Fundação Universidade Federal de Rondônia - UNIR Curso de Agronomia
PRESENÇA - UNIR · 2016. 9. 15. · revista de educaÇÃo, cultura e meio ambiente- març.-n° 11,...
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PRESENÇA REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol I, 1998
UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA – UNIR
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIAUNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIAUNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIAUNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA
C E N T R O D O I M A G I N Á R I O S O C I A L
LABORATÓRIO DE GEOGRAFIA HUMANA E PLANEJAMENTO AMBIENTAL
PRESENÇA PRESENÇA PRESENÇA PRESENÇA ---- ISSN 1413ISSN 1413ISSN 1413ISSN 1413----6902690269026902
Ano V n° 11 – Mar. – 1998 – Publicação Trimestral
Revista de Educação, Cultura e Meio Ambiente
APROVADO PELO CONSEPE/UFRO RESOLUÇÃO N° 0122/1994
Editor:
JOSUÉ COSTA
CONSELHO EDITORIAL:
Sílvio Sanches Gamboa Nídia Nacib Pontuschka
UNICAMP USP
Miguel Nenevé Mário Alberto Cozzuol
UFRO UFRO
Clodomir Santos de Morais Arneide Badeira Cemin
UFRO UFRO
As matérias encaminhadas deverão ter entre três e quinze laudas (tamanho A4), espaço 1.0, fonte arial 12, em disquete 3 ½ pol.,
formatados em “Word for Windows”. Os trabalhos deverão conter a data de elaboração e o endereço completo do autor.
PRESENÇA, Revista de Educação, Cultura e Meio Ambiente. Porto Velho, Fundação Universidade Federal de Rondônia. V.1, 1993.
Trimestral
1. Educação - Periódico 2. Meio ambiente - Periódico
CDU 37(05)
Foto: Beradão, Rondônia - Josué da Costa
Leiaute e Diagramação: Sheila Castro dos Santos
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SUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIO
EDITORIAL..................................................................................................................................04 REFLEXÕES SOBRE GESTÃO AMBIENTAL.....................................................................05 DORISVALDER DIAS NUNES FELISBERTO CAVALHEIRO MITOE LUGAR - PARTE III.....................................................................................................13 JOSUÉ COSTA EDWARD P. THOMPSON: SOBRE O MÉTODO...............................................................20 ELIANE SEBEIKA RAPCHAN RONDÔNIA: COLONIZAÇÃO DE NOVAS TERRAS........................................................28 JOSÉ JANUÁRIO AMARAL A IDEOLOGIA DOS CL ICHÊS................................................................................................32 NAIR GURGEL DO AMARAL UMA CANADENSE APAIXONADA PELO BRASIL: UMA LEITURA DE THE BRAZILIANJOURNALDE P. K. PAGE ..................................................................................38 MIGUEL NENEVÉ REFLEXÕES SOBRE O URBANO..........................................................................................42 CARLOS SANTOS COLONIZAÇÃO E NATUREZA: O TRABALHO DO HOMEM E O TRABALHO DA MULHER.......................................................................................................................................46 ARNEIDE BANDEIRA CEMIN O TRABALHO SILENCIOSO DA MULHER NO INTERIOR DA FLORESTA AMAZÔNICA................................................................................................................................55 MARIA DAS GRAÇAS NASCIMENTO
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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EDITORIALEDITORIALEDITORIALEDITORIAL
A universidade brasileira sobrevive aos trancos e barrancos, debatendo-se entre as diversas pressões e tendências políticas, orçamentos insuficientes, excesso de burocracia e interesse privado. Diante desse quadro o Ministério da Educação é impotente em estabelecer uma polít ica educacional capaz de valorizar a universidade. Sua existência é marcada pela div isão entre diretrizes privatizantes e responsabilidades públicas. Dominado por órgãos centralizadores e cartoriais, o Ministério da Educação acumulou nos últimos anos o descrédito, a inoperância, a ineficiência e total descaso frente ao processo educacional como um todo. Entretanto, a atual polít ica Neoliberal do Príncipe da Sociologia e a nova L.D.B., supera "O Príncipe" de Maquiavel pelo requinte desumano imposto aos professores universitários, tirando-os o sangue à conta-gotas, desmoralizando-os no convívio social e familiar, imprimindo-lhes um arrocho salarial jamais visto na história do Brasil. E como passe de mágica, aumenta os ganhos salariais dos professores com a concessão proporcional de bolsas do Programa de Incentivo à Docência - PID. Isto é uma vergonha! Poderia dizer certo comentarista televisivo, o Príncipe da sociologia dá um xeque-mate em Maquiavel. Com ritual de horror impõe aos professores o estímulo às brigas, às discórdias, aos desentendimentos, aos protecionismos dos departamentos, aos corporativ ismos dos bajuladores e pela divisão dos professores com a barganha dessas bolsas. Parabéns Príncipe! O senhor Professor Doutor Fernando Henrique, cuja tese poderia ser intitu lada de "Acabe agora com a Universidade brasile ira: a começar com os professores", seria concedido dez com louvor pelo outro Príncipe, o de Maquiavel. Qual é o pior? Não se pode afirmar. Pode-se garantir que outros Príncipes virão, mas a Universidade não vai deixar que o ego Neoliberal do Príncipe reine sozinho com a sua morte. A Universidade é liv re, é eterna.
REFLEXÕES SOBRE GESTÃO AMBIENTALREFLEXÕES SOBRE GESTÃO AMBIENTALREFLEXÕES SOBRE GESTÃO AMBIENTALREFLEXÕES SOBRE GESTÃO AMBIENTAL
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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Dorisvalder Dias Nunes* Dorisvalder Dias Nunes* Dorisvalder Dias Nunes* Dorisvalder Dias Nunes*
Felisberto CavalheiroFelisberto CavalheiroFelisberto CavalheiroFelisberto Cavalheiro********
Resumo: Neste trabalho, a questão ambiental pode ser entendida a partir da ruptura entre o modelo de desenvolvimento econômico adotado a partir do século XVIII, e a capacidade de suporte do sistema natural. Estão intimamente ligados aos diferentes modos, comportamentos sociais e sua relação, em escala temporo-espacial, com as características bióticas e abióticas do ambiente físico natural, onde se implementa uma relação de dependência em que o homem, inquestionavelmente, sempre recorreu aos recursos naturais para garantir sua sobrevivência (SILVA; POMPEU, 1990). O homem para perpetuar sua existência, viabilizou o processo de transformação do meio ambiente.
Palavras – Chave: Desenvolvimento econômico, Recursos naturais e Ambiente Físico Natural.
Abstract: In this work, the environmental issue can be understood from the rupture between the economic development model adopted from the 18th century, and the ability to support natural system. Are closely linked to different modes, social behaviors, and their relationship to spatial scale temporo-with biotic and abiotic characteristics of natural physical environment, which implements a relationship of dependency in that man, unquestionably, always relied on natural resources to ensure its survival (SILVA; POMPEY, 1990). The man to perpetuate its very existence, made the process of transformation of environment.
KeyWords: Economic development, natural resources and Natural
physical environment.
Neste trabalho, a questão ambiental
pode ser entendida a partir da ruptura entre o
modelo de desenvolvimento econômico adotado
a partir do século XVIII, e a capacidade de
suporte do sistema natural. Estão intimamente
ligados aos diferentes modos, comportamentos
sociais e sua relação, em escala temporo-
espacial, com as características bióticas e
abióticas do ambiente físico natural, onde se
implementa uma relação de dependência em
que o homem, inquestionavelmente, sempre
recorreu aos recursos naturais para garantir sua
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sobrevivência (SILVA; POMPEU, 1990). O
homem para perpetuar sua existência,
viabilizou o processo de transformação do
meio ambiente. Neste ambiente passam a
existir e coexistir o meio social (na produção do
espaço geográfico) e o meio natural. Assim, ao
se relacionar com a natureza e se inter-
relacionar, o homem possui uma característica
marcante que é a cultura, a partir do qual se
diferencia dos demais seres vivos pelo seu
conjunto de conhecimentos e crenças (universo
mítico). A cultura representa o acúmulo de
experiências, de informações e de técnicas, que
vão orientar o indivíduo homem, na criação de
bens materiais, valores, modos de fazer, de agir,
diferentes hábitos, diversos modos de pensar e
de interagir com a natureza (Tylor apud
BRANCO, 1989). Essa diversidade cultural,
também estabelece a diversidade das
interações na relação homem-natureza.
QUINTAS; OLIVEIRA (1995) sobre este
aspecto, afirmam que "a chave do entendimento
da problemática ambiental está no mundo da
cultura, ou seja, na esfera da totalidade da
vida societária". Esta ênfase sobre a vida
societária constitui umas das componentes
primordiais para o entendimento dos problemas
e conflitos que se desenrolam em tomo do meio
ambiente. Obviamente, esta opção analítica
não exclui e não significa uma importância
em segundo plano dos aspectos fisico-
ambientais sem os quais, seria impossível a
mensuração da capacidade de suporte
ecológico-ambiental; contudo, é bom lembrar,
que são as intervenções e ações do meio social
que indicam e/ou estabelecem a natureza dos
problemas ambientais afetos à sociedade
como um todo. Partindo desse entendimento
é que se coloca a para o debate o uso do
termo Gestão Ambiental, enquanto prática do
pensar e do agir. Para tanto, é importante
trabalhar com alguns conceitos e definições
acerca do que será discutido neste texto sob a
óptica do conceito de Gestão Ambiental, afim de
que se possa desencadear o debate.
O QUE SE ENTENDE POR GESTÃO
AMBIENTAL?
Muitas definições podem ser elencadas, pode-se
iniciar discutindo a procedência do termo
GESTÃO, que vem de seu equivalente inglês
"management", e que se traduz num simples
conceito empresarial, cuja finalidade é o
controle e viabilidade de ações técnico-
administrativas, para o alcance de diferentes
metas. PERALTA (1997: 230) expressa sua
preocupação quanto ao uso do termo, quando
afirma que:
"En América Latina en general, el término "management" se traduce indistintamente como manejo, ordenamiento, administración v gestión. Se considera sin embargo que el equivalente en español) más adecuado del término "management" es GESTION y que Ios términos manejo, ordenamiento y administración son parte de una gestión y no una gestión en si misma".
A partir dessa reflexão, entende o autor
que, o conceito de Gestão Ambiental é:
"el conjunto de diligencias necesarias para la conducción v manejo del sistema (sociofísico complejo) medioambiental; la gestión consistíria, pues en el seguimiento de la realidad para la toma continua de decisiones y la puesta en práctica de
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ellas" (OREA apud PERALTA, OP. CIT). Observa-se de início, que o uso do vocábulo
Gestão perpassa a noção simplificada de
administração ou manejo. Nesta busca de
aprofundamento, NUNES (1996) define Gestão
Ambiental como "um processo pelo qual se
estabelece uma ação político-administrativa
responsável pelo direcionamento de leis e
normas que possam controlar/minimizar ações
deletérias ao meio, de tal forma que se possa
pensar um desenvolvimento social e
ecologicamente sustentado". Isto significa
firmar um processo mediador entre sujeitos
componentes de uma sociedade, para que,
continuamente, se possa definir ou redefinir o
modo como esta mesma sociedade em suas
diversas manifestações, altera o ambiente.
Neste caminho, uma outra definição que se
apresenta, está caracterizada a partir do
entendimento de que a gestão ambiental
constitui um mecanismo capaz de administrar
conflitos entre atores, que na realidade estão
disputando a posse dos recursos naturais
(NUNES, op. cit.). Para MORAES (1994:29) o
entendimento remete a uma definição, onde
"Gestão Ambiental qualifica a ação institucional
do poder público no sentido de objetivar a
Política Nacional de Meio Ambiente". O que se
traduz, segundo o autor, numa atitude prática do
poder público, implementada por um elenco de
atores, caracterizados no âmbito da estrutura
do aparelho estatal, cujo objetivo é a
aplicabilidade das políticas públicas
direcionadas ao meio ambiente do País. SETTI
(1994:02), prosseguindo em sentido similar,
assinala que a "Gestão Ambiental enquanto
ação do Estado, é um processo de mediação de
interesses e conflitos entre diferentes atores
sociais que atuam sobre o meio ambiente...".
Verifica-se que o Poder Público destaca-se
como principal mediador do processo de gestão,
cuja execução é produto dos poderes que lhe são
outorgados, o que lhe faculta, diversos níveis de
ações, tais corno: ordenamento e controle do
uso dos recursos ambientais, criação de
elementos inibidores às práticas de uso
predatório (multas, fiscalização, prisão dos
infratores etc.). Isso significa que o Poder
Público tem condições não só de determinar
padrões de qualidade ambiental, mas
também disciplinar uso do solo (urbano e rural),
planejar, criar e gerenciar áreas de proteção
ambiental, promover monitoramento, educação
ambiental, conferindo-lhe um pseudo caráter
mediador.
Contudo, existem outras formas de
poderes atuantes no processo de gestão
ambiental e que não têm caráter mediador.
Conforme QUINTAS; OLIVEIRA (1995:04)
pode ser assim apresentado: “poder dos
empresários (poder do capital), dos políticos
(poder de legislar); dos juízes (poder de
condenar ou absolver etc.); dos Membros do
Ministério Público (poder de investigar e
acusar); poder dos órgãos ambientais (poder
de embargar, licenciar, multar); dos jornalistas e
professores (poder de influenciar na formação
da "opinião pública"); agências estatais de
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desenvolvimento (poder de financiamento, de
criação de infra-estrutura)" e por que não, o
poder das ONGs (poder de organização da
sociedade). Este elenco de "poderes",
estabelecem uma pluralidade de funções e
atribuições caracterizados por uma rede
hierárquica, agindo e coexistindo
simultaneamente. Segundo MORAES (1994) o
processo de "institucionalização estatal da
Gestão Ambiental" tende a moldar um quadro de
ações caótico, por analogia, comparado ao mito
de Babel. Isto porque os diversos atores
(detentores de poderes) agem no meio social e
ambiental de forma variada criando anseios,
necessidades, expectativas, interesses,
pensamentos e ações que de forma direta ou
indireta, negativa ou positivamente irão
caracterizar as formas de uso dos recursos
naturais. O embate entre esses atores muitas
vezes são marcados por relações conflituosas,
já que a percepção ou necessidade dos mesmos
nem sempre leva em consideração os cortes
espaciais e/ou temporais quando se trata do
conjunto da sociedade participante no processo
de gestão ambiental. O jogo de conflitos é, via
de regra, social, político e econômico, o que
pode ser benéfico para um classe social
poderá ser maléfico para outra, isso implica
dizer que a prática da gestão ambiental não é
neutra, mas caracterizada pelo direcionamento
de interesses, o que aponta para uma análise de
que o Poder Público ao assumir uma postura,
enquanto agente mediador poderá estar
também, determinando quais os atores sociais
a serem beneficiados e aqueles que devem
arcar com os custos sobre ações
antropogênicas no ambiente, o que tende a criar
uma ambiguidade no âmbito do Poder Público. É
importante observar o que LANNA (1995)
procura colocar em termos de Gestão
Ambiental, pois chama a atenção para o seu
propósito, que é a formulação de
diretrizes, princípios, aprimoramento de
sistemas gerenciais e competência no
processo de tomada de decisão, condições
básicas para utilização, proteção e
monitoramento dos recursos ambientais e
principalmente, para atendimento dos anseios
sociais. A partir desta idéia o autor propõe a
seguinte definição para a Gestão Ambiental: Processo de articulação das ações dos diferentes agentes sociais que interagem em um dado espaço, visando garantir com base em princípios e diretrizes previamente acordados/definidos, a adequação dos meios de exploração dos recursos ambientais - naturais econômicos e sócios culturais - às especificidades do meio ambiente.
Uma outra definição que se apresenta, está
publicada no Diário Oficial da União, de 17 de
fevereiro de 1992, que foi encaminhada ao
Congresso Nacional, em forma de anteprojeto
de lei que trata da Consolidação das Leis
Federais do Meio Ambiente, onde a definição de
Gestão Ambiental constitui
(...) a tarefa de administrar e controlar os usos sustentados dos recursos ambientais naturais por instrumentação adequada - regulamentos, normatização e investimentos públicos - assegurando racionalmente o conjunto do desenvolvimento produtivo social, econômico em beneficio do homem (...).
Na perspectiva empresarial a proposta conceitual
de Gestão Ambiental, foi motivada pela inserção
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da variável ambiental na empresa, constituindo
um novo passo no (re) enquadramento
competitivo do mundo empresarial em função
das imposições econômicas da globalização.
Daí a necessidade da implantação de "um
conjunto de procedimentos e técnicas sistêmicas
que visam dotar uma organização dos meios
que permitam definir sua política ambiental",
denominado por CASTRO et. al. (1996) de
Sistema de Gestão Ambiental. O desdobramento
é a criação de uma imagem verde para a
organização empresarial, permitindo-lhe acesso
a novos mercados.
ABSY et al. (1995), ao discutirem os
fundamentos que orientam a prática e a ação da
Gestão Ambiental, firmam em sua análise que a
utilização de instrumentos para a concretização
da gestão ambiental depende do desempenho
das organizações que compõem e atuam no
processo, e que este desempenho estará
dependente da forma como essas organizações
estão estruturadas devendo as mesmas, serem
reestruturadas conforme cada caso ou situação
que indique a necessidade do gerenciamento.
Para os autores o termo de Gestão é, em
síntese, sinônimo de administração e gerência. A
partir daí, foram propostos três modelos de
gestão, no sentido de clarificar as
características de funcionamento e não-
funcionamento de algumas organizações: o
modelo Burocrático, o modelo Sistêmico e o
modelo Sistêmico-contingencial. O modelo
Burocrático tem contra si a burocracia,
enquanto paradigma de estruturação, em face
dos diferentes públicos, além de apresentar uma
visão fragmentada do processo, cujas ações
estão restritas às normas arcaicas.
Conceitos, que inferem novas
metodologias e práticas no trato com os
recursos naturais. Isso se traduz em novo estilo
de desenvolvimento para as sociedades
humanas fruto da crise ambiental, cuja busca de
solução está (ou estaria) sob a óptica do
conceito de Desenvolvimento Sustentável, aqui
entendido como a capacidade do atendimento
das necessidades presentes da sociedade, de
modo a não comprometer a possibilidade das
sociedades futuras atenderem suas
necessidades.
