Prefácio - Seis Personagens à Procura de Um Autor

13
PREFÁCIO SEIS PERSONAGENS À PROCURA DE UM AUTOR LUIGI PIRANDELLO Há muitos anos que está ao serviço da minha arte (e parece que foi ontem) uma criadita muito despachada, mas que parece sempre que está cá há pouco tempo. Chama-se Fantasia. Um tanto desdenhosa e trocista, embora goste de se vestir de preto, não se pode negar que não seja, muitas vezes, extravagante, nem se pode acreditar que faça sempre tudo a sério e da mesma maneira. Mete uma mão no bolso; tira um barrete com chocalhos; enfia-o na cabeça, vermelho como uma crista, e foge. Hoje está aqui; mas amanhã está acolá. E diverte-se a trazer-me para casa, para eu delas tirar novelas, romances e comédias, as pessoas mais insatisfeitas que andam pelo mundo, homens, mulheres e jovens metidos em casos estranhos, dos quais não se conseguem livrar; contrariadas naquilo que querem, defraudadas das suas esperanças; e com as quais, em suma, é mesmo penoso, tantas vezes, conviver. Ora bem, esta minha criadita, a Fantasia, teve, já lá vão alguns anos, a triste inspiração ou o maldito capricho de me trazer para casa uma família inteira, que eu não sei onde nem como ela foi desencantar, mas que me podia servir, pensava ela, para tirar o tema de um magnífico romance. Encontrei diante de mim um homem com os seus cinquenta anos, de casaco preto e calças claras, ar crispado e olhos irritadiços, de tão mortificado que estava; uma pobre viúva vestida de luto, que trazia pela mão, de um lado, uma menina com quatro anos e, do outro, um rapaz com pouco mais de dez; uma jovem ousada e provocante, também de

description

.

Transcript of Prefácio - Seis Personagens à Procura de Um Autor

  • PREFCIO

    SEIS PERSONAGENS PROCURA DE UM AUTOR LUIGI PIRANDELLO

    H muitos anos que est ao servio da minha arte (e parece que foi

    ontem) uma criadita muito despachada, mas que parece sempre que

    est c h pouco tempo.

    Chama-se Fantasia.

    Um tanto desdenhosa e trocista, embora goste de se vestir de preto, no

    se pode negar que no seja, muitas vezes, extravagante, nem se pode

    acreditar que faa sempre tudo a srio e da mesma maneira. Mete uma

    mo no bolso; tira um barrete com chocalhos; enfia-o na cabea,

    vermelho como uma crista, e foge. Hoje est aqui; mas amanh est

    acol. E diverte-se a trazer-me para casa, para eu delas tirar novelas,

    romances e comdias, as pessoas mais insatisfeitas que andam pelo

    mundo, homens, mulheres e jovens metidos em casos estranhos, dos

    quais no se conseguem livrar; contrariadas naquilo que querem,

    defraudadas das suas esperanas; e com as quais, em suma, mesmo

    penoso, tantas vezes, conviver.

    Ora bem, esta minha criadita, a Fantasia, teve, j l vo alguns anos, a

    triste inspirao ou o maldito capricho de me trazer para casa uma

    famlia inteira, que eu no sei onde nem como ela foi desencantar, mas

    que me podia servir, pensava ela, para tirar o tema de um magnfico

    romance.

    Encontrei diante de mim um homem com os seus cinquenta anos, de

    casaco preto e calas claras, ar crispado e olhos irritadios, de to

    mortificado que estava; uma pobre viva vestida de luto, que trazia pela

    mo, de um lado, uma menina com quatro anos e, do outro, um rapaz

    com pouco mais de dez; uma jovem ousada e provocante, tambm de

  • preto, mas com um luxo ambguo e descarado, toda ela um frmito de

    desdm, leviano e custico, contra aquele velho mortificado e contra um

    jovem com cerca de vinte anos que estava parte, fechado sobre si

    mesmo, como se tivesse despeito por todos os outros. Enfim, aquelas

    seis personagens, conforme as vemos agora aparecer em palco, no incio

    da comdia. Ora uma, ora outra, mas tambm muitas vezes uma a

    interromper a outra, comeavam a contar-me as suas tristes histrias,

    cada uma a gritar-me as suas prprias razes, e a atirar-me cara as

    suas paixes inconvenientes, quase como agora fazem na comdia do

    malfadado Encenador.

