Prefacio Michel Foucault - As Palavras e as Coisas

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PREFAcIO

Este livro nasceu de urn texto de Borges. Do riso que, com

sua leitura, perturba todas asJamiliaridades dopensamento

- do nosso: daquele que ternnossa idade e nossa geografia -,

abalando todas as superficies ordenadas e todos os pianos

que tornam sensata para nos a profusdo dos seres,Jazendo

vacilar e inquietando, por muito tempo, nossa pratica mile-

nar do Mesmo e do Dutro. Esse texto cita "uma certa enci-

clopedia chinesa " onde sera escrito que "os animais se di-

videm em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados,

c) domesticados, d) leitiies, e) sereias, f)Jabulosos, g) cdesem liberdade, h) incluidos na presente classificaciio, i) que

se agitam como loucos, j) inumeraveis, k) desenhados com urn

pincel muito fino depelo de camelo, 1 ) et cetera, m) que aca-

bam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas ".

No deslumbramento dessa taxinomia, 0 que de subito atin-

gimos, 0 que, gracas ao apologo, nos e indicado como 0

encanto exotica de urn outro pensamento, e 0 limite do

nosso: a impossibilidade patente depensar isso.

Que coisa, pois, e impossivel pensar, e de que impossi-

bilidade se trata? A cada uma destas singulares rubricas

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xPREFAcIO XI

AS PALA VRAS E AS COISAS

podemos dar um sentido preciso e um conteudo determind-

vel; algumas envolvem realmente seres fantasticos - ani-

mais fabulosos ou sereias; mas, justamente em lhes confe-

rindo um lugar a parte, a enciclopedia chinesa localiza seuspoderes de contdgio; distingue com cuidado os animais bem

rea is (que se agitam como loucos ou que acabam de quebrar

a bi/ha) e aqueles que so tem lugar no imagindrio. As peri-

gosas misturas sao conjuradas, insignias efabulas reencon-

tram seu alto posto; nenhum anfibio inconcebivel, nenhuma

asa arranhada, nenhuma pele escamosa, nada dessas faces

polimorfas e demoniacas, nenhum halito em chamas. Ali, a

monstruosidade niio altera nenhum corpo real, em nada

modifica 0bestiario da imaginaciio; ndo se esconde na pro-

fundeza de algum poder estranho. Sequer estaria presente em

alguma parte dessa classificaciio, se ndo se esgueirasse em

todo 0 espaco vazio, em todo 0branco intersticial que separa

os seres uns dos outros. Niio sao os animais "fabulosos" que

sao impossiveis, pois que sao design ados como tais, mas a

estreita distdncia segundo a qual sao justapostos aos ciies

em liberdade ou aqueles que de longe parecem moscas. 0

que transgride toda imaginaciio, todo pensamento possivel,

e simplesmente a serie alfabetica (a, b, c, d) que liga a todas

as outras cada uma dessas categorias.

Tampouco se trata da extravagdncia de encontros inso-

litos. Sabe-se 0 que ha de desconcertante na proximidade

dos extremos ou, muito simples mente, na vizinhanca sub ita

das coisas sem relaciio; a enumeracdo que as faz entrecho-

car-se possui, por si so, um poder de encantamento: "Ja ndo

estou em jejum, diz Eustenes. Por todo 0dia de hoje estardo

a salvo da minha saliva: Aspides, Anfisbenas, Anerudutos,

Abedessimoes, Alartas, Amobatas, Apinaos, Alatrabiis, Arac-

tes, Asterios, Alcarates, Arges, Aranhas, Ascalabos, Atelabos,

Ascalabotas, Aemorroides ...". Mas todos esses vermes e ser-

pentes, todos esses seres de podridiio e de viscosidade fervi-

lham, como as silabas que os nomeiam, na saliva de Euste-

nes: e ai que todos tem seu lugar-comum, como, sobre a

mesa de trabalho, 0guarda-chuva e a maquina de costura;

se a estranheza de seu encontro e manifesta, ela 0 e na base

deste e, deste em, deste sobre, cuja solidez e evidencia ga-

rantem a possibilidade de uma justaposiciio. Era decerto im-

provavel que as hemorroidas, as aranhas e as amobatas

viessem um dia se misturar sob os dentes de Eustenes: mas,

afinal de contas, nessa boca acolhedora e voraz, tinham

realmente como se alojar e encontrar 0paldcio" de sua coe-

xistencia.