Algumas iniciativas podem ser elencadas
e implementadas pelo Poder Público, no
sentido de viabilizar o planejamento
ambiental ou Gestão Ambiental através da
mediação/superação dos impasses oriundos da
relação entre os diversos atores do meio
social que agem no meio natural. Essas
iniciativas referem-se às ações no campo do
planejamento social, político e ambiental, entre
os quais destacamos (NUNES, 1994):
1) Vencer, através do processo
educativo, a mentalidade leiga de uma
sociedade cada vez mais tecnicista, urbanizada
e consumista, quanto ao uso, conservação do
ambiente e sua importância na garantia de uma
qualidade de v ida melhor. Neste sentido, é
de suma importância o incremento da
alfabetização e o fortalecimento da
educação ambiental nas escolas. A
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educação aqui é entendida como principal
mecanismo capaz de reorientar a sociedade
para o desenvolvimento de hábitos e
fortalecimento valores cultural. A educação
deve ser parte integrante no processo de
Gestão Ambiental, de modo a garantir que os
diversos segmentos sociais possam
efetivamente intervir, no processo da
Gestão Ambiental. No caso de comunidades
tradicionais da Amazônia, o modelo de
educação padrão deve ser adaptativo ao modo
de vida dessas comunidades, compatibilizando o
seu conhecimento com o conhecimento formal.
Neste caso, é importante observar que toda
ação pedagógica deve buscar uma educação
tendo como pressuposto básico de que no seio
da sociedade a harmonia não é uma regra, ao
contrário, é o locus dos conflitos e dos
confrontos que se desdobram em diferentes
níveis: econômico, social, político, cultural,
etc. O indivíduo humano só poderá alcançar
uma visão integralizada tanto do meio
fís ico natural e sua complexidade, como do
meio social, se o mesmo entender que esses
dois sistemas complexos são resultantes da
interação entre fatores físicos, sociais,
biológicos, econômicos e culturais. Só a
informação e o conhecimento de causa, é que
farão as populações marginalizadas e muitas
vezes inseridas no processo de degradação do
ambiente, tomarem atitudes, fruto da
consciência crítica, com aqueles que são os
responsáveis pela má utilização dos recursos
naturais'';
2) Conciliar crescimento industrial e
progresso, com medidas de conservação e
respeito aos recursos naturais, compatíveis com
a noção de desenvolvimento, apresentada em
BRANCO (1988), e que tem como desfecho a
afirmação de que "é tão incongruente uma nação
pretender copiar um modelo de desenvolvimento
estrangeiro quanto desejarmos obter um cavalo a
partir de um embrião de anta...";
3) Entender que pressões sociais
sobre os recursos naturais são fruto de
um modelo econômico discutível, que traça um
quadro de crescimento demográfico nos centros
urbanos caótico, conseqüência do processo de
expropriação de camponeses. A falta desse
entendimento caracterizou e ainda
caracterizam as práticas de assentamentos
de milhares de pessoas sem planejamento
prévio, como as ocorridas na Amazônia
brasileira;
4) Impedir que o egoísmo e
prát icas de obtenção do lucro imediato
de setores mais abastados da sociedade,
comprometam a conservação e uso adequado
dos recursos naturais;
5) Bloquear as ações irregulares do
uso de tecnologia depredatória e sua capacidade
produtiva de gerar riquezas, que termina por
afetar a sociedade que não é beneficiada com
esse tipo de tecnologia. No caso da Amazônia a
riqueza representada pela imensurável reserva
mineralógica está longe de ser traduzida em
benefícios para a sociedade regional;
6) Por último, melhor distribuição da
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riqueza para setores menos abastados da
sociedade, de tal forma que garanta melhores
condições de vida a cada cidadão, dando-lhe
acesso a moradia, emprego, saúde, transporte e
educação.
Essas ações favoreceriam o
planejamento ambiental na medida em
que as necessidades básicas da
sociedade, uma vez atendidas, têm como
conseqüência não só a superação do impasse
oriundo da relação Homem versus Natureza, mas
principalmente na relação Homem versus
Homem. Superadas essas necessidades, é
possível pensar a conservação, como prescreve
a União Internacional para a Conservação da
Natureza e dos Recursos Naturais-IUCN quando
diz que "conservação, como
desenvolvimento, destina-se aos homens..."
(IUCN, 1984:12):
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelas disposições conceituais e
definições, verifica-se a possibilidade de se
agrupar a noção de Gestão Ambiental em três
abordagens básicas: a Técnico-Gerencial,
Dialético-Social e a Empresarial.
Na abordagem técnico-gerencial a gestão
ambiental se alicerça primordialmente nas
informações e respostas que o meio físico pode
apresentar e que, em nosso entendimento,
tem subsidiado as propostas de Gestão
Territorial e do Planejamento Geoambiental. A
Dialético-Social tem como sustentação analítica
os atores sociais, onde conflito de interesses
para a implementação da Gestão Ambiental
constitui a questão nodal, pois as relações entre
atores sociais é que passam a determinar
sob esta segunda visão, a factibilidade da
Gestão Ambiental. Por último, a abordagem
empresarial, onde o entendimento analítico está
diretamente voltado para as relações de
mercado. A sobrevivência da empresa no
mercado passa a ser função de suas atitudes
para com o ambiente, o que permite um
questionamento: até que ponto a preocupação
da empresa com o meio ambiente é produto
de uma nova mentalidade mundial? A resposta
parece óbvia.
Com base nesse quadro, pensar a Gestão
Ambiental é partir para uma abordagem
holística no entendimento das
interdependências entre o meio abiótico e
biótico e das manifestações antrópicas na
modificação do sistema ambiental. Isto significa
que o entendimento da relação entre a
Sociedade e a Natureza, sob a óptica da
Gestão Ambiental transcende um conceito
meramente empresarial, de manejo do meio
físico ou tão somente do universo societário. É
preciso aglutinar esses enfoques (ou
abordagens). Isto posto, não se esgotam as
possibilidades de reflexões aqui aventadas. De
qualquer forma é primordial que se inicie a
discussão, para que se possa aprofundar num
conceito de Gestão Ambiental mais consistente,
a partir das abordagens conceituais aqui
sugeridas que, com certeza, serão produto de
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um nova reflexão.
NOTA:
(1) LIMA (1984) em seu trabalho: "Ecologia Humana: Realidade e pesquisa" discorrem no capítulo VI sobre o papel da educação como um dos mecanismos mais importantes e eficazes para a retomada de uma nova concepção sobre a relação do Homem com a Natureza. Segundo a autora, o conhecimento passaria a "inculcar" novos valores e novos hábitos no trato com o meio ambiente.
BIBLIOGRAFIA:
ABSY, M. L. (coord.) et al. Avaliação de Impacto Ambiental: agentes sociais, procedimentos e ferramentas. Brasília, IBAMA, 1995. BRANCO, S.M. O Meio Ambiente em Debate, 6ª edição, São Paulo, Ed. Moderna (coleção polêmica), 1988. --------------------------Ecossistêmica: uma abordagem integrada dos problemas do meio ambiente. São Paulo, Edgard Blcher LTDA, 1989. BRASIL, Anteprojeto de Lei Da Consolidação Das Leis Federais Do Meio Ambiente. Brasília (DOU-17/02/92), 1992. CASTRO, N. de (coordenador) et. al. A Questão Ambiental: o que todo empresário precisa saber. Brasília, SEBRAE, 1996. IUCN. Estratégia Mundial para a Conservação: A conservação dos recursos vivos para um desenvolvimento sustentado. São Paulo, CESP, 1984. 11 1 v. LANNA, A. E. L Gerenciamento de Bacia Hidrográfica: aspectos conceituais e metodológicos. Brasília, IBAMA, 1995. LIMA, M. J. Ecologia Humana: realidade e pesquisa,
Petrópolis-RJ, Vozes, 1984. MORAES, A.C.R. Meio Ambiente e Ciências Sociais. Ed. Hucitec, São Paulo, 1994. NUNES, D. D. Gestão Ambiental em Rondônia: políticas públicas em unidade de conservação - o caso Cuniã. São Paulo, Dissertação de Mestrado, FFLCH/DG/USP, 1996. --------------Retalhos de uma discussão ambiental. in: Boletim do Laboratório de Geografia Humana, n° 04, ano 1(out./ nov.), Porto Velho - RO, UNIR, 1994. p. 1214 PERALTA, E. Geografia Física e Gestão Ambiental. in: Anais do VII Simpósio Brasileiro de Geografia Física Aplicada/1 Fórum Latino-Americano de Geografia Física Aplicada, Vol. 1, 10 a 15 de out. de 1997, Curitiba-PR/Brasil, Tec Art Limitada, 1997. PP 229-243 QUINTAS, J. S. e OLIVEIRA, M. J. G. A formação do Educador para atuar no processo de Gestão Ambiental. Brasília, IBAMA, 1995. SETTI, A. A. A Necessidade do Uso Sustentável dos Recursos Hídricos. Brasília, IBAMA, 1994 SILVA, J. D. c POMPEU, C. A. Bases Metodológicas para o Tratamento da Questão Ambiental. in: Seminários Universidade e Meio Ambiente: documentos básicos. Brasília, IBAMA, 1990. pp. 109-121.
*Dorisvalder Dias Nunes. Professor do Depart°. de
Geografia da UFRO / Coord. do Lab. de Geografia Humana
e Planej. Ambiental.
**Felisberto carvalho. Professor do Departamento de
Geografia da FFLCH/USP.
MITO E LUGAR MITO E LUGAR MITO E LUGAR MITO E LUGAR ---- PARTE III PARTE III PARTE III PARTE III
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Josué Costa*Josué Costa*Josué Costa*Josué Costa*
Resumo : Apesar das ações que foram realizadas em conjunto por toda a comunidade no sentido de ficarem em Cuniã, eles também vivenciam diferenças internas. Não estão livres das paixões inerentes ao Homem. Um trabalho de pesquisa desenvolvido por acadêmicos do curso de Geografia da Universidade Federal de Rondônia, realizado em 1989 sob o título de "Cuniã: uma Comunidade Ameaçada" teve a oportunidade de realizar um censo e um levantamento minucioso desse grupo, que então apresentava duzentas e vinte e sete pessoas, distribuídas em trinta e três unidades familiares (Cf. levantamento realizado pelo Grupo de Pesquisa Cuniã, sob a forma de Censo, em 1989). Palavras – Chave : Conjunto, Comunidade, Levantamento e Pesquisa. Abstract : Despite the actions that were undertaken jointly by the entire community to stay Cuniã, they also experience internal differences. There are free from passions attaching to man. A research paper developed by academics of geography course da Universidade Federal de Rondônia, held in 1989 under the title "Cuniã: a Community Threatened" had the opportunity to conduct a census and a thorough survey of this group, which then had two hundred and twenty-seven people, distributed in thirty-three family units (cf. survey conducted by Cuniã research group in the form of Census in 1989). KeyWords : Together Community, survey and research.
Caracterizada pela forma rotineira de
ocupação da Amazônia até meados deste
século, os moradores da Reserva de Cuniã
reafirmam suas raízes indígenas, organizam
seu espaço, criam seus signos e significados
e preparam-se para lutar pelo "seu lugar".
A compreensão está nos critérios de
valorização adotados pelo INCRA que leva em
consideração a terra desmatada, o plantio de
lavouras perenes, construções etc. Esses
critérios entram em choque com os valores
assumidos por populações extrativistas que
têm sua sustentação econômica e a própria
sobrevivência assegurada pela manutenção da
mata. Em uma população de pescadores, a
sua manutenção está ligada às águas, à
oferta de alimentos que podem retirar dos
rios e lagos. A área de plantio também está
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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ligada à subsistência do grupo. A
subsistência da população do Cuniã é
marcada pelo extrativismo da mata e das
águas, logo, a SEMA toma-se incapaz de
indenizar por um conjunto de valores que não
fazem parte das regras do jogo da economia
capitalista.
Quanto ao projeto de formação da bacia
leiteira, o Governo abandonou a idéia por ser
muito onerosa; a BR-319 está abandonada
sem condições de tráfego, a reserva não foi
criada e não se cumpriu o acordo firmado com
o POLONOROESTE, só quem pagou (e ainda
paga) o ônus pela falta de planejamento e
desrespeito ao povo, é a comunidade.
As Famílias
Apesar das ações que foram realizadas
em conjunto por toda a comunidade no sentido
de ficarem em Cuniã, eles também vivenciam
diferenças internas. Não estão livres das
paixões inerentes ao Homem. Está claro que
não a identificamos como uma comunidade
harmoniosa, perfeita e sem conflitos sérios
internos. Porém, é importante demonstrarmos
como ela se compõe, como de dividem e quais
são os grupos que politicamente a organiza.
Um trabalho de pesquisa desenvolvido por
acadêmicos do curso de Geografia da
Universidade Federal de Rondônia, realizado
em 1989 sob o título de "Cuniã: uma
Comunidade Ameaçada" teve a oportunidade
de realizar um censo e um levantamento
minucioso desse grupo, que então
apresentava duzentas e vinte e sete
pessoas, distribuídas em trinta e três unidades
familiares (Cf. levantamento realizado pelo
Grupo de Pesquisa Cuniã, sob a forma de
Censo, em 1989). A comunidade de Cuniã é
muito jovem sendo que quase setenta e oito
por cento é composta por pessoas de até vinte
e nove anos.
Com a idade acima de cinqüenta anos
há aproximadamente oito por cento apenas. O
empenho de boa parte da juventude é por
buscar instrução em Porto Velho e retomar ao
Cuniã. Apenas as pessoas do sexo
feminino, de idade até vinte anos
manifestam um declarado desejo de sair para
morar na cidade, seus sonhos sofrem
influências das poucas informações que
recebem pela televisão.
Todos são bem informados sobre o
modo de vida em Porto Velho. Muitas famílias
possuem filhos que residem na cidade, aos
quais fazem visitas periódicas.
As brincadeiras das crianças são
repletas de criatividade e refletem o seu
mundo. Brincam com canoas, apostando
corridas, passeiam e a pesca toma-se também
motivo de competição. É um aperfeiçoamento
de uma atividade que será fundamental em
suas vidas.
A população do Cuniã divide-se em duas
localidades: a do Araçá, que reside à margem
do Igarapé Cuniã e a do grande Lago Cuniã.
No Araçá, residem oito famílias e possuem
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inúmeras características que a diferencia da
comunidade do Lago Cuniã. Primeiramente,
não são pescadores, não participam da
pesca do pirarucu durante a safra. Têm
suas atividades voltadas para o plantio da
mandioca, produção e comercialização da
farinha. Produzem a farinha d'água (A
mandioca é deixada de molho). É comum ser
deixada às margens do igarapé ou dentro de
canoas afundadas, ou mesmo em gamelas
feitas de troncos de árvore. É necessário que a
mandioca vire "puba", ou seja, apodreça.
Então é retirada a casca, passada em prensas
para retirar o excesso de água. Do
apodrecimento da mandioca resulta um líquido
amarelo chamado de tucupi que pode ser
armazenado e vendido na feira que servirá
como base para molhos de pimenta ou no
preparo de pratos como pato no tucupi,
tambaqui no tucupi, tacacá e outros. A massa
é lavada para retirar a goma (polvilho) em
seguida é torrada e resulta em uma farinha de
cor amarelo forte e será grossa ou fina
conforme a opção pelo peneiramento e
também pela habilidade de quem está
mexendo a massa no forno. Se não souber
mexer, cria grãos. A farinha d'água é apreciada
no preparo do chibé (farinha com água) e no
acompanhamento do pirarucu seco e frito
farinha seca (A mandioca é ralada, peneirada
se quiser que seja fina e torrada com a própria
goma (polvilho). A farinha fica com uma
amarelo claro, crocante e muito apreciada na
farofa com peixe para fazer o pirão escaldado)
e a farinha de tapioca (No preparo da farinha
d'água em que é retirada a goma, esta é
deixada em gamelas para decantar. Após
escorrer a água a goma peneirada é torrada.
Forma-se uma farinha branca e caroçuda
ideal para a preparação de mingau, bolo e
pudins). Possuem um nível econômico mais
estável, pois não sofrem com o período da
entressafra em que a pesca é proibida. O
grupo que reside à margem do grande lago
Cuniã possui atividades opostas às do Araçá:
são pescadores (principalmente de Pirarucu) e
coletores de castanha, açaí, copaíba e outros
produtos da mata. Sofrem muito como período
da entressafra da pesca.
A partir dessa divisão, outras
subdivisões irão ocorrer e serão bastante
esclarecedoras para se compreender como se
estabelece o poder em uma micro-escala.
Existem em Cuniã dois grandes grupos
familiares que estruturam as relações de poder
local: por um lado, temos a família Souza-Silva
(o verdadeiro nome das famílias foi omitido
nesse trabalho com o intuito de preservá-
las), católica, com origem de seringueiros,
apresentando forte herança Mura e
exercendo atualmente a atividade da pesca.
São agrupados pela presença matriarcal de
D. Maria que é depositária da história do
grupo. Possui ainda a liderança interna. Por
outro lado, há a família protestante dos
Menezes, que não tem a mesma origem dos
Souza-Silva, tendo uma tradição política maior
com alguns parentes prefeitos, ou vereadores
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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em municípios amazonenses; exercem a
atividade da pesca, porém, a sobrevivência
econômica é mantida por cargos públicos,
comércio varejista e compra do pescado local.
Por essas características, possuem um nível
econômico acima da média. Como os
membros de uma família vão ocupando os
espaços contínuos, os Menezes denominam a
área onde se encontra sua família de "Bom
Jardim". Essa denominação é uma forma de
marcar o seu lugar em relação aos outros
moradores.
Embora as relações de parentesco
envolvam praticamente toda a comunidade
pelas afinidades consanguíneas ou de
compadrio e aparentemente reúna todos em
uma grande família, as diferenciações
mostram-se claras, juntamente com a disputa
interna.
A luta desenvolvida pela ASMOCUN
demonstrou um poder de força que despertou
o interesse pela disputa da direção política
entre as famílias. O primeiro presidente da
Associação foi da família Souza-Silva que
obteve uma reeleição, conseguindo espaço
na imprensa da Capital, entre os órgãos
governamentais e adquirindo equipamentos
para a comunidade tais como uma casa de
farinha de uso comunitário, visita de médicos,
dentistas, equipamento das escolas contrata
para professores, e um barco que servia à
comunidade para transporte de passageiros
e cargas. Os moradores contribuíam na
medida de suas posses, para a manutenção e
compra de combustível. Era uma embarcação
lenta, levando em média doze horas de viagem
de Cuniã a Porto Velho, porém a decisão dos
planos de viagem era comunitária.
