Prefácio - Bertrand

32
11 Prefácio Em 1984, desloquei-me a Buenos Aires como parte da minha pesquisa para a biografia do «Anjo da Morte» de Auschwitz, o médico nazi Josef Mengele. Pedi a Raúl Alfonsin, o primeiro presidente democraticamente eleito da Argentina, autorização para consultar os ficheiros secretos do país acerca de Mengele. Passei várias semanas sem resposta. Até que, numa noite, perto das onze horas, vários polícias fardados bateram à porta do meu quarto num hotel da baixa. Fui conduzido para o banco traseiro de um Falcon azul, o tipo de carro anónimo que se tornara in- fame durante a junta militar por levar milhares de dissidentes, muitos dos quais foram mortos. Mas a minha viagem terminou no quartel-ge- neral da Polícia Federal. Um coronel de aspeto severo informou-me de que tinha recebido ordens para facultar determinados documentos. O ficheiro que não tardei a consultar numa sala adjacente continha infor- mação em abundância acerca de Josef Mengele e da década que passou como fugitivo na Argentina, do passaporte original da Cruz Vermelha Internacional com nome falso que usara na fuga da Europa aos porme- nores sobre como conseguiu manter-se um passo à frente dos caçadores de nazis. Alguns desses papéis levantavam questões mais amplas acer- ca dos criminosos de guerra nazis que tinham alcançado o abrigo sul- -americano depois da Segunda Guerra Mundial, auxiliados por alguns prelados católicos importantes em Roma.

Transcript of Prefácio - Bertrand

Page 1: Prefácio - Bertrand

11

Prefácio

Em 1984, desloquei-me a buenos Aires como parte da minha pesquisa para a biografia do «Anjo da Morte» de Auschwitz, o médico nazi Josef Mengele. Pedi a Raúl Alfonsin, o primeiro presidente democraticamente eleito da Argentina, autorização para consultar os ficheiros secretos do país acerca de Mengele. Passei várias semanas sem resposta. Até que, numa noite, perto das onze horas, vários polícias fardados bateram à porta do meu quarto num hotel da baixa. Fui conduzido para o banco traseiro de um Falcon azul, o tipo de carro anónimo que se tornara in-fame durante a junta militar por levar milhares de dissidentes, muitos dos quais foram mortos. Mas a minha viagem terminou no quartel-ge-neral da Polícia Federal. Um coronel de aspeto severo informou-me de que tinha recebido ordens para facultar determinados documentos. O ficheiro que não tardei a consultar numa sala adjacente continha infor-mação em abundância acerca de Josef Mengele e da década que passou como fugitivo na Argentina, do passaporte original da Cruz Vermelha Internacional com nome falso que usara na fuga da Europa aos porme-nores sobre como conseguiu manter-se um passo à frente dos caçadores de nazis. Alguns desses papéis levantavam questões mais amplas acer-ca dos criminosos de guerra nazis que tinham alcançado o abrigo sul--americano depois da segunda Guerra Mundial, auxiliados por alguns prelados católicos importantes em Roma.

Page 2: Prefácio - Bertrand

12

semanas mais tarde, estava em Assunção. Aí, viajei pelo país com o coronel Alejandro von Eckstein, oficial do exército que, além de ser um bom amigo do ditador Alfredo stroessner, tinha sido um dos copatrocina-dores do pedido de cidadania paraguaia de Mengele. Acompanhado por von Eckstein, analisei uma pequena parte dos documentos selados sobre Mengele existentes naquele país. E conheci um grupo de neonazis fervoro-sos em nueva bavaria (nova baviera), no sul do país. Mengele encontrou aí um refúgio seguro em 1960. sentindo-se seguros para falar abertamente por lhes ter sido apresentado por von Eckstein, partilharam comigo histó-rias sobre como um hotel local na floresta tropical fora usado décadas antes como alojamento temporário para alguns dos nazis mais notórios. Entre essas histórias, misturavam-se novas referências a clérigos romanos a quem estes nacional-socialistas sul-americanos estavam gratos.

Depois da publicação desse livro, Mengele, em 1986, dediquei-me a outros assuntos. Mas a história sobre a Igreja e os seus possíveis laços com o Terceiro Reich prenderam a minha atenção e tentei manter-me informado. Em 1989, o New York Times publicou a minha carta com o título Motivos do Silêncio do Vaticano acerca das Atrocidades Nazis: A Ausência de Ação. Essa carta era uma resposta a um editorial do co-mentador conservador Patrick buchanan em que absolvia a Igreja de qualquer responsabilidade moral pelo Holocausto. Dois anos mais tar-de, o Times publicou o meu artigo de opinião “O Ficheiro bormann”, em que criticava a Argentina por não tornar público um dossiê secreto sobre o braço-direito de Hitler que tinha visto no quartel-general da Polícia Federal do país.

O último parágrafo da minha carta de 1989 ao Times explicava que tinha abordado a questão do papel da Igreja durante a segunda Guerra Mundial como jornalista e como católico: «Mesmo que o meu pai fosse judeu, a minha mãe era católica e fui educado por jesuítas. Considero- -me tão católico como o sr. buchanan. Mas envergonha-me a sua ne-cessidade de defender a Igreja em todas as questões históricas. A Igreja esteve envolvida em acontecimentos terríveis e estes não poderão ser negados. O facto de muitas freiras e padres terem demonstrado grande coragem durante a segunda Guerra Mundial, salvando muitas vítimas, não torna menos grave o silêncio ou as ações da hierarquia eclesiástica.»

Descobri nos anos seguintes que o meu enfoque não foi suficiente-mente amplo. Acreditei que a história era sobre uma mistura volátil de antissemitismo institucional e receio do comunismo exacerbada pelos líderes da Igreja que não agiram com a determinação necessária quando confrontados com um dos maiores horrores da História no Holocausto.

Os Banqueiros de Deus

Page 3: Prefácio - Bertrand

13

O que descobri, ao invés, foi que o que aconteceu dentro da Igreja durante a segunda Guerra Mundial fez parte de uma narrativa muito mais com-plexa. A verdade encontrar-se-á apenas seguindo o rasto do dinheiro.

Como me contou Elliot Welles, um sobrevivente de Auschwitz e caça-dor de nazis para a Liga Anti-Difamação: «Lucro. É tão importante para a Igreja como para a IBM. não se esqueça disso.»

Em 2005, quando comecei a escrever este livro, ainda lhe subes-timava o alcance. Depois disso, ponderei contar apenas a história re-pleta de escândalos do banco do Vaticano, fundado em plena segun-da Guerra Mundial. Operou durante setenta anos como híbrido entre banco central de um Estado soberano e banco de investimento agres-sivo. Mesmo que o banco do Vaticano esteja no centro da narrativa contemporânea, será impossível compreender por inteiro as finanças do Vaticano sem recuar na história da Igreja.

Esta história é um trabalho de investigação clássico sobre a intriga po-lítica e o funcionamento interno secreto da maior religião do mundo. não trata de fé, crença em Deus ou questões relacionadas com a existência de um ente superior. Ao invés, Os Banqueiros de Deus aborda a forma como o dinheiro, a sua acumulação e as disputas por ele motivadas têm sido um ponto central na história da Igreja Católica, moldando frequentemente a sua missão divina. «É impossível gerir a Igreja com Ave Marias», disse um bispo encarregue da gestão do banco do Vaticano.

Os Banqueiros de Deus expõe a forma como, ao longo dos séculos, a Igreja deixou de viver à custa de donativos dos fiéis e de impostos cobra-dos no seu vasto reino secular, transformando-se num país liliputiano que abraçou hesitantemente o capitalismo e a finança moderna. Durante o sé-culo XIX, os católicos estavam proibidos de contrair empréstimos em que fossem cobrados juros. Um século depois, o banco do Vaticano orquestrou esquemas complexos envolvendo dúzias de empresas fantasma offshore bem como empresários que, com frequência, acabam presos ou mortos. O como e o porquê desta transformação notável é, em parte, a história conta-da em Os Banqueiros de Deus.

O desafio deste projeto era acompanhar o fluxo do dinheiro, dos bórgias ao papa Francisco, estudando uma instituição que guarda os seus segredos e mantém grandes quantidades de informação selada nos seus autoproclamados Arquivos secretos. Para dificultar mais ainda a questão, como escreveu um autor em 1996: «Os funcionários do Vaticano mais depressa falarão sobre sexo do que sobre dinheiro.» A história que Roma preferia que não contasse teve de ser composta a partir de documentos dispersos em arquivos privados e públicos, de informação deduzida a

A História do dinheiro e do poder no Vaticano

Page 4: Prefácio - Bertrand

14

partir de registos de tribunal e de processos judiciais, e de dúzias de en-trevistas. Um punhado de clérigos e funcionários leigos em Roma, que, temendo represálias, aceitaram falar apenas sob condição de anonimato, permitiram-me um olhar sem precedentes às disputas violentas que mu-tilaram com frequência o papado moderno. Estas entrevistas tornaram claro o desafio considerável que se coloca ao papa Francisco no que diz respeito à reforma financeira do Vaticano.

Enquanto construía o relato, a história cresceu em alcance histórico e fez-me perceber que tinha omitido uma parte crucial: a luta incessante pelo poder que está intrinsecamente ligada ao desejo do lucro. no Vatica-no, trata-se de uma mistura instável. Há quase mil homens, na sua maioria celibatários, que vivem e trabalham em conjunto e que, além de exercerem grande poder terreno, acreditam em grande parte que herdaram direitos divinos de salvaguarda da Igreja «única e verdadeira». no final, não deixam de ser humanos, atormentados pelas mesmas fragilidades e limitações co-muns ao resto de nós. não admira que, apesar das suas melhores intenções, acabem por se envolver com frequência em guerras internas e em escânda-los imensos que rivalizam com os de qualquer governo secular.

Uma mitologia pública em livros, artigos e filmes desenvolveu-se em torno da Igreja e do seu dinheiro. Maçons, illuminati, mafiosos protegidos por padres, papas assassinados, ouro nazi acumulado nas caves do Vati-cano... As teorias mais desvairadas poderão entreter, mas não possuirão grande rigor histórico. Os Banqueiros de Deus esquiva-se à mitologia e às grandes quantidades de desinformação, apresentando um relato sem em-belezamentos da busca pelo dinheiro e poder na Igreja Católica Romana. não é necessário qualquer embelezamento. A verdade é suficientemente chocante.

Os Banqueiros de Deus

Page 5: Prefácio - Bertrand

15

1

«Não é papa nenhum»

Enquanto sacerdotes católicos geriam redes de fuga de criminosos de guer-ra nazis e Pio XII e os seus cardeais travavam uma guerra contra o comu-nismo, bernardino nogara, conselheiro financeiro do Vaticano, aperfeiçoa-va o Instituto para as Obras da Religião (IOR). A Igreja preparava-se para beneficiar com a nova ordem resultante da Guerra Fria. Muitos dos piores receios de nogara tinham sido concretizados pela devastação na Europa do pós-guerra. A produção industrial caiu a pique. O desemprego atingiu nú-meros nunca vistos. Havia mais de oito milhões de deslocados. Um quarto de toda a habitação urbana alemã tinha sido destruído e o produto interno bruto do país caíra uns impressionantes setenta por cento.

