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Prefácio (talvez) supérfluo

1.

«É raro, e muito excepcional, que dos prólogos se não possa dizer, como referência à obra que precedem, o que o Profeta disse da Biblioteca de Alexandria quando ordenou que a entregassem às chamas: “queimam-na, porque ou nesses livros se contém mais do que no Alcorão, e em tal caso são falsos, ou menos, e então são inúteis”.»

Com estas judiciosas palavras iniciou um autor da primeira me-tade do século XIX, hoje esquecido, D. João de Azevedo, o «pró-logo» da única peça que escreveu (O Conde João ou a Corte de Versalhes em 1774, dada à estampa em 1844) para concluir que os prefácios «ou contêm mais do que a obra, e a afogam, ou me-

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nos, e a avultam sem exalçar-lhes o merecimento». Por isso os dividia, consoante os casos, em impertinentes ou supérfluos.

Não pretendendo o prefácio que vai ler-se (se o for, é claro...) constituir excepção a esta regra, e não se propondo o seu autor, por óbvias razões, dizer mais do que a obra, evitando assim que o acoimem de impertinente, há-de concluir-se então pela sua super-fluidade. A prudência teria, pois, aconselhado a omiti-lo — como D. João de Azevedo não deixou também de avisar, pois (e cito ainda palavras suas) «melhor fora não escrevê-lo do que fazê-lo para não ser lido».

Mas o apreço que o texto dramático de José Saramago ampla-mente merece, a sua importância no quadro da actual dramatur-gia portuguesa e os vários temas de reflexão que propõe, impelem--me a ser imprudente e a correr esse risco. Risco, em todo o caso, bem menor que o de ser dramaturgo em Portugal — ou poeta, como a Camões aconteceu é esta peça tão oportunamente nos vem mostrar/lembrar.

2.

Dizendo que esta é uma peça sobre Camões, ou que no autor de Os Lusíadas tem o eixo principal da sua acção, pode supor-se que está a querer dizer-se que se trata de uma peça histórica — o que ela, sendo-o embora evidentemente, todavia não é. Não o é no sentido em que, do romantismo até hoje, se tem entendido por teatro histórico: a reconstituição artificial e artificiosa, sobre o palco, de épocas, situações e personagens do passado. Sê-lo-á, contudo, no sentido da historicidade essencial, que é o da articu-lação dialéctica do homem com o seu tempo, seja este actual ou pretérito. Tópico que me parece justificar algum desenvolvimento

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— na medida em que a peça de Saramago é um bom pretexto para denunciar um dos equívocos mais graves e perduráveis da nossa dramaturgia, de há século e meio para cá.

O equívoco começou com Garrett, ainda que tenha sido o au-tor do Frei Luís de Sousa o primeiro a avisar-nos contra ele, ao declarar (em 1838, no prefácio ao seu Auto de Gil Vicente) a sua fidelidade à «versão dramática» — porque «a histórica pro-priamente, e a cronológica, essas as não quis (ele), nem quer ninguém que saiba o que é teatro». Cinco anos depois, quando ofereceu ao Conservatório a sua obra-prima, fê-la acompanhar de uma «Memória» em que, por outras palavras, era renovada aquela advertência: «Eu sacrifico às musas de Horácio, não às de Heródoto. [....]» «Nem o drama, nem o romance, nem a epopeia são possíveis, se os quiserem fazer com a Arte de verificar as da-tas na mão.» Eis porém que, decorridos já outros cinco anos, este sábio conselho parece ter ficado esquecido: defendendo, contra certas interpretações da crítica, a sua última comédia original (A Sobrinha do Marques, estreada em 1848), em que se quiseram ver alusões a sucessos contemporâneos, Garrett afirmava peremp-toriamente estar certo de que «tudo nela, as figuras, as roupas, o desenho e o colorido do quadro, era de exactíssima verdade».