A monstruosidade que Borges faz circular na sua enu-meraciio consiste, ao contrdrio, em que 0proprio espaco

comum dos encontros se acha arruinado. 0impossivel ndo

e a vizinhanca das coisas, e 0 lugar mesmo onde elas pode-

riam avizinhar-se. Os animais "i) que se agitam como lou-

cos, j) inumeraveis, k) desenhados com um pincel muito fino

de pelo de camelo " - onde poderiam eles jamais se encon-

trar, a niio ser na voz imaterial que pronuncia sua enumera-

fao, a ndo ser na pagina que a transcreve? Onde poderiam

eles se justapor, sendo no ndo-lugar da linguagem? Mas

esta, ao desdobra-los, ndo abre mais que um espafo impensa-

vel. A categoria central dos animais "incluidos na presente

classificacdo" indica bem, pela explicita referencia a para-

doxos conhecidos, que jamais se chegard a definir, entre

cada um desses conjuntos e aquele que os reune a todos, uma

relacdo estdvel de conteudo e continente: se todos os ani-

mais classificados se alojam, sem excecdo, numa das casas

* No o r ig ina l : palais, que s ign i fica palacio , palato , e paladar.(N.

d o T .)

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XII AS PALA VRASE AS COISAS PREFAcIO XIII

da distribuiciio, todas as outras ndo estariio dentro desta? E

esta, por sua vez, em que espa~o reside? 0absurdo arruina

o e da enumeradio, afetando de impossibilidade 0em onde

se repartiram as coisas enumeradas. Borges niio acrescenta

nenhuma flgura ao atlas do impossivel; ndo faz brilhar em

parte alguma 0clariio do encontro poetico; esquiva apenas

a mais discreta, mas a mais insistente das necessidades; sub-

trai 0 chao, 0solo mudo onde os seres podem justapor-se.

Desaparecimento mascarado, ou, antes, irrisoriamente indi-

cado pela serie abeceddria de nosso alfabeto, que se supiie

servir de flo condutor (0 unico visivel) as enumeracoes de

uma enciclopedia chines a... Numa palavra, 0 que se retira e

a celebre "tabua de trabalho "; e, restituindo a Roussel uma

escassa parte do que the e sempre devido, emprego estapalavra "tabua" em dois sentidos superpostos: mesa nique-