Na segunda gestão a presidência da
ASMOCUN é exercida, por um membro da
família Menezes. O confronto político pela
permanência dos moradores, se ocorreu, foi de
uma maneira bem mais suave que nos anos
anteriores. Entretanto, alguns ganhos foram
conseguidos como a implantação de um
posto de saúde com enfermeiro da família
Menezes; a reconstrução da Igreja católica
(que fora destruída pela extinta SEMA), em
um terreno cedido na área de Bom Jardim e a
construção de uma escola próxima à igreja. O
barco que atendia à comunidade pela
Associação ficou em ruínas.
Bom Jardim concentra a oferta de serviços
como saúde, religioso (tanto protestantes
como católicos) além de contar com uma
escola primária e ainda contrata trabalhadores
para realizar a pesca, que é armazenada e
negociada em Porto Velho. Quem não
trabalha para os Menezes, procura atividades
em propriedades na Vila de São Carlos.
A ASMOCUN perdeu a oportunidade de
entrar do debate junto ao IBAMA para a
transformação da área em uma unidade de
conservação que permita a presença da
população, talvez uma reserva extrativista e
aproveitar que o fórum das ONGs
(organizações Não Governamentais) está
realizando um projeto de transformação de
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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várias áreas em unidades de conservação do
tipo RESEX. Entretanto, a Associação não tem
encaminhado nenhum projeto neste sentido.
Os códigos da Terra
Com o processo de indenização
promovido pela SEMA, os moradores de
Cuniã teriam a "liberdade" de escolher um lote
de cem hectares na Gleba Ouro Preto do
Projeto Fundiário Alto Madeira, além de
receberem uma pequena indenização pelas
benfeitorias referentes às suas posses, no
Cuniã. Foi organizada uma expedição para o
reconhecimento da área, e ao retomarem a
Cuniã houve reuniões com relatos
detalhados, somente então os moradores
tomaram a decisão unânime de ficar.
A princípio, os moradores de Cuniã
iriam viver em uma área de maior acesso, o
Governo acenava com apoio de crédito rural,
legalização da terra, estradas, posto de saúde
e escola. Contudo, essa proposta foi rejeitada,
não de uma forma imatura, mas planejada e
analisada.
O que foi medido nessa tomada de
decisão? Teria sido a desconfiança na
palavra do Governo? O que essas pessoas
estavam querendo preservar? Pelo que
percebemos em nossa estadia em campo,
podemos afirmar que a decisão foi baseada
em uma estreita relação que a comunidade
desenvolveu na área do Cuniã, durante sua
convivência no local.
O conflito vai expor para a própria comunidade
que eles tinham uma ligação com aquela área
em uma dimensão que ninguém tinha ainda
mensurado. O grupo se organizou para
mostrar aos outros o quanto eles
necessitavam daquele lugar e esse deles. E
remetendo-se, sempre que possível, à época
dos Mura, reafirmando um elo com o modo
de vida dos índios, reafirmam a
legitimidade de seu conhecimento
tradicional, recorrendo à sua descendência
indígena e à eficácia de sua forma de
produção. Dessa maneira, o grupo de Cuniã
garante a sua antigüidade e aproveita para
expor o seu projeto de preservação do meio
ambiente, mostrando que a herança Mura
fundamentava essa relação. Perceberam que
eram os únicos que realmente conheciam o
Cuniã, possuíam informações que garantiam a
preservação ambiental. As propostas externas,
portanto, não eram compatíveis com os seus
ideais. Essa incompatibilidade era motivada
pela ausência do homem do Cuniã e
perguntavam: "vão preservar tudo isso para
os jacarés, as piranhas, os biguás?"
Entravam assim, em uma reflexão muito
profunda, e passam a compreender que no
momento em que o Governo fala de
preservação ambiental para Cuniã, não está
falando de preservar o meio ambiente para o
homem que ali vive. Neste sentido, para
reafirmar esta linha de raciocínio, algumas
matérias foram publicadas em jornais locais
que esclareceram porque tudo isso estava
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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acontecendo em Cuniã: ... À medida que as grandes
metrópoles do Globo se revestem de cinza e negro do asfalto e do dióxido de carbono, o homem urbano busca ansiosamente o verde (...). Porto Velho, pela sua localização, sempre teve um significado especial para quem quer travar contatos imediatos do 1° grau com a Amazônia (...) assim sendo, poderemos trazer turistas que querem ver de perto tudo o que a grande floresta esconde. Não se satisfazem em contemplar platonicamente a majestade dos rios ou a importância das florestas. Querem ver de perto tudo o que se abriga sob o manto das águas e atrás da cortina da mata virgem, para isso dispõe de muito dinheiro e pouco tempo... (Jornal Alto Madeira 22-23/07/90)
Era, então, a apresentação de um
novo projeto de reserva ao quais os
moradores respondem incisivos: "nós já
fazemos a reserva para proteger o meio
ambiente: o povo daqui é quem faz a
reserva..." No conceito de reserva deles estava
incorporada a experiência herdada de seus
antepassados, o seu modo de vida, o seu
modo de tratar o ambiente e a semelhança
com os Mura.
Ficar em Cuniã era uma forma de
assegurar sua identidade cultural e
demonstrar sua eficácia na proteção do meio
ambiente:
... Muito antes da SUDEPE, nós deixamos de pescar de facho, malhadeira e curumim porque tava diminuindo os peixes, aí veio a SUDEPE e proibiu esse material. Quando tinha invasão de malhadeira, nós nos reuníamos e ia lá conversar primeiro: "companheiro, assim, não tá certo", e se não obedecer, a gente toma outras providência, a gente corta... (pescador do Cuniã, 1993)
Toda a área vai estar repleta das marcas
de sua existência: o nome de cada lago, o
período de procriação das espécies, o acordo
com a Cobra Grande; as suas árvores
possuíam marcas que as distinguiam das
árvores em geral, algumas foram plantadas
pelos seus avós, pelos seus pais; outras
sustentaram a sua família com o seu leite, com
seu vinho, com seus frutos; o pequeno
cemitério guardava seus mortos; o local em que
estava a capela onde todos se reuniam.
...Eu não quero sair daqui não. Só vou sair daqui depois de morta, que me arrastarem por uma perna. Sei não, isso tá com bem cinco a seis anos pra botar nós daqui pra fora. Acabaram com a capela. A santa tá até quebrada aí, pior coisa do mundo... (moradora de Cuniã, 1993)
...Pra mim e pra minha família, esse
lugar tem uma importância muito grande, porque a gente tira a alimentação, a gente tem muita liberdade, não é como em outros lugares que a gente não tem a liberdade que tem aqui (morador do Cuniã, 1993)
... Eu me orgulho desse lugar, eu
me orgulho de ver essa mata tão linda, vendo esses peixes... Orgulho-me da seguinte maneira: aqui não tem carro pra perseguir meus filhos, não tem ladrão, vivo tranqüilo coma milha família, almoço e janto todos os dias. O que meu pai me deixou de herança, foi essa terra e eu amo essa terra... (morador do Cuniã, 1993.
... Eu sou acostumado aqui, a bem dizer, sessenta anos morando aqui eu sinto que aqui, a pescaria daqui não é perigosa como a pescaria do Rio Madeira, arriscando a você a se alagar numa ponta d'água ou um bicho comera pessoa, como acontece mesmo por aí, né? Vi dizer: a cobra comeu fulano, fulano morreu afogado, ninguém soube nem notícia dele, né? E aqui não. Aqui é uma pescaria como o senhor tá sabendo, aqui você atravessa aí numa canoa do tamanho que seja de um metro, um metro e meio e vai embora. Até esse menino, vai e
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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pega seu peixinho, sustenta sua família. A bondade desse lugar é essa, aqui não tem perigo de nada, graças à Deus. (...) eu não quero sair daqui, porque sou filho daqui, e me criei aqui. Tenho meus filhos na fartura. Criei na fartura todo mundo. É só isso... (morador de Cuniã, 1993)
No embate, os moradores lembraram
que construíram algo que. não poderiam deixar
de lado, ou seja, as suas próprias vidas, suas
existências e por isso lutariam e lutaram até
as últimas consequências. As diferenças
internas não foram fortes o suficiente para
impedir a construção de um projeto em
comum: permanecer na área, lutar pelos seus
códigos, lutar pela vida.
“Mito e Lugar” é o trabalho que
apresentamos para a obtenção do título
de Mestre em Ciências pela Universidade
de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr.
José William Vesetini, defendido em 1994.
As primeiras partes foram publicadas na
Revista Presença n° ' 09 e 10 e continuarão
nos números seguintes.
*Josué Costa. Professor do Departamento
de Geografia/UFRO, Pesquisador-
Associado do Laboratório de Geografia
Humana e Planejamento Ambiental,
Doutorando em Geografia Humana pela
Universidade de São Paulo.
EDWARD P. THOMPSON: SOBRE O EDWARD P. THOMPSON: SOBRE O EDWARD P. THOMPSON: SOBRE O EDWARD P. THOMPSON: SOBRE O MÉTODOMÉTODOMÉTODOMÉTODO
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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Eliane Sebeika Rapchan*Eliane Sebeika Rapchan*Eliane Sebeika Rapchan*Eliane Sebeika Rapchan*
Resumo : Edward THOMPSON irá construir na Formação da Classe Operária Inglesa. Seu projeto intelectual, que permite um diálogo não apenas com os historiadores, pode servir de instrumental teórico-metodológico para outros pesquisadores. O autor faz grande contribuição quando explicita sua perspectiva de análise que é a de lidar com todo universo em questão, passível de ser abarcado quando se trata de refazer o percurso de determinado grupo social. Mais do que isso, contribui quando aponta e demonstra o trajeto percorrido para concretizar seu intento.
Palavras – Chave : Analise, Dialogo,Contribuição, Intelectual e Universo.
Abstract : Edward THOMPSON will build on the formation of the working-class in England. His intellectual project, which allows a dialogue not only with historians, can serve as a theoretical-methodological instrumental to other researchers. The author makes great contribution when explaining your prospect analysis that is to deal with the whole universe concerned, liable to be covered when it comes to retrace the path of a particular social group. More than that, it helps when points and demonstrates the path travelled to concretize your intent.
KeyWords : Analysis, Dialogue, Intellectual Contribution, and Universe.
A realidade objetivamente dada é capaz
de falar por si só, comunicando-se através de
dados e, neste caso, o papel do pesquisador
seria apenas o de recolhê-los. Parece fácil
refutar este argumento, visto que, sem nos
determos em longa e apurada análise
poderemos identificá-lo como pertencente a
um positivismo aberrante.
No entanto, feita a crítica, fica a
pergunta: O que pretendemos enquanto
cientistas humanos? Quais são as nossas
questões e quais as respostas que buscamos?
A intenção deste ensaio é a de fazer
uma leitura de dois trabalhos de Edward P.
THOMPSON: A Formação da Classe
Operária Inglesa e Senhores e Caçadores
procurando destacar-lhes uma peculiaridade -
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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o método - ponto axiomático no qual podemos
refletir sua contribuição para esta
problemática que as ciências humanas e
sociais têm colocado. Tampouco emerge
apenas a partir dos próprios elementos que se
combinam numa dinâmica interna própria. Não
fosse a ação dos próprios grupos de
trabalhadores, eles mesmos jamais se
constituiriam numa classe apenas pelo fato
de terem sido gradativa e definitivamente
expropriados de seus meios de produção e,
portanto, de reprodução, enquanto artesãos
que foram. Seria apenas um grupo de
trabalhadores expropriados. Contudo, e
contraditoriamente, não fosse o processo de
industrialização, os movimentos políticos,
religiosos e intelectuais e a própria
expropriação que rondava a Europa, e mais
especificamente a Inglaterra nesse período,
jamais teria se formado uma classe com
características da classe trabalhadora inglesa.
Esta é a base da análise que Edward
THOMPSON irá construir na Formação da
Classe Operária Inglesa. Seu projeto
intelectual, que permite um diálogo não apenas
com os historiadores, pode servir de
instrumental teórico-metodológico para outros
pesquisadores. O autor faz grande
contribuição quando explicita sua perspectiva
de análise que é a de lidar com todo universo
em questão, passível de ser abarcado quando
se trata de refazer o percurso de determinado
grupo social. Mais do que isso, contribui
quando aponta e demonstra o trajeto
percorrido para concretizar seu intento.
Na verdade, concretamente, a
metodologia e a perspectiva de análise
fundem-se numa só: a preocupação em fazer
um trabalho onde seja possível um debate com
outros autores que versam sobre o mesmo
assunto tanto contemporâneos quanto
antecessores; bem como a introdução de
dados e documentos desconhecidos, ou não,
convenientemente analisados; além de uma
reflexão e um diálogo com todo esse
arcabouço obtido e articulado.
Além disso, vale chamar a atenção para o
movimento do texto: o autor vai da análise do
grupo internamente à Inglaterra e, às vezes, ao
contexto mundial por um lado; e por outro,
atravessa várias temáticas e perspectivas
de análise como as várias categorias e
grupos sociais recortados sob prismas
diversos como, por exemplo, as várias
categorias profissionais ou religiões e
associações de trabalhadores mostrando a
interconexão entre elas.
No entanto, devido ao seu rigor, o autor
em nenhum momento se propõe a estabelecer
generalizações - estuda o seu caso em
profundidade - e, através de todas relações
que pode estabelecer, demonstra como
tentativa de fazer um estudo de embarque a
rede de interconexões possíveis dentro de
um universo, pode levar a resultados
interessantes e satisfatórios. Cumpre
ressaltar que, apesar de rejeitar explicações
gerais e, portanto, simplificadora muitas vezes,
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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THOMPSON não pensa o seu problema
como isolado, mas integrado, integrante e
dinâmico dentro de um contexto mais geral.
Quando leva em conta todo o universo
que cerca o grupo em questão, THOMPSON
injeta em seu trabalho a noção de que nenhum
grupo é impermeável, homogêneo, puro. Ao
mesmo tempo, ele mostra que este grupo,
enquanto tal, só pode constituir-se na medida
em que SE FAZ, FORJA-SE, torna-se
SUJEITO.
Em Senhores e Caçadores,
THOMPSON ao fazer um trabalho de
abordagem histórica, o faz através da
construção de uma etnografia que está referida
às florestas das cercanias de Londres
(Windsor e Hampshire), à sua lógica
espacial e social, nas primeiras décadas do
século XVIII. Chama-se aqui de lógica espacial
à distribuição de terras e seus usos, bem como
a utilização e os interesses que a cercavam.
Este trabalho, que une história e
antropologia, servirá para uma reflexão
acerca do direito e dos aspectos jurídicos
da sociedade que entram em jogo numa
teia de interesses econômicos, status e
privilégios de grupos. Ele consegue, assim,
apresentar uma reflexão sobre a efetivação
da propriedade privada no campo inglês não
apenas pela tradicional lógica de "enclo sure",
mas também através de outros mecanismos
que são tratados no decorrer do texto.
A carência de documentos históricos
levou o autor, neste livro, a buscar outras
referências e fontes documentais (como a
reconstituição da administração das florestas
em 1723) fato que, aliado ao método de
THOMPSON permitiu a reconstrução de
dimensões fundamentais da sociedade
inglesa e que nos permitem, hoje, a reflexão
acerca de outros casos. O autor admite a
impossibilidade da neutralidade do cientista,
mas não perde de vista a perspectiva que
suas fontes lhe apresentavam nem a
continuidade da produção dos documentos
históricos: "Visto que parti da experiência de
humildes moradores das florestas e segui,
através de evidências contemporâneas
superficiais, as linhas que os legavam ao
poder (...)" (p. 17)
Ele ressalta a noção de história enquanto
"reconstrução" recuperando não apenas algo
que foi do conhecimento das pessoas que
viveram na experiência, mas também aquilo
que lhes era explicitamente desconhecido.
Para que isso seja possível,
THOMPSON procurará tanto em Senhores e
Caçadores quanto n'A Formação da Classe
Operária Inglesa mostrar os caminhos e
descaminhos da classe operária e do circuito
criado em torno dos Negros de Waltham a
partir das informações obtidas de seus
elementos mais comuns e menos notórios
dado-lhes iguais status que receberam as
informações de um grande líder do
movimento ou de nobreza local. Não há
informações privilegiadas por essa
classificação, nem informantes
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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hierarquizados. Levar em conta essa
característica do trabalho é fundamental na
medida em que se considera o papel capital de
cada indivíduo na constituição de um sujeito
social ou de um movimento que SE FAZ.
Ainda na tentativa de mapeamento do
trabalho de THOMPSON, cumpre detectar-lhe
um aspecto fundamental: é a pergunta que
este pesquisador dirige à massa informe de
documentos que lhe vêm às mãos que dará o
tom, a lógica de ordenação e a possibilidade
de interpretação do material obtido. Ou
seja, as perguntas: Como se deu a formação
da classe operária na Inglaterra? Qual sua
constituição? Qual a sua identidade? O que
significou a Lei Negra no contexto da Inglaterra
de início do século XVIII? Qual a sua relação
com a propriedade privada? Em que contexto
surge e a que demandas vêm atender uma lei?
Estas não são perguntas inocentes,
mas são questões formuladas com o intuito
de permitir a abordagem da problemática com
a maior abrangência possível, por isso o
trabalho salta da dificuldade de sua
dispersão para o mérito de uma pesquisa
que se desenvolve na pluralidade.
No caso d'A Formação da Classe
Operária Inglesa, essa, ao admitir que uma
classe não é homogênea internamente, ao
contrário do que muitos discursos políticos
destinados à "classe trabalhadora" ou referidos
à "classe trabalhadora" insistem em afirmar,
baseados numa superficialidade que
qualquer observação primária desmontaria,
o autor esclarece uma série de pontos
erroneamente empregados. Se a classe
trabalhadora não é absolutamente homogênea
quando tomamos as diferentes categorias
profissionais que a formam, tanto no que diz
respeito à sua história, suas adesões políticas,
à sua organização interna e seu status junto a
outras categorias de trabalhadores, o que a
torna uma classe?
Se a classe operária constitui-se num
determinado momento histórico, não sendo
construída apenas a partir das injunções
políticas externas a ela, mas também, e
principalmente, a partir dela própria, onde
estará a sua identidade?
