

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As últimas gerações, por não terem acompanhado os horrores

das grandes guerras, aparentemente vivem sob a perspectiva, consciente ou

inconsciente (via de regra, prefere-se não pensar no assunto), de que tais

tragédias “jamais poderiam ocorrer novamente”. Era exatamente o que

pensavam, aliás, os europeus antes da Primeira Grande Guerra. Supunham

que a civilização ocidental já havia atingindo patamar tão avançado de

desenvolvimento que guerras de grande porte não mais voltariam a ocorrer.

Tais expectativas ruíram, quase que do dia para a noite, da forma mais

espetacular possível. E o mesmo poderá ocorrer novamente, no futuro, caso

não se consiga em pleno século XXI impedir a progressão dos fatores que,

sabidamente, conduzem a desastres.

Exemplo do efeito socialmente desestabilizador acarretado pela

deterioração das condições trabalhistas foi visto neste ano de 2011 no Brasil,

no episódio da construção da usina hidrelétrica do Jirau (à época dos fatos a

maior obra de construção civil do país, a um custo maior do que treze bilhões

de reais). Trata-se de uma amostra, em pequena escala, de como a

supressão de direitos trabalhistas conduz a situações de convulsão social e à

violência, com consequências imprevisíveis.

Veja-se as seguintes notícias, todas de 2011 (pede-se tolerância

ao leitor com relação ao tamanho das transcrições, que são necessárias):

a) “GOVERNO: FORÇAS ARMADAS E FORÇA NACIONAL

SEGUEM AO LOCAL DO CONFLITO EM JIRAU 

Na tentativa de pôr fim ao movimento revoltoso de barrageiros dausina de Jirau, o governador Confúcio Moura recorreu aos ministros da

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Justiça, José Eduardo Cardozo; da Defesa, Nelson Jobim e à secretária

Nacional de Segurança Pública, Regina Maria Filomena de Luca Miki,

solicitando apoio para reforçar as forças policiais do estado.

Por volta das 9h desta quinta-feira (17), o governador falou por 

telefone com os ministros e com a secretária da Senasp e em seguida

determinou ao Gabinete de Gerenciamento de Crise, da Secretaria de

Segurança, Defesa e Cidadania que oficializasse os pedidos por meio de

correspondências. Ao ministro da Justiça e à secretária Regina Filomena, o

governador pediu o envio de 600 homens da tropa da Força Nacional. O

 pedido foi atendido no mesmo momento e imediatamente 100 homens, dos

45 já estavam em Porto Velho, foram mandados para a região do distúrbio.

Outros 500 serão trazidos em aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) e são

aguardados para a tarde ou noite desta quinta-feira ainda. Ao ministro da

Defesa, Nelson Jobim, o governador solicitou a atuação das Forças

 Aramadas, por meio do Exército, Aeronáutica e da Marinha. Ao Exército,

caberá garantir a segurança dos paióis de explosivos, existentes em grandes

quantidades no canteiro de obras. À Marinha deverá ficar responsável pela

vigilância no rio Madeira. Por fim, a Aeronáutica deverá enviar helicópteros

 para o monitoramento aéreo.

Outros pontos sensíveis a serem resguardados, além do canteiro

de obras, são o distrito de Jacy-Paraná, a vila de Nova Mutum e o presídio

federal. O governo do estado, por meio da Secretaria de Segurança Pública,

mantém no local 160 policiais militares, dos quais 80 do Comando de

Operações Especiais (COE), 36 bombeiros militares e oito policiais civis,

além de agentes da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal. Na

manhã desta quinta-feira foram registrados novos focos de incêndio.

  Ainda na manhã desta quinta-feira, o superintendente do

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consórcio Energia Sustentável do Brasil, José Lúcio de Arruda, pediu apoio

ao governador Confúcio Moura no sentido de providenciar alojamento para

12 mil operários, vez que no tumulto foram incendiadas as acomodações dos

trabalhadores. O governo que já mantém um grupo de quase 100 haitianos

no ginásio de Esportes Cláudio Coutinho, está analisando o pedido. O

estado não possui nenhuma estrutura suficiente para acomodar um

contingente tão grande de pessoas. A alternativa seria a acomodação em

escolas, porém neste caso, as aulas teriam que ser temporariamente

suspensas. Uma solução está sendo buscada em conjunto com o consórcio

construtor e com o governo federal. Os resultados do levante foram 45 

ônibus, 15 carros administrativos, 30 instalações diversas e 15 alojamentos

incendiados, além de outros 20 alojamentos depredados e aproximadamente

65 instalações totalmente danificadas. Também foram atacados posto

bancário eletrônico, lanchonetes, gabinetes odontológicos e instalações

destinadas ao lazer, como salas de cinemas e academias de ginástica.54” 

b) “TRABALHADORES DE JIRAU DIZEM SER TRATADOS

COMO 'BANDIDOS' 

Levados para abrigos improvisados em Porto Velho (RO) desde a

quinta-feira passada, trabalhadores da usina de Jirau deixaram Rondônia

dizendo terem sido vítimas de preconceito nas ruas da cidade e tratados

"como bandidos" pelas forças policiais.

Na noite de sexta para sábado, parte do comércio da cidade

fechou as portas. A polícia recebeu dezenas de chamadas alertando para

saques e quebra-quebras que, segundo a Secretaria de Segurança Pública,

 jamais ocorreram.

54 Em http://www.rondoniagora.com/noticias/governo-forcas-armadas-e-forca-nacional-seguem-ao-local-do-conflito-em-jirau-2011-03-17.htm

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"Sou pai de família. Saí lá do Maranhão para trabalhar. Agora sou 

tratado como um bandido que vai fazer arruaça. Fomos dar uma volta na rua

e as pessoas fechavam as portas. Isso me deixou muito magoado", relatou 

Cícero Silva, 50, oriundo de Codó (MA).

Sem se identificar, um trabalhador de Ipatinga (MG), 49, queixou-

se da quantidade de policiais fortemente armados que fazia a vigilância dos

abrigos. Para ele, os policiais estavam ali para proteger a cidade e não os

trabalhadores.

(...)

No sábado, a Folha acompanhou uma tentativa frustrada de

embarque de 150 trabalhadores em um avião fretado até Belém (PA).

Informados de que o voo sairia às 20h, todos aguardavam no

saguão do aeroporto quando foram informados pela empresa de que a

aeronave só partiria às 4h do dia seguinte e que eles deveriam retornar aos

abrigos.

Inconformados com a notícia, muitos também se irritaram com a

recomendação, feita por funcionários da Camargo Corrêa, para que

aguardassem pelo transporte no lado de fora do aeroporto. Foi o suficiente

 para chegassem carros trazendo reforços da Polícia Federal.

"É a maior humilhação que já sofri na vida. Veja quantos policiais.

Todos no aeroporto nos olhando como se fôssemos bandidos. E a única

coisa que eu quero é ir embora", diz um trabalhador de 35 anos, oriundo de

Tucuruí (PA).55 ” 

55 Em Folha de São Paulo, 21/03/2011.

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c) “OPERÁRIOS RECLAMAM AINDA DA FALTA DE 

PAGAMENTO DE HORAS EXTRAS E REGISTRO DE FUNÇÃO NA

CARTEIRA DE TRABALHO

Porto Velho (RO), 15/6/2011 - Quartos com pouco espaço para

acomodar quatro trabalhadores: com dimensões de pouco menos de 9

metros quadrados, sem ventilação suficiente: janelas com aberturas no

máximo de 40 centímetros, camas tipo beliche e armários cuja disposição no

ambiente torna a locomoção quase impossível e ventiladores que sopram

mais calor do que refrescam, o que motiva a alguns trabalhadores a optar 

 por colocar o colchão fora do quarto para o repouso noturno. Este o cenário

em muitos alojamentos disponibilizados por empresas que terceirizam

serviços para os construtores da Usina de Jirau, a maior obra do PAC no

Brasil.

Em um desses alojamentos, trabalhadores queixaram-se aos

 procuradores do MPT sobre "o pouco caso", ou seja, a falta de interesse de

 patrões em relação a melhorar as condições de acomodação . Reclamam

também das condições de higiene e da exposição aos mosquitos e bem

como do medo em reclamar para não ficar "marcado" e sofrer algum tipo de

represália "até mesmo ser mandado embora", segundo alguns depoimentos.

O tempo médio de permanência dos trabalhadores, grande parte procedente

do Nordeste do País, gravita em torno de seis meses, enquanto outros

requerem espontaneamente demissões.

Uma das reclamações recorrentes dos trabalhadores tem sido em

relação as anotações da carteira de trabalho, à duração da jornada e

também às horas extras trabalhadas, nem sempre pagas corretamente.

Outra queixa é quanto ao registro da função na carteira de trabalho. Um bomnúmero de trabalhadores reclamou aos procuradores do MPT que são

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contratados para uma determinada função, porém, na prática trabalham em

outra. O grande número de empresas terceirizadas contribui também para

ocorrência de diferenças salariais para uma mesma função no complexo de

obras em execução.

 Além dos alojamentos, lavanderias e banheiros também foram

vistoriados pelos Procuradores e fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego

e peritos do MPT e do Centro de Referência da Saúde do Trabalho (Cerest)

da Secretaria de Saúde do Estado de Rondônia. Os laudos produzidos pelas

equipes vão dar suporte ao trabalho dos procuradores nas audiências com

os representantes das empresas fiscalizadas, bem como em relatórios

 produzidos em recente fiscalização realizada na região por equipes do

Ministério do Trabalho e Emprego com sede em Brasília.

Em canteiros de obras, frentes de trabalho e alojamentos

visitados, os integrantes da força tarefa, puderam constatar diversas

reclamações feitas por operários. Os casos anotados pelos Procuradores

agora são objeto de propostas de termos de ajuste de conduta a serem

apresentadas às empresas e empregadores nas audiências que acontecem

nesta semana, na sede da Procuradoria Regional do Trabalho, em Porto

Velho56 ”.

Imagine-se, agora, tal tipo de situação – provocada, como sugere

a última reportagem, pelas violações trabalhistas cometidas pelas

empreiteiras, e pela precarização decorrente da terceirização no canteiro de

obra – aumentada mil vezes ou mais, e teremos uma razoável noção do

potencial desestabilizador a ser gerado pelo avanço da “flexibilização”

eliminadora de direitos daqueles que já pouco tem. De fato, a quantidade de

sofrimento, indignação, insatisfação, revolta e desespero a serem criados

56 Fonte: Ministério Público do Trabalho em Rondônia.

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pelo aprofundamento da precarização social é incalculável, sendo entretanto

previsível que, de uma forma ou de outra, tal pressão explodirá de forma

violenta e incontrolável, a um custo humano altíssimo.

Esse é o futuro que nos aguarda, na eventualidade de

alcançarem sucesso, no Brasil e no mundo, tentativas de eliminação de

direitos sociais como as representadas pelo projeto do Código do Trabalho e

pelo projeto Mabel (terceirização), entre outros.

Os apóstolos do neoliberalismo não pensam em nada disso

enquanto propõem suas reformas “flexibilizadoras”, já que o alcance de suas

análises e estratégias é extremamente curto, limitando-se à visualização do

lucro que poderá ser obtido, através da supressão de direitos trabalhistas,

nos próximos meses ou nos dois próximos anos, no máximo. Como regra

não se preocupam com o fato de que, em um cenário no qual a insatisfação

popular vier a atingir níveis extremos, os ricos também serão prejudicados,

pois nem os muros de suas mansões, nem a blindagem de seus carros,

poderão para sempre protegê-los da violência explodindo nas ruas.

Aqueles poucos que em algum momento se preocupam com tal

perspectiva comprazem-se com a suposição de que as forças armadas e

policiais poderão ser chamadas – se necessário, à revelia do sistema

democrático - para controlar a situação e proteger a vida e o patrimônio dos

mais ricos. Tal suposição é irrealista, pois nem mesmo regimes militares são

capazes de conter multidões desesperadas e insatisfeitas sem que

concessões econômicas sejam feitas para apaziguá-las. Sequer regimes

ditatoriais dos mais brutais, capazes de ordenar atos de pura chacina,

conseguem sufocar tal insatisfação generalizada quando ela ultrapassa certo

patamar, como foi demonstrado nos recentes levantes populares na Tunísia,Egito, Líbia e Síria, entre outros países árabes.

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Arnaldo Süssekind tratou dessa questão, em palestra sobre a

gênese da CLT57:

“Fazia-se mister, por conseguinte, que se criasse uma nova

mentalidade sobre o Direito, afim de que se compreendesse que a

intervenção do Estado é condição essencial à harmonia da sociedade; que

as leis de ordem pública não podem ser derrogadas pela vontade particular;

que o interesse de classe não pode sobrepujar o interesse coletivo; que a

  proteção ao trabalho é tão necessária, como foi, na era exclusivamente

agrícola, a proteção à propriedade; que o amparo ao economicamente mais

fraco assegura a tranquilidade não somente deste, mas também do

economicamente mais forte, o que vale dizer: da própria sociedade”.

De modo que a conclusão do presente capítulo é a de que

direitos trabalhistas e sociais precisam ser preservados de qualquer forma,

pois são indispensáveis à manutenção da paz e da harmonia mundiais, não

sendo essa uma suposição abstrata ou teórica, mas um fato recorrente ao

longo da história. Não há paz possível, entre as nações e entre as classes

sociais, sem justiça social. Apenas tragédias, inclusive guerras, mortes e

violência, poderão advir do avanço, em todo o mundo, da precarização social

provocada pela supressão dos direitos daqueles que menos tem.

Direitos trabalhistas não devem ser vistos, portanto, apenas como

um custo a ser suportado pelas empresas (até porque, na realidade, tal custo

é repassado aos consumidores, portanto aos próprios trabalhadores), mas

acima disso como direitos humanos essenciais à preservação da paz e dos

valores republicanos, no Brasil e no mundo. O custo financeiro que existe à

57 Apud Magda Barros Biavaschi, “O Direito do Trabalho no Brasil – 1930/1942: A construção dosujeito de direitos trabalhistas”, tese de doutorado, Unicamp, 2005. Disponível em:http://cutter.unicamp.br/document/?code=vtls000385083

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manutenção desses direitos é justo e precisa ser suportado para o bem de

todos, para o bem de toda a sociedade.

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CAPÍTULO 5: Mais bilionários, menos direitos trabalhistas

5.1) O mais rico dos mundos, mas não para todos

A pregação em torno da “flexibilização” (eliminação) de direitos

sociais parte de um pressuposto implícito, que é o de que estamos a

atravessar “períodos difíceis”, sendo necessário que todos, mas

especialmente os trabalhadores, aceitem se submeter a sacrifícios para que

possamos no futuro “sair da crise” (através do fortalecimento das empresas,

do aumento da competitividade, etc.), quando daí sim assistiremos a uma

espetacular retomada do crescimento e da geração de empregos, com

distribuição de riqueza para todos.

Se formos crer em tal suposição, que circula desde a década de

1970, há mais de trinta anos mundo está mergulhado “em períodos difíceis”,

e há décadas não há crescimento econômico ou geração de riqueza

suficiente para evitar a necessidade de se impor sacrifícios aos

trabalhadores.

A verdade, entretanto, é justamente o contrário disso. De todas as

mentiras repetidas pelos apóstolos da “flexibilização”, essa é a mais

escandalosa de todas. A quantidade de riqueza que vem sendo gerada nas

últimas décadas no mundo é sem igual em toda a história da humanidade, e

seria mais do que suficiente para permitir não só a preservação dos direitos

sociais, mas a eliminação da miséria e da fome em todas as partes do

planeta. Nunca houve tanta riqueza no mundo, e nunca ela esteve tãoconcentrada nas mãos de tão poucas pessoas.

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Esse é o paradoxo do contexto socioeconômico envolvido na

pregação neoliberal: ao mesmo tempo em que se exige que os mais pobres

percam seus direitos, os mais ricos - refiro-me aos descomunalmente ricos -

acumulam fortunas nababescas, sem paralelo em qualquer outro período

histórico.

Veja-se que em 1900 a maioria das pessoas supunha que já tinha

sido atingido o ápice da civilização e do desenvolvimento econômico e

tecnológico. Acreditava-se que o nível de conforto e de riqueza então

existente já era inigualável e não poderia ser aumentado, apenas estendido

àqueles que ainda não gozavam das benesses da civilização avançada. E

não se dizia isso por falta de interesse em novos avanços, mas pela

incapacidade de se imaginar um mundo ainda mais rico e moderno do que

aquele que então existia.

No domínio da ciência, da mesma forma, supunha-se em 1900

que todos os mistérios da natureza já haviam sido desvendados, faltando

apenas “alguns detalhes” a serem resolvidos, como a comprovação da

existência do éter (hipotético meio através do qual pensavam os cientistas

que a luz se propagava no vácuo).

Não obstante, tais “detalhes” levaram às revolucionárias teorias

geral e especial da relatividade e à teoria quântica, que por sua vez

permitiram nas décadas seguintes avanços tecnológicos até então

inconcebíveis, como o rádio, a televisão, os computadores, a telefonia

celular, o raio laser, os satélites de comunicação, as viagens espaciais, etc.

A quantidade de riqueza produzida no mundo desde então,particularmente a partir da consolidação da sociedade do consumo de massa

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na década de 195058, ultrapassa os sonhos mais loucos de qualquer pessoa

que tivesse vivido em 1900. Aparelhos celulares, por exemplo, hoje

possuídos até por pessoas de baixo poder aquisitivo, apenas teriam espaço

em uma obra de ficção científica, e mesmo nesse cenário muitos

considerariam a hipótese exagerada.

Os avanços tecnológicos introduzidos na agricultura e pecuária

também superam tudo o que pudesse ser imaginado no início do século XX,

tendo sido aumentada diversas vezes a capacidade de produção de

alimentos, mais do que o suficiente para acabar com a fome no mundo.

Trata-se da “revolução verde” das décadas de 1960 e 70, transformada em

realidade a um custo ambiental extraordinário, há de ser lembrado, incluindo

desmatamento e contaminação por agrotóxicos, além de reflexos sociais

perversos, como a concentração fundiária.

Tal crescimento da quantidade de riqueza produzida tem ocorrido,

na verdade, em patamar bastante superior ao crescimento populacional, de

modo que, em tese, está sobrando riqueza suficiente no mundo para permitir,

há tempos, o desaparecimento da miséria.

De fato, o PIB mundial (quantidade total de riqueza produzida no

planeta) tem crescido em progressão geométrica, ao passo que a população

cresce em progressão aritmética.

Segundo Madisson, citado por José Eustáquio Diniz Alves59, de

1820 a 1992 o PIB mundial cresceu 40 vezes, enquanto que a população

58 Até essa época, em certa medida as necessidades humanas determinavam a produção; apartir de então, o contrário passou a ocorrer: as necessidades crescentes de produção emmassa determinam as necessidades humanas, com permanente incentivo à perseguição denovos sonhos de consumo descartáveis e fugazes.

59 Em “Considerações sobre projeções populacionais e econômicas para 2050 e seus impactossobre a pobreza e o meio ambiente”, disponível emhttp://www.ie.ufrj.br/aparte/pdfs/popdesenvsustentavell_01mai07.pdf 

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cresceu 5 vezes. E se considerarmos apenas a segunda metade do sec. XX

(1950 a 2000), a população mundial aumentou 2,5 vezes, ao passo que o

PIB mundial aumentou 7 vezes.

Ou seja, está sendo há muito tempo criada riqueza em

quantidade suficiente para, mesmo com a preservação das diferenças de

classe, eliminar-se a pobreza e elevar-se a quantidade de direitos sociais,

inclusive trabalhistas, em toda a parte. Está “sobrando” riqueza, em

quantidade bastante superior ao necessário para compensar o crescimento

demográfico.

Se a distância entre os mais ricos e os mais pobres existente em

1900 fosse preservada, resta evidente a quantidade de riqueza a mais

produzida deveria estar permitindo a melhoria das condições de vida dos

mais pobres em todo o planeta, sem que isso implicasse, necessariamente,

no desaparecimento das diferenças de classe. A fortuna dos mais ricos

cresceria na mesma proporção em que as condições dos mais pobres

melhorariam. Não teríamos mais fome ou miséria, mas ainda teríamos o luxo

e a ostentação dos mais ricos.

Mais não foi isso o que ocorreu. A fabulosa quantidade de riqueza

a mais, produzida há décadas, não proporcionou o desaparecimento da

miséria, e agora ainda se pretende retirar direitos dos assalariados, que

estão em sua maioria apenas um pouco acima do limiar da pobreza.

Pretende-se em suma fazer retroceder o patamar de direitos sociais a um

nível pior que o da primeira metade do século XX, desprezando-se o fato de

que, desde então, a riqueza no mundo aumentou, e não diminuiu.

Por que neste mundo tão mais rico e tecnologicamente avançadoprecisariam os trabalhadores ter menos direitos, e não mais, do que em

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1950, se desde então o aumento do PIB mundial superou em 4,5 vezes o

crescimento populacional? Por que em um mundo mais rico os trabalhadores

teriam que se tornar ainda mais pobres?

Tais perguntas, e outras semelhantes que poderíamos fazer,

conduzem inevitavelmente à seguinte indagação: onde está indo parar a

enorme quantidade de riqueza a mais produzida no mundo, se não está

chegando aos trabalhadores e à massa da população?

5.2) Bilionários em profusão

A indagação acima começa a ser respondida graças à revista

norte-americana Forbes (cuja linha editorial está ancorada na glamorização

dos excessos do capitalismo), que realiza anualmente o acompanhamento

das maiores fortunas do planeta, com a manutenção de uma lista na qual só

ingressa quem possui um bilhão de dólares de patrimônio pessoal ou mais.

Vejamos as seguintes notícias, relativas à última lista divulgada

pela revista:

a) “Número de bilionários é recorde na lista da Forbes em 2011

Segundo ranking, número saltou de 937 para 1.210 bilionários no

mundo neste ano

São Paulo – O número de bilionários no mundo cresceu neste

ano na comparação com 2010. Segundo ranking divulgado pela revistaForbes, nesta quarta-feira (9/3), 1.210 pessoas estão entre as mais ricas do

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mundo na lista deste ano contra 937 no ano passado.

Dos novos nomes listados pela Forbes, 108 são do Bric, grupo

composto pelos países Brasil, Rússia, Índia e China. O país chinês tem

agora 105 bilionários no ranking da Forbes e a Rússia 101 nomes. Já o

Brasil conta com 30 nomes neste ano. Em 2010, apenas 18 brasileiros foram

citados no ranking.

O mexicano Carlos Slim continua na liderança e tem uma fortuna

avaliada em 74 bilhões de dólares. Eike Batista é o mais rico entre os

brasileiros e continua na oitava posição no ranking geral, com um fortuna

estimada em 30 bilhões de dólares, 3 bilhões de dólares a mais na

comparação com 2010.60 ”  

b) “Número de brasileiros bilionários salta de 18 para 30, aponta

"Forbes" 

O número de bilionários brasileiros saltou de 18 para 30 em um

ano (alta de 66,7%), segundo levantamento dos homens mais ricos do

mundo feito pela revista norte-americana “Forbes”, divulgado nesta quarta-

feira (9).

 A soma das fortunas desses 30 bilionários chega a cerca de US$ 

131,4 bilhões (R$ 217,7 bilhões), valor equivalente a 5,9% do PIB (Produto

Interno Bruto) brasileiro de 2010, que foi de R$ 3,675 trilhões.

Segundo a Forbes, o aumento de bilionários brasileiros é

resultado de regras mais rígidas para a divulgação do patrimônio, e também

da valorização do real. Os países emergentes foram os que puxaram o60 Em http://exame.abril.com.br/negocios/empresas/noticias/numero-de-bilionarios-e-recorde-

na-lista-da-forbes-em-2011

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aumento no número de bilionários.

Pelo segundo ano consecutivo, o brasileiro mais bem colocado foi 

o empresário Eike Batista, que ocupa o 8º lugar neste ano, mesma posição

de 2010. Sua fortuna foi avaliada em US$ 30 bilhões (R$ 49,7 bilhões).

O segundo brasileiro mais rico, sempre segundo a lista da

Forbes, é Jorge Paulo Lemann, um dos fundadores da AmBev e que, em

2010, comprou o Burger King com outros dois investidores. Sua fortuna foi 

estimada em US$ 13,3 bilhões (R$ 22 bilhões).

Em terceiro lugar vem o banqueiro Joseph Safra, dono do Banco

Safra, com US$ 11,4 bilhões (R$ 18,9 bilhões).

Na quarta posição está Marcel Herrmann Telles, com US$ 6,2 

bilhões (R$ 10,3 bilhões), também um dos fundadores da AmBev e

comprador do Burger King.

 A Forbes usou como critério o valor das fortunas no momento do

fechamento dos mercados acionários globais em 14 de fevereiro de 201161.” 

Merece ser mencionado, também, que das 30 maiores fortunas

brasileiras, 14 estão relacionadas a bancos. Abaixo, a lista dos bilionários

brasileiros segundo a Forbes:

Eike Batista, proprietário do Grupo EBX – US$ 30 bilhões

Jorge Paulo Lemann, acionista da Anheuser-Busch Inbev – US$61 Em: http://economia.uol.com.br/ultimas-noticias/redacao/2011/03/09/numero-de-brasileiros-

bilionarios-salta-de-18-para-30-aponta-forbes.jhtm

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13,3 bilhões

Joseph Safra, dono do Banco Safra – US$ 11,4 bilhões

Marcel Telles, acionista da Anheuser-Busch Inbev – US$ 6,2

bilhões

Dorothea Steinbruch e família, proprietários da CSN – US$ 5,8

bilhões

Carlos Alberto Sicupira, acionista da Anheuser-Busch Inbev –

US$ 5,5 bilhões

Antônio Ermírio de Moraes, proprietário do Grupo Votorantim –

US$ 5,3 bilhões

Aloysio de Andrade Faria, banqueiro, antigo dono do banco Real

 – US$ 4,3 bilhões

Abílio Diniz, proprietário do Grupo Pão de Açúcar – US$ 3,4

bilhões

Alfredo Egydio Arruda Villela Filho, acionista do Itaú Unibanco –

US$ 3,2 bilhões

Ana Lucia de Mattos Barretto Villela, acionista do Itaú Unibanco –

US$ 3,2 bilhões

Antonio Luiz Seabra, proprietário da Natura – US$ 3 bilhões

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André Esteves, proprietário do BTG Pactual – US$ 3 bilhões

Fernando Roberto Moreira Salles, acionista do Itaú Unibanco -

US$ 2,6 bilhões

João Moreira Salles, acionista do Itaú Unibanco – US$ 2,6

bilhões

Pedro Moreira Salles, acionista do Itaú Unibanco – US$ 2,6

bilhões

Walther Moreira Salles, acionista do Itaú Unibanco – US$ 2,6

bilhões

Rubens Ometto Silveira Mello, controlador da Cosan – US$ 2,5

bilhões

Moise Safra, um dos donos do Banco Safra – US$ 2,4 bilhões

Elie Horn, proprietário da Cyrela – US$ 2,1 bilhões

Jayme Garfinkel e família, proprietários da Porto Seguro – US$ 2

bilhões

Maria de Lourdes Egydio Villela, acionista do Itaú Unibanco –

US$ 2 bilhões

Edson de Godoy Bueno, fundador da Amil – US$ 2 bilhões

Dulce Pugliese de Godoy Bueno, ex-mulher do fundador da Amil

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 – US$ 2 bilhões

Guilherme Leal, proprietário da Natura – US$ 1,7 bilhão

Liu Ming Chung, proprietário da fabricante de papel Nine Dragons

 – US$ 1,6 bilhão

João Alves de Queiroz Filho, proprietário da Hypermarcas – US$

1,4 bilhão

Lina Maria Aguiar, filha de Amador Aguiar, fundador do Bradesco

 – US$ 1,4 bilhão

Julio Bozano, banqueiro – US$ 1,3 bilhão

Lia Maria Aguiar, filha de Amador Aguiar, fundador do Bradesco –

US$ 1,1 bilhão

A lista tem suas limitações, é claro, pois há certos bilionários que

tomam cuidados em evitar que a vastidão de seu patrimônio possa ser 

revelada publicamente, de modo que o ranking não corresponde

integralmente à realidade, havendo mais do que trinta fortunas bilionárias no

Brasil. Há casos notórios que estão de fora da lista da Forbes, como José

Luis Cutrale, dono da Sucocítrico Cutrale, que detém 30% do mercado

mundial de suco de laranja, sobre o qual se escreveu, em 2003:

“Alguns empresários o classificam como o homem mais rico do

campo brasileiro. Ou talvez o brasileiro mais rico de todos os campos. Obanqueiro Pedro Conde, em conversas com empresários amigos, que

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relataram o que ouviram a VEJA, referiu-se várias vezes a Cutrale como o

homem mais rico do Brasil. Disse a um interlocutor certa vez que sua fortuna

acumulada equivalia a 5 bilhões de dólares – ou 15 bilhões de reais pelo

câmbio do momento.62 ”

Ainda assim, é significativa a informação prestada pela Forbes de

que Brasil, Rússia, Índia e China, os principais países emergentes do mundo,

produziram metade dos 214 novos bilionários do mundo no ano de 2010.