lada, encerada, envolta em brancura, faiscante sob 0sol de

vidro que devora as sombras - la onde, por um instante,

para sempre talvez, 0guarda-chuva encontra a maquina de

costura; e quadro que permite ao pensamento operar com

os seres uma ordenaciio. uma repartidio em classes, um

agrupamento nominal pelo que sao designadas suas simili-

tudes e suas diferencas - J a onde, desde 0fundo dos tempos,

a linguagem se entrecruza com0

espaco.Esse texto de Borges fez-me rir durante muito tempo,

niio sem um mal-estar evidente e dificil de veneer. Talvez

porque no seu rastro nascia a suspeita de que ha desordem

pior que aquela do incongruente e da aproximaciio do que

niio convem; seria a desordem que faz cintilar os fragmen-

tos de um grande numero de ordens possiveis na dimensiio,

sem lei nem geometria, do heter6clito; e importa entender

esta palavra no sentido mais proximo de sua etimologia: as

coisas ai sao "deitadas ", "colocadas ", "dispostas" em lu-

gares a tal ponto diferentes, que e impossivel encontrar-Ihes

um espaco de acolhimento, deflnir por baixo de umas e ou-

tras um lugar-comum. As utopias consolam: e que, se elas

niio tem lugar real, desabrocham, contudo, num espaco ma-

ravilhoso e liso; abrem cidades com vastas avenidas,jardins

bem plantados, regiiies faceis, ainda que 0 acesso a elas

seja quimerico. As heterotopias inquietam, sem duvida por-

que solapam secretamente a linguagem, porque impedem de

nomear isto e aquilo, porque fracionam os nomes comuns

ou os emaranham, porque arruinam de antemiio a "sinta-

xe ", e ndo somente aquela que constroi as frases - aquela,

menos manifesta, que autoriza "manter juntos" (ao lado e

em frente umas das outras) as palavras e as coisas. Eis por

que as utopias permitem as fabulas e os discursos: situam-se na linha reta da linguagem, na dimensiio fundamental da

fabula, as heterotopias (encontradas tao freqiientemente em

Borges) dessecam 0proposito, estancam as palavras nelas

proprias, contestam, desde a raiz, toda possibilidade de gra-

matica; desfazem os mitos e imprimem esterilidade ao liris-

modasJrases.

Parece que certos afasicos niio chegam a classificar de

maneira coerente as meadas de las multicores que se lhes

apresentam sobre a superjicie de uma mesa; como se esseretdngulo unificado ndo pudesse servir de espaco homoge-

neo e neutro onde as coisas viessem ao mesmo tempo mani-

festar a ordem continua de suas identidades ou de suas dife-

rencas e 0 campo semdntico de sua denominaciio. Eles for-

mam, nesse espaco unido, onde as coisas normalmente se

distribuem e se nomeiam, uma multiplicidade de pequenos

dominios granulosos efragmentarios onde semelhancas sem

nome aglutinam as coisas em iihotas descontinuas; num canto,

colocam as meadas mais claras, noutro, as vermelhas, aqui,

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XIV AS PALA VRAS E AS COISAS

PREFAcIO XV

aquelas que tem uma consistencia mais lanosa, ali, aquelas

mais longas, ou as que tendem ao violeta, ou as que foram

enroladas em novelo. Mas, mal siio esbocados, todos esses

agrupamentos se desfazem, pois a orla de identidade que os

sustenta, por mais estreita que seja, e ainda demasiadoextensa para ndo ser instavel; e, infinitamente, 0 doente

reune e separa, amontoa similitudes diversas, destroi as

mais evidentes, dispersa as identidades, superpoe criterios

diferentes, agita-se, recomeca, inquieta-se e chega final-

mente a beira da angustia.

o embaraco que faz rir quando se le Borges e por certo

apa?£!ntado ao profundo mal-estar daqueles cuja linguagem

esta arruinada: ter perdido 0 "comum" do Lugar e do nome.

Atopia, afasia. No entanto, 0 texto de Borges aponta paraoutra direciio; a essa distorciio da classificaciio que nos

impede de pensa-la, a esse quadro sem espaco coerente Bor-

ges da como patria mitica uma regido precisa, cujo simples

nome constitui para 0Ocidente uma grande reserva de uto-

pias. A China, em nosso sonho. niio e justamente 0lugar pri-

vilegiado do espaco? Para nosso sistema imaginario, a cul-

tura chinesa e a mais meticulosa, a mais hierarquizada, a

mais surda aos acontecimentos do tempo, a mais vinculada

ao puro desenrolar da extensiio; pensamos nela como numa

civilizaciio de diques e de barragens sob a face eterna do

ceu; vemo-la estendida e imobilizada sobre toda a superjicie

de um continente cercado de muralhas. Sua propria escrita

niio reproduz em linhas horizontais 0vao fugidio da voz; ela

ergue em colunas a imagem imovel e ainda reconhecivel das

proprias coisas. Assim e que a enciclopedia chinesa citada

por Borges e a taxinomia que ela pro poe conduzem a um

pensamento sem espaco, a palavras e categorias sem tempo

nem lugar mas que, em essencia, repousam sobre um espaco

solene, todo sobrecarregado def iguras complexas, de cami-

nhos emaranhados, de locais estranhos, de secretas passa-

gens e imprevistas comunicaciies; haveria assim, na outra

extremidade da terra que habitamos, uma cultura votada in-teiramente a ordenaciio da extensiio, mas que niio distribui-

ria a proliferaciio dos seres em nenhum dos esparos onde

nos e possivel nomear,falar, pensar.