Há, sob um aspecto, uma "identidade de
interesses" que culmina no período 1830-34,
atingindo um grau nunca antes alcançado. Daí
pode-se abstrair que o grau de intensidade da
"identidade de interesses" não é constante
nem homogênea, mas gradativa e se acentua
ou atenua de acordo com as solicitações
internas e/ou externas definidas. Admite-se,
então, que a identidade não se forja e a partir
deste momento mostra-se pronta e imutável;
mas molda-se, altera-se e redimensiona sua
coesão.
No período referido, a "identidade de
interesses" promove organização via
sindicalismo, institucionalizando suas
bandeiras e reivindicações.
Noutro aspecto, a "identidade de
interesses" se estabelece a partir da classe
trabalhadora com relação às outras classes.
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Atualmente, o debate em torno da
elaboração da identidade inclui o argumento de
que um grupo só se define na medida em que
se faz necessário marcar posição e
diferença com relação a outros. Uma classe
se define também em referência a outras
e é desse argumento que THOMPSON
parte.
Na medida em se constituem como
classe, em oposição a outras classes, os
trabalhadores se posicionam não somente e
imediatamente como expropriados dos meios
de produção frente aos industriais, à
aristocracia rural e à classe média, em termos
materiais e objetivos, mas também em
termos ideológicos, de projetos de futuro, de
necessidades, de consumo, de sobrevivência,
de formação, de educação, de reivindicação,
de propostas políticas. Todos estes fatores
vinculados à sua sobrevivência enquanto
classe.
Pode-se falar, então, a partir desse
momento, do surgimento de uma "cultura
operária" que emerge do movimento da classe
em seu FAZER-SE. Pode-se chamar de
"cultura operária" a este conjunto de valores
que são passados, compartilhados e
produzidos por um grupo que se reflete em
todas as condições de sua existência, dos
setores mais produtivos e materiais à ideologia
e à religião.
Apesar de a identidade ser nascida
dentro da própria classe, pode-se perceber
que, de acordo com interesses de cunho
econômico, político, ideológico ou outros
ocorre à identificação de uma classe social
com outra. Essa dinâmica pode ser
observada de modo que a identificação
pode tanto partir de uma das classes
envolvidas com relação à outra como pode,
também, nascer de um terceiro sujeito que
estabelece as relações segundo outros
interesses. Da mesma forma como
THOMPSON recolheu documentos que
assinalam um determinado debate ocorrido na
Inglaterra, que pretendia associar a classe
média à classe operária porque, no fundo
são todos trabalhadores (Tomo 3, p. 417);
temos, por outro lado, no Brasil, em 1989, o
voto de uma parcela significativa da população
constituída de um contingente de miséria
absoluta dirigindo e elegendo um
representante das elites oligárquicas
nordestinas, entre outras coisas. Esses votos,
dessa população estavam carregados de um
desejo de ser e pertencer à classe à qual este
homem pertence, em oposição ao outro
candidato que possui uma trajetória muito
parecida com a de milhares de brasileiros,
trabalhadores, migrantes...
Por outro lado, essa classe que se constitui,
não necessita única e exclusivamente, de
seus líderes para existir. THOMPSON
mostra como a emergência de uma classe
não se dá apenas a partir de líderes
iluminados que conclamam e organizam; mas
a partir de necessidades que são intrínsecas
ao próprio grupo.
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Isso não quer dizer que se dispense
a presença de líderes, mas sua importância
não ocorre ao nível de onipotência,
onipresença e onisciência. Em contrapartida,
também não quer dizer que não haja, por
parte desse líder e de outros, externos ao
grupo e que pretendem se fizer líderes, uma
disputa pelo poder e um desejo de controle das
ações da classe, muitas vezes bem sucedido.
O surgimento dessa
"autoconsciência coletiva" se deu no correr
de gerações, dentro de uma dinâmica social
de uma população que sofreu a destruição de
seu modo de vida tradicional seja o artesão
urbano, seja o camponês. Ainda dentro dessa
dinâmica social vimos surgir uma "cultura do
artesão e do autodidata". A diversidade de
especialidades dentro da classe operária
gerando inventores, jornalistas, teóricos,
políticos, etc.
Assim, um grupo social, enquanto
classe pode acabar gerando indivíduos que
sairão dele para integrar outros grupos sociais.
Essa comunicação com outros
grupos sociais se estende para outras
instituições e para outros espaços de convívio
social: a escola, as lojas, as capelas, os
lugares de lazer tornam-se palcos da luta de
classes que extrapolem o convívio da fábrica e
vão para a dimensão total do convívio social e
da cultura.
Na abordagem referente a Senhores e
Caçadores, THOMPSON demonstra como, no
século XVIII, o Estado inglês que apoiava a
preservação da propriedade privada assiste a
Lei Negra ter aprovação majoritária pela
Câmara. Os negros cometiam crimes contra a
propriedade particular.
Como se justifica uma lei de pena
capital unanimemente aprovada?
Um dos motivos é o uso que a nobreza
britânica fazia dessas florestas. Este era um
dos seus espaços de lazer. No entanto, elas
eram ocupadas por uma população constituída
por nobres, camponeses, posseiros, agentes
burocráticos, etc., portanto, não homogênea.
Assim como também não eram homogêneos
seus terrenos no que diz respeito à flora,
fauna ou qualidade da terra. A floresta se
caracterizava muito mais como uma
designação jurídico-administrativa do que
uma organização econômica unitária.
Essa organização econômica era
complexa e específica: havia
reivindicações pelos gamos e veados e outras
caças menores por parte de fidalgos e
camponeses, além da demanda por madeira,
carvão e transporte.
No entanto, a caça, principalmente de
cervos e veados, tornou-se escassa e passou
a ser expressamente proibida aos camponeses
e destinada apenas à nobreza.
Para esta, esses animais esquivos
e de hábitos difíceis significavam sua
representação simbólica e seus "status". No
limite, as proibições à caça de cervos, se
estenderam inclusive, para além dos portões
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da floresta. "Tudo se subordinava à economia
dos cervos." (p.35)
Os cervos poderiam ser criados nos
parques reais, mais isso não ocorria. As
ações movidas pelos interesses pessoais
dos funcionários das florestas, como
também o direito de caça aos cervos, recaíam
em abuso de direitos, pois a caça, por
exemplo, significava para os camponeses um
complemento importante na sua dieta. Havia
também uma grande valorização dos lagos
piscosos que, ao serem construídos
eliminavam os direitos de pastoreio e de
extração de torrões de turfa dos plebeus.
Estes dois elementos: os cervos e os
lagos piscosos se tornaram alvo dos ataques
dos Negros e essa ação tornou-se crime
inafiançável.
No entanto, os Negros não deixaram
nenhum manifesto nada escrito. Suas marcas
estavam nas suas ações.
É importante destacar também que todo
este movimento ocorreu no período da
"Restauração" da monarquia na Inglaterra,
após Cromwell que já estava submetida ao
Parlamento, mas que se empenhava no
sentido de re-adquirir privilégios e status.
Referidos a este fato, poderemos refletir
sobre o surgimento de uma lei de pena de
morte para punir crimes como a caça ilegal e os
disfarces, que existiam desde a antiguidade,
somente neste período. Mais do que isso, é
preciso levar em conta que o código penal
inglês já possuía leis que puniam crimes
ligados ao roubo de cervos que eram punidos
com multas ou degredo.
O valor das multas contra caça tinha
repercussões diferentes entre pobres e ricos.
E, muitas vezes, os empregados eram
processados em nome de seu senhor. Além
do que, havia entre leis e juízes possibilidades
de subornos e de interesses
diferenciadamente defendidos.
THOMPSON consegue apreender,
fornecendo-nos este quadro, não a
institucionalização da lei, seus códigos ou a
demarcação da propriedade privada, mas o
conflito entre homens reais, o conflito social na
sua expressão interior e rural com relação à
sociedade inglesa mais ampla. Conflito esse,
vinculado e referido às transformações que
esta sociedade mais ampla estava sofrendo.
Não eram propriamente os ataques
predatórios às florestas que estavam sendo
punidos, já que também homens ricos e
poderosos os praticavam. Eram "alguns" que
deveriam ser punidos, que agiam nas florestas
de maneira que não lhes era permitida,
reivindicando seu direito de uso.
É assim, a partir destes dois significativos
trabalhos que podemos avaliar a contribuição
de Edward P. Thompson. Atualmente, ele nos
é de grande valia. Talvez não só para
analisarmos o surgimento de uma classe
como um todo apenas, mas também para
refletirmos acerca do surgimento dos inúmeros
sujeitos sociais nos quais, às vezes,
colocamos tantas esperanças e aos quais
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buscamos tão ardentemente compreender.
BIBLIOGRAFIA:
THOMPSON, E.P. A Formação da Classe Operária Inglesa, Tomo 1,2,3. Rio de Janeiro, Paz c Terra, 2ª Ed., 1988. Senhores e Caçadores, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
*Eliane Sebeika Rapchan. Antropóloga, Mestra em antropologia pela Universidade de São Paulo.
RONDÔNIA: COLONIZAÇÃO DE NOVAS RONDÔNIA: COLONIZAÇÃO DE NOVAS RONDÔNIA: COLONIZAÇÃO DE NOVAS RONDÔNIA: COLONIZAÇÃO DE NOVAS TERRASTERRASTERRASTERRAS
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José Januário Amaral*José Januário Amaral*José Januário Amaral*José Januário Amaral*
Resumo : O campo brasileiro torna-se cenário de reivindicação e luta pela terra de pequenos agricultores que não tinham acesso, ou haviam perdido suas terras para as empresas rurais capitalistas. Procurando administrar as tensões sociais decorrentes desse quadro, o governo se alia aos latifundiários, executando a política de colonização de novas terras. Promovendo o êxodo ou uma remoção massiva para a região amazônica. A saída que o Estado brasileiro tem proposto e executado para "solucionar" a questão da terra nas regiões extra amazônicas é sempre a colonização agrícola que remonta ao início do século XIX. Aqui discutir-se-á o processo de colonização nos últimos vinte anos na "fronteira" amazônica.
Palavras – Chave : Agricultores, Colonização agrícola , Êxodo e Latifundiários.
Abstract : The Brazilian field becomes scenario of claim and the struggle for land of small farmers who did not have access, or had lost their lands to capitalist businesses. Looking for administering social tensions resulting from this framework, the Government if alia to landowners, performing the policy of colonization of new land. Promoting the massive exodus or a removal for the Amazon region. The output that the Brazilian State has proposed and implemented to "solve" the problem of land in the Amazon regions extra is always the agricultural settlement dating back to the early 19th century. Here discuss the process of colonization in the last twenty years in the Amazon "frontier".
KeyWords : Farmers, agricultural Colonization, Exodus and Landowners.
A saída que o Estado brasileiro tem proposto e
executado para "solucionar" a questão da terra
nas regiões extra amazônicas é sempre a
colonização agrícola que remonta ao início do
século XIX. Aqui discutir-se-á o processo de
colonização nos últimos vinte anos na
"fronteira" amazônica. Entende-se que a
colonização tem sido a forma institucional de
expansão do capitalismo na Amazônia.
Conforme MARIN (s/d), "a fronteira faz parte de
uma totalidade social que a transcende; ela é a
franja de um sistema em expansão e, portanto,
não pode, em hipótese nenhuma, ser
entendida dissociada dele".
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Desta maneira, o que está ocorrendo hoje nos
projetos de colonização da Amazônia Oriental,
privados e oficiais, tem uma relação íntima com
questões relativas a luta pela terra que
camponeses enfrentam em outras regiões do
País. Para TAVARES DOS SANTOS (1989),
"houve, no Brasil Meridional, durante os anos 70,
um largo processo de expulsão de certas camadas de campesinato, tanto por causa da concentração
da estrutura fundiária quanto das condições econômicas sobre as pequenas propriedades
rurais". Isto está relacionado de certa forma a intensiva modernização da agricultura nas
regiões Centro-Sul do País, modificando as
relações sociais no campo. O camponês expropriado de seu "sítio" passava a engrossar os
contingentes das sem-terras e a reivindicar junto ao
poder pública a “terra de trabalho”, pois se
recusava a tornar simplesmente um assalariado ou ir morar nas cidades. Ele até ia ser trabalhador temporário, pois na medida em que pudesse voltar a
terra o fazia.
O campo brasileiro torna-se
cenário de reivindicação e luta pela terra de
pequenos agricultores que não tinham acesso,
ou haviam perdido suas terras para as
empresas rurais capitalistas. Procurando
administrar as tensões sociais decorrentes
desse quadro, o governo se alia aos
latifundiários, executando a política de
colonização de novas terras. Promovendo o
êxodo ou uma remoção massiva para a região
amazônica. Criando vários projetos de
colonização agrícola, principalmente, nos
estados do Pará, Mato Grosso e Rondônia.
Assim, em virtude desse quadro TAVARES
DOS SANTOS (op.cit.), considera que a
"possibilidade do povoamento de novas terras
sempre foi uma das determinações específicas
do desenvolvimento capitalista na sociedade
brasileira". Continua afirmando que nos últimos
20 anos, "...desencadeou-se uma política de
colonização para transferir as populações
consideradas excedentes para as novas terras,
para o que foi instalado um aparelho
ideológico da colonização capaz de
difundir uma mensagem favorável dos
programas". O excedente de população
transferido para Rondônia no período de
1970 a 1980 chegou a dimensões gigantescas.
No início da década havia 113.000 habitantes,
no ano de 1980, a população já
ultrapassava os 492.000 habitantes
conforme revela a tabela a seguir:
TABELA 1-RONDÔNIA: EVOLUÇÀO
D
A
P
O
PULAÇÃO DE 1950/1980
Fonte: IBGE, Anuário Estatístico.
Assim, com a chegada massiva de
migrantes em Rondônia, as contradições
internas no Estado se intensificam. O
povoamento que anteriormente, obedecia a
três eixos de penetração: inicialmente, ao longo
dos rios e igarapés onde se estabeleceu a
chamada "civilização do igarapé" ou a
"população ribeirinha"; num segundo
momento, nas áreas marginais à Estrada de
ANO POPULAÇÃO 1950 37.173
1960 70.783
1970 113.650
1980 492.810
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Ferro Madeira Mamoré-EFMM, que ligava
Porto Velho a Guajará-Mirim, encontravam-
se as Vilas de Jaci - Paraná, Abunã, Vila
Murtinho e outros vilarejos; e terceiro pelo sul
do Estado através da picada empreendida por
Rondon, objetivando a implantação de postos
telegráficos, houve o surgimento de algumas
vilas a exemplo de Vilhena e Pimenta Bueno.
A partir do final da década de 60 a
recuperação de Rondônia será fortemente
influenciada pela BR-364, que liga Cuiabá -
Porto Velho. É ao longo dessa via de acesso
que foram implantados os projetos de
colonização, conflitivamente, pois com a
estrada foi também o colono, o sem terra,
grileiro, o fazendeiro a empresa rural, empresa
multinacional. Surge o cercamento das
terras que anteriormente era livremente
habitada por índios e ribeirinhos. A cada
"verão" essas populações eram privadas de
suas terras cada vez mais, até a sua
expropriação. Através dessas práticas, a
colonização constituiu-se em uma tentativa de
controle do território e dos homens,
possibilitando a formação de mão-de-obra para
as grandes empresas agropecuárias e
mineradoras que na Amazônia vieram a se
instalar, ao mesmo tempo em que preservava o
latifúndio no restante do País. Nos últimos
cinco anos, nota-se uma diminuição das
atividades do INCRA nos projetos de
colonização, havendo uma redução no grau de
ingerência nos mesmos além dos próprios
colonos em sindicatos, associações de ajuda
mútua no interior dos projetos. Ressalta-se
que apesar do INCRA ter diminuído o seu
controle, outros órgãos de âmbito estadual se
fazem presentes como o Instituto de Terras de
Rondônia - ITERON, e a Secretaria de Estado
da Agricultura - SEAGRI.
O discurso ideológico do Estado
apresentava uma área como sendo
"desabitada", "terras sem homens...", "vazio
demográfico", o que contribui no sentido de
legitimar a colonização em novas terras (novas
para o capital), e ao mesmo tempo a própria
colonização foi um mecanismo de controle do
território, já que o aparelho estatal agora de
fato se fazia mais presente no espaço
amazônico. Assim, ao se dar a expansão das
relações do modo de produção capitalista
constata-se que a Amazônia não era tão
"vazia" quanto demonstrava o discurso oficial.
Além dos territórios indígenas, outro grupo
expropriado é constituído pelos posseiros.
Segundo TAVARES DOS SANTOS (1989),
"em todas as situações as agências de
colonização emitiram um discurso que não
apenas fazia desaparecer tais grupos, como
os menosprezava, no limite, os
estigmatizava". Não foi só no discurso que
estas populações tendiam a desaparecer, mas
na prática o INCRA, a serviço das empresas
rurais fraudava processos omitindo a presença
na área de interesse dos empreendimentos
privados, de índios e posseiros. Pois pela
legislação não poderiam estas terras ser
apropriadas por outrem se houvesse a
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presença de tais grupos é o caso dos índios
Urueu Wau Wau, que têm perdido suas terras
para fazendeiros do PAD Burareiro, onde
encontramos um total de 104 propriedades
deste projeto na área indígena. Conforme
CARDOSO (1989), "em 7.11.79, o delegado
da 8ª Delegacia Regional da FUNAI envia um
oficio ao governador do Território de Rondônia
confirmando que o PAD Burareiro incide
na área interditada pela FUNAI, Entretanto,
no dia 15.05.80, foi emitido um telex pelo
INCRA/CETR/G ao executor do PAD
Burareiro com o seguinte texto: Comunico
que todos os parceleiros das linhas CO, C 10
e C15, estão liberados para reiniciarem suas
atividades agrícolas". Os índios, os posseiros,
são excluídos da terra, eles são
estigmatizados por um processo que procura
extinguí-los. Relegando-os também além
exclusão da terra, à exclusão social. Por
conseguinte, faz-se necessário levantar
reflexões sobre a condição de vida dos
colonos que na Amazônia foram em busca da
"terra de trabalho". Hoje ele é uma realidade e
como tal apresenta contradições que seus
planejadores previram. É o caso do
ressurgimento da luta política no seio dos
projetos de colonização.
Ademais, o espaço da colonização
apresenta-se com forte conteúdo
ideológico. De sua contradição renasce a
luta dos camponeses pela "terra de
trabalho", fato não previsto nos programas
de colonização. Hoje existe a figura do
colono que retomou da Amazônia, dos
projetos de colonização para engrossar a
luta pela terra em sua região de origem. Os
retornados reivindicam terra em suas
próprias regiões, excluindo a possibilidade
de colonização em novas terras. Isto
representa um revigoramento e um novo
rumo da luta pela terra.
