Prefácio - Seis Personagens à Procura de Um Autor
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PREFCIO
SEIS PERSONAGENS PROCURA DE UM AUTOR LUIGI PIRANDELLO
H muitos anos que est ao servio da minha arte (e parece que foi
ontem) uma criadita muito despachada, mas que parece sempre que
est c h pouco tempo.
Chama-se Fantasia.
Um tanto desdenhosa e trocista, embora goste de se vestir de preto, no
se pode negar que no seja, muitas vezes, extravagante, nem se pode
acreditar que faa sempre tudo a srio e da mesma maneira. Mete uma
mo no bolso; tira um barrete com chocalhos; enfia-o na cabea,
vermelho como uma crista, e foge. Hoje est aqui; mas amanh est
acol. E diverte-se a trazer-me para casa, para eu delas tirar novelas,
romances e comdias, as pessoas mais insatisfeitas que andam pelo
mundo, homens, mulheres e jovens metidos em casos estranhos, dos
quais no se conseguem livrar; contrariadas naquilo que querem,
defraudadas das suas esperanas; e com as quais, em suma, mesmo
penoso, tantas vezes, conviver.
Ora bem, esta minha criadita, a Fantasia, teve, j l vo alguns anos, a
triste inspirao ou o maldito capricho de me trazer para casa uma
famlia inteira, que eu no sei onde nem como ela foi desencantar, mas
que me podia servir, pensava ela, para tirar o tema de um magnfico
romance.
Encontrei diante de mim um homem com os seus cinquenta anos, de
casaco preto e calas claras, ar crispado e olhos irritadios, de to
mortificado que estava; uma pobre viva vestida de luto, que trazia pela
mo, de um lado, uma menina com quatro anos e, do outro, um rapaz
com pouco mais de dez; uma jovem ousada e provocante, tambm de
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preto, mas com um luxo ambguo e descarado, toda ela um frmito de
desdm, leviano e custico, contra aquele velho mortificado e contra um
jovem com cerca de vinte anos que estava parte, fechado sobre si
mesmo, como se tivesse despeito por todos os outros. Enfim, aquelas
seis personagens, conforme as vemos agora aparecer em palco, no incio
da comdia. Ora uma, ora outra, mas tambm muitas vezes uma a
interromper a outra, comeavam a contar-me as suas tristes histrias,
cada uma a gritar-me as suas prprias razes, e a atirar-me cara as
suas paixes inconvenientes, quase como agora fazem na comdia do
malfadado Encenador.
Qual o autor que pode dizer como e porque que uma personagem
nasceu na sua fantasia? O mistrio da criao artstica o prprio
mistrio do nascimento natural. Pode, uma mulher que ama, querer ser
me; mas o desejo, por si s, por mais intenso que seja, pode no
bastar. Um belo dia ela h-de ver que me, sem saber, com exactido,
quando foi. Assim um artista, ao longo da sua existncia, acolhe dentro
de si tantos grmenes de vida, sem nunca poder dizer como e porque
que, num certo momento, um desses grmenes vitais entrou na sua
fantasia, para se tornar, tambm ele, uma criatura viva, num plano de
vida superior ao da volvel e v existncia quotidiana.
S posso dizer que, sem saber que alguma vez as procurei, encontrei
vivas minha frente, vivas que lhes podia tocar, vivas que at podia
ouvir a sua respirao, aquelas seis personagens que agora se vem no
palco. E esperavam, ali presentes, cada uma com o seu secreto
tormento, e todas unidas pelo nascimento e pela evoluo das suas
experincias em comum, que eu as deixasse entrar no mundo da arte,
fazendo das suas pessoas, das suas paixes e dos seus casos um
romance, um drama ou, pelo menos, uma novela.
Nascidas vivas, queriam viver.
Ora, convm saber que nunca fiquei satisfeito de representar, to s, a
figura de um homem ou de uma mulher, por mais especial e
caracterstica que fosse, pelo mero gosto de a representar; de contar
uma experincia especfica, alegre ou triste que fosse, s pelo gosto de a
contar; de descrever uma paisagem, s pelo gosto de a descrever.