Foi esta derradeira lição que os seus continuadores retiveram — e um deles, o mais exaltado e um dos mais prolíficos, Men-des Leal, ao sublinhar a «fidelidade de daguerreótipo» com que as personagens daquela comédia haviam sido «surpreendidas nas suas naturais atitudes e copiadas», fez o drama histórico inflectir em direcção ao plano inclinado pelo qual, até ao fim do século, de Mendes Leal para Pinheiro Chagas e deste para Marcelino Mes-quita e Lopes de Mendonça, não mais deixaria de despenhar-se. E não só até ao fim do século: após a implantação da República este modelo serviu tanto aos seus adversários, como Rui Chian-ca ou Vasco Mendonça Alves, para exaltar as virtudes do regime monárquico, quanto aos seus defensores, como um Jaime Corte-são, para exprimir uma concepção democrática da História. E

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nos anos 20 assistiu-se a uma nova erupção da maleita, com várias recidivas quase até aos nossos dias.

Desfigurando a História ou imobilizando-a — o que é também uma forma de falsificá-la —, confundindo-a com a arqueologia, românticos e naturalistas, e os epígonos de uns e outros, foram igualmente incapazes de compreender que a fórmula do drama histórico «não estava em achar quatro datas e seis nomes ilustres, mas na ressurreição completa da época escolhida para nela se de-linear a concepção dramática», como já Herculano havia intuído em 1842, por entender que a condição essencial da vitalidade des-sa fórmula residia na inserção profunda da acção dramática, das situações em que esta se desenvolve e das personagens que nela intervêm, no processo sociopolítico do tempo que lhe serve de es-teio: «Os grandes vultos históricos desse tempo [...] nasceram da situação social do país, foram o resultado e o resumo desta, e por ela somente se podem compreender, avaliar e explicar.» Conceito semelhante ao que, alguns anos depois, Engels iria exprimir na fa-mosa carta que dirigiu a LassaIle acerca da sua tragédia histórica Franz von Sickingen (1859), ao realçar o que muito justamente lhe parecia o elemento mais positivo da obra: «as personagens principais representam efectivamente classes e correntes determi-nadas e, por conseguinte, ideias determinantes da sua época, e os móveis dos seus actos não são as pequenas paixões individuais, mas o fluxo histórico que as impele».

Dito por outras palavras: desintegradas desse fluxo histórico, separadas da luta de classes, que é o motor da História, as pai-xões individuais tornam a aparência de uma agitação estéril — e ininteligível. É esta falta de perspectiva dialéctica que converte aquilo que entre nós, salvo raras excepções, passa por teatro his-tórico, numa espécie de museu de figuras de cera — ou, o que é o mesmo, numa galeria de mortos recalcitrantes.

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3.

Salvo raras excepções, escreveu-se atrás. As quais terão ficado a dever-se a um entendimento materialista (não mecanicista) da História, ou à sua recriação mítica, em que, verdadeiras ou in-ventadas, reais ou lendárias, as dramatis personnae assumem o destino, individual ou colectivo, de homens que vivem num tempo e num espaço dados, que nenhuma ficção poderá repetir mas que, por via desse entendimento ou dessa transposição, se nos tornam próximos. Será, na última destas acepções, o caso do Auto de Gil Vicente e do Frei Luís de Sousa, porventura do Afonso VI, de D. João da Câmara (mais pelo que anuncia do drama simbolista do que pelo débito a Vítor Hugo), já neste século o caso dos dramas estáticos de António Patrício (Pedro o Cru, «tragédia da sauda-de», ou Dinis e Isabel, «conto de vitral»), ou ainda, mais perto de nós, numa vertente existencial, O Indesejado, de Jorge de Sena. Será, na outra acepção, o caso das obras escritas a partir da déca-da de 60 sob o signo da dramaturgia épica de raiz brechteana (O Render dos Heróis, de José Cardoso Pires; Felizmente Há Luar, de Luís Sttau Monteiro; O Judeu, de Bernardo Santareno; Boca-ge, Alma sem Mundo, de Luzia Maria Martins; António Vieira, de Fernando Luso Soares; Quem move as Árvores, de Fiama Pais Brandão; 1383, de Virgílio Martinho; Arraia Miúda, de Jai-me Gralheiro), em que a distanciação no tempo funciona como um meio de projectar uma luz reveladora sobre o presente, que à transparência do passado se desvenda — e era, sob o fascismo, um modo implícito de dizer o que explicitamente a censura não consentia que se dissesse.

Será enfim, o caso desta peça de José Saramago, que do teatro épico adopta a estrutura narrativa e a perspectiva dialéctica e do teatro mítico a dimensão poética.

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4.