Mais significativa ainda é a evolução ao longo do tempo do

número de bilionários, segundo a mesma revista. Nesse sentido, nos

Estados Unidos havia apenas 13 bilionários em 1982, número que passou

para 385 em 2010, um aumento superior a 2.800%. Em todo o mundo, havia

423 bilionários em 1996, 691 em 2005 e 1140 em 2010.

As informações são corroboradas pelo estudo “Global Wealth

Report” divulgado em outubro de 2011 pelo banco Credit Suisse:

a) “Milionários e bilionários controlam 39% da riqueza mundial 

Em apenas 12 meses, o crescimento da fortuna dos mais ricos foi 

duas vezes maior do que o aumento da riqueza mundial como um todo

De acordo com o estudo, 29,7 milhões de pessoas (o que

representa menos de 1% da população mundial) com renda familiar de 1

milhão de dólares dominam cerca de 89 trilhões de dólares ou 38,5% da

riqueza mundial, mais que os 35,6% registrados no ano passado.

Entre 2010 e 2011, a riqueza dos milionários e bilionários62 Disponível em http://www.jornalorebate.com.br/site/index2.php?

option=com_content&do_pdf=1&id=4421

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aumentou 29%, em 20 trilhões de dólares. Isso significa que a fortuna dos

ricos cresceu duas vezes mais rápido do que a riqueza mundial como um

todo (atualmente estimada em 231 trilhões de dólares).

 A pesquisa do Credit Suisse revela também que os Estados

Unidos foram o maior gerador de riquezas entre as diversas nações do

mundo nos últimos 18 meses, adicionando 4,6 trilhões de dólares para o

total da riqueza mundial. A China foi a segunda, colaborando com 4 trilhões

de dólares, seguida pelo Japão (3,8 trilhões de dólares), Brasil (1,87 trilhão

de dólares) e Austrália (1,85 trilhão de dólares).

O levantamento ainda aponta que atualmente há 84.700 pessoas

no mundo que detém 50 milhões de dólares ou mais – com 35.400 do total 

vivendo nos Estados Unidos. Há ainda 29 mil pessoas cuja fortuna supera os

100 milhões de dólares ou mais; e 2.700 que sozinhas detêm 500 milhões de

dólares ou mais.

De olho na expectativa de forte crescimento de nações

emergentes, como China, Índia e Brasil, o Credit Suisse projeta que a China

(com atualmente um milhão de milionários) e a África devem elevar a

 produção de riquezas em 90% até 2016, para 39,5 e 5,8 trilhões de dólares,

respectivamente. Já a riqueza do Brasil deve dobrar para 8,9 trilhões de

dólares, enquanto a da Índia deve totalizar 9,2 trilhões de dólares.63” 

b) “Brasil tem 1,5 mil pessoas com mais de US$ 50 mi, diz banco

Conforme o relatório, o número de milionários da Europa

ultrapassou o dos EUA, com 37,2% contra 37% do total. O Japão possui 

11% dos milionários mundiais enquanto o número de milionários da China63 Em http://exame.abril.com.br/economia/mundo/noticias/milionarios-e-bilionarios-controlam-

39-da-riqueza-mundial

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chega a 3,4% do total. De acordo com o Credit Suisse, 84.700 pessoas em

todo o mundo possuem um patrimônio pessoal de mais de US$ 50 milhões,

sendo que 1.520 deles estariam no Brasil.

O relatório concluiu também que a riqueza global aumentou 14%,

 passando de US$ 203 trilhões para US$ 231 trilhões, de janeiro de 2010 a

 janeiro de 2011.

(...)

Nos próximos cinco anos a riqueza mundial deve aumentar em

50%, atingindo a marca de US$ 345 trilhões, liderada também pelos

mercados emergentes.64”

Ou seja, o número de pessoas assombrosamente ricas não para

de aumentar, sendo particularmente importante a seguinte informação, acima

reproduzida: “Entre 2010 e 2011 (...) a fortuna dos ricos cresceu duas vezes

mais rápido do que a riqueza mundial como um todo”. O processo de

concentração de riqueza está piorando, e nessa piora ocupa o Brasil posição

de destaque.

Não deveria então causar alguma surpresa, se não revolta e

indignação, que em um mundo no qual há cada vez mais pessoas

descomunalmente ricas, fale-se em eliminar direitos dos mais pobres?

Ora, que alguém acumule patrimônio pessoal da ordem de vários

bilhões haveria, do ponto de vista do interesse coletivo, de ser visto como

algo escandaloso, e não meritório. Em qualquer sociedade que se pretenda

minimamente justa e democrática não deveria ser possível que uma só

pessoa acumulasse licitamente (quer dizer, sem violação à legislação,

especialmente à tributária) bilhões de dólares de fortuna pessoal, ao mesmo64 Em http://economia.terra.com.br/noticias/noticia.aspx?

idNoticia=201110201825_TRR_80369658

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tempo em que outras pessoas nada têm, ou ganham apenas o suficiente

para não morrer de fome, mesmo que trabalhem.

Veja-se que essa afirmação não deve ser vista como um libelo

anticapitalista ou de defesa do comunismo. Pelo contrário, é para a

preservação do sistema capitalista que deveria ser reconhecida a

necessidade de se impor limites aos excessos nocivos, como já pregava

Adam Smith, “pai” do liberalismo econômico, que ficaria horrorizado com a

concentração de poder econômico hoje existente no mundo. Afinal, dizia ele

que “a riqueza de uma nação se mede pela riqueza do povo e não pela

riqueza dos príncipes”.

Bilionários não são, portanto, heróis, e ninguém que mereça a

admiração de outras pessoas se colocaria na posição de acumular, manter e,

especialmente, tentar ampliar patrimônio milhares de vezes superior ao

necessário para se viver toda uma vida com muito conforto e luxo. A atual

“inflação” do número de bilionários é o sinal mais visível de que há algo de

podre no sistema contemporâneo. Há boas razões para que pessoas assim

sejam vistas como inimigos do bem comum, pois trabalham todos os dias

não pelo progresso da humanidade ou pelo desenvolvimento do país, mas

pela subversão do interesse público aos seus interesses privados.

Afinal, além de certo limite o dinheiro perde sua relevância como

meio para aquisição de produtos e serviços, e torna-se apenas a uma

medida de poder. Quanto mais dinheiro se tem, mais poder se possui, o que

é extremamente nocivo à democracia.

De fato, até determinado limiar a acumulação de riqueza é uma

forma de garantir acesso a um padrão mais confortável, ou até luxuoso, devida para si e para seus herdeiros. É a perspectiva compartilhada pela

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maioria das pessoas. Mas entre indivíduos que possuem fortunas de,

digamos, 6,2 e 5,8 bilhões de dólares, não há mais real diferença em termos

de luxo e conforto que possa ser adquirido, pois ambos já possuem acesso a

todo o luxo que quiserem e que há para ser comprado. Não há para eles

sonhos de consumo que não possam ser imediatamente satisfeitos. Não

obstante, ainda assim os dois querem mais, só que não se trata então de

perseguir mais luxo ou conforto, e sim mais poder pessoal.

Grandes impérios bilionários constituem uma ameaça

permanente aos valores democráticos, lição que a humanidade já havia

aprendido, após duas guerras mundiais, mas que foi esquecida, tão grande é

a sedução do poder do dinheiro. Como disse Lorde Acton, “O poder tende a

corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente. Homens poderosos

são quase sempre homens maus”. Grandes fortunas são focos de corrupção,

que se apropriam de parte do estado para alcançar seus propósitos privados.

Graças a isso, políticos passam a ser eleitos não pelo número de votos que

recebem, mas antes disso pela quantidade de dinheiro que conseguem

gastar nas eleições, doado pelos mais ricos.

Um exemplo de tal influência sobre o mecanismo da democracia:

“Eike Batista é tradicionalmente um mão-aberta nas campanhas eleitorais.

Em 2006, doou 1 milhão de reais à campanha de Lula e mais 3,4 milhões de

reais a outros onze políticos, como Roseana Sarney, Sérgio Cabral e

Cristovam Buarque. Suas doações têm a particularidade de ser na condição

de pessoa física, e não em nome das suas companhias, como é a prática do

empresariado. E, agora, o que fará Eike? Decidiu doar 2 milhões de reais às

campanhas de José Serra e Dilma Rousseff (metade para cada uma delas).

 Abrirá o cofre também para várias campanhas nos estados em que seu 

grupo atua.65 ”

65 Em http://veja.abril.com.br/blog/radar-on-line/eleicoes-2010/doacoes-do-mais-rico-de-todos/

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Veja-se que não é talento ou inteligência que distingue um

bilionário. Não há vencedores do Prêmio Nobel bilionários. Einstein,

Wittgenstein e Hannah Arendt, para citarmos alguns exemplos de pessoas

intelectualmente geniais do século XX, não eram nem mesmo milionários66.

Na mesma época em que Bill Gates fundou a Microsoft, havia outros

desenvolvedores de software muito superiores a ele, em termos de

criatividade e originalidade, mas sem a mesma voracidade de se apropriar de

ideias alheias e aproveitar oportunidades. De modo que provavelmente os

verdadeiros gênios consideram que o tempo e energia que precisariam ser 

investidos para acumular e manter enormes fortunas (no valor de bilhões, ao

invés de milhões) seria um desperdício de seus talentos intelectuais, e os

afastariam de suas descobertas e trabalhos.

Um dos exemplos mais notáveis desse tipo de atitude,

completamente incompreensível ao mundo dos negócios, foi o do médico e

cientista Jonas Salk, inventor da vacina contra a pólio, que decidiu não

patentear sua descoberta (exclusividade que lhe proporcionaria uma fortuna),

liberando-a ao domínio público. Indagado sobre isso, ele respondeu: "A

quem pertence a minha vacina? Ao povo! Você pode patentear o sol?"

Bilionários tampouco são estadistas. Na maior parte do tempo,

seus interesses são opostos aos da sociedade. Afinal, para que o bilionário

possa acumular ainda mais riqueza, esta não pode estar sendo distribuída. O

que vai para o bolso do trabalhador escapa, ainda que temporariamente, à

voracidade do bilionário.

Para chegar a bilionário é preciso “pisar” em muita gente, e

66 Wittgenstein, aliás, pertencia a uma família muito rica, de modo que poderia ter sidomilionário, mas abdicou da herança em favor dos irmãos, e adotou um estilo de vida quaseestoico.

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continuar a fazê-lo todos os dias. Como disse Acton, homens bons não

fazem isso. A marca distintiva da personalidade de um bilionário está na

combinação entre um apetite patológico pela acumulação de dinheiro e

poder, e a incapacidade de se importar (dada a ausência de remorso e de

empatia) com o sofrimento criado pelas consequências de seus atos às

outras pessoas. Os talentos do bilionário são, além da perspicácia e da

capacidade de sedução, uma grande força de vontade e firmeza de

propósitos.

Apesar disso tudo, vemos que bilionários costumam ser 

saudados por inúmeras pessoas como verdadeiros heróis, como

“vencedores” e exemplos a serem seguidos. Em parte isso é explicado pelo

fato dos super-ricos poderem pagar, e muito bem, pelos elogios que recebem

da mídia, isso quando o próprio veículo de comunicação não lhes pertence.

Mas esse fato não explica sozinho todo o fenômeno. Ao lado da

exposição permanentemente positiva na grande mídia, há a disseminação da

mentalidade de que “é bom para o país” a existência de bilionários

brasileiros. Para muitas pessoas, o aumento do número de bilionários

brasileiros é sinal de que o país “está chegando lá”, está se desenvolvendo.

Torcem para os bilionários brasileiros como torcem para a seleção brasileira

de futebol ou para a Miss Brasil no concurso de Miss Universo.

O que se passa, nesse caso, é a interiorização do discurso de

dominação na própria psique dos dominados, que passam a repetir esse

discurso como se fosse próprio e não algo aprendido. Sentem orgulho tais

pessoas de seus “senhores”, das pessoas supostamente superiores,

melhores que o comum dos mortais, que justamente por serem tão

superiores tornaram-se tão ricos, ou assim se acredita.

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Não lhes passa pela cabeça que ninguém se torna bilionário por 

ser mais competente ou mais inteligente que os demais, e sim por ser mais

implacável e ardiloso. Não lhes passa pela mente que alguém muito

inteligente de fato pode, se se aplicar a isso e tiver sorte, se tornar rico, mas

que não é essa a diferença que distingue a pessoa que acumulou alguns

milhões daquela que acumulou alguns bilhões.

Tal tipo de mentalidade foi descrita com acuidade por Robert

Tressell na obra “The Ragged Trousered Philanthropists” (literalmente, “Os

Filantropos de Calças Esfarrapadas”67), cujos personagens são

trabalhadores ingleses da construção civil de um século atrás:

“Eu não vejo porcaria de sentido nenhum em falar sempre mau 

dos ricos', disse Harlow por fim. “Sempre teve ricos e pobres no mundo e

sempre vai ter”.

“É claro”, disse Slyme. “Diz na Bíblia que os pobres sempre vão

estar entre nós”.

“Que maldito sistema você acha que nós deveria ter?”, perguntou 

Crass. “Se tudo tá errado, como é que vai ser mudado?” 

Nisso, todos se animaram novamente, e trocaram olhares de

satisfação e alívio. Claro! Não era necessário pensar nessas coisas! Nada

 jamais poderia ser alterado: sempre havia sido mais ou menos da mesma

forma, e sempre seria assim.

“Parece-me que todos vocês DESEJAM que seja impossível 

mudar alguma coisa”, disse Owen. “Sem tentar descobrir se pode ser feito,67 Obra literária disponível, em inglês, na página do Projeto Gutenberg:

http://www.gutenberg.org/ebooks/3608

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vocês convencem a si mesmos que é impossível, e então ao invés de

lamentar, vocês ficam contentes!” 

5.3) A apropriação do estado e a gestação de grandes

fortunas

O “milagre” da multiplicação de bilionários, no mesmo contexto

sócio-econômico em que se defende a eliminação de direitos trabalhistas, é

entretanto apenas o sintoma, e não a causa, dos problemas. Não explica

como foi possível a essas poucas pessoas chegar à posição de acumular 

fortunas desmensuradas.

Os “filantropos de calças esfarrapadas” dentre nós podem

imaginar que tais fortunas foram obtidas graças a grandes doses de talento e

trabalho, mas nada poderia estar mais longe da verdade. Alguma riqueza

pode ser acumulada com o trabalho talentoso, realmente, mas não bilhões

de dólares. Bilhões de dólares é riqueza produzida por toda a sociedade,

para a qual contribuiu o trabalho de milhares ou milhões de pessoas, e que

depois foi tomada por meia dúzia de indivíduos.

A única forma de se chegar a tal brutal concentração de riqueza é

através da apropriação da máquina do estado. É através do mau uso do

estado, com a transformação do Poder Público em mecanismo para a

satisfação de interesses privados, que os super-ricos mantêm e ampliam

suas super-fortunas. É através da deturpação do funcionamento do estado

que toda a sociedade trabalha para o superior benefício de uns poucos.

Essa apropriação da máquina pública para satisfação de

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interesses privados inicia-se com a implantação de um regime tributário

injusto, através do qual, quanto mais rico você for, menos imposto você

paga. Isso é obtido, por exemplo, através da ênfase dada a impostos

indiretos, que oneram o consumo e portanto os mais pobres, da manutenção

de um número muito pequeno de alíquotas do imposto sobre a renda, da

desoneração de grandes fortunas e da leniência para com os ganhos

financeiros e especulativos, preservados de tributação efetiva.

Sobre o tema, alerta o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

(IPEA) na publicação “Justiça Tributária: iniquidade e desafios68”, da qual se

extrai que a participação do rendimento do trabalho na renda nacional vem

caindo no Brasil de forma contínua há décadas. Em 1959/60, a participação

dos trabalhadores na renda nacional era de 56,6%; em 1969/70, 52%; em

1979/80, 50%; em 1989/90, 45%; em 2005, 39,1%.

De acordo com o IPEA, ao divulgar o estudo69:

“Pobres pagam mais imposto que os ricos no Brasil 

Os 10% mais ricos concentram 75% da riqueza do país. Para

agravar ainda mais o quadro da desigualdade brasileira, os pobres pagam

mais impostos que os ricos.

Segundo levantamento feito pelo Ipea (Instituto de Pesquisa

Econômica Aplicada), apresentado hoje (15/5) ao CDES (Conselho de

Desenvolvimento Econômico e Social) reunido em Brasília, os 10% mais

  pobres do país comprometem 33% de seus rendimentos em impostos,

enquanto que os 10% mais ricos pagam 23% em impostos.

68 Ipea, Brasília, maio de 2008.69 Em http://www.ipea.gov.br/005/00502001.jsp?ttCD_CHAVE=382

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"O país precisa de um sistema tributário mais justo que seja

 progressivo e não regressivo como é hoje. Ou seja, quem ganha mais deve

 pagar mais; quem ganha menos, pagar menos", disse o presidente do Ipea,

Marcio Pochmann, durante a apresentação do levantamento, que foi feito por 

 pesquisadores das diretorias de Estudos Sociais, Macroeconomia e Estudos

Regionais e Urbanos, para contribuir na discussão da reforma tributária.

 

Os números do Ipea mostram que os impostos indiretos (aqueles

embutidos nos preços de produtos e serviços) são os principais indutores

dessa desigualdade. Os pobres pagam, proporcionalmente, três vezes mais

ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) que os ricos.

Enquanto os ricos desembolsam em média 5,7% em ICMS, os pobres

 pagam 16% no mesmo imposto.

Nos impostos diretos (sobre renda e propriedade) a situação é

menos grave, mas também desfavorável aos mais pobres. O IPVA (Imposto

sobre Propriedade de Veículos Automotores) tem praticamente a mesma

incidência para todos, com alíquotas variando de 0,5% para os mais pobres

a 0,6% e 0,7% para os mais ricos. Já o IPTU (Imposto sobre Propriedade

Territorial e Urbana) privilegia os ricos. Entre os 10% mais pobres, a alíquota

média é de 1,8%; já para os 10% mais ricos, a alíquota é de 1,4%.

"As mansões pagam menos imposto que as favelas, e estas

ainda não têm serviços públicos como água, esgoto e coleta de lixo", alertou 

o presidente do Ipea.” 

Lembra o IPEA que, de 1979 a 1982, existiam no Brasil 12 faixas

para fins de incidência do Imposto de Renda, com alíquotas de zero a 55%.

Ao invés disso hoje temos apenas quatro alíquotas, sendo a maior delas deapenas 27,5%, que coloca no mesmo patamar classe média, milionários e

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bilionários, com completo desprezo às diferenças de riqueza entre eles.

Tal condição faz do Brasil um dos países com carga tributária

mais injusta e desigual do mundo, como informa a seguinte notícia, de junho

de 201170:

“Brasil tem carga tributária 'leve' para ricos, diz estudo

Um levantamento de uma associação internacional de

consultorias indicou que o Brasil tem uma carga tributária considerada leve

 para as classes mais altas.

Segundo a rede UHY, com sede em Londres, um profissional no

Brasil que recebe até US$ 25 mil por ano – cerca de R$ 3.300 por mês –

leva, após o pagamento de imposto de renda e previdência, 84% do seu 

salário para casa.

Já os profissionais que recebem US$ 200 mil por ano – cerca de

R$ 26.600 por mês – recebem no final cerca de 74% de seu pagamento.

Entre 20 países pesquisados pela UHY, essa diferença de cerca

de 10 pontos percentuais é uma das menores.

Na Holanda, onde um profissional na faixa mais baixa recebe um

valor líquido semelhante ao do Brasil após os impostos e encargos (84,3%),

os mais ricos levam para casa menos de 55% do salário.

 A lógica também se aplica a todos os países do G7, o grupo de

 países mais industrializados do mundo (EUA, Canadá, Japão, Grã-Bretanha,

70 Em http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/06/110621_impostos_estudo_pu.shtml

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 Alemanha, França e Itália).

Nos EUA, enquanto os mais ricos levam para casa 70% do

salário, os profissionais na faixa dos US$ 25 mil anuais deixam apenas um

décimo da renda para o governo e a previdência.

O representante da UHY no Brasil, o superintendente da UHY 

Moreira Auditores, Paulo Moreira, disse que a pesquisa revela o caráter 

“esdrúxulo” da carga tributária brasileira.

Com grande parte dos impostos sendo coletada de forma

indireta, a carga tributária brasileira total supera a tributação à pessoa física,

e é estimada em 41%.

Como esses tributos circulam embutidos nas mercadorias e

serviços consumidos pelos contribuintes, aplicam-se de forma igual a ricos e

 pobres, explica.

Para Moreira, entretanto, essa suposta “justiça” tributária é

ilusória, porque as classes mais altas têm formas de evitar o pagamento de

impostos sobre consumo fazendo compras no exterior ou recorrendo a

outros artigos de consumo.” 

Estudo anterior já apontava para a mesma realidade71:

“Brasil tem só 54ª maior alíquota de IR para mais ricos, indica

estudo

71 Emhttp://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/10/101006_impostos_estudos_kpmg_rw.shtml

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Um estudo compilado pela consultoria internacional KPMG indica

que a alíquota máxima do imposto de renda no Brasil é apenas a 54ª mais

alta entre 81 países analisados.

  A análise mostra, porém, que a renda a partir da qual essa

alíquota máxima é aplicada no Brasil é uma das mais baixas em relação aos

 países verificados, o que mostra que enquanto em muitos países os ricos

 pagam bem mais imposto do que a classe média, no Brasil essa taxação é

igual.

 A alíquota máxima do imposto de renda no Brasil, de 27,5%, é

aplicada a partir de um rendimento mensal de R$ 3.743,19 (equivalente, na

época da formulação do estudo, a uma renda anual de US$ 25.536).

 Apenas dez países entre os 70 nos quais há um teto para a

aplicação da alíquota máxima têm valores mais baixos para a renda sobre a

qual ela é aplicada.

Maiores alíquotas

 A Suécia é o país com a maior alíquota superior (56,6%), mas ela

só é aplicada sobre rendas maiores do que US$ 71.198 anuais. O segundo

 país com maior alíquota, a Dinamarca (55,4%) a aplica para rendimentos

acima de US$ 71.898 por ano.

Outros quatro países têm alíquotas máximas iguais ou maior que

50% - Holanda (52%), Áustria, Bélgica e Grã-Bretanha (todos com alíquota

máxima de 50%).

Desses, a Bélgica é o país que tem a renda mais baixa sobre a

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qual a alíquota máxima é aplicada (US$ 43.456 anuais), enquanto a Grã-

Bretanha tem o maior valor (US$ 225.904 por ano).

Na América Latina, o Chile é o país com a alíquota máxima mais

alta (40%), aplicada sobre rendimentos a partir de US$ 130.429 anuais. A

  Argentina tem uma alíquota máxima de 35%, aplicada sobre rendas

superiores a US$ 30.534 anuais, e o México taxa em 30% as rendas maiores

que US$ 30.811 por ano.

Entre os países do grupo Bric, o Brasil tem a 3ª maior alíquota

máxima, atrás dos 45% da China (para rendas a partir de US$ 177.253

anuais) e 30% da Índia (rendas a partir de US$ 17.171). A Rússia tem uma

alíquota única de 13% para qualquer rendimento.” 

E o que ocorre com os recursos públicos, após terem sido

recolhidos de forma desproporcional e injusta? São eles

preponderantemente revertidos em favor dos mais pobres ou da maioria da

população?

Não. A maior parte do orçamento público (no que exceda a

despesas incontornáveis, fixas), no Brasil e em outros países, tem sido

apropriada e desviada, sob forma de pagamento de encargos da dívida

pública, em favor do sistema financeiro internacional, que é o espaço no qual

fortunas bilionárias são construídas diariamente.

Veja-se, nesse sentido, a evolução no Brasil da dívida pública

mobiliária federal interna (DPMFi), de responsabilidade do Tesouro Nacional:

em 1990, a dívida estava em R$ 6,5 milhões; em 1995, R$ 133,9 bilhões; em

2000, R$ 634,4 bilhões; em 2005, R$ 1 trilhão; em 2007, R$ 1,39 trilhão; eem fevereiro de 2011, R$ 1,6 trilhão, o que significa mais do que todo o

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orçamento da União Federal em 2010.

Ou seja, em vinte anos a dívida pública interna aumentou de R$

6,5 bilhões para astronômicos 1,6 trilhão, um aumento de mais de 24.000%!

Sobre o montante atual da dívida, esclarece a seguinte

reportagem do jornal O Estado de São Paulo de 24 de março de 2011:

"Dívida Interna do governo sobe para R$ 1,6 trilhão em fevereiro -

 A dívida pública mobiliária federal interna (DPMFi) atingiu R$ 1,586 trilhão

em fevereiro, segundo os dados divulgados pelo Tesouro Nacional.

O crescimento da dívida foi de 2,82% em relação a janeiro,

quando somou R$ 1,542 trilhão. A incorporação de juros no período foi de

R$ 16,238 bilhões.

O prazo médio da DPMFi caiu de 3,54 anos, em janeiro, para

3,50 anos, em fevereiro, segundo dados divulgados há pouco pelo Tesouro

Nacional. A parcela da dívida a vencer em até 12 meses também caiu de

24,81% em janeiro para 24,28% em fevereiro”.

Tal dívida é representada preponderantemente por títulos

emitidos pelo Tesouro. A maior parte dos títulos da dívida pública,

aproximadamente a metade deles, está em poder de bancos nacionais e

estrangeiros, e outro tanto está com os fundos de pensão e os fundos de

investimento.

A parcela da população brasileira que participa de operações com

esses títulos, ou que possui aplicações em fundos que os negociam, é

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ínfima, em torno de 2,7%72, ou seja, são justamente os mais ricos do país,

com capacidade de se inserir na ciranda financeira. E destes 2,7% da

população, muito poucos possuem participação em montante expressivo, da

ordem de centenas de milhares ou milhões de reais.

De modo que, em última análise, a maior parte dos títulos da

dívida pública está nas mãos, através de bancos e fundos, de pouquíssimas

pessoas.

Não deveria haver aí qualquer revelação assombrosa, mas a

mera enunciação de um fato óbvio: quem mais possui títulos é quem mais

possui dinheiro. Quanto mais dinheiro você tem, mais desses títulos pode

adquirir, e enquanto o Governo puder continuar a pagá-los (particularmente

os encargos sobre eles), mais lucro você terá. Quem não tem dinheiro, não

entra no jogo.

O tema foi esclarecido por recente levantamento divulgado pelo

Tesouro Nacional:

“Bancos e fundos detêm a maior parte dos títulos públicos

 A maior parte dos títulos da Dívida Pública Mobiliária Federal 

interna (DPMFi) está nas mãos dos bancos. Dados divulgados hoje pela

 primeira vez pelo Tesouro Nacional mostram que os bancos detêm 35,4% do

total da DPMFi, o equivalente a R$ 536 bilhões. Essa participação, no

entanto, já foi maior: em dezembro equivalia a 37,7% do estoque da DPMFi.

72 “É interessante ressaltar também que, segundo a Comissão de Valores Mobiliários, os participantes de Fundos de Investimento (que aplicam em títulos da dívida interna) são 5milhões, ou seja, 2,7% da população brasileira.” Em Boletim Auditoria Cidadã da Dívida, n.15, 07 de setembro de 2006, disponível em www.divida-auditoriacidada.org.br/boletins/Boletim15.doc

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Os fundos de investimento figuram em segundo lugar na lista dos

maiores detentores dos papéis do governo. Em janeiro, eles detinham R$ 

475,27 bilhões, ou 31,3%. Os fundos de previdência (fechados e abertos)

estão em terceiro lugar com 14,8% (R$ 224 48 bilhões) do total da dívida. Os

investidores estrangeiros (não residentes no País) detêm 12% do total da

DPMFi. Essa parcela em dezembro equivalia a 11,6% (R$ 182 bilhões). Já

as seguradoras detêm 4%, com R$ 60,99 bilhões. Outros investidores não

especificados pelo Tesouro detêm 2,5% da dívida, com R$ 37,43 bilhões em

títulos.73”

Cabe esclarecer que grande parte dos fundos de investimento

está vinculada diretamente a bancos, de modo que a participação real destes

é maior do que 35,4%.