    Qual o autor que pode dizer como e porque que uma personagem

    nasceu na sua fantasia? O mistrio da criao artstica o prprio

    mistrio do nascimento natural. Pode, uma mulher que ama, querer ser

    me; mas o desejo, por si s, por mais intenso que seja, pode no

    bastar. Um belo dia ela h-de ver que me, sem saber, com exactido,

    quando foi. Assim um artista, ao longo da sua existncia, acolhe dentro

    de si tantos grmenes de vida, sem nunca poder dizer como e porque

    que, num certo momento, um desses grmenes vitais entrou na sua

    fantasia, para se tornar, tambm ele, uma criatura viva, num plano de

    vida superior ao da volvel e v existncia quotidiana.

    S posso dizer que, sem saber que alguma vez as procurei, encontrei

    vivas minha frente, vivas que lhes podia tocar, vivas que at podia

    ouvir a sua respirao, aquelas seis personagens que agora se vem no

    palco. E esperavam, ali presentes, cada uma com o seu secreto

    tormento, e todas unidas pelo nascimento e pela evoluo das suas

    experincias em comum, que eu as deixasse entrar no mundo da arte,

    fazendo das suas pessoas, das suas paixes e dos seus casos um

    romance, um drama ou, pelo menos, uma novela.

    Nascidas vivas, queriam viver.

    Ora, convm saber que nunca fiquei satisfeito de representar, to s, a

    figura de um homem ou de uma mulher, por mais especial e

    caracterstica que fosse, pelo mero gosto de a representar; de contar

    uma experincia especfica, alegre ou triste que fosse, s pelo gosto de a

    contar; de descrever uma paisagem, s pelo gosto de a descrever.

    H certos escritores (e no so poucos) que gostam disso e, todos

    satisfeitos, no querem outra coisa. So escritores de natureza mais

    propriamente histrica.

    Mas h outros que vo mais alm, sentem uma necessidade espiritual

    mais profunda, razo pela qual no admitem figuras, experincias, ou

  • paisagens que no se encontrem embebidas, passe a expresso, por um

    particular sentido da vida, e que no cheguem, atravs dele, a um valor

    universal. So escritores de natureza mais propriamente filosfica.

    Tenho a pouca sorte de pertencer ao grupo destes ltimos.

    Odeio a arte simblica, na qual a representao despojada de

    qualquer movimento espontneo, para se tornar mquina, alegoria;

    esforo vo e equvoco, porque basta dar sentido alegrico a uma

    representao para mostrar claramente que ela j considerada uma

    fbula que no contm, em si mesma, nada de verdadeiro, nem

    imaginrio, nem objectivo, e que feita para demonstrar uma qualquer

    verdade moral. Aquela necessidade espiritual de que falo no se pode

    extinguir, seno em casos especficos, em nome de um objectivo de

    superior ironia (como acontece, por exemplo, em Ariosto) prprio de um

    tal simbolismo alegrico. Este parte de um conceito, ou melhor, um

    conceito que se torna, ou que se procura tornar, imagem; pelo

    contrrio, aquele procura na imagem, que deve permanecer viva e livre

    por si mesma, em toda a sua expresso, um sentido que lhe d valor.

    Ora, por mais que procurasse, no conseguia descobrir esse sentido

    naquelas seis personagens. Achava, por isso, que no valia a pena dar-

    lhes vida.

    Pensava para comigo: "J incomodei tanto os meus leitores com

    centenas e centenas de novelas: porque que os hei-de incomodar

    ainda mais a contar as tristes histrias daqueles seis desgraados?"

    Com esses pensamentos, afastava-os de mim. Ou melhor, fazia tudo

    para os afastar de mim.

    Mas no em vo que se d vida a uma personagem.

    Criaturas do meu esprito, aquelas seis viviam uma vida que era a sua

    prpria vida, e j no era a minha, uma vida que eu no tinha poder

    para lhes negar.

    Tanto verdade que, perseverando eu na minha vontade de as expulsar

    do meu esprito, elas, quase totalmente privadas de qualquer suporte

    narrativo, personagens de um romance que saram, por prodgio, das

    pginas do livro que as continha, continuavam a viver por sua conta;

    colhiam certos momentos do meu dia para se voltarem a debruar sobre

    mim, na solido do meu escritrio, e, ora uma, ora outra, s vezes aos

    pares, vinham-me tentar; vinham-me propor esta ou aquela cena para

    representar ou para descrever, os efeitos que dela se podiam tirar, o

  • novo interesse que podia suscitar uma determinada situao fora do

    comum, e por a adiante.