Quando instauramos uma classificadio refletida, quando

dizemos que 0gato e 0ciio se parecem menos que dois gal-

gos, mesmo se ambos estdo adestrados ou embalsamados,

mesmo se os dois correm como loucos e mesmo se acabam

de quebrar a bilha, qual e, pois, 0solo apartir do qual pode-

mos estabelece-lo com inteira certeza? Em que "tabua ",

segundo qual espaco de identidades, de similitudes, de ana-

logias, adquirimos 0habito de distribuir tantas coisas dife-

rentes e parecidas? Que coerencia e essa - que se ve logo

niio ser nem determinada por um encadeamento a priori e

necessario, nem imposta por conteudos imediatamente sen-

siveis? Pois ndo se trata de ligar conseqiiencias, mas sim de

aproximar e isolar, de analisar, ajustar e encaixar conteu-

dos concretos; nada mais tateante, nada mais empirico (ao

menos na aparencia) que a instauracdo de uma ordem entre

as coisas; nada que exija um olhar mais atento, uma lingua-

gem mais fiel e mais bem modulada; nada que requeira com

maior insistencia que se deixe conduzir pela proliferaciio

das qualidades e das formas. E, contudo, um olhar desavisa-

do bem poderia aproximar algumas figuras semelhantes e

distinguir outras em razdo de tal ou qual diferenca: de fato

ndo ha; mesmo para a mais ingenua experiencia, nenhuma

similitude, nenhuma distinciio que ndo resulte de uma ope-

radio precisa e da aplicaciio de um criteria previo. Um "sis-

tema dos elementos" - uma definiciio dos segmentos sobre

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XVI AS PALA VRASE AS COISAS PREFAcIO XVII

os quais poderiio aparecer as semelhancas e as diferencas,

os tipos de variacdo de que esses segmentos poderiio ser afe-

tados, 0 l imiar; enfim, acima do qual havera diferenca e abai-

xo do qual haverd similitude - e indispensavel para 0esta-belecimento da mais simples ordem. A ordem e ao mesmo

tempo aquilo que se oforece nas coisas como sua lei interior,

a rede secreta segundo a qual elas se olham de algum modo

umas as outras e aquilo que so existe atraves do crivo de um

olhar, de uma atencdo, de uma linguagem; e e somente nas

casas brancas desse quadriculado que ela se manifesta em

profundidade como ja presente, esperando em silencio 0mo-

mento de ser enunciada.

Os codigos fundamentais de uma cultura - aqueles que

regem sua linguagem, seus esquemas perceptivos, suas trocas,

suas tecnicas, seus valores, a hierarquia de suas prdticas -

fixam, logo de entrada, para cada homem, as ordens empiri-

cas com as quais terti de lidar e nas quais se ha de encon-

trar. Na outra extremidade do pensamento, teorias cientifi-

cas ou interpretacoes de filosofos explicam por que ha em

geral uma ordem, a que lei geral obedece, que principio po-

de justifica-la, por que raziio e esta a ordem estabelecida e

ndo outra. Mas, entre essas duas regioes tao distantes, reina um

dominio que, apesar de ter sobretudo um papel intermediario,

ndo e menos fundamental: e mais confuso, mais obscuro e,

sem duvida, menos facil de analisar. Ii ai que uma cultura,

afastando-se insensivelmente das ordens empiricas que lhe

sao prescritas por seus codigos primaries, instaurando uma

primeira distdncia em relaciio a elas, fa-las perder sua

transparencia inicial, cessa de se deixar passivamente atra-

vessar por elas, desprende-se de seus poderes imediatos e

invisiveis, libera-se 0 bastante para constatar que essas or-

dens ndo sao talvez as unicas possiveis nem as melhores: de

tal sorte que se encontre diante do f a to bruto de que ha, sob

suas ordens espontdneas, coisas que sao em si mesmas

ordenaveis, que pertencem a uma certa ordem muda, em

suma, que ha ordem. Como se, libertando-se por uma partede seus grilhiies lingiiisticos, perceptivos, praticos, a cultura