A dívida crescente precisa, é claro, ser paga, sob a forma de

 juros, encargos e amortizações. É para isso que ela existe.

No Brasil, do orçamento da União Federal em 2010, nada menos

do que R$ 635 bilhões foram revertidos para pagamento de juros,

amortização e refinanciamento da dívida pública, o que representa 44,93%

de todo o gasto da União no ano74. Para efeito de comparação, em favor da

saúde no mesmo ano de 2010 destinou-se 3,91% do orçamento, e para a

educação, 2,89%. Para toda a Previdência Social (pública e privada)

destinou-se 22,12%.

A situação da dívida pública de estados e municípios brasileiros é

também dramática. A dívida consolidada dos estados passou de R$ 93,24

73 Em http://ne10.uol.com.br/canal/cotidiano/economia/noticia/2011/02/22/bancos-e-fundos-detem-a-maior-parte-dos-titulos-publicos-258426.php. Sobre o mesmo tema, “A base deinvestidores da Dívida Pública Federal no Brasil”, emhttp://www.tesouro.fazenda.gov.br/divida_publica/downloads/Parte%203_5.pdf 

74 fonte: Auditoria Cidadã da Dívida, em http://www.divida-auditoriacidada.org.br/

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bilhões em 1998 para R$ 184 bilhões em 2000, chegando a R$ 404 bilhões

em 201075. Apenas no ano de 2006, por exemplo, o estado do Rio Grande do

Sul gastou em juros e amortizações de sua dívida R$ 1,7 bilhão, o que

representou 11,52% das despesas totais naquele ano, pouco menos que

todo o gasto com educação (12,31%), e mais do que com a saúde pública

(9,99%)76.

A propósito, diante desse quadro mostra-se nada menos que

risível a pregação conversadora, permanentemente em voga, sobre os

"gastos em excesso do governo" e o "rombo da Previdência", ou quanto à

necessidade de "contenção de despesa pública". Ninguém jamais ouviu os

porta-vozes do neoliberalismo alertando quanto ao gasto excessivo com

 juros e amortizações da dívida, que consomem praticamente metade de todo

o orçamento da União. Ora, se você gasta 44,93% de seu orçamento em

uma coisa, e 22,12% em outra, onde qualquer pessoa minimamente sensata

irá dizer que está o "rombo" maior, mais preocupante?

Para pessoas que dizem se preocupar com despesa pública

excessiva, soa extraordinário que metade do orçamento lhes passe

despercebido.

A explicação para tal "esquecimento" é simples: a pregação

neoliberal em torno da necessidade de conter o "rombo da Previdência" e o

"excesso de gastos com funcionalismo" tem por finalidade permitir que sobre

mais dinheiro público para pagamento de juros e amortizações. Quanto mais

se gastar com servidores, com saúde e educação (quer dizer, com serviço

público, que beneficia milhões de pessoas), menos haverá para ser remetido

ao sistema financeiro, que detém e negocia os títulos da dívida.

75 Fonte:http://www.tesouro.fazenda.gov.br/lrf/downloads/financas_estaduais_divida_liquida.pdf 

76 Fonte: http://www.divida-auditoriacidada.org.br/.../Divida%20RS.doc/download

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Vale lembrar que, no caso brasileiro, a lucratividade

proporcionada é sem paralelo no mundo, pois há muitos anos o pais mantem

a mais alta taxa de juros do planeta, proporcionando fabulosas fortunas às

pessoas, já estupendamente ricas, que possuem, compram e negociam os

títulos da dívida brasileira (a maior parte dos quais pós-fixados, remunerados

com base na taxa Selic). De fato, "O país lidera, com folga, o ranking 

mundial da taxa mais alta do mundo. (...) A diferença entre o segundo

colocado, a Hungria, ficou ainda mais larga este ano [2011]. É quase três

vezes maior.77 "

A propósito, foi reconhecido no relatório final78 da Comissão

Parlamentar de Inquérito da Dívida Pública do Congresso Nacional que "o

fator mais importante para o crescimento da dívida pública foram as altas

taxas de juros."

De modo que a generosidade brasileira não conhece limites.

Somos a nação mais generosa do mundo para com os super-ricos. Mas para

manter tal transbordante generosidade, convoca-se os trabalhadores a abrir 

mão de seus direitos, supondo-se com isso, obviamente, que os direitos dos

trabalhadores são menos importantes que o direito dos rentistas de continuar 

aproveitando título remunerados com base na mais alta taxa de juros do

planeta.

A dívida pública do Brasil e outros países emergentes tornou-se,

enfim, um simples mecanismo de inversão, em favor dos super-ricos, da

maior parte da riqueza excedente produzida pela população desses países,

77 Em http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2011/08/noticias/a_gazeta/economia/944692-brasileiro-sofre-o-peso-de-ter-o-juro-mais-alto-do-mundo.html

78 A íntegra do relatório da CPI do Congresso Nacional pode ser obtida emhttp://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/parlamentar-de-inquerito/53a-legislatura-encerradas/cpidivi/relatorio-final-aprovado

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que vem experimentando crescimento econômico superior ao dos países

tradicionalmente centrais.

Então não é de admirar que o número de bilionários venha

crescendo ano após ano. O Brasil, pelo menos, tem feito de forma exemplar 

sua parte para viabilizar tal forma de "crescimento", destinando-lhes algumas

centenas de bilhões de reais por ano, todos os anos.

Mas a dívida pública não é a única forma de apropriação, pelos

super-ricos, da riqueza produzida pelo país. Sempre que necessário, apela-

se para uma forma ainda mais direta de transferência, mediante operações

de "salvamento" com dinheiro público a grandes corporações privadas -

bancos e multinacionais - que venham a sofrer, por algum motivo, prejuízo.

Em 2008, por exemplo, diversas das maiores empresas

brasileiras experimentaram grandes perdas em decorrência de suas

temerárias operações no mercado especulativo, ao qual vinham se

dedicando com mais afinco que a seus negócios principais.

Exemplo da prioridade dada ao ganho especulativo, naquele ano,

foi a farra da Sadia no mercado de derivativos:

“Sadia perde R$ 760 milhões no mercado com crise internacional 

  A Sadia anunciou ontem que liquidou antecipadamente

operações realizadas no mercado financeiro relacionadas à variação do

dólar, em razão "da severidade da crise internacional e da alta volatilidade da

cotação da moeda norte-americana".

Com isso, a Sadia se tornou a primeira empresa brasileira não-

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financeira a admitir perda ligada diretamente à crise nos mercados

financeiros. Analistas esperam perdas similares em outras empresas.

(…)

 A opinião parece ser unânime entre os analistas. De acordo com

Renato Prado, analista do Banco Fator, a Sadia errou em seu planejamento

financeiro ao assumir posição maior do que deveria.

"Teremos uma conferência com a empresa amanhã [hoje] para

entender melhor, mas a impressão é que se trata de uma empresa de

alimentos operando numa área [mercado financeiro] que não é de sua

expertise", diz Prado. Isso porque a operação feita no mercado financeiro foi 

superior às necessidades de proteção das atividades da Sadia expostas à

variação cambial.79” 

À época o então Presidente Lula chegou a declarar, referindo-se

ao caso da Sadia e da Aracruz (que experimentou, pelos mesmos motivos,

perdas ainda maiores em 2008) que “os empresários já não se contentavam

de ganhar o que estavam ganhando e acharam que era possível ganhar um

 pouco mais, fazendo trambique80 ”.

Não causou surpresa, então, que ao final do ano de 2008 a Sadia

tenha fechado o exercício com prejuízo de R$ 2,5 bilhões. O prejuízo da

Aracruz no ano foi maior, R$ 4,2 bilhões, dos quais R$ 2,73 bilhões

decorrentes de perdas com derivativos81.

79 Em http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u449124.shtml80 “Presidente Lula chama especuladores de trambiqueiros - O presidente Lula chamou de

trambiqueiros os empresários brasileiros que, segundo ele, quiseram ganhar dinheiro fácilno mercado financeiro, aumentando o tamanho da crise no país. Ele referiu-se aosempresários brasileiros que aplicaram em derivativos, em discurso nesta quinta-feira noSeminário Empresarial Brasil-Turquia. Lula afirmou que “os empresários já não secontentavam de ganhar o que estavam ganhando e acharam que era possível ganhar um pouco mais, fazendo trambique”. Fez referência a “algumas empresas importantes” quetiveram problemas sérios com isso. Leia-se: Sadia e Aracruz.” Emhttp://economiaclara.wordpress.com/2009/05/22/trambiqueiros/

81 Em http://oglobo.globo.com/economia/mat/2009/03/27/aracruz-tem-prejuizo-de-4-2-bilhoes-em-2008-755028572.asp

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Para melhor compreensão do que ocorreu com Sadia e Aracruz,

mostra-se pertinente a seguinte declaração do bilionário Warren Buffett, dada

em 2002:

"...vejo os derivativos como bombas relógio, tanto para as partes

que negociam com eles quanto para o sistema econômico. (...) Outro

 problema sobre derivativos é que eles podem aumentar problemas que uma

empresa venha a experimentar em por motivos completamente diversos. (...)

Imagine-se então que uma empresa é rebaixada por causa de adversidades

em geral e seus derivados instantaneamente atingem seu vencimento,

impondo uma demanda inesperada e enorme de apresentação de garantia

em dinheiro à empresa. A necessidade de atender a essa demanda pode,

então, jogar a empresa em uma crise de liquidez que poderá, em alguns

casos, desencadear rebaixamentos ainda maiores. Tudo isso torna-se uma

espiral que pode levar a um colapso da empresa"  (apud Gérard Duménil e

Dominique Lévy).

E qual foi a solução encontrada para compensar o rombo criado

pelas perdas decorrentes da especulação na ciranda financeira, tanto pela

Sadia quanto pela Aracruz? Fusão entre Sadia e Perdigão, e aquisição da

Aracruz pela Votorantim. Com um detalhe importante: ambas as operações

viabilizadas pela injeção de enorme quantidade de dinheiro público:

“Ainda no segmento alimentício, o BNDES adquiriu R$ 750 

milhões em ações ordinárias da Brasil Foods, oriunda da fusão entre a Sadia

e a Perdigão.

O BNDES liberou também R$ 2,4 bilhões para que o grupo

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Votorantim incorporasse a Aracruz, formando a Fibria, na área de celulose.82”

Incrível a coincidência, quase perfeita, entre o valor dos prejuízos

experimentados pela Sadia e Aracruz com a especulação em derivativos, e a

quantia de dinheiro público entregue para financiar os “socorros”.

Justificou-se tais operações à sociedade como sendo necessárias

para evitar “um mal maior”, com a quebra de empresas importantes à

economia nacional.

Curiosamente, decorre de tal justificativa que, enquanto a

empresa está a ganhar grande quantidade de dinheiro na especulação

financeira ou por qualquer outro meio, a questão é tida como exclusivamente

privada, e não interessa a ninguém senão aos donos. Mas quando a

empresa perde grande quantidade de dinheiro na especulação financeira, o

problema de privado torna-se público, alardeando-se que há risco de

desaparecimento de empregos, e promove-se a injeção de dinheiro público.

Ou seja, ninguém sustenta que quando as mesmas empresas

estão experimentando lucros bilionários, o interesse também é público, e tais

companhias devem entregá-lo à sociedade.

Nesse sentido, em 2008 a Aracruz, como já dito, fechou com

prejuízo de R$ 4,19 bilhões, tendo sido utilizados quase dois bilhões e meio

de dinheiro público para salvá-la. No ano anterior (2007), entretanto, ela

havia fechado com lucro de R$ 1 bilhão83.

Ora, em 2007 não foi montada operação alguma para distribuir tal

82 Em http://m.folha.uol.com.br/mercado/936220-operacao-do-pao-de-acucar-esta-entre-as-3-maiores-do-bndes.html

83 Em http://www.estadao.com.br/noticias/economia,aracruz-tem-lucro-de-r104-bilhao-em-2007,107739,0.htm

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lucro extraordinário à sociedade. De modo que, pelo visto, o prejuízo

bilionário é de interesse público, mas o ganho bilionário não. Enquanto os

donos da empresa estão embolsando fortunas, isso diz respeito apenas a

eles e a ninguém mais; quando a empresa experimenta prejuízo, isso

interessa a toda a sociedade.

Registre-se que boa parte do dinheiro público usado em tais

operações de salvamento deriva, ironicamente, do Fundo de Amparo do

Trabalhador (FAT), do qual provem expressiva parcela dos recursos

distribuídos pelo BNDES. De modo que ao invés de se amparar os

trabalhadores, amparam-se os super-ricos.

Também chama a atenção, nas ocasiões em que tais operações

de salvamento com dinheiro público são orquestradas, que

momentaneamente silenciam-se as vozes que estão sempre a louvar as

maravilhas da livre concorrência, do livre mercado, da competição e da não

intervenção do estado na economia. Em tais horas, essas mesmas pessoas

aparentemente não veem problema algum em o estado realizar uma

contundente e multimilionária intervenção na economia, interferindo no livre

mercado.

Como resultado, temos que os “trambiques” (para usarmos a

expressão presidencial) de 2008 restaram completamente recompensados.

Os seus responsáveis, os super-ricos por trás das empresas, não

experimentaram prejuízo algum, dado que toda a perda sofrida no mercado

financeiro foi repassada aos cofres públicos.

Na verdade, no caso da Sadia, não apenas seus donos não

experimentaram prejuízo como obtiveram, ao fim e ao cabo, algum lucro,dado que em razão da injeção de dinheiro do BNDES, mediante compra de

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ações, estas acabaram sendo adquiridas por preço superior ao de mercado,

que naquele momento encontrava-se, compreensivelmente, em patamar 

baixo.

Não se imagine, entretanto, que tal generosa e enérgica

intervenção do estado na economia, só que em favor dos super-ricos, seja

exclusividade brasileira. Pelo contrário, o exemplo mais extraordinário -

quase inacreditável - da implementação do mecanismo de socialização dos

prejuízos e privatização dos lucros bilionários foi trazido à tona muito

recentemente nos Estados Unidos, como informa a seguinte reportagem de

201184:

“UM ASSALTO DE 16 TRILHÕES DE DÓLARES

  A atenção da opinião pública internacional está centrada no

acordo pírrico firmado entre Barack Obama e o Congresso mediante o qual o

  presidente se compromete a aplicar um duro programa de ajuste fiscal,

baseado no corte de gastos sociais (saúde, educação, alimentação) e infra-

estrutura de 2,5 trilhões de dólares, porém, preservando, como exige o Tea

Party, o nível atual do gasto militar e sua eventual expansão. Em troca disso,

a Casa Branca recebeu a autorização para elevar o endividamento dos

Estados Unidos até 16,4 trilhões de dólares, cifra superior em cerca de 2 

trilhões ao PIB do país. Com isso se espera – confiando na “magia dos

mercados” – superar a crise da dívida pública e reativar a exaurida economia

norte-americana.

(...) O debate sobre o possível calote dos EUA eclipsou por 

completo um escândalo financeiro de inéditas proporções: em 21 de junho

 passado, conheceu-se o resultado de uma auditoria integral realizada pelo

84 Em http://www.jornalabsoluto.com.br/detartigo.php?idartigo=5095

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Escritório Governamental de Prestação de Contas (Government 

 Accountability Office, GAO, na sigla em inglês) no Federal Reserve (Fed), o

banco central dos EUA, a primeira que se pratica sobre a citada instituição

desde que foi criada, em 1913. Os resultados são assustadores: em um

 prazo de pouco mais de dois anos e meio, entre 1º de dezembro de 2007 e

21 de julho de 2010, o Fed concedeu empréstimos secretos a grandes

corporações e empresas do setor financeiro de 16 trilhões de dólares, uma

cifra superior ao PIB dos EUA, que em 2010 foi de 14,5 trilhões de dólares, e

mais elevada que a soma dos orçamentos do governo federal nos últimos

quatro anos.

E não só isso: a auditoria revelou também que 659 bilhões de

dólares foram dados a algumas das instituições financeiras beneficiadas

arbitrariamente por este programa para que administrassem o multimilionário

 pacote de salvação dos bancos e corporações, oferecido como mecanismo

de ”saída” da nova crise geral do capitalismo. Desse gigantesco total, cerca

de 3 trilhões foram destinados a socorrer grandes empresas e entidades

financeiras na Europa e na Ásia. O resto foi orientado para o resgate de

corporações estadunidenses, encabeçadas pelo Citibank, o Morgan Stanley,

Merrill Lynch e o Bank of America, entre as mais importantes.

(...)

Conspiração de silêncio - O escândalo revelado pela auditoria

não teve quase nenhuma repercussão nos Estados Unidos. O presidente do

Fed, Ben Bernanke, se fez de desentendido e expressou que em momentos

como o que se temia o calote nacional o importante era resguardar a

credibilidade do Fed e do sistema monetário estadunidense. Apesar de o

GAO ser um órgão de apoio aos trabalhos do Congresso, as reações de

representantes e senadores à divulgação foram do mais absoluto e imoral 

silêncio.(...)

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Esclarecimento: o GAO é uma agência independente e não

 partidária que trabalha para o Congresso dos Estados Unidos. Sua missão é

 pesquisar a forma pela qual o governo federal utiliza os dólares de seus

contribuintes. O chefe do GAO é o Procurador Geral dos Estados Unidos e é

designado por um período de 15 anos pelo presidente a partir de uma lista

de candidatos elaborada pelo Congresso. Seu chefe atual é Gene L. Dodaro,

que havia sido nomeado pelo presidente Barack Obama em setembro de

2010 e confirmado no cargo em dezembro do mesmo ano pelo Senado.

Entre outras coisas, a auditoria estabeleceu que o Federal Reserve “carece

de um sistema suficientemente abrangente para tratar de casos de conflitos

de interesses, apesar de existirem sérios riscos de abuso nesse sentido. De

fato, segundo essa auditoria, o Fed emitiu dispensas de conflito de

interesses a favor dos funcionários e contratistas privados a fim de que

  pudessem manter seus investimentos nas mesmas corporações e

instituições financeiras que recebiam empréstimos de emergência”.

“Por exemplo, o CEO do JP Morgan Chase cumpria funções na

diretoria do Fed em Nova York, enquanto seu banco recebia mais de 390 

bilhões de dólares em ajuda financeira por parte do Federal Reserve. Além

do mais, o JP Morgan Chase atuava como um dos bancos de compensação

 para os programas de empréstimos de emergência do Fed”.

“Outro achado perturbador do GAO é o que refere que no dia 19

de setembro de 2008 o senhor William Dudley, presidente do Fed de Nova

York, recebeu uma dispensa para que pudesse conservar seus

investimentos na AIG (American International Group, líder mundial no campo

dos seguros) e na GE (General Eletric), enquanto essas companhias

recebiam fundos de resgate. Uma razão pela qual o Fed não obrigou Dudley 

a vender suas ações, segundo a auditoria, foi porque tal ação poderia ter criado a aparência de um conflito de interesses”.

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“A investigação também revelou que o Fed terceirizava a

contratistas privados, como o JP Morgan Chase, Morgan Stanley e Wells

Fargo, a maioria de seus programas de empréstimos de emergência. Essas

mesmas firmas também recebiam bilhões de dólares do Fed por 

empréstimos concedidos a taxas de juros próximas de zero”.

Os principais beneficiários desses empréstimos – concedidos

entre 1º de dezembro de 2007 e 21 de julho de 2010 – são os seguintes:

Citigroup: $2.5 trilhões

Morgan Stanley: $2.04 trilhões

Merrill Lynch: $1.949 trilhões

Bank of America: $1.344 trilhões

Barclays PLC (Reino Unido): $868 bilhões

Bear Sterns: $853 bilhões

Goldman Sachs: $814 bilhões

Royal Bank of Scotland (Reino Unido): $541 bilhões

JP Morgan Chase: $391 bilhões

Deutsche Bank (Alemanha): $354 bilhões

UBS (Suíça): $287 bilhões

Credit Suisse (Suíça): $262 bilhões

Lehman Brothers: $183 bilhões

Bank of Scotland (Reino Unido): $181 bilhões

BNP Paribas (França): $175 bilhões

Wells Fargo & Co. $159 bilhões

Dexia SA (Bélgica) $159 bilhões

Wachovia Corporation $142 bilhões

Dresdner Bank AG (Alemanha) $135 bilhõesSociete Generale SA (França) $124 bilhões

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Outros: $2,6 bilhões

Total: 16.115 trilhões de dólares.” 

A propósito, a “conspiração de silêncio” mencionada na

reportagem atingiu, inclusive, o Brasil. Basta pesquisar na internet para

verificar que o assunto não foi abordado com destaque por quaisquer dos

principais veículos de comunicação do país, como Veja, Estado, Folha,

Globo, etc., mas apenas por veículos alternativos, não obstante o caráter 

impactante da matéria e a seriedade da fonte da informação (um

departamento do próprio governo norte-americano).

Veja-se que, na mesma época em que circulou de forma bastante

limitada a notícia, os principais jornais e revistas brasileiros reproduziam

todos os dias reportagens sobre a negociação em torno da elevação do teto

da dívida pública norte-americana. Mostra-se então perturbador, além de

profundamente significativo, que tenham na mesma ocasião preferido

permanecer em silêncio (deixando de informar a população) sobre uma ajuda

secreta a bancos em valor superior a toda a dívida norte-americana, e

superior inclusive a todo o PIB norte-americano.

O que a notícia e a conspiração de silêncio em torno dela revelam

é que a ajuda pública aos super-ricos se dá à margem de qualquer controle

ou interferência da sociedade e dos mecanismos de regulação do sistema

democrático, incluindo-se aí os veículos de comunicação em massa. Quando

a revelação é por demais comprometedora, suprime-se até mesmo o acesso

à informação.

5.4) Sem compensações à sociedade

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Também causa perplexidade que os socorros financeiros aos

super-ricos, com vultosas quantias de dinheiro público, ocorrem sem que

seja exigida pelos governantes que os concedem qualquer tipo de

contrapartida em favor da sociedade.

Por exemplo, no caso da Sadia/BR Foods, acima citado, os

milhões do BNDES foram concedidos, viabilizando a criação da nova

empresa (e eliminando todas as perdas privadas sofridas no mercado

especulativo em 2008) sem que fosse exigido pelo governo qualquer tipo de

contrapartida social, como por exemplo a manutenção da quantidade de

empregos ou a introdução de melhorias nas condições de saúde e

segurança no trabalho.

Não obstante, tais melhorias se faziam absolutamente urgentes e

indispensáveis, dadas as péssimas condições de trabalho existentes em

diversos dos frigoríficos da empresa, situação que vem sendo enfrentada

pelo Ministério Público do Trabalho e pela Justiça do Trabalho há vários

anos. Nesse sentido, veja-se a seguinte notícia, de julho de 201185:

“TST mantém decisão de VT de Joaçaba que proíbe BR Foods

de exigir horas extras

Em uma sociedade que se pretende livre, justa e solidária (CF,

art. 3º, I), incumbe ao empregador diligente, sob a premissa da dignidade da

  pessoa humana (CF, art. 1º, III), promover meio ambiente do trabalho

saudável, para que o trabalhador possa executar as suas atividades em local 

que não lhe ceifem saúde e vida.85 Em http://trt-12.jusbrasil.com.br/noticias/2778950/tst-mantem-decisao-de-vt-de-joacaba-

que-proibe-br-foods-de-exigir-horas-extras

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Estas palavras fazem parte de acórdão relatado pelo ministro

 Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, do Tribunal Superior do Trabalho,

que manteve uma tutela antecipada (um tipo de decisão provisória),

concedida pela juíza da Vara do Trabalho de Joaçaba (SC), determinando à

BRF Brasil Foods S.A a observância de normas mínimas destinadas à

 preservação da saúde em um de seus frigoríficos.

  A ação civil pública que gerou a decisão foi ajuizada pelo

Ministério Público do Trabalho em novembro de 2009, mas o pedido de

tutela antecipada foi indeferido. Esse tipo de pedido visa antecipar os efeitos

  práticos que decorreriam do julgamento de mérito, e ocorre quando o

magistrado entende que poderia haver greve prejuízo à parte se a medida

não fosse tomada. Na audiência inicial, cerca de dois meses depois da

  primeira negativa, o procurador do trabalho pediu reconsideração do

despacho que negou a tutela, o que foi aceito pela juíza Lisiane Vieira.

Ela publicou extenso e analítico despacho, determinando à BR 

Foods a implantação de um sistema de pausas para descanso de 8 minutos

a cada hora trabalhada, que se abstenha de exigir horas extras dos

empregados lotados na unidade de Capinzal e, ainda, para que notifique as

doenças profissionais comprovadas ou objeto de suspeita, encaminhando o

trabalhador à Previdência Social para avaliação. De acordo com a

magistrada, essas medidas servem para que sejam minimizados os efeitos

nocivos do trabalho nas condições narradas e mantida a saúde do

trabalhador.

  A juíza justificou seu ato ao afirmando que atua na VT de

Joaçaba desde março de 2008, sendo que, desde então, instruiu e julgou mais de 300 ações indenizatórias propostas por empregados e ex-

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empregados da BR Foods em razão de doenças adquiridas ou agravadas

 pelas condições de trabalho a que estavam submetidos. A grande maioria,

segundo a decisão, em razão de patologias conhecidas por LER (Lesão por 

Esforços Repetitivos) ou DORT (Distúrbios Osteomusculares Relacionados

ao Trabalho), com relação de causalidade confirmada.

Fundamentação científica

No despacho de 31 páginas, integralmente transcrito pelo

acórdão do TST, a juíza Lisiane inclui extensa fundamentação científica

sobre o fenômeno das LER/DORT, abordando desde o diagnóstico e as

causas ergonômicas até os métodos de análise do nexo causal. Na

caracterização da exposição aos fatores de risco, afirma ela, alguns

elementos são importantes, como a região anatômica exposta, a intensidade

dos fatores de risco, a duração do ciclo de trabalho, a distribuição das

 pausas e o tempo de exposição.

 Além disso, nas diversas perícias realizadas em outras ações, a

magistrada verificou que a empresa, ao contrário do alegado em sua

contestação, não vem promovendo medidas suficientes e adequadas à

eliminação dos fatores de risco para desenvolvimento de LER/DORT listados

na IN INSS 98/2003. Os peritos nomeados pela magistrada também

constataram haver poucos rodízios de tarefas e, quando isso acontecia, era

feito de forma equivocada, já que os grupos musculares exigidos para a

nova atividade continuavam sendo os mesmos.

Unidade coleciona mais de 1,2 mil afastamentos

 A empresa atacou a tutela antecipada por meio de mandado desegurança junto ao TRT/SC que, primeiro por liminar, depois por julgamento,

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suspendeu os efeitos da decisão inicial sob argumento de que, por cautela,

se deveria aguardar a finalização de perícias específicas da ação em trâmite,

 já determinadas pela própria juíza. Inconformado o MPT recorreu ao TST 

através de recurso ordinário, obtendo da corte superior a manutenção da

decisão provisória da VT de Joaçaba.

O voto do ministro Fontan Pereira levou em conta que a

fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), a pedido do MPT,

havia feito minuciosa inspeção naquela unidade da BR Foods. Nela, foi 

constatado que o número de afastamentos superiores a 15 dias, por motivo

de doença, chegavam a 1.277 casos, 20 % do total de trabalhadores, sendo

que 60% deste grupo se encontrava afastado por mais de um ano.

 A inspeção também apontou que 450 desses casos são doenças

do sistema nervoso e 248 do sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo,

casos em que se reconhece o nexo técnico epidemiológico na atividade de

abate de aves. Mesmo assim, relatou a auditora, foram emitidas apenas 154

comunicações de acidente de trabalho (CAT) pela empresa no período.