A vitória democrata-cristã de 1948 em Itália animou nogara, pondo fim à ameaça comunista de nacionalização de muitas indústrias. se tal ti-vesse acontecido, teria destruído investimentos avultados do Vaticano e os esquerdistas mais empenhados teriam substituído os representantes da Igreja nos conselhos de administração das principais empresas. Mesmo que nogara demonstrasse confiança na sobrevivência do IOR às nacionaliza-ções, sabia que as perdas colossais a curto prazo seriam inevitáveis.

Completara setenta e oito anos um par de meses antes das eleições. A boa saúde e a mente ágil não impediram que preparasse o dia em que passaria a estar ausente do Vaticano. Reuniu uma pequena equipa de clé-rigos e leigos de confiança. Monsenhor Alberto di Jorio trabalhava com

Page 6: Prefácio - Bertrand

16

ele há mais tempo que qualquer outro clérigo. Di Jorio era o secretário da comissão de supervisão do IOR composta por três cardeais (e que pou-co mais fazia do que rever anualmente um sumário de página única das atividades do banco). O seu chefe era nicola Canali, um dos prelados que tinha investigado nogara quando Pio XII fora eleito papa. Canali estava incumbido também de gerir a Administração Especial, responsá-vel pela propriedade da Igreja recebida dos Acordos de Latrão. Referido de forma não oficial como ministro das Finanças, mantinha-se bastante ativo na política da Cúria. nogara apreciava Canali pelo seu apego rigo-roso à disciplina. bernardino acreditava que asseguraria que o IOR e a Administração Especial não se afastariam demasiado do seu rumo lucra-tivo. Mas não depositava nos clérigos a sua esperança no futuro das finan-ças do Vaticano. Confiava sobretudo num punhado de leigos mais jovens.

O conde papal Carlo Pacelli era um dos três sobrinhos de Pio XII no Vaticano. Era o conselheiro-geral da cidade-estado. Durante a guer-ra, nogara confiara nele para obter conselhos abrangentes acerca dos negócios internacionais do IOR. Além de contar com a confiança de bernardino, Pacelli era um dos poucos funcionários leigos com quem o papa reunia com regularidade.

nogara pedira pessoalmente a Massimo spada para se juntar ao de-partamento financeiro do Vaticano em 1929. spada, que, pouco antes, se tornara corretor bolsista, nunca ouvira falar da Administração das Obras da Religião. nogara disse-lhe que funcionava quase como um banco no que diz respeito à administração dos depósitos dos institutos religiosos e das obras de caridade eclesiásticas. Foi suficiente para spada, cujo pedi‑gree era imaculado. O seu bisavô fora o banqueiro privado de um nobre negro1 de relevo, o príncipe di Civitella-Cesi Torlonia. O avô de spada fora diretor do banco de Itália e o seu pai chefiara uma agência de ne-gócios externos que negociava com a Igreja. Com os seus célebres fatos cinzentos de lapelas sobrepostas e calças de cintura elevada, spada era uma presença familiar no Vaticano. Tornara-se um favorito de prelados com destaque na hierarquia depois de liderar o movimento para contra-riar uma apropriação hostil da Banca Cattolica del Veneto controlada pelo IOR. no final da guerra, tornara-se o secretário Administrativo do IOR, o leigo de posição mais elevada a seguir a nogara.

Luigi Mennini, pai de catorze filhos, era um banqueiro privado expe-riente, a quem nogara pedira também para trabalhar para o IOR. Tornou-se

1 nome dado aos aristocratas em “luto” pelo fim dos Estados Papais e consequente “prisão” autoimposta do papa no Vaticano. (n. do T.)

Os Banqueiros de Deus

Page 7: Prefácio - Bertrand

17

o conselheiro de maior confiança de spada. Raffaele Quadrani, que traba-lhara durante alguns anos em bancos de Paris e Londres, foi outra contra-tação de nogara. Foi recomendado pelo seu irmão, bartolomeo, diretor do Museu Vaticano.

Henri de Maillardoz, banqueiro do Credit Suisse com a base de ope-rações em Genebra, foi outro dos primeiros banqueiros estrangeiros. nogara confiara-lhe os investimentos da Igreja. Cosmopolita e distante, Maillardoz conhecia nogara desde 1925. Foi o responsável pela deci-são de consolidar algumas das reservas de ouro europeu da Igreja no Credit Suisse, o seu empregador anterior. Quando nogara enfrentou os Aliados pela inclusão do Sudameris numa lista negra, enviou Maillardoz a Washington em novembro de 1942 para fazer um apelo aos responsá-veis pelo Departamento do Tesouro. no final da guerra, Pio conferira--lhe um título nobiliárquico honorário de marquês e foi nomeado secre-tário da Administração Especial e consultor especial de bernardino. Foi Maillardoz o banqueiro cuja visita ao Vaticano no início da década de trinta alarmou o cardeal Domenico Tardini. Tardini receara que a sim-ples presença de um banqueiro suíço fosse um presságio de que nogara estaria prestes a envolver-se em especulação financeira proibida.

O conflito motivado pela dimensão permissível do trabalho de nogara tornou-se uma memória distante. Havia poucas restrições regen-do o investimento além daquelas que o IOR decretava sobre si mesmo. nogara e a sua equipa sabiam que os balcãs e a Europa de Leste estavam fora do seu alcance enquanto permanecessem sob controlo de governos fantoche soviéticos. A Europa Ocidental, protegida pelo manto da defesa nuclear americana, nunca estivera tão segura. Mas concordaram que o melhor investimento seria no país que melhor conheciam: Itália. Com a vitória democrata-cristã e a firmeza da aliança com os Estados Unidos, concluíram que era uma oportunidade rara. Itália estava, sem dúvida, no mesmo estado lamentável do resto do continente, arrasada pela recessão, pela inflação e pelo desemprego. Mas a equipa do Vaticano acreditava que o enorme influxo de biliões do Plano Marshall alimentaria um surto de reconstrução, revigorando a economia estagnada. Muitas empresas italia-nas de topo estavam disponíveis a preço de saldo, depois de o preço das suas ações ter sido devastado.

Os primeiros investimentos significativos de nogara no pós-guerra foram no setor da construção, que acreditou ser o primeiro a recuperar já que as cidades destruídas e as infraestruturas demolidas precisavam de ser reconstruídas. Em 1949, a Igreja comprou quinze por cento da Società Generale Immobiliare (sGI), uma das holdings de construção e imobiliário

A História do dinheiro e do poder no Vaticano

Page 8: Prefácio - Bertrand

18

mais antigas do país (alcançaria uma quota de mercado dominante ao longo de vários anos). Em seguida, o IOR investiu na Italcementi, a fábrica de ci-mentos em condição lastimável.

Falta de alimento generalizada aliada a perturbações agrícolas moti-varam fomes e aumentos dramáticos no preço dos bens de primeira ne-cessidade. O Vaticano investiu nos setores alimentar e agrícola. nogara tornara-se administrador de uma das maiores empresas agrícolas ita-lianas e a Igreja adquiriu uma participação em explorações de grande dimensão no mesmo setor, além de quatro unidades agrícolas. Os co-munistas alegariam mais tarde que a Igreja detinha um controlo mono-polista do fabrico de fertilizantes, usando-o para explorar os agricultores italianos e para obter lucros gigantescos.

O IOR expandiu-se para lá desses setores, com investimentos em empresas italianas de reputação sólida, incluindo a Italgas (gás natural), a Società Finanziaria Telefonica (telecomunicações), a Finelettrica (eletrici-dade), a Finmeccanica (defesa) e a Montecatini (minas). nogara adquirira ainda quatro fábricas têxteis em dificuldades por preços reduzidos (Giuse-ppe Volpi, antigo ministro de Mussolini e amigo de longa data de nogara, recomendara a partir do seu exílio suíço em 1947 as empresas a monsenhor di Jorio como bons investimentos a longo prazo). nogara fundiu as quatro fábricas numa nova entidade, a SNIA Viscosa.

Confiante de que qualquer recuperação incluiria o setor financeiro, a equipa de nogara iniciou uma onda de compras sucessivas de bancos ita-lianos. Em 1950, o IOR detinha uma participação maioritária em setenta e nove bancos do país, de holdings de grande dimensão como a Mediobanca sustentada pelos Aliados a pequenos bancos regionais. nenhum outro investidor detinha uma participação mais significativa nas finanças italia-nas do pós-guerra do que a Igreja. Alguns dos investimentos de nogara, como a Italcementi, transformaram-se em equidade adicional no setor financeiro, enquanto formava a sua holding própria e adquiria bancos a partir do início dos anos sessenta.

Mas nogara queria mais do que investimentos. Procurava também influenciar a forma como as empresas eram geridas. Investimentos con-sideráveis estavam condicionados à disponibilização de pelo menos um lugar no conselho administrativo. Enrico Galeazzi (mais tarde um con-de papal) era o principal arquiteto do Vaticano, amigo pessoal do car-deal spellman e membro do conselho mais próximo de Pio XII. nogara indicou Galeazzi como um dos administradores do Vaticano na SGI, no Banco de Roma, no Credito Italiano e no gigante dos seguros RAS. Marcantonio Pacelli, outro sobrinho de Pio XII, integrava o conselho de

Os Banqueiros de Deus

Page 9: Prefácio - Bertrand

19

administração de muitas empresas, incluindo a SGI. Giulio Pacelli, ou-tro sobrinho, integrava também inúmeras administrações, incluindo a da Italgas e do banco BCI. Carlo Presenti, presidente de dois bancos im-portantes, tornou-se o administrador nomeado pela Igreja na Italcementi. Por seu turno, Presenti escolheu Massimo spada para ser administrador e vice-presidente dos seus bancos. nogara guardou para si a administra-ção das empresas que considerava candidatas sérias à mudança de rumo ou com as quais mantinha relacionamentos de longa data, entre as quais se incluíam o gigante químico Montecanti, o conglomerado hidroelétri-co SIP, a seguradora Generale Immobiliare, e o fornecedor de tubagens para água Società Italiana per Condotte d’Acqua. Estas nomeações jun-to de conselhos administrativos de empresas de topo significavam que o Vaticano desempenhava um papel histórico em negócios que teriam sido impensáveis meras décadas antes.