Não é a primeira vez que o autor de Os Lusíadas surge como protagonista de (ou pretexto para) uma acção dramática. Quan-do, em 1880, há exactamente cem anos, Cipriano Jardim publicou o seu «drama histórico em 5 actos» Camões, «representado pela primeira vez nas festas do tricentenário, no Teatro de D. Maria II», Teófilo Braga, em breve antelóquio, enumerou nada menos do que vinte e seis outras composições teatrais que sobre o poeta se escreveram — acrescentando, porém, que em todas elas «Ca-mões é um tipo ideal, uma figura de convenção, sem o mínimo vislumbre de realidade». Dessas vinte e seis obras, seis eram de origem brasileira e três apenas traziam a assinatura de autores portugueses; mas, destas últimas, uma consistia na livre adapta-ção de um obscuro drama francês (original de Victor Perrot e Du-mesnil, apresentado ao Conservatório por António Feliciano de Castilho, em 1847, como seu próprio...), outra é uma curta cena dramática (Camões em África, de Xavier de Paiva, 1880) e a terceira um descabelado melodrama romântico (Camões, 4 actos, de Alexandre Monteiro, 1847). Entre os excessos retóricos deste e a acumulação naturalística de pormenores biográficos bebidos em Juromenha e na História de Camões do próprio Teófilo, que caracteriza o drama de Cipriano Jardim, não pode dizer-se que a imagem do poeta haja perdido o idealismo e o convencionalismo denunciados pelo autor da primeira História do Teatro Portu-guês e conquistado um vislumbre, ainda que ténue, de realidade... Não fora a peça de Saramago, e diríamos que Luís Vaz, tendo encontrado já em Garrett e Gomes Leal poetas para cantá-lo, e em Jorge de Sena («Super Flumina Babylonis») um ficcionista para evocá-lo, continuava à espera de um dramaturgo que o trans-pusesse para o palco, na sua verdadeira e nobre dimensão humana e histórica1 .

1 Posteriormente à escrita deste prefácio, publicaram-se (ou subiram à cena) pelo

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A teatralização de personalidades exemplares da história lite-rária — de que a dramaturgia contemporânea oferece algumas notáveis amostras na Cabala dos Devotos, de Bulgakov, alusiva a Molière, ou no Hölderlin, de Peter Weiss — oscila entre a nar-rativa biográfica, mais ou menos fiel, mais ou menos fantasiada, e uma finalidade didáctica que extrai da luta do artista com o meio social que foi o seu a matéria-prima para o ensinamento que se propõe. Na intersecção destas duas linhas se situa, preci-samente, a peça de Saramago, que no entanto evita com superior inteligência os escolhos inerentes a uma ‘e outra: nem o rigor his-tórico se dilui numa ilusória fidelidade arqueológica ou no recurso fácil aos anacronismos, nem a invenção poética abdica dos seus direitos sem deles todavia nunca abusar, nem a lição que da obra se desprende (a «moral da fábula», diríamos antes) é posta em regras que, à maneira de um catecismo, o aluno espectador deverá decorar...

Aqui também Saramago se encontra com Engels, quando este lembra — e pena é que muitos dos que se reclamam do seu pensa-mento o tenham esquecido — que «a tese deve brotar da situação e da acção sem que haja de fazer-se-lhe referência explícita, pois o poeta não é obrigado a depositar nas mãos do leitor, já pronta, a solução histórica para os conflitos históricos por ele descritos».

Releio o parágrafo que antecede, e nele encontro palavras como «ensinamento», «lição», «moral», «tese»... Palavras rebarbativas que se arriscariam a «afogar a obra», como receava D. João de Azevedo no «prólogo» a que de início aludi, se o fôlego desta, a sua profunda e máscula respiração, a não imunizassem contra as tentativas de apropriação em que, à sombra dessas palavras, certa crítica é exímia. Um recente (e oportuno) exemplo, o impudico aproveitamento que o fascismo fez de Camões e de Os Lusíadas, deveria incitar a uma modéstia maior nestas matérias...

menos três outros textos dramáticos alusivos a Camões — Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente, de Natália Correia; Onde Vás, Luiz? de Jaime Gralheiro; O Homem que Julgava ser Camões, de Luzia Martins , que não vêm alterar o que sobre a peça de Saramago se escreveu.

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E assim revertemos ao tema desta peça — que nos fala da con-dição do artista e dos «desconcertos do mundo» que fizeram de Camões uma figura paradigmática do seu tempo, cujas contradi-ções sofreu na carne e assumiu na sua obra, em que genialmente procurou superá-las.