BIBLIOGRAFIA
CARDOSO, M.L. Parecer Antropológico sobre os limites territoriais da área indígena Urueu Wau Wau. s.l., mimeo, 1989. MARIN, R. Colonização e Fronteira: articulação no nível econômico e no nível ideológico. Belém. NAEA, s/d. TAVARES DOS SANTOS, J.V. O Processo de Colonização Agrícola no Brasil Contemporâneo. in Sociedade e Estado, Brasília, v. 2, UNB 1989
•••• Jose Januário Amaral. Prof. do Depto da
UFRO, Pesquisador-Associado do
LABOGEOH- PA, doutorando em Geografia
Humana pela USP.
IDEOLOGIA DOS CLICHÊIDEOLOGIA DOS CLICHÊIDEOLOGIA DOS CLICHÊIDEOLOGIA DOS CLICHÊSSSS
Nair Gurgel do Amaral*Nair Gurgel do Amaral*Nair Gurgel do Amaral*Nair Gurgel do Amaral*
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Resumo : Guardadas as devidas proporções, somos obrigados a concordar com Schneider, autor de Ladrão de Palavras, obra que trata especificamente de plágios literários, nas suas diversas nuances, sejam eles considerados clichês, frases-feitas, lugar comum ou qualquer outra denominação que se queira dar. O termo ideologia é bastante utilizado, porém seu sentido é marcado por uma carga afetiva muito grande, o que dificulta, de certa forma, a possibilidade de dar-lhe uma definição neutra. A questão, aliás, parece ser a da "polifonia" do próprio termo. Costuma-se, empregar o termo ideologia em sentidos diferentes. Palavras – Chave : Ideologia, Definições, Literário e Palavras. Abstract : Saved, we are obliged to agree with Schneider, author of Thief of Words, work that specifically addresses of literary Plagiarisms, in its various nuances, are they considered cliches, phrases, commonplace or any other denomination to. The term is widely used ideology, but its meaning is marked by an affective load very large, which complicates somewhat the possibility of giving you a neutral setting. The question, indeed, seems to be the "polyphony" from the term itself. Typically, employ the term ideology in different directions. KeyWords : Ideology, definitions, literary and Words.
"Sob um certo aspecto, a história da literatura é a história das repetições, do já-
escrito".(Michel Schneider)
Guardadas as devidas proporções,
somos obrigados a concordar com
Schneider, autor de Ladrão de Palavras, obra
que trata especificamente de plágios literários,
nas suas diversas nuances, sejam eles
considerados clichês, frases-feitas, lugar
comum ou qualquer outra denominação que se
queira dar.
A criatividade, palavra tão polemizada
nos meios lingüísticos, sofre críticas do
próprio Schneider, quando afirma que "a ilusão
de quem escreve não consiste em dizer a si
mesmo que se é o primeiro a quem isso
acontece, esse sofrimento, essa calma, esse
êxtase, essa insuportável fragrância de amor,
que se é o único a poder falar disso, e de se
aperceber, caçador desembriagado pelo olhar
pousado sobre o bicho morto, que tudo o que
fez foi levantar uma lebre que muitos outros já
tinham matado?"
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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Portanto, encontrar uma definição para
a palavra clichê é tarefa difícil; até porque
existem muitos pares "sinonímicos" para o
termo. Apesar de não ter o objetivo de defini-
lo ou mesmo separá-lo como uma forma
discursiva específica, pretendo levantar as
ocorrências, que ao longo dos tempos,
acabaram por se misturar no cotidiano dos
usuários, fazendo com que se transformassem
em clichês.
O clichê e o chavão se confundem no
discurso, adquirindo características de frases
feitas ou lugares comuns. Além disso,
nada garante a estabilidade dos conceitos,
uma vez que os próprios dicionários os
aproximam. Tudo depende do contexto em
que o termo ocorre das circunstâncias da
ocorrência, dos interlocutores envolvidos, da
conveniência de utilizar um termo de
preferência a outro e, até mesmo, de um
eventual "gosto pessoal" do locutor.
Dentre os mais citados como sendo
exemplos de clichês temos os
pensamentos, as máximas, os slogans e os
provérbios.
Reboul (1974:146) diz que essas formas
assumem papéis diferentes nas vozes
diferentes que as pronunciam. Um
pensamento, por exemplo, pode transformar-
se, conforme as circunstâncias: "a sentença
MENS SANA IN CORPORE SANO torna-se
máxima na ética de Spinoza, divisa no frontão
de um centro esportivo, clichê num discurso
oficial, slogan num cartaz reclamando créditos
para esportes".
Segundo Pécora (1986:84-5), o fantasma dos
lugares-comuns é gerado a partir de uma
imagem pré-fixada do interlocutor e tende a
desfigurar, no texto, as marcas de seu
produtor. "O ato de linguagem se anularia em
função da manifestação de um código 'a priori';
o seu uso não iria além da representação de
umas poucas regras e de um mesmo texto. “A
sua produção não faria mais ruído do que a
impressão de um clichê.”
A partir dos textos acima, é possível
concluir que o uso do lugar-comum nos textos
produzidos, principalmente por pessoas em
situação avaliativa é fruto de uma imagem
excessivamente rígida que o produtor faz de
seu interlocutor. Entretanto, a responsabilidade
por essa anti-imagem não deve ser atribuída a
um interlocutor particular. Prova disso é a
linguagem consagrada, codificada, utilizada
por muitos.
Quando o lugar-comum é muito utilizado
na escrita, fica patente o fracasso histórico da
mesma, uma vez que o seu uso é determinado
pelas condições de produção escolares. O
problema é a especificidade dessas condições
de produção de um gênero especial, o
"escolar". Ternos aí, então, a "ideologia da
reprodução", cuja conseqüência maior é o
apagamento da subjetividade e, por isso, da
interlocução.
O que garante, portanto, que um produtor
de texto seja sujeito do que diz e que, sendo
sujeito, se constitua também em autor, que é
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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um modo de o sujeito se manifestar, não é o
que ele o diz, mas a maneira como ele diz. Ou
seja, o sujeito pode ter seu texto construído
sobre as bases do discurso alheio, e garantir,
ainda assim, 'a autoria' do que escreveu.
O termo ideologia é bastante utilizado,
porém seu sentido é marcado por uma carga
afetiva muito grande, o que dificulta, de certa
forma, a possibilidade de dar-lhe uma definição
neutra. A questão, aliás, parece ser a da
"polifonia" do próprio termo. Costuma-se,
empregar o termo ideologia em sentidos
diferentes. Porém, qualquer sentido que se
queira dar ao termo corre o risco de ser, ele
mesmo, ideológico.
Para efeito deste trabalho, é necessário
assumir um ponto de vista da ideologia no seu
relacionamento com a linguagem, ou seja,
como é que a ideologia fala através dos
discursos. Só assim poderíamos estabelecer um
liame entre os termos ideologia e clichê. A partir
do conhecido quadro de Roman Jakobson
sobre as funções da linguagem traçará um
perfil da ideologia dos clichês.
O destinador não é um indivíduo, mas
um complexo de crenças de uma determinada
coletividade. Então, quem fala, na realidade, é
a vontade de poder de um grupo social, que se
dissimula sob uma linguagem aparentemente
objetiva e universal. A Função Expressiva
permite a identificação do grupo.
O destinatário do discurso ideológico é cada
membro do grupo, mas pode ser também o
adversário. A Função Incitativa pode
concretizar-se tanto através de promessas
como através de ameaças. A ideologia
incita melhor na medida em que ela sabe
dissimular a ordem ou a proibição. A
linguagem ideológica vê um certo
compromisso entre o imperativo e o indicativo
no juízo de valor: indicativo na forma e
imperativo no conteúdo. Porém, não é o juízo
de valor que faz a ideologia, mas seu caráter
maniqueísta - a oposição entre o bom e o mau, o
belo e o feio, o branco e o preto é que vai
designar aquilo que favorece ou ameaça a
coletividade. Assim, no lugar de explicar e
analisar, a ideologia julga e moraliza. A
incitação deve muito da sua eficácia ao não-
dito.
O referente mostra que, apesar de não
poder ser objetiva, a ideologia não deixa de ter
um objeto; ela fala de alguma coisa que a
fundamenta: um Deus, um ideal, como os
direitos do homem, um futuro, como a
sociedade sem classes. Mas, o referente é
sempre o outro, o invisível. A ideologia não
ignora os fatos, mas é obrigada a esconder os
que a desmentem. É uma das fontes da
violência que se exerce sobre e pela
linguagem. Por exemplo, a autocensura é uma
realidade lingüística - há palavras-tabus,
eufemismos, etc. Suprimir uma determinada
palavra do discurso pode significar negar o
objeto do discurso. A coerência de uma
ideologia não procede das idéias que ela
proclama, mas dos interesses permanentes do
grupo a que ela serve.
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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O código é a própria estrutura da
ideologia; cada ideologia possui seu
vocabulário de palavras-choque, de clichês, de
figuras, sendo o todo fundamentalmente
normativo. Transgredir o código lingüístico não
é um erro, mas uma falta, um crime às vezes.
A Função Metalingüística é repressiva:
condena todo ato contra o código. Porém, tal
condenação tem um aspecto positivo: a
inculcação do código, naquilo "que se diz" e
"que não se diz".
O contato é fundamental para a
existência da Função Fática que, por sua vez, é
essencial à ideologia, porém, ela pode
igualmente recusar o contato ou cortá-lo, como
nos casos de nacionalismo lingüístico em que
se pretende falar unicamente aos membros de
certa comunidade, falar para não ser
compreendido pelos outros. A Função Fática
põe em evidência a tomada do poder pela fala.
Nesse caso, a ideologia é um discurso que
censura outros discursos, confisca a palavra.
A mensagem, por ser ideológica, não
pode exprimir o que realmente é. No entanto,
ela precisa seduzir, tomando-se,
essencialmente retórica, transparente (leia-se
monofônica?) e concisa. Uma mensagem é
ideológica quando dissimula as figuras que a
tomam persuasiva e quando se atribui uma
transparência que não tem, quando oferecem
seus clichês como certezas.
Contudo, não devemos esquecer que a
ideologia não é apenas aquilo que é expresso
pelo comportamento. Estudar a ideologia de um
texto é saber ler o que está no "vão do
discurso”, no "não dito'
Na verdade, a ideologia de um
provérbio, por exemplo, pode mudar de acordo
com as circunstâncias em que for utilizado,
dependendo sempre de quem o utiliza, onde, e
porque o utiliza.
Por exemplo: É melhor prevenir do
que remediar tanto pode ser contra como a
favor da violência. Se empregado para
defender a pena de morte, o massacre aos
menores, o ataque aos sem-terra, etc., é
extremamente apelativo e violento. Se seu uso
for a favor da prevenção às doenças, numa
campanha de vacinação, por exemplo,
representa cautela e prudência.
Os provérbios são ingenuamente
considerados "sabedoria popular". Dizer isso
é não dar-se conta da contradição existente
entre eles e não perceber que talvez a melhor
classificação que poderíamos fazer dos
provérbios seria separá-los com base no fato
de que entre muitos deles há uma relação de
contradição. Sua existência mostra uma
sociedade heterogênea, o que acaba
produzindo um sujeito dividido (o mesmo
sujeito pode se dividir entre duas ideologias,
dependendo das circunstâncias).
Deus ajuda quem cedo madruga -
veicula a ideologia do trabalho e a
conseqüente ascensão social; é um estímulo
ao trabalho;
Quem nasceu pra tostão não chega a
cruzeiro - veicula uma ideologia mais
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determinista, que imobiliza, diz que não
adianta trabalhar, o destino já está traçado,
portanto propaga o conformismo.
Continuemos observando, nos exemplos
abaixo, como os provérbios ou frases feitas se
contradizem, ou seja, se adequara a diferentes
situações:
Dar a mão à palmatória X Não dar o braço a torcer A união faz a força X Cada um por si e Deus por todos Devagar se vai ao longe X Boi lerdo só bebe água suja
Percebemos, desta forma, que a
ideologia dos clichês é de natureza variada,
porém eles sempre têm o objetivo de veicular o
que, para um certo lugar ideológico, é uma
verdade. Assim, entende-se que os clichês
sejam de natureza contraditória, já que sua
verdade é de circunstância (de classe, de
ideologia): alguns clichês pregam a
prudência, outros instigam ao risco; uns
pregam o egoísmo, outros exaltam a caridade;
alguns defendem a resignação, outros, a
audácia diante dos fatos. Porém, o uso geral
desse tipo de clichê é específico, tem
endereço certo: são denunciadores,
consoladores, esperançosos, defensivos,
restritivos, avisadores, edificantes,
estimulantes, tranqüilizantes. Sua motivação
maior pode ser a injustiça, a desigualdade, a
paciência, a resignação, o fatalismo, a
preguiça, a imprudência, a bondade, etc. A
relação entre clichês e polifonia discursiva
pode ser evidenciada de duas maneiras. De
um lado, pelo fato de que há clichês para todos
os discursos. De outro, pelo fato de que tais
clichês podem ser objeto de um jogo, como
acontece com a inversão de provérbios. Ao
inverter o provérbio, o autor mostra não
necessariamente uma individualidade, como
se poderia pensar, mas produz um jogo
interdiscursivo, opõe uma ideologia a outra. É o
que faz Chico Buarque na música Bom
Conselho.
O que estou querendo mostrar é que os
sujeitos são divididos, heterogêneos e que a
ideologia não os toma, necessariamente,
lineares e previsíveis.
O que faz com que o sujeito seja
diferente na igualdade pode ser visto a partir
da idéia de Michel de Certeau, segundo a qual
os sujeitos não são meros consumidores, mas
usuários que sabem, na rotina do cotidiano,
personalizar o que usam e o que fazem.
BIBLIOGRAFIA
AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer - palavras e ação. Porto Alegre, Artes Médicas, 1990. AUTHIER-REVUZ, J. "Heterogeneidade(s) enunciativa(s)". in: Cadernos de estudos lingüísticos, 19, Campinas-SP, UNICAMP-IEL, 1984.
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
37
BAKHTIN, M. (Volochinov) Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, Hucitec, 1992.
"Os gêneros do discurso". in: Estética da criação verbal, Tradução de Maria Ermantina G.G. Pereira. São Paulo, Martins Fontes, 1992.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. CHAUI, Marilena O que é ideologia. São Paulo, Brasiliense, 1985. DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas, SP, Pontes, 1987 FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1986 (trad. de Arquéologie do savoir).
A ordem do discurso. Tradução de Sírio Possenti. Ijuí, FIDENE, 1973.
HALLIDAY, M.A.K. & HASAN, Ruqaiya Cohesion in English. London, Longman, 1976. JOLLES, André Formas simples. São Paulo, Cultrix, 1930. PÉCORA, Alcir. Problemas de Redação. São Paulo, Martins Fontes, 1986. REBOUL, Oliver O Slogan. São Paulo, Cultrix, 1975. SCHNEIDER, Michel. Ladrões de palavras. Campinas, SP, Editora da UNICAMP, 1990.
*Nair Gurgel do Amaral. Mestra em
Linguística pela UNICAMP, Professora
do Departamento de Letras da UFRO.
UMA CANADENSE APAIXONADA PELO UMA CANADENSE APAIXONADA PELO UMA CANADENSE APAIXONADA PELO UMA CANADENSE APAIXONADA PELO BRASIL: UMA LEITURA DE BRASIL: UMA LEITURA DE BRASIL: UMA LEITURA DE BRASIL: UMA LEITURA DE THETHETHETHE
BRAZILIANJOURNAL BRAZILIANJOURNAL BRAZILIANJOURNAL BRAZILIANJOURNAL DE P. K. PAGEDE P. K. PAGEDE P. K. PAGEDE P. K. PAGE
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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Miguel Nenevé Miguel Nenevé Miguel Nenevé Miguel Nenevé ****
Resumo : Diferente dos livros de literatura de viagem que apresentam o país estrangeiro com olhos imperiais minimizando a terra e o povo que vive ali, Brazilian Journal convida o leitor a ler o Brasil através de um olhar curioso e poético. Cada momento oferece uma nova descoberta, uma nova visão de beleza. Embora o livro seja em forma de diário, a autora não fala muito dela mesma, mas do Brasil cheio de alegria e beleza visto com olhos poéticos. Palavras – Chave : Beleza, Descoberta, Diário e Poético. Abstract : Unlike travel literature books that present the foreign country with eyes Imperial minimizing Earth and the people who lives there, Brazilian Journal invites the reader to read the Brazil through a curious look and poetic. Every moment offers a new discovery, a new vision of beauty. Although the book is shaped like a diary, the author doesn't speak much herself, but do Brasil full of joy and poetic beauty seen with eyes. KeyWords: Daily Beauty, Discovery, and Poetic.
Em 1957 a canadense Patrícia
Kathleen Page veio ao Brasil para
acompanhar o marido Atrhur Irwin que fora
nomeado embaixador do Canadá. P.K. Page
já era reconhecida como poeta no Canadá,
tendo inclusive recebido prêmio pelo livro
The Metal and the Flower. Chegando ao Rio
de Janeiro a então capital brasileira, Page iria
se encantar com o Brasil. Ali era pararia de
escrever poesia para retornar somente dez
anos depois. Mas no Brasil ela começaria a
pintar. No Brasil também ela escreveu um
diário que serviu de base para o livro
Brazilian Journal. Embora classificado
como literatura de viagem, a obra contém
muita linguagem poética e agradável. Neste
artigo pretendo explorar Brazilian Journal
como uma declaração de amor ao Brasil.
Diferente dos livros de literatura de
viagem que apresentam o país
estrangeiro com olhos imperiais
minimizando a terra e o povo que vive ali,
Brazilian Journal convida o leitor a ler o
Brasil através de um olhar curioso e
poético. Cada momento oferece uma nova
descoberta, uma nova visão de beleza.
Embora o livro seja em forma de diário, a
autora não fala muito dela mesma, mas do
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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Brasil cheio de alegria e beleza visto com
olhos poéticos. Quando fala de nossa
beleza natural, por exemplo, ao descrever
a praia de Ipanema: "The beach was
beautiful --- Slightly hazy. Black, Brown,
White Brazilians in futebol sweaters,
kicking the bal about in the thick, soft,
sand;" (A praia está linda --- levemente
brumosa. Pretos, mulatos e brancos
brasileiros em camisa de futebol chutando a
bola na areia grossa e macia.) Percebe-se
então que a prosa de Page carrega a
sensibilidade poética revelada em muitas
ocasiões. Falando de Florianópolis, a
autora diz: "A lovely drive. Ali along the
beautiful coast tumbling, tangling
vegetation, sweeping beaches, little island
and great smooth round stones in the sea...