Em 1950, spada tornou-se um símbolo das relações emaranhadas entre o Vaticano e o setor privado italiano. Era administrador ou diretor em mais de trinta empresas, incluindo os gigantes dos seguros Generali e RAS (o Vaticano reinvestira em ambos), a Banca di Roma, a Mediobanca, a Finelettrica, a Italmobiliare, a Finmeccanica e a Italcementi. «O merca-do bolsista italiano é controlado por cerca de vinte empresas financeiras com propriedade de tal forma entrelaçada que os seus administradores respondem sobretudo a si mesmos», referiu a Time num artigo sobre as incestuosas finanças italianas.2

A dúvida no Vaticano era perceber qual dos homens que trabalharam para nogara lhe sucederia. Antes da guerra, houvera especulação alargada de que Giovanni Fummi, executivo da Morgan, seria o seu substituto. O pa-trício Fummi representara Volpi, o Vaticano e a maior parte dos aristocra-

2 Volpi acreditou que seria necessária uma geração para reconstruir o setor dos seguros italiano devastado pela guerra. Mas os Aliados queriam que todos os setores, incluindo o dos seguros, fossem revitalizados com maior rapidez, preocupados com a Guerra Fria. Revitalizar o setor privado em Itália e na Alemanha era a forma de assegurar que os partidos comunistas nestes países não conseguiam beneficiar da exploração dos terríveis relatos de pobreza e paralisia económica do pós-guerra. Os Aliados devolveram a gestão do setor privado aos italianos em 1947. A Generali funcionava a pleno gás meses depois, com todos os seus ativos apoiados por empresas americanas. Mesmo que o comando militar americano se tivesse queixado de que a nova liderança da Generali incluísse alguns fascistas convictos, deixara de ter a jurisdição necessária para fazer alguma coisa a esse respeito.

A História do dinheiro e do poder no Vaticano

Page 10: Prefácio - Bertrand

20

tas italianos. Mas nogara vivera tempo suficiente para que Fummi, apenas um ano mais jovem, se tivesse tornado demasiado velho.

Preparando o terreno para o seu sucessor eventual desde o início da dé-cada de cinquenta, nogara formou um núcleo de conselheiros financeiros católicos. Estes novos consultores eram informalmente conhecidos como uomini di fiducia, homens de confiança. Há muito que os papas usavam nobres negros para os auxiliarem nos negócios. bernardino socorrera-se durante décadas de um círculo de conselheiros próximos, composto por homens como Fummi e Volpi, conselheiros de confiança e parceiros de ne-gócios ocasionais. nogara esperou que os homens de confiança fundissem os melhores traços dos nobres negros e dos seus conselheiros próprios. Decretou que deveriam ser banqueiros ou financeiros de topo, escolhidos pela sua lealdade e habilidade. E pensou que seria importante que não tra-balhassem para a Igreja, esperando que a sua independência pudesse liber-tá-los da asfixiante burocracia da Cúria e das guerras fraturantes pelo po-der. As primeiras escolhas de nogara foram dois sobrinhos de Pio, Giulio e Marcantonio Pacelli.

Apesar da idade avançada e da promessa de reduzir a sua carga labo-ral, nogara continuava a ser administrador ou diretor administrativo numa dúzia das maiores empresas italianas. E, quando foi desafiado no interior da Cúria por outros homens de poder, demonstrou saber proteger o seu terreno. Em 1953, chocou com monsenhor Giovanni battista Montini, que Pio nomeara pouco antes co-secretário de Estado. Tinham-se enfrentado mutuamente desde a guerra. Montini defendera que Pio levasse o banco do Vaticano, a única fonte acessível de moeda estrangeira, a auxiliar o seu pro-grama de refugiados. bernardino não apreciava o papel passivo desempe-nhado pelo IOR nos programas que não controlava por completo. Décadas depois, o que fora uma inimizade contida tornara-se algo declarado. Mon-tini queixava-se a colegas de que tinha sido um erro permitir que um leigo, mesmo que fosse um leigo talentoso, alcançasse tanto poder. E perguntava porque nogara não se concentrava exclusivamente no IOR e na sua Admi-nistração Especial em vez de se intrometer na Cúria. O monsenhor afirmou também que o estatuto crescente dos sobrinhos de Pio, sob patrocínio de nogara, tresandava a nepotismo.

nogara e outros, sobretudo a irmã Pascalina, que não apreciavam Montini, justificaram-se diretamente a Pio. num consistório de 1953, o papa nomeou vinte e um novos cardeais. Montini estava em todas as listas. Mas Pio chocou os vaticanologistas não lhe atribuindo o chapéu verme-lho. E, no ano seguinte, o papa sanou o diferendo galopante entre Montini e nogara nomeando o primeiro arcebispo e enviando-o para gerir Milão.

Os Banqueiros de Deus

Page 11: Prefácio - Bertrand

21

Porque Milão era a maior arquidiocese italiana, era tradicionalmente ad-ministrada por um cardeal. A mensagem era clara. O papa de setenta e oito anos assegurara que Montini não poderia ser o seu sucessor.

Em 1954, o mesmo ano em que Montini foi enviado para Milão, noga-ra escolheu Henri de Maillardoz como Delegato do IOR. Era a posição que nogara detivera sozinho desde a fundação do banco em 1942. Maillardoz, que tinha no seu currículo privado a gestão do portefólio industrial do Cre‑dit Suisse, sentia-se confortável no seu novo papel. bernardino permaneceu no Vaticano durante a transição. Foram precisos dois anos, até 1956, para que nogara sentisse que a sua equipa escolhida a dedo estava pronta para seguir em frente. Aposentou-se aos oitenta e seis anos, mas recordou aos seus colegas que vivia numa casa próxima pertencente ao Vaticano e teria todo o gosto em aconselhá-los.

Durante os vinte e sete anos do seu mandato, nogara revolucionou o mundo das finanças do Vaticano. Com o apoio total de dois papas, derro-tara com sucesso os tradicionalistas fervorosos da Cúria e transformou a Igreja de uma instituição financeira primitiva numa holding internacional capaz e com um banco central próprio. Quando se afastou, as discussões intensas sobre a possibilidade de a Bíblia permitir ou não que a Igreja de-sempenhasse qualquer papel na especulação financeira pareciam arcaicas. A Administração Especial de nogara era tão capitalista como qualquer banco de investimento de Wall street. nos onze anos desde o fim da se-gunda Guerra Mundial, a sua concentração na indústria italiana durante o pós-guerra revelou ser um investimento inspirado. A SNIA Viscosa tornou--se a mais lucrativa empresa têxtil do país. A SGI tornou-se um conglome-rado internacional com projetos de construção gigantescos em cinco con-tinentes. sem referir as participações em dúzias de empresas relacionadas. A Montecatini triplicou de tamanho e expandiu-se para a energia elétrica e para o setor farmacêutico. A Italgas passara de uma pequena empresa de serviços regional ao maior fornecedor italiano de gás natural.

nogara zelou também pelos seus dois filhos, Paolo e Giovanni. Paolo era administrador de duas empresas propriedade do Vaticano, a empresa mineira Montefluoro e, mais tarde, a Ceramica Pozzi, uma fábrica de cerâmica. Giovanni geria uma empresa metalúrgica contro-lada pelo IOR, a Pertusola, sendo igualmente diretor do conglomerado de transportes Tarvisio. Tal como o seu pai, Giovanni era engenheiro e funcionava também como diretor-geral da empresa mineira Predil, na qual o IOR tinha também investido.

Aos oitenta anos, o próprio Pio mostrava-se frágil aquando do afas-tamento de nogara. nunca fora robusto e, por vezes, era difícil perceber

A História do dinheiro e do poder no Vaticano

Page 12: Prefácio - Bertrand

22

ao certo se o pontífice estava tão doente como parecia. Uma infeção gas-trointestinal grave (com «vómitos e náusea constantes», como recorda a irmã Pascalina) durante o período natalício de 1945 deixara-o debilitado. Os vaticanologistas começaram a debater a sua saúde. Ricardo Galeazzi--Lisi, um oftalmologista, era o médico principal de Pio desde 1939. Fora o médico a quem Pio confiara o exame dos «ossos de são Pedro» em 1942. Além de Pascalina, muitos dos que lhe eram próximos se mostra-vam apreensivos com Galeazzi-Lisi e com os tónicos e remédios herbais que fabricava. O seu tratamento falhado dos problemas de Pio com as gengivas usando ácido crómico (usado no tratamento de curtumes) pro-vocou complicações no esófago que atormentavam o papa com soluços crónicos3. E tinha sido Galeazzi-Lisi, juntamente com Pascalina, a reco-mendar Paul niehans, um médico suíço que aplicava injeções «terapêu-ticas de células vivas» consistindo em fetos retalhados retirados a ove-lhas acabadas de abater. Eram muitos os que, no Vaticano, não gostavam que niehans fosse um pastor protestante ordenado e os tradicionalistas opunham-se à sua utilização de fetos animais no seu tónico injetável. Mas Pio simpatizava com ele e ignorava os relatos de que alguns dos seus pacientes sofriam crises de espasmos depois das injeções. O papa chegou mesmo a nomeá-lo para a prestigiosa Academia Pontifícia de Ciências. Durante uma indisposição particularmente grave, Pio perguntou-lhe: «Diga-me a verdade. Acredita realmente que recuperarei por completo e conseguirei cumprir na totalidade os meus deveres? se não acreditar, não hesitarei em resignar.» niehans assegurou que Pio melhoraria. Foi só em 1955, depois de o papa quase perder a vida na sequência de uma infeção, que dois médicos italianos conseguiram reunir provas suficien-tes para desafiar as teorias e os resultados de niehans, convencendo Pio a proibi-lo de voltar a entrar no Vaticano. Com o agravar da sua saúde, acabou por mudar de ideias e, em 1958, niehans tinha regressado aos aposentos privados do papa.

3 ninguém dentro do Vaticano sabia que Galeazzi-Lisi era uma fonte de informação secreta acerca da saúde papal e, por vezes, de rumores acerca da Igreja, junto de jornais e revistas. Muitos faziam-lhe pagamentos pela sua colaboração. Paul Hoffman, então um repórter novato da secção romana do New York Times, entregava «num envelope o pagamento» do doutor no seu consultório em Roma. «Ao telefone, apresentava-se sempre como “Dick”... porque os telefones do Vaticano estavam sob escuta da polícia papal», escreveu mais tarde Hoffman. O Times «desconhecia então que recebia envelopes idênticos de outros clientes».

Os Banqueiros de Deus

Page 13: Prefácio - Bertrand

23

Pio passou a dizer «estar pronto para ir para o Céu». Os jornais italianos reforçavam a sensação de que algo não estava bem quando noticiaram as alegadas alucinações descritas pelo papa. numa delas, via uma réplica do movimento giratório do sol em Fátima e, noutra, Jesus surgiu-lhe no quarto para assegurar que o seu pontificado não ti-nha ainda chegado ao fim. Foi a primeira vez em mil anos que um papa afirmava ter visto o Filho de Deus. Alguns céticos consideraram que, ao afirmar ter tido visões divinas, Pio fazia campanha pela sua canoni-zação póstuma. Outros consideravam que seriam efeitos da doença e da idade avançada.