5.

Não só do seu tempo, aliás. Sem que da História se perfilhe uma concepção circular ou repetitiva, o segmento cronológico que esta peça recorta e nos apresenta — os dois anos transcorridos de Abril de 1570 a Março de 1572, entre o regresso de Camões ao reino e a primeira impressão de Os Lusíadas — consente uma extrapolação para outros tempos, como o Judeu, de Santareno, o Bocage, de Luzia Martins, o António Vieira, de Luso Soares. Cito estas peças porque entre elas e a de Saramago há diversos pontos comuns, nexos evidentes: todas têm como protagonista uma figura relevante da nossa história literária, que enfrentou a ordem político-social da sua época e, de diversos modos, a contes-tou (na sua vida e na sua obra), e que por isso mesmo foi vítima de incompreensões, perseguições (todos conheceram as agruras do cárcere) e um deles pagou com a vida o preço da sua rebeldia. Mas caro sempre foi o preço que esta custou a todos eles. «Nunca em Portugal se escreveu um livro assim, e ninguém o agradece», comenta Diogo do Couto — e quando este desalentado comen-tário é feito, ainda um ano inteiro terá de passar-se até que esse livro venha a ser publicado, e há-de o seu autor defrontar vários obstáculos que as forças adversas, às mãos das quais «Portugal morre de tristeza», lhe levantam no caminho.

Não intervém Camões, nem dele se fala, na primeira cena da

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peça, e o mesmo acontecerá na última. (O breve epílogo, que a remata, transfere a obra, já concluída, para outro plano, como adiante tentaremos dizer.) A esta simetria, porém, não se limita a estrutura dramática da obra: o nevoeiro que, na cena de abertu-ra, envolve Almeirim, para onde a corte se deslocara em Abril de 1570, fugindo à peste que em Lisboa grassa, paira também sobre a capital, em Dezembro do ano seguinte, quando o ciclo se fecha. E é uma espessa cortina de nevoeiro que Luís Vaz atravessa ao longo das doze cenas intermédias: a indiferença do rei D. Sebas-tião, que não se detém para escutá-lo, o desprezo dos descendentes de Vasco da Gama, que lhe rasgam os versos, a sombra terrível do Santo Ofício, que manda prender Damião de Góis, os argumentos esgrimidos pelo censor Frei Bartolomeu Ferreira, a cujos golpes o poeta astuciosamente se esquiva, até arrancar dele a tão ansio-samente desejada declaração de que é «o livro digno de se impri-mir», o dinheiro que falta («o maior poeta português é pobre»), para ser composto e editado... E de todas as vezes é a obstinação do poeta que vai removendo os sucessivos obstáculos: a dedicató-ria ao rei, a defesa do manuscrito perante o Santo Ofício, a venda do privilégio.

6.

E assim chegamos ao epílogo. Impresso o livro, será ele que vai romper a cortina de nevoeiro, ainda que atrás dele esta volte a fechar-se e uma «apagada e vil tristeza» crescentemente alastre pela pátria. Camões segura com ambas as mãos o primeiro exem-plar saído dos prelos, e formula então a pergunta que dá o título à peça: «Que farei com este livro?» Mas logo a transforma noutra pergunta, que é afinal a resposta justa àquela — e a única possí-

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vel: «Que fareis com este livro?»Porque, escrevendo Os Lusíadas, Camões fez o que lhe cumpria

fazer — o resto é já com os seus leitores. Quando, a Damião de Góis que lhe assegurava que o livro acabaria por ser publicado, Camões dissera que este «não seria diferente do que é», o velho cronista e guarda-mor da Torre do Tombo observa que «a diferen-ça estará nos olhos que o lerem». Na sua leitura reside a solução do conflito equacionado, a superação das contradições em que ele foi gerado, o trânsito para o futuro. Assim também, na cena final do Galileu de Brecht, os «Discorsi» passam a fronteira italiana e seguem o seu destino.