    Por um momento, dava-me por vencido; e bastava essa minha

    condescendncia, esse meu deixar-se levar, por um instante que fosse,

    para que elas da tirassem proveito de novo para a sua vida, com um

    acrscimo de evidncia, e tambm, por isso, de eficcia persuasiva

    sobre mim. Assim, tornava-se cada vez mais difcil, para mim, voltar-me

    a libertar delas, ao passo que, para elas, era mais fcil voltarem a

    tentar-me. Cheguei a um ponto em que fiquei verdadeiramente

    obcecado por elas. At que, de repente, descobri a forma de sair dessa

    situao.

    "Ento disse para comigo , porque no represento este caso

    inaudito de um autor que se recusa a dar vida a algumas das suas

    personagens, nascidas vivas na sua fantasia, e o caso dessas

    personagens que, quando que lhes infundida vida, no se conformam

    a ficarem excludas do mundo da arte? Elas j se separaram de mim;

    vivem por sua conta; adquiriram voz e movimento; j se transformaram,

    portanto, por si mesmas, nessa luta que tiveram de travar comigo para

    defenderem a sua prpria vida, personagens dramticas, personagens

    que, sozinhas, se podem mover e falar; vem-se j a si prprias como

    tal; aprenderam a defender-se de mim; tambm sabero defender-se dos

    outros. Ento, deixemo-las ir por onde costumam ir as personagens

    dramticas para terem vida: para o palco. E c ficaremos a ver o que

    lhes vai acontecer."

    Assim fiz. E aconteceu, naturalmente, aquilo que devia acontecer: um

    misto de trgico e de cmico, de fantstico e de realista, numa situao

    humorstica de facto nova e com uma complexidade nunca vista: um

    drama que, por si s, atravs das suas personagens, que respiram, que

    falam, que se movem, que o carregam e o sofrem dentro de si prprias,

    quer encontrar, a todo o custo, modo de ser representado; e a comdia

    da v tentativa de o pr em cena, de improviso. Primeiro, a surpresa

    daqueles pobres actores de uma Companhia de Teatro que esto a

    ensaiar, durante todo o dia, uma comdia, num palco desprovido de

    bastidores e de cenrios; surpresa e dificuldade em acreditar, ao verem

    aparecer diante deles aquelas seis personagens que se apresentam

    como tal, procura de autor; depois, logo a seguir, em virtude daquele

    inesperado desmaio da Me, coberta de preto, o seu instintivo interesse

    pelo drama que entrevem nela e nos outros membros daquela estranha

    famlia, um drama obscuro, ambguo, que acaba por se abater,

    inesperadamente, sobre aquele palco vazio, que no est preparado

    para o receber; e o progressivo aumento desse interesse pela ecloso de

  • paixes contraditrias, ora no Pai, ora na Enteada, ora no Filho, ora

    naquela pobre Me; paixes que procuram, como disse, sobrepor-se

    umas s outras, com uma trgica fria destrutiva.

    Assim, aquele sentido universal que em vo inicialmente se procurou

    naquelas seis personagens, agora, quando sobem ao palco por si

    prprias, so elas que o conseguem encontrar em si, atravs do mpeto

    com que desencadeiam a luta desesperada que cada uma faz contra a

    outra, e que todas fazem contra o Encenador e contra os actores que

    no as compreendem.

    Sem o querer e sem o saber, no agitado turbilho do seu nimo, cada

    uma delas, para se defender das acusaes da outra, exprime como se

    fosse sua viva paixo e seu tormento, aqueles que durante tantos anos

    foram os trabalhos do meu esprito: os enganos da compreenso

    recproca, irremediavelmente fundados sobre a vazia abstraco das

    palavras; a personalidade mltipla de cada um, de acordo com todas as

    possibilidades de ser que se encontram em cada um de ns; e, enfim, o

    trgico conflito imanente entre a vida que continuamente prossegue e se

    modifica, e a forma que a fixa, imutvel.