Os leigos que herdaram o IOR e a Administração Especial afastaram--se de quaisquer rumores de bastidores acerca do papa. sabiam que, inde-pendentemente do estado de saúde de Pio, a sua idade avançada significava que seria apenas uma questão de tempo até haver um novo papa. Porque a maioria nunca tinha trabalhado sob outro pontífice, essa possibilidade era suficiente para gerar uma angústia considerável.

Apesar da especulação acerca da saúde de Pio, muitos elementos bem colocados manifestaram-se, mesmo assim, surpreendidos e entris-tecidos quando souberam que o papa sofrera um enfarte catastrófico no dia 6 de outubro de 1958. Apesar das suas limitações e peculiaridades, liderara a Igreja através de tempos difíceis. Durante o seu pontificado de dezanove anos, promovera o papado como posição de poder centrali-zado e inquestionável, um monarca divino que fazia recordar os papas mais arrojados de gerações anteriores. Três dias após o enfarte, o pon-tífice morria, vitimado por algo que o Vaticano descreveu como «um fenómeno circulatório».

O conclave que começou a reunir-se era diferente do que tinha eleito Pio em 1939. Pacelli fora então o principal favorito. A eleição que o tornara papa foi a mais rápida em trezentos anos. Depois da sua morte, não havia favoritos. E, para grande consternação no Vaticano, a imprensa especulava pela primeira vez acerca do conclave como se fosse uma eleição secular. O próprio spellman era referido como candidato destacado. não tinha qual-quer hipótese. Tinha demasiados inimigos na Cúria, que criaram o termo «spellmanismo» para referirem uma condição em que alguém tinha um ego demasiado grande e uma ambição demasiado evidente.

Depois do início do conclave, os oitenta cardeais, vinte e nove dos quais eram italianos, dividiram-se por campos ideológicos. Os sucessores de Pio eram os conservadores, fortemente anticomunistas e autoritários, que acre-ditavam num papado todo-poderoso. Reuniam-se em torno de Giuseppe siri, cardeal de Génova, o prelado em cuja arquidiocese o padre croata

A História do dinheiro e do poder no Vaticano

Page 14: Prefácio - Bertrand

24

Draganovic gerira uma das suas rotas de fuga de criminosos de guerra do seu país. Os progressistas queriam reduzir o papel ativo da Igreja na Guerra Fria e aceitariam algumas reformas modernistas. Estavam divididos entre vários candidatos, com o cardeal de bolonha, Giacomo Lercaro, parecendo deter uma vantagem momentânea.

A divisão entre cardeais tornou-se evidente para as multidões que enchiam a Praça de são Pedro. Durante três dias, fumo negro indicando que o papa não fora eleito saiu dez vezes da chaminé erigida sobre a sua sala de reuniões. O fumo branco seguiu-se à décima primeira votação. O compromisso do conclave dividido? O patriarca de Veneza, Angelo Roncalli, a um mês de completar o seu septuagésimo sétimo aniversário. Há mais de duzentos anos que não era eleito um papa acima dos setenta anos. Tinham-se reunido à sua volta como gestor de curto prazo.

Afável e anafado, Roncalli era a antítese do seu antecessor reservado e esquivo. Apesar de não ter integrado quaisquer listas de favoritos, acredita-va pessoalmente ser um candidato de peso. Quando a sua eleição foi anun-ciada para o exterior do conclave, retirou do bolso das suas vestes um lon-go discurso de aceitação que tinha escrito em latim. Quanto ao seu nome papal, surpreendeu os colegas anunciando sem hesitar que seria João, um nome que todos os papas tinham evitado porque o último João fora um antipapa fraturante em 1410 (Roncalli apreciava o nome por ser o da igreja paroquial em que fora batizado).

nas primeiras vinte e quatro horas do seu papado, Roncalli demons-trou que não pretendia ser um mero gestor. no final do conclave, entregou o chapéu vermelho a monsenhor Alberto di Jorio, o prelado responsável pelo IOR. Di Jorio fora o secretário do conclave e, elevando-o à dignidade de cardeal, Roncalli retomava a prática abandonada pelos dois papas an-teriores. Acabando de colocar as vestes papais, anunciou que monsenhor Domenico Tardini seria o seu secretário de Estado, ocupando uma posição que Pio deixara vazia durante catorze anos.

Roncalli era o terceiro de treze filhos, o rapaz mais velho, de uma família camponesa pobre da aldeia de sotto Il Monte no norte de Itália. Os seus pais tinham-no matriculado num seminário local quando tinha apenas onze anos. Um padre trazia algum prestígio às famílias. Era tam-bém uma boca a menos para alimentar. Aos dezanove anos, obteve uma bolsa para estudar na Accademia dei Nobili de Roma, um seminário que funcionava como centro de recrutamento da Cúria. O bispo de bérgamo escolheu-o como secretário pessoal durante um período de dez anos, interrompido quando Roncalli foi recrutado como capelão do exército italiano durante a Primeira Guerra Mundial. Em 1925, Pio XI nomeara-

Os Banqueiros de Deus

Page 15: Prefácio - Bertrand

25

-o arcebispo e recebeu a primeira das suas incumbências: partir para a Turquia como núncio. seguiram-se a Grécia e França.4

no que dizia respeito à segunda Guerra Mundial e à questão do Holocausto, foi diferente do seu predecessor. Roncalli tinha insistido tão frequentemente com o secretário de Estado Maglione para que conven-cesse o papa a pronunciar-se acerca das atrocidades nazis que Maglione se queixara da sua persistência aos seus colegas em Roma. Em 1944, Franz von Papen, embaixador alemão na Turquia, abordou Roncalli, que era então o núncio em Istambul. Disse-lhe que, se o papa condenasse Hitler, um grupo de patriotas alemães negociaria uma trégua com os Aliados. Quando o núncio transmitiu a proposta de von Papen ao Vaticano, Pio e Maglione retiraram-lhe importância, acreditando que Roncalli era sim-plório e facilmente manipulado pelos alemães, que poderiam preparar uma armadilha ao papa.

O momento da verdade chegou no fim da primavera de 1944. Roncalli foi o primeiro alto representante da Igreja a receber uma cópia do Proto-colo de Auschwitz, relatório arrepiante de maio elaborado por dois judeus eslovacos que tinham fugido do campo de extermínio. O documento dei-xava poucas dúvidas acerca da preparação pelos nazis do seu maior campo de morte para receber os judeus húngaros. Enviou-o por mala diplomática para o Vaticano. Quando Ira Hirschmann, o representante da Comissão de Refugiados de Guerra, abordou Roncalli nesse verão, os nazis tinham já iniciado as deportações em massa de húngaros. Roncalli perguntou a Hirschmann se os judeus húngaros aceitariam ser batizados «apenas para salvar as suas vidas... não realmente para se converterem, compreende». Hirschmann disse que sim. Duas semanas mais tarde, Roncalli confirmou que enviara «milhares de certificados de batismo» ao núncio papal em bu-dapeste. Esse ato simples salvou mais judeus num par de meses do que a hesitação de Pio durante os seis anos da guerra.

Quando Pio XII o nomeou finalmente cardeal em 1953, a maioria con-siderara que o chapéu vermelho era um prémio pela longevidade e leal-dade, não significando qualquer distinção pela sua carreira. Ao contrário

4 Em 1944, Roncalli recebeu um telegrama codificado em Istambul, informando-o da sua nomeação como núncio de Paris libertada. Incrédulo, partiu para Roma. Reuniu com monsenhor Tardini na sede da secretaria de Estado. «Enlouqueceu?», perguntou. «Como lhe ocorreu pedir-me que aceite um posto tão difícil?» O normalmente volúvel Tardini olhou-o em silêncio por um momento antes de responder: «Pode ter a certeza que a surpresa de todos nós aqui foi maior que a sua.»

A História do dinheiro e do poder no Vaticano

Page 16: Prefácio - Bertrand

26

de Montini ou siri, Roncalli não tinha apoiantes de peso na Cúria e não formara quaisquer alianças que promovessem a sua candidatura. ninguém o via como predestinado para o trono papal. O que se destacara durante a sua carreira fora a reputação de simpatia. Onde quer que servisse, o jucun-do e bonacheirão Roncalli tornava-se popular junto dos católicos comuns. Mesmo que ninguém tivesse percebido o significado do facto, assumia o papado durante os primeiros anos da televisão. seria o primeiro papa visto por dezenas de milhões de fiéis através dos seus televisores. Era o meio de comunicação que mais se adequava à sua personalidade.

Mesmo que Roncalli tivesse conseguido reunir os votos necessários para ser eleito papa, havia quem questionasse a sua capacidade de liderança da Igreja. A irmã Pascalina afirmava que não era digno de suceder a Pio. O novo papa respondeu no dia após a sua eleição proibindo-a de entrar nos aposentos que lhe tinham sido atribuídos, anexos aos seus. Foi-lhe dito que deveria deixar o Vaticano. Antes da sua partida, um inimigo de longa data na Cúria, o cardeal Tisserant, confrontou-a e exigiu saber porque tinha queimado três caixas repletas de documentos pertencentes a Pio XII. «O santo Padre ordenou que fosse tudo queimado e assim foi.» Alguns dos documentos eram rascunhos de discursos que tinha escrito durante as suas duas décadas como papa. Mas desconhecia o conteúdo e não se considerou autorizada a ler.

Tisserant ficou furioso. «Compreende que queimou um grande te-souro?»

«sabemos isso melhor do que ninguém, mas foi uma ordem do santo Padre, que considerámos sacrossanto durante toda a sua vida, não deixan-do de o ser após a morte.»

ninguém além de Tisserant parecia demasiado preocupado com a des-truição por Pascalina de milhares de páginas de documentos pessoais de Pio. Ao invés, todos se voltavam para Roncalli. «não é papa nenhum», disse o desbocado spellman a alguns colegas quando regressava de nova Iorque. «Devia vender bananas.» spellman não conseguiu ver em Roncalli o ta-lento necessário para ser um grande soberano. O cardeal de nova Iorque e outros tradicionalistas acreditavam que os católicos comuns desejavam um papado régio. O pontificado de Pio coincidiu com o zénite desse poder absoluto. Roncalli poria fim à maior parte das marcas do papado imperial, acabando com elementos como a coroação de cinco horas e a exigência de que os católicos ajoelhassem diante de si e de que os seus auxiliares guar-dassem silêncio na sua presença. Os que apreciavam a nova simplicidade referiam-se à mudança dramática de estilo como «desestalinização do Va-ticano». Mas um nobre negro ecoou a opinião daqueles que consideravam

Os Banqueiros de Deus

Page 17: Prefácio - Bertrand

27

que as reformas retiravam dignidade ao cargo. «Parece que o papa tenta introduzir na Igreja um pouco da democracia que se tem revelado tão de-sastrosa em toda a parte.»