aplicasse sobre estes um segundo grilhiio que os neutralizas-

se, que, duplicando-os, os fizesse aparecer ao mesmo tempo

que os excluisse e. no mesmo movimento, se achasse diante

do ser bruto da ordem. Ii em nome dessa ordem que os codi-

gos da linguagem, da percepcdo, da pratica sao criticados e

parcialmente invalidados. Ii com base nessa ordem, assumi-

da como solo positivo, que se construiriio as teorias gerais

da ordenaciio das coisas e as fnterpretaroes que esta requer.

Assim, entre 0 olhar ja codificado e 0 conhecimento reflexi-

vo, ha uma regiiio mediana que Libera a ordem no seu ser

mesmo: e ai que ela aparece, segundo as culturas e segundo

as epocas, continua e graduada ou fracionada e desconti-

nua, ligada ao espaco ou constituida a cada instante pelo

impulso do tempo, semelhante a um quadro de varidveis ou

definida por sistemas separados de coerencias, composta de

semelhancas que se aproximam sucessivamente ou se espe-

lham mutuamente, organizada em torno de diferencas cres-

centes etc. De tal sorte que essa regido "mediana ", na

medida em que manifesta os modos de ser da ordem, pode

apresentar-se como a mais fundamental: anterior as pala-

vras, as percepcoes e aos gestos, incumbidos entiio de tra-

duzi-la com maior ou menor exatidiio ou sucesso (raziio pe-

la qual essa experiencia da ordem, sem seu ser macico e

primeiro, desempenha sempre um papel critico); mais soli-

da, mais arcaica, menos duvidosa, sempre mais "verdadeira"

que as teorias que lhes tentam dar uma forma explicita, uma

explicaciio exaustiva, ou um fundamento filosofico. Assim,

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PREFAcIO XIX

XVIII AS PALA VRAS E AS COISAS

em toda cultura, entre 0 uso do que se poderia chamar os

codigos ordenadores e as reflexiies sobre a ordem, ha a

experiencia nua da ordem e de seus modos de ser.

No presente estudo, e essa experiencia que se pretendeanalisar. Trata-se de mostrar 0 que ela veio a se tornar, des-

de 0seculo XVI, no meio de uma cultura como a nossa: de

que maneira, refazendo, como que contra a corrente, 0per-

curso da linguagem tal como foi falada, dos seres naturais,

tais como foram percebidos e reunidos, das trocas, tais como

foram praticadas, nossa cultura manifestou que havia ordem

e que as modalidades dessa ordem deviam as permutas suas

leis, os seres vivos sua regularidade, as palavras seu enca-

deamento e seu valor representativo; que modalidades de

ordem foram reconhecidas, colocadas, vinculadas ao espa-

fO e ao tempo, para formar 0 suporte positivo de conheci-

mento tais que vao dar na gramatica e nafilologia, na histo-

ria natural e na biologia, no estudo das riquezas e na econo-

mia politica. Tal analise, como se ve, niio compete a historia

das ideias ou das ciencias: e antes um estudo que se esforca

por encontrar a partir de que foram possiveis conhecimen-

tos e teorias; segundo qual espaco de ordem se constituiu 0

saber; na base de qual a priori historico e no elemento de

qual positividade puderam aparecer ideias, constituir-se

ciencias, refletir-se experiencias em filosofias, formar-se ra-

cionalidades, para talvez se desarticularem e logo desvane-

cerem. Niio se tratara, portanto, de conhecimentos descritos

no seu progresso em direciio a uma objetividade na qual nos-

sa ciencia de hoje pudesse enfim se reconhecer; 0 que se

quer trazer a luz e 0campo epistemologico, a episteme onde

os conhecimentos, encarados fora de qualquer criteria refe-

rente a seu valor racional ou a suas formas objetivas, enrai-

zam sua positividade e manifestam assim uma historia que

ndo e a de sua perfeiciio crescente, mas, antes, a de suas con-

dicoes de possibilidade; neste relato, 0 que deve aparecer

sao, no espaco do saber, as configuraciies que deram lugar

a s formas diversas do conhecimento empirico. Mais que de

uma historia no sentido tradicional da palavra, trata-se deuma "arqueologia "1.