O relatório de fiscalização informa, ainda, que os procedimentos

incluídos pela empresa em seu Programa de Controle Médico de Saúde

Ocupacional (PCMSO) são insuficientes para o que se propõem. O acórdão

ressalta que essa inércia empresarial, no caso, além de provocar sérias

consequências para a saúde física e mental dos trabalhadores, atingiu,

sobremaneira, o meio ambiente do trabalho.”

É de fato espantoso que centenas de milhões de reais de dinheiro

público - riqueza produzida por toda a sociedade e dela arrecadada pelo

estado através de tributos - sejam utilizados em operação de socorro a umaempresa que experimentou perdas com especulação financeira, sem que se

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exija dela, pelo menos, a contrapartida de não prosseguir destruindo a vida e

a saúde de milhares de empregados seus. Vale dizer, não apenas a empresa

recebe a generosa ajuda pública, como permanece livre para continuar 

impondo adicionalmente aos cofres públicos novos ônus, através do custo do

atendimento de saúde que o estado é obrigado a prestar, via SUS, aos

numerosos trabalhadores adoecidos.

O mesmo procedimento, aliás, vem pautando a ajuda trilionária

aos bancos. Nenhuma contrapartida é exigida, sob a forma, por exemplo, de

regras mais rígidas às operações financeiras, capazes de impedir os

excessos do sistema especulativo e as crises cíclicas.

Em suma, o dinheiro público, no Brasil e no EUA, é concedido

para cobrir prejuízos financeiros privados em troca de nada, em troca de

contrapartida alguma em favor da sociedade. Não se exige das empresas

privadas que recebem o socorro, sequer, o compromisso de que não voltarão

a praticar as condutas temerárias que levaram ao prejuízo extraordinário. O

dinheiro público é entregue, como se diz, “de mão beijada”, o que só pode

ocorrer, é claro, com a ativa participação dos governantes, cuja atuação em

tais casos pauta-se pelo pronto atendimento às necessidades particulares

dos super-ricos, acima das necessidades públicas e coletivas.

A conclusão, a partir de todo o exposto, só pode ser uma: no

Brasil, nos EUA e nos demais países, todos trabalham, a sociedade inteira se

move, em favor e para benefício dos super-ricos, que se apropriam por 

diversas formas e métodos da maior parte da riqueza excedente produzida

pelo restante da população, em um processo de concentração de riqueza e

poder nunca antes visto, e à margem dos controles do sistema democrático.

Nunca tão poucos tiveram tanto, e isso se dá através da utilização deturpadada máquina do estado e da crescente financeirização da economia.

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No caso norte-americano, simultaneamente à ajuda em valores

trilionários aos mais ricos verifica-se o crescimento da miséria, o que não

deveria causar surpresa. A riqueza que está a sobrar em uma ponta, na qual

encontraremos um punhado de bilionários, é a mesma que está a faltar na

outra ponta, na qual padecem milhões de pessoas.

Sobre o avanço da pobreza naquele que em tese é o país mais

rico do mundo, revela a seguinte reportagem de setembro de 201186:

“Número de pessoas abaixo da linha pobreza bate recorde

 passando de 46 milhões

O número de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza nos

Estados Unidos aumentou para 15,1% da população em 2010, chegando ao

recorde de 46,2 milhões de pessoas. Os dados são do censo norte-

americano, divulgado hoje (13). É o maior contingente de pessoas abaixo da

linha da pobreza dos últimos 52 anos, desde que os dados começaram a ser 

coletados. Em 2009, 14,3% da população norte-americana vivia abaixo da

linha da pobreza.

O índice de aumento no número de pobres foi registrado pelo

terceiro ano consecutivo e é o maior desde 1993. Atualmente, um em cada

seis americanos vive na pobreza. Os Estados Unidos passam por um dos

seus piores momentos econômicos.” 

Bastante reveladoras, também, são as conclusões de estudo do

Escritório do Orçamento do Congresso (CBO, um órgão de assessoria do

Congresso dos EUA), segundo o qual, entre 1979 e 2007, a renda da86 Em http://www.pernambuco.com/ultimas/nota.asp?

materia=20110913173056&assunto=18&onde=Mundo

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população norte-americana cresceu nas seguintes proporções: 275% para os

1% mais ricos; 18% para os 20% mais pobres; entre 65% e 40% para todo o

restante da população.

5.5) A bomba relógio do descontrole financeiro

Frise-se que a crescente financeirização da economia promete a

repetição dos episódios acima mencionados com frequência cada vez maior,

além da sucessão de crises econômicas globais de recrudescente gravidade.

De fato, a quantidade de títulos em circulação no sistema

financeiro já é várias vezes superior à riqueza real, e vem crescendo

anualmente sem de qualquer controle. De acordo com estimativa do Bank for 

International Settlements (BIS), a riqueza em papéis denominados

"derivativos e outras inovações financeiras" é de cerca de US$ 600 trilhões,

ao passo que a produção efetiva de riquezas, medida pelo PIB mundial, é de

US$ 65 trilhões.

A seguinte análise, apesar de desatualizada (o tamanho dos

ativos especulativos cresceu extraordinariamente desde 2006), permite

vislumbrar a profundidade do problema87:

“O Global McKinsey Institute (MGI) produziu uma série de

estudos sobre a proliferação dos ativos financeiros nas últimas décadas. Os

números são dramáticos. O estoque financeiro mundial – o total de depósitos

bancários, títulos de dívida privada, dívidas governamentais e participações

acionárias— passou de US$10 trilhões em 1980, próximo do valor do87 “A festa do crédito e a economia mundial: Dinheiro, ganância, tecnologia”, autor Norman

Gall, em http://www.mettodo.com.br/pdf/Dinheiro_Ganancia_Tecnologia.pdf 

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Produto Interno Bruto (PIB) mundial, para US$167 trilhões em 2006, quase

quatro vezes o PIB mundial. Apenas em 2006, os ativos financeiros globais

tiveram um aumento de US$25 trilhões, ou quase 18%, um crescimento três

vezes maior que o PIB, liderados por aumentos nos ativos dos Estados

Unidos (US$5,7 trilhões) e China (US$2,8 trilhões). Enquanto isso, as

reservas de divisas dos governos passaram de US$910 bilhões em 1990 

  para US$5 trilhões em 2006, tendo dobrado desde 2000. Este aumento

grande e acelerado faz parte da globalização financeira. Os ativos

internacionais dos bancos subiram de US$6 trilhões em 1990 para US$37 

trilhões em 2007, o equivalente a mais de 70% do PIB mundial, com

operações com mercados emergentes ultrapassando os US$4 trilhões.

(…)

O aumento dos ativos financeiros em proporção ao PIB espalhou-

se para muitos países. Em 1990, apenas 33 países possuíam ativos

financeiros que superavam seus PIBs. Em 2006 esse número mais que

dobrara, chegando a 72 países. Os ativos no Brasil se multiplicaram por sete

desde que sua economia se estabilizou, em 1995, chegando a 257% do PIB.

Os quatro maiores países em desenvolvimento – Brasil, Rússia, Índia e

China– geraram dois quintos do crescimento econômico do mundo em 2007.

Esses quatro países ganharam 133 mil novos milionários (em dólares) em

2007, elevando seu total para 817 mil, contra três milhões nos Estados

Unidos.” 

(…)

De acordo com o BIS, os mercados globais de derivativos

cresceram anualmente em 32% desde 2000. Desde então, acordos privados

conhecidos como derivativos de mercado de balcão (“over-the-counter”, ou 

OTC) se multiplicaram de maneira radical, passando de menos de US$100 

trilhões para US$500 trilhões, ou três vezes o valor de todos os ativos

financeiros registrados. Os OTCs são negociados fora das bolsas de valorese são sujeitos a pouca regulamentação e nenhuma exigência de reservas. A

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maioria não aparece nos balanços dos bancos. As oportunidades para

negociar derivativos alimentaram o que hoje é conhecido como “sistema

financeiro nas sombras”, em grande medida fora do alcance da

regulamentação, com o crescimento dos fundos hedge, das firmas de

  participações privadas, dos fundos de capital de risco e “fundos urubu” 

(vulture capital).” 

Trata-se de um “castelo de cartas” insustentável, erguido pela

ganância em torno da obtenção do lucro financeiro fácil e rápido, e à revelia

da realidade ou de qualquer fiscalização ou controle público. A riqueza

financeira é criada do nada, “out of thin air” (do ar), alimentando fortunas

bilionárias, mas a um preço altíssimo à sociedade. Dada a condição

essencialmente insustentável de tal jogatina especulativa, de forma periódica

a sociedade é convocada para salvar o “castelo de cartas” montado, o que é

feito através da utilização crescente de dinheiro público para cobrir prejuízos

financeiros privados.

A razão dos bancos precisarem ser periodicamente salvos pelo

poder público pode ser melhor compreendida quando se tem em mente que,

por estupendo que tenha sido o aumento da dívida pública nos últimos anos,

ainda maior vem sendo o endividamento do setor financeiro privado. Nos

EUA, por exemplo, o endividamento público encontrava-se, em 2008, em

60% do PIB americano, mas o endividamento do setor financeiro já se

encontrava em 119% do PIB (fonte: Gérard Duménil e Dominique Lévy).

Tais operações de salvamento conduzem à necessidade dos

estados providenciarem a emissão de novos títulos da dívida pública, o que

realimenta o processo de especulação, já que os títulos são apropriados pelo

sistema financeiro e negociados, aumentando-se ao mesmo tempo os custospara toda a sociedade mediante pagamento de juros e encargos sobre essa

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dívida.

O maior problema é que se torna cada vez mais difícil salvar a

ciranda da especulação desenfreada, pois a economia real tem seus limites.

Um limite bastante objetivo é o seguinte: a partir de determinado ponto,

torna-se impossível ao estado extrair ainda mais riqueza, sob a forma de

tributos, da sociedade, pelo desaparecimento de qualquer excedente e pela

estagnação (ou mesmo contração) da economia, o que leva à interrupção do

fluxo de riqueza em favor do sistema financeiro. Tal ponto já está sendo

atingido, por exemplo, em alguns países europeus, como a Grécia. No

processo, entretanto, toda a ilusória riqueza representada por papéis

inventados e negociados pelo sistema especulativo, sem contrapartida na

economia real, dissolvem-se no ar de onde vieram.

A sociedade é mantida como refém da jogatina especulativa, pois

no atual cenário, se esta quebrar de forma súbita, quebrará o sistema

financeiro como um todo, com reflexos funestos à economia real, que

depende do sistema financeiro para financiar produção e consumo.

Mas o enfrentamento de tal problema, o mais grave de nossa era,

constitui prioridade a políticos e governantes? Não, agem como se fosse

possível prosseguir com o descontrole do sistema financeiro e o

consequente endividamento público para sempre. E não o fazem por miopia

ou por desconhecimento da realidade, que é por todos eles bem conhecida,

mas em razão do compromisso que possuem de preservar, por tanto tempo

quanto seja possível, o mecanismo que hoje permite, como nunca antes visto

na história, a inversão de riquezas assombrosas aos super-ricos.

Como resultado, é a sociedade continuamente convocada paraarcar com sacrifícios adicionais. Como resultado, não obstante a produção

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excepcional de riqueza, tanto real quanto fictícia (papéis sem qualquer 

espécie de lastro), são os trabalhadores intimados a se desfazer dos poucos

direitos que possuem.

Prioritário a políticos e governantes torna-se apresentar e aprovar 

projetos de lei para eliminar direitos trabalhistas, e não criar regras rígidas

capazes de conter os excessos especulativos do sistema financeiro, ou rever 

o sistema tributário injusto, que penaliza os mais pobres.

5.6) Trabalhadores ficando para trás

Insista-se que no Brasil os trabalhadores já vêm, sem saber,

abrindo mão de muitas coisas, não sendo recompensados de forma

minimamente equitativa pela riqueza adicional que vem sendo por eles

gerada.

Nesse sentido, vale repetir aqui a informação apresentada no

capítulo 3, com base em dados do Bureau of Labor Statistics, relativa à

variação do custo da hora de trabalho na indústria em todo o mundo, de

1997 a 2009. Segundo o levantamento, dos 34 países analisados, o Brasil

apresentou a segunda menor variação no período, passando de 7,11 dólares

em 1997 para 8,32 em 2009, o que equivale a 17,02%, percentual superior 

apenas a Taiwan, e muito menor que a variação ocorrida em todos os demais

países, como México, 63%; Argentina, 36,47%; Polônia, 139,62%; Filipinas,

31,58%; Irlanda, 127,52%; Coreia, 50,74%; República Tcheca, 245%;

Espanha, 99%; Portugal, 87,30%, etc.

As circunstâncias acima são apenas o indício de uma realidade

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ainda mais profunda. De fato, no período de 1995 a 2004, a participação dos

salários - não apenas o salário da indústria - no PIB esteve em permanente

queda, enquanto a participação dos lucros permaneceu estável, e a

participação dos impostos indiretos cresceu88.

De 1950 até 1990, o índice de produtividade do trabalho e o

salário médio real sempre mantiveram certo equilíbrio, permanecendo

próximos um do outro. A partir de 1990, entretanto, o salário médio real

entrou em declínio, enquanto a produtividade continuou em tendência

ascendente (em maior ou menor grau, conforme o ano), surgindo um fosso

entre ambos. Particularmente no período de 2002 a 2009, os ganhos de

produtividade sempre estiveram acima do salário médio real89.

Isso significa que a riqueza a mais produzida pelo trabalho

humano, representada pelo acréscimo de produtividade, não vem sendo de

forma equitativa repassada aos trabalhadores. Produz-se mais riqueza, mas

os trabalhadores recebem menos.

Sobre o tema já alertou, também, o IPEA:

“Salários não acompanham recuperação econômica, diz Ipea

(…)

 Apesar do aumento da produtividade registrado após a crise

financeira internacional, os lucros com o crescimento não estão sendo

repassados aos salários dos trabalhadores brasileiros. Esta foi a conclusão à

que chegou uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

(Ipea), divulgada nesta quarta-feira.

(…)

88 fonte: IBGE, apud Ricardo Dathein.89 fonte: José Eustáquio Diniz Alves e Miguel A.P. Bruno, com base em dados do IBGE e

IPEADATA.

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De acordo com Pochmann, o não repasse dos ganhos com

 produtividade para os salários causa um efeito negativo para o Brasil: a

baixa participação dos salários na comparação com o Produto Interno Bruto

brasileiro.

'Isso é péssimo para o Brasil. Veja que, em países desenvolvidos,

a participação da renda obtida com salário no PIB é cerca de dois terços. No

Brasil, isso não chega a 50%.90 '” 

O extraordinário é que tal processo persiste não obstante o

enorme crescimento econômico experimentado pelo país nos últimos anos,

com a geração de riqueza - e lucros - em patamar sem igual na história do

país.

O ano passado, 2010, foi particularmente propício à ampliação de

fortunas, como dá conta a seguinte reportagem91:

“2010, o ano dos lucros fantásticos.

 A demanda interna forte e a alta de preços de matérias-primas

 puxaram em 2010 os lucros das empresas, que cresceram 32,2% sobre o

ano anterior. Numa amostra de 59 companhias com ações em bolsa, as

 petroquímicas, os bancos e as construtoras lucraram como nunca.

No ano passado, 59 empresas do Ibovespa tiveram ganho de R$ 

167 bi, alta de 32%.

O vigor da demanda interna e a recuperação de preços

internacionais das commodities impulsionaram os lucros das empresas90 Em http://noticias.terra.com.br/interna/0,,OI4415756-EI8177,00.html91 Em O Globo, 02/04/2011.

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brasileiras em 2010. Levantamento da Austin Rating, com base nos balanços

das companhias de capital aberto que compõem o Ibovespa (índice que

reúne as ações mais negociadas na bolsa de valores), mostra que, juntas,

essas empresas acumularam lucro líquido de R$ 167,4 bilhões no ano

 passado, um salto de 32,2% sobre os ganhos do ano anterior, que somaram

R$ 126,6 bilhões. A rentabilidade dos negócios variou menos: subiu de

13,3%, em 2009, para 14,2%”.

A qualquer ser racional mostrar-se-ia sumamente ilógico que,

logo após o encerramento de um “ano de lucros fantásticos”, venha a se

discutir um projeto de lei que propõe a eliminação, em termos práticos, do

direito do trabalho, e venha a se permitir o avanço no Congresso Nacional de

outros projetos para a supressão de direitos sociais, vale dizer direitos dos

mais pobres. Se os lucros estão sendo fantásticos, não seria natural também

aumentar, ainda que um pouquinho que seja, também os direitos dos

trabalhadores?

Claro que a racionalidade que está em operação aqui é de outro

tipo, e nada deve à lógica, mas sim à ganância sem limites. O processo que

permitiu o surgimento e ampliação de super-fortunas conhece apenas uma

direção, que é a de sempre buscar mais, acumular mais riqueza e poder.

Incapaz de aproveitar os “lucros fantásticos” de um ano, imediatamente

pretende a superação de tal recorde com a obtenção de lucros ainda mais

fantásticos no futuro. E a eliminação de direitos trabalhistas é um passo

importante de tal estratégia.

Essa estranha filosofia - os lucros podem aumentar 

estupendamente, mas os direitos trabalhistas devem diminuir - se sustenta, é

claro, graças à conivência de governantes e dos “especialistas emeconomia”, que transformam habilmente aquilo que é interesse peculiar dos

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super-ricos em “imperativo econômico” a ser aceito por toda a sociedade.

Veja-se, nesse sentido, a opinião do atual presidente do Banco

Central com relação às pretensões dos trabalhadores em 2011, poucos

meses após o término do “ano dos lucros fantásticos”92:

“Salário é 'um risco muito importante' para a inflação, afirma BC 

O Banco Central divulgou nesta quarta-feira seu relatório

trimestral de inflação, o documento mais amplo e aprofundado com análises

do BC, em que faz previsões mais pessimistas e aponta o salário dos

trabalhadores como “um risco muito importante para a dinâmica dos preços” 

nos próximos meses.

No documento, a diretoria do BC diz que os salários preocupam

  porque haverá muitas negociações de reajustes no segundo semestre,

momento em que a inflação, no acumulado em doze meses, estará acima do

limite máximo autoimposto pelo governo. Afirma ainda que a correção

 prevista do salário mínimo para os próximos anos pode ter impacto nos

 preços.

No projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2012 que

mandou ao Congresso em abril e pode ser votada nesta quarta-feira na

Comissão Mista de Orçamento, o governo propôs um mínimo de R$ 616 no

ano que vem. O valor resulta de uma fórmula: crescimento econômico do

Brasil em 2010 mais inflação. No total, reajuste de 13% dos R$ 545 atuais.

No relatório, o BC diz ainda que o mercado de trabalho está

aquecido, com taxa de desemprego em patamar historicamente baixo e

92 Em http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17993

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“substanciais” aumentos salariais. E que isso também pode ter impacto

inflacionário.

“Um aspecto crucial em ciclos como o atual é a possibilidade de

que o aquecimento no mercado de trabalho leve à concessão de aumentos

reais dos salários em níveis não compatíveis com o crescimento da

  produtividade, o que, de acordo com algumas evidências disponíveis,

aparentemente tem ocorrido em certos setores”, afirma.

No documento, o BC apresenta previsões de inflação futura, com

base em cenários distintos. No chamado cenário de referência, a taxa de

 juros de 12,25%, a maior do planeta, fica congelada daqui até o fim do ano

que vem. Neste caso, a inflação seria de 5,8% em 2011 e de 4,8% em 2012.

Os dois valores estão acima do calculado no relatório trimestral de março

(5,6% e 4,8%, respectivamente).

No cenário de “mercado”, o BC segue as apostas do “mercado” e

continua a subir a taxa de juros. Neste caso, a inflação seria de 5,8% este

ano e de 4,9%, no próximo. Em março, as previsões eram de 5,6% e 4,6%.” 

Ou dito de outra maneira: os “lucros fantásticos” de 2010, no

entender do Banco Central, não devem ser apropriados, sequer em uma

pequena parcela que seja, pelos trabalhadores, pois isso irá aumentar a

inflação. De modo que o melhor, para o Banco Central, é que os lucros

fantásticos de 2010 permaneçam nas mãos dos super-ricos, cuja

participação no mercado de consumo é muito pequena, e não impactará a

inflação.

Não é extraordinário como tal “ortodoxia econômica” molda-secomo uma luva aos interesses dos mega-ricos?

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A propósito, os argumentos apresentados pelo Banco Central

são, é claro, falsos. O reajuste de salários pretendido pelos trabalhadores

não é o início de um ciclo inflacionário, mas o término dele: é porque os

preços já aumentaram, e os salários não (de modo que os assalariados já

tiveram seu poder de compra comprometido), que os trabalhadores exigem

reajustes. Os trabalhadores via de regra perseguem a inflação que já existe,

eles não a criam.

Em acréscimo, cabe destacar que muitos dos aumentos salariais

apontados como sendo de “aumento real acima da inflação” efetivamente

não o são. Costuma-se chamar “aumento real” a variação que exceder aos

índices oficiais de inflação. Desprezando-se o fato de que há diferenças, por 

vezes importantes, entre os diversos índices que calculam a inflação no

Brasil, há de ser lembrado que reajustes salariais nascem no contexto de

negociações coletivas complexas, e podem se referir a perdas pretéritas

acumuladas e nunca compensadas, ou ao desaparecimento de benefícios

antes gozados, entre outras variáveis.

Os reajustes salariais podem conduzir, de fato, a um novo ciclo

de aumento da inflação, mas isso ocorre em razão do interesse empresarial

de tentar repassar novamente, mediante outra elevação de preços, o custo

aos consumidores.

Trata-se de um jogo de “cabo de guerra”: as empresas elevam os

preços, buscando recompor margens de lucro ou alavancar o investimento, e

os trabalhadores (que são também os consumidores), vendo desgastados os

seus salários pela inflação, pleiteiam reajustes salariais. Se obtido o reajuste

salarial, as empresas elevam outra vez os preços, para compensar o custotrabalhista adicional sem afetar a recomposição da margem de lucro ou

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investimento antes promovida.

Nesse “cabo de guerra” pode-se ver, pelas declarações acima

transcritas, de que lado fica a torcida do presidente do Banco Central.

De modo que o sentido das declarações do Banco Central é,

além de desinformar, convencer os trabalhadores a de bom grado suportar 

sozinhos o custo da inflação.

Os pedágios, por exemplo, aumentaram recentemente no estado

de São Paulo em torno de 10%, sem que os trabalhadores do setor tenham

obtido reajuste salarial nem antes nem depois da elevação do preço público.

Um único pedágio, na rodovia de Araraquara a Ribeirão Preto - distância de

90 Km - custa agora onze reais. Há pedágios nas rodovias Anchieta e

Imigrantes que chegam a custar, atualmente, mais de vinte reais.

Trata-se aqui de um aumento autorizado pelo governo, e com

fortes reflexos inflacionários, pois as empresas que transportam seus

produtos pelas estradas paulistas terão que repassar integralmente esse

custo adicional aos preços, de modo que quem pagará o custo adicional, em

última instância, são os consumidores.

Mas você não ouve o presidente do Banco Central fazer um apelo

para que não sejam autorizados reajustes de pedágios e de outros preços

públicos. O que ouvimos é o presidente do Banco Central pedindo que os

trabalhadores paguem a conta.

Trata-se, em última análise e para além das falsas aparências, de

uma opção ideológica e não técnica ou científica.

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O mesmo tipo de viés ideológico aparece no posicionamento de

certas autoridades federais com relação ao imposto sobre grandes fortunas,

previsto pelo art. 153, VII, da Constituição Federal, e que jamais foi recolhido

por falta de regulamentação:

“Secretário descarta criação de imposto sobre grandes fortunas

10/05/2011 - 18h23

Brasília – A criação do Imposto sobre Grandes Fortunas não está

em discussão no governo, assegurou hoje (10) o secretário executivo do

Ministério da Fazenda, Nelson Barbosa. Em seminário na comissão especial 

da Câmara dos Deputados que discute a reforma tributária, ele afirmou que

a medida criaria distorções e estimularia a fuga de riquezas do país.93”

Enquanto o número de bilionários cresce no país, a tributação

sobre suas gigantescas fortunas - exigida por decisão do poder constituinte

originário - é descartada pelos “técnicos” porque “estimularia a fuga de

riquezas”. Que interesse há em se manter mega-fortunas no país, se estas

não puderem se traduzir em benefício à coletividade através do pagamento

de impostos, entretanto, é algo que não se consegue compreender, e que

não é explicado.

Observe-se, também, que o zelo com os interesses dos super-

ricos é tamanho que, no dizer do secretário, a criação do imposto exigido

pela Constituição simplesmente “não está em discussão”. É portanto um

assunto tabu. O que está sim em discussão, como visto, é a eliminação de

direitos trabalhistas dos mais pobres.

Vejamos agora um exemplo concreto de como se traduz, na93 Em http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2011-05-10/secretario-descarta-criacao-de-

imposto-sobre-grandes-fortunas

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prática, a obtenção de um “ano de lucros fantásticos”, como foi o de 2010,

com a manutenção de um patamar trabalhista baixo e em processo de

declínio. Tomemos o caso da construtora MRV, que vem sendo saudada por 

muitos como um exemplo a ser seguido de sucesso no mundo dos negócios:

“MRV tem lucro líquido 82,7% superior em 2010 

Em 2010, a geração operacional de caixa atingiu R$ 795 milhões,

número 81,1% superior ao do ano passado

Resultado líquido da MRV Engenharia atinge R$ 634,5 milhões

no ano, com uma receita 83,4% superior à de 2009, alcançando R$ 3,021

bilhões. Companhia teve recorde de vendas no quarto trimestre.

Em 2010, a geração operacional de caixa atingiu R$ 795 milhões,

número 81,1% superior ao do ano passado.

 As vendas contratadas no trimestre alcançaram R$ 1,149 bilhão

no último trimestre de 2010, número 3% superior ao registrado no mesmo

 período do ano passado. Em todo o ano, as vendas somaram R$ 3,753

milhões, resultado 33% superior ao de 2009.

Os lançamentos atingiram R$ 1,852 bilhão no último trimestre. No

ano, o resultado soma R$ 4,604 bilhões, número 78% superior ao de 2009.

"O ano de 2010 foi recorde em volume de lançamentos", aponta o relatório

divulgado pela companhia.

"Apesar de 2010 ter sido um ano de mudança de ciclo

operacional em função do aumento do tamanho dos projetos, nossosvolumes trimestrais anualizados de unidades lançadas atingiram, no quarto

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trimestre, 70 mil unidades." 

 A empresa comemorou o aumento do piso no programa Minha

Casa Minha Vida, responsável por boa parte do crescimento da companhia.

"Os efeitos são positivos e nos dão confiança tanto em relação às

  perspectivas para este segmento, bem como em relação à nossa

capacidade de demonstrar crescimento sustentado", afirma.94” 

Há, entretanto, por trás de tal fachada luminosa de sucesso e de

lucros extraordinários, um outro lado, pouco comentado:

“MP flagra trabalho degradante em obras da MRV pelo PAC 

 A empresa está construindo 640 apartamentos na cidade pelo

 programa Minha Casa, Minha Vida

SÃO PAULO – A Procuradoria Regional do Trabalho (PRT) em

Campinas flagrou 44 trabalhadores em situação degradante de trabalho em

uma das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do

governo federal, na cidade de Americana, na região de Campinas.

 A obra, incluída no programa Minha Casa, Minha Vida, está sob

responsabilidade da MRV Engenharia e Participações. A empresa está

construindo 640 apartamentos na cidade.

  A PRT iniciou as investigações no dia 10 de março. Agora,

auditores fiscais do trabalho finalizam relatórios sobre as condições

encontradas. Os documentos serão encaminhados, em duas semanas, para

o Ministério Público do Trabalho e para o Ministério do Trabalho e Emprego.94 Em http://www.brasileconomico.com.br/noticias/mrv-tem-lucro-liquido-827-superior-em-

2010_99648.html

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 As irregularidades foram constatadas em dois alojamentos de

empreiteiras que prestavam serviços no empreendimento Beach Park, cujas

obras eram conduzidas pela MRV, responsabilizada no caso.

De acordo com a PRT, 44 trabalhadores, naturais do Maranhão e

de Alagoas, viviam em alojamentos superlotados, sem ventilação, com fiação

exposta e em condição precária de higiene. Em um dos alojamentos, havia

um só banheiro para 22 pessoas. A locação das casas e o fornecimento de

camas, colchões e armários estavam a encargo da MRV.