Sem este epílogo, a obra ficaria encerrada na sua estrutura. Mas a pergunta que o poeta dirige aos seus futuros leitores no acto de lhes entregar o seu livro, confere uma nova dimensão ao drama, faz dele uma obra de arte «aberta» — para citar o concei-to posto a circular por Umberto Eco — e, como este diz, conver-te-o «num instrumento de pedagogia revolucionária». No limiar de um tempo novo, é uma nova existência que começa. Um novo drama também, cujo protagonista já não é Luís Vaz de Camões, mas o destinatário do seu livro e sua razão maior de ser (e agora também desta peça que o toma para ponto de partida): o povo português.

Abril, 1980.

Luiz Francisco Rebello

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Canção, neste desterro viverás, Voz nua e descoberta, Até que o tempo em eco te converta.

CAMÕES

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Personagens

LUÍS GONÇALVES DA CÂMARA — jesuíta, confessor do rei D. SebastiãoMARTIM GONÇALVES DA CAMARA — secretário de Es-tadoCARDEAL D. HENRIQUE — inquisidor-mor, tio de D. Se-bastiãoD. CATARINA DE ÁUSTRIA — avó de D. Sebastião, viúva de D. João III1.° FIDALGO2.° FIDALGODIOGO DO COUTO — soldado da Índia, futuro cronista e autor de O Soldado PraticoANA DE SÁ — mãe de Luís de CamõesLUÍS DE CAMÕES3.° FIDALGOFRADE4.° FIDALGOMIGUEL DIAS — fidalgo do PaçoD. SEBASTIÃOD. FRANCISCA DE ARAGÃO — dama do Paço

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D. VASCO DA GAMA — 3.° conde de Vidigueira D. MARIA DE ATAÍDE — condessa de VidigueiraFREI MANUEL DA ENCARNAÇÃO — confessor dos con-des de Vidigueira DAMIÃO DE GÓIS — cronista, guarda-mor da Torre do TomboCRIADOOUTRO FRADEFREI BARTOLOMEU FERREIRA — dominicano, censor de Os LusíadasANTÓNIO GONÇALVES — impressorSERVENTE

A acção decorre em Almeirim e Lisboa, entre Abril de 1570 e Março de 1572, ou, com menor rigor cronológico, mas maior exactidão factual, entre a chegada de Luís de Camões a Lisboa, vindo da Índia e Moçambique, e a publicação da primeira edi-ção de Os Lusíadas.

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Primeiro acto

PRIMEIRO QUADRO

Corte em Almeirim, Abril de 1570. Padre Luís Gonçalves da Câ-mara, jesuíta e confessor do rei; Martim Gonçalves da Câmara, secretário de Estado, irmão de Luís Gonçalves da Câmara.

LUÍS DA CÂMARA

Más lembranças havereis deixado lá por Coimbra, irmão, de tempo em que fostes reitor da Universidade, para desta maneira vos caluniarem, e a mim de caminho. Algum inimigo será, ou invejoso da vossa fortuna, que é o mesmo que inimigo. Muita razão tinham os antigos quando diziam ser a inveja a mais di-reita estrada da inimizade.

MARTIM DA CÂMARA

De cães que ladrem e línguas que maldigam, ninguém se livra,

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muito menos se for confessor de el-rei, como vós, ou secretário de Estado, como eu. Esse é o tributo que os poderosos sempre tiveram de pagar. Deixai correr, se a intriga não for a mais.

LUÍS DA CÂMARA

Confiado vos vejo.

MARTIM DA CÂMARA

E eu a vós por de mais preocupado. Com vossa licença, ir-mão, são simples migalhas isso que vos apoquenta. E quem vos disse que esse papel foi escrito na Universidade?

LUÍS DA CÂMARA

Ninguém, nem eu o declarei formalmente. Porém, em Coim-bra foram os pasquins espalhados, não em Lisboa. Onde a ga-linha canta, aí pôs o ovo. (Lê.) «El-rei nosso senhor, por fazer mercê a Luís Gonçalves e a Martim Gonçalves, e aos padres da Companhia, há por bem de não casar estes quatro anos, e de estar com eles abarregado.» (Martim da Câmara ri.) Folgo de vos ver tão contente, Martim. Em vosso lugar, teria talvez mais comedimento. Achais bem que o meu e o vosso nome, e a Com-panhia de Jesus, corram assim a lama das ruas?

MARTIM DA CÂMARA

Perdoai, meu irmão. Nem sempre posso acompanhar-vos em gravidade e sisudez.

LUÍS DA CÂMARA

Que muito conviriam a vosso serviço.