O cardeal siri de Génova, o principal candidato tradicionalista no conclave, e spellman também se mostravam preocupados por verem que o aprazível Roncalli não partilhava a sua paixão de combatentes na Guerra Fria. A CIA tinha as mesmas preocupações, concluindo que o papa João era «politicamente ingénuo e indevidamente influenciado pelo punhado de clérigos “liberais” com quem se mantinha em contacto próximo». O novo papa acreditava que a Igreja deveria manter-se distante da política secular. Foi uma mudança dramática depois de Pio XII ter desempenha-do um papel crucial nas eleições italianas de 1948, permitindo à Ação Católica a mobilização de votos e chegando mesmo a ocupar-se pessoal-mente de iniciativas como o transporte em autocarro de freiras no dia da votação, dos conventos até às mesas de voto. João XXIII, ao invés, afastou a Igreja da sua parceria íntima com os democratas-cristãos. O novo pon-tífice não via o comunismo como uma ameaça mortal. spellman e siri recearam que um papel passivo da Igreja criasse uma oportunidade para o aumento do poder da esquerda.

Mas, antes de haver alguma oportunidade de testar as credenciais de João XXIII como combatente na Guerra Fria, a 15 de novembro, meros onze dias após a coroação, bernardino nogara morreu de colapso car-díaco aos oitenta e oito anos de idade. A notícia do seu falecimento aca-bou por se perder no rescaldo da eleição de um novo papa, merecendo apenas algumas linhas num punhado de jornais. Mas a morte de nogara acabou por ser um momento fulcral para Maillardoz, spada e Mennini, que tinham passado a gerir as finanças da Igreja segundo o modelo que criara. Mostraram-se apreensivos com a eleição de Roncalli. A especu-lação grassava acerca da possibilidade de o novo papa nomear apoiantes leais para posições de relevo (não ajudava que, quando questionado so-bre o número de pessoas que trabalhavam na Cúria, o novo papa tivesse respondido: «Cerca de metade»).

Apenas três meses após tomar posse, João XXIII chocou o mundo ao convocar o segundo Concílio Vaticano nos dois mil anos de História da Igreja. Todos os seus cardeais, prelados e dois mil e quinhentos bispos ti-veram de rumar a Roma para participar em discussões amplas acerca da possível mudança de tudo, incluindo a liturgia, a forma de seleção dos bis-pos e a redução do poder da Cúria. Mesmo que não começasse até ao ano seguinte, confirmou o receio de spellman, siri e outros de que o aprazível João fosse, no mínimo, imprevisível.

A História do dinheiro e do poder no Vaticano

Page 18: Prefácio - Bertrand

28

Mas, para alívio de Maillardoz, spada e Mennini, o novo papa não in-terferiu com o IOR nem com a Administração Especial. Os vaticanologis-tas interpretaram a elevação de di Jorio a cardeal como apoio da sua gestão do IOR. Até os sobrinhos de Pio mantiveram os seus postos.

Em contraste profundo com Pio, o papa João não tinha reputação de pretender gerir a instituição a que presidia até aos mais ínfimos porme-nores. Durante o tempo que passou como cardeal de Veneza, tornou-se conhecido como um supervisor calmo e descontraído que sentia aversão pela administração, permitindo que assistentes capazes se ocupassem da burocracia da diocese. não se sentia confortável com finanças ou até discu-tindo dinheiro. Maillardoz, spada e Mennini estavam por sua conta.

Um dos primeiros passos que deram foi o reforço das reservas do IOR aproveitando a necessidade de terras do governo italiano para organizar os Jogos Olímpicos de 1960. Venderam algumas das propriedades romanas da Igreja ao Comité Olímpico Italiano. A Igreja detinha mais de novecentos e quarenta milhões de hectares de propriedade à volta de Roma, tornando-a não só o maior proprietário de terras depois do governo, mas também o único Estado soberano do planeta cujo território era mais amplo fora das suas fronteiras. O Vaticano vendeu terra suficiente a preços elevados para permitir aos italianos construir quinze estádios e concluir as obras no Ae-roporto Internacional Leonardo da Vinci em Fiumicino. A esquerda po-lítica criticou os preços demasiados elevados. Por isso, quando o governo precisou de mais terra para construir a Autoestrada Olímpica que ligaria os complexos desportivos distantes, o Vaticano voltou a lucrar, usando dessa vez uma empresa de fachada para providenciar as propriedades necessárias.

Mas os sucessores de nogara não tinham ilusões. Perceberam que os ganhos volumosos com os preparativos frenéticos dos Jogos Olímpicos eram um evento isolado. Teriam de aplicar os princípios de nogara acer-ca da acumulação regular de lucros através de investimentos cautelosos. Acolheram a crença de bernardino de que o futuro das finanças do Vati-cano residia nos homens de confiança. Essa decisão levaria a criação bem--sucedida de nogara ao limiar da ruína, maculando durante o processo o próprio Vaticano.

Os Banqueiros de Deus

Page 19: Prefácio - Bertrand

29

2

«Os homens de confiança»

Poucos meses antes de morrer, nogara encontrou-se com Michele sindo-na, de trinta e oito anos, um dos mais destacados advogados fiscalistas do país. Magro e atingindo quase o metro e oitenta, sindona tinha reputação de combinar inteligência e charme (um colega de profissão chamava-lhe «um encantador de serpentes especializado no negócio da sedução»). O siciliano construíra a sua reputação em Milão, a cidade natal de nogara, tornando-se um dos poucos italianos do sul a alcançar semelhante suces-so no norte elitista do país. sendo o mais velho de dois irmãos nascidos numa família pobre em 1920, sindona fora um aluno dotado, conquistan-do uma bolsa integral que ajudou a arrancá-lo às garras da pobreza abjeta. Durante a segunda Guerra Mundial, aprendeu inglês suficiente para tra-balhar como tradutor para o comando militar americano. Concluiu ainda um curso de Direito na Universidade de Messina e, após alguns anos na unidade jurídica do departamento de Finanças da sicília, mudou-se para o norte com a mulher e a filha. Gabava-se de falar italiano sem qualquer sotaque que denunciasse as suas raízes meridionais, uma vantagem em Milão, permitindo-lhe oportunidades de negócio à altura das suas ambi-ções. Foi aí que, em 1950, sindona conheceu monsenhor Amleto Tondi-ni. Anna Rosa, a sua prima, casara com o irmão mais novo do sacerdote. Tondini era um latinista admirado, gerindo o secretariado das Missivas aos Príncipes e das Cartas Latinas, um pequeno departamento da Cúria

Page 20: Prefácio - Bertrand

30

responsável pelas versões em latim das encíclicas papais e pela correspon-dência. Era também amigo próximo de monsenhor Montini, que então continuava a gerir o auxílio da Igreja aos refugiados em Roma. sindona e Tondini simpatizaram imediatamente um com o outro. Para ajudar o modesto advogado de trinta e um anos, que parecia defender uma abor-dagem conservadora aos negócios, o monsenhor sugeriu que aceitasse fa-zer algum trabalho jurídico para o Vaticano. sindona mostrou-se recetivo e Tondini escreveu a Massimo spada, entretanto nomeado príncipe por Pio XII, pedindo que sindona fosse incluído na sua lista para quaisquer serviços jurídicos de que o IOR pudesse vir a necessitar em Milão.

Quando spada conheceu sindona, achou o advogado «jovem, magro e nervoso», mas também «um conversador estimulante». Convocou os pro-prietários do maior grupo industrial têxtil italiano e de um gigante elétrico, em que o Vaticano detinha participações, e pediu-lhes que enviassem trabalho a sindona. O trabalho que lhe enviaram acabou por não ser muito. Mas, em visitas ocasionais a Roma, sindona passava pelo IOR e desenvolvia um bom relacionamento com os homens que o geriam. A sua oportunidade surgiu em 1954, vinda de fora do IOR. Pouco depois de Pio provocar surpresa genera-lizada enviando Montini para Milão, monsenhor Tondini apresentou o novo arcebispo ao jovem advogado. Tinham mais em comum do que qualquer um deles teria esperado. Partilhavam visões conservadoras num amplo leque de assuntos sociais e políticos e descobriram com agrado e surpresa uma antipa-tia mútua pelo fascismo. O pai de Montini fora um advogado politicamente ativo que era célebre por não apreciar Mussolini. Quando sindona frequen-tava a universidade, recusou usar a farda de estilo militar que Il Duce atribuía aos estudantes. A instituição baixou-lhe a média como castigo. sindona não tardou a gabar-se a amigos e familiares do laço formado.

Montini falou-lhe da desilusão por ver que a cidade a que regressara era um bastião urbano do movimento comunista italiano. Milão era uma das poucas cidades que votara maioritariamente nos vermelhos nas elei-ções de 1948. E inclinara-se mais ainda para a esquerda desde então, com notáveis quarenta por cento dos seus 3,5 milhões de habitantes registados como militantes comunistas.

Montini queria atrair a classe operária para a Igreja e para os can-didatos que esta apoiava. Decidiu visitar as minas da região, celebrando missa nos bairros operários e visitando fábricas. Pietro secchia, um líder operário comunista cuja agenda não podia comportar encontros com um arcebispo capaz de jogar uma cartada populista, tentou impedi-lo de celebrar missa nas fábricas da cidade. Montini voltou-se para sindona, cujo capitalismo fervoroso o tornava um aliado natural contra o comu-

Os Banqueiros de Deus

Page 21: Prefácio - Bertrand

31

nismo. Este incluía entre os seus clientes os proprietários das principais fábricas de Milão. Juntamente com Montini, visitava diariamente as unidades fabris. O advogado e o arcebispo tentaram convencer os tra-balhadores de que o seu futuro melhoraria se aceitassem o capitalismo e depositassem a sua fé em Deus. Estas visitas tiveram impacto. numa eleição decisiva no ano seguinte, secchia perdeu o controlo do seu sindi-cato para um rival democrata-cristão conservador. Montini passou a ter uma dívida para com sindona por se ter revelado um aliado eficiente e com bons contactos.