  A PRT encontrou também indícios de aliciamento de mão de

obra, situação caracterizada pelo deslocamento de trabalhadores de um

estado a outro mediante falsas promessas. Os auditores fiscais constataram

ainda retenção de documentos e um trabalhador sem registro em carteira.

Parte dos trabalhadores estava sem receber salário. A fiscalização foi 

encerrada na última semana.

Foram entregues pelos fiscais do trabalho 44 autos de infração à

MRV. A empresa teve de pagar os salários atrasados, a rescisão contratual 

dos trabalhadores, fundo de garantia, multa, e arcar com as despesas de

transporte dos funcionários até suas cidades de origem95 .” 

De modo que “lucros fantásticos” vem sendo obtidos, realmente,

mas em muitos casos à custa da pura e crua exploração dos trabalhadores,

mantidos em condição degradante, incompatível com a dignidade humana.

E ainda se pretende, agora, reduzir o número de direitos

95 Notícia de abril de 2011, em http://www.hojeemdia.com.br/cmlink/hoje-em-dia/noticias/economia-e-negocios/mp-flagra-trabalho-degradante-em-obras-da-mrv-pelo-pac-1.265654

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trabalhistas. Nesse passo, de degradante a condição de tais operários

passará para o quê? Quão pior pode se tornar a situação de trabalhadores

que já se encontram submetidos a tratamento degradante, não obstante a

empresa empregadora esteja experimentando lucros fabulosos? O que vem

abaixo de degradante? Bem, em prosseguindo a onda de reformas

“flexibilizadoras” supressoras de direitos, estaremos no Brasil bem perto de

descobrir. Mas desde já podemos ter uma certeza: os lucros serão mais

fantásticos ainda.

O resultado de toda a “racionalidade econômica” acima descrita,

que apresenta como muito natural a multiplicação de super-fortunas ao

mesmo tempo em que, não obstante o crescimento econômico do país, os

trabalhadores perdem direitos, está no fato do Brasil continuar a ser um dos

países mais desiguais do mundo. Dentre as maiores economias do mundo é

o recordista absoluto de desigualdade social.

Altas taxas de desigualdade traduzem-se, na vida de milhões de

brasileiros, em problemas bastante concretos, como acesso a serviços de

saúde deficientes, saneamento básico precário ou inexistente (metade dos

domicílios brasileiros, por exemplo, não possui acesso a rede de esgoto),

analfabetismo funcional, desestruturação familiar e abandono, criminalidade

elevada, etc.

Segundo o Programa das Nações Unidas para o

Desenvolvimento, no seu “Informe Geral sobre Desenvolvimento Humano

para a América Latina e Caribe de 2010”, o Brasil, dentre os 23 países da

região, possui o terceiro pior índice de desigualdade (índice de gini96), na

frente apenas do Haiti e da Bolívia.

96 Índice criado em 1992 pelo estatístico Corrado Gini, utilizado como parâmetro internacionalpara medição da desigualdade de renda entre os países. Ele é constituído pela variaçãoentre 0 e 1, sendo que, quando mais perto de 1, mais desigual.

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O significado de tal ranking é agravado pelo fato de que o país da

América Latina com o melhor (mais baixo) índice de desigualdade é ainda

assim mais desigual que o país com pior índice de desigualdade da

Comunidade Européia, incluindo os países do Leste Europeu de menor 

desenvoltura econômica. Ou seja, a América Latina é a região mais desigual

do mundo, e o Brasil é um de seus "campeões".

No Brasil, ainda segundo o PNUD, os 10% mais ricos ficam com

46,7% da riqueza, e os 10% mais pobres, com apenas 0,5%. De modo que:

“As condições de vida desiguais no Brasil corroem quase 1/5 do

 padrão de desenvolvimento do país, segundo um relatório divulgado nesta

sexta-feira pelo PNUD. O estudo traz o cálculo do IDH-D (Índice de

Desenvolvimento Humano ajustado à Desigualdade) que 'penaliza' as

diferenças de rendimentos, de escolaridade e de saúde. Para o Brasil, esse

indicador que considera as disparidades é 19% inferior ao que leva em conta

as médias nacionais.

(...)

Esses dados demonstram que as disparidades, além de serem

um problema por si mesmas, têm efeitos graves no padrão de vida das

 pessoas. Na América Latina, o problema adquire contornos mais dramáticos

 por ter sobrevivido a uma série de políticas públicas ao longo das últimas

décadas – desde as de perfil mais intervencionista, como nos anos 50, até

as reformas de mercado nos anos 80 e 90. 'A desigualdade de rendimentos,

educação, saúde e outros indicadores persiste de uma geração à outra, e se

apresenta num contexto de baixa mobilidade socioeconômica', afirma o

relatório”97.

97 Em http://www.pnud.org.br/pobreza_desigualdade/reportagens/index.php?id01=3524&lay=pde

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A propósito, segundo relatório do Instituto Mundial para a

Investigação e Desenvolvimento Econômico da Universidade das Nações

Unidas (ONU-WIDER), 2% da população mundial concentram mais da

metade da riqueza do planeta.

Por tudo o que foi dito conclui-se que o Brasil, não obstante tenha

se tornado uma das economias mais importantes do mundo, tem revertido a

maior parte do excedente de riqueza produzida em favor dos mais ricos, e

particularmente dos super-ricos, cujo número não para de aumentar, ao invés

de beneficiar de forma um pouco mais justa a massa da população e os

trabalhadores.

5.7) O desafio atual dos trabalhadores brasileiros

Entretanto, há de ser dito que os trabalhadores não são apenas

vítimas, mas também sujeitos de sua própria história, e precisam - não há

outra opção - assumir responsabilidade para com sua própria condição.

Como disse Sartre, “o importante não é o que se faz de nós, mas o que nós

 próprios fazemos daquilo que nos foi feito98”.

Nas últimas décadas (1990 e 2000), os trabalhadores brasileiros

tem se mantido, como revelam os números antes mencionados, entre os

mais “dóceis” e conformados do mundo frente aos interesses e aos

privilégios da elite econômica. As reivindicações dos trabalhadores têm sido

acanhadas, não acompanhando sequer a elevação dos lucros e da

produtividade. O número de greves, por exemplo, é baixo, em torno de 500

por ano (para um universo de 44 milhões de trabalhadores com carteira98 L’important n’est pas ce l’on fait de nous, mais ce que nous faisons nous-mêmes de ce

qu’on a fait de nous.

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anotada), e em processo de declínio. Não há solidariedade entre

trabalhadores de categorias diferentes.

Como resultado, os reajustes que vem sendo obtidos pelos

trabalhados brasileiros são bastante inferiores aos conquistados por 

trabalhadores de outros países, não obstante tais nações tenham crescido

menos que o Brasil no mesmo período.

Enquanto isso ocorre com a massa trabalhadora, a remuneração

paga aos executivos de alto escalão brasileiros (CEO, chairman, diretores e

presidentes de companhias, etc.), que dirigem as empresas, atinge o

patamar mais alto do mundo:

“Brasil surpreende com os maiores salários do mundo no alto

escalão

Remuneração: Ranking internacional coloca São Paulo como a

cidade que paga melhor os executivos da indústria.

Um ranking sobre salários realizado com executivos do alto

escalão em São Paulo, Nova York, Londres, Cingapura e Hong Kong 

apresenta um resultado surpreendente: os brasileiros são os mais bem

 pagos. O levantamento contempla o salário fixo e, portanto, não inclui os

bônus e o décimo terceiro salário. Mesmo assim, o holerite de um CEO do

setor industrial na capital paulista chega, em média, a US$ 620 mil por ano e

o de um diretor US$ 243 mil - em Nova York eles recebem, respectivamente,

US$ 574 mil e US$ 213 mil.

O resultado da pesquisa deixou os próprios executivosadmirados. "Os estrangeiros não faziam ideia de que o país pagava tão bem.

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Nem mesmo os brasileiros que estão trabalhando no exterior tinham essa

noção", diz Adriana Prates, presidente da Dasein Executive Search, que

conduziu o levantamento com 80 profissionais do alto escalão. Entre os

entrevistados estão CEOs e diretores da indústria automotiva, siderúrgica,

metalúrgica, mineradora, construção entre outras. São empresas com entre

1 mil até 15 mil funcionários. "No mercado financeiro esse valores são ainda

mais altos", diz. Vale lembrar, segundo a headhunter, que a parte variável da

remuneração é bastante representativa no Brasil. "Em alguns casos, ela

chega a 23 salários extras por ano.99” 

Isso significa que as mesmas pessoas - presidentes, diretores e

executivos de alto escalão - que clamam publicamente pela eliminação de

direitos trabalhistas, medida que justificam nome da “competitividade”, e que

negam aos funcionários reajustes salariais justos, estão a fixar suas próprias

remunerações em valores estratosféricos, os mais altos do mundo.

A surpreendente “docilidade” dos trabalhadores brasileiros diante

da explosão dos lucros explica, inclusive, a ousadia adicional da elite

econômica de buscar obter, além da apropriação de lucros fantásticos e

crescentes, a redução de direitos trabalhistas através de reformas

legislativas precarizantes, algo que seria inimaginável algumas décadas

atrás. É que a apatia da defesa dos próprios direitos, por parte dos

trabalhadores, sinaliza fraqueza e encoraja o lado adverso a avançar. Pois

no mundo capitalista, quem não defende seus direitos, perde-os. Quem não

luta por seu espaço, é desalojado. Quem não reivindica um quinhão mais

 justo enquanto a economia produz “lucros fantásticos”, não só nada ganha

de acréscimo, como ainda perde o pouco que tem.

99 Valor Econômico, 12/10/2010, disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/selecao-diaria-de-noticias/midias-nacionais/brasil/valor-economico/2010/12/10/brasil-surpreende-com-os-maiores-salarios-do-mundo

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A riqueza que vem sendo produzida no Brasil, nos últimos anos,

autorizaria em termos estritamente econômicos não apenas a manutenção

do patamar de direitos trabalhistas, mas sua ampliação. Que os

trabalhadores não estejam a exigir com contundência mais direitos é

circunstância que foi corretamente interpretada pela elite econômica - e pelos

vassalos políticos que a servem - como sinal de fraqueza e de incapacidade

de organização à resistência coletiva. Por esse motivo a elite se aproveita do

momento para tentar ampliar ainda mais sua vantagem, reescrevendo em

seu favor o pacto social construído no país na década de 1980, após a

redemocratização e a promulgação da Constituição de 1988.

É possível, entretanto, que através do excesso de cobiça tenha a

elite acabado de plantar a semente para a reação dos trabalhadores, e para

a “mudança da maré”. Pois uma coisa é o trabalhador humilde não perceber 

que os super-ricos estão enriquecendo como nunca, dada a ausência de

acesso a tal informação (que não é objeto de destaque pelos grandes

veículos de comunicação); outra bem diferente é sentir no próprio bolso os

efeitos da diminuição dos direitos. Uma coisa é não saber que o número de

bilionários brasileiros cresce sem parar, e que quase metade do orçamento

da União Federal vai parar nas mãos das pessoas mais ricas do planeta (as

quais, através de uma pitoresca estratégia semântica, não são mais

chamadas de especuladores ou aproveitadores, e sim de “investidores”);

outra é perceber que antes se gozava 30 dias de férias, e agora se goza 10,

e que antes se trabalhava 8 horas por dia, e agora se trabalha mais de 10

horas, sem incremento salarial significativo ou com diferença para menos

(após ter sido o trabalhador dispensado do emprego em que laborava 8

horas, e recontratado com salário menor e jornada maior por empresa

terceirizada, voltando a prestar o mesmo trabalho).

Para os trabalhadores brasileiros, o desafio atual é claro: não é

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mais possível, inclusive do ponto de vista da preservação dos direitos que

ainda possuem, continuar na inação ou mesmo na defensiva. É preciso que

partam para o ataque, e exijam não a manutenção dos direitos atuais, mas a

conquista de novos e mais amplos direitos, vale dizer, que exijam um

quinhão maior da riqueza a mais que já foi produzida e da que vem sendo

produzida, mas que não está sendo distribuída.

Enfim, já que a elite tomou a iniciativa de buscar a reconfiguração

do pacto social pós-redemocratização (que já lhe era bastante favorável), e

  já que o egoísmo da elite brasileira não mais reconhece limites, resta aos

trabalhadores, sob tal pressão insuportável, descobrir em si mesmos a

coragem e a força para fazer o mesmo e reescrever o pacto social, quem

sabe organizados coletivamente - com o expurgo de algumas lideranças que

os prejudicam - em torno do lema “mais direitos já”.

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CAPÍTULO 6: Direito do trabalho, alavanca para o

desenvolvimento

6.1) Crescer sem eliminar direitos: o “mau exemplo”

brasileiro dos últimos oito anos

Como mencionado no capítulo anterior, a quantidade de riqueza

que vem sendo produzida no mundo, há várias décadas, não possui paralelo

em qualquer outro período histórico (importante enfatizar: crescimento a rigor 

exagerado, eis que viabilizado mediante degradação ambiental igualmente

sem precedentes).

Nos últimos oito anos, um dos países que mais tem contribuído

para tal crescimento da riqueza é justamente o Brasil, ao lado das demais

grandes potências econômicas emergentes: China, Índia e Rússia.

O Brasil deixou de ser a 13ª maior economia do planeta, ao final

do governo Fernando Henrique Cardoso, para se tornar ao final do governo

Lula a 7ª maior economia, ultrapassando Canadá, Itália e Coreia do Sul,

entre outros. Para alguns, aliás, o país já teria se tornado a 5ª maior, e para

outros, poderá consolidar tal posição ainda em 2011, ultrapassando Reino

Unido e França.

Ou seja: pouquíssimos países no mundo tem crescido tanto

quanto o Brasil, nos últimos anos. Isso não é suposição, é um fato.

Aos porta-vozes da “flexibilização” eliminadora de direitos, há um

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aspecto embaraçoso que permeia tal pujante crescimento, motivo pelo qual

poucas vezes ele é lembrado: o Brasil alcançou esse rápido desenvolvimento

econômico sem mexer nos direitos trabalhistas.

Para pessoas que persistentemente apregoam como verdade

absoluta que “o Brasil precisa flexibilizar para crescer”, tal evidência é

profundamente inconveniente. Se não há como crescer sem flexibilizar, como

é que o Brasil já cresceu?

Os fatos revelam, portanto, justamente o contrário. É

perfeitamente possível a um país crescer economicamente, e crescer muito,

sem reduzir o patamar de direitos trabalhistas. E a maior prova disso, de fato

a prova definitiva e incontestável, é que isso já foi feito.

Todo ano, entretanto, os paladinos do neoliberalismo insistem na

mesma profecia: o Brasil não irá crescer se não flexibilizar direitos

trabalhistas. José Pastore, em particular, vem dizendo isso há décadas, sem

qualquer constrangimento em ser desmentido ano após ano.

Ao final de 2008, por exemplo, ano de gravíssima crise financeira

global, repetiram eles o mesmo bordão: o Brasil precisa flexibilizar 

urgentemente direitos trabalhistas, ou será engolfado pela crise. E o que

ocorreu? Não foram “flexibilizados” (eliminados) direitos trabalhistas naquele

ano, e apesar disso o desempenho brasileiro foi melhor que o esperado,

levando em conta a seriedade da crise mundial e o desempenho (bastante

pior) da média dos demais países do globo.

Ao final de 2009, e aproveitando-se do acanhado crescimento de

2009 (perfeitamente explicado pela crise financeira), repetiram os mesmosoráculos seu mantra: “o Brasil não irá crescer se não flexibilizar”. E o que se

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sucedeu? O Brasil cresceu em 2010 de forma extraordinária, superando

todas as expectativas. E sem eliminar direitos trabalhistas.

Agora, em 2011, repete-se de novo a mesma pregação,

contando-se que o ambiente político tenha se tornado mais propício a

reformas flexibilizadoras e precarizantes, não obstante as “profecias”

neoliberais tenham sido refutadas repetidas vezes.

Enfim, não possuem os arautos da flexibilização qualquer 

compromisso com fatos ou evidências. Sua pregação é de cunho

estritamente ideológico, com vista à promoção dos interesses da elite

econômica. Estarem corretos ou não, para eles, é indiferente.

Entretanto, o que os fatos ocorridos nos últimos 8 anos no Brasil

comprovam é que o patamar de direitos trabalhistas hoje existente não

constitui qualquer empecilho ao crescimento econômico. Se haverá

efetivamente crescimento ou não, isso é circunstância que depende de

outros fatores, tais como investimentos em infraestrutura, aumento da

produtividade, manutenção da alta dos preços das commodities no mercado

internacional, crédito fácil, etc. Essa é a lição da história recente no país.

Uma edição de março de 2011 da revista conservadora “The

Economist”100 protagonizou, de forma particularmente clara, a contradição de

se sustentar um discurso flexibilizador à vista de evidências que demonstram

a sua desnecessidade.

A revista inglesa continha duas reportagens sobre o Brasil, que

não se articulavam entre si, como se dissessem respeito a realidades - ou

mesmo a países - completamente diferentes.

100 Disponível em: http://www.economist.com/node/18332906

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A primeira reportagem, que foi, como era de se esperar, replicada

por diversos veículos de comunicação nacionais, anunciava: “Employer,

beware – An archaic labour code penalises business and workers alike”

(Empregadores, cuidado - Um código trabalhista arcaico penaliza tanto os

negócios quanto os trabalhadores). Mencionava-se na matéria que as leis

trabalhistas brasileiras “são extraordinariamente rígidas: elas impedem que

 patrões e empregados negociem mudanças nos termos e condições, mesmo

que elas sejam mutualmente aceitas”.

Em outra reportagem na mesma edição, era dito sobre o Brasil:

“Statistics and lies – very big, but not the world´s fifth-largest economy quite

yet .” (Estatísticas e mentiras - muito grande, mas ainda não a quinta maior 

economia”. Nela dizia-se que o “Brasil ainda não entrou nos cinco grandes

no último ano. Mas é bem possível que o faça neste ano”.

Aparentemente, não chamou a atenção do The Economist que a

manutenção de um “código trabalhista arcaico” não impediu o Brasil de

crescer a ponto de chegar às raias de ser uma das cinco maiores economias

do mundo. Nenhuma ilação foi feita a partir dos dois fenômenos, como se um

não tivesse nada a ver com o outro. Ou talvez o The Economist acredite -

embora não o tenha dito - que se o Brasil se livrar do “código trabalhista

arcaico”, que não foi embaraço para se chegar quase à quinta colocação,

conseguirá ultrapassar China e Estados Unidos como a economia mais

poderosa do mundo, o que soa como um completo disparate.

Dado que os fatos lhes são adversos, precisam os apóstolos da

“flexibilização” buscar socorro de outras fontes para sustentar seus

argumentos, de modo a emprestar ao menos uma aparência de verdade aoque dizem.

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Um desses “vernizes de credibilidade” é a frequente menção ao

Relatório Global de Competitividade, elaborado anualmente pelo Fórum

Econômico Mundial. Aliás, que tal Fórum possua qualquer credibilidade em

questões dessa natureza é ponto sumamente questionável - já que se trata,

a rigor, de um clube (é uma associação privada) com sede em Davos (Suiça)

para o qual são convidados apenas os grandes bancos, os bilionários de

toda a parte e os governantes simpáticos à causa dos super-ricos - mas

sobre isso não insistirei no momento.

Merece ser mencionado que, entre as fontes de dados utilizadas

para confecção desse Relatório, encontra-se uma “ pesquisa de opinião de

executivos conduzidas nos países através das instituições parceiras locais,

no caso do Brasil, a Fundação Dom Cabral e o Movimento Brasil 

Competitivo”. De modo que uma das fontes são as impressões subjetivas,

aceitas como verdade absoluta, da própria parte interessada, o que a mim

sugere que o cuidado com a isenção em tal estudo é bastante baixo.

De qualquer forma, segundo a última versão desse Relatório, o

Brasil estaria tão somente na 53ª posição, o que “comprovaria”, segundo a

pregação neoliberal, a necessidade premente do Brasil implementar 

reformas buscando o aumento da competitividade, incluindo a “flexibilização”

(eliminação) de direitos trabalhistas.

Vejamos, entretanto, alguns dos países que, segundo o mesmo

Relatório, estão à frente e seriam mais “competitivos” que o Brasil, vale dizer,

estariam em melhor condição de crescer economicamente que o Brasil:

Qatar (14º), Brunei (28º), Kuwait (34º), Malta (51º) e Sri Lanka (52º).

Já a China, principal motor propulsor da economia mundial nos

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dias atuais, estaria não nas primeiras colocações, mas na 26ª, atrás do

“competitivo” Qatar.

A seguir tal recomendação, o Brasil precisaria se esforçar um

pouco mais para se tornar uma economia tão “competitiva” quanto o

minúsculo arquipélago de Malta e quanto Sri Lanka, um dos países mais

pobres da Ásia.

Diante de um despropósito assim, conclui-se que a pertinência de

tal “estudo” (justifica-se, agora, as aspas) é não apenas nula, mas risível.

A má posição dada pelo Fórum Econômico Mundial ao Brasil,

entretanto, não é gratuita. De fato, o Brasil tornou-se um “mau exemplo”, sob

a ótica neoliberal, ao resto do mundo, por ser um país que está a crescer 

economicamente de forma expressiva sem adotar - até o momento - a

propugnada agenda de reformas “flexibilizadoras” (eliminadoras) de direitos

sociais.

Claro que a contundência de tal “mau exemplo” é relativa, pois

embora o Brasil tenha crescido (e provado ao mundo que se pode crescer)

sem eliminar direitos - o que, da perspectiva de Davos, é ruim e precisa ser 

corrigido, para que o exemplo não venha a ser seguido por outros -, o

patamar de direitos já era, desde o início, mais baixo que o da média dos

demais países com economia similar, especialmente em termos salariais.

Afinal, como antes visto, dentre as maiores economias do mundo o Brasil

possui um dos salários mais baixos.

Vale lembrar novamente que um “bom exemplo”, até

pouquíssimos anos atrás, era a Espanha, que se empenhou na eliminaçãode direitos trabalhistas através de reformas legislativas, tornando-se alvo de

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rasgados elogios internacionais, e agora enfrenta desemprego recorde e

desempenho econômico débil. E o país continua sendo, na perspectiva

neoliberal, um “bom exemplo” de competitividade para o Brasil, pois figura à

sua frente na 36ª posição do ranking do Fórum, supondo-se com isso que a

manutenção de uma taxa de desemprego superior a 20% torna, aos autores

do “estudo”, um país ainda mais “competitivo”.

Como “estímulo” para que o Brasil venha a corrigir o seu “erro” de

insistir em crescer sem flexibilizar a legislação trabalhista, o Fórum

Econômico Mundial fez o país perder, no “estudo” em questão, 16 posições

do relatório de 2010 para o de 2011 no ranking referente à “eficiência no

mercado de trabalho”, um dos vários elementos utilizados no Relatório para

compor o ranking final. O Relatório chega a mencionar, inclusive, um

“aumento da rigidez do emprego”, com a perda em razão desse item de

outras 18 posições, de 2010 para 2011, o que é extraordinário e significativo,

pois não houve nesse período qualquer mudança na legislação brasileira

alterando, para mais ou para menos, a “rigidez do emprego”.

Enfim, trata-se de uma análise que pouco tem de objetiva, e

apenas reflete os anseios e interesses da elite econômica nacional, cuja

opinião, colhida através de entrevistas, constitui fonte privilegiada de dados

para o “estudo”. O suposto aumento da “rigidez do emprego”, de 2010 para

2011, não ocorreu em parte alguma senão na mente dos membros da elite

econômica. Essa mentalidade já anunciava o avanço das propostas

legislativas flexibilizadoras, que ganharam novo ímpeto no início de 2011,

com o aumento da bancada empresarial no Congresso Nacional.

Quanto às perspectivas de crescimento futuro para o Brasil, elas

são animadoras ou, pelo menos, melhores que a média dos demais países.

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Sabe-se que o mundo se encontra sob a ameaça de mergulhar 

em uma crise recessiva global, reflexo da crise financeira de 2008, a qual foi

temporariamente contornada, mas não solucionada, com o explosivo

endividamento público, dado que vultosas quantias foram empregadas pelos

bancos centrais para salvar o sistema financeiro. Agora, entretanto,

praticamente se esgotou a possibilidade dos estados continuarem

absorvendo as perdas e os títulos podres do mercado financeiro, estando

países inteiros a entrar em colapso econômico, como a Grécia, sob o peso

da dívida.

Nesse contexto, todos perderão, e a Europa mais do que outros.

Não obstante, o Brasil possui “trunfos” capazes de contrabalançar perdas

maiores, a começar com a realização das vindouras Copa do Mundo e

Olimpíadas, em razão das quais, até 2016, ano da Olimpíada, está

praticamente garantida grande geração de empregos diretos e indiretos na

construção civil (além do turismo, hotelaria, etc.), que é historicamente o

setor que mais cria postos de trabalho no país. A tendência é reforçada,

aliás, pelas bilionárias obras relacionadas ao PAC (Programa de Aceleração

do Crescimento).

Na realidade, segundo o Dieese (Departamento Intersindical de

Estatística e Estudos Socioeconômicos), a indústria da construção civil está

enfrentando atualmente aguda carência de mão de obra, o que contraria por 

completo a necessidade de “flexibilização” como forma de facilitar 

contratações.

O Brasil também vem sendo beneficiado pela alta do preço das

commodities agrícolas e minerais, das quais é um dos maiores produtores e

exportadores do mundo. O Brasil é o maior exportador do mundo de minériode ferro, carne de gado e de frango, açúcar e café. Quanto ao futuro, a

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Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação já anunciou,

recentemente, a perspectiva de que a tendência de alta persistirá na próxima

década101:

“FAO prevê uma década de alta volatilidade em commodities

Estudo indica que produtos agrícolas vão permanecer em alta até

2020 e que o papel do Brasil será ainda mais relevante

  A próxima década será um período em que as commodities

agrícolas permanecerão com preços elevados e grande volatilidade no

mercado internacional. Neste cenário, o Brasil será um dos países mais

beneficiados, segundo estudo realizado pela Organização para Cooperação

e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em parceria com a Agência das

Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), intitulado Perspectivas

 Agrícolas 2011-2020.

(...)

 A expectativa é que os custos de alimentos, em média e em

termos reais, deverão subir até 50% no caso das carnes e 20% nos cereais

nos próximos anos. O Brasil, principal país exportador de carnes, com cerca

de 25% do mercado mundial, e boas perspectivas para o cultivo de milho,

 por exemplo, tende a se destacar. “Essa década promete ser a grande

chance para o Brasil se destacar e melhorar alguns índices, como da

 pecuária, que são defasados”, avalia Ramalho.

O estudo projeta um horizonte de desaceleração do crescimento

 populacional, dólar fraco, preços de energia em alta e inflação moderada.

Entre os motivos que devem sustentar os preços em altos patamares,

destacam-se os custos de produção agrícola em ascensão e a queda no101 Em http://revistagloborural.globo.com/Revista/Common/0,,EMI241095-18077,00-

FAO+PREVE+UMA+DECADA+DE+ALTA+VOLATILIDADE+EM+COMMODITIES.html

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crescimento da produtividade. Além disso, as pressões sobre os recursos

naturais, principalmente água e terras, aumentaram.

(...)

No lado da demanda, o crescimento populacional e o aumento da

renda em grandes emergentes como China e Índia sustentarão compras

firmes de commodities. Arroz, carne, lácteos, óleos vegetais e açúcar 

deverão ter os maiores aumentos de consumo.

O uso de matérias-primas agrícolas para biocombustíveis

manterá um "crescimento robusto". Até 2020, nada menos do que 30% da

 produção de cana, 15% de óleos vegetais e 13% de grãos deverão virar 

etanol e biodiesel, num contexto em que as elevadas cotações do petróleo

terminarão por viabilizar a produção de biocombustíveis mesmo sem os já

combatidos subsídios estatais.”

Tais previsões podem, é claro, não se confirmar inteiramente

caso a economia mundial ingresse em um período intensamente recessivo.

Mas mesmo nesse cenário, deve ser lembrado que a demanda por 

commodities agrícolas, que são o forte da economia brasileira, serão menos

atingidas que, digamos, a produção de máquinas, aparelhos eletrônicos e

automóveis. Pois mesmo durante uma recessão as pessoas precisam comer,

ainda mais populações enormes como as da China e da Índia, e populações

cuja agricultura nacional é incapaz de suprir integralmente as necessidades,

como as da Europa. De modo que o Brasil se encontra em melhor posição

que a média dos demais países, com possibilidade de crescimento na

agricultura e pecuária, e consequente aumento da demanda por mão de

obra.