(Uma viagem maravilhosa. Sempre ao
longo do lindo litoral --- vegetação
emaranhada e revolta, praias se arrastando,
pequenas ilhas e grandes pedras lisas e
redondas no mar). Como na sua poesia,
no Journal, os passarinhos também
aparecem freqüentemente "pulando de
alegria". As palmeiras do Brasil por sua vez,
muito "esbeltas e elegantes".
A observação da beleza natural, no
entanto, não faz com que a escritora deixe
de perceber o povo que ali habita sua cultura
e seu viver. Ela revela ter uma mente aberta
e sem preconceito para admirar o jeito de ser
dos brasileiros. O seu reconhecimento de sua
condição de "outsider" é importante para que
ela nunca faça generalizações e julgamentos
que possam diminuir o valor do povo que aqui
vive. “Portanto, mesmo revelando-se um
pouco colonialista ao apresentar o Brasil
como ‘um paraíso tropical”, a autora está
longe de julgar o país com olhos
"superiores" como era muito comum a
escritores de viagem nessa época.
Page revela uma grande disposição
para aprender sempre mais, ouvindo o povo,
participando de tudo o que pode para poder
imergir-se na cultura brasileira. Assim, o povo
brasileiro desempenha importante papel em
seu livro. Logicamente que sendo uma mulher
de embaixador, o primeiro contato que autora
tem com o povo brasileiro ficam restritos
aos seus empregados e autoridades
políticas. Seu interesse em conhecer o país,
no entanto, faz com ela visite museus e igrejas
cheios de arte onde ela aprende um pouco
da história e cultura brasileira. Ela fica
conhecendo famosos artistas já falecidos
e vivos. Não pode esconder, por exemplo,
sua admiração por Portinari que ela
"cumprimenta com um tipo de olho especial" .
A autora também ouve música brasileira, vê
nossos filmes e comenta sobre eles, vai a
estádio de futebol para se entusiasmar com
todo o movimento que permeia uma partida
de futebol. Ao lermos o seu livro podemos
perceber que sempre que possível ela estava
conversando com as pessoas e aprendendo
sobre o Brasil. O seu interesse em aprender
o nosso idioma logo no início revela sua
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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vontade de imergir-se melhor em nossa
cultura. Diferentemente de outros
estrangeiros vivendo no Brasil naquela época,
ela logo começa a usar o português em todas
as ocasiões. Na realidade ela critica
estrangeiros que passam anos aqui sem
interesse em aprender nossa língua e nossa
cultura.
Page critica, por exemplo, os
americanos que vêm ao Brasil só pelo
trabalho e lucro, mas que depois de muitos
anos não têm aprendido nada sobre o Brasil:
"Next Day another session of the North
American community. Very, very tiresome. It's
as if they have no eyes. For them Brasil is
nothing but a series os smells - ali
unpleasant!"(No próximo dia outra sessão com
a comunidade norte-americana. Muito, muito
cansativa. Parece que eles não têm olhos.
Para eles o Brasil não é nada mais que um
cheiro desagradável!). O leitor pode sentir
que às vezes a autora trata o Brasil como se
fosse seu próprio país sentindo-se ofendida
com aqueles que o olham como se fosse
uma terra de povo inferior. Em outra
ocasião, por exemplo, ela critica o espírito
colonizador de um empresário britânico no
Rio Grande do Sul: "Our Brites hosts were
astonishing by everything. They had lived
there twenty three years as if on the point of
returning "home" and so had taken little interest
in the local people or sights. The manager's
wife, in fact spoke hardly a word of
Portuguese..."(Nossos hóspedes britânicos
estavam assustados com tudo. Eles tinham
vivido ali vinte e três anos já quase retornando
para "casa" e tinham tido pouco interesse no
povo e na paisagem local. A esposa do
gerente falava malmente algumas palavras
em Português). Depois de ouvir dos
britânicos que no Brasil não há nem crânio
nem energia suficiente para dirigir uma
empresa, a autora reafirma sua repulsa contra
atitude colonial dos britânicos em relação aos
brasileiros: "É estranho que uma grande
percentagem de britânicos tenha esta atitude
em relação ao Brasil". Ela lembra depois que
esta atitude não é encontrada somente entre
britânicos, mas também entre canadenses. Ela
diz que no escritório canadense havia um
estenógrafo que desprezava os brasileiros
"que nem eram brancos". Quando a autora
teve que fazer uma cirurgia, a estenógrafa diz:
"Estou surpresa que você não fará a
operação em casa. Deve ser horrível pensar
que tem que ir a um hospital brasileiro."
Depois de relatar isso, a autora faz a sua
conclusão: "O preconceito não morre com
facilidade".
Brazilian Journal fornece ao leitor
uma série de comentários que mostram
como o autor se opõe à visão que considera
um povo como inferior ao outro. Seu livro
revela que há muitos estrangeiros que
detestam o Brasil, mas vivem aqui por que
aqui está seu "Bread and butter" ou por que
aqui há lucro melhor do que "em casa".
Muitas dessas pessoas com mente
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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colonizadora não seriam nada "em casa",
mas aqui num país economicamente inferior,
julgam-se superiores aos brasileiros. Até a
atitude do ministro canadense para
Assuntos Externos é criticada. Sobre ele, em
visita ao Brasil, Page diz: "Eu suspeito que ele
se deu melhor aqui do que em seu país onde a
gabolice conta menos". A mulher do ministro
por sua vez não demonstrou nenhum
interesse pelo Brasil e provavelmente "não
pode aprender nada sobre o Brasil".
Este amor de Page pelo Brasil, no
entanto não é ingênuo. A autora observa o
país com mente aberta, sem preconceito,
mas o critica também quando acha
necessário. Por exemplo, ela denuncia o fato
de nunca ter visto um negro em festa social.
A má distribuição de renda também não lhe
agrada. Infelizmente, diz ela, o Brasil tão
alegre forma "um mundo onde os ricos são
muito ricos e os pobres muito pobres". Esta
crítica não significa que ela se julga na posição
de julgar o país ou tratar como inferior ao
Canadá. Pelo contrário, quando fala do povo
Brasileiro ela confessa que ele é mais alegre e
mais festivo e mais livre que o canadense.
Amando a cultura do país, admirando
o seu povo, reverenciando a sua natureza
Page iria viver sempre mais a sua
brasilianidade. Quando ele recebe a notícia
que terá que deixar o país em 1959 por causa
da transferência de seu marido para outro
posto diplomático, ela proclama que não
tem "nenhuma vontade de sair". Mais tarde
ela diria: "porque nós somos brasileiros".
Pode-se dizer, então, que Brazilian
Journal é uma obra importante da literatura
canadense sobre o Brasil no tempo de
Juscelino Kubitscheck. Todo o brasileiro que
estuda literatura canadense ou brasileira como
também história e cultura brasileiras, deve
conhecer esta obra. É aqui que Page teve a
experiência de liberdade e a "visão de
beleza" como ela diz. Ela deixou o Brasil em
1959, mas o Brasil não deixou jamais a sua
mente. Em sua poesia e prosa posterior o
Brasil estará sempre presente. Escrevendo
para mim em maio de 1997 a autora diz:
"Indeed, my Brazilian Journal was a
declaration of Love. I was very happy in your
country and filled to the brim with the
beauty" (De fato minha obra Brazilian
Journal foi uma declaração de amor. Eu fui
muito feliz em, seu país. Eu fui
completamente inundada pela beleza).
*Miguel Nenevé. Professor Doutor do Departamento de Letras da UFRO.
REFLEXÕES SOBRE REFLEXÕES SOBRE REFLEXÕES SOBRE REFLEXÕES SOBRE O URBANOO URBANOO URBANOO URBANO
Carlos Santos*Carlos Santos*Carlos Santos*Carlos Santos*
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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Resumo : O que pretendo escrever é basicamente um depoimento. É o que percebo, vivencio e cotidiano no meu dia-dia. O que é urbano? Talvez uma trama intrincada de atividades. Tais atividades, ao que tudo indica, não teriam, a princípio, nada a ver com o que seja campo ou rural. Melhor dizendo, urbano por oposição ao rural. Urbano por quê? Ou por que rural? Não gostaria de citar ninguém. Quero caminhar no intuitivo, ou seja, já li teorias sobre o que seja urbano ou o que é definido como rural, de modo que o que deponho tem ranços acadêmicos ou formalistas. Declaro que o urbano é um modo de vida monetário. Palavras – Chave : Atividades, Cotidiano, Caminhar, campo, Rural e Urbano.
Abstract : What I write is basically a testimonial. Is what I understand, now experience and daily life in my day-day what is urban? Maybe an intricate plot of activities. Such activities, that would not, in principle, nothing to do with what is rural or field. Rather, as opposed to rural urban. Urban why? Or why rural? I do not want to quote anyone. I walk in intuitive, i.e. already li theories about what is or what is defined as rural, so that what has academic or formalistic . I declare that the urban is a way of life.
KeyWords : Activities, daily life, walking, field, Rural and urban.
O que pretendo escrever é basicamente
um depoimento. É o que percebo, vivencio e
cotidiano no meu dia-dia. O que é urbano?
Talvez uma trama intrincada de atividades.
Tais atividades, ao que tudo indica, não teriam,
a princípio, nada a ver com o que seja campo
ou rural. Melhor dizendo, urbano por oposição
ao rural. Urbano por quê? Ou por que rural?
Não gostaria de citar ninguém. Quero caminhar
no intuitivo, ou seja, já li teorias sobre o que
seja urbano ou o que é definido como rural, de
modo que o que deponho tem ranços
acadêmicos ou formalistas. Declaro que o
urbano é um modo de vida monetário. É
verdade que no campo as relações podem ser
monetárias, porém, salvo a ocorrência de
hortas ou similares no meio urbano, ganhar a
vida no urbano significa "batalhar grana" para
qualquer gesto de sobrevivência. E aí vale
tudo. E isso é precisamente o urbano. Ao
romper a solução de viver através da estreita
ligação com a terra, o urbano institui outra
forma de subsistência, qual seja o que
poderíamos chamar de instrumentalização de
si mesmo. Bom, de que urbano estamos
falando? Obviamente, estou imerso numa
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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metrópole, numa cidade grande de um
País Subdesenvolvido, cuja economia é de
cunho capitalista. Ora, trata-se do Rio de
Janeiro, o lugar por excelência do "pa-tro-pi"-; e
o que é o Rio de Janeiro? Há Zona Sul e há
Zona Norte, há o Centro e há também a Zona
Oeste; há um Rio múltiplo marcado pelas
nuances sociais e pela história. Mas há,
sobretudo, um Rio que é cidade, quer dizer,
que está organizado de acordo com os
parâmetros que balizam o que possa ser
chamado de urbano; melhor dizendo,
diferentes matizes de funções: comércio,
indústria, habitação e cultura. Sendo que cada
função desta aflora no espaço carioca de um
modo segregado. E este é o termo chave que
define a morfologia citadina: segregação
espacial de funções e atividades.
CADA COISA NO SEU CANTO: Por
uma forma "natural" tudo tende a ter o seu
lugar. A cidade não escapa dessa praxe.
Dentro dela as coisas se arrumam de acordo
com as funções a serem desempenhadas.
Assim, formas variadas de funções
caracterizam aspectos de objetos ou
construções que, no arranjo que tomam,
estruturam a face da cidade. Evidentemente
que tanto quanto, por exemplo, uma face
humana, que tem como ingredientes comuns
boca, nariz, olhos, ouvidos, a cara da cidade
(sem que eu queira ser funcionalista) também
tem elementos similares. Afora a presença de
um centro e de uma periferia, a cidade expõe
áreas marcadas por usos determinantes:
bairros de várias classes sociais, áreas
industriais, quarteirões de atividades
comerciais, terminais de transporte, hospitais e
escolas e prédios que abrigam o poder:
político, econômico e religioso. Tal variada
gama de funções forma um complexo de
atividade que define a cidade. A organização
da multiplicidade das coisas que se faz na
cidade tende a se aglomerar, a se juntar. Essa
condensação de atividades semelhantes se
expressa em determinados locais da cidade, o
que à semelhança da face, mostra a cidade. A
cidade é, basicamente, o que se faz nela. E o
que se faz nela? Mora-se. Quer dizer, a cidade
é antes de tudo morada, e porque é moradia
ela é meio de vida. Há por isso na cidade mil e
uma formas de "se virar": tanto lícita, quase
lícita ou ilicitamente. Como já disse, na cidade
qualquer gesto de sobrevivência é
desembolso, custa dinheiro. Então como
conseguí-lo? Eis a cidade. Ou seja, a cidade
capitalista. A cidade cuja vida é regulada
pelo mercado. E aí usar a cidade significa
pagar algo pela migalha do seu espaço. E o
que é o espaço da cidade? Um terrível
jogo de forças regido fundamentalmente
pelo interesse monetário. É o dinheiro que
comanda a cidade. E simplesmente porque a
cidade capitalista é intrinsecamente
mercadoria.
COMPRAR A CIDADE?: Dispondo
apenas de si enquanto força de trabalho, o
citadino, de acordo com a cotação que usufrui
no mercado, tem a sua localização sócio-
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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espacial determinada no urbano. Tal
cotação é o seu passaporte de ingresso e
permanência na cidade. A cidade, portanto, se
afigura como um cadinho de relações cultural-
sócio-econômicas regidas pelo signo mercantil.
Por outra, o valor em questão não é o
humano, mas sim a capacidade de ser
mercadoria. Pelo simples fato de ser pessoa,
não garante no Rio de Janeiro, pelo menos, a
ninguém o direito de sobreviver. É preciso ser
mercadoria. E só dessa forma é possível o
reconhecimento entre habitante e cidade. Pois
morar na cidade e ser cidade só é viável em
se tornando mercadoria. A cidade é comprada
em níveis de possibilidade pela moeda da
força de trabalho cujo câmbio é regulado pela
cotação que a qualidade de tal força de
trabalho obtém no mercado. Portanto, a
cidade é capital. E a lógica que direciona o
capital é a busca do lucro de qualquer forma. É
preciso que tudo desemboque no dinheiro.
Dessa forma, mil artimanhas estão e são
articuladas para fazer dinheiro. A força da
"grana” é o mecanismo básico que comanda
a vida da cidade.
O LUGAR DO URBANO: O lugar do
urbano se define pelo urbano do lugar, isto é,
pela eleição de um lócus de comando e de
decisão da instrumentalização de recursos
materiais e humanos. Embora, inegavelmente,
haja subjacente a esse processo a orientação
monetária, outra moeda também circula e
influencia o sistema: o prestígio. Este valor
nos remete para outra dimensão da cidade: a
esfera política. Enquanto que o econômico
amarra a cidade, como se ela fosse uma
imensa teia, em nós constituídos por miríades
de atividades, dando-lhe estrutura e forma; o
político ao administrar e gerir a cidade pode
interferir na sua forma e estrutura. O que quero
dizer é que a esfera política abre a
possibilidade da humanização da cidade.
Porque é possível ver-se a cidade pela ótica
da dialética político-econômica. Porquanto
capitalista, a cidade vive estruturalmente uma
tensão que é, em última análise, política: quem
usufrui do poder? Quem domina e quem é
dominado? Embora mercadoria, a cidade é o
lócus, por excelência, da cultura. O que
significa a possibilidade da aprendizagem de
sua decodificação. Sendo a cidade reescrita na
linguagem do capital ela tornou-se cifrada,
codificada. Ora, isso é imperativo para que o
véu que esconde a sua lógica não seja
rasgado e o seu fetiche mercantil não seja
desmistificado. Pois, antes de tudo, a cidade é
do burguês. Ora, por permitir que todas as
idiossincrasias se expressem para que possam
ser filtradas e cooptadas pelo consumo urbano
toma-se, por outro lado, berço e receptor de
inovações. Por isso mesmo a cidade é um
cadinho de gestação de mudanças. Nesse
sentido as massas dominadas têm a
possibilidade, via a conscientização política
de sua situação, decodificar e reestruturar a
cidade. A cidade gesta, portanto, da mesma
forma que os burgos medievais, uma nova
versão de espaço urbano: o lócus do povo.
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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ÚLTIMAS COLOCAÇÕES: Este
depoimento é minha leitura urbana pelas
lentes da geografia e quica da filosofia.
Entendo a cidade, como expus, como um ponto
de encontro de forças sociais que, ao sabor
do poder de suas correlações, traçam
resultantes históricas que indicam novos
horizontes para a humanidade. Vejo a
estruturação da cidade como uma
preparação do inusitado histórico. É uma
massa crítica que paulatinamente ensaia
detonar o novo. Portanto, a cidade é o útero
da mudança. E em se tratando de nós, da
realidade brasileira, o urbano avulta-se como o
lugar de fato do repensar do País. Se um novo
modelo sócio-espacial para o Brasil é urgente,
é no urbano que ele será ou já está sendo
elaborado. O crucial dessa questão é que o
lugar de algo tem precedência, ou seja, para
uma nova sociedade é mister uma nova
organização espacial. Quer dizer, é
necessário reorganizar espacialmente,
primeiro, o país para que efetivamente se tome
claro que há lugar para todos. Dessa forma
fica evidente o papel do geógrafo dentro da
realidade brasileira: propor um novo modelo de
organização espacial, onde, certamente, a
questão urbana é o centro de gravidade da
resolução.
*Carlos Santos. Mestre e Doutorando em Geografia
Humana pela UFRJ, Professor do Departamento de
Geografia da UFRO.
INDICAÇÕES PARA LEITURA
HARVEY, David. A Justiça Social e a Cidade.
São Paulo, Hucitec, 1980.
CORREA, Roberto L. O Espaço Urbano. São
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CASTELL, Manuel. A Questão Urbana. Rio de
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COLONIZAÇÃO E NATUREZA:COLONIZAÇÃO E NATUREZA:COLONIZAÇÃO E NATUREZA:COLONIZAÇÃO E NATUREZA: o trabalho o trabalho o trabalho o trabalho do homem e o trabalho dado homem e o trabalho dado homem e o trabalho dado homem e o trabalho da
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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mulhermulhermulhermulher
Arneide Bandeira CeminArneide Bandeira CeminArneide Bandeira CeminArneide Bandeira Cemin*
Resumo : Nossa hipótese de pesquisa pressupunha que as condições ecológicas de Rondônia modificariam a divisão do trabalho familiar, reduzindo particularmente a participação da mulher nas tarefas agrícolas da produção mercantil. Registramos, entretanto, que o fator ecológico intervém apenas no momento inicial, na derrubada e preparo do terreno para o plantio. Deste modo, nos propomos demonstrar que o fator preponderante da redução do trabalho feminino na atividade agrícola - segundo nossos dados - é a transformação tecnológica, apreendida do ponto de vista social e não técnico, uma vez que o modelo de trabalho.