O resultado para sindona foi um aumento do trabalho recebido do IOR. As suas novas responsabilidades iam além de Milão. Estabeleceu es-truturas jurídicas mais complexas para algumas das transações da Igreja no exterior. spada obteve também para sindona trabalho em duas empresas controladas pelo Vaticano, a Società Generale Immobiliare e a SNIA Viscosa.

no início de 1959, poucos meses após a morte de nogara, Montini (João XXIII nomeara-o cardeal alguns meses antes) convocou sindona à faustosa catedral de Milão. Um padre sentado alguns bancos atrás contou mais tarde que os dois homens rezaram antes de discutirem negócios. Mon-tini precisava de dois milhões de dólares para construir a Casa Madonnina, um lar de idosos católico. sindona disse-lhe que não haveria qualquer pro-blema. Enquanto se erguia para partir, sindona debruçou-se e assegurou a Montini: «não se preocupe. não o abandonarei.»

supostamente, sindona angariou o dinheiro num único dia. seja ou não verdade, tornou-se facto aceite nos círculos empresariais mila-neses e Montini gabava-se da milagrosa recolha de fundos, do jovem advogado, a spada e a outros no IOR.5 Itália estava a meio do surto de crescimento económico do pós-guerra que nogara previra. Em breve, integrava a Comunidade Económica Europeia como membro funda-dor, uma organização de meia dúzia de países europeus que esperavam

5 Alguns relatórios publicados sem referir fontes referem a CIA como origem do dinheiro angariado por sindona para o lar de idosos. Victor Marchetti, um controverso ex-agente da CIA que tem promovido a teoria de que os serviços secretos americanos mataram John F. Kennedy, especulou que será «possível» que o dinheiro tenha vindo da CIA. Mesmo que a conjetura não fundamentada de Marchetti tenha merecido atenção considerável na imprensa italiana, o autor não encontrou provas credíveis que a fundamentem. na década de setenta, Marchetti alegou que a CIA tinha enviado pagamentos ao papa Paulo VI para influenciar o seu pontificado, algo que a Igreja negou como sendo «completamente falso».

A História do dinheiro e do poder no Vaticano

Page 22: Prefácio - Bertrand

32

que a integração económica lhes permitisse mais competitividade com os Estados Unidos. Os italianos chamaram às duas décadas a partir de 1950 «Milagre Económico», um período em que o país superou todas as nações europeias em rendimento per capita (antes da guerra, mantivera--se sempre no fim de todas as tabelas). O país descobrira uma confiança nova e nenhuma cidade a refletia melhor que Milão, a capital empresa-rial do país. Uma história como a da angariação pronta por sindona de milhões de dólares para Montini deixara de parecer impossível, encai-xando no alvoroço que alimentava o crescimento financeiro.

Em 1960, o Vaticano e sindona oficializaram a sua parceria. Massimo spada apresentou sindona a um cliente que queria vender o seu pequeno banco milanês, o Banca Privata Finanziaria (BPF). O BPF era único por funcionar em simultâneo como banco de crédito normal e oferecer serviços habitualmente disponíveis apenas nos bancos suíços de topo. Contavam entre os seus clientes algumas das famílias aristocratas e industriais mais destacadas do país. O Vaticano adquiriu o BPF por intermédio do Credito Lombardo, mantendo sessenta por cento e distri-buindo o que restava por sindona e pelos seus associados. A pedido de spada, sindona criou uma empresa de fachada para que a posse do IOR permanecesse em segredo.

Pouco depois de concluído o negócio, o IOR começou a usar o BPF como seu principal banco correspondente para levar a cabo os negócios da Igreja em Milão. Em outubro desse ano (1960), o cardeal di Jorio, que, por vezes, entrava em conflito com spada acerca do rumo que o IOR devia se-guir, insistia que o Vaticano ficaria mais bem servido com uma participação minoritária no BPF. sindona usou a sua rede de holdings no Liechtenstein para se tornar acionista maioritário. Em seguida, nomeou spada como ad-ministrador. Logo que sindona se apoderou do banco, começou a comprar imobiliário canadiano para si e para o Vaticano através de duas fachadas controladas pela Igreja no Liechtenstein. Quando vendeu essas proprieda-des, os lucros foram para contas na suíça em nome da sua holding (a Fasco). O IOR instruiu-o em seguida sobre a forma de reinvestir os lucros. O pas-sado jurídico de sindona, juntamente com os vários anos em que trabalhou no departamento fiscal siciliano, significavam que sabia usar as fragilidades do sistema fiscal italiano e das leis nacionais de movimentação de divisa, minimizando sempre a taxação dos lucros.

no ano seguinte, sindona convenceu a Fidia, uma holding composta pelo IOR, pela FIAT, pela Pirelli, pela Generali e pelo gigantesco banco de investimento Mediobanca, a assegurar uma participação de oitenta por cen-to no desenvolvimento de uma estância turística planeada para a Riviera

Os Banqueiros de Deus

Page 23: Prefácio - Bertrand

33

Adriática. Adquiriu uma participação maioritária no prestigioso Banque de Financement de Genebra. O IOR passou a ser parceiro a um terço. Esse tornou-se o modelo que sindona e o Vaticano usaram para aquisições ban-cárias futuras.

A ascensão rápida de um siciliano nos círculos empresariais mila-neses desencadeou boatos de que seria patrocinado pela Máfia. sindona considerou-os produtos inevitáveis da inveja. Maillardoz, spada e Mennini sabiam que o passado de sindona não tinha mácula quando começara a trabalhar para o IOR. não deram qualquer crédito aos ru-mores sem fundamentação que chegaram ao Vaticano. Conquistara o direito de ser um homem de confiança.

Quando o cardeal nicola Canali morreu, em 1961, João XXIII estava tão embrenhado nos preparativos do segundo Concílio Vaticano que nem sequer o substituiu imediatamente. O cardeal di Jorio manteve-se como principal prelado responsável pela supervisão tanto do IOR como da Ad-ministração Especial. A morte de Canali não teve qualquer efeito na relação confortável de sindona com o IOR.

Mas outra morte no Vaticano teve impacto inesperado no seu relaciona-mento com a Igreja. A 3 de junho de 1964, o Vaticano anunciou a morte de João XXIII aos oitenta e um anos. Durante anos, travou uma batalha conde-nada ao fracasso contra o cancro. De acordo com a lei canónica, o falecimen-to do papa significava que o segundo Concílio Vaticano, preparado há oito meses, ficava suspenso. O papa seguinte teria de lhe encontrar uma conclusão adequada. «É notoriamente mais fácil iniciar um Concílio do que concluí-lo», escreveu Peter Hebblethwaite, um antigo jesuíta tornado autor. As cliques tra-dicionalistas e reformistas tinham adotado posições firmes em assuntos polé-micos. O desafio era concluir o Concílio sem fraturar a Igreja. O novo pontí-fice teria também de lidar com o tom de confronto da nova coligação política de centro-esquerda no poder em Itália, que apresentava propostas para taxar a Igreja e para legalizar a contraceção e introduzir a educação sexual nas escolas.

A notícia da morte de João XXIII mal se tornara pública quando se ini-ciaram as negociações de bastidores entre cardeais. Antes de spellman par-tir para Roma, foi visitado por um agente da CIA que queria saber se seria possível eleger um anticomunista empenhado mais parecido com Pio XII. A CIA considerava que João tinha desfeito grande parte da obra de Pio no que dizia respeito à Guerra Fria. O líder soviético nikita Khrushchev sentia--se suficientemente confortável em 1961 para enviar saudações pessoais ao pontífice no seu octogésimo aniversário. O papa respondeu no mesmo tom. Muitos na CIA acreditavam que uma reaproximação ao bloco Comunista destruiria anos de progresso antissoviético. nas eleições italianas de 1962, o

A História do dinheiro e do poder no Vaticano

Page 24: Prefácio - Bertrand

34

papa ignorou os pedidos da Igreja para mobilizar votos para os democratas--cristãos. Os partidos esquerdistas destacavam-se nas sondagens, tendo ga-nhado quase um milhão de votos desde as eleições anteriores. John McCone, o diretor da CIA, fez uma viagem rara ao Vaticano, onde se encontrou com o pontífice. McCone, que fora autorizado a falar em nome do presidente Kennedy, disse ao papa que os Estados Unidos se preocupavam com o que viam como sendo uma viragem à esquerda do Vaticano. João mostrou-se compreensivo como sempre, mas não se deixou persuadir pelos argumentos de McCone. McCone voltou para casa sem o compromisso que esperara na luta contra o comunismo.

spellman disse ao agente da CIA que tentaria promover um cardeal com credenciais conservadoras, mas deixou claro que a sua influência em Roma tinha diminuído durante os quatro anos anteriores. Antes do fim do encontro, o agente partilhou com spellman o único imperativo da CIA: qualquer um menos Montini, o cardeal de Milão.

Quando chegou a Roma, spellman não se surpreendeu por des-cobrir que os conservadores se tinham reunido novamente em torno de Giuseppe siri, de cinquenta e sete anos, o cardeal de Génova. Este disse aos restantes tradicionalistas que «a Igreja precisava de cinquenta anos para recuperar do seu pontificado (de João XXIII)». Mas, assim que spellman teve oportunidade de falar com outros cardeais, concluiu que as hipóteses de siri eram diminutas. Um bloco de cardeais do norte da Europa tinha-se unido contra ele. A má notícia, pelo menos para a CIA, era que os progressistas se tinham reunido em torno de Montini. Este desenvolvimento devia-se a um rumor que alastrava: no seu lei-to de morte, o papa João teria dito: «O cardeal Montini seria um bom papa.». Alguns cardeais eleitores entendiam que deviam honrar a última vontade do pontífice. Claro que Montini era o mesmo prelado que Pio XII ignorara na elevação de novos cardeais para assegurar que não seria elegível após a sua morte. Tendo recebido o chapéu vermelho de João XXIII, a humilhação de Pio parecia uma memória distante, agora que se assumia de forma surpreendente como candidato destacado.6

6 Tanto dentro como fora da Cúria, um rumor frequente alegava que Montini seria homossexual. não era como o boato escandaloso que alastrara pela Cúria trinta anos antes acerca do então cardeal Pacelli, mas sim uma história persistente. Os que a partilhavam alegavam conhecer pormenores de datas e locais e diziam que o amante de longa data de Pacelli era um ator italiano, Paolo Carlini. Alguns clérigos suspeitavam mesmo que teria adotado Paulo como nome pontifício em homenagem