H certos escritores (e no so poucos) que gostam disso e, todos
satisfeitos, no querem outra coisa. So escritores de natureza mais
propriamente histrica.
Mas h outros que vo mais alm, sentem uma necessidade espiritual
mais profunda, razo pela qual no admitem figuras, experincias, ou
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paisagens que no se encontrem embebidas, passe a expresso, por um
particular sentido da vida, e que no cheguem, atravs dele, a um valor
universal. So escritores de natureza mais propriamente filosfica.
Tenho a pouca sorte de pertencer ao grupo destes ltimos.
Odeio a arte simblica, na qual a representao despojada de
qualquer movimento espontneo, para se tornar mquina, alegoria;
esforo vo e equvoco, porque basta dar sentido alegrico a uma
representao para mostrar claramente que ela j considerada uma
fbula que no contm, em si mesma, nada de verdadeiro, nem
imaginrio, nem objectivo, e que feita para demonstrar uma qualquer
verdade moral. Aquela necessidade espiritual de que falo no se pode
extinguir, seno em casos especficos, em nome de um objectivo de
superior ironia (como acontece, por exemplo, em Ariosto) prprio de um
tal simbolismo alegrico. Este parte de um conceito, ou melhor, um
conceito que se torna, ou que se procura tornar, imagem; pelo
contrrio, aquele procura na imagem, que deve permanecer viva e livre
por si mesma, em toda a sua expresso, um sentido que lhe d valor.
Ora, por mais que procurasse, no conseguia descobrir esse sentido
naquelas seis personagens. Achava, por isso, que no valia a pena dar-
lhes vida.
Pensava para comigo: "J incomodei tanto os meus leitores com
centenas e centenas de novelas: porque que os hei-de incomodar
ainda mais a contar as tristes histrias daqueles seis desgraados?"
Com esses pensamentos, afastava-os de mim. Ou melhor, fazia tudo
para os afastar de mim.
Mas no em vo que se d vida a uma personagem.
Criaturas do meu esprito, aquelas seis viviam uma vida que era a sua
prpria vida, e j no era a minha, uma vida que eu no tinha poder
para lhes negar.
Tanto verdade que, perseverando eu na minha vontade de as expulsar
do meu esprito, elas, quase totalmente privadas de qualquer suporte
narrativo, personagens de um romance que saram, por prodgio, das
pginas do livro que as continha, continuavam a viver por sua conta;
colhiam certos momentos do meu dia para se voltarem a debruar sobre
mim, na solido do meu escritrio, e, ora uma, ora outra, s vezes aos
pares, vinham-me tentar; vinham-me propor esta ou aquela cena para
representar ou para descrever, os efeitos que dela se podiam tirar, o
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novo interesse que podia suscitar uma determinada situao fora do
comum, e por a adiante.
Por um momento, dava-me por vencido; e bastava essa minha
condescendncia, esse meu deixar-se levar, por um instante que fosse,
para que elas da tirassem proveito de novo para a sua vida, com um
acrscimo de evidncia, e tambm, por isso, de eficcia persuasiva
sobre mim. Assim, tornava-se cada vez mais difcil, para mim, voltar-me
a libertar delas, ao passo que, para elas, era mais fcil voltarem a
tentar-me. Cheguei a um ponto em que fiquei verdadeiramente
obcecado por elas. At que, de repente, descobri a forma de sair dessa
situao.
"Ento disse para comigo , porque no represento este caso
inaudito de um autor que se recusa a dar vida a algumas das suas
personagens, nascidas vivas na sua fantasia, e o caso dessas
personagens que, quando que lhes infundida vida, no se conformam
a ficarem excludas do mundo da arte? Elas j se separaram de mim;
vivem por sua conta; adquiriram voz e movimento; j se transformaram,
portanto, por si mesmas, nessa luta que tiveram de travar comigo para
defenderem a sua prpria vida, personagens dramticas, personagens
que, sozinhas, se podem mover e falar; vem-se j a si prprias como
tal; aprenderam a defender-se de mim; tambm sabero defender-se dos
outros. Ento, deixemo-las ir por onde costumam ir as personagens
dramticas para terem vida: para o palco. E c ficaremos a ver o que
lhes vai acontecer."