Cabe mencionar, ainda, que o Brasil possui aproximadamente13% de toda a reserva de água doce do mundo, recurso natural que se

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tornará cada vez mais valioso no século XXI. Em parte as exportações

agrícolas do Brasil já se converteram, na realidade, em uma forma de

importação de água por parte de países confrontados com a crescente

carência desse recurso, como a China.

Outrossim, o Brasil também ganhou a sorte grande ao descobrir,

em seu território, uma das maiores reservas de petróleo do mundo, na

camada do pré-sal. Existem, é claro, dificuldades técnicas e logísticas

enormes para se viabilizar a exploração (para não se falar nos gigantescos

riscos ambientais), mas mesmo elas constituem, sob certa perspectiva, uma

oportunidade a mais, pois sua superação implica no desenvolvimento e

produção de novas tecnologias e de grande número de veículos, máquinas e

equipamentos, o que movimentará inúmeras indústrias além da extrativa.

Dependerá exclusivamente do Brasil, e em particular de seus governantes,

escolher se os maiores beneficiados pelo investimento a ser gerado serão a

indústria nacional e os trabalhadores brasileiros, ou a indústria estrangeira.

O maior perigo futuro ao Brasil, no momento, é o de se tornar 

“competitivo” demais pelo excesso de dinheiro entrando no país, inclusive

por conta das exportações de commodities, o que pode levar à

desindustrialização. Mas evitar tal resultado está, por completo, nas mãos

dos governantes brasileiros, que poderão, por exemplo, exigir que a

construção dos navios, plataformas, helicópteros e máquinas necessários à

exploração do pré-sal se dê no Brasil. Com isso, o excesso de dinheiro

alavancará o crescimento do Brasil e não da indústria estrangeira, ao invés

de apenas se gerar divisas que alimentarão a especulação irresponsável e o

desperdício.

Veja-se que a estimativa da Federação Única dos Petroleiros(FUP) é que seja criado um milhão de empregos no setor de produção,

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exploração e refino de petróleo nos próximos dez anos, não havendo,

também aqui, qualquer necessidade de se “flexibilizar” (eliminar) direitos para

alavancar contratações. O problema, como no caso da construção civil, será

  justamente o contrário, o de carência de mão de obra, especialmente a

qualificada.

Sobre as perspectivas futuras de crescimento da riqueza no

Brasil, dá conta também o estudo “Global Wealth Report” do banco Credit

Suisse:

“Riqueza das famílias brasileiras deve mais que dobrar até 2016,

diz estudo

(...)

Relatório realizado pelo Credit Suisse estima que a riqueza das

famílias brasileiras irá mais que dobrar de 2011 até 2016, chegando a US$ 

9,2 trilhões. Se a previsão for confirmada, o nível de riqueza familiar do

Brasil daqui a cinco anos será equivalente ao registrado nos Estados Unidos

em 1948.

 

 Ainda de acordo a segunda edição do relatório “Global Wealth

Report” (Relatório de riqueza mundial, em português”), realizado em outubro

  pelo banco suíço, deverá mais que dobrar nos próximos cinco anos o

número de milionários no Brasil: subirá dos atuais 319 mil para 815 mil,

expansão de 155%.102 ”

Ora, às vésperas de tal extraordinária e inédita geração de

empregos diretos e indiretos, e ante a perspectiva de continuidade de

crescimento econômico, mostra-se insólito e escandaloso, mas não

incompreensível, que se venha a falar em reduzir direitos trabalhistas para102 Em http://g1.globo.com/economia/noticia/2011/10/riqueza-das-familias-brasileiras-deve-

mais-que-dobrar-ate-20161.html

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gerar empregos.

O que assusta a elite econômica não é que a falta de

competitividade conduza à deficiente geração de empregos, mas justamente

o contrário disso: o medo é que o número de desempregados no Brasil

diminua muito por conta do crescimento, e que se atinja em determinados

setores e regiões - na construção civil, na extração mineral, etc. - o pleno

emprego, fazendo com que os trabalhadores se encontrem na posição de

poder efetivamente exigir e obter melhores salários e condições de trabalho,

pela ausência de um exército excedente de mão de obra de reserva.

Talvez o temor maior da elite seja que, se o patamar trabalhista

atual for mantido, e a demanda por mão de obra continuar aquecida no

Brasil, terão os empregadores que fazer concessões adicionais aos

trabalhadores. Ao revés, se forem reduzidos desde já direitos previstos na

legislação, a luta dos trabalhadores nesse futuro próximo será tão somente

para recompor aquilo que perderam, sem conquistas adicionais, mantendo-

se o status quo.

A propósito, em audiência pública realizada pelo Ministério

Público do Trabalho e outras entidades, neste ano de 2011, estando

presentes dezenas de representantes da indústria da confecção, escutei um

empresário pedir a palavra para condenar abertamente o pleno emprego

atingido no município (Ibitinga), mencionando-o como um mal a ser 

combatido, já que faria com que “as empresas fiquem nas mãos dos

trabalhadores”, o que, do ponto de vista dele, é um absurdo.

O receio patronal aí manifestado - pavor diante da possibilidade

de ascensão da classe trabalhadora no contexto de um mercado de trabalho

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aquecido - parece ser corroborado pelos fatos103:

“Empresas têm dificuldade para encontrar até profissional pouco

qualificado

(...)

Principais reclamações de escassez de mão de obra ocorrem nos

setores de construção civil e serviços

Com a economia se expandido em ritmo acelerado, o país tem

batido recordes sucessivos na geração de empregos com carteira assinada.

De janeiro a agosto, 1,95 milhão de vagas formais foram criadas e a

 previsão para o ano que vem, de acordo com o Ministério do Trabalho, é de

três milhões de novos empregos. O ministro Carlos Lupi comemora os

números com um alerta: a enorme demanda por trabalhadores deve fazer 

com que o Brasil sofra ainda mais com a falta de mão de obra nos próximos

anos. A ‘novidade’, destaca Lupi, é que os gargalos não mais se restringirão

aos profissionais do topo da pirâmide de qualificação (já escassos no país

  pelas conhecidas deficiências do sistema educacional). Deverá crescer a

carência daqueles trabalhadores que desempenham tarefas que dispensam

um elevado grau de instrução; algo que já se verifica na construção civil e

alguns setores de serviços.

Na região da cidade de Ribeirão Preto, por exemplo, pólo

 produtor de cana de açúcar do estado de São Paulo, algumas construtoras

estão contratando ex-bois frias para trabalhar como auxiliares nos canteiros

de obras. “É só andar por Ribeirão Preto para perceber a quantidade de

obras em execução. A mão de obra especializada, como pedreiro,

encanador e eletricista, está em falta faz tempo. Estamos contratando todos

que chegam com alguma experiência comprovada”, avalia Francisco Galli,103 Em http://veja.abril.com.br/noticia/economia/escassez-de-mao-de-obra-ja-atinge-

profissionais-menos-qualificados

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técnico de segurança do trabalho da construtora Pereira Alvim, que conta

com trabalhadores egressos do corte de cana em seu quadro de

empregados.

No segmento de serviços, a demanda é forte e também enfrenta

escassez de trabalhadores. Um reflexo deste cenário é que as pessoas têm

maior poder de barganha, exigindo salários maiores para aceitar uma

 proposta. A agência paulistana de recrutamento de empregadas domésticas

Doce Lar comprova essa tendência. A gerente Patrícia Bueno relata que

enfrenta resistência de suas agenciadas em aceitar vagas que paguem o

mínimo da categoria, de 560 reais. “Por 700 reais elas já se recusam”,

afirma.

É possível, então, que o novo avanço conservador, neste início

de Governo Dilma, constitua uma ação estratégica da elite econômica como

preparação à “ameaça” de se atingir, em diversos setores econômicos e

regiões do país, o pleno emprego, situação que fortalece a posição dos

trabalhadores e a capacidade destes de reivindicar melhores condições e

salários. Assusta à elite a perspectiva de que não mais sejam encontrados

trabalhadores que aceitem laborar em troca de um salário de 700 reais ou

menos, ou que não aceitem laborar sob condições ruins, com prejuízo à

saúde, como costuma ocorrer no corte de cana, na pecuária extensiva, nos

frigoríficos e na construção civil.

A estratégia parece ser: tire-se dos trabalhadores tudo o que se

puder agora, para que no futuro próximo, quando eles estiverem em posição

de exigir melhores condições, dada a carência de mão de obra, tudo o que

conseguirão com sua luta é recuperar o que já perderam através de reformas

flexibilizadoras.

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6.2) Contribuição empresarial ao “Custo Brasil” e à perda de

competitividade

A elite econômica brasileira gosta muito de falar em “Custo Brasil”

- como se não fosse óbvio, em economia, que tudo tem seu custo -, e é

muito rápida e contundente em denunciar as supostas responsabilidades dos

trabalhadores ou do estado para a elevação desse custo.

A propósito, que a preservação do patamar de direitos

trabalhistas possui um custo, que é justo e necessário, e que precisa ser 

suportado em benefício de toda a sociedade, é ponto sobre o qual já discorri

no capítulo 4.

O que a análise empresarial sempre esquece de enfocar é a sua

própria quota de responsabilidade para com a elevação do tal “Custo Brasil”,

que não é pequena. De fato, convenientemente deslembra-se a elite nacional

que dentre os principais fatores de perda de competitividade brasileira estão

as suas próprias práticas e posturas arcaicas, cujo aperfeiçoamento está por 

completo ao seu alcance, sem a necessidade de imposição de sacrifícios aos

mais pobres.

Veja-se, por exemplo, a seguinte reportagem, representativa do

ponto de vista da elite nacional104:

“Os especialistas ouvidos por EXAME são unânimes em apontar 

um cenário extremamente promissor caso o Brasil opte por se livrar de

amarras em quatro terrenos — o sistema tributário sufocante, a legislação104 Em http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/0987/noticias/a-busca-por-um-brasil-

competitivo?page=4&slug_name=a-busca-por-um-brasil-competitivo

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trabalhista esclerosada, a infraestrutura precária e uma taxa de juro única no

mundo.”

O que chama a atenção em tal abordagem? Que nenhuma

responsabilidade recai sobre os próprios empresários. As amarras ao

crescimento são todas causadas pelo governo ou pelos trabalhadores.

Se fossemos crer em tal versão dos fatos, a elite econômica

brasileira estaria entre as mais eficientes do mundo, e já teria feito todo o

possível para tornar o país mais competitivo. Apenas o governo e os

trabalhadores não acompanham o altíssimo grau de excelência e

competência do empresariado brasileiro.

Será que as coisas se dão realmente dessa forma? Vejamos.

Em um mercado de produção e consumo de massa, marcado por 

acentuada competição entre as empresas, o bom atendimento prestado ao

consumidor, capaz de consolidar laços de fidelidade, constitui uma das mais

valiosas vantagens competitivas. Satisfazer o cliente é a chave para o

sucesso em qualquer negócio, não apenas por atrair novos consumidores e

conservar os antigos, mas pelo estímulo criativo criado para que a empresa

continue a perseguir a excelência.

Não obstante a obviedade de tal lição, a verdade é que o Brasil

se notabiliza por ser um país no qual os consumidores costumam receber 

atendimento ruim ou péssimo, chegando em muitos casos a ser 

genuinamente maltratados e desprezados.

Nesse sentido, alerta a seguinte pesquisa105:

105 Em Revista Exame, 19/03/2010

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“Sua empresa é pior do que você imagina

Uma pesquisa inédita mostra que a maior parte das empresas

brasileiras acredita que presta um ótimo serviço a seus consumidores. Na

 prática, um abismo separa autoimagem de realidade

“(…) Os discursos que exaltam o “foco no consumidor”, a

“satisfação total” e o “cliente sempre em primeiro lugar” continuam em alta

nos modismos corporativos. Tudo muito bonito e politicamente correto. Quem

ousaria dizer o contrário? Na vida real, porém, as coisas costumam ser bem

diferentes. É o que mostra uma pesquisa elaborada por EXAME e pelo

Instituto Brasileiro de Relacionamento com o Cliente (IBRC). O estudo,

realizado entre abril e dezembro de 2009, com base em entrevistas com

mais de 3 000 pessoas em todo o país e em pesquisas sobre as práticas de

relacionamento de 100 companhias, aponta as dez empresas com melhor 

atendimento aos clientes e as dez com pior desempenho. Tão ou mais

importantes do que a lista são as conclusões que podem ser tiradas da

 pesquisa – e que servem para qualquer empresa que mantenha relações

diretas com o mercado. A fotografia que surge mostra um profundo abismo

entre a imagem que as companhias têm de si mesmas e o que os

consumidores pensam delas. Quase todas as empresas – 98%, para sermos

mais precisos – afirmam ter uma estrutura eficiente de atendimento. Mas

23% dos consumidores entrevistados disseram não ter sido bem atendidos

 por nenhuma companhia nos 12 meses anteriores à pesquisa. Ne-nhu-ma.

(...)

  A real questão é a incapacidade que muitas empresas

demonstram de meramente cumprir o contrato selado com o consumidor,

entregando apenas e tão somente o que foi prometido. Esse, sim, é um  problemaço. Resolvê-lo é condição necessária para cumprir o objetivo

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 primordial de qualquer negócio – ter lucro e remunerar os acionistas. “O erro

zero é impossível”, afirma Alexandre Diogo, presidente do IBRC. “Muitas

empresas desperdiçam recursos com fórmulas mirabolantes e deixam de

fazer o básico, que é respeitar o consumidor e resolver de forma eficaz os

 problemas que aparecem.” 

Há duas saídas para consumidores impacientes – ambas

desastrosas para quem está do outro lado da mesa. A primeira, mais óbvia,

é trocar de fornecedor. Aí temos o fim da linha de uma relação que

normalmente custa um bom dinheiro para ser construída. A segunda, mais

barulhenta, é apelar para os cada vez mais disseminados mecanismos de

defesa do mercado. Esse tipo de comportamento levou, por exemplo, à

recente multiplicação de multas aplicadas no Brasil por mau atendimento. No

ano passado, operadoras de telefonia, empresas de cartões de crédito,

companhias aéreas, concessionárias e outras prestadoras de serviços foram

 punidas em 93 milhões de reais – a soma das multas aplicadas pelos dez 

 principais Procons do país (incluindo São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília) e

 pelo Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor. Duas das maiores

operadoras de celular do Brasil – Oi e Claro – se tornaram alvo de uma ação

civil pública milionária, acusadas de não cumprir a lei que regulamenta o

atendimento nos call centers, em vigor desde 2009. Em caso de

condenação, a multa será de 300 milhões de reais para cada empresa – a

maior punição do gênero no Brasil.

(…) “Em setores com alto nível de competição, é comum que os

executivos estejam muito preocupados com os resultados imediatos e

cortem investimento em atendimento”, afirma Leonardo Araújo, professor de

marketing da Fundação Dom Cabral. “O que eles não percebem é que, com

o tempo, o índice de retenção de clientes também faz diferença.” Por outrolado, apenas aumentar o investimento sem combater a razão de tantas

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ligações e reclamações é como enxugar gelo.

(...)

 A diferença entre o grupo de empresas que se saíram bem na

  pesquisa EXAME/IBRC e o grupo das que se saíram pior não está na

ausência de falhas. O que os separa é uma combinação de investimentos

em treinamento, sistemas de tecnologia que organizem o fluxo das

reclamações e, sobretudo, um controle maior sobre o produto ou serviço

oferecido.

(...)

Talvez a grande resposta ao desafio do relacionamento com o

consumidor seja encará-lo como o que ele realmente é: um componente vital 

do negócio, e não um favor ou um agrado ao mercado.” 

(…) Estudos da consultoria Bain & Company mostram que

manter um cliente é bem mais barato que recuperar um consumidor perdido.

Dependendo da empresa, é preciso conquistar de três a dez clientes fiéis

 para compensar o estrago causado por um único cliente furioso. Ainda

segundo a Bain, cada aumento de 5 pontos percentuais no índice de

retenção de clientes pode fazer o lucro por consumidor aumentar até 85%

em bancos de varejo e até 135% nas operadoras de telefonia. “Investir no

bom relacionamento não é só garantia de sobrevivência mas também de

crescimento no longo prazo”, diz Rodolfo Spiellman, sócio da Bain &

Company no Brasil. Óbvio? Sim. Mas na vida real, diferentemente do que as

 próprias empresas teimam em propalar, fazer as coisas certas – e só fazer 

isso – muitas vezes é uma exceção. Não uma regra.”

A maior parte dos consumidores brasileiros já passou, e continua

passando, por situações assim, desde a lavanderia da esquina até a

empresa telefônica. O descaso é tanto que consumidores por vezes sãolevadas às lágrimas, de tanta raiva que experimentam. Quem, por exemplo,

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  já não passou pela verdadeira via crucis que é buscar o cancelamento de

contrato com uma operadora de telefonia celular?

Vejamos alguns exemplos concretos, extraídos do relatório

“Cadastro de reclamações fundamentadas 2010" do Procon/SP:

“Eletropaulo deixa de atender 71% das reclamações do Procon

Das 863 reclamações contra a Eletropaulo, 614 não foram

atendidas pela empresa (71%). Em 2009 esse índice foi de 52% das

reclamações. Houve, portanto, um aumento de 35% no número de

reclamações não atendidas pela empresa.

 Além das reclamações de danos a equipamentos provocados

 pelos apagões sistemáticos, destacam-se as cobranças indevidas, inclusão

indevida do nome do cliente no Serasa e o corte indevido da energia elétrica.

  A Eletropaulo já foi multada em R$ 18.014.539,78 pela má

 prestação do serviço de energia. Deste total, a concessionária já pagou R$ 

3.537.215,33. Desde de 2003, a empresa já recebeu sete autuações do

Procon-SP.

(...)

Planos de saúde dificultam marcação de exames e consultas

  A agência reguladora do setor não vem obtendo êxito em

assegurar aos consumidores desse tipo de serviço, absolutamente essencial 

diga-se, padrões adequados de qualidade. Além de milhões de pessoas que,

 por estarem atreladas a contratos coletivos, ficam à margem da proteção

regulatória, sobretudo no que diz respeito a reajustes e à garantia demanuteção do seu vínculo contratual, o Procon-SP identificou que os

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consumidores têm enfrentado enormes dificuldades quando necessitam

utilizar os serviços contratados.

Entre os principais problemas registrados, estão a negativa para

a marcação de consultas e cirurgias; demora no agendamento;

disponibilidade de médicos, clínicas, hospitais ou laboratórios distantes da

residência do consumidor; descredenciamento de médicos e instituições de

saúde sem que o paciente seja previamente informado.

(...)

TAM e Gol registram baixo índice de solução

Com o segmento em expansão, estas empresas não se

mostraram sensíveis em acolher as demandas de seus consumidores,

apresentando índices de não atendimento superiores a 65%. Apesar de

dividirem praticamente a mesma fatia do mercado, a TA M registra o dobro

de reclamações da Gol.

Entre os principais problemas, estão o atraso dos voos, danos ou 

extravio de bagagens, dificuldades no cancelamento dos bilhetes, retenção

dos valores pagos pelos clientes e informação disponível insuficiente ou sem

clareza. Em 2010, a TA M foi multada em R$ 8.880.000,00 e a Gol em R$ R$ 

4.211.000,00.

(...)

  A Casas Bahia registrou mais que o dobro do número de

reclamações, em relação ao ano anterior (495 contra 187). A metade dos

 processos não foi atendida pela empresa. No cadastro 2009, o percentual de

reclamações não atendidas foi de 30%.

O Ponto Frio dobrou o número de reclamações em relação aocadastro divulgado a ano passado – 280 em 2010, contra 136 em 2009, com

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o agravante de que, tanto em 2009 como em 2010, foram verificadas duas

reclamações não atendidas para cada reclamação atendida. Entre os

 principais problemas, estão a entrega de produto com defeito ou diferente do

 pedido, demora na montagem e venda enganosa de contratos de seguro,

como garantia estendida.” 

Esse é um dos maiores “gargalos” à competitividade brasileira,

que gera enormes prejuízos à economia nacional, e não apenas aos

consumidores lesados, mas também às empresas, pelo comprometimento do

potencial de recompra e pela perda de clientes. Não obstante, ninguém ouve

lideranças empresariais listar o problema como uma das cifras do “Custo

Brasil”, ou como uma questão a ser imediatamente enfrentada, eis que

nefasta aos negócios.

Parte significativa do empresariado brasileiro acostumou-se a

tratar mal o consumidor, e supõe que este não terá alternativa senão aceitar 

o que lhe é oferecido, ainda que de má qualidade (aí incluído o mau

atendimento). Trata-se de uma atitude indolente, marcada pela preguiça e

pela busca do lucro fácil. Essa perspectiva, inclusive do ponto de vista

estritamente econômico, é estúpida, pois cria um obstáculo importante à

demanda, conduzindo à diminuição dos lucros.

Um consumidor satisfeito e bem atendido é capaz de gastar,

digamos, 100 reais, quando sua intenção inicial era gastar apenas 50. O

mesmo consumidor, ao ser maltratado e mal atendido, de 50 (que é o que

desejava) e de 100 (que é o seu teto máximo) gastará menos que 50 ou

simplesmente deixará de comprar, já antevendo os dessabores que terá que

enfrentar.

Parte do empresariado brasileiro supõe que o consumidor 

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nacional irá aceitar quase qualquer coisa que lhe for oferecida, e que será

incapaz de exigir tratamento melhor. Não percebe o empresariado que,

mesmo que de fato o consumidor brasileiro se veja compelido pela falta de

opções, ele provavelmente acabará consumindo menos do que poderia,

reduzindo o volume de compras e vendas, particularmente em se tratando de

bens de maior valor e contratos de longa duração.

É apenas ao tentar inserir seus produtos no exterior que os

empresários descobrem que os padrões de qualidade no Brasil são muito

baixos. Para conseguir espaço em outros mercados, descobrem que terão

que investir em qualidade e excelência. Não obstante, nesse momento a

opção de muitas empresas é manter duas linhas de produtos, uma para o

mercado interno, de pior qualidade, e outra “tipo exportação”, de melhor 

qualidade. De modo que nada aprendem com a lição de exportar, e

persistem no erro.

O mesmo comportamento é exibido pelo empresariado brasileiro

quando se trata de inovar, de buscar continuamente o aperfeiçoamento

tecnológico e a melhoria de processos, que favorecem o aumento da

produtividade. Veja-se, nesse sentido, a seguinte entrevista106:

“Quem inova no Brasil é quase um herói. Essa é a visão de

Glauco Arbix, presidente da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep)

desde o início deste ano.

(...)

iG: Mas muitas empresas brasileiras dizem que essa questão

conjuntural, como o câmbio, prejudica demais a inovação.

 Arbix: As empresas gostam de ressaltar os desafios externos a

106 Entrevista ao jornalista Danilo Fariello, portal iG Brasília, 17/06/2011.

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elas. Isso é verdade, mas é bom olharmos para dentro. Muitas empresas

não estão preparadas para inovar. Inovar é ter gente competente,

transformando idéias em produtos. Não adianta só ter computador de última

geração. Muitas empresas brasileiras ainda acham que salário é custo, e

não investimento. As empresas têm que contratar gente mais qualificada. Só

com inovação o Brasil terá futuro. Se ficarmos na armadilha do dólar e das

commodities, vai compensar mais importar do que produzir aqui. Isso é

desindustrialização.

iG: Esse crescimento todo da economia não tem levado a uma

escassez de mão de obra qualificada?

 Arbix: Sim, mas sempre teremos problemas externos e internos.

Como eu disse, inovar não é fácil. Quem inova é quase um herói. E tem

quem consegue. É gente muito boa que inova, indo para áreas mais

  próximas do conhecimento, atacando os problemas para elevar 

 produtividade e competitividade. Quando o empresário olha para o câmbio e

os juros, fica esperando o governo agir. O outro olhar é o de organizar a

empresa, apesar desses obstáculos.” 

Como sintoma disso, o Brasil possui, dentre as maiores

economias do mundo, o pior desempenho no quesito registro de novas

patentes, circunstância extremamente perigosa a um país que deseja

assegurar sua independência tecnológica.

“Brasil fica para trás na corrida por patente, apesar de avanço na

economia

Dono de conquistas importantes nos últimos anos - que vão decontrole da inflação e melhor distribuição de renda à capacidade de

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recuperação no período pós-crise-, o Brasil ainda patina para provar a

capacidade criativa de sua indústria, item considerado básico para o

crescimento futuro.

Números da Ompi (Organização Mundial de Propriedade

Intelectual), que reúne os pedidos de patente feitos por empresas de todas

as partes do mundo, mostram que o índice de inovação brasileiro mal 

conseguiu acompanhar o avanço da economia na última década.

Enquanto o PIB cresceu 158% desde 2000, para mais de R$ 3

trilhões, e fez o país representar 2,7% da economia mundial, em patentes o

Brasil não passa de 0,32% dos pedidos internacionais.

Em contrapartida, países asiáticos, principalmente, tiveram

avanços proporcionais nas duas frentes.

 A China viu seu PIB quadruplicar entre 2000 e 2009, para US$ 

4,98 trilhões, e, ao mesmo tempo, passou de 0,84% de participação nas

 patentes globais para 7,3%.

Já a Coreia do Sul apresentou crescimento de 56% em sua

economia e já se sustenta com expressivos 5,17% de participação em

 patentes.

 ACOMODAÇÃO

"Como somos ricos em recursos naturais, nunca precisamos

inovar para sobreviver, diferentemente de países asiáticos. Existe uma

espécie de acomodação que gerou um aspecto cultural crônico difícil demudar", diz Paulo Feldmann, professor da FEA (Faculdade de Economia,

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 Administração e Contabilidade da USP).

Entre os pedidos de patentes de empresas apresentados ao Inpi 

(Instituto Nacional de Propriedade Intelectual), que registra a proteção só no

  país, há crescimento gradual, mas ainda lento. Em 2010 foram 30 mil 

 pedidos registrados e 3.620 patentes concedidas.107 ” 

E ainda108:

“O Brasil também deixa a desejar quando o assunto é dinheiro

 para inovar. De acordo com os dados do Instituto de Pesquisa Econômica

 Aplicada (Ipea), os gastos brasileiros em pesquisa e desenvolvimento - P& D

 – a medida mais direta de quanto se investe em tecnologia - estão na casa

de 1% do Produto Interno Bruto ( PIB) do Brasil, do qual metade tem origem

no setor privado. Já nos países desenvolvidos que compõem a Organização

 para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a média fica na

casa de 2,4% do PIB. Em outros, como a Coréia do Sul, o total chega a 3%

do PIB e a participação do setor privado é de 70%.” 

Ao invés de buscar soluções e investir, o empresariado brasileiro,

com raras e meritórias exceções, prefere acomodar-se, esperando tudo do

governo. Mesmo quando se trata de obter a mão de obra qualificada que

agudamente necessita, o empresariado insiste em se queixar ao invés de

agir.

Não é outro o alerta de Roberto Nicolsky109:

107 Em http://www1.folha.uol.com.br/mercado/853744-brasil-fica-para-tras-na-corrida-por-patente-apesar-de-avanco-na-economia.shtml

108 Em http://www.adenacon.com.br/novidades/brasil-fica-para-tras-no-ranking-de-registro-de-patentes

109 “Inovação tecnológica industrial e desenvolvimento sustentado”, em Parcerias Estratégicasn. 13, dez. De 2001, Brasília: Ministério de Ciência e Tecnologia, 2001.

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“Uma questão crucial e oportuna para um país emergente, como

o nosso, que busca caminhos para alcançar um nível de produção, renda e

distribuição compatíveis com as necessidades da sociedade, é a relação

entre os investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) e o

crescimento sustentado do país, notadamente no presente cenário de um

mundo globalizado.

(…)

 A ideia de que a universidade venha a suprir a fraca atuação das

empresas é uma completa distorção da sua missão e vai certamente

fracassar pelo mecanismo dos fundos setoriais, como já ocorreu na década

dos anos setenta, com a tentativa de fazê-lo através do FNDCT. Portanto, a

 política de fomento à pesquisa tem que ter por objetivo a mobilização das

indústrias para a inovação.” 