Os Banqueiros de Deus

Page 25: Prefácio - Bertrand

35

spellman e Montini mantinham relações difíceis. spellman critica-va a falta de zelo de Montini no combate ao comunismo. O assistente pessoal de Montini, o padre Pasquale Macchi, referido como «a madre Pascalina de Montini» por alguns membros da Cúria, era um conhecido socialista e spellman receava que a influência de Macchi sobre Montini superasse o que ditava a sua posição administrativa. spellman não esque-cia a Guerra Fria. Tinham passado apenas oito meses desde o impasse dos mísseis cubanos. Mesmo assim, não acreditava que Montini afastasse demasiado a Igreja dos seus dogmas velhos de séculos. Afinal, era conhe-cido por uma indecisão esmagadora. Depois de ponderar os dois lados da questão, vacilava com frequência muito depois de a maior parte dos

a Carlini, que, posteriormente, se tornou visita frequente dos aposentos papais. Em 1976, Montini, então já como papa Paulo VI, enfureceu tradicionalistas e defensores dos direitos dos homossexuais ao aprovar uma «Declaração acerca de Determinadas Questões Relacionadas com a Ética sexual» na qual distinguia homossexuais «transitórios» de «incuráveis». Roger Peyrefitte, um romancista bestseller francês e ativista gay, sentiu-se tão irado que disse a uma revista italiana que o papa «tem como namorado um ator de cinema cujo nome não vou referir, mas que recordo muito bem». Apesar de Peyrefitte não ter dito o nome de Carlini, a exposição pública do rumor provocou tamanho tumulto que Montini se referiu a ele no seu sermão dominical de 18 de abril de 1976. O pontífice, usando linguagem direta sem precedente, negou a acusação de Peyrefitte como sendo «uma insinuação horrenda e caluniosa». A polícia italiana confiscou e destruiu cópias da revista semanal com a entrevista de Peyrefitte e o Vaticano decretou um «dia de consolação» para o papa. O drama público foi menor no ano seguinte quando foi feita uma acusação mais extensa a Paulo VI num livro autopublicado: Nichita Roncalli: Controvita di un papa. Franco bellegrandi, Camareiro da Capa e da Espada de sua santidade (um camareiro papal) revelou o que afirmava serem pormenores íntimos sobre a vida secreta de Montini. O financeiro Michele sindona ouvira uma acusação de que o amante de Montini até 1960 fora um jovem protegido, sergio Pegnedoli (mais tarde cardeal). Mas não reconheceu qualquer validade aos rumores de homossexualidade. O general Giorgio Manes, um comandante da polícia, discordava. Muito mais tarde, Manes contou à L’Espresso que, quando Montini foi chantageado pela sua vida secreta, solicitou a ajuda do primeiro-ministro italiano Aldo Moro. Qualquer que fosse a veracidade dos rumores, os boatos persistentes sobre a vida privada de Montini não colocaram entraves à sua eleição como papa em 1963.

A História do dinheiro e do poder no Vaticano

Page 26: Prefácio - Bertrand

36

envolvidos ter tomado uma decisão. João XXIII chamou-lhe certa vez «o nosso cardeal Hamlet».

spellman, nunca esquecendo a política, viu uma oportunidade para re-forçar a sua posição no Vaticano, ajudando a eleger Montini. Os dois cardeais reuniram no dia anterior ao conclave. no final de uma conversa de três horas, spellman comprometera o seu voto e também os votos dos outros quatro cardeais americanos.

O conclave começou a 19 de junho de 1963. Montini precisava apenas de alguns votos para selar a eleição na quarta votação. Mas, de acordo com os relatos posteriores de vários cardeais, alguns eleitores de linha dura tentaram bloquear a decisão. O cardeal Gustavo Testa quebrou a regra de silêncio do conclave, erguendo-se e anunciando que desejava que os cardeais sentados a seu lado parassem de obstruir os trabalhos e votassem em Montini. na sexta votação, pouco mais de dois dias após o início do conclave, Montini, então com sessenta e cin-co anos, tinha os votos necessários. Escolheu o nome Paulo VI.

Até os mais entusiastas apoiantes de Montini sabiam que seria impos-sível que o novo papa fosse tão popular entre os fiéis como João. Faltava-lhe o carisma do seu predecessor. Os católicos tinham acolhido João como figura avuncular. Conquistara uma legião de seguidores entre os fiéis. Desde o início do seu pontificado, esforçara-se para contrariar que o papado fosse uma «prisão autoimposta». Ao contrário de Pio XII, João convidou jornalistas para o seguirem para toda a parte, desde a visita à malcheirosa prisão «Rainha do Céu» (onde beijou e abençoou um assas-sino condenado) até uma incrivelmente popular viagem de comboio de dezasseis horas pelo território italiano para rezar em santuários de Assis a Loreto (a primeira vez que um papa deixava Roma desde 1857). numa era em que a segurança pessoal ainda não era apertada, visitava com frequên-cia escolas e hospitais. A velha guarda do Vaticano considerava que esta proximidade era indigna de um papa e representava uma diminuição do seu poderio régio. Ficaram horrorizados quando, na Quinta-Feira santa de 1960, numa cerimónia para recordar a lavagem dos pés dos apóstolos por Cristo na Última Ceia, incluiu seminaristas negros, japoneses, poli-nésios e das Índias Ocidentais.

De forma contrastante, a maioria dos que conheceram Montini descreveram-no como distante, sisudo e introvertido. Cumpria as suas obrigações, mas parecia fazê-lo sem alegria. Quando decorou os apo-sentos privativos pontifícios num estilo «modernista milanês», alguns consideraram que a frieza do estilo imitava a sua personalidade. Montini parecia sentir desdém pela proximidade com outros dentro do Vaticano.

Os Banqueiros de Deus

Page 27: Prefácio - Bertrand

37

O efeito da alteração na personalidade papal da expansividade para a contenção refletiu-se nas contribuições para o Óbolo de são Pedro. no último ano do pontificado de João XXIII, os donativos atingiram um máximo de quinze milhões de dólares. no primeiro ano do pontificado de Montini, caíram para os quatro milhões.

Montini, o terceiro filho de uma família da classe média alta da aldeia de Concesio na Lombardia, era um prelado de carreira cuja ambição há muito se tornara evidente para os seus colegas. sendo verdade que poucos teriam acreditado que conseguiria ultrapassar o facto de Pio XII lhe ter negado a ele-vação a cardeal, ninguém duvidava de que há muito considerava ser aquilo a que muitos chamavam papabile, possuindo as qualidades necessárias para ser papa. Doutorado em Direito Canónico, teve uma carreira vertiginosa no gabinete do secretário de Estado. E sentira-se incomodado durante muito tempo pelo que considerava ser uma falta de apreço demonstrada por Pio e por outros pelas suas décadas de serviço. O desafio de ser papa não o assus-tava e, pelo contrário, ansiava por deixar a sua marca na Igreja. Uma das suas primeiras decisões foi a nova convocação do segundo Concílio Vaticano.

Poucos ficaram mais felizes com a eleição de Montini do que sin-dona. Ter o papa como amigo significava que as credenciais de sindona no Vaticano se tinham tornado inabaláveis. Algumas notícias de jornal incluíam-no naquilo a que chamavam «a Máfia de Milão» trazida por Paulo VI consigo para Roma.

Dentro do IOR, spada foi quem mais beneficiou, tendo Montini como amigo de longa data. sabia que o novo papa, que tinha reputação de se «in-teressar pessoalmente por questões orçamentais», se envolveria muito mais do que o seu antecessor na administração financeira da Igreja.

Alguns meses após a sua coroação, os democratas-cristãos formaram uma coligação governativa com os dois maiores partidos socialistas do país. Foi o governo mais esquerdista do pós-guerra italiano. Aldo Moro tornou-se primeiro-ministro. Quando sindona falou com o novo papa, partilhou o seu receio de que novas propostas governamentais de aumen-to da posse de serviços públicos e de algumas instituições financeiras pelo Estado pusesse fim à longa expansão económica italiana. Porque nogara entrelaçara tanto o Vaticano com a indústria italiana, qualquer conse-quência de uma inversão económica poderia ser desastrosa para a Igreja. Montini instruiu a Maillardoz e spada que trabalhassem com sindona para desenvolver uma estratégia que protegesse e diversificasse os vastos interesses empresariais do Vaticano em Itália.7

7 Mesmo que o Vaticano se mostrasse preocupado com as interferências crescentes

A História do dinheiro e do poder no Vaticano

Page 28: Prefácio - Bertrand

38

sindona era perfeito para essa tarefa. Aquando da eleição de Montini, atraía parceiros de renome para os seus diversos negócios. A Nestlé suíça e o Banco Paribas francês trabalharam com ele para adquirir a Libby, McNeil & Libby, empresa de processamento alimentar com sede em Chicago. A General Foods associou-se a ele numa empresa italiana de doces. sindona convenceu o banco da América a ajudá-lo a obter uma participação num fabricante de topo de malas de viagem. Com financiamento bancário de peso, o advogado de quarenta e três anos tornara-se uma figura incontornável em ramos di-versos, do setor editorial aos petroquímicos e têxteis. Tornou-se presidente de sete empresas e integrava o conselho de administração de várias dúzias. Com a exceção da filial italiana da Condé Nast, em que o Vaticano não tinha um diretor, era acompanhado nessas administrações por um diretor do IOR.

nesse mesmo ano, sindona usou a sua holding luxemburguesa, a Fasco, para adquirir uma participação maioritária na Brown Company, um grande fabricante de papel. Durante os anos seguintes, adquiriu participações na Crucible Steel, num fabricante de produtos químicos, a Pachetti, numa firma do ramo imobiliário, a Sviluppo, na maior cadeia italiana de hotéis de luxo, a Ciga, no hotel de luxo parisiense, Hotel Meurice (quartel-general dos nazis durante a segunda Guerra Mundial) e no opulento The Grand em Roma.

Um dos seus investimentos mais ambiciosos foi uma empresa interna-cional de mediação financeira, a Moneyrex. sindona considerou que existia mercado por explorar para uma empresa privada de mediação financeira que prestasse serviço aos bancos. Imaginou a mediação de contas de insti-tuições financeiras de todo o mundo, localizando, por exemplo, um banco com excesso de depósitos em dólares e colocando-o em contacto com outro banco com escassez de dólares. Os bancos já o faziam sozinhos. Mas, pe-rante a dimensão do mercado financeiro internacional, sindona mostrou--se confiante na possibilidade de uma empresa privada ser muito mais efi-ciente. E propôs que a comissão da Moneyrex fosse apenas um trinta e dois avos de um por cento do dinheiro que lhe passasse pelas mãos. Precisou de um par de anos para que a maioria dos bancos percebesse os benefícios de delegar o trabalho. Para assegurar à Moneyrex capital suficiente para sobre-viver, sindona estabeleceu parcerias importantes, incluindo o Continental Illinois National Bank dos Estados Unidos, o Hambros Bank britânico e o

dos novos governos na iniciativa privada, a Igreja não deixou de ser o maior investidor em fundos do Istituto per la Ricostruzione Industriale, dívida emitida pela autoridade bancária italiana quase totalmente nacionalizada. O IOR detinha também uma parcela do monopólio telefónico gerido pelo Estado, a STET (Società Finanziaria Telefonica).

Os Banqueiros de Deus

Page 29: Prefácio - Bertrand

39

IOR.8 A Moneyrex tornar-se-ia a maior empresa do seu ramo, acabando por ter como clientes oitocentos e cinquenta bancos em todo o mundo e lidando com duzentos mil milhões de dólares anuais em receitas.