    Duas das seis personagens, o Pai e a Enteada, falam dessa inderrogvel

    fixidez da sua forma, na qual um e outra vem expressa para sempre,

    imutavelmente, a sua essncia, o que para um significa castigo e para a

    outra vingana; e defendem-na contra os desaforos fictcios e contra a

    inconsciente volubilidade dos actores, e procuram imp-la ao grosseiro

    Encenador, que a queria alterar e adaptar s assim chamadas

    exigncias do teatro.

    Nem todas as seis personagens se encontram, aparentemente, no

    mesmo plano de formao, mas no porque existam entre elas figuras

    de primeiro ou de segundo plano, isto , "protagonistas" e "tipos" o

    que seria uma perspectiva elementar, necessria a qualquer

    arquitectura cnica ou narrativa , e isso no por todas elas estarem,

    em funo daquilo para que servem, completamente formadas. Esto,

    as seis, no mesmo ponto de realizao artstica, todas elas no mesmo

    plano de realidade, que o que a comdia tem de fantasioso. Se no

    que o Pai, a Enteada e tambm o Filho foram concebidas como esprito;

    como natureza, a Me; como presenas, o Jovenzinho que olha e leva

    a cabo um gesto e a Menina, absolutamente inerte. Esse facto cria,

    entre elas, uma perspectiva de um novo gnero. Inconscientemente,

    tinha tido a impresso de que devia fazer aparecer algumas delas como

    mais realizadas (artisticamente), outras menos e outras, ainda, s

    delineadas ao de leve, como elementos de um facto a ser narrado ou

  • representado: as mais vivas, as mais acabadas, o Pai e a Enteada, que,

    naturalmente, vo mais alm, guiam as outras e arrastam atrs de si

    esse peso quase morto: uma, o Filho, relutante; outra, a Me, como

    uma vtima conformada, entre aquelas duas criaturazinhas que quase

    no tm consistncia, a no ser pelo seu aspecto, e que precisam de ser

    levadas pela mo.

    Na verdade! Na verdade, devia mesmo aparecer, cada uma delas,

    naquele estado de criao a que chegara na fantasia do autor, quando

    as quis enxotar para fora de si.

    Se agora penso nisso, o facto de ter intudo essa necessidade, de ter

    encontrado, inconscientemente, uma forma de a resolver numa nova

    perspectiva, e o modo como l cheguei, parecem-me milagre. Facto

    que a pea foi verdadeiramente concebida numa iluminao espontnea

    da fantasia, quando, prodigiosamente, todos os elementos do esprito se

    corresponderam e trabalharam em divina concrdia. Nunca um crebro

    humano, trabalhando a frio e por mais que nisso se empenhasse,

    conseguiria penetrar, para as satisfazer, todas as necessidades da sua

    forma. Por isso, as razes que apresentarei para esclarecer o seu valor

    no devem ser entendidas como intenes que por mim foram

    previamente congeminadas, quando me lancei na sua criao, e cuja

    defesa agora assumo, mas to s como descobertas que eu prprio tive

    posteriormente ocasio de fazer, com ponderao.

    Quis representar seis personagens que procuram um autor. O drama

    no se consegue representar, com efeito, porque falta o autor que elas

    procuram; pelo contrrio, representa-se a comdia da sua v tentativa,

    com tudo aquilo que tem de trgico, j que essas seis personagens

    foram rejeitadas.

    Mas pode-se representar uma personagem, rejeitando-a? Evidentemente

    que, para a representar, necessrio, de outra forma, acolh-la na

    fantasia e, portanto, dar-lhe expresso. E eu, de facto, acolhi e

    compreendi aquelas seis personagens: acolhi-as e constru-as, contudo,

    como rejeitadas: procura de um outro autor.

    preciso compreender, ento, o que que delas recusei; no foram elas

    prprias, evidentemente; mas o seu drama, que, sem dvida, lhes

    interessava acima de tudo, mas que no me interessava a mim, pelas j

    referidas razes.

    O que o prprio drama, para uma personagem?

    Qualquer fantasma, qualquer criatura da arte, para existir, deve ter o

    seu drama, isto , um drama do qual seja personagem e em virtude do

  • qual personagem. O drama a razo de ser da personagem; a sua

    funo vital: necessria para que exista.