Palavras – Chave : Mulher, Pesquisa, Produção Mercantil, Trabalho Familiar e Trabalho Feminino.
Abstract : Our hypothesis research thinks the ecological conditions of Rondônia would change the Division of family work, reducing particularly the participation of women in agricultural tasks of market output. We note, however, that the ecological factor intervenes only in the overthrow and staging ground for planting. Thus, we demonstrate that the predominant factor in the reduction of female labour in agricultural activity-according to our data-processing technology, seized from a social point of view and non-technical, since the job template.
KeyWords: Woman, Research, market output, Family Work and female labour.
Nossa hipótese de pesquisa
pressupunha que as condições ecológicas de
Rondônia modificariam a divisão do trabalho
familiar, reduzindo particularmente a
participação da mulher nas tarefas agrícolas
da produção mercantil. Registramos,
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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entretanto, que o fator ecológico intervém
apenas no momento inicial, na derrubada e
preparo do terreno para o plantio. Deste modo,
nos propomos demonstrar que o fator
preponderante da redução do trabalho
feminino na atividade agrícola - segundo
nossos dados - é a transformação
tecnológica, apreendida do ponto de vista
social e não técnico, uma vez que o modelo
de trabalho parece pautar-se naquilo que
Balandier (1976) chamou de "estrutura
intangível", fundamentada na tradução dos
dados de natureza em fatos de cultura.
Heredia (1979) e Garcia (1983)
ressaltaram a relação de oposição entre a
casa e o roçado, em contraposição à idéia de
concebê-los enquanto unidade de produção e
consumo visto como fato único. Segundo estes
autores, a análise de tal oposição, longe de
negar a especificidade da economia
camponesa, contribuem para o
aprofundamento de sua compreensão.
Em concordânc ia com a úl t ima
assertiva dos autores citados,
acrescentaríamos no que se refere a primeira
proposição dos mesmos, que a relação não é
apenas de oposição, mas é também relação
ambígua, de oposição complementar. Deste
modo, a oposição casa-roçado é representada
ao mesmo tempo enquanto par oposto e
complementar.
Oposto, na medida em que a casa
consome os produtos do roçado "in natura" ou
mediados por processos mercantis.
Complementar, porque a casa é vista como
espaço necessário e fundamental. É a casa
que dá sentido à existência do roçado e nesse
contexto, a casa é a própria representação
da família. Sua relação com o roçado,
portanto, não é só de oposição, mas também
de complementaridade. A relação neste caso
não seria nem de superioridade nem de
inferioridade, mas simétrica, conforme nos
esclarece um colono:
O roçado produz e a roça consome, mas se não tem família não precisa de roça, os dois são importante igual...
Ternos ainda, com relação ao trabalho
de Heredia, a visão diferenciada no que diz
respeito à posição do homem enquanto
significante da família e, consequentemente,
da casa. Segundo a autora:
A casa é concebida como o lugar da mulher por excelência. No entanto, por ser o homem, o pai da família, quem através do roçado, providencia os meios necessários para a existência dos alimentos que serão consumidos na casa, é ele responsável, em última instância, pela casa e esta não é concebida sem a sua presença, delineando-se dessa forma o esquema de autoridade doméstica (HEREDIA,1979:79).
Diferentemente da autora, os nossos
dados indicam que embora o homem seja a
autoridade máxima, definindo inclusive o
funcionamento das tarefas domésticas, é a
mulher quem personifica a casa e,
consequentemente, a família.
Temos então, uma representação
social dupla, decorrente do esquema ao
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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mesmo tempo oposto e complementar já
citado: de um lado, é o homem o responsável
direto pelo abastecimento da casa, o elo social
de ligação entre a família e o mundo exterior à
casa. De outro lado, o homem sem a mulher,
homem solteiro, mesmo sendo proprietário de
lote e habitando uma casa exatamente igual
a todas as outras, é socialmente
desvalorizado. Neste sentido, o que atribui
valor social ao homem é a mulher. É a união,
social e biologicamente fecunda, entre o
homem e a mulher que contribui como
elemento para a constituição social do
indivíduo, instaurando nele uma espécie de
obra "civilizadora", ou melhor, socializadora:
"O casado tem mais valor, o solteiro não tem definição de nada. Pega dinheiro gasta tudo e depois vem batendo com a mão na bunda. O casado tem mais responsabilidade. Antes de eu adquirir esse lote aqui, eu era peão. Quer dizer... não era porque eu tinha família... -Mas o senhor não tinha terra...
-É, eu não tinha terra mas eu tinha família... Quer dizer, eu era peão de trecho... -E quem não tem terra? -Aí é bóia-fria, é família que não tem lugá pra morá, pé-de-ferro. “Peão é pessoa que não tem família...”
Embora não havendo precisão
classificatória quanto à categoria peão,
interessa-nos reter que há disposição social
para a distinção valorativa entre os casados e
os solteiros, sendo abundantes as referências
e contextos em que os colonos acentuam a
desvalorização social dos últimos. Por outro
lado, a produção teórica sobre o
campesinato ressalta o importante papel
que o casamento representa no contexto
agrário, constituindo-se numa espécie de
marco social ou rito de passagem para uma
fase adulta e independente da autoridade
paterna. Assinalando, em nosso entender, o
reconhecimento social do ser socialmente
"total". Não mais parte do todo, indicado pela
posição de filho na casa paterna, mas
através da união com o elemento feminino,
institui-se a relação capaz de "totalizá-lo"
enquanto ser social, e ainda de engendrar,
reproduzir e recriar a relação primordial, ou
seja, a condição necessária para o
surgimento da nova família e, por extensão, da
nova unidade de produção familiar.
Se, de acordo com o que postulamos,
trata-se da relação de oposição-
complementar, segue-se que deparamo-nos
com uma relação ambígua, tensa, onde as
representações podem apontar ora para os
aspectos de complementaridade, ora para os
aspectos de oposição; por não estarem
organizadas em narrativa sequencial,
encontrando-se na verdade dispersas,
fragmentadas ou em paradoxos, só um esforço
de compreensão pode resultar no processo de
reelaboração de sua totalidade.
Os processos desencadeados pela
divisão do trabalho talvez sejam os
portadores de um maior número de elementos
reveladores da tensão entre oposição e
complementaridade. Heredia assinala que:
"A oposição casa-roçado delimita a área do trabalho e do não trabalho,
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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assinalando os lugares femininos e masculinos a essa divisão" (HEREDIA, 1979:79).
Os dados de Cemin (1992) realmente
constatam esse tipo de formulação nas
representações dos colonos, conforme
podemos ver explicitamente através da fala
daquele que nos hospedou na linha 643,
quando classifica as categorias "trabalho" e
"serviço":
"Fazer uma coisa é trabalho, cuidar é serviço. Por exemplo, o café secando no terreiro já deu trabalho (durante todo o seu ciclo produtivo no roçado), mas agora já tá secando (no terreiro) é serviço. Limpar a casa, fazer comida, lavar roupa, varrer um terreiro... é serviço..."
Assim, o esforço do homem aplicado
à terra é considerado "trabalho"; a mesma
atividade, no mesmo espaço, quando
executada pela mulher, é considerada
"ajuda". Mesmo o esforço feminino aplicado
aos espaços considerados de esfera
feminina - a casa, o terreiro - não é
considerado "trabalho", sendo designado
pela categoria "serviço". Não é, portanto, o ato,
ou espaço em si, que são considerados mas, o
significado social de que são revestidos.
Consequentemente, não são dados de
natureza tais como o dispêndio de energia
humana aplicado ao objeto também natural - a
terra -, ou ao espaço já elaborado pelo
trabalho - o roçado. Trata-se de dados de
natureza traduzidos em fatos de cultura, o que
nos instiga a indagar sobre o ordenamento
social que os institui.
Uma chave importante para a
compreensão da dialética entre oposição e
complementaridade na relação homem/mulher,
encontra-se na citação anterior, onde o colono
nos diz que "fazer uma coisa é trabalho, cuidar
é serviço". Ora, quem faz a casa, o terreiro, o
roçado, e os filhos são os homens; é ele (o
homem) quem desencadeia, no universo social
camponês, o processo criativo, gerador. Em
todas essas atividades a mulher entra com a
parte complementar, de preservação e
cuidados.
O homem constrói a casa, ela a
embeleza, perpassa-a de cuidados cotidianos.
O homem derruba a mata original e limpa o
terreno onde se implanta a casa e o terreiro. A
mulher cuida da manutenção, carpindo-o e
varrendo-o quase que diariamente,
ornamentando-o com flores e semeando-o de
plantas medicinais. Cabe ao homem todas as
tarefas de preparo da terra para a implantação
do roçado, considerando-se como tarefa
feminina o plantio, particularmente pelo
processo de semeadura e colheita
atividades, portanto, complementares. Por fim,
é o homem quem deposita no interior da mulher
(outra metade) a semente que dará origem a
um novo ser, cabendo a mulher cuidados
necessários ao bom termo do processo.
Deste modo, o natural informa e
organiza o social, conferindo-lhe
inteligibilidade e ordem. "Fazer" uma coisa é
trabalho, atributo masculino. "Cuidar" de uma
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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coisa é serviço, atributo feminino. Muito nos
intrigou o fato de vermos os atos de
pensamento e de lazer serem incluídos na
categoria "serviço". Tal fato desmorona
qualquer visão parcial que considerasse a
relação homem/mulher, e consequentemente
"trabalho" e "serviço" como de mera oposição
e sustentáculo para a reprodução do esquema
de autoridade masculina. Vejamos, então, nas
palavras do colono que nos hospedou na linha
643, a riqueza e sutileza que pautam o
pensamento camponês:
"O trabalho é o principal, o serviço é pensamento, o serviço faz uma partizinha do pensamento da pessoa. Fazê uma viagem, cortá cana, fazer cerca... Tudo é trabalho. Domingo, dia de encontro das pessoas, uns usa pra ir à igreja, outros pra ir na casa de uni, não pode ir na casa de todo mundo, lá se encontra, tudo faz parte de um trabalho, porque ele pensou é serviço, fez é obrigação. Jogar bola faz parte do serviço porque pensou, mas é uma obrigação. Diversão é trabalho e serviço. Descanso é ficar sem fazer nada, deitar, sentar... trabalho é obrigação, pensou é serviço, realizou é trabalho. São três coisa diferente que forma uma coisa só..."
Ora, segundo nosso entender, as
categorias "trabalho" e "serviço" são
designadores de diferenças que se pretende
explicitar; mas, não comportam apenas a
"oposição", trazendo em si a marca da tensão
entre a oposição e a complementaridade. Isto
porque a categoria "serviço", além de
traduzir a diferença entre a atividade
feminina e a atividade masculina,
designada pela categoria "trabalho",
enquanto dispositivo classificatório, inter-
relaciona também, duas categorias de
atividades: uma categoria de atividade
considerada "leve", o serviço; outra
considerada "pesada", o trabalho.
Atribui-se socialmente à mulher,
tarefas consideradas "leves" e compatíveis
com sua condição física. Tal atribuição tem
como ponto de partida a função biológica de
portadora das condições de "germinação e
crescimento das sementes de uma nova vida",
(função esta que a impede, por exemplo, de
assumir integralmente todas as etapas do
trabalho agrícola). Mas, por tratar-se de
uma designação construída socialmente, o
"leve" passa a ser tudo aquilo que a resultante
da tensão entre oposição e complementaridade
conseguir designar por "serviço".
Deste modo, não é apenas a
comparação objetiva entre o dispêndio de
energia física empregada para a consecução
de determinada tarefa que determina o
caráter "leve" ou "pesado", visto sob uma ótica
de inerência ao dado da realidade; mas, ao
contrário, o elemento de determinação é dado
pela resultante relacional da oposição e da
complementaridade, onde cada um opõe-se ao
outro, esperando obter maior espaço para
preservação e realização social de si
mesmo, buscando na oposição a
complementação necessária de si mesmo e
dos processos de criação e reprodução da
unidade familiar de produção.
A resultante relacional da oposição e da
complementaridade ressalta um dado que nos
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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parece importante, e que não foi apreendido
pela análise de Heredia (1979): o contra-
discurso feminino. Ou seja, se há um discurso
masculino que "nega" à mulher o
reconhecimento de seu trabalho, tomando-
a semelhante a um ser socialmente
dependente e incompleto; o contra-discurso
feminino procura garantir a especificidade do
ser feminino, visando proteger-se da dupla
jornada do trabalho - casa/roçado. Deste modo,
nossa anfitriã da linha 643, logo na primeira
visita nos inquiriu:
"A senhora me fez muitas perguntas e eu quero fazer também. A senhora acha que serviço de mulher não tem valor? Meu marido não dá valor. Só pra trabalho na roça. Mas eu acho que a mulher trabalha mais, porque trabalha em casa e na roça..."
Conclui recorrendo à autoridade paterna
e às condições tomadas claras antes do
casamento:
"Meu pai não me criou trabalhando na roça (seu pai era agricultor) e quando casei avisei pra ele (marido) que não sou mulher de pegá na foice, na enxada... que isso não é serviço pra mulher."
Outra informante relata:
"A mulher sofre demais com as consequências da vida, quer comprar alguma coisa para os filhos, mas não pode, isso tudo é sofrimento. O serviço de roça é muito pesado, não é serviço de mulher. A gente trabalha (na roça) pra ajudá o marido em algum ponto, mas não é fácil..."
Deste modo, a tensão estrutural
oposição-complementaridade, que perpassa a
relação masculino/feminino, sustenta-se na
ambiguidade e no confronto explícito ou
implícito para determinar o limite entre o
"trabalho" e o "serviço". Portanto, enquanto o
discurso masculino nega o dispêndio de
energia feminina, não aplicando às atividades
no roçado o estatuto de "trabalho", a mulher
em contrapartida aciona o dispositivo da
especificidade feminina visando diminuir a
extração de sobre trabalho. Assim, o
discurso masculino, ao negar existência ao
trabalho feminino, não o faz apenas para
reproduzir o esquema de autoridade
masculina, já assinalado por Heredia (1979),
mas também por considerá-lo insuficiente.
Isto parece ficar muito claro quando nos
deparamos com a introdução de novas
tecnologias, mesmo que muito simples,
como é o caso da plantadeira manual. As
mulheres foram quase unânimes em afirmar
que deixaram de participar do processo de
plantio - trabalho reconhecidamente feminino,
conforme os estudos de Heredia (op. Cit.) e
Garcia (1983), a partir da aquisição da
plantadeira manual.
Este dado nos remete a pelo menos
dois aspectos importantes: o primeiro diz
respeito aos processos gerais de socialização
da mulher que reproduzem continuamente a
interiorização do sentimento de incapacidade
para atividades ditas complexas. O segundo
aspecto parece indicar o uso que a mulher faz
dessa condição de "ser - inepto", visando
preservar-se da dupla jornada de trabalho.
O caso da plantadeira manual nos
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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parece exemplar. As mulheres recusam-se a
utilizá-la e justificam: "é porque eu não entendo
o jeito de batê ela". Entretanto, o uso da
plantadeira exige uma simples coordenação de
pernas e braços - a cada passo fechar e abrir o
instrumento - e não exige sequer esforço físico
adicional, visto tratar-se de instrumento leve.
Quando manifestamos o desejo de ver
uma plantadeira em funcionamento e a
experimentamos pessoalmente, o marido logo
disse à mulher: "olha corno ela usa a
plantadeira, sem nunca ter visto uma...". A
insistência com que ele repetia a frase
explicitava o desejo de que a mulher fizesse
uso da plantadeira, visto que é possível
triplicar a área de plantio, utilizando-a. Por
outro lado, a pouca convicção com que a
mulher argumentava não saber utilizá-la,
deixava claro a falta de interesse em sua
utilização.
Um raciocínio apenas pautado por
médias estatísticas poderia supor que o fato
de haver uma minoria de mulheres que
utilizam plantadeira manual, seria indicativo
de que a plantadeira enquanto instrumento de
trabalho é responsável pelo afastamento das
mulheres dos processos de plantio, tarefa
secularmente reconhecida como feminina.
Nosso ponto de vista identifica no embate
entre a "exigência" masculina para a
utilização da plantadeira pelas mulheres, e a
recusa destas em utilizadas, uma luta social
pela extração de sobre-trabalho, que se
expressa por uma luta pelo estabelecimento de
"fronteiras", de limites entre o "trabalho",
masculino, e o "serviço", feminino. Deste
modo, a questão da introdução de novas
tecnologias não é apenas técnica, mas
também social. Se não são os dados de
natureza e os dados técnicos substanciais em
si mesmos, mas sim dados de natureza e
dados técnicos traduzidos em fatos de cultura
que instituem o social, retomamos a indagação
sobre o ordenamento social que os institui, na
tentativa de sua compreensão.
Garcia e Heredia - em obras por nós já
amplamente citadas e com as quais vimos
dialogando no decorrer desta análise -
trabalham com a hipótese da oposição entre a
casa e o roçado, enquanto expressão da
oposição entre o elemento masculino e o
elemento feminino, organizando as esferas do
trabalho e do não-trabalho, e servindo como fio
condutor das representações e formas de
organização do tempo e do espaço social no
universo camponês.
Entretanto, nossas conclusões postulam
que a noção não é apenas de oposição, mas
sim de oposição-complementaridade,
incluindo-se nesse modelo todo um conjunto
de relações, inclusive as que dizem respeito
aos processos de produção da reprodução
física e social das unidades de reprodução
familiar. Concluímos que o modelo de
trabalho pauta-se por aquilo que Balandier
(1976) chamou de "estruturas intangíveis":
aquelas que põem em destaque as classes
sociais, as classes de idade e as classes
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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sexuais, com relevo para o dualismo
sexualizado, suas representações, suas
ideologias e os dinamismos elementares que
engendram.