Assim fiz. E aconteceu, naturalmente, aquilo que devia acontecer: um
misto de trgico e de cmico, de fantstico e de realista, numa situao
humorstica de facto nova e com uma complexidade nunca vista: um
drama que, por si s, atravs das suas personagens, que respiram, que
falam, que se movem, que o carregam e o sofrem dentro de si prprias,
quer encontrar, a todo o custo, modo de ser representado; e a comdia
da v tentativa de o pr em cena, de improviso. Primeiro, a surpresa
daqueles pobres actores de uma Companhia de Teatro que esto a
ensaiar, durante todo o dia, uma comdia, num palco desprovido de
bastidores e de cenrios; surpresa e dificuldade em acreditar, ao verem
aparecer diante deles aquelas seis personagens que se apresentam
como tal, procura de autor; depois, logo a seguir, em virtude daquele
inesperado desmaio da Me, coberta de preto, o seu instintivo interesse
pelo drama que entrevem nela e nos outros membros daquela estranha
famlia, um drama obscuro, ambguo, que acaba por se abater,
inesperadamente, sobre aquele palco vazio, que no est preparado
para o receber; e o progressivo aumento desse interesse pela ecloso de
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paixes contraditrias, ora no Pai, ora na Enteada, ora no Filho, ora
naquela pobre Me; paixes que procuram, como disse, sobrepor-se
umas s outras, com uma trgica fria destrutiva.
Assim, aquele sentido universal que em vo inicialmente se procurou
naquelas seis personagens, agora, quando sobem ao palco por si
prprias, so elas que o conseguem encontrar em si, atravs do mpeto
com que desencadeiam a luta desesperada que cada uma faz contra a
outra, e que todas fazem contra o Encenador e contra os actores que
no as compreendem.
Sem o querer e sem o saber, no agitado turbilho do seu nimo, cada
uma delas, para se defender das acusaes da outra, exprime como se
fosse sua viva paixo e seu tormento, aqueles que durante tantos anos
foram os trabalhos do meu esprito: os enganos da compreenso
recproca, irremediavelmente fundados sobre a vazia abstraco das
palavras; a personalidade mltipla de cada um, de acordo com todas as
possibilidades de ser que se encontram em cada um de ns; e, enfim, o
trgico conflito imanente entre a vida que continuamente prossegue e se
modifica, e a forma que a fixa, imutvel.
Duas das seis personagens, o Pai e a Enteada, falam dessa inderrogvel
fixidez da sua forma, na qual um e outra vem expressa para sempre,
imutavelmente, a sua essncia, o que para um significa castigo e para a
outra vingana; e defendem-na contra os desaforos fictcios e contra a
inconsciente volubilidade dos actores, e procuram imp-la ao grosseiro
Encenador, que a queria alterar e adaptar s assim chamadas
exigncias do teatro.
Nem todas as seis personagens se encontram, aparentemente, no
mesmo plano de formao, mas no porque existam entre elas figuras
de primeiro ou de segundo plano, isto , "protagonistas" e "tipos" o
que seria uma perspectiva elementar, necessria a qualquer
arquitectura cnica ou narrativa , e isso no por todas elas estarem,
em funo daquilo para que servem, completamente formadas. Esto,
as seis, no mesmo ponto de realizao artstica, todas elas no mesmo
plano de realidade, que o que a comdia tem de fantasioso. Se no
que o Pai, a Enteada e tambm o Filho foram concebidas como esprito;
como natureza, a Me; como presenas, o Jovenzinho que olha e leva
a cabo um gesto e a Menina, absolutamente inerte. Esse facto cria,
entre elas, uma perspectiva de um novo gnero. Inconscientemente,
tinha tido a impresso de que devia fazer aparecer algumas delas como
mais realizadas (artisticamente), outras menos e outras, ainda, s
delineadas ao de leve, como elementos de um facto a ser narrado ou
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representado: as mais vivas, as mais acabadas, o Pai e a Enteada, que,
naturalmente, vo mais alm, guiam as outras e arrastam atrs de si
esse peso quase morto: uma, o Filho, relutante; outra, a Me, como
uma vtima conformada, entre aquelas duas criaturazinhas que quase
no tm consistncia, a no ser pelo seu aspecto, e que precisam de ser
levadas pela mo.