    Daqueles seis, acolhi, pois, o ser, recusando a razo de ser; tomei o

    organismo, confiando-lhe, em vez da sua prpria funo, uma outra,

    mais complexa, na qual a primeira entrava apenas como um dado de

    facto. Situao terrvel e desesperada, especialmente para dois deles

    o Pai e a Enteada que, mais do que os outros, esto agarrados vida,

    e que, mais do que os outros, tm conscincia de serem personagens,

    com uma necessidade absoluta de terem um drama e, por isso, de

    terem o seu prprio drama, que o nico que podem imaginar para si, e

    que, entretanto, vem ser recusado; situao "impossvel", da qual

    sabem que devem sair a todo o custo, como se fosse uma questo de

    vida ou de morte. bem verdade que eu, pelo que diz respeito sua

    razo de ser e sua funo, lhes dei uma outra, ou seja, aquela

    situao "impossvel", o drama de estarem procura de autor,

    rejeitadas: mas que esta seja uma razo de ser que se tenha tornado,

    para eles, que j tinham uma vida prpria, a verdadeira funo

    necessria e suficiente para existirem, no podem sequer suspeitar. Se

    algum lho dissesse, no acreditavam; porque no possvel

    acreditarem que a nica razo de ser da nossa vida se resuma a um

    tormento que nos parece injusto e inexplicvel.

    No sei dizer, por isso, com que fundamento fui censurado por a

    personagem do Pai no ser aquilo que devia ser, por extravasar a sua

    qualidade e a sua posio de personagem, ao invadir, por vezes,

    fazendo-a sua, a tarefa do autor. Eu, que compreendo quem no me

    compreende, percebo que essa crtica decorre do facto de aquela

    personagem exprimir, como sendo sua, uma actividade do esprito que

    se reconhece ser minha. O que bem natural e no significa

    absolutamente nada. parte a observao de que todo aquele trabalho

    de esprito, na personagem do Pai, decorre, sendo sofrido e vivido, de

    causas e de razes que nada tm a ver com o drama da minha

    experincia pessoal, considerao que, por si s, tiraria toda a

    consistncia quela crtica, quero esclarecer que uma coisa o trabalho

    imanente do meu esprito, trabalho que eu posso legitimamente

    desde que seja orgnico reflectir numa personagem; outra coisa a

    actividade do meu esprito, levada a cabo na realizao desse trabalho,

    ou seja a actividade que consegue dar forma ao drama daquelas seis

    personagens procura de autor. Se o Pai participasse nessa actividade,

    se contribusse para dar forma ao drama de serem seis personagens

    sem autor, ento nesse caso, e s nesse caso, que se poderia dizer

    com razo que, por vezes, ele o prprio autor, e que, por isso, no

    aquilo que devia ser. Mas o Pai, esse seu ser "personagem procura de

  • autor", sofre-o, no o cria, sofre-o como uma fatalidade inexplicvel e

    como uma situao contra a qual tenta revoltar-se com todas as suas

    foras, para a remediar: precisamente, "personagem procura de autor"

    e nada mais, apesar de exprimir como se fosse seu o trabalho do meu

    esprito. Se ele tivesse participado na actividade do autor, explicar-se-ia

    perfeitamente aquela fatalidade; seria ento acolhido, mesmo como

    personagem rejeitada, mas, afinal, acolhido, na matriz fantasiosa de um

    poeta e deixaria de ter razes para suportar aquele desespero, por no

    encontrar quem afirme e componha a sua vida de personagem: quero

    dizer, aceitaria de bom grado a razo de ser que lhe d o autor e, sem o

    lamentar, renunciava s suas razes, mandava passear aquele

    Encenador e aqueles actores aos quais, em ltima anlise, acabou por

    recorrer.

    H uma personagem, a da Me, a quem, pelo contrrio, nada lhe

    importa ter vida, considerando o ter vida como um fim em si mesmo.

    No tem a mnima dvida, ela, de que j tem vida, nem nunca lhe

    passou pela cabea perguntar-se como, porqu e de que modo a tem.

    Em suma, no tem conscincia de ser personagem; j que nunca se

    distanciou, nem por um momento que fosse, do seu "papel". No sabe

    que tem um "papel". Isso , para ela, perfeitamente orgnico. De facto, o

    seu papel de Me no comporta, por si mesmo, na sua "naturalidade",

    momentos espirituais; e ela no vive como esprito: vive numa

    continuidade de sentimentos que nunca tem soluo, no podendo

    adquirir, portanto, conscincia da sua vida, que dizer, do seu ser

    personagem. Mas, com tudo isso, tambm ela procura, sua maneira e

    para os seus fins, um autor; a certo ponto, at parece que est contente

    por ter sido levada ao Encenador. Talvez porque tambm ela espera ter

    vida a partir dele? No: porque espera que o Encenador a mande

    representar uma cena com o Filho, na qual havia de pr tanto da sua

    prpria vida; mas uma cena que no existe, que nunca pde, nem

    poderia, fazer-se. Com efeito, no tem conscincia do seu ser

    personagem, isto , da vida que pode ter, absolutamente condicionada e

    determinada, segundo a segundo, por cada gesto e por cada palavra.