Tive a oportunidade de observar tal comportamento em primeira

mão, como procurador do trabalho, ao celebrar um acordo judicial com

empresa multinacional por problemas trabalhistas ocorridos em uma usina de

cana-de-açúcar. Entre os pontos por mim exigidos, além da indenização

coletiva e dezenas de obrigações trabalhistas, figurava o dever da empresa

assegurar qualificação profissional a 100 trabalhadores, em funções com

relação às quais houvesse carência de mão de obra na região.

Ao apresentarem a mim o projeto desses cursos para aprovação,

os representantes da empresa admitiram que a obrigação vinha a suprir uma

necessidade da própria companhia, pois esta não estava conseguindo

encontrar na região os operadores de máquinas de que tanto precisava. Ou

seja, só depois de ter sido compelida a fazer - o acordo foi celebrado após

meses de intensa resistência, aliás - a empresa deu-se conta que a medida

era na verdade favorável aos seus próprios interesses. Ora, se era bom paraos negócios (além de ser bom para os trabalhadores que receberão a

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formação profissional), por que a empresa não investiu na qualificação de

tais profissionais antes, ao invés de esperar por uma imposição judicial? E

veja que não se tratava de uma empresa pequena, mas de uma das maiores

empresas do setor de alimentos do mundo.

Tal falta de visão é típica do empresariado brasileiro: qualquer 

despesa, inclusive investimentos, é custo a ser suprimido. Prefere-se o lucro

menor que se pode obter hoje, através do corte de custos, ao lucro maior 

que se poderia obter amanhã. E tudo o que for fundamental ao futuro da

empresa se espera que seja suprido pelo estado.

A propósito, também chama a atenção a ingenuidade de se

imaginar que as empresas brasileiras conseguirão localizar trabalhadores

mais qualificados e motivados ao mesmo tempo em que se suprime deles

direitos trabalhistas. Quem tiver que trabalhar mais horas por dia e gozar 

menos dias de férias por ano, recebendo salário pior, possuirá menor 

formação educacional e inferior qualificação profissional. Não terá tempo,

dinheiro ou energia para buscar o aperfeiçoamento pessoal.

Contraditoriamente, pretende a elite econômica obter empregados melhores

assegurando-lhes menos direitos.

Ou seja, falta ao empresariado brasileiro, com notáveis exceções,

inteligência, criatividade e visão estratégica. Há também um fosso entre o

plano do discurso - no qual se prega a “excelência no atendimento ao

consumidor”, por exemplo - ao plano da realidade, na qual prevalece o corte

de custos a qualquer preço, o desprezo ao consumidor e à necessidade de

aperfeiçoamento constante.

Tais fatores constituem alguns dos principais componentes do“Custo Brasil”, e prejudicam a competitividade das empresas nacionais.

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Que tal, então, se antes de cobrar sacrifícios dos trabalhadores,

mediante reformas precarizantes e eliminadoras de direitos, a elite

econômica não se concentre em corrigir as falhas que lhe dizem respeito, e

que emperram o crescimento do país? Que tal se a elite fizer o seu “dever de

casa” antes de querer “meter a mão no bolso” dos mais pobres?

Outro componente importante do “Custo Brasil” poucas vezes

lembrado como tal é a corrupção, e também aqui se percebe a falta de

interesse da elite econômica em “colocar o dedo na própria ferida”. De fato, é

a elite econômica quem mais colabora para sustentar as redes de corrupção,

achando melhor lidar com os corruptos para conseguir o que precisa para

viabilizar seus negócios (o famoso “jeitinho brasileiro”), do que combater tal

significativa fonte de despesa, mantida sob forma de propinas, contribuindo

para a escolha de políticos honestos.

Na verdade, o próprio meio empresarial reconhece a existência

da corrupção como um problema e como uma elevada fonte de custos, mas

não se engaja no seu combate.

Nesse sentido, cabe menção ao relatório “Corrupção: custos

econômicos e propostas de combate” publicado pela Fiesp em março de

2010110:

“Usando como referência a média do CPI desses países de 7,45,

calculamos que, no período 1990-2008, o custo médio anual da corrupção

 para o Brasil é de US$ 8,8 bilhões a preços constantes de 2000 (ou R$18,7 

bilhões a preços constantes de 1998). A preços correntes de 2008, o custo

anual da corrupção é estimado em R$ 41,5 bilhões, o que corresponde a110 Disponível em: http://www.fiesp.com.br/competitividade/downloads/custo%20economico

%20da%20corrupcao%20-%20final.pdf 

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1,38% do PIB.” 

A eliminação de uma fonte de despesa perniciosa superior a 1%

do PIB deveria constituir uma prioridade nacional, e inclusive em termos

financeiros haveria de ser mais importante, para o meio empresarial, do que

a redução de custos trabalhistas. Mas o que se percebe são parlamentares

vinculados à bancada empresarial comprometidos com reformas

flexibilizadoras (eliminadoras) de direitos trabalhistas, e não com o combate

à corrupção.

Pelo contrário, o que se fez no Brasil, nos últimos anos, foi

discutir formas de tornar mais difícil o combate à corrupção, por exemplo

através da limitação dos poderes de investigação do Ministério Público, ou

da criação de embaraços à propositura de ações civis públicas por 

improbidade administrativa (como o projeto de Lei da Mordaça, de autoria de

Paulo Maluf).

Para pessoas que se dizem comprometidas com a redução do

“Custo Brasil”, trata-se de posição sumamente contraditória.

6.3) Favorecendo o desenvolvimento através dos direitos

trabalhistas

A conclusão dos itens anteriores foi no sentido de que o patamar 

atual de direitos trabalhistas não constitui empecilho ao desenvolvimento -

tanto que o Brasil já cresceu sem eliminá-los -, e que há outros fatores que

compõem o chamado “Custo Brasil”, capazes de reduzir a competitividadedas empresas brasileiras, e que poderiam ser imediatamente enfrentados,

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pois são custos desprovidos de valor construtivo ou de relevância social, e

nada acrescentam à produção e ao consumo.

Mas isso não é tudo. Não apenas os direitos trabalhistas não

prejudicam o crescimento econômico, como francamente o favorecem,

estimulando ainda o desenvolvimento sustentável e de longo prazo.

A primeira evidência nesse sentido vem do Fundo Monetário

Internacional (FMI), uma fonte cara aos defensores do neoliberalismo. De

acordo com o Fundo, no estudo “Iniquidade e crescimento insustentável:

dois lados da mesma moeda?111”, a desigualdade social é fator que dificulta a

manutenção de períodos de desenvolvimento mais duradouros:

"Esta nota centra-se na duração dos períodos de crescimento -

definido como o intervalo iniciado com um salto de crescimento e terminando

com uma queda - e sobre as relações entre duração e diferentes políticas e

características do país, incluindo a distribuição de renda. Acontece que

muitos dos países mais pobres conseguiram iniciar o crescimento a taxas

elevadas por alguns anos. O que é mais raro - e que separa os milagres de

crescimento dos retardatários - é a capacidade de sustentar o crescimento. A

 pergunta então é: o que determina o comprimento dos surtos de crescimento

e qual é o papel da desigualdade de renda no período?

Nós achamos que períodos mais longos de crescimento são

robustamente associados com mais igualdade na distribuição de renda.

(...)

  As implicações destes resultados é que é difícil separar as

análises do crescimento e da distribuição de renda. (...) A longo prazo, a

111 “Inequality and unsustainable growth: two sides of the same coin?”, livre tradução, autoresAndrew G. Berg and Jonathan D. Ostry, abril 2011, emhttp://www.imf.org/external/pubs/ft/sdn/2011/sdn1108.pdf 

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redução da desigualdade e o crescimento sustentado podem assim ser dois

lados da mesma moeda.

(...)

  Alguns países conseguiram, através de políticas pró-pobres,

reduzir significativamente a desigualdade de renda. O Brasil, por exemplo,

depois de suas reformas orientadas ao mercado de 1994, implementou 

  políticas pró-pobres de distribuição de renda, especialmente através de

gastos com assistência social, que foram fundamentais para a redução

substancial da pobreza ".

Paradoxalmente, agora que o próprio FMI reconhece seus erros

do passado (as “reformas orientadas ao mercado” foram implementadas, na

década de 1990, com o beneplácito do Fundo), e bate palmas para o

crescimento mais duradouro proporcionado por políticas pró-pobres de

distribuição de renda, o que se deseja fazer no Brasil? Eliminar direitos

trabalhistas, permitindo novamente o aumento dos índices de desigualdade,

de modo a encurtar os períodos de desenvolvimento.

O que está sendo dito quando se defende reformas

precarizantes, basicamente, é isto: já que algo está dando certo - crescer 

economicamente com redução da desigualdade e manutenção do patamar 

de direitos sociais - vamos parar de fazer isso, para voltar ao que fazíamos

no passado, quando convivíamos com desigualdade mais alta e com

estagnação econômica. Em termos mais coloquiais, deseja-se "mexer no

time que está ganhando" para colocar no seu lugar o time de antes, que não

ganhava uma partida sequer. Essa é a estranha “lógica” que está a inspirar a

agenda de reformas “flexibilizadoras” (eliminadoras) de direitos.

Direitos trabalhistas e previdenciários são as melhores formas atéhoje já inventadas no mundo para se promover a justiça social e reduzir as

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desigualdades. Sua capacidade de gerar efeitos economicamente virtuosos é

ainda maior que a de medidas apenas assistenciais, as quais, embora

importantes, não devem constituir a ênfase maior, sob pena de se perpetuar 

mecanismos de dependência sem a transformação da realidade social, e

sem o “empowerment” dos mais pobres.

Eliminar direitos trabalhistas, através de reformas

“flexibilizadoras”, implica necessariamente em fazer aumentar a

desigualdade, com a redução do padrão de vida de milhões de famílias, que

em sua maior parte estão pouco acima da pobreza ou integram o substrato

mais baixo da classe média. A desigualdade será tanto maior na medida em

que a economia proporcionada pela eliminação do custo trabalhista acabará

sendo embolsada pelos mais ricos.

Ora, pela lição do FMI, tal aumento da desigualdade conduzirá,

também, ao término precoce da boa fase de crescimento que o Brasil vem

experimentando nos últimos anos. O que, em última análise, atenta inclusive

contra os interesses da elite econômica, que vem sendo regiamente

recompensada por tal crescimento.

Trata-se, portanto, de mais um exemplo do pensamento de curto

prazo (ou de “desinteligência estratégica”) sobre o qual discorri

anteriormente, típico da elite econômica brasileira, com foco no lucro que

pode ser obtido de forma imediata, através da eliminação indiscriminada de

custos, sem se atentar às consequências de médio e longo prazos,

prejudiciais inclusive aos interesses da elite.

A realidade é que os empresários brasileiros vem sendo nas

últimas décadas beneficiados, à revelia de sua vontade e contrariamente àssuas pretensões, pela manutenção de um patamar de direitos trabalhistas

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superior ao por eles desejado, mas mais compatível com a criação de um

ambiente propício ao crescimento duradouro, portanto mais favorável aos

negócios a longo prazo.

Sobre o tema, discorre Janine Berg, representante da OIT no

Brasil112:

"O debate em torno da flexibilidade do mercado de trabalho foi 

exagerado, ao menos no caso do Brasil. A experiência dos anos 1990 e

2000 não apoia a alegação de que a legislação trabalhista cause crescente

informalidade, e o forte crescimento de empregos formais nos anos 2000 ao

mesmo tempo em que o salário mínimo quase dobrou em termos reais,

demonstram que as leis trabalhistas não são um impedimento, e que

algumas políticas, como o salário mínimo, podem ser importantes para

estimular o crescimento e a criação de empregos. Antes de focar a

desregulamentação do mercado de trabalho, governantes deveriam agir para

encorajar as empresas a registrar seus negócios e seus trabalhadores, seja

 pela simplificação do registro, redução de impostos e disponibilização de

incentivos para desenvolver estratégias de competitividade mais positivas."

Falta à elite brasileira a perspectiva de que custos trabalhistas

não possuem sempre e tão somente uma relação negativa com a

competitividade. Um patamar trabalhista condigno pode ser fator estimulante

ao crescimento, e não um entrave. É também a lição de Eduardo G.

Noronha, Fernanda De Negri e Karen Arthur 113:

"...as firmas competem, preponderantemente, por preço ou por 

112 "Laws or Luck? Understanding Rising Formality in Brazil in the 2000s", livre tradução. Emhttp://ase.tufts.edu/gdae/Pubs/rp/BergLaborFormalityBrazil.pdf 

113 "Custos do trabalho, direitos sociais e competitividade industrial", em Tecnologia,exportação e emprego. Brasília: IPEA, 2006. p. 161-201. Disponível emhttp://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/Cap_7.pdf 

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diferenciação de produto. A estratégia de diferenciação de produto via

inovação é aquela mais promissora para os empregados, para a empresa e

  para o país. Essas empresas estabelecem estratégias menos sujeitas à

concorrência via menores salários, maiores jornadas de trabalho ou derivada

de recursos naturais (commodities) muito suscetíveis a flutuações de preços.

Dessa forma, as estratégias de competição das firmas na indústria brasileira

foram classificadas em três categorias: a) firmas que inovam e diferenciam

 produtos; b) firmas especializadas em produtos padronizados; c) firmas que

não diferenciam produtos e têm produtividade menor.

 A análise dos dados segundo estratégia competitiva indica que as

empresas que inovam e diferenciam produtos pagam mais benefícios

 proporcionalmente aos salários do que as empresas que não diferenciam

  produtos e têm produtividade menor. (...)

Quando se comparam as firmas inovadoras com as não-

inovadoras, também percebem-se as diferenças observadas para as

estratégias competitivas. Ou seja, firmas inovadoras tendem a pagar mais

benefícios em relação aos salários, especialmente os benefícios voluntários

(outros benefícios e previdência privada).

(...)

De fato, firmas mais produtivas, além de remunerarem melhor 

seus trabalhadores, possuem políticas diferenciadas de gastos em pessoal,

concedendo benefícios não-salariais maiores aos funcionários do que firmas

menos produtivas. O mesmo acontece para firmas exportadoras, inovadoras

e sociedades anônimas. Os modelos mostram que firmas exportadoras

 pagam entre 0,7% e 1% a mais de benefícios em relação aos salários do

que as não-exportadoras. Para as inovadoras, esse diferencial é de 0,7% a

0,8% e para as sociedades anônimas é de 1,5% a 3%.

(...)Concluindo, feitas as ressalvas referentes às diferenças de

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opções contratuais disponíveis às das empresas (especialmente o Simples)

e os possíveis efeitos da maior concentração de práticas informais nas

  pequenas empresas, a análise dos dados indica que as empresas mais

competitivas tendem a pagar mais benefícios em relação aos salários do que

as demais. Ou seja, pelo menos do ponto de vista microeconômico não

  parece haver uma relação negativa entre competitividade e custos

trabalhistas. Ao contrário, as firmas mais competitivas possuem práticas

salariais e de benefícios superiores às das empresas menos competitivas.

(...)

 Através de um banco de dados reunindo estatísticas da PIA e da

Pintec mostramos que a competitividade das empresas não está associada a

baixos custos salariais no Brasil. Ao contrário, as empresas mais

competitivas, inovadoras e exportadoras pagam salários maiores e

benefícios superiores ao definido pela legislação e aos praticados por 

empresas nacionais menos competitivas. As estatísticas indicam uma

relação mais solidária que competitiva entre custos de trabalho e

competitividade. Nossa metodologia de pesquisa difere do debate

 predominante no Brasil focado na definição de “custos” contrapostos a

“direitos” trabalhistas e, por seguinte, na mensuração de seu peso nos

custos diretos e indireto do trabalho. Argumentamos que esse enfoque criou 

uma oposição indevida entre direitos e crescimento do emprego e entre

custos e competitividade. Indevida porque não foram empiricamente

comprovadas no Brasil e, principalmente, porque mensura o que são

objetivos e valores incomensuráveis tais como o (falso) dilema de ampliar-se

o emprego às custas dos direitos ou mantê-los em detrimento dos

desempregados; ou ainda, reduzir-se os custos trabalhistas a bem da

competitividade das empresas ou mantê-los sob argumentos de que a

garantia dos direitos sociais está acima de qualquer outra consideração.

Para evitar tal cilada, nossa escolha metodológica foi testar o quanto alegislação atual afeta a capacidade competitiva da indústria nacional. As

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estatísticas indicam que os custos trabalhistas nos níveis atuais não são

impedimento à competitividade, à exportação e à inovação. Há uma

associação positiva entre pessoal qualificado e bem remunerado (direta e

indiretamente) e competitividade." 

Ora, se as empresas mais competitivas asseguram a seus

empregados direitos mais amplos do que o exigido atualmente pela

legislação trabalhista, é porque esta não constitui qualquer obstáculo à

competitividade. A circunstância sugere que a defesa de reformas

"flexibilizadoras" (eliminadoras) de direitos não tem por verdadeiro objetivo

promover a maior competitividade das empresas brasileiras em geral (as

empresas realmente competitivas não precisam disso, pois já pagam mais),

e sim compensar financeiramente os equívocos das empresas menos

competitivas, que não buscam a inovação e a diferenciação de produtos. Ao

invés de favorecer a competitividade brasileira, então, tais reformas podem

premiar as empresas que insistem em estratégias menos competitivas,

estimulando outras a seguir o mau exemplo.

A literatura especializada dá conta de outros exemplos de relação

harmoniosa entre o cumprimento da legislação trabalhista e o sucesso

competitivo de empresas, os quais mereciam ser divulgados e encorajados.

Salo Vinocur Coslovsky, que analisou situações de atuação

resolutiva (não limitada ao mero ajuizamento de ações) de membros do

Ministério Público, afirma que114:

“Este documento começou declarando que um problema

contemporâneo global significativo, especialmente em regiões pobres, é que

114 Em "Respeito às normas e crescimento econômico: como promotores públicos garantem ocumprimento das leis e promovem o crescimento econômico no Brasil", disponível emhttp://www.ipea.gov.br/sites/000/2/publicacoes/tds/td_1355.pdf 

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o crescimento econômico, embora desejável, frequentemente é

acompanhado de danos ambientais e violações de direitos trabalhistas.

Contudo, esse impasse não é inevitável, como ilustrado pelos inúmeros

casos relatados tanto na literatura empresarial quanto acadêmica sobre

empresas e arranjos produtivos que cumprem as normas ambientais e

trabalhistas e conseguem manter ou mesmo melhorar sua competitividade.

O que torna desejáveis esses resultados, e como podem ser promovidos de

forma sistemática?

De todas as maneiras de se abordar esse problema, este

documento sugere a análise detalhada do papel desempenhado por um ator 

institucional particular: os 'reguladores de campo'. Os reguladores de campo

são os fiscais, monitores, promotores públicos e, às vezes, até auditores

 privados, que interagem diretamente com agentes econômicos (pessoas e

empresas), interpretam as leis, propositalmente ignoram alguns fatos,

classificando outros de 'infrações', obrigam gerentes desatenciosos e/ou 

  preocupados com outras coisas a se preocuparem, e depois ameaçam,

convencem, punem, educam, e os ajudam a encontrar uma solução para o

  problema em questão. Ou seja, em determinadas circunstâncias, são

agentes da lei que, em vez de 'implementar a lei' (enforce the law), fazem

tudo que é possível para gerar a conformidade ('produce compliance'). E 

fazem isso mudando o ambiente em que as empresas operam de tal 

maneira que a conformidade se torna a alternativa mais lógica, mais

racional, e até mais lucrativa para os envolvidos”.

Contudo, este estudo sugere que os agentes da lei – mais

 particularmente os promotores públicos – freqüentemente têm conhecimento

muito limitado sobre o problema e as soluções possíveis e assim devem ser 

instruídos por outros parceiros, com mais conhecimento técnico sobre asdiferentes áreas. Finalmente, o trabalho de campo indica também que há

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muitas soluções possíveis para um problema. O desafio, então, é identificar 

 – e implementar – a mais viável, que é selecionada com base na descoberta

de aliados dispostos a colaborar.

(...)

Enfim, este estudo aponta a possibilidade de reguladores de

campo serem a longa manus do Estado e, se aproveitados corretamente,

 podem constituir um novo tipo de política de desenvolvimento, uma “política

industrial de inclusão” (UNGER, 2007) mais coerente com o mundo pós-

industrialização por substituição de importações e pós- Consenso de

Washington do que qualquer outra opção disponível."

Na condição de membro do Ministério Público do Trabalho (ramo

do Ministério Público brasileiro ao qual mais diretamente dizem respeito as

questões aqui tratadas), posso afirmar sem medo de errar que a maior parte

dos procuradores do trabalho reconhece a superioridade do tipo de atuação

resolutiva, na linha acima descrita. Preferem os membros do MPT em sua

maioria a busca de soluções conciliatórias, através da celebração de

compromissos, à propositura de ações judiciais, alcançando alternativas que,

sem implicar na persistência do descumprimento da legislação trabalhista,

ajustem-se se à realidade e às condições da empresa empregadora. Mas

nessa tarefa enfrentam os procuradores limitações importantes, como a

aguda carência de servidores especializados em questões técnicas

(engenheiros, contabilistas, etc.), capazes de lhes prestar assessoramento.

Roberto Pires dá notícia de outro exemplo de relação positiva

entre cumprimento da lei trabalhista e sucesso empresarial, a partir da

análise centrada na atuação de auditores-fiscais do trabalho115:

115 Em "Compatibilizando direitos sociais com competitividade: fiscais do trabalho e aimplementação da legislação trabalhista no Brasil", disponível emhttp://www.ipea.gov.br/sites/000/2/publicacoes/tds/td_1354.pdf 

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"Este estudo trata da seguinte questão: como compatibilizar 

direitos trabalhistas e proteção social com competitividade e produtividade

das empresas? Na América Latina, há um intenso debate sobre a

  perversidade da legislação trabalhista (considerada prejudicial para os

trabalhadores e para as empresas) e, em resposta, a política recomendada

atualmente enfatiza a desregulamentação e a flexibilização dos direitos

trabalhistas existentes. Em contraposição a essa recomendação

convencional, este estudo demonstra que há uma “margem de manobra” 

ainda pouco explorada para conciliar direitos trabalhistas com

competitividade que reside na etapa de implementação da legislação

trabalhista, em vez da reforma legal. Investigou-se o trabalho realizado na

“linha de frente” por fiscais do trabalho em, principalmente, dois estados

brasileiros (Minas Gerais e Bahia) e descobriu-se que em alguns casos os

fiscais conseguiram implementar a legislação trabalhista de forma a

  promover tanto a melhoria das condições de trabalho quanto a

modernização (upgrading) das empresas. As conclusões do estudo sugerem

que os fiscais do trabalho foram capazes de promover esses resultados –

como, por exemplo, arranjos alternativos para empregar formalmente

trabalhadores rurais por tempo determinado ou medidas técnicas para

 promover condições de trabalho mais saudáveis e seguras sem reduzir a

 produtividade da empresa – quando combinaram estratégias punitivas (como

multas, sanções) com ações pedagógicas (como prestação de assessoria

técnica e jurídica).

(…)

Os economistas e as agências de desenvolvimento no

mainstream compartilham a percepção de uma incompatibilidade inevitável 

entre a ampliação da regulamentação trabalhista e a capacidade das

empresas de competir em mercados cada vez mais globalizados

(JOHNSON; KAUFMANN; ZOIDO-LOBATON, 1998; SCHNEIDER; ENSTE,2000; FRIEDMAN et al., 2000; BATRA, KAUFMANN; STONE, 2003; PERRY 

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et al., 2007). Por exemplo, no Brasil – um dos mercados de trabalho mais

regulados do mundo (BOTERO et al., 2004; DOING BUSINESS, 2006;

 ALMEIDA; CARNEIRO, 2007), onde as empresas têm de cumprir 922 artigos

do código trabalhista, além de 46 artigos da Constituição Federal, 79

convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), 30 normas de

saúde e segurança (que somam mais de 2 mil itens), e muitos outros atos

administrativos e decisões judiciais, que acrescentam um encargo trabalhista

de até 103% sobre o salário – aqueles que compartilham da percepção de

que tal incompatibilidade é inevitável defendem a redução do nível de

regulamentação (“flexibilização”) e a diminuição da carga tributária sobre as

empresas como as maneiras mais efetivas de atrair investimentos, promover 

a competitividade das empresas e gerar emprego.

Em contraste com a percepção dessa incompatibilidade

inevitável, um número crescente de estudiosos tem enfatizado a

  possibilidade de formas inclusivas de crescimento econômico (UNGER,

2007) ou a chamada abordagem high road na economia internacional 

(RODRIK, 1997; STIGLITZ, 2000; MILBERG; HOUSTON, 2005; BERNARD;

BOUCHER, 2007). Esses estudiosos argumentam que a partir da

 perspectiva high road, o crescimento, a rentabilidade e a produtividade das

empresas, por um lado, e os direitos sociais, normas trabalhistas mais

exigentes e salários mais altos, por outro, não são mais incompatíveis.

Tornam-se processos que se reforçam mutuamente à medida que o foco

estratégico passa a ser o crescimento da produtividade, a inovação, e as

relações trabalhistas cooperativas (ABRAMI, 2005; POSTHUMA, 2004,

BAZAN; NAVAS-ALEMAN, 2004; BAILEY; BERNHARDT, 1997). Novamente

tomando o Brasil como exemplo, mesmo em um mercado de trabalho tão

regulado, um estudo recente (NORONHA; DE NEGRI; ARTUR, 2006)

encontrou evidências de que as empresas competitivas e inovadoras,orientadas para mercados externos, têm políticas salariais e de benefícios

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que vão além do mínimo estabelecido no código trabalhista, assim

contradizendo a hipótese de que os encargos trabalhistas seriam um

impedimento à competitividade e à inovação.

(…)

Em contraste com a economia neo-institucional, que supõe que a

existência das leis trabalhistas se traduz imediatamente em limites e

oportunidades para transações entre trabalhadores e empresas (moldando

 preferências), destaco o processo através do qual os fiscais do trabalho

implementam as normas legais na linha de frente, levando a lei para dentro

das empresas.

Primeiramente, demonstramos que há uma margem de manobra

ainda pouco explorada para compatibilizar as normas trabalhistas com o

desempenho econômico das empresas que reside no processo de

implementação da legislação, em vez da reforma da lei." 

No entanto, ao invés de incentivar tais formas de conciliação

entre desenvolvimento sustentável, competitividade e o cumprimento da

legislação trabalhista, a opção brasileira tem sido a de praticamente sabotá-

las, impedindo que possam se multiplicar e se tornar mais eficazes.

A atuação da auditoria-fiscal do trabalho, em particular, tem sido

submetida pelo governo federal há vários anos a um processo de verdadeira

demolição, tornando-se cada vez menos capaz de interferir na realidade,

seja para proteger os trabalhadores, seja para buscar soluções como as

descritas por Roberto Pires em seu artigo.

A desestruturação do sistema de fiscalização do trabalho tornou-

se objeto da atenção do Ministério Público Federal em razão de sua

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gravidade, como informa a seguinte notícia de 2011116:

“MPF/DF questiona serviços do Sistema Federal de Inspeção do

Trabalho

  Ação civil pública aponta problemas de desestruturação,

carências e deficiências nos serviços do Sistema Federal de Inspeção do

Trabalho, realizado pelo MTE.

O Ministério Público Federal no DF (MPF/DF) ajuizou ação civil 

 pública em que questiona os serviços realizados pelo Ministério do Trabalho

e Emprego (MTE) por meio do Sistema Federal de Inspeção do Trabalho,

que é o setor responsável pela fiscalização de empresas e empregadores,

ou seja, pela apuração, imposição e execução de multas administrativas em

casos de irregularidades nos ambientes de trabalho.

De acordo com apuração do MPF/DF, o número de inspetores no

Brasil não tem acompanhado, minimamente, o crescimento populacional 

brasileiro, “muito embora os próprios relatórios do Ministério do Trabalho e

Emprego reconheçam que a quantidade de auditores fiscais do Trabalho não

atende aos parâmetros da Organização Internacional do Trabalho (OIT)”.

O contingente atual de inspetores tem cerca de três mil auditores,

o que caracteriza um número muito abaixo do quadro ideal de 4,5 mil 

servidores, conforme dados, de 2009, da Secretaria de Inspeção do MTE.