Na verdade! Na verdade, devia mesmo aparecer, cada uma delas,
naquele estado de criao a que chegara na fantasia do autor, quando
as quis enxotar para fora de si.
Se agora penso nisso, o facto de ter intudo essa necessidade, de ter
encontrado, inconscientemente, uma forma de a resolver numa nova
perspectiva, e o modo como l cheguei, parecem-me milagre. Facto
que a pea foi verdadeiramente concebida numa iluminao espontnea
da fantasia, quando, prodigiosamente, todos os elementos do esprito se
corresponderam e trabalharam em divina concrdia. Nunca um crebro
humano, trabalhando a frio e por mais que nisso se empenhasse,
conseguiria penetrar, para as satisfazer, todas as necessidades da sua
forma. Por isso, as razes que apresentarei para esclarecer o seu valor
no devem ser entendidas como intenes que por mim foram
previamente congeminadas, quando me lancei na sua criao, e cuja
defesa agora assumo, mas to s como descobertas que eu prprio tive
posteriormente ocasio de fazer, com ponderao.
Quis representar seis personagens que procuram um autor. O drama
no se consegue representar, com efeito, porque falta o autor que elas
procuram; pelo contrrio, representa-se a comdia da sua v tentativa,
com tudo aquilo que tem de trgico, j que essas seis personagens
foram rejeitadas.
Mas pode-se representar uma personagem, rejeitando-a? Evidentemente
que, para a representar, necessrio, de outra forma, acolh-la na
fantasia e, portanto, dar-lhe expresso. E eu, de facto, acolhi e
compreendi aquelas seis personagens: acolhi-as e constru-as, contudo,
como rejeitadas: procura de um outro autor.
preciso compreender, ento, o que que delas recusei; no foram elas
prprias, evidentemente; mas o seu drama, que, sem dvida, lhes
interessava acima de tudo, mas que no me interessava a mim, pelas j
referidas razes.
O que o prprio drama, para uma personagem?
Qualquer fantasma, qualquer criatura da arte, para existir, deve ter o
seu drama, isto , um drama do qual seja personagem e em virtude do
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qual personagem. O drama a razo de ser da personagem; a sua
funo vital: necessria para que exista.
Daqueles seis, acolhi, pois, o ser, recusando a razo de ser; tomei o
organismo, confiando-lhe, em vez da sua prpria funo, uma outra,
mais complexa, na qual a primeira entrava apenas como um dado de
facto. Situao terrvel e desesperada, especialmente para dois deles
o Pai e a Enteada que, mais do que os outros, esto agarrados vida,
e que, mais do que os outros, tm conscincia de serem personagens,
com uma necessidade absoluta de terem um drama e, por isso, de
terem o seu prprio drama, que o nico que podem imaginar para si, e
que, entretanto, vem ser recusado; situao "impossvel", da qual
sabem que devem sair a todo o custo, como se fosse uma questo de
vida ou de morte. bem verdade que eu, pelo que diz respeito sua
razo de ser e sua funo, lhes dei uma outra, ou seja, aquela
situao "impossvel", o drama de estarem procura de autor,
rejeitadas: mas que esta seja uma razo de ser que se tenha tornado,
para eles, que j tinham uma vida prpria, a verdadeira funo
necessria e suficiente para existirem, no podem sequer suspeitar. Se
algum lho dissesse, no acreditavam; porque no possvel
acreditarem que a nica razo de ser da nossa vida se resuma a um
tormento que nos parece injusto e inexplicvel.