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MARTIM DA CÂMARA

Perdoai outra vez. Bem sabeis como vos respeito e amo. Não vos devo menos que a nosso pai. Dele recebi a vida, de vós a for-tuna, este meu cargo no Paço, a autoridade que tenho no reino. É a vossa grande bondade que às vezes me permite esquecer a diferença que fazem as nossas idades, e quanto maior é a vossa sabedoria que a minha ignorância. Mas a veneração que vos devo e por vós tenho, essa não a esqueço nunca.

LUÍS DA CÂMARA

Não quis censurar-vos, Martim. E como haveis falado das idades que temos, e da diferença que elas fazem, digo-vos que isso mesmo me preocupa. Estou velho, não espero viver muito mais, mas desejaria, quando fosse Deus servido chamar-me à sua presença, deixar-vos firme neste governo.

MARTIM DA CÂMARA

Tenho a confiança de el-rei.

LUÍS DA CÂMARA

Tendes. E muitos ódios na corte. Desenganai-vos, irmão, se enganado andais. No dia em que eu morrer, ou se antes disso Sua Alteza me preferir outro confessor, a vossa posição estará em grande perigo. Sabeis como a rainha nos tem em pouca es-tima. Já vos esquecestes dos trabalhos que tivemos para evitar que fosse colocado junto de el-rei, por seu confessor, um padre doutra ordem, um dominicano ou um agostinho? Se não con-tássemos, do nosso lado, com a influência do cardeal-infante, a Companhia de Jesus teria sido posta de parte, e perderia, neste caso, um dos seus triunfos maiores: ser confessora e conselheira

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de el-rei. (Pausa.) E se eu não fosse o confessor, não seríeis vós o secretário de Estado.

MARTIM DA CÂMARA

Isso que dizeis faz-me pensar se afinal não terá sido mais alta a mão que escreveu ou mandou escrever o pasquim que em Coimbra se publicou. Também a avó de el-rei nosso senhor nos acusa, a mim, a vós e à Companhia, de desviarmos Sua Alteza do casamento. E Deus sabe que tal não é verdade.

LUÍS DA CÂMARA

Será meia verdade. El-rei não quer casar, à Companhia não convém que el-rei case tão cedo. Casando el-rei, quem sabe se continuaria a ouvir-nos, ainda que tão pouco?

MARTIM DA CÂMARA

Terá então sido D. Catarina?

LUÍS DA CÂMARA

Não vou tão longe, irmão. A avó de el-rei nunca escondeu o seu pensamento, não precisaria de que mãos assalariadas o exprimissem em imundos papéis.

MARTIM DA CÂMARA

Poderia querer virar o povo contra nós.

LUÍS DA CÂMARA

Talvez. Estaremos precavidos. Ainda que tanto erra aquele

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que de todos se fia como aquele que de tudo se receia.

MARTIM DA CÂMARA

El-rei haverá de casar um dia.

LUÍS DA CÂMARA

Assim será, para felicidade do reino. Mas cada coisa tem seu tempo.

MARTIM DA CÂMARA

Outros reis casaram bem mais cedo.

LUÍS DA CÂMARA

El-rei casará, torno a dizer, não nos dê isso cuidado.

MARTIM DA CÂMARA

Estais preocupado, padre Luís Gonçalves da Câmara.

LUÍS DA CÂMARA

Não são mais os meus cuidados do que os vossos, Martim.

MARTIM DA CÂMARA

Então são muitos. Sabeis, como eu, que o mal não está em não haver el-rei casado até agora. Sua Alteza que idade. tem? Dezasseis anos. Um dia destes acorda de manhã e diz: quero escolher noiva. E Portugal terá a sua rainha.

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LUÍS DA CÂMARA

Quisesse Deus que fosse tudo tão fácil como dizeis.

MARTIM DA CÂMARA

Vejo que vos aproximais de mim. E como não ousareis dar os passos que faltam, dir-vos-ei eu que não é casar ou não casar el-rei que vos preocupa.

LUÍS DA CÂMARA

Que é, então?

MARTIM DA CÂMARA

Terei de ser eu a declarar as palavras que a vossa língua re-cusa, padre Luís Gonçalves da Câmara? Rainha de Portugal, haveremos talvez, não creio é que dê ela filhos que de el-rei pos-sam ser. (Pausa.) Perdoai se vos escandalizei.