    Apresenta-se no palco juntamente com as outras personagens, mas sem

    perceber o que elas a levam a fazer. Imagina, evidentemente, que a

    mania de ter vida que assalta o marido e a filha, e em virtude da qual

    tambm ela se encontra sobre um palco, no mais do que uma das

    habituais e incompreensveis esquisitices daquele homem atormentado

    que atormenta os outros, e horrvel, horrvel uma nova e equvoca

    tentativa de erguer a cabea, por parte daquela sua pobre rapariga

    perdida. totalmente passiva. Os casos da sua vida e o valor que

    assumiram aos seus olhos, o seu prprio carcter, so tudo coisas ditas

  • pelos outros e que s uma vez contradiz, porque o instinto maternal

    irrompe dentro dela e revolta-se, para esclarecer que no quer

    abandonar nem o filho, nem o marido; porque o filho lhe foi tirado e o

    marido a votou ao abandono. Mas o que ela faz rectificar dados de

    facto: no sabe nem se explica coisa nenhuma.

    Em resumo, natureza. Uma natureza condensada numa figura de

    me.

    Esta personagem deu-me um novo tipo de satisfao, que no deve ser

    calado. Quase todos os meus crticos, em vez de a definirem, como de

    costume, "desumana" que parece ser o carcter peculiar e incorrigvel

    de todas as minhas criaturas, indistintamente tiveram a gentileza de

    notar, "com verdadeiro prazer", que, finalmente, tinha sado da minha

    fantasia uma figura humanssima. Compreendo o louvor desta maneira:

    que, estando a minha pobre Me muito ligada ao seu comportamento

    natural de Me, sem possibilidade de elementos espirituais livres, quase

    como um cepo de carne mesmo viva, com todas as suas funes de

    procriar, aleitar, tratar e amar a sua prole, sem qualquer necessidade,

    por isso, de fazer agir o crebro, ela actualize em si o verdadeiro e

    perfeito "tipo humano". Com certeza que assim, porque nada parece

    ser mais suprfluo do que o esprito num organismo humano.

    Mas os crticos, mesmo com aquele louvor, quiseram-se ver livres da

    Me sem se preocuparem em penetrar no ncleo de valores poticos que

    a personagem, na comdia, significa. Humanssima figura, de facto,

    porquanto privada de esprito, isto , nem consciente de ser aquilo que

    , nem preocupada em explic-lo a si prpria. Mas o facto de ignorar

    que personagem de forma alguma obstculo a que j o seja. Eis o

    seu drama, na minha comdia. A sua expresso mais viva ressalta

    naquele seu grito ao Encenador, que lhe fazia ver que tudo j se tinha

    passado e, portanto, no podia ser motivo para mais uma choradeira:

    "No, acontece agora, acontece sempre! A minha tortura no acabou

    aqui, meu Senhor! Eu estou viva e presente, sempre, em qualquer

    momento da minha tortura, que se renova viva e presente, sempre".

    ela, isto, sente-o, sem conscincia, e, por isso, como coisa inexplicvel:

    mas sente-o de um modo to terrvel, que no pensa sequer que seja

    uma coisa que possa explicar a si mesma ou aos outros. Sente-o e

    basta. Sente-o como dor, e essa dor, de imediato, grita-a. assim que

    nela se reflecte a fixidez da sua vida numa forma que, de um modo

    diferente, atormenta o Pai e a Enteada. Estes, esprito; ela, natureza: o

    esprito revolta-se, ou procura tirar dividendos da situao, conforme

    pode; a natureza, se no for incitada pelos estmulos dos sentidos,

    chora.

  • O conflito imanente entre a vida e a forma condio inexorvel no s

    da ordem espiritual, como tambm da natural. A vida que, para existir,

    se fixou na nossa forma corporal, matou, pouco a pouco, a sua forma.