No sei dizer, por isso, com que fundamento fui censurado por a
personagem do Pai no ser aquilo que devia ser, por extravasar a sua
qualidade e a sua posio de personagem, ao invadir, por vezes,
fazendo-a sua, a tarefa do autor. Eu, que compreendo quem no me
compreende, percebo que essa crtica decorre do facto de aquela
personagem exprimir, como sendo sua, uma actividade do esprito que
se reconhece ser minha. O que bem natural e no significa
absolutamente nada. parte a observao de que todo aquele trabalho
de esprito, na personagem do Pai, decorre, sendo sofrido e vivido, de
causas e de razes que nada tm a ver com o drama da minha
experincia pessoal, considerao que, por si s, tiraria toda a
consistncia quela crtica, quero esclarecer que uma coisa o trabalho
imanente do meu esprito, trabalho que eu posso legitimamente
desde que seja orgnico reflectir numa personagem; outra coisa a
actividade do meu esprito, levada a cabo na realizao desse trabalho,
ou seja a actividade que consegue dar forma ao drama daquelas seis
personagens procura de autor. Se o Pai participasse nessa actividade,
se contribusse para dar forma ao drama de serem seis personagens
sem autor, ento nesse caso, e s nesse caso, que se poderia dizer
com razo que, por vezes, ele o prprio autor, e que, por isso, no
aquilo que devia ser. Mas o Pai, esse seu ser "personagem procura de
-
autor", sofre-o, no o cria, sofre-o como uma fatalidade inexplicvel e
como uma situao contra a qual tenta revoltar-se com todas as suas
foras, para a remediar: precisamente, "personagem procura de autor"
e nada mais, apesar de exprimir como se fosse seu o trabalho do meu
esprito. Se ele tivesse participado na actividade do autor, explicar-se-ia
perfeitamente aquela fatalidade; seria ento acolhido, mesmo como
personagem rejeitada, mas, afinal, acolhido, na matriz fantasiosa de um
poeta e deixaria de ter razes para suportar aquele desespero, por no
encontrar quem afirme e componha a sua vida de personagem: quero
dizer, aceitaria de bom grado a razo de ser que lhe d o autor e, sem o
lamentar, renunciava s suas razes, mandava passear aquele
Encenador e aqueles actores aos quais, em ltima anlise, acabou por
recorrer.
H uma personagem, a da Me, a quem, pelo contrrio, nada lhe
importa ter vida, considerando o ter vida como um fim em si mesmo.
No tem a mnima dvida, ela, de que j tem vida, nem nunca lhe
passou pela cabea perguntar-se como, porqu e de que modo a tem.
Em suma, no tem conscincia de ser personagem; j que nunca se
distanciou, nem por um momento que fosse, do seu "papel". No sabe
que tem um "papel". Isso , para ela, perfeitamente orgnico. De facto, o
seu papel de Me no comporta, por si mesmo, na sua "naturalidade",
momentos espirituais; e ela no vive como esprito: vive numa
continuidade de sentimentos que nunca tem soluo, no podendo
adquirir, portanto, conscincia da sua vida, que dizer, do seu ser
personagem. Mas, com tudo isso, tambm ela procura, sua maneira e
para os seus fins, um autor; a certo ponto, at parece que est contente
por ter sido levada ao Encenador. Talvez porque tambm ela espera ter
vida a partir dele? No: porque espera que o Encenador a mande
representar uma cena com o Filho, na qual havia de pr tanto da sua
prpria vida; mas uma cena que no existe, que nunca pde, nem
poderia, fazer-se. Com efeito, no tem conscincia do seu ser
personagem, isto , da vida que pode ter, absolutamente condicionada e
determinada, segundo a segundo, por cada gesto e por cada palavra.