Com a bênção do papa, sindona tornou-se mais indispensável ainda nas finanças do Vaticano. Expandiu o seu império bancário com a aquisi-ção de alguns dos bancos italianos mais ricos. Coube ao IOR uma partici-pação minoritária em cada um. sindona nomeou spada para a presidência do BPF, o primeiro banco que adquiriu em 1960. Em 1962, spada aposen-tou-se do IOR, dizendo à L’Espresso que «atingira o limite etário», apesar de ter apenas cinquenta e sete anos. À maioria dos elementos próximos do Vaticano, pareceu que spada se limitava a alterar o estatuto técnico do seu cargo, mudando-se para o outro extremo da cidade e começando a traba-lhar para o Grupo Sindona, envolvendo-se em muitos dos mesmos projetos que tinham ocupado o seu tempo no banco do Vaticano. O papa Paulo VI nomeou Luigi Mennini como subalterno de Maillardoz. Os negócios de sindona com a Igreja mantiveram-se sem interrupção.

Foram tempos de euforia para a Igreja, com o banco do Vaticano e os seus negócios escondendo-se nos bastidores de todas as suas ativida-des. O padre Richard Ginder, editor americano de um semanário católico de grande visibilidade, capturou a excitação num dos seus artigos de 1963: «A Igreja Católica será a maior empresa dos Estados Unidos. Temos uma delegação praticamente em cada bairro. O nosso capital e propriedades ex-cederão os da Standard Oil, da A.T.& T. e da U.S. Steel combinados. E o nosso número de membros pagantes será superado apenas pelas listas de contribuintes do governo americano.»

neste período, sindona era alvo de grande cobertura mediática inter-nacional. Alcunhado como «tubarão» pela sua postura agressiva nos negó-cios, a Time chamou-lhe «um empreendedor dedicado» e notou que poucos empresários italianos tinham «conhecido sucesso mais espetacular que o fi-nanceiro milanês, tendo este fundado e dirigido um complexo empresarial e

8 O Hambros Bank, fundado em 1848, integrou um punhado de bancos comerciais britânicos em que nogara começou a confiar a partir dos anos trinta. O Hambros manteve laços próximos com o IOR depois da aposentação de nogara. spada apresentara sindona a Jocelyn Hambro, o presidente do banco, e tornaram-se amigos. O Hambros tornou-se uma parte indispensável de muitos dos primeiros negócios de sindona, tal como o National City Bank (atualmente Citibank), o Chase National Bank (atualmente JP Morgan Chase), a N.M. Rothschild & Sons, a Lazard Frères e o Credit Suisse.

A História do dinheiro e do poder no Vaticano

Page 30: Prefácio - Bertrand

40

industrial em nove países e um complexo imobiliário em cinco». A Business Week referiu sindona como «o financeiro italiano mais bem-sucedido e te-mido». É «um dos empresários mais talentosos em todo o mundo», referiu a Fortune, enquanto o New York Times dizia que era «uma versão milanesa de um magnata texano». O Economist proclamava-o como «mago financeiro».

A sua filosofia de investimento foi testada em 1966, quando conheceu Licio Gelli, um empresário rico com reputação estabelecida como supera-dor de dificuldades por meios pouco claros. Para quem o via de fora, Gelli, então com quarenta e cinco anos e dupla nacionalidade italiana e argentina, desfrutava da vida luxuosa dos ricos e privilegiados, dividindo o seu tempo entre mansões grandiosas em Milão, no Mónaco e em buenos Aires. As suas festas opulentas eram cobertas pelos suplementos de sociedade. Mas poucos sabiam que o seu verdadeiro papel era o de líder de uma loja ma-çónica secreta, a Propaganda Due (P2). Quando a polícia a dissolveu em 1981 com suspeitas de que planearia um golpe de Estado, os seus quase mil membros incluíam quatro ministros em funções, mais de cinquenta generais e almirantes e alguns dos industriais, financeiros, jornalistas, pro-curadores, juízes e até agentes dos serviços secretos mais importantes do país. Essa lista de membros era um registo tão espantoso de personalidades italianas relevantes que os jornalistas lhe chamaram «um Estado paralelo dentro de um Estado». Em muitos países, uma loja maçónica como a P2 poderia ter sido vista apenas como um clube de acesso exclusivo. Mas, em Itália, desde 1738, oito papas consecutivos tinham condenado a maçona-ria, tentando eliminar qualquer vestígio do fenómeno. A Igreja suspeitava de tudo, dos rituais da cerimónia de iniciação maçónica à sua promoção do naturalismo e da tolerância religiosa. Os republicanos e anticlericais italianos do século XIX que capturaram os Estados Papais eram maçons. bandeiras maçónicas esvoaçaram nas ruas enquanto Garibaldi entrava em Roma para libertar a cidade do controlo papal. Mussolini partilhava essa desconfiança dos maçons. Il Duce proibiu todas as lojas em 1925 e chegou mesmo a retirar os seus símbolos de edifícios públicos e de monumentos. no pós-guerra, restavam poucos maçons em Itália.

Gelli corria um risco considerável ao dirigir tal loja. Os titãs que se tinham juntado a ele sabiam que a exposição pública seria, pelo menos, embaraçosa. Porque quase todos os membros eram católicos, ficavam su-jeitos a excomunhão automática à luz da Lei Canónica nº 2335. Mas os riscos pareciam pequenos por comparação aos benefícios potenciais de integrar uma clique tão poderosa. Gelli falava aos novos recrutas do seu sonho de, um dia, ver um governo autoritário de direita composto por membros da P2 substituindo a sucessão interminável de governos de co-

Os Banqueiros de Deus

Page 31: Prefácio - Bertrand

41

ligação débeis que se tornara habitual de forma deprimente em Itália no pós-guerra.

Gelli referiu a P2 quando agradeceu a sindona por ter ajudado «um irmão maçónico muito querido e importante», o general Vito Miceli, oficial superior nos serviços secretos militares.9 «Até esse momento, não soubera que o general Miceli era maçon», contou sindona mais tarde. Gelli discutiu com sindona assuntos importantes para o empresário siciliano, enfatizan-do os pergaminhos anticomunistas da P2 e referindo interesses partilha-dos, incluindo a liberdade dos mercados e o excesso de poder dos sindica-tos. sindona percebeu a partir de alguns dos nomes referidos por Gelli que aliar-se com tais homens poderia apenas beneficiar os seus negócios. Gelli depositava em sindona a sua confiança. O advogado gabou-se a um grupo de empresários americanos: «noventa e cinco por cento dos meus clientes procuram-me porque sabem que sei guardar segredos.»

A pedido de Gelli, sindona delineou propostas para revitalizar a eco-nomia italiana e melhorar a força da sua moeda e o seu estatuto de crédito no estrangeiro. Gelli distribuiu-as por alguns membros da P2, ocultando o nome do autor. E apresentou sindona a alguns dos seus irmãos maçons, a maioria dos quais ansiava por negociar com ele.

Quando sindona voltou a sua atenção novamente para o Vaticano em 1967, fê-lo para iniciar outra joint venture com o IOR. Henri de Maillardoz anunciara a sua aposentação como Delegato do banco do Vaticano. O antigo banqueiro do Credit Suisse beneficiara com a manutenção do rumo deli-neado por nogara para investimentos no pós-guerra em plena expansão da economia italiana. Quando se afastou, fê-lo a meio de uma onda de sucessos notáveis. A SGI, empresa de construção moribunda em que o IOR investi-ra no final da década de quarenta, passara a ser gerida pelo conde Enrico Galeazzi. Tornara-se um conglomerado internacional com participações significativas ou maioritárias em mais de cinquenta empresas de imobiliário

9 Em 1970, Miceli tornou-se diretor de todos os serviços de informações militares (Servizio per le Informazioni e la Sicurezza Militare — sIsMI). Uma investigação da Comissão Reservada sobre serviços de Informações da Câmara dos Representantes americana revelou mais tarde que, contrariando a vontade do chefe da delegação da CIA em Roma, o então embaixador americano deu a Miceli oitocentos mil dólares em dinheiro no ano de 1972. O pagamento, feito sem quaisquer condições prévias, tinha sido aprovado pelo Conselheiro para a segurança nacional, Henry Kissinger. Esperava-se que Miceli o usasse para esforços de propaganda anticomunista. Ao invés, o dinheiro desapareceu sem deixar rasto.

A História do dinheiro e do poder no Vaticano

Page 32: Prefácio - Bertrand

42

e desenvolvimento urbano. O Vaticano ocupava quatro lugares na direção. Uma das principais filiais da SGI, a SOGENE (Società Generale per Lavori di Pubblica Utilità), tornara-se o maior construtor público do país. Durante a gestão de Maillardoz, a SGI vencera o concurso para construir o complexo de apartamentos e escritórios Watergate em Washington, D.C., a maior torre de apartamentos de luxo no Canadá e planeou ainda uma cidade de cem mil habitantes em quinhentos hectares nos arredores da Cidade do México.

Um dos primeiros negócios favoritos de nogara foi a Montecatini Edi‑son. Expandiu-se da energia elétrica para o ramo farmacêutico e para a ex-ploração mineira e a sua receita anual atingira quase mil milhões de dóla-res. A Italcementi passara a empregar seis mil e quinhentos trabalhadores, tornando-se a segunda maior produtora europeia de cimento. A SNIA Vis‑cosa produzia setenta por cento dos tecidos para a indústria têxtil em Itália. A Italgas tornou-se o fornecedor de gás exclusivo de trinta e seis cidades italianas, incluindo Roma, Veneza, Florença e Turim. Maillardoz assegurou que os investimentos do Vaticano uniam a Igreja a uma aliança no pós--guerra com os Estados Unidos com a mesma solidez com que, durante a segunda Guerra Mundial, se tinha aliado com Alemanha e Itália. A partir de meados dos anos sessenta, o Vaticano adquiriu ações na IBM, na Gene‑ral Motors, na General Electric, na Shell, na Gulf Oil, na Chase Manhattan, na Procter & Gamble e na Bethlehem Steel, entre outras empresas de topo.

Luigi Mennini, então com o título honorário de Cavalheiro de sua santidade, substituiu Maillardoz. Mennini formalizou a relação de sindo-na com a assinatura de um contrato como consultor financeiro especial da santa sé. Agradou a sindona que os homens que geriam as finanças da Igreja depositassem nele uma fé tão inabalável. Mas partilhava também com alguns confidentes que se sentia um pouco desiludido pela postura liberal de Montini desde que se tornara papa.

Montini convocou o segundo Concílio Vaticano apenas três meses após a sua eleição. Um mês mais tarde, foram aprovadas doze mudanças fundamentais na liturgia, a maior revisão na História da Igreja. A mais no-tável para os católicos leigos era o fim da Missa Latina.10 Os tradicionalistas

10 Foi durante o segundo Concílio Vaticano que a Igreja renunciou finalmente à crença de que todos os judeus partilhavam a culpa histórica pela morte de Jesus. Em Nostra Aetate (no nosso Tempo), a Igreja declarou que «os judeus não deverão ser apresentados como rejeitados ou amaldiçoados por Deus». Renunciou também à sua política velha de séculos que apontava como dever dos católicos a conversão dos judeus.

Os Banqueiros de Deus