LUÍS DA CÂMARA

Um confessor nunca se escandaliza. Sabeis o que haveis dito?

MARTIM DA CÂMARA

E vós, meu irmão, parece-vos bem que estejamos a jogar o jogo das escondidas?

LUÍS DA CÂMARA

Não vos entendo.

MARTIM DA CÂMARA

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Entendeis, entendeis. Mesmo sendo eu secretário de Estado, e como vós pertencente à Companhia de Jesus, não invoco as razões e o interesse do reino para descobrir segredos de confis-são. Somente vos quero perguntar se tendes a certeza de que do ajuntamento de el-rei com uma mulher, sua legítima ou barre-gã, poderão vir a nascer filhos. E também vos pergunto se estais seguro de que tal ajuntamento se possa carnalmente fazer.

LUÍS DA CÂMARA

Da vossa parte, é muito perguntar, senhor secretário de Es-tado.

MARTIM DA CÂMARA

E da vossa, pouco responder, senhor confessor de el-rei.

LUÍS DA CÂMARA

Que quereis que vos diga? São perguntas que eu próprio te-nho feito em meu pensamento.

MARTIM DA CÂMARA

E que respostas vos dá ele?

LUÍS DA CÂMARA

Tenho tentado não as ouvir.

MARTIM DA CÂMARA

Isso me basta.

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LUÍS DA CÂMARA

Deus fará o milagre para salvar-se o reino.

MARTIM DA CÂMARA

Grande, sem dúvida, é o poder de Deus, mas para que o ho-mem pudesse empunhar a espada, foi preciso que o mesmo Deus lhe desse mãos. Ora, as mãos é com o homem que nascem, não lhe vêm depois. Esse milagre não o pode Deus fazer.

LUÍS DA CÂMARA

Tende tento na vossa língua, Martim Gonçalves. A Deus nada é impossível.

MARTIM DA CÂMARA

Excepto emendar a sua própria obra.

LUÍS DA CÂMARA

Calai-vos.

MARTIM DA CÂMARA

Sim, meu irmão.

LUÍS DA CÂMARA

Tivesse aqui ouvidos o Santo Ofício e nem eu vos poderia livrar de processo. (Pausa.) Que notícias vêm de Lisboa?

MARTIM DA CÂMARA

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Nem melhores, nem piores. A peste não dá sinais de querer retirar-se, e agora, com estes primeiros calores de Abril, temo que redobre. Já morreram mais de cinquenta mil pessoas, geral-mente do povo miúdo.

LUÍS DA CÂMARA

Nosso Senhor receba as suas almas e nos defenda a nós da contagião.

MARTIM DA CÂMARA

Amen. Aqui, em Almeirim, os ares são frescos e lavados, não chegará cá a pestilença. Lisboa está fechada, é como um caldei-rão de brasas. Em não tendo mais que consumir, apagam-se a si próprias.

LUÍS DA CÂMARA

Ficam as cinzas.

MARTIM DA CÂMARA

Ficam as cinzas. (Pausa.) Sua Alteza sai amanhã a montear.

LUÍS DA CÂMARA

Gentil caçador é el-rei, e ardoroso. Em todo o reino não tem quem se lhe compare.

MARTIM DA CÂMARA

Hoje, a manhã esteve de névoa. É de manhãs assim que el-rei mais gosta. É o seu maior prazer, cavalgar às cegas.

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LUÍS DA CÂMARA

Sim, manhãs de nevoeiro.

SEGUNDO QUADRO

Mesmo tempo, mesmo lugar. D. Henrique, cardeal-infante, tio de D. Sebastião, inquisidor-mor; D. Catarina de Áustria, avó de D. Sebastião, viúva de D. João 111.

CARDEAL

Há quantos anos vos ouço eu dizer que estais fatigada da governação? Agora vos aborrece também a corte? Não sois a única a enfadar-se da corte. E se caístes em desentendimento com Sua Alteza, não é isso de hoje nem de ontem, que eu saiba. Enfim, dessa vontade de vos instalardes em Castela para o resto dos vossos dias, não me dareis razões que me convençam.

D. CATARINA

Não é do governo do reino que me queixo. Foram cuidados que sempre detestei, mas que me não ocupam já. Que me abor-reça a corte, é verdade. Porém, como dizeis, não sou a única.