Apresenta-se no palco juntamente com as outras personagens, mas sem
perceber o que elas a levam a fazer. Imagina, evidentemente, que a
mania de ter vida que assalta o marido e a filha, e em virtude da qual
tambm ela se encontra sobre um palco, no mais do que uma das
habituais e incompreensveis esquisitices daquele homem atormentado
que atormenta os outros, e horrvel, horrvel uma nova e equvoca
tentativa de erguer a cabea, por parte daquela sua pobre rapariga
perdida. totalmente passiva. Os casos da sua vida e o valor que
assumiram aos seus olhos, o seu prprio carcter, so tudo coisas ditas
-
pelos outros e que s uma vez contradiz, porque o instinto maternal
irrompe dentro dela e revolta-se, para esclarecer que no quer
abandonar nem o filho, nem o marido; porque o filho lhe foi tirado e o
marido a votou ao abandono. Mas o que ela faz rectificar dados de
facto: no sabe nem se explica coisa nenhuma.
Em resumo, natureza. Uma natureza condensada numa figura de
me.
Esta personagem deu-me um novo tipo de satisfao, que no deve ser
calado. Quase todos os meus crticos, em vez de a definirem, como de
costume, "desumana" que parece ser o carcter peculiar e incorrigvel
de todas as minhas criaturas, indistintamente tiveram a gentileza de
notar, "com verdadeiro prazer", que, finalmente, tinha sado da minha
fantasia uma figura humanssima. Compreendo o louvor desta maneira:
que, estando a minha pobre Me muito ligada ao seu comportamento
natural de Me, sem possibilidade de elementos espirituais livres, quase
como um cepo de carne mesmo viva, com todas as suas funes de
procriar, aleitar, tratar e amar a sua prole, sem qualquer necessidade,
por isso, de fazer agir o crebro, ela actualize em si o verdadeiro e
perfeito "tipo humano". Com certeza que assim, porque nada parece
ser mais suprfluo do que o esprito num organismo humano.
Mas os crticos, mesmo com aquele louvor, quiseram-se ver livres da
Me sem se preocuparem em penetrar no ncleo de valores poticos que
a personagem, na comdia, significa. Humanssima figura, de facto,
porquanto privada de esprito, isto , nem consciente de ser aquilo que
, nem preocupada em explic-lo a si prpria. Mas o facto de ignorar
que personagem de forma alguma obstculo a que j o seja. Eis o
seu drama, na minha comdia. A sua expresso mais viva ressalta
naquele seu grito ao Encenador, que lhe fazia ver que tudo j se tinha
passado e, portanto, no podia ser motivo para mais uma choradeira:
"No, acontece agora, acontece sempre! A minha tortura no acabou
aqui, meu Senhor! Eu estou viva e presente, sempre, em qualquer
momento da minha tortura, que se renova viva e presente, sempre".
ela, isto, sente-o, sem conscincia, e, por isso, como coisa inexplicvel:
mas sente-o de um modo to terrvel, que no pensa sequer que seja
uma coisa que possa explicar a si mesma ou aos outros. Sente-o e
basta. Sente-o como dor, e essa dor, de imediato, grita-a. assim que
nela se reflecte a fixidez da sua vida numa forma que, de um modo
diferente, atormenta o Pai e a Enteada. Estes, esprito; ela, natureza: o
esprito revolta-se, ou procura tirar dividendos da situao, conforme
pode; a natureza, se no for incitada pelos estmulos dos sentidos,
chora.
-
O conflito imanente entre a vida e a forma condio inexorvel no s
da ordem espiritual, como tambm da natural. A vida que, para existir,
se fixou na nossa forma corporal, matou, pouco a pouco, a sua forma.