 A carência de auditores fiscais do trabalho ocorre, principalmente,

  por dois fatores, que são: a quantidade de aposentadorias anuais; e a

ampliação da população economicamente ativa. Ou seja, o crescimento do

número de trabalhadores que necessitam ser atendidos pelo serviço de116 Em http://www.prdf.mpf.gov.br/imprensa/27-06-2011-mpf-df-questiona-servicos-do-sistema-

federal-de-inspecao-do-trabalho

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inspeção não é acompanhado pelo número de inspetores.

Dessa forma, o Sistema Federal de Inspeção do Trabalho torna-

se ineficiente no enfrentamento da precariedade de condições de trabalho

dos brasileiros. Segundo o MPF/DF, tal situação é “a certeza de que,

anualmente, centenas de milhares, senão milhões de trabalhadores serão

atingidos em sua saúde, segurança e dignidade, perderão suas vidas em

acidentes, torna-se-ão incapazes para o trabalho em razão de doenças

laborais.” O MPF aponta, então, que todas essas dificuldades de realização

de uma fiscalização eficiente do trabalho no Brasil trazem problemas nas

cobranças de multas trabalhistas, que não são plenamente realizadas” .

Tal situação de penúria da inspeção do trabalho no Brasil revela-

se uma realidade particularmente perversa, na medida em que, com isso, os

maus empregadores acabam sendo premiados, levando vantagem

competitiva indevida - e economicamente nociva - frente aos bons

empregadores.

Afinal, é absolutamente incorreto dizer que todas as empresas

descumprem a legislação trabalhista, ou são incapazes de cumpri-la. Na

realidade, há muitas empresas que buscam o cumprimento da lei de forma

permanente, sendo injusto que tenham que competir no mercado com

empresas que adotam como estratégia deliberada a redução de custos

mediante supressão de direitos trabalhistas.

Como procurador do trabalho, pude constatar tal realidade de

perto, no setor da pecuária no estado de Mato Grosso. Ao lado de produtores

rurais que se esforçavam em cumprir a legislação trabalhista,

proporcionando a seus empregados condições dignas de trabalho, haviaaqueles que submetiam os trabalhadores a condições análogas às de

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escravo.

Não era na região (norte de MT) em absoluto verdade, portanto,

que “o cumprimento da legislação trabalhista é impossível” ao produtor rural,

tanto que muitos a cumpriam, e jamais eram alvo de denúncias ou

reclamações, sendo até elogiados por trabalhadores. Já ouvi de

trabalhadores rurais resgatados de situações degradantes declarações

assim: “na fazenda de Fulano isso não acontecia, lá era bom de trabalhar. Eu

queria voltar, mas não tinha vaga”. As desculpas eram vociferadas pelos

maus produtores, interessados em obter vantagem comercial indevida, pois

ao experimentar custos trabalhistas menores, podiam vender seu gado a

preços melhores que os produtores respeitadores da lei.

Tal situação, ao persistir por algum tempo (ou seja, ao não ser 

prontamente reprimida pelos órgãos de fiscalização), cria um pressão de

mercado que arrasta as condições trabalhistas para baixo. O produtor rural

que cumpria a lei, sendo submetido à concorrência desleal, acabará sendo

tentado a cometer também violações, por temer ser expulso do mercado se

não conseguir fazer frente aos preços dos maus empregadores.

Trata-se de um exemplo concreto de como as más empresas e os

maus empregadores contaminam as condições socioeconômicas de uma

região e criam um ambiente de favorecimento ao descumprimento da lei. A

concorrência desleal faz nascer pressões competitivas que nada tem a ver 

com a procura da excelência e da inovação, mas sim com a busca das piores

condições de trabalho possíveis, que proporcionem menor custo e maior 

lucro (e também, via de regra, produtos de pior qualidade).

Para combater tal tipo de deturpação, que em nada favorece ocrescimento econômico saudável e o desenvolvimento do país, mostra-se

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vital a atuação fiscalizatória do estado, a qual, não obstante, tem sido no

Brasil comprometida, como visto na notícia acima. Nenhuma nação em que o

trabalho degradante esteja crescendo estará verdadeiramente se

desenvolvendo.

A persistência do sucateamento da fiscalização é medida que

constitui um prêmio às más empresas, cujas violações raramente são

flagradas ou punidas. Quem na prática acaba recebendo punição, isto sim,

são as boas empresas, que cumprem a legislação trabalhista e sofrem com a

concorrência desleal das primeiras.

Enfim, por tudo o que foi dito percebe-se que há um grande

espaço no Brasil para se avançar, através do favorecimento de mecanismos

capazes de promover a compatibilização das necessidades das empresas

com o respeito à legislação trabalhista. Poderíamos, por exemplo, identificar 

outros exemplos desse tipo de atuação, e pensar em formas de aperfeiçoá-

las e torná-las mais conhecidas, combatendo os preconceitos que contra

elas existem tanto no meio empresarial quanto no operário.

Espaço há, como já mencionado, até mesmo para a ampliação do

atual patamar de direitos, por exemplo através da regulamentação, já

antevista pela Constituição Federal, da garantia do emprego, matéria

também regulada pela convenção 158 da OIT.

A pertinência da medida pode ser inferida pela colossal

quantidade de dispensas sem justa causa que vem sendo promovidas nos

últimos anos, não obstante a fase de crescimento econômico. Segundo

levantamento recente do Ministério do Trabalho e Emprego, entre 2007 e

2011 ocorreram no Brasil 41,9 milhões de dispensas sem justa causa, o quecorresponde a 57,5% de todos os casos de extinção de contratos de trabalho

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ocorridos no período. No mesmo interregno houve 80,6 milhões de

contratações, constando-se com isso que o índice de rotatividade no

mercado de trabalho brasileiro encontra-se altíssimo.

O que de fato contribui para o desenvolvimento é a disseminação

de boas práticas e bons empregos. A ótica centrada apenas em custos,

vistos sempre e tão somente como perdas e não como investimentos, faz

com que se desperdicem oportunidades, com desprezo ao efeito

dinamizador da economia proporcionado pela melhoria da distribuição de

riqueza e pela redução das desigualdades.

Essa deveria ser a prioridade nacional, e não reformas

precarizantes, que seguramente comprometerão a capacidade de

crescimento futuro do país, e nada acrescentarão ao desempenho das

empresas brasileiras, nivelando-as por baixo (premiando as que menos

inovam e menos investem) e não por cima como seria desejável, inclusive

por razões econômicas (como o aumento da diferenciação e do valor 

agregado dos produtos brasileiros).

Nivelar a competitividade por baixo significará condenar o Brasil a

ser, para sempre, um país meramente exportador de commodities sem

qualquer valor agregado. E não se conseguirá reverter tal situação criando-

se empregos piores que os que já existem. Perderá o país o trem da história,

em um momento em que tudo parece conspirar a seu favor.

A lição deste capítulo é que competitividade e direitos trabalhistas

não necessitam estar em polos antagônicos, podendo ser alcançados de

forma harmônica, com proveito a toda a sociedade e a todas as classes

sociais.

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CONCLUSÃO

Desde o início de 2011 assiste-se no Brasil, de forma

preocupante, a uma retomada do ímpeto da articulação de forças

conservadoras, interessadas e dedicadas à tarefa de implementar uma

agenda de reformas neoliberais. Como mencionado na introdução, há 10

anos - ou seja, desde o fim do governo Fernando Henrique Cardoso - não se

via no país uma articulação tão poderosa e tão prejudicial aos trabalhadores,

sobretudo no Congresso Nacional.

Uma das principais bandeiras de tal movimento conservador é a

chamada “flexibilização” da legislação trabalhista, que como visto no capítulo

2, possui um único e inequívoco sentido, que é o da eliminação dos direitos

pertencentes aos trabalhadores. Despreza-se o fato de que os trabalhadores,

em sua maioria, estão pouco acima da linha da miséria ou nas camadas

inferiores da classe média, e mal ganham o necessário à satisfação de suas

necessidades básicas.

No contexto da retomada do projeto neoliberal no Brasil é que se

explica o avanço, no Congresso, de propostas como a do Código do

Trabalho (projeto de lei n° 1.463/2011), apresentada pelo deputado federal

Sílvio Costa e redigida, até onde se pode inferir, no âmbito da Confederação

Nacional da Indústria. Como visto no capítulo 1, a incompatibilidade de tal

projeto, e de outros semelhantes como o projeto do deputado Sandro Mabel

(projeto de lei n. 4330/2004, sobre terceirização), com o Direito do Trabalho é

total.

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Em essência, o que tais projetos contemplam é a retirada do

ordenamento brasileiro do princípio da proteção, sobre o qual se estrutura

toda a legislação trabalhista, nacional e internacional. Com isso,

desapareceria do Brasil algo merecedor de ser chamado Direito do Trabalho,

ramo do direito o que seria basicamente substituído por normas de natureza

civil e comercial.

Entre as piores novidades propostas no projeto do Código do

Trabalho estão, como destacado no capítulo 1, a prevalência do negociado

sobre o legislado (eliminação do caráter cogente, proibitivo, das normas

trabalhistas), a autorização irrestrita a terceirizações (também objeto do

projeto Mabel) e a abolição, na prática, da anotação em Carteira de Trabalho

e Previdência Social.

Na eventualidade de projetos assim serem convertidos em lei (o

que poderá ocorrer em breve), prevê-se que serão abolidos ou feridos de

morte quase todos os direitos trabalhistas hoje reconhecidos. Seriam

preservados apenas aqueles direitos expressamente discriminados na

Constituição Federal, o que não constitui garantia suficiente, dado que na

maior parte dos casos a Lei Maior prevê o direito, mas não a sua amplitude

(por exemplo, assegura-se o direito de férias, mas não os trinta dias de

férias).

Tal previsão não possui qualquer sentido alarmista ou exagerado,

traduzindo-se, antes disso, em uma perspectiva bastante realista, levando-se

em conta, em especial, o perfil da organização sindical brasileira. Não há

estrutura sindical no Brasil capaz de impedir, em sendo eliminada a proteção

proporcionada por leis cogentes e direitos irrenunciáveis, a voracidade do

ataque aos direitos trabalhistas.

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No capítulo 1 foram oferecidos exemplos concretos de tal

realidade, sendo especialmente preocupante a debilidade de sindicatos de

trabalhadores rurais, que são incapazes, salvo raras exceções, de oferecer 

efetiva proteção à categoria, na ausência da lei.

Obviamente existem no país sindicatos fortes e dotados de

grande representatividade, conduzidos por verdadeiras lideranças sindicais,

como costuma ser o caso dos bancários e metalúrgicos, mas sindicatos com

esse perfil não constituem a maioria dentre todos os que existem, longe

disso.

Os primeiros direitos a cair, em sendo aprovadas as reformas

“flexibilizadoras”, leia-se eliminadoras de direitos, seriam: as limitações à

 jornada de trabalho e ao número de horas extras (jornadas superiores a 10

horas por dia se tornariam comuns), os intervalos para descanso do

trabalhador (tornar-se-iam populares intervalos de quinze ou vinte minutos

para almoço), o número de dias de férias (30 dias se tornariam “privilégio” de

poucas categorias, apoiadas por sindicatos mais fortes), a integralidade das

verbas rescisórias (não seriam a todos os trabalhadores pagos os 40% sobre

depósitos do FGTS, por exemplo) e as normas de saúde e segurança do

trabalho.

Não há dúvidas, por exemplo, que uma das primeiras normas a

cair seria a Norma Regulamentadora n°31 do MTE, que institui regras de

saúde e segurança em favor do trabalhador rural, fortemente repudiadas pelo

agronegócio, como pode ser aquilatado pelas declarações da senadora Kátia

Abreu, presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária, para quem a

NR31 constitui um “atentado ao direito à propriedade rural”.

Revelou-se no capítulo 1, também, de que modo as reformas

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propostas permitirão a grandes empresas terceirizarem, se assim quiserem,

todos ou a maior parte dos seus postos de trabalho, mantendo com isso

todos os lucros e nenhuma das responsabilidades trabalhistas e

previdenciárias. Não haverá na legislação qualquer impedimento a isso, e

tampouco haverá vedação legal (salvo em norma internacional, que estará

sendo desrespeitada pelo estado brasileiro) a que trabalhem funcionários -

verdadeiros colegas de trabalho - desenvolvendo a mesma atividade em

proveito da mesma empresa, mas submetidos a empregadores (empresas

terceirizadas) diferentes, recebendo salários diferentes.

A retomada da cartilha neoliberal no Brasil acompanha, como

visto no capítulo 3, um movimento que também é percebido em outros

países (dos quais a Espanha é um dos mais representativos exemplos,

estando a ser seguida de perto por Portugal), normalmente apregoado em

nome da busca por “competitividade”. Como esclarecido, o sentido de tal

movimento é atingir as piores condições de trabalho possíveis em toda a

parte do globo, lançando as nações em um corrida insana rumo à

precarização social em larga escala, e ao recrudescimento das tensões

internas e externas, tudo em nome do lucro.

O mais preocupante disso é que o resultado da eliminação dos

direitos sociais é bem conhecido por quem se dispõe a estudar a história,

conduzindo inevitavelmente a guerras e crises, inclusive mundiais.

De fato, não há nada de novo ou atual no projeto neoliberal de

eliminar direitos, pois o que está sendo efetivamente pretendido é o retorno

às práticas laborais que prevaleciam no século 19. Práticas essas que

contribuíram para que o mundo mergulhasse em duas guerras mundiais,

com o extermínio de dezenas de milhões de seres humanos, e na maior criseeconômica mundial até hoje já vista, marcada pelo crash da bolsa de 1929.

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Não percebem ou não se importam os neoliberais de hoje que há

excelentes motivos históricos por trás dos direitos sociais reconhecidos e

garantidos aos trabalhadores, sendo um fato (universalmente reconhecido ao

final de cada uma das guerras mundiais), e não uma suposição abstrata, que

a precarização social causada pela ausência desses direitos conduz a

tensões sociais, convulsões graves, conflitos, violência e guerras. A criação,

em 1919, e a reafirmação, em 1945, da Organização Internacional do

Trabalho constitui decorrência direta de tal realidade.

Ademais, chega às raias do surreal a pretensão de se defender,

desde o início de 2011, a eliminação de direitos trabalhistas, portanto de

direitos dos mais pobres, quando o cenário socioeconômico atual é marcado

pelo crescimento anual do número de bilionários e de mega-fortunas, no

Brasil e no mundo, como visto no capítulo 5. Possui o Brasil, hoje, mais de

30 bilionários, e 1.520 pessoas com patrimônio pessoal superior a 50

milhões de dólares.

De fato, o número de fortunas descomunais não para de crescer,

engordadas principalmente pela apropriação dos mecanismos de

funcionamento do estado, seja através da preservação de um sistema

tributário injusto (que exonera ricos e penaliza os pobres e a classe média),

seja através de generosas inversões de dinheiro público decorrentes da

dívida pública (cujos juros, encargos e amortizações remuneram sobretudo

os super-ricos, e já comprometem quase metade, 44,93%, do orçamento da

União Federal) ou de operações de salvamento de empresas privadas, sem

qualquer contrapartida à sociedade.

O ano de 2010, como também visto, foi particularmenteprodigioso na geração de lucros recordes às empresas e aos bilionários

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brasileiros, além do crescimento da remuneração paga aos executivos de

alto escalão (CEOs), constituindo um verdadeiro deboche que,

imediatamente após o término do ano, sejam lançados e aprovados projetos

para eliminação dos direitos dos mais pobres. As evidências reproduzidas

nesta obra indicam que nunca se produziu tanta riqueza no Brasil como nos

dias atuais, e nunca a riqueza esteve tão concentrada, sendo desviada para

as mãos de um número reduzidíssimo de super-ricos.

Ou seja, o lucro no Brasil cresce, e particularmente o lucro dos

bilionários e multimilionários, mas a riqueza não é distribuída em sociedade,

não gerando maior desenvolvimento. E agora pretende-se alavancar as

margens de lucro ainda mais às custas dos trabalhadores e de suas famílias.

Mostra-se também insólito que se venha a falar em supressão de

direitos trabalhistas quando se sabe que as perspectivas de crescimento do

Brasil são mais favoráveis que a da média dos países, inclusive europeus.

De fato, já se assiste, em diversos setores da economia e regiões do Brasil,

aguda carência de mão de obra, não se justificando em absoluto a

eliminação de direitos como forma de facilitar a geração de empregos. A

geração de empregados passa pela qualificação da mão de obra, não pelo

empobrecimento dos operários.

O avanço conservador iniciado em 2011 explica-se em parte por 

tal aquecimento do mercado de trabalho, podendo-se inferir que as reformas

flexibilizadoras são uma medida estratégica da elite econômica nacional, já

antevendo embates futuros com os trabalhadores fortalecidos em sua

posição. A estratégia parece ser suprimir dos trabalhadores tudo o que se

puder agora, para que no futuro próximo, quando eles estiverem em

condições de exigir novas conquistas, dada a ausência de um exército demão de obra de reserva, tudo o que conseguirão será recuperar, em parte,

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aquilo que perderam.

No capítulo 6 viu-se que os direitos trabalhistas não apenas não

constituem obstáculo ao crescimento econômico, como ainda servem de

importante instrumento para a viabilização do desenvolvimento duradouro e

sustentável. Foi lembrada a evidência, profundamente inconveniente aos

arautos do neoliberalismo, de que o Brasil já provou ao mundo, nos últimos 8

anos, que é possível crescer economicamente, e crescer muito, sem mexer 

no patamar de direitos trabalhistas. O país passou no período de 13ª à 7ª

maior economia do mundo, um crescimento fantástico, sem tocar nos direitos

dos trabalhadores.

Não obstante todas essas evidências, a sanha de se eliminar 

direitos sociais encontra-se em alta voga, com respaldo de expressiva

bancada no Congresso Nacional.

O momento atual apresenta ameaças ainda mais graves que

aquelas surgidas ao final do governo FHC, quando se chegou próximo à

aprovação de reformas legislativas semelhantes. Afinal, em 2001 o projeto

neoliberal foi enfrentado por partidos que estavam na oposição àquele

governo, como o Partido dos Trabalhadores, e por centrais sindicais, como a

CUT, que se posicionaram fortemente pela defesa dos trabalhadores.

Reação que não se vê sendo repetida nos dias de hoje, tendo sido até o

momento muito tímidas e acanhadas as manifestações de contrariedade às

reformas precarizantes. Parte das forças políticas que se posicionaram, em

2001, contra tais reformas “flexibilizadoras” (eliminadoras de direitos) estão

agora, em 2011, a defendê-las abertamente ou dão mostras de que não

pretendem interferir no processo, com o vexatório abandono dos nobres

valores que defendiam há apenas 10 anos atrás.

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Percebo que até o momento os trabalhadores brasileiros ainda

não “acordaram” para a ameaça concreta. Ainda não adquiriram os

trabalhadores brasileiros consciência de que estão na iminência de perder a

maior parte de seus direitos, os quais serão colocados à margem da

proteção da lei e do estado.

O projeto Mabel (terceirização), em particular, menos amplo que o

projeto do Código, avança a passos largos no Congresso Nacional, com a

ajuda de manobras regimentais (como entrada em votação sem prévia

inclusão em pauta).

Tal situação precisa ser urgentemente corrigida, para o bem dos

trabalhadores e para o bem de todo o país, pois em sua busca cega por 

maiores lucros estão os apóstolos do neoliberalismo prestes a aprovar 

mudanças que comprometerão a capacidade de crescimento econômico e

desenvolvimento sustentável no Brasil. A própria elite econômica brasileira

acabará sendo atingida, correndo-se o risco de ser interrompido o surto de

crescimento iniciado há 8 anos, e que está diretamente relacionado à

diminuição da desigualdade social, como foi tratado no capítulo 6.

Como procurador do trabalho, angustia-me a perspectiva de que,

em sendo aprovadas as reformas precarizantes, em breve a Auditoria-Fiscal

do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho e a Justiça do Trabalho pouco

terão o que fazer no Brasil, tornando-se ociosos, dado que quase nada do

Direito do Trabalho restará para ser fiscalizado e imposto pelo estado.

Quando esse ponto for atingido, a extinção pura e simples da Justiça do

Trabalho, e consequentemente também do Ministério Público do Trabalho,

tornar-se-á o passo seguinte quase que inevitável, como já defendeu o

deputado Sílvio Costa, autor do projeto do Código do Trabalho.

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Momentos de crise, entretanto, são também momentos de

oportunidade para mudanças. Como diz o dito popular, “tiros podem sair pela

culatra” . É possível que o excesso de cobiça e de egoísmo demonstrados

pela elite econômica brasileira, pretendendo maiores lucros às custas dos

trabalhadores em um momento em que já estão sendo obtidos lucros

recordes, funcione como um catalizador para a alteração da postura dos

trabalhadores, e para a “mudança da maré”.

Afinal, o que se desenha, desde o início de 2011, é uma tentativa

por parte da elite econômica, com apoio de segmentos do poder político, de

reescrever o pacto social construído no Brasil no período da

redemocratização e da promulgação da Constituição de 1988. Pretende-se

claramente remover o equilíbrio entre capital e trabalho lá instituído, já

manifestamente benéfico à elite, com a supressão de conquistas históricas

da classe trabalhadora.

Dado que a elite econômica está a tomar tal iniciativa, é desejável

que os trabalhadores brasileiros sintam-se encorajados a fazer o mesmo,

buscando também a reconfiguração do pacto social até agora existente, só

que em seu favor, através do aumento da quantidade e qualidade (em

termos de efetividade) dos direitos e garantias sociais, providência capaz de

interromper o processo em curso de aguda concentração de riqueza nas

mãos de pouquíssimas pessoas.

Contra a campanha conservadora pela supressão de direitos e

aprofundamento da precarização, há espaço para que os trabalhadores

passem da letargia e da atitude defensiva à mobilização coletiva ativa, quem

sabem em torno do lema “mais direitos já”, que é justo, socialmente relevante

e economicamente justificado.

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Como mencionei no capítulo 5, “Para os trabalhadores

brasileiros, o desafio atual é claro: não é mais possível, inclusive do ponto de

vista da preservação dos direitos que ainda possuem, continuar na inação ou 

mesmo na defensiva. É preciso que partam para o ataque, e exijam não a

manutenção dos direitos atuais, mas a conquista de novos e mais amplos

direitos, vale dizer, que exijam um quinhão maior da riqueza a mais que já foi 

  produzida e da que vem sendo produzida, mas que não está sendo

distribuída”.

Para isso, os trabalhadores precisam aproveitar todas as formas

de comunicação disponíveis para fazer circular a informação sobre os

enormes riscos existentes, especialmente a ameaça de aprovação de

reformas legislativas “flexibilizadoras” (eliminadoras de direitos), e lançar 

mão de todos os instrumentos capazes de facilitar a mobilização coletiva,

inclusive através das redes sociais.

A apatia dos supostos líderes trabalhistas de hoje não deve em

absoluto desestimular os trabalhadores de tal empreitada. Na verdade, em

todos os momentos históricos em que se verificou real avanço social o povo

tomou a dianteira, com os supostos líderes correndo atrás para acompanhar 

(e tentar controlar) o movimento espontâneo. A força dos trabalhadores,

assim como a força da população em geral, está na espontaneidade da

mobilização coletiva, cujo poder é incontrastável.

Além disso, farão bem os trabalhadores se conseguirem

identificar e expurgar de seu meio, de suas organizações e de seus

sindicatos as falsas lideranças, pessoas não apenas apáticas mas

verdadeiramente mal intencionadas, que promovem a defesa de todo tipo de

interesse, exceto o dos trabalhadores.

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Nesse sentido, é preciso que os trabalhadores desconfiem, e

reconheçam como uma falsa e ilegítima liderança a ser expurgada, qualquer 

pessoa que venha a lhes dizer, por exemplo, que “greves são coisas do

passado”, que “a flexibilização permitirá aumentar os direitos do trabalhador”

e que “a terceirização será benéfica ao trabalhador”.

De fato, greves e mobilizações coletivas de questionamento à

ordem estabelecida foram, são e serão, enquanto houver capitalismo, o

principal instrumento de luta à disposição dos trabalhadores, e praticamente

o único temido pela elite, dada a capacidade da greve de interferir de forma

direta na dinâmica das relações de trabalho e dos processos produtivos.

Além disso, como visto no capítulo 2, a flexibilização que está

sendo planejada através de reformas não possui outro significado além da

supressão de direitos, dado que a criação ou ampliação destes, que seria

providência benéfica aos trabalhadores, sempre foi possível sem qualquer 

necessidade de mudança da legislação.

E quanto à terceirização, trata-se de um mecanismo voltado,

salvo raras exceções já reconhecidas pelo ordenamento em vigor, à

eliminação de custos sem reflexão quanto às consequências futuras, o que

conduz forçosamente à piora das condições de trabalho, bem como à

produção de produtos e serviços de pior qualidade, tendo em vista o menor 

investimento realizado. Trabalhadores terceirizados são, simplesmente,

trabalhadores com menos direitos.

O momento, por todo o exposto, não inspira moderação ou

neutralidade, mas ação, e já. Não há qualquer tipo de moderação ou

razoabilidade na agenda atual de reformas neoliberais, mas sim radicalismoextremo, indiferente às nefastas consequências sociais que se seguirão.

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Nada, no plano das relações de trabalho, poderia ser tão radical e agressivo

quanto projetos que pretendem abolir o princípio da proteção e por 

consequência extirpar o Direito do Trabalho do ordenamento brasileiro. Até

mesmo a Carteira de Trabalho, um dos mais importantes símbolos de

cidadania do país, desejam destruir. Contra tal radicalismo conservador 

desmensurado merece se erguer a reta e enérgica indignação de todas as

pessoas que acreditam na justiça, e que sonham com um Brasil melhor para

todos, e não apenas para os mais ricos.

Pois se direitos hão de ser suprimidos no Brasil, que sejam

aqueles pertencentes aos mais de 30 bilionários brasileiros, ou aos 1.520

brasileiros que possuem patrimônio pessoal superior a 50 milhões de

dólares, ou aos executivos de alto escalão (CEOs, diretores e presidentes de

companhias, etc.), que são os mais bem pagos do mundo (ver capítulo 5) e

que chegam a receber até 23 salários extras por ano, além de outras

regalias.

Que se restrinjam os direitos dos super-ricos, através de adicional

e suficiente tributação, antes de se mexer nos direitos dos trabalhadores, que

pouco tem. Que os parlamentares, políticos e economistas que tanto se

preocupam com “competitividade”, “globalização”, “modernização” e o que

quer que seja, dirijam suas atenções e seus projetos de lei às pessoas que

muito tem, e que muito podem contribuir financeiramente à nação, e não aos

que muito pouco ou quase nada tem, e que pagarão por qualquer sacrifício

adicional com sofrimentos diários.

Que se desonere o setor produtivo, se essa é a intenção, e se

isso é o que se reputa necessário ao crescimento econômico, na mesma

proporção em que se venha a onerar - através de reformas legislativas - asgrandes fortunas, única alternativa séria, justa e viável para um país que está

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a se tornar cada vez mais rico e cada vez mais desigual. Que não se destrua

a economia do Brasil, e milhões de vidas no processo, mediante a

eliminação de direitos sociais, essenciais ao desenvolvimento do país.

Se a presente obra puder contribuir, ainda que de forma mínima,

para alertar os trabalhadores brasileiros quanto à ameaça imediata que está

sobre eles a pairar, e para a necessidade premente de reação coletivamente

organizada, seus objetivos já terão sido plenamente atingidos.

Os riscos sobre os trabalhadores poucas vezes foram tão

grandes, e a conjuntura política tão desfavorável, mas trata-se de uma boa

luta, e de uma boa causa, daquelas que nos enchem de orgulho quando por 

elas combatemos. Vencendo ou perdendo, a causa da justiça nos compele.

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ÚLTIMAS PALAVRAS

A todos aqueles a quem esta obra tiver de alguma forma

agradado, que se preocupem com o destino dos trabalhadores e com a

ameaça imediata de ampliação das desigualdades sociais no Brasil, faço o

pedido de que deem notícia do livro, ou das ideias aqui discutidas, em

suas redes sociais (Facebook, Twitter, etc.), listas e fóruns de

discussão e contatos de e-mail.

Como revelaram em 2011 os levantes populares por democracia

no mundo árabe, e o movimento “Occupy Wall Street” nos Estados Unidos, a

força desse tipo de mobilização já é uma realidade, e merece ser aproveitada

para a denúncia e o combate das reformas legislativas precarizantes, e para

a promoção da justiça social no Brasil.

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