Ora, esta investigadio arqueologica mostrou duas gran-

des descontinuidades na episteme da cultura ocidental: aque-

la que inaugura a idade cldssica (por volta dos meados do

seculo XVII) e aquela que, no inicio do seculo XIX, marca 0

limiar de nossa modernidade. A ordem, sobre cujo funda-

mento pensamos, ndo tem 0mesmo modo de ser que ados

cldssicos. Por muito forte que seja a impressdo que temos de

um movimento quase ininterrupto da ratio europeia desde 0

Renascimento ate nossos dias, por mais que pensemos que a

classificaciio de Lineu, mais ou menos adaptada, pode de

modo geral continuar a ter uma especie de validade, que a

teor ia do valor de Condillac se encontra em parte no margi-

nalismo do seculo XIX, que Keynes realmente sentiu a afini-

dade de suas proprias analises com as de Cantillon, que 0

propos ito da Gramatica geral (tal como 0 encontramos nos

autores de Port-Royal ou em Bauzee) niio esta tao afastado

de nossa atual lingiiistica - toda esta quase-continuidade

ao nivel das ideias e dos temas ndo passa, certamente, deum efeito de superficie; no nivel arqueologico, ve-se que 0

sistema das positividades mudou de maneira macica na cur-

va dos seculos XVIII eXIX. Niio que a razdo tenha feito pro-

gressos; mas 0modo de ser das coisas e da ordem que, dis-

tribuindo-as, oferece-as ao saber, e que foi profundamente

alterado. Se a historia natural de Tournefort, de Lineu e de

I. Os problemas de rnetodo suscitados por tal "arqueologia" ser1i.o

examinados em uma proxima obra.

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xx AS PALA VRASE AS COISAS PREFAcIO XXI

BufJon tem relaciio com alguma coisa que niio ela mesma,

niio e com a biologia, a anatomia comparada de Cuvier ou 0

evolucionismo de Darwin, mas com a gramdtica geral de Bau-

zee, com a analise da moeda e da riqueza tal como a encon-

tramos em Law, em Veron de Fortbonnais ou em Turgot. Osconhecimentos chegam talvez a se engendrar, as ideias a se

transformar e a agir umas sobre as outras (mas como? ate 0

presente os historiadores ndo no-lo disseram); uma coisa,

em todo 0 caso, e certa: a arqueologia, dirigindo-se ao es-

poco geral do saber, a suas configuraciies e ao modo de ser

das coisas que ai aparecem, define sistemas de simultaneida-

de, assim como a serie de mutaciies necessarias e suficien-

tes para circunscrever 0l imiar de uma positividade nova.

Assim, a analise pode mostrar a coerencia que existiu,durante toda a idade classica, entre a teoria da representa-