Garcia, no último capítulo de sua obra,
apoiado teoricamente em Bourdieu e Leach,
utilizou-se da hipótese de que o modelo de
trabalho agrícola é o ato de fecundação que
os homens realizam sobre a terra, retomando
então, em uma análise aplicada, a estrutura do
mito de fecundação, ressaltando as oposições,
sem, contudo explicitar complementaridade
que, em nosso entender, é inerente à
oposição. Consideramos que o " lócus"
social de transmutação das oposições
em complementaridade é o próprio sujeito,
pois conforme Leach nos ensina a noção de
oposição entre duas oposições implica a
existência da terceira entidade - a coisa que
oscila, o "eu" que a um momento encontra-se
à sombra e em outro momento encontra-se
exposto à luz.
Postulamos que a representação sobre
o modelo de trabalho tem por matriz a
reelaboração do modelo geral da oposição-
complementaridade entre o masculino e o
feminino. É a partir dessa matriz que os colonos
do Projeto de Assentamento - P.A. Vale do
Jamary reelaboram suas representações.
Estivemos tentando comprovar, ao longo do
presente tópico sobre a divisão do trabalho,
como as categorias que o ordenam têm por
modelo inconsciente aquela relação de
oposição-complementaridade. Veremos agora,
como as condições climáticas da Amazônia,
e as condições econômicas e políticas dos
colonos são ordenadas em categorias que
expressam o modelo citado. Explicitaremos
esta correlação através das categorias que
designam o tempo, o tipo e o espaço de
trabalho. Começando pelas categorias que
designam o tempo, estaremos chamando de
tempo - I, o "tempo da seca" e de tempo - II, o
"tempo das águas".
No tempo - I predomina o "tempo da
seca", simbolizado pelo sol, elemento
masculino, sendo que o tipo de trabalho
desenvolvido nesse período é aquele ligado ao
preparo da terra, todo ele constituído por
atividades consideradas masculinas, como é o
caso do roço, da derrubada e das queimadas.
É o momento em que o trabalho nega a
vegetação espontânea, através da derrubada,
para em seguida superá-la da forma mais
radical possível, pelo fogo, através das
queimadas.
Até mesmo o espaço do trabalho
remete à representação pertinente à
masculinidade, uma vez que predomina o
trabalho "fora". Vejamos estas idéias
resumidas no quadro abaixo:
Para o tempo
de trabalho
Para o Espaço
do Trabalho
Tipo de Trabalho
Elemento Natural de Mediação do
Trabalho
Águas Trabalho Dentro
Plantio Colheita
Água Terra
Semente
(Fem.) (Fem.) (Fem.) (Fem.)
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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Tempo 1- CATEGORIAS SOCIAIS
No tempo - II predomina o "tempo das águas", simbolizado pela lua, elemento feminino; e o tipo de trabalho é aquele ligado ao plantio e à colheita, atividades consideradas femininas. É o momento em que o homem deposita a semente no interior da terra e espera que as chuvas continuem regulares para que a semente germine dando origem à planta socialmente útil ao grupo familiar. O espaço do trabalho remete à uma representação relacionada ao feminino, visto que predomina o trabalho dentro. Vejamos o quadro para o "tempo das águas":
Tempo - II - CATEGORIAS SOCIAIS:
ORG. CEMIN (1992)
As oposições entre os tempos - "tempo das águas" e "tempo da seca"; entre a designação referente ao espaço do trabalho "dentro" e "fora"; as oposições que designam o tipo de trabalho (roça, derrubada e queimada) contraposto ao plantio e à colheita, e a oposição dos elementos naturais de mediação do trabalho, sol e fogo contrapostos à água e à semente - são ordenadas, práticas e simbolicamente, de modo a operarem a transformação de suas oposições em complementaridade capazes de garantir a reprodução física e simbólica das unidades de produção familiar. O sujeito social aparece como "lócus" de transformação das oposições em complementaridade, ou seja, como tradutor de dados de natureza em fatos de cultura. O espaço da elaboração é social e, consequentemente, perpassado de tensões e de ambiguidades. As trilogias homem, sol, terra; homem, lua e terra marcam oposições
entre os tempos, que por sua vez designam os espaços e os tipos de trabalho; traduzindo dados de natureza em fatos de cultura, de tal modo que as oposições naturais è sociais são transmutadas em complementaridades, capazes de garantirem a reprodução física e simbólica das unidades familiares de produção.
BIBLIOGRAFIA
BALANDÍER, Georges. Antropo/Lógicas. São Paulo Cultrix/EDUSP, 1976. CEMIN, Arneide Bandeira. Colonização e Natureza: análise da relação social do homem com a natureza na colonização agrícola e Rondônia, Dissertação de Mestrado (Sociologia). Porto Alegre, UFRGS, 1992. GARCIA, JR. Alrânio R. Terra de Trabalho: trabalho familiar de pequenos produtores. Rio de Janeiro, Paz c Terra, 1983. HEREDIA, B. M. Alasia. A Morada da Vida: trabalho familiar de pequenos produtores do nordeste do Brasil. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979. LEACH, Edmund. Deux essais concernant la representation symbolique du temps. Critique de la Antropologie, Paris, Press Universitaire de France.
*Arneide Bandeira Cemin. Professora do
Departamento de Filosofia e Sociologia da UNIR,
doutoranda em Antropologia pela Universidade de São
Paulo.
O TRABALHO SILENCIOSO DA MULHER O TRABALHO SILENCIOSO DA MULHER O TRABALHO SILENCIOSO DA MULHER O TRABALHO SILENCIOSO DA MULHER NO INTERIOR DA FLORESTANO INTERIOR DA FLORESTANO INTERIOR DA FLORESTANO INTERIOR DA FLORESTA
Para o tempo de
trabalho
Para o
Espaço do Trabalho
Tipo de
Trabalho
Elementos Naturais de
Mediação do Trabalho
Tempo da Seca Trabalho Fora
Roço Derrubada Queimada
Sol Mat. Orgânica
Veg. Fogo
(Masc.) (Masc.) (Masc.) (Masc.)
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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AMAZÔNICAAMAZÔNICAAMAZÔNICAAMAZÔNICA
Maria das Graças NascimentoMaria das Graças NascimentoMaria das Graças NascimentoMaria das Graças Nascimento*
Resumo : Este texto é parte integrante de um dos capítulos da Dissertação de Mestrado "O Espaço Ribeirinho: migrações nordestinas para os seringais da Amazônia". Fundamentado essencialmente nas entrevistas realizadas entre 1995 e 1996 com mulheres que trabalharam no corte da seringa, revelando o duro cotidiano da mulher que além de mãe, esposa, doméstica, ainda acrescentava à rotina exaustiva do corte, coleta e defumação do látex. Durante a realização dos trabalhos de campo foram entrevistadas várias mulheres que também exerceram a atividade do corte e da coleta do látex. Palavras – Chave : Atividade, Coleta do Látex, Cotidiano, Migrações e Mulher.
Abstract : This text is an integral part of one of the chapters of the degree dissertation "The Riverside Area: Northeastern migrations for rubber tapping from Amazon". Based primarily on interviews conducted between 1995 and 1996 with women who worked on the cut of the syringe, revealing the hard everyday woman and mother, wife, still added to the home of cutting, smoking and collection of latex. When the work of field were interviewed several women who also exercised the activity from the cutting and collecting of latex. KeyWords : Activity, Collection of Latex, daily life, Migrations and Woman.
Este texto é parte integrante de um dos
capítulos da Dissertação de Mestrado "O
Espaço Ribeirinho: migrações nordestinas para
os seringais da Amazônia". Fundamentado
essencialmente nas entrevistas realizadas
entre 1995 e 1996 com mulheres que
trabalharam no corte da seringa, revelando o
duro cotidiano da mulher que além de mãe,
esposa, doméstica, ainda acrescentava à
rotina exaustiva do corte, coleta e defumação
do látex.
Durante a realização dos trabalhos de
campo foram entrevistadas várias mulheres
que também exerceram a atividade do corte e
da coleta do látex. Esse fato exigiu atenção
maior, visto que esta é uma realidade até
então pouco conhecida, e embora esta
pesquisadora tenha em sua família pais e avós
seringueiros, havia tido poucas informações
sobre a amplitude do trabalho feminino no
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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seringal.
O trabalho da mulher no seringal
incorpora uma sobrecarga de atividades que vai
da coleta do látex e defumação, aos afazeres
domésticos como cuidar da casa, família, roça
e das criações domésticas.
Embora o trabalho da mulher no
cotidiano do seringal não ficasse em nada a
dever ao trabalho executado pelo homem, a
estrutura da sociedade do seringal não admitia
o contrato de trabalho enquanto seringueira e,
em conseqüência, não era permitido o seu
cadastramento no Barracão e movimentação de
conta no mesmo. Neste sentido, todas as
ações da mulher eram contabilizadas de forma
indireta, através do nome de seu companheiro,
mesmo que este não estivesse mais vivo. Esta
situação inviabiliza a aposentadoria das
mulheres na categoria de seringueiro, com
direito a receber dois salários mínimos.
A participação da mulher na sociedade
do seringal deu-se de diversas formas. Uma
delas é um tipo de prostituição, onde o próprio
seringalista oferece mulheres para acompanhar
o seringueiro solteiro nas colocações. Sendo
empregada do Barracão, tomava-se
companheira do seringueiro que não podia
maltratá-la. Em caso de maus-tratos, a mulher
retomava ao Barracão aguardando para servir
a outro seringueiro. Vários desses contratos
resultavam na oficialização do relacionamento
e a mulher deixava de ser empregada do
barracão para ser esposa de seringue: iro.
Segundo entrevista com um historiador da
região, professor Amizael Gomes da Silva
(entrevista em 1995): ...essas mulheres acertavam o contrato de um ano... e prosseguiam, ali;umas delas, até faziam o trabalho de "par-e-passo" com o companheiro, e há outras que se limitavam ao serviço domiciliar, trabalho que servia como consolo; o companheirismo amenizava bastante a situação do seringueiro que se encontrava na floresta
Existia também o contrato de
"casamento" por tempo determinado ou não
com a presença de testemunhas, mas, tanto no
contrato de trabalho ou no de casamento, essas
mulheres eram lançadas como mercadoria na
conta corrente do seringueiro. No trecho desta
entrevista percebemos que já era uma prática
nos seringais este tipo de contrato:
Já em 1910, nós temos documentos que comprovam esse tipo de contrato, contrato escrito... a gente lendo documentos que foram enviados por Belfort de Oliveira que era um oficial aqui, a gente lendo esse documento verifica que existiam aquelas mulheres que faziam o contrato com os seringueiros para ficar. Talvez elas tenham feito esse contrato em função dos contratos de casamento que existiam na Bolívia que as pessoas assinam para viverem juntas. Assim os nossos seringueiros faziam para viver durante determinado período.
O objetivo do seringalista era fazer com
que o seringueiro não perdesse tempo no trato
doméstico ou na procura de mulheres em
lugares distantes, tendo o mesmo que dedicar-
se ao corte da seringa, dando conta da
produção.
As entrevistas revelam três causas
principais da presença da mulher no corte da
seringa. A primeira é a necessidade dos pais
em aumentar a renda utilizando-se da mão-de-
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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obra familiar, que incluía as filhas ainda
pequenas, que achavam natural ajudar no
sustento da família. O dia-a-dia destas
mulheres é repetitivo, pois a realidade é muito
dura, não importando se o seringal está
localizado em outros Estados como Acre,
Amazonas Pará ou Rondônia. Em entrevistas
realizadas entre 1995 e 1996 com as mulheres
estas revelam o que sentem e pensam sobre o
trabalho que executaram:
Eu comecei a cortar com a idade da seringa, com uns treze anos, a gente no seringal quando vê os pais da gente começando aí a gente aproveita. A minha história é semelhante a de milhares de crianças e de jovens que viveram nos seringais da Amazônia (...) Eu comecei a trabalhar com meu pai desde muito criança, mas na atividade da extração da borracha da seringa eu comecei a partir dos onze anos, era natural, pois eu não conhecia outro tipo de trabalho (...) e isso chega a fazer parte da cultura das pessoas que trabalham na roça e que toda família desde cedo começa a ajudar. Com onze anos eu já cortava seringa com meu pai, me casei com treze anos e continuei no corte (...) trabalhei uns sessenta anos no seringal. Trabalhei no seringal do rio Abunã (...). Eu comecei com dez anos de idade, a caneta que meu pai me deu foi uma faca de cortar seringa. Eu não sei nem assinar meu nome (...) o trabalho que eu fazia era cortando, colhendo, defumando, tirando cavaco pra defumar.
Os trabalhadores nos seringais
começavam a trabalhar ainda na infância,
como a maioria dos trabalhadores rurais, mas
nos seringais era mais dura essa realidade
pelo isolamento. A organização do espaço no
seringal possibilitava, na maioria das vezes, o
isolamento praticamente de tudo. A Colocação
poderia estar na beira do rio ou no meio da
mata e, muitas vezes, distante umas das
outras e distante, ainda, do confessam que só
sabiam que existiam as pessoas de sua família,
como o depoimento de Dona Juta, que vive
hoje na Colônia Agrícola do IATA, em
Rondônia, declara que, quando tinha uns
quinze anos, mudou de um seringal para outro
e, até então, a única pessoa que conhecia fora
da família era o comboieiro que comprava a
borracha e trazia os mantimentos para eles na
Colocação.
A segunda causa do trabalho da
mulher no corte da seringa é a decisão de
ajudar o marido, que, endividado no Barracão,
não vê outra saída. Algumas mulheres
seringueiras entrevistadas, narram desta
forma:
Me casei com dezoito anos e continuei trabalhando com ele no corte da seringa. Eu saia assim seis horas para cortar aquelas voltinhas de cem madeiras, aí quando dava onze horas eu chegava para cuidar da comida e dar o almoço pra ele (...) às vezes eu já deixava tudo pronto, aí eu ia cortar, ia caçar, cuidar da roça... Cortava seringa à noite porque o dia era para fazer farinha (...). Aí tive o primeiro filho, ele ficava à noite dormindo em casa (...). Depois os mais velhos iam cuidando dos mais novos, ás vezes tinha onça esturrando perto de casa, eu deixava eles trancados em casa e ia cortar... Trabalhei, trabalhei muitas vezes grávida, tive vinte e quatro filho, criei onze, tudo no seringal (...). Quando eu comecei com filho parei de sair de madrugada para cortar (...) me casei com dezesseis anos de idade hoje tenho sessenta e três e parei de cortar depois que viemos pra cá, está com uns sete anos que nós estamos aqui.. Eu nunca fui cai ida.O rapaz foi no Ceará e me carregou e veio me judiá aqui eu tinha treze anos quando cheguei no seringal (...) Vixi, se eu lhe contar o quanto eu sofri.., todos os filhos foram criados na estopa,
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botava aqui nas costas e saia, quando dava vontade de ele mamar eu tirava, dava a mama, procurava uma grota e banhava (...) Cortava seringa, mesmo pra morrer. Eu saí porque não podia mais trabalhar.
Estas mulheres não somente
trabalhavam mais duramente que os homens,
mas também contribuíam para o "bem-estar da
família". Desde a mais idosa até a mais jovem
dedicam-se intensamente a todos os tipos de
atividade.
A terceira causa, é a perda ou a
invalidez do chefe da família, pai ou mando;
neste caso, a mulher assume todas as
"estradas de seringa", recaindo sobre ela a
responsabilidade não só de garantir o
sustento da família como também saldar os
débitos no barracão. Nas entrevistas estas
mulheres falam de seus momentos difíceis e
de sua coragem:
Eu passei um ano e seis meses viúva, no seringal do rio Abunã, cortando seringa sozinha. Eu cortava por dia de oitenta a noventa árvores (...). Saia de madrugada com a espingarda e mais uma poronga. Não tinha medo da mata, a gente se acostuma com os bichos e os bichos se acostumam com a gente, o seringueiro é um bicho (...). E você pensa que é só chegar e cortar? A gente chega mede as bandeiras aí raspa pra tirar essa casca grossa, fica só a vermelhinha e o corte mede uma "chave" (Uma "chave" é a medida que se refere a distância entre as extremidades dos dedos indicador e polegar) é tudo direitinho.(...) Cortar seringa é trabalhoso.. Meu marido morreu de câncer e eu fiquei sem apoio nenhum (...). Cortei muita seringa, mesmo doente, saí do seringal com quarenta e dois anos porque não podia mais trabalhar (...) Devido eu não saber ler o patrão não me deu saldo, não ligaram muito pra mim... Eu conheci uma mulher que o marido dela tinha ficado inválido sem condições de trabalhar. E ela que passou a cortar durante um ano para pagar as mercadorias compradas no barracão. Eles
passaram muitas necessidades, ela não sabia atirar então não matava caça. Ela tinha um bebê que ainda mamava no peito e uma maiorzinha, então quando ela chegava em casa amamentava o bebê e tirava ainda restante do "leite" para fazer um mingau para a menina maiorzinha, pois não tinha nada para comer, ela conseguiu pagar o barracão e ainda tirou um saldozinho e foram embora.
De uma forma ou de outra, a presença
da mulher na formação social dos seringais
torna-se decisiva, na medida em que ela
executava atividades necessárias para a
subsistência da família, permitia ao seringueiro
uma jornada menos exaustiva e uni aumento
de produção em virtude de uma dedicação
maior dela ao extrativismo. E o seringal deixa
de ser um acampamento só de homens. A
presença da mulher nos seringais é um dos
fatores que contribuíram para a fixação do
homem em um ambiente isolado como é o
dos seringais; com isso, toma-se um
empreendimento sócio-econômico
organizado e produtivo para os seringalistas.
Atualmente boa parte das mulheres
seringueiras está organizadas em
Associações, Sindicatos e Cooperativas, e
uma porcentagem significativa de mulheres
faz parte do Conselho Nacional de
Seringueiros (CNS) e da Organização de
Seringueiros de Rondônia (OSR).
Recentemente realizaram o "Primeiro Encontro
de Mulheres Seringueiras do Estado de
Rondônia", onde se discutiu temas como: o
processo de organização social da mulher,
saúde, educação, e aposentadoria para as
mulheres seringueiras.
REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Març.-N° 11, Vol II, 1998.
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BIBLIOGRAFIA
NASCIMENTO, Maria das Graças. O Espaço Ribeirinho: migrações nordestinas para os seringais da Amazônia. Dissertação de Mestrado, FFLCH-DG/USP, São Paulo, mimeo. 1996.
*Maria das Graças Nascimento. Mestra em Geografia Humana pela USP, Pesquisadora do Centro do Imaginário Social/UFRO, pesquisadora-associada do Laboratório de Geografia Humana e Planejamento Ambiental.