O choro dessa natureza fixa o irremedivel e contnuo envelhecimento
do nosso corpo. O choro da Me , ao mesmo tempo, passivo e
perptuo. Mostrado atravs de trs perspectivas, valorizado em trs
dramas diversos e contemporneos, aquele conflito imanente encontra,
assim, na comdia, a sua melhor expresso. Alm disso, a Me declara
tambm o particular valor da forma artstica: forma que no
compreende e no mata a sua vida, e que a vida no consome; com
aquele seu grito ao Encenador. Se o Pai e a Enteada recomeassem,
cem mil vezes que fosse, a sua cena, sempre, naquele ponto fixo, no
momento em que a vida da obra de arte deve ser expressa atravs
daquele seu grito, sempre esse grito ressoaria: inalterado e inaltervel
na sua forma, no como uma repetio mecnica, no como um retorno
ditado por imperativos exteriores, mas, de cada vez, vivo, como novo, a
aparecer de improviso, assim, para sempre: embalsamado vivo na sua
forma incorruptvel. Assim, sempre, ao abrimos o livro, encontraremos
Francisca que confessa a Dante o seu doce pecado; e se voltarmos a ler,
cem mil vezes seguidas, aquele passo, cem mil vezes seguidas Francisca
h-de dizer outra vez as suas palavras, sem nunca as repetir
maquinalmente, mas como se as dissesse, de cada vez, pela primeira
vez, com uma paixo to viva e to inesperada que, de cada vez, Dante
h-de perder os sentidos. Tudo aquilo que vive, pelo facto de viver, tem
forma, e por isso mesmo deve morrer: excepo da obra de arte, que
vive para sempre, precisamente, porque forma.
O nascimento de uma criatura na fantasia humana, nascimento esse
que como um passo no limiar entre o nada e a eternidade, tambm
pode ocorrer inesperadamente, sendo gerado por uma necessidade.
Num drama imaginado, necessria uma personagem que faa ou que
diga uma certa coisa necessria; aquela personagem nasceu, e aquela,
precisamente, que devia ser. Assim nasce Madama Pace entre as seis
personagens, e parece um milagre, ou melhor, um truque representado
de modo realista naquele palco. Mas no um truque. O nascimento
real, a nova personagem viva no porque estivesse j viva, mas porque
felizmente nasceu, conforme o implica a sua natureza de personagem,
por assim dizer, "obrigatria". Deu-se, pois, uma fragmentao, uma
inesperada mudana do plano da realidade da cena, porque uma
personagem s pode nascer daquela maneira na fantasia do poeta, no
seguramente sobre as tbuas de um palco. Sem que ningum se tenha
dado conta disso, de repente mudei a cena: voltei a acolh-la, naquele
momento, na minha fantasia, sem a tirar dos olhos dos espectadores;
-
mostrei-lhes, em vez do palco, a minha fantasia no acto de criar,
precisamente sobre aquele palco. A mudana inesperada e incontrolvel
de uma aparncia, de um plano de realidade para um outro, um
milagre do tipo daqueles que so realizados por um Santo que faz mexer
a sua esttua, que naquele momento deixa de ser, certamente, de
madeira ou de pedra; mas no um milagre arbitrrio. Aquele palco,
tambm porque acolhe a realidade fantstica das seis personagens, no
existe por si mesmo, como dado fixo e imutvel, tal como nesta comdia
nada existe de predisposto e de preconcebido: tudo se faz, tudo se
move, tudo tentativa inesperada. Tambm o plano de realidade, o
lugar onde se modifica e se volta a modificar essa vida informe que
aspira sua forma, consegue assim deslocar-se, organicamente.
Quando pensei fazer nascer, ali mesmo, Madama Pace, sobre aquele
palco, senti que o podia fazer, e fi-lo; se tivesse percebido que aquele
nascimento me confundia e me dava uma outra forma, silenciosa e
quase inadvertidamente, num instante, o plano de realidade da cena,
no o teria seguramente feito assim, enregelado pela sua aparente falta
de lgica. E teria levado a cabo uma malfadada mortificao da beleza
da minha obra, da qual me salvou o fervor do meu esprito: porque,
contra uma aparncia lgica mentirosa, aquele nascimento fantstico
sustido por uma verdadeira necessidade, numa misteriosa correlao
orgnica com toda a vida da obra.