fiio e as da linguagem, das ordens naturais, da riqueza e do

valor. E esta configuraciio que, a partir do seculo XIX, mu-

da inteiramente; a teoria da representaciio desaparece co-

mofundamento geral de todas as ordens possiveis; a lingua-

gem, por sua vez, como quadro espontdneo e quadriculado

primeiro das coisas, como suplemento indispensdvel entre a

representaciio e os seres, desvanece-se; uma historicidade

profunda penetra no coraciio das coisas, isola-as e as define

na sua coerencia propria. impiie-lhes formas de ordem que

siio implicadas pela continuidade do tempo; a analise das

trocas e da moeda cede lugar ao estudo da produciio, a do

organismo toma dianteira sobre a pesquisa dos caracteres

taxinomicos; e. sobretudo, a linguagem perde seu lugar pri-

vilegiado e toma-se, por sua vez, uma figura da historia coe-

rente com a espessura de seu passado. Na medida, po rem,

em que as coisas giram sobre si mesmas, reclamando para

seu devir niio mais que 0principio de sua inteligibilidade e

abandonando 0 espaco da representaciio, 0 hom em, por seu

turno, entra, epela primeira vez, no campo do saber ociden-

tal. Estranhamente, 0homem - cujo conhecimento passa, a

olhos ingenues, como a mais velha busca desde Socrates -

ndo e . sem duvida, nada mais que uma certa brecha na or-

dem das coisas, uma configuracdo, em todo 0caso, desenha-

da pela disposiciio nova que ele assumiu recentemente no

saber. Dai nasceram todas as quimeras dos novos humanis-

mos, todas asfacilidades de uma "antropologia ", entendida

como reflexiio geral, meio positiva, meio filosofica, sobre 0

homem. Contudo, e um reconforto e um profundo apazigua-

mento pensar que 0homem ndo passa de uma invenciio re-

cente, umafigura que niio tem dois seculos, uma simples do-

bra de nosso saber, e que desaparecera desde que este hou-ver encontrado uma forma nova.

Ve-se que esta investigaciio responde um pouco, como

em eco, ao projeto de escrever uma historia da loucura na

idade classica; ela tem, em relacdo ao tempo, as mesmas ar-

ticulacoes, tomando como seu ponto de partida 0fim do Re-

nascimento e encontrando, tambem ela, na virada do seculo

XIX, 0 limiar de uma modernidade de que ainda ndo saimos.

Enquanto, na historia da loucura, se interrogava a maneira

como uma cultura pode colocar sob uma forma macica e ge-ral a diferenca que a limita, trata-se aqui de observar a ma-

neira como ela experimenta aproximidade das coisas, como

ela estabelece 0 quadro de seus parentescos e a ordem se-

gundo a qual e preciso percorre-los. Trata-se, em suma, de

uma historia da semelhanca: sob que condicoes 0pensamen-

to classico pode refletir; entre as coisas, relaciies de simila-

ridade ou de equivalencia que fundam ejustificam as pala-

vras, as classificaciies, as trocas? A partir de qual a priori

historico foi possivel definir 0grande tabuleiro das identi-

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XXII AS PALA VRAS E AS COISAS

dades distintas que se estabelece sobre 0 fundo confuso,

indefinido, sem fisionomia e como que indiferente, das dife-

rencas? A historia da loucura seria a historia do Dutro - da-

quito que, para uma cultura e ao mesmo tempo interior e es-

tranho, a ser portanto excluido (para conjurar-lhe 0perigointerior), encerrando-o porem (para reduzir-lhe a alterida-

de); a historia da ordem das coisas seria a historia do Mes-

mo - daquilo que, para uma cultura, e ao mesmo tempo dis-

perso e aparentado, a ser portanto distinguido por marcas e

recolhido em identidades.

E se se pensar que a doenca e, ao mesmo tempo, a de-

sordem, a perigosa alteridade no corpo humano e ate 0cer-

ne da vida, mas tambem um fenomeno da natureza que tem

suas regularidades, suas semelhancas e seus tipos - ve-se

que lugar poderia ter uma arqueologia do olhar medico. Da

experiencia-limite do Dutro as formas constitutivas do saber

medico e, destas, a ordem das coisas e ao pensamento do Mes-

mo, 0que se oferece a ami lise arqueologica e todo 0saber

classico, ou melhor, esse limiar que nos separa dopensamen-

to classico e constitui nossa modernidade. Nesse limiar apa-

receu pela prime ira vez esta estranha figura do saber que se

chama homem e que abriu um espaco proprio a s ciencias hu-

manas. Tentando trazer a luz esse profundo desnivel da cultu-

ra ocidental, e a nosso solo silencioso e ingenuamente imo-

vel que restituimos suas rupturas, sua instabilidade, suas fa-

lhas; e e ele que se inquieta novamente sob nossos passos.

I