    O choro dessa natureza fixa o irremedivel e contnuo envelhecimento

    do nosso corpo. O choro da Me , ao mesmo tempo, passivo e

    perptuo. Mostrado atravs de trs perspectivas, valorizado em trs

    dramas diversos e contemporneos, aquele conflito imanente encontra,

    assim, na comdia, a sua melhor expresso. Alm disso, a Me declara

    tambm o particular valor da forma artstica: forma que no

    compreende e no mata a sua vida, e que a vida no consome; com

    aquele seu grito ao Encenador. Se o Pai e a Enteada recomeassem,

    cem mil vezes que fosse, a sua cena, sempre, naquele ponto fixo, no

    momento em que a vida da obra de arte deve ser expressa atravs

    daquele seu grito, sempre esse grito ressoaria: inalterado e inaltervel

    na sua forma, no como uma repetio mecnica, no como um retorno

    ditado por imperativos exteriores, mas, de cada vez, vivo, como novo, a

    aparecer de improviso, assim, para sempre: embalsamado vivo na sua

    forma incorruptvel. Assim, sempre, ao abrimos o livro, encontraremos

    Francisca que confessa a Dante o seu doce pecado; e se voltarmos a ler,

    cem mil vezes seguidas, aquele passo, cem mil vezes seguidas Francisca

    h-de dizer outra vez as suas palavras, sem nunca as repetir

    maquinalmente, mas como se as dissesse, de cada vez, pela primeira

    vez, com uma paixo to viva e to inesperada que, de cada vez, Dante

    h-de perder os sentidos. Tudo aquilo que vive, pelo facto de viver, tem

    forma, e por isso mesmo deve morrer: excepo da obra de arte, que

    vive para sempre, precisamente, porque forma.

    O nascimento de uma criatura na fantasia humana, nascimento esse

    que como um passo no limiar entre o nada e a eternidade, tambm

    pode ocorrer inesperadamente, sendo gerado por uma necessidade.

    Num drama imaginado, necessria uma personagem que faa ou que

    diga uma certa coisa necessria; aquela personagem nasceu, e aquela,

    precisamente, que devia ser. Assim nasce Madama Pace entre as seis

    personagens, e parece um milagre, ou melhor, um truque representado

    de modo realista naquele palco. Mas no um truque. O nascimento

    real, a nova personagem viva no porque estivesse j viva, mas porque

    felizmente nasceu, conforme o implica a sua natureza de personagem,

    por assim dizer, "obrigatria". Deu-se, pois, uma fragmentao, uma

    inesperada mudana do plano da realidade da cena, porque uma

    personagem s pode nascer daquela maneira na fantasia do poeta, no

    seguramente sobre as tbuas de um palco. Sem que ningum se tenha

    dado conta disso, de repente mudei a cena: voltei a acolh-la, naquele

    momento, na minha fantasia, sem a tirar dos olhos dos espectadores;

  • mostrei-lhes, em vez do palco, a minha fantasia no acto de criar,

    precisamente sobre aquele palco. A mudana inesperada e incontrolvel

    de uma aparncia, de um plano de realidade para um outro, um

    milagre do tipo daqueles que so realizados por um Santo que faz mexer

    a sua esttua, que naquele momento deixa de ser, certamente, de

    madeira ou de pedra; mas no um milagre arbitrrio. Aquele palco,

    tambm porque acolhe a realidade fantstica das seis personagens, no

    existe por si mesmo, como dado fixo e imutvel, tal como nesta comdia

    nada existe de predisposto e de preconcebido: tudo se faz, tudo se

    move, tudo tentativa inesperada. Tambm o plano de realidade, o

    lugar onde se modifica e se volta a modificar essa vida informe que

    aspira sua forma, consegue assim deslocar-se, organicamente.

    Quando pensei fazer nascer, ali mesmo, Madama Pace, sobre aquele

    palco, senti que o podia fazer, e fi-lo; se tivesse percebido que aquele

    nascimento me confundia e me dava uma outra forma, silenciosa e

    quase inadvertidamente, num instante, o plano de realidade da cena,

    no o teria seguramente feito assim, enregelado pela sua aparente falta

    de lgica. E teria levado a cabo uma malfadada mortificao da beleza

    da minha obra, da qual me salvou o fervor do meu esprito: porque,

    contra uma aparncia lgica mentirosa, aquele nascimento fantstico

    sustido por uma verdadeira necessidade, numa misteriosa correlao

    orgnica com toda a vida da obra.