Que algum me diga agora que ela no tem todo o valor que poderia ter
porque a sua expresso no orgnica, mas catica, porque peca por
romantismo, faz-me rir.
Compreendo porque me foi feita essa observao. Porque, no meu
trabalho, a representao do drama no qual se encontram envolvidas as
seis personagens parece tumultuosa e nunca avana de uma forma
ordenada: no h desenvolvimento lgico, no h concatenao dos
acontecimentos. pura verdade. Nem que procurasse com uma candeia
poderia encontrar um modo mais desordenado, mais esquisito, mais
arbitrrio e complicado, isto , mais romntico, de representar "o drama
no qual esto envolvidas as seis personagens". mesmo verdade, mas
eu no representei aquele drama: representei um outro e no vale a
pena repetir qual! onde, entre tantas outras belas coisas que cada
um a pode encontrar, segundo os seus gostos, h mesmo uma discreta
stira dos procedimentos romnticos; naquelas minhas personagens,
todas inflamadas, a valorizarem o papel que cada uma delas tem num
certo drama, enquanto eu as apresento como personagens de uma
outra comdia que elas no conhecem e de cuja existncia no esto
informadas e nem sequer suspeitam, de tal forma que aquela sua
perturbao passional, maneira romntica, apresentada de forma
-
humorstica, assente no nada. E o drama das personagens,
representado no como se teria organizado na minha fantasia se a
tivesse sido acolhido, mas como drama rejeitado, s podia consistir no
meu trabalho enquanto "situao" e em alguns aspectos do seu
desenvolvimento, mas no podia mostrar-se seno de modo alusivo,
tumultuoso e desordenado, em relances violentos, de forma catica:
continuamente interrompido, desviado, contraditrio, negado por uma
das suas personagens, por duas outras, nem sequer vivido.
H, de facto, uma personagem aquela que "nega" o drama que a faz
personagem, o Filho que vai buscar todo o seu relevo e todo o seu
valor ao facto de ser personagem no da "comdia a encenar" j que
quase nunca aparece como tal mas da representao que eu dela
fao. , em suma, a nica que s vive como personagem procura de
autor; tanto mais que o autor que procura no um autor dramtico.
Tambm isso no podia ser de outra maneira; o comportamento da
personagem to orgnico, na minha concepo, quanto lgico que,
na situao, determine maior confuso e desordem, sendo um outro
motivo de contraste romntico.
Mas era mesmo esse caos, orgnico e natural, que eu devia representar;
e representar um caos no significa, de facto, representar caoticamente,
isto , romanticamente. Que a minha representao seja tudo menos
confusa e, pelo contrrio, bastante clara, simples e ordenada, mostra-o
a evidncia com que, aos olhos de todos os pblicos do mundo, foram
vistos a intriga, os carcteres, os planos fantsticos e realsticos,
dramticos e cmicos do trabalho, e o modo como ressaltam, para quem
tem olhos mais penetrantes, os inslitos valores neles encerrados.
Grande a confuso das lnguas entre os homens, se crticas deste
gnero encontram palavras para se exprimirem. to grande essa
confuso quanto perfeita a ntima lei que, plenamente respeitada,
torna clssica e tpica a minha obra e impede cada palavra de ser uma
catstrofe. Quando, diante de todas elas, percebi que no com
artifcios que se cria vida, e que o drama das seis personagens, falta
do autor que o valorize no esprito, no se poder representar, em
virtude da insistncia de um Encenador, estupidamente desejoso de
saber como acabou a histria, ento este facto recordado pelo Filho,
na sucesso material dos seus momentos, desprovido de qualquer
sentido, e por isso sem necessidade sequer da voz humana, e abate-se,
feio, intil, com a detonao de uma arma mecnica em cena,
desrespeitando e desperdiando a estril tentativa das personagens e
dos actores, sem ser acompanhado, aparentemente, pelo poeta.
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O poeta, sem elas saberem, quase a olhar de longe durante todo o
tempo da tentativa que fazem, esperou, entretanto, para criar com ela e
a partir dela a sua obra.