    Que algum me diga agora que ela no tem todo o valor que poderia ter

    porque a sua expresso no orgnica, mas catica, porque peca por

    romantismo, faz-me rir.

    Compreendo porque me foi feita essa observao. Porque, no meu

    trabalho, a representao do drama no qual se encontram envolvidas as

    seis personagens parece tumultuosa e nunca avana de uma forma

    ordenada: no h desenvolvimento lgico, no h concatenao dos

    acontecimentos. pura verdade. Nem que procurasse com uma candeia

    poderia encontrar um modo mais desordenado, mais esquisito, mais

    arbitrrio e complicado, isto , mais romntico, de representar "o drama

    no qual esto envolvidas as seis personagens". mesmo verdade, mas

    eu no representei aquele drama: representei um outro e no vale a

    pena repetir qual! onde, entre tantas outras belas coisas que cada

    um a pode encontrar, segundo os seus gostos, h mesmo uma discreta

    stira dos procedimentos romnticos; naquelas minhas personagens,

    todas inflamadas, a valorizarem o papel que cada uma delas tem num

    certo drama, enquanto eu as apresento como personagens de uma

    outra comdia que elas no conhecem e de cuja existncia no esto

    informadas e nem sequer suspeitam, de tal forma que aquela sua

    perturbao passional, maneira romntica, apresentada de forma

  • humorstica, assente no nada. E o drama das personagens,

    representado no como se teria organizado na minha fantasia se a

    tivesse sido acolhido, mas como drama rejeitado, s podia consistir no

    meu trabalho enquanto "situao" e em alguns aspectos do seu

    desenvolvimento, mas no podia mostrar-se seno de modo alusivo,

    tumultuoso e desordenado, em relances violentos, de forma catica:

    continuamente interrompido, desviado, contraditrio, negado por uma

    das suas personagens, por duas outras, nem sequer vivido.

    H, de facto, uma personagem aquela que "nega" o drama que a faz

    personagem, o Filho que vai buscar todo o seu relevo e todo o seu

    valor ao facto de ser personagem no da "comdia a encenar" j que

    quase nunca aparece como tal mas da representao que eu dela

    fao. , em suma, a nica que s vive como personagem procura de

    autor; tanto mais que o autor que procura no um autor dramtico.

    Tambm isso no podia ser de outra maneira; o comportamento da

    personagem to orgnico, na minha concepo, quanto lgico que,

    na situao, determine maior confuso e desordem, sendo um outro

    motivo de contraste romntico.

    Mas era mesmo esse caos, orgnico e natural, que eu devia representar;

    e representar um caos no significa, de facto, representar caoticamente,

    isto , romanticamente. Que a minha representao seja tudo menos

    confusa e, pelo contrrio, bastante clara, simples e ordenada, mostra-o

    a evidncia com que, aos olhos de todos os pblicos do mundo, foram

    vistos a intriga, os carcteres, os planos fantsticos e realsticos,

    dramticos e cmicos do trabalho, e o modo como ressaltam, para quem

    tem olhos mais penetrantes, os inslitos valores neles encerrados.

    Grande a confuso das lnguas entre os homens, se crticas deste

    gnero encontram palavras para se exprimirem. to grande essa

    confuso quanto perfeita a ntima lei que, plenamente respeitada,

    torna clssica e tpica a minha obra e impede cada palavra de ser uma

    catstrofe. Quando, diante de todas elas, percebi que no com

    artifcios que se cria vida, e que o drama das seis personagens, falta

    do autor que o valorize no esprito, no se poder representar, em

    virtude da insistncia de um Encenador, estupidamente desejoso de

    saber como acabou a histria, ento este facto recordado pelo Filho,

    na sucesso material dos seus momentos, desprovido de qualquer

    sentido, e por isso sem necessidade sequer da voz humana, e abate-se,

    feio, intil, com a detonao de uma arma mecnica em cena,

    desrespeitando e desperdiando a estril tentativa das personagens e

    dos actores, sem ser acompanhado, aparentemente, pelo poeta.

  • O poeta, sem elas saberem, quase a olhar de longe durante todo o

    tempo da tentativa que fazem, esperou, entretanto, para criar com ela e

    a partir dela a sua obra.